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Donas Das Dores No Laço Da Verdade

Donas Das Dores No Laço Da Verdade

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo- Puc-SP

Karine Freitas Sousa

Donas das dores no laço da verdade:

Violências contra mulheres trabalhadoras nos quadrinhos

Doutorado em Ciências Sociais

São Paulo 2016

DONAS DAS DORES NO LAÇO DA VERDADE:

VIOLÊNCIAS CONTRA MULHERES TRABALHADORAS

NOS QUADRINHOS - cover, ju.2004) IdentityCrisis Arte: MichaelArte: Turner( http://www.dccomics.com/graphic-novels/identity-crisis-new-edition Fonte:

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo –PUC-SP

Karine Freitas Sousa

DONAS DAS DORES NO LAÇO DA VERDADE: VIOLÊNCIAS CONTRA MULHERES TRABALHADORAS NOS QUADRINHOS

Tese apresentada à Banca Examinadora do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais, como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor em Ciências Sociais (Sociologia), sob a orientação da Prof.ª Dra. Carla Cristina Garcia.

São Paulo 2017

Banca examinadora

AGRADECIMENTOS

A Eu Sou. Agradeço ao Divino e ao Amor que sempre estiveram comigo em todos os momentos da elaboração desta tese. À minha professora Carla Cristina Garcia, pela sua generosidade em compar- tilhar conhecimentos, paciência e cujo exemplo de militância nos estudos e causas das mulheres me despertaram como feminista. Eternamente grata. A Jorge, meu amado companheiro, por absolutamente tudo. A toda minha família, especialmente às mulheres que mobilizaram outras mu- lheres em suas comunidades religiosas, e criaram redes incríveis de orações que alimentavam a minha fé. Aos professores Rita Alves e Francisco Greco, pelas contribuições significati- vas durante a qualificação da tese, e pela ampliação da oportunidade de aprendiza- do. À professora Mônica Mac-Allister, pelas conversas que me despertaram para a ampliação do tema iniciado no mestrado. À minha colega e amiga de todas as horas em São Paulo, Edineide Oliveira, pelos bons momentos que passamos e por seu carinho e acolhida quando precisei. Aos colegas de curso, pelas provocações que me fizeram avançar na pesqui- sa. A todos os amigos, pela paciência com as minhas ausências e pelas palavras de apoio que recebi. À Secretaria da Pós-Graduação em Ciências Sociais/PUC-SP, em especial a Kátia da Silva, assistente da coordenação, pela compreensão das minhas necessi- dades e apoio nos trâmites burocráticos.

RESUMO

As representações das mulheres nas mídias e nas artes explicitam imagens e lin- guagens que, quando associadas à violência, contribuem para a manutenção de es- tereótipos e perpetuam a cultura machista. Algumas profissionais/trabalhadoras nas histórias em quadrinhos passam por violências de ordem moral, psicológica, emo- cional e física, onde os usos da banalidade, do chiste e da licença poética funciona- ram como ferramentas para seu exercício no mundo ficcional. Esta tese identifica violências contra personagens mulheres, secretárias, nos quadrinhos em tessituras com o feminismo. Estabelece como em uma dita “profissão de mulher”, mesmo nos quadrinhos, ocorrem as relações entre os sexos, e como são refletidas as mentali- dades coletivas do patriarcado que promovem e mantêm as desigualdades de gêne- ro em caráter subalterno.

Palavras-chave: Mul- heres.Secretárias.Violência.Feminismo.Patriarcado.Quadrinhos.

ABSTRACT

Women’s representations in the media and arts show images and languages which associated to violence contribute to the conservation of stereotypes and perpetuate the sexist culture. Some professionals / workers in comics suffered moral, psycholog- ical, emotional and physical harassment which were allowed in the fictional world by the use of trivialities, jokes and poetic license. This thesis detects violence against women characters, secretaries in comics in tessitura with feminism. It also establish- es how the sexual relations occur in the so called “women profession” even in the comics, as well as how the relations are reflected in the collective mentalities of the Patriarchy that provide and also keep the gender inequalities in a subordinate status.

Keywords: Women. Secretaries. Harassment. Feminism. Patriarchy. Comics.

RESUMEN

Las representaciones de las mujeres en las medias y en las artes explicitan imáge- nes y lenguajes que, cuando asociadas a violencia, contribuyen para el manteni- miento de estereotipos y perpetuán a la cultura machista. Algunas profesiona- les/trabajadoras en las historias en los comics sufrieron violencias de orden moral, psicologica, emocional y física, donde los usos de banalidad, del chiste y de la licen- cia poética funcionaron como herramientas para su ejercicio en el mundo ficcional. Esta tesis identifica violencias contra personajes mujeres, secretarias, en las viñetas en tesituras con el feminismo. Establece como en una dicha “profesión de mujer”, aún en los comics, ocurren las relaciones entre los sexos, y como son reflejadas las mentalidades colectivas del patriarcado que promueven y mantienen las desigualda- des del genero en carácter subalterno.

Palabras-clave: Mujeres.Secretarias.Violencia.Feminismo.Patriarcado.Comics.

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1- Garcia...... 19 Figura2- Drummond...... 62 Figura 3- Nochlin ...... 74 Figura 4- Hilst...... 75 Figura 5- Pollock ...... 77 Figura 6-Woolf...... 79 Figura 7-Lispector...... 80 Figura 8- Foucault...... 82 Figura 9- Perrot...... 89 Figura 10- Bécassine ...... 93 Figura 11- Reclame de uma escola de datilografia...... 97 Figura 12-Margaret Sanger...... 111 Figura 13-Mulher Maravilha disfarçada de Secretária...... 116 Figura 14- Mulher Maravilha e o convite para ser secretária ...... 117 Figura 15- Mulher Maravilha e o convite para ser secretária ...... 117 Figura 16-Mulher Maravilha e o convite para ser secretária ...... 117 Figura 17- Mulher Maravilha fica para trás quando há algum combate.. 119 Figura 18- Chamada das histórias...... 120 Figura 19- Mulher Maravilha fica para trás quando há algum combate.. 120 Figura 20- Máquina do tempo ...... 122 Figura 21- Diálogo entre mãe e filha...... 122 Figura 22-O Livro de Ouro do Recruta Zero, n.4, 2016, p.114 ...... 130 Figura 23- O Livro de Ouro do Recruta Zero, n.1, 2014, p.25 ...... 134 Figura 24- O Livro de Ouro do Recruta Zero, n.1, 2014, p.114-115...... 135 Figura 25- O Livro de Ouro do Recruta Zero,n.1, 2014, p.115...... 136 Figura 26- O Livro de Ouro do Recruta Zero, n.1, 2014, p.116...... 137 Figura 27- O Livro de Ouro do Recruta Zero, n.1, 2014, p.116 ...... 138 Figura 28- O Livro de Ouro do Recruta Zero,n.1, 2014, p.116...... 138 Figura 29- O Livro de Ouro do Recruta Zero, n.1, 2014, p.117...... 140 Figura 30- O Livro de Ouro do Recruta Zero, n.4,2016, p.115...... 140 Figura 31- O Livro de Ouro do Recruta Zero, n.4, 2016, p.116...... 140 Figura 32- O Livro de Ouro do Recruta Zero, n.1, 2014, p.117...... 141 Figura 33- O Livro de Ouro do Recruta Zero,n.1, 2014, p.117...... 142 Figura 34-O Livro de Ouro do Recruta Zero, n.1, 2014, p.117...... 142 Figura 35- O Livro de Ouro do Recruta Zero, n.1, 2014, p.118...... 143 Figura 36-O Livro de Ouro do Recruta Zero, n.1, 2014, p.119...... 144 Figura 37- O Livro de Ouro do Recruta Zero, n.1, 2014, p.119...... 144

Figura 38-O Livro de Ouro do Recruta Zero, n.1, 2014, p.121...... 145 Figura 39-O Livro de Ouro do Recruta Zero, n.1, 2014, p.122...... 146 Figura 40-O Livro de Ouro do Recruta Zero, n.1, 2014, p.122...... 147 Figura 41- O Livro de Ouro do Recruta Zero, n.1, 2014, p.123...... 147 Figura 42-O Livro de Ouro do Recruta Zero, n.1, 2014, p.91...... 148 Figura 43- O Livro de Ouro do Recruta Zero, n.1, 2014, p.119...... 149 Figura 44-O Livro de Ouro do Recruta Zero, n.1, 2014, p.123...... 149 Figura 45- O Livro de Ouro do Recruta Zero, n.1, 2014, p.124...... 150 Figura 46-O Livro de Ouro do Recruta Zero, n.1, 2014, p.124...... 151 Figura 47-O Livro de Ouro do Recruta Zero, n.1, 2014, p.124...... 152 Figura 48- O Livro de Ouro do Recruta Zero, n.1, 2014, p.125...... 153 Figura 49- O Livro de Ouro do Recruta Zero, n.3, 2015, p.68...... 154 Figura 50- O Livro de Ouro do Recruta Zero, n.1, 2014, 155 p.50...... Figura 51-Dona Tetê despida ...... 155 Figura 52-GeraldãoEspocando a Cilibina! Nos gibis da Circo Editorial, 2011, p.154 ...... 161 Figura 53-GeraldãoEspocando a Cilibina! Nos gibis da Circo Editorial, 2011, p.155 ...... 162 Figura 54-GeraldãoEspocando a Cilibina! Nos gibis da Circo Editorial, 162 2011, p.155 ...... Figura 55-GeraldãoEspocando a Cilibina! Nos gibis da Circo Editorial, 2011, p.155 ...... 163 Figura 56-GeraldãoEspocando a Cilibina! Nos gibis da Circo Editorial, 2011, p.156 ...... 163 Figura 57- GeraldãoEspocando a Cilibina! Nos gibis da Circo Editorial, 2011, p.157 ...... 164 Figura 58-GeraldãoEspocando a Cilibina! Nos gibis da Circo Editorial, 2011, p.157 ...... 165 Figura 59-GeraldãoEspocando a Cilibina! Nos gibis da Circo Editorial, 2011, p.157 ...... 165 Figura 60- GeraldãoEspocando a Cilibina! Nos gibis da Circo Editorial, 2011, p.158 ...... 166 Figura 61-GeraldãoEspocando a Cilibina! Nos gibis da Circo Editorial, 2011, p.120 ...... 168 Figura 62-GeraldãoEspocando a Cilibina! Nos gibis da Circo Editorial, 2011, p.121 ...... 168 Figura 63- GeraldãoEspocando a Cilibina! Nos gibis da Circo Editorial, 2011, p.121 ...... 169 Figura 64-Geraldão – A Genitália Desnuda – Participação Especial Do- na Marta & Vicente Tarente, L&PM, 2010, p. 68 ...... 170 Figura 65-Geraldão – A Genitália Desnuda – Participação Especial Do-

na Marta &Vicente Tarente, L&PM, 2010, p.70 ...... 170 Figura 66- Geraldão – A Genitália Desnuda – Participação Especial Do- na Marta & Vicente Tarente, L&PM, 2010, p.69 ...... 172 Figura 67- Geraldão – A Genitália Desnuda – Participação Especial Do- na Marta & Vicente Tarente, L&PM, 2010, p.62 ...... 172 Figura 68- Geraldão – A Genitália Desnuda – Participação Especial Do- na Marta & Vicente Tarente, L&PM, 2010, p.85...... 172 Figura 69-GeraldãoEspocando a Cilibina! Nos gibis da Circo Editorial, 2011, p.262 ...... 174 Figura 70-GeraldãoEspocando a Cilibina! Nos gibis da Circo Editorial, 2011, p.155 ...... 174 Figura 71- : Preciso de Férias! (3) Porto Alegre, RS: L&PM, 2012, p.8 ...... 181 Figura 72-Dilbert 4: Trabalhando em Casa! Porto Alegre, RS: L&PM, 2009, p 130 ...... 181 Figura 73- Dilbert 4: Trabalhando em Casa! Porto Alegre, RS: L&PM, 2009, p, 127 ...... 181 Figura 74-Dilbert: Preciso de Férias! (3). Porto Alegre, RS: L&PM, 2012, p. 98 ...... 182 Figura 75- Dilbert 5: Odeio Reuniões! (3). Porto Alegre, RS: L&PM, 2009, p. 92 ...... 183 Figura 76-Dilbert 5: Odeio Reuniões! (3). Porto Alegre, RS: L&PM, 2009, p. 113 ...... 183 Figura 77-Dilbert 5: Odeio Reuniões! (3). Porto Alegre, RS: L&PM, 2009, p. 128 ...... 184 Figura 78-Dilbert 5: Odeio Reuniões! (3). Porto Alegre, RS: L&PM, 2009, p. 128 ...... 184 Figura 79- Dilbert 5: Odeio Reuniões! (3) Porto Alegre, RS: L&PM, 2009, p. 55 ...... 184 Figura 80- Dilbert4: Trabalhando em Casa! / Porto Alegre, RS: L&PM, 2009, p. 107 ...... 185 Figura 81- Dilbert 5: Odeio Reuniões! (3). Porto Alegre, RS: L&PM, 2009, p. 84 ...... 185 Figura 82- Dilbert 4: Trabalhando em Casa! Porto Alegre, RS: L&PM, 2009, p. 48 ...... 186 Figura 83- Dilbert: Preciso de Férias! (3). Porto Alegre, RS: L&PM, 2012, p. 105 ...... 186 Figura 84- Dilbert 4: Trabalhando em Casa! Porto Alegre, RS: L&PM, 2009, p.128...... 187 Figura 85- Dilbert 4: Trabalhando em Casa! Porto Alegre, RS: L&PM, 2009, p. 10 ...... 187

Figura 86- descontrolada durante uma reunião...... 191 Figura 87- Alice sendo assediada pela chefia. Beleza 1 ...... 191 Figura 88- Alice sendo assediada pela chefia. Beleza 2...... 191 Figura 89- Alice sendo assediada pela chefia. Beleza 192 3...... Figura 90- Alice em consulta com o Médico...... 192 Figura 91 - Alice e as alterações no corpo decorrentes do traba- 193 lho...... Figura 92- Alice e carga horária de trabalho...... 194 Figura 93- Mara Tara...... 201 Figura 94-Mara Tara e o assédio sexual...... 201 Figura 95- Mara Tara e o assédio sexual 2...... 202 Figura 96- A transformação em Mara Tara...... 203 Figura 97- As taras dos caras...... 204

Quadro 1- Temas das narrativas com protagonismo das secretárias..... 133 Quadro 2-Personagens das tirinhas Dilbert, de ...... 178 Quadro 3- Temáticas envolvendo a secretária Carol ...... 179 Quadro 4- Temáticas mais recorrentes - engenheira Alice...... 190

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...... 14

1 A COMPLEXA HISTORICIDADE DOS QUADRINHOS!...... 31

1.1 ORIGENS E CONTROVÉRSIAS ...... 31

1.2 A ILUSTRAÇÃO COMO PRECURSORA ...... 32

1.3 MULHERES NO LIMBO – NOTAS SOBRE AS AUSÊNCIAS ...... 35

1.4 SYNDICATES, ARTE E CONSUMO ...... 42

1.4.1 A tirinha ...... 44

1.4.2 As Eras dos quadrinhos ...... 46

1.5 A PLURALIDADE DA APARENTE SIMPLICIDADE DOS QUA- DRINHOS: ESTRUTURA E SENTIDO ...... 50 . 1.6 ESTRUTURAS DOS QUADRINHOS ...... 58

1.7 UM PANORAMA DOS QUADRINHOS NO BRASIL ...... 64

2 ESPAÇOS E IMAGENS DE VIOLÊNCIAS CONTRA MULHERES ... 73

2.1 A ARTE EXCLUDENTE ...... 76

2.2 A GENIALIDADE COMO FATOR DE EXCLUSÃO ...... 77

2.3 A MULHER E O TRABALHO ...... 84

2.4 MULHERES AO TRABALHO, NOS QUADRINHOS ...... 90

2.5 AS MULHERES E A PROFISSÃO DE SECRETARIADO ...... 94

2.6 A VIOLÊNCIA INSCRITA NOS PADRÕES ESTÉTICOS ...... 104

2.7 A MULHER MARAVILHA, UMA HEROÍNA SECRETÁRIA ...... 109

3 WHO´S THAT GIRL?...... 127

3.1 ENTRE ASSÉDIOS E ASSEDIADORES: DONA TETÊ E SOL- 127 DADA BLIPS NO QUARTEL ......

3.2 DONA MARTA, A SECRETÁRIA TARADA ...... 158

3.3 CAROL E AS BARBÁRIES DO OFÍCIO ...... 176

4 FENÔMENO DA DIFERENÇA – MUDAM AS PROFISSÕES, 189 MAS E A VIOLÊNCIA?......

4.1 ALICE, A ENGENHEIRA SURTADA ...... 189

4.2 MARA TARA, UMA DOUTORA VICIADA EM SEXO ...... 195

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...... 210

REFERÊNCIAS ...... 217

14

INTRODUÇÃO

Esta tese identifica violências patriarcais contra mulheres trabalhadoras retra- tadas nos quadrinhos, sob reflexões pautadas no feminismo. Utilizamos estratégias qualitativas para desenhar uma visão exploratória e particular, a fim de destacar o predomínio de violências machistas em representações femininas nos quadrinhos. A motivação inicial para este estudo se explica pelos interesses de uma leitora que, desde criança, não se enxergou nas personagens das histórias em quadrinhos (HQs), tirinhas ou graphic novels. Em outras ocasiões, viu-se nesses meios, repre- sentada como mulher, de uma forma depreciativa, o que produzia mal-estar e a in- comodava. Nosso contato inicial com os textos e imagens das HQs, durante a infância, condiz com a natureza do público infanto-juvenil para quem os quadrinhos foram, originalmente, criados no meio jornalístico. Mesmo hoje, o acesso aos quadrinhos ocorre na infância, mantendo, assim, certa tradição histórica de público. De fato, a leitura dos quadrinhos marcou nossa infância e juventude, mas foi o nosso desenvolvimento acadêmico, na produção de uma dissertação de mestrado, que evidenciou haver algo errado sobre as mulheres nesses meios. O objetivo da dissertação foi conhecer os antecedentes históricos de uma profissão – a de secre- tariado – quase que completamente desempenhada por mulheres no século XX. His- toricizar essa profissão foi necessário porque as secretárias figuram no universo das “mulheres públicas” de Perrot (1998), identificadas como territórios das vontades do patriarcado. Além disso, não há, no Brasil, livros que tragam uma composição histó- rica dessa profissão de modo mais aprofundado. Os resultados do trabalho indicaram prejuízos decorrentes do machismo para as mulheres. No esforço de conhecer a história de uma profissão que, no Brasil, in- clui mais de dois milhões de mulheres com carteira assinada, nossos resultados a- pontaram como foram duplamente violentadas: tanto por sua condição feminina quanto pelos estereótipos relacionados à profissão nas mídias. Verificamos, ainda naquele trabalho, que as secretárias foram intencionalmente retratadas no cinema, nas músicas, nos quadrinhos, nas novelas, nos programas de TV, nos materiais pu- blicitários e midiáticos diversos sob a pecha da violência machista. Nesta tese, partimos desses referenciais de vida e da nossa pesquisa do 15

mestrado, mas focamos nossos esforços no conteúdo dos quadrinhos, objetos com- plexos e polissêmicos, um tipo de arte visual e também considerados veículos de comunicação da cultura de massa. Asseveramos, entretanto que nossa principal mo- tivação para a pesquisa se relaciona com a compreensãode a violência de gênero que concebemos, neste lócus,conter questões relevantes para os estudos das mu- lheres. Nos espaços ficcionais da chamada “nona arte”1, é possível verificar fragmen- tos de violência, produções e reproduções culturais de natureza patriarcal, condizen- tes com correntes teóricas do feminismo. Sob esse prisma, realizamos análises do objeto quadrinhos, violência e mulheres, localizando esta investigação na linha de Produção Simbólica e Reprodução Cultural, do programa doutoral em Ciências So- ciais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Aqui ampliamos e aprofundamos o nosso olhar, ao analisarmos outras perso- nagens, e construímos reflexões tecidas em diálogos com o feminismo. A originali- dade desta pesquisa consiste, portanto, na ausência de trabalhos que tratem, espe- cificamente, das violências contra as mulheres trabalhadoras nos quadrinhos. No Brasil, os estudos que apontam as violências de gênero nos variados meios de co- municaçãoe nas artesainda são incipientes, principalmente quando se trata da nona arte. A defasagem de estudos sobre mulheres e quadrinhos nas Ciências Sociais permite-nos explorar um campo fecundo para consequentes avanços nos estudos relacionados à civilização da imagem e mulheres. Para isso, é necessária a criação de um corpus teórico, o que também influiu em nossa proposta. Os diminutos espaços polissêmicos da arte sequencial, quadrinhos, permitem explorar e expandir as discussões sociológicas a respeito das mulheres e do femi- nismo, justamente por seu caráter inter, multi e transdisciplinar. A maneira como as mulheres trabalhadoras são retratadas nos quadrinhos contribui para, historicamen- te, divulgar, manter e/ou reforçar as diferenças das relações de gênero, principal- mente se se considerar que a mulher trabalhadora ainda é vista na atual sociedade

1 O termo é aceito e utilizado pelos historiadores e pesquisadores de quadrinhos. Sua origem é base- ada na continuidade de classificação de Ricciotto Canudo que, em 1923, publicou o “Manifesto das Sete Artes”: 1ª Arte – Música (som); 2ª Arte – Dança/Coreografia (movimento); 3ª Arte – Pintura (cor); 4ª Arte – Escultura (volume); 5ª Arte – Teatro (representação); 6ª Arte – Literatura (palavra); 7ª Arte – Cinema (integra os elementos das artes anteriores). Novas sistematizações por estudiosos incluem hoje: 8ª Arte – Fotografia (imagem); 9ª Arte – Quadrinhos (cor, palavra, imagem); 10ª Arte – Jogos de Computador e de Vídeo (que, no mínimo, integra as 1ª, 3ª, 4ª, 6ª, 9ª arte); 11ª Arte – Arte digital (inte- gra artes gráficas computorizadas 2D, 3D e programação). Em tempo, a revista do principal Núcleo de Pesquisa em Quadrinhos do Brasil na ECA-USP, chama-se Nona Arte. 16

brasileira sob estereótipos que consideram a existência das ditas “profissões femini- nas”. As “profissões de gênero” podem ser compreendidas como uma construção social sobre as relações e as diferenças entre os sexos (PERROT, 2010, p.187) e funcionam como partículas das mentalidades coletivas vinculadas às desigualdades entre as pessoas. Uma profissão caracterizada como feminina – ou o lugar permitido à mulher – émais uma manifestação da dominação patriarcal. Em nossa pesquisa, localizamos, nos quadrinhos, semelhantes conceitos, discursos, imagens e imposi- ções do machismo com relação às mulheres, em épocas não muito distantes. Para alcançar nossos objetivos, definimos uma periodização posterior aos anos 1970, que vai até meados dos anos 2000, concomitante a determinadas fases do feminismo. Incluímos um breve histórico, a partir da década de 1930, sobre as primeiras discussões contra e a favor dos quadrinhos no Brasil, decorrentes das dis- cussões em países onde já havia uma maior produção e distribuição de HQs. Isso nos permitiu conhecer os cenários e circunstâncias em que os quadrinhos tramita- ram em nosso país. Nosso corte temporal considerou, para análise, os quadrinhos dos cenários posteriores aos anos 1970, em face das grandes lutas do feminismo que visavam ao direito ao corpo, à sexualidade e ao trabalho fora do lar – questões que coadunam com as situações das personagens analisadas. Essas pautas alcançaram o Brasil, mesmo quando em menor proporção. Concentramos nossa investigação em perso- nagens femininas estrangeiras e nacionais que representavam, na arte sequencial, trabalhos semelhantes aos desempenhados por mulheres na vida real. Selecionamos, aleatoriamente, algumas personagens estrangeiras e brasilei- ras, secretárias, frente aos altos volumes de tiragens de suas publicações no perío- do determinado para pesquisa, considerando os seguintes critérios: tiragens das pu- blicações, personagem mulher, atividade profissional desempenhada (secretariado). A periodização justifica-se pelo fato de coincidir com uma maior inserção das mulheres no mercado de trabalho brasileiro, concomitante ao movimento da contra- cultura no Ocidente e a intensificação das questões e lutas feministas. Nossas exce- ções temporais dizem respeito à Mulher Maravilha, por se tratar de uma personagem icônica e setuagenária que se inscreve também no período que destacamos, mas cujos começos, em 1942, apresentam violências das quais tratamos e que interessa- ram à pesquisa. Nessa exceção temporal, precisamos pontuar Miss Buxley (Dona 17

Tetê) e Soldada Blips, oriunda na década de 1950, que, de igual modo, atravessa- ram o tempo sendo perpetuadas em publicações até hoje. Explicada a exceção tem- poral, apresentamos a Mulher Maravilha como mote para o nosso estudo, diante de sua importância no mundo da nona arte. Daí situarmos algumas provocações rela- cionadas à personagem na atividade secretarial. As reações das mulheres quanto às violências contra o gênero nos quadri- nhos sempre existiram, como apontam Zanatta, Zaghini e Guzzetta (2009), Madrid (2013), Gusman (2015)e Trina Robins (1993), artista dos quadrinhos norte- americana e militante feminista. Não foram poucas as organizações que publicaram quadrinhos e que receberam cartas e reclamações de mulheres contra os abusos neles verificados. O trabalho feminino, de modo autônomo ou coletivo, na criação dessa arte sequencialé, de certo modo, um fenômeno mais recente de ruptura com esse mer- cadoe, principalmente, de enfrentamento do patriarcado na área, abordando temas discutidos pelo feminismo, como “homossexualismo, orgasmo e aborto” (SINCLAIR apud ROBINS, 1993 p.4) em suas produções. Houve o surgimento e o aumento de publicações que romperam com o siste- ma de livros que, regular e majoritariamente, apresentavam histórias dos quadrinhos pela visão masculina, destacando sempre artistas e trabalhos masculinos. De modo geral, a ênfase histórica e de produção da nona arte está centrada nos trabalhos quadrinísticos dos homens, o que não dista das imposições patriarcais nas outras formas de artes e na história. Os ângulos da exclusão das mulheres no mercado de quadrinhos explicitam outras formas de violências que, para nós, aludem aos “trabalhos dos sexos”e estão centradas na defesa de nichos pelo patriarcado, como a história e a arte, algo que perdura ainda hoje. Embora o feminismo no Brasil ainda seja “pequeno em termos de visibilidade”, como afirmado por Carla Cristina Garcia (2015), é possível perce- ber,diante de semelhantes aspectos, porque

as mulheres romperam com a tradição cultural que lhes impôs, du- rante a maior parte da história brasileira, uma divisão sexual do tra- balho que, de modo geral, lhes reservava as atividades domésticas e de reprodução (privadas), e aos homens as atividades extra domésti- cas e produtivas (públicas). (GARCIA, 2015, p.3)

Compreendemos os quadrinhos como produtos sociais que servem aos nos- 18

sos propósitosinvestigativos nas Ciências Sociais. Mas não deixamos de assentir que eles são, sim, um tipo de “arte-comunicação”surgida no meio jornalístico, e, por esse aspecto, também são confirmados como produtos da cultura de massa (OLI- VEIRA, 2007, p.13). Escolhemos, então, observá-los mais especificamente como produtos culturais,uma vez que os quadrinhos reproduzem, ainda que parcialmente, axiomas sociais, “ideias e valores dominantes, reforçando-os” (VIANA, 2013, p.32). Atentamos para o fato de que as dificuldades que as mulheres enfrentarame ainda enfrentam no mercado das HQ se videnciam violências pela explícita subalter- nidade a que estão submetidas. As violências contra mulheres ocorrem dentro dos quadrinhos e fora deles. Efetivamente, muitas artistas lutam por espaço de trabalho e reconhecimento nessa área, e este é mais um motivo para que nosso objeto não esteja alijado da história, dos estudos de mulheres, tampouco da disciplina História da Arte, em seu capítulo Arte Sequencial. Se, durante muito tempo, os homens do- minaram o mundo dos quadrinhos, figuraram como o maior grupo de leitura e tam- bém o mais assíduo, observamos que isso tem mudado no mundo ocidental – prin- cipalmente no Brasil. Durante a pesquisa, constatamos que, atualmente, muitas artistas têm dese- nhado, narrado e/ou figurado como protagonistas ou coadjuvantes em papéis mais participativos no mercado da nona arte. Os meios digitais e as redes sociais são fre- quentemente utilizados pelas autoras de quadrinhos para iniciar e/ou manter a sua arte. Também houve mudança no perfil do público consumidor que, atualmente, in- clui um número cada vez maior de mulheres em todas as faixas etárias. Essas cons- tatações indicam que os quadrinhos funcionam como fragmentos e, principalmente, como registros históricos de suas épocas (MADRID, 2013, p.16). Por isso, esses meios são, para nós, documentos que importam, já que “a história nova ampliou o campo do documento histórico” (BLOCH, 1941 apud LE GOFF, 1990, p.68). Desse modo, descartamos uma rigidez documental que possivelmente os excluiria. No campo da diversidade documental, “escritos de todos os tipos, documen- tos figurados, produtos de escavações arqueológicas, documentos orais, etc. [...], uma fotografia, um filme [...], ferramenta, um ex-voto são, para a história nova, do- cumentos de primeira ordem” (BLOCH, 1941 apud LE GOFF, 1990, p.68). Masé necessário pontuar que nem sempre os quadrinhos são explícitos, por isso é necessária uma interpretação criativa que os vincule ao seu tempo(VIANA, 19

2013 p.35). De igual modo, precisamos “analisar uma obra ou um grupo de obras”, considerando “a realidade da sua prática e [...] as condições da prática tal como foi realizada” (WILLIAMS, 2011, p.66-7). Esse foi um ponto importante de nossa estra- tégia, porque os quadrinhos funcionam como partículas históricas que testemunham as épocas de forma intencional, inintencional e inconsciente e, neles, observam-se valores de um período que só podem ser percebidos em fragmentos e não em totali- dade. Assim, só é possível observar, nesses espaços, a reprodução de ideologemas e teoremas (VIANA, 2013, p.41) – aspecto com o qual concordamos, porque eles contêm frações das ideias e valores que povoam o mundo ocidental e que podem ser representadas nesses meios. A violência de que tratamos existe nesse espaço ficcional porque o corpo, a personalidade, o psicológico, o comportamento da mulher, mesmo quando fictícios, são passíveis de agressões. Além disso, concebemos que os machismos se alas- tram nesse universo por ser um campo, originalmente, dominado e naturalizado co- mo masculino. Ali a mulher e principalmente o seu corpo figuram como territórios públicos, e as situações pelas quais passam insensibilizam o leitor justamente por:

Figura 1 - Garcia ser o centroestratégico da manutenção das relações de poder entre os se- xos(GARCIA, 2007, p.15).

Fonte: Elaborada pela autora

Nossas reflexões nos levaram a considerar, principalmente, que as violências contra mulheres trabalhadoras nesses meios são da ordem da subalternidade por- que as personagens apresentam um corpo, uma fala, uma vida, todo um contexto a serviço dos homens nos mundos ficcionais dessa arte. Embora seja um tipo de arte-comunicação, cujo valor transita em discussões que a consideram uma “arte menor”, por não pertencer aos cânones das chamadas Belas Artes, não se pode deixar de validar os quadrinhos modernos, do pós-Guerra, 20

e os seus vínculos com a Pop Art. Ressaltamos que não discutimos, nesta tese, a pertinência dos quadrinhos à Comunicação ou às Artes. Tampouco trataremos de teorias dessas áreas em profundidade, embora alguns conceitos sejam aqui postu- lados pela absoluta necessidade de compreensão de seu caráter polissêmico. Observados pelo aspecto artístico, é evidente que os desenhos e as pinturas contidas nas HQs trazem representações de corpos femininos que se assemelham, em muitas ocasiões, aos aspectos considerados por Berger (1972, p.29) sobre os Modos de Ver a arte pelo homem europeu. Ao falarmos de corpos, curvas e beleza padronizada nos quadrinhos, aludimos, imediatamente a Wolf (1992) sobre as re- presentações de mulheres nos diversos meios de comunicação. Os ditames nas imagens e linguagens da mídia, assim como seus produtos, contribuem para a reprodução e manutenção de estereótipos advindos da hierarqui- zação dos sexos. São esses modelos e esquemas que produzem e reforçam a vio- lência contra as mulheres, além de contribuírem para manutenção dos prejuízos. Não se trata de uma violência que se inscreve somente na ideação da beleza. Exis- tem as violências nas tramas, nos discursos dos personagens, nas declarações dos artistas, e ainda as violências ocultas – aquelas que não estão explícitas nas cenas. Muitas situações experimentadas pelas mulheres nos quadrinhos se aproxi- mam das violências naturalizadas pelas artes escultóricas e pictóricas apontadas por Sontag (2003). Como na arte sequencial, a relação que engloba mídia, comunica- ção, arte, cultura e sociedade denota a complexidade dos quadrinhos, existirão sempre relações sociais, psicológicas, linguísticas, históricas, econômicas e de gê- nero, implícitas e explícitas ao lidarmos com eles. Sobre a relação da arte com o mundo fictício ou real, apoiamos nossas análi- ses no aspecto da violência que pode ser observada nas imagens que evidenciam uma “iconografia do sofrimento” (SONTAG, 2003, p.37-40), exemplificada, entre ou- tras referências, pelas gravuras de Callot, onde há um estupro sendo retratado. Des- tacamos esse exemplo da gravura porque a ilustração é uma precursora mais pró- xima dos quadrinhos. A imagem no “universo da Sociologia e da Antropologia abre um amplo terre- no de indagações, dúvidas e experimentos” (MARTINS, 2016, p.10-11) e forçosa- mente evidencia as limitações das técnicas de investigação conhecidas. Embora Martins (2016, p.11) trate, especificamente, da fotografia como “construção imaginá- ria” e dos fotógrafos como “produtores de conhecimento social”, aludimos que o 21

quadro (tira) possui nexos com a proposta de sequenciar e plasmar, como documen- tos visuais, e mesmo ficcionais, as questões sociais e a “diversidade de mentalida- des e perspectivas” (2016, p.18). Fundamentalmente, ainda que “equivocado ou não, o imaginário reveste de sentido o que sentido tem e o que não tem”. É possível perceber “a dor e o sofrimento” (2016, p.19-21) também nos quadrinhos. Atentamos ainda para a existência da violência fora do “lugar comum”, e as- sim recorremos a Žižeck (2014, p.10), pois a violência “provoca uma agitação social massiva”. Sua assertiva ratifica o fato de as mulheres romperem com o mercado dos quadrinhos com a criação da revista em quadrinhos Wimmen’s Comix. A própria ex- ceção feminina na história da nona arte é, para nós, uma ação violenta do sistema, pois as mulheres e sua arte quadrinística ainda são tratadas com menor importância e lutam contra o sistema que lhes impõe violências profissionais e históricas.Tal luta pode ser entendida pela configuração da não passividade dos atores sociais na acei- tação das mensagens das mídias, de sua produção e reprodução. A ausência de mulheres produtoras e artistas é observável em muitos livros de história dos quadrinhos, dos pioneirosaos mais recentes. Em alguns casos, quando elas existem, é em rápida menção. O livro Os Pioneiros no Estudo de Qua- drinhos no Brasil(2013) traz depoimentos de seis pesquisadores renomados e, entre eles, há uma única mulher, a Profa. Sonia Bibe Luyten. Outra publicação, O Univer- so HQ entrevista –Os Grandes Nomes dos Quadrinhos – entrevistados por quem entende do assunto (2015), traz autores mundialmente renomados, mas não há uma única mulher entre eles, embora saibamos que elas existem. Esse aspecto muda completamente quando lemos os trabalhos de quadrinistas e pesquisadoras dos quadrinhos, como Trina Robins, Jackie Ormes – primeira mulher afro-americana car- tunista dos Estados Unidos –, Hillary L. Chute (2010), Susan Brewer, Sarah Light- man (2014), Zanatta (et al, 2009), para citar algumas pesquisadoras e importantes cartunistas que ajudam a construir a história de mulheres na arte sequencial nos Es- tado Unidos, país que mais difundiu os quadrinhos no mundo ocidental. Sabemos que há o que se contar sobre as mulheres nesse campo porque “a vocação da história em quadrinhos como fonte de pesquisa histórica é inegável” (O- LIVEIRA, 2007, p.18), embora nem sempre as mulheres figurem na história dos quadrinhos com semelhante importância àquela atribuída aos homens. Uma possí- 22

vel explicação para o fato, aqui em nosso país, foi apontada na GIBICON2, realizada em 2012. Autoras como Ana Luiza Koehler, Pryscila Vieira e a pesquisadora Sonia Bibe Luyten afirmaram que a maioria dos quadrinhos, no mercado, visa ao público masculino. Elas relacionam esse fato à falta de identificação das meninas com as perso- nagens femininas. Para elas, é uma clara indicação da necessidade de maior repre- sentação feminina nos quadrinhos que possibilite o diálogo com o público feminino (KOEHLER, 2012). Isso se confirma em algumas pesquisas que tratam sobre os quadrinhos, nas quais as relações entre quadrinhos, mulheres e feminismos podem ser encontradas, como nos trabalhos de “Mariela Acevedo (Argentina), Amaro Braga (Brasil), Ediliane Boff (Brasil), Selma Oliveira (Brasil) e Maria Inés Mendoza (Vene- zuela)”(SOUSA, 2014). Algumas pesquisas, em nosso país, apontam mais especificamente múltiplas selvagerias e injúrias contra as mulheres na arte sequencial (OLIVEIRA, 2007; SAL- LES, 2011; BOFF, 2014). Ainda assim, as teses e dissertações sobre mulheres e quadrinhos são insuficientes e igualmente incipientes. Por esse motivo, talvez, te- nhamos encontrado dificuldades em localizar um número ao menos equânime de publicações elaboradas por mulheres. Assim, reafirmamos a necessidade de apro- fundar as investigações científicas sobre os quadrinhos e as questões sociais relati- vas à equidade de gênero, incluindo os estudos de gênero. É absolutamente im- prescindível criar novos espaços de discussão sobre esse tema, principalmente na área acadêmica, e a isso nos propusemos com este trabalho. Compreendemos nossa pesquisa como uma tessitura composta por experi- ências de vida, análises científicas e reflexões sobre os quadrinhos, relacionando-os aos estudos feministas. Pretendemos que nossa investigação se some às vozes dis- sidentes que buscam romper com o pensamento tradicional sobre arte- comunicação, nesse caso, a arte sequencial quadrinhos, em relação às violências contra as mulheres nesses meios. Ainda assim, temos consciência de que não nos distanciamos do “perigo de construir o outro e o subalterno como objetos de conhe- cimento” (SPIVAK, 2010, p.14), embora tenhamos nos arriscado nesse processo ao analisarmos os trabalhos do outro.

2 GIBICON #1 - Convenção Internacional de Quadrinhos de Curitiba. Curitiba: Solar do Barão; Memorial de Curitiba; Jokers Pub; Sesc - Paço da Liberdade; Cinemateca; Aliança Francesa; Goethe- Institut. out./2012. 23

Reconhecemos nossas limitações e o lugar de onde falamos. Concordamos com a expressão da subalternidade proposta por Ranajit Guha (apud SPIVAK, 2010, p.15) de que sempre há a homogeneização do outro pelo colonialismo e nas formas de representação dos grupos subalternos, e nós, mulheres, temos sido representa- das nos quadrinhos ou fora deles em condições de subalternidade. As questões sociais, econômicas e culturais globalizantes, bem como as for- mas de opressão, circulam no âmbito da arte sequencial. Exemplificamos: embora tenham lido seus pares franceses sobre a importância e a relação dos quadrinhos com a ilustração, nenhum autor brasileiro, consultado em nossos levantamentos his- tóricos, abordou o trabalho de Nair de Teffé, ou mesmo as chargistas, ilustradoras e quadrinistas mulheres no Brasil, em maior profundidade, como o fizeram com os homens. Inferimos a existência de uma multiplicidade de meios modernos e argutos de subalternidade e, nesse sentido, incluímos, inexoravelmente, os quadrinhos e suas peculiaridades. Traçar uma relação de nosso objeto com o feminismo nos ajudou a elucidar algumas inquietações. Cientes de nossa subalternidade e municiadas com nossas angústias, leituras e reflexões que compreendemos serem de toda uma vida, definimos o problema central da tese: Como se expressam as violências contra mu- lheres trabalhadoras, secretárias, nos quadrinhos? Responder nossa principal questão é um esforço de compreender o que há dentro e por trás do feminino ficcional, tradicionalmente hipersexualizado e agredido nos quadrinhos. Para tanto, norteamos nosso estudo incluindo outras indagações, que cooperaram para uma melhor compreensão dos fatos: 1) Quem são as personagens femininas que trabalham como secretárias nos quadrinhos? 2) Quais violências contra mulheres em um exercício profissional considerado feminino são observáveis nas HQs? 3)Como as violências contra mulheres trabalhadoras nesse tipo de represen- tação artística podem ser relacionadas ou explicadas pelos feminismos? Essas questões se desdobraram em outras, menores, mas não menos signifi- cativas para o entendimento deste trabalho. 1) Como as personagens são caracterizadas? 2)Como são os corpos e personalidades destas personagens? 24

3) Quais os temas comumente percebidos na reprodução das violências nas HQs em que os sujeitos da pesquisa participam?

Os quadrinhos precisam ser observados dentro de uma contextualização so- cial em que as diferenças sejam observadas, considerando as assimetrias das rela- ções de poder entre os sexos. Para tanto, valemo-nos das proposições de Griselda Pollock, que destaca os estudos de Elizabeth Cowie (apud POLLOCK, 2013, p.77), cujos da estrutura de parentesco em Lévi-Strauss, sobre os intercâmbios fundamen- tais entre homens e mulheres, na formação de uma sociedade, resultam em manei- ras como os objetos dessa interação receberão valor e significado, a partir do poder sociossexual. A escolha por uma abordagem qualitativa, teórico-sociológica, que privilegia os estudos feministas e a subjetividade, permeia esta investigação na interpretação dos conteúdos dos quadrinhos. Respondemos, dessa maneira, o porquê de não termos tratado, especificamente, de estudos semióticos, linguísticos ou, exclusiva- mente, de arte, nesta pesquisa. Nosso caminho metodológico consistiu em considerar que, no campo da so- ciologia dos quadrinhos, “falta uma base metodológica mais forte”, conforme Viana (2013, p.15), que propõe uma análise de quadrinhos considerando o processo de produção social, de modo a perceber, em seus conteúdos, “valores, sentimentos, concepções, etc.” latentes nos personagens e nas histórias. Ao mesmo tempo, as histórias em quadrinhos são vistas como “uma expressão figurativa da realidade” (2013, p.63), pois em sua concepção, “toda HQ manifesta a sociedade e por isso são expressões das relações sociais” (2013, p.15). Nisso consistem as relações que propusemos na pesquisa. Existe um universo de personagens trabalhadoras, especificamente mulheres secretárias, representadas nos quadrinhos. Selecionamos aquelas que obedeciam aos critérios pré-determinados – secretária; pós anos 1960; com referências na his- tória dos quadrinhos; grandes tiragens no Ocidente, em especial no Brasil, a saber: Mulher Maravilha; Etta Candy; Winnie Winkle; Betty Brant (Peter Parker); Miss Bu- xley/Dona Tetê e Soldada Blips; Karen Page (Demolidor); Sue Dibny; Ofélia; Irma; Anitta; Carol; Mercy Graves (Lex Luthor) e Dona Marta. Desse universo, retiramos nossa amostra, aleatória, constituída por 4 secretárias, sendo 3 norte-americanas e uma brasileira. 25

Optamos por analisar quadrinhos e tirinhas publicados em compêndios ou e- dições especiais, cujos conteúdos foram determinados pelas editoras/autores. Nos- sa decisão considerou a inevitabilidade de maior flexibilização dos materiais, diante das prováveis dificuldades de acesso a determinado acervo completo de uma obra que correspondesse ao período escolhido por nós. Essa impossibilidade também poderia decorrer da inviabilidade de analisar um número maior de volumes de uma personagem tão vasta, a exemplo da setuagenária Mulher Maravilha. Nossa escolha permitiu verificar se, na seleção das editoras, entrariam quadrinhos com violências das quais tratamos. Nas análises dos volumes sobre cada personagem, privilegiamos as histórias mais significativas, relacionadas à nossa temática, ou seja, selecionamos os qua- dros e histórias mais pertinentes ao propósito da pesquisa. Em raras ocasiões, utilizamos algum quadro não pertencente aos almanaques selecionados, mas, quando o fizemos, foi por absoluta necessidade de pontuar e ilustrar acontecimentos muito extravagantes e significativos que marcaram as perso- nagens e com relação profícua com a violência de que tratamos. Nosso intuito foi construir uma noção de que casos ainda mais extremos em relação à violência con- tra as personagens existem – publicados, ou não, no Brasil. Designamos os quadros como unidades básicas de análise, mas considera- mos sua sequencialidade, porque, segundo Viana (2013, p.47), “é necessário com- preender o quadro (tira) e sua sucessão que constroem a narrativa ficcional e que ao terminar constitui uma totalidade”. Essa totalidade tem relação com a sociedade em que se insere, uma vez que “o universo ficcional é constituído socialmente e somen- te no conjunto das relações sociais no qual é produzido”; Dessa maneira, é possível ser “interpretado adequadamente” (2013, p.50). A sucessão de quadros foi observada, já que poderia conter violência “parce- lada” contra a mulher trabalhadora, mas não nos prendemos exclusivamente a um item (quadro ou tira), porque “as unidades significativas não são necessariamente os quadros, pois podem ser um grupo de quadros que possuem sequência significativa” (VIANA, 2013, p.55). A sequência significativa constrói a identidade da personagem, seu percurso na história e o seu tempo. Além disso, a violência a ser compreendida pode ser paulatina. Uma agressão pode ser fracionada em dois ou mais quadros, sugerindo, por exemplo, um espancamento detalhado, uma morbidez que prepara o leitor para um clímax. 26

Nossa decisão pela análise dos quadros e suas sucessões também foi moti- vada por um aspecto mais inquietante e imperativo: um único quadro pode marcar uma personagem para sempre na HQ, pois os quadrinhos têm tema e numeração, um registro de sua existência e identidade no meio. Tal como um boletim de ocor- rência em uma delegacia, a violência contra uma personagem feminina fica registra- da para sempre naquele episódio, na história daqueles quadrinhos, mesmo que te- nha ocorrido uma única vez, e em uma única cena. Outro quesito que nos fez optar pela análise dos quadros foi ainda mais ater- rador e, de certo modo, muito semelhante ao que acontece no mundo real. Quantas situações de pancadas, ameaças, assédios, injúrias, humor depreciativo ou mesmo mortes provocadas por ideações machistas seriam necessárias para dizer que uma mulher trabalhadora, mesmo ficcional, de fato, esteve sob violência de gênero na- quela história? Se apenas uma situação, em um único quadro expressasse uma vio- lência machista, já seriam válidasas nossas análises. Isso não significa dizer, porém, que o contrário não nos importa. Recorrentes violências de gênero contra uma personagem feminina são igualmente significativas porque ratificam o mote e o tema de determinada história. Indicam a tônica de uma produção quadrinística específica e as escolhas dos editores e autores, embora es- se quantitativo apareça na pesquisa quando necessário, uma vez que não nos con- centramos unicamente nesta busca. Entre as personagens selecionadas e publicadas por editoras em nosso país, predominam as norte-americanas que, juntamente com as brasileiras compõem os sujeitos da pesquisa. Encontramos suas histórias em diversos formatos: revistinhas com tiragens regulares, tiras de jornais e sites e publicações especializadas, sob a forma de edições especiais, compêndios em capa dura, antologias e pocket books – formatos com os quais optamos por trabalhar–, afim de perceber a escolha das edi- toras quanto ao que consideram as melhores tiras e histórias das personagens. Procedemos às análises realizando leituras e interpretações dos quadrinhos, selecionando aqueles que atendiam ao problema de pesquisa, pela observação dos critérios: temas, cenas, narrativas, personagens e contextos, considerando e anali- sando também as biografias e imagens das trabalhadoras. De acordo com Viana (2013, p.53), uma metodologia de análise desse objeto precisa contemplar a leitura inicial dos quadrinhos selecionados para a percepção de aspectos históricos e soci- ais mais importantes, bem como sua participação na constituição dessas histórias. 27

Por isso, as seleções foram relacionadas à percepção de aspectos da violência tra- tada pelo feminismo no período histórico relativos às personagens. Observamos as representações das “unidades mais significativas” (VIANA, 2013, p.56), considerando aspectos sobre a violência de gênero contra as trabalha- doras secretárias. Quanto ao contexto, nossas análises remetem “ao problema da produção social das suas mensagens, e de sua reprodução social em suas mensa- gens” (2013, p.31). Para analisar as mensagens transmitidas pelos quadrinhos sobre a violência de gênero que estão imbricadas em práticas de produção, elaboramos critérios que considerassem, além do pictórico, outros aspectos na construção das violências de gênero: a) Biografia da Personagem: – Descrição fornecida pelo/a autor/a, editora ou mídia especializada. b) Tema/situação – narrativada história: – aparência física; vestuário; beleza; idade; personalidade; emotivida- de; competência profissional; relacionamentos; comportamentos; vio- lência implícita ou explícita; assédio (moral, físico, sexual). c) Características específicas das personagens quanto ao corpo e vestimenta: – Forma física; desenho; postura; como se movimentam; gestos; cores pelas quais é reconhecida. d) Composição geral da cena – detalhes pertinentes. e) “Emoções”(VIANA, 2013, p.58) e comportamentos percebidos: – Tristeza, raiva, confusão, violência física, moral, psicológica; decep- ção; possíveis traços de personalidade. e) Recursos comumente usados: –“clichês, ironias, humor” (VIANA, 2013, p.58), e acrescentamos “este- reótipos”(SOUSA, 2013, p.31).

O mais importante não é somente identificar os valores do personagem prin- cipal, mas descobrir o que é “significativo e importante para os personagens” (VIA- NA, 2013, p.58-9), sempre que isso se manifestar. Buscamos, então, identificar os valores dos diferentes personagens que compõem a cena, “quando houve diferen- ças entre eles” (2013, p.58-9). Para todos os casos, não perdemos de vista a con- vicção de que as narrativas textuais e imagéticas transmitem suas mensagens de modo intencional, inintencional ou inconsciente (VIANA, 2013). 28

Nossa amostra aleatória recaiu sobre quatro secretárias do universo que des- crevemos: Miss Buxley (Dona Tetê) e Soldada Blips; Carol e Dona Marta. Com a análise do “fenômeno da diferença”, criou-se um contraponto para observar se a vio- lência contra mulheres trabalhadoras ocorria de modo similar com mulheres em ou- tra atividade que não o secretariado. Por isso, selecionamos personagens que tives- sem, na caracterização de seu perfil, uma maior escolaridade ou atividades laborais consideradas superiores à profissão de secretária. Além desses critérios, estabelecemos que as exceções (personagens não se- cretárias) poderiam ter relação com o mesmo grupo editorial, período ou conjunto de artistas cujos trabalhos tinham proximidade com as personagens secretárias. Sele- cionamos, então, Alice, uma engenheira norte-americana que trabalhava próxima a Carol, secretária, ambas criações de Scott Adams. A personagem brasileira Mara Tara, a “quase doutora” criada por Angeli e que tinha proximidade com Dona Marta, secretária criada por Glauco. Ambas são produções de artistas vinculados a um de- terminado grupo editorial, cujas produções constituem, em determinado período, a artisticidade underground dos quadrinhos brasileiros. Essas duas personagens são, para nós, o fenômeno da diferença para obser- var se as questões machistas que norteiam nosso problema são também evidencia- das em outras mulheres trabalhadoras nos quadrinhos. Visamos assim manter ciên- cia de que formas distintas de representação das mulheres no meio escolhido inte- ressam tanto por suas diferenças quanto pelas convergências com nosso propósito. Dentro do possível, buscamos conhecer o pensamento de artistas produtores das artes sequenciais analisadas, a fim de compreender a construção das persona- gens. Consideramos a dificuldade de entrevistar os autores durante a pesquisa e optamos, então, por recorrer às declarações feitas por eles na mídia. Selecionamos trechos ou entrevistas completas concedidas, assim como outros arquivos históricos pertinentes. Para expor os resultados desta tese, organizamos a seguinte disposição: no capítulo 1, tratamos da Complexa Historicidade dos Quadrinhos. Observamos as suas origens históricas e controvérsias e pontuamos a ilustração como sua precur- sora. Ratificamos as ausências das mulheres, tecendo importantes considerações. Incluímos informações sobre os syndicates, a arte quadrinística e o seu consumo. A tirinha foi aqui vista como importante para as histórias em quadrinhos, destacando- se a pluralidade da aparente simplicidade desse tipo textual, considerando suas es- 29

truturas e sentidos. Apresentamos um breve panorama dos quadrinhos no Brasil, salientando as lutas internas do mercado nacional diante dos interesses da socieda- de brasileira, desde sua inserção no País até o período que recortamos para nossos estudos. No capítulo 2, que chamamos de Espaços e Imagens de Violências contra Mulheres, tecemos relações entre o patriarcado como origem das agressões em uma arte excludente. Abordamos a questão da genialidade como pressuposto e jus- tificativa de exclusão das mulheres no meio; refletimos sobre a mulher e o trabalho, e sobre as mulheres ao trabalho, nos quadrinhos. Mais adiante, partimos de consi- derações sobre a heroína norte-americana, dotada de superpoderes, a Mulher Ma- ravilha, uma vez que sua história contém aspectos e contradições que tratam da in- visibilidade da mulher, o seu lugar em relação aos homens e o desempenho da ati- vidade secretarial. Nossa abordagem defende aspectos e particularidades da histó- ria dessa personagem como mote para nossa pesquisa. No capítulo 3,Who’s that girl?, apresentamos algumas secretárias icônicas nos quadrinhos, destacando algumas das violências a que foram submetidas no tra- balho, relacionando-as ao feminismo. Apresentamos as personagens selecionadas e as análises sobre elas, identificando os assédios que as acometem. Iniciamos por Dona Tetê e a Soldada Blips, apontando os principais assédios cometidos no Quar- tel Swampy3 contra essas mulheres. Investigamos a secretária brasileira Dona Mar- ta, que assedia os homens de seu escritório como forma de compensar suas ques- tões sexuais mal resolvidas e sua solteirice tardia, as quais fomentam seu compor- tamento peculiar de assédio às avessas. Por fim, analisamos Carol, secretária que passa por assédios relacionados ao gênero e à profissão dentro da moderna gestão em escritórios nos anos 1980 e 1990. No capítulo 4, abordamos os Fenômenos da Diferença, personagens não se- cretárias pesquisadas como contraponto na observação da manutenção e similari- dade das violências contra mulheres trabalhadoras. Finalmente, em To be continued, resgatamos aspectos das análises de nossa investigação e refletimos sobre os resultados encontrados diante das proposições teóricas que elegemos. Ensejamos que esta pesquisa contribua, por meio da soma de nossas vozes,

3 O Quartel Swampy (Camp Swampy) é o universo ficcional das histórias do Recruta Zero (Beetle Bailey), criado por Mort Walker no início da década de 1950. 30

com as discussões sobre as artes sequenciais, mulheres e feminismo. Pensar criati- vamente o universo ficcional das mulheres nos quadrinhos foi o nosso esforço. Por isso, é natural, para nós, que a pesquisa tenha mantido um caráter multidisciplinar e de complexidade, mesmo que transite de forma mais intensa entre esse tipo de arte e os estudos de mulheres. Admitimos a gravidade de tentar falar pelo outro e interpretar seus textos. Embora não possamos falar pelo subalterno, neste trabalho, lutamos, de alguma maneira, contra a subalternidade. A forma que encontramos para fazê-lo foi conhe- cer as agressões a algumas mulheres trabalhadoras representadas nos quadrinhos, contextualizando-as conforme a história e os feminismos, observando-as sob aspec- tos das violências de gênero. As dores infligidas às mulheres nesse campo nos im- portam. A quase impossibilidade de “tradução” do outro, porém, não pode impedir que façamos um esforço de aproximação e negociação com seus textos, ou, em nosso caso, com os seus desenhos e suas outras linguagens. Temos consciência de que não os traduziremos por completo. Não damos por concluída nossa tarefa, mas nos baseamos na assertiva de que “as relações sociais são produções coletivas, cultu- rais, e as representações sociais são resultantes do universo simbólico e dos sujei- tos entre si” (JODELET, 2002; MINAYO,1995) – o que nos leva a crer que tenhamos cumprido os objetivos aos quais nos propusemos. Da mesma forma, desejamos que nosso olhar para a História das Mulheres e suas relações com as artes, mesmo nas consideradas menores e fora das Belas Artes, denote as singularidades que repro- duzem as violências de gênero e de caráter subalterno para que estejam nas dis- cussões e reflexões dos estudos das próprias mulheres. Destacamos a urgência e ensejamos outras formas de ver o mundo dos qua- drinhos e contá-lo. Nós o fizemos sob a perspectiva de nossos olhares femininos – experiências particulares permeadas pelas subjetividades das interpretações e rela- ções teóricas. Dispusemo-nos a pesquisar para conhecer e compreender um frag- mento da história na qual as mulheres se inserem e realizam. Desse modo, soma- mos nossas vozes às outras, já que até pouco tempo, “toda história das mulheres foi feita por homens” (BEAUVOIR, 1980, p.167). Sabemos que é necessário sobrepujar o que existe. Consideramos que as Donas das Dores no Laço da Verdade: violências contra mulheres trabalhadoras nos 31

quadrinhos4 contém importantes aspectos analisados sob a pluralidade das mulhe- res que existem em nós, trabalhadoras, subalternas, personagens, leitoras dos qua- drinhos e pesquisadoras. Ousamos, portanto, como Diana, fazer uso do laço da verdade, querendo que algumas partículas que se relacionam às dores causadas pelas violências impostas às mulheres não fiquem ocultas, mas que sejam conhecidas, ouvidas e considera- das nas discussões. Ainda assim, estamos cientes de que existem lacunas que este trabalho não conseguiu preencher.

4 O Laço da Verdade é um dos artefatos da Mulher Maravilha (alter ego superpoderoso de Diana Prince, nome civil da personagem). Essa arma a acompanha desde a sua primeira HQ (1942) e lhe foi entregue por sua mãe, junto com a roupa de Mulher Maravilha. O laço é associado à recompensa por ela haver cumprido dois dos trabalhos de Hércules em honra a Afrodite. Para saber mais: FLEI- SHER (1976) e BUNN (1997). 32

1 A COMPLEXA HISTORICIDADE DOS QUADRINHOS!

1.1 ORIGENS E CONTROVÉRSIAS

Os quadrinhos começaram a ser veiculados em jornal, sob a forma de tiri- nhas, na Europa e nos Estados Unidos durante o século XIX. Historiadores e pes- quisadores da área, entretanto, discordam entre si sobre sua gênese. A discussão transita entre quem defende os quadrinhos como produtos culturais recentes e os que afirmam que eles sempre existiram em toda arte que tenha sequencialidade, mesmo quando em suportes distintos e elaborações bem diferenciadas da atualida- de – caso de alguns historiadores que teorizam sobre um parentesco antiquíssimo com as pinturas nas cavernas e outros expoentes artísticos. Não discutimos essa questão. Admitimos que os quadrinhos, tal como os conhecemos, tiveram sua ori- gem como produtos da área jornalística e são, portanto, mais recentes. Um aspecto, porém, de uma ancestralidade anterior ao século XVIII, mencio- nado por Renard (1978, p.17-22)5, chamou-nos a atenção, não só por serem consi- derados como expoentes de arte sequencial antiga que alude aos quadrinhos, mas por existirem incertezas quanto à sua autoria, como no caso da tapeçaria de Bayeux do século XI.Trata-se do Livro dos Mortos egípcio, dos vasos gregos e dos philactères de textos medievais, apregoados também por Blanchar (1974, p.12-48). Interessa-nos, mais proximamente, o caso da autoria da tapeçaria de Bayeux

5 O argumento da sequencialidade credita aos quadrinhos parentesco longínquo com as pinturas rupestres e os papiros egípcios apontados por Blanchard (1974, p.8-12) e Silva (1976, p.19). Corro- bora esse pensamento Antonio Luiz Cagnin (1975, p.21) para quem os quadrinhos teriam relações com os “vitrais das catedrais góticas, os afrescos da Capela Sistina, os retábulos, as iluminuras dos livros, as ilustrações dos livros, e jornais do século XIX, a fotografia, o cinema e a televisão”. Exem- plos de uma gênese quadrinística seriam: “a Coluna de Trajano; pergaminhos asiáticos; tapeçarias medievais e retábulos, os jornais broadsheet do século XVIII e as gravuras japonesas feitas a partir de pranchas de madeira”. Esses pesquisadores defendem a ancestralidade da “pré-história” dos qua- drinhos (MAZUR; DANNER, 2014, p.7). Roberto Elísio dos Santos (2002) afirma que os quadrinhos são derivados de um desenvolvimento da pictografia com sentido de coerência inerente a um passa- do de quatro mil anos a.C., conforme Costella (apud SANTOS, 2002, p.47). Renard (1978, p.17-22) relaciona os quadrinhos à arte pré-histórica pelo vínculo simbólico-figurativo em que os traços de identificação estão presentes de modo semelhante em civilizações sem escrita, como os povos do Ártico, os indígenas da América do Norte ou, ainda, a escrita pictográfica dos hieróglifos egípcios: “quando a preocupação dominante do artista é menos a comunicação utilitária de uma mensagem do que a expressão estética a contar, o desenho deixa de ser reduzido a uma escrita racional, e retoma todo o seu vigor simbólico” (RENARD, 1978, p.19). 33

do século XI6, mesmo considerando que a autoria é, muitas vezes, impossível de ser determinada na Idade Média, por falta de assinatura. Para nós, entretanto, é impres- cindível salientar a autoria feminina dessa tapeçaria7, porque isso implica localizar a mão de obra das mulheres em uma peça de arte de suma importância histórica, tan- to para a história da arte quanto para a arte sequencial. Obrigatoriamente, isso inclu- iria as mulheres no rol dos antepassados históricos longínquos dos quadrinhos,na concepção de uma “pré-história” do campo.Defendemos que a tapeçaria de Bayeux foi elaborada por mãos femininas porque, segundo Norma Telles (1992), em “Kor, Kafiristão e o Koração da Eskuridão" – texto que analisa uma série de literaturas e filmes fazendo conexões antropológicas com teorias feministas –, os “homens bus- cam um local onde quase não há mulheres, e quando existem nem mesmo recebem nomes" (199, p.38). De fato, os homens buscaram desde sempre um lugar para si, próprio do ho- mem, um lugar onde só ele exista como criador, um infeliz e recorrente recurso utili- zado na história e também na História da Arte, porque afinal “o mundo sempre per- tenceu aos machos” (BEAUVOIR, 1980, p 81). Essas assertivas corroboram nossas discussões sobre a inserção das mulheres nas artes, em especial nos quadrinhos, como protagonistas ou autoras.

1.2 A ILUSTRAÇÃO COMO PRECURSORA

Avançamos as discussões para o ponto em que firmamos nossas convicções, quando os pesquisadores dos quadrinhos inscrevem a ilustraçãoe,logo a seguir,a ilustração com legenda, como antecessoras mais imediatas da “arte sequencial” contemporânea. Processos reprodutivos em larga escala, como a litografia, a zincogravura, a

6 Embora haja dificuldade em determinar com precisão os responsáveis por sua elaboração, enten- demos essa dúvida questionando se esse não seria mais um exemplo de um ponto na História da Arte em que as mulheres foram cortadas. 7 Sobre essa tapeçaria em especial, existem duas possibilidades que são as mais aceitas. Patrícia Mayayo (2010, p.26-7) afirma que sua elaboração foi, possivelmente e de forma legendária, uma responsabilidade da rainha Matilde ou de Margaret (esposa de Malcom III da Escócia). Mayayo, po- rém, diz que não se pode afirmar com absoluta certeza de que essa tapeçaria tenha sido elaborada por mulheres, pois, na época, também havia operários masculinos que bordavam nos monastérios, uma vez que bordar não era uma atividade exclusivamente feminina na Idade Média. 34

cromolitografia, a tricromia e a fotogravura permitiram que a imagem fizesse parte do cotidiano e estivesse em todos os lugares. Essa capacidade de reprodutibilidade influenciou, em definitivo, a criação e circulação dos quadrinhos. Seu alcance está vinculado, inexoravelmente, à “evolução da indústria tipográfica e grandes cadeias jornalísticas” (RAMA; VERGUEIRO, 2008, p.10), confirmadas por Renard (1978, p.22-7) que indica a Literatura de Colportage (BLANCHAR, 1974; RENARD, 1978), as ilustrações, o cartaz e as caricaturas como os predecessores mais imediatos dos quadrinhos, com o advento da imprensa periódica (de 1827 a 1889) e seu maior de- senvolvimento, entre 1889 e 1929. Esses aspectos aproximam-se dos quadrinhos atuais por conterem seme- lhanças de ilustração e narrativa/legenda. O maior acesso da população aos quadri- nhos deu-se, principalmente, pela facilidade da compreensão imagética em sequên- cia, o que dispensaria a necessidade exclusiva da leitura de texto. Essa lógica racio- naliza que a especificidade da tira cômica formada por quadrinhos só existiu pelas possibilidades reprodutivas do presente, que se constituíram desde o século XVIII, a partir da xilogravura, e da associação da ilustração com textos mais acessíveis às pessoas (COUPERIE; HORN, 1973, p.9). Foi, portanto, o desenvolvimento da repro- dutibilidade em larga escala, dos escritos e das imagens que cooperaram para a disseminação dos quadrinhos. Couperie e Horn (1973) indicam um periódico de 1650, cujo conteúdo apre- sentou o caso de um assassinato usando uma combinação de imagem e texto, co- mo o primeiro momento histórico com o qual os quadrinhos teriam relações aproxi- madas de parentesco, pois relaciona a ilustração combinada com texto. Salientam que a forma e a sequência narrativa, iniciadas na França, no começo do século XIX, tratam precisamente de “uma evolução que ultrapassa os protótipos da arte figurati- va” (COUPERIE; HORN, 1973, p.9). No século XIX, denominada por Marny (1970, p.18) como a “pré-história dos quadrinhos”, importa para nós, corroborando os estudos de Didier Quella-Guyot (1994, p.67), a datação compreendida entre 1820 a 1885, quando surgiram nomes, como Jean-Charles Pellerin, com os quadros militares nas Figuras de Épinal (1820); Rodolf Töpffer, suíço que publicou Histoires en Estampes – sendo a primeira, em 1827,Les Amours de Monsieur Vueux-Bois, e as demais entre 1846 e 1847. Tam- bém destacamos o alemão Wilhelm Bush, autor de Max und Moritz(1865), e Geor- ges Colomb que, em 1889, criou a La Famille Fenouillardcom a Petit Français Illus- 35

tré. Marny (1970, p.19) defende uma “sociologia dos quadrinhos” e admite The Yellow Kid, de Richard Felton, como a gênese dos “verdadeiros começos”. Claude Moliterni (apud GUBERN, 1979), por sua vez, assente que esses, de fato, foram os verdadeiros quadrinhos da modernidade, e também inclui a tradição da narrativa i- conográfica, na Europa, como a predecessora do desenvolvimento dos quadrinhos. Para ele, contudo, a “ilustração, a caricatura e a anedota gráfica no jornalismo norte- americano do fim do século XIX” justificam a afirmativa de que “os comics nasceram nos Estados Unidos”8 (GUBERN,1979, p.81). A pesquisadora Sonia Luyten (1984, p.10), por sua vez, defende as origens dos quadrinhos na Europa, e trata de sua “explosão” como resultado da manufatura possibilitada pelo fato de eles serem produtos culturais comercializáveis, explorados e disseminados pelos norte-americanos. Contrariamente, Zilda Augusta Anselmo (1975, p.32-3) confirmará as origens dos quadrinhos creditadas aos Estados Unidos, conforme as proposições de Marny (1970), Couperie e Horn (1973). Os pesquisadores brasileiros citam seus pares franceses e norte-americanos, reproduzindo conceitos e marcos da historicidade da arte sequencial a partir da A- mérica do Norte ou da Europa. Quem acrescenta um novo nome à cena histórica mundial é Moya (1994, p.8-17), que não somente reafirma Rudolph Töpffer como o pioneiro na arte sequencial, ou quem mais se aproxima de uma gênese dos quadri- nhos modernos, como também inclui o ítalo-brasileiro Ângelo Agostini no rol dos cri- adores dos quadrinhos modernos. Ângelo Agostini criou, no século XIX, precisamente em 1869,As aventuras de Nhô Quim. Moya (1994, p.8-17) destaca-o como um importante artista do período e salienta que sua obra surgiu 30 anos antes da publicação Yellow Kid(HAAG, 2005). Assim, um brasileiro é incluído no rol histórico dos pioneiros dos quadrinhos no sé- culo XIX. Existe unanimidade em Renard (1978,p.29), Couperie e Horn (1973, p.9-11) sobre Rudolf Töpffer, desenhista suíço influenciado pela arte caricatural inglesa, ser o principal expoente das origens dos quadrinhos modernos. Esses autores afirmam que os quadrinhos surgiram na sua forma mais conhecida quase simultaneamente

8 Moliterni disse a Gubern (1979, p.9) que o comic apareceu pela primeira vez no fim do século XIX, na Alemanha, com Max und Moritz, de Wilhem Busch, e que “a origem do comic é europeia, mas foi habilmente recuperada no princípio do século pelos norte-americanos” (GUBERN,1979, p.9). 36

na França (1889) e nos Estados Unidos (1897). Conforme Blanchard (1974, p.82- 98), Töpffer publicou Les Amours de M. Vieux-Bois, em 1837, e as características de sua obra são marcantes para a arte sequencial. Couperie e Horn (1973) concordam que a Inglaterra também deve ser vista como inventora das histórias em quadrinhos, considerando, para tanto, o trabalho de W.F. Thomas, que criou histórias de “um herói permanente, com legendas sob a imagem, surgida em 1884” (COUPERIE; HORN; 1973, p.9-11).

1.3 MULHERES NO LIMBO – NOTAS SOBRE AS AUSÊNCIAS

O movimento feminista contribuiu para que mais mulheres atuassem e lutas- sem contra o mercado paradigmático de trabalho, em especial no mercado dos qua- drinhos e suas imposições. O Women’s Lib – marco da reivindicação feminista e- mancipadora sobre a família, a maternidade e o trabalho – influenciou artistas norte- americanas na criação e publicação de seus próprios quadrinhos. Para tanto, foi ne- cessário o rompimento com os quadrinhos de então e suas restrições mercadológi- cas relacionadas às mulheres artistas. Essa ruptura indica que havia mulheres que escreviam, desenhavam e participavam do mercado de quadrinhos – mas, ainda hoje, são pouco ou quase nunca mencionadas nos principais livros da área aos quais tivemos acesso, algo que Trina Robbins tem combatido com suas obras, a e- xemplo de A Century of Woomen Cartoonists (1993), entre outras publicações. Trina Robbins produzia quadrinhos cujas histórias harmonizavam o “glamour dos anos 40 com heroínas de ação – aventuras carinhosamente satíricas com men- sagens feministas” (MAZUR; DANNER, 2014, p.30-1). Embora tenha começado a desenhar quadrinhos para promoção de sua loja de roupas em East Village, a artista encontrou dificuldades para publicar, pois o mercado era um “clube do bolinha” que, de acordo com Mazur e Danner (2014, p.33), foi contrário ao seu material por “con- teúdo sexista”. Por isso,Robbins, juntamente com outras artistas, como Lee Mars, Sharon Rudahl, Pat Moodian e Aline Kominsky decidiram criar sua própria editora. Um exemplo mais significativo da manifestação coletiva de artistas mulheres, nesse campo, foi a criação da HQ Wimmen’s Comix, revista underground,da editora Last Gasp, surgidaem1972,nos Estados Unidos, cofundada por Robbins e extinta 37

9 em 1991 . As produções artísticas da Wimmen’s Comix romperam criativamente com o sistema das grandes empresas dos quadrinhos norte-americanos, por combaterem o “excesso de testosterona nos quadrinhos” (MAZUR; DANNER, 2014, p.33). Tam- bém nesse período“duas artistas de Los Angeles, Joyce Farmer e Lyn Chevely, lan- çaram a própria antologia underground de orientação feminista, a Tits & Clits” (2014, p.33), colaborando para os enfrentamentos promovidos pelas mulheres nessa área. As produções de quadrinhos dessas artistas norte-americanas eram congru- entes com as reivindicações pelas quais lutavam as mulheres nos anos 1960 e 70, em que o feminismo questionava o gênero, as esferas públicas e privadas, e o direi- to ao corpo, aspectos relacionados às proposições de Simone de Beauvoir, Betty Friedan e Kate Millet. Como não se pode aceitar que os leitores sejam meros receptores das men- sagens contidas nos meios de comunicação, observamos que foi justamente essa não aceitação que moveu as mulheres para novas perspectivas e atuações no meio. Isso explica o porquê de as mulheres da Wimmen’s Comix terem lutado contra o sis- tema, criando seus próprios quadrinhos – forma artística de romper com a cultura patriarcal nessa área. Apesar de Trina Robbins ser acusada de criar publicação sexista, Mazur e Danner afirmam que a participação feminina na revista Wimmen’s Comixfoi impor- tante porque

as histórias das mulheres eram uma resposta às excessivas fantasi- as pornográficas masculinas nos quadrinhos underground, com a- venturas sexuais de papéis invertidos, mas também com histórias que mostravam aberta e explicitamente o corpo feminino, como The Menses is The Massage, de Farmer, na Tits & Clits n.1 (1972), um relato dos esforços do protagonista para encontrar – ou fazer – o ab- sorvente perfeito. (2014, p.33)

Considerando que as ausências de maiores informações sobre as artistas, norte-americanas, europeias ou brasileiras, nas publicações que historicizam os quadrinhos formam parte do escopo de violências contra as mulheres no campo da nona arte, e da história, defendemos a necessidade de inclusão de artistas mulheres

9 A revista surgiu no período da Contracultura. Alguns autores dizem que a revista existiu até 1992. O nome inicial foi modificado para Wimmin’s Comix, pois se discutia o uso da palavra “man” ou “men”. A publicação teve um total de 17 edições e, durante sua longa existência, 19 anos, possibilitou que 27 mulheres pudessem registrar seus trabalhos. 38

nas publicações das artes sequenciais. Autorascomo Patrícia Redher Galvão – Pagú (1929), embora tenha sido a primeira mulher a publicar quadrinhos no Brasil (MER- LO, 2014), não é mencionada nos livros de história da nona arte dos principais pes- quisadores brasileiros que consultamos. Seu nome figura brevemente na Enciclopé- dia dos Quadrinhos (GOIDA; KLEINERT, 2011, p.267), em pequena nota, se compa- rada a outros autores tidos como pioneiros e mais importantes, motivo que justifica a ocupação de maior espaço e considerações na mencionada enciclopédia. De igual modo, ficam de fora outras artistas que trabalharam como desenhis- tas, caricaturistas, chargistas, quadrinistas, roteiristas e ilustradoras, a exemplo de Nair de Tefé (1909); Yolanda Ponghetti (1934); Griselda de Melo (1945); Giselda Guimarães Gomes (1955); Helena Fonseca Jorge (1963); Maria Aparecida Godoy (1967); Yvete Ko Motomura (1967); Cecília Whitaker – Ciça (1968) e Mariza Dias Costa (1974). Esse fato, para nós, é uma das formas de violência que as mulheres enfrentam no meio das artes visuais brasileiras. Suas exclusões no campo da arte se estendem, principalmente, à manutenção de suas ausências. Historiadores da nona artemuitas vezes consideram e tecem aproximações entre a ilustração – com ou sem legenda –, a caricatura e a charge com os quadri- nhos. O parentesco ocorre pelo fato de utilizarem o desenho, as cores, ou suas au- sências, combinadasou não, com narrativas textuais em temas satíricos, que adicio- nam humor ou crítica às obras ficcionais. Todas essas formas artísticas compõem um mosaico de parentesco se observadas pelos aspectos segundo os quais se as- semelham nessas artes visuais. As invisibilidades das mulheres, na história e na História da Arte, ressoam na obra de Rosaldo e Lamphere (1979). Elas explicam que alguns estudos etnográficos já assumem a perspectiva da mulher de modo diferente dos estudos tradicionais. Para tanto, salientam que Du Bois, Mead e elas próprias admitem que a mulher foi, geralmente e relativamente, invisível sempre que se descrevia algo do interesse ou atividades consideradas masculinas (ROSALDO; LAMPHERE, 1979, p.18). Para compreender essas ausências, observamos uma artista brasileira cujo trabalho tem relação com nossa discussão. Nair era filha do Barão de Teffé e teve uma educação europeia refinada no começo do século XX, enquanto a maioria das mulheres do País vivia em pleno analfabetismo. Foi primeira-dama do País (casada com Hermes da Fonseca) e representava os valores da elite. Ainda assim, ela foi sensível ao desenvolvimento de uma visão crítica, satírica e contestadora do meio 39

em que vivia, uma sociedade elegante e rica. O pioneirismo de Nair não se restringe à arte, mas está no fato de ser artista em uma época em que as mulheres eram des- tinadas ao “lar e suas obrigações”. Seu trabalho era um “espelho da realidade” (CAMPOS, 2016, p.33) com uma dupla função metafórica: espelhar o que se vê e a realidade para além da imagem. Outro aspecto interessante de seu trabalho é rela- cionado aos desenhos das mulheres que criou: elas foram “apreendidas em ativida- des extradomésticas e nenhuma delas apresenta elementos referentes à mulher en- quanto dona de casa” (2016, p.65). Campos (2016, p.27) informa que a educação esmerada da artista não visava lhe conferir a independência econômica, pois o ideal para a época era um bom ca- samento. Em todo caso, Nair representava uma ruptura ao modelo. Além disso, Nair ou “Rian foi a única mulher brasileira a embrenhar-se nos campos da caricatura, considerada uma arte menor, vista com certo desprezo pelos acadêmicos” (CAM- POS, 2016, p.169). De fato, em nosso meio, persiste a ideia de que “as atividades masculinas, opostas às femininas, sejam sempre reconhecidas como predominan- temente importantes, e os sistemas culturais deem poder e valor aos papéis e ativi- dades dos homens” (ROSALDO; LAMPHERE, 1979, p.35). Isso contribui para entender um dos motivos pelos quais as mulheres recorre- rem a artifícios nas artes visuais, como, no caso de Nair de Tefé, ter assinado seus trabalhos como Rian, um nome masculino. Suas caricaturas se distinguem de outras porque, além do desenho, ela brincava com o público por meio de um enigma, já que o leitor precisava identificar a pessoa retratada observando a imagem ou o texto que o acompanhava. Foi usando o pseudônimo de Rian, seu nome ao contrário, que a artista adentrou o campo das revistas ilustradas do início do século XX, típicas da imprensa burguesa. Seu trabalho priorizava a caricatura individual. Entendemos que o fato de Nair assinar como Rian evidencia a subordinação da mulher no uso de um artifício no campo das artes visuais, decorrente da condição de que

somos herdeiros de uma tradição sociológica que trata a mulher co- mo essencialmente desinteressante e irrelevante, aceitando como necessário, natural e profundamente problemático o fato de que, em toda a cultura humana, a mulher de alguma forma é subordinada ao homem. (ROSALDO; LAMPHERE, 1979, p.33)

A tradição sociológica está vinculada ao que Mead (apud ROSALDO, 1979, p.35) verificou serem “reflexos das relações conflituosas entre os sexos, [em que] os 40

valores de prestígio estão sempre ligados às atividades do homem”. Confirmamos essa proposição ao considerarmos uma extensa entrevista de Laerte à revista As Periquitas (2015, p.3-7), publicação que objetivou dar visibilidade às mulheres nas artes visuais (ilustração, caricatura, quadrinhos). A artista explica que sua percepção sobre o problema se delineou mais recentemente a partir de sua transição de gêne- ro, ou seja, ao se mais como mulher. Para ela,

de modo geral, eu acho que mulheres e homens são tão habilitados uns quanto os outros para qualquer produção cultural. Música, cine- ma, quadrinhos, humor, seja lá o que for. E a pergunta: por que tem tão pouca mulher nessas áreas? Eu tenho respondido assim: porque os homens tomam conta de tudo! Tomam conta e expulsam as mu- lheres para longe das áreas de decisão ou poder. (…) O fato de ter poucas mulheres fazendo humor tem a ver com isso, o modo como cultural e historicamente os homens se apossaram de quase todas as áreas da produção cultural. (AS PERIQUITAS, 2015, p.3-7)

Semelhante à pergunta de Nochlin, Crau da Ilha, nome artístico de Maria Claudia França Nogueira, quadrinista brasileira com mais de 40 anos de carreira, perguntou: por que há tão poucas mulheres cartunistas? (2015, p.2-3). Ela afirma que, em 1995, “as mulheres participavam esporádica ou solitariamente do mundo do humor: um mundo teoricamente ‘bigênero’” (2015, p.2-3). Compartilha seu sentimen- to de solidão com o leitor, ao explicar que, quando participou de uma mesa-redonda, há 40 anos, com 100 cartunistas, ela era a única mulher presente. A própria criação da revista, As Periquitas, foi uma ideia que ela pensou 15 anos antes de sua exis- tência, porque queria um espaço onde as mulheres pudessem “opinar sobre o mun- do, como qualquer cartunista” (2015, p.2-3) – uma forma de suplantar as ausências femininas, discriminatórias, no meio da arte visual considerando também o objeto de que tratamos. Um brevíssimo resgate é feito então pela revista As Periquitas, considerando desenhistas, ilustradoras e quadrinistas pioneiras no Brasil, entre 1909 a 1974. Des- tacamos as quadrinistas Pagu (1929), a primeira mulher a publicar quadrinhos no Brasil, autora de Malakabeça, Fanika e Kabelluda; Griselda de Melo, precursora nas publicações de quadrinhos em várias revistas infantis (O Tico-Tico, Tiquinho, Pingui- nho e Cirandinha); a desenhista Griselda Guimarães Gomes, que publicou trabalhos em várias revistas de HQ infantil e cujos personagens mais destacados são: Bone- quinha, Tatuí e Abelhinha Travessa nas revistas O tico-Tico, Pinguinho e Tiquinho; e 41

a roteirista e pesquisadora de folclore Maria Aparecida Godoy, pioneira do terror à brasileira (2014, p.68-9). Chamamos atenção para Ciça – Cecília Whitaker Vicente de Azevedo Alves Pinto (desenhista e ilustradora) – mulherpioneira em desenhar uma tira diária brasi- leira (1968), destacando as seguintes tiras e personagem: o Pato, Tico Tico, Filome- na, Ovo, Hermes, Naná, Bel, Ana, o Papagaio e o Formigueiro, publicados em jor- nais e revistas, como O Cruzeiro, Pasquim, Jornal dos Sports, Correio da Manhã, EBAL, Jornal do Brasil, Folha de S. Paulo, Crás, e em livros, como O Pato, 10 anos e o Ponto. Outra brasileira, ilustradora e quadrinista, Mariza Dias Costa, tem trabalhos nas HQs: “Mutatis Mutandis, livro Mariza- ... e depois a maluca sou eu” (2014, p.69) e também publicou livros, a exemplo de Antologia Brasileira do Humor e Filhas do Segundo Sexo. Além disso, publicou em diversos jornais e revistas como: “Pasquim, Opinião, Ovelha Negra, Movimento, O Bicho, MAD, Spektro, Roleta, Jornal do Brasil, Folha de São Paulo, Ficção Quadrinhos, Careta, Status, Plus, Senhor” (2015, p.69). Apesar de tantas publicações, não localizamos o nome dessa artista, nem seus trabalhos na Enciclopédia dos Quadrinhos (2011). Constam, na referida enci- clopédia, as seguintes autoras pioneiras em quadrinhos: Pagú, Ciça e Godoy, esta última apresentada pelos autores como um “raro caso de mulher interessada princi- palmente por histórias de terror e suspense” (2011, p.190). Essa afirmação nos fez questionar se os autores, deliberadamente, esqueceram do Frankenstein, ou o Mo- derno Prometeu(1818), de Mary Shelley – o exemplo mais significativo de que as mulheres são pioneiras em ficção e na criação do gênero de terror... Ora, o terreno onde as mulheres são bem experimentadas é o cultural! O lugar em que as letras e as artes são suas companheiras, mesmo porque “a mulher é então o principal polo da poesia, a substância da obra de arte” (BEAUVOIR, 1980, p.171). Restrições impostas às mulheres no meio da nona arte ainda permanecem. O Portal G1 informa que na 43ª edição do Festival de Angoulême, em janeiro de 2016, diversos quadrinistas boicotaram a premiação após nenhuma mulher ter sido indica- da, apesar de serem 30 indicações. Diversos artistas pediram desligamento do e- vento, entre eles Riad Sattouf (ex-Charlie Hebdo), Milo Manara, Joann Sfar, Daniel Clowes, Chris Ware, Charles Burns, Pierre Christin, Etienne Davodeau e Christophe Bla- in. O boicote partiu do grupo BD Égalité, que milita por igualdade de gênero no meio. Riad Sattouf declarou, em sua página do Facebook: 42

Descobri que estava na lista de indicados ao Grande Prêmio do Fes- tival de Angoulême deste ano. Isso me fez muito feliz! Mas acontece que esta lista inclui apenas homens. Isso me incomoda porque há grandes artistas mulheres que mereciam estar lá. Peço, assim para ser retirado desta lista, mas na esperança de poder reintegrá-la quando ela for mais paritária. (apud Portal G1, 07/01/2016, s.p.)10

Em 42 edições da existência do festival, apenas uma mulher ganhou o Gran- de Prêmio, em 2000: Florence Cestac. A declaração de Frank Bondoux, diretor do festival ao Jornal Le Monde não dista dos silêncios da história para com as mulhe- res. Sua fala nos remete às proposições de Pollock sobre as ausências das mulhe- res no campo das artes, e também à existência do corpo desnudo das mulheres pa- ra apreciação, como afirmado por Berger (1972). De acordo com Bondoux: "Infeliz- mente, há poucas mulheres na história dos quadrinhos. É uma realidade. Se você for ao Louvre, também encontrará muito poucas mulheres artistas" (apud PORTAL G1, 07/01/12016, s.p.). Por essas prerrogativas, relacionamos os quadrinhos ao feminismo, pontuan- do as ausências das mulheres na história. Muitas desenhistas do século XX – com extenso currículo de trabalhos em diversos periódicos nacionais e em publicações diversas – estão ausentes da Enciclopédia dos Quadrinhos, como vimos. Suas au- sências fizeram-nos refletir sobre os critérios de seleção dos artistas para a compo- sição desse importante compêndio brasileiro. Uma resposta é dada por um dos auto- res:

A rigor, mantivemos quase inalterados verbetes de roteiristas e ilus- tradores que já morreram – ou desapareceram do mercado – há mais de 30, 40 ou 50 anos. Mesmo esses passaram por uma revisão, linha por linha. Dos que permanecem vivos, são citados os trabalhos edi- tados até 2009/2010. (...) Então, essa é uma obra nova. Há nela cer- ca de 350 novos nomes. (...) Mesmo assim, poderá faltar alguma coi- sa editada em locais distantes deste nosso país-continente. Fizemos o possível para não deixar ninguém de fora, do Brasil e do exterior.

10 No post original: Bonjour! J'ai découvert que j'étais dans la liste des nominés au grand prix du festi- val d'Angoulême de cette année. Cela m'a fait très plaisir! Mais, il se trouve que cette liste ne com- prend que des hommes. Cela me gêne, car il y a beaucoup de grandes artistes qui mériteraient d'y être. Je préfère donc céder ma place à par exemple, Rumiko Takahashi, Julie Doucet, Anouk Ricard, Marjane Satrapi, Catherine Meurisse (je vais pas faire la liste de tous les gens que j'aime bien hein !)... Je demande ainsi à être retiré de cette liste, en espérant toutefois pouvoir la réintégrer le jour où elle sera plus paritaire! Merci! On se voit à Angoulême! Riad. Cf. SATTOUF, Riad. Facebook. Post, 05/01/2016. Disponível em: . A- cesso em: jan. 2016. 43

Esta sim, porém, é uma missão impossível. (GOIDA; KLEINERT, 2011, p.5).

Curiosamente, a enciclopédia consultada deixa de fora muitas artistas do pas- sado que ainda estão vivas, cujas obras tiveram lugar em publicações de referência, mas traz nomes de mulheres artistas, ilustradoras e quadrinistas de cenários mais recentes, a exemplo de Adriana Melo, a primeira mulher a desenhar o Justiceiro e o Homem Aranha (2011, p.316). Os autores informam que seus trabalhos mais impor- tantes ocorreram a partir de 2004, quando passou a ilustrar Rose & Thorn (DC, 2004) e os desenhos na série Star Wars: Empire. Sua obra inclui Miss Marvel (2008); a minissérie Loteria (2009) da Marvele as capas de Aves de Rapina (DC). É evidente que ainda existem muitas lacunas sobre as mulheres no mercado de quadrinhos. Urge também o resgate histórico de artistas brasileiras, pioneiras ou não, na nona arte.

1.4 SYNDICATES, ARTE E CONSUMO

A reprodutibilidade em pormenores técnicos abordada por Couperie e Horn (1973, p.9-21) destaca, fundamentalmente, o avanço da imprensa e dos jornais, a exemplo do Illustrated Chips, um jornal infantil de 1896, que trazia Weary Willi and Tired Tim, de autoria do Tom Brown, como o meio de propagação em grande escala dessa arte sequencial. Também irão concordar com a importância dos jornais e da imprensa como suporte inicial de promoção da disseminação dos quadrinhos, os principais sociólogos, historiadores e pesquisadores da área: Renard (1978, p.30-3); Marny (1970, p.39-43); Santos (2002, p.46-57); Silva (1976, p.11-21); Gubern (1980, p.17-20); Luyten (1984, p.28-35); Silva (2002, p.17-19) e Cirne (1977, p.12-18). Sobre a difusão dos quadrinhos, Marny (1970, p.41) afirma que, nos Estados Unidos, o meio de propagação foi essencialmente o jornal, enquanto, na França, a revista infantil cumpriu esse papel. Com tantas origens e circulações em nações tão distintas, os quadrinhos receberam nomes interessantes: comics, funnies, comic s- trips e comic books nos Estados Unidos; fumetti, striccia giornaliera, távola dominica- le na Itália; bandes dessinés e bandes, na França; tebeo na Espanha; historietas na 44

América Espanhola; histórias em quadrinhos, quadrinhos, gibi e tirinhas, no Brasil; história aos quadradinhos, em Portugal (MARNY, 1970; CAGNIN, 1975). A criação e a difusão dos quadrinhos foram organizadas, considerando a ne- cessidade de racionalização da circulação, coerente com as questões da estrutura espacial em concepção marxista, pois a comunicação se inscreve na venda de mu- dança da localização necessária à produção capitalista que não subsiste na ausên- cia do comércio exterior (HARVEY, 2005, p.49-55). Além disso, “no contexto da a- cumulação em geral, o aperfeiçoamento do transporte e da comunicação é visto co- mo inevitável e necessário” (2005, p.50). Inicialmente, a inserção dos quadrinhos nos jornais e revistas dependia, pelo menos nos Estados Unidos, de um setor especializado. Por volta de 1840, surgiram agências específicas no meio jornalístico, denominadas syndicates11. Elas funciona- vam como empresas distribuidoras de produtos da comunicação, como notícias, ho- róscopos, histórias em quadrinhos e outras matérias. Abasteciam os jornais norte- americanos de pequeno porte, que tinham parca estrutura para produção de artigos e outros materiais gráficos. Ofereciam, portanto, materiais diversos para serem pu- blicados, em especial os quadrinhos (IANNONE, 1994, p.44). As produções obedeciam à regra de contratação de desenhistas pelos syndi- cates que, conforme Luyten (apud MAGALHÃES, 2006, p.25), precisavam “produzir séries de histórias, previamente aprovadas, que dev[ia]em ser enviadas com grande antecedência para correções e padronizações”. A força dos syndicates e seu rigor eram tamanhos que o controle de mercado se estendia também às criações, como no caso de Henfil, com seus Fradinhos, que escandalizaram o público norte- americano, provocando o cancelamento da publicação das tirinhas The Mad Monks. Massivos e agressivos na distribuição e exportação de quadrinhos, os syndi- catesdificultavam a publicação de tiras no Brasil justamente porque os desenhistas não podiam competir com os valores praticados por eles, considerados muito baixos, nem com sua capacidade industrial de distribuição (LUYTEN apud MAGALHÃES, 2006, p.26). Compreendemos, assim, que a produção em larga escala e a distribui- ção dos quadrinhos possibilitarama existência de uma modalidade de arte-

11 Agência especializada. No jornalismo, é um termo designado para empresas distribuidoras de pro- dutos da comunicação, tais como: notícias, horóscopos, histórias em quadrinhos e outras matérias. Os Syndicates surgiram perto de 1840 e forneciam material aos jornais norte-americanos de pequeno porte e pouca estrutura para produção de artigos e materiais gráficos. Sobre o tema, consultar Ianno- ne e Iannone (1994, p.44). 45

comunicação que se insere no aspecto de relação de consumo tratada por Marx, para quem a produção de um objeto está condicionada a este aspecto e vice-versa – tese também defendida por Pollock (2013, p.23-4). A questão do consumo em larga escala sempre esteve aliada ao fato de os quadrinhos serem “sinônimo de evasão, de relaxamento, de leitura fácil” (GROES- TEEN, 2004, p.19), uma visão que prevaleceu por muito tempo em face dos conteú- dos de forte cunho humorístico e de temas especialmente dirigidos às crianças, em seus começos. Anos depois, alcançariam também o público juvenil e adulto. O uso de imagens e nenhumou poucos textoslevou a nona arte a ser conside- rada uma subarte ou subliteratura (LUYTEN,1984), conceitos que perduraram por muitas décadas e que também geraram inúmeras discussões no meio pedagógico, jornalístico, intelectual, da Igrejae do Estado (GONÇALO JR., 2004). A característica de “facilidade” de leitura atribuída aos quadrinhos resistiu por muito tempo e definia, em certa medida, o “iletramento” de alguém (BARON-CARVAIS apud VIANA, 2005, p.13). O próprio nome das histórias em quadrinhos recebeu na língua inglesa a al- cunha de comics, que se traduz por “cômico”12 (IANNONE, 1994, p.22) e que persis- te ainda hoje. Ao longo de sua existência, os quadrinhos deixaram de ser uma leitura uni- camente para as crianças e conquistaram jovens e adultos. Seus conteúdos passa- ram por alterações, a fim de atender um público que crescia em número e faixa etá- ria, obedecendo, cada vez mais, à cadeia proposta por Marx. Mas, como a maioria do público leitor dos quadrinhos foi, originalmente e durante muitos anos, composta por crianças e jovens, diversas regulações foram impostas por instituições de contro- le em vários países ocidentais.

1.4.1 A tirinha

A origem da tira cômica é atribuída a Bud Fischer, em 1907, com a publicação de Mr. Mutt, que incorporaria, mais adiante, um parceiro, Jeff. Outros pesquisadores

12 Nos Estados Unidos, as histórias em quadrinhos, chamadas de comics, consolidaram, de tal ma- neira a expressão, que ela se universalizou e passou a designar também os quadrinhos que não têm um caráter cômico. Outros nomes são associados aos quadrinhos: funnies (engraçado) e comic strip (tiras cômicas). 46

contradizem essa informação e declaram que a origem da tira deve ser atribuída a Clare Biggs, com a série A. Piker Clerk, publicada, pela primeira vez, no jornal Chi- cago American, entre 1903 e 1904, com periodicidade de três vezes por semana. Thierry Groesteen (2004, p.38) considera a tira um produto tipicamente norte- americano; foram as tiras diárias que fomentaram a massificação dos quadrinhos pelos Syndicates,os quais promoveram sua distribuição para o mundo (MAGA- LHÃES, 2006, p.14-15). Enquanto Magalhães (2006) aponta o ano de 1934 como início da compilação das tiras em veículo próprio – os comic books, ou revistas em quadrinhos –, Silva (2010, p.77) indica que isso só ocorreu em 1937, quando Eisner publicou a revista Feature Funnies, da Quality; mas o próprio Eisner (2013, p.40) afirma que sua publicação no formato revista em quadrinhos surgiu em 1929. Na Europa, o surgimento das tiras demorou a acontecer. Na Grã-Bretanha, ele ocorreu em 1921, com a série Pop, de John Millar Watt, publicada no Daily Sket- ch; na França, as tiras apareceram apenas a partir de 1934, com as histórias do Pro- fessor Nimbus, de A. Daix. (GUBERN, 1979, p.51-2). As tiras, em geral, são dispos- tas em 3 a 5 quadrinhos em sentido horizontal, podendo, ocasionalmente, ser publi- cadas em sentido vertical. Raramente a tira pode ocupar um único quadro, mas a- contece. Seu desfecho e lógica, em geral, são inesperados (MAGALHÃES, 2006, p.20), e o espaço limitado dos jornais teriam imposto as dimensões e quantidade dos quadrinhos a serem impressos nos periódicos (SILVA, 2010, p.63). Para Cagnin (1975, p.187), as funções narrativas nos quadros implicam uma situação inicial, um elemento de desvio natural da ação e, por fim, uma disjunção que provocará o riso. Todos esses elementos são comumente encontrados nas tiri- nhas. As modalidades mais comuns de tiras indicadas por Cagnin (1975) e Cirne (1972) são: - Episódios completos; - Episódios completos que mantêm a temática da semana; - Capítulos diários ou semanais que promovam suspense e ansiedade pela continuidade da história. Ao longo de sua existência nos jornais, os tamanhos das tiras variaram con- forme as crises econômicas e a Segunda Guerra. A redução de tamanho implicou a redução de texto e forçou os artistas a simplificarem determinados elementos visu- ais. As variações de tamanho das tiras chegaram ao ponto em que hoje “quatro tiras diárias ocupam o lugar que apenas uma tira ocupava originalmente nas primeiras 47

décadas do século XX” (SILVA, 2010, p.66). Uma característica sobre as tiras protagonizadas por “garotas”, apontada por Magalhães (2006, p.17-8), é a de que possuíam ingenuidade e a fantasia do príncipe encantado que culminaria em casamento. O aspecto cômico passaria a um enfoque muito mais crítico na segunda metade do século XX, de modo a acompanhar as mu- lheres no mercado de trabalho, na política e na liberação sexual, sinalizando para exemplificar sua assertiva a personagem Betty Boop, de Max Fleischer, que teve início em 1931. O humor do gênero Family Strips foi baseado na inversão de papéis, em que uma mulher dominadora oprimia um marido. Essas marcações característi- cas dos quadrinhos em épocas distintas conduziram-nos ao conceito de eras, ne- cessárias à compreensão dos principais aspectos das HQs diante de datações im- portantes para situá-los.

1.4.2 As Eras dos quadrinhos

Os quadrinhos podem ser observados sob três grandes periodizações: as e- ras de Ouro, Prata e Bronze13. A Era de Ouro compreende as produções entre os anos de 1938 a 1949, e é caracterizada por quadrinhos no formato de revista com grandes tiragens. O período é marcado também pelo surgimento do super-herói, o Superman, no fim dos anos 1930. Nessa era, os quadrinhos contaram com histórias de “ficção científica, policial, de guerra de cavalaria, de faroeste etc.” (LUYTEN, 1984, p.12). Foi empregado maior realismo, cenários exóticos, suspense, muita ação e o desenho neoclassicista. A Segunda Guerra Mundial influenciou os artistas e os quadrinhos, de modo que os temas passaram a conter lutas contra os japoneses e os alemães. Madrid (2013, p.15) salienta que, na chamada “era de ouro” dos quadrinhos norte-americanos, houve um grande esforço nos Estados Unidos para atrair o públi- co leitor feminino. Entre os anos 1930 e 50, surgiram heroínas que diferiam das mu- lheres nos quadrinhos, nos Estados Unidos. Trina Robbins (1999, p.7) afirma que houve um tempo (década de 1940) em que havia mais garotas do que garotos lendo

13 Historiadores de Quadrinhos divergem quanto às datas exatas que caracterizam as eras. Ver Chi- nen (2011, p.52-3); Luyten (1984, p.12-3); Gubern (1979, p.10). 48

os quadrinhos – nesse caso, graças a Archie Andrews, que mostrava ser possível uma vida fora do conceito de super-heróis. A autora descreve particularidades nos quadrinhos para o público feminino, como a inserção de “paper doll” para atrair as leitoras, recurso utilizado em publicações dos anos 1940 aos 50, como a Katy Keene (1999, p.15-6). Mais adiante, a fase áurea dos quadrinhos passou pela crise financeira e polí- tica, com a polarização de países capitalistas e socialistas e com a desfragmentação da União Soviética (URSS), culminada em 1991. Todos esses acontecimentos ter- minaram atingindo a nona arte. Durante a crise, os quadrinhos foram perseguidos por serem possíveis meios de propagação de ideias antiamericanas. O período co- nhecido como caça às bruxas foi também designado como macarthismo, alcunha advinda das ações do senador Joseph McCarthy que perseguiu o cinema, a literatu- ra, o jornalismo, o rádio e a TV. Outros dois opositores reacionários e perseguidores dos quadrinhos foram o deputado Richard Nixon e o ator Ronald Reagan (FEIJÓ, 1997, p.48-9). Destacamos que uma das mais importantes regulações foi baseada em um estudo do sociólogo Gerson Lengman, publicado nos Estados Unidos, em 1949, que tratava da violência explícita e da apologia à força bruta contida nos quadrinhos. Na França, esse mesmo estudo recebeu o nome de “Psicopatologia dos Comics” e sub- sidiou a criação de uma lei de controle chamada Lei das Publicações destinadas à Juventude, no mesmo ano. Em 1953, outra publicação, o livro The Seduction of In- nocente do psiquiatra Dr. Frederic Wertham, médico altamente influenciado pela es- cola de Frankfurt, fomentou uma campanha que incluía a imprensa como aliada, e culminou na criação de um Comic Code, elaborado pelas autoridades e editoras, no ano de 1954. As regulações surgiram porque os quadrinhos passaram a ter variações temá- ticas logo após a Segunda Guerra Mundial. Continham violências ainda maiores e mais explícitas que seus antecessores que, de certa forma, se justificavam pela ne- cessidade de “combater o mal” – nazismo e comunismo. Quadrinhos com conteúdo violento ou de expressão sexual passaram a ser categorizados como Crime Comics, Horror Comics e Love Comics. Frederic Wertham, em seu livro Sedução dos Inocentes, acusava as histórias em quadrinhos como um dos problemas para a promoção da delinquência juvenil. Partiu dele a condenação moral de personagens como Batman e Robin, que insinua- 49

riam homossexualidade e incentivariam os jovens a comportamentos lascivos. Ata- cou também a Mulher Maravilha, designando-a lésbica e sadomasoquista, e o Su- perman, classificado como um estrangeiro que se disfarçava de americano, mas que na verdade era o “super-homem de Nietzsche”, em alusão ao nazismo e à ideia de superioridade do povo alemão. O Superman, sob tal proposição, foi negado por Go- ebbels no Parlamento Alemão, durante seu discurso, proferido em 1942 (FEIJÓ, 1997, p.51-3). O pós-Guerra caracteriza-se como a Era de Prata –eraem que surgiram os quadrinhos para adultos. Nesse período, houve mudança significativa no perfil do público leitor, por influência da crise cultural. Mazur e Danner (2014, p.14) não só destacam que as transformações na nona arte, ocorridas nos anos 1960, decorre- ram das alterações demográficas e culturais desse período – quando já se admitia a possibilidade de que os quadrinhos “poderiam ser importantes meio de comunica- ção, até mesmo uma forma arte”; eles pontuamainda que houve intensa proliferação de quadrinhos no Japão, Europa e Estados Unidos. Outro aspecto marcante desse período foi o surgimento de novos super- heróis nos Estados Unidos, como o Quarteto Fantástico; o Homem-Aranha; Flash; Homem de Ferro; os X-Men; Thor; Hulk e Surfista Prateado. Além disso, muitos per- sonagens e histórias da década de 1940 passaram por reformulações para se ade- quarem aos novos tempos – um exemplo é a Sociedade da Justiça que passou a ser Liga da Justiça (FEIJÓ, 1997, p.60). Na década de 1960, houve um renascimento dos comics, mais precisamente relacionados aos conteúdos, que passaram a temáticas ainda mais diversificadas, intelectualizadas, parodiantes e undergrounds. Ainda nesse período, surgiram, por exemplo, Recruta Zero (Beetle Bailey, de Mort Walker), cujas personagens foram sujeitos de nossa pesquisa.Também foram criados Peanuts e The Wizard of Id, de Johnny Hart, com desenhos de Brant Parker para este último (RENARD, 1978, p.91- 7). Autores importantes destacaram-se em uma fase marcada pela contracultura: Robert Crumb; Jay Lynch e Richard Corben (RENARD, 1978, p.91-7). Ao discutir as lutas no campo da apropriação capitalista da criatividade artísti- ca, ao tempo em que sinaliza a existência de movimentos de oposição e fragmenta- ção à globalização neoliberal, Harvey (2005) nos municia com uma rebeldia que postulamos como ferramenta para o rompimento com as disposições vigentes. Isso inclui as lutas das mulheres contra as imposições do patriarcado no mercado dos 50

quadrinhos. Entendemos que essas lutas visavam firmar um lugar no mundo das artes sequenciais e se configuram dentro das contradições enfrentadas pelo capita- lismo, como resultantes de reflexões e ações políticas de oposição de forças pro- gressistas (HARVEY, 2005, p.239). As dissonâncias frente à produção cultural e ao capital também ecoam nas observações de Morin (2003, p.12), quando trata das questões surgidas a partir dos anos 1960, em que as interações culturais adquiriram maior complexidade e refor- mulações generalizadas, destacando, principalmente, a “nova feminilidade e o novo feminismo” cuja “onda de choque” tem, no Women’s Lib, um de seus expoentes. A Era de Bronze dos quadrinhos teve início nos anos 1970, e foi marcada pe- lo aumento de eventos de grande porte voltados para exposição de HQs, muito simi- lares à Primeira Exposição Internacional de Histórias em Quadrinhos, organizada por Álvaro de Moyá e Jaime Cortez, ocorrida em São Paulo, em 1951. Outros impor- tantes marcos históricos do meio indicam o fortalecimento dos quadrinhos e sua a- ceitação em esferas antes impensáveis, como nos museus onde ocorreram exposi- ções – Louvre (1967) e Museu de Arte de São Paulo – e o aumento dos estudos e pesquisas acadêmicas. Também surgiu uma onda contra o “predomínio da produção norte-americana no Ocidente, que sufocava o desenvolvimento e a originalidade dos quadrinhos nacionais em diversos países, inclusive no Brasil” (FEIJÓ, 1997, p.69). Magalhães (2006) ratifica que, embora consolidassem experiência secular em produção massificada, distribuição e preços, o syndicates encontraram forte oposi- ção em nosso país. Autores nacionais, como Maurício de Sousa e Ziraldo, tornaram- se autores e distribuidores, contando com a imprensa nacional para suas publica- ções. O Bidu, publicado na Folha de S. Paulo, a partir de 1959, é um exemplo de emprego de esquema de distribuição semelhante ao dos syndicates. O destaque fica com a Folha de S. Paulo que, transformada em agência de notícias, passou a incluir as tiras de Angeli, em seus produtos para venda – fato demonstrado com as publi- cações dessas tiras no Jornal do Brasil, Diário de Campinas e Diário de Itu (MAGA- LHÃES, 2006, p.34-35). Na década de 1980, a agência Funarte passou a utilizar a estratégia praticada pelas agências norte-americanas em território nacional. Ao incluir os trabalhos de autores brasileiros, a agência também passou a oferecer as tiras em valores 60% abaixo dos praticados pelos syndicates. A agência contava, em 1987, com 38 jornais contratados e 15 artistas com tiras publicadas em diversos periódicos (MAGA- 51

LHÃES, 2006, p.34-5). As dificuldades econômicas e políticas fizeram com que a agência fosse encerrada na gestão do presidente Fernando Collor no começo da década de 1990. Esse panorama das eras dos quadrinhos cooperou para a compreensão das periodizações importantes na nona arte. Considerar os grandes acontecimentos mundiais que marcaram os quadrinhos – em termos de criação, produção, circula- ção, aceitação e o surgimento de intensos estudos – recuperou um cenário de ex- trema importância para entender seus lugares como produtos culturais de arte- comunicação. Outros aspectos se somariam à compreensão de seu universo polis- sêmico.

1.5 A PLURALIDADE DA APARENTE SIMPLICIDADE DOS QUADRINHOS: ES- TRUTURA E SENTIDO

Os quadrinhos transitam em discussões que os assumem como objetos das áreas de arte e comunicação, mas eles são, principalmente, aceitos como um “pro- duto típico da cultura de massas ou especificamente da cultura jornalística” (KLAWA; COHEN, 1977, p.108). Assim, desde que a academia passou a estudá-los, foram eles observados também como produtos culturais. O traço de humor presente em muitos quadrinhos tem implicações sociais, uma vez que estão imbuídos das complexidades próprias da linguagem dessa arte. Mas, de fato, “não existem quadrinhos inocentes, assim como não existe leitura ino- cente” (CIRNE, 1982, p.11), pois é possível compreender o “discurso artístico e/ou literário como uma produção social de signos, como uma prática significante de sig- nificados concretos” (CIRNE, 1982, p.15-6) – aspectos que se confirmam em Cagnin (1975, p.25). Sobre o humor nos quadrinhos, sabe-se que ele se consolidou na década de 1920, quando, basicamente, abordava temas sobre comédias domésticas (PATATI; BRAGA, 2006, p.33). Com o tempo, esse campo esgotou-se para a piada, em face dos problemas políticos no cenário mundial e da grande depressão econômica. Para que o humor exista nos quadrinhos, é necessária a cumplicidade entre aqueles que se comunicam na observação do que está posto intencionalmente e alguma compe- 52

tência linguística do leitor. O humor, a piada também precisa considerar o momento histórico. Os quadrinhos funcionam onde é necessária a participação dos indivíduos sob catarse proveniente, em parte, da alienação, ou mesmo pela “metamorfose da informação em mercadoria”, no que concordamos com Klawa e Cohen (1977, p.110). Além disso, é preciso considerar que

deberemos discutir los distintos problemas partiendo del supuesto, histórico y antropológico-cultural a la vez, de que con el advenimiento de la era industrial y el acceso al control de la vida social de las cla- ses subalternas, se ha establecido en la historia contemporánea una civilización de mass media, de la cual se discutirán los sistemas de valores y respecto a la cual se elaborarán nuevos modelos eticope- dagógicos. (BELL apud ECO, 1984, p.41)

Recorremos a Harvey (2005, p.221) para reafirmar que “a cultura se transfor- mou em algum gênero de mercadoria” que faz com que seus produtos sejam espe- ciais a ponto de se incluírem “em modos localizados de vida, no patrimônio, nas memórias coletivas e nas comunhões afetivas”. A humanidade considera os produ- tos culturais muito especiais e distintos das demais mercadorias. É necessário, en- tão, que uma mercadoria, com aspectos tão específicos, requeira o que definiu como um “escrutínio matizado” (HARVEY, 2005), o que justifica nossa escolha metodoló- gica. Existem exceções, mesmo quando o capital se apropria de “culturas locais, molda significados estéticos e, desse modo, domina iniciativas locais, para impedir o desenvolvimento de qualquer tipo de diferença que não esteja diretamente incluída dentro da circulação do capital” (HARVEY, 2005, p.236). A questão é que o capita- lismo pode, de fato, se apropriar e “extrair excedentes das diferenças locais, das va- riações culturais locais e significados estéticos, não obstante a origem”, pois possui meios para transformar tudo em commodities e comercialização (2005, p.236). A arte, portanto, foi rendida à lógica de produção e mercantilização, perdendo a vocação anterior de patrocínio, em que manteria alguma autonomia e seria para a contemplação estética e elitista. Um aspecto que distingue a arte de agora é o fato de ela existir como produto da indústria cultural de fácil acesso, de baixa ou aparen- te ausência de custo. Esse aspecto consolida-se na proposição de Eco (1984) sobre as leis de mercado: 53

en la actualidad es maniobrada por ‘grupos económicos’, que persi- guen finalidades de lucro, y realizada por ‘ejecutores especializados’ en suministrar lo que se estima de mejor salida, sin que tenga lugar una intervención masiva de los hombres de cultura en la producci- ón.(1984, p.59)

O diminuto espaço artístico “quadrinho” está, inexoravelmente, vinculado à condição de que trata o objeto em questão como “o resultado concreto de uma parti- cular prática criativa, isto é, de uma prática semiológica” (CIRNE,1972, p.17), em que a “produção de signos engendrada por uma dada prática estética – deve ser entendida como reflexo de um todo social articulado pelas forças produtoras” (1972, p.17). Seu pensamento coaduna com a assertiva de Bela Baláz (apud CIRNE, 1972, p.17-8) para quem a arte surge por “objetivos ideológicos e econômicos”, e não pela genialidade de um criador. A comunicação de massa, devemos lembrar, possui distintas características, como uma produção institucionalizada e centrada na difusão de bens simbólicos. O acesso e alcance das formas simbólicas acontecem no “tempo e espaço”, determi- nados pela articulação do capital (HARVEY, 2005), pois o problema para o capital é encontrar meios de cooptação, subordinação, mercado e monetização das diferen- ças – apenas o suficiente para a apropriação monopolista. Uma das sociólogas pioneiras a pesquisar as Bandes Dessinèes14, Evelyne Sullerot, apresentou o resultado de seu estudo no Primeiro Salão Internacional das Histórias em Quadrinhos, em 1965:

Il me semble, et des études historiques m’incitent à approfondir cette vue, que bien des mouvements littéraires, artistiques, musicaux no- veaux trouvent une partie importante de leur inspiration rénovatrice dans les manifestacions plus vulgaires de la sous-culture du temps qui connaît la popularité. (...) Le pop art est en train de naître des bandes dessinées.(1965, p.12-3)

Isso nos faz confirmar que a arte sequencial, ainda que ficcional, funciona como uma manifestação imagética e narrativa de fragmentos de fenômenos sociais e históricos do imaginário, como documentos válidos, porque

la fresque des types produits par notre societé, et celle des rêves fan-

14 Nome dos quadrinhos na França. 54

tastiques de cette societé, on la trouve dans les bandes dessinées, lumineux réservoir d’imaginaire, immense caricature. Elle ne pourront pas être ignorées des historiens des mentalités et de la sensibilité de notre époque. (SULLEROT, 1965, p.25).

Reafirmamos, portanto, a necessidade de examinar as manifestações cultu- rais quadrinhos, uma vez que elas contêm aspectos fractais de machismo que indi- cam as dominações impostas sobre as mulheres. Uma explicação é dada por Eco (1984, p.261) ao tratar do mito construído nos quadrinhos, segundo o qual comparti- lha uma “universalidade estética” que necessita da coparticipação do leitor, suas re- ferências, comportamentos e sentimentos. A proposta de Eco (1984, p.77)15relativa à pesquisa da linguagem dos comics contribui para nossas convicções sobre os fragmentos de machismos presentes na nona arte, e na observação de violências e estereótipos que contribuem para os nossos questionamentos no campo dos quadrinhos. Mas é preciso alcançar o que está além da imagem. Eco (1984) considera a possibilidade de conteúdos pedagógicos de persuasão oculta, determinada por fins econômicos, e afirma que a produção dos quadrinhos é sensível aos “humores do público” (1984, p.253). Isso coaduna com a nossa compreensão dos quadrinhos como uma competente articulação de arte e comunicação, que utiliza a ficção para a produção simbólicae para reproduzir, mesmo que parcialmente, partículas da reali- dade. Sobre os humores do público na produção de quadrinhos, somam-se a trans- formação na infraestrutura cultural da sociedade ocidental, a partir dos anos 1960, e a problematização da cultura de massa que se sobrepôs à revolução cultural articu- ladas perante a crise da sociedade ocidental (MORIN, 2003,10). De fato, a cultura de massa, entre os anos 1960 e 70, passou por profundas alterações na perda do seu caráter homogeneizante dos “modelos integrados e inte- gradores: a promoção dos valores juvenis, a promoção dos valores femininos, a promoção da libertinagem e do princípio do prazer” (MORIN, 2003, p.10). Nossa es-

15 Proposta de investigação nos Comics. La sucesión cinematográfica de los strips. Ascendencia histórica. Diferencias. Influencia del cine. Procesos de aprehesión implicados. Posibilidades narrativas conexas. Unión palabra-acción realizada mediante artificios gráficos. Nuevo ritmo y nuevo tiempo narrativo que de ahí derivan. Nuevos estilemas para la representación del movimiento (los dibujantes de comics no copian de modelos inmóviles, sino de fotogramas que fijan un momento del movimien- to). Innovaciones en la técnica de la onomatopeya. Influencias de las experiencias pictóricas prece- dentes. Nacimiento de un nuevo repertorio iconográfico y de standardizaciones que funcionan ya como topoi para la koiné de los fruidores (destinados a convertirse en elementos de lenguaje adquiri- do para las nuevas generaciones). Visualización de la metáfora verbal. Estabilización de tipos carac- terológicos, sus límites, sus posibilidades pedagógicas, su función mitopoética (ECO, 1984, p.77). 55

pecial atenção recaiu sobre o fato de que,

depois de 1967-1969, a libertinagem, que na grande época da cultura de massas era cultivada no consumo e para o consumo, através do erotismo imaginário da publicidade, sai do leito que lhe fora destina- do, onde era prudentemente mantida e contida. (MORIN, 2003, p.11.)

Mas, como produtos culturais, os quadrinhos também encerram fragmentos do “erotismo imaginário” (MORIN, 2003). Concordamos, então, que, mesmo que não possam controlar totalmente os indivíduos, os produtos culturais possuem conteúdos que promovem, ainda que em parte, a divulgação de ideias visando à colonização do pensamento, e nesse sentido, eles exprimem subalternidades. Exemplos para nossa afirmação são apontados por Gaudêncio (1977, p.121-136), quanto aos usos dos quadrinhos como propagadores ideológicos das estruturas de poder do Estado (governo Roosevelt) e do capital. Na descrição de Furlan,

é interessante observar a situação dos ‘Syndicates’ [que] é muito li- gada à política externa dos EUA. Durante a I Guerra Mundial, quando o país não teve participação direta, as HQ não desenvolveram temas de guerra. Por outro lado, durante a crise de 1930, as HQ também não se manifestaram, pois, certamente, nenhum cidadão norte ame- ricano gostaria de ver a sua má situação em HQ. Porém os ‘syndica- tes’ acionaram os desenhistas para criação de novos títulos ou adap- tações aos já existentes, com relação à II Grande Guerra. Assim, Tarzan pode ser encontrado a desbaratar algum comando nazista na África: as HQ atuam como instrumento de propaganda do governo. (apud LUYTEN, 1985, p.31. Grifos do autor)

Sob tais perspectivas, que confirmamos também em Cirne (1972), os quadri- nhos expõem os aspectos simbólicos relacionados a determinadas circunstâncias e contextos. Desse modo, eles serão, de fato, uma representção social que promove a circulação e manutenção de determinadas ideias porque “los comics, em su mayorí- a, reflejan la implícita pedagogia de um sistema y funcionan como refuerzo de los mitos y valores vigentes” (ECO, 1984, p.298). Nesse sentido, é possível inferir que o mesmo acontece quanto às assimetrias de poder, às diferenças de gênero e à vio- lência contra a mulher nesses meios. Admitindo que os quadrinhos funcionem como fragmentações das culturas das épocas a que assistiram, e das civilizações das quais surgiram, consideramos que eles se configuram na diversidade de registros documentais, como

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escritos de todos os tipos, documentos figurados, produtos de esca- vações arqueológicas, documentos orais, etc. [...], uma fotografia, um filme [...], ferramenta, um ex-voto são, para a história nova, documen- tos de primeira ordem. (BLOCH, 1941 apud LE GOFF, 1990, p.68)

Entendemos, portanto, que os quadrinhos, na qualidade de documentos, evi- denciam “leis gerais, de circunstâncias particulares de tempo e lugar, enfim, de cir- cunstâncias próprias de cada indivíduo” (BLOCH, 1941 apud LE GOFF, 1990, p.71). Localizamo-loscomo o lócus do imaginário coletivo que, criativamente, contêm tam- bém representações dos diversos axiomas sociais. Então, mesmo que as pessoas partam de suas cognições para criar ou para interpretar as mensagens, elas são in- fluenciadas pelos construtos políticos, sociais, econômicos, crenças e valores. Até a década de 1970, no campo dos estudos sociológicos, os quadrinhos fo- ram mais estudados por seu caráter de consumo em larga escala, vinculado à cultu- ra de massa, pois a produção e a reprodução de arte assumiram certa democratiza- ção, conforme apontado por Cagnin (1975, p.22). Viana (2013, p.24-25), por sua vez, afirma que o capital editorial possui vasto público, poder de veiculação e suces- so e, assim, as HQs servem para atender ao propósito do lucro, pela venda da mer- cadoria “revista em quadrinhos”. É necessário, porém, compreender como isso funciona. A produção quadri- nísticaaté hoje atende os anseios do público, mas também contempla a crítica e a contestação em seus produtos. Assim, para atender ao consumo, a “equipe de pro- dução é controlada pelo capital editorial, mas mantém uma autonomia relativa, e quando surge determinado público que lhe permite maior liberdade, amplia esse processo” (VIANA, 2013, p.25). Em paralelo, é necessário compreender que, como produtos culturais, os quadrinhos se inserem em um “sistema que faz comunicar – em forma dialética – uma experiência existencial e um saber constituído”, a cultura (MORIN, 2003, p.77), que não “deve ser considerada nem como um conceito nem como princípio indicati- vo, mas como a maneira como se vive um problema global” (2003, p.77). Sob essa assertiva, reafirmamos os quadrinhos como parte integrante de um sistema que pro- duz e reproduz a comunicação dos valores e saberes sociais e compartilha uma es- tética que visa atender o público e os interesses do capital. Embora tenha havido uma apropriação elitista histórica sobre a cultura, exis- tem aqueles fora da elite que reivindicam a propriedade cultural – Morin (2003) os 57

localiza no campo da criatividade. A cultura de massa, então, transita entre “a cultura ilustrada, como uma variante miserável, vulgarizada, comercializada, e a cultura no sentido etno-sociológico” (2003, p.100). Por isso, ocorre uma ambivalência em que

uma parte da cultura ilustrada se derrama, vulgarizada ou não, na cultura de massas, ao passo que meios de expressão desenvolvidos pela cultura de massas (filmes, histórias em quadrinhos) são recupe- rados como artes pela cultura ilustrada. (MORIN, 2003, p.100).

Exemplos que corroboram essa proposição podem ser percebidos nas mani- festações de artistas e grandes nomes da cultura ocidental, que proclamaram seu amor pela nona arte, como também nos rompimentos decorrentes das lutas das mu- lheres pela sua inserção e arte nos quadrinhos. No Brasil, os admiradores de reno- me foram o escritor Jorge Amado e o intelectual Ruy Barbosa; europeus e norte- americanos endossam a lista de apreciadores e defensores. Picasso disse: “a gran- de mágoa da minha vida é nunca ter feito quadrinhos” (MOYA, 1977, p.83). Em Via- gem a Tulum, produzida por Milo Manara e Federico Fellini (1991, p.2), o cineasta que também teve estreitos vínculos com as caricaturas e os quadrinhos, pois tam- bém desenhava, declarou:

Histórias em quadrinhos são a fantasmagórica fascinação daquelas pessoas de papel, paralisadas no tempo, marionetes sem cordões, imóveis, incapazes de serem transpostas para os filmes, cujo encan- to está no ritmo e dinamismo. É um meio radicalmente diferente de agradar os olhos, um modo único de expressão. O mundo dos qua- drinhos pode, em sua generosidade, emprestar roteiros, persona- gens e histórias para ao cinema, mas não seu inexprimível poder se- creto de sugestão que reside na permanência e imobilidade de uma borboleta num alfinete. (FELLINI, 1991, p.2).

Para Moya (2007), Goethe pode ser considerado um dos primeiros apreciado- res e críticos dos quadrinhos, porque questionou o trabalho de Rudolf Töpffer que, em 1827, fez as primeiras histórias ilustradas. A crítica de Goethe estava centrada na necessidade da coexistência das duas formas de linguagem, a escrita e a imagé- tica, para que a história fizesse sentido (MOYA, 2007). Andy Warhol também gosta- va muito de quadrinhos e chegou a pintar uma tela retratando o Superman. Assim, os quadrinhos foram guindados, definitivamente, à Pop Arte. Nas proposições de Morin (2003, p.101), o saber sobre o qual a cultura de massa se fundamenta é um mosaico constituído por mitos, imaginários, que utiliza 58

um “código pobre”, já que o produto da indústria cultural precisa alcançar um público vasto. À parte das discussões sobre a importância, ou não, dos quadrinhos e sua inserção no campo das artes frente à cultura ilustrada, nós os admitimos não só co- mo uma complexa forma de arte-comunicação assumida como nona arte, mas fun- damentalmente como parte importante de uma “prática cultural e social” (POLLOCK, 2013, p.24). Se a sociologia deve considerar “a imagem como objeto de referência”, para que possa dialogar “criticamente com o imaginário sociológico” (MARTINS, 2016, p.18), assentimos que importam também os processos sociais elaborados e afeta- dos pelas práticas de representação imagéticas e textuais nos quadrinhos. Nós os relacionamos às proposições de Pollock (2013, p.29-31), pois as práticas culturais possibilitaram que nosso olhar sobre o objeto se distanciasse do exame unicamente estilístico e iconográfico – esta é uma forma de promover novas significações, com- preensão do mundo e das complexidades dos sujeitos sociais (2013, p.31). Os obje- tos da prática cultural, portanto, são passíveis de análises que consideram as suas reaispráticas e condições de realização (WILLIAMS, 2011, p.66-7). A complexidade da nossa análise inclui a relevância de “um projeto individual e um modo coletivo”, em que se considera não somente o que está posto, mas o que está alienado, ou seja, “as hipóteses dos dominantes, do residual e do emergen- te” (2011, p.67), percebidos nas mensagens dos quadrinhos. Para tanto, é necessá- rio considerar a proposta de Viana (2013, p.68) para quem, em relação aos quadri- nhos, a “compreensão requer a compreensão mais geral da sociedade, época, con- dições de produção, ou em outras palavras, o contexto social, histórico, cultural e ficcional em que é produzida”. Para ele, a produção social dos quadrinhos contém níveis de profundidade nem sempre possíveis de atingir, pois dependem da disponi- bilidade de materiais informativos. Assim, ele orienta que

na falta de entrevistas, informações, sobre os criadores (biografia, entrevistas etc.), então o contexto social histórico e cultural ganham maior importância (...) Assim, quanto maior informação sobre o pro- cesso de produção social dos quadrinhos, mais profunda fica a análi- se e maior a possibilidade de interpretação correta (2013, p.69).

Afirmamos que, mesmo um quadrinho, ou sua sequencialidade no formato ti- rinha, pode reproduzir parcialmente, desde a “perspectiva do seu produtor, a reali- dade social, o que significa que repassa as suas concepções, valores, etc.” (2013, 59

p.69). Em seu raciocínio, um fragmento da mentalidade cultural pode ser percebida nos quadrinhos, tanto nas mensagens intencionais quanto nas inintencionais. Realmente “não podemos separar a literatura e a arte de outros tipos de práti- ca social, de modo a torná-las sujeitas a leis muito especiais e distintas” (WILLIAMS, 2011, p.61), e aqui se inserem os quadrinhos. Importa saber, então, que nossas análises precisam considerar “características bastante específicas como práticas, mas não podem ser separadas do processo social geral” (2011, p.61). Partimos, as- sim, para a compreensão da estrutura dos quadrinhos para entender como as ima- gens e narrativas que interessavam à particularidade de nossa proposta funcionam e como conseguem reproduzir imagens de mulheres e violências.

1.6 ESTRUTURAS DOS QUADRINHOS

As HQs são desenvolvidas com o uso de técnicas de desenho que visam co- municar e persuadir o leitor. Tudo é pensado e calculado: o tema, o momento da história, o enquadramento, a distância, o ângulo, a escolha das imagens, os perso- nagens, suas aparências, a perspectiva, os planos, a escolha das palavras, o fluxo de leitura e mesmo a condução da direção do olhar do leitor são estudados e mani- pulados (McCLOUD, 2008). A mensagem deve convencer o leitor de uma determinada verdade no diminu- to espaço que ocupa. Assim, os personagens surgem para que o artista estabeleça certos objetivos de comunicação e expressão, mas serão os leitores que darão vida a eles. Para tanto, os leitores usarão alguns elementos que criarão os laços de signi- ficado, como a técnica de simetria bilateral16– elemento necessário para o processo inicial de significação, porque “não importa quão abstrato ou estilizado seja um de- senho, se ele exibir esse arranjo básico, os seres humanos verão a si mesmos nos traços” (McCLOUD, 2008, p.60. Grifo nosso). Um princípio fundamental dessa identificação são os temas relacionados aos

16 Em Desenhando Quadrinhos (McCLOUD, 2008), a simetria bilateral é definida como imagens se- melhantes que são observadas tanto na esquerda quanto na direita. A simetria permite o reconheci- mento e promove “afeição” aos “parentes mais próximos”. A simetria também é capaz de “inquietar” as pessoas quando observada em outros seres viventes considerados “distantes” do parentesco hu- mano. Relembra ao leitor que os olhos são responsáveis por perceber e dar profundidade a qualquer imagem. 60

humanos, permanentes nas HQs. Justamente por tratarem de aspectos da natureza humana, interessam a todos em qualquer parte. Inclui-se, na relação entre os huma- nos e as artes, “uma inclinação natural das pessoas para criarem histórias ou signifi- cados. Mesmo o rabisco mais solto sugerirá uma figura... uma emoção... ou um ges- to” (2008, p.61). De fato, o ser humano carece de concluir as mensagens que recebe e, nos quadrinhos, as pessoas as concluem, (2005, p.63-73),uma vez que as imagens inci- tam o leitor-ator a participar delas – não somente porque o cérebro tende a reconhe- cer e associar imagens e representações humanas em desenhos e objetos, mas por envolver o público com os ícones nas chamadas mídias frias descritas por McLuhan, entre elas os quadrinhos, (2005, p.59). O icônico, o não icônico, a abstração, os “fundos realistas”, a linguagem simples, a linguagem visual metafórica, a sequencia- lidade, a ação, o tempo, as linhas e os traços... Todos esses componentes dos qua- drinhos cooperam para a identificação do leitor com os personagens da história (2005, p.42). Para McCloud, “a ideia de que uma figura pode evocar uma resposta emocio- nal ou sensual no espectador é vital nos quadrinhos” (2005, p.121). Esse conceito nos ajuda a explicar a compreender um dos porquês de os corpos femininos serem hipersexualizados na nona arte. A técnica estará sempre a serviço dos interesses, das editoras, dos autores, dos mecenas, que, no final, atendemà proposta engen- drada pelo patriarcado com relação às representações de mulheres nos quadrinhos. MacCloud (2008, p.62-127) trata em pormenores o design de personagens, especificando expressões faciais e linguagem corporal. Afirma que o design está condicionado à vida interior do artista, à distinção visual e aos traços expressivos. Assim, a produção do personagem emprega muito da percepção e experiência de vida do artista, mesmo que não seja, necessariamente, um “quadrinho de autor”. Para tanto, admite que é necessário que os personagens tenham personalidades intensas a ponto de que eles escrevam “a si mesmos”. Assim, os personagens de- vem possuir dilemas, filosofias de vida concorrentes e podem ser formados por ar- quétipos e mitos. Ainda para McCloud, a beleza idealizada de um personagem pode ser alcan- çada pela repetição dos traços e será “mais eficiente quando tem uma base de com- paração” (2008, p.70-1). Outra técnica utilizada nos quadrinhos para efetiva comuni- cação apela para as expressões faciais, cujas sutilezas e formas evocarão sempre 61

sinais e símbolos reconhecidos culturalmente pelos emissores e receptores. Quanto aos corpos dos personagens, afirma que eles transmitem “mensagens poderosas” com formas de linguagem corporal e esquemas para desenhar os vários estados do personagem diante das situações e emoções da trama (2008, p 102). A perspectiva na construção de mundos e localidades nos quadrinhos precisa ser feita de modo que eles possam ser “impressionantes e vívidos” (2008, p.158- 181), sejam ficcionais ou semelhantes ao mundo real. Para as semelhanças com o “real”,o autor indica que a técnica de perspectiva ocidental deverá ser utilizada. Ora, deve-se ter em mente que a imagem tem uma característica de ser uma “represen- tação imitativo-figurativa, como cópia de alguma coisa” (CAGNIN, 1975, p.32). Mes- mo quando o desenhista/artista elabora a imagem de modo a orientar a percepção do seu significado seletivamente, a intenção do autor trabalhará de modo a conside- rar também as limitações do receptor, aquele que lerá as imagens (1975, p.51). Ramos (2010, p.28) explica a complexidade dos quadrinhos – em associação ao linguista Maingueneau –, sob a concepção de hipergênero. Aponta que os gêne- ros que compõem o hipergênero dos quadrinhos são: “os cartuns, as charges, as tiras cômicas, as tiras cômicas seriadas, as tiras seriadas e os vários modos de pro- dução das histórias em quadrinhos” (2010, p.22). A estrutura de sobreposição de imagem/texto depende da interpretação do leitor sobre os aspectos verbais e visuais dos quadrinhos. É necessária uma “percepção estética e de esforço intelectual” (EISNER, 1995, p.8). Ramos (2010) confirma que toda a cadeia de produção dos quadrinhos é pensada visando atender às demandas editoriais, aos autores, ao público – e, para atender a cada um desses aspectos, os conteúdos são pensados rigorosamente. Além disso, é necessário compreender a especificidade da intencionalidade das HQs. O primeiro aspecto a ser notado é como os quadrinhos foram produzidos para serem vistos, se são “quadrinhos infantis”, “quadrinhos de super-heróis” etc., o que indica o público-alvo. Em alguns casos, é possível perceber a inclinação políti- ca/ideológica do autor (autores) ou dos núcleos editoriais da publicação. Às vezes, se pode notar se a revista se adéqua a determinado segmento social, como grupos urbanos, ou não, identidades, representações e outros. Afirma a importância entre texto e imagem, e destaca a narrativa em sequência como identidade e especificida- de dos quadrinhos. Os quadrinhos funcionam como um portal imagético-comunicacional que 62

comporta aspectos de produção simbólica e de representação que transcendem a plástica, constituindo-se em uma extensão social. Nisso reside parte de sua diversi- dade, explicada por Cagnin (1975), pois

a maior complexidade da imagem em relação à palavra e das ima- gens unidas em sequência deve levar a estudos mais objetivos e pro- fundos que, por sua vez, esclarecerão certos efeitos psicológicos e sociológicos obtidos pela imagem, uma vez que, admitida a sua im- portância antropológica, ela põe em jogo toda a personalidade do homem e não apenas o seu conhecimento. (1975, p.17)

Uma tirinha ou uma HQ se constituem por quadros, imagens, legendas e ba- lões – quecontêm as onomatopeias, frases, ou imagens correspondentes ao diálogo. Na arte sequencial, imagem e texto criam condições de uma relação que evolui à medida que são lidos, constituindo uma dinâmica própria (MARNY,1970, p.34). A ênfase é sempre centrada no quadro, na imagem dentro do quadro e em setores mais ou menos importantes do campo visual, conforme as técnicas de desenho. A leitura do texto obedece à ordem dos balões – indicando, assim, o tempo narrativo -, à horizontalidade da leitura, na maioria dos casos, e à ordem do sintagma linguístico da esquerda para direita, no ocidente (CAGNIN, 1975, p 54-5). As especificidades de uma linguagem própria e as composições artísticas de- finem parte da natureza da arte sequencial de que tratamos. Diante de tamanha complexidade, é evidente que não se trata de uma expressão artística simplista, ain- da que os quadrinhos possam realmente parecer muito semelhantes entre si, como pensou o poeta (FIGURA 2):

Figura 2 - Drummond

Eu desconfiava: todas as histórias em quadrinho são iguais. (DRUMMOND, 2014, p.46)

Fonte: Elaborada pela autora

Talvez, em um primeiro momento, a aparente semelhança a que se refere o poeta pode estar relacionada à estrutura. Os balões caracterizam e são pertinentes 63

aos quadrinhos. Na Itália, os balões nominam as próprias HQs: Il fumetti (CAGNIN, 1975, p.120). Com formas diversificadas, os balões expressam e comunicam17 algo de modo muito singular (IANNONE, 1994, p.69-76). Formas específicas de lingua- gem surgiram e se consolidaram com e nos quadrinhos18. Os balões teriam surgido bem antes da Guerra de Secessão, em 1861, segundo Couperie e Horn (1970, p.17). Mas, para Renard (1978, p.42) e Cirne (1977, p.25-31), o balão só surgiu mesmo em 1896, com The Yellow Kid, de autoria de Richard Felton, no suplemento dominical do New York World e, a seguir, no New York Journal, como uma “estética dos comics” que inclui os quadros, o ritmo e as onomatopeias –imprescindíveis componentes de linguagem a que Cirne chamou de “ruído visual” (1977, p.25-31) e cujas origens para ele não foram bem precisadas19. Quanto aos quadrinhos da atualidade, as variações dos contornos e formas dos balões indicarão pensamentos, falas, metáforas, conforme Cagnin (1975, p.120- 134), Quella-Guyot (1994, p.10-15), Silva (2002, p.47) e Ramos (2010, p.36-49). Os balões contêm metalinguagem em que, de modo ainda mais espetacular, o perso- nagem está presente, mesmo que não visualmente na cena do quadro, quando se utiliza um apêndice de um balão indicando que há em algum lugar um “dono da voz”. Absurdos metalinguísticos são possíveis (CIRNE, 1971, p.69-78). As variações indi- cam que, quando o apêndice não existe em uma cena, mas apenas o balão, o senti- do é gerar ambiguidade, pois não se sabe quem de fato fala (RAMOS, 2010, p.43). Todas essas possibilidades são possíveis com os usos dos balões que representam fala e pensamento. O conteúdo dos balões é expresso com recursos que incluem desenhos ou formas de letras que projetam sentidos. Ramos (2010, p 56-62) trata dos valores expressivos das letras que, usadas de modo tradicional, linear e na cor preta, indi- cam neutralidade. Letras maiores indicarão tom de voz alto, e letras diminutas pode- rão indicar sussurros, enquanto as letras em negrito, ou sublinhadas, servem para

17 Leila Ianonne e Roberto Iannone (1994) descrevem detalhadamente as funções da linguagem nos quadrinhos. 18 São características da linguagem dos quadrinhos os balões e seus formatos, o conteúdo ou texto, a iconografia, a legenda e a onomatopeia. 19 Autores defendem um passado remoto extremo dos quadrinhos que os vincula às pinturas em ca- vernas e à arte muralística das civilizações. Contribuiríamos para a inclusão nesse rol outros elemen- tos que inferem na arte em sequência e na fala projetada. O glifo do selo cilíndrico Olmeca das Amé- ricas, datado da era pré-colombina em 650 a.C. (KENNEDY, 2002 apud NBCNEWS, 2016), tão im- portante quanto os selos cilíndricos da Mesopotâmia citados pelos historiadores dos quadrinhos. Nas ilustrações do Codex Selden (mesoamérica), existe a imagem de um pássaro com clara indicação de sons projetados e desenhados que lembram semelhante dinâmica localizada na arte sequencial. 64

destacar um ponto importante. De igual modo, caracteres diversos podem indicar a nacionalidade de um personagem e os marcadores gráficos para indicar hesitação (...). Refere-se aos níveis da fala quanto às suas variantes, se a narrativa acontece utilizando linguagem culta, gírias etc. De igual modo, as cores utilizadas nos quadrinhos são signos plásticos que provocam sentidos e contribuem para a narrativa imagética porque elas são intrínse- cas à linguagem dos quadrinhos. As cores preto e branco remetem às origens dos quadrinhos e às limitações de recursos tecnológicos de uma época. Conforme os avanços da informática, cores primárias foram sendo adicionadas nas colorizações via computador, impactando na mudança estética e visual. As cores funcionam tam- bém para dar sentido de movimento aos personagens e para caracterizá-los, como no caso do Hulk (RAMOS, 2010, p.84-7) ou de nossa personagem Dona Tetê, co- mumente caracterizada com um vestidinho preto ou vermelho. Ao tecer aproximações dos quadros com a fotografia, Ramos (2010, p.89- 106) refere-se à imagem fragmentada, cuja variação dependerá da forma atribuída ao quadrinho, para fins de expressividade. Os quadrinhos fazem parte da estratégia do autor e, em nosso caso, lembrar que as tirinhas podem usar vinhetas de maneira mais convencional, ou não, o que significa dizer que os contornos poderão conter recursos visuais mais impactantes, se for o caso. Outro importante elemento da estrutura dos quadrinhos refere-se à sarjeta20, que atua como delimitação e transição entre um quadro e outro e que também “é responsável por grande parte da magia e mistério que existem na essência dos qua- drinhos. Esse limbo da sarjeta é o espaço da imaginação humana que capta duas imagens distintas e as transforma em uma única ideia” (McCLOUD, 2005, p.66). Desse modo, ocorre a interação e cognição do leitor com a arte sequencial. Sobre esse momento do indivíduo com os quadrinhos, as aparentes semelhanças aprego- adas pelo poeta se desfazem. A interpretação e o sentido para cada um serão de uma ou outra forma, uma vez que

(...) o homem não é igual a nenhum outro homem, bicho ou[coisa Ninguém é igual a ninguém. Todo ser humano é um estranho ímpar. (ANDRADE, 2014)

20 McCloud (2005, p.66) define “sarjeta” como o “limbo” onde “a imaginação humana capta duas ima- gens distintas e as transforma em uma única ideia”. Para Alberto Pessoa, a designação “calhas” tem o mesmo sentido (FERREIRA, 2010, p.15). 65

Assim como não são iguais os quadrinhos... As interpretações individuais podem se aproximar de ideias comuns a um de- terminado grupo. Gaudêncio (1977, p.123) afirma que os meios de comunicação de massa participam ativamente do processo educativo dos indivíduos. Os leitores po- derão, em algum momento, experimentar identificações projetivas de modo seme- lhante à catarse produzida pelo filme, e outros meios de comunicação, em que a pessoa vive a fantasia; mas essa participação seria de modo não consciente para não ocorrerem colisões frontais com os “códigos de valores” (GAUDÊNCIO, 1977, p.123). Baseando-se na psicologia evolutiva para seus argumentos, Gaudêncio (1977) explica que a formação da criança e do adolescente inclui os exemplos a que tiverem acesso, comoos conteúdos dos quadrinhos. Sua lógica aborda o que chama de “crise de gerações” exemplificada ainda pelo fato de que os mais velhos são de- tentores das empresas que produzem os quadrinhos e, assim, reproduzem na arte sequencial as suas formas de pensar. É desse modo que, para ele, os quadrinhos colaboram para a manutenção dos conceitos que se querem incutir e preservar (GAUDÊNCIO, 1977, p.126-8). Essa proposta não dista das oposições aos quadri- nhos na década de 1930, no Brasil, e dos trabalhos dos psiquiatras norte- americanos na década de 1950. As mudanças estruturais na sociedade ocidental, advindas de um maior pro- tagonismo feminino, no mercado de trabalho, estavam provocando mudanças na família e na moral, e esses aspectos não poderiam estar distantes da arte sequenci- al. O exemplo contundente para mostrar o rompimento dos quadrinhos com a estru- tura familiar é a personagem Barbarella. Nos quadrinhos, ainda conforme Gaudêncio (1977, p.123-4), é necessário que o herói, homem, tenha uma noiva eterna, pois um casamento significaria a aposentadoria da vida interessante e de vitórias. Para ele, esta é uma forma de mostrar a mulher como um claro impeditivo na vida de grandes aventuras e que somente o homem solteiro poderia ter em um mundo fantástico. O matrimônio transformaria o herói em um homem comum. Para compreender os quadrinhos em nosso país, precisamos recorrer a uma visão sobre sua história no Brasil, antecedente ao período que analisamos.

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1.7 UM PANORAMA DOS QUADRINHOS NO BRASIL

No Brasil, as primeiras objeções partiram da Igreja, com apoio de jornalistas, políticos e pedagogos – e, em sua maioria, foram elaboradas por homens (GONÇA- LO JR., 2004). Os debates e repúdios ocorridos nos anos 1930, em solo brasileiro, tratavam, geralmente, da nudez e da violência como um atentado à moral e aos bons costumes cristãos que afetavam as famílias. Semelhantes discussões e oposi- ções sucediam nos Estados Unidos, Itália e França – países municiados com deba- tes, estudos e com a criação de leis específicas de regulação e censura. Isso fomen- tou também intensas disputas que aqui incluíam os argumentos de proposições fas- cistas e antiamericanistas, reproduzidas amplamente por padres italianos – uma forma de ajustamento às orientações do governo de Mussolini, e às determinações do papa Pio XII, que temia pelo avanço comunista e exigia empenho do clero em fortalecer a família, a moral e a ética (GONÇALO JR., 2004). Os políticos brasileiros, em especial os tradicionalistas e simpatizantes de Vargas, por exemplo, viam a necessidade de regular a imprensa e seus produtos a favor do governo e lutaram contra os quadrinhos estadunidenses no País (GONÇA- LO JR., 2004, p.77-100). A ferrenha oposição aos quadrinhos no Brasil contou em sua história com o embasamento fornecido por um relatório pedagógico do governo brasileiro na década de 1940, e com as pesquisas questionáveis de psiquiatras nor- te-americanos na década de 1950. Contrariamente, uma ala de estudiosos, políticos, escritores e intelectuais de renome, como Ruy Barbosa, Gilberto Freyre, Jorge Amado, José Lins do Rego, Gra- ça Aranha e Dinah Silveira de Queiroz eram favoráveis aos usos dos quadrinhos no Brasil, e os aceitaram como modernos suportes de arte-comunicação para divulga- ção de seus trabalhos. Opositores e simpatizantes baseavam-se nos novos estudos que começavam a surgir nos campos da sociologia e da pedagogia, que apontavam aspectos positivos dos quadrinhos, e em leis específicas conquistadas pelos inten- sos esforços de empresários junto aos políticos brasileiros, conforme detalhado por Gonçalo Jr. (2004). Com o mercado crescente, concomitante às discussões, aumentaram tam- bém as participações de pessoas influentes na aceitação dos quadrinhos. Os inte- resses comerciais ajudaram na receptividade para os usos de uma mídia inovadora 67

aliada ao fascínio em experimentar algo que transformava textos em diversão e arte. Enquanto a oposição visava regular o mercado interno de produção e consumo, censura de histórias, desenhos, textos, slangs, ortografia e gramática, os empresá- rios do setor, por óbvios interesses mercadológicos ao novo produto, e os simpati- zantes aos quadrinhos trataram de criar o que seria a sua versão pedagógica. Outra possibilidade de propagação de mensagens pelos quadrinhos foi utilizada no Brasil, a exemplo do que ocorreu nos Estados Unidos e Itália: o governo de Vargas utilizou- os para disseminar mensagens que lhe aprouvessem (GONÇALO JR., 2004, p.114- 26). Nos levantamentos históricos que realizamos, não encontramos estudos rela- cionados especificamente à violência contra mulheres nas abordagens de ambos os lados, entre as décadas de 1930 e 1950. Alguns historiadores citam que as oposi- ções tratavam, de maneira geral, da exposição da nudez feminina às crianças e jo- vens, e do excesso de violência (2004). Esses debates perduraram mais intensa- mente até o fim da década de 1960. A partir dos anos 1970, localizamos alguns arti- gos que apontaram a questão feminina nos quadrinhos de uma maneira mais próxi- ma ao feminismo, mas, ainda assim, incipiente. Havia um aspecto de maior repulsa aos quadrinhos: a influência da América do Norte no mundo, com a imposição de seus produtos de mídia, que fomentariam uma cultura e uma ideologia que não convinham aos governos e à sociedade oci- dental. As maiores discussões, disputas empresariais eas forças político-econômica, intelectual e religiosa empregadas contra e favor dos quadrinhos perduraram até os anos 1970, em meio ao governo militar (GONÇALO JR., 2004). Nosso breve levantamento histórico permitiu uma compreensão da situação dos quadrinhos no País, assim como as paixões e ódios que despertaram. Indicou também quão poucas eram as vozes femininas de um e de outro lado das conten- das. Mesmo entre os primeiros historiadores brasileiros dos quadrinhos, detectamos poucas mulheres. Comoera considerado um reduto dos homens, eles também se esforçaram para deter as informações e as produções que consideravam mais rele- vantes. Historicamente, as mobilizações contrárias e favoráveis aos quadrinhos, no Brasil, incluíram a participação de pedagogos, jornalistas, sociólogos, intelectuais e figuras políticas, como os presidentes Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros, João Goulart e Castello Branco. Um inimigo declarado, Carlos Lacerda, 68

afirmava que os quadrinhos corrompiam os jovens e os conduziam ao comunismo. Enquanto isso, outros os defendiam como responsáveis pela popularização da literatura, a exemplo de Jorge Amado que atribuía essa perspectiva pelo fato de os seus primeiros livros terem sido quadrinizados. Gilberto Freyre defendia os qua- drinhos, salientando sua importância, e quando atuou como deputado buscou con- vencer o Congresso a lançar uma versão quadrinizada da Constituição (GONÇALO JR., 2004). A guerra aos quadrinhos, em nosso país, configurou-se a partir de 1933 e in- cluiu acirradas disputas de mercado interno travestidas de cruzadas morais, nas quais combateram entre si empresários do ramo da comunicação, a exemplo de A- dolfo Aizen, responsável por inserir os quadrinhos no país; Samuel Wainer e Orlan- do Dantas contra Marinho; Assis Chateubriand e Victor Civita (2004). Nesse embate, também lutaram os padres italianos, opositores que, mesmo no Brasil, seguiam a cartilha de Mussolini –para quem os quadrinhos “desnacionalizavam a juventude”. A década de 1940 ampliou e intensificou os debates. Um estudo do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP), do Ministério da Educação, apontou que os quadrinhos provocavam na juventude uma preguiça mental desestimulando, as- sim, o aprendizado e a leitura de livros. Mais adiante, em 1946, Carlos Lacerda, em discurso, afirmou que os gibis eram “como veneno importado para as crianças” (HA- AG, 2005). Em sua concepção, houve um aumento do número de escritores “comu- nistas” de gibis. Um projeto de lei, datado de 1949, cuja autoria pertenceu a Jânio Quadros, na época vereador, visava impedir que as leituras que corrompessem os bons costumes fossem expostas nas bancas de jornais e livrarias (GONÇALO JR., 2004). Carlos Lacerda foi um opositor expressivo dos quadrinhos no Brasil. Dizia que as revistinhas induziam à criminalidade. Gonçalo Jr. (2004) conta que foi utilizada a história de um adolescente negro, “Lilico”, com passagens por reformatórios que se recusava a ler Monteiro Lobato. Suas exigências e preferências eram pelos quadri- nhos violentos em que houvesse tiros e facadas. Essa foi uma forma de relacionar quadrinhos e criminalidade como influências negativas para a juventude. Na década de 1960, foi criada uma lei de nacionalização dos quadrinhos para que mantivesse uma reserva de mercado de 70% para os brasileiros. Os artistas nacionais, a exemplo de Ziraldo, se opunham aos quadrinhos norte-americanos. Com o lobby dos artistas, essa proposta encontrou terreno fértil nas mãos de Leonel 69

Brizola, na época governador do Rio Grande do Sul, que subsidiou as HQs nacio- nais. Uma parte dos textos esteve vinculada às ideias nacionalistas do governador. A regulamentação que disciplinava a produção dos quadrinhos, em âmbito nacional, ocorreu pelas mãos de Goulart, portanto, em 1963, e se confirmou em 1966 pelo governo militar sem, contudo, ser aplicada (2004). Durante o governo militar, as maiores dificuldades no mercado dos quadri- nhos no Brasil diziam respeito às limitações impostas, tais como censura, restrições do gênero a ser publicado, exclusão de artistas considerados inadequados ao siste- ma e as dificuldades econômicas pelas quais o País atravessava. Mesmo assim, segundo Vergueiro (2011, p.49-51), nos anos 1970, houve quadrinistas que lutavam contra a invasão de quadrinhos estrangeiros e contra o governo militar, a exemplo do Henfil (Henrique de Souza Filho). Isso incluía um desenho underground e crítica política cultural ao sistema. Nessa década, a revista MAD, que continha grande vo- lume de quadrinhos independentes de humor cáustico, serviu de inspiração para quadrinistas brasileiros criticarem as questões sociais no Brasil e produzirem quadri- nhos adultos. Roberto Elísio dos Santos (2011, p.66-71) indica que, mesmo em uma década conturbada pelo regime militar e com problemas econômicos, alguns quadrinistas, em nosso país, investiram a partir da década de 1970 nos quadrinhos de terror – um gênero que perdurou até os anos 1990, e incluíram muitos mitos folclóricos brasilei- ros em suas histórias. Durante os anos 1970, os chamados jornais “alternativos ou nanicos” possibi- litaram espaço para “charges e caricaturas que expunham a indignação da parcela mais culta da sociedade contra os desmandos do regime autoritário” (SANTOS, 2011, p.149). Nesse contexto, o Pasquimse consolidoucomo um representante im- presso das vozes dissonantes ao governo, publicando trabalhos de humor crítico, como os de Henfil, Jaguar e Ziraldo. Guazelli (apud SANTOS; VERGUEIRO, 2011, p.113-131) aponta que o início dos anos 1980, no Brasil, foi um período marcado pela redemocratização que, por meio da mobilização nacional, buscava eleições diretas para presidente e o retorno do governo civil. Ainda que houvesse uma grave crise econômica com uma dívida externa absurda concomitante a uma inflação surreal em nosso país, uma maior li- beralização possibilitou um

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vasto terreno para novas publicações e, à parte a difícil competição com o material importado, a história em quadrinhos ganha importân- cia, pois traduz perfeitamente as agudas questões despertadas por esta época de transição. (GUAZELLI apud SANTOS; VERGUEIRO, 2011 p.130)

Destaca-se a importância de artistas de São Paulo que influenciaram a nova geração, como Laerte Coutinho, Angeli e Glauco, com quadrinhos publicados em jornaiscomo Folha de S.Paulo e revistas próprias, da Circo Editorial, que obtiveram tiragens significativas e nas quais localizamos duas das personagens que analisa- mos. Santos (2011, p.148), por sua vez, salienta que uma “cultura alternativa proli- ferou à margem das empresas midiáticas comerciais” tradicionais, o que fomentou o surgimento de pequenas editoras, cujos produtos foram direcionados para um públi- co jovem, adulto. Basicamente, passaram a produzir e a reproduzir quadrinhos nor- te-americanos, europeus e brasileiros vanguardistas. São características desse pe- ríodo “inovações temáticas, narrativas e estéticas” (SANTOS, 2011, p.148). Excetu- ando a produção de Maurício de Sousa, com seus quadrinhos de gênero infantil, as publicações quadrinísticas brasileiras tinham “pouca expressão no início da década de 1980” (2011, p.148). As dificuldades econômicas enfrentadas pelo País nas décadas de 1980 e 1990 atingiram o mercado de quadrinhos, causando dificuldades para determinados gêneros, como os de terror, e a permanência de algumas editoras (SANTOS, 2011, p.67). Em contrapartida, os novos tempos políticos fomentaram o surgimento de ti- pos urbanos e um humor que transitava entre a política, o erótico, o comportamental e, logicamente, o urbano. O cenário das novas composições quadrinísticas que ga- nharam destaque nacionalmente tinha a cidade de São Paulo como tema do contex- to de vida em uma grande metrópole (2011, p.159). Trabalhos com ataques “aos valores e hábitos da classe média urbana (...) e emprego de termos e imagens chulos, escatológicos, muitas vezes pornográficos e agressivos” (SANTOS, 2011, p.159) foram significativos e eram a tônica dos quadri- nhos de artistas que ganharam projeção nacional, como Laerte, Luiz Gê e Glauco. Os personagens icônicos produzidos por esses artistas deram o tom dos quadrinhos publicados em tiras no Jornal Folha de S. Paulo e em revistas especializadas, nos anos 1980 e 1990. Atualmente, os quadrinhos têm um mercado consolidado no Brasil. Não en- 71

frentam as oposições ferrenhas do passado com relação à sua importância social e educacional, mas ainda existem dificuldades de ordem econômica para os artistas que querem se firmar no meio e publicizarem suas obras. A academia tem contribuído com a criação de disciplinas sobre quadrinhos nos cursos de comunicação e artes. Além disso, sugiram diversas pesquisas, cujos objetos de estudo são os quadrinhos, nas mais diversas áreas do conhecimento. A Fundação CAPES do Ministério da Educação conta, em seu banco de teses e dis- sertações, até o momento de nosso levantamento, com 76 pesquisas, entre as quais 61 dissertações de mestrado acadêmico; 4 de mestrado profissional e 11 teses de doutorado que tratam dos quadrinhos em diversas áreas: educação, história, socio- logia, linguística, comunicação e artes. Nesse banco, entretanto, nenhuma das teses trata especificamente de mulheres e quadrinhos. No sistema de Bibliotecas Digitais de Teses e Dissertações do Instituto Brasi- leiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT), diferentemente do anterior, encontramos 73 teses, e 3 delas tratam de mulheres nos quadrinhos com maior es- pecificidade: a) Silenciamento ou subversão? Representação do papel social da mulher no discurso performático das crossplayers do Mangá, de Otávia Aves Cé. (Universidade Católica de Pelotas, 2014 - área de Letras); b) De Maria a Madalena: representações femininas nas histórias em quadri- nhos, de Ediliane de Oliveira Boff (Universidade de São Paulo, 2014 - área de Co- municação); e, c) Palavras e Imagens: a transposição do Mangá para o anime no Brasil, de Danielly Batistella (Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2014 -área de Le- tras). Além desses dois importantes portais de teses e dissertações, no Repositório Institucional da Universidade de Brasília, está a tese Mulher ao quadrado – as repre- sentações femininas nos quadrinhos norte-americanos: permanências e ressonân- cias (1895-1990), defendida em 2001, na área de História. O volume de pesquisas na área ainda é incipiente, mas tem aumentado con- sideravelmentena última década, com o surgimento de diversas dissertações de mestrado, artigos em congressos, livros publicados, disciplinas e cursos específicos oferecidos nas universidades, além do surgimento de núcleos de pesquisas em qua- drinhos, como o Núcleo de Pesquisas de Histórias em Quadrinhos da Escola de 72

Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo; O Núcleo de Pesquisas em Quadrinhos (NuPeQ) da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul; Grupo de Pesquisa Justiça em Quadrinhos da Universidade de Fortaleza; e Grupo de Pesqui- sa História em Quadrinhos Imaginário, da Universidade Federal da Paraíba, para citar alguns. Resultantes da inclusão dos quadrinhos nos Parâmetros Curriculares Nacio- nais (PCNs)21 e no Programa Nacional Biblioteca na Escola (PNBE), ambos regula- dores do ensino nas escolas brasileiras, a inserção dos quadrinhos na educação foi possível porque os “quadrinhos se tornaram política educacional do país”, uma vez que operam com “formas contemporâneas de linguagem” (VERGUEIRO; RAMOS, 2009, p.9). Os quadrinhos lançados tanto em meio físico quanto digital, os novos autores, o crescimento de autoras de quadrinhos que trabalham tanto com a narrati- va quanto com a arte, as políticas de inclusão em educação e as pesquisasreconfi- guraram os modos de vê-los e aceitá-los como construtos sociais importantes. Os quadrinhos saíram de um lugar que lhes imputava menor valor social e passaram a ocupar espaços, como a escola e a corte. Uma decisão da desembargadora federal do Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro, Dra. Maria Helena Cisne, usou a célebre frase da HQ Whatchmen (Alan Moore e Dave Gibbons, 1986), como epígrafe do texto que condenou à prisão 15 pessoas acusadas por crimes eleitorais. Diego Assis do Portal G1 (2008) infor- mou que a desembargadora reproduziu “a frase‘Who watches the Watchmen’ (algo como ‘quem vigia os vigilantes’)citada em inglês na abertura do documento, datado de 27 de agosto de 2008 e divulgado a jornalistas nessa sexta-feira (28)”(PortalG1, 2008, s.d.). De igual modo, o julgamento ocorrido na 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de Itajaí, em que um réu acusado de matar a ex-companheira foi condenado a 15 anos de reclusão em regime fechado, teve uma ocorrência inusitada em seu julgamento: o do uso de quadrinhos. A defesa do acusado, inconformada com o re- sultado

21 A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBN), de 20 de dezembro de 1996, exigia a inserção de outras linguagens e manifestações artísticas nos ensinos fundamental e médio. Os PCNs de Língua Portuguesa (2008, p.38,54) fazem menção aos quadrinhos e à charge como leitura crítica ou mesmo redação para esse gênero. No Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) há a exigência de domínio de leitura de outras linguagens. Os PCNs para o Ensino Médio referendam os quadrinhos como fontes históricas e de pesquisa sociológica. Para saber mais, consultar: Vergueiro e Ramos (2009, p.7-42). 73

apelou para o Tribunal de Justiça, sob alegação de diversas nulida- des no procedimento do júri, entre elas a utilização de poemas e his- tórias em quadrinhos pelo Ministério Público. (…) o promotor do caso utilizou ‘estórias em quadrinhos’ para ilustrar os fatos aos jurados. (…) Para o relator do acórdão, desembargador Newton Varella Jú- nior, ‘[...] além de não ter havido qualquer insurgência antes ou logo após sua ocorrência, nada tendo sido registrado na ata, não houve a necessária comprovação de que o uso desses meios [poesia e histó- rias em quadrinhos] tenha influenciado o ânimo dos jurados a ponto de alterar o resultado do julgamento’. A mesma explicação foi aplica- da para a questão dos jurados. A decisão foi unânime. (PODER JU- DICIÁRIO DE SANTA CATARINA, 2016).

Esses dois exemplos, no judiciário brasileiro, ilustram como os quadrinhos fa- zem parte da dinâmica de vida dos indivíduos, e ratifica, para nós, sua caracteriza- ção como documentos onde imagens e linguagens representam fragmentos históri- cos, ideias e valores que se aproximam do mundo real.

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2 ESPAÇOS E IMAGENS DE VIOLÊNCIAS CONTRA MULHERES

A “questão feminina” estudada em todos os âmbitos sociais e culturais no oci- dente precisa ampliar as discussões e investigações no campo da arte, e segura- mente, no campo da arte sequencial. O pensamento tradicional seria considerar que o lugar privilegiado da mulher foi desde sempre ser o objeto da arte, ou a musa, mas Beauvoir afirmou que “a arte e o pensamento têm na ação suas fontes vivas. Achar- se situada à margem do mundo não é posição favorável para quem quer recriá-lo” (1980, p.171). Assim, para ela, as mulheres precisam romper com o sistema que as exclui e recriá-lo, já que a musa não cria nada. Nesse sentido, concordamos que ser objetificada ou estar em uma esfera mítica não permite à mulher operar significati- vamente. De modo ainda pior, a mulher é um sujeito subalterno, em posição periférica decorrente de problemas relacionados ao gênero, como afirmado por Spivak (2010, p.17). Se a arte deve ser vista como uma prática social, como afirmado por Pollock (2013, p.12-21), será necessário questioná-la, como fez Linda Nochlin (FIGURA 3) no início dos anos 1970 (2013):

Figura 3 - Nochlin

Por qué no hubo grandes artistas mu- jeres?

Fonte: Elaborada pela autora

A pergunta de Nochlin sobre a necessidade de se pensar os espaços e as a- tuações sociais, nas artes, permite incluir novos materiais ou mulheres à história, criar novos conceitos e metodologias para os estudos, novos questionamentos, e paradigmas ao que está postulado (POLLOK, 2013, p.12-21). Ampliamos, então, a questão especificamente para a arte dos quadrinhos. Importa não somente saber como as mulheres são retratadas, mas ir além e 75

conhecer sobre as relações históricas e sociais que permeiam suas imagens nas artes sequenciais e seus protagonismos, como personagens, artistas ou narradoras, como criadoras dos discursos sobre si mesmas. Um processo em que a “fala se ca- racteriza por uma posição discursiva” (SPIVAK, 2010, p.15). Nessa nova dimensão, há uma tendência em condicionar os estudos feminis- tas sobre as artes apenas ao campo sociológico e não ao que se nomina História da Arte, conforme apontado por Pollock (2013, p.27-33) e admitido por nós. Por isso, é necessário também ampliar as fronteiras do que se entende e se registra como His- tória da Arte, disciplina que mantém as mulheres fora do campo ou, quando as in- clui, manifesta uma depreciação pelas artistas e suas obras, com raras exceções – uma forma de perpetuação do patriarcado nesse campo. Devemos, entretanto, com- preender a arte para além da disciplina tradicional História da Arte. Devemos exigir que a arte inclua as mulheres e suas práticas artísticas. Devemos questionar sempre e sempre (FIGURA 4), porque

Figura 4 - Hilst

Senhoras e senhores, olhai-nos. Repensemos a tarefa de pensar o mundo. E quando a noite vem Vem a contrafacção dos nossos rostos Rosto perigoso, rosto-pensamento Sobre os vossos atos.(HILST, 2016).

Fonte: Elaborada pela autora

Somos impelidas a questionar os cânones em todas as áreas do conhecimen- to frente ao sistema opressor. Essa deve ser a nossa posição em todas as esferas, principalmente porque o patriarcado ainda impõe seus conhecimentos e paradigmas em áreas nas quais os homens são os protagonistas e “geniais”, mas as mulheres nunca o são. Para compreender esses aspectos, é preciso considerar os estudos de Pollock (2013, p.25-8) em que a história social da arte incluiu bases marxistas para analisar as interdependências entre classes, gênero, raça e demais práticas históri- cas. Para ela, há que se racionalizar que as

prácticas culturales fueron definidas como sistemas significantes, 76

como prácticas de representación, sítios no de producción de cosas hermosas que evocan sentimientos hermosos sino de producción de significados y posiciones desde las cuales esos significados deben ser consumidos. Es necesario, entonces, definir La representación de diversas maneras. El término ‘representación’ señala que lãs imáge- nes y los textos no son espejos del mundo que tan solo reflejan sus fuentes. (2013, p.25-28. Grifos da autora).

Em paralelo, a teoria distingue a representação da existência social, salien- tando que esta “articula de manera visible o socialmente palpable procesos sociales que determinan la representación, pero que luego se ven, de hecho, afectados y al- terados por las formas, prácticas y efectos de la representación” (POLLOCK, 2013, p.29). Desse modo, a hierarquia de significados incluirá, inevitavelmente, instituições e sistemas sociais, conflitos, contradições, dominadores e dominados, a fim de “comprender lo que hacen las práticas artísticas específicas, así como sus significa- dos y efectos sociales, requiere um doble enfoque”(2013, p.30-1). Assim, alguns dos lócus de investigação da arte são, necessariamente, o gênero, a classe, lutas soci- ais, raças e/ou os distintos lugares de representação com os quais concordamos. Outro aspecto importante que consideramos diz respeito à análise de como age qualquer prática social específica, seus significados e a que público-alvo elas visam. Isso se aplica ao mundo dos quadrinhos, não somente por se tratar de anali- sar um sistema de signos, mas porque concordamos com Pollock (2013, p.31) que se “puede fácilmente hacer perder contacto com la dimensión social de toda prácti- ca” – mas isso pode mudar se incluirmos uma “sexualización de la subjetividad” na compreensão dos protagonismos que as atividades culturais produzem, suas signifi- cações e os sujeitos sociais envolvidos. Diante dessas perspectivas, Pollock afirma que a “problemática de un análisis feminista de la cultura visual como parte de una empresa feminista más amplia po- dría definirse en los seguientes términos: La construción social de la diferencia se- xual” (2013, p.32-3), um dos aspectos com o qual concordamos (FIGURA 5) e trata- mos ao examinarmos as violências contra mulheres nos quadrinhos, principalmente porque os 77

Figura 5 - Pollock

estudos de mulheres não se ocu- pam somente das mulheres, senão com os sistemas sociais e os es- quemas ideológicos que sustentam a dominação dos homens sobre as mulheres (POLLOCK, 2013, p.19).

Fonte: Elaborada pela autora

Defendemos que parte da violência inscrita na arte seqüencial advém do pa- triarcalismo vigente ereforçamos, certamente por mecanismo de afirmação, a anu- ência de que arte deve ser entendida como uma “licença poética”. Mesmo quando se assemelham com a realidade, o conteúdo nas histórias em quadrinhos é aceito por se tratar de ficção. Então, é imprescindível conhecer como a arte sequencial cria ou mantém representações culturais de violência de gênero sob o patriarcado, e como essas imagens e narrativas transitam socialmente. A leitura sobre o implícito e o explícito na arte sequencial concebe que as bru- talidades contra as mulheres são toleradas e permitidas nesse campo, porque esse espaço contém reminiscências machistas – em muitas ocasiões, o uso do chiste também contribuirá para as injúrias, legitimado por uma cumplicidade socialmente aceita, conforme Garcia (1999, p.5). Existe uma aceitação, uma conformidade com a violência inscrita contra as mulheres nos quadrinhos.

2.1 A ARTE EXCLUDENTE

Sabe-se que a História, em seu capítulo Arte, omitiu as mulheres e/ou eviden- ciou a discriminação em práticas sociais institucionalizadas e mantidas mediante o poder masculino – práticas que cooperam para a construção e “manutenção social da diferença sexual” (POLLOCK, 2013, p.34) e que ratificam a exclusão das mulhe- res da ciência pelas próprias mulheres, quando a linguagem academicista que abor- da uma crítica feminista de arte as impede de compreender sobre o assunto (DE- EPWELL, 1995, p.48). 78

O lugar das mulheres na História da Arte vincula-se também às dificuldades que elas enfrentam para editar livros e revistas nessa área. Os livros de História da Arte mais utilizados pela academia são de Janson e Gombrich. Alie-se a isso o fato de os professores não utilizarem os livros produzidos por mulheres, quando existem, e de não haver um plano nacional de estudos de arte que incluam as mulheres artis- tas (BORZELLO apud DEEPWELL, 1995, p.53-60). Nesse sentido, compreendemos que “o sujeito subalterno feminino não pode ser ouvido ou lido” (SPIVAK, 2010, p.163). Na História da Arte, as mulheres, em geral, são apontadas como praticamente inexistentes. Quando poucas delas ascendem ao panteão dos pintores e escultores de determinada época, são fatalmente usadas como exemplo da falta de domínio das técnicas de pintura ou da “genialidade”. Os temas das pinturas executadas pelas mulheres sempre foram tidos como menores e sem importância efetiva. Esses as- pectos estão totalmente desvinculados do fato de que às mulheres não era franque- ado o acesso aos estudos das técnicas, do nu artístico, a circulação em determina- dos meios sociais e investimentos de um patrocinador das artes, tal como ocorria- com os homens (POLLOCK, 2013). Não poderia ser diferente com os quadrinhos, com suas dificuldades de acesso à produção e reconhecimento de artistas mulheres na área.

2.2 A GENIALIDADE COMO FATOR DE EXCLUSÃO

Há um consenso de que a construção do artista como herói da modernidade é sexista, pois não existe um duplo feminino. Quando o artista é um gênio, é sempre um ser masculino, único e autônomo, como explicam Pollock (2013, p.13-5), Nochlin e Mayayo (2010, p.62-72). Virgínia Woolf (2014, p.69) traz à memória a declaração de um bispo que disse ser “impossível que alguma mulher no passado, presente ou futuro tivesse a genialidade de Shakespeare”. Stendhal (apud BEAUVOIR, 1980, p.171) afirmou que “todos os gênios nascidos mulher estão perdidos, para felicidade do público”. Mas, os discursos das teóricas feministas rompem com essa ideia de falta de genialidade feminina. Beauvoirsalientou que “ninguém nasce gênio: torna-se gênio; e a condição 79

feminina impossibilitou até agora esse tornar-se” (1980, p.171) – pensamento que Virgínia Woolf já compartilhava muitos anos antes, em Um teto Todo Seu (2014). Eis o porquê de não haver gênios artísticos entre as mulheres: as condições de domina- ção impostas pelo machismo impedem que elas se desenvolvam e atuem livremen- te. Nosso olhar para a história das mulheres assente que o lugar permitido a e- las sempre foi o lugar da subalternidade; de exilamento sistemático de tudo aquilo que o patriarcado considera seu reduto exclusivo, sua área de domínio, inclusive o campo das artes, em que o sexismo estrutural, nas disciplinas acadêmicas do meio, é mais facilmente observado. De fato, ainda hoje, a realidade do meio não difere muito do que notou e sen- tiu Virgínia Woolf (2014) quando tratou de construir seu discurso sobre mulheres e ficção. Seu desapontamento com a literatura da época e sua percepção de que ha- via algo muito errado com uma sociedade ocidental que valorizava um sexo em de- trimento do outro preconizavam os discursos feministas dos anos 1960 – ahistória estava sendo escrita por homens (WOOLF, 2014, p.44). Woolf (FIGURA 6) questio- nou:

Figura 6 -Woolf

Quais as condições necessárias para a cria- ção de obras de arte? (WOLF, 2014, p.41)

Fonte: Elaborada pela autora

Para contribuir com as reflexões sobre essa perspectiva, voltamo-nos ao pen- samento de Perrot (2010, p.185-6) de que a história foi realmente escrita no mascu- lino e por homens, já que o “ofício do historiador” é, essencialmente, masculino. En- contramos eco em outras áreas do conhecimento em que o protagonismo e a es- sência de tudo são masculinas, e defendemos que há que combater o sistema, pois, como afirmou Poullain de La Barre, ainda no século XVII,

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Tudo o que os homens escreveram sobre as mulheres deve ser sus- peito, porque eles são, a um tempo, juiz e parte. Os que fizeram e compilaram as leis, por serem homens, favoreceram seu próprio se- xo e os jurisconsultos transformaram as leis em princípio. (apud BE- AUVOIR, 1980, p.15-6)

Na história escrita pelos homens, as mulheres figuram sempre como coadju- vantes ou inexistentes. Woolf notava a necessidade de mudar isso em seu tempo e pensou que seria coerente sugerir que: “reescrevessem a história, ainda que, para mim, com frequência ela pareça estranha como é, irreal, desequilibrada” (WOOLF, 2014, p.68). Para ela, era necessário que houvesse um “suplemento à história, dan- do a ele, lógico, um nome imperceptível, de modo que as mulheres pudessem nele figurar sem impropriedades?” (2014, p.68). As mulheres estiveram nos silêncios da História. A“representação do mundo, como o próprio mundo, é operação dos homens; eles o descrevem do ponto de vista que lhe é peculiar e que confundem com a verdade absoluta” (BEAUVOIR, 1980, p.183). Porém, é necessário lembrar que as “representações do poder das mulhe- res” (PERROT, 2010, p.168) são temas atuais de investigações histórico- antropológicas. Existem muitos silêncios ainda. Para nós, os silêncios (FIGURA 7) da história importam ser investigados porque

Figura 7-Lispector

nos interstícios da matéria pri- mordial está a linha de mistério e fogo que é a respiração do mundo, e a respiração contínua do mundo é aquilo que ouvimos e chamamos de silêncio. (LIS- PECTOR, 1998, p.64)

Fonte: Elaborada pela autora

Sobre os silêncios, a interpretação ideológica está no “que se recusa a dizer” e nos “silêncios reconhecidos ou não” (SPIVAK, 2010, p.81-3). O trabalho crítico dis- ciplinar tem a responsabilidade de “medir silêncios” sendo estes “uma descrição do ato de investigar”. Por isso, “devemos acolher também toda recuperação de infor- mação em áreas silenciadas”(2010, p.111). Portanto, a História das Mulheres possui uma dimensão que carece de convertê-las em 81

centro da investigação, sujeitos da história, agentes da narração. Não só se questiona a invisibilidade das mulheres, mas a concepção de uma história concebida em neutro, onde na realidade é um neutro masculino e androcêntrico. (SANAHUJA, 2002, p.13. Tradução livre).

Para nós, essa afirmação deve alcançar a História da Arte, porque nela tam- bém são percebidos os traços característicos de uma ideologia sexista e androcên- trica, pautada em um sujeito hegemônico que exclui a mulher, e se impõe pelos as- pectos de:

hierarquização sexual e supremacia imposta sobre as mulheres nas práticas sociais; visão distorcida sobre as mulheres; exclusão e mar- ginalização das mulheres como sujeitos produtores de análises lógi- co-científicas, e análises destas; produção lógico-científica parcial. (SANAHUJA, 2002, p.14. Tradução livre)

Os discursos de violência contra mulheres foram naturalizados na História da Arte, primeiramente ao excluí-las e, a seguir, ao criticar negativamente quando exis- tem as parcas inserções de artistas. Ambas as situações estão sob determinismos patriarcais e imposições de um sexo em detrimento do outro, explicitando as rela- ções de poder decorrentes – afinal, a mulher é relativizada, como afirmou Michelet (apud BEAUVOIR, 1980, p.10) e, portanto, sem autonomia. Por isso, Pollock (2013, p.15) propõe que haja outra História da Arte em que seja possível a inclusão de novas perspectivas que articulem raça, gênero, classe e estudos culturais, aspectos com os quais concordamos. Assim, a arte poderá ser compreendida para além das representações; em suma, uma proposta em que a arte seja permeada, e verdadeira portadora do que chamou de “profundas memórias culturais” (POLLOCK, 2013, p.15-16). Os quadrinhos são aqui vistos como um tipo de arte – ainda que não esteja inseridos nas clássicas, podem ser analisados sob estas proposições. Para tanto, é necessário relacionar os quadrinhos aos aspectos sociológicos e de história da arte enquanto disciplina, por considerarmos as concepções de Foucault (2014, p.28-9), porque (FIGURA 8)

82

Figura 8: Foucault

uma disciplina se define por um domínio de obje- tos, um conjunto de métodos, um corpus de propo- sições consideradas verdadeiras, um jogo de regras e de definições, de técnicas e de instrumen- tos: tudo isto constitui uma espécie de sistema anônimo à disposição de quem quer ou pode servir-se dele, sem que seu sentido ou sua vaidade estejam ligados a quem sucedeu ser seu inventor. (FOUCAULT, 2014, p.30)

Fonte: Elaborada pela autora

Compreendemos que, diante desses argumentos, a História da Arte institu- cionalizada precisa ser questionada e reescrita em todas as suas dimensões e ní- veis. Defendemos a inclusão das mulheres e dos quadrinhos nessa perspectiva, afi- nal, eles fazem parte do mundo das artes, das narrativas e discursos que refletem fragmentos sociais e, de igual modo, não distam das relações entre as mulheres e a ficção tratada por Woolf (2014) no passado. Por isso, não nos surpreendemos que, quando referenciam grandes nomes da cultura ocidental e intelectuais que gostavam dos quadrinhos, os historiadores dos quadrinhos sempre mencionem homens. Em contraponto, além da inclusão das mulheres na história da arte, é neces- sário avaliar também as localizações das diferenças na arte feminina, aspecto de suma importância confirmado por Pollock (MAYAYO, 2010, p.52). De igual modo, ratificamos ser necessário localizar o sujeito que fala sobre, pois os modos e a sua fala são qualificados dentro das “sociedades de discurso” (FOUCAULT, 2014, p.37). É necessário, assim, romper não só com o pertencimento doutrinário de uma disci- plina e com a própria História, como também com a coerção social da “verdade”, imposta pelos discursos da luta das mulheres contra a opressão patriarcal. Essa proposta se alia à construção das histórias das mulheres porque, diante de tamanha complexidade em que as protagonistas se situam, os quadrinhos não podem e não devem ficar fora dessas discussões. Queremos que sejam incluídas as mulheres neles representadas, as narrativas, e as formas como as artistas produto- ras deste tipo de arte sequencial representam as mulheres. A respeito dessas expressões de arte, é necessário ir além dos enfoques até aqui discutidos. Pollock (apud MAYAYO, 2010, p.56) trata de uma dialética estabe- lecida pelas mulheres com as “definiciones dominantes de artisticidad” – ponto que 83

entendemos ser necessário negociar as diferenças. Ao mesmo tempo, não se deve aceitar que as mulheres foram vítimas passivas das circunstâncias no meio das ar- tes. Em alguns casos, como o ocorrido com Sofonisba Anguissola22, importa sali- entar que os condicionamentos sexuais e sociais relacionados à História da Arte ge- renciaram a sua vida como artista. As mulheres, vistas como sujeitos individuais, compartilharam também uma experiência histórica comum relacionada ao gênero, à diferença sexual, às variáveis históricas fundamentais e às artes em diversos aspec- tos (2010, 58-61). As assimetrias de poder, então, podem ser compreendidas por meio de uma visão feminista de História da Arte, indissociável do reconhecimento das

hierarquias de poder que regem as relações entre os sexos, fazer vi- síveis os mecanismos sobre os quais se assentam a hegemonia masculina, desvendar o processo de construção social da diferença sexual e examinar o papel que cumpre a representação nessa articu- lação da diferença (POLLOCK, apud MAYAYO, 2010, p.62. Tradução livre)

O patriarcado e suas manifestações nas relações de poder, nos discursos, na manutenção das diferenças entre os sexos, ditaram os tipos de representações ar- tísticas e as distâncias entre as mulheres e a arte, sob regras institucionalizadas que definem o que é arte e quem faz arte. Nesse sentido, os quadrinhos se incluem sob tais perspectivas como visto na história da Wimmen’s Comix. Os questionamentos de teóricas como Linda Nochlin, Griselda Pollock, e Pa- trícia Mayayo sobre a História da Arte, consistem em reconhecer uma “ausência” das mulheres no mundo artístico que advém desde a Idade Média, porque as mulheres foram ignoradas pelo “discurso oficial” (2010, p.12). Desse modo, seus afastamentos sempre foram justificados pela “genialidade artística” e a “qualidade” das obras – bases da História da Arte que se aprende nas instituições. Algo que Virgínia Woolf já contestava no início do século XX, quando contrapôs as ideias de Mr. Arnold Ben-

22 Sofonisba Anguissola era aristocrata e teve juntamente com suas irmãs uma educação privilegiada que incluiu latim, música, desenho e pintura. Como precisava de formação existente nos ateliês, logo deixou os temas históricos e da religiosidade focando na pintura de retratos. Suas pinturas alcança- ram grande destaque, mas não eram comercializadas, e sim oferecidas como presentes. Não se re- tratava como pintora, mas como uma dama de prestígio da sociedade. Seu caso se assemelha ao de outras pintoras que somente ascendiam às artes em condições de serem parte de uma família de pintores, o que lhes dava acesso ao aprendizado e materiais. (MAYAYO, 2010, p.28-9. Tradução livre) 84

nett, cujo livro defendia que as diferenças entre mulheres e homens derivavam da superioridade intelectual destes sobre aquelas. Virgínia Woolf contestou Mr. Bennett sobre as diferenças “visíveis” da arte produzida por mulheres, tidas como uma arte inferior ou de segunda categoria. Para ela, as diferenças não decorriam da condição biologizante da mulher, mas das difi- culdades econômicas e de acesso delas aos estudos, à liberdade e, principalmente, à categoria de gênio empregada pelo machismo (WOOLF, 2015, p.33-46) para privi- legiar seus congêneres. O combate aos machismos nas artes tem sido tratado pelos estudos feminis- tas. Embora a sociologia dos quadrinhos esteja consolidada em países como a França, Espanha e Estados Unidos, onde há tradição em pesquisas nessa área, a- inda se pode considerar algo relativamente recente nesse campo do conhecimento. No Brasil, os estudos sociológicos e de comunicação sobre os quadrinhos surgiram na década de 1960 concomitantes aos dos Estados Unidos e França. Os esforços dos pesquisadores dos quadrinhos no Brasil no campo da sociologia visam produzir estudos para a construção de especificidade sociológica que opere sobre os quadri- nhos e as suas relações com a sociedade ocidental, conforme Viana (2013, p.11-2). De igual modo, e ainda mais recentes são os estudos sobre mulheres e quadrinhos. Para romper com condicionamentos patriarcais históricos, é necessário ob- servar e considerar os feitos artísticos das mulheres sem balizá-los pelos cânones em vigência. Para tanto é importante analisar as incursões femininas em esferas antes essencialmente masculinas, com um olhar que considere as suas experiências artísticas, e a sua participação no mercado de trabalho no campo das artes, sem buscar necessariamente igualdades com as produções masculinas nas suas produ- ções, mas as diferenças e singularidades. Na arte sequencial dos quadrinhos, muitas imagens carregam a mesma con- figuração biologizante a que estão vinculadas as mulheres na vida real. De igual modo, as fêmeas povoam o universo ficcional em duplos: heroínas/vilãs, mães sol- teiras/casadas, santa/vagabunda... Os atributos físicos e psicológicos das persona- gens femininas nos quadrinhos são “marcadores de gênero” e apresentam, invaria- velmente, seus respectivos duplos, pois, para cada aspecto positivo da mulher, exis- te o seu contrário (OLIVEIRA, 2007) – um reforço dos binarismos. As mulheres nos quadrinhos, sob essas condições,explicitam que estão sujeitas às vontades de seu criador ocidental, histórica e majoritariamente: homem, branco, hétero e artista. 85

Segundo Beauvoir (1980, p.226), mesmo quando há uma alegação de estar sob efeito de uma “musa inspiradora”, o artista só recorre à Musa porque ela não cria nada. Ela é um sopro ficcional e se faz “serva de um senhor” dentro de uma “re- alidade eminentemente poética porquanto nela o homem projeta tudo o que não de- cide ser. Então, os quadrinhos importam, nos estudos feministas, porque também exalam concepções que partem do conceito de uma musa, um momento em que a “mulher é necessária à medida que permanece uma ideia em que o homem projeta sua própria transcendência; mas que é nefasta enquanto realidade objetiva, existin- do por si e limitada a si” (1980, p.231). Se for possível “tornar-se mulher” e seguir na condição de objetos do Estado ou de propriedade privada patriarcal (BEAUVOIR, 2008), para nós, a mulher criada pela influência do machismo nos quadrinhos poderá também reproduzir as condi- ções de subalternidade, de modo semelhante ou mesmo pior nesse mundo ficcional. Por isso, é necessário compreender a dimensão de ação do patriarcado sobre as mulheres nos quadrinhos, considerando a relação da mulher e o trabalho, pois a emancipação feminina é uma “ação contra as formas histórico-sociais de opressão masculina” (ANTUNES, 2009, p.110), o que nos faz pensar se será também nos quadrinhos.

2.3 A MULHER E O TRABALHO

Em meados do século XX, ocorreram grandes mudanças relacionadas ao mundo do trabalho contemporâneo. Nesse mesmo período, as mulheres adentraram massivamente o mercado de trabalho. Todas essas mudanças alcançaram as pro- duções artísticas, consequentemente os quadrinhos. As principais transformações referem-se à reestruturação produtiva advinda dos processos globalizantes do capital que atingiram todos os níveis e âmbitos tra- balhistas e os trabalhadores. O acelerado desenvolvimento industrial, as novas for- mas de gestão, o controle sobre os trabalhadores e a própria reestruturação produti- va assim como os efeitos decorrentes desses aspectos, alcançaram, em absoluto, todas as ocupações: técnicas gerenciais, de produtividade e também as subjetivida- des dos trabalhadores. Antunes (1999, p.17) explica que o trabalho passou por mo- 86

dificações na forma material e subjetiva implicando, diretamente, a forma de ser e existir, principalmente pelo esgotamento de acumulação e produção nos anos 1970. Embora as transformações sejam oriundas das reformulações da gestão cien- tífica e do desenvolvimento tecnológico, desinentes da mobilização do conhecimento e da informação, ainda se observam mentalidades sexistas relacionadas ao trabalho – cientes de que as mudanças fomentaram os processos globalizantes de comércio que decorreram de um capitalismo altamente estruturado e avançado. A própria di- nâmica mundial de um mercado globalizado, em conjunto com as transformações socioeconômicas, políticas e culturais profundas, impactou toda a produção de bens e serviços. Consoante às transformações, os trabalhadores também viram as conse- quências da reestruturação produtiva, caracterizada pelas novas tecnologias de ba- se que envolvia a microeletrônica, os processos gerenciais e de trabalho. A crise estrutural do trabalho é dotada de complexidade que inclui “mutações intensas, eco- nômicas, sociais, políticas, ideológicas” que alteram a “classe que vive do trabalho” (ANTUNES, 2009, p.34-7). No final dos anos 1960 e começo dos 1970 ocorreu a chamada “explosão do operário-massa” (2009, p.42). A interpolação da alta tecnologia e os novos modelos de gestão que fomenta- vam o desenvolvimento do trabalho mostraram que as firmas e os trabalhadores não estavam organizados para competição no mercado global e em rede (CASTELLS, 1999). As transformações organizacionais extinguiram muitas ocupações, mas pro- moveram o surgimento de novas profissões. Todos esses fatores combinados impe- liram os trabalhadores à aquisição de novas competências para atuarem e para con- seguirem um emprego. Mesmo assim, eles não estavam preparados para as inova- ções decorrentes da desestruturação e reorganização dos mercados nos anos 1970 e 1980 – o que gerou desordem social. Castells (1999) admite que a rápida redução dos postos de trabalho e o capi- talismo globalizado precisavam de consumidores para a produção das firmas, ge- rando novos postos de trabalho. Desse modo, o próprio sistema capitalista resolveu parte dos problemas ao tempo em que os governos e trabalhadores reagiram aos acontecimentos – existe, na verdade, um dinamismo dos atores do mundo do traba- lho para readaptação às contingências. Com a nova lógica organizacional nas décadas de 1980 e 1990, baseada em informação, as práticas gerenciais seguiram em desenvolvimento constante e passa- 87

ram a incluir não só a cooperação entre empresas como uma forma de mobilização para os usos das tecnologias,mas também a divisão de recursos e custos pela inter- dependência assimétrica, de modo a se inserirem na complexidade produtiva mun- dial – era um cenário em que “pela primeira vez na história, a unidade básica da or- ganização econômica não é um sujeito individual [...] nem o coletivo” (CASTELLS, 1999, p.252-7). Foi assim que as transformações dos modos de produção e o alcance do ca- pital transformaram completamente a estrutura ocupacional. A necessidade de in- formação; a mudança da atividade econômica que evoluiu da produção de bens pa- ra a produção de serviços; o declínio do emprego industrial e o aumento da impor- tância de profissões que primassem por um maior acúmulo de informação e conhe- cimentos (1999, p.266-7) foram outros aspectos fundamentais na transformação das ocupações. As modernas configurações sociais, que incluíam a informação de alto de- sempenho tecnológico aliada à velocidade, promoveram o surgimento de novas ca- tegorias trabalhistas em serviços de distribuição, serviços de produção, serviços so- ciais e pessoais. Assim, as profissões notadamente informacionais passaram a ter maior valor porque demandavam trabalhadores altamente qualificados para operar os novos maquinários e as informações. Sob tal perspectiva, incluem-se os traba- lhadores de escritório, os empregados dos setores administrativos e de vendas. As- sim, a chamada “sociedade informacional” terminou por impor socialmente a organi- zação de um “proletariado de escritório”, conforme explicado por Castells (1999, p.293-4), no qualse inclui a profissão de secretariado. Alterações significativas nos modos de trabalhar passaram a fazer parte do novo escopo: redução das dimensões físicas dos ambientes empresariais; intensifi- cação de subcontratação e terceirização; aplicação de processos gerenciais japone- ses que se tornaram uma “febre” nas organizações ocidentais – os Cinco Ss (Seiki, seiton, seison, seiketsu e shitsuke); o controle rígido de estoque (just-in-time), a es- pecialização e a produção flexível.Houve, então, necessidade de reestruturação da hierarquia com a introdução das equipes multifuncionais, focadas em seu autoge- renciamento e dotadas de capacidade para a autoaprendizagem, cujo objetivo é fo- car em uma maior e melhor produtividade. Atingidas pelas profundas alterações promovidas pelo mercado de trabalho, as mulheres contavam (e ainda contam) com barreiras sexistas que as excluem de 88

determinadas profissões pelas dificuldades de formação e pelos ditames patriarcais que segregam cargos de direção e nichos de trabalho. Antunes (1999, p.58-9) afirma que o capital também utiliza a divisão sexual do trabalho e sua precarização. A ma- nutenção da mulher em atividades rotineiras de trabalho intensivo, enquanto os ho- mens ocupam predominantemente áreas de capital intensivo e informatizado (AN- TUNES, 2009, p.86-8), pode ser entendida como um legado aplicado ao proletariado feminino de escritório. Para Antunes, “nas áreas de tecnologia mais avançada, as mulheres são in- corporadas somente nas atividades mais rotineiras e que requerem menor qualifica- ção” (1999, p.88). Por isso, afastamo-nos do chão da fábrica em uma distância tem- poral necessária para observarmos as mulheres, especificamente nos escritórios, ao final dos anos 1960 e início da década de 1970, preconizando o período em que a reestruturação produtiva se intensificou e propagou pelo globo. Assim, voltamos a Beauvoir (2008), pois ela aponta que, logo que passaram a trabalhar nos escritórios, as mulheres foram condicionadas à disponibilidade de de- terminados postos de ocupação, designados ao gênero (2008, p.504-9), o que signi- ficava desenvolver trabalhos em condições desumanas e vergonhosas (BEAUVOIR, 1980, p.148-9). Para Antunes (1999, p.109), as relações de poder implicadas no gê- nero e classe “permitem constatar que, no universo do mundo produtivo e reproduti- vo, vivenciamos também a efetivação de uma construção social sexuada” – por mui- to tempo, as mulheres estiveram, e muitas ainda estão, encerradas em profissões geralmente mal pagas e de subordinação (NYE, 1995, p.38). Apesar de inseridas no mercado de trabalho, as mulheres nunca foram valori- zadas nos escritórios, mesmo que dominassem determinadas tecnologias da mo- dernidade de então, como máquinas de datilografia, fax, telex. Independentemente de seus esforços em suas atividades profissionais, as relações possíveis entre as mulheres e as “máquinas pré-cibernéticas” apontadas por Haraway (2013, p.41) e ratificadas em Plant (1999, p.111), determinavam que os trabalhos desenvolvidos por elas fossem apenas técnicos e manuais, o que durante muitas décadas se con- firmou nesta profissão. A imagem da secretária, sem as suas extensões tecnológi- cas, é impensável, pois sem elas o seu trabalho é deslocado de sentido e fora de contexto. Esse motivo possibilitou construir nexos de sentido sobre algumas formas de representação das mulheres trabalhadoras da área secretarial nos quadrinhos. A estrutura e características próprias dos quadrinhos possibilitam a existência 89

do mundo fantástico, mas mesmo nesses espaços ficcionais, atribuímos-lhes ares- ponsabilidade na divulgação e reforço das diferenças sociais de gênero oriundas das violências de seus conteúdos. As representações prejudiciais às mulheres nesse tipo de produção, mesmo que funcionem como simulacros, dialogam com a realida- de e com as proposições de Perrot (2005), segundo o qual a associação da imagem da mulher com o trabalho traz mensagens importantes desde sempre (FIGURA 9), porque

Figura 9 - Perrot

a iconografia, a publicidade, sobretudo divulgam estas novas imagens da mulher e do casal amoroso que ela forma com sua Singer ou com a Remington. Da máquina de escrever, diz-se que ela é, logicamente, a sequência do piano. entre as novas tarefas às quais a moça parece adaptar-se admiravelmente, é preciso citar as de estenografia e datilógrafa. (PERROT, 2005, p.224)

Fonte: Elaborada pela autora

Não por acaso, existem imagens de concursos de datilografia onde hordas de mulheres eram testadas por suas exímias habilidades datilográficas como descrito em Plant (1999, p.112). A imagem da mulher trabalhadora sempre esteve fortemente vinculada à atividade manual, em oposição à atividade intelectual (PERROT,1998, p.101), o que ainda hoje contribui para prejudicá-las. Partimos da afirmação de Perrot (1998) sobre o trabalho secretarial pela im- portância da profissão na história da mulher – para ela, o ambiente organizacional estava destinado a ser o lugar onde as “damas secretárias” fariam a mutação do tra- balho feminino. Perrot (1998) e Nye (1995), porém, não previram a ascensão de se- cretariado acima dos níveis hierárquicos intermediários. Também não mencionaram que o valor da profissão manter-se-ia diminuído, mesmo que houvesse uma forma- ção universitária específica na área, como no caso do Brasil (SOUSA, 2006), ou uma formação técnica e superior especializada, como ocorreu nos Estados Unidos (PERIL, 2011) e na Europa (MUNK, 2007). Essa profissão segue como uma formação em assessoria executiva com es- crituração especializada (SOUSA, 2006), confirmando uma tradição histórica postu- 90

lada por Le Goff (2003, p.30) sobre a escrita como instrução que encerra em si mesma a mulher – aspecto tratado de modo distinto em Perrot (1998, p.91) que a- ponta a conquista da escritura feminina como acesso ao trabalho fora do lar. Em Sousa (2006), o trabalho secretarial feminino altamente mecanizado e tecnicizado foi uma forma de ganhar espaço no mercado de trabalho nos escritórios, mas, ao mesmo tempo, encerra a profissão no rol de trabalhos mecanizados e técni- cos para determinado gênero. Compreende-se que esta foi uma forma de impedir o acesso das mulheres às outras áreas do conhecimento e cargos de gestão, embora a literatura da área confirme mudanças nos currículos universitários da formação. O trabalho intelectual também participa da construção de valores sob o “fetichismo da mercadoria” (ANTUNES, 2009, p.128-9) – o que relacionamos ao desenvolvimento científico da profissão, por exemplo. Ao mesmo tempo, o capital induz o trabalhador à aquisição de maior qualifi- cação profissional para conseguir trabalhar e introduz uma relação intensificada da relação produção-consumo pela aquisição de conteúdos informacional e cultural. Assim, as relações comunicativas estabelecidas por Habermas são apontadas em Antunes, por conterem aspectos de vida cotidiana em que

as interpretações cognitivas, as expectativas morais, as expressões e valores, têm que formar um todo racional, interpenetrar-se e inter- conectar-se por meio da transferência de validade, que é possibilita- da pela atitude realizada. (2009, p.149-50)

Nos anos 1980, as mudançasno mundo do trabalho aprofundaram-se em paí- ses de capitalismo avançado, tanto na estrutura produtiva quanto nas formas de re- presentação sindical e política. Automações tecnológicas e processos de trabalho provocaram mutações nas formas de gestão e afetaram os trabalhadores, provo- cando crise conjuntural e da “consciência, da subjetividade dos trabalhadores” (AN- TUNES, 2009, p.206-7). A flexibilização do trabalho, da produção e seu deslocamentoprovocou maior desemprego e subproletarização e precarização do trabalho. Ainda assim, Antunes informa que se pode “constatar um efetivo processo de intelectualização do trabalho manual” (1999, p.212). Os trabalhadores não aceitaram de modo passivo tais trans- formações. Os movimentos sociais, como o feminismo, operam como potenciais combativos anticapitalistas, quando “conseguem articular suas reivindicações singu- 91

lares e autênticas com a denúncia à lógica destrutiva do capital”(2009, p.212-3). Nos anos 1990, foram as greves e as explosões sociais que se constituíram nas “formas de confrontação social contra o capital” (2009, p.212-213). As manifes- tações de estranhamento atingiram não somente o espaço de produção, mas tam- bém o consumo e a vida fora do trabalho. Na década de 1990, a reestruturação pro- dutiva terminou por diminuir os postos de trabalho e diversas funções, promovendo o enxugamento dos quadros. Outra transformação do período refere-se à “imbricação do trabalho material e imaterial” (ANTUNES, 2009, p.216-7) que o setor de serviços incorpora em maior proporção. Foi o trabalho informacional dotado de uma dimen- são intelectual que ampliou as formas pelas quais o capitalismo gera valor. A obser- vação das mulheres trabalhadoras, secretárias, nos quadrinhos, corrobora essas assertivas, percebidas em alguns fragmentos do mundo ficcional das personagens que analisamos. Isso nos permite inferir a influência do mundo real na ficção, na pe- riodização definida.

2.4 MULHERES AO TRABALHO, NOS QUADRINHOS

As imagens de violência, mesmo no plano artístico, não só informam sobre alguma ocorrência, mas insensibilizam os espectadores justamente por sua banali- zação (SONTAG, 2003). Em nosso entender, isso se aplica aos quadrinhos, porque as violências contidas ali e as suas peculiaridades são, muitas vezes, recorrentes em determinado gênero, e elaboradas para atrair e chocar o leitor, para provocar e manter uma determinada aura extravagante. Para que isso aconteça, as violências precisam ser cada vez mais audazes e criativas, a fim de alcançar seus objetivos. Assim, a nudez, a violência, o sexo, o bizarro, o grotesco, a parafilia e o “anormal” são, até certo ponto, esperados nos quadrinhos. Fazem parte de seu universo. Mesmo quando há censura quanto ao nível de violência nos quadrinhos, o próprio mercado editorial encontra meios de contornar o sistema. Desse modo, cria selos para “adultos” e gêneros específicos como os quadrinhos de terror, de sexo explícito etc. A questão só muda de nível etário e nicho, mas segue reproduzindo imagens que sugerem violências ou as explicitam ao extremo porque interessam economicamente aos seus produtores e ao público. 92

Confirmamos nossas convicções, ao verificar a personagem Bécassine. Du- rante a pesquisa, deparamo-nos com violências contra uma das primeiras mulheres nos quadrinhos, a trabalhadora Bécassine. A personagem surgiu em plena Belle É- poque,em 1905, no “La Semaine de Suzette”, um jornal infantil parisiense cujo públi- co-alvo eram “as meninas da aristocracia e burguesia francesas” (SANTOS, 2002, p.3-4). A redatora Jacqueline Rivière (1851-1920) queria ocupar uma página vazia do jornal e, então,

lembrou-se de um episódio ocorrido em sua casa, com uma empre- gada natural da Bretanha, que, na sua simplicidade provinciana e na sua ingenuidade, cometera uma falta qualquer um tanto cômica. A redatora quis, então, aproveitando-se do fato, ocupar a página com uma historieta desenhada, figurando a sua criada como heroína um tanto cômica, se bem que simpática e ingênua. O desenhista da pu- blicação, Joseph-Porphyre Pinchon (1871-1953), ilustrou a historieta. (SANTOS, 2002, p.3-4).

Essa personagem demonstra o quanto as mulheres trabalhadoras e de de- terminada classe eram (?) violentadas. O que esperar de uma personagem cujas trapalhadas serviam de diversão para um público feminino da aristocracia? Conside- ramos Bécassine23 uma das primeiras concepções de violência contra mulheres tra- balhadoras nos quadrinhos. O desenho dessa personagem mostra uma serviçal bre- tã identificada pelas roupas típicas de camponesa. Ela está

ao serviço da Marquise de Grand Air, encarna o tipo social da jovem aldeã que veio trabalhar para a capital durante o êxodo rural da Belle Époque. Há cem mil criadas bretãs em Paris nos anos 1900. A ima- gem deste tipo social, ridicularizado pelos jornais satíricos, é a da al- deã ignorante, desajeitada, ingénua e servil. (ÁLVARES, 2013, p.6)

Bécassine é desenhada sem boca(FIGURA 10). Em alguns quadros, é pos- sível observar um pequeno ponto vermelho, quase imperceptível, que indica que ela possui uma boca, embora seja hiperdiminuta. A questão não está somente na im- possibilidade de fala da personagem, mas pode ser interpretada de modo ainda mais assustador, como algo que

representa uma alteração do regime da narração no quadro da ins-

23 Lady’s Comics, portal feminino de quadrinhos no Brasil, informa que, em nosso país, a personagem recebeu o nome de Narcisa ou Felismina e aparecia na Revista O Tico-Tico. 93

tauração da cultura de massas. Até então, a criada (ama, governan- ta) desempenhava um papel de grande relevo na formação e no en- tretenimento das crianças: contar-lhes ou ler-lhes contos. O frontispí- cio das primeiras edições dos contos de Perrault (1694, 1695, 1697) mostra, junto a uma lareira, uma criada idosa a contar histórias a um pequeno grupo de crianças ao mesmo tempo que fia a lã. Na edição de 1861, ilustrada por Gustave Doré, a ama lê-lhes um livro de con- tos. O mesmo se passa nas edições dos Märchen de Grimm. A cena implica que são as mulheres do povo, depositárias da tradição narra- tiva, que transmitem os contos às crianças das famílias aristocráticas ou burguesas. Nos anos 1900, a introdução nos lares da imprensa in- fantil e juvenil instaurou novas modalidades de consumo de histórias e de imagens, com destaque para a BD. As revistas substituem à narração a leitura individual e silenciosa, dispensando portanto a fun- ção de storyteller da criada. Em 1936 Walter Benjamin descreveu es- ta alteração do regime da narração como relegação para o domínio do arcaico da narração artesanal pela imprensa, ‘instrumento funda- mental da era burguesa’ (Benjamin 209-14). Ora, o que é Bécassine senão a criada destituída do estatuto de contadora e tornada perso- nagem? Privada de boca, Bécassine é a criada que, em vez de con- tar, é contada pela BD que surge na Belle Époque como a forma mo- derna de recriar e transmitir o património narrativo. É altamente inte- ressante que Bécassine, personagem fundadora da BD, encarne es- ta transformação sociocultural que desloca para as indústrias cultu- rais a competência narrativa das aldeãs. Este deslocamento é uma das formas da mutação da cultura popular tradicional em cultura de massas. (ÁLVARES, 2013, p.6)

Figura 10:. Bécassine

Fonte: Chirol(2015, s.p.)

A imagem da personagem indica mais do que a real dimensão do lugar que a mulher trabalhadora, doméstica, deveria ocupar na sociedade francesa da épo- ca.Álvares (2013) indica que a violência inscrita nessa personagem está além do que se vê, do bizarro ser sem boca. Não é somente a violência do estereótipo de classe, uma serviçal bretã, camponesa, atrapalhada e que não tem voz. É também a 94

transformação do trabalho dessa mulher frente à modernidade dos meios, que perde espaço para outras formas das narrativas que tornam o seu trabalho ainda menos valorizado socialmente. A existência da Bande Dessinée, doravante designada BD, como um novo meio de comunicação para crianças, evidencia também uma forma ainda maior de desvalorização profissional da serviçal, e do papel da mulher na tra- dição da oralidade. Ela não tem voz. Conforme Santos (2002, p.5), em 1913, após o sucesso consolidado da per- sonagem, a editora Gautier-Languereau lançou um álbum de 48 páginas oficializan- do seu nome, Annaïck Labornez, e deu-lhe uma família estimada e respeitada, algo que compreendemos ter sido uma forma de compensar os estereótipos cria- dos/reforçados. O público adorava a personagem e, aos poucos, ela ganhou espaço regular no jornal, não somente em Paris mas em toda a França, e no exterior. A pu- blicação de seu primeiro álbum fez com que a personagem figurasse fora do estere- ótipo pejorativo com que iniciou nos jornais. As suas novas histórias eram aventuras em que a personagem até mesmo pilota aviões. Bécassine evidencia, para nós, que o lugar da mulher trabalhadora nos qua- drinhos pode sim ser um lócus de referências de múltiplas violências, aceitas e tole- radas pela sociedade ocidental, e de uma maneira quase literal. Indica também que, às vezes, ocorrem ajustes que visam reparar danos, mas que não chegam a alcan- çar uma totalidade por que uma análise mais aprofundada evidencia que

a idiotice de Bécassine é uma forma de inadaptabilidade, logo de re- sistência à ação uniformizadora e assimiladora da modernidade in- dustrial e urbana. Ela destotaliza o projeto universal da modernidade. Ela existe no elo mais frouxo do sistema, lá onde ele se deixa enter- necer pela nostalgia do mundo pré-moderno rústico, atrasado e obs- curo. A bondade de Bécassine é correlativa da flexibilidade da mo- dernidade industrial e do seu sistema de valores patriarcais. Quando as meninas citadinas riem da idiotice de Bécassine riem sem dúvida dos excluídos da ordem moderna mas riem também da inconsistên- cia dessa mesma ordem que Bécassine, com a sua bondade, revela como a sua (da ordem) compreensão – no sentido de tolerância e de inclusão (ÁLVARES, 2013, p.8)

Os excluídos da ordem moderna, os marginalizados, a massa de trabalhado- res, os subalternos, todos eles, mesmo nos quadrinhos, passam por violências que estão além da leitura premente. Em nosso entender, a tolerância essa situação nas artes e mídias, tratadas por Sontag (2003), ocorre de modo semelhante em relação 95

às imagens de violência naturalizadas na arte sequencial. Mesmo ficcionais, as imagens dos quadrinhos apresentam mensagens de for- te apelo, compostas por significados que nos interessam ser compreendidos, pois podem representar, em certa medida, práticas sociais reais de violência de gênero. Muitas vezes, a naturalização da violência, nesses meios, é caracterizada sob o hu- mor sexista, outro instrumento de injúria – mecanismo que visa minimizar as agres- sões às mulheres, muito utilizado na arte sequencial, e que apresenta uma proximi- dade assustadora com a realidade de subjugar a mulher e subalternizá-la. Nossas convicções coadunam com Spivak (2010), uma vez que concordamos com a pre- mência de dar voz aos sujeitos subalternos. Por isso, nosso trabalho visa combater e responder à heteronormatividade reprodutora (2010, p.18), adicionando nossa voz,por meio da pesquisa, à de outras mulheres que reclamam dos abusos nos qua- drinhos, nas artes, na história e, principalmente, entre aquelas que lutam para fazer a diferença no meio da arte sequencial. Cientes de que o termo subalterno se aplica ao proletariado nas camadas so- ciais mais baixas constituídas “pelos modos específicos de exclusão dos mercados, da representação política e legal, e da possibilidade de se formarem membros ple- nos no estrato social dominante” (2010, p.13-4), consideramos e incluímos as mu- lheres trabalhadoras, secretárias, no rol de sujeitos ainda mais subalternos também no mundo dos quadrinhos.

2.5 AS MULHERES E A PROFISSÃO DE SECRETARIADO

Selecionamos personagens dos quadrinhos que desempenhassem, mesmo que secundariamente, uma profissão caracterizada como feminina, e as observamos de uma forma interpretativa que considerasse as ocorrências de violência de gênero e os estudos feministas. Nosso objeto constituído por mulheres, violências e quadri- nhos levou-nos a observar, inicialmente, diversas personagens trabalhadoras. Op- tamos por manter o foco sobre as representações femininas que atuaram como se- cretárias, porque muitas personagens dos quadrinhos foram caracterizadas como tal, e pela limitação de uma profissão permitida à atuação das mulheres nos escritó- rios, em nosso recorte temporal. 96

Observamos a importância histórica da atividade secretarial para a inserção feminina nas firmas no mercado de trabalho. Para Perrot, próximo a 1895, “os ho- mens abandonaram para elas o baixo escalão, refugiando-se nos cargos superiores e conservaram os postos de comando” (2005, p.246) – isso se manteve até a se- gunda metade do século passado. Milhões de mulheres atuaram como secretárias e em atividades correlatas, como datilógrafas e estenógrafas, no mercado de trabalho dos Estados Unidos, desde o início do século XX24. Perrot (1998) ilustra a situação de muitas dessas mu- lheres, apresentando um slogan de uma escola francesa de estenodatilografia do início do século XX: “Se você não pode dar um dote às suas filhas, mande-as à es- cola Pigier” (PERROT, 1998, p.101). A inserção feminina nas empresas esteve con- dicionada não somente à disponibilidade dos postos de ocupação, mas também a determinantes em que o gênero condizia sempre com a aceitação de trabalhos em condições desumanas e vergonhosas (BEAUVOIR, 1980, p.148-9) e o enclausura- mento em profissões mal pagas e subordinadas (NYE, 1995, p.38-53), já que as mu- lheres foram

aprisionadas pela dependência econômica em que viviam em relação aos homens, isto com tanta certeza quanto os robôs são controlados pela ameaça implícita de que seus senhores podem sempre cortar o suprimento de energia, apertar o botão liga-desliga, deixá-los onde estão ou devolvê-los à prateleira (PLANT, 1999, p.100).

Independentemente dos motivos que possibilitaram a inserção e permanência das mulheres nos trabalhos burocráticos, não se pode esquecer que esses trabalhos sempre visaram atender as necessidades de produção do capital. Em consonância com a modernidade, a tecnologização das empresas criou laços mais do que intera- tivos entre as mulheres e as “máquinas pré-cibernéticas” ratificadas por Haraway (2013, p.41) e Sadie Plant (1999,p.109-119). Desse modo, as relações entre as mu- lheres e os aparatos tecnológicos constituem, precisamente, um “casamento” com as máquinas (PERROT, 2005, p.226-227). Além disso, o tipo do trabalho remunera- do para a mulher nos escritórios evidenciava qual seria a relação desta com uma atividade profissional fora de casa em uma sociedade patriarcal.

24 Destacamos os Estados Unidos porque a literatura secretarial indica mais de 50 milhões de mulhe- res nessa profissão e em atividades afins, nos escritórios, nos primeiros 50 anos do século XX. Ver: Sousa (2006). 97

De acordo com Plant (1999), Perrot (2005) e Natalense (1998), a máquina de escrever é considerada uma das tecnologias de acesso das mulheres aos postos de trabalho administrativo nas empresas. Em 1873, o inventor de uma dessas máqui- nas, Charles Sholes, colocou sua própria filha, Lilian Sholes, para testar a máquina em público. Na época, Lilian tinha catorze anos de idadee foi a primeira mulher a realizar tal feito publicamente (NATALENSE, 1998).Ao pensar sobre sua invenção, Charles Sholes declarou: “acho que fiz alguma coisa pelas mulheres que sempre tiveram que trabalhar tão arduamente” (PLANT, 1999, p.111). Quem não tinha dote para casar e ficar em casa, trabalhava em uma das poucas atividades públicas per- mitidas à mulher pelo patriarcado. Mas a condição social da mulher e o trabalho que ela iria desempenhar nas firmas podem ser observados, por exemplo, em reclames de cursos de datilografia e secretariado no Brasil. Um deles publicado pelo jornal O Estao de S. Paulo, em 17 de março de 1918, mostrava uma mulher datilografando. Na sugestiva chamada, a frase: “Sois pobre?”

Figura 11 - Reclame de uma escola de datilografia

Fonte: O Estado de S. Paulo(1918, p.13)

A máquina de escrever realmente possibilitou a inserção da mulher nos traba- lhos administrativos em definitivo. Os números de empregadas em escritórios, nas 98

primeiras décadas do século XX, apresentados por Plant (1999), Perrot (1998) e Be- nét (1975), representaram milhões de postos de trabalhos em curva crescente. Uma massa de mão-de-obra feminina ocupou diversas posições relacionadas aos usos dos aparatos tecnológicos. Perrot explica que “as datilógrafas, necessariamente gra- ciosas, expulsam progressivamente os copistas com jeito de clérigos e fazem ruir o velho apanágio do escriba: o apanágio do manuscrito e da escrita” (2005, p.224). Secretariado era uma atividade complementar, sempre um meio, nunca um fim em si mesma, como exemplificado em Queiroz (1938, p.7):

Se a consultante é viúva, orphã, filha, irmã, etc. que precise habilitar- se à percepção de montepio, meio soldo, pensão etc., deixada por pessoa fallecida, nada mais rápido que o ‘O Secretariado Moderno’ para resolver tudo o que há de fazer. (1938, p.7)

Também são históricosos concursos locais, regionais e nacionais de datilo- grafia do século XX (PERROT, 1998, p.98-101) em que hordas de mulheres eram testadas por suas exímias habilidades datilográficas (PLANT, 1999, p.112). As esco- las de datilografia e de secretárias ensinavam os padrões rítmicos, e a perícia das mulheres era julgada pela velocidade, conforme Plant (1999, p.112). A fusão entre a imagem da mulher trabalhadora com o seu aparato tecnológico aproxima-se de iden- tidades pós-humanas, em que os corpos são inconcebíveis sem as suas extensões mecânico-tecnológicas associadas ao trabalho. A expressiva massa de mulheres nos escritórios, no século XX, sempre pro- testou contra as condições de trabalho nas firmas e contra as imagens não condi- zentes com o universo da profissão de secretária (SOUSA, 2006). Os aspectos este- reotipados que, rotineiramente, as caracterizaram nas mídias – hipersexualização e pouca intelectualidade – foram confinados na profissão dita feminina, contribuindo para o seu baixo status dentro e fora das empresas. A favor da profissão na história das mulheres, Perrot (1998), Plant (1999), Benét (1975) e Peril (2011) confirmaram a importância dessa atividade profissional como meio de acesso às firmas. Se, no Brasil, essa profissão ainda encontra dificuldades estruturais e ainda não é valorizada, afirmamos que as motivações para essas ocorrências deriva, entre outras, mas principalmente, da opressão patriarcal que ressoa fortemente na socie- dade, com a colaboração das diversas mídias e, em nosso caso, especialmente nos quadrinhos. O significativo número de mulheres secretárias caracteriza a profissão 99

como um “gueto” feminino – Sousa (2006) considerou que esse foi outro importante aspecto para que ela mudasse de status. O prestígio social e intelectual que o secretariado admitia no passado inclui, em sua história, homens considerados muito importantes que prestaram relevantes trabalhos, a exemplo de Gaius Suetônio Tranquillus (Secretário Imperial de Trajano); Mecenas (secretário do imperador Júlio César); São Jerônimo (secretário do Papa Dâmaso); Poggio Bracciolini (secretário do Papa Bonifácio IX); Gilberto Cousin, que secretariou Erasmo; Thomas Hobbes, o último secretário de Francis Bacon (SOUSA, 2016). Além desses, havia alguns homens das Sociedades do Conhecimento, como Bernard de Fontenelle, secretário da Academia Francesa de Ciências; Henry Olden- burg, secretário da Royal Society Formey e também da Academia de Berlim, e Per Wilhelm Warentin, secretário da Academia Sueca (BURKE, 2003). Napoleão teve importantes secretários – ele tinha “altíssimo nível de exigên- cia para o trabalho” (DUMAS, 2004, p.212). Alguns secretários particulares ou mais precisamente, os seus secretaires du cabinet, eram considerados “ilustres”, a exem- plo de Bourriene (1802), Meneval (1802 a 1813) e Fain (1813 a 1814). Esses últimos receberam os títulos de Barões. Fain era inteligentíssimo, era um secretaire archivis- te (MASSON, 1910 apud DUMAS, 2004, p.212). Podemos citar também Maquiavel (secretário dos Dez de Bailia), e Rainer Maria Rilke, poeta austríaco que atuou como secretário de Rodin. Todos esses são exemplos de secretários com acesso à alta instrução e de grande destaque na história. Sobre mulheres atuando como secretárias ao longo da história, Sousa (2006) ponderou que, em determinadas épocas, elas não tinham livre acesso à educação, e o espaço público não cabia às mulheres “decentes”. Ainda assim, na história da ati- vidade, alguns nomes destacam-se: Cenide, uma liberta que trabalhava na condição de secretária para Antônia, mulher do imperador Vespasiano; Marcelle Tirel, secretá- ria de Rodin (que o cognominou “pai terror”); Nadeja Konstantinova Krupskaya, uma das pessoas mais importantes junto a Lênin, foi secretária na administração da fer- rovia em sua cidade e depois secretária do partido Bolchevique (SOUSA, 2006). Quando a profissão se torna quase que completamente tomada pelas mulheres no século XX, o status da atividade declina consideravelmente. Os manuais de secretariado das décadas de 1960 e 1970 apresentavam uma confusão de papéis, que transitavam entre mãe, esposa, babá ou secretária do che- fe. Para nós, eles apontam, principalmente, a distância entre as pautas feministas do 100

mesmo período e o exercício da atividade profissional de secretariado pelas mulhe- res em nosso país. Sob quaisquer circunstâncias, o chefe, homem, deveria ser cui- dado no lar e fora dele – essa mensagem era bem clara nos livros pesquisados. As autoras ratificavam um papel doméstico para a mulher dentro e fora do escritório. Havia a inserção de dicas para a secretária se ajustar à dupla jornada, orientando o comportamento ideal frente à família ao retornar para casa, ao final do expediente de trabalho na empresa.

posturas no escritório, etiqueta, cuidados com o corpo e a aparência (uso de cosméticos, higiene íntima etc.), o trato com a família do che- fe, o trato com a própria família, cuidados com as tarefas domésticas, o uso do telefone, o uso da linguagem, a correspondência, a transcri- ção de ditados, a estenografia e a datilografia. (SOUSA, 2006).

Sousa (2006) salienta que são comumente utilizados os termos “moças”, “jo- vens” e “mocinhas”, indicando uma relação entre juventude e o exercício da profis- são. Descreviam a atividade secretarial como meio mais fácil para a mulher que de- sejava trabalhar fora de casa, por seu livre acesso às empresas, ao tempo em que ratificam a necessidade de a candidata demonstrar as qualidades necessárias para ser secretária. A discussão sobre quem poderia ser secretária ou secretária executi- va já era pontuada pelas autoras na época. A diferença para elas consistia no nível hierárquico – atendimento a diretoria ou presidência de empresa – e não na legisla- ção da área ou da formação superior específica, ainda em implantação no País. A- lém disso, havia uma tendência a qualificar o trabalho da secretária de modo seme- lhante ao da dona-de-casa.

A confusão de papéis dentro e fora do lar fica latente na comparação feita por Montezuma [entre 1950 e 1960]: ‘a secretária desempe- nhando papel de certo modo análogo ao de uma dona-de-casa’; as curiosidades destacadas denotam na expressividade textual, o jogo de palavras que traduziam o pensamento relativo às competências profissionais dessas mulheres. Montezuma [entre 1950 e 1960] se- gue afirmando que as secretárias ‘deverão ainda pôr em prática este dom excepcional que Deus concedeu à mulher, esta espécie de sex- to sentido, a intuição, que lhe permite como ‘adivinhar’ o que é opor- tuno fazer, adiar, omitir, dizer ou calar’. (SOUSA, 2006).

Isso se aproxima das proposições de Plant quando explicou que a secretária era a “segunda pele” do patrão e era também: “a voz, o sorriso, a interface do chefe, 101

ligando-o com o mundo e protegendo-o contra ele, a tela na qual ele se apresentava, uma fachada, superficial, um filtro do processamento, um escudo, uma vestimenta protetora” (1999, p.114). Além dessas recomendações, havia recomendação com a questão estética, pois há uma passagem em que ela afirma que a secretária “deverá, ainda, reunir uma soma de qualidades as mais diversas [...] das quais a menos importante - em- bora não seja de desprezar, claro está! – é a beleza” (MONTEZUMA, [entre 1950 e 1960]). Lembramos que a prática dos anúncios de empregos, recentemente proibida via regulamentação, exigia das candidatas ao cargo de secretária, “boa aparência”. Montezuma [entre 1950 e 1960] referia-se também à dignidade da profissão já que “[...] muitas moças levianas ou inconsequentes” abusavam de comportamentos inadequadas nos escritórios, contribuindo para uma imagem negativa da profissão. Para tanto, orientava a secretária a tomar como exemplo, as secretárias mais expe- rientes e a observação das personagens secretárias – os bons exemplos – no cine- ma e teatro, porque “raro é o filme em que não aparece uma secretária”, contrarian- do Perrot (1998, p.249) para quem, muito distantes da massa das mulheres dos paí- ses em desenvolvimento, os modelos e mídia ocidentais não têm necessariamente afinidades, e as secretárias podem ser espontaneamente hostis a eles. Suas recomendações trazem expressões, como “mudez absoluta”; “escudo contra os importunos” (telefonemas, visitas etc.); usar “perpétuo sorriso”; arrumar a sala e a mesa do chefe “diariamente, antes e depois do expediente”; preferir sempre o lugar mais modesto à mesa de reuniões “que é de fato o seu [...]”. Essas orienta- ções explicitam a mentalidade da época a que estavam condicionadas as mulheres secretárias. Ao mesmo tempo, Montezuma[entre 1950 e 1960] apresentava temas como “asseio escrupuloso”, indicando o uso de talcos e o número ideal de banhos ao dia. Sousa (2006) afirma que dois manuais de secretariado dos anos 1960 e 1970 denotam uma confusão de papéis para as secretárias, com ausência de limites entre o profissional e o pessoal, o que contribuía para estabelecer um cenário do valor do trabalho da mulher secretária nas empresas. Havia indicações sobre a relação chefe-secretária. Para desenvolver uma re- lação saudável, a secretária deveria ajudá-lo a manter seu amor-próprio que “jamais deveria ser maculado” quando fosse necessário, por exemplo, corrigi-lo em algum erro em ditados. Recomendações como “saber lembrar-lhe mil coisas esquecidas”; 102

ser “sua memória e seu outro eu”; servir-lhe de “escudo” nas situações inoportunas; “zelar pela saúde, vitalidade e autoconfiança do patrão” eram aspectos recomenda- dos às secretárias. Quanto ao sentido da profissão, Montezuma [entre 1950 e 1960] afirmava:

procure ver na profissão de secretária o que tem de belo e conveni- ente, sem esquecer este fator importantíssimo: de todas as profis- sões ‘fora do lar’, é ela a que melhor preserva a perfeita feminilidade da mulher – a não ser que esta seja, naturalmente, do gênero [...] ‘dragão’ [...] das mais nobres e completas profissões que a mulher possa exercer fora do ambiente doméstico. (apud SOUSA, 2006).

Rainho (1970) teve um discurso um pouco diferente de sua antecessora, mas o lugar da secretária que descrevia ainda mantinha um sentido servil que, em muitos aspectos, se traduzia na caracterização da secretária como uma espécie de babá da chefia. Apresentava variações das tarefas da secretária em relação às técnicas ad- ministrativas, mas orientava a checar os cinzeiros várias vezes ao dia e esvaziá-los caso fosse necessário – tarefa que deveria ser feita logo bem cedo, “antes do expe- diente”. A recomendação era chegar antes do chefe, verificar o ambiente de trabalho cuidar de sua organização e limpeza. Sousa (2006) informa que Rainho (1970) indi- cava, por exemplo, receitas para manchas nas roupas, orientando como a secretária deveria limpar as suas roupas ou as do chefe, em caso de acidentes de trabalho com carbonos, tintas de caneta etc. Embora escrito nos anos 1970, o manual traz outras recomendações como:

ser ‘adaptável às variações do humor do chefe’ ou ‘saber realizar a correspondência, interpretando inclusive os monossílabos deixados no ar pelo chefe distraído’; ‘fingir’ que não percebeu e ‘aprender a conter-se’, quando desprezada pela família do chefe se ‘desejasse galgar postos mais elevados’. (SOUSA, 2006)

As autoras salientavam que a ascensão da secretária na empresa dependia não somente do seu desempenho profissional, mas estava diretamente ligada às relações que a secretária desenvolvesse com a família da chefia. Fundamentalmen- te, implicava exercitar um excelente trato com as esposas dos chefes! Essa passa- gem indica que o patriarcado coloca as mulheres como inimigas naturais e concor- rentes, um dos aspectos apontados pelo feminismo como impeditivos à igualdade no trabalho e ao desenvolvimento da sororidade feminina. 103

Sousa (2006) explica que, mesmo após o acesso à formação universitária es- pecífica, iniciada nos anos 1970 no Brasil, a imagem preconceituosa sobre a secre- tária não se desvinculou da profissão – situação semelhante à encontrada em outros países como nos Estados Unidos, e países da Europa (PERIL, 2011; BENÉT, 1975). Aproximamo-nos, assim, de Margaret Mead (ROSALDO; LAMPHERE, 1979, p.15) quando afirma que,no momento em que as ocupações são exercidas somente pelas mulheres, elas são “menos importantes” do que quando exercidas também pelos homens. No Brasil a profissão possui uma Federação Nacional de Secretárias e Secre- tários no Brasil (FENASSEC – 2006), criada em 1988, no Paraná. Os primeiros gru- pos de profissionais de secretariado no país surgiram nos anos 1960. Essa categoria é regulamentada pela Lei nº 7.377 de 1985 (NATALENSE, 1998) e tem representa- ção sindical em todo o País. Os primeiros sindicatos surgiram nos estados de maior desenvolvimento nacional: Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo e Mato Grosso. Com demanda crescente face aos rumos desenvolvimentistas e industriais no país, foram criados novos cursos técnicos e de graduação. Embora, durante a década de 1990, Jeremy Rifkin (1995) tenha predito o fim da profissão de secretária, sua previsão não se confirmou em curto prazo, mesmo porque, nos Estados Unidos, a profissão de secretariado passou a se chamar Admi- nistrative Assistant,no final dos anos 90, conforme a International Administration of Administrative Professionals (IAAP), umas das mais importantes associações de pro- fissionais da área, naquele país (IAAP-HQ.ORG, 2016).

As secretárias do país já são as primeiras vítimas da revolução do escritório eletrônico. Atualmente elas passam 45% de seu tempo ar- quivando papéis, entregando mensagens, enviando cartas pelo cor- reio e esperando por tarefas. O número de secretárias tem diminuído sistematicamente, à medida que computadores, correio eletrônico e máquinas de fax substituem as máquinas de escrever manuais, ar- quivos de aço e correspondência de rotina. Entre 1983 e 1993, o pool de secretárias do país diminuiu de quase 8% para 3,6 milhões. (RIF- KIN, 1995, p.68).

Desde sua predição, houve reformulação da nomenclatura e da atuação nos EUA. No Brasil, ocorreu a ampliação de atividades e responsabilidades, a melhoria dos currículos e produções acadêmicas, que passaram a exigir monografias e TCCs. Importa saber que, mesmo havendo uma formação superior especializada no Brasil, 104

e legislação específica para o seu exercício, a profissão de secretariado sempre en- frentou dificuldades históricas de valorização, decorrentes da dominação patriarcal que se estendeu às imagens das secretárias no cinema, nas revistas, nas novelas, nas músicas, nas peças publicitárias e nos quadrinhos no século XX (SOUSA, 2016). Os equívocos sobre a imagem da secretária foram combatidos com a melho- ria da educação das profissionais e com a instituição de um Código de Ética em nosso país. Mas, ainda que tenham sido criados cursos técnicos, bacharelados es- pecíficos, cursos tecnológicos e pós-graduações lato sensu específicas no País, a profissão não conseguiu consolidar uma imagem que a desvinculasse dos estereóti- pos produzidos pelos filmes hollywoodianos, literaturas e demais imagens prejudici- ais contidas nas mídias (SOUSA, 2006). Mesmo com mais de 44 anos de existência de graduação e bacharelados em secretariado executivo no país, a profissão nunca conseguiu criar um curso stricto sensu. Ele segue no meio acadêmico como uma formação de segunda linha. A pro- dução científica incipiente não produziu um corpus teórico que guindasse a profissão à posição de área do conhecimento científico e com representatividade significativa na academia (SOUSA, 2006). Ao mesmo tempo, questionar minimamente sobre qual tipo de conhecimento a área secretarial produziria termina por trazer à discussão as considerações de Per- rot (2005, p.227), quando aponta os modos de manutenção da mulher em subalter- nidade intelectual: ao elogiar a habilidade mecanográfica das mulheres, e apenas isso, estaríamos lhes negando a ciência porque, “empírico ou mágico, o seu saber é sem qualidades” (PERROT, 2005, p.227). Supunha-se que “secretárias e estenógra- fas apenas processassem informações que haviam sido produzidas e organizadas em outro local” (PLANT, 1999, p.114), mas as secretárias são educadas para cole- tar, organizar dados e processá-los, transformando-os em informações. Essas são características da atividade que orientam a profissão desde a segunda metade dos anos 1980 no Brasil. Mesmo passando por reestruturação acadêmica, assumindo novas responsabilidades e atividades de suporte gerencial nos escritórios, a profis- são sempre esteve fortemente relacionada às técnicas da escrita, da datilografia, da estenotaquigrafia e telefonia, e do receptivo, em suma, atividades rotineiras das quais tratou Morin (2003). Assim, a profissão que escolhemos observar nos quadrinhos tem um histórico 105

que a caracteriza como uma “profissão feminina” na sociedade ocidental. Ao bus- carmos compreender as formas de violências para com as mulheres trabalhadoras nos quadrinhos, encontramos algumas secretárias que representam semelhanças com a realidade. Elas apresentam subalternidades relacionadas ao nosso objeto. As violências contra mulheres secretárias podem ser observadas em diversas imagens e narrativas nos quadrinhos.

2.6 A VIOLÊNCIA INSCRITA NOS PADRÕES ESTÉTICOS

Quando assumimos os quadrinhos como diminutas porções ficcionais com representações parciais da realidade, o fizemos porque “tanto os quadrinhos como o anúncio pertencem ao mundo do jogo, ao mundo dos modelos e das extensões e prolongamentos das situações que se passam em outra parte” (McLUHAN, 2005, p.193). Para nós, essa outra parte é o mundo real. Valemo-nos da pesquisa de Bar- cus (apud ANSELMO, 1975, p.82-3) que realizou um levantamento estatístico, entre 1950 e 1959, em três grandes jornais da cidade de Boston, nos Estados Unidos, ve- rificando 778 títulos de HQs. Nesse período, as histórias publicadas no periódico centravam-se em temas, como família e vida cotidiana em 60% dos títulos, enquanto as histórias de guerra chegavam a 18%. As histórias que apresentavam a temática família norte-americana

frequentemente colocavam a mulher em papel de destaque em rela- ção ao homem, que muitas vezes ficava relegado ao papel de paga- dor das contas, humilde cumpridor de ordens ou títere indefeso frente às decisões da matrona do lar. É o que acontecia, por exemplo, com o pobrePafúncio, sempre tiranizado pela esposa, a megera Maro- cas(emBringind up Father, de George McManus), ou mesmo com o simpáticoDagwood, dominado pela belaBlondie, com algemas muito mais agradáveis, durante mais de 70 anos de feliz matrimônio (na magistral e popular obra em quadrinhos criada originalmente por Chic Young, em 1930). (VERGUEIRO, 2016, s.p.Grifos do autor).

Os demais percentuais da pesquisa de Barcus (apud ANSELMO, 1975) foram distribuídos em temas relacionados à fantasia. Ele apontou em relação aos quadri- nhos que

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não se trata da vida real mas somente de uma representação dela. Não é um espelho fiel da sociedade, mas antes um espelho carnava- lesco, com distorções muitas vezes engraçadas e outras vezes as- sustadoras, para quem as vê.(1975, p.83).

Anos depois, o pesquisador fez novo levantamento – desta vez considerando o período entre 1943 a 1958 –, a fim de analisar conteúdos de quatro jornais que publicavam a maioria das HQs norte-americanas. Ele constatou que o mundo dos comics era retratado como contemporâneo em 90% delas, e habitado majoritaria- mente por adultos; indicou a utilização do humor e meio familiar em 64% das HQs. O ambiente das HQs era centrado, em sua maioria, nas cidades (73,8%). Na época, os países estrangeiros apareciam em 80,9% das vezes nas HQs como regiões agríco- las. Como as HQs eram centradas no tempo presente apenas 1% contava histórias no futuro e 9% no passado. Mais de 72% das publicações expunham um mundo masculino de idade mediana e, quando havia mulheres, elas eram “em menor por- centagem, bem jovens ou bem velhas” (ANSELMO, 1975, p.84). Isso nos chamou atenção e um aspecto que muito nos interessou foi verificar que seu estudo conside- rou a profissão dos personagens:

relativamente à profissão, 23% não têm ocupação definida, 17% de- sempenham atividades excêntricas e 36% têm empregos comuns. As mulheres podem ser médicas ou professoras, mas não têm posição de autoridade sobre os homens. (ANSELMO, 1975, p.84)

As pesquisas de Barcus (apud ANSELMO, 1975, p.84-85) apontaram os tra- ços mais comuns verificados entre homens e mulheres representados no universo dos quadrinhos norte-americanos. Observamos, assim, que, mesmo frente a um mundo do trabalho contemporâneo em que milhões de mulheres trabalhavam fora, a discriminação contra as personagens trabalhadoras femininas se mantinha na fic- ção. Em suas análises, Barcus (apud ANSELMO, 1975, p.84-5) apontou que os per- sonagens casados têm objetivos centrados no amor, poder e estabilidade financeira. Os personagens solteiros são mostrados como altruístas e com objetivos diversifica- dos. Para ele, em geral, os personagens homens ficam gordos, carecas e deixam de ser ambiciosos depois que se casam. Em contraponto, as personagens mulheres são mais ambiciosas após o casamento, não objetivam o prazer, engordam e ficam feias. Essas constatações são explicadas por Vergueiro:

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em todas as séries de quadrinhos familiares, as mulheres, embora muitas vezes estejam no centro das narrativas, têm que frequente- mente dividir o estrelato com os demais membros do núcleo familiar, englobando desde o marido e filhos aos sogros, genros, cunhados, primos, parentes mais distantes e mesmo os animais de estimação. Elas só passariam mesmo a ocupar o centro de todos os desenvol- vimentos temáticos naquelas histórias em quadrinhos genericamente denominadas comogirl strips, que, em geral, buscavam narrar as tribulações de jovens representantes do sexo feminino na difícil luta pela sobrevivência material, enquanto esperavam pelo aparecimento de seu príncipe encantado. E, evidentemente, como a chegada de tão sonhado personagem com certeza as afastaria definitivamente de todas essas tribulações, este constitui sempre um vir-a-ser jamais concretizado, pois sua simples concretização acaba afetando a prin- cipal característica da história, deixando-se de ter a mulher como ú- nica protagonista e passando-se a incorporar nesse papel todo o nú- cleo familiar, como mencionado acima. (2016, s.p.Grifo do autor)

Anselmo (1975, 85-7) indica que outros estudos, como os de Saenger, nos anos 1950, apontavam características ainda mais interessantes. Esse pesquisador analisou tiras de nove jornais, e verificou, por exemplo, a falta de persistência nos empreendimentos em 1/3 dos personagens que eram casados. Vimos, então, que as relações entre homens e mulheres centrados nos temas abordados pelos pesquisa- dores indicam proximidades com a realidade, ou uma interpretação da realidade. Ora, ao assumirmos os quadrinhos como uma produção social que coopera para compreensão da produção e reprodução cultural, aspecto também defendido por Viana (2013, p.15), devemos igualmente considerar que eles representam, prin- cipalmente fragmentos da história das mulheres por conservar partículas de nexos com a realidade. Não somente o tema, as mensagens, as caracterizações de vida das personagens nos importam, mas também os corpos e as formas como são retra- tadas nos quadrinhos. As discussões feministas sobre direito ao corpo, apontadas por Betty Friedan (1971), Wolf (1992), Perrot (1998), Plant (1999) e Beauvoir (2008), fizeram-nos com- preender que, além da necessidade de assumirmos a autonomia e o gerenciamento dos nossos corpos, precisamos observar como as mídias exploram o corpo feminino em um desdobramento naturalizado da dominação. Embora Wilshire (1997, p.120) proponha deixar que “nossos corpos assumam a liderança na nova aprendizagem”, as leituras dos quadrinhos em que os corpos femininos representados são hiperse- xualizados, fazem-nos refletir sobre os aprendizados possíveis quanto às mensa- gens dos quadrinhos que analisamos. 108

Mesmo ficcional, o corpo da mulher pertence ao autor/artista ou edito- ra/periódico que o cria e que o compartilha com os leitores para que o desfrutem. Há uma circulação dos machismos manifestos de forma fragmentada em imagens de mídia que determinam o que é a mulher e quais os seus usos. A mulher é idealiza- da, desenhada e disponibilizada para o escrutínio dos olhos e desejos masculinos. Nos quadrinhos, ela pode ser extremamente voluptuosa, usar roupas diminutas, transparentes, exibir poses extremas ou mesmo impossíveis para a representação de um corpo humano. Ao observamos os corpos das mais de 50 personagens femininas em Luc- chetti (2001), por exemplo, verificamos aspectos de uma estética feminina recorrente e própria aos quadrinhos. De fato, mesmo quando há biografias e contextos que jus- tificam as lógicas existenciais das personagens, fica evidente que, para além de su- as personalidades – sejam elas ingênuas, bizarras, voluptuosas, surreais, ninfoma- níacas etc. – as Sedutoras dos Quadrinhostêm, invariavelmente, corpos gráficos que exprimem extrema sexualidade e certo padrão. Vestidas ou não, são os seus corpos que, principalmente, as definem como mulheres. Para nós, as personagens apresen- tadas por Luchetti (2001) são mulheres que ratificam a subalternidade proposta por Spivak (2010)e que estão voltadas para a assunção da condição de objetos do Es- tado, ou de propriedade privada patriarcal de que tratou Beauvoir (2008). O trabalho que as mulheres exercem e elas próprias são representados nos quadrinhos, muitas vezes, sob violências que exprimem fragmentos do caráter ma- chista nas relações sociais, espelhando situações muito próximas da realidade. Desse modo, confirma Spivak (2010, p.84) quanto à disponibilidade da imagem da mulher “para a tradição falocêntrica” e que se confirma em Berger (1972), quando explicita que a forma como a mulher é desnudada e observada na arte vem de longa data na tradição europeia. Ele indica como exemplo a pintura de Nell Gwyrme, por Lely (1618-1680), em que

Carlos Il de Inglaterra encargó secretamente el Cuadro a Lely. Es una imagen típica de Ia tradición. Nominalmente podría ser una Ve- nus y Cupido. De hecho, es el retrato de una de las amantes del rey, Neil Gvvynne. Nos la muestra mirando pasivamente al espectador que la contempla desnuda. Sin embargo, esta desnudez no es ex- presión de sus propios sentimientos; es un signo de sumisión a los sentimientos o las demandas del propietario (eI propietario de Ia mu- jer y 30 del Cuadro). Cuando el rey Io mostraba a otras personas, el cuadro servía para probar esta sumisión y provocar la envidia de los 109

invitados.(BERGER, 1972, p.35)

Dando um salto em suas reflexões, Berger (1972) afirma que a nudez na arte moderna perdeu a importância pela sua banalização. Entretanto, para ele, a mulher desnuda segue existindo para agradar ao espectador masculino.

Salvo el ‘realismo’ de la prostituta, que se convirtió en la quintaesen- cia de la mujer en los primeros cuadros vanguardistas del siglo XX. (Toulouse-Lautrec, Picasso, Rouault, expresionismo alemán, etc.) La tradición continuó vigente en la pintura academicista. Las actitudes y los valores que informan esa tradición se expresan hoy a través de otros medios de difusión más amplios: publicidad, prensa, televisión. Pero el modo esencial de ver a las mujeres, el uso esencial al que se destinaban sus imágenes, no ha cambiado. Las mujeres Son repre- sentadas de un modo completamente distinto a los hombres, y no porque lo femenino sea diferente de lo masculino, sino porque siem- pre se supone que el espectador ‘ideal’ es varón y la imagen de la mujer está destinada a adularle. (BERGER, 1972, p.35. Grifo do au- tor).

Berger (1972) ensaia aproximações entre a arte pictórica, a fotografia e a pu- blicidade. Para ele, existem relações entre as representações e a posse de algo, com a assunção de um status que está intrinsecamente ligado ao poder de aquisi- ção. A arte “de cualquier época tiende a servir los intereses ideológicos de la clase dominante” (BERGER, 1972, p.47). Aproximamo-nos de seu pensamento ao rela- cionarmos a nona arte às representações das mulheres e à compreensão de que a arte quadrinística também existe para atender interesses de um domínio que está além do econômico, e que comporta a manutenção de uma cultura machista, pois as mulheres, nos quadrinhos, existem para satisfazer os homens. Nossa convicção se confirma em Oliveira (2007), ao tratar das representa- ções femininas nos comics norte-americanos entre 1895 e 1990. Ela explicita que o “processo de produção de um personagem de histórias em quadrinhos é, na verda- de o processo de produção de uma representação, engendrado coletivamente na prática social” (2007, p.141-2) mesmo que não sejam definitivas. Sua pesquisa con- sidera Bourdieu(apud OLIVEIRA, 2007, p.143) para afirmar que os corpos das per- sonagens são “idealizados para e com base no olhar masculino, pois é ele que se apropria e constitui as mulheres”. Os corpos femininos constituem-se em erotizações e padrões inatingíveis para a mulher, e cooperam não somente na imposição de formas impossíveis de serem alcançadas, mas também para formação de um pa- 110

drão de exigência para os homens em relação a estas (2007, p.150-151). A idealização do corpo feminino nas HQs prejudica os leitores dos quadri- nhos, pois “a forma feminina encerra e naturaliza a identidade sexual da menina em um conjunto de normas que se inscrevem no seu imaginário a partir de um corpo desenhado no papel” (2007, p.151), desenho este criado pelo machismo. As erotiza- ções das mulheres nas HQs trazem implicações negativas para elas e são facilmen- te observáveis nas orientações contidas nos manuais de desenho que determinam como devem ser os corpos artísticos femininos para a arte sequencial (2007, p.152- 162). A perpetuação da maneira como os corpos das mulheres são representados nos quadrinhos resulta de violências contra a imagem da mulher. Para Oliveira (2007), esses corpos estão dentro dos padrões de controle na perspectiva de Fou- cault, em que os dispositivos de sexualidade obedecem aos critérios de maternida- de, infantilização e erotização, com o que concordamos. Para contemplar todas es- sas assertivas, partimos para o universo de personagens secretárias nas HQs e ob- servamos como nossas convicções poderiam ser observadas na história da primeira heroína com superpoderes.

2.7 A MULHER MARAVILHA, UMA HEROÍNA SECRETÁRIA

A mais emblemática, e uma das mais conhecidas heroínas das HQs, é aceita por alguns historiadores dos quadrinhos como uma das primeiras feministas nesse meio. A Mulher Maravilha trabalhou como secretária em algumas ocasiões nos qua- drinhos, e sua história nos serviu de mote para iniciar a investigação.A personagem foi criada na chamada era de ouro dos quadrinhos25 pelo doutor em psicologia Willi- am Moulton Marston, formado pela Universidade de Harvard (SCALITER, 2013, p.31). Del Buono (1983, p.194-6) informa que a super-heroína era filha de uma rai- nha de determinada tribo de amazonas de uma ilha desconhecida no Pacífico. Nes- se lugar, as mulheres se reproduziam sem a participação masculina. Igualmente in-

25 Algo perto de 1938 a 1956, existem divergências quanto à exatidão das datas. 111

teressante é observar que a proposição da origem amazona está relacionada à mito- logia grega, em que Homero as designava como “Antianeirai” ou “as que odeiam homens” (KNOWLES, 2008, p.179) – uma inversão da misoginia e do machismo em relação às mulheres no mundo real. Desse modo, a narrativa constrói um mundo feminino onde a relação possível em uma sociedade matriarcal se conforma em uma mitologia de repulsa aos homens. O esforço de Marston em vincular sua criação à sua ideia de feminismo de- correu das circunstâncias históricas de sua época, em que as mulheres protagoniza- vam novas pautas de luta diante da sociedade norte-americana. Assim, Marstonfoi profundamente influenciado pelo movimento sufragista, feminista e discussões sobre o controle de natalidade. Também foi influenciado por pensadoras feministas próxi- mas a ele. O portal The Margaret Sanger Papers Project, editado pelo Departamento de História da Universidade de Nova York, informa que Margareth Sanger era tia da companheira de Martson, Olive Byrne, e teve influência direta na criação da Mulher Maravilha (FIGURA 12).

Figura 12: Margaret Sanger

Fonte: Hessel (2016)

A Mulher Maravilha tornou-se um fenômeno no mercado dos quadrinhos nos Estados Unidos, e o seu público foi, por muito tempo, constituído majoritariamente por homens. A novidade de uma mulher com superpoderes, cuja imagem estava associada ao mito do herói, atraiu também o público masculino, pois ela “é, basica- mente, a contrapartida do arquétipo do Messias” (KNOWLES, 2008, p.179). A inspi- ração grega em sua construção pode ser observada em sua história de nascimento e em exclamações recorrentes, como: “Safo, Sofredora, referência à poeta laureada 112

de Lesbos” (2008, p.183). Considerado um pioneiro do feminismo nos quadrinhos por alguns autores, como Oliveira (OIVEIRA, 2007, p.108) e Knowles (2008, p.180), o criador da Mulher Maravilha era afeiçoado ao bondage and domination, praticante da poligamia e in- ventor de um tipo de polígrafo. Essas particularidades fizeram com que Scaliter (2013, p.31) afirmasse: “não surpreende que o laço da verdade estivesse entre as poderosas armas da sua criação”. O código de regulação dos quadrinhos norte- americanos exigiu que o laço fosse retirado das revistinhas, pois, para as autorida- des, se tratava de um elemento que sugestionava determinada prática sexual, já que, em muitas ocasiões, a heroína subjugava os homens com o seu laço (MADRID, 2000, p.190). O laço da verdade – um dos principais artefatos da heroína no combate às mentiras ou quaisquer intenções e sentimentos ocultos –, em determinadas ocasi- ões, chamado de laço mágico ou laço dourado, tinha poderes que extraíam informa- ções sobre absolutamente tudo. Associações entre suas origens em uma sociedade matriarcal e o lesbianismo também foram levantadas pelos norte-americanos. O discurso de Marston sobre sua criação defendia que a “Mulher Maravilha é uma propaganda psicológica para o novo tipo de mulher que, creio eu, deveria go- vernar o planeta” (KNOWLES, 2008, p.182). Ele não se distanciou do mito da cria- ção divina que atrela o homem ao barro. Na ficção, a Mulher Maravilha foi criada como uma deusa pagã, esculpida em lama por sua mãe Hipólita. O portal UOL26 in- forma que, sob as mãos do roteirista Brian Azzarello e do desenhista Cliff Chiang, sob o selo Novos 52, em 2011, a história do seu nascimento passou por uma revira- volta colossal, pois foi revelada como uma farsa de modo a encobrir que sua mãe teve uma relação extraconjugal com Zeus (HESSEL, 2016). Embora tenha sido um artifício utilizado pela indústria dos quadrinhos que re- cria dramaticamente a personagem, para nós, essa reviravolta na história volta a um tema comum, pois indica que não pode haver um nascimento divino sem a semente de um pai. O conceito de uma organização de vida em comunidade essencialmente feminina, mesmo que de natureza divina, foi rompido de modo a aniquilar qualquer

26 O portal pertence ao Grupo Folha, um dos principais conglomerados de mídia do País. Entre seus veículos de comunicação estão o jornal com grande circulação Folha de S. Paulo, e a maior empresa brasileira de conteúdo e serviços de internet (UOL). Além disso, possui o site noticioso de jornal com mais audiência (Folha.com) e a maior gráfica comercial do Brasil (Plural), entre outros negócios. Fo- lha – institucional. Disponível em: . Acesso em: nov. 2015. 113

intento de criar uma visão de uma sociedade matriarcal. É latente que tampouco a divindade da mulher é por si só capaz de criar. Ela necessita sempre de um pai. Refletimos que, mesmo no mundo ficcional, a formação de um ser mágico sem que haja um pai não será possível, a história será revista e recontada décadas depois. Para nós, essa concepção contraria a possibilidade de inovação da personagem bem como a sua importância no mundo ficcional. Nosso argumento se assenta na reflexão de que “a ideia de matriarcado se constitui num mito muito útil, um guia para ação presente e isso é importante na medida em que nos impõe a imaginação de um mundo onde a mulher tenha real poder” (WEBSTER; NEWTON, 1972 apud ROSALDO; LAMPHERE, 1979, p.20). Ao reescrever a história da heroína com a semente paterna e divina, tudo muda. Ao longo de sua existência, a história da Mulher Maravilha passou por refor- mulações, algo que ocorreu também com diversos outros personagens, pela neces- sidade de revitalização dos “produtos” quadrinhos na manutenção e ampliação do mercado. Marcelo Hessel informa que a primeira grande reformulação editorial da DC Entertainment27, proprietária de diversos ícones dos quadrinhos, ocorreu com a “pós-Crise nas Infinitas Terras em 1986”. Nesse período, as amazonas passaram a ser imortais e criadas pelos deuses como “reencarnações de almas de mulheres mortas pelas mãos dos homens” (HESSEL, 2016). A Mulher Maravilha surgiu com o corpo coberto por roupas diminutas (KNO- WLES, 2008, p.183) com evidente divulgação cultural e apelo patriótico explicável pelo período histórico de seu surgimento, a Segunda Guerra Mundial – por isso, a sua roupa tem estampas com as cores e detalhes da bandeira dos Estados Unidos da América. Em 2014, a Mulher Maravilha passou às mãos de outra roteirista, Mere- dith Finch, no selo Os Novos 52. Ela trabalha as histórias juntamente com o seu ma- rido, David Finch, que desenha a personagem. A formação de Meredith é em ecolo- gia e educação, e sua experiência no mercado de quadrinhos era recente, o que in- clui algumas publicações independentes. De acordo com o Metro Jornal (2016), a

27 A DC Entertainment, sede das marcas icônicas DC (Superman, Batman, Lanterna Verde, Mulher Maravilha, Flash), Vertigo (Sandman, Fábulas) e MAD, é a divisão criativa encarregada de integrar estrategicamente seu conteúdo em Warner Bros. Entertainment e Time Warner. DC Entertainment trabalha em conjunto com muitas divisões da Warner Bros. para divulgar suas histórias e persona- gens em todas as mídias, incluindo, mas não se limitando a filmes, televisão, produtos de consumo, entretenimento doméstico e jogos interativos. Publicando milhares de histórias em quadrinhos, nove- las gráficas e revistas todos os anos, a DC Entertainment é a maior editora em língua inglesa de qua- drinhos do mundo (Tradução livre). Disponível em: . Acesso em: nov. 2015 114

roteirista afirma que

Acho que ajuda não ter 40 anos de HQs na cabeça. Significa que posso ter mais chances de arriscar com um personagem por não ter noções preconcebidas de como ele ou ela deva se comportar. Li toda a incrível série de Brian Azzarello para a Mulher-Maravilha antes de começar o trabalho. Queria ter certeza de que seria fiel à persona- gem e à história que ele estabeleceu no início da série Os Novos 52. (METRO JORNAL, 2016).

Meredith Finch e seu marido disseram que almejaram criar uma personagem distinta da que tem sido feito nos últimos 70 anos. Ao que parece, este será um ár- duo desafio porque

Sempre foi uma prioridade para nós sermos respeitosos com a per- sonagem. Queríamos que o traje dela estivesse mais de acordo com o do resto dos personagens da DC Comics. Não consigo imaginar nenhum herói masculino correndo em trajes de banho e não quería- mos isso para Diana também. (2016, s.p.)

(...) Para Meredith, Mulher-Maravilha é uma personagem que soube evoluir com o tempo. ‘As experiências das mulheres em 2015 não são as mesmas das mulheres nos anos 1940, quando ela foi criada. Acho que, enquanto as histórias forem significativas, seremos fiéis ao ícone, afirma ela, para quem um toque feminino pode significar algo de diferente na condução das histórias. (...) Eu nunca diria que um homem não pode escrever uma grande história sobre uma mulher e vice-versa. Uma boa história é simplesmente uma boa história. No entanto, acredito que há sutilezas em relação à experiência de gêne- ro que podem ser expressas apenas por quem as viveu’, conclui. (METROJORNAL, 2016, s.p.Grifos do autor)

São justamente as sutilezas da experiência de gênero que nos interessam nas histórias em quadrinhos. A Mulher Maravilha, em seus começos, trabalhou em ofícios destinados às mulheres. Sua busca era por atividades que a tornassem “co- mum”, mais uma mulher na multidão, a fim de não levantar suspeitas sobre sua real identidade. Tornar-se invisível foi necessário na construção de um disfarce. Para isso, desde que surgiu, a Mulher Maravilha escolheu alguns trabalhos considerados de menor importância, de modo que eles não evidenciassem suas habilidades e competências sobrenaturais. Uma forma de esconder seus superpoderes foi exercer atividades que indicassem justamente o contrário do que esperar de uma supermu- lher. Assim, sob o codinome de Diana Prince, ela serviu no exército como enfermeira e secretária, em outras ocasiões, foi secretária da Sociedade da Justiça, vendedora em uma loja de roupas e atendente de fast food, para citar algumas de suas outras 115

atividades de disfarce. Observamos sob quais aspectos a Mulher Maravilha trabalhou como secretá- ria. Na atividade, ela demonstrava ser tímida e desajeitada, assessorando um coro- nel da Aeronáutica chamado Steve Trevor. Nutria pelo coronel um amor platônico, explicado pelo fato de que ela nunca poderia casar-se com ele porque, como prince- sa amazona, teria que renunciar aos seus poderes. Por isso, Oliveira (2007, p.109) a confirma como o “avesso da Mística Feminina”, já que o modelo de amazona indica- va que “o preço da independência feminina pode ser a solidão”28. Na verdade, a re- lação entre casar e perder os superpoderes também ocorria com o herói. Gerhart Saenger (apud HORN, 1980), em seu estudo Male and Female Relations in the American Comic Strips,de 1955, diz que “while the male was traditionally the strong- er sex, much more decisive, self-reliant and resourceful as long as the remained un- married (and correspondingly aloof), it was the woman who held sway as soon as the matrimonial knot was tied” (SAENGER apud HORN, 1980, p.3). Seus estudos concluíram que

Love is dangerous because it leads to marriage, a situation in which, as we have seen, men lose their strength. They can preserve the strength only by running away from women, who interfere with the real tasks in life, the seeking and pursuing of adventure (apud HORN, 1980, p.4).

A regra aplicada ao super-herói se aplicava igualmente à super-heroína. O preço a pagar por sua liberdade seria a solidão, algo confirmado em Francis E. Bar- cus (apud HORN, 1980, p.4-5) em seu estudo de 1963, intitulado “The World of Sunday Comics”, em que analisou as tiras semanais em jornais de Boston publica- das nos anos 1943, 1948, 1953 e 1958. Ele confirmou que 72% dos personagens verificados nos quadrinhos eram masculinos e que os homens eram mais inclinados à solteirice. Para ele, os quadrinhos mostravam que os homens perdiam suas ambi- ções após o casamento, enquanto as mulheres adquiriam uma “sede de poder” de- pois de casadas. Há um momento em que Diana se conscientiza de que não deveria demons- trar perfeição no trabalho, ou mesmo outras habilidades que denunciassem suas

28 Exemplo que também pode ser encontrado na história da Rê Bordosa. Mesmo ela não sendo uma heroína, Angeli, depois de muito torturá-la, mata a personagem usando um vírus chamado “tedius matrimonius”, com o qual ela explode. 116

capacidades sobre-humanas. Uma postura humilde e com habilidades menores era o essencial para o disfarce (FIGURA 13).

Figura 13 - Mulher Maravilha disfarçada de Secretária

Fonte: Tim Hanley, 2012, s.p.

Em nosso entender, esse quadrinho aproxima-se das recomendações de um manual de secretariado brasileiro da década de 60: “seja sempre a atitude da secre- tária, pois a de senhora que se encontra em sociedade, ainda que esteja prestando humildes serviços” (MONTEZUMA, [ca.1960]). Essa subserviência foi baseada na experiência profissional da autora na ativi- dade, e nas influências da sociedade brasileira da década em questão, mas traduz, fielmente, a intencionalidade imposta às mulheres nos escritórios. Montezuma ([entre 1950 e 1960]) reproduziu uma conformidade da época quanto à aceitação da nulidade e subserviência da mulher no ambiente de escritório, reforçando a crença de que seu trabalho era de menor importância. Podemos ver um exemplo em um momento em que a Mulher Maravilha atuou como secretária na “Sociedade de Justiça da América” (All-Star Comics #13). Nesse grupo, composto por uma equipe de super-heróis ela figurava como a única heroína (FIGURAS 14, 15 e 16). De modo recorrente, enquanto seus colegas ficavam fora lutando para salvar o mundo, a super-heroína ficava para trás.

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Figura 14 - Mulher Maravilha e o convite para ser secretária

Fonte: Tim Hanley, 2012, s.p.

Figura 15- Mulher Maravilha e o convite para ser secretária

Fonte: Tim Hanley, 2012, s.p.

Figura 16 - Mulher Maravilha e o convite para ser secretária

Fonte: Tim Hanley, 2012, s.p.

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Esses quadrinhos evidenciam qual deveria ser a participação feminina no tra- balho no mesmo ambiente dos super-heróis. Mesmo após outras 20 edições com novas histórias, ela continuava ficando para trás,como pode ser observado na All- Star Comics #33. Esses exemplares atestam uma divisão do trabalho pelo sexo, mesmo em um mundo ficcional. A mensagem nas cenas é que, por trás da “proteção” da mulher deixada em um ambiente seguro, o enfrentamento dos nazistas não era algo para ela. O papel da mulher, secretária, era ficar atrás de uma mesa, em ambiente fechado, resguar- dada. Nisso consiste sua subalternidade. Este papel se assemelhava ao da profis- sional “do lar”, pois, como afirmado, a mulher na atividade doméstica faria da secretá- ria uma “técnica do lar” e vice-versa (MONTEZUMA, [ca. 1960] apud SOUSA, 2006). Essa desordem de papéis entre dona-de-casa e profissional se estendia aos quadri- nhos nesse exemplo da Mulher Maravilha – pelo menos no Brasil, perdurou como concernente à atividade secretarial até o final da década de 1970. Ao negar a participação da mulher heroína e detentora de poderes especiais no campo de batalha, consuma-se a evidência do sexismo profissional, na “Socie- dade da Justiça” e o lugar reservado à mulher (FIGURA 17). Esse aspecto de res- guardar, confinar a mulher a um espaço se aproxima da mística feminina tratada por Betty Friedan. Embora Diana estivesse fora de casa, trabalhando, seu trabalho se resumia ao cuidado do interior de um espaço ao qual estava confinada: A Sala de Justiça. Justiça para quem? Por isso, entendemos ser necessário buscar, nas pro- duções e reproduções dos sexos nos quadrinhos, algumas de suas diferenças, mesmo porque concordamos que “os dois sexos nunca partilharam o mundo em i- gualdade de condições (...) Economicamente homens e mulheres constituem como que duas castas” (BEAUVOIR, 1980, p.14).

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Figura17- Mulher Maravilha fica para trás quando há algum combate.

Fonte: Tim Hanley, 2012, s.p.

Oliveira (2007, p.107-9) afirma que Marston criou uma personagem que atendia aos apelos nacionalistas relacionados ao período de guerra, que convocava as mulhe- res às ocupações masculinas nas fábricas e comércio. Mas, verificamos, na história da Mulher Maravilha, que a guerra não era uma atividade para as mulheres, ainda que elas tivessem superpoderes. Quem salva o mundo são os homens, não as mulheres. A fêmea deve permanecer onde o macho lhe permite ficar. Para que a mensagem funcionasse, a heroína aceitou o seu papel de secretária e submissa, uma clara con- tradição ao feminismo defendido por seu criador, que não aceitou de bom grado tais mudanças. Ocasionalmente, os quadrinhos se aproximam dos contos em que a mu- lher fica relegada a um espaço confinado, e aguarda para ser salva. Nas palavras de Beauvoir,

a mulher é a Bela Adormecida no bosque, Cinderela, Branca de Ne- ve, a que recebe e suporta. Nas canções, nos contos, vê-se o jovem partir aventurosamente em busca da mulher; mata dragões, luta con- tra gigantes; ela acha-se encerrada numa torre, num palácio, num jardim, numa caverna, acorrentada a um rochedo, cativa, adormeci- da: ela espera.

(...) enfim, toda uma coorte de ternas heroínas amachucadas, passi- vas, feridas, ajoelhadas, humilhadas, ensinam à rapariga o fascinan- te prestígio da beleza martirizada, abandonada, resignada. Não é de espantar que, enquanto o rapaz faz de herói, a rapariga desempe- nhe, de bom grado, o papel de mártir (...) ela resigna-se, sofre, morre e a fronte cobre-se de glória. (2008, p.38-39)

Nas edições da All-Star Comics, era comum encontrar a caixa de introdução das histórias – nela estava descrita a função, e a Mulher Maravilha, sempre por últi- mo (FIGURA 18). 120

Figura 18- Chamada das histórias

Fonte: Tim Hanley, 2012, s.p.

Havia também um certificado da Sociedade da Justiça encartado nos comics- publicados sob esse título. A estética do documento mostra os rostos dos super- heróis da liga perfilados verticalmente nas laterais. São oito heróis masculinos, qua- tro de cada lado. A Mulher Maravilha aparece embaixo de todos eles, e sua assina- tura consta no documento, como testemunha e secretária (FIGURA 19).

Figura 19- Mulher Maravilha fica para trás quando há algum combate

Fonte: Tim Hanley, 2012, s.p.

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Nesses quadrinhos, evidencia-se uma visão androcêntrica dos lugares e pro- fissões permitidas às mulheres, e quais deveriam ser os seus comportamentos. A- proximamo-nos, assim, de Badinter (2005) quando reafirma Daniel Welzer-Lang (a- pud BADINTER, 2005, p.50) sobre as “relações sociais de sexo” entre os homens e as mulheres em que “o conjunto do social divide-se de acordo com o mesmo simbo- lismo que atribui aos homens e ao masculino as funções nobres e, às mulheres e ao feminino, as tarefas e funções de menor valor”. Não estamos com isso diminuindo a profissão de secretariado, mas explicitando que tal profissão não comunga de status significativo justamente pela sua caracterização de “profissão feminina” e pelas de- terminações falocêntricas que atribuem às atividades desempenhadas pelas mulhe- res um valor menor. Atestamos, assim, que o androcentrismo se propaga de formas diferentes nas HQs, e atua fortemente na reprodução e manutenção das violências que também encontramos no mundo real. Diante das óbvias contradições entre uma representa- ção do feminismo propostapor seu criador e as situações pelas quais a personagem passa, entendemos que a Mulher Maravilha, nessas situações, vista como membro da Sociedade da Justiça, afirmou seu pertencimento a uma subalternidade que con- trariava seu status de heroína. Ela é super e, ao mesmo tempo, se iguala às demais mulheres de sua época. Mesmo não mais precisando de disfarce, coube a ela uma profissão considerada menor. Sobre esse aspecto, Beauvoir (2008, p.36) afirma que “nas narrativas contemporâneas, como nas lendas antigas, o homem é o herói privi- legiado”. Em Wonder Woman for President – Wonder Woman 1000 years in the futu- re/H.G. Peters, n.7, de 1943, Diana encontra sua mãe, Hippolyta que lhe mostra o futuro. Sua viagem à Paradise Island ocorre durante sua licença de Ação de Graças, que a libera dos deveres do exército. Ela chega à ilha utilizando o uniforme que usa em seu trabalho no exército. Um tailleur sóbrio e de cor escura. Durante a conversa, as duas estão abraçadas. Surge, então, o tema sobre as roupas que a Mulher Mara- vilha está usando. Hippolyta destaca que o uniforme é resultante de um mundo com regras mas- culinas e salienta a diferença do que as secretárias estarão vestindo 1000 anos à frente, quando as mulheres estabelecerão regras distintas das masculinas para os usos das suas roupas. Enquanto isso, sua mãe explica que os eventos futuros são baseados nos acontecimentos passados e regula a máquina para que ambas vejam 122

um exemplo de roupa utilizada pela secretária no futuro (FIGURA 20).

Figura20-Máquina do tempo

Fonte: Tim Hanley, 2012, s.p.

Na sequência, Diana aparece com seu uniforme de heroína e pode ser vista calçando sua bota ante o funcionamento da máquina (FIGURA 21). O diálogo entre as duas prossegue e surgem imagens de uma secretária no futuro:

Figura21– Diálogo entre mãe e filha

Fonte: Tim Hanley, 2012, s.p.

Ao ver a imagem de uma mulher usando minissaia, Diana admira o traje se- dutor e prático da mulher do século 31, e lamenta que seus amigos não amazônicos 123

não vivam para testemunhar as mudanças. Em um mundo controlado pelas mulhe- res, a roupa de trabalho da secretária muda. Nele, pode-se usar minissaia. Mudam também o trabalho e a tecnologia. A secretária do futuro usa um aparelho na testa que capta os ditados e faz com que datilografe automaticamente à medida que ditam para ela. A fala de Hippolyta – "quando as mulheres escolhem seus próprios estilos, e- las são obrigadas a ser pitorescas e sedutoras" – não deixa margem a dúvidas qual deve ser a forma de a mulher se vestir. A sedução ainda é um tema recorrente e as- sociado à mulher, principalmente às secretárias que, mesmo sendo mostradas mil anos à frente, ainda obedecem a um comando vocal/mental e alguém precisa ditar o que elas devem escrever. Um futuro imaginado por um autor, homem, para as mu- lheres mil anos à frente. A história em si é pensada como uma evolução para as mu- lheres. De 1943 a mil anos, uma delas será presidente. Em seus começos, a Mulher Maravilha secretariou a Sociedade da Justiça. Ao longo de sua existência, a setuagenária personagem provocou polêmicas, dis- cussões acaloradas e diversos questionamentos das leitoras e das feministas quan- to aos papéis que desempenhava nos quadrinhos e sua representatividade. Os con- trassensos entre a proposta de uma heroína e o que acontecia na ficção eram tão absurdos que uma das psicólogas consultoras da All-American, Josette Frank, desli- gou-se da empresa por divergir dos antagonismos e perversões sexuais atrelados à personagem, intencionais ou não (KNOWLES, 2008, p.183). Embora existam contradições e polêmicas que acompanham a vasta história de uma personagem setuagenária, há também aspectos positivos observáveis na Mulher Maravilha. Considerando que a Mulher Maravilha surgiu como uma proposta de uma nova mulher independente, que buscava a igualdade entre os sexos, Jill Le- pore (2016), professora de História Americana na Universidade de Harvard, conta que, para a edição da revista feminista MS. de julho de 1972, Glória Steinem escre- veu a história da heroína e uma matéria sobre as mulheres eleitoras. A tarefa de escrever a capa da revista coube a Joanne Edgar, nascida em Ba- ton Rouge, em 1943, que também cresceu lendo quadrinhos. Em suas lembranças, ela conta que as crianças da rua, em sua maioria meninos, costumavam empilhar seus quadrinhos de cima a baixo na calçada, para negociar. Um único exemplar de Superman equivalia a três números de Wonder Woman – aspecto significativo do valor da heroína no mercado de trocas entre meninos e meninas. Para Edgar, "A 124

Mulher Maravilha teve início feminista, mas como muitos de nós, ela entrou em de- clínio nos anos cinquenta" (apud LEPORE, s.d., s.p.). De fato, a importância simbóli- ca da Mulher Maravilha para diversas gerações pode ser explicada por Iuri Reblin:

Enquanto bens culturais, os super-heróis e as super-heroínas são fornecedores e fornecedoras de sentido. Traduzem um conjunto de valores que são expressos em suas falas e em suas ações. As histó- rias das personagens da superaventura têm ocupado, frequentemen- te, o lugar que outras narrativas ocuparam (e ainda ocupam) em nossas vidas, como as sagas bíblicas, os mitos, as histórias de fic- ção, as estórias e os causos que nossos avôs, nossas avós partilha- ram, no sentido de fornecer exemplos de atitudes, de ideais a serem almejados, influenciando na construção de identidade, no senso de coletividade e na percepção de mundo. Claro que, se considerarmos essas histórias como produto de massa vinculado a uma indústria cultural e todas as implicações correlacionadas, esses exemplos de atitudes e ideais podem ser questionados e avaliados criticamente. No entanto, isso não muda o fato de que os super-heróis e as super- heroínas hoje têm se tornado modelos de comportamento e expres- são de nossos ideais e visões da realidade. Seu papel consiste em ser simultaneamente uma válvula de escape e um símbolo ora mais, ora menos difuso que pode orientar nosso caminhar. (apud MARINO, 2016, s.p.)

Jill Lepore (s.d., s.p.) salienta que os acontecimentos na sociedade norte- americana e o feminismo dos anos 1970, de certo modo, promoveram um resgate do conceito pensado por Willian Moulton Marston, morto em 1947, para a Mulher Maravilha. Contemporiza as discussões feministas e suas relações com a figura da personagem e os acontecimentos na sociedade norte americana

‘Lovely and Wise Heroine Summoned to Help the Feminist Cause’,the New York Times announced. The Los Angeles Times de- clared Wonder Woman ‘The Movement’s Fantasy Figure’. In Novem- ber 1972, during the week of the presidential election, wire-service stories about the return of Wonder Woman were published all over the country. By May 1973, Ms. and Warner were wondering, together, whether they might manufacture and market a Wonder Woman doll. In July 1973, a women’s health collective in Los Angeles featured Wonder Woman wielding a speculum on the cover of a newsletter dedicated to teaching women how to conduct their own vaginal ex- ams.

In 1973, the year Wonder Woman was named a ‘symbol of feminist revolt’, the Supreme Court issued a ruling legalizing abortion. But the aftermath of Roe v. Wade didn’t bolster the feminist movement; in- stead, it narrowed it. If 1972 was a legislative watershed, 1973 marked the beginning of a drought. Some gains were lost; others proved illusory. Even the idea that DC Comics was hiring Dorothy 125

Roubicek Woolfolk to edit a new Wonder Woman comic book and ‘re- turn our heroine to the feminism of her birth’ turned out to be wrong.

Gloria Steinem saw some of the Diana Prince Era issues and said, ‘What’s happened to Wonder Woman? You’ve taken away all her su- per-powers. Don’t you realize how important this is to the young women of America?’ (LEPORE, s.d.,s.p.)

No documentário Comic Book Superheroes Unmasked (2016), constatamos que, no período em que Dennis O’Neil foi responsável pelas histórias da heroína (1968 a 1972), ele fez mudanças que destruíram a imagem da personagem. Retirou seus poderes e a transformou em uma especialista em artes marciais, além de dar- lhe um mestre oriental nessa área. A jornalista e ativista feminista Gloria Steinem criticou arduamente essa mudança, pois, ao retirar os poderes e as características que a faziam ter representatividade no mundo dos super-heróis, ele retrocedeu à imagem da heroína nas questões da igualdade dos sexos. O’Neil concordou com Steinem, e também a DC Comics, que voltou atrás, de- volvendo as características iniciais à personagem. Embora a personagem tenha di- versas situações controversas em sua atuação nos quadrinhos, para Gloria Steinem

Wonder Woman's family of Amazons on Paradise Island, her band of college girls in America, and her efforts to save individual women are all welcome examples of women working together and caring about each other's welfare. The idea of such cooperation may not seem particularly revolutionary to the male reader. Men are routinely de- picted as working well together, but women know how rare and there- fore exhilarating the idea of sisterhood really is.

Wonder Woman's mother, Queen Hippolyte, offers yet another wel- come example to young girls in search of a strong identity. Queen Hippolyte founds nations, wages war to protect Paradise Island, and sends her daughter off to fight the forces of evil in the world...

Wonder Woman symbolizes many of the values of the women's cul- ture that feminists are now trying to introduce into the mainstream: strength and self-reliance for women; sisterhood and mutual support among women; peacefulness and esteem for human life; a diminish- ment both of ‘masculine’ aggression and of the belief that violence is the only way of solving conflicts. Steinem (1972, apud NYPL, 2016, s.p.)

Mesmo hoje, a Mulher Maravilha suscita discussões sobre sua representativi- dade. Embora Lepore (s.d., s.p.) afirme que Diana foi criada para promover um novo padrão de feminilidade, exercendo ocupações e profissões diversas, além de partici- par de aventuras utilizando seus poderes e valores, até hoje a heroína enfrenta opo- sições de grupos feministas quanto ao seu papel e sua representatividade. 126

Em 21 de outubro de 2016, a Mulher Maravilha foi nomeada embaixadora ho- norária da ONU para o empoderamento de mulheres e meninas pelas Nações Uni- das (ONU, 2016). De acordo com a instituição, a tarefa da heroína visava “dar visibi- lidade ao 5º Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS), que busca alcançar a igualdade de gênero e o empoderamento de mulheres e meninas até 2030” (ONU, 2016, s.p.). Mas, após muitas críticas e petições on-line, a ONU desistiu de usar a Mulher Maravilha em campanha porque

Os críticos da nomeação da Mulher Maravilha dizem ser preocupante o fato de o organismo ter escolhido uma personagem ‘explicitamente sexualizada’ para representar uma campanha pela prevenção da vio- lência de gênero. ‘Embora os criadores da Mulher Maravilha possam ter buscado representar uma 'guerreira' forte e independente com uma mensagem feminista, a realidade é que a representação atual da personagem é de uma mulher branca, de seios grandes, com proporções impossíveis’, afirma uma petição online assinada por quase 45 mil pessoas. (Folhapress, 2016, s.p.).

O discurso de oposição de muitas mulheres à Mulher Maravilha se confirma, por exemplo, na declaração de um dos mais renomados artistas dos quadrinhos, o brasileiro contratado pela DC Comics, Mike Deodato que desenhou a Mulher Maravi- lha. No documentário HQ da HBO, no Brasil, episódio 7 da 1ª temporada, o artista declara: “Comecei tímido, né? Com a roupa dela normal. (...) Eu transformei o sím- bolo do feminismo numa piriguete (risos. (...) Eu odiava a Mulher Maravilha (...) Anos 90, exagero era tudo” (HBO, 2016, s.p.). A história da Mulher Maravilha motivou-nos para a pesquisa ajudando a cons- truir e delinear nosso problema. Confirmamos violências patriarcais e a forma como, em sua história, as representações de mulheres trabalhadoras nos quadrinhos, no passado ou presente, não foram/são aceitas de modo inconteste pelas mulheres na sociedade ocidental. As representações femininas nos comics encontraram diversi- dade de opiniões, não somente entre suas leitoras, mas também entre intelectuais, estudiosas e ativistas feministas. Com inúmeras discussões sobre as incompatibili- dades entre as proposições feministas e o papel de uma supermulher nos quadri- nhos, o que se pode falar sobre as mulheres comuns neles representadas? Quem são elas? 127

3 WHO´S THAT GIRL?

3.1 ENTRE ASSÉDIOS E ASSEDIADORES: DONA TETÊ E SOLDADA BLIPS NO QUARTEL

Quando os Estados Unidos participaram de guerras no século XX, algumas HQs adotaram a temática em diversos episódios. Foi assim durante a Segunda Guerra e igualmente durante a Guerra da Coréia, quando os quadrinhos do Recruta Zero foram criados. Esses quadrinhos contam não somente piadas contra o sistema militar, já que os soldados e oficiais ali são a antítese do que se espera de um corpo militar em um quartel, como também veiculam muitas mensagens sexistas, como a permanência das mulheres nos trabalhos designados pelos homens e os assédios morais, psicológicos e sexuais contra elas. Apesar de quase setuagenárias, até me- ados dos anos 2000, as tirinhas do Recruta Zero, produzidas em 1950, por Mortimer Addison Walker, já haviam sido publicadas em cerca de 1.800 jornais pelo mundo. Assinando como Mort Walker, ele era tido como “um dos mais bem sucedidos quadrinistas norte-americanos” (GOIDA, 2011, p.497). Era formado em jornalismo e esteve em campos de batalha na Europa, durante a Segunda Guerra Mundial. Ser- viu ao exército durante quatro anos e retornou como primeiro-tenente de infantaria. Inicialmente, o autor enviou a tira para apreciação do King Features Syndicate, sob a temática de calouros universitários, durante a Guerra da Coréia. Embora o King Features Syndicate tenha comprado sua tira, pressionou Mort Walker para troca do nome do personagem, porque, emseu entender, o nome inicial do personagem (spider) “assustaria os leitores” (OTA, 2014, p.5). Essa decisão evi- dencia o poder que as companhias exerciam (e ainda exercem) sobre os artistas e suas obras. Existem limites para a liberdade criativa, e eles são determinados pelo poder monetário e de produção das grandes corporações que publicam os quadri- nhos. As decisões sobre como devem ser os personagens permitem inferir que o mesmo acontece com outros aspectos, tais como o desenho, a personalidade do personagem, os enredos, as cores... Mort Walker aceitou as imposições da agência e, assim, ele criou Beattle Ba- 128

ley, conhecido no Brasil como Recruta Zero. Mas, com a vendagem ruim e a iminên- cia de suspensão das tiras, o autor teve a ideia de alistar o universitário no exército, em março de 1951. O exército baniu o personagem de seu jornal oficial, o Star and Stripes (edição japonesa), provocando o aumento da vendagem das tiras nos EUA (OTA, 2014, p.5). O licenciamento dos personagens ocorreu em 1951 pela Dell Co- mice, em 1953, havia mais de 150 edições publicadas por diversas editoras. As his- tórias foram publicadas em livros e pocket books compilando tiras originais (2014, p.5), fato que também ocorreu no Brasil, mais recentemente. Em nosso entender, os quadrinhos do Recruta Zero também ofereciam, e a- inda oferecem, os corpos femininos para o deleite dos machos, além de expandir geograficamente o olhar masculino, já que foram difundidos em diversos países pelo mundo. As representações gráficas de muitas mulheres nesses quadrinhos visaram, exclusivamente,ao entretenimento sexual dos soldados – especificamente no caso de Dona Tetê. A criação das tiras enfrentou diversos problemas. O jornal Correio da Paraíba (2010) publicou uma entrevista com o autor,na qual ele afirmava:

no começo, o exército não gostou de me ver fazendo graça deles e não deixou Zero ser publicado nos jornais militares (...). Então, os lei- tores deles reclamaram e eles começaram a usar minha tira. E ela se provou tão popular que eles, afinal, me deram um prêmio e houve uma grande parada em minha homenagem no gramado da Casa Branca. (WALKER, 2010, s.p.).

O Quartel Swampy, onde é ambientada a maioria das histórias do Recruta Ze- ro,é povoado por personagens considerados exóticos. São tipos diversos, entre os quais são mais conhecidosMiss Buxley (Dona Tetê) e a soldada Blips, secretárias; o caipira Dentinho; o paquerador Quidim (Killer); o intelectual Platão; o revoltado Ro- que; o cozinheiro Cuca; o cabo Roque; o Tenente Escovinha; o General Dureza; o Sargento Tainha (principal antagonista do Recruta Zero), com seu cachorro Oto (humanizado, uniformizado e filosófico); além de diversos soldados genéricos. Para consolidar nosso entendimento dos quadrinhos como fragmentos da rea- lidade, destacamos que Walker admitiu que seus personagens foram inspirados em pessoas que conheceu. Assim, a construção dos seus personagens teve influências de aspectos físicos, psicológicos e comportamentais de pessoas reais. Para ele “al- guns são mais engraçados que outros. Eu gosto do Zero, do sargento e do general. 129

A Dona Tetê (a secretária bonita do general) não é engraçada, mas eu a adoro” (WALKER, 2010, s.p.). Para nossas análises, selecionamos 3 dos 4 exemplares da coleção O Livro de Ouro do Recruta Zero, produzidos em capa dura e publicados no Brasil, entre os anos de 2014 e 2016, pela Pixel Media, empresa pertencente ao grupo de editoras da Ediouro Publicações. As empresas Ediouro Publicações, fundadas pelos irmãos Jorge e Antonio Gertum Carneiro, começaram suas atividades em 1939, a partir da criação das Publicações Pan Americanas. Na década de 1940, as dificuldades fi- nanceiras com as importações e o papel fizeram com que os fundadores criassem a Editora Gertrum Carneiro. Com o tempo, a empresa ampliou os negócios, adquirindo uma gráfica, tornando-se conhecida no mercado a partir da publicação de livros de bolso entre os anos 1940 e 60. A fusão entre a editora e a gráfica deu origem a Edi- ções de Ouro, nome atual do grupo29. Entre a década de 1990 e2014, a empresa adquiriu diversas outras,como es- tratégia de reestruturação administrativa, e modernizou suas unidades de negócios que compreendem quadrinhos, livros e gráfica. Essas mudanças promoveram o sur- gimento da Pixel Media, especializada em quadrinhos no Brasil, em “parceria com a DC Comics, gigante norte-americana nesse segmento” (MEIOS NO BRASIL, 2016, s.p.). A Pixel Media recebeu, em 2008, o troféu HQ MIX como editora de quadrinhos daquele ano. A coleção utilizada para as análises é composta por 4 volumes e contém, con- forme a editora, as “melhores” tiras dominicais publicadas em jornais no período de 1950 a1990. Selecionamos exemplares que cobrissem a periodização proposta para a pesquisa:n.1 – um compilado de tiras produzidas nos anos 1980; n.3 - abrange a seleção das tiras dominicais de 1963 a 1994; e o exemplar n.4, que contém as cha- madas tiras do “período áureo” (anos 1980 e 1990). Nossa seleção contempla assim tiras que “vão da primeiríssima, de 1950, até o finzinho dos anos 1990” e que co- brem “meio século de existência de uma das mais populares tiras de quadrinhos nor- te-americanas” (2016, p.3) reproduzidas no Brasil. Os volumes da coleção analisada são compostos por quadrinhos coloridos.

29 Informações resultantes da investigação empírica Estudo de Propriedade e Concentração de Mídia no Brasil, desenvolvido no Programa de Pós-Graduação em Comunicaçãoda Universidade do Estado do Rio de Janeiro desde 2009. Hoje na sua terceira fase (2015-2018), a pesquisa analisa as configu- rações de propriedade dos grupos de mídia e de telecomunicações no Brasil e o fluxo das fusões, aquisições e de investimento do capital estrangeiro no setor (MEIOS NO BRASIL, 2016, s.p.). 130

Estão subdivididos em capítulos que,emalguns casos, levam os nomes dos perso- nagens com protagonismo nas tirinhas, ou então abordam determinadas qualida- des/valores atribuídos a elescomo, por exemplo, o volume 1 com um capítulo deno- minado “O pecado mora ao lado”,composto por tirinhas em que Dona Tetê é a per- sonagem principal. Tratamos de analisar especificamente as duas personagens, secretárias: a Soldada Blips, que fazia parte do grupo desde o início e é militar; e a outra secretá- ria,declaradamente inspirada em Marilyn Monroe, conforme Walker, conhecida co- moMiss Buxley ou Dona Tetê, no Brasil. Miss Buxley surgiu em 1971. Ela é uma civil que foi escolhida para cobrir férias da Soldada Blips. O fato de ser civil justificaria sua liberdade para não usar fardamento militar. Assim, ela é apresentada ao general em trajes diminutos desde o primeiro momento (FIGURA 22).

Figura 22 -O Livro de Ouro do Recruta Zero. n. 4, 2016, p.114

Dona Tetê sempre tem o corpo em evidência nos quadrinhos, vive se esqui- vando de assédios sexuais no quartel, especialmente os que são cometidos pelo velho general, seu chefe direto. O editor informa que “ela sempre gerou polêmica, tendo seu autor sido acusado de machismo inúmeras vezes. Mas, assim como o General, os leitores nunca deixaram de apreciar os encantos de Dona Tetê...” (OTA, 2014, p.5). Dona Tetê é um personagem que surge em meio às demandas do femi- nismo pelo acesso ao trabalho na esfera privada e pública, além das discussões e legislação sobre assédio sexual e direito ao próprio corpo. Em 1966, Betty Firedan fundou, nos Estados Unidos, a Organização Nacional para Mulheres (NOW), uma das mais importantes e poderosas organizações femi- nistas para as mulheres. Essa organização ilustra uma fase do feminismo que foca- va na desigualdade, exploração e opressão às mulheres. A fase denominada femi- nismo liberal denunciava a exclusão das mulheres em atividades do setor público, e 131

também reivindicavam maior participação das mulheres no mercado de trabalho. Um dos setores da organização se ocupava de formar e promover mulheres para ocupa- ção de cargos públicos (GARCIA, 2011, p.85). Em 1968, apenas três anos antes do surgimento de Dona Tetê, o Movimento de Liberação das Mulheres realizou marcha de protesto contra o concurso Miss A- mérica, visando combater o estereótipo da representação da mulher como objeto e romper com a tradição do modelo de feminilidade e padrão de medidas da beleza (GARCIA, 2011, p.88). Para isso, atiraram soutiens, sapatos de salto e cosméticos no que chamaram de a “lixeira da liberdade”. Reivindicavam, assim, seus corpos, a diversidade de mulheres e autonomia quanto à própria feminilidade, sem imposição de padrões. Na segunda metade da década em que Dona Tetê surgiu nos quadrinhos, os Estados Unidos passaram a criminalizar a conduta denominada sexual harassment, termo cunhado pelas pesquisadoras feministas da Universidade de Cornell.A ex- pressão surgiu depois de um episódio na universidade30. As pesquisadoras busca- ram explicitar que o assédio às mulheres ocorria no ambiente de trabalho, pela inti- midação dos superiores hierárquicos para obter favores sexuais dos subalternos por meio daimposição do medo da perda do empregoou outras ameaças.O Women’s Liberation Movement passou a provocar e desafiar o sistema judicial do país e a cul- tura daquela sociedade, promovendo campanhas, sessões de conscientização e troca de relatos de experiências entre as mulheres sobre os abusos sexuais pelos quais passavam nos ambientes de trabalho. As manifestações femininas provocavam escândalo, mobilizavam a opinião pública e promoviam novas formas de organização das mulheres, em que a auto- consciência sobre a opressão em que viviam pudesse ser discutida e repensada,a fim de provocar novas posturas diante do patriarcado. Ainda que tenha começado a haver mudanças na sociedade estadunidense em relação ao assédio sexual, e ainda

30 Em Time.com, Sascha Cohen explica que uma ex-funcionária da universidade, Carmita Wood, entrou com um pedido de subsídio de desemprego depois que ela se demitiu de seu emprego devido ao toque indesejado de seu supervisor. Cornell havia recusado o pedido de Wood para uma transferência e negou-lhe os benefícios com o argumento de que ela desistiu por "razões pessoais". Wood, juntamente com ativistas no Departamento de Assuntos Humanos da universidade, formou um grupo chamado Working Women United. Em um evento organizado pelo grupo, que incluía secretárias, atendentes de correio, cineastas, operárias e garçonetes, compartilharam suas histórias, revelando que o problema se estendeu além do ambiente universitário. As mulheres falaram de exposições masturbatórias, ameaças e pressão para trocar favores sexuais para promoções. (Time, 2016. Tradução livre). 132

que os movimentos feministasos denunciassem na vida real, nos quadrinhos do Re- cruta Zero, os assédios morais, físicos e sexuais constituíam – eainda constituem, mesmo que relacionados a um determinado período – a tônica ficcional em torno das personagens Dona Tetê e da soldada Blips. De fato, os assédios ocorrem todo o tempo etambém com os homens, sob os usos do humor, mas verificamos que contra eles não foram observados assédios sexuais nas tirinhas dos mesmos volumes ana- lisados. As especificidadesdas violênciascom relação às secretárias, sujeitos da pes- quisa, consiste no esforço em compreender nos quadrinhos a “forma como se rela- ciona com a totalidade, no caso, a sociedade” (VIANA, 2013, p.47).Sobre essa tota- lidade, as secretárias nos quadrinhos do Recruta Zero exprimem traços das ocor- rências de assédio para com as mulheres trabalhadoras na sociedade norte- americana. Também refletem um fragmento dos motivos abordados pelo feminismo e as suas organizações mais conhecidas no período. Em muitas ocasiões, houve, nos Estados Unidos, protestos contra os abusos vividos pelas secretárias nos quadrinhos do Recruta Zero. Jotabê Medeiros (2010, s.p.), na reportagemO Recruta que bagunça quartéis,publicada no Estado de S. Paulo,informa que o Jornal Tribune, de Minneapolis, suspendeu os quadrinhos do Recruta no dia 4 de março de 1981, emdecorrência da briga entre as feministas e o autor do Recruta Zero. Um comunicado foi publicado no lugar onde deveria estar a tirinha: “Beattle Bailey não aparece hoje na página de quadrinhos porque o tema foi considerado sexista pelos editores” (MEDEIROS, 2010, s.p.). O general Dureza é descrito como um homem que “só se interessa pelas pernas da secretária” e, mais adiante, informa que Dona Tetê “concentrava as fantasias masculinas, e não porque era a única mulher na área...” (2010, s.p.). É impossível não inferir a que se referem às reticências utilizadas pelo jornalista. No Quartel Swampy,a outra secretária a serviço do general, Soldada Blips, é a antítese de Dona Tetê. Seu corpo é caracterizado sem voluptuosidade, magro e sem curvas. Seu rosto também é distinto do que a personagem tinha quando surgiu como recruta nas historinhas. Na maioria das histórias analisadas, ela não aparenta juventude e utiliza fardamento militar sóbrio. Blipsdemonstra competência profissio- nal e é nítido que ela não passa por assédio sexual, pois o aspecto físico da perso- nagem é oposto às formas voluptuosas de Dona Tetê, que usa, invariavelmente, vestidinho curto, sempre na cor preto ou vermelho (MEDEIROS, 2010, s.p.), e rece- 133

be as cantadas dos homens do quartel. O não assédio à soldada Blips consiste jus- tamente em sua carcaterização fora dospadrões considerados de beleza e de volup- tuosidade, em comparação à Dona Tetê. Elaboramos um quadro com um levantamento das situações em que nossas personagens são protagonistas das tirinhas. Especificamos o número de vezes e quais as temáticas de assédios mais recorrentescontra Dona Tetê e a Soldada Blips.

Quadro 1 - Temas das narrativas com protagonismo das secretárias Livro de Ouro do Recruta Soldada Dona Volume 1 Volume 3 Volume 4 Zero Blips* Tetê** 22*/49** 6*/20** 19*/19** Situações Situações Situações Beleza X 0*/6** 2** 1*/1** Corpo X X 1*/8** 1* Roupa X X 3** 1*/6** Competência profissional X 2** – Salário X 1* – Ofensa à aparência X 1* Gestual / rebolado X 3** – Discussão sobre assédio X X 3*/3** – sexual Total 5*/25** 2** 4*/7** Fonte: Elaborado pela autora

Para nossas análises, não perdemos de vista a proposta de Viana (2013, p.7) sobre o universo ficcional dos quadrinhos, “constituído por um acontecimento se- quencial apresentado em narrativa” e dimensão espaço-temporal. Também conside- ramos que, como expressão “figurativa da realidade”, é necessário identificar as mensagens transmitidas, buscando observaros valores, ideologemas, teoremas, concepções, sentimentos etc. Para o autor, mesmo “um pequeno trecho de uma HQ pode mostrar esse procedimento analítico proposto e suas possibilidades” (2013, p.69), o que justifica os números encontrados. Ainda sobre a Soldada Blips, o jornalista diz que “a outra secretária do coronel Dureza é inteligente, mas não tem os dotes de Dona Tetê” (2013, p.69). Os privilé- gios que Dona Tetê temem relação a Blips,nas narrativas, estão sempre vinculados a sua aparência. Em algumas situações, ela, de fato, obtém vantagens sobre a sua colega, pela beleza que possui. Para nós, esses detalhes caracterizam determina- dos aspectos da cultura machista, que “parece se sentir melhor ao imaginar duas 134

mulheres juntas se elas puderem ser definidas como um fracasso e um sucesso de acordo com o mito da beleza” (WOLF, 1992, p.78). Invariavelmente, isso acontece nas historinhas em que as duas personagens aparecem. Em diversas ocasiões, é evidente que Dona Tetê consegue o que quer pela sua beleza, e sem fazer qualquer esforço intelectual ou de crescimento na carreira. Mas notamos que isso não ocorre de forma intencional de sua parte. Essa situação se aproxima das contestaçõesde Wolf (1992, p.59) sobre estudos segundos os quais as mulheres usam deliberadamente o poder da beleza para progredir. A mensagem nesses quadrinhos dá a entender que Dona Tetê, a bela e sexy secretária, pode fa- zer o que quiser e conseguir privilégios justamente porseus encantos de beleza e sexualidade. Percebemos que essa mensagem é ratificada na figura 23.

Figura 23 -O Livro de Ouro do Recruta Zero. n.1, 2014, p.25.

A tônica da vestimenta de Dona Tetê é levada a um nível mais acintoso na tiri- nha da página 90, na qual ela aparece andando pela área do quartel com um micro- vestido também muito decotado, enquanto é observada por Quindim e pelo Recruta Zero, que estão diante dela. Nesse quadro, Quindim diz que “as curvas têm uma es- tranha particularidade”. No quadro seguinte, Dona Tetê é vista de costas enquanto os soldados viram suas cabeças e a observam. Quindim conclui seu raciocínio: “São bo- nitas de qualquer ângulo que se olhe!” Esse soldado, que nos Estados Unidos rece- beu o sugestivo nome de Killer, é caracterizado como paquerador – para nós, um as- sediador. A inspiração para criá-lo veio da observação dos desenhos animados em que

o Lobo era tarado por aquela Ruiva dos desenhos clássicos feitos por Tex Avery para a MGM em 1945. Uma das características do Lo- bo era que suas orelhas se mexiam quando ele ficava empolgado. Com Quindim eram as pontas do seu chapéu. (MEIOS NO BRASIL, 2016, p.42).

135

Sempre que vê uma mulher que o interessa, as pontas de seu chapéu rece- bem sinais gráficos que indicam vibração. Esse particular indica também, para nós,tensão sexual e,possivelmente, uma ereção. Nas páginas 114 e 115, as tirinhas começam com o título “O pecado mora ao lado”. A temática é centrada nos atributos físicos da personagem Dona Tetê – volup- tuosidade, juventude, poucas roupas e trajes justos e decotados. Ainda assim, na cena que abre o capítulo, Dona Tetê aparece vestida com calças e blusa. Ela passa diante do General e de um dos oficiais. Ambos a observam calados. Essa cena, ali- ada ao título sugestivo do capítulo, indica que há um “modo de ver” a mulher objeto de desejo (BERGER, 1972). As primeiras tirinhas desse capítulo estão dispostas na parte superior das pági- nas. O layout assimétrico deixa um dos quadros na primeira página e, após a dobra central da revista, estão os demais. Nessa tirinha, o general está diante da janela de sua sala, observando Dona Tetê que caminha na área externa do quartel. Ele diz: “Gosto de chegar ao gabinete cedo e ver a Dona Tetê chegando para trabalhar!”. Ele segue dizendo no quadro seguinte: “O sol da manhã faz brilhar seus cabelos doura- dos... O ritmo como ela anda...” enquanto diz isto, o recruta Zero e o Sargento Tainha se aproximam, caminhando –vê-se que irão passar diante da janela do general inter- ceptando o seu campo de visão. Então, no último quadrinho, o general está com a cabeça para fora da janela gritando de punho em riste para os dois homens: “Saiam da minha fantasia!”. Uma interrogação paira sobre a cabeça do Recruta Zero, indican- do que ele não entende o que está acontecendo. Ao mesmo tempo, um pensamento aparece na cabeça do Sargento Tainha: “O que deu nele?”. Atrás dos dois homens, está Dona Tetê aproximando-se e alheia à situação (FIGURA 24).

Figura 24 -O Livro de Ouro do Recruta Zero. n.1, 2014, p.114-115.

Na mesma página 115, em outros dois quadrinhos, na parte inferior da pági- na, a primeira cena mostra Dona Tetê de vestidinho preto, curto e justo. Ela está no 136

canto esquerdo e caminha saindo da cena. Tem um papel na mão. No meio da ce- na, está o general sentado à mesa e um oficial ao seu lado, ambos estãosorrindo e com os rostos virados em direção à Dona Tetê. Do lado direito da cena, está a sol- dada Blips, de uniforme militar e sapatos sem salto, vermelhos. O General diz: “A presença de Dona Tetê ilumina o gabinete, no sentido literal da palavra!”. A soldada Blips diz: “Ei! Espere aí!”. No quadro seguinte, os homens viram as cabeças e olham para ela que segue: “Sou eu quem acende as luzes do gabinete todas as manhãs!”. A tônica não trata somente do assédio à imagem de Dona Tetê, mas faz piada com relação à inteligência da secretária, incapaz de perceber o espírito da conversa, in- capaz de compreender a situação (FIGURA 25).

Figura 25 -O Livro de Ouro do Recruta Zero. n.1, 2014, p.115.

Na página 116, o primeiro quadrinho apresenta uma cena em que a sala de trabalho das secretárias está em primeiro plano. Ao fundo, é possível observar a porta de entrada para sala do general e diante dela passa Dona Tetê. O general está com um oficial (que sorri) na sala. Os dois homens olham Dona Tetê passando en- quanto o general diz: “Acho que o corpo feminino tem algo de artístico!”, enquanto o oficial concorda: “É verdade!”. No quadro seguinte, veem-se apenas os dois rostos dos homens que dialo- gam. O general segue dizendo: “A perfeição de cada curva é um verdadeiro prazer para os olhos!”; enquanto o oficial responde: “E a simetria, a plasticidade das for- mas, as proporções perfeitas!”. No último quadro, veem-se os dois homens no plano de fundo à esquerda, enquanto Dona Tetê está ao lado da mesa da Soldada Blips. A soldada e Dona Tetê olham para eles enquanto Blips aponta para ambos e diz, iro- nicamente: “Temos dois amantes da arte aqui!”. De fato, nesses quadrinhos, as mulheres ouvem o que está sendo dito pelos homens. Elas confirmam que o assédio foi feito de modo audível (FIGURA 26). Ou- tro aspecto a destacar remonta às proposições de Berger (1972) e as relações entre 137

o desnudo feminino e a arte –o assédio dos homens que ganha contornos de elogio artístico dissimulando a ideia sexual. De certo modo, esses quadrinhos trabalham a ideia de que um galanteio de tal natureza deve ser aceito, naturalizado e permitido por se tratar de arte.

Figura 26 -O Livro de Ouro do Recruta Zero. n.1, 2014, p.116

Essa tirinha traz o tema “arte” na piada, sendo ela mesma uma arte visual gráfica. Outra vez, a narrativa nos remete às proposições de Berger (1972) sobre os modos de ver – de como se vê o corpo feminino, a mulher desnuda. A fala do gene- ral é sobre o seu corpo. O corpo de Dona Tetê é exposto pelo tipo de roupa que usa. Concordamos com Nead (2013) que a nudez da mulher na arte pode ser compreen- dida como meio de controle do corpo, sem estabelecer regras, mas, principalmente, uma forma de “situarlo en las fronteras seguras del discurso estético” (2013, p.13). O corpo na arte propõe formas para ser elaborado e visualizado. Então, refletimos so- bre quais formas de visualizar o corpo de Dona Tetê são possíveis no diálogo dos dois homens nesta tirinha. Para Nead,

El ideal ilustrado de La visión contemplativa de um objeto artístico funciona como refuerzo a la unidad y la integridad del sujeto que mira y establece uma oposición entre la perfección del arte y la ruptura y el carácter defectuoso de lo que no es arte, o sea la obsceni- dad.(2013, p.13)

Ora, ao tratar do corpo de Dona Tetê sob o tema arte, o discurso dos homens estaria justificando sua admiração e apreciação pela estética, pelo belo e, desse modo, não poderia ser considerado assédio. Um meio arguto de tecer o assédio. Nessa mesma página, a tirinha subsequente é composta por apenas dois quadrinhos. No primeiro quadrinho e em primeiro plano, o general está em sua sala com um oficial. Em sua cadeira, ele observa Dona Tetê no minúsculo vestido preto. Ela segura um papel na mão enquanto passa em frente à porta da sala. Ela está em 138

segundo plano. O general diz: “Pra lá e pra cá... Pra lá e pra cá...”. O oficial que a- companha o general comenta: “Dona Tetê anda um bocado!”. No último quadrinho, a cena se inverte, e vê-se Dona Tetê em primeiro plano, com o grafismo que sugere o movimento de suas nádegas. Enquanto isso, os dois homens estão no plano de fundo e são vistos desde a porta de entrada da sala. O General responde ao comentário do oficial: “Estou falando do rebolado dela!” (FI- GURA 27), o oficial emudecido olha para o general.

Figura27 -O Livro de Ouro do Recruta Zero. n.1, 2014, p.116.

Nos dois últimos quadrinhos da página 116, vê-se Dona Tetê, o general e seu oficial em sua sala. No primeiro quadrinho, Dona Tetê pergunta: “onde está o arqui- vo do estoque?”. O general responde apontando para um móvel atrásda secretária: “Está debaixo daquela mesa!”. No último quadrinho, os dois homens estão olhando para Dona Tetê que está abaixada manuseando no arquivo. Ao abaixar-se, suas pernas e quadril ficam totalmente expostos aos olhares dos dois homens. O oficial pergunta: “Por que mandou colocar ali?” E o general responde: “Para dar uma apa- rência melhor ao gabinete!” (FIGURA 28).

Figura28 -O Livro de Ouro do Recruta Zero. n.1, 2014, p.116.

Nessas duas tirinhas, o superior hierárquico de Dona Tetê ratifica, na narrati- va, a heterodesignação para as mulheres tratada por Beauvoir, em que “os homens lhes impõem que não assumam sua existência como sujeitos, mas que se identifi- 139

quem com a projeção que nelas fazem de seus desejos” (apud GARCIA, 2011, p.11). O desejo do general é lascivo sobre as roupas, o corpo, os movimentos da secretária. Ele provoca situações para que a secretária esteja em posições (inclusive físicas) que proporcionemseu deleite e suas fantasias no escritório. Masnão é so- mente o assédio sexual do general à Dona Tetê que pode ser observado nas narra- tivas. Ao mesmo tempo, aproximamo-nos das reflexões de Nead (2013, p.25) quan- do trata da anorexia e da forma como as mulheres se veem refletidas de modo dis- torcido. A questão dos padrões de beleza e do papel de objeto sexual impostos nes- ses quadrinhos sugerem influências para homens e mulheres porque

el cuerpo femenino como representación, en que la mujer desempe- ña a la vez el papel de objeto visto y del sujeto que vê, forma y juzga su imagene contrastádola com ideales culturales, y ejerce uma enorme autorregulación.(2013, p.25).

Assim, consideramos que os quadrinhos, nessa tirinha, sugerem mensagens para as mulheres sobre regulações que lhes são impostas a partir de um padrão de beleza, de corpo, de comportamento de aceitação de determinados elogios dos ho- mens e de vestimenta. O sentido dessa tirinha indica como as mulheres subalternas podem/devem ser vistas, tratadas e comentadas, ratificando os corpos femininos a serviço do desejo masculino. Tais quadrinhos sugerem qual o tratamento a ser dis- pensado a uma mulher que usa determinadas roupas. Nossas reflexões consideram que a imagem da representação feminina nos quadrinhos, em algumas ocasiões, funciona como um espelho. A imagem feminina nos quadrinhos pode refletir aspectos que tendem a reforçar padrões estéticos im- postos às mulheres na vida real. Na página 117, a primeira tirinha é composta por dois quadrinhos que voltam à tônica da comparação entre duas mulheres, a fim de apontar fracasso e sucesso frente ao mito da beleza proposto por Wolf (1992, p.78). No primeiro quadrinho, a Soldada Blips está no plano de fundo da cena, a- brindo os braços e questionando o general: “Por que a Dona Tetê nasceu com aque- le corpo e eu com este?”. Ambos olham Dona Tetê, que está em primeiro plano com uma camiseta vermelha bem decotada, deixando metade dos seios à mostra. No último quadrinho, a Soldada Blips e o general seguem olhando para dona Tetê, que se afasta alheia à conversa. Vê-se que ela está usando calças. Enquanto isso, Sol- dada Blips comenta: “Talvez esteja tudo nos genes!”, ao que o general responde “Ou 140

nos jeans!” (FIGURA 29).

Figura29 -O Livro de Ouro do Recruta Zero. n.1, 2014, p.117

Mais uma vez, o recurso gráfico que indica movimento/rebolado aparece dese- nhado junto às nádegas de Dona Tetê, mostrando que não é ao jeans que o general se refere. A pergunta de Blips não só evidencia a queixa de uma mulher para alcançar um padrão de beleza, como também sugere uma competição entre a que tem deter- minado corpo e outra que não o tem. Essa comparação presente no discurso de Blips- reflete o questionamento das mulheres que não atendem ao estabelecido culturalmen- te, os estados de dúvida sobre a própria aparência. A mensagem por trás da pergunta deixa claro que é preciso ter um determinado corpo. A outra mensagem possível é que a beleza é fator condicionante para o sucesso da mulher no trabalho. Em mais duas tirinhas, o corpo da soldada Blips é comparado ao de Dona Tetê (FIGURAS 30 e 31).

Figura30 -O Livro de Ouro do Recruta Zero. n. 4, 2016, p.115.

Figura31 -O Livro de Ouro do Recruta Zero. n. 4, 2016, p.116.

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A tônica da pouca roupa de Dona Tetê e do seu corpo segue em determinada tirinha na página 117. A Soldada Blips caminha para perto de Dona Tetê, que está sentada. Ela usa um minivestido vermelho, justo, decotado e com uma fenda lateral que vai até os quadris. Blips diz à Dona Tetê: “O general quer ver você por causa desse vestido!” e ela responde: “Será que é porque ele não gostou?”. No último quadrinho, Blips lhe dá as costas enquanto, com um semblante enfadado e irônico, diz: “Ele gostou! Por isso mesmo quer ver você!”. Dona Tetê está boquiaberta e não responde (FIGURA 32).

Figura32 -O Livro de Ouro do Recruta Zero. n.1, 2014, p.117

A tirinha seguinte, formada por três quadrinhos,segue com a temática da ves- timenta. Soldada Blips está em frente à mesa falando com o general. Ambos estão em segundo plano e olham para Dona Tetê, que está em primeiro plano, saindo da sala. Ela veste seu microvestido preto. Com as mãos na cintura e o cenho franzido, a soldada Blips diz: “Essa não é uma roupa apropriada para se usar no escritório!”. No segundo quadrinho, embora menor, seu rosto está em close tomando quase todo o espaço, e as sobrancelhas ainda estão cerradas indicando raiva, e- xasperação. Ela diz: “Afinal, aqui é um o local de trabalho!”. No último quadrinho, o general está com os braços cruzados sobre a mesa e tem o cenho fechado enquanto responde: “Já que mencionou trabalho, por que não vai fazer o seu?” (FIGURA 33). Nessa tirinha, veem-se os “privilégios” dos usos da pouca roupa e da beleza no ambiente do escritório. Sugere-se que, com tal vesti- menta e corpo, a mulher tem liberdade dentro do local de trabalho e conta com apoio do superior.

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Figura33 -O Livro de Ouro do Recruta Zero. n.1, 2014, p.117

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A última tirinha da página é composta por dois quadrinhos: no primeiro, Blips está em sua escrivaninha. Vê-se um jarro com flores e uma máquina de datilografia onde há um papel. Em frente à mesa, Dona Tetê está parada com as costas da mão esquerda apoiada no quadril, vestida com uma camiseta vermelha decotada, de bo- linhas brancas, e uma minissaia preta de babados. Novamente, Blips está de cenho franzido e diz: “Não quero nem ouvir o que o general vai dizer quando vir você com essa roupa!”. No quadro seguinte há um balão com um grito de “UAUUU!” que ocupa meta- de da cena. Ao centro, Blips está em close, com cenho franzido e diz: “Não aguento mais!” (FIGURA 34). O comportamento de Dona Tetê incomoda Blips. Como Dona Tetê foi clara- mente inspirada em Merilyn Monroe, ela traz à tona a mesma ingenuidade (ou “bur- rice”) atribuída às personagens que a atriz protagonizou na vida real. Ela demonstra, até certo ponto, não ter ciência do que os seus atributos físicos produzem nos ho- mens e o que eles estão praticando contra ela: assédio.

Figura34 -O Livro de Ouro do Recruta Zero. n.1, 2014, p.117.

Nas páginas 118 e 119, em pelo menos duas ocasiões, embora a beleza e voluptuosidade de Dona Tetê ainda sejam as temáticas mais abordadas, é possível 143

notar que ela é apresentada como uma mulher não muito inteligente e pouco compe- tente. Ela realmente não foi contratada pelos seus conhecimentos na profissão de secretária, um aspecto que remete à história estereotipada da profissão de que as mulheres trabalhavam como secretárias para arranjar marido nas firmas (SOUSA, 2006).Um exemplo de nossa afirmação poder ser observada na última tirinha da pá- gina 118. No primeiro quadrinho, o general elogia sua letra dizendo que está “capri- chadíssima” enquanto ela lhe agradece. Os elogios seguem no segundo quadrinho. Por fim, o velho general lhe entrega o papel onde é possível ver apenas a letra “A” datilografada. Ele lhe diz: “agora faça outra letra!” (FIGURA 35).

Figura35-O Livro de Ouro do Recruta Zero. n.1, 2014, p.118.

Esses quadrinhos exemplificam não somente o interesse sexual do velho ge- neral em relação à secretária, independentemente do desempenho dela na profis- são. A representação da pouca instrução da mulher nos escritórios está plasmada em um fragmento que remete a um aspecto da realidade enfrentada por muitas mu- lheres no mercado de trabalho. Ratifica a idéia de que qualquer mulher poderia atuar como secretária, bastando ter beleza. A mensagem da boa aparência consiste em afirmar que, havendo beleza, não seria necessário haver muita instrução. Ao mesmo tempo, reforça o estereótipo da secretária bonita e burra disseminada pelos filmes holywoodianos (SOUSA, 2006). Por fim, denota as atividades mecanicistas deixadas para as mulheres nos escritórios, para as quais a baixa intelectualidade não seria problema. Nossas afirmações são confirmadas também na tirinha da página 119. O ge- neral lê um documento enquanto diz: “Dona Tetê! Como pôde cometer um erro des- ses?” e ela lhe responde: “Senhor, quando me contratou não falou que eu tinha que ser uma boa secretária!”. No último quadro, ela está saindo da sala e segue dizendo: “Falou que eu tinha que ser uma secretária boa!” (FIGURA 36). 144

Figura 36 -O Livro de Ouro do Recruta Zero. n.1, 2014, p.119.

A tônica da secretária “boa” segue nas páginas seguintes. Assim, na página 120, a primeira tirinha mostra um diálogo entre ela e a soldada Blips sobre a sua primeira sessão de Reestruturação Postural Global (RPG). No segundo quadrinho, Dona Tetê mostra à colega a “postura correta para ficar em pé” enquanto estufa o peito e empina as nádegas. Em segundo plano, o general está espionando a con- versa das mulheres. É possível ver apenas a sua cabeça aparecendo por trás da entrada de sua sala. No último quadrinho, o general desmaia e é possível ver suas botas para cima, enquanto as duas mulheres olham para ele. Ao ver o general des- maiando, a Soldada Blips diz: “parece que não funciona com todo mundo!” (FIGURA 37).

Figura37 - O Livro de Ouro do Recruta Zero. n.1, 2014, p.119.

Na página seguinte, Dona Tetê está em segundo plano, em um campo de gol- fe, vestida com minissaia e blusa vermelha. Ela se abaixa para colocar a bola no pino. Enquanto isso, em primeiro plano, o general e outro homem a observam. O homem menciona: “soube que está ensinando a Dona Tetê a jogar golfe!” O general assente e começa a detalhar as técnicas utilizadas para o jogo. No último quadrinho, ele diz que a ensinou a “encontrar a posição”. Vemos, na cena, o grafismo de movi- mento dos quadris indicando o rebolado de Dona Tetê, e de pronto entendemos a 145

que se refere o general (FIGURA 38).

Figura38 - O Livro de Ouro do Recruta Zero. n.1, 2014, p.121.

A violência sexual explícita a que estão submetidas as secretárias do general nos quadrinhos do Recruta Zero fazem-nos refletir, tal como Žižek (2014, p.12), so- bre o que há por trás de tudo isso. O que são os pequenos fragmentos das violên- cias, sob o humor, contra as mulheres ficcionais nos quadrinhos do Recruta Zero, se comparadas às violências a que são submetidas as mulheres reais nas organiza- ções onde trabalham? Até que ponto o simbólico das atitudes machistas evidencia- das nesses quadrinhos opera no que não é possível ver? Porque, mesmo sob diver- sas reclamações, as editoras insistiram, e ainda insistem em publicar histórias como as de Dona Tetê? As temáticas da pouca roupa, dos usos dos corpos femininos, da beleza e ju- ventude vinculadas à disponibilidade sexual das mulheres, secretárias, são temas constantes em, pelo menos, metade das aparições da personagem, nos volumes analisados, cuja imagem é mais explorada na questão do assédio sexual. Se, por um lado, a violência explícita contra as secretárias, especialmente contra essa última, é tema recorrente quando protagoniza as tirinhas; por outro, há ocasiões, em número muito menor, em que Dona Tetê parece finalmente adquirir consciência da violência pela qual passa e começa a praticar pequenas revanches. Žižek afirma que “por vezes, não fazer nada é a coisa mais violenta que temos a fa- zer” (2014, p.169), e isso se confirma, de certo modo, nas pequenas ações de com- bate ao assédio por Dona Tetê. Ela utiliza a não violência e suas ações promovem um humor que não se baseia em assédio sexual, mas na frustração de quem o in- tenta. Assim, em contraste com a tônica da pouca roupa ou sobre a pouca inteligên- cia de Dona Tetê, várias tirinhas da página 122 a 124 apresentam temáticas centra- dasna “revanche” aos assédios vividos por essa secretária. Reagindo contra o general, as tirinhas mostram uma mulher com outra apa- 146

rência e atitude. A página já começa com uma tirinha em que o Pentágono elogiou seu “ótimo relatório” – um contraste à profissional que só sabia datilografar a letra “A” em tirinha anterior. Nas cenas, Dona Tetê usa um vestido mais comprido, sem decote e cor de rosa, com uma gravatinha borboleta. Seu vestuário mudou. Nas tirinhas seguintes ela segue aprontando com sua revanche aos assédios utilizando estratégias inteligentes. Em todas elas, o tema é frustrar o assédio do ge- neral. Em uma tirinha, ela está usando traje de banho de 1896 que parece um vesti- do-pijama (calças), o que decepciona o general que saiu correndo da sala imaginan- do vê-la em biquíni minúsculo (FIGURA 39). O traje não permite a visão de seu cor- po comumente exposto em roupas diminutas nas HQs. A cena indica que Blips par- ticipa da brincadeira de Dona Tetê. Ela está sorrindo, aparentemente satisfeita com a revanche – diferente da Blips que costumava questionar o corpo da colega de tra- balho.

Figura39 -O Livro de Ouro do Recruta Zero. n.1, 2014, p.122.

Em outra tirinha, ela está perfilada com mais duas secretárias, entre elas está a soldada Blips, aguardando a passagem do general. As duas primeiras secretárias têm corpos bem semelhantes: seios pequenos, pernas finas e sem voluptuosidade alguma. Enquanto isso, Dona Tetê está vestida como recruta, com um uniforme su- perlargo que não lhe marca o corpo, o cabelo despenteado e fuma um charuto. Sua aparência é a pior frente às suas colegas. Sua postura contraria a fala do general no quadro anterior, em que afirmava ao oficial que iria levar em uma viagem uma secre- tária com “certas qualidades (...) bem feminina, arrumada, atraente”. Aqui destaca- mos a questão da aparência para o serviço de secretária. Não basta ser competente – existe uma aparência idealizada pelo chefe, homem, que se relaciona ao que con- sidera qualidades e feminilidade para uma viagem (FIGURA 40).

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Figura40 - O Livro de Ouro do Recruta Zero. n.1, 2014, p.122.

Dona Tetê segue frustrando os assédios do chefe. Na página 123, ao ser soli- citada para arquivar documentos na “última gaveta” do arquivo em frente à mesa do general, ela está com o vestido justo. Os seios estão cobertos. A cena nos remete à tirinha no capítulo anterior, quando o general acompanhado por um oficial fez o mesmo pedido e aproveitoua visão que o corpo exposto da secretária lhe proporcio- nou ao cumprir a tarefa. Mas, nessa tirinha, no último quadro, ela surge vestida com um trench coat amarelo que lhe cobre todo o corpo, enquanto se abaixa com os quadris para cima para guardar o documento. A feição do general indica decepção e frustração ao observar a cena (FIGURA 41). A atitude de Dona Tetê demonstra que ela passou a utilizar estratégias para seguir no trabalho, mesmo diante dos constan- tes assédios do general.

Figura41 -O Livro de Ouro do Recruta Zero. n.1, 2014, p.123.

Mesmo tendo enfrentado críticas a respeito do assédio sexual à Dona Tetê, a temática foi inserida nas tirinhas. Esse tema é explícito em três delas – o que confir- ma a produção dos quadrinhos, sensível aos “humores do público” de que tratou Eco (1984, p.253), e ratifica que o capital encontra meios para se apropriar criativamente mesmo de algo que seja contrário aos seus interesses, de modo a atender à produ- ção e ao consumo. O primeiro momento em que o tema assédio sexual aparece como objeto de discussão no volume analisado está em uma tirinha na página 91. Quindim e Dona 148

Tetê estão fazendo piquenique em um gramado. Ela está vestida com camisa de manga e calças. O soldado está fardado e abrindo uma garrafa de bebida. No pri- meiro quadro, ela diz: “Meu maior problema é que todos me tratam como um objeto sexual!”, ao que Quindim, com feição neutra, responde: “E do que reclama?”. No último quadro, ele segue dizendo: “A vida toda tenho me esforçado para ser tratado como um objeto sexual!”, enquanto oferece taças cheias de bebida a uma Dona Tetê de lábios entreabertos, hesitante (FIGURA 42). Esse personagem, sabidamente mulherengo, utiliza uma lógica perversa. O sexo é postulado por ele praticamente como um objetivo de vida e uma questão natural. Sua fala é séria. Seu discurso de que ser considerado um objeto sexual “por todos” reforça o caráter de banalidade do assédio, e minimiza uma discussão extremamente importante. A ideia é naturalizar o abuso.

Figura 42-O Livro de Ouro do Recruta Zero. n.1, 2014, p.91

Há, nesses quadrinhos, uma relativização da violência, possibilitada pela ins- tauração de uma visão que, necessariamente, não inclui atos de “explosão brutal” (ŽIŽEK, 2014, p.166). As formas de violência (subjetiva e sistêmica) se expressam nessa imagem na linguagem e na maneira como o assunto é tratado. Em algumas situações, é “difícil ser realmente violento, efetuar um ato que perturbe violentamen- te os parâmetros fundamentais da vida social” (2014, p.161). Nesse sentido, man- têm-se os privilégios patriarcais. A violência se traveste de normalidade na fala do Quindim. Aludimos que, em muitas ocasiões, isso acontece nos quadrinhos do Re- cruta Zero porque, ao mesmo tempo em que a sociedade ocidental é sensível às diversas formas de assédio, ela também mobiliza uma multiplicidade de mecanismos para insensibilizar formas brutais de violência. Nesse caso, os mecanismos que con- tribuem para insensibilizar são os meios que sugerem inocência, como os quadri- nhos, os usos do humor, e mesmo o discurso de uma lógica reversa... 149

Na página 119, há uma tirinha em que o general comenta com um oficial so- bre o aumento de 10% da criminalidade no quartel. No quadro seguinte, ele diz que isso se deve ao que “passou a ser considerado crime”, enquanto o oficial pergunta: “Como assim?”. Então, no último quadrinho os dois olham Dona Tetê passando com um papel na mão. Ela não usa vestido curto e decotado. Ela está com uma blusa sem decote e de calças jeans. O general conclui: “Olhar para a Dona Tetê!” (FIGU- RA 43).

Figura43 -O Livro de Ouro do Recruta Zero. n.1, 2014, p.119.

Esses quadrinhos refletem, em certa medida, a judicialização do sexual ha- rassementde que tratamos. De igual modo, simplifica o assunto ao dizer que “olhar” para uma determinada mulher é crime. Vê-se que esse olhar a que se refere o gene- ral é completamente descontextualizado do modo como ele olhava para a secretária antes da criminalização do ato dele, e dos demais homens, no quartel. Assim, o ge- neral também suaviza seus assédios e os assédios a Dona Tetê pelos recrutas do quartel, invertendo a posição de vítima. Outra tirinha explícita sobre o tema assédio sexual está na página 123. O ge- neral está em seu gabinete com o oficial e diz: “nos velhos tempos elas ficavam li- sonjeadas quando eu fazia galanteios!”. E segue: “Nos velhos tempos ninguém me rotulava de machista!”. No quadro seguinte, Dona Tetê está ao lado da soldada Blips que para de datilografar e vira-se para ela. Dona Tetê está vestida com blusa sem decote, calça e um casaco. Ela diz: “Nos velhos tempos, ele não era tão velho!” (FI- GURA 44).

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Figura44-O Livro de Ouro do Recruta Zero. n.1, 2014, p.123.

Em nossa análise, háaí um total contrassenso, porque dá a entender que o problema não é o fato de o general ser assediador, mas sim por ter uma idade avan- çada. Por ser velho, o homem não seria atraente o suficiente para a personagem, a fim de que ela aceitasse o assédio. A ideia dessa tirinha é novamente a naturaliza- ção do assédio, de modo que é aceito se feito por um homem mais jovem que pro- voque atração na mulher. As duas últimas páginas desse volume trazem 4 tirinhas cujos temas são: competência versus beleza, assédio sexual e a mulher como objeto sexual. Na pri- meira tirinha, Dona Tetê enfrenta o general, questionando-o. Ela está vestida com uma blusa sem decote e uma saia na altura dos joelhos. Desde que mudou de atitu- de, suas roupas mudaram. São mais compostas. Já não se vê tanto o seu corpo. Houve mudança completa em seu figurino. Enquanto questiona se sua admissão ocorreu por aparência ou competência, o general se defende e justifica que não foi pela beleza. Dona Tetê informa que caso fosse ela pediria demissão. O general se justifica, mas seu discurso ofende a outra secretária, usada como exemplo de exceção da aparência. A soldada Blips está em sua mesa. Ela ouve a explicação do general e se revolta dizendo para o oficial à sua frente que irá pedir demissão (FIGURA 45).

Figura 45-O Livro de Ouro do Recruta Zero. n. 1, 2014, p.124.

As duas mulheres estão, mais uma vez, frente às questões aparência e com- 151

petência –aspectos relevantes para as empresas em relaçãoao cargo de secretária até os anos 1990 (SOUSA, 2006). Na tirinha seguinte, vê-se outra ocasião em que a soldada Blips pergunta à Dona Tetê se o general “nunca passou a mão”, ao que ela responde “não!”. Enquanto o general passa em primeiro plano alheio à conversa das secretárias, Blips insiste: “Nunca lhe fez propostas indecorosas?”, e Dona Tetê diz “Não!”. Blips então se revolta ao perceber que não poderá acusar o general de as- sédio sexual (FIGURA 46).

Figura46- O Livro de Ouro do Recruta Zero. n.1, 2014, p.124.

O diálogo aquipermite-nos inferir que as mulheres buscam oportunidades pa- ra acusar e, principalmente, que o assédio só se consome em duas situações: con- tato físico e propostas indecorosas. Ficam de fora todas as outras situações, pala- vras de duplo sentido, insinuações, assovios, olhares lascivos intimidadores, as ar- timanhas do chefe para fazer a secretária se abaixar em frente a ele de modo que possa explorar seu corpocom olhares... Enfim, ficam de fora todas as outras formas de abuso que configuram o assédio. Além disso, a outra secretária admite que pode provocar uma situação de assédio. Nessa narrativa, há uma ideia de vilania feminina e de homens como presas inocentes, vítimas de suas artimanhas. Na mesma página, uma nova tirinha com três quadros mostra a soldada Blips diante da mesa do general, com os braços cruzados e o cenho franzido. Ela questi- ona: “sabe o que significa assédio sexual, Senhor?”. O general responde: “É forçar a atenção indesejada de uma mulher” e, no quadro seguinte, ele continua “Mas eu a- precio as mulheres. De que outro modo posso mostrar minha admiração?”. No último quadro e em primeiro plano, vê-se Dona Tetê, com uma roupa que esconde seu co- lo, em uma escrivaninha diante de uma máquina de datilografia. Ela responde: “Ten- te um aumento!”, enquanto a soldada Blips e o general a observam. Nesse último quadro, Blips não tem boca. Está “emudecida” pela resposta da colega (FIGURA 47). 152

Figura47 -O Livro de Ouro do Recruta Zero. n.1, 2014, p.124.

Aqui duas questões pautam a tirinha: assédio sexual e salário. Os salários e a atuação das secretárias no mercado, historicamente, sempre estiveram condiciona- das ao tecnicismo e à mão-de-obra barata no mercado (SOUSA, 2006), o que é rati- ficado por Wolf (1992), para quem

A redução nas taxas de nascimento do pós-guerra e a consequente falta de mão-de-obra especializada resulta no fato de as mulheres serem realmente bem vindas à força de trabalho, como ‘burras-de- carga’ descartáveis, sem sindicatos, com baixos salários e restritas a um gueto de funções ‘femininas’. O economista Marvin Harris des- creveu as mulheres como uma mão-de-obra ‘dócil e instruída’, por- tanto ‘candidatas desejáveis aos empregos das áreas de informação e de processamento criadas pelas modernas indústrias de serviços’. As qualidades que mais convêm aos empregadores nas trabalhado- ras dessa categoria são o amor-próprio reduzido, a tolerância para tarefas repetitivas e monótonas, a falta de ambição, o alto nível de conformidade, o maior respeito pelos homens (que são seus superio- res) do que pelas mulheres (que trabalham a seu lado) e pouca sen- sação de controle sobre suas próprias vidas (WOLF, 1992, p.33. Gri- fos do autor).

Inferimos, assim,que as mulheres que trabalham como secretárias no Quartel Swampyconcentram estereótipos de uma época e se localizam na esfera da “força de trabalho secundária”. A atividade profissional da mulher secretária sempre foi considerada um trabalho menor, do intermédio, secundário, inferiorizado e determi- nado pelo papel que representa a esfera doméstica, em proximidade com as asserti- vasde Abramo (2007, p.14). Em um período quando homem ainda se constituía co- mo provedor absoluto do lar, as mulheres adentravam o mercado de trabalho sem- pre que ele não pudesse suprir as necessidades e houvesse diminuição da renda ou ausência desta (ABRAMO, 2007, p.13). Esses aspectos confirmam-se em fragmen- tos da literatura na área secretarial, aqui no Brasil, segundo Montezuma ([entre 1950 e 1960]), Rainho(1970), Queiroz (1938) e Sousa (2006). 153

Abramo (2007) destaca que o lugar da mulher no mercado de trabalho tem si- do estudado desde a década de 1960, e que não somente as questões relativas à importância do trabalho feminino são pertinentes, mas também o valor da mão-de- obra feminina, ainda abaixo do valor pago aos homens no desempenho de ativida- des semelhantes. O secretariado,possivelmente, está, senão completamente inseri- do, bem próximo do “setor secundário” de trabalho pelas características que apre- senta: baixa remuneração, poucas oportunidades de ascensão e carreira, relações muito personalizadas que fomentam o “favoritismo”, emprego instável e alta rotativi- dade na área (PIORE, 1999 apud ABRAMO, 2007, p.34) – aspectos observáveis nas tirinhas do Recruta Zero. Mesmo diante de muitas reclamações e “problemas” com as feministas, pode- se refletir sobre o fato de Dona Tetê ter tido sua imagem explorada sexualmente. Creditamos esse fato ao caráter machista da publicação e à assertiva de Žižek (2014, p.54) sobre a existência de uma ética baseada na recusa deliberada em igno- rar o sofrimento através da negação fetichista. Para ele, há escolha em não “saber”, e também uma recusa em assumir as consequências desse saber. Quadrinhos que exploram a imagem da mulher sob assédios diversos decorrem, em nosso entender, de uma cultura patriarcal fortemente atrelada aos interesses capitais das empresas produtoras desses meios e que operam nessas bases. Na última tirinha do volume analisado, na página 125, o General está em seu gabinete conversando com Dona Tetê. A secretária está vestida com uma blusa que lhe cobre todo o corpo, de gola alta. Nessa tirinha, ele diz: “Dona Tetê, desculpe se a tratei como objeto sexual!”. Ela responde “Não faz mal, senhor...”. Seu semblante indica indiferença. No segundo quadrinho, ela segue: “Eu sou um objeto sexual!”, e no último quadro, enquanto ela sai do gabinete do chefe, vemos o desfecho de sua fala: “Mas não o seu!”. No último quadro, as sobrancelhas do general indicam um misto de choque e constatação. Essa tirinha ocupa a parte superior da página (FI- GURA 48).

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Figura48 - OLivro de Ouro do Recruta Zero. n.1, 2014, p.125.

Essa última tirinha encerra os diálogos sobre a questão do assédio sexual à Dona Tetê, assumido e abordado no volume n.1. Os demais livros da coleção con- têm raras passagens das personagens. No volume n.3, selecionamos 3 tirinhas. E- las compõem o levantamento das temáticas de assédio. A mais significativa diz res- peito à descoberta do general sobre o fato de Dona Tetê falar palavrões (FIGURA 49). Sua admiração no quadrinho sugere uma interpretação sobre o caráter da mu- lher que usa determinado tipo de linguagem, fora do padrão da feminilidade. A men- sagem é que uma mulher que utiliza uma linguagem obscena está associada à las- cívia.

Figura49 -O Livro de Ouro do Recruta Zero. n.3, 2015, p.68.

Dona Tetê aparenta ter adquirido uma consciência e novas atitudes frente aos assédios pelos quais ela passa. Em alguns quadros, assume seu corpo, sua sexua- lidade e demonstra total consciência sobre o significado de ser objeto sexual por uma decisão própria. Mas, curiosamente, a tirinha também demonstra que não hou- ve uma punição para o general após anos de assédio. O reconhecimento do com- portamento e um simples pedido de desculpas encerram a questão. Não há punição para o homem que assediou inúmeras vezes e por tantos anos a sua secretária. Ele é um general. Nas palavras de seu criador: "‘That's all he's ever done – justlooked at her’,” says strip creator Mort Walker. ‘Never touched her or pushed her around or anything like that.’(CNN, 2016, s.p.). O autor assume que o olhar lascivo não se con- 155

figura um assédio, em sua opinião. Os quadrinhos do Recruta Zero alcançaram o público brasileiro pela reprodu- ção em diversos formatos em nosso país, mas, principalmente, pela proximidade com as representações neles contidas. Nas palavras do autor,

Ver meu trabalho agradar no Brasil me faz perceber que as pessoas de todos os lugares riem das mesmas coisas, possuem os mesmos problemas e são parte da mesma humanidade. Não importa se ou- tras coisas nos separam, somos todos irmãos nos quadrinhos. Sem- pre me dá muito prazer saber que fiz alguém no Brasil rir e tornei seu dia um pouco melhor. (GUSMAN, 2015, p.188).

Ocupando dois terços da última página, no espaço onde deveria haver mais 3 tirinhas há uma cena sem o contorno de um quadro. Nela o general está sentado à mesa e babando de olho no corpo de Dona Tetê. Enquanto isso, vestida com o ves- tido preto, curto e justo, ela faz um movimento com um papel enrolado na mão, indi- cando um golpe no rosto do general. O som da pancada está presente: “Whap!”. Fim do volume. Dona Tetê, por fim, castiga o general, fisicamente. Ela é a agressora sexy (FIGURA 50).

Figura50-O Livro de Ouro do Recruta Zero. n.1, 2014, p.50.

O fato de Dona Tetê desfilar com roupas curtas pelo quartel não era suficien- te. Era necessário despir Dona Tetê, o que acontece anos depois em um quadrinho especial que apresenta seu corpo completamente nu e agigantado. Esse quadrinho não está nos volumes analisados. Mas, dada sua radicalidade no tema do assédio sexual à Dona Tetê, entendemos ser necessário pontuá-lo. O quadrinho foi criado, especialmente, durante a Guerra da Coreia e nele se observa que “o imaginário se- xual coletivo do qual Dona Tetê (a secretária) fazia parte teve seu ápice em uma pu- 156

blicação sueca que a despiu completamente” (SOUSA, 2006), como observado na figura 50.

Figura51- Dona Tetê despida

Fonte: Sousa (2006)

Essa é uma das imagens, senão a principal, maisemblemáticas do assédio masculino que dispõe sobre o corpo da secretária. Seu corpo é, literalmente, um parque de diversões para todos. Um corpo sob os cuidados dos machos. Na cena, há quem o limpe,o alimente, quem jogue golfe com ele. Há um soldado com uma tesoura se dirigindo à vulva da secretária. É possível ver a mascote do quartel, o cachorro Otto, descendo de skate em uma de suas pernas. O cachorro está vestido com uniforme militar. A mensagem é que o corpo de Dona Tetê é um corpo para di- versão, para ser exposto, observado e usado, inclusive por animais. A outra secretá- ria, a soldada Blips, pode ser vista no canto inferior esquerdo observando tudo com as mãos na cintura, enquanto “Os demais homens do quartel ocupam-se em apro- veitar do corpo de Dona Tetê de maneira fantasiosa” (SOUSA, 2006). Situações como as que analisamos provocaram reclamações, nos EUA, das mulheres que exigiam o fim dos assédios do General Dureza à Dona Tetê: “Isso é um insulto às mulheres que trabalham", escreveu uma entre as centenas de leitoras que protestavam. "É a fantasia de um homem velho!", escreveu outra (MEDEIROS, 2016, s.p.) Em 1977, a CNN divulgou uma reportagem em que explicava que não era a primeira vez que Mort Walker era confrontado face ao assédio do general contra Dona Tetê. A certa altura da entrevista, ele admite que a inspiração para o persona- 157

gem do general provinha de alguém que conheceu, e também de si mesmo. Em de- corrência das queixas, ele e seu personagem, o General, precisaram passar por um treinamento para aprender a se comportar com a secretária.

‘I am sympathetic to the older men who are a little bit over the hill but their libido is still in there pumping away,’ he says. ‘We never get tired of looking at pretty girls’.

But negative reaction from his editors provided the cartoonist's sensi- tivity training.

‘I have what they call heightened awareness now’, he says. ‘I've learned’.

Halftrack will no longer leer, or ask the shapely Miss Buxley to file things in the bottom drawers so he can see her legs, Walker says.(CNN, 2016, s.p.)

No Brasil, o jornal O Estado de S. Paulo publicou uma entrevista com o autor em que ele explica o personagem e comenta as críticas recebidas. Dona Tetê é descrita na entrevista como “proprietária de um adorável guarda-roupas com minis- saias, decotes, terninhos e um rebolado cobiçado por todo o Quartel Swampy, onde se passa a ação” (MEDEIROS, 2016, s.p.). Enquanto aqui ainda se reproduzia (e reproduz, vide datação dos volumes analisados) as publicações onde uma Dona Tetê sexy circulava com roupas inade- quadas para atuar como secretária em um escritório, nos Estados Unidos, Mort Wal- ker enfrentava a cada dia novas reclamações ao final da década de 90! A CNN Inte- ractive divulgou algumas de suas confissões: "I used to draw her a lot sexier (...) She came to work in clothes that weren't really appropriate for offices" (CNN, 2016, s.p.). Nossas análises evidenciaram que os corpos femininos de Dona Tetê e da Soldada Blips, assim como os assédios morais e sexuais pelos quais passaram, ex- plicitam aspectos relacionados à violência contra mulheres no ambiente de trabalho, já que “a imagem é entendida como representação imitativo-figurativa, como cópia de alguma coisa” (CAGNIN, 1975, p.32). Ao mesmo tempo, a violência de gênero percebida nesses quadrinhos apro- xima-se da proposição de que “as relações simbólicas da violência cumprem a fun- ção precípua de dissimular o impacto do trauma por meio de uma aparência simbóli- ca” (ŽIŽEK, 2014, p.180). Nesse sentido, compreendemos que a violência contra as representações femininas, nos quadrinhos do Recruta Zero, opera na esfera do hu- mor e da coisificação. Estamos cientes de que a mulher pública, nas palavras de 158

Perrot (2005), pertence assim a todos, e assentimos que

a nudez desigual quase sempre exprime relações de poder. (...) Viver numa cultura na qual as mulheres estão rotineiramente nuas enquan- to os homens não o estão equivale a aprender a desigualdade aos pouquinhos, o dia inteiro. (WOLF, 1992, p.184).

Os quadrinhos que analisamos naturalizam e banalizam a desigualdade entre os sexos utilizando, para tanto, a nudez das mulheres frente aos homens ali repre- sentados. A nona arte e a licença poética admitem a livre exposição dos corpos fe- mininos como “nus artísticos” (BEAUVOIR, 2008, p.378), uma escusa para justificar a exposição e determinar o valor de uma mulher: o desejo masculino pelo seu corpo. Ela vale o seu corpo. O paradoxo da percepção concentra-se no fato de que existe uma “violência que subjaz aos nossos próprios esforços que visam combater a violência e promover a tolerância” (Žižeck, 2014, p.17). Assim, afirmamos que os “discursos habituais” de reprodução de uma linguagem e suas formas alcançam os quadrinhos, certamente porque, como um tipo de arte, eles são

pano de fundo dos fenômenos que descreve, um espaço inexistente (virtual) que lhe é próprio, de tal maneira que aquilo que aparece não é uma aparência sustentada pela profundidade da realidade subja- cente, mas uma aparência descontextualizada que coincide plena- mente com o ser real. (2014, p.20)

A beleza e juventude da mulher, ou sua velhice, assim como sua sexualida- de, são exploradas pelo machismo e observáveis nas falas e comportamentos dos personagens das revistinhas do Recruta Zero. Mesmo com o repúdio de muitas mu- lheres e o veto ocasional aos quadrinhos por questões sexistas, como o ocorrido nos Estados Unidos, o autor seguiu desenvolvendo sua obra. Fez alterações e mostrou uma Dona Tetê mais ciente do assédio e disposta a reagir comicamente. Ainda as- sim, em nosso entender, os quadrinhos do Recruta Zero reproduziram traços de uma cultura machista comrelação às mulheres, secretárias, em seus conteúdos.

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3.2 DONA MARTA, A SECRETÁRIA TARADA

Nos quadrinhos brasileiros, Dona Marta é uma secretária que inverte a profis- são em todos os sentidos. O estereótipo da beleza, porém, é às avessas em suas histórias. Definida como uma mulher que passou da idade, ela representa uma mu- lher velha solteirona, virgem, distante também dos atrativos da beleza. A persona- gem foi construída como o contrário do que se espera de uma secretária. Publicada pela Circo,uma editora que surgiu em um período político brasileiro muito significativo, pós-governo militar, e teve sua origem no momento em que o Pa- ís adentrava uma fase de intensa reestruturação econômica e política. As publica- ções da editora estavam baseadas no humor popular e crítico. Seus artistas mais consagrados utilizavam charges, quadrinhos e tirinhas para discutir política e os de- mais temas vigentes sob uma linguagem completamente inovadora no mercado. Angeli, Chico, Laerte e Glauco, entre outros cartunistas e quadrinistas discutiam ab- solutamente tudo o que fosse possível no novo cenário nacional, recém-saído de um governo ditatorial. Os principais artistas com trabalhos nas revistas editadas pela Circo Editorial, além dos já citados foram tambémLuiz Gê, Adão Iturrusgarai e Fer- nando Gonsales. A Circo Editorial publicou revistas com grandes tiragens. Tornou-se conhecida pela atuação no cenário underground brasileiro, com publicações que continham desenhos em linhas mais “sujas”, com as cenas mais simples, sem tantos recursos visuais que, além da narrativa, ajudavam a compor o estilo da revista. Quando a edi- tora lançou a revista Chiclete com Banana, ela iniciou com tiragens de 30 mil exem- plares, mas, em sua melhor fase, chegou a vender 120 mil unidades. Seu número estável de vendagem ficou na média dos 60 mil exemplares. A revista foi publicada entre 1985 e 1991, totalizando 24 volumes bimestrais. Alguns dos trabalhos mais conhecidos e publicados pela editora são: Piratas do Tietê, de Laerte; Níquel Náu- sea, de Fernando Gonsales; e Geraldão, de Glauco. Na edição especial, localizamos a história de Dona Marta, nossa personagem em foco. Para procedermos à análise da personagem brasileira Dona Marta, criação de Glauco Vilas Boas, optamos pelo exemplar Geraldão Espocando a Cilibina!Nos gibis da Circo Editorial. Essa importante compilação contém as 10 primeiras revistas lan- çadas pela editora com histórias longas dos personagens que já faziam sucesso em 160

tirinhas no jornal. Dona Marta está em cinco revistas. O proprietário da Circo, Toninho Mendes, apresenta a publicação em capa dura e informa que o compêndio contém as revistas criadas e editadas entre maio de 1987 e dezembro de 1988. É uma seleção do edi- tor. Ele destaca os principais personagens contidos na edição especial e explica, até certo ponto, seus comportamentos (MENDES, 2011, p.4-5). A Revista Geraldão foi a terceira publicação da empresa disponibilizada para venda nas bancase

viabilizada pelo sucesso da Chiclete com Banana, de Angeli, que também havia possibilitado o lançamento da Circo de Quadrinhos, a segunda a ir para as bancas, editada por mim e que tinha como prin- cipais colaboradores Luiz Gê e Laerte. (MENDES, 2011, p.4-5).

Gonçalo Jr. prefacia Geraldão Espocando a Cilibina! Nos gibis da Circo Edito- rial, classificando os quadrinhos como arte marginal. Informa que, para Glauco o humor “era uma ideologia de vida (...) jamais exploraria de modo preconceituoso al- guma minoria para levar o leitor ao riso forçado” (2011, p.7). Discordamos. Em nosso entender, embora se trate de ficção, a injúria se traveste de humor também nos quadrinhos, e Dona Marta é uma personagem caracterizada com estereótipos co- mumente associados às secretárias nas mídias: aparência, sexualização e compor- tamentos inadequados. Portanto, para nós, ela reproduz, de modo ainda mais expo- nencial, aspectos negativos que contribuem para desvalorização da imagem da mu- lher trabalhadora, secretária. Glauco formava com Angeli e Laerte a “trinca dos melhores e mais ativos quadrinistas da contracultura brasileira” (GOIDA, 2011, p.189). Seu personagem de maior sucesso, Geraldão, foi publicado na Folha de S. Paulo. Com o sucesso do personagem, ele passou a publicar a revista Geraldão, a princípio trimestral, onde encontramos sua personagem secretária. O autor cria as suas “memórias” para explicar seu comportamento, e isso nos ajudou a compreender a personagem. Diz que “Dona Marta, segurou a franga uma vida inteira. Aos quarenta anos, resolveu liberar o furacão de pombas que traz den- tro de si. Sai de Baixo” (GLAUCO, 2011, p.119). A personagem é exibicionista desde bebê, e foramvárias as tentativas de seus pais em educá-la e castrar os seus exces- sos. De fato, observa-se que seus pais fizeram tudo para enquadrá-la, contê-la. No 161

episódio Memórias, vê-se a personagem ainda bebê, dentro do carrinho, abrindo a roupinha e mostrando o peito (FIGURA 48). O comportamento exibicionista e a nudez de Dona Marta sempre foram re- preendidos: “Para com isso Martinha!” (GLAUCO, 2011, p.154). A característica de mostrar os seios se tornaria um gesto usual da personagem. Essa é a tônica da per- sonagem, o artista dá a entender que a sua nudez e exibicionismo “vêm de berço” (FIGURA 52).

Figura52-GeraldãoEspocando a Cilibina! Nos gibis da Circo Editorial, 2011, p.154

As memórias da personagem são contadas em um ordem que contempla su- as fases de desenvolvimento: “tudo começou na fase vaginal de Dona Marta” (GLAUCO, 2011, p.155). O crescimento de Dona Marta é pontuado por situações em que sua sexualidade e seu exibicionismo são castrados pelos pais. Todos os seus impulsos e desejos sexuais são repreendidos, como no quadrinho em que ela, ainda criança, se masturba e recebe um violento tapa do pai que a derruba ao chão (FIGURA 53). No quadro seguinte, ela recebe outro castigo físico e tem que se ajoelhar no milho. A cena em questão contém uma voz que diz: “Vai ficar aí ajoelhada no milho 162

até aprender que é feio brincar com o bubuzinho! Papai do céu não gosta!” (GLAU- CO, 2011, p.155). Vê-se, na cena, um enorme braço coberto pelo que parece ser um paletó que toma quase toda a cena apontando para a personagem. O grande braço representa o castigo, e sugere a imposição de comportamentos vinda de um ser masculino. Desse modo, o autor associa o pecado à exploração do próprio corpoe ao que se espera como comportamento adequado da mulher. A menção ao “Papai do céu”faz alusão à religião e doutrina cristãs como inibidoras e castradoras da sexuali- dade feminina. Ele reproduz um aspecto da sociedade brasileira em relação à se- xualidade da mulher e como o tema era tratado no plano familiar.

Figura53-GeraldãoEspocando a Cilibina! Nos gibis da Circo Editorial, 2011, p.155

Ainda criança, Dona Marta surpreende os pais, nus, no chuveiro e no quarto. Quer saber o que são os seus genitais, apontando e questionando. Os pais ficam constrangidos e não explicam, usam artifícios para responder. Eles se assustam e se cobrem com as mãos (FIGURA 54). Não há explicação correta sobre os genitais, denotando, assim, que não há proximidade com o discurso sobre a sexualidade. É latente a ausência de diálogos sobre sexo em casa, o que indica que a personagem não teve uma educação sexual e recebeu somente a repressão.

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Figura54-GeraldãoEspocando a Cilibina! Nos gibis da Circo Editorial, 2011, p.155.

Em outro quadro, Dona Marta é espancada pelo pai quando ele e a sua mãe descobrem que ela está brincando de médico com o primo. A legenda do quadrinho informa que ela “levou o maior cacete”. Vê-se seu pai pulando diversas vezes em suas costas e falando “Toma!”, enquanto ela está caída no chão. Na mesma cena, sua mãe aparece correndo e, nas mãos, carrega uma chaleira que contém algo fer- vendo dentro. O espancamento da personagem possibilita a interpretação de que ela será ferida com algo quente ou banhada pós-espancamento (FIGURA 55).

Figura55-GeraldãoEspocando a Cilibina! Nos gibis da Circo Editorial, 2011, p.155

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Na sequência de sua história, a adolescência de Dona Marta é controlada se- veramente por seus pais durante seu namoro. O pai senta-se, literalmente, entre ela e o namorado, no sofá, o que faz com que o rapaz desista da relação e pule a jane- la. À medida que alcança a fase adulta, os quadrinhos mostram que Dona Marta participava dos casamentos de suas amigas e corria atrás de buquês. A legenda diz: “e assim todas as amigas de Dona Marta foram se casando e Dona Marta foi ficando pra titia...” (GLAUCO, 2011, p.156). No quadrinho, vê-se a cena de um casamento, e de um lado a personagem com vários buquês em uma mão, mas correndo atrás de outro (FIGURA 56). Aqui o artista trabalha com a idealização do casamento pela mu- lher da época.

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Figura56 -GeraldãoEspocando a Cilibina! Nos gibis da Circo Editorial, 2011, p.156

Nessa fase adulta da personagem, o autor mostra uma de suas amigas suge- rindo que ela, pelo menos, perca a virgindade, ao que ela refuta “Eu, heim Rosa? Depois não arrumo casamento” (GLAUCO, 2011, p.157). O quadro seguinte mostra a personagem chorando em frente a um vestido de noiva que está em um cabide (FIGURA 57). O vestido está cheio de teias de aranha e vê-se uma aranha pendura- da pela teia. Lê-se na legenda que o vestido da personagem: “também ficou pra titia” (GLAUCO, 2011, p.157).

Figura57-GeraldãoEspocando a Cilibina! Nos gibis da Circo Editorial, 2011, p.157

Esses quadrinhosdenotam que a criação castradora de Dona Marta fixou-lhe ideias tradicionais em relação à sexualidade, as quais circulavam na sociedade bra- sileira da época – um claro indício de que a liberação sexual das mulheres ainda não era vista com normalidade. Esse posicionamento da personagem reafirma o postu- lado por Beauvoir (2008, p.126) quanto à sexualidade feminina confinada ao casa- mento e aos sacramentos religiosos. Para nós, essa cena demonstra que a idealização do casamento como prêmio pela educação de boa moça era algo esperado por Marta. O seu casamento casto nunca aconteceu. Dona Marta nunca teve os seus anseios sexuais atendidos. Por esse motivo, ela rompe com toda a decência e o comportamento esperado, dentro e fora do ambiente de trabalho. Livros de secretariado da década de 1960 e 1970 (Brasil) informam sobre a 165

“fama” de que muitas mulheres buscavam trabalho nos escritórios para arranjar um marido. Elas utilizavam a profissão como meio para atingir outros objetivos distintos da realização profissional. No caso de Dona Marta, esse aspecto não se configura em seus quadrinhos. A mensagem que eles sugerem é a de que, após uma vida de recorrentes frustrações e desilusões, ela só será feliz e realizada se conseguir ter sexo. O autor informa que, quando jovem, Dona Marta encontrou uma forma de re- sistir às “cantadas” no ambiente de trabalho. Respondia às investidas dos colegas com frases conhecidas como: “Sai! Sou moça de família” (GLAUCO, 2011, p.157), ou se vestia com armadura medieval para trabalhar, literalmente. Mas verificamos que isso só acontece antes de ela atingir determinada idade (FIGURA 58).

Figura58-GeraldãoEspocando a Cilibina! Nos gibis da Circo Editorial, 2011, p.157

Em dado momento, aos 45 anos, a mulher vê seu corpo refletido no espelho. A metáfora do espelho é utilizada como meio para despertar sua consciência, e des- se modo acessar a verdadeira Dona Marta. A mensagem do espelho é sobre a ne- cessidade de ver-se de certa distância, por outro ângulo, pelo que está por trás da imagem refletida (FIGURA 59).

Figura59 - GeraldãoEspocando a Cilibina! Nos gibis da Circo Editorial, 2011, p.157

A partir desse quadrinho, ela tem consciência de seu corpo (FIGURA 60). Ao 166

percebê-lo como atraente sexualmente, ela tem um surto e grita “AAAAA que tesão! Vou dar pro primeiro que aparecer!” (GLAUCO, 2011, p.158), e, desde então,exibe- se desnuda no escritório, assediando, espantando e horrorizandotodos os homens.

Figura60 -GeraldãoEspocando a Cilibina! Nos gibis da Circo Editorial, 2011, p.158

Os corpos dos personagens do Glauco são desenhados em linhas retas. Troncos e pernas curtos. As pernas são finas. O traço base do artista é bem caracte- rístico. Dona Marta é desenhada com grandes seios. Tem o cabelo cacheado e cur- to. Nos quadrinhos de Dona Marta, há um predomínio de homens no escritório,os quais sempre se escandalizam com as exibicionices tresloucadas da personagem, suas palavras chulas, seu comportamento de intenso assédio sexual. Eles fogem, horrorizam-se, reclamam do assédio. Dona Marta mantém o estereótipo da secretá- ria disponível para o sexo, mesmo às avessas. Nova ou velha, está explícito que uma secretária quer sexo com os machos. Os homens fogem de Dona Marta não porque não gostariam de uma orgia no escritório, eles a repelem por conta de sua “velhice”. A personagem Dona Marta sin- tetiza o aspecto cultural da sociedade ocidental que distancia a mulher mais velha da sexualidade. Nos quadrinhos, é óbvio que a personagem não é atrativa por conta da velhice. Desse modo, a representação na ficção reproduz o postulado de que a 167

velhice é brusca para a mulher, que a despoja de feminilidade e atratividade sexual, pois ela “perde jovem ainda, o encanto erótico e a fecundidade” (BEAUVOIR, 2008, p.387). A mulher, conforme Wolf (1992, p.306),alcança seu ápice sexual entre os 40 e 60 anos, enquanto os homens, nessa faixa etária, representam o declínio sexual em sua fisiologia. Essa afirmação, porém, fora feita num momento em que ainda não existia a pílula masculina, o Viagra. Pode-se argumentar,então,que Glauco acerta ao criar uma personagem mais velha com tamanho ímpeto sexual. Outra ideia por trás desse sentido é justamente a construção de uma imagem repulsiva: de uma mulher velha e ninfomaníaca. Ao contar as memórias da persona- gem, a mensagem que os quadrinhos do Glauco transmitem é que a mulher, quando “passa da idade” deixa de ser desejável sexualmente, ou para casar – aspecto cultu- ralmente estabelecido e que o artista reproduz nos quadrinhos. A personagem é a antítese do comportamento profissional que uma secretária deveria ter. Condicionada à bizarrice são inúmeras as situações esdrúxulas criadas por Dona Marta. Em vários quadrinhos, é comum vê-la abaixando-se de modo que possa exibir sua nova calcinha, ou as nádegas completamente expostas. Geralmen- te está despida ou despindo-se pelo escritório, enquanto assedia os incautos, como na figura 61. Nesses quadrinhos, o chefe grita assustado com o assédio. Dona Mar- ta diz algo interessante se justificando para o chefe: “Ontem o senhor disse que eu tenho os peitos gostosos e...” No quadro seguinte, ele responde: “Esquece Dona Marta! Ontem eu tava de fogo!”, saindo de cena (FIGURA 62). Percebe-se que não é só ela quem assedia os funcionários, mas, ocasionalmente, o contrário acontece. Além disso, pode-se inferir que falam sobre seu corpo ou sobre desejo sexual. Ainda assim, nesse caso, o as- sediador admite que estava bêbado. A mensagem transmitida é que somente bêba- do o chefe faria algo errado como assediar uma funcionária, mas também pode ser entendida como somente alcoolizado ele desejaria essa mulher.

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Figura61-GeraldãoEspocando a Cilibina! Nos gibis da Circo Editorial, 2011, p.120

Figura62-GeraldãoEspocando a Cilibina! Nos gibis da Circo Editorial, 2011, p.121

Na sequência, à saída do chefe, Dona Marta é cumprimentada por um funcio- nário que chega dando “bom dia” e, novamente comete assédio, exibindo os gran- des seios para o homem que passa por ela com um olhar de enfado (FIGURA 63).

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Figura 63 - GeraldãoEspocando a Cilibina! Nos gibis da Circo Editorial, 2011, p.121

Para entender um pouco mais a personagem e o que acontece em seu traba- lho como secretária, foi imperativo recorrer a outra compilação de suas histórias. Assim, consideramos as tirinhas do pocket book Geraldão – A Genitália Desnuda – Participação Especial Dona Marta & Vicente Tarente, da L&PM. Há, nesse livro, um capítulo composto por 70 tirinhas totalmente dedicado à personagem. O capítulo tem a seguinte chamada: “Dona Marta –a secretária solteirona e solitária não perdoa, e ataca desde o chefe até os boys”. No desenho abaixo da chamada, Dona Marta está de mini saia, calçada com botas de salto. Ela tem um dos pés sobre a mesa do che- fe que lhe pergunta se ela quer chamar atenção. Dona Marta responde: Quem? Eu? Ambos mostram os dentes cerrados. Ele, por estar desconcertado e ela, por se fazer de desentendida. Em 58 tirinhas, Dona Marta comete diversos tipos de assédio. Exibe os seios nus para os funcionários, clientes, chefia, diretoria, superintendente e outros ho- mens. Faz comentários sobre o desempenho sexual do chefe com a esposa dele. Sempre exibe a calcinha e as nádegas; abaixa-se lascivamente para exibir seu cor- po ou traseiro em várias ocasiões; faz sugestões e convites obscenos aos colegas; invade o banheiro masculino; passa a mão ou a língua nos homens sem autoriza- ção; abraça uns, segura o pênis de outros; espiona funcionário pela fechadura do banheiro e comenta o tamanho do seu órgão sexual no escritório; encaixa a cabeça do chefe entre seus seios nus; arranca as roupas dos homens... Ela não tem limites. Ataca os homens a todo momento, e em qualquer ambiente (elevador, escritório, rua, banheiro, casa, consultório). Em raras ocasiões, encontramos 3 tirinhas em que o chefe a provoca: questi- ona por um namorado que sabe não existir; diz que tem vontade de chorar ao ver 170

seu corpo e sua atitude exibicionista; diz não sentir atração por ela porque tomou calmantes. Entre tantas sandices de Dona Marta, selecionamos as tirinhas mais signifi- cativas. Nossa seleção ajuda a construir a imagem da personagem sobre a questão da juventude e beleza, presentes em sua biografia e nas memórias apresentadas por Glauco. Desde o berço, Dona Marta exibe os seios e, ao longo das histórias, no- tamos que, na fase adulta, eles foram se agigantando. Há uma tirinha em que os seus seios estão abaixo da linha dos joelhos, pendurados (FIGURA 64). Enquanto se aproxima da mesa do chefe com os seios expostos, ela explica que, pela manhã, eles ficam assim, para baixo. Com um sorriso sem graça, ela pede que o chefe “não repara” neles. O homem está calado e com olhos bem abertos, surpreso.

Figura 64 - Geraldão – A Genitália Desnuda Participação Especial Dona Marta & Vicente Tarente, L&PM, 2010, p.68

Ao que parece, issso incomodou Dona Marta porque, em uma tirinha posterior, a personagem está em um consultório médico e pretende fazer cirurgia plástica em seus enormes seios (FIGURA 65). O médico sequer cogita ver seus seios e faz pia- da dizendo que basta tocá-los. A mensagem está centrada no ver, na estética, e principalmente nos modos como a mulher é vista pelo homem (BERGER, 1972), a- inda que este seja um profissional de saúde.

Figura65-Geraldão – A Genitália Desnuda Participação Especial Dona Marta & Vicente Tarente, L&PM, 2010, p.70

Pela tônica da mulher velha, da beleza e da plástica, nos quadrinhos de Dona 171

Marta, compreendemos sua situação dentro da perspectiva apontada por Wolf (1992, p.113) sobre o Mito da Beleza – aquele que permite aos homens julgarem as mulheres, em um exercício constante de poder sobre elas também nessas questões. As imposições de padrões de beleza promovem uma forma de controle político das mulheres cuja violência aponta para o machismo. O tema das cirurgias plásticas tra- ta da mutilação do corpo para adequação aos padrões estéticos vigentes e inalcan- çáveis, entre outros, que terminam por incitar as mulheres à anorexia, às cirurgias, e às indústrias de cosméticos rejuvenescedores, alimentos diet e light para dietas. Dona Marta tem proximidades com o horror ao envelhecimento que alcança as mulheres na “idade perigosa” e que importa pelo “valor simbólico de que se re- vestem” (BEAUVOIR, 2008, p.387). Esse valor está centrado em um corpo jovem que obedeça aos padrões estéticos vigentes. Assim, as mulheres modificam seus corpos, mediante severos sacrifícios que incluem intervenções obsessivas, como a eliminação de pelos, o combate às gorduras, as celulites, as cirurgias plásticas, os piercings, as tatuagens e outros recursos que tornem o corpo cada vez mais erotiza- do pela personalização ou ornamentação (BADINTER, 2005, p.110). Dona Marta não se distancia dessas questões – e o afirmamos porque suas preocupações não se restringem aos seios. Localizamos uma tirinha em que ela se pergunta se os homens irão reparar suas varizes. A tônica da beleza está presente em seus quadrinhos e em seu comportamento, mesmo inintencionalmente, reafir- mandonossas considerações. Em três outros episódios extremamente significativos do mesmo volume, Do- na Marta segue com assédios sexuais assustadores, muitas vezespermeados de ameaças e chantagens. São os homens que a acusam de assédio. Representações de um tema que despontava nas mídias e nos escritórios no período, mas às aves- sas –uma piada acintosa em um país onde, historicamente, as mulheres passavam por violências diversas, principalmente o assédio sexual, e feminicídios decorrentes dessa prática. Um grupo de funcionários informa a Dona Marta que irá processá-la por assédio sexual (FIGURA 66).

172

Figura 66 - Geraldão – A Genitália Desnuda Participação Especial Dona Marta & Vicente Tarente, L&PM, 2010, p.69

Em outra tirinha, é o chefe que liga para Delegacia de Mulheres, buscando o- rientação sobre o que fazer quando o assédio é ao contrário, partindo da secretária (FIGURA 67).

Figura67- Geraldão – A Genitália Desnuda Participação Especial Dona Marta & Vicente Tarente, L&PM, 2010, p.62

A uma página de encerrar o capítulo, a piada se repete, novamente com o chefe (FIGURA 68).

Figura 68 - Geraldão – A Genitália Desnuda Participação Especial Dona Marta & Vicente Tarente, L&PM, 2010, p.85.

Os homens são apresentados nos quadrinhos da Dona Marta como vítimas de uma mulher, solteirona e velha, uma tarada que os assedia sexualmente. Dessa vez, não há a ingenuidade e estonteante beleza, como no caso de Dona Tetê. Sem- pre passando por rejeições, a personagem reclama que ninguém quer “comê-la”e passa a assediar o office boy praticando preliminares sexuais no escritório, em cima da mesa de trabalho (GLAUCO, 2010, p.227). Ataca entregadores de pizza, bombei- 173

ro, policial e qualquer homem que surja diante de si. Dona Marta é a essência do comportamento lascivo de uma mulher caracteri- zada como velha. Em nossa ótica, inexiste liberdade sexual feminina em seus qua- drinhos. Embora sugiram o resultado bizarro que os anos de violências contra uma mulher castrada e abusada em toda a sua vida causaram, o resultado é o uso do humor para injuriar a mulher que “passou da idade” e que ainda tem uma alta libido. Em determinada história, mesmo contratando um garoto de programa, ele se recusa a ter sexo com ela porque está enfrentando os seus próprios demônios. Nes- se episódio, Dona Marta mata o garoto de programa porque ele foi incapaz de ter sexo e porque seu pênis era pequeno (FIGURA 69).

Figura69 - Geraldão Espocando a Cilibina! Nos gibis da Circo Editorial, n.1 2011, p.262

Ao final da história, ela diz que se tornará uma lésbica. O autor associa as de- cepções de Dona Marta com os relacionamentos heterossexuais à opção pela ho- mossexualidade. Glauco imprime à Dona Marta uma vida regada de preconceitos e aspectos machistas. Para tanto, ele utiliza o humor e as situações bizarras, perpetu- ando a mensagem da necessidade de beleza e juventude como condicionantes à sexualidade. Novamente, violência física eo homicídio são tratados como piada às avessas. Aqui o homem é a vítima de uma algoz sexual. A cena final mostra que Dona Marta chutou o rapaz pela janela. Diante das diversas investidas, sem sucesso,em relação a tantos homens, Dona Marta decide ir ao terapeuta. Este lhe diz que os seus problemas são decor- rentes da criação castradora durante a infância. Ao mesmo tempo, pode-se inferir que Dona Marta é doente, sua sexualidade é doentia e, portanto, anormal. Chega- mos a essa percepção porque, durante a sessão terapêutica, obviamente, surgem 174

novas confusões e, dessa vez,com o terapeuta, por culpa de Dona Marta. Ao final da história, tem-se a sensação de que para essa personagem, não há tratamento. Compreendemos Dona Marta como a representação de uma mulher com uma sexualidade castrada sob violências, física, verbal, moral e religiosa, durante toda sua vida,sobretudo, mas não apenas, em suas fases de formação, infância, adoles- cência e juventude. Suas histórias indicam, principalmente, que ela não foi dona de si. Nunca foi. Não pôde usufruir do seu próprio corpo. Não pôde experimentar ou decidir sobre sua sexualidadee, mesmo adulta, não consegue se tratar (terapia) e não consegue realizar seus desejos sexuais. Juventude, velhice, beleza, casamento, sexo e comportamento são os temas explícitos nos quadrinhos de Dona Marta. Sobre a beleza nas mídias direcionadas às mulheres, compreendemos que o conceito também se aplica a essa personagem. Nesse caso, a mensagem é condizente com o que se esperava, socialmente, da mu- lher: não envelheça, caso contrário não será mais desejada. Se não for virgem, tam- bém não poderá casar. Os quadrinhos da Dona Marta são concomitantes ao período em que ocorreu uma maior valorização da beleza feminina na sociedade ocidental. Eles preconizam a fase mais intensa de “fixação na beleza na década de 1990” (WOLF, 1992, p.36), decorrente de uma maior ascensão das mulheres em posições de poder. Por isso,é possível inferir, na tirinha da cirurgia plástica, uma representação do pensamento que circulava na sociedade brasileira da época. De fato, durante a infância de Dona Marta, há uma cena em que ela brinca de médico com um garoto, seu primo. Ela é surpreendida pelos pais com a mão dentro do short do garoto, que está grogue de êxtase. Observamos que o menino não foi repreendido ou castigado; somente a ela se dirigiram as punições (FIGURA 70).

Figura70-Geraldão Espocando a Cilibina! Nos gibis da Circo Editorial, n.1, 2011, p.155

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Esse é um registro da manutenção das diferenças em seu sentido mais preju- dicial. As distintas formas como meninas e meninos são criados e tratados, em rela- ção as suas descobertas e brincadeiras sexuais, foram plasmadas nesse quadrinho. Na vida real, não há, para as meninas, a mesma liberdade e tolerância que os meni- nos recebem. Embora a segunda onda feminista tenha ocorrido a partir da década de 1960 e perdurado até a década de 1980, no Brasil, as questões relacionadas ao corpo feminino e à sexualidade da mulher ainda seguem em certo atraso, mesmo em dias atuais. Badinter (2005, p.134) aponta que uma possível solução para o trato da sexualidade feminina seria “aproximar a sexualidade masculina da sexualidade feminina. Para tanto, devemos criar nossos filhos varões tal como nossas filhas”. É desse modo que a “violência da dominação arcaica dos homens” (2005, p.134) pode ser combatida, por outra educação–pensamento com o qual concordamos e que en- tendemos ser possível realizar também nos quadrinhos. Ainda que Gonçalo Jr., no prefáciodo livro, afirme que Glauco possuía uma capacidade transgressora que o permitia brincar com temas pesados, tabus, perver- são e amoralidade, para nós, a tônica revés das histórias de Dona Marta não a afas- ta das questões da aparência e da sexualidade relacionadas à mulher apregoadas pelo machismo. Ela tampouco se distancia dos estereótipos relacionados à secretá- ria e à sexualidade. Na visão de seu criador, Dona Marta é a antítese do que se espera de uma mulher, de uma trabalhadora, principalmente de uma secretária. Se, para o público, ela é a louca tarada do escritório, o autor explica sua condição e loucura como resul- tados de experiências eróticas pontuadas por violência e castração familiar. Com essa personagem, lembramos Beauvoir (2008) para quem

as experiências eróticas da jovem não são um prolongamento de su- as atividades sexuais anteriores que têm por vezes um caráter im- previsto e brutal; constituem sempre um acontecimento novo, que cria uma ruptura com o passado. Todos os problemas que se apre- sentam à jovem acham-se resumidos de uma forma urgente e aguda no momento em que os vive. Em certos casos a crise tem solução fácil, mas há conjunturas trágicas em que ela só se liquida com o suicídio ou a loucura. (2008, p.125)

Temos a nítida impressãode que a vida sexual jamais existirá para Dona Mar- ta, apesar de ela ser louca por sexo. Trata-se de uma mulher que teve problemas 176

para experimentar a sexualidade durante a infância e a juventude e agora, velha, ninguém a quer. Sobram as opções: loucura ou suicídio. O autor consolida, assim, a assertiva de Beauvoir, ainda que inintencionalmente. Dona Marta, louca, quer sexo no escritório. Aproximamo-nos, desse modo, das formas de morte preditas por Wolf (1992, p.135) para quem “os homens morrem uma vez e as mulheres, duas. Elas primeiro morrem como beldades antes que seus corpos morram realmente” – isso, de fato, acontece nos quadrinhos de Dona Marta.

3.3 CAROL E AS BARBÁRIES DO OFÍCIO

Em 1989, Scott Adams criou os quadrinhos Dilbert. Ele elaborou seus quadri- nhos a partir das experiências nas diversas organizações onde trabalhou e pela convivência com os colegas. Scott Adams construiu uma crítica feroz sobre o siste- ma de gestão que dominava as empresas em sua época. O ex-funcionário do Croc- ker Bank afirma que desenhava como uma fuga nos momentos de stress. Para ele, era uma diversão. Mesmo durante as reuniões de trabalho, ele rabiscava o persona- gem principal. Seus desenhos satirizam a vida corporativa e, para tanto, utiliza cari- caturas absurdas desse universo. São constantes, em suas tirinhas, não somente os comportamentos absurdos, as falas sarcásticas dos personagens, mas também as diminutas baias de trabalho, cujos espaços minúsculos reforçam a ideia de que viver em quadrado transcende a questão físico-espacial, pois as baias, na verdade, refletem a alienação dos empre- gados. Viana (2013) salienta que Scott Adams passou pela reestruturação produtiva entre 1979 e 1995, enquanto trabalhou no banco como estagiário, analista de orça- mento, programador, supervisor, gerente de produção, entre tantos cargos que ocu- pou. Ele também trabalhou na Pacific Bell Telephone Company, mais tarde chamada AT&T Teleholdings. Como ocorreu com muitos artistas, as tirinhas Dilbert só explodiram comerci- almente quando o autor foi procurado por um dos syndicates31 do setor. O mundo do

31Cf. nota 11. 177

trabalho, na perspectiva artística e crítica de Adams,aborda os novos modelos de gestão e reestruturação produtiva, um tema muito recente nos quadrinhos. Estima- se que tenha atingido um público de 150 milhões de pessoas, pois Dilbert foi publi- cado em 2000 jornais em 65 países, e traduzido para 19 idiomas32. O público-alvo das tirinhasé formado por homens e mulheres trabalhadores, majoritariamente, universitários e numa faixa etária entre18 e 45 anos. Os trabalhos de Adams foram publicados no formato de livros e coletâneas que totalizam mais de 40 obras. Um desses trabalhos tornou-se um best seller:O Princípio Dilbert. No Bra- sil, a BR Licensing Licenciamento de Personagens Ltda. (2012), informa que Dilbert foi publicado por mais de 30 editoras europeias. Na TV, o personagem se tornou desenho animado entre os anos de 1998 e 2000. Em nosso país, as tirinhas Dilbert foram veiculadas em diversos periódicos, no canal HBO e também publicadas em pocket livros, como em uma coleção da L&PM. Alguns de seus trabalhos foram publicados pela Editora Ediouro. Além das publicações das tirinhas, o personagem central, Dilbert, tornou-se videogame e di- versos outros produtos, até mesmo alimentícios, como panquecas e waffles,cujo nome comercial é Dilberito. Os personagens de Adams são caricaturas bizarras do mundo empresarial. Eles são tão absurdos que alguns chefes são animais, literalmente. São sempre muito estressados, falam e cometem loucuras. Menosprezam regras impostas pelas chefias e as novas modalidades de gestão. Os personagens percebem a falta de conhecimento do chefe quanto ao trabalho que desenvolvem e se aproveitam disso. Sempre que possível fingem que trabalham. As cenas são comumente elaboradas com poucos itens desenhados. Em geral, são os personagens que se destacam. Em algumas ocasiões, os itens mais comuns de composição de cena são: baia, cadeira, mesa, computador, papéis, sala/mesa de reuniões. O quadro a seguir apresenta os principais personagens dos quadrinhos Dilbert (QUADRO 2):

32 Existem divergências sobre essa informação. Os dados utilizados são da empresa licenciadora da marca Dilbert no Brasil, a BR Licensig. 178

Quadro 2 - Personagens das tirinhas Dilbert, de Scott Adams. PERSONAGENS PERFIL ATUAÇÃO E SITUAÇÕES Dilbert Personagem-título. Engenheiro se- Atura a incompetência dos execu- dentário sem vida social ativa. Re- tivos de sua empresa. Enfrenta a cebe conselhos de seu cão de esti- concorrência de seus colegas de mação. Inspirado na vida profissio- trabalho. A gravata fica em pé nal do próprio autor da série Scott para manifestar situações que lhe Adams. Não tem boca, apesar de ter agradam. diálogos. Essa falta da boca presu- me sua inércia e falta de “voz” pe- rante o sistema de gestão.

Representa toda a classe de geren- Tem ideias estúpidas sempre com BossPointy Haired tes de nível intermediário. Personifi- o intuito de explorar os subordina- ca a incompetência em escalões dos. Sobrecarrega as pessoas superiores nas organizações. Adora com tarefas inúteis. Assedia mo- o poder e o exercita perversamente. ralmente os funcionários. Tenta Seus cabelos parecem chifres. parecer mais esperto do que é.

Alice Sempre estressada e mal-humorada Comete absurdos e tenta se apro- devido à estupidez dos colegas ho- veitar dos colegas em reciprocida- mens. Rude e agressiva. Inspirada de mútua. Inteligente, faz comen- em uma colega de trabalho de Scott tários pertinentes em reprovação Adams, única mulher da empresa e às insanidades cometidas por igualmente mal-humorada. Boss e colegas de staff.

Asok Estagiário indiano recém-formado Novato no mercado de trabalho. no Instituto de Tecnologia Indiano. Imigrante, enfrenta a incompetên- cia e exploração de seus colegas. Tem problemas relativos à comu- nicação. Único funcionário de pele escura no staff. Para os funcioná- rios, ele é invisível e muito humi- lhado. Inspirado em um colega de Scott Sempre pensa em meios de tirar que fazia provocações para ser de- vantagem de seu chefe. mitido da empresa. Preguiçoso e negligente.

Ratbert É um rato ingênuo e obediente. Explorado por outros personagens sem nunca se conscientizar do fato.

Dogbert Diretor da Empresa. Cachorro criado Planeja conquistar o mundo e para ser companhia do protagonista. escravizar a raça humana. Atua Megalomaníaco, sarcástico e mais humilhando os funcionários sem- inteligente que Dilbert. Inspirado na pre que tem oportunidade. mescla: colega de trabalho de A- dams + uma cadela beagle de esti- mação que menosprezava os huma- nos.

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PERSONAGENS PERFIL ATUAÇÃO E SITUAÇÕES

Maléfico Diretor de RH Desenvolve políticas ilógicas e “Brinca” com suas “presas”. sádicas. Celebra suas políticas com rosnado e danças. Seus fei- tos incluem a proibição do café no escritório; o tempo no banheiro é contado como férias e a aposen- tadoria só pode ser gozada post mortem;proibiu também a água engarrafada e o ato de engolir a própria saliva. Carol Secretária com especialização e Explorada física e moralmente. Master of Business Administrati- Costuma gritar. Desconta seus on(MBA). Descontrolada emocio- aborrecimentos nos colegas. Atua nalmente. de modo perverso, vingando-se do Boss sempre que tem oportunida- de.

Elbonianos Povo e país fictício – Elbônia. Pos- Aceitam receber salários piores suem cultura com valores diferentes que os seus pares ocidentais em da ocidental. troca de emprego. Os elbonianos representam a exploração de mui- tos povos de países subdesenvol- vidos por parte das grandes cor-

porações.

PERSONAGENS Duas características principais: são Homens, mulheres, animais e SECUNDÁRIOS mais incapazes que os personagens outros seres bizarros. principais ou mais inteligentes. Fonte: Elaborado pela autora

Embora todos os funcionários passem por violências diversas da parte dos chefes ou de um colega próximo, concentramo-nos em nosso problema e observa- mos somente a violência relacionadaà personagem secretária. Assim, analisamos Carol, secretária do chefe Pointy-Haired, ou Boss. Carol é apresentada como uma mulher relativamente jovem. Possui formação superior, especialização e Master of Business Administration (MBA). Depois de di- versas situações em que Carol é vista como alienada, ela demonstra ter ciência de que sua profissão é inferiorizada e que nunca será promovida. Suas frustrações re- fletem-se em suas falas e comportamentos. Ela personifica a maldade de seu chefe: “nem todas as secretárias nascem amargas e ressentidas. Você tem que treiná-las para serem assim”(ADAMS, 1997, p.132-143). Acreditamos que isso justifica o fato de ela surgir nas tirinhas como uma mulher mal-humorada, irônica e com tendências homicidas, já que sempre tenta enviar o chefe para algum lugar ou situação em que ele possa ser morto. Quando não tenta matá-lo, ela o ridiculariza. Outro traço marcante da personagem é a ironia praticada regularmente no tra- 180

to com os colegas e a chefia. Nota-se que é a sua forma de vingança contra as hu- milhações e assédios que recebe. Em diversas ocasiões, o chefe sempre destaca a falta de importância de seu trabalho e de sua presença. Eventualmente, seus cole- gas também ridicularizam sua atividade e a humilham. Entendemos que Carol é uma personagem que responde às violências pelas quais passa, utilizando atitudes e comportamentos claramente defensivos, como a ironia ou os gritos. Optamos por analisar algumas das publicações de Dilbert da L&PM Pocket, uma vez elas concentram um número maior de tirinhas e, diferentemente dos livros do autor, não entremeiam textos entre os quadrinhos, como ocorre nos livros. Dos 8 volumes publicados pela editora, selecionamos os volumes 2, 3, 4, 5, 6 e 7, totali- zando 1590 tirinhas de 3 quadrinhos cada. Selecionamos somente as tirinhas em que Carol tem protagonismo, cujo número total foi 50. Notamos um certo equilíbrio entre o número de vezes em que a personagem lida com injúrias e o número de a- gressões que ela pratica. No Quadro 3, relacionamos as temáticas recorrentes em que observamos violência contra a secretária e o número de vezes em que são per- cebidas.

Quadro 3 - Temáticas envolvendo a secretária Carol SITUAÇÃO FREQUÊNCIA Exploração do trabalho da secretária 1 Salário não condizente 2 Gratificações não monetárias 1 Estímulo concorrência feminina 3 Trabalho menosprezado 3 Beleza X competência 1 Profissão ridicularizada 8 Aparência da secretária 1 Não é ouvida 2 Ambiente insalubre 1 Fonte: Elaborado pela autora

Em 23 tirinhas, verificamos algum tipo de violência contra Carol. Em todas, há o recurso do humor. Algumas situações são mais comuns: menosprezo, humilhação e injúria – muitas vezes, estão especificamente relacionadas a sua competência e asua profissão, de secretária. Carol passa por diversas injúrias, assédio moral e psicológi- co. Nas tirinhas, existem também ocasiões em que ela tem sua aparência questiona- da. Seu trabalho é menosprezado, sua profissão é comparada a um cadáver em de- composição em determinado momento. Elageralmente é ignorada quando fala (FI- GURA 71). 181

Figura71 - Dilbert: Preciso de Férias! (3) Porto Alegre, RS: L&PM, 2012, p.8

Em contrapartida, embora esteja sujeita a violências diversas, verificamos queem 27 tirinhas, Carolé a agressora. Ela quem faz ironias pesadas aos colegas e ao chefe. Em pelo menos 6 ocasiões, também demonstra predisposição a provocar situações de morte para o chefe (FIGURAS 72 e 73).

Figura72 - Dilbert 4: Trabalhando em Casa! Porto Alegre, RS: L&PM, 2009, p.130

Figura73 - Dilbert 4: Trabalhando em Casa! Porto Alegre, RS: L&PM, 2009, p.127

Em dado momento, Carol cria um grupo de mulheres para discutir diversos assuntos. O autor denomina o grupo como “Sociedade Insana de Mulheres” (volume 3 p.98). Assim, essas mulheres são definidas como loucas. A referida sociedade a- parece apenas em duas tirinhas. Em uma delas, as mulheres não aceitam que uma das integrantes do grupo não veja seu companheiro como alguém que odeia mulhe- res. A narrativa apresenta a misoginia como um absurdo fruto da imaginação das mulheres e algo sem sentido. A temática da tirinha expõe as mulheres como irascí- veis e desequilibradas (FIGURA 74). 182

Figura74 - Dilbert: Preciso de Férias! (3). Porto Alegre, RS: L&PM, 2012, p.98

A denominação cômica atribuída pelo autor ao grupo organizado por Carol remeteu-nos à Molière e sua peça As Preciosas Ridículas. Como aspecto históri- co,está implícito na tirinhao machismo que ridiculariza a organização e a produção feminina no campo das ideias. Sutilmente, o chiste produz associações entre loucura e mulheres, loucura e feminismo. Sugere a medida do espaço destinado à mulher: a insanidade. Mesmo nos quadrinhos, uma sociedade de mulheres recebe uma alcu- nha que ridiculariza seu agrupamento, bem como qualquer intento de questionar o mundo e suas imposições, assim como tratar sobre o relativismo cultural da diferen- ça entre os sexos. A ridicularização, nessa tira, está baseada na visão androcêntrica de mundo e no exagero, próprio do humor nesse meio. A tirinha também nos faz refletir que algo semelhante ocorre ou pode ocorrer dentro das organizações. Os quadrinhos sobre a Sociedade Insana sugerem que as mulheres têm posições exageradas, radicais e absurdas em relação aos homens. Também pontua que mulheres que se organizam são, necessariamente, contrárias aos homens e tudo que se refira a eles. As agressões a Carol têm relação com as questões abordadas pelo feminis- mo. Embora os quadrinhos Dilbert sejam uma caricatura da cultura organizacional ocidental moderna, uma sátira às pessoas e ao próprio trabalho desmoralizante e à inferioridade hierárquica, as situações em que não há valorização do trabalho e for- mações da mulher secretária são latentes. As décadas de 1980 e 1990, cenários das forçosas flexibilidades de contratos de trabalho, achatamento salarial, enfraque- cimento sindical e, acima de tudo, do acirramento da competição internacional ori- unda da divisão internacional do trabalho, estão presentes nos quadrinhos Dilbert. Verificamos que, principalmente, a violência patriarcal cometida contra as tra- balhadoras incide no moral e na sanidade das mulheres nesses quadrinhos. As se- cretárias são subalternas em todos os sentidos. Ser ignorada pelos colegas homens 183

enquanto fala é piada recorrente (FIGURA 75).

Figura75 - Dilbert 5: Odeio Reuniões! (3). Porto Alegre, RS: L&PM, 2009, p.92

A injúria sobre o trabalho que desenvolve e sua profissão pode ser vista roti- neiramente nas tirinhas em que Carol participa. Sua carreira e profissão são lembra- das pela pouca importância. A situação não muda, mesmo quando contratam uma substituta para ela durante suas férias. A secretária temporária tem formação em Física Nuclear, e atuou como Embaixatriz em Brunei. Mas isso não importa: tal como ocorre como Carol, a secretária substituta é ignorada e elogiada somente pelo fato de que sua formação e experiência lhe permitem tirar cópias muito bem. Também é rotulada como uma mulher que “fala demais”. Entendemos, assim, que, independentemente da formação e da experiência, ser secretária diminui as mulheres frente aos demais na empresa – aspectos que se confirmam em outras tirinhas nesse volume. Ser ofendida por ter a carreira compa- rada a “um cadáver em decomposição”e ser comparada a um macaco denotam o quanto a atividade secretarial é depreciada nos quadrinhos Dilbert, como uma repre- sentação cultural sobre o tema (FIGURAS 76 e 77).

Figura76 - Dilbert 5: Odeio Reuniões! (3). Porto Alegre, RS: L&PM, 2009, p.113

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Figura77 - Dilbert 5: Odeio Reuniões! (3). Porto Alegre, RS: L&PM, 2009, p.128

Ratificamos que as novas tecnologias modificaram profundamente o trabalho secretarial e as funções desempenhadas pelas secretárias. Os novos tempos do Personal Computer nas firmas exigiam novos e maiores conhecimentos sobre ges- tão. Não por acaso Carol tem especialização e MBA, mas isso não impede que seu trabalho seja ínfimo, emburrecedor e menosprezado pelo superior e pelos demais colegas. Existem ocasiões em que Carol é solicitada a fazer algum serviço que não condiz com sua atividade – recolher cadeiras deixadas à esmo pelos colegas.

Figura78 - Dilbert 6: Terapia em Grupo. Porto Alegre, RS: L&PM, 2012, p.13

Em uma tirinha,Carol é exibida como uma mulher que abusa da política da empresa em relação à redução de carga horária de trabalho para os funcionários com famílias. Por ter família numerosa, ela “aproveita” a política empresarial para não precisar comparecer ao trabalho (FIGURA 79). Observamos que o autor repro- duz, assim, um aspecto comumente relacionado às mulheres com filhos, que preci- sam se ausentar do trabalho pelos mais variados motivos (doenças, escola etc.).

Figura79 - Dilbert 5: Odeio Reuniões! (3) Porto Alegre, RS: L&PM, 2009, p.55

185

A crítica de Adams ao sistema da moderna administração não somente de- monstra como o mercado atua perversamente no sentido de maximizar a produção e reduzir os custos, onde se incluem os salários, fragilizar as relações entre os traba- lhadores, mas, principalmente, implica reproduções de violências contra mulheres. Nos quadrinhos Dilbert, os temas das narrativas abrangem o mundo corporativo em todos os seus aspectos: trabalhadores, formação, salários e programas de carreira; liderança; hierarquia das necessidades, programas de motivação; avaliação de de- sempenho; microgerenciamento; newsletter; treinamento; empowerment; reorgani- zações; programas de remuneração; downsizing, mundialização da empresa, migra- ção da produção para países periféricos e recursos humanos. A remuneração da secretária é um tema que surge em algumas tirinhas e é igualmente ridicularizado (FIGURA 80).

Figura80.- Dilbert 4: Trabalhando em Casa! / Porto Alegre, RS: L&PM, 2009, p.107

Figura81 - Dilbert 5: Odeio Reuniões! (3). Porto Alegre, RS: L&PM, 2009, p.84

Também estão presentes nos quadrinhos Dilbert fragmentos das pressões do mercado sobre os trabalhadores, como a desestabilização do emprego e exigências de formação. Todos os temas que vimos nas mais de 1500 tirinhas refletem o mun- do do trabalho e as corporações dos anos 1980/90. São, principalmente, as relações adoecedoras orquestradas por personagens que exercem o sadismo contra os pro- fissionais ali que provocam o riso. A empresa é o lugar de vida e de morte em todos os sentidos,literalmente. 186

Para as mulheres, observamos que as violências não deixam de tocar em temas essenciais nas lutas feministas. O tema das dietas, por exemplo, é abordado sutil- mente e se relaciona ao Mito da Beleza (FIGURA 82). Nas tirinhas, o chefe consulta a secretária sobre qual a melhor dieta a se fazer. Em outras tirinhas, após ter segui- do as orientações da secretária, ele vai enlouquecendo aos poucos.

Figura82 - Dilbert 4: Trabalhando em Casa! Porto Alegre, RS: L&PM, 2009, p.48

Os quadrinhos Dilbert não poupam nenhum de seus personagens – todos es- tão sob violências. Isso é verdade. Masnosso olhar foca, conforme os objetivos des- ta pesquisa, quais sãoe como se manifestam as violências contra a personagem se- cretária. Notamos que, nos volumes analisados, existe um equilíbrio entre a quanti- dade de vezes em que Carol é humilhada e a quantidade de vezes em que ela usa a violência (ironia e agressividade) contra os colegas e chefe. Ainda assim, entendemos que a personagem Carol apresenta características da subalternidade proposta por Spivak (2011), porque, como mulhere secretária, ela não tem voz. Mesmo quando se expressa, nunca é ouvida ou levada a sério. Na fi- gura abaixo, o funcionário segue perguntando por colegas, mesmo depois de a se- cretária gritar que não faz parte de seu trabalho saber sobre o paradeiro dos funcio- nários. Ele ignora seu surto, ignora sua resposta, e novamente pergunta, mas dessa vez sobre outro funcionário (FIGURA 83).

Figura 83 - Dilbert: Preciso de Férias! (3). Porto Alegre, RS: L&PM, 2012, p.105

Carol não tem voz. Não adianta falar. Não adianta gritar. Não adianta explicar 187

sua posição. Ela não é ouvida. No Manual de Gerência (1997, p.131), há um subcapítulo dedicado às secretárias. Adams orienta como prejudicar, ofender e maltratar as secretárias: “nem todas as secretárias nascem amargas e ressentidas. Você tem que treiná-las para serem assim” (1997, p.131). Seus quadrinhos reprodu- zem,sob o humor, a falta de valorização da atividade secretarial e da profissional secretária.Ao mesmo tempo, sempre que Carol usa a agressividade contra o chefe, ela segue sem ter sua fala considerada, ouvida – ele não importa (FIGURA 84).

Figura 84 - Dilbert 4: Trabalhando em Casa! Porto Alegre, RS: L&PM, 2009, p.128.

As mulheres profissionais, em Scott Adams,em geral,são representadas em inferioridade hierárquica, sem poder de decisão, atinadas às tarefas menores, pouco exigidas intelectualmente, ridicularizadas porsua aparência, vilipendiadas pelas cir- cunstâncias e pelo poder patriarcal claramente plasmado nos quadrinhos, e personi- ficado na figura do Boss ou de seus subalternos masculinos. Em geral, as personagens femininas em Dilbert são mulheres com poucas curvas, ou nenhuma, desenhadas em linhas quase sempre retas. Elas não têm cor- po de mulher. Não têm seios. Ainda assim, o tema da beleza é evocado em algumas situações. Carol é instada a concorrer com outras colegas mulheres. A secretária questiona o chefe sobre o assunto (FIGURA 85). Momentos antes, o chefe havia apresentado a funcionária recém-contratada à engenheira Alice como: a “sua nova inimiga natural”.

Figura 85 -Dilbert 4: Trabalhando em Casa! Porto Alegre, RS: L&PM, 2009, p.10

188

Embora Futuro Dilbert – comoprosperar com a estupidez do século XXI (ADAMS 1997, p.110-113) seja um livro de humor e quadrinhos, e portanto ficcional, o autor apresenta uma lógica reversa para explicar que não são os homens que controlam o mundo, e sim as mulheres. Para ele, se o mundo fosse de fato governado pelos homens como eles desejam, as regras seriam outras porque os homens só querem sexo. O tempo todo. A moeda corrente, a recompensa, os brindes e tudo mais seria sexo. No capítulo “O Futuro das relações entre os gêneros”, o autor apresenta a teoria de que a maioria dos cientistas é composta por homens héteros e, portanto, “naturalmente” lascivos. Na visão de Adams, eles seriam os responsáveis pelo desenvolvimento de drogas que potencializariam essa tendência. Sexo é um tema distante das tirinhas que analisamos, mas pontuamos a visão do autor sobre o tema, como forma de registrar que ela existe em sua obra e que assédios de ordem emocional ou sexual são abordados por ele com outros personagens. Nossa análise confirma que o mundo de injúrias,nos quadrinhos de Scott A- dams, evidencia a subalternidade da mulher nos escritórios. A secretária Carol é um fragmento, uma reprodução do mundo real.

189

4FENÔMENO DA DIFERENÇA – MUDAM AS PROFISSÕES, MAS E

A VIOLÊNCIA?

Estabelecemos como “fenômeno da diferença” considerar violências contra mulheres trabalhadoras com outra formação e atividade profissional. O intuito foi ve- rificar se as violências que observamos em relação às secretárias seriam semelhan- tes às representações de mulheres em atividades consideradas superiores à ativi- dade secretarial.

4.1 ALICE, A ENGENHEIRA SURTADA

Inciamos nossa análise com Alice, uma das principais personagens de Scott Adams. Utilizamos os mesmos volumes em que procedemos as análises da perso- nagem Carol (2, 3, 4, 5, 6 e 7). Em 1590 tirinhas de 3 quadrinhos cada, Alice apare- ce como protagonista ou compartilha o protagonismo em 114 com temáticas relacio- nadas ao nosso tema – 86 da quais foram mais significativas para a pesquisa. Engenheira, ela geralmente surge nas historinhas sempre vestida com um tailleur e saia. É desenhada com uma sugestiva cabeleira em forma de pirâmide, o que a vincula à sua profissão, pela alusão geométrica. Sobre a sua personalidade, Alice demonstra ser muito inteligente, e por diversas vezes questiona com proprie- dade o chefe e os colegas. Pondera sobre deliberações esquizofrênicas dos execu- tivos e expõe seu ponto de vista sobre atividades, projetos, verbas e ações inúteis na firma. Ela geralmente não ri, salvo em raras ocasiões, mas o seu riso costuma ser sádico.Em suas aparições, ela geralmente é séria, sarcástica/irônica ou completa- mente descontrolada emocionalmente. Costuma agredir com ironias e fisicamente os colegas de trabalho. Muitas de suas agressões são reações às agressões pelas quais passa. É conhecida por socar as pessoas e destruir objetos. Alice, como todos os funcionários na ficção Dilbert, vive em um ambiente de constantes assédios morais e psicológicos.

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Quadro 4 – Temáticas mais recorrentes - Engenheira Alice SITUAÇÃO COLEGAS E OUTROS CHEFIA Exploração no Trabalho 4 Salário 1 7* Estímulo à competição feminina 2 1 Profissão/trab. menosprezado 1 8* Comportamento/descontrole 3 7 Beleza 1 3 Aparência 5 - Corpo 3 - Ignorada 2 1 Provocada 7* 5* Acusada de roubo (tempo/site clima) 1 Vida pessoal/profissional (hormônio/filhos) 1 Fonte: Elaborado pela autora * “situação concomitante a outras em uma mesma tirinha”

Ao analisarmos Alice, verificamos que a temática da violência é o mote de muitos dos seus quadrinhos. Ela passa por violência em 63 ocasiões, em muitas das quais revida com violência ou ironia. Curiosamente o autor utiliza outra explicação para o fato de ela agredir fisicamente as pessoas. Em uma tirinha (ADAMS, 2012, p.65), ela toma café com o colega Dilbert e diz que usa “a raiva do emprego para desestabilizar [seu] equilíbrio hormonal e sufocar [suas] outras necessidades”; no quadro seguinte, ela conclui: “Isso me lembra... Se eu não socar alguém hoje, vou ter vontade de ter filhos”. O autor, mesmo que inintencionalmente, centra o desequi- líbrio emocional da personagem em questões biológicas e culturais como o mito da maternidade. A piada desconsidera o ambiente adoecedor da firma e das chefias de Alice. Assim, a culpa pelo comportamento inadequado recai sobre a própria mulher e os seus “problemas” pessoais. Trata-se de uma representação social do pensamen- to e condicionamento biologizante sobre a mulher. Alice não tem escrúpulos quanto ao uso da agressão física ou verbal em seus atos. Costuma ser violenta contra pessoas ou objetos sempre que provocada, con- trariada ou interrompida (FIGURA 86). Em uma ocasião, ela soca uma colega, mas geralmente seus socos são desferidos contra homens. Foram pelo menos 6 socos desferidos em colegas, mais 1 em um chefe e dois socos em desconhecidos. Tam- bém espanca colegas batendo em seus corpos ou cabeça em 8 ocasiões. Ameaça bater em 5 momentos. Em duas situações, o quadro sugere que irá matar o colega, ou de fato ela mata (zumbi/holograma).

191

Figura 86 - Alice descontrolada durante uma reunião

Fonte: Adams (2009, p.41).

O chefe Boss, Pointy Hired, assedia Alice assim como todos os demais fun- cionários,mas existem situações muito peculiares sobre seus assédios. Em determi- nada ocasião, Alice é humilhada pela sua aparência, consideradamáscula em com- paração à outra funcionária cuja narrativa deixa claro ter sido contratada somente pela sua beleza. Aqui se confirmam dois aspectos de violência machista (FIGURAS 87, 88 e 89).

Figura 87 - Alice sendo assediada pela chefia. Beleza 1

Fonte: Adams (2009, p.9)

Figura 88 -Alice sendo assediada pela chefia. Beleza 2.

Fonte: Adams (2009, p.10)

Estão presentes nessas tirinhas a inserção da ideia de inimizade entre mulhe- res, naturalizada pela construção cultural patriarcal, e a existência de padrões de beleza necessários ao trabalho da mulher, em oposição à sua qualificação. Os ho- mens se comportam de modo a agradar a funcionária bela, enquanto Alice quer se livrar da “concorrente” cuja qualificação é a aparência comparada à sua como pa- 192

drão de feminilidade. As narrativas dessas tirinhas transitam na esfera do Mito da Beleza.

Figura 89 - Alice sendo assediada pela chefia. Beleza 3

Fonte: Adams (2009, p.11)

Em outra ocasião, Alice está em uma consulta médica e o doutor lhe informa o porquê da existência de deformidades em seu corpo: elas decorrem do tipo de tra- balho que desenvolve e, obviamente, da falta de ergonomia na empresa. Mesmo sendo um profissional de saúde e estando fora do escritório adoecedor, Alice segue passando por assédio, dessa vez do médico (FIGURAS 90 e 91).

Figura 90 - Alice em consulta com o Médico.

Fonte: Adams (2009. p.96)

A injúria cometida pelo médico está novamente permeada na disseminação da idéia de um padrão de beleza aceito pela sociedade ocidental. Para fundamentar sua assertiva o médico explica a situação mostrando à paciente imagens das suas nádegas e comparando-as ao “traseiro da mulher saudável que não trabalha fora” (FIGURA 91).

193

Figura 91 - Alice e as alterações no corpo decorrentes do trabalho

Fonte: Adams (2009. p.97).

A afirmação do médico contém traços do patriarcado quanto às questões re- lacionadas ao trabalho feminino fora do lar. A ideia por trás da mensagem na tirinha é a de que trabalhar fora interfere na estética feminina e transforma o corpo da mu- lher em algo “anormal”. Trabalhar fora é, portanto, prejudicial à manutenção da bele- za e das formas do corpo. A medicina aparece na narrativa como umas das discipli- nas que dispõem paradigmas sobre o controle do corpo. A estética também faz parte do contexto da narrativa, de modo que a moldagem do corpo está vinculada a pa- drões de beleza. Estão presentes em diversas tirinhas as dificuldades que as mulheres encon- tram para avançar em suas carreiras nos escritórios. Em certas ocasiões, determi- nados cargos são ocupados por alguma contratação externa, sem aproveitamento do pessoal interno. Em uma tirinha que exemplifica essa dificuldade de promoção e desenvolvimento de carreira, Alice está com o cabelo desalinhado e veem-se fios arrepiados, o que indica seu estado após trabalhar 80 horas por semana. O quadri- nho aborda, assim, a questão da carga horária de trabalho, dobrada. Embora traba- lhe tanto, seus esforços não são reconhecidos, tampouco recompensados. Mesmo quando há chance de avançar para outros cargos ela é preterida (FIGURA 92) – às vezes por uma mulher bela, cuja qualificação é inferior, às vezes por um homem. Não há critérios coerentes na empresa, óbvio, mas o quadrinho não trata disso, e sim de rebaixar a funcionária.

194

Figura92-Alice e carga horária de trabalho

Fonte: Adams (2012, p.7)

Alice, como as demais personagens femininas de Scott Adams, concentra fragmentos de representações semelhantes ao que ocorre a muitas mulheres no mundo real, no trabalho. Nesses quadrinhos é explícita a dupla subalternidade das trabalhadoras. São representações ficiconais de mulheres em ambiente organiza- cional claramente patriarcal. Mesmo quando estão em igualdade hierárquica, as per- sonagens são caracterizadas como descontroladas emocionalmente e são constan- temente vilipendiadas por deliberações de uma chefia sádica que não se importa em humilhar os funcionários. No volume 2, por exemplo, veem-se duas funcionárias, uma que se senta no colo do colega e outra que tem o sugestivo nome de “Frígida” etem ondas de calor durante uma reunião (indicador hormonal para idade). Existem diversas funcionárias em papel secundário nas tirinhas Dilbert e elas são igualmente satirizadas. Em geral, as piadas são em relação à pouca importância de sua compe- tência, carreira, produção... Piadas recorrentes. Alice, uma trabalhadora formada em engenharia, não está livre da violência em seu ambiente de trabalho. Ela lida com e reproduz violência. As personagens caracterizadas como desequilibradas, mental e emocionalmente, como Alice, gritam e agridem moral ou fisicamente os colegas. Percebemos que elas não são totalmen- te alienadas, mas verificamos que o seu despertar é lento. Essa subalternidade rela- cionada à consciência é explicada por Spivak (2011, p.72) sobre a incapacidade de ver e interpretar o que está além das circunstâncias. Mesmo quando compreendem o que está ocorrendo, as mulheres permanecem subalternas nos quadrinhos de Scott Adams. A visão delas é limitada. Enxergam as partes e não o todo. Estão co- mo as mulheres da família de Spivak. O autor captou, em certa medida, uma con- formidade com a subalternidade. Forçosamente, os quadrinhos do Adams reproduzem traços de muitos aspec- tos da cultura organizacional no ocidente. E, nesses termos, reportamos Morin (2003, p.77) que afirma a necessidade de “considerar a cultura como um sistema 195

que faz comunicar – em forma dialética – uma experiência existencial e um saber constituído”. O leitor comunga das tirinhas e suas piadas, por ser detentor de códi- gos de linguagem, símbolos, padrões e modelos que vivenciam em seu trabalho, e com os quais tem contato também nos quadrinhos. Atribuímos tais reconhecimentos ao fato de que a cultura é “a maneira como se vive um problema global” (2003, p.77). E os trabalhadores, em nosso caso as mulheres trabalhadoras, têm experi- mentado abusos no ambiente organizacional. Os problemas que afligem as pessoas nas empresas são, de certo modo, comuns na cultura ocidental. Os quadrinhos de Adams alcançam identificação com o público leitor justamente por esse reconhecimento ou projeção. Ao mesmo tempo compreendemos que, para o leitor, os padrões das violências contra as mulheres recorrentes nos quadrinhos Dilbert espelham fragmentos dos problemas vividos pe- los outros (SONTAG, 2003). De igual modo, as desigualdades de gênero em relação ao trabalho das mulheres são pontuadas nesses quadrinhos.

4.2 MARA TARA, UMA DOUTORA VICIADA EM SEXO

Personagem dos quadrinhos brasileiros, Mara Tara é uma criação de Arnaldo Angeli Filho, artista que trabalhou por 43 anos no jornal Folha de S. Paulo, a princí- pio com cartuns. Começou como cartunista do referido jornal em 1973, mas em 1983 passou aos quadrinhos no caderno “Ilustrada”, publicando às segundas-feiras. Permaneceu no“Ilustrada” durante 33 anos.Foram mais de 3.272 tirinhas, segundo Angeli, que chegou a esse número em 1997, quando então parou de contar. A última tirinha do artista foi publicada em 8 maio de 2016. Com mais de 30 mil trabalhos publicados, composto por charges e tirinhas re- cheadas com personagens controversos e de grande destaque nos anos 1980, ele defende “a liberdade de ser politicamente incorreto”, em entrevista concedida a Mar- celo Pinheiro no Portal Terra, em 26 de março de 2012. O artista não esconde que sua obra é um fragmento da vida desregrada e de excessos que tevee admite que criou seus personagens inspirados em frequentadores dos bares dos quais costu- mava ser habitué. Destaca o bar Riviera, um dos seus preferidos, como um “antro de fauna transgressora” e assume sua paixão por Robert Crumb, tido como um guru 196

por muitos cartunistas underground, como ele. Angeli assume que sua arte quadri- nística funcionou como uma redenção para sua vida que poderia ser “ordinária ou até mesmo uma vida de crimes”, dada sua juventude delinquente. Com várias obras publicadas, entre elas a revista Chiclete com Banana criada em 1983, com tiragens de mais de 110 mil exemplares, ele seguia publicando no jornal até o ano de 2016. Teve trabalhos publicados em mais de 20 (vinte) periódicos no Brasil e ainda mantém um espaço no Portal UOL, onde seus trabalhos estão dis- poníveis on-line. Em outubro de 1985, lançou o primeiro n° da revista Chiclete com Banana, publicação que teve 24 edições,sendo encerrada em 1992. Angeli (2001) informa que a tiragem média da revista era de 100 mil cópias mensais entre os anos de 1987 e 1992 (LIMA, 2013, p.61). Outras quatro edições especiais do autor foram: Bob Cuspe (1987), Rê Bordosa – A morte da Porralouca (1987), Abaixo a direita!(1990) e Histórias de Amor (1990). Teve ainda outros títulos derivados, que foram publicados até 1995 (MARTINS DOS SANTOS, 2012, p.102). Angeli conta, em sua produção, com outras publicações igualmente importantes: a série Antologia Chiclete com Ba- nana (dez edições de junho de 2007 a janeiro de 2010); e o livro Toda Rê Bordosa (junho, 2012). A revistaO Grito do Portal UOL publicou, em 13 de agosto de 2010, entrevista em que Angeli explica estar mais difícil “ser politicamente incorreto”. Para ele,

as pessoas estão cercando os incorretos… Não desenhe isso, não desenhe aquilo. Algumas tiras causam problemas. Fiz uma, da série ‘Lovestórias’, em que uma mulher falava: ‘Você não me toca há muito tempo’. Aí o cara levantava, cobria a mulher de porrada e voltava: ‘Pronto, já toquei’. Recebi várias cartas dizendo que eu tava propa- gando a violência contra a mulher… Não percebem que o ridículo da história é o marido (ANGELI, 2010, s.p.Grifos do autor).

A fala do artista sobre a questão da violência contra mulher é controversa. Obviamente que “o ridículo” e criminoso, “da história é o marido”, como ele diz, mas o tema violência contra a mulher não é tratado no sentido de explorar tal questão. Depende, como sempre, dos leitores também fazerem essa análise. Se admitirmos que há uma representação coincidente com os valores, hábitos e comportamentos imputados pela cultura dominante machista que “geram identificação”, conforme ex- plicado por Silva (2002, p.64), esse exemplo de quadrinho apontado por Angeli usa 197

o humor sobre algo que acontece na vida real. Desse modo, segue reproduzido no mundo ficcional a banalização, em certa medida, da violência de gênero. Ponderamos que, embora Angeli afirme que “a função do cartunista é alfine- tar, levantar discussão” (2010, s.p.), os usos do humor em questões de violência e a permissividade poética da arte dos quadrinhos não promovem uma reflexão crítica imediata para todos os leitores. Dependerá da cognição para a leitura e interpreta- ção e, também, dos valores e perfil dos leitores. Angeli admite seus problemas com o sexo, mulheres e violência em pelo me- nos duas ocasiões. Uma delas com a história da personagem Rê Bordosa, para ele uma mulher gráfica que crescia e expressava novos valores e comportamentos, ti- dos como feministas, e que ele não “suportava” ver, não admitia, conforme declarou no curta premiadíssimo Dossiê Rê Bordosa. No filme, ele detalha porque matou a personagem e ao final exaspera: “Não esqueça, a Rê Bordosa sou eu!” (2008, s.p.). Entender a morte dessa mulher ficcional é um marco significativo sobre as re- presentações femininas nos quadrinhos brasileiros. É importante conhecer a história de Rê Bordosa, por se tratar de um caso de liberdade extrema de uma mulher nos quadrinhos, e também de violência. Angeli admite que

Quando não sabia o que fazer, desenhava a Rê Bordosa. Sabia que ia fazer sucesso (...) Eu tinha muito medo de ser aprisionado pela Rê Bordosa. Ela era uma personagem que se eu quisesse poderia ter trabalhado de forma bem profissional e ter ganhado muito dinheiro. Mas eu queria manter a Rê Bordosa do jeito que eu pensei, uma mu- lher da noite, cheiradora, fumeta e que dava para todo mundo. (AN- GELI, s.d., s.p.)

Adepta de comportamentos inaceitáveis para o seu criador, homem, ainda que ela tenha surgido como mulher “inadequada”, cresceu tanto junto ao público que o seu sucesso incomodava Angeli, conforme ele mesmo admitiu:

Ela é uma velha junkie, usuária constante de bebidas, cigarros e dro- gas que normalmente não lembra o que fez embriagada. ‘Eu nunca sentaria na mesa de um bar com ela’, conta o cartunista, ‘quem iria gostar de uma mulher bêbada babando no seu ouvido?’. Segundo ele, ela tem algo em comum com suas outras criações: todas são fi- guras com que ele detestaria conviver, fazendo uma única exceção a Bob Cuspe, a quem ele se afeiçoou com o tempo. ‘Acho que é por não gostar muito deles que sou até meio sádico nas minhas histó- rias’, brincou o cartunista. (ANGELI, 2016, s.p.Grifos do autor).

198

Rê Bordosa rompeu com a cultura machista e quaisquer enquadramentos i- dealizados para a fêmea urbana. Ela era umarepresentação caricata das mulheres que o Angeli encontrava na noite, nos bares. A violência contra a personagem es- panta pela proximidade com a realidade de violências contra mulheres.

A forma como imaginou a morte de Rê Bordosa mostra bem sua cru- eldade. Ela é jogada de uma ponte, queimada e cai de uma grande altura, mas o que a termina matando de verdade é o vírus mortal ‘te- dius casamentus’. A história da revista Chiclete com Banana virou na época manchete dos principais Jornais, com destaque para a frieza do seu criador. (ANGELI, 2016, s.p.Grifos do autor).

Pode-se argumentar que Angeli também matou outros personagens, e que então a sua violência não é exclusiva contra uma representação feminina. Mas exis- tem distinções nas mortes de suas criações. As relações do artista com seus perso- nagens estão baseadas em traços, valores e comportamentos dele: “Eu não consigo desenhar coisas que tenham a ver com a vida dos outros. Eu desenho aquilo que me incomoda. Todos os meus personagens me incomodam” (ANGELI, s.d., s.p.). Mesmo tendo matado outros personagens, como o revolucionário Meiaoito, um comunista cuja guerrilha se realizava dentro de um bar, ele o fez, com este o com os demais, diante da convicção de que “o repertório ideológico de personagem está datado” (ANGELI, 2016, s.p.). Existem distinções nas piadas das mortes. Meia- oito foi atropelado por um caminhão de coca-cola. Rê Bordosa, por sua vez, teve uma morte antecedida por requintes de tortura, de certo modo semelhante aos ca- sos de violência doméstica contra as mulheres na vida real. As violências contra as mulheres e o feminicídio acontecem, entre outros fatores, porque os homens as têm como objeto e detêm poder sobre elas, inclusive de vida e de morte. Nos quadrinhos de Rê Bordosa, a maneira como foi morta pelo seu criador

deixou explícito seu desprezo (ou raiva) pela personagem. Ela foi jo- gada de uma ponte, depois queimada, mas por fim morreu por um ví- rus mortal chamado ‘tedius matrimonius’. Tanto sadismo chegou a ga- nhar a imprensa nacional à época, tamanha a fama da tira. Desboca- da, suja, bêbada, Rê foi a anti-heroína mais simpática das HQs nacio- nais. Encostada ao balcão, ela estava sempre a pedir um copo de vodka (sua bebida preferida) e contar dissabores emocionais sem ne- nhum pudor, nem remorso. (ANGELI, 2016, s.p.Grifos do autor)

O significado da fantasia como protagonista da perversão “torna o discurso de 199

determinados produtos culturais um elemento importante para entender como os desejos são trabalhados nas elaborações de fantasia” (SILVA, 2002, p.63). Por isso, desejo e imaginação se projetam nos desenhos e quadrinhos de Angeli, já que:

Essa coisa de fetiche, do sexo, do lado punk, são coisas minhas, in- ternas minhas; eu sou fetichista hoje, eu tenho uma coisa com sexo mal resolvida... pervertida; eu passo no meu trabalho até essa coisa mal resolvida. Eu não falo ‘ó, eu sou cabeça, né’ ou ‘beleza, eu sou cabeça e tal’; é mostrar, porra, eu sou torto, eu sou torto, eu tenho te- sões mal resolvidas e tal, principalmente em cima de roupas femini- nas, langerie, né [risos], e então... e as pessoas às vezes não sabem como colocar pra fora isso, e talvez o cara que não sabe como colocar pra fora vire o tarado no mau sentido, aquele que é capaz de, sei lá, estuprar uma menininha e tal; eu, se não fosse um desenhista, seria um psicopata qualquer, seria mesmo, psicopata, eu ficaria aí, tentando morder mulher na rua, mas, como eu uso o desenho como canal, eu me salvo dessas coisas [risos]. (SILVA, 2002, p.63. Grifos do autor)

No caso de Angeli, ele tem consciência do que faz nos quadrinhos e charges. Para o bem ou para o mal. Ele assente que, além do desenho, o texto tem grande importância em seu trabalho e admite a intencionalidade:

meus personagens não se movimentam, só param e falam. Sempre tive clareza de como construir texto, o que é o começo, o meio e o fim. Consigo levar o leitor para onde quero que ele vá. Meu problema são as regras... Acho que tenho uma leve dislexia, até hoje troco o F e o V, o Q e o G. (ANGELI, 2010, s.p.)

Podemos então conjecturar para onde Angeli quis nos levar com seus dese- nhos e personagens. Sua assertiva se aplica em nossa análise de Mara Tara. Con- sideramos o exemplar Mara Tara, Oliveira Junky e outras histórias de Angeli, uma compilação de suas principais produções entre os anos 1985 e 1989, publicadas na revista Chiclete com Banana pela editora Circo33 que, conforme já assinalado, teve importante papel no lançamento dos quadrinhos transgressores desse autor. A revis- ta que analisamos é uma edição especial (única), de 84 páginas e formato 21X28, com quadros em preto e branco. Foi publicada pela Editora Brasiliense em 1990 e- contém as características dos quadrinhos de sua categoria no período

33 Surgida em meio à redemocratização do País e à crise inflacionária (SANTOS, 2011, p.150). O criador da Circo Editorial, Antonio de Souza Mendes Neto, tem sua trajetória pessoal vinculada aos conteúdos das publicações da editora. Teve contato com publicações alternativas, a exemplo do jor- nal Pasquim e da revista Grilo, que continham quadrinhos de Robert Crumb, Guido Crepax, Wolinski e diversos outros artistas. As características das publicações da editora eram o humor popular e críti- co. (LIMA, 2013, p.48). 200

A influência do comix underground, a partir da década de 1970, levou a uma representação pictórica ‘mais suja’, ou seja, com manchas de tinta propositais em diversos pontos das vinhetas, estilo que reforça o tom irônico, contestador e alternativo do humor gráfico brasileiro. (SANTOS, 2011, p.120)

A personagem de nossa análise usa dois figurinos, um para cada momento de sua caracterização. Quando atua como doutora, aparenta ser uma mulher mais corpulenta, veste-se como uma senhora de mais idade, usa saia abaixo dos joelhos, um casaco que se assemelha a um jaleco, óculos redondos, brincos de pérolas e um penteado conservador. O seu comportamento é sério e reservado. Costuma não responder alguém ou simplesmente relevar assuntos que não lhe interessam. Quan- do se transforma em Mara Tara, ela tem um corpo escultural, utiliza espartilho fio- dental, meias-calça arrastão, botas de saltos altos e cano longo, chicote, cabelos Chanel e óculos escuros de estilo “gatinho”. Na história Mara Tara uma aventura na Jamaica, história que abre a edição especial, a personagem viaja para esse país a trabalho, na companhia de um cole- ga. No segundo quadro a legenda informa: “Doutora Mara e Dr. Langruber. Dois respeitáveis cientistas. Ele, um membro do Conselho Internacional da Ciência”. Dra. Mara diz: – Conselho da ciência?! Aqueles idiotas! Recusaram a minha tese! Dr. Langruber responde: Eu sei! Aquela que diz que as bactérias têm sexo. No próximo quadro lê-se a legenda: “Ela, autora de uma tese polêmica que ‘prova’34 que as bactérias reproduzem-se sexualmente, existindo bactérias fêmeas e machos”. Abaixo da legenda, o doutor sugere aproveitar a viagem ao paraíso cari- benho para que façam sexo.

34 Grifos nossos. A questão da “prova” sobre o relatório científico da Dra. Mara é um importante as- pecto a ser considerado principalmente em se tratando de ciência. 201

Figura 93-Mara Tara

Fonte: Angeli (1990, p.7).

Todas as insistentes insinuações do doutor são contestadas e ignoradas por ela.

Figura 94-Mara Tara e o assédio sexual

Fonte: Angeli (1990, p.8). 202

Figura95-Mara Tara e o assédio sexual 2

Fonte: Angeli (1990, p.8)

Dra. Mara segue para seu quarto, no hotel. No decorrer da história, vê-se que seu colega de trabalho invade seu quarto, seu banheiro, usando somente cueca en- quanto ela está no chuveiro. Assustada com a sombra por trás da cortina do Box, a personagem grita por socorro e logo começa a passar por uma transformação que se desenvolve em sete quadros. No oitavo quadro, ela chega à forma dominatrix e assume a personalidade Mara Tara. O artista utiliza como recurso narrativo a fórmula do clássico de terror psicoló- gico vitoriano, The Strange Case of Dr.Jekylland Mr. Hyde –romance de 1886, do escritor escocês Robert Louis Stevenson.As legendas na sequência de sua trans- formação esclarecem que a doutora Mara se transfigura em uma dominatrix ninfo- maníaca sempre que exposta a uma situação de perigo sexual. O autor explica que isso é decorrente de uma contaminação com um vírus de origem asiática. A legenda informa que, sempre que isso ocorre, a personagem se torna a “terrível... Mara Ta- ra”.

203

Figura 96-A transformação em Mara Tara

Fonte: Angeli (1990, p.10).

O duplo da personagem age de forma estritamente sexual, violentando ho- mens com felação. Enquanto ela ataca o seu colega invasor e quase o mata, a le- genda questiona: “O que se pode dizer de uma mulher que suga suas vítimas até a morte, aterrorizando o mundo masculino?”. O homem em suas histórias é o ser inde- feso e aterrorizado por uma mulher que o suga sexualmente até a morte – estaé a piada. O assediador torna-se assediado. Ele é a vítima. Essa fantasia possibilitada nos quadrinhos da Mara Tara é possivelmente comum a muitos homens. Embora o autor admita resolver suas perversões no mun- do ficcional utilizando as representações femininas, a lógica reversa mostra os ho- mens como vítimas sexuais dessa mulher. São os homens que morrem pela sua felação. A inversão dos papéis sexuais, em que o poder e o controle sobre o outro estão explícitos, colabora para compreensão das subjetividades do sujeito (HARA- WAY, 2013). Também é possível associar as práticas da personagem às infrações das regras sociais (FOUCAULT, 2001) que organizam a sexualidade “saudável”. Nesses quadrinhos, o monstruoso tem a liberdade de ser o que é, uma aberração, 204

um anormal. Mara Tara foge para a floresta antes que consuma o homicídio contra seu co- lega. Encontra uma tribo jamaicana e pratica sexo grupal com os homens de lá. Ela participa de uma noite de dança, maconha e orgia, sugando diversos homens da tribo. No dia seguinte, a notícia de que há uma mulher tarada se espalha no hotel e na ilha. Comentam que há entre eles uma mulher que “deixa a vítima seca”. Vêem- se diversos homens ansiosos pela experiência com tal mulher.

Figura 97-As taras dos caras

Fonte: Angeli (1990, p.15).

Quando passa o efeito da transformação de Mara Tara, ela perde as lem- branças de tudo o que fez. O episódio termina sem que consigam descobrir a sua dupla identidade, e sem que ela mesma tenha consciência do que ocorreu. O colega doutor segue insistindo em sexo com ela, mesmo quando já estão deixando a ilha, e mesmo tendo passado por uma experiência de violência sexual recente. Identificamos nesse episódio a reprodução de aspectos dos binarismos de gênero, mas localizamos uma questão ainda mais intrigante que as comumente en- contradas nas HQs. Embora sejam latentes os conteúdos relacionados à exploração do corpo da mulher, da beleza versus feiúra, peso e aparência, sexualidade e vio- lência sexual presentes em Mara Tara, pontuamos também que o trabalho da per- sonagem como pesquisadora não tem valor. E consequentemente, profissionalmen- te ela não tem valor. De fato, é necessário estudar exaustivamente as causas da violência que são bombardeadas pelas imagens midiáticas de violências (ŽIŽEK, 2014, p.22). Mara Tara é a violência personificada, o monstruoso sexual. Uma mulher que assume seu corpo e sua sexualidade, doentia. Dra. Mara é o ser inconsciente sobre seu duplo. 205

Mas existem outras violências na história de Mara Tara. A narrativa informa que a doutora Mara “prova” em sua tese que as bactérias se reproduzem praticando sexo. Se há uma “prova” biológica, então o que impediria a Dra. Mara de ser aceita pelo “Conselho Internacional de Ciência”? Para nós, esse aspecto tem relações com o mundo real. Não obstante a ciência evolua pela ruptura dos paradigmas científicos suplantados pelo surgimento de novos paradigmas, mesmo no mundo ficcional onde toda exceção é possível, o trabalho da Dra. Mara não é aceito. Inferimos alguns fragmentos de representação da violência, entre os quais a distinção dada pelo autor quando se refere ao colega da doutora: “Ele, um membro do Conselho Internacional da Ciência”. Em nossa análise, a caracterização da personagem é uma representação que aborda o descrédito e a falta de valorização das mulheres na ciência no mundo real. Para nós, o artista terminou por captar e plasmar, mesmo inconsciente, um ideolo- gema que as mulheres ainda enfrentam diante do mundo científico, percebido em seus quadrinhos. No mundo real, o pensamento machista nas ciências, exemplificado na ex- pressão: “a mulher pode ser educada, mas sua mente não é adequada às ciências mais elevadas, à filosofia e algumas das artes” de Friederich Hegel, no século XIX, é um exemplo das dificuldades que as mulheres enfrentaram quando ousaram romper com a tradição que as excluía do território intelectual. Mesmo no século seguinte, é emblemático na História das Mulheres o caso de Madame Marie Slodowska Curie – vencedora do Nobel de Física em 1903 e do Nobel de Química em 1911. Seu in- gresso na Academia de Ciências da França foi negado, a despeito de sua ascen- dência judia, mas essencialmente por ser uma mulher, estrangeira. Sobre Madame Curie, Pugliese (2007) aponta as forças do machismo no mundo acadêmico, que os homens também crêem pertencer somente a eles

Uma das dificuldades de Marie era publicar suas conclusões, uma vez que a Academia de Ciências só editava trabalhos que fossem apresentados por membros e, entre eles, não aceitava mulheres. As pesquisas eram dela,mas as apresentações e láureas e- ram deles. (...) primeira nota foi apresentada à Academia de Ciências por seu antigo professor, Gabriel Lippman, em nome de Marie Curie, que conseguiu convencer o velho mestre (seu orientador) da valida- de de suas pesquisas. O gênero aparecia desde esse momento co- mo um obstáculo suplementar no que toca a prática científica, pois as relações de poder que atravessam os laboratórios estigmatizavam mulheres, excluindo-as, o que dificultava a circulação de suas pes- 206

quisas.(PUGLIESE,2007)

Mesmo com a virada do século, Nye afirmou que, na década de 1980, “as fi- losofias dos homens são teorias das atividades dos homens, atividades essas que desde o início excluem as mulheres; a meta da teorização masculina é racionalizar as inconsistências e a destrutividade dessas atividades”(1995, p.267). Algo que a Dra. Marie Curie apontou no século passado, quase 70 anos atrás: “Se uma mulher faz algo malfeito, é típico de seu sexo, de todas as mulheres (um caso só confirma a generalização universal de que todas fazem aquilo mal), mas, se uma fizer bem, é apenas uma exceção” (PUGLIESE, 2007, p.212). É desse modo que compreendemos as dificuldades que as mulheres enfren- tam no campo das ciências e nos ambientes acadêmicos. A luta das mulheres pelo acesso e permanência na academia desafia o pensar e promove novas formas de agir. Combater o poder machista nas instituições tem relação com a luta pelo sentido necessário às atividades humanas explicadas por Nye, que salientou que as “mulhe- res cultas criam entraves nos centros acadêmicos de onde novos enfoques ao co- nhecimento são apresentados de modo original” (1995, p.271). Nas ciências, as mu- lheres provam que existem novas formas de ver, compreender e viver no mundo, com seus estudos que criativamente rompem com a tradição patriarcal nas ciências. Para ela, na prática, filosofia e simbolismo no Terceiro Mundo e na cultura ocidental são desafiados pelas mulheres (NYE, 1995, p.270). À mulher é difícil romper com a cultura da feminilidade que “se desenvolveu nos meios de comunicação de massa” (MORIN, 2003, p.162). De igual modo, o prestígio ao qual se dedica e os poderes a que responde estão vinculados “às esfe- ras de ação e às liberdades já reconhecidas e apreciadas na civilização masculina: ser bela, agradar, ocupar-se do seu lar, cozinhar, sonhar com amor, educar os fi- lhos...” (2003, p.163). Esses aspectos confirmam um papel fora da esfera pública e, consequentemente, fora das ciências. Nossas análises sobre Mara Tara indicam que a concepção da personagem sintetiza diversos pormenores relacionados às mulheres na sociedade ocidental e replicados em fragmentos no mundo ficcional. Há também um padrão de estética que objetiva o prazer masculino nesse meio, conforme Naomi Wolf, para quem “a ‘beleza’ se une às convenções pornográficas [...] até mesmo as histórias em quadri- nhos para afetar mulheres e crianças” (1992, p.178). Haraway (2013) afirma que: 207

As novas tecnologias afetam as relações sociais tanto da sexualida- de quanto da reprodução, e nem sempre da mesma forma. Os estrei- tos vínculos entre a sexualidade e a instrumentalidade – uma visão sobre o corpo que o concebe como uma espécie de máquina de ma- ximização da satisfação e da utilidade privadas (HARAWAY, 2013, p.74).

Embora trate da evolução sociobiológica sob a tecnologia, Haraway (2013) lembra que as discussões e reivindicações sobre o controle do corpo feminino ocor- reram fortemente na década de 1970; nos quadrinhos, a Dra. Mara uma bióloga, ci- entista, não tem controle sobre si e sobre o seu corpo. O horror nos quadrinhos de Mara Tara é manifesto através da violação ética entre a moral, o impossível e o pro- ibido em Foucault (2001, p.79). Nossa análise sobre Mara Tara se apoia na ideia de desordem civil, do direito religioso ou divino, pois seus delitos violam o sentido jurídi- co, as leis sociais e as leis da natureza (FOUCAULT, 2001, p.69-70). A monstruosi- dade criminal da personagem se localiza na figura em que ela se torna. Ela é antes de tudo um monstro moral em Foucault (2001, p.94). Afirmamos que o sexo violento de Mara Tara é possível não somente porque é dessa forma que o autor lida com suas próprias questões no mundo ficcional, mas porque “nossa cultura está representando o sexo como violação, para que os ho- mens e as mulheres estejam interessados nele” (WOLF, 1992, p.178-182). Assim, a cultura do estupro se perpetua no ficcional. Pode-se inferir que os quadrinhos de Mara Tara representam o cultural percebido e não se distancia da necessidade de ler e compreender as histórias de terror como histórias políticas (FOUCAULT, 2001, p.125) porque essa personagem e suas histórias não se distanciam das pautas de lutas feministas pelo corpo, ainda recentes na década de 1980 em território nacional. Verificamos fragmentos da cultura machista também na representação dessa mulher como trabalhadora, doutora, mas desacreditada pelo meio científico. Sua excepcionalidade se traduz somente em ser uma ninfomaníaca dominatrix que re- verte a possibilidade de violência sexual contra ela em violência sexual contra o ma- cho. Em suas histórias os sujeitos da violência são os homens. Há uma inversão de papéis. Nas palavras de Roberto Elísio dos Santos:

A mulher ocupou espaços no mercado de trabalho, mas sua vida pessoal passou a ser vazia e solitária (como no caso de Rê Bordosa, Mara Tara e Dona Marta). Embora não sejam considerados mais ta- 208

bus, sexo e drogas continuam a constranger e a causar problemas aos indivíduos. Mesmo com tantas mudanças ocorridas na socieda- de, os conflitos familiares e amorosos continuam e se tornam cada vez mais violentos (a exemplo do Casal Neuras) (2014, p.105).

Observamos que mesmo sob violência e com risco de perder a vida, muitos homens nas histórias de Mara Tara são desejosos do sexo com ela, forçando-a ou não. Outros, mesmo cientes que há uma mulher que faz felação até a morte do su- jeito, querem passar pela experiência. Ela é a gostosa e bela que adora sexo. A be- leza de Mara Tara, aliada às convenções pornográficas,pulula nos conteúdos das- suas histórias. Assim confirmamos que o mito da beleza que se replica na estética de um corpo atinge “até mesmo as histórias em quadrinhos para afetar mulheres e crianças”(WOLF,1992, p.178). De fato, o meio “impõe um formato” (MARTIN- BARBERO, 2008, p.180) que expõe o autor, não somente pelo modo como trabalha, mas dadas as demandas impostas pelo mercado que “reorienta, rearticula a inten- cionalidade “artística” do escritor” (2008, p.180), nesse caso o artista dos quadri- nhos. O conjunto – meio, dispositivos de composição gráfica, dispositivo de frag- mentação da leitura em quadros e sequências articuladas – das diversas possibili- dades contribuem para a construção da leitura e do hábito de leitura do público. A sedução do público relaciona-se aos conteúdos, à duração dos episódios e ao sus- pense, que operam no sentido da identificação e acompanhamento da ação (2008, p.187). A ficção permite que o leitor faça identificação com o personagem. O proces- so do meio fará com que o leitor aceite ou modifique superficialmente determinada realidade, mas que não será possível recusá-la. Consideramos que nas HQs

o anonimato, a repetição e a interpelação ao inconsciente coletivo que ‘vive’ na figura dos heróis e na linguagem de adágios e provér- bios, nas facilidades de memorização e natransposição da narrativas para a cotidianidade em que se vive. (2008, 201.Grifo do autor)

Acreditamos que semelhante processo ocorre, ainda que inintencionalmente- com as histórias de Mara Tara. A violência persiste não somente “contra os ho- mens”, como quis o seu autor. Para nós, ela se apresenta também pela exclusão científica da mulher e o descrédito pelo seu trabalho. O caso da cientista, Dra. Ma- dame Curie, duas vezes vencedora do Prêmio Nobel, no início do século passado, é o exemplo mais aterrador dos nichos do conhecimento que os homens criam para si 209

e que não aceitam compartilhar com suas colegas. Nos quadrinhos da doutora fic- cional, ao final do mesmo século, a história se repetiu. Outro aspecto a ser considerado relaciona-se aos “usos dos objetos proveni- entes de diversas competências culturais” (2008, p.292) e, portanto, não considerar somente a produção e apropriação dos produtos culturais, nesse caso os quadri- nhos. Os usos dos quadrinhos de Mara Tara possivelmente contribuem no reforço de determinadas mensagens de violência de gênero. Mara Tara é violenta, sim, mas considerar sob quais circunstâncias a violência se inscreve nessa personagem é um exercício de aproximações com proposições feministas. Verificamos que as personagens consideradas “fenômenos da diferença” tra- zem em sua construção aspectos que podem ser considerados estereótipos há mui- to consolidados. As violências contra mulheres trabalhadoras com maior escolarida- de ou profissão distinta de secretariado compõem um escopo de agressões comu- mente praticadas pelo chiste ou injúria nos quadrinhos–reproduções inintencionais ou intencionais de seus autores. Em todas elas, os traços mais comuns de violência estão centrados na aparência feminina e na sexualidade, em maior ou menor inten- sidade. Mas, sempre que oportuno, suas competências no trabalho são igualmente questionadas e diminuídas.

210

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os quadrinhos possibilitam violências contra as representações de mulheres trabalhadoras. As personagens analisadas neste trabalho confirmaram aspectos dos binarismos decorrentes das relações assimétricas de poder entre os sexos e da vio- lência patriarcal. As manifestações machistas, quando existem na nona arte, mesmo que inintencionais, além de denotarem exclusões das mulheres – tanto na memória histórica do meio quanto nos meios de produção e mercado –, confirmam violências diversas e recorrentes contra as mulheres no campo das artes. As análises sociológicas pautadas no feminismo, em tessituras com a produ- ção cultural e trabalho propostas nesta tese, não impedem a compreensão do objeto da investigação, mas certamente acarretam limitações diante da sua polissemia e da multiplicidade dos campos do conhecimento que se aplicam à nona arte. Este estu- do não considera os resultados como definitivos e tampouco encerra a discussão sobre o tema, porque há, no universo dos quadrinhos e das teorias feministas, diver- sos caminhos a considerar, os quais, certamente, contribuirão para o desenvolvi- mento de novos conhecimentos nos estudos das mulheres e das histórias em qua- drinhos. Mas acreditamos ter indicado, em nosso trabalho, uma perspectiva sobre as violências contra as mulheres trabalhadoras nas representações fragmentárias des- se universo ficcional. Apresentamos a tese, depondo brevemente sobre a experimentação dos quadrinhos no plano pessoal, ainda na infância, coincidente à faixa de público para o qual eles foram criados. Explanamos linhas gerais da dissertação de mestrado, gér- men do interesse em aprofundar o cruzamento temático violência, mulheres e qua- drinhos. Primeiramente, situamos os quadrinhos como arte-comunicação no meio jornalístico, que cooptou diversos públicos e multiplicidade de faixas etárias, criou nichos temáticos indissociáveis das práticas culturais e sociais do Ocidente. Foi pos- sível verificar a reprodução de axiomas sociais relativos ao patriarcado, a começar pelas “profissões de gênero”, ou os lugares destinados às mulheres no mundo do trabalho fora do lar. Investigamos como se manifestam e quais são as violências nas representações de mulheres trabalhadoras na nona arte, especificamente na profis- são de secretariado, atividade historicamente considerada feminina no Brasil, Esta- 211

dos Unidos e França. Para melhor compreensão do problema, foi necessário contex- tualizar historicamente a periodização estabelecida frente aos principais aconteci- mentos mundiais que impactaram a sociedade ocidental em termos econômicos, de trabalho, desenvolvimento tecnológico, mundialização e cultura. A investigação considerou as principais abordagens feministas sobre a profis- são e, principalmente, as pautas pós anos 1960, que forneceram lastro para a com- preensão dos fenômenos investigados. As lutas dos movimentos feministas e as teo- rias sobre o direito ao corpo, à sexualidade e ao trabalho fora do larpossibilitaram traçar nexos entre violência, mulher e trabalho decorrentes de imposições patriarcais nos quadrinhos, obedecendo a uma periodização compreendida entre os anos 1970 e 2000. Identificamos, nas produções quadrinísticas, um universo de personagens se- cretárias que explicita o imaginário coletivo plasmado em reproduções de privilégios patriarcais também que dispõem sobre os modos de vida, os corpos femininos e os lugares das mulheres nesses meios, principalmente sob os usos do chiste e da li- cença poética admitidas na nona arte. Ao considerar os quadrinhos sob a perspectiva de produtos culturais que re- forçam valores dominantes e ideologemas, os corpos femininos podem ser observa- dos sob a condição de territórios públicos, que condicionam as personagens à subal- ternidade e à concomitante invisibilidade do sujeito expropriado de autonomia e sem voz. Na condição de documentos históricos das práticas culturais do Ocidente, os quadrinhos denotam violências explícitas e subjetivas, intencionais ou inintencionais, a começar pelas ausências femininas na história de sua produção. As exclusões das mulheresnos quadrinhosevidenciam práticas recorrentes que as disciplinas estabe- lecem como lugares privilegiados do patriarcado e operam na criação e manutenção dos discursos, em especial, na História e na História da Arte. Os paradigmas que elaboram e promovem o conhecimento têm excluído as mulheres sistematicamente da história, dos meios acadêmicos, da produção cultural e do mundo do trabalho. A violência da exclusão das mulheres no meio quadrinístico é observável, principalmente, na literatura histórica da área. Embora atuassem em menor número na área, se comparadas aos homens, no período pesquisado, as pi- oneiras nos quadrinhos não são citadas com a mesma frequência ou em semelhante profundidade que os seus colegas, homens. Os silêncios da história expõem as as- simetrias de poder. As premiações, os reconhecimentos e valorizações pelas enti- 212

dades e principais organizações dessa categoria depõem sobre essa reserva de uma área que os homens consideram sua – confirmando, assim, as discrepâncias citadas. Os historiadores dos quadrinhos polemizam suas origens e mantêm contro- vérsias sobre os pioneiros na área. Como um produto do meio jornalístico, a produ- ção da nona arte e o seu consumo foram possibilitados pelo desenvolvimento sem precedentes da reprodutibilidade técnicae outros avanços tecnológicos que contribu- íram para o surgimento de uma cultura de massa que atende aos propósitos do capi- tal pela proliferação de seus produtos. A produção dos quadrinhos segue em um crescente, principalmentepelas no- vas formas de propagação atuais, que incluem os meios virtuais e as redes sociais. Embora tenham alcançado diversos países ocidentais, sobretudopela forma de cria- ção e distribuição operacionalizada pelos Syndicates estadunidenses, oportunizada pela transnacionalização do comércio de bens e produtos culturais, a produção qua- drinística passou por diversos enfrentamentos históricos que incluíam dificuldades de aspectos econômicos e sociais. A certa altura, a nona arte foi demonizada e ta- xada de corruptora da moral e dos bons costumes, por assertivas questionáveis de psiquiatras que associaram a crescente delinquência juvenil à violência contida nos quadrinhos. Diante da sua dispersão no mundo ocidental, os quadrinhos contrariaram inte- resses de diversos grupos e protagonizaram disputas políticas e empresariais que interferiram em sua inserção, modo de produção e permanência no mercado brasi- leiro. Consolidados em território nacional, mesmo após décadas de disputas inter- nas, os quadrinhos mantiveram um crescente volume de publicações, fomentando o surgimento de artistas e editores que construíram a história dos quadrinhos nacio- nais, e concorriam com as produções estrangeiras, licenciadas a preços muito mais baixos e competitivos para o setor. Foi possível identificar imagens e narrativas quadrinísticas de violências con- tra representações de mulheres cuja relação com as exclusões femininas na produ- ção da arteé atribuída à reprodução e manutenção de uma visão androcêntrica que conceitua as representações femininas nas HQs. A genialidade é uma das justificati- vas que a disciplina História da Arte utiliza para as exclusões femininas nesse cam- po – em nosso entender, aplica-se também às ausências femininas na arte dos qua- drinhos. A invisibilidade da mulher, sua subalternidade e o trabalho de gênero po- 213

dem ser observadas, sobretudo na história e biografia da Mulher Maravilha, permea- da por contradições diante do conceito de uma heroína feminista. A icônica mulher heroína, setuagenária, inscreve-se, historicamente, na representação da mulher e no trabalho, ao desempenhar em determinados momentos uma profissão do gueto fe- minino, o secretariado. Mote para a pesquisa, sua história denota construtos sociais e de referência machista que, desde o início, e até hoje, contrariam sua concepção. Uma supermulher, cujas referências, características e particularidades não distam dos ditames patriarcais. As secretárias nos quadrinhos publicados no Brasil por editoras renomadas, além das grandes tiragens que demonstram o alcance de público (juvenil e adulto), apresentam dinâmicas ou padrões circunscritos pelo patriarcado. Seguem explora- das pela hipersexualização de seus corpos na estética do impossível ou, a rigor, pe- lo deboche da falta de feminilidade e beleza. As personagens secretárias analisadas são exploradas e passam por violências de gênero. As temáticas dos quadrinhos transitam, invariavelmente, entre algumas injúrias recorrentes relacionadas ao corpo, à beleza, à sexualidade e ao trabalho da mulher – este último concentra especifici- dades de formação, capacidade, desenvolvimento das atividades e competências para o exercício profissional. Nos assédios às personagens analisadas, são latentes as agressões sexuais, como em Dona Tetê, personagem que atravessou todas as décadas de nossa inves- tigação. Mesmo o revés do assédio sexual é configurado de um modo machista em outras personagens como Dona Marta e Mara Tara (esta última, fenômeno da dife- rença profissional). As concepções dessas personagens, invariavelmente, incluem formas machistas dos modos de ver a mulher, evidenciadas através da elaboração, exposição e exploração dos seus corpos, desenhados para o escrutínio e deleite do público masculino, que julga as aparências das mulheres, segundo padrões de bele- za impostos pela opressão decorrente dos machismos. Os reforços dos padrões de beleza impostos às personagens são explicados pelo Mito da Beleza, e pela questão biologizante que condiciona as mulheres a um ideal de juventude eterna. A piada revés de assédio sexual configurada em Dona Marta inclui outros conceitos relativizados pelo patriarcado, como: juventude X velhice; solteirice X ca- samento; liberdade sexual X criação castradora; secretária X ética no trabalho. Dona Marta é a antítese do que se espera de uma secretária. Ainda assim, o assédio se- xual aos homens de seu escritório é o tema, e suas histórias abordam seu compor- 214

tamento peculiar de assédio sexual às avessas. Ainda assim, ela está disponível para o sexo. Nossas abordagens recorreram ao Mito da Beleza e às proposições relativas ao modo de ver e o envelhecimento de seus corpos sob uma perspectiva simbólica. As configurações do corpo em Dona Marta assumem as erotizações pela personalização, possibilitadas pela plástica e geradas pela insatisfação da mulher com a própria aparência. O assédio sexual chega a ser abordado nas narrativas que analisamos, mas, geralmente, na perspectiva do chiste. Embora tratado com relativa seriedade no Re- cruta Zero, em relação à Dona Tetê, decorrente das pressões feministas nos Esta- dos Unidos, a frequência e a abordagem dispensadas são ínfimas e ainda brincam com o tema. O assunto é escrachado às avessas em Dona Marta, a secretária tara- da. A sátira aos sistemas de gestão e relacionamentos profissionais, nos escritó- rios das décadas de 1980 e 1990, é consolidada na figura de Carol, a secretária sem voz. Nas tiras, as representações enfocam questões relativas às mulheres em de- terminadas posições no trabalho. O ambiente adoecedor dos quadrinhos Dilbert é proporcionado pelos novos processos de gestão que atingiram os trabalhadores, no mundo ocidental, e pela manutenção da opressão patriarcal no âmbito das firmas. As tirinhas mantêm constante reforço dos estereótipos sobre as mulheres tra- balhadoras, principalmente na atividade secretarial. Creditamos o fato à visão falo- cêntrica, refletida na construção das personagens, e à forma como os meios repro- duzem o imaginário coletivo, em constante retroalimentação da construção imaginá- ria sobre mulheres e homens. A ocorrência desse fato nesse gênero de arte- comunicação igualmente é possibilitada pela representação da dor. Isso indica uma contribuição perversa para a manutenção de uma imagem hipersexualizada da mu- lher na profissão de secretária, como um modo pejorativo de vincular a mulher a uma confusão de papéis no âmbito organizacional, além de mantê-la na condição de objeto e ser expropriada de voz, nos quadrinhos. Os fenômenos da diferença, por sua vez, não se distanciam dessas conside- rações porque mantêm proximidades com as violências praticadas contra mulheres trabalhadoras nos quadrinhos, independentemente de suas formações e profissões muito distintas da secretarial. A suposta autonomia sexual atribuída à Dona Marta e Mara Tara são circunscritas nas figuras do monstruoso e do anormal. A violência praticada pelas personagens, possivelmente, as iguala e, de certo modo, apaga a 215

ideia de que os homens são perpetradores das violências sexuais contra as mulhe- res. Há, decerto, uma normalização da violência sexual pela sua banalização e pelo chiste que desconsidera a dor do outro. A complexidade da violência configurada nas personagens da “diferen- ça”relaciona-se, profundamente, ao campo da subjetividade, e ao que está por trás de suas construções. Não é possível considerar apenas a manifestação explícita da violência nas tirinhas, nas quais elas são algozes que violentam os homens. As de- clarações dos autores sobre suas criações estão permeadas pela consciência de repulsa a determinados “tipos” de mulheres, à reprodução e manutenção de estereó- tipos e à projeção de seus conteúdos conscientes ou inconscientes, intencionais ou não, nas personagens – representação também do pensamento da época sobre as mulheres, e principalmente uma captação do pensamento coletivo machista da soci- edade brasileira. Tudo isso com a anuência das empresas detentoras dos direitos de produção ou publicação e do público, que dada a massividade de consumo, assu- mimos admitir tais conteúdos. Os resultados das análises coadunam com proposições teóricas do feminis- mo. As imagens e narrativas, as biografias das mulheres gráficas, nos quadrinhos, evidenciaram alguns dos fragmentos sociais relacionados às percepções de violên- cia de gênero na nona arte. Os corpos femininos, as situações e as personagens analisadas têm relação com importantes momentos históricos mundiais e com a pro- dução cultural ocidental. Mesmo quando as personagens evidenciam comportamen- tos tidos como feministas e de autonomia, principalmente a sexual, elas são repre- sentadas como ninfomaníacas, monstros, vilãs e, às vezes, têm as suas vidas pau- tadas em tragédias, no surreal e admitem violências diversas. São as singularidades das violências contra as mulheres de papel que impor- taram ser observadas, porque é preciso conhecer e discutir, à luz do feminismo, co- mo as mulheres são silenciadas, expropriadas e projetadas nas representações ar- tísticas. A discussão e as pesquisas, nesse campo, devem considerar, também, co- mo as disciplinas História da Humanidade e História da Arte abordam essas ques- tões e perpetuam a construção patriarcal, ao considerarem os conceitos de arte, as técnicas artísticas, os meios de produção e as produções culturais como espaços do pensamento e da atuação dos homens. As histórias ficcionais nas narrativas e os corpos femininos das tirinhas foram criados por homens – maioria absoluta na produção dos quadrinhos. Isso torna im- 216

perativo pensar a invisibilidade feminina e a subalternidade, condicionadas não so- mente às formas de expressão imagéticas que indicam uma constante opressão pa- triarcal. A sexualidade da mulher denota lugares a elas reservados como espaços de submissão e invisibilidade, o que ocorre no mundo gráfico quadrinístico. Embora a extravagância das fantasias seja possível no mundo ficcional, elas têm funcionado como fragmentos das fantasias de seus criadores e do pensamento coletivo. A pro- dução e permanência da violência de gênero são apresentadas como biologizantes, culturais e condicionam o tipo de sexualidade permitida às mulheres. Uma leitura crítica e social sobre as mulheres trabalhadoras nos quadrinhos permite ecoar as vozes dos sujeitos subalternos, mesmo quando não falam. O femi- nismo propõe uma nova postura e educação emancipadora do sujeito de modo que prevaleça o senso crítico contra as representações sociais estereotipadas que mar- cam as relações de gênero e promovem as permanências das assimetrias de poder. Urgem pesquisas e educação que perpassem também pela nona arte e suas rela- ções com as questões relativas às mulheres na sociedade ocidental. Embora os quadrinhos analisados reflitam a sociedade estadunidense e não somente a brasileira, existem significativas coincidências quanto às violências contra mulheres. A militância feminista nos EUA, país considerado o maior produtor e con- sumidor de quadrinhos no ocidente, porém, incide sobre as produções quadrinísticas em oposição aos abusos e excessos cometidos nos quadrinhos. O empenho das mulheres em reivindicar igualdade de gênero e representações que não reproduzam as violências machistas nos quadrinhos indica uma maior consciência e politização das mulheres sobre o fato. No Brasil, os movimentos que tratam desse tema estão se articulando, e mui- tas artistas mulheres começam a produzir quadrinhos que distam dos machismos e questionam o seu lugar. Trata-se de novas vozes femininas que estão lutando por espaço e reconhecimento em uma arte tradicionalmente considerada masculina, um nicho machista. A arte é um caminho para que as mulheres subalternas tenham expressão e espaço para o desenvolvimento de nexos críticos com os fatos sociais nos quais se inserem. Urgem pesquisas que possibilitem conhecer as violências contra as mulhe- res nos quadrinhos e as formas de opressão patriarcal no campo da nona arte, pois a sexualidade e a própria mulher ainda são subalternas pela invisibilidade e falta de voz no mundo artístico. Outro caminho para novas e significativas propostas nesse 217

campo é considerar uma maior participação de autoras, operando nas diversas esfe- ras possibilitadas pela nona arte, como o trabalho de narração, desenho, cor, produ- ção, publicação, ações coletivas, divulgação em meios eletrônicos e outros. As temáticas dos quadrinhos apresentadas aqui evocam aspectos das vivên- cias das mulheres no mundo do trabalho ficcional e denota proximidades fragmentá- rias com o mundo real. As representações femininas, nas tirinhas, depõem que as mulheres comungamexperiências de violência, em muitos aspectos, no Brasil e nos Estados Unidos, perpetradas e disseminadas no mundo ocidental pela dominação masculina. Esta tese propôs conhecer as violências contra representações de mulheres trabalhadoras na nona arte em tessituras com o feminismo. Foi pensada, conside- rando a violência contra mulher, trabalhadora e secretária e em como essa violência é produzida e reproduzida nos quadrinhos. As lutas feministas contra a tradição histórica ocidental, em que o patriarcado impõe seus construtos, evidenciam que o campo da produção e circulação dos qua- drinhos não foi unicamente um crescente espaço de disseminação de ideologias. É importante considerar que o mercado de quadrinhos encontrou resistências significa- tivas das ativistas feministas, em oposição às violências contra as mulheres nos quadrinhos, que começaram a operar desde a Mulher Maravilha, nos anos 1950, e se perpetuaram na periodização compreendida entre os anos 1970 e 2000. As representações de mulheres sob a imposição da tradição falocêntrica con- firmaram-se nas narrativas e imagens, nas suas ausências e subalternidades à luz do feminismo nos quadrinhos localizados nesta tese. Estão presentes construtos sociais e ideologemas que explicam, em parte, as formas, os sentimentos e as situ- ações por que passaram as personagens. Obviamente, as violências contra mulhe- res, nos quadrinhos, não são explicadas unicamente pela opressão patriarcal, mas, ao que parece, confirmaram que as representações femininas analisadas refletem, em diversas ocasiões, as opressões advindas do machismo, e as configuram como as Donas das Dores infringidas às mulheres no meio ficcional. 218

REFERÊNCIAS

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