“LITERATURA DO SÉCULO XX E CRISTIANISMO”

José Raimundo Gomes da Cruz Procurador de Justiça de São Paulo aposentado

Em homenagem ao Revmo. D. Odilo Scherer, pelos 15 anos de ordenação episcopal, em 4/2/2017

“Abandonei as praias dos autores antigos, para me arriscar ao diálogo com os filhos do meu século. Possa eu, dando esta volta, alcançar a antiga e sempre nova verdade de Deus, ‘jovem ao mesmo tempo que eterno’.” (Charles Moeller, ob. cit. com o título acima, trad. Augusto Sousa, São Paulo : Flamboyant, 1958. v. 1 prefácio do autor, p. 8)

Este livro me impressionou tanto, que dei volumes dele de presente ou emprestei a várias pessoas, até descobrir que o 2º volume não se achava mais em minha biblioteca. Graças ao meu cunhado, engenheiro José Maurício Nunes Mendes, recuperei informações para conveniente revisão a seu respeito.

Coloco em destaque, de início, que há quase dez anos, escrevi listas de 70 filmes, 70 músicas etc. A lista de 70 livros começava com os quatro volumes de Moeller. Sabia-se que o plano da vasta obra do religioso católico incluiria, no 5º e no 6º volumes programados, os nomes de Proust e Joyce. Infelizmente, até bem pouco tempo atrás, esses dois volumes ficaram na promessa.

O 1º volume, com suas 476 páginas se dedica ao tema O Silêncio de Deus. Ele inclui o estudo da obra de , André Gide, Aldous Huxley, , , Julien Green e Bernanos, todos eles incluídos no Petit Larousse illustré 1989.

A editora, na orelha inicial do volume, informa tratar-se de “uma das obras capitais do pensamento cristão contemporâneo... que a crítica européia vem saudando com aplausos e o respeito devidos a um trabalho deste fôlego”. Não falta o destaque do seu “ponto de vista cristão”. Após enumerar os autores estudados, há referência ao autor do livro: “O abade Moeller, professor da Universidade de Lovaina, tendo empreendido a tarefa gigantesca de orientar o leitor católico através dos depoimentos de homens da mais variada formação religiosa, armado de sua doutrina moral e de uma teologia soberana, consegue, apenas com o esforço da sua poderosa capacidade interpretativa, traçar o caminho por onde hão de enveredar os que, mais inseguros ou mais impressionáveis, sentem por vezes vacilar dentro de si a chama da fé cristã... O intuito do autor neste volume é dar algumas lições de teologia: e bem reconhece que a teologia tem má imprensa, muitas vezes por culpa dos teólogos. Contudo procura encarnar algumas verdades cristãs essenciais com a ajuda das obras contemporâneas.”

O volume II – “A Fé em Jesus”, inclui Jean-Paul Sartre, Henry James, Roger Martin du Guard e Joseph Malègue.

Sobre Sartre, informa o Petit Larousse illustré 1989: “filósofo e escritor francês (Paris 1905 – idem 1980). Marcada pela fenomenologia e por Heidegger, a filosofia sartriana conhece duas fases sem corte cronológico nítido. A primeira, orientada sobre o existencialismo, considera a liberdade como o fundamento do ‘estar-no-mundo’, o homem, e descrita sua existência como um combate moral entre essa liberdade e sua recusa, a fuga para o em-si, graças notadamente à má fé (l’Être et le Néant, 1943). A segunda se inspira no materialismo dialético e preconiza o engajamento como o único comportamento autêntico do homem (Critique de la raison dialectique, 1960-1985). A impossibilidade de conciliar o engajamento social e a autenticidade pessoal atordoa Sartre na sua vida como nos seus heróis. Sartre desenvolveu ideias em romances (la Nausée, 1938; lês Chemins de la liberté, 1945- 1949), dramas (Huis clos, 1944; les Mains sales, 1948; le Diable et le Bon Dieu, 1951) novelas (le Mur), ensaios (Situations, 1947-1976), uma narração autobiográfica (le Mots, 1964), um estudo sobre Flaubert (l’Idiot de la famille). Em 1964, ele recusou o Prêmio Nobel de literatura. Após sua morte apareceram notadamente Cahiers pour une morale (1983) e Carnets de la drôle de guerre (1983)”.

A propósito dos outros três autores, o Larousse citado silencia.

O volume III – “Esperança dos Homens” – trata de André Malraux, , Vercors (o Larousse citado acrescenta “Jean Bruller, dit”), Michel Cholokhov (no citado Larousse: Mikhaïl Aleksandrovitch), Thierry Maulnier (“Jacques Louis Talagrand, chamado Thierry”, segundo o citado Larousse), Alain Bombard, Françoise Sagan (“Françoise Quoirez”, chamada de Françoise”, informa o Larousse) e Ladislas Reymont (Wladyslaw Stanislaw, segundo o Larousse).

O volume IV – “L’Esperance en Dieu notre Père” – inclui: Anne Frank (adolescente ausente do Larousse, vítima do nazismo – assim mesmo, com inicial minúscula, se não se tratar de começo de frase – escondida em sótão de prédio, em Amsterdam, durante a ocupação alemã do começo dos anos 1940; afinal descoberta, com seus familiares, foi mandada para campo de concentração, onde viria a morrer; deixou Diário que ficou famoso e se tornou peça de teatro e filme; o prédio hoje é museu e, entre as lembranças que guarda, está o Oscar que a atriz Shelley Winters ganhou como coadjuvante em 1959, no papel de mãe da jovem escritora; em 1996, sempre com a Maria Lúcia, visitei o museu em Amsterdam), Miguel de Unamuno, , Charles Du Bos, Fritz Hochwälder (não incluído no citado Larousse) e Charles Péguy.

Falar das duas mil páginas desses quatro volumes de Moeller me obriga a escolhas de raridades. Das 100 páginas sobre Unamuno, no 4º volume, retiro a seguinte passagem, que usei como dedicatória à Maria Lúcia no meu livro Espinosa, anos 40 – Depoimento de um Menino curioso (São Paulo : 1997): “Então eu descobri tudo o que Deus fez por mim nessa mulher, a mãe dos meus filhos, minha virgem-mãe, que não tem outro romance que não o meu romance, ela, meu espelho de santa inconsciência divina, de eternidade” (Moeller, ob. cit., p, 82).

Unamuno afirmou: “O primado espanhol do ético sobre o estético se marca no professor de Salamanca por seu sentimento da responsabilidade moral que precede todos os atos, como uma sombra, daquele que passeia”. A propósito, em nota da mesma página, Moeller escreve: “O professor Pedro Lain Entralgo me fez notar que a expressão espanhola ‘que bonito’, usada para exprimir a admiração diante de uma coisa bela, testemunha esse

2 primado do ético sobre o estético, ou melhor, da visão ética das realidades belas” (ob. cit., p. 79)

A respeito da “escolástica que se opunha a Kant”, ela “às vezes justificava a frase de Blondel:: ‘Que Santo Tomaz nos proteja contra os tomistas!’” (Moeller, p. 95)

A propósito do terceiro autor do volume IV – “Gabriel Marcel et le ‘mystère’ de l’espérance” – Moeller coloca em epígrafe: “Há uma coisa que descobri após a morte dos meus pais: aquilo que nós chamamos sobreviver, em verdade é sub-viver (sous vivre), e aqueles que nós não cessamos de amar da melhor forma possível, eis que eles se tornam como uma abóbada palpitante, invisível, mas pressentida e mesmo tocada de leve sob a qual nós avançamos sempre mais recurvados, mais arrancados de nós mesmos, para o instante em que tudo será absorvido no amor. (Gabriel Marcel, Vers um autre royaume)” (Moeller, ob. cit., p. 147).

Mais adiante, Marcel observa: “O padre Pascal Laumière achará, de resto, no Brasil, no mundo representado por padre Ricardo, outra prisão, que, desta vez, ele não pode evitar artificiosamente, mas que deve assumir.” (Moeller, ob. cit., p. 273)

A 4ª parte do 4º volume do livro de Moeller intitula-se “Charles Du Bos e a peregrinação para a esperança”. (pp. 281 a 415)

Epígrafe escolhida por Moeller: “Para quem nutre, de modo estável, a esperança, contudo ineficaz, o amor, porém ineficaz da virtude, como é doce, consolador e encorajador poder pensar em Maria como esta esperança mesmo, de depositar a nossa nela, de remetê-la a ela para que ela frutifique” (Du Bos, Journal).

Trecho de Moeller: “Charles Du Bos tinha tocado a terra prometida no espiritualismo bergsoniano; sua sensibilidade ia encarná-la no encontro dos artistas onde ele vê testemunhas do espiritual: Keats, Giorgione, Botticelli, a opulenta tríade... vão permitir-lhe, após ter ‘entrado em Bergson’, entrar ‘na beleza’... como se entra na religião” (ob. cit., p. 291)

Pesquisando no Google, descobri novidades que alteram a continuação deste breve comentário.

“Debido a su capacidad como teólogo, fue invitado a participar en el Concilio Vaticano II, donde tuvo una participación destacada en la redacción del Esquema XIII, “La Iglesia en el mundo”, trabajo del que surgiría la encíclica Gaudium et Spes. Luego de esto fue nombrado subsecretario de la Congregación para la Doctrina de la Fe, y, más adelante, el papa Paulo VI lo convirtió en rector del Instituto Ecuménico de Jerusalem. En 1970 ingresó en la Academia Real de Lengua y Literatura Francesas de Bélgica. Falleció en Bruselas, el 3 de abril de 1986, cuando se aprestaba a participar en el Curso Internacional de Alta Cultura, en Venecia, para desarrollar el tema “Nuevas vías en la hermenéutica de la literatura”. A propósito de tais informações, tratei de consultar o Dicionário do Concílio Vaticano II e não encontrei o nome de Charles Moeller na listagem nominal dos 3.060 padres conciliares participantes diretos do Concílio Vaticano II (São Paulo : Paulinas e Paulus, 2015,

3 pp. 1029/1085), nem em outras listas seguintes. Moeller, natural de Bruxelas, onde nasceu em 12/1/12, lá também faleceria em 3/4/1986. Para minha surpresa, a pesquisa no Google também revelou que foram publicados na França e na Espanha os volumes 5º e 6º do livro de Moeller de que trata este comentário. 5º volume – Amores humanos – estuda Françoise Sagan, , Antoine de Saint-Exupéry, , Paul Valéry e Saint-John Perse. A obra de Françoise Sagan é considerada aqui por Moeller como uma espécie de pórtico, frequentado por muitos transeuntes, curiosos, sonhadores, o qual, se nos detivermos diante dele nos mostrará talvez uma porta que revele espaço no qual se descubra melhor o segredo do amor”. De Bertolt Brecht diz que conservou até o último dia a esperança de que um dia se estabeleceria uma sociedade melhor, mas ainda assim se sentiu cada vez mais “rebaixado pela realidade”. Em suas peças teatrais, diz Moeller, e mais além das esperanças marxistas que sempre se comunicam de maneira explícita, “há uma evidência da condição humana que nenhuma organização puramente econômica e social poderá remediar”. Saint-Exupéry não utiliza sua paixão pela aviação para viver uma vida perigosa, mas como meio para descobrir o homem e o universo, para recuperar uma verdade campesina. Sem ceder jamais a um lirismo fácil, é, para Moeller, “o poeta do planeta, visto pelo aviador”, e quem através da sua experiência “encontra a Deus como o laço que ata, invisivelmente, todos os outros vínculos do espírito e dá sentido à vida e à morte”. Sobre este autor, a APMP divulgou, recentemente, meu artigo intitulado “Um pouco de Antoine de Saint-Exupéry” ([email protected], 19/12/16) Sobre Simone de Beauvoir, afirma Moeller que ela nos recorda com “toda sua vida e toda sua obra” que é sempre impossível a intenção de separar o amor do homem e da mulher da sua inserção na sociedade. A dimensão da autora de El segundo sexo situa esse amor, “como em seu centro de gravidade, na consciência das responsabilidades sociais, econômicas, políticas e culturais”. “Atrás da máscara de Valéry, de seus escarcéus com o ídolo intelecto, ocultava-se “um ser sensível, cuja afetividade corria o risco de degenerar incessantemente; por isso a bloqueou com a violência conhecida”. Moeller concorda que Valéry foi grande apesar de suas teorias, que seus poemas, que não pretendiam ser poemas, são grandes, apesar de suas teorias. E que foi testemunha “de um misticismo sem Deus: necessidade de uma realidade absoluta, mas também impossibilidade de descobrir esta realidade”. Em Saint-John Perse, Moeller encontra “o fogo que abrasa o coração do homem, o que abrasou o coração de Pascal, mas também o que está presente no universo”. Essa poesia dos elementos é um “terraço aberto a todos os ventos, de onde vemos abrirem-se caminhos que nos levam de novo até o universo, até o cosmos”. O sexto e último volume, Exilio e Regresso, analisa as obras de , Ingmar Bergman, Valéry Larbaud, François Mauriac, e . O universo de Durás, segundo Moeller, oscila sempre entre dois extremos, o da desgraça que se abate sobre os seres, em um caso, e o da eleição desta desgraça, no outro. “No

4 vazio desta fria desesperança se pode sempre, não obstante, adivinhar a vontade de desprender-se das ataduras da paixão mortal, de atravessar um dia o espelho do desejo.” Também para o cineasta Bergman, o espelho é um instrumento ativo do conhecimento. “Permite que alguém se interrogue a si mesmo. Não reflete jogos já feitos, mas, apresentando- nos a imagen do que talvez sejamos, do que poderíamos ser, ajuda à reflexão sobre o sentido da vida.” Para Moeller, o espelho e a ternura são elementos essenciais na obra do diretor sueco. Em certos momentos privilegiados, somente a ternura pode “romper o pesadelo da solidão humana e do silêncio de Deus”. Em Valéry Larbaud, na sua obra Barnabooth, destaca Moeller o desejo de recuperar o espírito da infância, o qual “torna o homem disponível diante de Deus, restitui-lhe a faculdade de humilde acolhida, pela qual a alma do homem se abre às luzes do alto”. Mauriac, no meio do drama que a esperança cristã deve enfrentar, drama feito do desespero existencial, da angústia dos cristãos extraviados na floresta dos sentidos e da dor, nos confía, por meio de uma de suas personagens este segredo que Moeller julga essencial: “Sim, Michéle, agora sabe que existe o amor neste mundo; mas está crucificado, e nós com êle”. O amor e a Cruz estão também no núcleo da obra de Sigrid Unsedt, cuja trilogia Christine Lavransdatter (A coroa, A mulher e A cruz) é analisada aqui. Depois de haver conhecido o caminho “agreste” da rebeldia, Christine regressa ao caminho da casa do pai —e do Pai— compreendendo o simbolismo da cruz com que seu padre a havia presenteado uma vez. E esta cruz, aceita, “se faz fonte de comunhão com todos os homens, reinvenção do vínculo de amor divino que une a todos os homens entre si, em Deus, e do qual procedem os amores humanos”. Na obra de Gertrud von Le Fort se enfrentam o amor de quem entrega sua vida e a rebeldia de quem faz do ateísmo uma mística. Em O veu de Verônica, integrado pelas novelas As fontes de Roma e A coroa dos anjos, von Le Fort analisa “com incrível penetração a coordenação entre fé e incredulidade, entre Igreja e mundo ateu”, para concluir que “o abismo que separa os crentes e ateus nunca será superado”. E essa “necessidade de unidade, sobretudo no momento em que descobrimos a dimensão planetária dos problemas culturais e políticos”, von Le Fort a imagina sempre frustrada: “Sua obra demonstra que é impossível realizar de modo duradouro um único Império que domine o mundo”. Comecei este breve comentário (se se considerarem as três mil páginas do livro de Moeller, mesmo duas mil, antes da “descoberta” de mais dois volumes) com o objetivo de tornar mais conhecida tão importante obra sobre literatura e cristianismo. Não faltou outra intenção: de obter informação sobre o volume 2º, que não se acha mais nas minhas prateleiras (algum sebo ou mesmo biblioteca, quem sabe?). Enfim, o mesmo objetivo de localizar os dois últimos volumes – 5º e 6º – para aquisição ou cópia, conforme o caso.

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