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3322 EXTRATO DAS CONVERSAS DO BLOG 500 AC Carles Marti e José Eduardo Carvalho Barcelona, Valencia e São Paulo 2014 Os 2 blogueiros José Eduardo Carvalho | jornalista e escritor paulistano, morou em Madrid e fez grande parte da sua carreira na imprensa esportiva. Carles Martí | doutor em Comunicações, publicitário, design e professor, nasceu em Valencia, morou muitos anos em São Paulo e hoje trabalha em Barcelona. * Todos os direitos reservados 4|A alma brasileira da mais mestiça das seleções 8|Dois ‘brazucas’ comandam a perigosa Croácia 11|Desacreditado e ‘abstêmio’, o México não tem nada a perder 14|Leões Indomáveis, em campo e na vida Os 32 18|‘La Roja’, últimos suspiros de uma geração encantada 21|Um general, alguns craques e muitas dúvidas: é a Holanda 24|Na trajetória chilena, uma saga de orgulho e resistência 27|Do berço do WikiLeaks, o patinho feio no caminho da Espanha 30|A Colômbia sem Radamel, para exorcizar maldições 34|Mitroglou e Samaras puxam a fila do exótico perfil grego 37|Canto do cisne para a geração de ouro da Costa do Marfim 40|Estilo europeu, técnico italiano, legião da Bundesliga: mas é o Japão 43|Digam o que for, mas respeitem a Azzurra 45|Sangue novo para sacudir a poeira do English Team 48|A discreta grandiosidade do ‘paisito’ de Don Pepe 51|‘Los Ticos’ desafiam os gigantes do grupo da morte 54|Entre a indolência e ‘Allons enfants de la Patrie...’ 57|Diáspora em busca da identidade suíça 60|O futebol de ‘La Tri’ já sabe falar grosso 63|‘Los Catrachos’, por dignidade e algo mais 66|Os ‘hermanos’ têm um certo Leo Messi. Precisa mais? 69|Dos Bálcãs, riqueza de estilo e muita história para contar 72|Direto da Pérsia, com paixão e política 75|Águias Verdes, mais tradição que bom jogo 78|Alemanha: consistência e craques contra um estigma 81|Portugal poderia ser só Cristiano, mas não é 84|Klinsmann guia a nova onda ianque 87|Os ‘Black Stars’ não terão vida fácil no Brasil 90|Salada de estilos e etnias no timaço belga 93|Contra a apatia, brigada russa aposta em Capello 96|Do Magreb, futebol com o selo da dignidade 99|Um tigre asiático que aprendeu com a lição de casa OS 32 DA COPA GRUPO A BRASIL, CROÁCIA, MÉXICO E CAMARÕES A alma brasileira da mais mestiça das seleções Carles: Não sabia se começar falando de coxinhas ou acarajé, de oportunistas ou inconscientes, reclamar que as manchetes sobre greves ou manifestações nos chegam acompanhadas da palavra “caos” no lugar de “legítima”. Tinha também o problema de ao fazer qualquer consideração despretensiosa ser condenado ao fogo eterno como traidor de uma causa ou partidário da outra. Diante de tudo isso, preferi passar a palavra a alguém tão ibérico e tão brasileiro como eu. Nascida em Vila Isabel, no Rio, ela, como eu, carrega indisfarçáveis cicatrizes no nome e essa dualidade (ou ambiguidade) que tanto nos atormenta aos cidadãos híbridos. É a escritora Nélida Piñón, que no seu artigo “La ilusión brasileña” para “El País Semanal” de 8 de janeiro, descreve a alma brasileira como sendo “de raiz Ibérica e destino mestiço, embevecida pelo poder, heroica, marinheira e sensual, com incli- nação à intriga novelesca e ao lirismo”. Você sabe que eu prefiro quebrar o adjetivo “brasileiro/a” em dezenas de outros. Mesmo assim, não me parece um mau come- ço para o nosso papo sobre o anfitrião da 20ª Copa do Mundo. Intriga novelesca e lirismo, diz ela. Alguma insinuação sobre fuga da realidade ou tendência à falta de objetividade? Edu: Você sabe que, se começássemos a falar sobre futebol como algo que su- gere minimamente fuga da realidade, terminaríamos a conversa por aqui e as relações diplomáticas estariam cortadas. Logo, não é o caso. O Brasil passou por tantas desventuras e atrocidades, muitas das quais você sentiu na pele, que, hoje, em tempos muito mais férteis e cômodos, parte das novas gerações e os rançosos reacionários das gerações passadas desrespeitam sua própria memória e não sabem reconhecer as conquistas da sociedade – nem a maior de todas, a liberdade. Claro, o futebol é uma atividade de raízes 100% sociais, responsável aqui por construir um patrimônio cultural que virou referência internacional, fator de estímulo para jovens e crianças, elemento aglutinador e de congraçamento. Pois justamente no momento em que o país tem o privilégio de comandar esse processo, os reacio- nários saem da tumba com sua gosma cinzenta e derrotista. Só não sabem que o colorido país da mestiçagem, da polifonia e do lirismo (obrigado Nélida) está sempre pronto para se sobrepor brandindo o lema com o qual vocês têm muita intimidade: ‘Não passarão!’ 5 OS 32 DA COPA GRUPO A BRASIL, CROÁCIA, MÉXICO E CAMARÕES Carles: Na história original sinto dizer que “passaram”, o que não significa que tivessem razão. Bom, ao menos eu, não falava de futebol, então não tem cisma. Mas como é o nosso assunto obrigatório, me interessa saber se vocês acham que essa seleção representa a tal alma descrita por Nélida. Certamente não é a me- lhor Seleção Brasileira de todos os tempos, mas é um bom time, digno e cheio de recursos, com todas as possibilidades quanto a conquistas. Li algum jornalista brasileiro acusando a grande estrela, quem deveria marcar a diferença, Neymar, de ter readquirido seus piores costumes, “mostrando-se individualista e alheio ao jogo coletivo, algo que parecia ter corrigido em Barcelona”. Por circunstâncias ou opção, esse é um time objetivo e vertical, bem europeu, eu exageraria. Não seria, portanto, interessante recuperar o Neymar mais moleque no bom sentido? Nem que seja temporariamente para essa grande festa? Edu: Poucas seleções brasileiras são tão representativas das nossas etnias e ca- madas sociais como esta. Entre os titulares, há oito negros ou mestiços, no grupo todo, são 15. Representam também a diversidade regional do país-continente e boa parte saiu de contextos de exclusão social – sem que isso resulte no vitimismo com que essas histórias são retratadas em muitos cantos da Europa, do alto de sua condição de berço da civilização contemporânea. Quer alma mais representativa do que esta? Ok, hoje são rapazes ricos, frequentadores da elite midiática mundial, mas a ideia que a maioria deles transmite é de um sincero vínculo com suas raí- zes. Se são os melhores em campo? Não necessariamente, tanto que o Brasil hoje é visto como favorito muito mais por jogar em casa do que por questões táticas ou habilidades extraterrestres. Futebol-moleque? Nem sempre é possível congre- gar hábeis moleques, no bom sentido, ainda mais com o atual comando técnico. Neymar carrega o peso de ser o ator rincipal, o que pode ser demasiado para seus 22 anos, mas esse tipo de pressão é componente do jogo, ou seja, falarão muito dele, bobagens e verdades, mas para corrigir algum detalhe técnico ou readequar o estilo dele para esta Copa temo que já seja tarde demais. Carles: Bom, Zé, eu me referia ao estilo de jogo do conjunto e do risco, como espectador, de não poder desfrutar do inesperado. Também é verdade que, cada vez mais, conceitos como competir e brilhar teimam em se distanciar. Especial- mente no caso de conseguir o título tão desejado, os detalhes da conquista aca- barão perdendo toda a importância. A Seleção do Brasil já é a terceira colocada no ranking e, com o apoio da torcida, enfrenta a correta Croácia que é a 18ª, e os irregulares combinados do México, 20ª, e Camarões, 56ª. Nenhum brasileiro, seja uma estrela rutilante de 22 anos como Neymar ou um veterano questionado e trintão como o goleiro Julio César, é capaz de temer uma surpresa, pelo menos na primeira fase, certo? Edu: Nunca se sabe, principalmente na estreia, que pode definir os caminhos para onde esse time vai. Eu também me referia ao estilo da Seleção Brasileira, que é hoje, a bem dizer, um time de operários, bons operários, qualificadíssimos, com um quase garoto entre eles que está bem acima, mas que não tem ainda caci- fe para ser um líder espiritual do grupo. Provavelmente nunca veremos este time brilhar por ser insinuante ou criativo, o que não exclui outras características bra- sileiras. No máximo, será um bloco muito competitivo como já mostrou que pode ser, com um ou outro diferencial – o inesperado que você e tanta gente pede – que pode vir de Neymar, Oscar ou Willian. E olhe lá. Até porque tem um treinador, 6 OS 32 DA COPA GRUPO A BRASIL, CROÁCIA, MÉXICO E CAMARÕES Felipão, que nunca privilegia essas questões, a ponto de quase sufocar a alma bra- sileira. Por sinal, passa a maior parte do tempo evocando situações extracampo para incendiar seus rapazes. Mesmo assim deve passar pela primeira fase e aí vere- mos a real maturidade dessa equipe que não é jovem – tem a quinta maior média de idade de todas as 32 seleções. Carles: Com toda essa história de previsões e probabilidades, tive a pachorra de entrar num desses simuladores online e experimentei três alternativas. Em duas delas, o Brasil chegava à final e ganhava. Na terceira prova, a Espanha passava como segundo do seu grupo, perdia em oitavos para o Brasil que, por sua vez, caia em quartas diante da Itália que chegava à final depois de derrotar a Alemanha numa das semifinais. Na outra, o Uruguai perdia para a Argentina que era a cam- peã. Mais do que improvável que o Brasil com esse time sobretudo competitivo, com dois dos melhores centrais do mundo, Thiago Silva e David Luiz, e artilhei- ros implacáveis, deixe escapar essa taça. Assim mesmo, se eu fosse Del Bosque, Löw, Sabella ou Prandelli, preferiria enfrentar a Seleção Brasileira – só se fosse estritamente necessário – entre oitavas e semifinais, nunca na final.