OS PRIMEIROS TEMPOS DO GINÁSIO ESTADUAL EM CAMPO BOM/RS NAS MEMÓRIAS DE UMA PROFESSORA (1961)

José Edimar de Souza1 Valesca Brasil Costa2

Resumo O curso ginasial na região do Vale dos Sinos, até a década de 1960, era realizado em número expressivo nas instituições escolares privadas, Colégio Santa Catarina, Colégio São Jacó, de , Colégio São José, de São Leopoldo, entre outros. Nesse sentido, a proposta da legislação educacional daquele período, caracterizando-se por um “afunilamento” do acesso a continuidade dos estudos. Além do custo ao estudo a escola primária também apresentava lacunas que nem sempre preparavam os alunos adequadamente aos exames de seleção. Um novo ânimo a juventude, com os processos de emancipação de diferentes distritos desta região, no final da década de 1950, foi à possibilidade da instalação de escola pública que contemplasse o curso ginasial. Campo Bom situa-se neste contexto, emancipada em 1959, uma das propostas da primeira administração fora a implantação do Ginásio. Neste sentido, o estudo analisa memórias de uma das professoras pioneiras do Ginásio 31 de Janeiro, cuja atividade inicia de forma comunitária e posteriormente, agrega-se a responsabilidade pública do governo do Estado do . A perspectiva teórica sustenta-se na História Cultural, a e a metodologia da história oral. A professora caracteriza o modo como o processo de constituição deste importante educandário se consolidou, com um trabalho, inicialmente voluntário e solidário a causa da aprendizagem e continuidade dos estudos.

Palavras-chave: Instituição Escolar. Memória. Ginásio Escolar Estadual 31 de Janeiro.

Introdução O Município de Campo Bom situa-se no Vale do , distante cerca de 50 quilômetros de (capital do Estado), está situado na Região Metropolitana. Campo Bom, como se identifica no mapa da figura 1, é uma cidade que se destaca pelas ciclovias, suas festas populares e pelo pioneirismo na exportação de calçado, sendo a principal fonte econômica da região3.

1 Doutor com Estágio de Pós-doutorado em Educação pela UNISINOS. Professor na Universidade Federal da Fronteira Sul – UFFS – Campus /RS. E-mail: [email protected] 2 Doutora em Educação pela UNISINOS. Professora na Universidade Federal da Fronteira Sul – UFFS – Campus Chapecó/SC. E-mail: [email protected] 3 Lang (1996) acrescenta que em 1960, potencializa-se o campo industrial no município, emancipado em 31 de janeiro de 1959. Em 1960, realizou-se a 1ª. Feira de Amostras de Produtos Industrializados do Vale dos Sinos, que originou a FENAC

Figura 1 – Mapa de Campo Bom no Rio Grande do Sul e no Brasil

Fonte: Souza (2009b).

Como já argumentado em outro estudo, Souza (2013a), a vida e as trajetórias institucionais se constituem de fragmentos irregulares e não se estruturam de forma linear e racional. Portanto, o passado é uma versão, uma interpretação que exercita e dá vida o historiador não se caracteriza por uma generalização e/ou uma referência que traduza um modelo de implantação e/ou de institucionalização do nível de ensino ginasial, como um processo de escolarização. Nesse sentido, as memórias da professora Renilda Adi Gerhardt devem ser interpretadas como uma forma possível, no conjunto dos sentidos e significados atribuídos para esta realidade singular de implantação do curso ginasial. No último quartel do século XX, as memórias individuais e coletivas passaram a representar um frutífero campo de estudo e os arquivos pessoais e institucionais passaram a custodiar o conjunto de registros produzidos ou acumulado ao longo das trajetórias, de vida e/ou institucional. Mas, é importante destacar, como argumenta Halbwachs (2006), que nenhuma memória é possível fora dos contextos usados por pessoas vivendo em sociedade para determinar e recordar as suas lembranças. Para se reconstruir espaços e tempos na pesquisa histórica não basta apenas recuperar documentos e informações armazenadas, é

(Feira Nacional do Calçado), realizada atualmente, pelo município de Novo Hamburgo. Em uma tentativa de reativar os primórdios desta 1ª. Feira, em 2006 surge a Festa do Sapato que se encontra na sua 6ª. edição.

necessário interrogar-se diante das fontes reivindicando e compondo um sentido para o passado revisitado. Ao lidar com memórias, biografias é importante não desconhecer que elas tendem a descrever o passado em termos românticos e nostálgicos e, como a época rememorada se refere a um dado momento da vida, parece compreensível que seja percebida e descrita como uma representação, que pode se valer da imaginação e da construção e subjetivação de quem a escreve (CUNHA, 2013). Nesse sentido, como já argumentado em outro estudo, Souza (2013b) atenta-se neste trabalho ao perigo da “ilusão biográfica”, aspecto que reforça o tomar a descrição de memórias ou documentos como verdades absolutas. Uma análise coerente da própria vida compreende os limites, as tensões e a reconstrução de contexto para que seja possível comparar e confrontar os fatos e acontecimentos.

Notas históricas sobre a educação em Campo Bom/RS

No Estado do Rio Grande do Sul, a realidade da escola, aspecto caro aos imigrantes europeus que colonizaram diferentes regiões associa-se a prática das escolas e colégios inaugurados pela organização comunitária. A tradição e competência das escolas religiosas que até a reforma pombalina caracterizaram a forma possível para que minimamente, no Brasil, algumas cadeiras de leitura, escrita e cálculo fossem ensinadas à população, no Rio Grande do Sul, identifica-se com a tradição das escolas comunitárias. Em Campo Bom, os imigrantes alemães, no início do século XIX se mobilizaram para ter escola para os seus. Os colonos que aqui se radicaram a partir de 1826, edificaram a história da educação. A história da escola consagra-se hoje, em 189 anos potencializando ensino de qualidade para diferentes famílias campo-bonenses (SOUZA, 2013). Os primeiros imigrantes alemães desembarcados no porto das Telhas (São Leopoldo) receberam lotes de Terra na Antiga Feitoria Real do Linho Cânhamo, onde foram inicialmente acomodados até receberem as terras para seguirem viagem, abrindo as picadas na Costa da Serra em Campo Bom e Novo Hamburgo. Para Dreher (1992) desde fins de 1827, a Comunidade Evangélica de Campo Bom tinha um templo e o mais provável é de que seja o mais antigo templo evangélico do Rio Grande do Sul. Desde o início, este templo tenha

também servido de sala de aula para crianças evangélicas, tendo sido o próprio pastor seu mestre-escola. O Pastor Frederico Christiano Klingelhoeffer além de ter sido responsável pela construção da primeira Igreja de culto protestante no Rio Grande do Sul também foi o primeiro professor deste município. Na igreja de Klingelhoeffer, aos domingos, se realizava o culto divino e, nos dias da semana, funcionava uma escola, cujo mestre era o próprio pastor (SOUZA, 2009). As atividades escolares e religiosas, no primeiro ano, foram realizadas nas próprias famílias, consistindo de leituras bíblicas e orações, assim como noções primordiais de leitura, escrita e cálculo. A vinda, em 1827, do pastor e professor Frederico Christiano Klingelhoeffer veio preencher a carência. Este, em 1828, acabou clérigo e mestre-escola, quando, sob sua orientação, criou-se a Comunidade e a Escola Evangélica, que se tornaram empreendimentos pioneiros na área de colonização alemã em terras da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul. (LIVRO DE REGISTROS 1, s/d.). A vila de São Leopoldo foi elevada a categoria de município na década de 1840 e Campo Bom e , nesta época se caracterizavam em localidades rurais considerando a sede do município que eram distrito. Os imigrantes alemães instituíram as escolas comunitárias em diferentes localidades, e além do ensino doméstico realizado pelos familiares, utilizando a “ardósia” – pedra pra riscar as primeiras letras- foi com a implantação das primeiras cadeiras de ensino primário que uma rede de ensino público começou a ser construída em nossa região (SOUZA, 2013b). As primeiras cadeiras públicas de ensino de 1º grau de instrução primária, do sexo masculino, em Campo Bom e Sapiranga foram criadas, pela Lei provincial número 771, de 04 de maio de 1871 e Ato de 30 de novembro de 1871, sendo respectivamente as cadeiras de número 144 e 145. A criação de cadeiras não garantia a concretização da mesma, conseguir professor com curso normal que ocupasse essas classes era um grande desafio. Em 1895, a cadeira de Campo Bom foi transformada em Aula mista, pela reorganização número 147 de 14 de março de 1898 passou a ser a 16ª. Escola pública de 1ª. Entrância mista do município de São Leopoldo. Os professores Júlio Wortmann, Olimpia Guedes F. Menezes e Anna Francisca de

Carvalho Kunnech foram os primeiros professores e em Sapiranga a professora Amália Gomes Pereira (SOUZA, 2013b). No início do século XX percebiam-se ainda, a continuidade, no Rio Grande do Sul, de aspectos que marcaram o ensino no século XIX, no qual a escolarização destinava-se aos filhos de alguns homens de posses que contratavam professores particulares para instruí-los. As políticas educacionais atinham-se aos estudos iniciais, bastando, portanto, ensinar a decifrar códigos de leitura e escrita. O século XX também assistiu a inúmeras transformações que se referem a dinâmica de ocupação dos espaços geográficos. O Brasil passou de uma sociedade eminentemente agrária a uma sociedade industrial, e a cidade assumiu a posição de guia, de modelo dos paradigmas culturais e sociais. No contexto educacional brasileiro, com o advento da República, abriu-se um processo de mudanças estruturais que se pautavam na consolidação do trabalho assalariado e melhoramentos urbanos, aliados ao início da industrialização. Os novos olhares para a educação indicavam o caráter público, universal e laico. O paradigma republicano promoveu uma reestruturação do Estado que buscava na escolarização uma possibilidade alternativa para acompanhar as transformações que vivia o país nessa época (GHIRARDELLI JUNIOR, 2009). No cenário nacional, após o período ditatorial do Estado Novo, a constituição de 1946 retoma aspectos importantes da Constituição de 1934, como a vinculação de impostos para o financiamento da educação como direito de todos à educação e “repõe em termos federativos a autonomia dos Estados na organização dos sistemas de ensino” (CURY, 2009, p. 25). É neste contexto que se deu a aprovação, em 1961, da primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei n. 4024/61. Esta constituição sofreu emendas após o golpe de 1964 atendendo o que Saviani (2006), chama de concepção pedagógica produtivista. Em 1960, foi criado o Serviço de Expansão Descentralizada do Ensino Primário; nessa época, muitas escolas públicas foram construídas, também sob a influência das chamadas brizoletas. Nesse sentido, há diferentes possibilidades para expansão dos níveis de ensino, Campo Bom encontra-se inserida neste cenário. Além disso, em 1966, esse serviço foi substituído pela Divisão de Municipalização do Ensino Primário (Dimep), permanecendo com a mesma intenção de articulação entre os governos municipal e estadual, conforme a Lei Municipal 15 de 1966.

Aspectos teóricos e metodológicos

Este estudo, sustentado nos aportes teóricos construídos a partir de Chartier (2002) e Burke (2005), considera as práticas e representações dos sujeitos, um modo de caracterizar os fenômenos sociais investigados, como a composição da docência e sua relação com os primeiros tempos da institucionalização do Ginásio em Campo Bom. Para esses autores o modo de agir e de referir-se a uma cultura institucionalizada evidencia-se nas práticas desempenhadas, em um coletivo de atitudes que envolvem os sujeitos e os objetos, esses constituem uma trajetória e representam um conjunto de aspectos institucionalizados. As narrativas, manuscritas, impressas, registradas em documentos de diferentes naturezas evidenciam aspectos de um determinado espaço e tempo. É o exercício de escrita da história que possibilita problematizar, questionar, conduzir novas formas de olhar para os registros do passado. A análise dos documentos que constituem o acervo da Escola Técnica Estadual 31 de Janeiro: decretos, fotografias e pastas com recortes de jornais são cotejados neste trabalho com as memórias da professora Renilda Adi Gerhardt. A professora Renilda, nasceu em 1940, é natural de Campo Bom e sua trajetória profissional se desenvolveu neste município. É importante destacar que este texto não tem a pretensão de construir a trajetória profissional desta professora4, mas valer-se de memórias associadas ao momento em que Renilda atuou como uma das pioneiras na institucionalização do curso Ginasial nesta comuna. A Memória, entendida como documento, fornece ao historiador alguns indícios que permitem a produção de leituras do passado, do vivido pelos indivíduos, daquilo de que se lembram e esquecem a um só tempo. Segundo Amado (1995), as narrativas, retratam um cenário que, ao trazer o passado até o presente, o recria à luz do presente, ao mesmo tempo em que o projeta no futuro. Entendemos que a Memória é uma narrativa imaginada. Nesse sentido, as narrativas de memórias não guardam uma “verdade”, mas uma representação. Estas representações elucidam a importância, os sentidos, o modo como guardaram e/ou organizam narrativamente os fatos no tempo, no tempo lembrado!

4 Embora não seja abordada a construção da trajetória formativa desta professora, entendemos que ao revisitar o passado à luz do presente, a experiência formativa é influências no modo como elaboram a narrativa das lembranças trazidas pela memória. Nesse sentido, é importante destacar que no contexto da formação escolarizada, a professora Renilda, inicialmente realizou o curso de Técnica em Contabilidade e posteriormente realizou o Curso Normal na Escola Normal Coronel Genuíno Sampaio, de Sapiranga, entre 1963-1966.

Stephanou (2011) complementa afirmando que, o que lembramos/esquecemos não é uma realidade passada e ainda tangível, tampouco é acessível na imediatez da narrativa. Escrevemos e dizemos o que pensamos ter vivido, o que pensamos ter sentido, o que imaginamos ter experimentado. Nesse sentido, as memórias são organizadas por quem rememora, pelas escolhas e pelo tom de quem conta e o que se conta, velando ou evidenciando fatos, problematizando certezas até então conhecidas. Quando evocado, o passado emerge pelas lentes do presente. Nesse caso, tanto o passado, quanto o presente sofre interferência. Dessa forma, entre a época em que teve lugar o acontecimento evocado e o momento em que se dá a evocação, entre o tempo vivido, o lembrado e o narrado, o indivíduo amadureceu consideravelmente neste intervalo de tempo. É pela narração do tempo que os sujeitos “arrancam” do passado o que ainda sobrou da tradição, do costume ancestral. O passado não existe mais, pois ele é presentificado na narrativa, adquirindo as demarcações contemporâneas (NORA, 1993). Halbwachs (2006) argumenta que nenhuma memória é possível fora dos contextos usados por pessoas vivendo em sociedade para determinar e recordar as suas lembranças. Para recompor espaços e tempos na pesquisa histórica não basta apenas recuperar documentos e informações armazenadas, é necessário interrogar-se diante das fontes construídas ou materializadas compondo um sentido para o passado revisitado. A opção metodológica da História Oral se deve à possibilidade que a oralidade representa para elucidar trajetórias individuais, coletivas, eventos ou processos singulares, conferindo status de uma nova abordagem histórica. Para Amado e Ferreira (2002), na História Oral, o documento principal é a narrativa que, a partir de técnicas e pressupostos teóricos, é organizada pelo pesquisador; portanto, o rigor ético do historiador, no tratamento, organização e construção das narrativas, configura determinadas formas interpretativas para o trabalho histórico. No momento da entrevista, as narrativas são eventos mediados pela natureza do contexto das lembranças. Ao exercitar a memória o sujeito realiza uma seleção e constrói, narrativamente, uma forma de rememorações, aspectos que escolhe lembrar (ERRANTE, 2000). A entrevista é uma técnica importante que permite o desenvolvimento de uma estreita relação entre as pessoas. As narrativas ganharam vida na medida em que se iniciaram os diálogos entre entrevistador e entrevistado, observando que o entrevistador deve desenvolver

a capacidade de ouvir atentamente e de estimular o fluxo de informações por parte do entrevistado. A relevância histórica da utilização de fontes construídas pela memória está condicionada ao esforço teórico e metodológico produzido pelo pesquisador, nas escolhas que faz, pelas questões que elabora para poder fazer dizer sobre um tempo e uma experiência histórica, em síntese, fazer falar os documentos, orais ou escritos. Nesse sentido as memórias trazidas pela voz dos sujeitos que viveram em um determinado tempo e espaço é documento construído e produzido pelo historiador.

Os primeiros tempos do Ginásio Comercial

A Escola Técnica Estadual 31 de Janeiro está situada no bairro centro no município de Campo Bom. Atualmente a instituição atende alunos das séries finais do ensino fundamental e, principalmente, é uma das maiores escolas de Ensino Médio da cidade5. A história da escola vincula-se ao fato de que na década de 1960 ainda não existia em Campo Bom uma escola pública que oferecesse o nível ginasial de ensino. A predominância da realidade educacional sustentava-se no ensino primário e aqueles que desejassem continuar seus estudos necessitavam deslocar-se aos municípios vizinhos. Sapiranga, Novo Hamburgo e São Leopoldo eram os principais destinos dos jovens que continuavam seus estudos, que geralmente era cursado em instituições privadas e/ou em regime de internato. Renilda começou sua vida de professora no contexto do Serviço de Expansão do Ensino Primário (SEDEP), em 1959, como docente contratada para atuar na Escola Estadual La Salle, de Campo Bom, inicialmente, atuando como professora leiga6, ou melhor, como ela rememora “éramos auxiliares de ensino”. Mas, diferente de alguns professores leigos, Renilda acumulava experiência e formação em diferentes níveis de ensino, o curso primário foi realizado em Campo Bom, no Colégio Sinodal Tiradentes, o Ginásio na Escola Santa Catarina e o Curso Técnico em Contabilidade, na Escola São Jacó, ambas de Novo Hamburgo. Como uma das poucas

5 A instituição funciona em três turnos, manhã, tarde e noite com aproximadamente 1.400 alunos. Oferece ensino politécnico, Curso Técnico em Contabilidade nas modalidades integrado e subsequente. A instituição acolhe alunos de diferentes partes do município, a heterogeneidade socioeconômica é um aspecto predominante na caracterização da comunidade escolar. Este aspecto se identifica desde o momento em que a instituição foi constituída, como uma necessidade para a região do vale dos sinos, uma escola que contemplasse o nível ginasial de ensino no próprio município. 6 Leigo aqui é entendido como profissional que ainda não concluiu ou não possui a formação específica para atuação no seu campo profissional, no caso, o curso Normal.

moradoras a possuir curso específico em uma área em expansão no município, a pujança econômica do calçado e a indústria local exigiam profissionais para área administrativa, contábil e burocrática, a ideia de instituir o curso ginasial foi adquirindo consistência. Entre 1959 a 1961 Renilda trabalhava no turno da manhã na escola e no turno da tarde no escritório. Durante a entrevista, questionada sobre a implantação do curso Ginasial em Campo Bom, ela assim se refere: “foi a realização de um sonho. Porque os jovens que não podiam estudar a escola particular como eu fiz. Então, não podiam fazer o Ginásio. [...] os meus amigos, a minha turma tinha grande número de jovens, da minha idade, que a gente saia pros aniversários, fazia as festinha, não tinham Ginásio. E era um sonho deles ter o Ginásio. Então o que a gente fazia, a gente se reunia domingo de tarde, e eu dava aula pra eles, português, matemática, alguma coisa de história. Quando Campo Bom se emancipou em 1959, uma das primeiras coisas foi reunir um grupo de jovens e procurar o prefeito para que ele criasse um Ginásio em Campo Bom. Claro, que em 1959, o prefeito não tinha condições de fazer isso. A prefeitura não tinha dinheiro. Mas, ele prometeu que assim que desse ele iria fazer o Ginásio. No ano seguinte, já tinha um grupo de pessoas que se solidarizaram com eles e aí eles tinham aula de noite de preparação para o Admissão.”. (GERHARDT, 2015,entrevista).

O ensino ginasial caracteriza-se por uma organização da Lei Orgânica do Ensino, no contexto da “Reforma Capanema”, consubstanciada em seis decretos-lei, mas que perpassa o regime político do “Estado Novo de Vargas”, (GHIRARDELLI JUNIOR, 2009). Nesse sentido, o ensino secundário encontrava-se organizado em diferentes ramos de atuação, dentre eles, o curso Normal, Industrial, Comercial e Agrícola, os cursos conduziam os estudantes para ramos profissionais específicos e nem todos habilitavam o ingresso no Ensino Superior. O curso Ginasial era organizado em quatro anos, três anos de colegial e mais um ano de científico. Para Ghirardelli Junior (2009) o currículo do ensino secundário apresentava um extenso currículo, com intenções de proporcionar cultura geral de base humanística e fornecer aos acadêmicos um ensino patriótico e nacionalista. Havia um sistema de provas e exames exaustivos, uma rigidez curricular que traduzia uma ideologia autoritária do cenário político em que estava inserido. A realidade do curso ginasial representa algumas modificações, com a primeira LDB 4024/61, mas que de fato, alcança os propósitos estabelecidos pelos escolanovistas, apenas com a segunda Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a partir de 1971. As condições de improviso e de auxilio comunitário ao grupo de jovens e adultos que almejavam a continuidade dos estudos conduziu frentes de ação que mobilizaram diferentes

instâncias e instituições. O grupo voluntário de amigos que, aos sábados e domingos ensinavam português, matemática, história, geografia, em garagens e espaços domiciliares, com passar do tempo conseguiu um espaço no “Grupo Escolar Ildefonso Pinto”, como rememora Renilda “E a gente usava o Ildefonso Pinto, o prédio velho aqui em baixo. Logo depois do central. [...]. E em fim de 1960 foi feito admissão. A prefeitura reuniu um grupo de professores para fazer as provas, e corrigir [...]. Tinha senhores casados, casais que iam né ... muitos namoraram aí se casaram.[...]. Eu acho que foram 53 alunos que formaram a primeira turma do Ginásio de Campo Bom. [pausa]”. (GERHARDT, 2015,entrevista).

A Escola Técnica Estadual 31 de Janeiro foi fundada através do Decreto Municipal n. 17, de 30 de agosto de 1960, com a denominação de Escola Técnica de Comércio7. As atividades escolares iniciaram em 1º de março de 1961, com uma turma do curso ginasial, com denominação de Ginásio Comercial 31 de Janeiro8. O primeiro diretor foi o Professor Jorge Kopittke, e seus primeiros professores foram: Antônio Nicolau Orth, Noely Winck, Renilda Adi Adams, Celso Delmar Streb, Plinio Ernane Müller, Margot Margareth Momberger, Amandio Ervino Klaus e o secretário escolar era Carlos Kundrum Senger (HISTÓRICO, s/d). A primeira turma de formandos do curso ginasial9 tinha como lema “Só valorizamos aquilo que conhecemos”. Até 1966, a manutenção do educandário estava a cargo do município e a partir deste ano passou a ser responsabilidade do Governo do Estado.

Considerações finais

Como já fora argumentado em outros estudos, Souza (2012), ao buscar as memórias atualizamos nosso saber sobre nossa história. E como um ‘fio’ que precisa ser tramado para construir uma ‘forma/figura’ na realidade, a agregação de diferentes fios foram tecendo os caminhos que constituíram uma relação entre a trajetória profissional e a constituição de um espaço específico para o Ginásio Estadual em Campo Bom.

7 Ofício n. 160/61, de 21 de março de 1961, autoriza o funcionamento noturno da Escola Técnica de Comércio, no prédio do Grupo Escolar Ildefonso Pinto. (Rio Grande do Sul, 1961). 8 Pelo Decreto n. 21, de 25 de fevereiro de 1962, a escola passou a ser chamada de Ginásio Comercial 31 de Janeiro. No ano de 1963 foi implantado o Curso Técnico em Contabilidade. Pelo Decreto de criação n. 17.790, de 27 de fevereiro de 1966 a Escola passou a chamar-se Colégio Comercial de Campo Bom e em 25 de julho de 1969, recebeu a denominação de Colégio Comercial 31 de Janeiro, através do Decreto Estadual n. 19.778. (Histórico, s/d). 9 A primeira turma era constituída pelos seguintes campobonenses: Adelmo Knewitz, Anadir O. Fauth, Astrogildo C. Reichert, Cecilia E. Ohlweiler, Cliseres Lessa, Delmar de Oliveira, Dirceu R. Konrath, Egon A. Olhweiler, Gomercindo Volpato, Helena Hoffmeister, Ilo P. Haubrich, Jaldyr Trieweiler, Marga Volpato, Maria C. Ferreira, Mario C. O. Monteiro, Miriam Maurer, Nelson Schäfer, Odone I. Maurer, Paulo A. Stefani, Romeu P. Bauer, Rubem Saenger, Verner Pereira, Waldemar F. Dreyer e Yolanda O. Monteiro (O FATO, 1991, p. 9).

A memória biográfica é uma possibilidade para se explorar e compreender o processo e os meios pelos quais as experiências vividas e as práticas sociais são exploradas no espaço e no tempo (THOMSON, 1997). As memórias de Renilda evidenciam um sentido comunitário e marcado pela vocação do ensino, do modo como a sua formação para docência foi se compondo, pelas lembranças de como suas professoras no ensino primário e ginasial organizavam as aulas. A experiência contribui para que se agreguem as questões identitárias desta professora, que percebia necessidades e não media esforços, diante da sua compreensão do que era importante para construção de uma Campo Bom que desejava ingressar na “modernidade”.

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Fontes

Orais

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Documentais

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