A Militarização da Administração 20. Pública no Brasil: projeto de nação ou projeto de poder? Brasília, Maio de 2021
William Nozaki Bacharel em Ciências Sociais (USP), mestre e doutorando em Desenvolvimento Econômico (UNICAMP), professor de ciência política e economia da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), pesquisador do Programa de Economia Política Internacional do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PEPI/UFRJ), diretor-técnico do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás e Biocombustíveis (INEEP).
Expediente Realização: Fórum Nacional Permanente de Carreiras Típicas de Estado (Fonacate) (Maio, 2021) Autor: William Nozaki As opiniões aqui emitidas são de responsabilidade dos autores e colaboradores. Diagramação: Diego Feitosa
Apoio: Reforma Administrativa • 2021
A Militarização da Administração Pública no Brasil: projeto de nação ou projeto de poder?
William Nozaki1 mocracia. Os militares ocuparam o primei- (com a colaboração de José Celso Cardoso Jr. ro plano da dominação com presidentes em partes específicas do texto) empossados, como Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto, com presidentes eleitos, 1. Os Militares e a Nova República como Hermes da Fonseca e Eurico Dutra, e A presença dos militares em momentos com presidentes ditatoriais, como ao longo decisivos da história do Brasil é uma cons- da ditadura civil-militar de 1964. Mas tam- tatação incontornável. No período colo- bém tiveram presença marcante no plano nial da América Portuguesa, construíram da resistência, com figuras emblemáticas o mito fundador do território brasileiro, a como o “Almirante Negro” João Cândido, Batalha de Guararapes (1648) e o conjun- os “Cavaleiros da Esperança” Miguel Costa to de guerras e conflitos que desaguaram e Luiz Carlos Prestes e o “General Marxis- na construção e na manutenção da unida- ta” Nelson Werneck Sodré. de territorial brasileira. No período imperial Ao longo desse percurso, a percepção do Brasil independente, foram os principais sobre a importância de montagem de uma atores da Guerra do Paraguai (1864), perí- máquina de guerra moderna passou a se odo decisivo que marca a ascensão militar fazer presente de maneira crescente no e política das Forças Armadas brasileiras. pensamento e na ação militar. Desde en- Ascensão militar, pois foram as batalhas tão, a corporação das armas passou a as- na tríplice fronteira que explicitaram a ne- sumir uma progressiva influência política cessidade de modernização das técnicas e que andou de par com a autoconstrução tecnologias de combate; e ascensão políti- da identidade das Forças Armadas como a ca, pois este é também o momento em que mais importante instituição do país, a única percebem a importância da relação entre a capaz de assegurar a unidade nacional em organização militar das armas e o nível de um cenário marcado por regionalismos e desenvolvimento econômico do país. pelo desinteresse ou venalidade das elites Além disso, os fardados foram artífices civis. importantes na conformação da República Passado mais de um século e meio do iní- e fiadores relevantes na construção da De- cio desse processo, o trauma mal resolvido
1 William Nozaki, bacharel em Ciências Sociais (USP), mestre e doutorando em Desenvolvimento Econômico (UNICAMP), professor de ciência política e economia da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), pesquisador do Programa de Economia Política Internacional do Instituto de Economia da Universida- de Federal do Rio de Janeiro (PEPI/UFRJ), diretor-técnico do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás e Biocombustíveis (INEEP). 3 Reforma Administrativa • 2021
da ditadura militar de 1964 e o drama mal- A nova realidade instaurada depois de -acabado da abertura democrática de 1988 1988 tornou essa agenda ainda mais negli- fizeram com que a presença dos militares genciada. O fim da Guerra Fria, o avanço na política brasileira fosse tratada como da globalização, a priorização da transição um tema solucionado ou como um assunto política negociada e das reformas econô- silenciado. micas neoliberais redefiniram a agenda pú- A escassez de estratégias, formulações blica. O discurso hegemônico sobre o fim e ações no campo civil progressista para do Estado e sobre o Estado-mínimo cons- enfrentar o tema das Forças Armadas é truíram, direta ou indiretamente, uma com- sintoma de como muitas vezes se subesti- preensão equivocada sobre as estruturas mou no Brasil o fato de que a transição de- estatais. O Estado passou a ser tratado ina- mocrática foi não somente uma conquista dequadamente apenas como sinônimo de da sociedade civil, mas também uma obra Poderes Executivo e Legislativo, o Poder de setores distensionistas no interior das Executivo foi resumido à mera instância de Armas, mais ainda: a secundarização pro- implementação de políticas públicas, en- blemática da constatação de que a própria quanto as políticas públicas foram reduzi- Constituição Cidadã de 1988 assegurou às das ao nível estrito de política macroeco- Forças Armadas o papel de garantidora de nômica. lei e da ordem, abrindo precedentes para a O pensamento republicano liberal e tec- arbitragem de tensões entre os Poderes e nocrático subtraiu a necessária reflexão de conflitos no interior da sociedade. sobre a natureza do poder e sobre a es- A Constituição de 1988 foi marcada por trutura dos monopólios de uso legítimo da um modelo de transição negociada que força e da violência por parte do Estado. viabilizou a permanência, no âmbito das Como resultado, o abandono das proble- Forças Armadas, de um conjunto de ofi- matizações e preocupações sobre o mo- ciais que nunca aderiram, de fato, ao pro- delo de relações civis-militares vigente no jeto de abertura democrática. De um lado, país, ou, mais precisamente, a tentativa de os adeptos do General Sylvio Frota sempre circunscrever tais questões apenas à arena entenderam as Forças Armadas como po- da institucionalidade da política de defesa. der tutelador sobre a República, de outro Tal fato se evidencia, por exemplo, nos lado, os apoiadores do General Lêonidas governos de Fernando Henrique Cardoso. Pires sempre compreenderam as Forças Em 1996 houve a publicização da primeira Armadas como poder moderador da De- Política de Defesa Nacional (PDN) da Nova mocracia. República; já em 1999 a extinção do Esta- Essa cultura militar encontrou abrigo es- do-Maior das Forças Armadas deu lugar pecialmente no sistema militar de ensino, à criação do Ministério da Defesa, nesse nas escolas e academias militares, nos ser- mesmo compasso os Ministérios Milita- viços de inteligência e no Alto Comando do res foram substituídos pelos Comandos Exército (ACE). Foi a partir dessas institui- do Exército, da Marinha e da Aeronáutica. ções que as alas menos democráticas sou- Além disso, houve a aprovação da Lei dos beram capturar o conjunto das instituições Desaparecidos, um primeiro passo, mas militares para um sentido conservador e ainda incipiente, na tentativa de constru- antidemocrático. Nos últimos anos esse ção de uma política de ajuste de contas agrupamento teve seu encontro histórico com o passado ditatorial. Esses avanços, com o neoliberalismo e com o bolsonaris- entretanto, vieram acompanhados de res- mo. trições orçamentárias, sucateamento dos equipamentos e desestruturação dos su-
4 Reforma Administrativa • 2021 primentos militares, além disso as missões forto permanente e por um tensionamento de defesa foram progressivamente substi- crescente. Apesar do avanço materializado tuídas por atividades típicas de polícia. na publicação do Livro Branco da Defesa No entanto, a ausência de projetos estra- Brasileira e da pujança dos projetos estra- tégicos bloqueou o desenvolvimento das tégicos, a própria biografia da presidenta, Forças e, por consequência, reiterou a ló- uma resistente da ditadura civil-militar, já gica territorial que historicamente fez com provocava incômodos entre viúvas de far- que as Armas entendessem sua principal da e vivandeiras de casaca. Em 2011, a ins- tarefa como sendo não a defesa exter- tauração da Comissão Nacional da Verda- na, mas a segurança interna do país. Um de, uma iniciativa de promoção do direito exemplo emblemático dessa atuação se à memória e à verdade no país, acirrou os deu no uso do Exército para desmobilizar ânimos já assoberbados. uma greve de trabalhadores petroleiros re- Mais ainda, em 2012, em meio ao debate alizada em 1996. sobre a necessidade de revisão da Lei da No governo Lula, por seu turno, houve o Anistia, o Clube Militar divulgou nota que lançamento da Estratégia Nacional de De- criticava Dilma Rousseff e as ministras que fesa, em 2008; a revisão da Política Nacio- saíram em defesa dos trabalhos da Co- nal de Defesa; a ampliação do orçamento missão Nacional da Verdade. A presidente e a recomposição de parcela dos soldos; o promoveu uma interpelação aos militares estabelecimento de parcerias estratégicas da reserva e exigiu a imediata retirada e com outras nações e com a ONU, por meio desautorização da nota; o pedido foi aten- das missões de paz; além da iniciativa de dido, mas a relação com os generais de criação do Conselho de Defesa Sul-Ameri- pijama nunca mais foi a mesma. Vale des- cano (CDS). tacar: ao contrário do que imagina certo pensamento civil, os militares da reserva, A tônica de fortalecimento e de reapa- a despeito de não estarem na ativa, exer- relhamento das Forças Armadas também cem forte influência hierárquica e ideológi- se verificou na retomada de projetos es- ca sobre o conjunto dos contingentes das tratégicos, com destaque para o início das Armas. tratativas que desaguaram mais tarde nos projetos do submarino a propulsão nucle- Além disso, o governo ainda ensaiou a ar, dos caças supersônicos Gripen, de co- tentativa de institucionalização de um Al- operação em ciência espacial e em tecno- to-Comando Unificado das Forças Arma- logia de desenvolvimento de sistemas de das com a presença de civis. A iniciativa, radares, para não mencionar a mediação acertada no mérito, infelizmente foi apre- brasileira no caso do Acordo Nuclear com sentada em um contexto excessivamente o Irã. O aperfeiçoamento institucional do adverso para que pudesse ser debatida de controle civil sobre os militares, entretanto, maneira sóbria. Nesse mesmo contexto de permaneceu sendo uma lacuna, e, ao con- animosidades, uma tentativa de reformula- trário do que supunham alguns, o fortaleci- ção dos currículos das academias e esco- mento das Forças Armadas não se traduziu las militares naufragou precocemente. Por em apoio ou adesão ao projeto político e fim, o uso policial do Exército em grandes ao regime democrático em curso naquele eventos, como a Copa do Mundo e as Olim- momento. píadas, e o crescente emprego das fardas em questões de segurança pública, inclu- No governo Dilma, por sua vez, o avan- sive contra manifestações políticas como ço da política de defesa e da relação com as Jornadas de Junho de 2013, apenas rei- os militares foi marcado por um descon- terou, uma vez mais, a autopercepção das
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Três Armas como garantidora em última o próprio general respondia, “asseguro à instância da “ordem” e do “progresso”, con- Nação que o Exército brasileiro julga com- ceitos estes, entendidos de maneira bem partilhar o anseio de todos os cidadãos de particular pelas FFAA. bem de repúdio à impunidade e de respeito No governo Temer, os principais aconte- à Constituição, à paz social e à democracia, cimentos na política de defesa foram a re- bem como se mantém atento às suas mis- montagem do Gabinete de Segurança Ins- sões institucionais”. titucional (GSI), com status de ministério Tratava-se de uma inequívoca ameaça de e estrutura fortalecida, sobretudo na área intervenção das Forças Armadas no pro- de política de inteligência; a revisão dos cesso eleitoral, revelando seu papel que principais documentos da estratégia na- mais tarde se explicitaria de “poder mode- cional, com novo acento reforçando o uso rador”. Mais recentemente, o caso foi do- do dispositivo de Garantia da Lei e da Or- cumentado, detalhado e retomado no de- dem (GLO); a possibilidade de que alguns poimento dado pelo General Villas Boas ao crimes contra civis cometidos por milita- CPDOC da FGV. res possam ser julgados pela Justiça Mili- Diante dessa breve descrição estilizada, e tar; e a intervenção militar federal no Rio dos desdobramentos políticos posteriores, de Janeiro, acompanhada de ampliação da uma questão de impõe: se as Forças Arma- execução orçamentária do Exército, em um das passaram por um processo de reestru- contexto já de desmonte das políticas so- turação e recomposição nos governos do ciais. Uma vez mais, o Estado neoliberal se PT, qual é a origem da indisposição que fez mostrou mínimo no arcabouço de direitos, com que os generais endossassem o pro- garantias e políticas públicas, mas máximo cesso de impeachment da presidenta Dil- no espectro de uso da força, da violência e ma Rousseff, ainda que silenciosamente, do arbítrio. e o processo de prisão do presidente Luiz Todo esse processo desaguou nos fatídi- Inácio Lula da Silva, nesse caso explicita- cos acontecimentos de 2018. Ao longo do mente? processo eleitoral, a principal preocupação Para que se possa ensaiar, ainda que de dos militares foi, acima de qualquer outra maneira preliminar, um início de resposta prioridade, bloquear qualquer possibili- para a questão acima, é fundamental que dade de vitória de um candidato petista, se leve em consideração alguns elementos fosse ele o presidente Lula ou seu substi- importantes para a análise desse ator no tuto Fernando Haddad, ou qualquer outro período recente: que representasse o espectro de esquer- da. As declarações públicas contra o PT, i. os militares não conformam um grupo proferidas pelo então general da reserva homogêneo, e as primeiras diferenças Hamilton Mourão e pelo general da ativa que os caracterizam dizem respeito a Eduardo Villas Bôas, culminaram em duas especificidades e interesses de cada publicações no Twitter do comandante das uma das armas, Exército, Aeronáutica Forças Armadas, na véspera do julgamento e Marinha; do presidente Lula. ii. os militares não se cindem em bifurca- No primeiro deles, Villas Bôas afirmava ções políticas esquemáticas que ten- “nessa situação que vive o Brasil, resta per- tam separá-los entre “nacionalistas” e guntar às instituições e ao povo quem real- “entreguistas”, tampouco em dualida- mente está pensando no bem do país e das des econômicas simplificadoras que gerações futuras e quem está preocupado tentam distingui-los entre “desenvol- apenas com interesses pessoais?” Ao que vimentistas” e “liberais”; mais profícuo 6 Reforma Administrativa • 2021
é analisar as diferenças de visão de distanciamento histórico para traçar con- mundo entre os militares da ativa e os clusões, talvez não seja ousado supor que da reserva e entre os generais de tro- esses projetos provocaram, a um só tem- pa que participaram de missões fora po, incômodos na mais forte das armas do país nos últimos anos e os que se nacionais, o Exército, e no mais poderoso concentraram nas atividades de Es- Estado do continente, os EUA, criando um tado Maior, considerando, inclusive, a clima favorável de maior alinhamento entre presença de novas matrizes ideológi- esses dois atores. cas na formação das armas; Se, por um lado, é bem verdade que o iii. os militares não necessariamente dis- Exército brasileiro foi também prestigiado põem de uma estratégia prévia, orga- com projetos estratégicos, como os da co- nizada teleologicamente, para o país, operação espacial com a China, de artilha- mas talvez disponham de uma tática ria antiaérea com a Rússia e do sistema de prévia, organizada corporativamente, radares com a Índia, é bem possível que a para se colocarem nos principais espa- aproximação com países que não faziam ços decisórios do Estado-nacional. parte do espectro geopolítico tradicional do Brasil fosse percebida como um risco 2. Os Militares e os Governos Lula que o Exército preferiu não correr diante da possibilidade de ver o seu poder interno e Dilma. relativo diminuir frente à Marinha e à Aero- Os principais projetos estratégicos das náutica. Forças Armadas levados à cabo no período Tal hipótese – preliminar, diga-se de pas- brevemente sumariado acima situam-se sagem – coloca em questão um debate nos governos Lula e Dilma. recorrente quando se trata da presença A descoberta do pré-sal colocou na or- dos militares na política, seu suposto na- dem do dia a importância da defesa da cionalismo. Aqueles que se espantam com área marítima conhecida como Amazônia o alinhamento do Exército com os EUA se Azul e reativou o projeto de construção do esquecem que não se trata de evento novo, submarino nuclear brasileiro, em um am- outros presidentes militares como Hermes biente em que o governo dos EUA promo- da Fonseca, Eurico Gaspar Dutra e Hum- veu a reativação da IV Frota Naval para o berto Castelo Branco também protagoni- monitoramento do Atlântico Sul, o projeto zaram projetos liberal-conservadores e de além de fortalecer a Marinha envolvia acor- ruptura com políticas desenvolvimentistas dos de cooperação com a França. e nacionalistas. A desmistificação do pa- A criação da UNASUL trouxe à tona o de- triotismo fardado exige que se faça uma bate sobre a autonomia internacional sul- rápida digressão sobre as bases e a tradi- -americana e animou os debates sobre o ção do pensamento militar, que, se por um projeto de construção dos caças supersô- lado, foi industrializante em determinado nicos brasileiros, em um cenário em que o momento, por outro, não necessariamente governo norte-americano foi condiciona- foi nacionalista e protecionista. do a participar das reuniões apenas como Do ponto de vista político, a chamada ouvinte e convidado. Este projeto, por sua doutrina da Escola Superior de Guerra vez, além de fortalecer a Aeronáutica bra- concentrava-se em uma certa leitura elitis- sileira, abriu diálogos de cooperação com o ta sobre as fragilidades do povo brasileiro governo da Suécia. para a condução de um projeto nacional e Embora ainda não tenhamos o devido em uma certa leitura subordinada do papel do Brasil face à sua relação – também su- 7 Reforma Administrativa • 2021
bordinada – aos EUA. A construção da indústria nacional de Do ponto de vista econômico, no entanto, metalurgia e siderurgia deveria garantir os se estabelecia a centralidade da indústria suprimentos básicos para a defesa nacio- como base do poder militar nacional. Ao nal; já a constituição das malhas ferroviária proceder de tal maneira, a doutrina estabe- e rodoviária deveriam garantir as condi- lecia com clareza as diferenças entre quais ções logísticas para a integração nacional; eram os objetivos da industrialização (de- ao passo que a consolidação das indústrias fesa, segurança e integração) e quais eram de petróleo e petroquímica deveria garantir as possíveis consequências da industriali- o abastecimento fundamental e necessário zação (crescimento, emprego e renda). O para a segurança nacional. Não por acaso, seu compromisso sempre foi com o pri- como veremos adiante, todas essas áreas meiro tripé, não necessariamente com o foram ocupadas pelos militares no governo segundo. Bolsonaro. Desse modo, o desenvolvimentismo Dada as dimensões tecnológica e de fi- pragmático dos militares guardava uma nanciamento exigidas por essa empreita- vantagem quando comparado ao desen- da, ela não poderia acontecer apenas por volvimentismo teórico dos civis, qual seja: obra do Estado, mas deveria contar com o tratava a industrialização como meio para capital privado. Dada a natureza estratégi- a construção de um projeto nacional es- ca e tática que orientava essa iniciativa, ela pecífico e não abordava a industrialização não poderia ocorrer apenas sob os auspí- como um fim em si mesmo. Ao proceder de cios na iniciativa privada, mas deveria con- tal maneira os militares dispunham de me- tar com a coordenação do Estado e com lhores condições para congregar atores e a atuação das empresas estatais. Por fim, forças capazes de levar adiante o seu pro- como em última instância essa proposição jeto, dando sentido à industrialização. Ao ainda estava orientada pelo projeto geopo- desconsiderar esse componente, os civis lítico da Guerra Fria, ela deveria acontecer incorreram em uma abordagem assenta- em consonância com interesses dos Esta- da em uma relação frágil entre transforma- dos-nacionais aliados e dos capitais pri- ções na estrutura produtiva e mudanças vados internacionais, fundamentalmente na estrutura social, defendendo um projeto norte-americanos. de industrialização que com o passar do Sendo assim, o mais adequado é compre- tempo deixou de fazer sentido para atores ender que o projeto de industrialização res- e forças sociais capazes de defender esse pondia a questões pragmáticas e não ideo- projeto em um sentido mais progressista, lógicas, por isso não veio acompanhado de de modo que a industrialização pela indus- nacionalismos. Desse modo, quando nas trialização tornou-se uma panaceia apenas décadas de 1980 e 1990 o industrialismo foi para iniciados no debate desenvolvimen- sendo substituído pela financeirização, os tista, sem estratégia, e, portanto, sem po- militares não apresentaram resistência em der de articulação política ou de mobiliza- defesa do velho projeto. ção social. Nesse ínterim, a formação militar atuou Na perspectiva do planejamento econô- feito uma porca sem parafuso, girando no mico militar, a industrialização autárquica vazio. Vale dizer: as tradições, o amor à pá- deveria levar adiante, como tarefa de cons- tria e os símbolos nacionais seguiram sen- trução nacional, envolvendo iniciativa pri- do cultivados, entretanto, a forma seguiu vada e poder público, a constituição de três desacompanhada de conteúdo e esses elementos fundamentais: o aço, a roda e o valores subjetivos foram sendo inoculados óleo. sem estudos mais objetivos e atualizados 8 Reforma Administrativa • 2021 sobre a formação e transformações do cado por severa polarização política, pela Estado, da sociedade, da cultura, da eco- agudização do anti-petismo, pela escassez nomia e do povo brasileiro. Tal defasagem de debates, por atentados e por fake news, construiu uma ideia abstrata de país, a-his- o capitão Jair Bolsonaro emergiu vitorioso tórica, criando uma falta de identificação das urnas e os generais passaram a ter, robusta entre a corporação e o povo, tudo novamente, grande influência sobre a vida isso alimentado pela garantia legal de que política nacional. o ensino militar deve permanecer sendo um domínio de responsabilidade exclusiva 3. Os Militares e o Governo Bolso- da política das armas e não da política de naro educação. A trajetória da Nova República, paula- Em simultâneo, nos últimos anos, esse fa- tinamente, tem revelado o interesse dos tor foi agravado pelo fato de que as corpo- militares por assuntos civis e políticos. Em rações militares passaram a nutrir expecta- um certo sentido, as operações de Garan- tivas de que seus saberes e serviços fossem tia da Lei e da Ordem (GLOs) para inter- melhor utilizados na estrutura da gestão do venções em questões de violência urbana, Estado, o que levou as Forças Armadas a eventos esportivos, eleições e greves das estabelecer convênios com instituições de polícias militares, reafirmaram a ideia das ensino superior de viés ortodoxo e neoli- Forças Armadas atuando como mediadora beral, o que serviu para inocular visões de de conflitos sociais internos e reavivaram a mundo privatistas e tecnocráticas, além de ideia das Armas como forças eficientes em realimentar a ideia de que as elites milita- matéria de gestão e administração pública. res tem melhor capacidade de gestão do que as elites civis, uma percepção também Além disso, é crescente o número de mili- fomentada pelo clima de associação entre tares disputando as eleições: são integran- políticos e corrupção. tes das forças armadas, militares reforma- dos, policiais militares, civis, bombeiros, Em meio a esse ambiente, as corporações para não mencionar a presença de milícias militares, sobretudo no nível do oficiala- em processos políticos e eleitorais locais, to, se tornaram mais permeáveis também dando novo fôlego à agenda de flexibiliza- aos discursos neoconservadores que tem ção da compra, do porte e do uso de ar- se propagado pela sociedade em geral, fa- mas de fogo e munições, bem como temas zendo com que os militares se posicionem corporativos de natureza militar e policial. reativa e corporativamente, por exemplo, Em 2018 a chapa presidencial vitoriosa foi diante dos Planos Nacionais de Direitos composta por um capitão e um general, Humanos formulados pelos governos Lula em 2020 a eleição teve o maior número de e Dilma. candidatos militares dos últimos 16 anos, Essa combinação de fatores colocou os foram 6.755 no total. militares no lugar de fiadores da ideia de É crescente o número de militares cedidos que o PT e Lula não poderiam voltar ao para cargos civis no governo federal ao poder; embora reconhecessem a eleição longo dos últimos anos. Mas chama a como uma das vias institucionais possíveis atenção o salto que se observa a partir do para arbitrar a crise política e institucional. governo Bolsonaro: de 2018 a 2020 aumen- Desse modo, em uma conjuntura singu- ta em cerca de 55% a presença de milita- lar, marcada pela judicialização da política res na administração federal, conformando e pela criminalização dos projetos de de- uma tendência à militarização da gestão senvolvimento promovido pela Operação pública. Lava Jato, e em um cenário eleitoral mar- 9 Reforma Administrativa • 2021 Gráfico 1: Militares cedidos para cargos civis no governo federal: 2005 a 2020.