Da Virulência
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Da virulência António Fernando Cascais Universidade Nova de Lisboa Não atrairás já com teus encantos os car- los males do mundo. Denunciou-se a fragili- valhos, Orfeu, nem os rochedos nem os dade de todas as certezas e as certezas de to- rebanhos. Dos animais sujeitos às leis das as intolerâncias. Advogou-se a coragem que são as suas; Já não entorpecerás o de saber viver nos extremos da vida e o re- bramido dos ventos. Nem a tempestade gresso ao paraíso perdido de um mundo sem de granizo ou a neve em rajadas. Não Sida. Contra a cândida ilusão da estabilidade mais que o estrépito das ondas, pois que intrínseca dos fenómenos naturais, lembrou- te eis Morto. Muitas vezes te choraram a se a virulência essencial dos fenómenos vi- sorte, as filhas da Memória e sobretudo vos, contra a crença na bondade alojada no a tua mãe Calíope. Porquê lamentarmo- mais fundo do coração dos homens, apontou- nos sobre os nossos filhos exangues, por- se a sempre reactivada virulência que se en- quanto nem mesmo os deuses conseguem rosca nas melhores cepas da boa vontade. arrancar a Hades os seus próprios fi- Em todos os terrenos e com todas as armas, lhos?1 combate-se o vírus da Sida e o não menos insidioso vírus da discriminação. Nos sen- Já lhe chamaram praga, castigo divino, timentos precipitados pela Sida e nas atitu- vingança da natureza, que se abate sobre des em relação a ela concita-se tudo quanto a humanidade pecadora ou que retalia so- é angústia contemporânea sobre o perigo dos bre a irracionalidade dos comportamentos. homens e o perigo da natureza, sobre a iden- Anunciou-se o apocalipse inapelável e a tidade individual e colectiva e o destino das grande oportunidade da regeneração final. sociedades, sobre a ordem do mundo e das Anunciou-se a transformação radical da so- coisas, sobre a precaridade dos poderes do ciedade tal como a conhecemos, anunciou-se conhecimento e as sempre renovadas astú- até o fim previsível da espécie. Anunciou- cias da dor e da morte. se o fracasso da ciência moderna e o retorno A luxuriante proliferação de opiniões so- da moral eterna. Temeu-se a liberdade de bre o sentido da presença da Sida nas soci- costumes e temeu-se pela liberdade em ge- edades contemporâneas, das suas possibili- ral. Proclamou-se o fim da permissividade dades de transformação dos modos de vida e a punição iminente dos responsáveis pe- e dos seus efeitos sobre a economia, a cul- 1Antípatros de Sidon, Epitáfio de Orfeu, séc. II A. tura, a moral e a política, confundem decerto C. um público menos atento e tanto mais vulne- 2 António Fernando Cascais rável quanto são vozes autorizadas por tudo qual a condição humana se encontra religi- menos a serenidade a turvar as águas onde osamente submetida e que desse modo fixa melhor lancem as redes dos seus dissimula- limites normativos à intervenção técnica so- dos ou assumidos interesses. bre os fenómenos. A técnica é aqui intuída O aparecimento da Sida veio ressuscitar como tentativa sumamente perigosa de que- um medo atávico do poder da natureza numa brar os limites impostos à condição humana época em que é cada vez mais generalizado e que, ao concitar para tanto as forças na- o receio ante o poder da técnica. A epi- turais que escapam ao controle dos homens, demia irrompe num mundo tecnocientífico sobre eles precipitam a justa retaliação da or- em que as nossas mais acarinhadas expecta- dem cósmica ultrajada. Foi desde este púl- tivas e os nossos mais angustiantes receios pito que se lançou o anátema sobre Galileu e quanto ao que é possível e (in)desejável o heliocentrismo, que, ao retirar o homem do são filtrados pelas capacidades manipulado- centro físico de um Cosmos finito, estável e ras de uma tecnociência omnipresente e pelo ordenado, abriu a primeira grande ferida no sentido que essa manipulação todo-poderosa narcisismo onto-teológico que fazia do es- dos fenómenos confere à vida e à acção. Um pectáculo do Universo o cenário onde se de- mundo em que, como assinala Gilbert Hot- senrolava o drama da salvação humana. É tois2, a nossa relação com o real é tecnica- este mesmo tipo de pensamento que não as- mente mediatizada. Uma rápida análise po- similou ainda a segunda grande ferida, aberta deria detectar facilmente duas atitudes mai- pelo evolucionismo darwiniano, que estilha- ores em face da epidemia de Sida, cada uma çou o espelho da natureza em que se fazia até delas enraízada em visões da natureza e da então reflectir a natureza humana, numa an- técnica em princípio divergentes: uma visão tropologia que aferia a moralidade dos com- a que chamaríamos mito-teológica e uma vi- portamentos à conformidade com a boa or- são tecnocrática3. dem natural. E é à luz do evolucionismo, A visão mito-teológica pode detectar-se do qual, a despeito porventura de um Ni- nas concepções populares da natureza e da etzsche, ainda se não terão retirado as neces- técnica, com raízes no mais remoto passado sárias consequências antropológicas, que se humano e talvez comuns a todas as cultu- pode compreender a história natural de uma ras, mas a que as religiões deram por vezes epidemia como a da Sida como um acidente uma elaboração racional. A natureza é enca- inteiramente esperável da poiesis biológica rada como uma ordem cósmica inamovível à que rege a evolução e não como uma punição divina que se abate sobre a “promiscuidade” dos indivíduos, nem fruto de uma revolta da 2Gilbert Hottois: Pour une éthique dans un uni- vers technicien, Bruxelles, Éditions de l’Université de ordem natural ultrajada pela hybris tecnoló- Bruxelles, 1984 e O paradigma bioético, Lisboa, Edi- gica. Com efeito, o perfil epidemiológico da ções Salamandra, 1992. Sida não escapa ao próprio perfil do mundo 3 Sobre estas duas visões antagónicas e o esboço que assiste ao seu aparecimento e à sua pro- de uma alternativa a elas, ver, com maior desenvolvi- mento, António Fernando Cascais: “Sida: luz e som- pagação. bra num olhar bioético”, in Revista de Ciência, Tecno- Comum às grandes mitologias, o perigo logia e Sociedade, no 21, Janeiro/Fevereiro de 1994. de interferir com forças que só aos deuses www.bocc.ubi.pt Da virulência 3 pertencem, a hybris, é uma ideia que sub- Idênticas desconfiança e desaprovação po- jaz também às posições mais fundamentalis- demos detectar, porém, em correntes con- tas das igrejas cristãs, entre as quais avulta a temporâneas que se pretendem seculares, intransigência do fundamentalismo católico como são as da ecologia radical ou de certas perante o recurso à pílula como meio con- medicinas chamadas “alternativas”, que pro- traceptivo ou ao preservativo como expedi- põem um voluntarioso regresso a um mundo ente técnico de prevenção da infecção pelo pré-técnico ou a um éden anterior à irrupção VIH. Sendo pela insistente referência à na- das modernas doenças das sociedades indus- tureza, à boa ordem natural, que se afere a triais, entendidas como consequência neces- moralidade dos comportamentos, o uso do sária de uma ruptura com a natureza, tida por preservativo é visto como um paliativo téc- horizonte normativo originário dos compor- nico para um problema que essencialmente tamentos humanos. Este tipo de concepção, nada tem de técnico, e que lhe oculta a ver- que enforma algumas efabulações muito vul- dadeira essência moral: a epidemia é enten- garizadas a respeito das origens da epidemia dida como consequência dos nossos actos de de Sida4, na sua incessante procura de res- traição ao sentido divino da sexualidade, ou ponsáveis por ela, recupera o efeito de cul- seja, da nossa relação impiedosa com a or- pabilização a que os fundamentalismos de- dem natural. Prescrever o uso do preserva- claradamente religiosos recorrem com idên- tivo é assim um erro sobre um erro, a legi- tico móbil regenerador e salvífico. A origem timidade moral de o interditar sobrepõe-se à da Sida é desenvoltamente atribuída a tudo (i)legitimidade biomédica, isto é, tecnocien- quanto é vício malsão que, ao devastar os or- tífica, que, ao propô-lo como meio de pre- ganismos, os torna vulneráveis à infecção e venção, não só reconhece como promove a 4 desordem de base de comportamentos (não- A história das origens da Sida encontra-se bem descrita, e em termos até hoje ainda não contestados procriativos, hetero e homossexuais) “anti- em Mirko Grmek: Histoire du Sida. Début et origine naturais”. Mesmo não sendo vista como d’une pandémie actuelle, Paris, Payot, 1990, 2ème instrumento directo da vingança divina, a ed.; a respectiva tradução portuguesa tanto faz jus ao exemplo das antigas mitologias, o que não valor da escolha da obra como emblematiza a escas- seria consentâneo com o pressuposto teoló- sez de produção literária nacional sobre a Sida: Histó- ria da Sida, Lisboa, Relógio d’Água. Anteriormente gico de um Deus infinitamente bom, a epi- a ela, já tinham sido publicados textos que tematizam demia de Sida é, no entanto, teologicamente de forma clara todas as controvérsias respeitantes às interpretável como consequência do esque- origens da Sida e que Grmek desenvolve; V., nome- cimento humano de Deus. A solução do adamente: Jacques Leibowitch: Sida. Um estranho problema é pois fundamentalmente moral, vírus de origem desconhecida, Lisboa, Editora Nova Nórdica, 1986; Luc Montagnier: “Les problèmes de advogando-se o retorno à monogamia conju- l’origine du virus”, in AAVV: Sida: Épidémies et gal ou à abstinência, e questiona de raíz a vo- sociétés, Lyon, Fondation Marcel Mérieux/Fondation cação secularizante da sociedade tecnocien- des Sciences et Techniques du Vivant, 1987, pp. 62- tífica moderna, perante a qual os fundamen- 66; Mirko Grmek: “Problème des maladies nouvel- les”, in id., ibid., pp.