CENTRO UNIVERSITÁRIO SALESIANO DE SÃO PAULO UNISAL – CAMPUS MARIA AUXILIADORA

Priscilla Siomara Gonçalves

EDUCAÇÃO E HISTÓRIA ORAL COM AUTISTAS - DO SILÊNCIO DOS INOCENTES AO BRADO RETUMBANTE

Americana

2020

Priscilla Siomara Gonçalves

EDUCAÇÃO E HISTÓRIA ORAL COM AUTISTAS - DO SILÊNCIO DOS INOCENTES AO BRADO RETUMBANTE

Dissertação apresentada como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Educação à comissão julgadora do Centro Universitário Salesiano de São Paulo, sob orientação da Profa. Dra. Lívia Morais Garcia Lima.

Americana

2020

Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

PRISCILLA SIOMARA GONÇALVES

EDUCAÇÃO E HISTÓRIA ORAL COM AUTISTAS - DO SILÊNCIO DOS INOCENTES AO BRADO RETUMBANTE

Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação Stricto Sensu do Centro Universitário Salesiano de São Paulo como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Educação – área de concentração: Educação Sociocomunitária.

Linha de Pesquisa: A intervenção educativa sociocomunitária: linguagem, intersubjetividade e práxis.

Orientadora: Profa. Dra. Lívia Morais Garcia Lima.

A sessão pública de Defesa de Dissertação foi realizada utilizando-se da ferramenta virtual denominada Skype, defendida e aprovada em 17 de junho de 2020, pela comissão julgadora

______Profa. Dra. Maria Fernanda Bagarollo – Membro Externo Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP

______Profa. Dra. Renata Sieiro Fernandes – Membro Interno Centro Universitário Salesiano de São Paulo – UNISAL

______Profa. Dra. Lívia Morais Garcia Lima - Orientadora Centro Universitário Salesiano de São Paulo - UNISAL

AGRADECIMENTOS

Antes e acima de tudo e todos, agradeço a Deus, de forma fundamental pela honra de ser mãe; A meus pais, Alcides e Asta, que me deram essa oportunidade ímpar de ter minha existência nesse plano! Meu esposo Newton, companheiro exemplar, força silenciosa de minha vida; Novamente, para minha mãe, que é meu esteio e meu maior exemplo de vida. Quero também agradecer à minha enorme família animal, os treze que acompanham minha família humana nessa jornada: obrigada pelos carinhos e brincadeiras, vocês sempre escolheram a melhor hora para mostrarem seu amor. Amigos, pelo apoio e compreensão das grandes ausências, mesmo quando presente em corpo. Aos professores e funcionários do UNISAL, e demais colegas do programa de Pós- Graduação, companheiros de jornada e que contribuíram para minha formação pessoal e profissional nesse período. Como já disse em outra ocasião, vocês não imaginam como o seu bom dia foi importante para a minha vida. À minha querida orientadora, Profa. Dra. Lívia Morais Garcia Lima, que sempre com gentileza e dedicação me auxiliou nesse processo acidentado, mas tão profundamente gratificante. Também às professoras Dra. Renata Sieiro Fernandes e Dra. Maria Fernanda Bagarollo, pelas preciosas considerações para o aperfeiçoamento deste trabalho e pelo aceite em compor a banca. Aos professores Dra. Renata Barrichello Cunha, Dr. Renato Kraide Soffner, Dra. Valéria Vasconcelos, agradeço profundamente as aulas que foram de um enriquecimento ímpar para essa pesquisa. À Vaníria Felippe Tozato, nosso anjo da guarda no programa de Mestrado, referência constante de profissionalismo e atenção. E, agradeço muito profundamente às maravilhosas pessoas que tive a honra de conhecer e conviver no trabalho de campo, com as quais aprendi imensamente, e espero que todos os que lerem essa pesquisa também reconheçam a força deles. A todos, que de modo direto ou indireto, contribuíram para a realização desta pesquisa. A Leonardo Francisco Scalisse, agradeço, a cada segundo da minha vida, pela honra de ser sua mãe.

DEDICATÓRIA

Dedico o presente trabalho a todos os autistas, tenham eles que “etiqueta” tiverem e àqueles que os amam.

Eu sou diferente, não menos. Temple Grandin, Bacharel em Psicologia, Mestra e Doutora em Zootecnia, Autista

O conhecimento é poder. Utilize parte do seu tempo para educar alguém sobre o autismo. Não necessitamos de defensores; necessitamos de educadores. Asperger Women Association

Não ser aceito como se é dentro da própria família é uma espécie de morte. E só pra fechar a ‘postaria’ de hoje: não precisamos de caridade. Precisamos de direitos e acessibilidade. É por isso que lutamos.

Rita Louzeiro, pedagoga, autista.

RESUMO

Esta pesquisa parte da problemática relativa à falta (incipiente?) de escuta social da voz dos autistas no Brasil, conferindo-lhes permanente situação de heteronomia, e objetiva apresentar e analisar a situação do protagonismo social e político do movimento neurodivergente autista a partir de depoimentos de alguns de seus expoentes. O referencial teórico utilizado é da metodologia de História Oral a partir de Bosi (1993,1994,2003), Lang (1996,2000) e Thompson (1992), com inserções da Sociologia da Educação com Omote (1990,1997), Laraia (2006) e Goffman (2004), e da Educação Sociocomunitária com Groppo (2012,2013), Fernandes e Lima (2016) e Bissoto e Miranda (2012). Metodologicamente a pesquisa é de abordagem qualitativa do tipo História Oral, quanto aos objetivos é descritiva e analítica, as técnicas utilizadas são as de depoimentos temáticos, efetuadas através de aplicativos (Whatsapp e email) com seis autistas (quatro mulheres e dois homens) maiores, brasileiros, distribuídos geograficamente pelo território nacional, e através da análise de suas colocações buscamos responder à problemática inicial. Concluímos que o movimento neurodiverso autista no Brasil traz melhorias à qualidade de vida deste grupo como um todo, criando um clima de respeito às diferenças inerentes a essa parcela da população, através de suas manifestações sociais e políticas, seja na forma presencial, em palestras para leigos ou seminários acadêmicos, como sua postura junto à esfera política nacional.

Palavras-chave: História Oral. Autismo. Educação Sociocomunitária. Sociologia da deficiência.

ABSTRACT

This research starts from the problem related to the lack (incipient?) of social listening to the voice of autistic people in Brazil, giving to them a permanent situation of heteronomy, and aims to present and analyze the situation of social and political protagonism of the neurodivergent autistic movement based on statements of some of its exponents. The theoretical framework is based on Oral History methodology based on Bosi (1993,1994,2003), Lang (1996,2000) e Thompson (1992, wih insertions of Sociology of Education with Omote (1990,1997), Laraia (2006) and Goffman (2004), and Socio-Community Education with Groppo (2012,2013) Fernandes e Lima (2016) e Bissoto e Miranda (2012). Methodologically the research has a qualitative approach of the participant type, as for the objectives it is descriptive and analytical, the techniques used are those of thematic testimonies, carried out through applications (Whatsapp and email) with six older autists (four women and two men), Brazilians , geographically distributed throughout the national territory, and through the analysis of their positions we seek to answer the initial problem. We conclude that the autistic neurodiverse movement in Brazil improves the quality of life of this group as a whole, creating a climate of respect for the differences inherent to this part of the population, through its social and political manifestations, either in person, in lectures for laypeople or academic seminars, as their stance towards the national political sphere.

Keywords: Oral History. . Sociocommunity Education. Sociology of disability.

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1- Resultado de SciELO Analitics para a Revista Especial de Educação com a palavra autismo...... 35

Figura 2 - Charge sobre capacitismo ...... 101

Figura 3 - Grunya Iefimovna Sukharewa ...... 61

Figura 4 - - Prédio da Clínica Infantil de Viena, em visão atual (2019) ...... 63

Figura 5 - - Enfermaria de pedagogia terapêutica da Clínica Infantil de Viena, década de 1920 ...... 63

Figura 6 - - Tafelrunde da Clínica Infantil de Viena (1933: não relatados quanto à posição, mas na foto estão a irmã Viktorine Zak, nomeada enfermeira-chefe por Lazar, Josef Feldner, George Frankl, Anni Weiss, Hans Asperger e outra não identificada...... 64

Figura 7 - Equipe da Clínica Infantil de Viena (1933 – o único identificado é Hans Asperger, o último sentado à direita. Possivelmente Jekelius seja o segundo sentado da esquerda para a direita, e Anni Weiss seja a mulher atrás de Asperger,com Frankl ao seu lado ...... 67

Figura 8 - Distrito de Middlesex, Londres...... 83

Figura 9 - Camberwell dentro da Grande Londres...... 90

Figura 10– Distribuição dos Psiquiatras da Infância e Adolescência por região do Brasil ...... 24

Figura 11 – População residente por sexo e grupos de idade – censo 2010 - IBGE ...... 25

Figura 12 - Cursos de Pós-Graduação em Educação Especial por Região/Estado. Fonte dos Dados: MEC ...... 54

Figura 13 - Cursos de Especialização em TGD por Região. Fonte dos dados: MEC ...... 54

Figura 14 - Cursos de Especialização em TEA por Região. Fonte dos dados: MEC ...... 55

Figura 15- Identificação conforme Gênero de Nascimento ...... 113

Figura 16 - Identificação Étnico-Racial...... 113

Figura 17 - Faixa Etária dos Entrevistados ...... 113

Figura 18 - Gráfico sobre grau de instrução ...... 114

Figura 19 - Escolaridade - Área de Estudos ...... 114

Figura 20 - Cursos de Graduação dos entrevistados...... 115

Figura 21– Distribuição Socioeconômica dos Entrevistados ...... 115

Figura 22 - Estado Civil dos Entrevistados ...... 116

Figura 23 0 Distribuição Geográfica dos entrevistados por região do Brasil ...... 116

Figura 24 - Distribuição Geográfica da População Brasileira ...... 117

Figura 25 - Percentual da população brasileira por regiões...... 118

Figura 26 - Distribuição em percentual dos autistas entrevistados por Região ...... 118

Figura 27 - Cursos de Especialização com nomenclatura TGD por Região/Estado. Dados obtidos no MEC ...... 163

Figura 28 - Cursos de Especialização com TGD no nome - Modalidade à Distância por Região/Estado a partir de dados do MEC ...... 163

Figura 29 - Cursos de Especialização com TEA na nomenclatura - por Região/Estado. Dados obtidos do MEC ...... 165

Figura 30 - Cursos de Especialização com TEA na nomenclatura, por modalidade à distância - por Região/Estado ...... 165

Figura 31 31 - Baleia Narval com a inscrição: I´m the unicorn of the sea - Imagem cedida pela entrevistada Ana ...... 171

Figura 32 - Protetor Auricular ...... 175

Figura 33 - Este mangá de Cavaleiros do Zodíaco representa bem uma lembrança da minha infância quando eu via o desenho de Cavaleiros do Zodíaco na TV. E despertou a minha paixão por mitos...... 179

Figura 34 - Meu box de DVD dos filmes de Batman representa bem minha paixão pelo Super-Heroi...... 179

Figura 35 - Minha HQ da Viúva Negra. A heroína com sexy appeal que me desperta a paixão...... 180

Figura 36 – Harry Potter, um dos grandes estímulos de leitura ...... 180

Figura 37 Minhas Action Figures símbolo da minha paixão Geek...... 180

Figura 38 - Marco da minha infância e que despertou minha paixão pelo Japão...... 180

Figura 39 - Meu quadrinho favorito, Ghost in the Shell ...... 181

Figura 40 - O agente que me faz espelhar a ser galanteador...... 181

Figura 41- Meu caderno de anotações com a Arlequina...... 182

Figura 42 - O DVD do filme mais incrível que já vi da ficção científica...... 182

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ABA - Análise do Comportamento Aplicado (Applied Behavior Analysis) ABHO - Associação Brasileira de História Oral ABNT - Associação Brasileira de Normas Técnicas ABP - Associação Brasileira de Psiquiatria ABRAÇA - Associação Brasileira para Ação por Direitos das Pessoas com Autismo AMB - Associação Médica Brasileira APA - American Psychatric Association ASA - Autism Society of America BDTD - Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações CCEB - Critérios Brasil de Classificação Econômica Brasil CEF - Caixa Econômica Federal CEP - Comitê de Ética em Pesquisa CERU - Centro de Estudos Rurais e Urbanos da USP CID - Código Internacional de Doenças CIPD - Chartered Institute of Personnel and Development - Reino Unido CPDOC - O Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil DSM - Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – sigla do original em inglês Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders DSM-III – Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais versão III (1987) DSM-IV – Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais versão IV (1992) DSM-V – Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais versão V (2013) EUA - Estados Unidos da América INEP - Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira IOHA - International Oral History Association ITA - Instituto Tecnológico da Aeronáutica LDB - Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei 9394/96) LBI - Lei Brasileira de Inclusão (lei nº 13.146/15) LGBTQQICAPF2K+ - Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, Queer, Questionando, Intersexo, Curioso, Assexual, Pansexual e Polissexual, Familiares e Amigos, Two-spirit, Kink LSD - Dietilamida do ácido lisérgico (Lysergsäurediethylamid no original) MEC - Ministério da Educação e Cultura

NAS - National Autistic Society NEHO - Núcleo de Estudos em História Oral da USP OMS - Organização Mundial de Saúde PHD - Doutorado (originalmente “philosophiae doctor”) PIA - Psiquiatra da Infância e Adolescência PPNE - Programa de Apoio às Pessoas com Necessidades Especiais da Universidade de Brasília PUCCAMP – Pontifícia Universidade Católica de Campinas - Quociente de Inteligência SciELO – Scientific Electronic Library Online TEACCH - Treatment and Education of Autistic and Related Communication Handcapped Children UCLA - Universidade da Califórnia em Los Angeles, EUA UFRB - Universidade Federal do Recôncavo da Bahia UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas UNISAL – Centro Universitário Salesiano de São Paulo USP - Universidade de São Paulo

LISTA DE APÊNDICES E ANEXOS

Apêndice I – Cursos de Especialização com referência a Autismo Apêndice II – Transcrição das Entrevistas Anexo I – Primeira página do artigo de Grunya Iefimovna Sukhareva, na revista alemã Monatsschrift für Psychiatrie und Neurologie 60:235-261 Anexo II - Tabela DSM-5 x Descrição de Sukharewa Anexo III – Reportagem da revista Time de 1948, 26 de Abril, sobre as mães-geladeira Anexo IV - Reportagem da revista Time de 1965, 7 de Maio, sobre Lovaas e o seu método ABA Anexo VI – Poema de Cássia Anexo VII – Textos e Ana Anexo VIII – Poema de Hércules Brennand

SUMÁRIO INTRODUÇÃO - O SOL É PARA TODOS ...... 17

CAPÍTULO 1 – O LABIRINTO DO FAUNO ...... 26

1.1 – Conceitos básicos: pesquisa, método, metodologia...... 30 1.2 - Histórico da História Oral ...... 45 1.3 - Instrumentos ...... 50 1.4 – Revisão Bibliográfica e Documental ...... 53 CAPÍTULO 2 - O SILÊNCIO DOS INOCENTES ...... 57

2.1 – Primórdios do Estudo: 1908-1930 ...... 59 2.2 – Estudos na Áustria: 1930-1945...... 62 2.3 – Autismo nos EUA: 1930-1945 ...... 71 2.4 – Retorno a Viena: 1937-1948...... 73 2.5 – Semelhanças e discrepâncias até 1960: visões de Kanner e Asperger...... 74 2.6 – O mito da mãe-Geladeira: EUA, 1948...... 75 2.7 – Alguém para defender os autistas em solo americano: Rimland (1958-1960) ...... 78 2.8 – A Metodologia ABA – 1958-1965 ...... 79 CAPÍTULO 3 – A FORMA DA ÁGUA ...... 81

3.1 – A Prevalência do autismo: Lotter – 1963-1966 ...... 82 3.2 – O “aprendizado visual” de Frith: 1966-1980 ...... 85 3.3 – Método TEACCH – Schopler e Reichler - 1971 ...... 85 3.4 – Folstein e o aspecto genético do autismo – 1967-19 ...... 86 3.5 – Baron-Cohen e a teoria da mente – 1970-1980 ...... 87 3.6 – Frith e a Coerência Central Fraca – 1970-1980, INGLATERRA ...... 88 3.7 – Wing e os limítrofes: conceito de espectro - 1960-1980 ...... 89 3.8 – As múltiplas “definições” do autismo ...... 92 3.9 – Demais Conceitos: Inclusão, Capacitismo, Estigma ...... 95 CAPÍTULO 4 – FORREST GUMP, O CONTADOR DE HISTÓRIAS ...... 112

5.1 - Caracterização dos participantes ...... 112 5.2 – Dados Suplementares da pesquisa, conforme Caderno de Campo ...... 118 5.3 – Análise de dados ...... 122 5.4 – A Escolaridade Autista ...... 139 CONSIDERAÇÕES FINAIS – O BRADO RETUMBANTE ...... 146

REFERÊNCIAS ...... 152

APÊNDICE I – CURSOS DE ESPECIALIZAÇÃO COM REFERÊNCIA A AUTISMO .. 162

APÊNDICE II – ROTEIRO DE PERGUNTAS...... 166

APÊNDICE V – TRANSCRIÇÃO DAS ENTREVISTAS ...... 168

Entrevista 1 - Ana ...... 169 Entrevista 2 – Cássia ...... 172 Entrevista 3 – Hércules Brennand ...... 176 Entrevista 4 – Lótus ...... 182 Entrevista 5 – Luz ...... 187 Entrevista 6 – Vanessa ...... 191 ANEXO I – PRIMEIRA PÁGINA DO ARTIGO DE GRUNYA IEFIMOVNA SUKHAREVA, NA REVISTA ALEMÃ MONATSSCHRIFT FÜR PSYCHIATRIE UND NEUROLOGIE 60:235-261 ...... 196

ANEXO II – TABELA DSM-5 X DESCRIÇÃO DE SUKHAREWA ...... 197

ANEXO III – REPORTAGEM DA REVISTA TIME DE 1948 (26 DE ABRIL) SOBRE AS MÃES-GELADEIRA ...... 198

ANEXO IV - REPORTAGEM DA REVISTA TIME DE 1965, 7 DE MAIO, SOBRE LOVAAS E O SEU MÉTODO ABA ...... 203

ANEXO V – POEMA DE CÁSSIA ...... 214 ANEXO VI – TEXTOS DE ANA ...... 217 ANEXO VII - POEMA – HÉRCULES BRENNAND ...... 218

Página 17

INTRODUÇÃO - O SOL É PARA TODOS1 Se um sistema de comunicação adaptado para a criança não for colocado em prática, o único recurso de comunicação dela será seu comportamento. Eu posso lembrar da frustração de não ser capaz de falar. Eu sabia o que eu queria dizer, mas, as palavras não saíam de dentro de mim. Eu só podia gritar.

Temple Grandin, psicóloga, autista, 72 anos em 2019

Ainda há muita gente que acha que autismo é apenas sobre terapias e diagnósticos. Autismo também é sobre política e direitos. Rita Louzeiro, pedagoga, autista.

Estamos firmemente ancorados em nosso aqui e agora. Por mais que queiramos nos abster do momento presente, este se imiscui em nossa vida, marcando-a indelevelmente com sua marca própria inerente a esse tempo. A confecção de uma dissertação de mestrado em geral não é um processo de curta duração, pois permeia a vida do estudante durante toda a sua preparação, longa e deveras desgastante: passar pelo exame de admissão, pela prova de proficiência em língua estrangeira, pelas diversas matérias escolhidas conforme nossas preferências, necessidades e simpatias, pelos grupos de estudos, pelos eventuais estágios para, após um período que em geral é de dois anos – para nós, que fomos alunos especiais o prazo foi maior, de três anos e meio – praticamente nos reinventemos e regurgitemos (qual mãe ave amorosa alimentando seus filhotes) uma teoria devidamente embasada, que contemple todo (ou pelo menos, a maior parte) do aprendizado efetivado nesse período. Parece – e em geral é – obra de gigantes. Hercúleo esforço de sintetizar, ou às vezes desdobrar uma ideia inicial - que na maioria das vezes não permanece a mesma ao longo do estudo e do trabalho em si -, burilar e redefinir e esculpir essa ideia até torná-la coerente, devidamente fundamentada técnica e etimologicamente, para responder a uma pergunta (que até poderia ser mas não é, “o que eu estou fazendo aqui ?” , a pergunta que todo mestrando faz a si mesmo pelo menos uma vez durante seu período de estudos), que é aquela a que nos propusemos a responder em nosso estudo. Assemelha-se tudo isso a argila com a qual criaremos

1 O Sol é para todos é um filme estadunidense dirigido por Robert Mulligan de 1962. Ambientado na década de 1930 no sul dos EUA, o enredo gira em torno do racismo de uma cidade ao culpabilizar um negro acusado de estupro de uma branca, bem como seu advogado branco, que acredita que todos devem ter oportunidades iguais e escolher defende-lo, indo contra toda a comunidade.

Página 18 nossa obra. Qual torno de oleiro utilizamos o mestrado para produzir algo que, esperamos, seja útil para a humanidade, como qualquer roda de oleiro que se preze. Ao invés de uma obra (de arte? Funcional?) a pergunta que se deseja responder nesse texto é simples: porque não se ouvem os autistas, mesmo hoje? Porque outros tem que ser sua voz, sendo que eles têm a sua própria? E aqui também nos referimos àqueles autistas que não falam, mas se comunicam de uma forma ou outra: quem tirou deles o direito a expressar-se? Parafraseando Brandão (2007), desejamos saber o que provocou, do ponto de vista macroestrutural, a situação atual da prática dessa falta de escuta, sensível ou não, da palavra autista dita pelo próprio autista. Para tentar responder principalmente à pergunta inicial é que foi trilhado, metodológica e historicamente, o percurso que culminou na situação atual do autismo. A tentativa de deslindar através de documentação histórica alguns entraves que se encontram quando se estuda um pouco mais a fundo o início dessa síndrome, os percalços que ocorreram ao longo do tempo entre os diversos pesquisadores, tentar clarificar algumas situações que não estavam devidamente claras, ou melhor, foram propositalmente obscurecidas ao longo do tempo em detrimento de uns para glorificação e enaltecimento de outros. Para tal, fui buscar subsídios em basicamente quatro fontes: os livros “Outra Sintonia”, de John Donvan e Caren Zucker (2017), “Autismo, um mundo escuro e conturbado” de Roy Richard Grinker (2010), “Neurotribes” de Steve Silberman (2015) e “Crianças de Asperger”, de Edith Sheffer (2019), todos eles com vasta pesquisa histórica que os subsidia, fartamente substanciada. Mas não me detive apenas nessas fontes; obtive, entre outros materiais, a revista Time original de 1948 onde Leo Kanner expressa sua ideia das mães-geladeira, uma vez que no livro de Donvan e Zucker (2017) estudado a situação não ficou totalmente transparente, bem como a revista Time original de 1965 que contém a entrevista sobre a metodologia ABA. Somente com o material original foi possível clarear essa situação, o que deixamos mais evidente no capítulo 2 deste estudo. Acreditamos este ser o momento adequado para explicitar outra particularidade (ou peculiaridade) do presente trabalho: os capítulos tem nomes de filmes, em virtude da preferência da maior parte dos autistas pela comunicação visual, conforme Klin (2006); isto os faz cinéfilos exigentes, a ponto de saberem o nome dos atores, diretores, e até mesmo o ano de lançamento dos seus filmes prediletos. É uma modesta homenagem a eles que é feita nessa forma. O presente trabalho tem como tema a autonomia/heteronomia dos autistas em sua vida diária, observada a partir tanto da falta (incipiente?) de escuta social da voz dos autistas no Brasil, como da fala dos protagonistas do movimento atuantes em território nacional na

Página 19 atualidade, e objetiva apresentar e analisar a situação do protagonismo social e político do movimento neurodivergente autista a partir de depoimentos de alguns de seus expoentes. Iniciamos com a justificativa da temática escolhida, dizendo que o tema é particularmente relevante pessoalmente, em virtude de possuir familiar no espectro autista, e por ter feito o acompanhamento de sua trajetória - principalmente escolar - ao longo de seu tempo de vida (mas sem esquecer a grande quantidade de comunicação com profissionais da saúde que o mesmo foi compelido a ter ao longo dos vinte e oito anos de sua vida), com o triunfo sobre todos os desafios inerentes à sua condição de comunicação reduzida, todos os seus ganhos (e porque não, sua tristeza perante seus fracassos) levaram a olhar em torno e ver como os demais sujeitos na mesma situação estariam manifestando suas opiniões e desejos, uma vez que a falha na comunicação é uma das partes mais cruéis dessa síndrome. Consideramos socialmente relevante o tema escolhido, por tratar-se de uma minoria não tão pequena assim, uma vez que estatísticas definidas a partir do trabalho de Kim, Y. (2019) a possibilidade de existência de cerca de dois milhões de brasileiros nessa situação. O marco inicial desse movimento protagonista da autonomia autista pode ser feito a partir da criação do primeiro espaço virtual aberto sem restrições ou policiamento de pais ou tutores, a lista Asperger Brasil do Yahoogrupos2, a qual evoluiu para tantos outros espaços virtuais existentes no Facebook3, Twitter4 e outras redes sociais, até sua ida atual para congressos e encontros científicos como debatedores e/ou palestrantes. Ao mostrarem suas realidades tão particulares e ao mesmo tempo tão públicas, trouxeram à população uma faceta que era oculta, ou na maior parte das vezes simplesmente ignorada: autistas tem opiniões, gostos e preferências e começam a fazer uso destes em inúmeros setores e ambientes. Ainda acreditamos ser academicamente relevante o presente trabalho em virtude da escassa quantidade de trabalhos efetuados com esse tema, e após consulta às bases de dados SciELO, SCOPUS e BDTD, somente foi localizado um único trabalho que trate de

2 Yahoogrupos é um dos recursos do site Yahoo.com, que permite troca e arquivamento de mensagens. É um precursor das redes sociais como conhecemos hoje, com menos recursos de comunicação imediata, uma vez que somente entrega mensagens codificadas como emails e arquivos anexos. 3 Facebook é uma rede social gratuita lançada em 2004.Possui recursos de mensagem instantânea com imagens e/ou vídeos acrescidos às mensagens, álbum de fotos , dentre outros recursos. 4 Twitter é uma rede social e servidor para microblogging, que permite aos usuários enviar e receber atualizações pessoais de outros contatos, em textos de até 280 caracteres. Os textos são conhecidos como tweets e podem ser enviados por meio do website do serviço, por SMS, por aplicativos específicos do Twitter para smartphones, tablets e etc.

Página 20 protagonismo autista, da autoria de Caitité (2017). Todavia, este único trabalho, do ano de 2017, é sob o enfoque psicológico, distando, portanto, do enfoque desejado no presente trabalho, que é primordialmente sociológico e histórico. Iniciamos, portanto, o trabalho fazendo pesquisas bibliográficas para determinar a efetividade, pertinência e validade da presente pesquisa, através de verificação junto às bases de dados que contém teses e artigos mais utilizadas e com maior acerto em língua portuguesa. Em pesquisa efetuada na base SciELO em ABR 2018, encontramos 333 artigos sob a pesquisa genérica do termo “autismo”, nenhum artigo sobre a pesquisa genérica “história autismo”, nenhum artigo sobre a pesquisa genérica “autismo Brasil”. Dos 333 artigos recebidos na primeira pesquisa, três (da mesma autoria, Bialer (2014), (2015) e (2017)) referem-se à pesquisa do que dizem os autistas, porém baseados em pesquisas de livros escritos por autistas, e não em entrevistas pontuais com os mesmos. Dois dos estudos que retornam pela palavra-chave autismo refere-se a perda de audição em adultos. Não localizamos em língua portuguesa, no ambiente SciELO, nenhum estudo que buscou respostas entre os autistas quanto à sua mobilização, ou mesmo de seu protagonismo, sendo na realidade eles os maiores interessados em fazer conhecida sua situação, em forma de pesquisa. Ao pesquisarmos a base da Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações, BDTD, com os termos gerais autismo e Educação obtivemos 607 retornos, dos quais uma possui como palavra-chave “História do Autismo”, de Castanha (2016), contemplando associações físicas de pais, sendo duas do Paraná e uma de SP: novamente, não localizamos nenhum artigo contendo a fala do autista em primeira pessoa, ou mesmo entrevistas diretas com eles. Efetuamos nova busca à base BDTD em Abr. 2020, com as palavras “protagonismo autista”, retornando 4 resultados, com nenhum deles falando sobre o protagonismo dos autistas. Na base SciELO, o retorno foi de zero artigos; refizemos a pesquisa somente com “protagonismo”, e obtivemos 1093 artigos, Com o refinamento “ protagonismo AND wok_subject_categories: ("education & educational research" OR "public, environmental & occupational health" OR "sociology" OR "social sciences, interdisciplinary" OR "psychology, multidisciplinary" OR "psychology")” retornaram 464 artigos, nenhum deles sobre autistas. Pesquisamos ainda heteronomia, com retorno de sete artigos, nenhum sobre autistas. Refizemos a pesquisa com o termo “autista”, tivemos 356 retornos, e refinamos para “autista + política” recebendo 9 retornos, nenhum tratando do protagonismo autista nessa área. Ao pesquisarmos “autismo + política” recebemos 17 resultados, sendo um deles o de Ortega (2009) que trata

Página 21 sobre neurodiversidade e organização política, o mais próximo que localizamos, porém o mesmo foi efetuado somente com pesquisas bibliográficas, sem entrevistas. A Base SCOPUS foi pesquisada com os termos “protagonismo autismo”, tendo um retorno de 32 artigos, sendo apenas um deles de Rios e Andrada (2015) sobre protagonismo autista, porém referindo-se a associações de pais de autistas; quando fizemos uma pesquisa com os termos mais genéricos “autismo brasil” obtivemos 557 retornos, sendo um de Nunes e Ortega (2016) sobre “ativismo político de pais de autistas” e um de Rios (2017) sobre o ativismo autista a partir da promulgação da lei 12764, porém novamente sobre o enfoque dos pais dos autistas como protagonistas políticos. Frente a esse levantamento das bases de artigos SciELO, SCOPUS e da BDTD em dois diferentes momentos da pesquisa, verificamos ainda inexistir um trabalho de qualquer porte ou pesquisa que contemple o protagonismo autista feito pelos próprios autistas em depoimentos temáticos diretos, com a palavra deles transcrita, nos moldes sociológicos e educativos trazidos por este trabalho. Deixamos aqui explicitado que o protagonismo buscado pela pesquisadora suplanta a busca de protagonismo político (sem no entanto desmerecê-lo, uma vez que viver é um ato político), e busca a “simples” manifestação autista mesmo na vida corriqueira, uma vez que, através de experiência própria, foi verificado ser bastante comum o relato em redes sociais e livros autobiográficos da falta de escuta que permeia a vivência autista. Ponderamos, portanto, como sendo a problemática a ser respondida no presente trabalho o silenciamento e a afirmação da heteronomia dos jovens e adultos autistas ao longo do tempo, e tecemos inicialmente como hipótese para tal a referência da Medicina pela Psiquiatria, que repercute uma imagem pessimista e restritiva dos autistas desde 1943 até hoje. Cremos que a Sociologia na Educação pode ressignificar positivamente essa imagem, e utilizar mensagens trocadas em ambiente virtual, majoritariamente nas redes sociais é um dos caminhos que trarão retorno bastante significativo, uma vez que, conforme Charlot (2000), a rede social é também um ambiente de educação. Cremos ser o objetivo primário de nosso trabalho, a partir de uma retomada histórica de como se formou o diagnóstico de autismo para chegar na realidade atual, a apresentação de alguns jovens e adultos autistas a partir de suas vozes, ouvidas por meio de depoimentos temáticos, analisando aspectos de heteronomia e autonomia destes. Acreditamos que essa metodologia irá aclarar a situação para os leitores do presente trabalho, mostrando que esse enfoque aparentemente individual irá mostrar como a grande maioria da sociedade autista pensa, age, e é tratada, uma vez que optamos por entrevistar expoentes do protagonismo autista brasileiros. Como objetivos secundários podemos colocar que a pesquisa busca:

Página 22

• Possibilitar aos autistas um mecanismo acadêmico de disseminação de suas ideias, mostrando suas particularidades, mas também seus avanços através desse instrumento, que será a parte escrita dessa pesquisa, • Deslindar alguns mitos sobre a mente autista, pela palavra dos próprios sujeitos; • Analisar como a educação, através dos profissionais que a efetivam, pode e deve ser uma melhoria à qualidade de vida autista; Esses três objetivos acima visam modificar o conceito popular da (falta de?) “mentalidade” autista, através da manifestação pessoal dos sujeitos, bem como aclarar o estigma que permeia um diagnóstico, e as mudanças que este acarreta na vida das pessoas. Cabe ainda esclarecer que os capítulos do presente trabalho são nomeados conforme filmes ou séries cinematográficas, uma vez que a linguagem visual é a escolhida pela maioria dos autistas para se manifestar; inclusive contamos com trabalhos sobre comunicação verbal ecolálica de autistas a partir de frases de filmes como sendo benéficas ao seu avanço comunicativo. Nomear os capítulos dessa forma trata-se, portanto, de uma modesta homenagem a estes que são a razão de ser deste trabalho. Outra informação que cremos ser adequada de ser inserida nesse momento é que, por conta da necessidade de obter referências principalmente da área de saúde, muitas vezes a terminologia que utilizaremos é baseada nessa área, e não necessariamente concordamos com várias das informações assim apresentadas, tendo efetuado sempre que possível o devido acerto. Para poder responder de forma adequada ao questionamento inicial, o presente trabalho é dividido em cinco capítulos: o primeiro contém o arcabouço metodológico no qual nos guiaremos para efetivamente trazer o trabalho efetivo feito no presente texto, tanto no que se refere à metodologia escolhida (a de História Oral e seus instrumentos), bem como o delineamento de termos não tão comuns ou mesmo alguns neologismos, que tivemos o cuidado de trazer definições para aclarar o trabalho; o segundo e o terceiro capítulos mostram o histórico da descoberta, tratamento e como evoluiu o diagnóstico do transtorno autista desde seus primórdios, visando elucidar alguns dos motivos que levaram a esse calar sistemático das pessoas assim diagnosticadas; o quarto capítulo traz de forma condensada o estado da arte sobre autismo no Brasil, através de gráficos e informações demográficas sobre qual seja a quantidade de profissionais da área médica específica atuando em território nacional e sua distribuição geográfica, bem como as possibilidades de especialização escolar existentes na área, somente para explicitar alguns dos dados levantados e inscritos nesse capítulo; no quinto capítulo efetivamos a caracterização dos participantes bem como análise de dados a partir dos depoimentos recebidos, e seu entrelaçamento com a Educação Sociocomunitária em dois

Página 23 momentos distintos: um com o que foi informado de forma mais generalizada durante todo o depoimento, e um segundo contendo o enfoque quanto à escolarização da pessoa autista. Como finalização do trabalho, um próximo item contém as considerações finais sobre o que foi verificado no decorrer dessa pesquisa, e a que caminhos podemos trilhar para alcançar um futuro diferenciado, quiçá mais respeitoso para com a voz autista. Urge uma escuta diferenciada, sensível e respeitosa para essas vozes, silenciadas (à força) por tempo demais.

O que ocasionou essa mudança tão drástica de seres aparentemente sem voz para pessoas que enfrentam em pé de igualdade parlamentares para que sua voz seja ouvida, e mais, ouvida corretamente? Acreditamos ser necessário, desde já, escutar o que eles têm a dizer sobre isso. E para tal, utilizaremos inicialmente Temple Grandin, talvez a mais famosa e antiga autista militante, hoje (junho de 2020) com setenta e dois anos de idade, citada no trecho em nossa epígrafe: “Eu posso lembrar da frustração de não ser capaz de falar. Eu sabia o que eu queria dizer, mas, as palavras não saíam de dentro de mim. Eu só podia gritar.”, para em seguida trazermos uma citação de Paschoal (2018), ativista brasileira do autismo: “médico: não confunda sua 1 h de pesquisa no Google com os meus 6 anos de experiência. Paciente: não confunda sua única 1 hora-aula que você teve sobre a minha condição com os meus 30 anos vivendo com ela “. Esta última citação talvez traga o mote de todo o presente trabalho : o estudo em saúde, particularmente a medicina, é obrigada a contemplar toda uma gama monstruosa de condições que acometem os seres humanos em um período de tempo que não permite o estudo aprofundado de cada condição específica; em pesquisa de Hounie (2015) descobrimos existirem cerca de 148 psiquiatras infantis assim registrados em todo o território nacional, com certeza os profissionais que seriam os mais indicados e munidos de informações para efetuar um diagnóstico e tratamento adequados aos autistas. Conforme os estudos mais recentes sobre prevalência de autismo em uma população Kim (2019) este é da ordem de 2,6% dessa mesma população, ou seja, teríamos por volta de 5 milhões de autistas no Brasil; desses, conforme estratificação do IBGE, teríamos uma população de crianças estimada em 16,8% da população masculina e 16,3% da população feminina, de um total de 209,3 milhões de pessoas; fazendo uma conta aproximada de 16% da população; a partir, portanto, dos dados de Kim (2019) de 2,6 % da população acometida de autismo, perfazendo cerca de oitenta e oito mil crianças teríamos que cada psiquiatra infantil fosse responsável pelo diagnóstico e posterior tratamento de cerca de um total de seiscentas e quarenta e duas crianças cada um. Sabemos ser esse raciocínio uma simplificação grosseira da

Página 24 realidade, pois, dentre outras especificidades e ainda conforme Hounie (2015), a grande maioria dos psiquiatras infantis trafega pelo eixo Rio-São Paulo, conforme discriminado abaixo:

O Estado recordista é São Paulo com 49 PIA´s (PIA – Psiquiatra da Infância e Adolescência, grifo nosso) , seguido de Rio Grande do Sul (24 ), Rio de Janeiro e Minas Gerais (12 em cada), Paraná (10) e Santa Catarina com 8. No Nordeste, temos um em Alagoas, dois na Bahia, dois em Sergipe e dois na Paraíba. No Norte, um no Acre, um em Manaus e um no Pará. No Centro- Oeste temos Mato Grosso com 4, Mato Grosso do Sul com 3, Goiás com 8 e em Brasília, 4. No Espírito Santo há 4 PIA´s com título de especialista. Ou seja, dos PIA´s atualmente sócios da ABP, 70% dos que possuem o título de especialista da ABP/AMB estão no Sul e Sudeste. (grifo nosso) (HOUNIE, 2015, p. 1)

De uma forma gráfica fica mais gritante a situação:

Figura 1– Distribuição dos Psiquiatras da Infância e Adolescência por região do Brasil

Fonte: Gonçalves, 2020

Essa disparidade geográfica gritante deixa o restante da população desassistida desse tipo de profissional. E nos dados acima nos fixamos apenas nos jovens abaixo de 19 anos. Autistas crescem, sejam ou não diagnosticados quando crianças. Trata-se de um diagnóstico difícil, poucos profissionais são realmente especialistas nisso (conforme contato com a

Página 25 comunidade autista, temos menos de dez profissionais no Brasil todo considerados como adequados a tratar autistas, ou seja, menos de dez por cento do total de psiquiatras infantis registrados no CFM). Portanto, a pertinência do comentário de Paschoal (2018) fica ainda mais clara com esses dados.

Figura 2 – População residente por sexo e grupos de idade – censo 2010 - IBGE

Fonte: IBGE

Página 26

CAPÍTULO 1 – O LABIRINTO DO FAUNO 5

É assim que vocês querem fomentar a pesquisa? Silenciando os públicos-alvo de seus estudos?

William JS Silva, autista, codinome o desenhista das ruas

(pai) - Doutor, qual o motivo de muitos autistas se autoagredirem? (médico) - Não sabemos ainda, é uma síndrome muito complexa. (autista) – Pai, para de falar como se eu não estivesse aqui, eu me autoagrido quando estou angustiado, no meu limite de processo sensorial, como a sons, a irritabilidade da pele, ou até mesmo me agrido para forçar-me em um processo só, pois o mundo as vezes é confuso. Correr me alegra, pois tira o stress, balançar me acalma, não sou complexo por fora, basta me ouvir. Luiz Henrique, autista.

Vivemos no tempo que vivemos; não temos escolha sobre a temporalidade em que estamos, assim como a cor de nossa pele ou de nossos olhos. Vivemos apenas (ou apenas sobrevivemos?). E o momento em que estamos vivendo é o de um mundo globalizado, onde referências culturais particulares são em geral engolidas pelo todo das grandes corporações que ditam o que é considerado como correto no mundo todo. Foi-se o tempo de sentar-se à beira do alpendre dos avós e ouvir sobre recordações de tempos idos, sabedoria destilada em palavras amorosas, cultura e valores distribuídos com afagos e ternura. Hoje escutamos (solitariamente, na maior parte das vezes) músicas – em geral em uma língua estrangeira que a grande maioria da população não compreende - em artefatos eletrônicos, ou lemos notícias pasteurizadas sobre artistas que não agregam valor nenhum à nossa vida, mas dela fazem parte indelevelmente, vestindo roupas que nem sempre nos caem bem, mas, sempre, em franco consumo. O celular onipresente, até mesmo nos momentos de refeições, aborta mesmo tímidas tentativas de comunicação entre gerações de uma mesma família. Porém, até mesmo esses atos aparentemente individuais geram história (Para Jacques Le Goff, toda atividade humana é considerada história). E, a partir do que preconiza a metodologia de História Oral, é nessa geração de história da pessoa comum, não da figura de expressão (social, política ou de qualquer

5 O Labirinto do Fauno é um filme hispano-méxico-estadunidense de 2006, no gênero fantasia, suspense e drama, dirigido, escrito e produzido por Guillermo del Toro, que conta a história de uma menina dividida entre a fantasia (onde é uma princesa, vinda de um reino mágico ) e a realidade cruel de seu mundo (onde sua mãe casou-se em segundas núpcias com um homem violento, sádico e preconceituoso), e por seus passeios e revelações ao adentrar o labirinto existente no jardim da casa que habita. Esse filme foi escolhido para nominar esse capítulo em virtude da metodologia escolhida ter sido a solução do labirinto teórico que nos defrontamos ao escrever uma dissertação de mestrado.

Página 27 outra forma) que fomos buscar material para efetivar essa pesquisa, autorizada pelo CEP - Comitê de Ética em Pesquisa do UNISAL registrada sob o CAAE 11167119.5.0000.5695. Mais ainda: buscamos em uma considerada (porém considerável) minoria, os autistas, a forma diferenciada de ver e sentir o mundo, mesmo nesse mundo globalizado e egocêntrico, para poder trazer mais informação adequada e respeitosa ao restante da sociedade que essa mesma minoria convive. O mundo só se tornará realmente mundo se for visto por diversas ópticas, e falado por diferentes línguas, uma vez que uma pesquisa baseada na compreensão, escuta adequada e vivência dos sujeitos implicados no que é investigado exige a escolha de uma metodologia que considere adequadamente as especificidades do objeto de conhecimento, bem como permita a compreensão do contexto da pesquisa e a dimensão da experiência humana necessária para sua contextualização mais próxima da realidade possível. Para podermos levar a efeito o que nos propusemos no presente trabalho, fez-se necessário buscar metodologias e ferramentas tais que viessem a permitir elucidar ao menos a situação em que o referido problema se encontra; para tal necessitamos de um arsenal metodológico adequado, através do qual navegamos por esse mar de informações muitas vezes desconexas e descontínuas com que nos defrontamos na presente pesquisa. Inicialmente, trazemos algumas definições com o intuito de cimentar um arcabouço teórico consistente que nos permita alcançar altitude desejada com o presente estudo. Para melhor nos cimentarmos e prosseguirmos no percurso escolhido, começaremos com o que Gerhardt e Silveira (2009) nos informam como sendo uma metodologia: “metodologia é o estudo do método, ou seja, é o corpo de regras e procedimentos estabelecidos para realizar uma pesquisa.” Sem esse aporte metodológico seria praticamente impossível analisar, bem como organizar de forma coerente qualquer dado porventura obtido em nossa pesquisa. A questão da análise dos depoimentos prende-se ao fato que analisar é atribuir sentido aos dados obtidos na entrevista, uma vez que o documento dificilmente fala por si só e precisa ser analisado para ser corretamente estudado. Lang, Campos e Demartini (1998) à página 47 nos orientam sobre nestas e outras importantes orientações : em um enfoque sociológico, o trabalho da História Oral não finda quando se realiza a entrevista, ou mesmo quando ela é gravada, transcrita ou arquivada, uma vez que esta se orienta para algum aspecto da realidade social: todo estudo sociológico exige análise em função dos objetivos do mesmo. E essa análise “significa decompor um texto, fragmentá-lo em seus elementos fundamentais, isto é, separar claramente os diversos componentes, recortá-los, a fim de utilizar somente o que é compatível

Página 28 com a síntese que se busca.” (QUEIROZ,1991, p. 5) apud (LANG, CAMPOS e DEMARTINI, 1998, p. 47). A forma de proceder quando se efetua a análise dos dados brutos é o diferencia a análise quantitativa da qualitativa; nesta última, que foi a forma escolhida para o presente trabalho, a análise é feita em todas as fases, ao contrário da quantitativa, que é feita somente após a coleta de dados. O material que se obtém pela gravação e transcrição de cada entrevista é analisado tanto quanto à forma como quanto ao conteúdo, sempre tendo em vista os objetivos desejados na pesquisa e a forma como tal material foi edificado. No que tange à forma, podemos nos preocupar com a cronologia ou com a associação temática. Optamos no presente trabalho pela segunda opção, por ser mais coerente com as perguntas efetuadas no questionário por nós sugerido. O conteúdo dos depoimentos tem que ser analisado por meio de categorias construídas a partir do objetivo desejado da pesquisa, e a sua devida recomposição conforme uma nova ordem conforme o que se deseja elucidar, devidamente explicitado no projeto. Cabe ainda deixar anotado que, no final deste, todas as entrevistas são preservadas em sua íntegra para quaisquer consultas desejadas. Ainda cabe ressaltar a necessidade de que alguns elementos sejam anotados no caderno de campo, ou anotados na transcrição, como silêncios, pausas, o que não foi dito, o que não foi perguntado e o que não foi compreendido no momento da entrevista. Bertaux e Thompson (1993, p. 213) apud Lang, Campos e Demartini (1998) orientam que a análise efetuada durante todo o processo de pesquisa

consiste em construir progressivamente uma representação do objeto sociológico. Nela se investe um máximo de reflexão sociológica e um mínimo de procedimentos técnicos. É na escolha dos informantes, na transformação do questionamento de um informante para outro (ao contrário do questionário padrão), na habilidade de distinguir os indicadores que levam à visão de processos até então não percebidos e a organizar os elementos de informação em uma representação coerente, que se encontra a qualidade da análise. Quando a representação se estabiliza, a análise está pronta. (LANG, CAMPOS e DEMARTINI, 1998, p. 49)

E para conclusão das informações metodológicas, a análise final deve ser feita em função da proposta inicial motivadora do trabalho, o que não impede que surjam modificações no decorrer da pesquisa. Ao unir as falas de vários sujeitos, que ocupam posições diferenciadas no contexto pesquisado, alcança-se maior compreensão do que se busca, uma vez que passa a existir a possibilidade de distinção entre o que é comum a todos e o que é específico a cada um.

Página 29

Por fim, deve-se proceder ao arquivamento, ou seja, depositar a documentação obtida durante o processo da pesquisa – a saber: gravações, transcrições, materiais obtidos, informações e resultados do projeto, inclusive as cartas de cessão. Para efeitos de desmembramento metodológico, esclarecemos que a presente pesquisa é de caráter qualitativo, analítica, de cunho teórico-prático com pesquisa de História Oral através de depoimentos temáticos, se possível através da consulta dos arquivos pessoais imagéticos e/ou info-eletrônicos dos entrevistados, bem como uma revisão histórica bibliográfica, junto a sujeitos que tenham diagnóstico de autismo (F.84) e que se interessem por participar da pesquisa. O lócus da pesquisa é via virtual, devidamente gravado através de software específico – Skype ou similar -, uma vez que os diversos entrevistados se encontram em diferentes localidades neste país: Brasília (DF), Curitiba (PR), Natal (RN) e Belo Horizonte (MG), e posteriormente transcrito. Serão feitas entrevistas temáticas. O autor Brandão (2000) informa que a construção do objeto também diz respeito à capacidade de escolher pela alternativa metodológica mais coerente e apropriada que permita a análise daquele objeto. Consideramos que nossas conclusões somente se tornem possíveis a partir dos instrumentos que usamos e da interpretação dos resultados que a utilização desses mesmos instrumentos nos permitiu chegar, descrever os procedimentos utilizados na pesquisa, mais do que meramente cumprir uma formalidade, é oferecer a outros pesquisadores a possibilidade de trilhar novamente o mesmo caminho e, outrossim, avaliar com maior segurança as afirmações que o trabalho apresenta. Dentre as alternativas existentes, escolhemos a pesquisa qualitativa em virtude da mesma se constituir em uma modalidade investigativa utilizada cada vez com mais frequência na área de saúde e ciências sociais, uma vez que esse modo de pesquisa valoriza a figura do sujeito e suas crenças e valores na produção de resultados, pois pode ser utilizada no estudo de história, das relações intra e interpessoais, das representações individuais e coletivas, das crenças, percepções e opiniões , que na verdade são os produtos das interpretações que os humanos fazem de sua maneira de viver e enxergar o mundo. Esse tipo de pesquisa envolve observação intensiva num ambiente natural, além do registro detalhado e com precisão do que ocorre nesse ambiente, com interpretação e análise de dados por meio de descrições de fenômenos observados e depoimentos. A pesquisa deu-se de forma analítica, pois, conforme Richardson, Peres, et al. (2012) este formato permite o estudo e avaliação aprofundados de informações que estejam disponíveis para verificação, visando explicitar o contexto de um fenômeno objeto de estudo.

Página 30

Da mesma forma a pesquisa é de cunho teórico-prático, sendo a parte teórica tema principal deste capítulo, onde verificamos, a partir dos diversos autores estudados, um correto embasamento que permite a esse trabalho ter um escopo definido e pertinente ao que se deseja estudar. A parte prática, ou a efetiva pesquisa de campo, implica na comprovação prática através de diversos métodos no contexto estudado, com o objetivo de colher dados em campo. Em relação à teoria, é um importante artefato de constatação no plano da experiência daquilo que é fundamentado conceitualmente, bem como pode vir a possuir poder de sistematização dessa mesma teoria. Efetuamos uma pesquisa histórico-bibliográfica com o intuito de calçar as hipóteses e afirmativas a serem efetuadas nos demais capítulos do presente trabalho, buscando autores que tragam contribuições, facilitadoras ou até mesmo dificultadoras, que embasem devidamente a pesquisa. Quanto à opção pela metodologia de História Oral, bem como o que se refere a entrevistas temáticas, nos alongamos nos subitens abaixo, para melhor compreensão. Iniciamos, portanto, com definições básicas sobre os diversos recursos metodológicos encontrados na teoria que nos auxiliaram no percurso do presente trabalho.

1.1 – CONCEITOS BÁSICOS: PESQUISA, MÉTODO, METODOLOGIA

História é construção de identidade: ao escolher entrevistar pessoas sobre sua vida e vivência buscou-se encontrar embasamento em uma teoria tal que permitisse que tais pessoas se mostrassem como são, sem interferências de ordem temática. Após pesquisa de diversos formatos, optamos pela História Oral, conforme discorremos abaixo. Em um de seus artigos considerados clássicos, Bosi (1993) nos traz uma informação que norteará o trabalho como um todo, e que cabe perfeitamente nesse momento de reflexão metodológica:

Quando se pergunta pelo método de um trabalho científico a resposta tem de ser procurada em, pelo menos, dois níveis:

I. A orientação geral da pesquisa, tendência teórica que guiou a hipótese inicial até a interpretação final dos dados colhidos.

II. A técnica particular da pesquisa, o procedimento. (BOSI, 1993, p. 278)

Página 31

Cabe, portanto, iniciar esta parte do texto referente aos conceitos metodológicos com o básico: o que é uma pesquisa? Porque, ao se fazer uma dissertação de Mestrado, é necessário fazer uma pesquisa? A fim de obter uma certificação Stricto Sensu, escolhe-se um tema, faz-se uma pesquisa sobre esse tema através de um método específico que uma metodologia irá deslindar, enfim se explica o motivo, a forma e o jeito da informação que se busca para obter uma titulação de Mestre. Então, buscamos o que seria considerado como pesquisa entre vários autores : Gil (2007) traz definições sobre os diversos tipos e formatos de pesquisa possíveis , iniciando com a forma de abordagem do problema a ser pesquisado, elas podem ser : quantitativas, que consideram que tudo pode ser reduzido a números, portanto quantificável, utilizando estatística para tabulação de resultados ou qualitativas, quando se concentram na busca de interpretação dos acontecimentos e significação dos mesmos, onde, obviamente, não se utilizam técnicas estatísticas, com a análise de dados sendo feita da forma indutiva, sendo ainda descritiva, onde o processo e a forma de abordagem do problema são os focos principais. Ainda conforme outros autores, Kirk e Miller (1986), no que se refere à pesquisa qualitativa, “a questão da validade não é um assunto de pontuação metodológica sobre o quinto ponto decimal, mas uma questão de se o pesquisador vê o que ele pensa que vê.” (p. 21). Ainda segundo esses mesmos autores, Kirk e Miller (1986, p.10) observam que a pesquisa qualitativa identifica a

presença ou ausência de algo (que tipo de coisa e o que a qualifica) [...] Suas diversas expressões incluem a indução analítica, a análise de conteúdo, semiótica, hermenêutica, entrevistas com a elite, o estudo de histórias de vida, e certas manipulações utilizando arquivos, computador e manipulação estatística. (KIRK e MILLER, 1986)

Ainda segundo Gil (2008) temos a pesquisa do ponto de vista dos objetivos desejados, onde elas poderão ser exploratórias, quando se objetiva orientar e formular hipóteses, quando se estabelecem critérios, métodos e técnicas tais para explorar o conteúdo pesquisado, buscando descobrir algo que anteriormente não era evidente por si só, ou ainda podem ser descritivas, quando se realiza o estudo de campo sem a interferência do pesquisador, e busca identificar, registrar e analisar as características, fatores ou variáveis relacionadas com o processo ou fato pesquisado. Ainda temos as pesquisas explicativas, que registram fatos ocorridos, analisando- os e interpretando-os de forma a identificar suas causas; sua função é de definir valores amplos ou estruturar modelos teóricos, e por fim as pesquisas conclusivas, que são aquelas feitas para responder a uma pergunta específica.

Página 32

Ainda temos outro enfoque que podemos utilizar quanto às pesquisas, o dos procedimentos técnicos: uma pesquisa pode ser bibliográfica, quando o material a ser pesquisado já encontra-se publicado, e em sua maioria é de livros ou artigos de periódicos, seja em papel ou mesmo online, como os artigos registrados no SciELO; uma pesquisa pode ainda ser documental, que é quando os materiais-base da pesquisa não tiveram tratamento analítico anterior, ou ainda pode ser uma pesquisa oral, quando se questiona diretamente as pessoas que detém o conhecimento sobre o que se deseja pesquisar. Pode ainda ser do tipo estudo de caso, quando se aborda um ou poucos sujeitos ou objetos de tal forma a obter uma visão abrangente e detalhada sobre eles, bem como a pesquisa-ação, quando os pesquisadores se envolvem no problema, que deve ser coletivo, participando diretamente ou cooperando visando sua solução, e por fim a pesquisa participante, que é quando ocorre a interação entre os pesquisadores e os integrantes da situação pesquisada. Para Alves (1991), quando escolhemos como modo de pesquisa a pesquisa qualitativa em Educação, não é possível “deixar de valorizar a imersão do pesquisador no contexto, em interação com os participantes, procurando apreender o significado por eles atribuídos aos fenômenos estudados”. (ALVES (1991, p. 55) Conforme Lang (2000, p. 3) falar de relato e de análise é falar de pesquisa. A pesquisa, nas ciências sociais, visa conhecer a realidade social [...] A realidade social tem vários aspectos, seu conhecimento é inesgotável. A missão da pesquisa nas ciências sociais é contribuir para o conhecimento, sabendo, contudo, que o resultado de uma pesquisa não é uma verdade final, um resultado inquestionável. Já segundo Gil (2007), “pesquisa é definida como o procedimento racional e sistemático que tem como objetivo proporcionar respostas aos problemas que são propostos. A pesquisa é requerida quando não se dispõe de informação suficiente para responder ao problema, ou então quando a informação disponível se encontra em tal estado de desordem que não possa ser adequadamente relacionada ao problema. [...]desenvolve-se ao longo de um processo que envolve inúmeras fases, desde a adequada formulação do problema até a satisfatória apresentação dos resultados. “ (GIL, 2007, p. 17) Após tantas definições, cremos ser possível, de uma forma livre, definir o pesquisar como sendo buscar respostas além do que se conhece, tentando observar outras formas de verificar – ou não - a veracidade de uma informação. Prosseguindo, podemos afirmar sem sombra de dúvida que, para que qualquer comunicação ocorra, em qualquer nível, é necessário que tanto o emissor como o receptor da comunicação tenham instrumental tal que permita o entendimento de parte a parte: para tal,

Página 33 iremos buscar, na literatura específica, definições, orientações e direcionamentos sobre o formato que uma pesquisa deve ter para ser considerada como tal. Recordamos, portanto, das primeiras informações obtidas na matéria Seminário de Pesquisa para poder aplainar e estabelecer uma base sólida de comunicação no presente trabalho: a busca de conhecimento que é feita em um trabalho de Mestrado busca trazer informações que visem a melhoria da humanidade como um todo, através do conhecimento dessas mesmas informações. E para tal é necessário que tais informações sejam descritas de uma forma científica, é preciso que isso seja feito de uma forma tal que seja passível de determinar as etapas desse estudo, a verificação de sua verossimilidade, ou como nos diz Gil (2007), determinar o método que foi utilizado na obtenção desse conhecimento. Então, iniciamos conceituando método científico como sendo o conjunto de processos ou operações mentais que devemos empregar na investigação. É a linha de raciocínio adotada no processo de pesquisa. Continuando ao localizar definições para método, e ainda segundo Prodanov e Freitas (2013) método é um procedimento ou caminho para alcançar determinado fim e que a finalidade da ciência é a busca do conhecimento, podemos dizer que o método científico é um conjunto de procedimentos adotados com o propósito de atingir o conhecimento . Já para o autor Teixeira (2014) método é o caminho que nos ajuda a construir um conhecimento confiável, e para consolidar definitivamente temos a frase simples e definitiva de Becker H. (1992): A metodologia é o estudo do método. Para os sociólogos, presume-se que seja estudar os métodos de fazer pesquisa sociológica, de analisar o que pode ser descoberto através delas e o grau de confiabilidade do conhecimento assim adquirido, e de tentar aperfeiçoar esses métodos através da investigação fundamentada e da crítica de suas propriedades. Apesar de uma das definições anteriores ser para método e outra para metodologia, em ambas ficou bastante claro que se busca, ao fazer uma pesquisa, a confiabilidade da informação recolhida, e que isso somente será alcançado quando se trabalha com rigor na recolha de informações; para que tal seja obtido, é necessário ter regras rigidamente definidas que devem ser seguidas à risca durante o trabalho de pesquisa científica. Para melhor nos cimentarmos no percurso escolhido, prosseguiremos com o que Gerhardt e Silveira (2009, p. 11) nos informam como sendo uma metodologia: metodologia é o estudo do método, ou seja, é o corpo de regras e procedimentos estabelecidos para realizar uma pesquisa. E prosseguem, na mesma página, as autoras com a afirmação A atividade preponderante da metodologia é a pesquisa.

Página 34

Trazem ainda as autoras Silva e Valdemarin (2010, p. 9) que a metodologia comporta apropriações pessoais de seus usuários que, tomando-a para si, transformam um conjunto de regras prescritas em um instrumental analítico para a construção de interpretações originais. Daí decorre a escolha dos autores e os respectivos relatos dos modos de uso crivados pela experiência acadêmica e pela intencionalidade que a ela dedicaram. Outra citação que consideramos extremamente adequada é a de Thompson (1992): “Toda história depende, basicamente, de sua finalidade social.” (THOMPSON,1992, p. 10). E esta frase resume de forma primorosa o objetivo de nossa pesquisa: no nosso entender, a mesma fez-se necessária em virtude da escassa existência de trabalhos sobre o protagonismo autista no Brasil, principalmente sob a óptica de neurodiversidade. Em pesquisa à BDTD e ao SciELO somente encontramos um trabalho com viés próximo ao desejado no presente texto, porém voltado a um enfoque psicológico e não sociológico como o que desejamos implementar no presente trabalho. Isso contempla o que Gil (2007) diz em sua definição de pesquisa, pois não se dispõe de informação suficiente para responder ao problema. Aqui cabe uma pequena digressão: apesar de encontrarmos uma quantidade relativamente grande de trabalhos sob o tema autismo, não encontramos trabalhos que se distanciem do que podemos considerar o básico, que é como trabalhar com autistas em sua escolaridade inicial – como se eles não crescessem e ansiassem por continuar seus estudos além da alfabetização básica – ou como as famílias atravessam o luto da morte do filho ideal. Cabe ainda citar que dentre os dez textos mais pesquisados do SciELO na Revista Brasileira de Educação Especial, três falam especificamente sobre autismo: ao efetuarmos uma pesquisa no SciELO Analitics no período de 2005 a 2019 com os parâmetros : palavra de pesquisa (descritor) - autismo; área – human sciences e língua – inglês, português e espanhol, repetida na data de 01 DEZ 2019 para constar nesse texto, temos o seguinte resultado : o primeiro, o quarto e o sétimo artigo mais consultados tem como tema o autismo, conforme figura 10, abaixo.

Página 35

Figura 3- Resultado de SciELO Analitics para a Revista Especial de Educação com a palavra autismo.

Fonte: Acervo Pessoal da Pesquisadora. Porém, mais conceitos são necessários antes de discorrermos sobre o assunto que é objetivo desse trabalho : ainda segundo Lang (2000, p. 3) na obra citada essa autora prossegue discorrendo sobre meios de se conhecer uma realidade, para então iniciar a falar sobre História Oral, a metodologia escolhida para a presente pesquisa : qualitativa, que é considerada adequada ao conhecimento do tempo presente, permite conhecer a realidade pela experiência e pela voz daqueles que a viveram. E essa frase que iremos trabalhar com mais ênfase: conhecer a realidade pela voz daqueles que a viveram. Que voz? Em que momento se ouvem os autistas? Se desde o início da elaboração dos critérios diagnósticos oficiais por Kanner, por volta da metade do século XX somente existia a observação pelos profissionais, com elaboração de teorias que, hoje sabemos,

Página 36 beiravam o absurdo, como a das mães-geladeira. Até mesmo hoje, em consultas aos diversos profissionais de saúde eles são tolhidos de expressar-se, e mesmo que em geral se expressem verbalmente pouco, eles tem algo a dizer, porém, quem toma a frente na fala são seus cuidadores, muitas vezes até projetando suas próprias certezas e inferências sobre eles. Quando existirá uma escuta atenta, adequada, coerente e sensível sobre a fala autista? Iniciamos o presente capítulo com duas citações: uma é de um autista, indignado com uma situação em que havia uma lista de discussão sobre autismo e ele foi tolhido de dar sua opinião em um assunto. A contundência de sua fala é de tal forma direta que, qual flecha crua e cruel rasga a máscara de realidade da grande maioria das pesquisas efetuadas com o tema autismo: ouvem-se as professoras, os cuidadores, os pais, os profissionais mais valorizados da área... mas não os autistas. O alvo foi alcançado com essa frase, disso temos certeza. A outra citação é de outro autista, simulando uma visita a um profissional de saúde onde, mais uma vez, foi deixado de lado em nome de uma ciência que não o escuta em um diálogo onde seria o maior interessado. Ao buscarmos artigos que tratassem do tema do protagonismo autista, como dissemos na introdução deste, deparamo-nos com pouquíssimos deles, e cada um a seu modo, trouxe-nos um pouco mais de assuntos para pensar e discorrer : Rios (2017, p.212) ao falar sobre o ativismo que escolheu para seu artigo diz em seu resumo :

A aprovação da Lei no 12.764, que reconhece os autistas como pessoas com deficiência para todos os efeitos legais, marca também a aliança dos familiares de autistas com um movimento social e político mais amplo, o movimento das pessoas com deficiência. Entretanto, o caso do autismo e o de pessoas com deficiência intelectual grave impõem enormes desafios a esse modelo de ativismo. (grifo nosso) (RIOS, 2017, p.212)

Prosseguindo com esse trabalho, destacamos o primeiro parágrafo do mesmo, transcrito abaixo:

A aprovação da Lei n° 12.764, em dezembro de 2012, também conhecida como Lei Berenice Piana ou Lei do Autismo, representou uma vitória do ativismo político de familiares de autistas por todo o Brasil. A lei, que reconhece os autistas como pessoas com deficiência para todos os efeitos legais, marca também a aliança dos familiares de autistas com um movimento social e político mais amplo e já consolidado no Brasil, o movimento das pessoas com deficiência. Rios (2017, p.212)

Cabe aqui a colocação da campanha que dá nome a este artigo, “Nada sobre nós sem nós”, onde os próprios deficientes dizem claramente que tudo que faça referência a eles deve ser discutido com eles. Não com seus pais, cuidadores ou profissionais de apoio. Com eles. E nessa linha a autora Rios (2017) prossegue ao dizer

Página 37

O lema “nada sobre nós, sem nós” resume algumas das motivações básicas do ativismo político desse grupo de pessoas. Reivindicam-se não apenas direitos e benefícios no âmbito social, mas, acima de tudo, o reconhecimento das pessoas com deficiência como sujeitos livres e autônomos, capazes de se posicionar e participar na tomada de decisões em distintas esferas sociais sem a interferência de terceiros.[...] Mas mesmo que esses movimentos tenham questionado a inclusão e o reconhecimento de grupos minoritários dentro das práticas liberais, não chegaram a questionar a noção de pessoa subjacente ao modelo liberal de participação política, qual seja, a de um sujeito independente, racional, autossuficiente e, acima de tudo, capaz de falar por si.[...] O caso do autismo, assim como o de pessoas com deficiência intelectual grave em geral, torna esta questão particularmente evidente, colocando enormes desafios a esse modelo de ativismo.[...] O movimento de ativismo por parte de pessoas cujo autismo é de baixa severidade (ou de grau leve) vem crescendo nos últimos anos, mas é o ativismo dos pais que, especialmente no Brasil, tem maior projeção e visibilidade.(RIOS, 2017, p. 215-217).

Como podemos observar a partir da fala dos nossos entrevistados, a realidade é bastante distante do informado então. Queremos crer que, nesses últimos três anos, o protagonismo autista tenha se firmado. E fatores corroborantes para tal existem em profusão: a entidade ABRAÇA é presidida por uma jovem autista, que já foi inclusive à ONU para discursar sobre a situação no Brasil; a jovem pedagoga Rita Louzeiro é debatedora constante nos grupos de estudos do Assembleia Legislativa e do Congresso Nacional, Porém, cumpre-nos ainda falar mais sobre os requisitos de uma pesquisa qualitativa. Conforme Bogdan e Biklen (1994, p. 47-51) uma pesquisa qualitativa deve possuir cinco características principais : a fonte de dados deve ser o ambiente natural, nunca um artificial, e o pesquisador é o instrumento principal dessa pesquisa; esse tipo de pesquisa deve ser descritivo; o pesquisador deve se interessar mais pelo processo do que pelos resultados; os dados em geral devem ser analisados de forma indutiva; o significado deve ter importância nesse tipo de abordagem. E foi colocado anteriormente que a metodologia escolhida para o presente trabalho é a da História Oral. Cumpre-nos, portanto, esclarecer o que é esse formato diferenciado de buscar e empreender meios para localizar e mesmo focalizar História. Nas palavras de Meihy (2005, p. 17-18), são apresentados cinco conceitos diferenciados sobre o que seria História Oral, logo após a definição inicial, que diz:

História Oral é um recurso moderno usado para a elaboração de documentos, arquivamento e estudos referentes a experiência social de pessoas e de grupos. Ela é sempre uma história do tempo presente e também reconhecida como história viva.

Página 38

Conceito número 1: História Oral é uma prática de apreensão de narrativas feita através do uso de meios eletrônicos e destinada a recolher testemunhos, promover análises de processos sociais do presente e facilitar o conhecimento do meio imediato.

Conceito número 2: A formulação de documentos através de registros eletrônicos é um dos objetivos da História Oral. Tais documentos, contudo, podem também ser analisados a fim de favorecer estudos de identidade e memória cultural.

Conceito número 3: História Oral é um conjunto de procedimentos que se iniciam com a elaboração de um projeto e que continuam com a definição de um grupo de pessoas (ou colônia*) a ser entrevistadas. O projeto prevê: planejamento da condução das gravações; transcrição; conferência da fita com o texto; autorização para o uso; arquivamento e, sempre que possível, publicação dos resultados, que devem, em primeiro lugar, voltar ao grupo que gerou as entrevistas.

Conceito número 4: História Oral é uma alternativa para estudar a sociedade por meio de uma documentação feita com o uso de depoimentos gravados em aparelhos eletrônicos e transformados em textos escritos. (MEIHY, 2005, p. 17-18)

Ao esmiuçarmos a definição de História Oral apresentada por Meihy, deparamos de imediato com o termo moderno , que será explicado na próxima frase ao dizer Ela (a História Oral, grifo nosso) é sempre uma história do tempo presente ; quando da elaboração do que ele chama de Conceito 1, tornar-se mais evidente que ele se refere como moderno à utilização de recursos mecânicos e/ou digitais audiovisuais para recolhimento de informações (narrativas e testemunhos) advindas de pessoas de determinado segmento social – aquele que que está sendo objeto de estudo - , obtidas sempre com seu consentimento, preferencialmente por escrito. Esses recursos que gravam a memória – de outra forma perdida com todas suas nuances e facetas – visam, na maioria das vezes, gerar documentos que passem a fazer parte da chamada história, para poderem ser feitos estudos de identidade individual, de grupo ou comunidade, ou mesmo de uma sociedade inteira, bem como de memória cultural. O Conceito 3 irá aclarar outra nuance importante da História Oral: trata-se de um conjunto de procedimentos previamente organizados, não deixado ao acaso de uma entrevista fortuita sem programação do que será visto, perguntado, anotado... a História Oral, mesmo que utilizando metodologia diferenciada da historiografia, deve ser tão rigorosa quanto esta. Cabe, porém, deixar aqui anotada uma máxima: a verdade não é única, na maioria das vezes a verdade é individual, e como tal deve ser tratada pelo pesquisador. Mesmo as falhas de memória, intencionais ou não do entrevistado, devem ser consideradas como sua verdade naquele

Página 39 momento, pois é o que ele se permitiu recordar do fato estudado. Cabe-nos aqui recordar dos textos de Bosi (1994), Lang (2000) e Bosi (2003) sobre a memória, que discorreremos posteriormente. Quando o conceito 4 nos traz a História Oral como alternativa de um estudo social temporal, mas adequadamente embasado pela criação de documentação pertinente através da transcrição dos depoimentos orais em documentos, a História Oral soluciona talvez um dos conceitos que os detratores dessa metodologia tem contra ela, de produzir apenas informação volátil : se para os historiadores tradicionais o que vale é o documento escrito, então a História Oral tornar-se tradicional. Ainda de Meihy (2005) gostaríamos de deixar anotada outra frase que nos revela muito: “A íntima relação com aqueles que não detêm o código escrito é uma das marcas mais fortes da História Oral.” (MEIHY, 2005, p. 98) Tradicional e historicamente, as classes sociais consideradas mais baixas – portanto, consideradas “incultas” – não detém o conhecimento da leitura e escrita; a elas, só restava que a transmissão da informação, bem como sua formação (pessoal, profissional, até mesmo religiosa e de valores morais) fosse feita através do repasse oral destas a quem se desejava ensinar. Baseado nessa tradição de conversa informativa é que a História Oral captura os elementos junto à população estudada, uma vez que é costumeiro que haja repasse de informações dessa forma, nesse ambiente. Outra definição que serve para aclarar mais ainda a metodologia de História Oral nos é dada por Alberti (2005):

a História Oral é um método de pesquisa (histórica, antropológica, sociológica etc.) que privilegia a realização de entrevistas com pessoas que participaram de, ou testemunharam, acontecimentos, conjunturas, visões de mundo, como forma de se aproximar do objeto de estudo. Como consequência, o método da História Oral produz fontes de consulta (as en- trevistas) para outros estudos, podendo ser reunidas em um acervo aberto a pesquisadores. Trata-se de estudar acontecimentos históricos, instituições, grupos sociais, categorias profissionais, movimentos, conjunturas etc. à luz de depoimentos de pessoas que deles participaram ou os testemunharam. (ALBERTI, 2005, p. 18)

Da mesma autora, temos outra definição que também merece ser transcrita aqui:

A História Oral é uma metodologia de pesquisa e de constituição de fontes para o estudo da história contemporânea surgida em meados do século XX, após a invenção do gravador a fita. Ela consiste na realização de entrevistas gravadas com atores e testemunhas do passado. (ALBERTI, 2000, p. 1)

Página 40

Para o autor Thompson (1992) , a principal característica da História Oral ( que ele considera também sua maior riqueza enquanto metodologia ) é transferir o conhecimento da História pela fala de quem a viveu na própria pele, o que a faz impregnada de significados, principalmente sentimentais e culturais, muito além dos fatos concretos e frios de uma folha de papel (em geral escrita de forma rebuscada e nada próxima da coloquialidade de uma entrevista), o que permite interpretações diferenciadas da situação pesquisada. O que geralmente encontramos na História documental é como ocorre a luta pelo poder em geral só é retratada a classe dominante com seus poucos expoentes, deixando de lado a vida de pessoas do povo, que viveram o dia-a-dia durante essas lutas, e que efetivamente construíram as sociedades; uma das únicas vezes que falamos sobre o povo foi no estudo da Revolução Francesa. Portanto, Thompson (1992) acredita que a História Oral proporcione um retrato histórico mais próximo do real, mais legítimo e próximo de outras camadas sociais, em geral caladas pela História, que é sempre contada do ponto de vista do mais forte, e do ganhador da contenda retratada.

Uma vez que utilizaremos a pesquisa qualitativa, uma dúvida surge: como selecionar sujeitos representativos de um grupo? Como, através de menos de uma dúzia de depoimentos, representar uma população por si só tão diversa? A teoria nos sugere que construamos um corpus como princípio alternativo de coleta de dados, sendo essa construção uma escolha sistemática de algum racional alternativo. A seleção não sistemática invalidaria toda a pesquisa, porém a criação de um corpus garante a eficácia de que o todo estará devidamente representado, uma vez que a construção de um corpus tipifica atributos desconhecidos. A palavra corpus vem do latim, e significa corpo. Quando utilizada em ciências históricas, refere-se a uma coleção de textos, e podemos defini-la a partir de Barthes (2006) como uma coleção finita de materiais, determinada de antemão pelo analista, com (inevitável) arbitrariedade de, e com a qual ele irá trabalhar (BARTHES (2006, p. 104). Porém, ainda é necessário diferenciar um corpus para propósitos gerais de um corpus de pesquisa (denominado tópico): um corpus para propósitos gerais poderia ser, por exemplo, uma biblioteca, enquanto um corpus tópico tem, em seu planejamento criativo, o fim restrito definido pela pesquisa na qual será inserido, podendo tornar-se, ele mesmo, recurso geral de investigação por outro pesquisador. É necessária a seleção de critérios que orientem a captura desses dados de uma forma ordenada e organizada, como por exemplo o diagnóstico, idade, localização geográfica, ou seja, dados tais que nos permitam inferir diferenças e proximidades entre os diversos entrevistados.

Página 41

Os linguistas em geral concebem o corpus como um sistema em constante expansão, e para sua criação é necessário trabalhar em etapas: selecionar a informação, analisar, selecionar e selecionar novamente até ter um conjunto coeso e homogêneo de informação. Barthes (2006, p. 105) sugere que façamos uma seleção qualitativa conforme relevância, homogeneidade e sincronicidade: inicialmente, os assuntos devem ser relevantes do ponto de vista teórico, e coletados a partir de um único ponto de vista. Seus materiais devem ter um tema único, ou seu foco deve ser direcionado para um tema específico, e serem tão homogêneos quanto possível, ou seja, não devemos misturar materiais textuais com imagens, transcrições de entrevistas individuais não devem ser somadas a transcrições de entrevistas de grupos focais. Finalmente, um corpus é uma intersecção da história, portanto um ponto fixo no tempo e no espaço: os materiais a serem estudados devem ser escolhidos dentro de um ciclo natural, portanto devem estar em sincronia. Outro conceito necessário de ser definido é o chamado ponto zero:

Entende-se por ponto zero um depoente que conheça a história do grupo ou com quem se queira fazer a entrevista central. Deve-se, depois de tomar ciência do que existe escrito sobre o caso, fazer uma ou mais entrevistas em profundidade com essa pessoa, que é a depositária da história grupai ou a referência para histórias de outros parceiros. (MEIHY (2005, p. 175)

Nossa entrevistada ponto zero foi Cássia, que conhecia pessoalmente diversas outras pessoas em comum com a pesquisadora, mas possuía maior contato com elas, o que facilitou sobremaneira a abordagem para a pesquisa, conforme conceitos consagrados e válidos. Ainda falando sobre os conceitos de História Oral, cabe deixar anotado que um dos diferenciais deste tipo de trabalho é o obrigatório retorno aos entrevistados para que estes verifiquem, corrijam, enfim aprovem integralmente o que está sendo dito como sua fala antes de qualquer veiculação ou publicação. Segundo Alberti (2000),

Uma entrevista de História Oral pode reconstituir processos decisórios e revelar informações que de outra forma se perderiam. Outros registros sonoros (músicas, jingles, gravações radiofônicas), ou ainda fotografias, caricaturas, desenhos, filmes, monumentos, obras de arte e de arquitetura, são passíveis, hoje em dia, de se tornar fontes para o estudo do passado, tendo havido, portanto, uma revisão do fetichismo da fonte escrita. (ALBERTI, 2000, p. 2)

Outro cuidado levantando pela mesma autora em outra obra é que

a História Oral é legítima como fonte porque não induz a mais erros do que outras fontes documentais e históricas. O conteúdo de uma correspondência não é menos sujeito a distorções factuais do que uma entrevista gravada. A

Página 42

diferença básica é que, enquanto no primeiro caso a ideologia se cristaliza em um momento qualquer do passado, na História Oral a versão representa a ideologia em movimento e tem a particularidade, não necessariamente negativa, de reconstruir e totalizar, reinterpretar o fato. A História Oral tem também o mérito singular de introduzir o pesquisador na construção da versão, o que significa introjetar no documento produzido o controle sistemático da produção da própria fonte. Tudo isto, que pode parecer discussão meramente formal, pode ser em verdade constatado na prática e na práxis do próprio programa. E nos induz a afirmar que a contribuição da História Oral será cada vez maior na sociedade do futuro, na qual as fontes não-escritas tendem a perder terreno e as fontes orais vão se tornar cada vez mais confiáveis e fidedignas. (ALBERTI, 2005, p. 13-14)

Ao escolher como metodologia de trabalho a História Oral nos defrontamos com essa aparente falta de nexo: como utilizar algo tão antigo com algo tão novo quanto a tecnologia? O que ocasionou a escolha de utilizar os instrumentos de depoimentos temáticos através da internet? Cabe-nos, como justificativa, que devemos utilizar qualquer instrumento possível para inferir a verdade (mesmo que uma verdade exclusivamente pessoal), além de termos como respaldo as palavras de Ferreira, Fernandes e Alberti (2000):

Os formatos multimídia podem incluir maciça quantidade de material textual, oral, visual e de vídeo. Eles facilitam a justaposição simultânea de diversas formas de evidência, inclusive relatos e interpretações complementares e contraditórios.[...] Mais ainda, entrevistas virtuais através da Internet - usando escrita ou som - começam a permitir uma alternativa bem distinta às entrevistas individuais gravadas, único recurso, praticamente, de que os historiadores orais dispuseram durante cinquenta anos: qualquer pessoa poderá entrevistar qualquer outra em qualquer parte do mundo (desde que entrevistador e entrevistado tenham acesso à tecnologia da rede)(grifo nosso). Se um dos objetivos originais da História Oral foi dar às vozes silentes uma audiência pública, esta será então uma extraordinária e talvez inesperada apoteose. (FERREIRA, FERNANDES e ALBERTI, 2000, p. 62)

Também gostaríamos de deixar anotadas as ideias de Foster (2014, apud Malerba (2017):

a Web 2.0 afeta a forma como as pessoas interagem umas com as outras, incluindo o modo como os historiadores públicos e as pessoas comuns se conectam com a história. Fóruns online, blogs, dispositivos portáteis, aplicativos celulares, tablets, mídias sociais e uma incontável gama de plataformas digitais têm facilitado um maior grau de “envolvimento do usuário” (user engagement), em que qualquer pessoa com acesso à web é capaz de contribuir para a compreensão sobre o passado.

O ensaio de Foster analisa justamente a relação complexa e poderosa entre a internet e história pública. Ele explora como a história pública está sendo experimentada e praticada em

Página 43 um mundo digital onde tanto os historiadores públicos como os leigos atuam na produção e difusão do conhecimento histórico por meio da world wide web6. Queremos mostrar, através da escolha da metodologia de História Oral a verdade pessoal, sim, a verdade do pequeno, do único, do menor como nos diz Gallo (2002), a verdade muitas vezes não oficial que tão preciosamente somente a História Oral nos permite elucidar. Talvez busquemos no inconsciente coletivo de algumas pessoas os materiais herdados, os traços funcionais comuns a todos os seres humanos e com tais dados consigamos deslindar alguma parte maior da história, pois, acima de tudo é necessário ter em vista que o contexto sociocultural também é capital na realização de um estudo científico, uma vez que alguns fatores sociais influenciam a visão geral do pesquisador, e até mesmo da concepção do objeto de estudo por parte da ciência.

Outro conceito que consideramos ser necessário explicitar no presente trabalho é o de entrevista, segundo o enfoque da História Oral : a História Oral por si só recebe muitas críticas, principalmente de cientistas sociais positivistas e historiadores documentalistas, e no início buscava-se legitimar a História Oral criando manuais que continham um modelo científico para fazer as entrevistas : esse hermetismo mostrou-se, ao longo do tempo, como algo que tolhia a liberdade tanto do entrevistado como do entrevistador, e o que se sugere hoje é algo mais livre, ou nas palavras de Ferreira, Fernandes e Alberti (2000) a entrevista é uma relação que se insere em práticas culturais particulares e que é informada por relações e sistemas de comunicação específicos. Ainda as mesmas autoras, citando Morrissey, o pioneiro da História Oral norte-americana : preparar-se para a entrevista é importante; é necessário estabelecer intimidade, ouvir e fazer perguntas abertas, refrear os impulsos de interromper; permitir pausas e silêncios é importantíssimo, fugir de jargões; evitar ser inquisitivo e minimizar a presença do aparelho de gravação. Porém, afirmam ainda que é necessário ter em mente as particularidades da cultura da pessoa que será entrevistada, bem como seus valores e conceitos de vida. A regra mais fundamental é ter sensibilidade para com os modos habituais de fala e comunicação e permitir que as pessoas falem segundo seus próprios termos. (FERREIRA, FERNANDES e ALBERTI, 2000, p. 48). E nesse ponto cremos ser necessária algumas últimas definições no que tange aos depoimentos, uma vez que sua forma depende do objetivo da pesquisa, do entrevistado selecionado e das informações que desejamos receber deste; dentre as características que devemos observar ao optar por História

6 Word Wide Web - significa em português rede de alcance mundial, também conhecida como Web ou WWW - World Wide Web é um sistema de documentos em hipermídia que são interligados e executados na Internet.

Página 44

Oral, temos de levar em conta o que as autoras Fernandes e Lima (2016) tem a nos dizer : elas pontuam o fato que os entrevistados são escolhidos conforme o objetivo da pesquisa, e que o uso do gravador (fortemente necessário nas entrevistas), necessita da permissão tácita do entrevistado e pode vir a ser um entrave para a fluidez da entrevista, portanto, deve ser ligado quando já houver se iniciado uma conversa descontraída entre entrevistador e entrevistado. A transcrição e a análise devem ser especialmente cuidadas, e atentas a todos os detalhes possíveis: palavras e pausas, duração dessas pausas, silêncios, entonação da voz, que vão mostrar aquilo que não se consegue dizer. As autoras ainda citam que, além das modalidades de história de vida, relato de vida e Depoimento Oral, utilizadas pelo CERU – Centro de Estudos Rurais e Urbanos da USP, há outras formas de compreender as pesquisas em História Oral, como as comumente adotadas no Núcleo de Estudos em História Oral –NEHO, também da USP, quais sejam: História Oral de Vida, que contém relatos que se inspiram em fatos mas admitem também elucubrações ou mesmo omissões; História Oral Temática, que são todos os procedimentos previstos na pesquisa como parte da História Oral; Tradição Oral, que se baseia na observação e captura de discursos coletivos, geralmente ligados às crenças e à cultura de um grupo social especial, requerendo portanto esse último uma análise pouco diferente da entrevista. Outro ponto que acreditamos ser importante destacar é o referendado por Stanisk, Floriani e Silva (2015, p. 1), onde a contextualização histórica é muito importante na compreensão da relação homem-meio e é enriquecida com os relatos orais, os quais estão relacionados aos modos de vida das populações tradicionais. Finalizaremos a parte de conceitos iniciais sobre História Oral com a fala de Ferreira, Fernandes e Alberti (2000):

As entrevistas de História Oral também permitem explorar aspectos da experiência histórica que raramente são registrados, tais como relações pessoais, vida doméstica e a natureza de organizações clandestinas. Elas oferecem uma rica evidência sobre os verdadeiros significados subjetivos, ou pessoais, de eventos passados[...]os historiadores orais são singulares em sua capacidade de questionar seus informantes, de fazer perguntas que podem não ter sido imaginadas no passado e de evocar reminiscências e entendimentos anteriormente silenciados ou ignorados. Usufruímos os prazeres -bem como os consideráveis desafios - de nos engajarmos em relacionamentos humanos ativos no curso de nossas pesquisas. (FERREIRA, FERNANDES e ALBERTI, 2000, p. 48-49)

Página 45

1.2 - HISTÓRICO DA HISTÓRIA ORAL

O autista é um revolucionário só por existir no mundo. Ana Nunes, Cartas de Beirute.

Historicamente falando, o conceito de História Oral vem do tempo dos gregos, uma vez que tanto Heródoto (considerado o pai da História) como Tucídides (em sua História da Guerra do Peloponeso) faziam uso do recurso de relatos e depoimentos para embasar seus escritos históricos. Mesmo durante a Idade Média a utilização de relatos e depoimentos para poder reconstruir algum acontecimento já era um recurso bastante utilizado. Porém, no século XIX, a visão positivista retirou o caráter documental dos relatos e depoimentos não escritos, pois não se acreditava que estes tivessem o teor de prova, por serem subjetivos, serem parciais e poderem ocorrer, mesmo que involuntariamente, falhas de memória. Conforme Voldman (2006),

Os historiadores de outrora - grosso modo, de Heródoto a Ernest Lavisse, passando por Ibn Khaldun e a escola alemã do último terço do século XIX - de bom grado utilizavam as contribuições da "testemunha digna de fé"; mas os rigores da escola positivista, ao mesmo tempo que acentuavam as desconfianças em relação ao presente, pouco a pouco cristalizaram e fixaram uma recusa ao sujeito que testemunha, cujas palavras seriam ontologicamente não-confiáveis. Isso os levou a confiar somente no material escrito. [...] Com a evolução da disciplina no decorrer do século XX, reavivou-se o interesse pela testemunha ocular, cujas potencialidades descritivas, narrativas e mesmo explicativas na escrita da história foram reconhecidas. (VOLDMAN (2006, p. 34)

No final do século XIX e início do século XX, ocorreram experiências em História Oral de parte de Thomas e Znaniecki (sociólogos pesquisadores do Departamento de Sociologia de Chicago) buscando fundamentar uma metodologia que estudasse “o outro” e que fosse baseada na vivência dos fatos, pessoas e seus relatos das experiências que viviam, usando apenas a linguagem do dia-a-dia. O estudo foi longitudinal, e publicado apenas em 1927. Em 1916 outro integrante soma-se ao grupo, e traz experiências de sua carreira anterior, jornalista: Robert Ezra Park passou sua paixão aos demais alunos sobre a observação do povo nas ruas, ou seja, fazer a pesquisa no ambiente natural destes. Tais estudos giravam em torno de microgrupos urbanos com características que os diferenciavam, geralmente em equilíbrio precário com o meio (principalmente social) o que gerou trabalhos etnográficos sobre o gueto, as gangues, os vagabundos (lembrando que a época desses estudos foi próxima à Grande Depressão), ou seja, grupos de excluídos que poderiam ser devidamente reintegrados à vida na cidade. Com isso, a Escola de Chicago criou um método de interpretação realista, a partir das narrativas orais de

Página 46 história de vida cotidiana de pessoas comuns, sob um realismo literário que respeitava a forma da comunicação dessas pessoas, e tornando o pesquisador um ser empático com o ambiente que o cerca em sua pesquisa, bem como as pessoas e os problemas abordados. Como citam os autores Aragão, Timm e Kreuz (2013, p. 29) “a vida de sujeitos comuns passou a ser vista como mais uma possibilidade para compreensão da História” Somente após o final da Segunda Guerra Mundial é que a História Oral recuperou realmente seu status, considerada como útil para pesquisas referentes ao estudo das ocorrências e ocasiões sociais : conforme Ferreira, Fernandes e Alberti (2000) a História Oral, como técnica moderna de documentação histórica, foi estabelecida em 1948 quando Allan Nevins, historiador da Universidade de Colúmbia, começou a gravar as memórias de pessoas importantes da vida americana. Percebeu-se que os métodos qualitativos de pesquisa eram mais eficientes, quando dirigidos à área social, do que os até então utilizados métodos quantitativos de investigação. Somado a isso, o enorme boom da eletrônica gerado com a criação de gravadores portáteis no início dos anos 1960 permitiu que os depoimentos e relatos não fossem mais tão voláteis, pois estariam eternizados nas bandas de uma fita magnética, podendo ser recuperados a qualquer momento, por qualquer pesquisador de posse da referida mídia. Com isso as entrevistas finalmente começaram a ter status documental, de certo modo redefinindo o conceito do trabalho na História Oral : faz-se necessário ter atenção na parte técnica da gravação a ser efetuada, bem como o modo a se tratar uma entrevista, visando a criação de um acervo consistente não apenas para aquele, mas para toda a comunidade de pesquisadores que possa vir a ter interesse nessa informação. Outra coisa ocorrida nos anos 1960 foi o reconhecimento que a recordação de fatos passados poderia vir a ser um processo necessário de afirmação para as gerações anteriores, e com isso começou-se a trabalhar a reminiscência em ambientes de atendimento a idosos, pois esta recordação orientada poderia ter até mesmo benefícios terapêuticos. Isso estendeu-se, posteriormente, para trabalho de campo de assistência social, Educação de adultos e grupos de autoajuda. Em se tratando de América Latina, os anos 1960 passam a ter um caráter de militância em se tratando de História Oral, ao ouvir e registrar a fala das classes menos favorecidas, ao invés das elites oligárquicas, gerando um viés mais político, nos mesmos moldes da História Oral feita na Europa na mesma época. Continuando em nosso trajeto histórico, os anos 1970 foram especialmente importantes para a História Oral, particularmente nos Estados Unidos e Europa: diversas pesquisas importantes passaram e ser feitas utilizando essa metodologia, principalmente em virtude de

Página 47 que temas contemporâneos passaram a ser incorporados à História( não mais se estudava apenas a períodos mais antigos), além da valorização da análise qualitativa ao invés da quantitativa que era considerada a única válida até então. Ainda conforme Alberti (2000), outro ponto que foi considerado foi que as experiências individuais começaram a ser consideradas importantes para melhor compreender o passado, além de um impulso da história sobre a cultura e a renascença do estudo da história política como o locus privilegiado de articulação do social, a ação dos atores e de suas estratégias), revalorizando enfim o papel do sujeito na história. Segundo Ferreira, Fernandes e Alberti ( (2000, p. 50) durante os anos 70, historiadores orais em distintas partes do mundo começaram a questionar a ênfase nas distorções da memória, e a encarar as peculiaridades da História Oral como um ponto forte, em vez de fraqueza. Mesmo com esse novo status da entrevista, não houve a adequação desta ao enfoque positivista, uma vez que uma nova luz dá foco a este instrumento: ao invés da busca da verdade única, tal como efetivamente ocorreu, busca-se descobrir formatos diversos da ocorrência como ela foi apreendida e interpretada pelo depoente. Trata-se de uma visão individual do passado, carregada de todas as nuances que qualquer ser humano possui conforme sua cultura, criação e crenças. É uma dentre tantas versões possíveis, de se tentar compreender esses mesmos nuances da pessoa entrevistada enquanto ser participante um grupo social a que o pertence, estabelecendo relações entre o todo público e o individual particular pela comparação de relatos de diferentes testemunhas, na busca de informações sobre como determinado grupo social solucionou – ou não – uma determinada situação ocorrida anteriormente. Portanto, em História Oral, não é considerado como algo negativo se houver uma distorção pessoal de um fato por um depoente, por falhas intencionais ou não no seu relato : o realmente importante é incluir essas e permitir uma reflexão mais abrangente, questionando porque o depoente tem essa visão particular do passado e não a que outros apresentem, e até que ponto sua realidade pessoal é diferente de outros entrevistados. Segundo Passerini (1979) o que realmente importa é que a memória não é um depositário passivo de fatos, mas um processo ativo de criação de significados. Esse novo formato na visão da pesquisa histórica trouxe mudanças importantes no formato, bem como no conteúdo dos arquivos e no entendimento do que é uma fonte, seguindo as alterações na sociedade pós-moderna. No Brasil, a História Oral demorou a se desenvolver, segundo Meihy (2005, p. 99) por causa de dois fatores considerados primordiais : a falta de tradição não acadêmica de confecção de projetos que registrassem histórias locais e tradições populares, e em segundo a ausência de laços universitários com essas mesmas localidades e cultura popular. Como exemplo podemos

Página 48 falar sobre o estudo do folclore e sua fragilidade existente até hoje. Tudo isso ocorria por conta de um pseudo-elitismo cultural, onde se considerava que as camadas populares não tinham cultura própria, além de que o estudo de história deveria se ater a estudar o tempo remoto, nunca o presente. O conceito eurocêntrico é extremamente forte no Brasil, e era considerado mais categorizado o estudo de culturas hegemônicas europeias do que as pesquisas sobre indígenas ou dos demais países de América Latina. Quando ocorreu no Brasil o golpe de 1964, uma das consequências foi a proibição de projetos e registros que gravassem experiências, opiniões ou depoimentos. Porém, o mesmo golpe foi também um facilitar para a implantação posterior da História Oral no Brasil, uma vez que foi com o depoimento desses que auxiliou a compreensão desse período de nossa história. No Brasil em 1973 foi implantando o CPDOC - Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, da Fundação Getúlio Vargas, contando em 2019 com cerca de 1,8 milhão de documentos, constituindo o mais importante acervo de arquivos pessoais de homens públicos do país, segundo o próprio site da entidade. Em 1975, houve a tentativa de criação de uma organização de alcance nacional pela Fundação Ford em conjunto com a Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro, mas por conta do momento político, não foi dado prosseguimento a isso; porém, dessa iniciativa criou-se oportunidade para a pesquisa inicial trilhada pelo CPDOC, conforme nos relata Alberti (2005, p. 20) :

O Programa de História Oral do Cpdoc foi implantado com um projeto de pesquisa específico, Trajetória e desempenho das elites políticas brasileiras, que orientou a produção das entrevistas e imprimiu uma linha ao acervo aberto ao público. A ideia era estudar o processo de montagem do Estado brasileiro, permitindo inclusive compreender como se chegara ao regime militar então vigente. Com as entrevistas, procurava-se conhecer os processos de formação das elites, as influências políticas e intelectuais, os conflitos e as formas de conceber o mundo e o país. Para alcançar esse objetivo, o mais apropriado era realizar entrevistas de história de vida, que se estendem por várias sessões e acompanham a vida do entrevistado desde a infância, aprofundando-se em temas específicos. (ALBERTI, 2005, p. 20)

Nos diz Meihy (2005) sobre esse projeto inicial:

Em virtude do modelo importado e do caráter então introspectivo daquela instituição, voltada exclusivamente para a pesquisa, a História Oral contextualizada nos anos pesados da ditadura política não ganhou o público, apesar de aquele projeto ser referência obrigatória para qualquer estudo sobre a História Oral brasileira. Ainda que colocado à disposição dos interessados, o valioso acervo do CPDOC não chegou a se propor como um modelo reproduzível, ainda que tenha publicado, em 1989, uma espécie de manual, de autoria de Verena Alberti, intitulado História Oral: a experiência do CPDOC. (MEIHY, 2005, p. 102)

Página 49

Conforme Malerba (2017), no final da década de 1970, precisamente em 1979, ocorreu a Conferência Internacional de História Oral realizada na Universidade de Essex, no Reino Unido, que reuniu historiadores orais europeus e norte-americanos. Dentre os participantes, ressalta-se a contribuição de Passarini, Portelli e Frisch, que efetivamente trouxeram uma visão mais realista da memória adulterando a verdade histórica : principalmente Frisch acreditava que” a memória deveria ser o centro como objeto – e não apenas método – da História Oral”(FERREIRA, FERNANDES e ALBERTI (2000, p. 51) ; ainda desse autor, Frisch, gostaríamos de deixar presente a seguinte colocação :

Se as memórias forem tratadas como um objeto de análise histórica, a História Oral pode se tornar um poderoso instrumento para a descoberta, exploração e avaliação da natureza do processo de memória histórica - como as pessoas compreendem seu passado, como vinculam a experiência individual e seu contexto social, como o passado torna-se parte do presente, e como os indivíduos o utilizam para interpretar suas vidas e o mundo à sua volta (FRISCH, 1990, p. 188)

Nas décadas de 1980 e 1990 ocorreu um boom de pesquisas utilizando histórias de vida, orais e escritas, em diversos campos intelectuais, como a sociologia, antropologia, estudos literários, psicologia e linguística, onde se exploravam as relações existentes entre identidade, memória e narrativa pessoal. Também no Brasil, por conta do movimento de Anistia, a academia buscou recuperar o tempo perdido e vários projetos, bem como debates, foram feitos com História Oral. A partir da década de 1990, a utilização da História Oral passou mais e mais a ser utilizada, tanto no Brasil como pelo mundo afora, tanto que em 1994 foi fundada a Associação Brasileira de História Oral (ABHO), durante o II Encontro Nacional de História Oral. Em 1996 foi criada na Suécia a IOHA, International Oral History Association. Dentre os pioneiros de utilização da História Oral no Brasil destacamos Eclea Bosi e seu livro Memórias e Sociedade: lembranças de velhos, cujo formato diferenciado de entrevistas foi um marco na historiografia oral do Brasil. Gostaríamos ainda de deixar anotados os expoentes nacionais em termos de autores que utilizam a metodologia de História Oral, apesar de já termos utilizado citações de diversos deles: Verena Alberti, Marieta de Moraes Ferreira, Alice B. S. Gordo Lang, José Carlos Sebe Bom Meihy, Dafne Patai, Alessandro Portelli, e Ricardo Santiago. Uma visão mais pessimista - porém realista - de Meihy (2005) sobre a História Oral brasileira pode ser sintetizada na fala abaixo:

Três entraves pesam sobre a História Oral brasileira: o fato de ter

Página 50

nascido exilada; o de ater-se, em muitos casos, a um colonialismo dependentista; e sobretudo o de fechar-se, no meio acadêmico, à inclusão de outros setores capazes de produzir conhecimento. (MEIHY, 2005, p. 103)

O que observamos hoje, em relação à História Oral, é que ela se tornou multidisciplinar, utilizada tanto por historiadores como folcloristas, antropólogos e psicólogos, sociólogos e educadores, pois essa metodologia atende completamente aos interesses acadêmicos, pedagógicos, terapêuticos e arquivísticos que estas especialidades exigem em seus instrumentos de estudo.

1.3 - INSTRUMENTOS

Os instrumentos de pesquisa utilizados foram aqueles preconizados tanto pela História Oral como pela tradição da pesquisa, quais sejam o caderno de campo e as entrevistas, no nosso caso optamos pelo depoimento temático, os quais falaremos a seguir. 1.3.1 – O CADERNO DE CAMPO Não acreditaríamos estar completo o capítulo metodológico sem a inserção da figura do caderno de campo, tão pouco explorando em textos, mas de tão grande importância na vida do pesquisador: a autora Alberti (2005) nos traz uma frase lapidar, que reproduzimos aqui:

Escrever no caderno de campo as impressões e ideias decorrentes da entrevista é, portanto, praticar a reflexão em torno do objeto de estudo. Por se constituir em um exercício muito individual, obedecendo às ideias e à lógica do entrevistador momentos após a entrevista, não há receita para se escrever o caderno de campo, a não ser a recomendação de se procurar ser o mais sincero e perspicaz possível na reconstituição do que se passou. (ALBERTI, 2005, p. 127)

Mas, antes, outras explicações sobre o caderno de campo: poucos estudiosos não leram o artigo de Magnani (1997), onde ele cita o caderno de campo como

Equipamento indispensável na mochila do etnógrafo, seja ele marinheiro de primeira viagem ou velho lobo do mar, vem sendo usado como depositário de notas, impressões, observações, primeiras teorizações, mapas, esboços, desabafos, entrevistas e garatujas de informantes. [...]O caderno de campo, entretanto - para além de uma função catártica - pode ser pensado também como um dos instrumentos de pesquisa (grifo nosso). Ao registrar, na linha dos relatos de viagem, o particular contexto em que os dados foram obtidos, permite captar uma informação que os documentos, as entrevistas, os dados censitários, a descrição de rituais, - obtidos por meio do gravador, da máquina fotográfica, da filmadora, das transcrições - não transmitem. (MAGNANI, 1997, p. 1-2)

Página 51

O autor nos explica também a existência dos dois grandes tipos de caderno de campo porventura existentes: um diário íntimo feito durante a pesquisa, ou o relato de viagem, contendo a ordem cronológica das visitas e de como é feito o deslocamento espacial, por exemplo. Enquanto o primeiro possui uma linguagem quase lírica, o segundo é um relato praticamente impessoal das ocorrências da pesquisa. Ainda segundo esse autor, todo caderno de campo possui um pouco dos dois. Ainda na mesma página encontramos outra referência assaz importante:

cada qual, a seu modo, dá a dimensão do que é o processo de imersão que caracteriza a pesquisa etnográfica: trata-se de uma experiência que nenhuma outra abordagem proporciona pois tem como pressuposto o contato com o Outro, nos termos - espaço, temporalidade, códigos - deles; é uma experiência- limite, que transforma uns e outros. (MAGNANI, 1997, p. 2)

Outro ponto que consideramos importante de deixar anotado é aquele a que se refere Brandão (2007, p. 10), de que devemos anotar em nosso caderno de campo também as coisas circunvizinhas do que se está pesquisando, além do que está nuclearmente ligado àquilo que se pesquisa.

1.3.2 – ENTREVISTA TEMÁTICA

Conforme Lang (1996), as narrativas orais podem ter diferentes formas: História Oral de vida, relatos orais de vida e depoimentos orais. O que utilizaremos no presente trabalho é o depoimento oral na modalidade de entrevista temática, que por si só é uma modalidade diferenciada dos outros dois, pois através dele se busca

obter informações e o testemunho do entrevistado sobre sua vivência em determinadas situações ou a participação em determinadas instituições que se quer estudar. A coleta de um depoimento é mais dirigida para um tópico específico, podendo-se, em alguns casos, fazer uso de questionário. [...]nas ciências sociais, o depoimento não tem o sentido de estabelecimento da verdade, mas de conhecimento de uma versão. (LANG, 1996, p,37)

Ainda da mesma autora, em outro trabalho, somos orientados que

Através do depoimento oral, busca o pesquisador obter o testemunho do entrevistado sobre sua vivência em determinadas situações ou participação em determinadas instituições que se quer estudar, observando-se que, nas ciências sociais, o depoimento não tem o sentido de estabelecimento de verdade, mas de conhecimento de uma versão devidamente qualificada. (LANG, 2000, p. 122)

Página 52

Em geral, os pesquisadores fazem depoimentos temáticos com um grupo de sujeitos sobre um evento determinado, ou um movimento vivido por todos, pois assim conseguem obter visões e perspectivas individuais desses sujeitos, por estarem inseridos num mesmo contexto; conforme trabalham com as respostas dadas pelos entrevistados, será visto que se torna possível agregar os testemunhos em núcleos temáticos de sentido, de tal forma a perceber, nessas trajetórias individuais, indícios de processos de formação (seja de competências, familiar, ou mesmo a escolaridade formal, informal e não-formal), bem como com referência a diferentes posturas diante de novas rotinas a serem inseridas em suas vidas, seja nos estudos ou no trabalho. Quando se efetuar a análise dos dados coletados, espera-se traçar paralelos entre as respostas obtidas, localizar simetrias e discordâncias que permearam a discussão a eles proposta, para que então se crie um arcabouço teórico tal que dê o devido embasamento ao presente trabalho, a fim de torna-lo consistente e coerente com os objetivos desejados.

1.3.3 - PROCEDIMENTOS

O processo do trabalho foi conduzido conforme as seguintes etapas:

• Etapa 1 o a) entrega do roteiro de perguntas para os entrevistados, para que eles pensassem em suas respostas com tranquilidade; o b) concessão das entrevistas, via Facebook, e-mail ou WhatsApp, conforme a escolha do entrevistado, uma vez que, em virtude da distância geográfica entre entrevistador e entrevistados, a entrevista física não seria possível; • Etapa 2 o entrevista propriamente dita: foi necessário que, em alguns casos, a entrevista fosse dividida em vários dias, pelo cansaço verificado nos entrevistados. • Etapa 3 o Transcrição das entrevistas por depoimento oral para escrito. • Observação da forma de solução dada ao questionário o Alguns dos entrevistados sentiram-se mais seguros ao responder o roteiro de perguntas por escrito, o que foi permitido.

Página 53

Foram tomados todos os cuidados éticos, sendo assegurada a confidencialidade dos dados, que foram armazenados pelo pesquisador. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Educação sob o processo nº 11167119.5.0000.5695.

1.3.4 – ROTEIRO DE PERGUNTAS

No apêndice III deixamos o rol de perguntas efetuadas aos entrevistados. Esclarecemos que, para a elaboração destas, partimos de nosso conhecimento pessoal pré-existente, bem como de contatos anteriores com diversos autistas, sobre o que os incomoda mais ao ser perguntado, e o que eles gostariam de falar que em geral não são perguntados. As perguntas foram de cunho bastante aberto, com amplitude, o que foi informado como sendo difícil de responder por três dos participantes. Então foi necessário conversar particularmente com cada um, vendo o que estes estavam entendendo das perguntas, e o que achavam mais relevante responder naquele quesito.

1.4 – REVISÃO BIBLIOGRÁFICA E DOCUMENTAL

Uma vez detectado um dos funis do processo de diagnóstico autista, qual seja a extrema falta de profissionais habilitados para sua identificação correta, centralizados em uma determinada região do país, iremos prosseguir com outras dificuldades inerentes à condição autista: a vida escolar. Ao contrário do que se pensa tradicionalmente, existem cursos de graduação em Educação Especial no Brasil, onde, ao menos teoricamente, os professores são ensinados a trabalhar com as diversas necessidades educativas especiais existentes, e mais particularmente para o nosso estudo, o autismo. Estes são em número de sessenta e sete no Brasil todo, dos quais 2 estão desativados, 11 estão em processo de extinção, 45 são presenciais (com 10 inativos e 2 extintos) e 22 à distância (com um inativo), perfazendo um total de 54 cursos ativos, sendo 33 presenciais e 21 à distância. Na modalidade de Pós-Graduação, ao consultarmos o site do MEC – Ministério da Educação e Cultura, localizamos 4677 cursos, assim divididos por Região/Estado:

Página 54

Figura 4 - Cursos de Pós-Graduação em Educação Especial por Região/Estado. Fonte dos Dados: MEC

Elaboração: Gonçalves, 2020.

Esmiuçamos mais a pesquisa, visto que grande parte dos cursos de Educação Especial não se refere especificamente a autismo e poderia não contemplar o desejado neste trabalho, portanto fizemos nova busca com os nomes de curso TGD – Transtornos Globais do Desenvolvimento. O retorno foi de um total de 169 cursos, sendo 107 à distância, e com o nome de curso TEA (onde descartamos aqueles que não se referiam a autismo) localizamos 95 cursos, sendo 35 à distância; com o termo Autismo fazendo parte do nome localizamos 140 cursos ativos, sendo 40 à distância.

Figura 5 - Cursos de Especialização em TGD por Região. Fonte dos dados: MEC

Elaboração Gonçalves, 2020.

Página 55

Figura 6 - Cursos de Especialização em TEA por Região. Fonte dos dados: MEC

Elaboração: Gonçalves, 2020.

Enfatizamos que aqui estamos buscando dados que respondam a algumas situações costumeiramente colocadas dentro do ambiente escolar formal, sobre a falta de aprendizado ou treinamento dos profissionais da educação em questões que envolvam autismo; infelizmente, até a presente data, no ano de 2020, ainda é comum ouvirmos profissionais da educação utilizarem o bastante desgastado mote de “não terem sido preparados para tal alunado”. A segunda situação colocada por profissionais da educação é que não tem poder aquisitivo para efetuarem tais cursos de especialização. Em nossa busca, localizamos dezoito cursos à distância com mensalidades interiores a cento e cinquenta reais mensais, além daquelas gratuitas que são ministradas por entidades públicas. Não nos detivemos a buscar com afinco cursos gratuitos sobre autismo na internet ( uma vez que seria bastante difícil estabelecer a qualidade dos referidos cursos, visto não foram validados pelo MEC), porém, apenas para título de consideração, explicitamos que uma procura a um mecanismo de busca, o Google, com a chave “curso gratuito autismo” obteve 15 milhões e seiscentos mil retornos. Estabelecido, portanto, ser possível que os profissionais da educação que porventura não tenham tido a oportunidade de ter acesso a dados sobre o aprendizado de autistas em sua

Página 56 graduação obtenham especialização na área, ou ainda que contem com informações e instrumental obtido pela internet para o trabalho com autistas em sala de aula, vamos nos dedicar a falar sobre o aprendizado autista dentro do ambiente formal de ensino. A partir das definições e orientações obtidas através da educação sociocomunitária, verificamos este momento, o da educação formal, principalmente em seu primeiro estágio ( o da educação infantil ), como um período extremamente conturbado para os autistas : além do que foi colhido nos depoimentos anexos a este trabalho, é bastante comum encontrar problemas de inclusão e falta de dedicação ao aprendizado dos alunos autistas, tanto nas redes sociais como em trabalhos científicos que se propõe a elucidar o quadro do da educação com o autismo, como por exemplo Ferreira do Nascimento (2016) ou Farias, Maranhão e Cunha (2008). Nosso enfoque, sendo através da educação sociocomunitária, irá tecer comentários mais pertinentes sobre a educação social executada dentro do ambiente escolar, no presente caso, com autistas incluídos em escolas regulares de ensino. Segundo Riera (1998) apud Caro (2012), os professores fazem educação social em aula, que é uma tarefa extremamente importante dentro da educação, estabelecendo uma intervenção educativa com o ambiente de tal forma a utilizar todos os recursos socioculturais possíveis, bem como criar novas alternativas de aprendizado formal de uma forma diferenciada. Ao acolher o aluno autista, não por força da lei, nem por obrigatoriedade civil, o professor efetiva a educação social necessária ao aprendizado não apenas do aluno autista, mas da sociedade que o cerca nesse ambiente : todos, indistintamente todos serão modificados por essa interação recíproca, gerando transformação social e cultural : Ortega (2005) nos diz que “a participação é um elemento fundamental dentro do projeto educativo”, e a inclusão do aluno autista como um ser completo no ambiente escolar adepto da educação sociocomunitária pode vir a transformar e redimir um projeto que porventura tenha disso tratado incorretamente com outra visão e atitudes menos inclusivas. A educação sociocomunitária, área que cremos ser a mais adequada para o presente trabalho, irá trazer ferramentas tais que possamos ter modos mais humanos e inclusivos dentro do ambiente escolar.

Página 57

CAPÍTULO 2 - O SILÊNCIO DOS INOCENTES7

Tudo o que é silenciado clamará para ser ouvido ainda que silenciosamente. Margareth Atwood, Autista.

A medicina e a psicologia têm uma dívida histórica com autistas. O que muitas pessoas não sabem é que em determinada época, em alguns países, muitos autistas foram internados contra a própria vontade, pais perderam a guarda dos filhos, entre outras formas nada sutis de silenciamento e de normalização. Bem Oliveira, Autista.

Para que possamos arguir de forma mais completa sobre como está o autismo – ou melhor, como estão os autistas, laudados ou não – em nosso país, é necessário recuar no tempo: para efetivamente compreender o que temos hoje, urge desmistificar, desenovelar uma síndrome que começou mal e segue a passos trôpegos em sua (falta de) identidade, situação essa muito bem resumida pelas palavras de Silberman (2017, p. 25) : Após 70 anos de pesquisa sobre o autismo, porque nós ainda parecemos saber tão pouco sobre ele?

Historicamente, o primeiro autista que encontramos documentado é o menino-lobo de Itard. Na França, em 1798, na província de Aveyron, foi encontrado um menino “criado por lobos”, e com o comportamento destes: não falava, movia-se sobre os quatro membros (mãos e pés) , tinha comportamentos animalescos, e somente com a tutela de Itard ele tornou-se uma pessoa melhor , socialmente: aprendeu a usar roupas, usar o banheiro e vestir-se sozinho. Nada fora do contexto com que a excepcionalidade ou deficiência sempre foi tratada, qual seja de adaptar-se à vivência social e a ela trazer lucro, como reza o capitalismo para um ser social. Se voltarmos ainda mais no tempo, desde os primórdios da humanidade já eram notados os deficientes, e vemos duas situações antagônicas no trato com estes : enquanto para alguns grupos étnicos os deficientes eram “tocados pelos deuses”, pessoas essas geralmente envolvidas em divinações e tratadas com respeito, onde participavam da vida normal. Um exemplo trazido por Gugel (2007) é o do povo do Egito antigo. Em outras, como na sociedade romana, trouxemos para melhor esclarecer o relato de Sêneca, citado por Misés (1977):

Nós matamos os cães danados, os touros ferozes e indomáveis, degolamos as ovelhas doentes com medo que infectem o rebanho, asfixiamos os recém-

7 O Silêncio dos Inocentes (The Silence of the Lambs) é um filme dos EUA de 1991, dirigido por Jonathan Demme, baseado no livro de Tomas Harris, apresenta um psiquiatra brilhante, mas também um assassino em série e canibal, que auxilia uma estagiária do FBI a localizar e prender outro assassino serial. . Obteve cinco Oscar: melhor filme, melhor diretor, melhor ator, melhor atriz e melhor roteiro adaptado. Foi escolhido para nominar esse capítulo pelo próprio título, e principalmente pela condição de ovelhas que os autistas foram submetidos a diversos diagnósticos, métodos e tratamentos à sua revelia, ao longo dos últimos setenta anos.

Página 58

nascidos mal constituídos, mesmo as crianças, se forem débeis ou anormais, nós a afogamos (grifo nosso): não se trata de ódio, mas da razão que nos convida a separar das partes sãs aquelas que podem corrompê-las (SÊNECA in Sobre a Ira, I)apud MISÉS (1977, p. 14).

Na Idade Média a situação tornou-se pior, uma vez que houve uma ligação destes “especiais” com as “forças malignas”, quando que seu status passou a ser de monstros a serem maltratados e quiçá eliminados da sociedade instituída. Conforme nos aprofundamos no estudo da história do autismo, mais e mais relatos sobre essa condição encontramos: Grinker (2010) irá trazer vários exemplos históricos sobre isso, ao mesmo tempo que lamenta a falta de informações:

A verdade é que não há muito a fazer para descobrir casos de autismo ou outros distúrbios mentais que tenham acometido crianças na Europa antes do século XIX. Majia Nadeson, estudiosa do autismo, ressaltou que, como as crianças não eram admitidas em asilos europeus, os cientistas tinham poucas oportunidades de observar e documentar seus sintomas. Além disso, até essa época – quando o ensino público se expandiu na Europa - , a maioria das crianças não ia à escola – sem dúvida o melhor lugar para observá-las e compará-las.[...] Todavia, sintomas de autismo também podem ser encontrados na pequena produção de livros e artigos sobre crianças selvagens publicados nos últimos 200 anos. (GRINKER, 2010, p. 64-67)

Dentre essas “crianças selvagens”, alguns casos são mais conhecidos, como o de Pedro, localizado em 1724 no que hoje é a Alemanha; Victor de Aveyron, França (1798), tratado por Itard; Kaspar Hauser, encontrado em 1828 em Nuremberg, também na Alemanha, além de Kamala e Amala, achadas em 1920 em uma floresta na Índia. Cabe ainda citar as crianças incluídas por Linnaeus em seu levantamento de “crianças selvagens”: uma em Hesse, em 1644; um “menino-urso” na Lituânia, em 1661 e um “menino-ovelha” em 1672, as quais ele até criou categorias de Loco Jems, com subtipos como mutus (mudo) e hirsutus (hirsuto).

Temos ainda o comentário esclarecedor de Grinker (2010), onde ele nos reporta que

muitas criaturas como essas foram exibidas como excentricidades até a Idade Moderna, quando então outros exotismos , como os boxímanos ( «povo nômade caracterizado pela sua pequena estatura e pele clara, que habita principalmente o deserto de Calaári, no Sudoeste de África», esclarecimento e grifo nosso) e pigmeus africanos passaram a ser apresentados em feiras. (GRINKER, 2010, p. 65)

Na ciência, encontramos uma evidência sobre o estudo do autismo em 1887, feitas por J. Langdon Down, o cientista que também descobriu o distúrbio cromossômico que tem seu nome: ele citava crianças débeis mentais que apresentavam habilidades musicais, artísticas ou matemáticas.

Página 59

Infelizmente, na maior parte do mundo, essa visão de deficiência persiste até o século presente. Se o deficiente não apresenta forma de eficiência comprovada para o bem social – conforme as medidas de outros que não eles –, este não serve para a sociedade (Goffman, 2004, p.5). A esse capacitismo intrínseco na visão social atual é que nos interessamos a desmistificar, mesmo que parcialmente, no presente trabalho, pela história de vida de alguns autistas.

Após consulta exaustiva a diversos trabalhos que investigam o histórico do autismo, foi detectado que, entremeado ao histórico da conformação do diagnóstico do autismo como “doença”, ou “entidade nosológica”, foi mostrado existir uma situação de luta, de grupos armados, de guerra, de tal forma a não permitir que o conhecimento já obtido em uma parte do mundo fosse divulgado à humanidade como um todo; porém o que se observa, ao se aprofundar nos fatos revelados nos últimos tempos, é que na realidade o que ocorreu é que muitos dos estudiosos mais aclamados na verdade foram pervertendo ou minimizando achados de outros pesquisadores, na grande maioria das vezes, para engrandecimento pessoal de alguns em detrimento dos autistas. E a partir daqui, passamos a exemplificar dados que consolidem o dito acima.

2.1 – PRIMÓRDIOS DO ESTUDO: 1908-1930

Segundo Frith (1991), o nome autismo, cunhado por Bleuler, é indubitavelmente uma das grandes criações conceituais e linguísticas da nomenclatura médica. O psiquiatra suíço Eugen Bleuler o fez por volta de 1908, juntamente com a criação do termo esquizofrenia, nos diz que autismo – ou pensamento dereístico, aquele pensamento que é mais baseado em sentimentos do que em lógica - refere-se a um estado onde existe uma perda de contato com a realidade, segundo Frith (1991, p. 38). Mas, apesar da criação do termo e de todo o aparato científico extremamente adequado, tal termo dificilmente era utilizado, pois não era conhecida nenhuma doença, ou síndrome, ou transtorno, que tivesse esse pensamento dereístico conforme elaborara Bleuler (1922).

Da Suíça iremos para a Ucrânia de 1915: nesse ano, forma-se em medicina uma jovem chamada Grunya Iefimovna Sukharewa, que inicia uma jornada pelo seu país com outros epidemiologistas, para verificarem o surto de encefalite que acometia as populações da área rural. Após dois anos de trabalho, ocorre a Revolução Russa, que irá desfazer esse grupo de trabalho, Grunya passa a trabalhar no hospital psiquiátrico de Kiev, capital da Ucrânia. Foi um período conturbado para essa parte do mundo, e mais do que em outras épocas, médicos, principalmente os melhores, precisavam mudar-se com frequência. Em 1921, Grunya passa a

Página 60 trabalhar na Escola de Sanatório Psico-Neurológico e Pedagógico do Instituto de Treinamento Físico e Pedologia Médica em Moscou, sanatório esse que foi aberto para receber as crianças órfãs do país, tanto por conta da Primeira Guerra Mundial (ocorrida de 1914 a 1918), quanto da Revolução Russa (iniciada em 1917, que culminou com a criação da União Soviética em 1921), e com o agravante da epidemia de Gripe Espanhola de janeiro de 1918. Com esse público diferenciado, crianças em geral traumatizadas, a clínica possuía uma abordagem diferenciada do que normalmente se encontraria em um lugar assim : os mais comprometidos ficavam no sanatório por dois ou três anos, recebendo treinamento em habilidades sociais e motoras, tendo aulas de ginástica, desenho e marcenaria, aprendendo a jogar em equipe ou visitando zoológicos e outros locais públicos. Após esse período, muitos estavam em condições de ter uma vida fora do ambiente assistido, seja indo para escolas regulares, ou mesmo conservatórios musicais. Nesse contexto de observação deveras privilegiado é que a cientista russa Grunya Iefimovna Sukharewa Manoullenko e Bejerot (2015) estudava o autismo: em 1924, recebeu um paciente em especial que chamou sua atenção para suas maneiras diferenciadas de agir: falta de sorrir, movimentos exagerados, voz anasalada e os motivos para suas birras constantes. Inicialmente, Sukhareva usava 'autista' conforme a definição criada por Bleuler, porém no ano de 1925 Sukharewa identificou, dentre os demais pacientes recebidos na clínica de Moscou mais cinco meninos que se encaixavam no que ela chamou de tendências autistas : predileção por seu próprio mundo interior ao invés de ter mais contatos sociais, com peculiaridades ou talentos que os diferenciavam sobremaneira dos demais meninos de sua idade, o que em geral os tornavam nada populares entre seus pares.

Ao perceber nessas outras crianças esses mesmos comportamentos distintivos, decidiu tentar caracterizar mais amplamente a palavra autismo conforme Bleuler (1922) a havia inicialmente utilizado, delineando-a e traçando parâmetros que, conforme Manoullenko e Bejerot (2015) referenciam, muito se aproximam do que hoje temos como sendo o diagnóstico de autismo do DSM-V. Uma coincidência assaz interessante, que consta no anexo II para verificação dos leitores.

Página 61

Figura 7 - Grunya Iefimovna Sukharewa

Fonte Genetic Literacy Project

A partir das observações desses seis meninos, publicou em 1925 em alemão seu estudo Die schizoiden Psychopathien im Kindesalter (publicado erroneamente com o nome de G.E. Ssucharewa, cuja primeira página está disponível no anexo III ) no que hoje é considerada a primeira descrição da denominada “Síndrome de Asperger”, conforme Manoullenko e Bejerot (2015).

Cabe lembrar que na Rússia de 1924 – na verdade, já a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, pois esta foi instaurada em 1922 - o regime de governo era o comunismo, sob o stalinismo, um momento de grande tensão política, pois foi quando Stalin expulsou Trotsky do Politburo, o que gerou instabilidade em todos os setores governamentais, inclusive no de pesquisas acadêmicas. Fato é que tanto Sukharewa como Vygotsky, Leontiev e Luria saíram de Moscou para ir trabalhar em Kharkov, na Ucrânia; em 1933, Sukharewa tornou-se chefe do departamento de psiquiatra infantil do Instituto de Psico-Neurologia de Kharkov. Em 1935, defendeu sua tese de doutorado e fundou o departamento de psiquiatria infantil no Instituto Central de Educação Continuada de Médicos, em Moscou, que chefiou até 1965.

Embora a contribuição de Sukharewa para o estudo do autismo é o que mais conhecemos desta cientista, ela fez várias descobertas científicas em outros campos da psiquiatria infantil - seus trabalhos sobre esquizofrenia entre crianças e adolescentes ganharam grande reconhecimento e ela foi a primeira a descrever as características clínicas de formas separadas de doenças psiquiátricas entre crianças e adolescentes (epilepsia e psicopatia).

Página 62

Mas a própria Sukharewa não usou o termo autismo nesse momento - ela definiu a condição como psicopatia esquizoide e depois mudou para psicopatia autista (prevenção patológica). Sukharewa foi a primeira a observar e escrever que essas crianças tinham uma combinação paradoxal de alto intelecto e baixo nível de habilidades motoras. Ela também chamou a atenção dos médicos para o fato de que o cerebelo, gânglios basais e lobos frontais foram o substrato anatômico desse distúrbio - e estudos modernos confirmaram essas observações.

Sukhareva publicou mais de 150 artigos, seis monografias e vários livros didáticos sobre tópicos tão diversos quanto deficiência intelectual, esquizofrenia e transtorno de personalidade múltipla, entre outras condições. Sua equipe avaliou cerca de 1000 crianças durante um período de tempo, e dessa observação e avaliação Sukharewa criou, ao longo de sua vida, escolas semelhantes à forma como funcionava a clínica e sua coirmã, a chamada Escola Florestal ( que ficava nos subúrbios de Moscou), com respeito e dignidade às pessoas com necessidades especiais que ali vinham aportar. Ela também era uma professora talentosa e orientou dezenas de estudantes de doutorado, porém a pesquisa russa como um todo não foi traduzida senão há muito pouco tempo : seus estudos diferenciados do autismo somente chegaram ao ocidente em 1996 (15 anos após o falecimento de Sukhareva, quando a psiquiatra infantil Sula Wolff a redescobriu; a demora a chegarem no Ocidente essas informações provavelmente deu-se em virtude da Guerra Fria, que teve duração desde o final da Segunda Guerra Mundial até 1991, ano que a União Soviética foi desfeita.

Outra informação que achamos pertinente de incluir aqui vem de Grinker (2010, p. 50), referindo-se a Leo Kanner: naquela época (por volta de 1924, grifo nosso), não era fazendo residência psiquiátrica que os médicos se tornavam psiquiatras mas simplesmente trabalhando em instituições para doentes mentais.

2.2 – ESTUDOS NA ÁUSTRIA: 1930-1945

Começamos, portanto, a deslindar os primeiros dos nós que permeiam a descoberta da síndrome autista com a psiquiatra russa Grunya Sukharewa; porém encontramos esclarecimentos mais profundos a partir do artigo de Zeldovich (2018) e de Sheffer (2019), que vem a dar uma luz sobre a controvérsia sobre Kanner e Asperger terem descoberto o autismo ao mesmo tempo: por volta de 1933, o médico Georg Frankl e a psicóloga Anni Weiss, ambos

Página 63 judeus, trabalhavam em uma clínica de psiquiatria infantil em Viena, que ficava dentro do Hospital Infantil e era gerenciada por Erwin Lazar, e que funcionava de forma bastante similar à do sanatório de Moscou. Porém, antes de adentrarmos no trabalho de Frankl e Weiss faz-se necessário detalhar mais como funcionava a Clínica do Hospital Infantil.

Figura 8 - - Prédio da Clínica Infantil de Viena, em visão atual (2019)

Fonte https://www.wienerzeitung.at/ Figura 9 - - Enfermaria de pedagogia terapêutica da Clínica Infantil de Viena, década de 1920

Foto do Site History Psychiatry.com

Lazar tinha uma abordagem diferenciada para sua época: queria criar um novo campo de desenvolvimento infantil, que chamou de Heilpädagogik ou Educação curativa, o qual teria inúmeras disciplinas, criando uma novidade, cujo estabelecimento representaria o há muito buscado objetivo de [combinar] pedagogia, psicologia e medicina científica em medidas iguais. [...] Embora Lazar a chamasse de Educação curativa, ela diferia da Heilpädagogik estabelecida,

Página 64 que era uma abordagem pedagógica da Educação especial na Alemanha, na Suíça e na Áustria datada de meados dos anos 1800. O médico Georg Frankl, que fazia parte da equipe de Lazar, desdenhava dessa tradição, liderada na Áustria por Theodor Heller, alegando que a Educação curativa como ciência não era muito mais que conceito e nome. Lazar queria afastar a abordagem da Educação especial e transformá-la em algo mais parecido com uma psiquiatria clínica e holística. [...]Para Lazar e, mais tarde, para Asperger e seus associados, Educação curativa talvez seja o melhor termo, expressando suas ambições totalizantes. [...]Embora a Clínica de Educação Curativa ficasse dentro do Hospital Infantil, Lazar recebia fundos estatais por meio da seção de escolas elementares do Ministério Imperial da Educação. E a clínica fazia propaganda de seus serviços nos jornais escolares. Era um conceito ambicioso: criar uma rede no interior das instituições estatais, com médicos especializados no centro. Sheffer (2019, p. 28-29). Observa-se que tanto Sukhareva quanto Lazar tinham uma incipiente Educação sociocomunitária permeando seus projetos, conforme detalharemos no capítulo de metodologia. Localizamos uma foto assaz interessante, e com ela obtivemos a informação que toda semana ocorria a Tafelrunde (essa palavra remete à Távola Redonda do Rei Artur), onde os profissionais da clínica se reuniam, à noite, para discutir os casos e trocar ideias de tratamentos adequados.

Figura 10 - - Tafelrunde da Clínica Infantil de Viena (1933: não relatados quanto à posição, mas na foto estão a irmã Viktorine Zak, nomeada enfermeira-chefe por Lazar, Josef Feldner, George Frankl, Anni Weiss, Hans Asperger e outra não identificada.

Foto de Thinking Autism Guide, disponibilizada por Maria Asperger.

Página 65

Por essa e outras informações, o que fica bastante evidente em nossa pesquisa foi que, assim como Sukharewa, a Clínica Infantil de Viena acreditava em uma visão mais holística de tratamento das crianças, menos invasiva, não rotulada em diagnósticos herméticos e imutáveis, e se buscavam alternativas mais próximas da Educação que de um aspecto médico de intervenção: as crianças não ficavam apenas deitadas em camas hospitalares, elas tinham horário de brincar, de estudar, e tinham muito mais liberdade que se esperava em um hospital. Os historiadores do autismo questionam diversas evidências que estão surgindo conforme se pesquisa mais e mais o assunto : por que demorou quase cem anos para que o Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (na sua versão atual de número 5, publicada em 2013, portanto com quatro outras versões desde sua criação em 1952, sendo que o autismo somente entrou na versão 3 de 1980 ! ) chegasse a algo tão próximo da lista de Sukhareva de 1924 ? Ainda mais : Sukhareva não é a única clínica cuja pesquisa foi esquecida, ignorada ou ficou oculta antes que o autismo fosse descrito no DSM-III. O que se questiona é: porque essas visões mais arejadas sobre o autismo, tanto a de Sukharewa como a de Lazar e sua equipe, foram esquecidas, acobertadas, não se tornaram padrão?

À medida que mais material, principalmente do período das Guerras Mundiais ou da extinta União Soviética é localizado, digitalizado e vem a público, fica cada vez mais manifesto que Kanner e Asperger podem precisar dividir os créditos pela “descoberta” do autismo com vários outros autores; alguns, por sua vez, bastante próximos deles. Aqui cabe um adendo importante: estamos em Viena, berço da psicanálise. A cidade tinha uma enormidade de psicanalistas desbravadores, desejosos de ajudar as crianças consideradas necessitadas, como August Aichhorn, Charlotte Bühler, Helene Deutsch, Anna Freud, Hermine Hug-Hellmuth e Melanie Klein. Apesar da ideia generalizada de que psicanalistas somente ouvem problemas superficiais de pessoas de classe alta, tal não era a realidade naquele momento: existia uma missão social bastante desenvolvida entre esses profissionais na Viena da década de 1930. Essa grande quantidade de profissionais atuando no mesmo espaço permitia e encorajava trocas de informações entre os psicanalistas e psiquiatras da cidade. Porém, nem tudo eram flores: segundo Sheffer (2019)

a prática da Educação curativa como conduzida por Lazar convivia de maneira desconfortável com a psicanálise vienense.[...] O médico Georg Frankl, da equipe de Lazar, escreveu vários artigos defendendo a ala contra as acusações dos psicanalistas, que diziam que a Educação curativa era sem método e pouco original , um mero mosaico formado por incontáveis pedaços de outras ciências. (SHEFFER, 2019, p. 34)

Página 66

É nesse momento controverso (1929, que o diretor do Hospital Infantil, Clemens von Pirquet, se suicida e um simpatizante do nazismo ascende a essa posição : o pediatra Franz Hamburger, que, ao longo de sua gestão, demitiu muitos médicos judeus e liberais do Hospital, sendo Lazar um dos poucos restantes (ficando até sua morte em 1932). Uma das primeiras contratações de Hamburger foi Hans Asperger (25 anos, recém- formado em medicina e um dos alunos prediletos de Franz Chvostek, o homem que fizera o papel político para que Hamburger assumisse a direção do Hospital de Viena; Asperger se tornaria aluno de pós-doutorado de Hamburger dali a 2 meses. Estamos no ano de 1931, no dia primeiro de maio. Vem também para a equipe Erwin Jekelius, entusiasta nazista filiado ao partido em 1933, outro que será aluno de pós-doutorado de Hamburger, e que trabalhará com Asperger por cinco anos. Franz Hamburger se filiou ao Partido Nazista em 1934, ano de graves conturbações políticas na Áustria: nesse momento o partido Nazista era ilegal, e em fevereiro desse ano houve uma guerra civil nesse país, onde vieram a falecer 1500 pessoas e mais 5000 ficaram feridas em apenas 4 dias de luta. Em 10 de maio de 1934,

Asperger se filiou à Frente Patriótica e passou a apoiar o novo regime austro fascista; ele tinha sólidas credenciais de extrema direita e era membro de várias organizações antiliberais, antissocialistas, antimodernistas e antissemitas. Além da Frente Patriótica, em 1934 ele se filiou à Associação de Médicos Alemães na Áustria, que promovia os objetivos nacionalistas alemães. Para reduzir o papel dos judeus na medicina, por exemplo, a associação tentou impor cotas para estudantes judeus e compilou listas de médicos supostamente não arianos que, mais tarde, foram usadas para as purgas judaicas sob o governo nazista. [...] Como muitos médicos na época, Asperger era um autoproclamado eugenista.

(SHEFFER, 2019, p. 39-40)

Figura 11 - Equipe da Clínica Infantil de Viena (1933 – o único identificado é Hans Asperger, o último sentado à direita. Possivelmente Jekelius seja o segundo sentado da

Página 67

esquerda para a direita, e Anni Weiss seja a mulher atrás de Asperger, com Frankl ao seu lado

Fonte: Segunda Guerra.org

Desde o outono de 1932 (data do falecimento de Lazar) Asperger faz parte da Clínica de Educação Curativa, juntamente com Georg Frankl, psiquiatra sênior, os psicólogos Anni Weiss e Josef Feldner, e a enfermeira Viktorine Zak, além do interno Erwin Jekelius; exatamente nesse mesmo mês de maio de 1934 Asperger, com um ano e meio fazendo parte da equipe e nunca tendo publicado nada sobre o que se fazia ali, é guindado à direção desta por Hamburger. Continuando com Sheffer (2019), temos que:

O próprio Asperger reconheceu sua inexperiência no campo. Após a guerra, ele deu crédito aos muitos anos de serviço de Georg Frankl e ao médico Josef Felder — que já trabalhava na clínica havia quatorze anos quando ele assumiu — por ter desempenhado papel especial como meu professor. Mas, presumivelmente, Hamburger se sentia mais confortável com Asperger como chefe do departamento que com os veteranos de Lazar. Além disso, Georg Frankl era judeu. (SHEFFER, 2019, p. 45)

Porém sua atuação é considerada inócua, e para exemplificar trazemos uma citação sobre o trabalho dessa clínica obtida de Sheffer (2019):

As publicações da equipe na década de 1930 não se referem a ele, embora fosse diretor da clínica, continuando a prestar tributos a Lazar. E não se tratava

Página 68

apenas de política departamental. Quando, em 1935, o psiquiatra de Boston Joseph Michaels escreveu um extenso artigo para o American Journal of Orthopsychiatry detalhando as operações da Clínica de Educação Curativa — dos horários da higiene matinal à ginástica —, ele reconheceu a importância do regime Lazar e de Viktorine Zak no texto e de Georg Frankl e da psicóloga Anni Weiss nas referências, mas não mencionou Asperger, o diretor titular. (SHEFFER, 2019, p. 45)

E é justamente a trajetória de Frankl que iremos seguir, a partir de agora : tanto Frankl como Weiss descreveram crianças autistas (pelo menos uma década antes de Kanner e Asperger) em seus relatórios : Frankl apontou uma desconexão entre expressões faciais, linguagem corporal e fala , e Weiss se concentrou em inteligência oculta, fixações e problemas de comunicação , e verifica-se, segundo Robison (2016) que, com relação aos escritos de Asperger, as últimas descrições da “psicopatia autística” são muito similares a algumas das crianças que Weiss descreveu nos seus textos de 1930.O foco de Asperger na personalidade e o uso do termo “psicopatia autística” fora anteriormente informado no livro de psicopatias de Lazar de 1927.Frankl teria dito a Asperger sobre os problemas de linguagem e mostrado a ele seu texto de 1933 “Ordenando e Obedecendo”. A escolha mais tarde da palavra psicopatia mostra que ele acreditava que as crianças tinham uma desordem de personalidade, como tinha dito Weiss. Nos seus próprios escritos, Frankl explorou razões neurobiológicas para os comportamentos observados – uma explicação precoce de acordo com o pensamento atual. A pressão sobre os judeus se intensifica mais e mais, e em 1934 começam as demissões em massa: inicialmente com as mulheres, e Weiss foi uma das primeiras a ser demitida. Como falava inglês, rapidamente mudou-se para os EUA e encontrou um emprego na Universidade de Colúmbia, em Nova York, onde ficou por três anos. Após ajustar sua vida, procurou uma forma de trazer Frankl, com quem tinha um relacionamento; mas para isso precisava de ajuda na comunidade judia, ajuda esta que encontrou em Leo Kanner, um judeu austríaco que ensinava na Universidade John Hopkins, em Baltimore, no estado de Maryland, mas que já havia morado em Berlim e compreendia o momento que os demais judeus da Europa estavam: foram cerca de 200 os médicos judeus, incluindo Frankl, que Kanner ajudou a fugir da Europa, inclusive fazendo pressão para que o estado de Maryland facilitasse as regras de licenciamento para judeus médicos vindos da Europa. Frankl chegou aos EUA em 1937 e casou-se com Weiss seis dias depois.

Acreditamos ser necessário falar um pouco mais ainda sobre os trabalhos escritos de Frankl e Weiss: conforme Sheffer (2019):

Página 69

Em um artigo de 1937, Frankl enfatizou que o distanciamento e a desobediência dos jovens não representavam as verdadeiras emoções por trás de seus rostos parecidos com máscaras, que podiam frequentemente levar a sérios mal-entendidos. E argumentou que essas características não representavam uma patologia: Nenhuma doença foi descrita aqui, antes uma disfunção que pode ocorrer em várias doenças e ser acompanhada de várias outras disfunções. Ele distinguiu as crianças que descrevia daquelas que via como muito mais deficientes, que tinham extremo autismo (Autismus; ênfase no original) ou estavam autisticamente presas .25 Frankl listou várias condições que podiam levar a idiossincrasias sociais mais amenas, mas ressaltou que, entre as dez crianças que estudara, metade dos casos tinha causas pouco claras, com as características tendo se desenvolvido no início da infância e permanecido estáveis.

Em 1935, Anni Weiss devotou um longo artigo às crianças com desafios sociais. Ela fez as mesmas observações que Asperger faria três anos mais tarde, embora com muito mais compaixão. Weiss focou no caso de Gottfried K., de 9 anos, cuja avó o levara à Clínica de Educação Curativa por causa de seu extremo nervosismo e seu comportamento estranho e incorrigível no trato com outras crianças[...]Como Frankl, Weiss enfatizou a integridade inerente do menino.[...] Perto do fim do artigo, Weiss mencionou que jovens como Gottfried podiam apresentar habilidades incomuns, sugeriu esses traços no contexto de ajudar a criança a, mais tarde, sentir-se bem-sucedida na vida, e deu às crianças com interesses estritos o crédito por sua assiduidade e confiabilidade , assim como por sua capacidade para a ordem e a classificação. (SHEFFER, 2019, p. 47-48)

A partir do relato dos artigos de Weiss e Frankl, vemos que ambos têm bastante pontos em comum: há evidente dificuldade por parte dessas crianças de contato social, de fazer ligações emocionais, há ênfase na ingenuidade e moral elevada; nenhum deles dá um diagnóstico para esse comportamento específico, e nenhum deles menciona Asperger como colaborador, embora fosse o diretor da Clínica Infantil onde ambos trabalhavam, e onde foi feita a pesquisa que originou esses artigos. Na verdade, Weiss deu crédito a Lazar, que falecera seis anos antes da publicação do artigo. Aos poucos, portanto, a equipe da Clínica foi se dissolvendo : Weiss nos EUA, Jekelius vai trabalhar no departamento de saúde municipal no hospital Spiegelgrund (diz-nos ainda Sheffer (2019) que “sob o Terceiro Reich, Jekelius se tornaria a mais proeminente figura da eutanásia infantil e adulta em Viena, dirigindo os centros de morte de Spiegelgrund e Steinhof.” (SHEFFER, 2019, p. 37-38). Restaram naquele momento, portanto, apenas Asperger e Frankl como médicos na clínica. Nesse momento Asperger ficando apenas Asperger e Frankl como médicos na clínica. Nesse momento Asperger escreveu sua visão do autismo, divergindo da visão de Frankl (que acreditava existir uma situação neurobiológica como causadora dos comportamentos autistas),

Página 70 aproximando-se mais dos escritos de Weiss (que, lembramos, não fazia mais parte da equipe). A situação foi se precarizando cada vez mais para os judeus, e em 1937 a situação beirava o insustentável. Foi quando chegou a oferta de trabalho de Kanner com o visto de entrada para os EUA para Frankl; o visto austríaco chegou em seguida, e 4 dias depois ele estava em um navio para os Estados Unidos, chegando a Nova York em 16 de novembro de 1937. Logo tornou-se um dos principais médicos da clínica de Kanner, que publicamente elogiou seus 12 anos de trabalho na clínica de Viena. E somente no outono seguinte é que Kanner recebeu seu paciente número 1, Donald Triplett. Depois de fazer uma avaliação inicial, Kanner repassou o paciente para Frankl, que, juntamente com a dra. Eugenia Cameron, estudou o paciente por duas semanas, ainda sem ter um diagnóstico firmado. O prontuário de Tripplet no John Hopkins não menciona a palavra autista após essa visita inicial de 1938.

Retornando a observar como estava Viena, em 1938 foi a primeira vez que Asperger deu uma palestra e usou o termo psicopatia autista, dizendo à plateia que mesmo comprometidos, indivíduos autistas mais brilhantes poderiam ser úteis, até mesmo essenciais para a humanidade. Ele também apresentou o que depois chamou de espectro autista, dizendo as diferenças entre as crianças estudadas e seus diversos níveis de habilidades cognitivas. Para os mais prejudicados, Asperger falou em “escolhas difíceis que os médicos deveriam enfrentar para manter os genes ruins fora da sociedade”. Tudo isso Asperger apresentou como se fosse seu trabalho original, mas era tudo evidentemente baseado em Bleuler, Lazar, Frankl e Weiss. Sua visão divergia, porém, em um ponto nevrálgico: enquanto glorificava os psicopatas autistas e suas habilidades, descrevia de forma severa os mais comprometidos, chamando-os de imbecis e considerando que eles não tinham valor algum para a sociedade, tudo de acordo com o momento político que Viena enfrentava. Porém, é necessário deixar uma nota encontrada:

Eu sei que também podemos saber muito e trabalhar bem, mas também penso em como o Dr. Frankl tenta produzir um diagnóstico pedagógico-curativo ou no fato de que realmente temos bons conceitos de trabalho, mas que os expressamos em um jargão, em virtude do qual entendemos, por exemplo, qualquer outra coisa (pense em autista!), que pode ser difícil de entender. (ASPERGER apud CASTELL, 2008, p. 102-103)

Compete aqui um comentário: o livro de Donvan e Zucker (2017), bastante consistente e com a maior quantidade de informações e exemplos, apresentou de forma diferenciada, ou seja, não por uma linha do tempo tradicional, o que ocorreu na descoberta do autismo primeiramente nos EUA, e posteriormente na Inglaterra. Optamos por uma abordagem mais tradicional, onde colocamos todos os fatos conforme o ano que ocorreram, independentemente da geografia, pois este não foi o único livro que nos baseamos para escrever este texto.

Página 71

2.3 – AUTISMO NOS EUA: 1930-1945

Cabe deixar aqui registrado que, segundo Robison (2016), os Estados Unidos foram mais lentos para adotar o pensamento europeu sobre a psiquiatria infantil: os austríacos, alemães e suíços estabeleceram suas clínicas no início do século XX, e somente após 20 anos é que a Universidade John Hopkins estabeleceu tanto uma clínica psiquiátrica infantil como um programa de ensino. Leo Kanner, judeu austríaco, tornou-se diretor dessa clínica em 1930. E, até o momento, falamos várias vezes em Leo Kanner, mas sempre de passagem. Leo Kanner, austríaco, judeu, entrou na universidade de medicina em 1913, obteve seu diploma em 1921 em Berlim (serviu no exército no meio desse tempo). Trabalhou na Charité, que era a Escola de Medicina e Hospital da Universidade de Humbolt, em Berlim, como professor assistente, quando um médico norte-americano (que estava lá fazendo sua pós-graduação) convenceu-o a emigrar para os Estados Unidos. Em 1924, Kanner assumiu uma vaga de médico assistente no Hospital Estadual em Yakton, Dakota do Sul. Sua especialização em psiquiatria pediátrica não foi em sala de aula, foi em estudos próprios, como era o habitual naquele tempo. Em 1930, já na Universidade John Hopkins, foi diretor do primeiro serviço de psiquiatria infantil em um hospital pediátrico, ficando no cargo até sua aposentadoria em 1959. Em 1953, foi ser professor na Universidade, mas somente em 1957 ele foi professor de psiquiatria infantil.

A autora Sheffer (2019) traz um comentário que deve ser lido com atenção:

A conexão de Weiss e Frankl com Leo Kanner é um capítulo intrigante de como o autismo foi concebido nos Estados Unidos. Leo Kanner, renomado fundador da psiquiatria infantil americana, foi o primeiro no país a definir o autismo como diagnóstico independente. (SHEFFER, 2019, p. 50)

E é a partir dessa frase que continuaremos a tecer comentários sobre a saga do diagnóstico do autismo.

Três anos se passam: Frankl se estabeleceu como psiquiatra infantil nos EUA, fazendo parte da equipe de Kanner, revisando todos os casos anteriormente atendidos por este, e ambos ainda buscam um diagnóstico para Triplett. É importante deixar registrado que, após aquela primeira consulta, o pai de Donald Triplett havia redigido uma carta de 33 páginas (em espaço simples) contando as condições apresentadas pelo filho e enviado-a para Kanner, conforme nos contam Donvan e Zucker (2017, p. 41).

Página 72

Aqui cabe colocar integralmente uma nota de rodapé dos autores acima, para melhor aclarar a forma como estes tratam de Kanner, Asperger e Frankl:

Quando este livro estava prestes a ser publicado, o jornalista Steve Silberman publicou o seu livro Neurotribes. Nele, relatou a sua descoberta inicial de que um tcheco especialista em diagnóstico chamado Georg Frankl, que trabalhou com Kanner em Baltimore nesse período, trabalhara antes com o pediatra austríaco Hans Asperger em Viena. Silberman afirma que, por intermédio de Frankl e pelas suas próprias leituras de publicações médicas em alemão, Kanner devia saber que Asperger já havia empregado o termo “autista” em data recuada como 1938. Achamos intrigante a descoberta de Silberman da conexão de Frankl com os dois homens. Além disso, a sua teoria segundo a qual Kanner incorporou aspectos do pensamento de Asperger ao seu modelo de autismo, sem lhe dar crédito, não pode ser descartada como possibilidade. Contudo, também parece plausível que Kanner, como Asperger, tenha tomado emprestado o termo autista do psiquiatra suíço Eugen Bleuler, que sabidamente o empregou em 1911 para designar comportamentos observados na esquizofrenia. Em uma palestra de 1965, Kanner disse exatamente isso. Ademais, embora os dois chamassem os casos que estudavam de “autistas “, eles se concentravam em populações diferentes de crianças, e as condições que descreveram divergiam em vários aspectos importantes.

Em todo caso, foi o uso de Kanner do termo autista — não o de Asperger, que era pouco conhecido fora do mundo germanófono — que desencadeou o complexo encadeamento de acontecimentos que constituiu a história do autismo tal como a viveram e entenderam milhares de famílias nas décadas subsequentes. Essa é a história que contamos. (DONVAN e ZUCKER, 2017, p. 556)

Kanner, finalmente, publica seu artigo sobre autismo, em 1943, e dentre os 11 casos descritos, um deles, o caso 8, Alfred L., foi atendido por Kanner, em 1935 (época em que Weiss trabalhava para ele, e não tinha tratado ou dado um diagnóstico até a data da publicação do artigo. Tal fato, acrescido da revisão sistemática de todos os casos anteriores à sua chegada, sugere fortemente a interferência positiva das novas ideias trazidas por Frankl nos atendimentos da psiquiatria infantil do Hospital John Hopkins: ele estava ciente dos termos autista e psicopatia usados por Bleuler para descrever um certo tipo de crianças. Também é digno de ser citado que Asperger utilizou os mesmos termos, usados, na verdade, na Clínica Infantil desde 1934. É provável que este tenha conhecido esses termos do seu mentor Frankl, que por sua vez aprendeu-os com Bleuler. Não é possível determinar as conversas ocorridas entre esses três profissionais, mas é bem plausível que Frankl tenha sugerido a mesma coisa para Kanner. Este último cita Bleuler como sua fonte para o uso da palavra autista. Em 1941, Kanner concordou que esse conceito descrevia perfeitamente o menino Donald, bem como o comportamento de algumas crianças que passaram pelo John Hopkins, e a pesquisa de ambos estabeleceu como importante o termo contato afetivo , o que provavelmente foi seu último trabalho juntos : o salário de Frankl não era dos melhores no John Hopkins, e diversas vezes Kanner recomendou-

Página 73 o para posições melhores remuneradas, o que foi obtido em 1941. O artigo na revista Nervous Child de 1943 de Frankl foi enviado para publicação nessa época, e no título e no corpo do texto já continha o termo contato afetivo. O artigo de Kanner de 1943 não cita nenhuma fonte, segundo Robison (2016); seus artigos posteriores de 1949 o fazem, e Kanner declara que a sua não foi a primeira descrição dessas características. Porém, apesar do texto de Kanner ser considerado a pedra fundamental do diagnóstico do autismo, ele somente utilizou autismo como definição em um artigo em 1948. Porém, encontramos a seguinte citação:

Podemos então argumentar que todas as pessoas nascem da mesma forma em relação à capacidade de formar contato emocional? O Dr. Frankl tenta responder a essa pergunta do ponto de vista da relação entre desenvolvimento da linguagem e contato emocional, ilustrando essa relação com os exemplos de mutação surda, afasia congênita, linguagem infantil e cães, um caso de esclerose tuberosa e parkinsonismo adquirido. (KANNER, 1943, p.216)

2.4 – RETORNO A VIENA: 1937-1948

Em Viena, Asperger tinha uma visão da psicopatia autística como um distúrbio de personalidade, uma vez que estava se baseando nos escritos de Lazar e Weiss. Já na América, Frankl e as hipóteses neurobiológicas de Kanner se firmaram; apontemos que, para uma pessoa autista o conceito de diferença neurológica é mais saudável e mais construtivo do que a explicação comportamental de Asperger. Enquanto Kanner escrevia contra a eutanásia de pessoas danificadas quando isso foi discutido em revistas médicas norte-americanas, em Viena a situação era diferente : o regime político era o do III Reich, portanto discorrendo sobre supremacia racial, crianças com deficiência cognitiva eram consideradas comedores inúteis , servindo apenas para esvaziar os cofres do Estado e das respectivas famílias, quando o momento era de obter mais e mais recursos para ganhar a guerra. As leis nazistas obrigavam os médicos a relatarem defeitos de nascimento, deficiências cognitivas, cegueira e até surdez. Os pais eram fortemente incentivados a colocar esses filhos em clínicas residenciais, para o bem da família e do Estado. E, uma vez institucionalizadas, essas crianças eram sistematicamente mortas por administração de venenos, administração de medicamentos que induziam doenças fatais ou de fome. Havia vários centros de extermínio nos hospitais austríacos, e Spiegelgrund, sob a direção de Jekelius, antigo membro da Clínica Infantil, era o maior deles, e os atestados de óbito dessas crianças em geral vinham com a informação de morte por doença súbita, muitas vezes pneumonia.

Página 74

Essa era uma época em que pais de crianças deficientes as escondiam, tinham vergonha de seus filhos com necessidades especiais, e a morte deles era uma bênção disfarçada para as famílias. Em 1942, grande parte da população austríaca com QI – quociente de inteligência - considerado inferior (abaixo de 70) foi sistematicamente exterminada: a partir dessa informação, verifica-se que as crianças pesquisadas por Asperger eram todas de alto desempenho, uma vez que estes seriam úteis para o Reich. Mas é necessário ver todo esse trajeto e discussão de uma perspectiva mais global: ambos trabalhavam em diferentes países, estavam em lados opostos de uma guerra, e, obviamente, um lado venceu essa guerra. Esse lado teve seu diagnóstico validado, suas práticas médicas consideradas as mais corretas, e ao outro lado coube o esquecimento. Como sabemos, a história é escrita pelos vencedores e, na presente situação, os maiores perdedores foram os judeus.

2.5 – SEMELHANÇAS E DISCREPÂNCIAS ATÉ 1960: VISÕES DE KANNER E ASPERGER.

Como os Estados Unidos ganharam a guerra, essa foi a teoria que prevaleceu até que, em 1970, Lorna Wing, pesquisadora inglesa, redescobriu os escritos de Asperger – que não tinham sido traduzidos do alemão até então ( feito executado por seu marido, que sabia alemão) – e efetivou um dos maiores estudos sobre a então chamada psicose infantil em terras inglesas: mapeou um bairro inteiro, Camberwell e, baseado nas anotações do artigo original de Asperger, consolidou o que foi chamado por ela de Síndrome de Asperger. Porém, conforme Klin (2006), o primeiro grande estudo epidemiológico sobre autismo foi feito em 1966 por Victor Lotter, no condado de Middlesex (sendo condado o equivalente a comarca no Brasil), que fica à noroeste de Londres, chegando aos números de 4,5 em 10.000 crianças. Entretanto, seus parâmetros ainda eram restritos àqueles criados por Kanner; tal situação foi melhorada pelo trabalho de Wing e Gould (1979), no bairro de Camberwell, em Londres, já baseado no conhecimento de Asperger que autismo seria uma síndrome com um continuum superior àquele dito por Kanner, portanto mais abrangente que a pesquisa inicial de Lotter. Foi, principalmente, graças a esse estudo que foi introduzida no DSM-IV a Síndrome de Asperger, ainda dentro dos Transtornos Globais do Desenvolvimento, mas diferente do autismo clássico de Kanner.

Página 75

Tínhamos, então, a essa altura, duas definições – bastante díspares, por sinal – do que seria autismo (pois tanto Asperger quanto Kanner o haviam chamado de autismo, do mesmo modo que a, até então desconhecida, Sukharewa (que somente teve seu trabalho redescoberto em 1996, quando foram traduzidos vários estudos seus para o inglês por Susan Wolff, conforme nos dizem Manoullenko e Bejerot (2015)), ao que observavam em seus pacientes : enquanto os pacientes de Kanner apresentavam “deficiência mental associada em mais de 40%, pouca ou nenhuma existência de comunicação verbal (apenas 2/3 desenvolveriam a fala), prejuízo grave na imaginação e na socialização” (KANNER, 1972, p. 737-740), os de Asperger tinham convívio social inibido, inteligência preservada, com interesses geralmente voltados a um único interesse (hoje chamado de hiperfoco), dificuldade de compreensão de situações verbais que não fossem denotativas” (ASPERGER, 1944/1991, P. 72) . Como podemos verificar, existiam diferenças significativas entre ambas as populações observadas por eles. Para sanar essa discrepância, em 1985, foi incluído do DSM-IV, no capítulo voltado aos Transtornos Globais do Desenvolvimento, mas ainda sob a denominação autismo, a Síndrome de Asperger, sob número F84.5, sendo o autismo de Kanner (somente denominado autismo) sob número F84.0.

E aqui cabe uma frase bastante contundente de Silberman (2017): Para muitos médicos de ponta, receber crédito por descobertas inovadoras superou o bem-estar de seus pacientes.

2.6 – O MITO DA MÃE-GELADEIRA: EUA, 1948.

Mas estamos nos adiantando: apesar de Kanner estar no autodenominado centro do mundo, sua teoria não deslanchou (nem nos meios científicos nem nos populares) até a publicação na revista Life, de 26 de abril de 1948, de que autismo é causado por mães que não amam seus filhos , as então denominadas mães-geladeira. Deixamos aqui anotada a frase abaixo, “As crianças, diz o Dr. Kanner, foram mantidas em uma geladeira que não foi descongelada”. 8

Donvan e Zucker (2017), fizeram uma pesquisa assaz abrangente sobre a história do autismo que culminou na publicação do livro Outra Sintonia, bastante utilizado no presente trabalho. Também é digno de nota que utilizamos o trabalho da brasileira Parreira (2015), autora que possui síndrome de Asperger, psicóloga e palestrante nessa parte histórica do autismo.

8 A referida reportagem integral em inglês, com tradução mecânica em português está no anexo I do presente trabalho.

Página 76

Segundo Donvan e Zucker (2017, p. 92), Bruno Bettelheim, também austríaco e judeu, com graduação desconhecida e doutoramento em História da Arte pela Universidade de Viena9, reinventou-se ao chegar aos Estados Unidos como um psicólogo, e logo foi guindado ao estrelato : a partir desse fato criou vários livros, dentre eles A Fortaleza Vazia, onde tecia comentários como os abaixo, que tornaram-se populares, e criaram uma visão – deturpada, indigna e viciosa – do que seriam os autistas, e consequentemente suas famílias disfuncionais. Reiterando; Bruno Bettelheim não tinha formação médica, ou psicológica, mas tornou-se o expoente que ditava as normas sobre autismo nos EUA. À página 93 do livro de Donvan e Zucker (2017) encontramos a frase: “Como mostrou Richard Pollak, seu biógrafo mais crítico, Bettelheim era um prolífico maquiador da verdade”.

O mesmo Pollak (apud Donvan e Zucker, 2017) a seguir informa que este biógrafo encontrou numerosos exemplos de exageros ou omissões de fatos importantes de sua obra e vida. Chegado em 1939 nos Estados Unidos, “fez sua carreira através de seu senso de humor, charme, inteligência e energia” (DONVAN e ZUCKER, 2017, p. 92). Em 1950 a Universidade de Chicago o colocou na direção da Escola Ortogênica Sonia Shankman, que era, na verdade, um laboratório operativo para o desenvolvimento de novos métodos de tratamento das crianças perturbadas que viviam entre suas paredes em caráter permanente. (idem, p. 94). Também escrevia artigos para revistas sobre aconselhamento infantil, bem como fazia encontros mensais com cerca de cinquenta jovens mães daquela cidade para orientá-las na criação de seus filhos. “Ele era Deus, nós o idolatrávamos”, disse uma mãe a Richard Pollak (idem, p. 94). Em resumo, de três grandes biografias de Bettelheim, os autores trazem a seguinte pergunta sobre ele: como um comerciante de madeira austríaco com doutorado em história da arte veio a ser reconhecido como um eminente psicólogo infantil e o maior especialista do mundo em causas do autismo. E afirmam em seguida: A resposta continua sendo vaga. (idem, P. 95).

Ao buscarmos maiores informações sobre a dicotomia de informações que encontramos sobre Bettelheim, encontramos:

Não se pode evocar a vida e a obra de Bruno Bettelheim sem levar em conta o escândalo que estourou nos Estados Unidos algumas semanas depois de sua morte. Em consequência da publicação, em alguns grandes jornais, de cartas de ex-alunos da Escola Ortogênica de Chicago, que ele dirigira durante cerca de 30 anos e que acolhia crianças classificadas como autistas, a imagem do bom Dr. B., como era chamado, se apagava por trás da figura de um tirano brutal, que fazia reinar o terror em sua escola. Lembrou-se então que ele não

9 Outra fonte, Roudinesco e Plon (1998) afirma que ele fez doutorado em Estética em 1938, mas afirmava ter feito doutorado em Filosofia

Página 77

aceitava nenhum visitante, a não ser, e em condições muito restritivas, as famílias das crianças que ali estavam. Os termos de impostor, de falsificador e de plagiário se somaram ao de charlatão. (ROUDINESCO e PLON, 1998, p. 63)

Hoje sabemos que Bruno Bettelheim foi acusado post-mortem de plágio: seu livro “A Psicanálise dos Contos de Fadas” possui passagens inteiras de “Os usos do encantamento de um livro” do psiquiatra Julius E. Heuscher, mas não deu crédito a esse autor. Porém, outra personagem da história do autismo é necessária ser apresentada: é necessário que explicitemos um pouco mais sobre Bernard Rimland, judeu, filho de russos analfabetos, nasceu nos EUA e formou-se em psicologia na Universidade de San Diego. Foi o primeiro Mestre em Psicologia dessa universidade, e três anos depois doutorou-se na Universidade Estadual da Pensilvânia, em 1953, voltando para San Diego para clinicar. Pai de um autista, Rimland tinha uma visão mais suave e mais amável sobre o autismo, e expôs a falta de dados dos artigos até então publicados sobre o tema autismo, pois não achou nenhum respaldo científico ou estatístico que comprovasse isso, bem como “considerou que o nível de erudição dos artigos era baixíssimo” (DONVAN e ZUCKER, 2017, p. 121).

O doutor Leo Kanner, após ter sido elevado ao status de especialista em autismo, renegou sua afirmativa em que falava sobre as mães geladeira, mas o estrago já estava feito: até hoje, ano de 2019, encontramos teóricos que utilizam suas teorias defasadas em seu dia-a-dia clínico.

A partir desse ponto, para corretamente embasar as afirmativas – contundentes, considero – passamos a disponibilizar trechos e excertos de artigos e livros estudados na presente pesquisa. Em seu livro Psiquiatria Infantil, obtido em língua espanhola, à pag. 737, Kanner (1972) inicia o item Autismo Infantil Precoz com a seguinte citação:

Em 1943 comuniquei onze casos de meninos que denotavam tendência ao retraimento antes de haver cumprido um ano de idade. Propus denominar a doença de autismo infantil precoce. Desde então temos visto na clínica mais de cento e cinquenta meninos autistas, e se publicaram muitas observações similares de outros professionais.

A maioría dessas crianças foram levadas à clínica com o diagnóstico de fraqueza mental intensa ou deficiência auditiva. Os testes psicométricos registraram índices de inteligência muito baixos e a falta de reação aos sons, ou resposta insuficiente, confirmou a hipótese da surdez; mas um exame meticuloso mostrou que o distúrbio básico ocultava a capacidade cognitiva das crianças. Em todos os casos, foi estabelecido que não havia deficiência auditiva.

Página 78

O denominador comum desses pacientes é sua incapacidade de estabelecer conexões comuns com pessoas e situações desde o início da vida. (KANNER, 1972, p. 737)

2.7 – ALGUÉM PARA DEFENDER OS AUTISTAS EM SOLO AMERICANO: RIMLAND (1958-1960)

Na época que o livro Fortaleza Vazia de Bettelheim foi publicado, Bernard Rimland, em seu livro Autismo Infantil ( livro este cuidadosamente pesquisado e documentado) começara a estabelecer o que há muito fora aceito nas comunidades médica e terapêutica, principalmente fora dos EUA, mais particularmente na Inglaterra: o autismo seria um distúrbio do desenvolvimento originário de falha genética, lesão ou doença cerebral. Não havia evidências científicas capazes de apoiar as alegações de Bettelheim de que o tratamento dos pais (a falta de atenção das mães, em especial) é sempre o fator causador do transtorno autista. Rimland era, também, pai de uma criança com autismo; talvez essa situação particular o tenha feito ver a situação autista com um olhar diferenciado, da pessoa que está dentro da situação consegue discriminar com mais minúcia : talvez, nesse particular, a isenção científica deva dar espaço ao sentimento parental, uma vez que as grandes descobertas nessa área foram feitas principalmente por familiares de autistas, sendo Rimland e Wing os maiores expoentes. Rimland não concordava com o que Bettelheim havia escrito, pois não localizou nestes textos embasamento científico em suas afirmações tão contundentes; para poder contestar devidamente esses escritos, Rimland fez um trabalho hercúleo de coleta de dados, no período de 1958 a 1960, lendo todos os artigos que encontrou que falavam sobre autismo, e obteve cerca de 230 casos relatados mais detalhadamente, de onde observou que

...quase todas as mães de filho com autismo também tinham e criavam filhos que não apresentavam o transtorno. Era absurdo que essas mulheres, supostamente mais venenosas que uma vespa, picassem só uma vez. Rimland também se deu conta do fracasso completo da psicoterapia em fazer com que o autismo desaparecesse. Presumivelmente, uma doença psicogênica na origem devia ceder a semelhante tratamento. (DONVAN e ZUCKER, 2017, p. 122)

Outro ponto bastante incisivo e reforçado por Bettelheim para as mães-geladeira era que elas eram apáticas no trato com seus filhos; para Rimland, as respostas apáticas das mães eram apenas de exaustão e confusão do que se dizia sobre elas; no entanto, outra possibilidade que lhe ocorreu foi a de os comportamentos observados nos pais serem

Página 79

indícios de um componente genético do autismo. Foi o primeiro teórico a verificar essa possibilidade, em 1960, muito antes dos estudos genéticos em gêmeos de Rutter e Folstein, efetuado na Inglaterra, publicado em 1977.

2.8 – A METODOLOGIA ABA – 1958-1965

Porém, ao mesmo tempo que Rimland fazia sua pesquisa de artigos sobre autismo, outro profissional da área, desta vez um psicólogo clínico nascido na Noruega mas que fez sua faculdade de Sociologia nos EUA, mestrado em Psicologia Clínica em 1955 e doutorado em Aprendizagem e Psicologia clínica em 1958, tornando-se professor da UCLA – Universidade da Califórnia em Los Angeles - a partir de 1961, pôs-se a trabalhar com autistas e criou sua própria metodologia a que chamou ABA - Análise do Comportamento Aplicado (Aplied Behavior Analysis). Segundo ele, seu método permitia que 47% das crianças autistas obtivessem progressos significativos, mas 10% ainda apresentariam atraso de linguagem e 10% não melhorariam. Em 1959, utilizava LSD10 no tratamento de crianças autistas, mas como não obteve resultados satisfatórios, além da estigmatização do LSD e da dificuldade de sua obtenção, tais estudos foram abandonados. Em seus estudos iniciais, de 1964, usava reforço negativo como chão eletrificado. Em 1965, introduziu aguilhões de gado na referida metodologia. Era um método intensivo, de trabalho semanal de no mínimo 40 horas, mas em geral trabalhava-se com as crianças por 60 horas semanais. O anexo II traz fotos da reportagem da revista Time sobre seu método, com fotos de crianças sendo “tratadas” pelo referido método. Porém, a referida metodologia não teve muita aceitação por uma série de fatores : seu alto custo 11 , principalmente pelo fato que os técnicos ficavam em trabalho direto com as crianças por 60 horas semanais, durante todos os dias da semana; estes mesmos técnicos somente eram treinados em Los Angeles, dificultando o crescimento da metodologia, e o fato principal, reconhecido mesmo por Lovaas, era que, por ser uma variante do behaviorismo, conseguia que as crianças deixassem os comportamentos indesejados enquanto estavam em terapia. (não curava, apenas melhorava o comportamento enquanto estivesse sendo utilizado). Após a reportagem da Time, as pessoas ficaram horrorizadas com o tipo de atendimento que era feito pela equipe de Lovaas, e execraram o referido tratamento.

10 Ácido lisérgico, uma droga química que induz a estados alternados de consciência 11 Algo em torno de 50 mil dólares por criança conforme nos explicitam Donvan e Zucker (2017, p. 262-263)

Página 80

Com o intuito de aclarar a diferença existente entre como se via o autismo em diferentes partes do globo, passamos no próximo capítulo a referendar a pesquisa efetuada na Inglaterra, inicialmente, para depois passar a trabalhar em conjunto novamente com a pesquisa nos EUA.

Página 81

CAPÍTULO 3 – A FORMA DA ÁGUA12

A causa do autismo é uma só: a diversidade humana. Somos neurodiversos. Rita Louzeiro, pedagoga autista.

Prosseguindo no caminhar histórico da síndrome autista, convém começar a trazer dados do outro lado do Atlântico: a comunidade inglesa também estava estudando o autismo, porém seu enfoque era bastante diferenciado do forte foco psicanalítico observado nos EUA.

Do outro lado do Atlântico, pesquisadores ingleses seguiam uma linha diferenciada de pesquisa, conforme Donvan e Zucker (2017)

Nas décadas de 1960 e 1970, a Grã-Bretanha tinha tão raros pesquisadores do autismo quanto os Estados Unidos. [...] Também tinham produtivo contato com os colegas dos Estados Unidos. [...] Não surpreende que a escassa literatura sobre o autismo existente enfocasse quase exclusivamente crianças americanas e britânicas. A referência a outras nacionalidades na literatura do autismo foi tão rara durante tanto tempo que o mero fato de falar inglês quase podia ser considerado um fator de risco no caso do autismo. Apesar do idioma comum, os pesquisadores americanos e britânicos tinham prioridades visivelmente diferentes. Aqueles procuravam tratar — e até curar — o autismo. Entre eles, havia um senso de emergência, um ímpeto de encontrar soluções o mais depressa possível. Na Grã-Bretanha, a abordagem era mais calma, mais voltada para a busca de uma explicação para o distúrbio. Levados pela curiosidade, os pesquisadores britânicos procuravam mapear os contornos do autismo e compreender a mente autista. (DONVAN e ZUCKER, 2017, p. 273-274)

Dentre o que podemos ressaltar sobre a década de 1960 com referência ao que ocorria na Grã-Bretanha, a primeira sociedade nacional foi fundada em 1962, que fundou uma escola (Sociedade Escola para Crianças Autistas) habilmente coordenada por Sybil Elgar, professora que, anteriormente, havia feito uma escola para crianças psicóticas em seu próprio porão : em 1964 a NAS – National Autistic Society aluga um barracão e transfere a escola para lá. Sibyl Elgar, autodidata, fazendo praticamente tudo ao contrário do que os psiquiatras da época orientavam, obtinha sucesso com seus alunos : que eles aprendiam não pelo ouvir, mas pelo

12 A Forma da Água – filme norte-americano de 2017, direção de Guillermo del Toro – ambientado nos EUA na década de 1960, um momento bastante conturbado política e socialmente, uma zeladora muda (que somente se comunica por sinais) trabalha em um complexo secreto norte-americano, onde conhece uma criatura não-humana que está presa e é maltratada, e se afeiçoa a ela. Com ajuda de sua colega de trabalho negra e seu vizinho gay ela planeja e executa a fuga do ser. É bastante explícito no comportamento apresentado pelas autoridades que controlam o complexo de pesquisas seu racismo, menosprezo aos deficientes e aos diferentes.

Página 82 ver; criou uma estrutura rígida das atividades dadas às crianças, além de horários rigorosos e estabeleceu limites nas áreas de estudo e as de brincar.

Assim fazendo, a professora autodidata estava invalidando os psicanalistas profissionais, que ainda recomendavam ambientes de liberdade ilimitada a fim de libertar egos enjaulados por mães indiferentes. Quando isso não dava certo, coisa que sempre acontecia, eles em geral recomendavam internação em uma instituição. [...]De maneira intuitiva, ela havia tido um insight importante: o processamento visual tende a superar o auditivo em algumas crianças com autismo. Em si, essa era evidência de uma base neurológica do transtorno, mas em 1963 não passava de uma possibilidade que os pesquisadores acadêmicos mal haviam começado a levar em consideração. (DONVAN e ZUCKER, 2017, p. 276)

A expansão da escola foi meteórica, logo utilizando três casas ao invés de uma; seu sucesso foi tão grande que Schopler (criador do método TEACCH - Treatment and Education of Autistic and Communication Handicapped Children 13) veio ver como ela trabalhava e incorporou muitas ideias novas a seu programa, baseado no que viu na escola de Elgar. A escola foi palco de diversas pesquisas, e dentre elas destacamos a efetuada em 1967 por O´Connor e Hermelin, psicólogos, que ao observar os movimentos oculares de crianças autistas e não-autistas observam diferenças sutis, porém importantes:

mediante experimentos igualmente rigorosos, a dupla continuou a descobrir modos reduzidos, mas quantificáveis, pelos quais as crianças com autismo processavam o mundo diferentemente das outras. [...] Enfim, suas experiências produziram vários dados que deixaram claro que o autismo tinha base neurológica. Era uma prova de que o autismo tinha a ver com o cérebro, não com o amor materno. (DONVAN e ZUCKER, 2017, p. 279)

3.1 – A PREVALÊNCIA DO AUTISMO: LOTTER – 1963-1966

Um dos orientandos de O´Connor foi Lotter, sul-africano que fez sua tese de doutorado em Londres, escolhido para tentar determinar a prevalência do autismo no condado (o equivalente a um estado brasileiro) de Middlesex, uma área de 2.194 Km² 14 densamente povoada.

13 A sigla significa Tratamento e Educação de Crianças Autistas com Limitações/Desvantagens (no inglês, handicapped) relacionadas à Comunicação

14 Algo um pouco menor do que as áreas das cidades de São Paulo e Campinas, juntas

Página 83

Figura 12 - Distrito de Middlesex, Londres.

Fonte Central Moves UK

Foi com essa tarefa hercúlea que, pela primeira vez, estabeleceram-se critérios diagnósticos para se fazer um estudo epidemiológico sobre o autismo, pois, até aquele momento (1963) - desde a “descoberta” do autismo, em 1943, nos EUA - ninguém havia verificado ainda a prevalência de autismo em uma população. Lotter foi obrigado a, intuitivamente, definir parâmetros de estudo que vieram a consolidar-se como adequados para pesquisas posteriores: pegou crianças cujas datas de nascimento correspondiam a apenas 3 anos naquela população, mas deparou-se com um problema bastante sério quanto a quem seriam os autistas. Conforme os autores Donvan e Zucker (2017):

Lotter devia contar as crianças com autismo, mas a questão de quem contar — o problema de decidir se determinado indivíduo tinha autismo — tropeçava em uma tremenda mixórdia diagnóstica. Quando consultou a literatura médica a fim de fazer uma simples lista de sintomas definidores para o seu levantamento, ele descobriu um emaranhado de síndromes concorrentes, cada qual com nome próprio, reivindicando as mesmas características do autismo descritas anos antes por Leo Kanner. Além do autismo infantil de Kanner, havia a esquizofrenia da infância de Loretta Bender, a criança atípica de Beata Rank, a psicose simbiótica de Margaret Mahler e uma longa lista de outras candidatas, inclusive a psicose esquizofrênica da infância , a dementia praecocissima , a dementia infantilis , a esquizofrenia pré-puberal , a esquizofrenia pseudopsicopática , a psicose infantil e a esquizofrenia latente . Todos esses nomes eram usados de maneira intercambiável para descrever crianças que apresentavam os mesmos tipos de comportamentos. [...] Mas, durante esse intervalo de duas décadas, os contornos do distúrbio, a definição

Página 84

da aparência do autismo, haviam embaçado e oscilado continuamente à medida que outras vozes de especialistas entravam na conversa. Já em 1955, o próprio Kanner se queixou do fato de se fazerem demasiados diagnósticos de autismo inexatos, descuidados, baseados em pouco mais do que um ou outro sintoma isolado [...] O autismo era — e continuaria sendo durante muito tempo — o diagnóstico dos olhos do observador.(grifo nosso) (DONVAN e ZUCKER, 2017, p. 282)

A partir dessa situação tão caótica, Lotter, então um recém-graduado em Psicologia, fez um questionário compilado com 22 características que enviou às escolas e hospitais da área abrangida, pedindo que reportassem crianças que correspondiam àqueles atributos: esta foi a primeira triagem das 78 mil crianças que existiam para amostragem. Para elaborar suas perguntas, não se baseou apenas em Kanner, mas em um estudo efetuado por especialistas e coordenado por uma psiquiatra inglesa chamada Mildred Creak, denominado “Os Nove Pontos de Creak”, publicado em maio de 1961, no British Medical Journal. Apesar de, até mesmo, a autora considerar esses pontos subjetivos, foi com eles e o estudo de Kanner que Lotter criou seus critérios para estudar a prevalência autista. O retorno de seus questionários foi muito consistente, com 97% da população entre oito e dez anos ali representada; foram indicadas 666 crianças, das quais Lotter reduziu para 88 conforme sua própria definição de autismo. Cabe aqui lembrar que ele não utilizou o conceito de espectro de Asperger, mas apenas o autismo infantil reduzido de Kanner, o que, provavelmente, ocasionou esse corte tão significativo. Visitou todos os casos no ambiente escolar, além de ter acrescentado outros 47 que não constavam da relação inicial; após muita tabulação, na primavera de 1964 ele conseguiu eliminar mais da metade dos 135 candidatos iniciais. As 61 crianças restantes tiveram sua visita domiciliar para obter mais dados, principalmente médicos, e Lotter teve a experiência de que algumas delas encontravam-se internadas em instituições para doentes mentais, e baseado em sua maior ou menor incidência de características, Lotter fez uma lista. Novamente, de forma empírica, dividiu a lista ao meio e disse que as mais comprometidas eram autistas. Mesmo ele disse que essa solução foi, no mínimo, arbitrária. E estava localizada a prevalência autista: trinta e cinco crianças em 78 mil, 4,5 em dez mil. Mesmo o autor não achava muito válido o resultado, pois ao escrever um artigo, em 1966, resumindo seu estudo, foi enfático ao dizer que pequenas mudanças no que ele havia suposto durante seu trajeto de pesquisa, como onde traçar a linha na última lista, a estatística poderia ser significativamente maior ou menor. Sua frase “Prevalência ‘verdadeira’ pode não ser um conceito útil no caso de uma síndrome […] tão mal definida”

Página 85

(LOTTER, 1966, p. 12) nos faz pensar na base instável em que o autismo foi fundamentado, também quanto a números.

3.2 – O “APRENDIZADO VISUAL” DE FRITH: 1966-1980

No mesmo ano de publicação da pesquisa-monstro de Lotter, chega para fazer doutorado outra psicóloga alemã, Uta Frith, que terá os mesmos orientadores que ele, O´Connor e Hermelin. O trabalho projetado por ela consistia de cartões com 8 palavras aleatórias, que não formavam frases, para testar a memória das crianças, e mais cartões com palavras não aleatórias, que, se reorganizadas, formavam frase. Os autistas tiveram uma resposta muito próxima dos demais nas aleatórias, e se recordavam mais das últimas palavras; já nos cartões não aleatórios, sua performance era bastante inferior ao grupo. A partir desse e de mais testes criados por ela, Uta Frith chegou à conclusão que a linguagem era um grave entrave para os autistas, pois eles não conseguiam entender a organização desta. Ou seja, de todos os testes que ela fez, pode criar uma hipótese bastante robusta : as crianças autistas podiam até ter algumas perdas na parte de linguagem complexa, bem como compreender seu significado, porém conseguem brilhantemente retirar significado de informações obtidas a partir de meios que não utilizem a linguagem. Novamente, ficou mais claro que autistas aprendem melhor de uma forma visual do que auditiva. O trabalho foi publicado por O´Connor e Hermelin, mas estes mencionaram Uta Frith como colaboradora. A forma como Uta Frith falava sobre autismo, em termos compreensíveis pelo grande público, fez dela uma pessoa recorrente em programas de TV, bem como era bastante citada pela imprensa. Seu livro Autismo: Explicando o enigma, lançado em 1989, conforme Frith (2003) foi o primeiro feito por uma pesquisadora científica explicando o distúrbio para o público leigo.

3.3 – MÉTODO TEACCH – SCHOPLER E REICHLER - 1971

Voltando aos EUA, em 1971, outros dois pesquisadores, Schopler e criam uma metodologia com outro enfoque, a que chamaram TEACCH - Treatment and Education of Autistic and Related Communication Handcapped Children. Schopler era alemão, judeu, cuja família tinha saído da Alemanha em 1938 (quando ele tinha 11 anos) por conta do nazismo; em 1955, ele se formou em Administração de Serviço Social. Começou a trabalhar com crianças

Página 86 desde 1960, em Chicago, no Centro de Tratamento e Pesquisa para Esquizofrenia da Infância, e obteve um PhD em psicologia clínica infantil em 1964, mas somente após tornar-se o diretor do Projeto de Pesquisa Infantil em 1966 que ele se dedicou a criar uma metodologia para tratar de crianças e adultos com transtorno do espectro do autismo, juntamente com o Dr. Robert Reicher. Através de sua pesquisa, Schopler mostrou que a maioria das crianças autistas não sofria de transtornos mentais como era então a crença na época, baseada nas primeiras pesquisas de Kanner que isso afirmava. Ele também provou que os pais de crianças autistas poderiam ser colaboradores eficazes no tratamento e na Educação de seus filhos, e não serem afastados deles como se preconizava até então, sugerindo internação para estas pessoas em asilos e sanatórios.

3.4 – FOLSTEIN E O ASPECTO GENÉTICO DO AUTISMO – 1967-19

Mas um grande incremento à pesquisa do autismo em terras inglesas foi feito pela pesquisadora Susan Folstein, baseada em uma lista compilada desde 1967 até 1970 (data de sua morte) por um médico do interior, chamado M. P. Carter, que continha informações sobre gêmeos autistas; tal lista foi obtida por ele ao colocar anúncio em diversas publicações médicas solicitando aos seus pares essa informação. Carter era amigo de Rimland, dos EUA, e pretendiam fazer conjuntamente esse estudo sobre gêmeos autistas, mas Carter veio a falecer antes disso. Sua esposa enviou a lista a um conhecido professor de Psiquiatria, em Londres, chamado Michael Rutter; porém, este só tomou conhecimento dessa lista em 1973, e imediatamente, pensou em responder algo que, desde a descoberta do autismo era uma dúvida persistente entre os pesquisadores : qual a frequência de autismo em gêmeos, e isso era igual em gêmeos univitelinos ou fraternos ? Isso não havia sido ainda pesquisado principalmente por causa do enorme escândalo científico da utilização da genética, por parte dos nazistas, para justificar o genocídio de pessoas com deficiência mental durante a Segunda Guerra Mundial. Devemos lembrar que a grande maioria dos psiquiatras que atuava naquele momento era judia, que conseguiu escapar do Holocausto: era muito próxima a situação para que fossem cientificamente isentos. Encontramos em Donvan e Zucker a seguinte descrição:

Além disso, a ainda predominante teoria da incriminação da mãe obstruía toda necessidade de explorar a dimensão genética ou biomédica do autismo. Com a aversão à investigação genética, durante muitos anos se empreendeu pouquíssimo estudo verdadeiramente científico do seu aspecto biomédico. (DONVAN e ZUCKER, 2017, p. 293)

Página 87

Sua orientanda, Susan Folstein, foi encarregada de visitar todos os pares de gêmeos contidos na lista original de Carter que residissem em território inglês (bem como outros que Rutter recebeu ao solicitar o mesmo que Carter havia feito anteriormente), e, para obter esse resultado, foram quase dois anos de pesquisa in loco.

No transcurso desses meses, Folstein se tornou a expert que desejava ser. Dominou a observação e o relato dos comportamentos autistas, valendo-se dos critérios estabelecidos por Rutter. No entanto, foi ele quem assumiu o comando dos relatórios pormenorizados dela para determinar em definitivo se aquelas crianças apresentavam verdadeiras características autistas. (DONVAN e ZUCKER, 2017, p. 295)15

No final da pesquisa, havia 21 pares de gêmeos do mesmo sexo em que ao menos um deles correspondia aos parâmetros exigidos por Rutter; pode parecer um número pequeno, mas ao observar a incidência de gêmeos univitelinos em uma população : 3,5 a cada mil nascimentos, em qualquer população mundial (conforme o Laboratório de Genética da Universidade Católica de Pelotas, no Rio Grande do Sul), podemos compreender a dimensão dos resultados obtidos nesse estudo. Divulgado em uma conferência em 1976, os dados trouxeram uma realidade esmagadora : dos 21 pares de gêmeos estudados, onze eram de gêmeos univitelinos (ou monozigóticos) e dez de gêmeos fraternos (ou dizigóticos); dentre os gêmeos em que ambos eram autistas, somente havia 4 casos, e todos eles eram de gêmeos univitelinos. Ao mesmo tempo, nos gêmeos fraternos, tal ocorrência não existia.

3.5 – BARON-COHEN E A TEORIA DA MENTE – 1970-1980

Terminada a década de 1970, no início dos anos 1980, encontraremos outro pesquisador utilizando a escola da NAS, Simon Baron-Cohen. Naquele momento, por volta de 1984, a grande dúvida que acometia os pesquisadores era: o que ocorreria antes, a deficiência de linguagem ou o déficit social?

A partir de um artigo americano de Wimmer e Perner (1983), Uta Frith, pesquisadora já conceituada em autismo, Baron-Cohen e Alan Leslie, psicólogo escocês, no qual era estudada a forma como crianças reconheciam o engano, tiveram conhecimento de algo que foi chamado de “teoria da mente”. Conforme descrevem Donvan e Zucker (2017),

15 Cabe aqui um pensamento sobre o que foi dito acima : Susan Folstein tornou-se uma expert em autismo ao vivenciar experiências com autistas e suas famílias, em seu ambiente real, e não em consultórios, escolas ou outros quaisquer ambientes artificiais; queremos deixar isso bastante explícito, pois nos alongaremos sobre profissionais e ambientes em outro capítulo.

Página 88

Os psicólogos usavam a expressão “teoria da mente” para designar o conhecimento do indivíduo de que os outros possuem estados mentais independentes — pensamentos, sonhos, crenças — diferentes dos dele. Uma pessoa desprovida de teoria da mente passaria a vida toda sem entender que os outros vivem percepções e perspectivas próprias. Ela tenderia a enxergar as demais como objetos sem vontade, como folhas levadas pelo vento. (DONVAN e ZUCKER, 2017, p. 300)

A partir desse artigo, Baron-Cohen criou seu próprio teste de teoria da mente, e aplicou- a às crianças da escola da NAS: apresentando duas bonecas às crianças e fazendo com que elas tivessem ações (como ocultar algo de uma para verificar o que a outra pensava), verificou que crianças autistas pensavam em um formato diferenciado do esperado sobre o que se dizia a teoria da mente. Em 1985, os três escreveram um artigo onde afirmavam, categoricamente, que “O nosso resultado”, escreveram, “corrobora vigorosamente a hipótese segundo a qual as crianças autistas não empregam uma teoria da mente”.

A validade da teoria da “teoria da mente” do autismo seria debatida durante anos, assim como outras grandes ideias oriundas de Londres. Uta Frith trabalhando com suas alunas Amitta Shah e Francesca Happé desenvolveu ainda outro modelo para o autismo, a que denominaram “coerência central fraca”. Seus experimentos mostraram que os indivíduos com autismo

apresentavam capacidade superior de reconhecer e manipular partes de padrões e sistemas, porém menos talento para enxergar como as partes interagiam como um todo. Em outras palavras, eram mais fracos no pensamento em termos de conjunto, mas podiam ser mestres do detalhe. (DONVAN e ZUCKER, 2017, p. 304 )

3.6 – FRITH E A COERÊNCIA CENTRAL FRACA – 1970-1980, INGLATERRA

À mesma época que Baron-Cohen criou seu teste Sally-Ann, Uta Frith continuou trabalhando com outras alunas suas, Amitta Shah e Francesca Happé em outro modelo para o autismo, denominado coerência central fraca , uma vez que suas experiências com autistas demonstravam que estes tinham uma capacidade bastante superior à média em reconhecer a manejar partes de padrões e sistemas, porem isso caía incrivelmente quando se tornava necessário compreender como essas partes interagiam com o todo, conforme havia sido visto anteriormente. Baron-Cohen seguia em outra linha, e propôs que existiam diferenciações no cérebro autista que poderiam ser entendidas como se fosse um cérebro “extremamente masculino”, com características mais marcantes como pensamento sistematizado, sem grande empatia. Para tal, Baron-Cohen utilizou o que se conhecia à época, que era a existência de mais homens do que

Página 89 mulheres diagnosticados com autismo, e essa seria também outra hipótese porque havia a ocorrência de mais autistas entre engenheiros do que poetas, segundo Donvan e Zucker (2017).

3.7 – WING E OS LIMÍTROFES: CONCEITO DE ESPECTRO - 1960-1980

Em que pese o empenho dos diversos cientistas que estudaram o autismo, é de se citar que dentre estes, os que mais se empenharam e obtiveram resultados positivos foram aqueles que tinham familiares autistas, particularmente Rimland e Wing; em um momento que as mães eram tidas como as “causadoras do mal”, Rimland ousou fazer um estudo aprofundado de todos os casos que encontrou e vislumbrou, décadas antes da efetivação, que o autismo possuía um componente genético, e não psíquico. Wing, como nos dizem Donvan e Zucker (2017, p. 311) era destacada participante do círculo de pesquisadores de Londres, psiquiatra com consultório ativo, uma pesquisadora que publicava estudos revolucionários, atora de livros em linguagem simples que ajudavam as famílias a enfrentar o autismo e uma ativista defensora dos indivíduos com autismo. Durante os cinquenta anos que atuou, da década de 1960 a 2010, Wing eclipsou quase todo mundo na área. Lorna Wing cunhou a expressão “espectro do autismo”, ao considerar que tanto Kanner quanto Asperger – que ela trouxe da obscuridade dos países nazistas para a ciência ocidental que ganhou a guerra – pensaram superficialmente sobre suas síndromes. Para essa autora, o autismo era um, que atuava desde os níveis mais próximos da normalidade até aqueles bem severos, com diversas comorbidades associadas. E para criar esse arcabouço teórico, Wing utilizou uma pesquisa anteriormente feita por ela e seu marido em 1960, que roteou um bairro inteiro de Londres, Camberwell, com relação à sua população com autismo (cabe deixar registrado que o distrito e Camberwell era onde se encontrava o Hospital Maudsley, bem como o Instituto de Psiquiatria onde trabalhava Wing e outros tantos pesquisadores anteriores, como O´Connor, Lotter, Folstein, Uta Frith ou Baron-Cohen ). Seu intuito era responder algo que diversos pesquisadores se deparavam quando tentavam quantificar autismo em uma população específica: o que fazer com os limítrofes, em geral parentes dos diagnosticados, mas que apresentavam também características autistas, mas não o bastante para que fossem inseridos no diagnóstico. Tanto Lotter como Folstein tiveram de criar uma “nota de corte” em suas respectivas pesquisas, pelos critérios rigorosos do que autismo era considerado até então, e esses casos eram deveras intrigantes para Wing.

Página 90

Figura 13 - Camberwell dentro da Grande Londres.

Fonte – Wikipedia.

Como era um projeto de um vulto gigantesco, Wing contratou uma psicóloga, Judith Gould, para trabalhar conjuntamente. Eles retornaram ao arquivo, levantaram todas as fichas do projeto anterior, e posteriormente saíram a campo para entrevistar, tanto os professores (cerca de 900) como as crianças (cerca de 130), bem como seus familiares. Tal levantamento durou 4 anos, ao fim dos quais uma série de artigos bombásticos abalou as estruturas aparentemente estáveis do autismo como era conhecido até então: autismo era mais que o que se conhecia por autismo: autismo era um espectro, ou autismos. E dessa pesquisa pioneira, Wing e Gould propuseram então uma teoria chamada “tríade de incapacidade” que, segundo Donvan e Zucker (2017, p. 317) abrangesse o núcleo definidor do distúrbio, ao qual incluía, em primeiro lugar, uma incapacidade no conjunto usual de habilidade social de dar e receber; a segunda incapacidade relacionava-se com a linguagem recíproca, inclusive a não verbal; a terceira era uma deficiência em participar naquela que Wing denominava imaginação social , como a usada na brincadeira de personificação. E essa tríade de incapacidade poderia vir em qualquer combinação, esse era o mais importante dessa teoria: podiam ocorrer até o limite da normalidade, algo que não ocorreu nem

Página 91 a Kanner. Ao escrever seu livro “O Espectro Autista”, Lorna Wing tornou essa expressão reconhecida em toda a comunidade autista. Em 1984, Lorna Wing passou para os editores do DSM a sua teoria do espectro autista, que acharam pertinente fazer uma nova edição do guia; Wing foi convidada a redigir o primeiro esboço dos critérios diagnósticos para o autismo. O guia passou por discussões durante 3 anos, e somente duas alterações de categorias foram aceitas, dentre todas as propostas : ao invés de cinco diagnósticos como era na versão anterior, essa versão de número 3-R continha apenas duas, o transtorno autista (que continha os clássicos parâmetros de Kanner) e o transtorno global do desenvolvimento sem outra especificação (conforme o espectro de Wing). Porém, paralelo a isso, Lorna Wing estava tecendo outra teoria, a Síndrome de Asperger: baseado no artigo (inicialmente em alemão, que seu marido John traduziu) de Asperger publicado em 1944, auge do nazismo na Alemanha, ela divulgou as ideias dele para o Ocidente. (Posteriormente, após o conhecimento de diversas facetas constantes na história que envolviam Asperger e seus artigos, Lorna Wing reconheceu que, à época, não poderia supor as – más - implicações da divulgação dos escritos de Asperger, porém, já não era mais possível voltar atrás). Anteriormente, neste mesmo capítulo, já esmiuçamos o trabalho de Asperger em Viena, e seria desnecessário reiterar as informações aqui, mas cabe dizer que tais informações – sobre utilização dos escritos de outro autor, uma possível filiação à filosofia nazista, encaminhamento de crianças deficientes para eutanásia – não eram de conhecimento comum até o ano de 2017, pelo que conseguimos pesquisar, conforme Donvan e Zucker (2017, p. 321-329), Sheffer (2019, p. 9; 12-19) , e outros autores. Portanto, é desmedido atribuir a Wing algo de má-fé na divulgação do trabalho de Asperger : não era conhecido o trabalho de Sukharewa até o final da década de 1990, não era conhecido o baseamento de Asperger nos escritos de Weiss e Lazar, e os estudos dela eram bastante abrangentes e devidamente lastreados em pesquisa com mais de 400 crianças. A Síndrome de Asperger, idealizada por Lorna Wing, solucionou um problema na área médica: as crianças tinham traços autistas, mas não tão “sérios” ou “comprometedores” como era o diagnóstico de Kanner; na década de 1990 esse diagnóstico passou a ser mais e mais usado, principalmente na Grã-Bretanha. Segundo Donvan e Zucker (2017)

Vários outros trabalhos de investigadores trataram com indiferença a questão de a síndrome de Asperger ser um fenômeno separado do autismo. Para os médicos, a questão era acadêmica. Ela convinha às pessoas que eles examinavam: como havia mostrado Wing, era mais fácil dar aos pais um diagnóstico de síndrome de Asperger do que lhes dizer que o filho tinha

Página 92

autismo. Particularmente, o diagnóstico se propagou mesmo não sendo reconhecido pelo DSM da Associação Americana de Psiquiatria em 1991. Em 1992, a Organização Mundial da Saúde (OMS) passou à frente da APA ao incluir a síndrome de Asperger em um compêndio maciço intitulado International Classification of Diseases [Classificação internacional de doenças].

Com a popularidade cada vez maior do diagnóstico e com seu reconhecimento oficial por parte da OMS, os editores do DSM se sentiram pressionados a segui-la. Por coincidência, a APA tinha planos de publicar uma edição atualizada do DSM em 1994, coisa que tornou imprescindível decidir se incluía nele ou não a síndrome de Asperger. (DONVAN e ZUCKER, 2017, p. 324)

Existe grande discussão sobre a opção (ou não) pelo nazismo de Asperger; Donvan e Zucker (2017) dizem que

no dia 3 de outubro de 1938, não houve ambiguidade na linguagem usada por Asperger em um discurso histórico perante uma assembleia de colegas médicos. As palavras que usou pareciam surpreendentemente pró-nazistas e foram ditas no início da alocução na qual ele discutiu pela primeira vez os seus “psicopatas autistas”. Isso ocorreu sete meses depois da Anschluss nazista, a anexação da Áustria ao Terceiro Reich, mas as linhas iniciais do orador foram nada menos que uma declaração de amor à Áustria recém-nazificada. [...]

Talvez uma desconfiança instintiva também explique o silêncio quase completo de Leo Kanner no tocante à obra de Asperger. Também judeu — um judeu que, como vimos, salvou a vida de outros judeus —, Kanner pode ter considerado o médico austríaco muito confortavelmente acomodado na Viena nazista e, por isso, preferiu não o reconhecer. Curiosamente, na única ocasião em que aludiu a Asperger em um trabalho impresso, Kanner escreveu seu nome errado. (DONVAN e ZUCKER, 2017, p. 332)

3.8 – AS MÚLTIPLAS “DEFINIÇÕES” DO AUTISMO

Talvez, antes de buscar mais informações seja melhor definir, adequadamente, o que é o autismo e que todos os pesquisadores tenham um consenso sobre essa definição. Para podermos demonstrar aqui o que pretendemos, nada melhor do que colocar todas as definições de autismo que encontramos ao longo do tempo: conforme Tamanahara, Perissinoto e Chiari (2008): Kanner, em 1943, traçou o autismo como sendo um

Distúrbio Autístico do Contato Afetivo, como uma condição com características comportamentais bastante específicas, tais como: perturbações das relações afetivas com o meio, solidão autística extrema, inabilidade no uso da linguagem para comunicação, presença de boas potencialidades cognitivas, aspecto físico aparentemente, normal, comportamentos ritualísticos, início

Página 93

precoce e incidência predominante no sexo masculino. (TAMANAHARA, PERISSINOTO e CHIARI, 2008, p. 296 )

Asperger, por sua vez, em 1944, chamou de Psicopatia Autística à situação

manifestada por transtorno severo na interação social, uso pedante da fala, desajeitamento motor e incidência apenas no sexo masculino. O autor utilizou a descrição de alguns casos clínicos, caracterizando a história familiar, aspectos físicos e comportamentais, desempenho nos testes de inteligência, além de enfatizar a preocupação com a abordagem educacional destes indivíduos. (ASPERGER, 1944, p. 41)

Tustin (1991), por sua vez, desenvolveu uma teoria denominada afetiva, de viés psicanalítico, que propõe uma etiologia relacional entre criança e seus pais, e considera que o autismo é mais um sintoma de Psicose Infantil e menos uma entidade nosológica por si só; posteriormente efetuou revisões sobre a etiologia do autismo, em que uma abordagem relacional somente não seria possível de determinar ou até mesmo explicar a precocidade das manifestações comportamentais encontradas no autismo, criando a hipótese de predisposição da criança como desencadeador da síndrome. Uma nova teoria daria ao autismo uma etiologia orgânica, caracterizando este por falhas cognitivas e sociais, conforme nos informam Tamanahara, Perissinoto e Chiari (2008, p. 297); Ruther, em 1968, buscou fazer uma distinção de terminologias que praticamente se mesclavam naquele momento: Autismo, Esquizofrenia e Psicose Infantil. Para tal, fez uma relação entre as diferenças existentes entre as abordagens psicogênica e orgânica, teceu comentários sobre as bases genéticas do Autismo Infantil, além de reiterar a “necessidade de avaliação das alterações de linguagem e das anormalidades perceptuais presentes nestes indivíduos. Sugeriu que muitas das manifestações podem ser explicadas pelas falhas cognitivas e de percepção. “(RUTHER (1968) apud TAMANAHARA, PERISSINOTO E CHIARI (2008). Em 1978 Ruther propôs novos critérios diagnósticos, enfatizando a necessidade de observar o comportamento dos sujeitos;

Os critérios incluíam a perda do interesse social e da responsividade; alterações de linguagem que vão desde a ausência de fala até o uso peculiar da mesma; comportamentos bizarros, ritualísticos e compulsivos; jogo limitado e rígido; início precoce do quadro, ou seja, antes dos 30 meses de vida. (RUTHER, 1978, p. 140 )

Ainda de acordo com Tamanahara, Perissinoto e Chiari (2008), diversos outros autores (Ornitz, Schopler, Bishop, e Schwartzman) consideraram necessário efetuar o estudo de fatores neurofisiológicos e bioquímicos como precursores da síndrome autista; a partir disso, suas conclusões foram que “tratava-se de uma síndrome com comportamentos específicos,

Página 94 manifestados precocemente, com alteração em diversas áreas do desenvolvimento, tais como: percepção, linguagem e cognição”. Mais recentemente, Baron-Cohen trouxe a teoria denominada de “cérebro extremamente masculino”, na qual postulava que as condições neuro anatômicas do cérebro poderiam ser descritas como resultantes, provavelmente, das grandes taxas de testosterona a que os autistas são submetidos no período pré-natal. Esse cérebro “masculino” seria do tipo sistematizante, respondendo às demandas sociais de forma analítica e de forma sistemática. Outros estudiosos (Bailey, Frith, Happé, Wing, Gilberg, Volkmar, Szatmatri, Klin, Assumpção e Perissinoto) enfatizam a enorme necessidade de estudos mais aprofundados entre os estudos genéticos ora efetuados e os prejuízos cognitivos observados. Happé e Baron-Cohen foram dois dos autores que propuseram que a existência de uma falha cognitiva pode justificar os prejuízos sociais e de comunicação dos autistas, e para tal foi proposto o estudo da Teoria da Mente para melhor compreender as falhas sociais desses sujeitos. Segundo esses autores, nos sujeitos portadores desta condição, existe uma incapacidade na identificação, compreensão e na atribuição de sentimentos, intenções, o que ocasiona prejuízos nas relações interpessoais. A inabilidade dos autistas para estabelecer relações interpessoais eficazes justifica-se pelas ausências na detecção da intencionalidade e no compartilhamento de atenção aos objetos e eventos, com os interlocutores. Essas falhas ocasionam prejuízos na atribuição e na compreensão de estados mentais, que nem sempre estão explícitos nas situações dialógicas.

Porém, o que mais ficou claro durante essa jornada virtual pela história do autismo, é que não existe consenso ou mesmo diagnóstico claro do que é, efetivamente, o autismo. Donvan e Zucker (2017, p. 366) são da mesma opinião, ao afirmar categoricamente que

[...]era exatamente isso que os experts faziam desde o tempo de Leo Kanner: contestar-se mutuamente e competir para promover suas próprias definições e redefinições de autismo — sua forma, seu alcance, suas causas. [...] as definições de autismo sempre foram flexíveis — determinadas pelo consenso ou por qualquer um dos experts concorrentes que fosse mais persuasivo em determinado momento. Graças à elasticidade da definição, tem sido fácil para os interesses rivais plasmar o autismo como o que eles querem que seja, coisa que às vezes leva a conflitos enormes. (DONVAN e ZUCKER, 2017, p. 366)

Ainda é digno de deixar aqui anotado o prosseguimento desse comentário:

Há décadas que o autismo é visto como um desafio comportamental, ou médico, ou psicogênico. Dele culparam as mães e as vacinas. E a ele se reagiu com “cuidado maternal substituto”, mega vitaminas, comunicação facilitada, bofetadas, terapia do abraço e, em alguns países africanos, com exorcismo.

Página 95

[...] Há anos que as figuras mais respeitadas da comunidade do autismo se queixam da falta de uma definição única e indiscutível dele. Graças à elasticidade da definição, tem sido fácil para os interesses rivais. [...] Em 1978, Eric Schopler avisou que os cientistas entendiam mal o trabalho uns dos outros “porque os critérios de diagnóstico são diferentes”. Mais uma década depois disso, em 1988, Fred Volkmar e Donald Cohen escreveram, frustrados, sobre a “história longa e controversa dos conceitos ligados ao autismo”. E, em 1998, Volkmar e Ami Klin reclamaram “da confusão e da pletora de conceitos diagnósticos” em torno do autismo e, na época, também da síndrome de Asperger. (DONVAN e ZUCKER, 2017, p. 366-367).

3.9 – DEMAIS CONCEITOS: INCLUSÃO, CAPACITISMO, ESTIGMA

“Precisamos perceber que não ser capaz de falar não é a mesma coisa que não ter nada a dizer”.

Douglas Biklen, educador que utiliza comunicação facilitada, coprodutor de Autism is a world

“Meu nome tu perguntas? Eu me chamo Ninguém, Ninguém me chamam Vizinhos e parentes.” Homero, Odisseia.

Quando as pessoas dizem "neurodiversidade é apenas sobre pessoas com alto funcionamento" - não, não é. É sobre direitos da deficiência. É a ponte entre o mundo do autismo e o mundo do ativismo entre pessoas com deficiência. O ativismo por deficiência não é deixar as pessoas em cadeiras de rodas para trás e apenas colocar as pessoas bonitas na câmera. Deficiência significa que todo mundo aparece, incluindo as pessoas com "baixo funcionamento". Steve Silberman

Diversidade. Com certeza, é uma palavra bastante conhecida, utilizada – nem sempre da forma correta, diga-se de passagem – que serve para demonstrar a riqueza de uma sociedade, seja ela cultural, ideológica, religiosa, filosófica ou até mesmo étnica. Mais contundentemente ainda, a neurodiversidade advoga que uma sociedade saudável possui seres diferenciados de pensamentos, credos, valores e – principalmente – formas de pensar. O permanente contato entre pessoas de culturas diversas impulsiona o crescimento dessa mesma sociedade, quer faça parte de comunidades distintas ou uma única, quer sejam comunidades estéticas, como diz Bauman (2003, p. 60) ao referir-se às comunidades estéticas de Kant, ou comunidades éticas, as quais seriam aquelas comunidades que favorecem a tessitura entre seus membros de “uma rede de responsabilidades éticas e, portanto, de compromissos a longo prazo, [...]de direitos inalienáveis e obrigações inabaláveis, que, graças à sua durabilidade prevista (melhor ainda, institucionalmente

Página 96 garantida), pudesse ser tratada como variável dada no planejamento e nos projetos de futuro.” (BAUMAN, 2003, p. 65).. Obviamente, estaremos utilizando em nosso trabalho o conceito de comunidades éticas, uma vez que a neurodiversidade não se encaixa no conceito de comunidades estéticas conforme preconiza Kant, apud Bauman (2003) : As comunidades éticas são aquelas cujos membros prezam por valores éticos, morais, onde o bem comum suplanta o bem pessoal, sendo que a vaidade e egoísmo é deixada para as comunidades estéticas. A neurodiversidade busca legitimar o outro como cidadão de uma sociedade, quiçá um Estado, bem como um indivíduo digno de respeito, de tal forma que suas crenças, valores, formas de pensamento e concepções de mundo sejam respeitadas, visando um ambiente harmônico. Tradicionalmente ao longo da história, a pesquisa científica voltou seus olhos principalmente para os privilegiados, as classes dominantes das sociedades que estudou, acompanhando sobretudo as elites da época analisada e que, por conta de sua dominância social, tiveram influência nos fatos históricos estudados, sejam essas elites políticas, sociais, religiosas ou até mesmo filosóficas. Essa visão deturpada de apenas uma parte do grupo social passa a impressão que apenas esses eram cidadãos (algo bastante calcado nos moldes de Roma Antiga) com “direito” a serem imortalizados nas páginas da História. Esse enfoque fez com que a História tivesse um viés único, o dos vencedores, dos poderosos, excluindo a visão dos grupos sociais em situação de vulnerabilidade, por qualquer motivo que fosse. A Revolução Francesa foi o marco diferenciador desse enfoque histórico, pois a partir dela é que começou a prestar atenção na população, trazendo um viés antropológico inexistente até então. A partir desse fato, a pesquisa científica passou a pesquisar esses indivíduos do povo, os “incultos” (cabe aqui deixar anotado que, por muito tempo se considerou que as culturas ágrafas eram menos importantes do que as que possuíam a escrita, e como tal eram “selvagens”, não tendo nada a contribuir à sociedade baseada no eurocentrismo). Quando verificamos como a sociedade relaciona-se com o conhecimento ao longo do tempo, detectamos que até meados do século XIX, a produção histórica era totalmente baseada em relações de poder, o conhecimento exclusivo da elite - cabe lembrar que, conforme Bauman (2003) apenas cerca de dois por cento da população da Idade Média sabia ler e escrever fora dos conventos religiosos -, uma vez que o povo era considerado “inculto, instintivo, sem individualidade própria, arraigado na tradição e no solo”(LE GOFF, 2006, p. 322). E o que ocasionou essa mudança radical de postura frente ao estudo das classes diversas da elite foi a mudança do conceito de cultura, formulado em 1871 por Tylor apud Laraia (2006): “cultura é todo comportamento aprendido, que independe de uma transição genética”

Página 97

Laraia (2006, p. 30). Também é desse estudioso a ideia que a diversidade é o resultado da desigualdade de estágios na evolução humana: devemos lembrar que o tempo de Tylor era o mesmo de Darwin, onde a cultura europeia era considerada o ápice da escala evolutiva. A então recente ciência da Antropologia foi a responsável pelo deslocamento dessa visão eurocêntrica de cultura, criando então o conceito antropológico de cultura, que é aquele que admite cultura como sendo algo criado por todos os homens em todas as sociedades em todos os tempos. Esse conceito, portanto, nos leva a ver que não existem sociedades sem cultura, ou mesmo que uma cultura é superior a outra, mas sim existem indivíduos com culturas diferenciadas, gerados a partir de processos históricos igualmente diferenciados. A cultura popular, bem como grupos socialmente vulneráveis vem se firmando como objetos de estudo em diversos campos do conhecimento, pois, a partir dos estudos antropológicos, diversas outras áreas - principalmente a sociologia - tem bebido desse rico manancial, até então no ostracismo da pesquisa científica. Ao esmiuçarmos os conceitos acima, vemos que, se a pesquisa científica deseja estudar algo, é necessário levar em conta a diversidade cultural, ou seja, é necessário que a pesquisa científica evolua em seus formatos e metodologias, bem como – e principalmente – seus objetos de estudo. E, como tais grupos possuem características diferenciadas dos que até então se estudava, foi “necessário” que se utilizasse uma metodologia também diversa da tradicionalmente aceita. E é aqui que a História Oral entra. Utilizar dessa forma, politicamente, a História Oral - em que a reafirmação de histórias anteriormente silenciadas pode permitir a afirmação de indivíduos, grupos sociais ou sociedades inteiras – é ligar-se a uma tradição significativa e continuada, na qual a História Oral tem se mostrado uma importante fonte para grupos políticos e movimentos sociais, conforme Ferreira, Fernandes e Alberti (2000, p. 58). Ao estudar o Outro – e como Hellinger nos diz tão sabiamente, o outro sou eu – legitimando-o como Ser e ser, é que conseguiremos fazer uma pesquisa democrática, respeitosa, realmente evoluída ou, ainda nas palavras de Hellinger (2015),

Enquanto o outro permanecer estranho para mim e eu o mantiver à distância, desconfiar dele, temê-lo ou quiser distanciar-me dele, permanecerei menos, menor, estreito, fechado, mais pobre. A aceitação do outro é a aceitação da plenitude. (HELLINGER, 2015, p. 1)

E aqui consideramos ser pertinente inserir os estudos de Sadao Omote sobre deficiência: esse professor da UNESP há décadas efetua estudos sobre o microcosmos deficiente, e como

Página 98 esta se encaixa na sociedade brasileira. De igual envergadura temos a estudiosa Maria Teresa Egler Mantoan, da UNICAMP, outro baluarte da inclusão. Outro fato que ocorre já há algum tempo, particularmente a partir da década de 1960, os chamados deficientes reúnem-se e passam a exigir o que lhes é de direito: assento em assembleias, adequações visando sua participação em áreas públicas, enfim eles exigem uma integração à sociedade. Porém, essa integração é o mesmo que inclusão? Não para Mantoan (2003): em suas palavras,

Os dois vocábulos - “integração’’ e “inclusão” -, conquanto tenham significados semelhantes, são empregados para expressar situações de inserção diferentes e se fundamentam em posicionamentos teórico- metodológicos divergentes.[...] O objetivo da integração é inserir um aluno, ou um grupo de alunos, que já foi anteriormente excluído, e o mote da inclusão, ao contrário, é o de não deixar ninguém no exterior do ensino regular, desde o começo da vida escolar. (MANTOAN, 2003, p. 14)

Além de clarificarmos a diferença intrínseca entre os conceitos de inclusão e integração, ainda é mister deixar aqui anotado a concepção que Sadao Omote nos traz sobre o que é deficiência; para esse autor, a deficiência tem um caráter social, uma vez que o que pode ser considerado deficiência em uma sociedade em outra pode não o ser; para ele, não há qualquer possibilidade de compreensão do que é ser humano se for desconsiderado o caráter construtivo das diferenças entre cada um. Tais diferenças ocorrem tanto ao nível biológico (fenótipos e genótipos), quanto ao nível de relação com o meio que o cerca e no qual está incluído: essa relação se desenvolve (ou se deteriora) conforme ocorram interações (ou não) entre o ser e o meio, de uma forma totalmente particular inerente a cada indivíduo. Portanto, para o autor, é impossível deixar em segundo plano as diferenças existentes e relacionadas a etnia, idade que possui, sexo, gênero, classe social e cultura a que pertence, religião que professa, nível de escolaridade que possui e até mesmo o entorno geográfico imediato. Essas diferenças intrínsecas passam normalmente a ser interpretadas como sendo o padrão de normalidade para aquela sociedade que o indivíduo faz parte. Todavia, algumas dessas diferenças, em condições específicas, irão ser ressignificadas como sendo depreciativas, estando fora da “normalidade” vista e prevista dentro dessa mesma sociedade, principalmente aquelas com referência a patologias congênitas ou adquiridas: “É a esse tipo de diferenças que nos referimos quando falamos em deficiências.” (MANTOAN, 2003, p. 148) Ainda de Omote (1990, 1997) apud PICCOLO, MOSCARDINI e COSTA (2010) consideramos importante deixar anotado o seguinte trecho:

Página 99

a deficiência apenas se materializa como tal mediante critérios adotados socialmente, critérios estes estruturados a partir do próprio meio social, das exigências estabelecidas pelas atividades cotidianas e pela forma com que os outros (audiência) interpretam e se relacionam com o referido desvio. Logo, os discursos sobre as deficiências não traduzem necessariamente suas características peculiares, mas, sim, interpretações dessas características, coerentemente, a deficiência trata-se de uma questão antes política, que médica, psicológica ou educacional. (PICCOLO, MOSCARDINI e COSTA, 2010, P.58)

Cabe-nos trazer, para definitivamente esclarecer os termos utilizados no presente texto, alguma informação sobre o termo neurodiversidade : cunhado pela socióloga australiana Judy Singer (com síndrome de Asperger, diagnóstico à época), refere-se a condições como o TEA, o TDAH, dislexia e dispraxia , entre outras, não são anomalias, e sim diferenças neurológicas, e como tal devem ser reconhecidas e portanto respeitadas. Para essa autora, não existe um tipo neurológico que possa ser chamado de “normal”, mas sim a humanidade pertente a um espectro, variável de diversas formas, assim como os genes, as espécies e até mesmo os ecossistemas; como entidades diversas pertencentes a esse espectro, o tipo neurológico é mais uma das diferentes características humanas, passível de respeito como qualquer outra. Outro estudioso que iremos utilizar fortemente no presente trabalho é Goffman (2004), e iniciaremos com sua definição para a palavra estigma: essa é a situação do indivíduo que está inabilitado para a associação social plena. Ao deslindarmos essa definição iremos encontrar um manancial de informações, com o qual iremos trabalhar no presente texto. Iniciaremos com a palavra indivíduo: não ser humano, não cidadão, mas indivíduo, como aquele que possui individualidade própria, histórico, cultura e aprendizados pessoais e inerentes à sua pessoa; um ser completo, fazendo-se e refazendo-se a cada e a todo momento, eternamente incompleto, porém completo a cada segundo de sua vida. Outra palavra que consideramos forte é inabilitado: inabilitado pressupõe uma situação que possa haver habilitação, que o indivíduo ora descrito possa ser, por algum processo ou método, assistido e acrescido de saberes, valores, ou instrumentos que o permitam fazer parte da sociedade de tal forma que esses processos a que ele foi ou será submetido o habilitem a existir como um ser social. Outro ponto que ainda precisamos trabalhar é associação social plena, fazendo ênfase na palavra plena : é necessário que esse indivíduo (portanto único) devidamente habilitado por algo ou alguém possa ser parte da sociedade em sua integralidade. Esse postulado é frontalmente diverso do que preconiza a neurodiversidade, obviamente: o estigma sugere que todos devam ser iguais, devidamente encaixotados nas regras sociais (que, por sua vez, mudam com constância conforme valores ditados por outrem que não a grande massa social), de uma forma autômata, robótica e desinteligente. Desinteligente, por

Página 100 não respeitar a inteligência própria de cada um como ser único, com respostas igualmente únicas a cada situação vivenciada; autômata e robótica por responder somente conforme obriga a sociedade de consumo que ele seja, para ser aceito integralmente nessa sociedade. Àquele que ousa diferenciar-se é definitivamente exorcizado para fora do ambiente social. Ainda cremos ser necessário deslindar o termo discriminação, e para tal utilizaremos o artigo 4 do texto da lei 13.146 de 6 de julho de 2015:

Art. 4º Toda pessoa com deficiência tem direito à igualdade de oportunidades com as demais pessoas e não sofrerá nenhuma espécie de discriminação.

§ 1º Considera-se discriminação em razão da deficiência toda forma de distinção, restrição ou exclusão, por ação ou omissão, que tenha o propósito ou o efeito de prejudicar, impedir ou anular o reconhecimento ou o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais de pessoa com deficiência, incluindo a recusa de adaptações razoáveis e de fornecimento de tecnologias assistivas.

Dois outros conceitos, não tão conhecidos do grande público são necessários aqui e como tal devem ser devidamente esmiuçados: capacitismo e psicofobia. Capacitismo, pela definição encontrada fora dos dicionários (uma vez que esse neologismo ainda não consta destes), é a discriminação e o preconceito social contra pessoas com alguma deficiência. Também encontramos a informação que, segundo Fiona Kumari Campbell, professora sênior na Escola de Educação e Serviço Social da Universidade de Dundee na Escócia, capacitismo refere-se à palavra inglesa ableism, que significa a discriminação por motivo da condição de deficiência. Esse novo conceito está diretamente associado com a possibilidade de produção de poder (mas principalmente se relaciona com a possibilidade de poder aquisitivo, ou seja, a pessoa deve ser capaz de se sustentar por si só em um ambiente capitalista) e se relaciona com a temática do corpo por uma ideia de padrão corporal perfeita (aqui fazemos um paralelo com os diversos trabalhos estudados de Sadao Omote, constantes nas referências bibliográficas deste, que versam sobre aparência física, atratividade e deficiência); também sugere um afastamento da capacidade e da aptidão dos seres humanos, em virtude da sua condição de deficiência. A partir do que foi dito, verificamos que imiscui-se no capacitismo outra crença que é mais perniciosa ainda e que transcende o conceito de deficiência: aquela que a pessoa, desassistida de uma ou outra forma, seja pela pobreza material, cultural ou mesmo intelectual, não consegue alcançar benefícios porque não tem “vontade” para tal. Sua capacidade de “sucesso” está tolhida por sua “falta de vontade”, não sua situação pessoal. Como bem explicita o tema do I Congresso de Pessoas com Deficiência da UFRB (Universidade Federal do Recôncavo da Bahia), Incapaz é o Preconceito!

Página 101

De uma forma gráfica, a que os autistas mais apreciam e compreendem, capacitismo é

Figura 14 - Charge sobre capacitismo

Autor: Ricardo Ferraz

Outro neologismo que não localizamos nos dicionários foi o termo psicofobia, mais fácil de ser definido pelas raízes etimológicas do mesmo: “medo” de se aproximar de pessoas que têm transtornos e deficiências mentais. O que observamos em muitas situações é que pais afastam seus filhos de crianças deficientes, muitas vezes de forma ofensiva, como se a deficiência fosse uma doença contagiosa. Uma vez que situamos alguns dos principais conceitos que utilizaremos no presente capítulo, como diversidade, neurodiversidade, deficiência, capacitismo, psicofobia, inclusão e integração, faz-se necessário prosseguir : para Goffman (2004) a sociedade – por sua vez, feita por indivíduos, portanto díspares entre si – estabelece meios de tal forma a categorizar as pessoas, bem como o total de características consideradas comuns para cada um dos membros dessa categoria, bem como atributos previamente estabelecidos por esta norma social, que perfazem sua identidade social; ainda para esse autor todos os humanos tem duas identidades, uma identidade social real, constituída de atributos que as pessoas costumam ter, e a identidade social virtual, que são aqueles atributos que parecemos ter mas não os temos, uma máscara social que esconde o verdadeiro eu. A relação social estabelecida através de rotinas também sociais nos permitem um relacionamento com outras pessoas, e através desses meios, critérios pré-estabelecidos é que nós, de forma pré-concebida socialmente, nos aproximamos ou afastamos de outro indivíduo;

Página 102 porém, tudo isso se dá de forma praticamente automática, uma vez que estamos tão condicionados a reagir com a “igualdade social” do grupo a que pertencemos, que ignoramos o mecanismo social que estamos utilizando (ou melhor, que por ele estamos sendo utilizados). Se as “exigências sociais” do grupo que pertencemos estão sendo atendidas quando nos aproximamos de Outro indivíduo, então o Outro se torna próximo. Ao mesmo tempo, se esse Outro possui um atributo que o torna diferente das categorias que estamos esperando ter como resposta, muito provavelmente esse Outro será rejeitado, por pertencer a uma categoria inferior à do interlocutor. Nesse segundo caso, o Outro deixa de ser um “comum social”, da mesma categoria que Eu, tornando-se alguém “estragado e diminuído” (GOFFMAN, 2004, p. 6). Tal característica é um estigma, principalmente quando o seu efeito de descrédito é muito grande.

O termo estigma, portanto, será usado em referência a um atributo profundamente depreciativo, mas o que é preciso, na realidade, é uma linguagem de relações e não de atributos. Um atributo que estigmatiza alguém pode confirmar a normalidade de outrem, portanto ele não é, em si mesmo, nem horroroso nem desonroso. [...]

Um estigma, é então, um tipo especial de relação entre atributo e estereótipo (grifo nosso), embora eu proponha a modificação desse conceito, em parte porque há importantes atributos que em quase toda a nossa sociedade levam ao descrédito.

O termo estigma e seus sinônimos ocultam uma dupla perspectiva: Assume o estigmatizado que a sua característica distintiva já é conhecida ou é imediatamente evidente ou então que ela não é nem conhecida pelos presentes e nem imediatamente perceptível por eles? No primeiro caso, está-se lidando com a condição do desacreditado, no segundo com a do desacreditável.(GOFFMAN, 2004, p. 6-7)

A partir do que foi dito acima, percebe-se que o estigma é socialmente criado com a contradição evidente do estereótipo de igualdade criado pela sociedade para com os atributos de um indivíduo: para Goffman o estigma é uma identidade deteriorada, devendo portando ser combatida e evitada, pois é tida como um mal dentro da sociedade. Ainda segundo Goffman (2004), existem três tipos de estigma nitidamente diferentes: as abominações do corpo (“deformidades” físicas), as culpas de caráter e os estigmas tribais de raça, nação e religião (que podem ser transmitidos pela linhagem e contagiar igualmente todos os elementos de uma família). Porém, os três apresentam as mesmas características sociológicas: alguém que poderia ser recebido na relação social cotidiana possui um traço que o diferencie e o afaste dos demais, destruindo a possibilidade de serem observados outros atributos que ele possua. Uma frase extremamente contundente de Goffman e que aqui

Página 103 queremos deixar anotada é : “Por definição, é claro, acreditamos que alguém com um estigma não seja completamente humano.”(GOFFMAN, 2004, p. 8). Por conta disso ocorrem as discriminações, que de forma intencional ou não, irá reduzir as chances de vida do estigmatizado:

Construímos uma teoria do estigma; uma ideologia para explicar a sua inferioridade e dar conta do perigo que ela representa, racionalizando algumas vezes uma animosidade baseada em outras diferenças, tais como as de classe social. Utilizamos termos específicos de estigma como aleijado, bastardo, retardado, em nosso discurso diário como fonte de metáfora e representação, de maneira característica, sem pensar no seu significado original. (GOFFMAN, 2004, p. 8)

Comenta ainda Goffman que tais sistemas estão em aparente decadência, uma vez que o indivíduo estigmatizado tende a possuir as mesmas crenças sobre identidade que os normais (neurotípicos no caso do autismo), inclusive sua sensibilidade sobre o que ele é pode até confundir-se com a crença que ele seja uma pessoa normal, portanto alguém que merece um destino feliz e oportunidades autênticas e idênticas aos demais humanos. Essa noção de "ser humano normal" pode ter sua origem na abordagem médica da humanidade, ou até no conceito de Nação-Estado, ao tratar todos os seus membros como iguais em alguns aspectos; porém, independentemente da origem, ela parece fornecer a representação básica por meio da qual os leigos usualmente se concebem enquanto indivíduos sociais, que baseiam suas reivindicações não no que seria devido a todas as pessoas, mas sim a todas as pessoa de sua categoria social. Apesar disso, ou exatamente por conta disso, ele verifica que não importa o que os outros falem (ou admitam), na verdade ele não é aceito no âmago daquele grupo social, e os padrões a que se submeteu para fazer parte daquele grupo social determinado, abandonando suas crenças e padrões antigos, o tornam especialmente suscetível ao seu “defeito” : de uma forma cruel, o estigmatizado sente vergonha por crer-se “impuro” e não conseguir ser portador de um atributo específico. Essa situação em geral cria uma autodepreciação (incutida, interiorizada, inata, não natural) como se fosse uma máscara de corpo inteiro, um disfarce colocado à revelia e com o qual se é obrigado a desfilar em praça pública : porém tal disfarce não oculta, ao contrário revela o atributo diferenciador que é o gatilho e ao mesmo tempo a bala que irá matar qualquer arremedo de normalidade que o estigmatizado possa buscar. Passa a procurar, muitas vezes até desesperadamente, uma absolvição de sua condição, sob a forma de aceitação social : nos casos onde isso é possível, verifica-se não um status de normalidade, e sim uma transformação egóica : alguém que tinha

Página 104 um defeito particular se transforma (trans-forma) em alguém que tem provas de que corrigiu, definitivamente, esse defeito. Cabe nesse ponto tomar cuidado com a vitimização gerada por “prestadores de serviços” que prometem “curas” milagrosas, “pílulas do Dr. Caramujo”16 que prometem acabar com todos os males. Ao trazermos isso para o grupo tema deste trabalho, é particularmente verificado que existam inúmeros charlatães que prometem curar o autismo, como o caso do MMS - mineral miracle solution", em inglês – que na verdade trata-se de dióxido de cloro, que é usado como desinfetante e descolorante, altamente tóxico, que pode até corroer mucosas, bem como prejudicar a absorção de ferro pelo organismo. Apesar de proibida, a substância ainda hoje é vendida, principalmente pela Internet e utilizada por pais que procuram uma solução medicamentosa para uma situação que não é doença. De mesma forma encontramos terapias abusivas e aversivas, uma das quais já tratamos superficialmente no capítulo 1 de histórico do autismo, o método ABA : se mal conduzido, reduz-se a “estímulos pavlovianos aversivos, que, uma vez deixados de ser utilizados, fazem o indivíduo voltar à condição anterior” (GOFFMAN, 2004, p. 198) , ou – em muitos casos, infelizmente – a uma situação pior, por conta dos traumas gerados por essa abordagem. Goffman ainda nos esclarece que essa “busca da cura social”, sendo uma intervenção prática ou de fraude, a pesquisa que originou essa “cura” (em geral informada de forma evasiva ou envolta em mistério, a um custo exorbitante) que ocasiona a intervenção, revela, de maneira específica, os extremos a que os estigmatizados estão dispostos a chegar em sua busca de enquadrar-se (literalmente, conter-se, emparedar-se, caber em um quadrado – pequeno ou grande demais para si - quando provavelmente são maravilhosamente redondos) e, portanto, a angústia da situação que os leva a tais extremos. O indivíduo estigmatizado pode ainda tentar ajustar a sua situação de forma indireta, dispensando um enorme esforço individual visando dominar as áreas de atividade consideradas, geralmente, como inalcançáveis a pessoas com o seu “defeito”. Porém, mesmo alcançando seu objetivo, tão duramente conquistado, o estigmatizado descobre que não chegou ao fim de sua busca, na verdade apenas a iniciou: ao abandonar sua couraça protetora de “deficiente”, o estigmatizado não tem apoio para prosseguir num mundo de “normais”, que por sua vez também tem outras armadilhas e situações a que, como “diferente”, o estigmatizado anteriormente não havia sido apresentado – portanto, não sabe como lidar com isso sem sua

16 “Pílulas do Dr. Caramujo” é uma alegoria criada por Monteiro Lobato na qual um ser qualquer – no caso, uma boneca de pano - após tomar essas pílulas, de forma instantânea passam a falar;

Página 105 armadura de deficiente. Em alguns casos, passam a utilizar mecanismos compensatórios como padrões de comportamento neurastênicos, histéricos ou mesmo estados de ansiedade aguda. De igual forma, porém ao inverso, esse quadro pode vir a reafirmar as limitações dos normais, que não buscam com vigor algo que é inerente ao seu estado de normalidade. Quando ocorre o encontro entre pessoas normais e estigmatizadas, segundo Goffman (2004), surge o que ele chama de uma das cenas fundamentais da sociologia,

porque, em muitos casos, esses momentos serão aqueles em que ambos os lados enfrentarão diretamente as causas e efeitos do estigma. O indivíduo estigmatizado pode descobrir que se sente inseguro em relação à maneira como os normais o identificarão e o receberão [...] e essa incerteza é ocasionada não só porque o indivíduo não sabe em qual das várias categorias ele será colocado mas também, quando a colocação é favorável, pelo fato de que, intimamente, os outros possam defini-lo em termos de seu estigma: assim, surge no estigmatizado a sensação de não saber aquilo que os outros estão "realmente" pensando dele. (GOFFMAN, 2004, p. 16).

Outro ponto, nesse mesmo momento de encontro que o mesmo autor irá brilhantemente esclarecer é quando o estigmatizado se sente como algo em uma vitrine, basicamente o mesmo comportamento que ao se ver um animal de circo:

Além disso, durante os contatos mistos, é provável que o indivíduo estigmatizado sinta que está "em exibição", e leve sua autoconsciência e controle sobre a impressão que está causando a extremos e áreas de conduta que supõe que os demais não alcançam.[...] Seus menores atos, ele sente, podem ser avaliados como sinais de capacidades notáveis e extraordinárias nessas circunstâncias.[...] Ao mesmo tempo, erros menores ou enganos incidentais podem, sente ele, ser interpretados como uma expressão direta de seu atributo diferencial estigmatizado.

Quando o defeito da pessoa estigmatizada pode ser percebido só ao se lhe dirigir a atenção (geralmente visual)[...] - é provável que ela sinta que estar presente entre normais a expõe cruamente a invasões de privacidade (grifo nosso), mais agudamente experimentadas, talvez, quando crianças a observam fixamente. Esse desagrado em se expor pode ser aumentado por estranhos que se sentem livres para entabular conversas. nas quais expressam o que ela, considera uma curiosidade mórbida sobre a sua condição, ou quando eles oferecem uma ajuda que não é necessária ou não é desejada. (GOFFMAN, 2004, p. 16)

É profundamente esclarecedora a forma como este autor conseguiu colocar em palavras o que os autistas (e também seus familiares) passam ao longo de suas vidas em seus relacionamentos sociais com neurotípicos : uma invasão do espaço pessoal ( até observada com alguns profissionais menos preparados para o trato com autistas), um desrespeito às suas necessidades e particularidades, que criam mecanismos de defesa bastante difíceis de serem transpostos em ocasiões similares, porém com outro tipo de pessoa.

Página 106

Aqui novamente vamos utilizar o que Goffman (2004) explica, que o estigmatizado utiliza duas formas de “resposta” a essa invasão: ou de forma agressiva (física ou verbalmente), ou de forma a se introspectar e não responder. Qualquer uma das duas atitudes irá apenas cimentar o pensamento comum de que autistas “estão em outro mundo”, quando a realidade é que não é dado a eles espaço para se manifestarem no mundo que habitam. Urge repassar conhecimento sobre autistas – ou estigmatizados, de uma forma geral – que, mesmo nos casos em que haja deficiência intelectual associada ao quadro, eles têm gostos e saberes e necessidades que devem ser observadas e atendidas, como qualquer outro ser humano. É um pensamento apenas básico, mas nem mesmo isso os autistas recebem por parte da sociedade que os estigmatiza. De qualquer forma, a relação social entre um deficiente e um não-deficiente são sempre angustiantes para os primeiros: por não saberem o que se espera deles, muitas vezes pode “ler” significados não existentes ou não intencionais nas ações que são objeto, e por outro lado, os não deficientes também não sabem dosar a quantidade correta de sensibilidade e interesse: se em demasia, soará piegas e limitante; se “esquecermos” de suas particularidades, podemos vir a fazer exigências que sejam impraticáveis para eles. Goffman resume isso na frase “isso signifique tratá-lo como se ele fosse alguém melhor do que achamos que seja, ou alguém pior do que achamos que ele provavelmente é.”(DONVAN e ZUCKER, 2017, p. 19) Se não houver tal visão (de coitadinho ou de gênio) ocorre a situação de “não-pessoa”, como alguém que não existe como um indivíduo digno de atenção social. É bastante comum que em situações de interação social a conversa soe travada, pois são em geral utilizadas categorizações inadequadas, onde todos os envolvidos não se sintam à vontade. Como o estigmatizado provavelmente já passou por mais vezes por essas situações, em geral é ele que traz uma saída, uma alternativa a essa situação constrangedora. Cabe aqui a experiência pessoal de ter uma aluna cega que disse ao restante da classe que podiam utilizar o termo “ver” na forma usual, pois apesar dela não utilizar os olhos dela para tal, ela podia “ver” de formas diferentes. É necessário nesse momento voltar a uma definição dada anteriormente e não propriamente tratada ou esclarecida, a dos dois eus, ou melhor, a identidade virtual e a identidade real de uma pessoa, e que pode existir uma desconexão entre ambas. Quando se torna conhecida ou se manifesta, essa situação irá corromper a identidade social, afastando o indivíduo da sociedade e de si mesmo, tornando-o alguém desacreditado perante um mundo que não o acolhe. Porém, muitos dos indivíduos estigmatizados percebem que existe nesse mundo uma classe de pessoas compassivas, dispostas a reconhece-lo como humano (portanto, alguém que faz parte intrínseca desse mundo), apesar das aparências e das dúvidas dele mesmo.

Página 107

Esse grupo de compassivos pode ser dividido em dois, ainda : o primeiro compartilha o estigma, por experiência própria, recebendo-o em seu seio, orientando-o quanto aos necessários artifícios para relacionar-se com os demais humanos, e criando o que Goffman chamou de “círculo de lamentação“, onde ele pode refugiar-se em busca de apoio moral e o conforto de possuir um recanto protegido, sua “casa”, aceito como alguém igual a qualquer outro “normal”. Isso permite ao estigmatizado até mesmo organizar sua vida, porém esta será incompleta, uma vez que foi criada uma “bolha de proteção” em um mundo inóspito, que não permite o toque real com a sociedade que o oprime. Ainda pode ocorrer a situação que o relato de seus iguais o aborrecer, uma vez que a maioria das conversas gira em torno do “problema” (estigma). O estudo sociológico em geral se debruça sobre o tipo de vida coletiva, suas relações sociocomunitárias, afim de compreender esses movimentos sociais, estudando e tratando com entidades como os Alcoólicos Anônimos, que criaram até doutrinas (“os doze passos”17), bem como um estilo de vida que permita viver dentro da sociedade e não à sua margem. Existem ainda redes de ajuda mútua, mesmo pela internet ( e como tal sugerimos a leitura do trabalho na íntegra de Goffman (2004) que desvenda substancialmente como tais redes de apoio são intrinsecamente importantes para as pessoas em nossa atualidade ). Digno de nota aqui é o trabalho realizado por Muniz, (2018) e sua evolução para outras redes sociais, trabalho que serviu originalmente como orientação para a presente pesquisa. Cabe ainda ressaltar a grande quantidade de entidades de apoio presencial existentes nas cidades, com uma alta concentração de pessoas socialmente estigmatizadas. A partir da formação de um “grupo” de estigmatizados, cria-se quase uma nova linguagem, ou pelo menos forma de referência dentro desse mesmo grupo – exemplificando a fala dos grupos LGBTQQICAPF2K+18 ao apropriar-se de inúmeras expressões yoruba em suas conversas - , ocorrendo inclusive divergências de crença e valores (não religiosos) até mesmo dentro dessas categorias de estigma, e com frequência essas categorias juntas não irão formar um grupo (caso observado na comunidade autista, onde os pais dos autistas severos fazem uma luta à parte dos autistas leves, inclusive não os reconhecendo como seus representantes em muitas das lutas, enfraquecendo sobremaneira o movimento reivindicatório, fato esse descrito também por Goffman).

17 Programa criado no EUA em 1935 para o tratamento de alcoolismo, possui estratégia de reuniões constantes para discutir seus problemas, compartilhar suas vitórias e obter apoio mútuo. 18 Sigla abrangente para Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, Queer, Questionando, Intersexo, Curioso, Assexual, Pansexual e Polissexual, Familiares e Amigos, Two-spirit, Kink, que são opções sexuais diferenciadas da heterossexualidade tradicional.

Página 108

Ainda conforme Goffman (2004)

O que se sabe é que os membros de uma categoria de estigma particular tendem a reunir-se em pequenos grupos sociais cujos membros derivam todos da mesma categoria, estando esses próprios grupos indivíduos a uma organização que os engloba em maior ou menor medida.[...] Uma categoria, então, pode funcionar no sentido de favorecer entre seus membros as relações e formação de grupo mas sem que seu conjunto total de membros constitua um grupo (GOFFMAN, 2004, p. 23)

Possuindo ou não uma “base de recrutamento” – e aqui colocamos novamente os diversos comunidades virtuais da Internet, bem como as associações físicas de encontro, como as AMA19, ABRAÇA20 ou mesmo o Movimento Orgulho Autista21 – as comunidades subvencionam agentes para sua representação. Goffman nos esclarece que

a diferença é estabelecida pelo indivíduo colocado à frente da mesma: uma pessoa igual a eles, um "nativo" que está realmente a par das coisas, como ocorre com os cegos, os surdos, os alcoólatras e os judeus; ou alguém que pertence ao outro lado, como fazem os presidiários ou os deficientes mentais. (Os grupos de ação que servem a mesma categoria de pessoas estigmatizadas podem, às vezes, estar em ligeira oposição uns em relação aos outros e essa oposição frequentemente reflete uma diferença entre a direção a cargo dos "nativos" e a direção a cargo dos normais.). Uma tarefa característica desses representantes é convencer o público a usar um rótulo social mais flexível à categoria em questão.(GOFFMAN, 2004, p. 24-25).

É nesse o ponto que começamos a nos aproximar do objeto de estudo do presente trabalho: o momento em que se encontra o movimento autista no Brasil é o de forte reivindicação de que mais e mais autistas participem como oradores de assembleias, encontros, congressos, enfim, encontros onde se discute o autismo, através da máxima “Nada sobre nós sem nós”, tão bem aclarada por Goffman (2004):

Outra de suas tarefas usuais é a de aparecerem como “oradores” perante diversas plateias de normais e estigmatizados; elas apresentam o caso em nome dos estigmatizados e, quando elas próprias são “nativas” do grupo, fornecem um modelo vivido de uma realização plenamente normal.[...] necessária aqui uma explicação sobre aqueles que vêm a atuar como representantes de uma categoria estigmatizada. São pessoas com estigma que têm, de início, um pouco mais de oportunidades de se expressar, são um pouco mais conhecidas ou mais relacionadas do que os seus companheiros de

19 Associação de Amigos do Autista – primeira entidade brasileira de apoio aos autistas e suas famílias, criada em 1983 em São Paulo. 20 Associação Brasileira para Ação por Direitos das Pessoas com Autismo– organização nacional de defesa dos direitos humanos das pessoas com autismo, criada em 2008 com a finalidade de promover a cidadania plena das pessoas com autismo e suas famílias. 21 Movimento Orgulho Autista Brasil (MOAB) é uma entidade nacional Não-Governamental, sem finalidades lucrativas, criado em 2005. É formado por pais, mães, amigos e simpatizantes da causa, e busca a melhoria da qualidade de vida para as pessoas diagnosticadas com autismo e para as suas famílias.

Página 109

sofrimento e que, depois de um certo tempo, podem descobrir que o "movimento" absorve todo o seu dia. (GOFFMAN, 2004, p. 25)

Ainda segundo este autor, existe um grupo de indivíduos que em geral apoia os estigmatizados, os “informados” ( termo que Goffman recolhe da fala dos homossexuais ), aquelas pessoas normais, mas que sua situação pessoal os levou a conviver intimamente com a vida secreta de um indivíduo estigmatizado, de tal forma a simpatizar com ela, cujo convívio é aceito pelo grupo dos estigmatizados. Tais pessoas são aquelas perante as quais o estigmatizado não precisa de autocontrolar, ou se envergonhar de suas formas diferenciadas de manifestar-se, porque sabe que, por estes, será considerado uma pessoa comum. Existe ainda um segundo tipo de pessoa “informada “, que é aquela que possui uma relação com o estigmatizado – esposa, filha, pai, amigo, todos estes obrigados a compartilhar o descrédito do estigmatizado por conta da proximidade com este. Uma das respostas a essa situação é abraçar esse destino e viver dentro do grupo social do estigmatizado. Como diz o autor à página 29 “Os problemas enfrentados por uma pessoa estigmatizada espalham-se em ondas de intensidade decrescente.” (GOFFMAN, 2004, p. 29) Isso não quer dizer que a relação existente entre o estigmatizado e seus aliados seja fácil: em momentos mais estressantes, pode ocorrer uma baixa na defesa pessoal e a dependência desses aliados tornar-se mais alta. No que tange à educação, as pessoas estigmatizadas tendem a ter experiências diferenciadas na aprendizagem : na grande maioria das vezes, são vistos como indesejáveis em sala de aula, um entrave ao aprendizado dos demais, alguém que nunca aprenderá nada. Como isso vem sendo tratado desde sua entrada na escola – se regular, em maior volume – o estigmatizado tende a incorporar essas imposições sociais de “menos valia”, de acreditar-se inferior ao restante, pois uma figura de autoridade – a primeira que ele encontra após sair do seio familiar, seu primeiro grupo social – diz que é assim. Anos e anos serão necessários, com muito trabalho pessoal e de apoio psicológico para derrubar essas crenças tão arraigadamente importadas a eles; infelizmente, em muitos casos, isso não será retirado nunca de seus valores. Goffman nos diz de duas fases de socialização (que trazemos para o mundo escolar formal): na primeira delas, como já explicitamos anteriormente, a pessoa estigmatizada aprende e incorpora o ponto de vista dos normais, e numa segunda é aquela em que ela aprende que possui um estigma particular e então, de forma detalhada, as consequências de possuí-lo perante a sociedade que ele faz parte. A sincronização e interação entre essas duas fases irá trazer quatro modelos possíveis de ação : a primeira delas refere-se às pessoas com um estigma congênito e que são socializadas a partir dessa sua situação de desvantagem, mesmo quando aprendentes

Página 110 adequados e incorporadores dos padrões aos quais eles, obviamente, irão fracassar. O segundo modelo é aquele que em a família cria uma bolha protetora (eventualmente aumentada por uma vizinhança compassiva), na qual a informação da diferença não entra : no momento que essa criança protegida é arremessada dentro da sociedade ( em geral, em seu primeiro dia de aula ) ela é então apresentada ao seu próprio estigma, de uma forma em geral agressiva por seus pares.

É interessante notar que, quanto maiores as "desvantagens" da criança, mais provável é que ela seja enviada para uma escola de pessoas de sua espécie e que conheça mais rapidamente a opinião que o público em geral tem dela. Dir- lhe-ão que junto a "seus iguais" se sentirá melhor, e assim aprenderá que aquilo que considerava como o universo de seus iguais estava errado e que o mundo que é realmente o seu é bem menor. Deve-se acrescentar que quando; na infância, o estigmatizado consegue atravessar seus anos de escola ainda com algumas ilusões, o estabelecimento de relações ou a procura de trabalho o colocarão, amiúde, frente ao momento da verdade.(GOFFMAN, 2004, p. 31)

O terceiro modelo é aquele em que a pessoa tornar-se estigmatizada em uma fase mais avançada de sua vida, e o quarto modelo é para aqueles que, no início de sua vida, são socializados em uma determinada sociedade, e que por qualquer razão são obrigados a posteriormente mudar de ambiente social, tornando-se estigmatizados nesse segundo ambiente. Sobre os dois últimos modelos não discorreremos por não se tratar do escopo do presente trabalho. Goffman ainda nos traz a situação em que o estigmatizado pela primeira vez encontra outros como ele, e estes irão agir como “monitores” na forma de tratar o mundo. Caso bastante observado pela pesquisadora são as interações que ocorrem em redes sociais e listas de discussão (Yahoogrupos, Googlegrupos, Whatsapp) onde os pares se apoiam e se orientam, inclusive quanto a escolas adequadas ou inadequadas, bem como profissionais idem, conforme Gonçalves (2002), esmiuçadas pela leitura de Goffman (2004) no trecho abaixo:

A relação do estigmatizado com a comunidade informal e as organizações formais a que ele pertence em função de seu estigma é, então, crucial. Essa relação, por exemplo, estabelecera grande distância entre aqueles cuja diferença cria muito pouco de um novo "nós" e aqueles, como os membros de grupos minoritários, que se consideram parte de uma comunidade bem organizada com tradições estabelecidas. (GOFFMAN, 2004, p. 35).

E por último, gostaríamos de deixar mais dois conceitos, quais sejam bioidentidade e ativismo. Silveira (2017) chama de bioidentidade a construção das identidades a partir de uma condição biológica, como um hipertenso, um diabético, um autista, um cadeirante, por exemplo. Trata- se de um termo que está sendo mais e mais usado, principalmente no campo da sociologia e

Página 111 dele decorre, diretamente, o termo biossocialidade, que seriam os grupos formados a partir das bioidentidade e uma forma diferenciada de socializar-se vinculada a essas questões biológicas. Os autores que se debruçam sobre o tema da bioidentidade atualmente são Nikolas Rose (2007) e Paul Rabinow (2003). Finalizaremos com o conceito de ativismo, que é compreendido como sendo “a militância ou ação continuada visando uma mudança social ou política, preferencialmente de forma direta, seja através de meios pacíficos ou não, que incluem a defesa, propagação e manifestação pública de idéias. Em seu lado mais extremo, pode chegar a afrontar a Lei.” Assis (2006) nos trará a idéia de “renovação da imagem dos movimentos de protesto: uma construção que traduz consciência social, responsabilidade e exercício da cidadania; no lugar de “subversão”, “revolução” e “radicalismo”. Esse mesmo autor nos dirá que “situa o ativista como “mais que um militante” e “menos que um revolucionário” (ASSIS, 2006, p. 14) Após essa equalização de termos, conceitos e metodologias que utilizamos no presente trabalho, passamos a apresentar a pesquisa histórica sobre como se deu a criação – ou, melhor dizendo, recriação – do diagnóstico do autismo.

Página 112

CAPÍTULO 4 – FORREST GUMP, O CONTADOR DE HISTÓRIAS 22

Quem acha que autista "severo" não pode ser incluído: 1) não entendeu o significado de inclusão. 2) não sabe o que é autismo. 3) precisa se pautar mais na legislação vigente. Se você olha pra uma pessoa e já pensa em todas as coisas que ela não pode aprender, é você quem está precisando aprender e desaprender um monte de coisas antes de lidar com essa pessoa. Eu sou pedagoga e amo aprender. Isso dá muito certo. Amo descobrir o modo como cada pessoa aprende. Amo criar estratégias de aprendizagem para mim e para os outros. No meu modo de ver, aprendizagem é sempre possível mesmo quando muitos profissionais considerados renomados dizem que não. Podem nos tirar tudo, mas o que aprendemos fica com a gente. Isso por si só já é uma tremenda revolução. #presumacompetência Rita Louzeiro, pedagoga, autista

4.1 - CARACTERIZAÇÃO DOS PARTICIPANTES

Tratou-se de um estudo transversal, do qual participaram seis das dez pessoas inicialmente convidadas, selecionadas por critério de aceite das condições da pesquisa anteriormente informadas, quais sejam: ter diagnóstico oficial de Transtorno Global do Desenvolvimento conforme CID-10 efetuado por um profissional médico; a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido por aqueles que não possuíam interdição judicial, e assinatura do Termo de Assentimento Livre e Esclarecido por parte dos responsáveis legais quando isso ocorria. Os critérios de exclusão foram: não aceite das condições informadas, ou seja, a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido; não possuir/apresentar diagnóstico firmado por profissional médico. Esclarecemos que as quatro outras pessoas convidadas apresentaram dificuldades de comunicação nos moldes desejados para o presente trabalho, e para efetuar uma pesquisa com essas pessoas seria necessário criar outra

22 Forrest Gump no original, que no Brasil teve o subtítulo de O Contador de Histórias, é um filme estadunidense de 1994, dirigido por Robert Zemeckis, baseado no livro de Winston Groom. A trama atravessa várias décadas na vida do personagem central, Forrest Gump, um homem simples do Alabama que, em suas andanças pelo país, acaba encontrando personalidades históricas, influenciando a cultura popular e testemunhando alguns dos eventos mais notórios da história do século 20.Foi escolhido como nome para esse capítulo de análise de dados em virtude da análise que o filme faz, nas entrelinhas, através das histórias contadas por seu protagonista que não demonstra sua opinião em momento algum, isso sendo reservado aos demais integrantes do elenco, e até mesmo do público que o assiste.

Página 113 metodologia de análise dos dados coletados, como a interpretação do desenho, por exemplo, gerando duplicidade de metodologia. Todos os participantes foram diagnosticados clinicamente por médicos, de forma independente deste estudo. No presente trabalho utilizamos o depoimento temático de seis sujeitos, sendo quatro mulheres e dois homens, todos maiores de idade, apenas um deles com Interdição Judicial parcial, e quanto à sua identificação étnico-racial temos, conforme sistema binário de Fry (2005), um negro e cinco brancos.

Figura 15- Identificação conforme Gênero Figura 16 - Identificação Étnico-Racial de Nascimento Identificação Identificação Étnico- conforme Gênero de Racial conforme Fry nascimento (2005)

33% Mulheres 17% Brancos Homens 67% Negros 83%

Fonte: Dados levantados pela pesquisadora (GONÇALVES, 2020)

As idades variam entre 22 e 56 anos, conforme gráfico discriminativo abaixo:

Figura 17 - Faixa Etária dos Entrevistados

Fonte: Dados levantados pela pesquisadora (GONÇALVES (2020)

Página 114

Todos os entrevistados tem ensino superior, apenas um deles ainda não finalizou sua graduação.

Figura 18 - Gráfico sobre grau de instrução

Grau de Instrução - Escolaridade Regular

Ensino Superior Incompleto 17%

Ensino Superior Completo 83% Fonte: dados levantados pela pesquisadora Gonçalves (2020)

Discriminando as áreas de estudos, temos um dos entrevistados na área de Exatas, e os demais na área de Humanas, nenhum da área de Biológicas, conforme gráfico;

Figura 19 - Escolaridade - Área de Estudos Área de Estudo

0% 17% Humanas Exatas Biológicas 83%

Fonte: Dados levantados pela pesquisadora Gonçalves, 2020

Os cursos feitos pelos entrevistados são de Arquitetura e Urbanismo, Artes Visuais, História, Jornalismo e Pedagogia, conforme discriminado abaixo:

Página 115

Figura 20 - Cursos de Graduação dos entrevistados Cursos

17% Jornalismo 33% História 17% Artes Visuais Pedagogia 17% 16% Arquitetura e Urbanismo

Fonte: dados levantados pela pesquisadora Gonçalves, 2020

Um dos entrevistados é filho único e os demais possuem um e no máximo mais dois irmãos; conforme CCEB - Critérios Brasil de Classificação Econômica Brasil da ABEP – Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa, as famílias dos entrevistados estão distribuídas conforme gráfico abaixo:

Figura 21– Distribuição Socioeconômica dos Entrevistados Distribuição Sócio-Econômica C2 A 17% 16%

A

B1 B1 17% B2 C2

B2 50% Fonte: Dados levantados pela pesquisadora Gonçalves (2020)

A situação do estado civil dos entrevistados, conforme tabela de estado civil é a seguinte: um deles vive em união estável, um é divorciado, os demais são solteiros.

Página 116

Figura 22 - Estado Civil dos Entrevistados Estado Civil conforme Tabela IBGE

17% Solteiro 16% Casado/União Estável

67% Divorciado

Fonte: dados levantados pela pesquisadora Gonçalves (2020)

A distribuição geográfica dos mesmos encontra-se no gráfico da figura 15, abaixo:

Figura 23 0 Distribuição Geográfica dos entrevistados por região do Brasil Distribuição Geográfica por Região do Brasil - autistas entrevistados

17% Sudeste 33% Distrito Federal 17% Nordeste Sul 33%

Fonte: Dados levantados pela pesquisadora (GONÇALVES (2020) Esse levantamento geográfico foi considerado como item importante para mapear como estão distribuídos os entrevistados, e para verificar se a amostra seria pertinente à realidade brasileira; uma vez que não possuímos dados oficiais sobre a quantidade e distribuição de autistas em nosso país, tivemos que nos utilizar dos três únicos estudos de prevalência de autismo feitos no Brasil por (Paula, Ribeiro, et al. (2011) Ribeiro (2007), Ferreira (2008) e com

Página 117 os dados de população do IBGE fazer um cálculo sobre essa distribuição, no formato discriminado a seguir e mostrado no gráfico abaixo: Segundo dados do Censo Demográfico de 2010, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a população brasileira é de 190.755.799 habitantes. A Região Sudeste é a mais populosa, com cerca de 80 milhões de pessoas ali residindo (41,9 % da população); em seguida temos o Nordeste, com aproximadamente 54 milhões de pessoas (27,7% da população brasileira). A Região Sul tem 27 milhões de residentes (14,1%), a Norte tem 16 milhões de pessoas (8,4%) e a Centro-Oeste tem 14,5 milhões de pessoas (7.9%). Os entrevistados ficaram assim distribuídos: Região Sudeste: 33%, Nordeste (17%, Sul com 17%, e Distrito Federal com 33%.

Figura 24 - Distribuição Geográfica da População Brasileira Distribuição Geográfica da População Brasileira

8% Sudeste 8% Nordeste 42% 14% Sul Norte 28% Centro-Oeste

Fonte: Dados levantados pela pesquisadora (GONÇALVES (2020)

Página 118

Figura 25 - Percentual da população Figura 26 - Distribuição em percentual dos brasileira por regiões autistas entrevistados por Região

Fonte: Dados conforme IBGE Fonte: Dados levantados pela pesquisadora (GONÇALVES (2020)

A situação ideal de pertinência entre os dados populacionais e os da amostra entrevistada não foram alcançados, tanto em virtude de não obtermos retorno dos demais convidados, principalmente da região Norte, como pela situação político-administrativa especial do Distrito Federal.

4.2 – DADOS SUPLEMENTARES DA PESQUISA, CONFORME CADERNO DE CAMPO

Utilizamos como metodologia de criação do roteiro de perguntas as teóricas Marconi e Lakatos (2010), tendo sido informado de antemão, quando do convite para a entrevista, um texto explicando sucintamente a pesquisa, bem como as regras vindas do comitê de ética, os termos de consentimento livre e esclarecido para consulta e aceite. Posteriormente encaminhamos o roteiro de perguntas àqueles que aceitaram fazer parte da entrevista. Ao fazer parte do núcleo autista brasileiro da internet desde sua criação, em 1996, conforme descrito em Gonçalves (2002), a autora sempre esteve próxima da comunidade autista, principalmente de forma virtual. Em agosto de 2018 iniciamos os contatos com as pessoas que tínhamos conhecido pessoalmente a partir de um encontro anterior, o EBA – Encontro Brasileiro de Pessoas Autistas , realizado em Fortaleza em setembro de 2016, aliás “o primeiro encontro nacional idealizado, organizado e protagonizado por pessoas autistas”,

Página 119 conforme o site da Associação Brasileira para Ação por Direitos das Pessoas com Autismo, a ABRAÇA, promotora do evento. Naquela oportunidade, tínhamos como objetivo para a dissertação de mestrado um trabalho diferente do que foi o que optamos por finalizar aqui, o qual seria o trabalho com fotografia como forma de expressão e inserção de avaliação alternativa na educação dos autistas, trabalho iniciado com os artigos de Gonçalves (2016), Gonçalves e Scalisse (2018) . No encontro do EBA 2016 particularmente interessante, dentre as diversas mesas de debates, foi aquela cujo tema foi “Mulheres autistas e questão de gênero”, quando então conhecemos várias mulheres autistas protagonistas, e tivemos informações que não havíamos obtido até então, uma vez que a grande maioria dos autistas que conhecíamos até então era do gênero masculino. Desse primeiro encontro firmaram-se contatos entre diversos dos palestrantes, bem como dos demais participantes do congresso, que culminaram nos convites para a entrevista deste trabalho; efetuamos no total dez convites, uma vez que já tínhamos, de início, delineado um tipo específico de pessoa a ser entrevistada : autista com laudo firmado, adultos, preferencialmente que houvesse prosseguido nos estudos formais além da Educação básica, sob quaisquer modalidades (A Educação Básica, a partir da Lei de Diretrizes e Bases da Educação– lei número 9.394/96, passou a ser estruturada por etapas e modalidades de ensino, englobando a Educação Infantil, o Ensino Fundamental obrigatório de nove anos e o Ensino Médio.), independente do “grau de autismo” apresentado. Após o aceite de alguns destes convidados e de assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido, iniciamos a coletar trechos de comunicação em redes sociais em que houvesse protagonismo dessas pessoas, e a fazer recortes dos mesmos, visando essa etapa de análise de dados que viria posteriormente. Os convites prosseguiram, conforme a modalidade “bola de neve”, a partir de Cássia como “ponto zero” e suas comunicações em redes sociais; conforme acompanhamos as comunicações e interações desta com outros autistas, seguiam os convites, além daqueles que tínhamos originalmente pensado em fazer para pessoas já conhecidas anteriormente. Dos dezessete convidados, sete não retornaram nenhuma mensagem após o contato inicial; dos dez restantes, uma desistiu após o contato inicial, explicação da pesquisa e envio do termo de consentimento livre e esclarecido por diversos motivos por eles apontados : informou que fazer isso “ia dar muito trabalho” e que isso a deixava muito nervosa, em virtude de ser necessário assinar o termo de consentimento e reenviar o mesmo escaneado, razões estas que acatamos de imediato sem maiores controvérsias. Os outros três convidados eram dois autistas não-verbais e um verbal, porém a forma de entrevista destes revelou-se impraticável dentro do

Página 120 tempo e dos parâmetros estipulados para a presente pesquisa, uma vez que necessitavam de mecanismos diferenciados de entrevista, análise de dados (possivelmente desenho) e referencial teórico para esses dois públicos praticamente distintos ; diante da inviabilidade que se apresentava, com extrema tristeza abandonamos essa parte da pesquisa, com o intuito de que, se possível, apreender essa fase novamente em uma pesquisa de doutoramento. Restaram seis pessoas, sendo quatro mulheres e dois homens. Houve, nesse momento, uma mudança de paradigma necessária na presente pesquisa : apesar de termos historicamente pesquisas que nos informavam que a maior quantidade de autistas é do sexo masculino - a saber Klin (2006, p. s6), Maia, Almeida, et al. (2018, p. 9) - , e como tal havíamos planejado nosso grupo de entrevistados, fomos apresentadas por uma das entrevistadas ao artigo de Cazalis e Lacroix (2017) publicado na revista Spectrum Women, que nos explicita que :

Estudos revelam que uma mulher para cada nove homens é diagnosticada com o chamado autismo de "alto funcionamento", ou seja, autismo sem deficiência intelectual. Se compararmos isso com uma mulher para cada quatro homens diagnosticados com o autismo de "baixo funcionamento" mais facilmente identificado, podemos facilmente imaginar que muitas mulheres autistas não são diagnosticadas.(grifo nosso) (CAZALIS e LACROIX, 2017, p.1)

Ainda podemos utilizar para esse mesmo assunto o artigo de Gould e Aston-Smith (2011) sobre subdiagnóstico em mulheres, e posteriormente tomamos conhecimento do artigo de Paschoal (2019), que possui amplo referencial teórico sobre o assunto a partir de artigos e pesquisas de reconhecidas entidades de autismo, no qual nos baseamos em muitas das nossas informações aqui quanto ao autismo feminino. Então, a partir desse momento, vimos que mais um “mito” do autismo está por cair por terra: a incidência do autismo em homens não é tão diferenciada das mulheres quanto se pensou até agora; o que aparentemente ocorre, conforme os artigos estudados, é que existe falta de diagnóstico em mulheres, ou melhor, o diagnóstico de autismo é relegado a segundo, quiçá terceiro plano quando se pensa em autismo para o público feminino. Mais uma vez, fazemos um paralelo com as histéricas de Freud: a ciência, infelizmente, ainda se pauta por paradigmas misóginos também no campo dos diagnósticos femininos. Definido o grupo de sujeitos a serem entrevistados, iniciados os contatos em agosto de 2018 e somente em março de 2019 conseguimos finalizar a remessa dos termos de consentimento, aceite e retorno dos mesmos.

Página 121

Após isso, e a partir de Kramer (2002), com as devidas aproximações para um público- alvo diferenciado, solicitei aos entrevistados que escolhessem pseudônimos ou nicknames sob os quais seriam identificados na presente pesquisa. A solicitação foi recebida de forma diferenciada entre os entrevistados, desde surpresa até conhecimento prévio dessas situações de pesquisa, mas todos acataram a mesma, e ao serem questionados sobre o porquê de terem escolhido esses pseudônimos em relação a outros, suas personalidades começaram a se mostrar, como se esperava, timidamente, demonstrando a magnitude das mentes que estavam se manifestando : Hércules Brennand, por exemplo, disse ter escolhido esse pseudônimo em virtude do herói grego que passou por diversas vicissitudes e provas até encontrar sua paz pessoal, e o sobrenome Brennand é de uma pessoa histórica de sua cidade, inclusive com o Instituto Ricardo Brennand, local que reúne arte e história em um espaço paradisíaco de 30.000 m2 . Lótus e Luz nos informaram tratar-se de palavras importantes e significativas à sua fé budista. Vanessa nos disse ter escolhido esse pseudônimo por que as Vanessas que ela conheceu são todas “gente boa”, e Cássia escolheu esse por ter sido o primeiro que ela lembrou, no momento do pedido. Ana não nos enviou pseudônimo, e optamos por escolher esse nome a partir de uma conversa sobre nossos respectivos animais de estimação, sendo Ana a minha gata sobre a qual conversamos. Em virtude de diversos compromissos, tanto nossos quanto dos entrevistados, somente conseguimos finalizar as entrevistas em julho de 2019; sentimos a necessidade, em alguns momentos, de dividir o roteiro de perguntas em diversas seções, em virtude do cansaço apresentado pelos entrevistados; também é digno de nota aqui que o entendimento sobre algumas questões fez-se necessário ser aclarado, que dois dos entrevistados consideraram como sendo de forma muito ampla, ou abrangente. Fomos, portanto, paulatinamente efetuando as entrevistas, no ritmo ditado por eles, bem como no formato por eles escolhido, seja de fala, seja por escrito, deixando por vezes dois dias ou até mesmo uma semana de descanso, mas indistintamente todos fizeram questão de finalizar todo o roteiro sugerido. Aqui cabe deixar anotado que a persistência é uma das características mais observadas quando tratamos com autistas, eles não desistem no meio do caminho, como vimos em Mascotti, Barbosa et al.(2019). Conforme iam sendo finalizadas as entrevistas, deu-se o início das transcrições, cujos parâmetros foram observados a partir leitura atenta das orientações contidas em Fernandes e Lima (2016) : tomamos o devido cuidado ao transcrever informações sobre os silêncios e pausas ocorridos, sua brevidade ou alongamento, uma vez que também estas comunicam algo de seu interlocutor para conosco.

Página 122

4.3 – ANÁLISE DE DADOS

Autista não sofre de autismo. A gente sofre é com o capacitismo, a psicofobia, o ego gigante de quem hierarquiza das diferenças. Cássia

Após esse trabalho, que por si só já nos trouxe grande quantidade de informações sobre nossos entrevistados, iniciamos, portanto, a tabulação dos dados fazendo uma pesquisa por ocorrências de palavras em todas as entrevistas, uma vez que o objetivo final dessa análise de respostas é a investigação e análise de que processos estão envolvidos na atuação protagonista desses sujeitos, sejam eles educativos, sociais ou comunitários, e em que nível isso serve para melhorar sua autonomia e heteronomia, bem como de seus pares através de sua atuação. Verificamos, portanto, ser extremamente pertinente o que Silveira (2017) diz em seu trabalho: “[...] as identidades existem quando são narradas e por isso considero importante o compartilhamento das experiências de viver com doenças a partir das narrativas de histórias pessoais [...]”. (SILVEIRA, 2017, p. 3) , (excetuando-se do nosso contexto o termo doenças) bem como adequado ao que encontramos em nossa pesquisa. Em algumas das respostas descritas, ocorre o que Silveira (2017) chama de bioidentidade, que é a construção das identidades a partir de uma condição biológica. Um dos relatos, de Vanessa, diz claramente algo que se percebe como uma sublimação dessa situação:

Autismo é o que eu tenho em comum com outras pessoas autistas. É uma das minhas identidades (grifo nosso). É uma deficiência psicossocial e uma parte muito importante de quem eu sou. É uma das coisas que me definem. (depoimento de Vanessa)

Essa e outras respostas nos indicam como o autista se (re)constrói enquanto pessoa a partir da perspectiva de ser autista, conforme nos afirmam Silveira (2017) e Goffman (2014). O tema da identidade tem sido alvo nos estudos e investigações no campo da Educação formal, a identidade aparece como um elemento definitivo para a construção do indivíduo em relação ao meio ou como um valioso recurso para os processos de aprendizagem. As perguntas efetuadas nas entrevistas estão no anexo V. Ao examinar as entrevistas o que salta aos olhos à primeira vista é a literalidade das respostas. Por três vezes ( ou seja, cinquenta por cento das entrevistas ) foi necessário restringir o foco da pergunta, ser diretivo no que se buscava, pois os entrevistados, mesmo sem contato entre si, disseram que a pergunta era abrangente demais, eles necessitavam de um afunilamento do que se esperava, como no caso de Ana, que nos diz

Página 123

Tem algumas perguntas que estão meio confusas pra mim. Tipo, são perguntas muito amplas. É melhor ser mais específico. (depoimento de Ana)

Para a pergunta 1, “Fale um pouco sobre você : o que você gosta, o que não gosta, e o que é autismo para você.” observamos que as respostas eram curtas, dirigidas, referindo-se inicialmente a gostos pessoais ( como modos de divertir-se, por exemplo ) e o quesito o que não gosta vieram também alimentos. Nesse ponto recordamos a extrema seletividade alimentar que ocorre com a grande maioria dos autistas, fato conhecido de estudos sobre hipersensibilidade sensorial efetuados por Baranek (2006), o qual explicita que cerca de 69% dos autistas possui tal sensibilidade. Veremos que, no decorrer das respostas, a situação de hipersensibilidade sensorial irá retornar, e mesmo algumas estratégias de defesa sensorial são explicitadas. Essa informação era esperada, pois ainda conforme a mesma autora, em outro estudo anterior Baranek (1997) a percentagem de autistas que desenvolvem estratégias de defensividade sensorial podem chegar aos 80 %. Tais informações ocorrem com o entrevistado Hércules Brennand em sua resposta à primeira pergunta : “Já o que não gosto é de comer jerimum (abóbora – grifo nosso), omelete” , bem como Vanessa nos diz do que gosta : “tomar um bom café ou uma taça de vinho, comer hambúrguer”. Prosseguindo, o mesmo Hércules Brennand cita do que não gosta em seus contatos sociais: “não gosto de gente invasiva. Gente que fala coisas demais.”, ponto muito próximo do entrevistado Luz ao dizer “O que mais me incomoda são a injustiça e a impotência, além da tendência de rotular o ser humano, e outras questões que vão contra meus ideais humanistas, como a vingança”, ou como Lótus sucintamente nos diz : “Não suporto falsidade, grosseria e injustiça.“. Vanessa foi bastante explícita ao dizer que “Não gosto de quando me tratam com pena ou falam comigo como se eu fosse criança. Não gosto quando perguntam quem está me acompanhando nos lugares. Também não gosto quando me chamam de louca ou me desrespeitam de qualquer forma que seja.” Observamos, portanto, que em geral a fala autista nos traz altos valores morais, o que se traduz em seus atos, mas ao buscarmos autores que tratem dessa temática não nos defrontamos com nenhum trabalho de pesquisa cabível de ser colocado aqui. O conhecimento comum, observado pelas entrevistas, vídeos de Youtube, redes sociais e convívio físico com essas pessoas nos diz ser a verdade, porém não existe ainda comprovação científica, cabendo investigação e até um eventual tema de tese de doutorado. Cabe lembrar que um dos tripés da síndrome autista, conforme as autoras Wing e Gould (1979) é a dificuldade de interação social, e isso ficou bastante evidente no decorrer de todas as entrevistas coletadas. A sociedade é extremamente cruel com os diferentes do que ela preconiza como o comportamento ideal.

Página 124

Observamos também o alto nível de conhecimento da própria condição de vida; enquanto autistas, esses sujeitos utilizam terminologia técnico-científica adequada (tendo neurotípicos e neurodivergentes como exemplos comuns), das metodologias de “tratamento” utilizadas, mostrando serem profundos conhecedores dos meandros de sua própria condição de vida, mesmo considerando como inadequada a postura médica em relação à sua situação. Eles são autistas, assim como alguns tem olhos verdes e outros os tem castanhos. Ana irá trazer um ponto importantíssimo com sua fala

Eu sei de muitos autistas que, tipo, não se declararam lá no PPNE (Programa de Apoio às Pessoas com Necessidades Especiais da Universidade de Brasília, grifo nosso), né, ou que não sabiam que eram autistas, tal, e teve problemas, tal, e foram jubilados, e não conseguiram, e desistiram do curso do meio do caminho, porque? Não tiveram suporte, (en)tão é, inclusão no ensino superior é tão importante como no ensino básico, mas pouco se fala sobre isso. (depoimento de Ana, 2019)

E o pouco se fala sobre isso irá corroborar uma estatística descoberta através do censo da Educação Superior 2016 do INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira –, que é a que existem apenas 488 jovens autistas matriculados em universidades públicas e privadas; mais da metade (56,56%) está nas universidades particulares, e os outros 43,44% estão nas instituições públicas. Considerando que a população de autistas no Brasil possa vir a ser, segundo Kim (2019), de 2,6% da população, perfazendo o total de 5,4 milhões de pessoas autistas em nosso país, vemos que esses 488 autistas perfarão o número de cerca de 0,009% da população autista. Menos de 0,01 por cento. Em outros números, teríamos 1 universitário que tem a síndrome autista a cada dez mil autistas. E lembrando mais dolorosamente ainda que nem todos esses 488 irão se graduar. Prosseguindo na mesma linha de raciocínio, vemos que não existem estatísticas de alunos em regime de estudos em pós-graduação stricto sensu com a síndrome autista. Particularmente, conheço apenas três no Brasil, o que não é um dado científico; porém isso nos daria a estatística de 0,00005 % de alunos com a síndrome autista em cursos de pós-graduação stricto sensu. O que nos traria ainda uma estatística ainda mais incisiva de 1 pós-graduando autista a cada 200.000 autistas. Esse número é um lembrete contundente sobre o cuidado que se deva ter com esses expoentes. Para melhor exemplificar a escassa quantidade de cuidado que a academia dispara a esse tipo de alunado, encontramos um trabalho com essa temática: Rocha (2018) que trata sobre

Página 125

“uma revisão de literatura acerca do tema em questão, assim como o embasamento legal que respalda o estudo proposto.” Retornando à análise de dados das entrevistas, outro ponto que acreditamos importante de deixar anotado é a sensação de “menos valia”, de achar-se menos que os demais, de não ser tão importante quanto “os outros”, quaisquer que sejam esses “outros”; como em “Continue me cobrando porque eu me perco no tanto de coisa que tenho pra fazer mil desculpas por ser tão devagar ”, citação de Cássia durante sua fala, ao ficar cansada de responder as perguntas. É como se fosse uma introjeção de vários estereótipos sociais, que autistas não são adequados, são menos importantes que os demais, pelo fato de serem autistas já são inferiores, quando são apenas diferentes e exigem tempos diferenciados para efetuar algumas tarefas consideradas comuns para os neurotípicos. A camisa de força social que a sociedade em geral os obriga a vestir é muito, muito pesada, apertada e rígida. Digno de comentário ainda é o de Ana, que durante uma entrevista televisiva, foi necessário parar a entrevista por duas vezes para que ela descansasse, inclusive se deitando em um quarto escuro, pois o acúmulo de estímulos sensoriais era muito alto naquele ambiente de estúdio, conforme sua fala. Conforme Goffman (2004), “Faltando o feedback saudável do intercâmbio social quotidiano com os outros, a pessoa que se auto-isola possivelmente torna-se desconfiada, deprimida, hostil, ansiosa e confusa.” (GOFFMAN, 2004, p. 14) Quando normais e estigmatizados realmente se encontram na presença imediata uns dos outros, especialmente quando tentam manter uma conversação, ocorre uma das cenas fundamentais da sociologia[...] O indivíduo estigmatizado pode descobrir que se sente inseguro em relação à maneira como os normais o identificarão e o receberão. [...] Essa incerteza é ocasionada não só porque o indivíduo não sabe em qual das várias categorias ele será colocado, mas também, quando a colocação é favorável, pelo fato de que, intimamente, os outros possam defini-lo em termos de seu estigma. [...]assim, surge no estigmatizado a sensação de não saber aquilo que os outros estão “realmente” pensando dele. Além disso, durante os contatos mistos, é provável que o indivíduo estigmatizado sinta que está “em exibição”, e leve sua autoconsciência e controle sobre a impressão que está causando a extremos e áreas de conduta que supõe que os demais não alcançam.[...] Ao mesmo tempo, erros menores ou enganos incidentais podem, sente ele, ser interpretados como uma expressão direta de seu atributo diferencial estigmatizado. Ex-pacientes mentais, por exemplo; às vezes receiam uma discussão acalorada com a esposa ou o empregador por medo da interpretação errônea de suas emoções.

Página 126

Quando o defeito da pessoa estigmatizada pode ser percebido só ao se lhe dirigir a atenção (geralmente visual) - quando, em resumo, é uma pessoa desacreditada, e não desacreditável - é provável que ela sinta que estar presente entre normais a expõe cruamente a. invasões de privacidade, mais agudamente experimentadas, talvez, quando crianças a observam fixamente.[...[] Considerando o que pode enfrentar ao entrar numa situação social mista, o indivíduo estigmatizado pode responder antecipadamente através de uma capa defensiva. (GOFFMAN, 2004, p. 16-18).

Outra teoria que se encaixa na presente situação apresentada é a de bioidentidade de Silveira (2017) , na qual a identidade é construída (ou melhor, reconstruída no nosso entender) a partir de uma condição biológica de diferenciação da população em geral, validando com isso o discurso médico hegemônico que os trata diferencialmente do restante da sociedade. Conforme Woodward (2000), identidade não é uma entidade fixa, e sim deslocada ou fragmentada; portanto, ater-se a uma visão parcial que apenas contempla a versão biológica do transtorno para a construção de uma identidade inteira sobre ela mostra-se uma construção sobre fundo extremamente frágil. Principalmente na época atual, onde está sendo mudada a nomenclatura da síndrome de Asperger para autismo – por conta do DSM-V e da próxima versão do CID: encontramos diversos autistas questionando sua personalidade, pois para estes autismo é diferenciado de Asperger, conforme foram “ensinados” ao longo do tempo; o grupo coloca em suas páginas a designação “autistics”, mesmo mantendo o nome, onde existe um espaço de conversa entre autistas, livre de cobranças e posturas, se eles souberem falar inglês. Diversos grupos do Facebook em português trabalham com esse enfoque, mas nestes encontramos com muita frequência pais fazendo parte dos mesmos, em busca de informações para seus filhos, muitas vezes interferindo fortemente nas suas conversas. Um lugar onde a fala deveria ser livre, mais uma vez é policiada. Porém existem grupos exclusivos de autistas, tanto online quanto presenciais, com os quais mantivemos contato externo visando obter informações de sua existência. Esses pequenos feudos de privacidade devem ser respeitados e mantidos, mesmo sabendo da necessidade dos familiares de mais informações sobre o comportamento autista, também existe a necessidade de portos seguros para os próprios autistas. Cabe aqui uma nota sobre a presente pesquisa: apesar de seu foco nos processos educativos, sociais e comunitários, não se deseja de maneira alguma pretender passar por uma pesquisa na área da saúde, uma vez que os pressupostos são claramente diferenciados, bem como os métodos de pesquisa e validação necessários. Em uma linha paralela de pesquisa, porém com grupos de autoajuda pela internet, o colega pesquisador Muniz (2018) diz que “As mudanças internas podem refletir na

Página 127

(re)construção das identidades.” Acreditamos particularmente nessa premissa, e sabemos que tais mudanças internas somente serão passíveis de serem feitas quando a pessoa acreditar em si mesma. Exemplificamos com o depoimento de Lótus, ao informar que seu diagnóstico tardio (aos 53 anos de idade) a fez enxergar os mecanismos utilizados na manutenção de sua identidade pessoal, o que a tinha auxiliado a “ludibriar” a situação de vida, com seus percalços e exigências, delineado nas frases:

Recebi meu diagnóstico há três anos. Até então, estudei comunicação para criar estratégias que me facilitassem as relações sociais. Passei minha vida procurando entender minhas mudanças de humor, irritabilidade, dificuldade em entender o ponto de vista do outro. Me esforcei muito para entender o outro e evitar conflitos. Isso me causava extrema tensão e cansaço diários. (depoimento de Lótus)

Outro depoimento de reforça a necessidade de redimensionamento da identidade após o diagnóstico é o de Luz,

Eu me vejo como alguém quase que obrigado (grifo nosso) a resistir, a se auto aperfeiçoar em um nível muito maior do que os neurotípicos (grifo nosso), diariamente. Não vejo a superação como um processo pronto e acabado. E, acima de tudo, até pelo meu hiperfoco em Comunicação Social, me vejo como alguém que deseja romper os limites desta condição e aproveitar, ao máximo, as potencialidades do cérebro neurodivergente. (depoimento de Luz)

Essa “obrigatoriedade” de autoaperfeiçoamento diário, com vistas a alcançar um patamar exigido socialmente vai de encontro ao que Goffman (2004) nos explicita ao dizer sobre a “busca da cura social” dos por ele denominados estigmatizados. Curar-se de quê, de ser o que se é? Ou melhor, “curar-se” para quem? Cássia, cujo núcleo familiar é composto por três autistas, irá nos dar uma solução a essa antipática “cura”: o que mais a incomoda nos “normais” é o apego que a maioria possui à normalidade. Na mesma linha Ana irá nos trazer sobre a necessidade de todos estarem em um padrão, que ela exemplifica com “uma roupa na moda” que todos tem que ter. Essa consciência da particularidade da diferença autista, seu “orgulho” de não ser “maria vai com as outras”, segundo Ana, é o que particulariza a grande maioria de nossos entrevistados: eles são bem resolvidos. Como nos diz Hércules Brennand “eu [...] me considero diferente sim, [...] o que não significa (que) ser uma pessoa normal é normal”. Verificamos, então, que a questão identidade é trabalhada a fundo pelas pessoas autistas, e para tal nos valemos da experiência pessoal ao dizer que o contato com profissionais da área

Página 128 psi desde a mais tenra infância (psiquiatras, psicólogos, psicoterapeutas, psicopedagogos) faz com que essa identidade seja realmente trabalhada com afinco, uma vez que esse é o pilar mestre para assegurar-se de ser e estar em seu lugar certo no mundo (mesmo que esse lugar certo tenha tido de ser construído passo a passo por eles).

Vanessa, quando perguntada sobre o que gosta e o que não gosta, nos diz que

Não gosto de quando me tratam com pena ou falam comigo como se eu fosse criança. Não gosto quando perguntam quem está me acompanhando nos lugares. Também não gosto quando me chamam de louca ou me desrespeitam de qualquer forma que seja. (depoimento de Vanessa)

Detectamos, portanto, algo que a última frase nos traz: desrespeito ao indivíduo, desrespeito a essa individualidade formada, através e apesar do rótulo de autismo. Aliás, o tema o que gosta/o que não gosta rendeu muitos pensamentos por parte dessa pesquisadora, pelo que foi dito e pelo que foi inferido dessas respostas: a resposta vinda de Cássia é digna de configurar em um estudo acadêmico sobre autismo, conforme abaixo:

Autismo é uma diferença neurológica natural da espécie humana. Por causa de como nossa sociedade é organizada, autismo é uma deficiência. Autismo é uma forma de processamento cerebral diferente, uma fiação cerebral diferente, por assim dizer, que tem base genética e é uma condição permanente da vida inteira, desde que a pessoa é um embriãozinho até ela morrer, ela vai ser autista. (depoimento de Cássia)

Essa condição de “permanência” do autismo como uma condição sine qua non da existência de uma pessoa é algo que muitos pais não se conscientizaram, e foi mesmo motivo de uma tese de Meltzer que criou o termo pós-autismo, que seria quando o indivíduo “sairia” da sua condição autista (portanto, não algo de origem biológica e sim psicológica) e se tornaria “normal”. Ou, nas palavras de Pires (2007), “um paciente pós-autista é, como o próprio termo diz, alguém que já foi autista. Pós-autistas, em termos de sua fenomenologia, assemelham-se mais a pacientes psicóticos do que a autistas.” (PIRES, 2007, p. 17) É uma teoria psicanalítica que encontra eco em alguns pais, porém é bastante rebatida pela neurodiversidade. A busca de uma “cura para o autismo” é um assunto recorrente, bastante combatido pelos protagonistas autistas que tive contato, uma vez que consideram que não existe cura para o que não é doença. Isso pode ser explicitado nas respostas obtidas nas questões “o que é autismo, e o que não é autismo”, das quais destacamos a resposta de Vanessa, onde

Autismo, pra mim, é uma expressão da diversidade humana. É o tipo de cérebro que eu tenho, a forma como eu me desenvolvi desde que era um feto. Autismo é o que eu tenho em comum com outras pessoas autistas. É uma das minhas identidades. É uma deficiência psicossocial e uma parte muito

Página 129

importante de quem eu sou. É uma das coisas que me definem. [...] Não é uma doença, nem algo a ser curado. Também não é nenhum tipo de castigo ou vergonha. Me traz limitações, é verdade, mas é também motivo de orgulho. Autismo não é algo que faça uma pessoa ter um valor diferente das demais, seja pra mais ou pra menos. Também não torna ninguém menos humano. E autismo certamente não é “azul”. (depoimento de Vanessa)

Somente nesse comentário conseguimos verificar muitos dos mitos que envolvem o autismo e os autistas: autismo é doença, autismo é um estigma, dentre outros. Iremos nos ater ao seguinte, no momento: autismo não é somente algo que ocorra entre homens, como as primeiras pesquisas determinaram, ideia que prossegue até a presente data, em virtude da baixíssima quantidade de pesquisas sobre o assunto “mulheres autistas”. Trazemos o recorte de uma reportagem, onde a autista Adriana Monteiro, advogada e presidente da Comissão de Defesa da Pessoa com Autismo da OAB, declara que

Há vários recortes dentro das questões de gênero, entretanto, desconheço um mais sofrido que o das mulheres com deficiência. Às mulheres autistas, é negado acesso ao diagnóstico, pois todos os estudos sobre autismo foram realizados por homens em homens e o cérebro feminino tem nuances muito diferentes (grifo nosso).

Nesse momento, poderíamos trazer os estudos que falam dessa situação, como os de Mandy (2016) que traz a tese de “camuflagem” ou “mascaramento” do autismo quando feminino, como forma de adaptação a uma sociedade massacrante, ou mesmo Igelström (2018) que nos diz “E esse é um ponto importante, eu acho - que a camuflagem geralmente se desenvolve como uma estratégia de adaptação natural para navegar na realidade”, diz ela. "Para muitas mulheres, somente depois de serem diagnosticadas, reconhecidas e aceitas corretamente, é possível mapear completamente quem são".” Outro depoimento muito esclarecedor nessa questão é o de Ana, transcrito abaixo:

Não é uma doença, não é algo resultado de trauma, ou alguma coisa que é resultado de alguma coisa que a pessoa fez na vida, não tem como pegar autismo, não é uma doença mental, não é um transtorno mental, não é algo possível ou sequer desejável de ser curado, porque aí é a forma como o cérebro está organizado, né . Não existe cura para o que você é, às vezes tem adaptações. Eu já esqueci o livro, a gente pode entrar melhor em uma outra pergunta. Não é uma condição de meninos, ou de que seja de alguma forma maior e alguma , em algumas raças por assim dizer, em alguma etnia, assim, acho que autismo é igualmente distribuído entre a humanidade, principalmente entre as mulheres, só que sub-diagnóstico faz a gente ter a impressão de que são só homens, tal, a maioria é homens, isso é outro assunto que dá muito para entrar em detalhes depois, não é uma coisa que vai trazer o sofrimento eterno da vida da pessoa, né, ninguém sofre de autismo, a gente sofre de capacitismo, de exclusão, de negação de direitos humanos, né, de cultura oralista que acha que a fala é a única forma de se comunicar, ah, sim,

Página 130

autismo não é um mundo à parte, a gente vive no mesmo mundo que todo mundo, né ?

Essa história de mundo interior, próprio mundo, num sei o quê, tá, tá, tá. Não. (depoimento de Ana)

A partir dessa fala, detectamos o quanto de informação errônea os autistas são bombardeados desde a tenra infância: para “justificar” o estigma, as pessoas criam as mais diversas “justificativas” para dizer que o diferente é diferente e como tal deve ser banido do convívio : autismo “pega”, como uma doença contagiosa; autismo é resultado de trauma – vide a teoria da mãe-geladeira de Kanner, volta e meia revivida por alguns “pseudo-estudiosos”- ; autismo é resultado de algo que o próprio estigmatizado fez, como se fosse desejável ficar em uma situação de “subordinação estigmatizante” por vontade própria, e o que consideramos o ponto-chave entre os autistas protagonistas e alguns familiares e até mesmo outros autistas : a cura do autismo. Destacamos uma frase de Ana, do mesmo depoimento para tal: “Não existe cura para o que você é, às vezes tem adaptações. (grifo nosso)”. O que é enormemente veiculado é que os autistas querem respeito, aceitação pela forma como eles são, e não modificações que os façam deixar de ser indivíduos, e sim meros robôs socialmente aceitos. Frase bastante comum em comunicações, principalmente de pais, é a seguinte: amo meu filho, mas odeio o autismo. Como se fosse possível desvincular as qualidades intrínsecas da individualidade de um sujeito de sua condição, enquanto autistas. Sobre cura ainda pegamos trecho do depoimento de Cássia, ao dizer

Autismo não é um problema para ter uma causa e uma solução. [...] Não é algo a ser extirpado do indivíduo ou algo a ser diminuído em suas características até sumir. Autismo não é um fardo por si só. Não é algo que se deva ter um remédio para acabar com ele. Não é um conjunto de genes que devem ser modificados em laboratório. [...] Não é algo a ser evitado ou eliminado. (depoimento de Cássia)

Nesse pequeno trecho Cássia nos diz das várias “tentativas de normalização” dos autistas, desde a culpabilização da vítima nos mais diversos contextos de sua vida – principalmente o escolar – até a busca de uma “cura”, mesmo que através de terapia genética, execrada pelos autistas em razão da invasão ao seu Ser, feita à revelia na maioria das vezes – como, aliás, algumas das metodologias já apresentadas o fazem. Queremos fazer um pequeno comentário pessoal sobre o nível de conhecimento, tanto científico quanto técnico apresentado pelos autistas entrevistados, uma vez que não são da área científica de pesquisa de saúde; mesmo nessas rápidas palavras – em outros momentos devidamente embasadas com a divulgação de diversos estudos científicos de peso junto à comunidade autista que fazem parte individual e coletivamente – observamos o nível de informação a que esses indivíduos buscam e divulgam, chegando a patamares dificilmente

Página 131 alcançados, mesmo dentro de uma universidade entre alunos. Poderíamos especular por tratar- se de público-alvo todo com formação universitária, mas ainda assim detectamos uma qualidade superior ao alunado normal nesse grupo específico. Autistas protagonistas sabem sobre autismo, sabem bem e sabem muito, e divulgam de forma simples e desinteressada a quem queira ouvir sobre isso. Para enfatizar essa visão iremos trazer trecho do trabalho de Guedes e Tada (2015) onde taxativamente estas nos dizem que “O autismo é uma condição que é definida pela literatura como permanente e persistente, ou seja, não há uma cura e seus sintomas dificilmente são revertidos (Gadia et al., 2004; Klin, 2006; Schwartzman, 2011a, 2011b)”. Mesmo a academia sendo enfática nesse sentido, é comum vermos a cobrança da “normalidade” exigida aos autistas, como tão bem nos afirmou Goffman (2004); porém, encontramos trabalhos de peso como o de Ortega (2009), a favor da neurodiversidade dito por este autor em seu resumo como sendo um

movimento da neurodiversidade é organizado por autistas chamados de alto funcionamento que consideram que o autismo não é uma doença a ser tratada e se for possível curada. Trata-se antes de uma diferença humana que deve ser respeitada como outras diferenças (sexuais, raciais, entre outras). (ORTEGA, 2009, p. 67);

O referido artigo nos embasou metodologicamente de forma adequada a compreender e solidificar a definição de neurodiversidade buscada e defendida pelos autistas entrevistados. Ainda dentro de nossa análise dos dados obtidos através das entrevistas, queremos trazer outro assunto que consideramos extremamente relevante, principalmente conforme nos evidencia Goffman (2004) que é o da discriminação, e iniciaremos com a fala de Ana:

Uma que eu lembro bem, me lembro de uma aula de inglês, né, fiz Center Escolar de Línguas, eu tava com, que é, uns 15, 16 anos, poraí, e eu tinha um crush23 lá, num, num colega meu de sala,e...ah, falava assim normalmente, tal, a gente tava quase virando amigo, e um dia ele perguntou : ah, porque que você é assim tão diferente, e-estranha, assim, hum assim, acho que diferente só que ele perguntou, tímida, alguma coisa assim. Aí eu, né, Ah, já que ele percebeu, eu vou falar, né. Ah, porque, e-eu tenho síndrome de Asperger, é um tipo de autismo. Num sei o que, aí ele ficou mudo, e aí ele nunca mais falou comigo, nunca foi o mesmo. Ainda bem que eu tive bem a noção de perceber ah, então esse aí não presta pra mim. (depoimento de Ana)

O depoimento de Cássia irá nos revelar uma outra faceta que as pessoas que não fazem parte do movimento autista não adivinham, que é a rejeição, por parte dos pais dos autistas mais comprometidos, da individualidade expressa pelos autistas denominados leves.

23 Termo coloquial para pessoa em que se está interessada, mesmo que platonicamente.

Página 132

Quando se é autista considerada "leve", a gente sofre discriminação de várias formas diferentes da discriminação dos autistas considerados "severos". A mais comum delas é a desconfiança, ou certeza, de que se está mentindo ou que seu laudo é falso ou inexistente. Essa é a discriminação mais comum pela qual eu passo. Ela acontece muito dentro do ativismo (grifo nosso). Pais e mães de autistas tendem a pensar que, se você foi diagnosticada já adulta, você não é autista de verdade, apenas diz que é autista para ganhar alguma vantagem ou até mesmo para aparecer. Essa discriminação é bem pesada, já ouvi gente dizendo que me mataria fácil por achar que eu sou uma "falsa autista". Essa certeza leva as pessoas a me tratarem muito mal. Eu já fiquei muito mal com isso, nunca é fácil ouvir ou ler que uma pessoa tem nojo de mim e gostaria de me matar por achar que eu não sou autista de verdade. É pesado principalmente porque o meu ativismo não me traz vantagens ou dinheiro, é um trabalho voluntário e muito cansativo, eu abro mão de muita coisa porque eu acredito que o que eu faço é importante. Outra discriminação vem de quem percebe que eu sou autista, seja por eu informar isso, seja por perceber alguma diferença no meu comportamento. Nesses casos, a minha capacidade é sempre colocada em dúvida e então algumas oportunidades são perdidas. Esse tipo de discriminação é muito mais comum com o meu irmão porque o autismo dele é muitíssimo mais perceptível. Eu me lembro de no máximo 10 pessoas que, durante toda a nossa vida, não tratou o meu irmão como incapaz. Ele, além de ser autista adulto e não oralizado, tem também diagnóstico de "retardo mental severo" (com essas palavras). O que eu faço diante dessas discriminações é tentar conscientizar as pessoas para que elas desconstruam seu capacitismo e sua psicofobia. Também tento cuidar do meu emocional porque é realmente pesado passar por isso. Eu faço dois tipos de terapia. Psicoterapia individual com psicóloga e terapia em grupo com a supervisão de uma psiquiatra e de uma residente em psiquiatria. Ambas terapias me ajudam muito a suportar essas e outras discriminações que me atingem. (depoimento de Cássia)

A partir do ativismo trazido nessa parte do seu depoimento, trazemos outro texto da mesma autora, que fala também sobre o ativismo autista, devidamente autorizado a constar no presente trabalho:

Ativismo é coisa muito séria. Nos obriga a estudar muito. Percebo que ativistas autistas estudam e se informam bastante sobre tudo que atinge a nossa causa. Mas não é raro que topemos com pessoas que atuam em áreas estratégicas que sequer se dão ao trabalho de saber o básico. Gente que inclusive adentra a militância e ocupa espaços importantes ignora o histórico dessa luta. Fica até difícil argumentar e trocar uma ideia quando parte significativa dessa militância, que não é de autista, não sabe nem o que significa modelo caritativo e nem conhecem as razões pelas quais recusamos esse modelo. Pior ainda quando essas pessoas se mantém presas às próprias certezas que são baseadas em crenças próprias difíceis de superar. Esse tipo de coisa mina o nosso ativismo. Vejo ativistas desistindo de espaços que poderiam ser positivos pra luta por conta desse fenômeno. Pesa muito. (Cássia, Facebook)

Outra ativista autista, Beatriz Souza, colocou em uma postagem no Facebook ter ido a um comício em sua cidade, e ter conversado com a vice do candidato, identificando-se como autista; conseguiu uma rápida interação com o candidato, dizendo:

Página 133

X, a gente é autista (eu e outras amigas autistas ali presentes). Não deu tempo de pedir para ele abordar o tema da deficiência, porque tinha muita gente ao redor dele desesperado pra tirar foto. Mas o recado que queria dar é de que ‘olha, pessoas autistas estão aqui, ouvindo suas propostas, e nós fazemos parte da política também’(grifo nosso).

O desejo dessa jovem é mostrar-se como é, uma cidadã apta a exercer seu direito de escolher um candidato e votar nele. Muitas vezes, nem mesmo isso não é permitido; cabe aqui outra experiência pessoal de quando do cadastramento para o título de eleitor as perguntas eram dirigidas à pessoa que o acompanhava, sua fonoaudióloga em trabalho de gerenciamento da rotina diária fora do consultório. O documento foi formalmente emitido, sem mais delongas, porém... o contato era com o acompanhante, e não com o cidadão eleitor. Ao serem perguntados sobre o quesito medicação, uma vez que é um tema bastante comentado em redes, principalmente com os pais dos autistas, obtivemos como retorno que o autismo em si não exige medicação, uma vez que não é doença (sob o enfoque da neurodiversidade), e sim suas comorbidades, se existirem, é que devem ser medicadas. Ana resumiu na frase “Ninguém precisa ou não precisa de medicamento simplesmente por ser autista. “, situação confirmada pelo depoimento de Lótus, que nos diz que

A medicação que tomo é para as condições coexistentes, o transtorno da ansiedade generalizada e o transtorno obsessivo compulsivo. Para o autismo o que me ajudou sempre, mesmo antes do diagnóstico, foi a psicologia. (depoimento de Lótus)

Luz nos conta algo próximo, ao dizer

Tomo medicações para insônia, transtorno do humor e ansiedade generalizada. Todas condições coexistentes ao autismo, mas não para tratar a condição de autista em si. Acredito que o tratamento deva ser baseado nas particularidades de cada um, focando autonomia e qualidade de vida, e não para corroborar as teorias sobre um diagnóstico. (depoimento de Luz)

Cássia nos traz a situação de crianças sendo medicadas indiscriminadamente; em outro momento fora do depoimento temático, ela diz que:

Tem autistas de 8 anos tomando 6 medicamentos tarja preta. Tudo para controlar seu comportamento. Não estou falando de autistas que convulsionam ou que já convulsionaram, nem de autistas com epilepsia ou outro diagnóstico coexistente que realmente exija medicação controlada. Estou falando de autistas que tomam medicamentos tarja preta apenas para controle do comportamento. Mas seu eu falo em mordaça química, sempre aparece um monte de gente me criticando. Criança viver dopada não é tratamento, é tortura. (depoimento de Cássia)

Página 134

Ainda sobre medicação colocamos o depoimento de Vanessa, onde ela nos diz que “Já fui superprotegida, submetida a tratamentos com os quais eu não concordava, super-medicada, humilhada, e mais um monte de coisas ruins. Uma vez tentaram me exorcizar.” E é a partir desse depoimento que trazemos novamente Goffman, porém em outra sua, Manicômios, prisões e conventos, (1974), onde ele, falando sobre pacientes institucionalizados – algo que ocorre com bastante frequência entre os autistas, principalmente os mais severos –

Finalmente, em algumas instituições totais o internado é obrigado a tomar medicamentos orais ou intravenosos, desejados ou não, e a comer o alimento, por menos agradável que este seja. Quando um internado se recusa a alimentar-se, pode haver contaminação imposta de suas entranhas por “alimentação forçada”. (GOFFMAN, 1974, p. 32).

Essa visão medicamentosa para curar autismo é contrária ao que comunga a neurodiversidade, onde um autista é outra pessoa com seu jeito particular de enfrentar o mundo, a partir de sua diversidade neuronal. Esse modelo social de deficiência, contrário ao modelo médico – aquele que preconiza remédios para quaisquer situações não neurotípicas – é bem explicitado por Ortega (2009):

Basicamente, o modelo social da deficiência surge como alternativa ao modelo hegemônico médico-individual com sua ênfase no diagnóstico e que constrói o indivíduo deficiente como sujeito dependente. Mike Oliver3 denomina esse modelo de “modelo da tragédia pessoal”. Para os teóricos do modelo social, a deficiência não é uma tragédia pessoal; é um problema social e político. Ela não existe para além da cultura e do horizonte social que a descreve como tal e nunca pode ser reduzida ao nível biológico e/ou patológico. [...] Assim, por exemplo, andar de cadeira de rodas é um problema apenas por vivermos em um mundo cheio de escadas, e consideramos deficientes indivíduos que não olham nos olhos quando se comunicam, como é o caso dos autistas, apenas por que nossa sociedade estabelece o contacto visual como um elemento básico da interação humana. (ORTEGA, 2009. P. 68)

Portanto, a neurodiversidade, sucessora dos estudos de deficiência, irá tratar da questão da diversidade como sendo uma das facetas da humanidade, e não como uma exceção à rígida regra da unicidade humana que preconizam as diversas sociedades pelo mundo afora. E, falando em diversas sociedades, acreditamos pertinente iniciar a tratar com os mitos autistas, aqueles que quando a palavra autista é pronunciada, imediatamente surgem na conversa. Dentre estes, traremos inicialmente de Cássia uma questão bastante problemática: o autismo como doença. Segundo essa depoente,

Página 135

Há também a ideia de que o autismo é uma doença. Isso leva famílias a gastarem muito dinheiro com tratamentos experimentais que fazem seus filhos de cobaia. Eu acho essa ideia a mais perigosa de todas porque há iniciativas claramente eugenistas que são apoiadas por essa crença. (depoimento de Cássia)

Mais uma vez se detecta o modelo hegemônico médico ao invés do social, onde as pessoas deverão ser, à força, aquilo que a sociedade deseja delas, doa a quem doer, custe quanto custar. Localizamos artigos sobre tratamentos degradantes, onerosos e tóxicos para autistas ( como o MMS, substância cuja composição à base de clorito de sódio e ácido cítrico que traz sérios riscos à saúde, segundo Oliveira (2020, p. 92), ou mesmo a quelação, citada por Lima e Lima (2019, p. 16) com o intuito de “normatizar” ou “curar” autistas, ou seja, adequá-los à força na sociedade que transitam. Novamente, doa a quem doer, custe o que custar. A resposta de Ana para “o que não é autismo” está repleta de informações sobre os mitos envolvendo autistas, como:

autismo não é doença, não é algo resultado de trauma, não tem como pegar autismo, não é doença mental, não é algo possível ou desejável de ser curado, não é uma condição de meninos, não é algo que vai trazer o sofrimento eterno (ninguém sofre de autismo)não existe cura para o que se é. A gente sofre de capacitismo, de exclusão, de negação de direitos, de cultura oralista que acha a fala é a única forma de se comunicar, autismo não é um mundo à parte, a gente vive no mesmo mundo que todo mundo. (depoimento de Ana)

Também Cássia irá nos dizer sobre os mitos sobre autismo:

Autismo não é doença, um peso, um defeito, um atraso, um erro, algo errado. Autismo não é um problema para ter uma causa e uma solução. Não é algo que cause sofrimento por si só. Não é algo a ser extirpado do indivíduo ou algo a ser diminuído em suas características até sumir. Autismo não é um fardo por si só. Não é algo que se deva ter um remédio para acabar com ele. Não é um conjunto de genes que devem ser modificados em laboratório. Não é sinal de algo errado com as sinapses neuronais. (depoimento de Cássia)

Outro ponto bastante criticado por autistas e que foi trazido por Hércules Brennand, conforme treco abaixo, é a criação de um autista como “anjo azul”, termo utilizado por diversas mães – que se autodenominam “mães azuis” que veem seus filhos sob uma ótica bastante deformada, algo tratado por SILVA (2019, p. 98), em sua dissertação de Mestrado.

O que não se pode criar e isto eu acho um absurdo é criar uma imagem fantasiosa, romantizada do autista sendo representado como um sujeito adulto, infantilizado, assexuado, dependente a vida inteira ou que é um super gênio para ele ser santificado como uma pessoa perfeitamente virtuosa. (depoimento de Hércules Brennand)

Página 136

Somente esse item sobre os anjos azuis seria tema de outra dissertação, evidentemente não temos a pretensão de esgotar o tema neste trabalho. A ser comentado aqui é que, mesmo sem ter sido questionado, o item “religião” surgiu nos depoimentos: Vanessa, conforme dito acima, teve sua experiência de quase-exorcismo; Cássia trouxe o assunto quando falava sobre estereótipos e mitos:

Um ainda muito recorrente é o estereótipo ligado às religiões. Me parece que quase toda religião tem alguma visão estranha sobre pessoas autistas. Somos vistas como endemoniadas, como pessoas que abusaram de sua capacidade de comunicação em vidas passadas, como filhos que vieram para que os pais paguem por pecados que cometeram, como filhos que vem como uma provação divina...

Eu penso que isso tudo atrasa demais a nossa inclusão na sociedade e o real entendimento do que é o autismo e de quais são as nossas reais demandas. (depoimento de Cássia)

Goffman (2004) fala exatamente sobre isso em seu livro ao dizer que “Finalmente, há os estigmas tribais de raça, nação e religião, que podem ser transmitidos através de linhagem e contaminar por igual todos os membros de uma família”. O autista torna-se diverso, ou como bem nos diz Hércules Brennand, o vira-lata, ao referir-se a como pessoas de fora do seu núcleo familiar tratam alguns autistas. Digno de leitura e profunda reflexão é sua carta-poema, constante no anexo VII deste, sobre ser autista, e não vira-lata. Goffman (2004) é bastante contundente ao afirmar que

Por definição, é claro, acreditamos que alguém com um estigma não seja completamente humano. Com base nisso, fazemos vários tipos de discriminações, através das quais efetivamente, e muitas vezes sem pensar, reduzimos suas chances de vida: Construímos uma teoria do estigma; uma ideologia para explicar a sua inferioridade e dar conta do perigo que ela representa, racionalizando algumas vezes uma animosidade baseada em outras diferenças, tais como as de classe social. (GOFFMAN, 2004, p. 8)

Como para representar a última frase da citação acima, Cássia nos diz que a imagem do autista é sempre de um menino branco. Apesar de não haver especificidades raciais quando se fala em autismo, desde os primórdios da enumeração diagnóstica é dito que existem mais meninos autistas do que meninas (Kanner, (1949),Gadia (2004), Klin (2006), Guedes (2015)); estudo recente (Abr. 2020) de Nguyen (2020) nos informa que isso é realidade, pois trata-se de um perfil genético que se refere ao gene NLGN4X, em que a situação XX (sexo feminino) contrabalança quando existem anomalias, portanto é verdadeira tal premissa. Cássia nos diz, entre outras colocações, sobre o assunto mitos:

Um dos mitos do autismo: “autista não sabe fazer e não entende piada". Só

Página 137

porque neurotípicos definiram o que é uma piada e a hora certa de rir, já julgam que autistas não sabem fazer piada e riem em hora inapropriada. "Riso inapropriado" é uma das características listadas por aí como sendo do autismo. Bem ali alguém me aponta dizendo que não posso ser autista porque fiz uma piada. Todos os autistas que eu conheço, inclusive eu, tem senso de humor. Alguns mais peculiares do que outros. Alguns agradáveis, outros nem tanto, como todo ser humano. Ter dificuldade de entender piadas de neurotípicos não significa incapacidade para o humor. É muita pretensão querer padronizar até isso. [...]Neurotípicos choram sem motivo aparente e riem com ‘piadas’ preconceituosas. Mas é dos autistas que é dito que tem ‘riso inadequado’. (depoimento de Cássia)

De uma forma generalizada, todos os entrevistados trouxeram contribuições importantes para a eliminação de mitos que cercam a síndrome autista, mostrando através de lógica irrefutável a falta de amparo em manter tais mitos, como a obrigatoriedade de fazer com que os autistas fixem seu olhar no rosto do interlocutor (isso os desconcentra, pois é muita informação ao mesmo tempo, e autistas tem dificuldade de “ler” expressões faciais, conforme Assumpção Jr (1999)). A desesperança, ou o que os faz infelizes, demonstra exatamente ao contrário do que se diz, que aos autistas falta empatia, como podemos ver nas palavras de Hércules Brennand:

Uma das coisas que me faz infeliz é ver quanto que o mundo está cada vez mais frio. Que estamos mais banalizados. A ponto de sermos constantemente questionados e quanto isto está nos levando ao abismo da depressão. E eu já senti muito isso quando via na rede social foto de gente feliz de qualquer jeito e eu me sentindo um lixo. Um complexo de vira-lata. E o pior é que não é só eu, tem ocorrido geral. (depoimento de Hércules Brennand)

Vanessa nos traz como respostas para sua infelicidade muitas grandes dúvidas da humanidade:

Solidão. Fracassar em alguma coisa que eu achava que conseguiria. Ser tratada com desrespeito. Não poder opinar. Não ser completamente autônoma (ainda). (depoimento de Vanessa)

Nas frases lapidares de Lótus, “A injustiça me dói na alma.”, e de Luz “A injustiça e o sentimento de impotência.”, cremos poder finalizar esse tópico devidamente. E passamos então à análise dos objetos representadores, esclarecendo que não solicitamos a nenhum deles que explicasse a sua escolha, acatamos quando esta era informada, mas não solicitamos maiores informações. Começando com Ana e seu Narval: a pesquisa nos revela que o Narval é uma baleia que mora no Ártico – consequentemente isolada das demais – e a sua presa (que lembra o chifre de um unicórnio) é na verdade um canino hiperdesenvolvido. É um animal altamente suscetível às alterações climáticas, principalmente em virtude da sua abrangência geográfica restrita, e sua dieta especializada em um tipo de peixe. Uma das hipóteses que pensamos ao ver a escolha de

Página 138

Ana é que, se um unicórnio é um ser mítico, porém de agrado de muitas pessoas, um Narval é mais diferenciado, menos conhecido porém real, e a frase que o acompanha – eu sou o Unicórnio do Mar – revela uma possibilidade de transformação da fantasia em realidade. Inferimos uma leve ironia no item apresentado, além de toda a representatividade inerente ao mesmo. O segundo objeto é o de Cássia, seus protetores auriculares, que, conforme a mesma, “Eles me permitem ir ao cinema, shows e outros eventos sociais.” Gomes et all (2004) já nos informavam sobre a extrema hipersensibilidade auditiva dos autistas, devido às dificuldades no processamento superior, e o uso de protetores auriculares vem a facilitar sobremaneira a vida destes. Essa barreira sensorial é o que permite a filtragem que os autistas necessitam para ter um controle sobre uma situação que, de outra forma, não seria possível ser controlada. O próximo objeto a ser visto é o de Hércules Brennand, que nos trouxe inúmeros objetos, em geral filmes e livros, e ele explicita a razão da escolha logo abaixo dos mesmos: o primeiro deles, um mangá, representa a sua infância, o que despertou sua paixão por mitos. Silva (1998) nos traz que a mitologia, seja ela qual for, é muito importante para os autistas; como para corroborar o descrito por Silva (1998), a fala de Hércules Brennand nos traz várias vezes o termo paixão, como no objeto das figuras de ação, filmes de super-heróis e livros, cada um deles tecendo toda uma mitologia particular, onde existe o bem e o mal bem delimitados e devidamente vencidos pelos heróis. Alguns teóricos – dentre eles Silva (2018) – explicam que a elaboração do Ego Autista é intimamente relacionada com o Mundo Interior de Fantasia, uma vez que a criança autista não consegue, por si só, inferir a lógica do mundo no momento necessário para a elaboração de sua psique, e então ele faz uso de “fórmulas mágicas”, onde o herói é perfeito, nunca erra, tudo que ele faz dá certo, exatamente como nos livros e filmes; aliás, febre mundial além da comunidade autista.24 De Lótus recebemos como objeto marcante o bloco de notas e a caneta, e a justificativa da escolha

Sempre gostei de escrever. Então, sempre carrego comigo, desde a infância (9 anos), um bloquinho e uma caneta. A sensação de que posso perder ou me esquecer de algo me apavora. Esse foi um bom diferencial quando me tornei jornalista. (depoimento de Lótus)

24 Esse “refúgio” no fantástico não é de forma alguma exclusividade autista, mais e mais verificamos na humanidade atual essa busca de parâmetros melhores do que os da realidade atual; exemplificamos com os cosplays, feiras geek, arrecadação recorde de filmes blockbusters e tantos outros eventos similares.

Página 139

Para o autista, receber ao mesmo tempo a enorme “rajada” de informações que o mundo bombeia em sua direção é avassalador, e é observável que os autistas escolhem fórmulas, estratégias e objetos para defender-se de tantas sensações recebidas ao mesmo tempo: chamamos aqui de informações à luz, sons, ações do ambiente, além das palavras e gestos vindas de outras pessoas quando ocorre uma comunicação. Portanto, o anotar torna a situação realmente muito mais palatável, como bem escolheu Lótus em sua vida. Luz, por sua vez, escolheu um filme, e assim o descreve:

Para Sempre Cinderela, com Drew Barrymore e Angelica Houston, que me marcou por unir, com brilhantismo, vários dos meus hiperfocos. É meu filme favorito, mesmo não sendo o melhor que assisti, tecnicamente falando. (depoimento de Luz)

O que conseguimos localizar como sendo os pontos centrais desse filme seriam o reconto de um conto tradicional dos Irmãos Grimm, incluindo até mesmo Leonardo da Vinci25 como conselheiro; a história tornou-se um conto de vencedores, sem fadas madrinhas interferindo na história. Novamente aqui surge o filme como objeto representante, reforçando os pontos já descritos com Hércules Brennand e lembramos da facilidade autista com o visual em detrimento do auditivo. Vanessa não nos citou nenhum objeto representante.

4.4 – A ESCOLARIDADE AUTISTA

Vamos fazer uma história de terror com 3 palavras? Eu começo: faça sua autoavaliação. Ana

Também faço uso de adaptações sim, porque preciso. Precisei na faculdade e graças a isso consegui me formar. Não tive apoio na escola porque não tinha diagnóstico e sei o quanto a falta de apoio transformou minha vida escolar em um inferno. Carol Souza, autista.

A partir desse momento, iremos fazer a análise de dados principalmente sob a ótica da escolaridade, formal, e dentro dessa linha trazemos o depoimento de Hércules Brennand, que se estenderá em seguida para o assunto que nos interessa, que é o ambiente escolar:

25 Existem especulações não acadêmicas sobre Leonardo da Vinci ser autista.

Página 140

Uma das coisas que mais me incomoda em pessoas neurotípicas é o quanto que elas são muito incoerentes, principalmente na hora de abrirem a boca para falar coisas desagradáveis como se achassem as corretas do mundo, mas no fundo são tão amorais quanto qualquer um. As eu sinto a sensação que com essa gente parasita a coisa só piora. Mais difícil num relacionamento com neurotípico é ele não perceber que está sendo um invasor, um alien, um penetra.

Um exemplo disso é na escola onde teve um colega invasor que não sabia que estava sendo inconveniente e foi verbalmente agressivo comigo e isso, isso machuca, esta prática, bullying. A escola que ignora não sabe que mais para frente este aluno vai chegar de ter o sentimento vingativo de praticar o massacre. É por culpa - se me desculpe o termo chulo - desses ratos que nos infestam, que o mundo vive desse jeito e tira a integridade da pessoa. (depoimento de Hércules Brennand)

E é exatamente a partir do depoimento de Hércules Brennand que voltaremos a trabalhar com autismo e educação, principalmente educação sociocomunitária. A educação sociocomunitária pressupõe a necessidade de integralidade entre seus pares, aproximação, união, dificilmente obtida em uma situação em que haja bullying. Prosseguindo com esse depoimento, que nos traz muita informação para que possamos trabalhar, Hércules Brennand nos diz:

A primeira escola que estudei que foi no Maternal em um Colégio Tradicional de Freira, eu tive uma experiência horrível, onde pela minha dificuldade em interação com as crianças eu sofri muito o bullying físico, a ponto de quando meus pais foram reclamar com a coordenadora dessa escola. Ela, muito curta e grossa, respondeu que eu era o culpado por tudo. Me fez de bode expiatório. Foi após este episódio que meus pais resolveram mudar de escola e me colocaram em várias inclusivas, até eu finalmente chegar numa e conseguir me fixar e ficar até concluir o Ensino Médio. Mas enfrentei muitos desafios, mas graças a Deus consegui superar. Para mim uma boa escola é aonde a gente aprenda conceitos de cidadania e não distinga que é diferente de quem (grifo nosso). O que vejo como absurdo é ela fechar os olhos para as práticas de bullyings, especialmente com os autistas. E ignorar que ele também (tem) seus sentimentos e suas fragilidades. Coordenador que fecha os olhos e usa de técnicas baratas para tentar levantar o astral dele, me desculpe em dizer, mas ele está sendo muito hipócrita. (depoimento de Hércules Brennand)

A partir de Bissoto e Miranda, (2012) obtemos que a problemática educacional se relaciona a um esquecimento do porquê e do para quê se educa, sendo isso substituído por uma visão de que a educação deve ser apenas a transmissão de

conhecimento instrumental de fatos, conceitos, verdades,[...] numa reificação do valor econômico da vida, ora, ainda, numa relativização esvaziadora de referenciais éticas e morais. Como contraponto, [...] a Educação, concebida como Sociocomunitária, deve ser olhada por outro ângulo: como um agir relacional que impulsiona e acolhe diferentes interpretações do existir,

Página 141

concomitantemente, aprendendo-se a lidar com as tensões resultantes, sem anulá-las. ( (BISSOTO e MIRANDA, 2012, p. 15-16).

Ana nos diz, em seu depoimento, a seguinte frase : “eu tive muita sorte de ter uma turma muito boa e professores muito bons.” Sorte? Novamente localizamos a palavra sorte com referência à escola no depoimento de Vanessa, onde ela relata sua experiência escolar:

A escola onde eu estudava tinha uma pegada de olhar pra cada aluno em sua individualidade, respeitar as diferenças, e isso me ajudou muito. Tive muita sorte. Sei que a maioria das pessoas autistas têm problemas na escola. Eu fui privilegiada. Na época, não sabiam que eu era autista. Me viam como uma menina tímida e “excêntrica”. Isso foi antes do movimento que temos hoje pela inclusão. Ninguém tinha capacitação formal naquela época, mas meus professores eram muito atenciosos, atentos e abertos a adaptar as coisas de acordo com as necessidades de cada aluno, e pra mim isso foi suficiente. (depoimento de Vanessa)

Cássia irá nos dizer, com referência à dificuldade existente entre um autista e um neurotípico a frase “Acho que a forma que as pessoas entendem o que é educação e cuidado.” Observamos, portanto, conceitos diferenciados, permeados por estigmas e expectativas. Luz nos dirá que

A escola sempre me foi um ambiente muito agressivo, tanto no convívio social quanto no volume exacerbado de tarefas que não necessariamente extraiam o que eu tinha de bom a oferecer. Aos poucos, fomos construindo a minha inclusão escolar (mesmo antes do diagnóstico), mas sempre apareciam desafios diários. (depoimento de Luz)

Lótus traz o depoimento talvez mais contundente sobre a escola:

Soube do meu diagnóstico aos 53 anos. Estou quase com 56. Não vivi a escola inclusiva. Sofri muito para dar conjura, me adaptar. Sou perfeccionista. Não aceitava perder um décimo. Não conseguia explicar minhas dúvidas e preferia estudar sozinha em casa.

O esforço era tão grande que eu pensava: ‘Se minha mãe ficar rica hoje, eu 'paro' de estudar ontem.’

Ao sair do ensino médio, minha sensação era de que um rolo compressor havia passado sobre mim, o bagaço voltava pra casa e o caldo ficou na escola.

Na faculdade foi um pouco melhor pois eu estudava minha área de interesse. (depoimento de Lótus)

Devermos realmente considerar como “sorte” o encontro de profissionais habilitados na educação para trabalho com autistas? Em que momento uma escuta sensível deixou de ser utilizada por esses profissionais, para que sua existência seja considerada sorte? Recordamos o

Página 142 levantamento efetuado por esta pesquisadora sobre a quantidade de cursos de especialização de autismo existente no Brasil : temos cerca de quarenta e uma mil vagas à distância para cursos especializados em autismo em nosso país, das quase noventa mil vagas existentes, alguns com mensalidades inferiores a cem reais, além dos federais, estaduais e municipais gratuitos; o autista necessita trilhar, “a trancos e barrancos” sua escolaridade formal para finalmente chegar a um ensino superior, onde possa estudar algo de sua área de interesse, e então se sobressair? E os que ficaram pelo caminho? Outro dado que consideramos interessante deixar aqui anotado é a quantidade de pessoas com deficiência que iniciam a escolarização formal e não a terminam (não existe uma estatística no Brasil sobre esse dado; aliás, no Brasil não sabemos nem quantos autistas existem.) Segundo o IBGE, temos cerca de 24% da população com algum tipo de deficiência; segundo o INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira - temos cerca de um milhão e duzentos mil estudantes matriculados em estabelecimentos de ensino formal, onde dados nos mostram 105.842 estudantes com autismo matriculados em escolas regulares, informações de 2018. Do INEP trazemos a informação: Com exceção da EJA, todas as etapas da educação básica apresentam mais de 88,0% de alunos incluídos em classes comuns em 2018. A maior proporção de alunos incluídos é observada no ensino médio, em que 98,9% dos alunos se encontram nessa posição. O maior aumento na proporção de alunos incluídos, entre 2014 e 2018, foi observado na educação infantil, um aumento de 11,5 p.p. (Gráfico 31).

Gráfico 31 Percentual de alunos matriculados com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento ou altas habilidades que estão incluídos em classes comuns segundo etapa de ensino – Brasil – 2014 a 2018. Fonte: Elaborado pela Deed/Inep com base nos dados do Censo da Educação Básica.

Mas não localizamos um relatório que fale da evasão escolar de pessoas autistas no Brasil, porém Talarico e Laplane (2016) se dedicaram a levantar esses dados para o município de Campinas:

A análise das trajetórias escolares de todos os alunos com Autismo matriculados no município de Campinas nos anos de 2009 a 2012 permitiu identificar diferentes tipos de trajetórias escolares, sendo estas: trajetórias

Página 143

completas (12,92%), completas com retenção (4,91%), incompletas (36, 63%), parciais (40,04%) e parciais com retenção (5,83%). Nota-se que há mais trajetórias escolares parciais (que aparecem alguns anos, desaparecem e reaparecem depois) e incompletas (que se interrompem e não são mais retomadas), o que indica que esses alunos têm enfrentado dificuldades no processo de escolarização. (TALARICO e LAPLANE, 2016, p. 49)

Pelos dados acima, verificamos que menos de treze por cento dos autistas consegue finalizar sua educação básica obrigatória. Deixa-se de escutar a voz autista de oitenta e sete por cento deles dentro das escolas, após a aceitação de sua matrícula. Os autistas muito se beneficiam de uma visão de escolaridade formal a partir da Educação Sociocomunitária, uma vez que são respeitados em suas particularidades e diferentes visões e ações no mundo, uma vez que, segundo Groppo (2013), a Educação Sociocomunitária prima pela “sobrevivência, cuidado e identidade (em seu viés comunitário) e a liberdade, autonomia e criação (em seu viés societário)” (GROPPO, 2013, p. 20-21). . Conforme Groppo (2012) apud Bissoto e Miranda, (2012) é

proposto uma reabertura da Sociologia da Educação para outros ambientes educativos, além da escola, e para outros aspectos das relações educacionais, além do ensino-aprendizagem de conhecimentos referenciados nos códigos supostamente elaborados.” (GROPPO, 2012, p. 20).

A partir dessa sugestão de Groppo (2012) é que consideramos válido grifar, dentro do depoimento de Hércules Brennand, a frase “Para mim uma boa escola é aonde a gente aprenda conceitos de cidadania e não distinga que é diferente de quem.”; Groppo (2012) nos diz o que considera como Educação sociocomunitária :

Trata-se de intervenções de caráter socioeducativo – em geral, diversas das práticas escolares – que têm como sujeito uma dada comunidade (entendida como um grupo local, buscando influenciar uma sociedade mais ampla. Tais intervenções pode ter caráter emancipador ou instrumentalizador. [...]O estudo da Educação Sociocomunitária é um ângulo de análise e de interpretação das práticas educacionais, especialmente das não escolares, que está atento às articulações entre a educação e a comunidade. A Sociologia da Educação Sociocomunitária pretende fazer uso da tradição sociológica, geral e da educação, para contribuir com esse estudo. (GROPPO, 2012, p. 29-30)

Trazemos ainda da mesma obra, porém de outra autora (Caro, 2012) que aclara ainda mais como a Educação Sociocomunitária vem a se tornar a pedra fundamental metodológica para o presente trabalho:

o objetivo é conseguir estratégias para melhor convivência entre educadores e alunos e, ao mesmo tempo, possibilitar o desenvolvimento de uma identidade e de um sentimento que pertença àquela comunidade. Acredita-se, afinal, que

Página 144

a educação somente ocorre quando se permite ao aluno o conhecimento e a construção de sua própria história. (CARO, 2012, p. 30)

Cremos ser essa última autora o respaldo perfeito para a situação explicitada por Ana quando de seu estudo no ensino superior, quando, após consulta a toda a sala, a sua avaliação foi feita de forma diferenciada; cabe à escola, ou mais especificamente ao profissional professor estabelecer estratégias tais que permitam o desenvolvimento de seu aluno autista. Colocaremos aqui outra informação dada por Cássia, que cabe na presente situação apesar de não dizer especificamente sobre o momento da educação formal em sala de aula, e sim da educação não- formal ocorrida em um ambiente de conversação:

Eu sou autista e faço perguntas que às vezes são interpretadas como sinais de: burrice, provocação ou pirraça, falta de atenção. Já me acostumei. Mas não esperava que, em um grupo sobre autismo, pessoas que tem filhos autistas reagissem as minhas perguntas com falas do tipo: "não entendeu, quer que eu desenhe?", "precisa focar mais em interpretação de texto", "constato que você é burra" e coisas do tipo. Quem convive com pessoas autistas e presta a atenção no modo autista de se comunicar sabe que uma pessoa pode ter muito conhecimento e mesmo assim fazer perguntas consideradas primárias ou até mesmo estúpidas. Podemos fazer perguntas repetidas, inclusive. Podemos pergunta algo que parece óbvio. Isso não deveria ser motivo para agressões. Ainda mais de pessoas cujos filhos são autistas. Será que reagem da mesma forma aos próprios filhos? Espero que não.

Um enfoque sob o prisma da Educação Sociocomunitária, portanto, apresenta-se extremamente auspicioso para o crescimento do indivíduo autista, como é a experiência dessa pesquisadora: somente após treze escolas das mais variadas metodologias, foi em uma escola salesiana, portanto sob o enfoque da Educação Sociocomunitária que houve o respeito e devido resgate da pessoa autista de sua família. Junto a essa gratificante experiência pessoal, e baseada em autores que embasam metodologicamente o presente trabalho é que consideramos ser prometedor esse tipo de educação para as pessoas autistas, uma vez que a Educação Sociocomunitária propõe soluções sociais para os problemas escolares dos envolvidos no aprendizado, tanto formal como não-formal, uma vez que, como afirma Gomes (2008), a Educação Sociocomunitária é:

Um tipo de processo educacional marcado por intervenções educativas que articulam a comunidade para transformações sociais. (...) A educação Sociocomunitária é, assim, numa primeira visão, o estudo de uma tática pela qual a comunidade intencionalmente busca mudar algo na sociedade por meio de processos educativos. (GOMES, p. 53-54, 2008).

A educação formal traz ganhos aos autistas, que podem exercer sua cidadania de forma mais completa ao obterem uma certificação formal, mas o que gostaríamos de deixar bastante evidente é que

Página 145 a educação formal também recebe muitos ganhos ao incorporar autistas em seu meio discente, uma vez que a diversidade somente tem a contribuir para a formação de cidadãos íntegros, variados e conscientes das diversas vertentes da humanidade, e o que cada uma delas tem a acrescentar à raça humana.

Página 146

CONSIDERAÇÕES FINAIS – O BRADO RETUMBANTE26

Diversidade humana é pra ser celebrada e não lamentada. Pessoas autistas são dádivas, enriquecem a humanidade. Todo autista pode e deve ter autonomia. Sim, todo autista. Não, não há exceções. Minorias não precisam de uma guardiã. Minorias precisam de voz e espaço. Que TODOS os autistas possam ser escutados em suas demandas, TODOS, oralizados ou não. Rita Louzeiro, pedagoga autista, filha de autista, irmã de autista.

Detivemo-nos a estudar, principalmente de quatro diferentes fontes, a história do desenvolvimento do diagnóstico do autismo. A cada novo trabalho que localizamos e estudamos, mais e mais informações (muitas vezes díspares) eram encontradas, e a cada vez mais alastra-se a confusão sobre esse diagnóstico. Ao longo de quase setenta anos de estudos, não se conseguiu comprovar sua etiologia ou até mesmo sua prevalência adequadamente, pois, como nos disse Lotter em 1966, não seria possível dizer a prevalência de algo sobre o qual não se tem um acordo sobre o que é esse algo. Se não existe coerência nem convergência entre os pesquisadores, o que diremos a partir dos profissionais que assistem aos autistas, em meio a tantas informações diferentes? Quando mais se estuda o assunto, maior e mais complexo se torna o enovelamento de informações: então, o que poderemos dizer sobre os autistas e seus cuidadores, em geral pessoas que não são da área médica nem da de pesquisa científica, como eles irão navegar nesses mares coalhados de dubiedades, falsos positivos e charlatanismo, principalmente na parte de curas milagrosas? O que acreditamos ser necessário deixar evidente é : Sucharewa escreveu um artigo em 1925, publicado em alemão em 1926 onde falava sobre crianças que hoje estariam contempladas no DSM-V, antes de Asperger ou Kanner; Asperger apresentou seu primeiro trabalho sobre crianças autistas em uma conferência em 1938, cerca de cinco anos antes do artigo de Kanner ser publicado; Kanner faz uma única citação a Asperger em uma resenha a um livro de outro autor, em 1971; Rimland, em seu livro de 1964, cita uma única vez Asperger; conforme Fitzgerald (2019); Anni Weiss cita um caso de autismo (ainda chamado de psicopatia)

26 O Brado Retumbante é uma minissérie Brasileira, dirigida por Gustavo Fernandez, exibida em 2012, onde um advogado idealista é eleito como presidente da Câmara dos Deputados em uma articulação política, que intenta utilizá-lo como fantoche. Porém ocorre um acidente aéreo onde vem a falecer o Presidente da república e seu vice, fazendo com que ele assuma a presidência do país e enfrente uma série de sucessivos escândalos. Foi escolhido como nome para esse capítulo tanto pela personagem principal, um homem idealista, bem como pelo próprio nome da minissérie, uma vez que os autistas do Brasil estão a cada dia mostrando sua voz, em seu formato original, sem interpretações de outros que gostariam de utilizá-los como fantoches.

Página 147 em um artigo publicado em 1935, e esse mesmo autor afirma que ela havia trabalhado com Kanner. Kanner não referenciou nenhum caso antes de 1943 em seu artigo “pioneiro” sobre autismo, bem como não existe referência a esse artigo tanto nos seus artigos sobre psicose infantil de 1973, ou mesmo em seu artigo de 1943. Ainda é necessário deixar referendado aqui que Kanner reconheceu antecedentes clínicos do autismo nos trabalhos de Sukhareva na Rússia, Lutz e Tramer na Suíça, e Despert nos EUA, em seus trabalhos publicados em 1965 (à página. 417) e 1971, conforme nos dizem Casanova e Casanova (2019, p. 21); apesar das semelhanças, Kanner diferenciou essas descrições de seus próprios estudos de caso, pois nestes ocorreu um período de “relativa normalidade” antes do início dos sintomas. Outro ponto que consideramos ser necessário enfatizar é o papel preponderante das mulheres na pesquisa autista, por inúmeras vezes relegado a uma posição inferior : iniciamos com Suckarewa, professora e psiquiatra russa que em 1926 já trazia escritos cuja profundidade somente há pouco foi reconhecida, conforme sua estreita proximidade com a descrição da síndrome autista atualmente em vigor no DSM-V; não podemos deixar de falar sobre Anni Weiss e sua pesquisa inicial em Viena, utilizada como inspiração por Asperger em seu trabalho, bem como Viktorine Zak, enfermeira-chefe da Clínica de Viena, considerada por vários autores estudados como o verdadeiro pilar daquele instituto por mais de trinta anos, e cujas abordagens nas intervenções por ela criadas, baseadas em jogos, são utilizadas até hoje. De forma alguma podemos deixar de enfatizar o trabalho pioneiro da professora inglesa Sybil Elgar, que serviu de inspiração para o criador do método Teacch, ou mesmo do grandioso trabalho de Uta Frith ou Lorna Wing, pilares do conhecimento sobre autismo. Buscamos, no aspecto histórico, localizar o(s) momento(s) preciso em que a invisibilidade e a necessidade do calar autista foi considerada correta, acreditamos ter subsidiado adequadamente o leitor desta para que tenha podido tirar suas conclusões do exato instante dessa ocorrência, envolta em tantas “necessidades” pessoais que suplantaram o bem comum dessa parcela da população. Porém, apesar desse enfoque tão particularmente negativo, acreditamos que os depoimentos obtidos dos diversos autistas protagonistas de nosso país tenham dado, ao menos uma réstia de respiro sobre como eles, solitariamente (em alguns casos, solidariamente com bons profissionais e pais) encontraram seu objetivo, seu caminho e seu modo específico de o trilhar. Logo em seguida da ambientação histórica obtida através da leitura dos livros que versam sobre esse assunto, tomamos o cuidado de tentar elucidar algumas das palavras mais corriqueiras sobre autismo, como inclusão, capacitismo, psicofobia, dentre outras mais

Página 148 conhecidas, com o intuito de criar um embasamento tal que permitisse que falássemos sobre o que os autistas passam, e o que os fez serem protagonistas de suas próprias síndromes, ao invés de continuarem aceitando, indiscriminadamente, que outros falassem por eles (muitas vezes dizendo o que não era real). Tal percurso não foi isento de tropeços, dificuldades, lutas por parte desses jovens e adultos, porém a cada dia mais a exigência do grupo “Nada sobre nós sem nós” de existirem palestrantes autistas se faz marcante em palestras e encontros quando o tema é pertinente. Torna-se necessário enfatizar como a metodologia de História Oral foi primordial no decorrer do presente trabalho, provendo recursos e ferramentas que nos permitiram fazer uma escuta adequada e respeitosa de nossos entrevistados, bem como a utilização das mídias sociais como lugar de comunicação e expressão que, à época de sua escolha, 2018, eram uma decisão bastante invulgar e diferenciada. De igual monta é o estudo da Sociologia da Educação, uma vez que esta nos faz pensar além do convencional, nos faz voltar o olhar educador para fora do ambiente escolar, tratando a Educação Sociocomunitária como aquela obtida quando das palestras dos autistas sobre sua visão de vida, ou mesmo suas comunicações via rede social com o intuito de educar a sociedade sobre eles; contadores de histórias - muitas vezes recheadas de gestos “estranhos” e muitas, muitas frases de filmes - que, aos poucos, estão começando a ser compreendidas pelo restante da humanidade. Trouxemos aqui a informação de que menos de treze por cento dos autistas termina com um certificado de conclusão sua educação básica (aliás, chamada de obrigatória pelo nosso governo) após sua matrícula. Deixa-se de ouvir a voz autista nas escolas em oitenta e sete por cento das vezes que estas são emitidas, pois não estão mais nesse ambiente. Realmente, como disseram duas das entrevistadas, é sorte um autista ter uma boa escolaridade no Brasil, e terminá-la. Quase tão invisíveis como sapos brancos jogados em um campo de neve (que com absoluta certeza os enregelará) prosseguem os autistas com coragem, e na maior parte das vezes, a teimosia dos que não tem outra opção. Através do presente trabalho, tivemos o raro privilégio de conviver (mesmo que virtualmente), por algum tempo, com mentes diversas e argutas, que permitiram uma visão diferenciada e bastante ativa sobre o mundo que nos cerca. : uma visão sem deturpamentos sociais, cunhada a partir de experiências próprias, que trazem em seu bojo muita coisa de qualidade intrínseca a ser acrescida à humanidade. Cabe a esta mesma humanidade, letrada, científica, que aprenda com essas pessoas e seu caráter único de visão, o real sentido de ser diferente, e o inclua em sua sociedade, visando uma mais justa e competente enquanto grupamento humano.

Página 149

No decorrer da presente pesquisa, deparamo-nos com muitos e diversos textos e enfoques de trato sobre a síndrome autista, seu histórico e tratamentos, a maioria bastante controversa, nos embrenhamos em uma leitura densa sobre o estigma como o apresenta Goffman (2004), até nos localizarmos no momento presente onde autistas lutam pelo movimento da neurodiversidade, tão bem esclarecido por Ortega (2009), falando sobre a neurodiversidade, organizada pelos próprios autistas que consideram que autismo não é uma doença, portanto não existe nem se necessita de cura para um jeito de ser, uma forma diferente de ser humano. Como tantas outras diferenças existentes, o autismo, pela voz autista, começa a exigir respeito. Iniciamos o presente trabalho com o silêncio dos inocentes, momento histórico controverso e confuso em que os autistas, apesar de terem voz, não eram contemplados com uma escuta sensível às suas necessidades verdadeiras, e finalizamos com o brado retumbante destes de suas verdadeiras necessidades, ditas em alta voz não apenas para aqueles que os escutem , mas para a humanidade toda. Greta27 está aí, e cito aqui suas palavras: “(autismo, grifo nosso) Me faz ser diferente, e isso é até uma dádiva. Posso enxergar além do óbvio”. Essa será, talvez, a melhor resposta para as inúmeras perguntas colocadas no presente trabalho sobre a falta de escuta da voz autista: de um diagnóstico multifacetado, que mesmo após setenta anos de sua acepção inicial continua sendo dúbio mesmo para os melhores profissionais, a profissionais da educação que não buscam informações sobre o trabalho específico com o seu alunado autista (mesmo existindo condições de aprendizado para tal, conforme demonstramos neste) o aluno autista vagueia pela vida da escolaridade formal, desde seu nascimento até a finalização de sua educação – salvo por raríssimas e honrosas exceções – silencioso. Silenciado. Mas observando o mundo, e com ele aprendendo, até descobrir que sua voz tem força, mesmo divergente, mesmo atípica, mesmo aparentemente isolada, toda ela emersa a partir de seu olhar diferenciado. Uma voz que, sozinha, dá forma à água. Em diversos momentos nessa pesquisa trouxemos a questão da falta de escuta da voz autista, de sua desvalorização nas poucas vezes que ocorria, ou do eco observado quando essa voz finalmente é ouvida, mas não atendida; acreditamos, portanto, ser coerente com a proposta inicial que o presente trabalho seja finalizado com essa voz, para que, pelo menos como

27 Greta Ernman Thunberg é uma ativista ambiental sueca, autista, com 17 anos, considerada como personalidade do ano de 2019 pela revista Time. Tornou-se famosa ao abandonar a escola e protestar em frente ao parlamento sueco, exigindo mais ações deste para mitigar as mudanças climáticas. Sua ação criou o movimento Greve das escolas pelo clima, que hoje é um movimento mundial, que congrega que a ausência deliberada às escolas é para chamar a atenção dos políticos para o aquecimento global, pois para os defensores desse movimento, talvez essa geração estudantil não tenha um futuro a alcançar, se não forem tomadas providências com relação à saúde do planeta.

Página 150 exemplo, tenhamos todos uma escuta sensível. Portanto, conforme o que foi advogado até o momento nesse trabalho, deixamos como a última palavra a ser escrita neste texto a voz da autista Cássia:

Tá cheio de gente se colocando como "a voz" do próprio filho autista e tá cheio de gente achando isso lindo. Se colocar como a voz de alguém é violento. Não importa que esse ato venha acompanhado de discursos que romantizam essa violência colocando-a como um ato de bondade. É violento e invasivo se colocar como a voz de outra pessoa. E violento achar que por ser pai ou mãe pode falar por outra pessoa. Isso é dos piores silenciamentos porque vem disfarçado de amor. Quando uma violência vem disfarçada de amor parental, ela se torna praticamente inquestionável, é praticamente uma heresia criticar essa atitude horrorosa. A verdade inconveniente é a seguinte: você pai ou mãe de autista não oralizado é a sua própria voz, você fala por você mesmo, defende o seu próprio ponto de vista e não faz a menor ideia de como é a voz do seu filho. Lembrando que para uma pessoa ter voz é necessário que haja escuta. Não há escuta se você não para de falar. "Eu sou a voz do meu filho" é uma mentira, uma balela criada para manter autistas não oralizados silenciados e dependentes das opiniões de quem ACHA que pode falar por eles. Parece um ato de amor, não é? Mas é de fato um ato de poder. A linguagem e o acesso ou falta de acesso a ela é uma questão de poder. Lutem para que todo autista possa ter sua própria voz ouvida e levada em consideração. Ninguém é e nem precisa ser a voz de ninguém. Todo mundo é e precisa ser sua própria voz. Comunicação alternativa tá aí pra isso. Acessibilidade é a ordem do dia. TODOS os autistas tem muito a dizer e é dever de quem tem acesso aos espaços de luta reivindicar que isso seja possível. Não é questão de mera opinião, é respeito ao direito de expressão, pautado na Convenção pelos Direitos das Pessoas com Deficiência e na LBI (Lei Brasileira de Inclusão, grifo nosso). Que TODOS os autistas possam ser escutados em suas demandas, TODOS, oralizados ou não. Não estamos aqui falando pelos autistas que (ainda) não podem falar por si mesmos. Eles têm suas próprias demandas. Eles têm suas próprias ideias e opiniões. Eu não sou a voz do meu irmão, autista clássico não oralizado, recuso esse papel. Eu sou minha própria voz e isso já é uma baita responsabilidade. A minha luta é para que autistas como o Sérgio possam falar por si mesmos e que sejam realmente ouvidos. Que possam inclusive discordar de nós que hoje estamos falando e intervindo nos movimentos, assim a gente cresce também.

Página 151

Porque a minha esperança é sempre a de que quem vem depois seja melhor do que quem veio antes. E, observando as falas de alguns autistas não oralizados pelo mundo, eu não tenho dúvidas de que vem aí uma leva de ativistas muito melhores. É pena que no Brasil ainda tenhamos muita resistência principalmente por parte daqueles que gritam "eu sou a voz do meu filho", "pelo meu filho falo eu". Ninguém é a voz de ninguém não, gente. Há autistas como o meu irmão que estão se comunicando pelo mundo, escrevendo blogs, livros, criticando as terapias pelas quais foram obrigados a passar. Não temos isso no Brasil. Temos ainda a crença na cura, em dietas que curam, de que autismo começa no intestino, de que há vermes que só autistas tem, de que a culpa é da falta de vínculo mãe-bebê... Há toda uma estrada a ser trilhada e nós vamos avançar. Cabe a cada um escolher se avança ou se fica preso nessas crenças limitadoras. As duas coisas não dá pra ser, ou você segue ou retorna às teorias das décadas passadas. [...] Meu sonho é que tenhamos autistas falando por si mesmos em tudo que é lugar com todas as ferramentas de comunicação existentes e outras que ainda vamos inventar. Que nenhum autista viva sob nenhum tipo de silenciamento. Que ocupemos todos os espaços que quisermos ocupar. Que sejamos ouvidos e levados em consideração. Que tudo que nos diz respeito de alguma forma seja construído com a nossa participação. E que nenhum de nós seja deixado para trás.

Página 152

REFERÊNCIAS

ALBERTI, V. Indivíduo e biografia na História Oral. CPDOC, Rio de Janeiro , 27-29 Setembro 2000. Disponivel em: . Palestra proferida na mesa redonda ' O documento em história da psicologia: o oral e o textual', durante o III Encontro Clio-Psyché: historiografia, psicologia e subjetividades-paradigmas, realizado pelo Núcleo Clio-Psyché do Departamento de Psicologia So. ALBERTI, V. Manual de História Oral. Rio de Janeiro: FGV, 2005. ALVES, A. J. O planejamento de pesquisas qualitativas em Educação. Caderno de pesquisa, Rio de Janeiro, v. 77, p. 53-61, 1991. Disponivel em: . AMADO, J.; FERREIRA, M. D. M. (. ). Usos e abusos da História Oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.. Usos e abusos da História Oral. p. ARAGÃO, M.; TIMM, J. W.; KREUTZ, L. A História Oral e suas contribuições para o estudo das culturas escolares. Conjectura: Filosofia e Educação, Caxias do Sul , v. 18 n. 2, p. 28-41, maio-agosto 2013. ASPERGER, H. Autistic Psychopathy' in childhood. In: FRITH, U. Autism and Asperger Syndrome. Cambridge: Cambridge University Press, 1944/1991. p. 37 - 62. ASPERGER, H. Carta de 14 de Abril de 1934, citado em CASTELL, R. Hundert Jahre und Kinder Jugendpsychiatrie , Göttingen, V & R Unipress (2008, pp. 102-103. ASSIS, Érico Gonçalves de. Táticas lúdico-midiáticas no ativismo político contemporâneo. Dissertação de mestrado. São Leopoldo, Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), 2006 ASSUMPCAO JR, FRANCISCO B. et al . Reconhecimento facial e autismo. Arq. Neuro- Psiquiatr., São Paulo , v. 57, n. 4, p. 944-949, Dec. 1999 . Disponível em http://www.SciELO.br/SciELO.php?script=sci_arttext&pid=S0004- 282X1999000600008&lng=en&nrm=iso. Acesso em 04 Mai 2020. http://dx.doi.org/10.1590/S0004-282X1999000600008. BAUMAN, Z. Comunidade - a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2003. BAUMAN, Z. Confiança e medo na cidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009. BECKER, F. A epistemologia do professor: o cotidiano da escola. 16ª. ed. São Paulo : Vozes, 2013. BECKER, H. S. Métodos de Pesquisa em Ciências Sociais. São Paulo : Editora de Humanismo, Ciência c Tecnologia HUCITEC Ltda, 1992. BIALER, M. A Lógica do Autismo: Uma análise através da autobiografia de um autista. Psicol. estud., Maringá, v. v. 19, n. 4, p. 645-655, Dezembro 2014. Disponivel em: . Acesso em: 25 Abril 2018. BIALER, M. A inclusão escolar nas autobiografias de autistas. Psicol. Esc. Educ., Maringá, v. 19, n. 3, p. 485-492, Dez. 2015. Disponivel em:

Página 153

. Acesso em: 25 Abr 2018. BIALER, M. Um Estudo Descritivo do Funcionamento Psíquico de uma Autista. Psicol. cienc. prof., Brasília, 37, n. 4, Dezembro 2017. 1025-1036. Disponivel em: . Acesso em: 25 Abrl 2018. BISSOTO, M. L.; MIRANDA, A. C. Educação Sociocomunitária: tecendo saberes. Campinas: Editora Alínia, 2012. BLEULER, E. The problems of schizoidia and syntonia. Zeitschrift fur die Gesammte Neurologie und Psychiatrie, v. 78, p. 373–399, 1922. BOGDAN, R. C.; BIKLEN, S. K. Investigação Qualitativa em Educação. Porto: Porto Editora , 1994. BOSI, E. A Pesquisa em Memória Social. Psicologia USP , São Paulo , v. 4, p. 277-284, 1993. BOSI, E. A substância social da memória. In: BOSI, E. O tempo vivo da memória. São Paulo : Ateliê editorial, 2003. p. 13-48. BOSI, E. Memória e Sociedade: Lembranças de Velhos. 7ª. ed. São Paulo : Cia das Letras , 1994. BRANDÃO, C. R. Reflexões sobre como fazer trabalho de campo. Sociedade e Cultura, Goiania, v. 10, p. 11-27, Janeiro-Junho 2007. Disponivel em: . Acesso em: 05 Dezembro 2019. BRANDÃO, Z. Entre questionários e entrevistas. In: NOGUEIRA, M. A.; ROMANELLI, G.; ZAGO, N. Família & escola. Rio de Janeiro: Vozes, 2000. p. 171-183. CAITITÉ, A. M. L. O autismo como diversidade: ontologias trazidas à existência no ativismo político, em práticas da psicologia e em relatos em primeira pessoa. Niterói: Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutora em Psicologia., 2017. Disponivel em: . Acesso em: 17 Novembro 2018. CAMARGOS, W. E. A. Transtornos Invasivos do Desenvolvimento 3º Milênio. 1ª. ed. Brasília: Ministério da Justiça, 2002. CARO, S. M. P. Educação Social e Educação Sociocomunitária: Novas perspectivas para a educação escolar. In: BISSOTO, M. L.; MIRANDA, A. C. Educação Sociocomunitária: tecendo saberes. 1ª. ed. Campinas: Alínea, 2012. Cap. 2, p. 37-52. CASANOVA, E. L.; CASANOVA, M. F. Defining Autism: A Guide to Brain, Biology, and Behavior. Londres: Jessica Kingsley Publishers, 2019. CASTANHA, J. G. Z. A trajetória do autismo na educação: da criação das associações à regulamentação da política de proteção (1983-2014). Dissertação( Mestrado em Educação) Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Cascavel, 2016. CAZALIS, F.; LACROIX, A. The women who don’t know they’re autistic. Spectrum, 2017. Disponivel em: . Acesso em: 22 Agosto 2019.

Página 154

CHARLOT, Bernard. Da relação com o saber: Elementos para uma teoria. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 2000. DELIGNY, F. O Aracniano e outros textos. São Paulo:M-1 Edições, 2015. DONVAN, J.; ZUCKER, C. Outra Sintonia - A História do Autismo. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. 659 p. FARIAS, Iara Maria de; MARANHAO, Renata Veloso de Albuquerque; CUNHA, Ana Cristina Barros da. Interação professor-aluno com autismo no contexto da educação inclusiva: análise do padrão de mediação do professor com base na teoria da Experiência de Aprendizagem Mediada (Mediated Learning Experience Theory). Rev. bras. educ. espec., Marília , v. 14, n. 3, p. 365-384, Dec. 2008 . Available from . access on 26 Apr. 2020. https://doi.org/10.1590/S1413-65382008000300004. FERNANDES, R. S. A memória dos lugares, dos objetos e os guardiões da memória na educação não formal. Revista História Oral, v. 8. número 2, p. 169-194, Jul-Dez 2005. FERNANDES, R. S.; GROPPO, L. A.; PARK, M. B. (. Cidade – Patrimônio educativo. Jundiaí: Paco editorial, 2012. FERNANDES, R. S.; LIMA, L. M. G. A metodologia da História Oral ou da história falada na pesquisa em educação não formal ou sociocomunitária. In: BISSOTTO, M. L.; MIRANDA, A. C. Metodologias de pesquisa em educação sociocomunitária. 1ª. ed. Jundiaí: Paco Editorial , 2016. FERREIRA, E. C. V. Prevalência de autismo em Santa Catarina: uma visão epidemiológica contribuindo para a inclusão social. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 2008. FERREIRA, M. D. M. Desafios e Dilemas Da História Oral nos anos 90: O Caso do Brasil. História Oral, São Paulo, p. 19-30, Junho 1998. FERREIRA, M. D. M.; FERNANDES, T. M.; ALBERTI, V. Histórial Oral: desafios para o século XXI. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2000. FERREIRA DO NASCIMENTO, Fabiana; MONTEIRO DA CRUZ, Mara; BRAUN, Patricia. Escolarização de Pessoas com Transtorno do Espectro do Autismo a Partir da Análise da Produção Científica Disponível na SciELO Brasil (2005-2015) Education Policy Analysis Archives/Archivos Analíticos de Políticas Educativas, vol. 24, 2016, pp. 1-25. Arizona, Estados Unidos FITZGERALD, M. M. The history of autism in the first half century of the 20th century: new and revised. Journal for ReAttach Therapy and Developmental Diversities, p. 70-77, 2019. FRISCH, M. A Shared Aulhority: Essays on lhe Craft and Meaning of Oral and Public History. Albany: [s.n.], 1990. FRITH, U. Autism and Asperger Syndrome. Cambridge: Cambridge University Press, 1991. FRITH, U. Autism: Explaining the Enigma. 2ª. ed. Oxford : Blackwell Publishers, 2003. FRY, P. A persistência da raça: ensaios antropológicos sobre o Brasil e a África Austral. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 2005.

Página 155

GADIA, Carlos A.; TUCHMAN, Roberto; ROTTA, Newra T.. Autismo e doenças invasivas de desenvolvimento. J. Pediatr. (Rio J.), Porto Alegre , v. 80, n. 2, supl. p. 83- 94, Apr. 2004. Disponível em https://www.SciELO.br/SciELO.php?script=sci_arttext&pid=S0021- 75572004000300011. Acesso em 04 Jan 2020. http://dx.doi.org/10.1590/S0021- 75572004000300011. GALLO, S. Por uma Educação menor. Educação e Realidade , Porto Alegre, v. 27 nº 2, p. 169-178, Julho/Dezembro 2002. GERHARDT, T. R.; SILVEIRA, D. T. Métodos de pesquisa. 1ª. ed. Porto Alegre : Editora da UFRGS, v. único , 2009. GIL, A. C. Como elaborar projetos de pesquisa. 4ª. ed. São Paulo: Atlas , 2007. GIL, A. C. Métodos e Técnicas de Pesquisa Social. 6ª. ed. São Paulo: Atlas , 2008. GOFFMAN, E. Estigma: Notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4ª. ed. São Paulo: Coletivo Sabotagem , 2004 GOFFMAN, E. Manicômios, prisões e conventos. 4ª. ed. São Paulo : Perspectiva, 1974.. GOMES, Paulo de Tarso. Educação sociocomunitária: delimitações e perspectivas. In: Revista de Ciências da Educação, São Paulo, ano X, n. 18, p.43 – 63, 1.º semestre de 2008. Disponível em: https://unisal.br/wp-content/uploads/2016/10/PAULO-DE-TARSO_18.pdf. Acesso em: 20 Mar. 2020. GONÇALVES, P. S. A Utilização da Internet como recurso terapêutico aos portadores de Transtornos Invasivos do Desenvolvimento e seus famiiares. In: JÚNIOR, W. C. Transtornos Invasivos do Desenvolvimento 3º Milênio. 1ª. ed. Brasília: Ministério da Justiça , 2002. Cap. 41, p. 247-250. GONÇALVES, P. S. A Folha e a Floresta: : desvelando o olhar do aluno com transtorno do espectro autista no ambiente acadêmico. In: UNISAL XVI Mostra de Produção Científica. Campinas: UNISAL , 2016. GONÇALVES, P. S. Educação e História Oral de Autistas - Do Silêncio dos Inocentes ao Brado Retumbante. Dissertação de Mestrado em Educação UNISAL, Americana : [s.n.], 2020 GONÇALVES, P. S.; SCALISSE, L. F. A Folha e a Floresta: Desvelando o olhar autista através da Fotografia In: ESPECIAL, A. B. D. P. E. E. Anais do VIII Congresso Brasileiro de Educação Especial. São Carlos: [s.n.], v. 3, 2018. p. 92592. GONDAR, J. Memória individual, memória coletiva, memória social. Morpheus - Revista Eletrônica em Ciências Humanas, v. 7, número 13, Março 2015. ISSN ISSN 1676-2924. Disponivel em: . Acesso em: 20 Abril 2017. GRINKER, R. R. Autismo: um mundo obscuro e conturbado. Sao Paulo : Larousse do Brasil , 2010. GROPPO, L. A. Sociologia e Comunidade - Ensaios sobre a imaginação sociológica e o princípio sóciocomunitário. 1ª. ed. Várzea Paulista: ESATEC Educacional e Editora , 2011.

Página 156

GROPPO, L. A. Sociologia da Educação e Conhecimento - sobre o currículo escolar e para além dele. In: BISSOTO, M. L.; MIRANDA, A. C. (. ). Educação Sociocomunitária: tecendo saberes. 1ª. ed. Campinas: Alínea, 2012. Cap. 1, p. 20-35. GROPPO, L. A. Sociologia da educação sociocomunitária: ensaios sobre o campo das práticas socioeducativas e a educação não formal. Holambra, SP: setembro, 2013. 286 p. GUEDES, N. P. D. S.; TADA, I. N. C. A Produção Científica Brasileira sobre Autismo na Psicologia e na Educação. Psicologia: Teoria e Pesquisa - Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo , v. 31 nº 3, p. 303-309, Jul-Set 2015. GUGEL, M. A. A pessoa com deficiência e sua relação com a história da humanidade. [S.l.]: [s.n.]. 2007. p. http://www.ampid.org.br/ampid/Artigos/PD_Historia.php. HELLINGER, B. O outro sou eu. Novus, 2015. Disponivel em: . Acesso em: 30 Dez 2019. HOUNIE, A. G. Psiquiatria na Infância e Adolescência -. Histórico da Lista de Psiquiatria da Infância e Adolescência no Brasil - PIA-Brasil, v. 22, n. 11, Novembro 2015. IDOETA, P. A. Autismo: as descobertas recentes que ajudam a derrubar mitos sobre o transtorno. BBC News, 2020. Disponivel em: . Acesso em: 19 Fevereiro 2020. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Resumo Técnico : Censo da Educação Básica 2018 [recurso eletrônico]. – Brasília : Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2019. IZQUIERDO, I. A arte de esquecer: cérebro, memória e esquecimento. Rio de Janeiro: Ed. Vieira & Lent, 2004. KANNER, L. Autistic Disturbances of Affective Contact. Nervous Child, v. 2, p. 216-250, 1943. KANNER, L. Infantile autism and the schizophrenias. In: SONS, V. H. W. &. Childhood Psychsis: initial studies and new insights. Baltimore: Low, v. 10, 1965. p. 77-89. Disponivel em: . KANNER, L. Psiquiatria Infantil. 4ª. ed. Buenos Aires: Ediciones Siglo Veinte, 1972. KIM, J. H. A fotografia como projeto de memória. Cadernos de Antropologia e Imagem, Rio de Janeiro, v. 17 (2), p. 227-247, 2003. KIM, Y. S. E. A. Prevalence of Disorder in a Total Population Sample. American Journal of Psychiatry , 2019. KIRK, J.; MILLER, M. L. Reliability and validity in quantitative research. London : Sage Publications, 1986. KLIN, A. Autismo e síndrome de Asperger: uma visão geral. Rev. Bras. Psiquiatr., São Paulo, v. 28 supl 1 , p. s3-s11, Maio 2006. Disponivel em: . Acesso em: 20 Março 2017. LANG, A. B. D. S. G. História Oral, Sociologia e Pesquisa: a Abordagem do Ceru. São Paulo, Editora USP. 1996. LANG, A. B. D. S. G. História Oral: muitas dúvidas, poucas certezas e uma proposta. In:

Página 157

LANG, A. B. D. S. G. Trabalhando com História Oral: reflexões sobre procedimentos de pesquisa. Cadernos CERU, São Paulo, v. 11, p. 121-134, Janeiro 2000. LARAIA, R. D. B. Cultura: um conceito antropológico. 20ª. ed. Rio de Janeiro : Jorge Zahar, 2006. LE GOFF, J. Os Intelectuais na Idade Média. Tradução de Marcos de Castro. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006. 252 p. LEVI, G. Uso da biografia. In: MADO, J.; FERREIRA, M. D. M. (. ). Usos e Abusos da História Oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. p. 167-182. LIMA, Patricia Oliveira. LIMA, Vera Helena Barbosa. A criança com diagnóstico de autismo na contemporaneidade. Cadernos de Psicologia. Juiz de Fora, vol 1, nº 1, p. 5-24. LOTTER, V. Epidemiology of Autistic Conditions in Young Children. Social Psychiatry, Londres, v. 1 nº 3, p. 124-135, 1966. LOUZEIRO, R. Barreira Atitudinal, Brasilia, 25 Janeiro 2020. Disponivel em: . Acesso em: 25 Janeiro 2020. LOUZEIRO, R. Barreira Atitudinal. Facebook, 2020. Disponivel em: . Acesso em: 25 Janeiro 2020. MAGNANI, J. G. C. O (velho e bom) caderno de campo. Sexta-Feira, São Paulo , v. 1, maio 1997. MALERBA, J. Os historiadores e seus públicos: desafios ao conhecimento histórico na era digital. Rev. Bras. Hist., São Paulo, v. 37, n. 74, p. 135-154, Janeiro 2017. Disponivel em: . MANOULLENKO, I.; BEJEROT, S. Sukhareva - Prior to Asperger and Kanner. Revista nórdica de psiquiatria, v. 69, n. 1, p. 1-4, 10 Março 2015. Disponivel em: . Acesso em: 26 JUL 2019. MANTOAN, M. T. É. Inclusão escolar: o que é? por quê? como fazer? 1ª. ed. São Paulo : Moderna, 2003. MARQUES, S. T. Memória e criação em Bergson: Sobre o fenômeno da atenção e os planos de consciência. Trans/Form/Ação, Marília, v. 40, n. 2, p. 71-88, Junho 2017. Disponivel em: . MARTINS, M. F. Prefácio. In: BISSOTO, M. L.; MIRANDA, A. C. Metodologia em Educação Sociocomunitária. Jundiaí: Paco Editorial , 2016. p. 13-21. MASCOTTI, T. D. S. et al. Estudos Brasileiros em Intervenção com Indivíduos com Transtorno do Espectro Autista: Revisão Sistemática. Gerais: Revista Interinstitucional de Psicologia, Bauru, v. 12, p. 107-124, 2019. MEIHY, J. C. S. B. Manual de História Oral. 5ª. ed. São Paulo : Loyola , 2005. MEIHY, J. C. S. B. (. ). (Re)introduzindo História Oral no Brasil. São Paulo : Xamã , 1996.

Página 158

MELTZER, D. Autismo e estados pós-autísticos: diferentes desdobramentos feitos por Meltzer da metáfora do "ovo" e da “fotaleza vazia". In: CAVALCANTI, A. E.; ROCHA, P. S. Autismo. 3ª. ed. Belo Horizonte: Casa do Psicólogo, 2007. p. 87-90. Ministério da Educação. Cadastro Nacional de Cursos e Instituições de Educação Superior Cadastro e-MEC. Disponível em https://emec.mec.gov.br/, acesso em 25 ABR 2020. MISÉS, R. A. A criança deficiente mental, uma abordagem dinâmica. Rio de Janeiro: Zahar, 1977. MUNIZ, R. D. S. Os Processos Educativos, Sociais e Comunitários: Identidades e Diferenças e o uso das tecnologias nos grupos de ajuda mútua com transtornos de ansiedade. Americana : UNISAL - Dissertação de Mestrado, 2018. NGUYEN, T. A. et al. Um cluster de variantes associadas ao autismo no NLGN4X vinculado ao X se assemelha funcionalmente ao NLGN4Y. Neuron. 2 de abril de 2020.Disponível em https://doi.org/10.1016/j.neuron.2020.03.008, acesso em 22 Abr 2020. NEWSON, C.; HOVANITIZ, C. A. Autistic spectrum disorders. In: MASH, E. J.; BARKLEY, R. A. Treatment of childhood disorders. New York: Guilford Press, 2006. p. 455-511. OLIVEIRA, Thaiane; QUINAN, Rodrigo; TOTH, Janderson Pereira.Antivacina, fosfoetanolamina e Mineral Miracle Solution (MMS): mapeamento de fake sciences ligadas à saúde no Facebook. Revista Eletrônica de Comunicação, Informação e Inovação em Saúde, Rio de Janeiro, v. 14, n. 1, mar. 2020. OMOTE, S. Aparência e Competência Em Educação Especial. Temas em Educação Especial, São Carlos, v. 1, p. 11-26, 1990. OMOTE, S. Atratividade Física Facial e Percepção de Deficiências. Didática, São Paulo, v. 29 nº 1, p. 115-124, 1993. OMOTE, S. Atratividade física facial e prognóstico. Psicologia Teoria e Pesquisa , Brasília, v. 13 nº 1, p. 113-117, 1997. OMOTE, S. Estigma no tempo da Inclusão. Revista Brasileira de Educação especial , Marília, v. 10, n-3, p. 287-308, Set-Dez 2004. Disponivel em: . Acesso em: 11 Novembro 2018. ORTEGA, F. Deficiência, autismo e neurodiversidade. Ciência e Saúde Coletiva - Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Rio de Janeiro , v. 14 nº 1, p. 67-77, janeiro-fevereiro 2009. PARREIRA, A. Gente Asperger. 1ª. ed. Campinas: Russel Editores , v. I, 2015. PASCHOAL, A. Confusão. Facebook, 26 Agosto 2018. Disponivel em: . Acesso em: 06 Dezembro 2019. PASSERINI, L. Work Ideology and Conscnsus under Italian Fascism. In: PORTELLI, A. What Makes Oral History Different. [S.l.]: [s.n.], 1979. p. 69. PAULA, C. S. et al. Brief report: prevalence of pervasive developmental disorder in Brazil: a pilot study. J Autism Dev Disord., v. 41 (12), p. 1738-1742, December 2011.

Página 159

PICCOLO, G. M.; MOSCARDINI, S. F.; COSTA, V. B. D. A historiografia das produções em periódicos de Sadao Omote. Revista Brasileira de Educação Especial, Marília, v. 16 nº 1, p. 107-126, Abril 2010. Disponivel em: . PIRES, L. Do Silêncio ao Eco: Autismo e Clínica Psicanalítica. São Paulo : EDUSP, 2007. PRETI, D. O. O discurso oral culto. São Paulo : Humanitas Publicações , v. 2ª, 1999. PRODANOV, C. C.; FREITAS, E. C. D. Metodologia do trabalho científico: métodos e técnicas da pesquisa e do trabalho acadêmico. 2ª. ed. Novo Hamburgo : FEEVALE , 2013. RABINOW, Paul; FOUCAULT, M.; ROSE, P. The Essential Foucault, New York: The New Press, 2003 RIBEIRO, S. H. B. Prevalência dos Transtornos Invasivos do Desenvolvimento no município de Atibaia: um estudo piloto. São Paulo: dissertação , 2007. RICHARDSON, R. J. et al. Pesquisa social; métodos e técnicas. 3ª. ed. São Paulo : Atlas, 2012. ROBISON, J. E. Kanner, Asperger, and Frankl: A third man at the genesis of the autism diagnosis. Autism , Londres, v. 21 issue 7, p. 862-871, September 2016. ROSE, Nikolas. The Politics of Life Itself: Biomedicine, Power, and Subjectivity in the Twenty-First Century, Oxford : Princeton University Press, 2007) ROUDINESCO, E.; PLON, M. Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro : Zahar , 1998. RUTHER, M. Concepts of autism: a review of research. J Child Psychol Psychiatry, São Paulo, v. 9 (1), p. 1-25, 1968. RUTHER, M. Diagnosis and definition of childhood autism. J Autism Child Schizophr. , v. 8(2), p. 139-161, 1978. SACKS, O. O Homem que confundiu sua mulher com um chapéu. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

SACKS, O. Um Antropólogo em Marte - Sete Histórias Paradoxais. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. SCHWARZSTEIN, D. Historia Oral, memória e historias traumáticas. História Oral, v. 4, p. 73-83, 2001. SENNETT, R. O fim da cultura pública. In: SENNETT, R. O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. São Paulo: Companhia das letras, 1988. p. 317-328. SEVERINO, A. J. Metodologia do Trabalho Científico. 23ª. ed. São Paulo : Cortez, 2007. SHEFFER, E. Crianças de Asperger - As origens do autismo na Viena nazista. 1ª. ed. São Paulo: Record, 2019. SILBERMAN, S. Neurotribes: The legacy of autism and the future of . 1ª. ed. Sidney: Allen & Unwin, 2017. SILVA, Antonio Ricardo da. O mito individual do autista. 1998. 101 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 1998. SILVA, Helena Maria Martins da. Autismo, formação de conceitos e constituição da personalidade: uma perspectiva histórico-cultural. Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Educação da USP, São Paulo. 2019.

Página 160

SILVA, M. D.; VALDEMARIN, V. T. Pesquisa em educação: métodos e modos de fazer. São Paulo: Cultura Acadêmica , 2010. SILVA, Wanessa Kesya Moreira Gonçalves. A Imitação, a Empatia e o brincar como ferramentas na clínica psicanalítica com crianças ditas autistas. Dissertação de Mestrado em Psicologia Clínica e Cultura da Universidade de Brasília, 2018, disponível em https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/34486/1/2018_WanessaKesyaMoreiraGon%C3%A 7alvesdaSilva.pdf acesso em 30 Mar. 2020. SILVEIRA, B. R. Bioidentidade e a busca por um significado. 7º Seminario Brasileiro de Estudos Culturais e Educação. Canoas: ULBRA. 2017. p. SILVEIRA,.. 2017. STALLYBRASS, P. O casaco de Marx. roupas, memória, dor. Belo Horizonte : Ed. Autêntica, 2008. STANISK, A.; FLORIANI, N.; SILVA, A. D. A. A Metodologia da História Oral e seu uso em Pesquisas Etnoecológicas. TerraPlural, Ponta Grossa, v. 9, p. 119-134, 2015. Disponivel em: . Acesso em: 15 Dezembro 2019. TALARICO, M. V. T.S.; LAPLANE, A. L. F. Trajetórias Escolares de Alunos com Transtorno do Espectro Autista . Comunicações Piracicaba v. 23 n. 3 Número Especial p. 43-56 2016 43 DOI: http://dx.doi.org/10.15600/2238-121X/comunicacoes.v23nespp43-56 TAMANAHARA, A. C.; PERISSINOTO, J.; CHIARI, B. M. Uma breve revisão histórica sobre a construção dos conceitos do Autismo Infantil e da síndrome de Asperger. Rev Soc Bras Fonoaudiol, v. 13 (3), p. 296-299, 2008. Disponivel em: . Acesso em: 21 Janeiro 2020. TEIXEIRA, F. C. Metodologia da Pesquisa Histórica. Rio de Janeiro : Fundação CECIERJ, 2014. TEIXEIRA, M. C. T. V. Literatura científica brasileira sobre transtornos do espectro autista. Rev. Assoc. Med. Bras., São Paulo, v. 56 n. 5, p. 607-614, 2010. Disponivel em: . Acesso em: 02 Fevereiro 2020. THOMAS; NELSON. [S.l.]: [s.n.], 1996. THOMPSON, P. A Voz do Passado. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1992. TUSTIN, F. Revised understandings of psychogenic autism. Int J Psychoanal. , v. 72(Pt 4):, p. 585-591, 1991. VOLDMAN, D. Definições e Usos. In: FIGUEIREDO, J. P. B. D.; FERREIRA, M. D. M. Usos e Abusos da História Oral. 8ª. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2006. p. 33-41. WIMMER, H.; PERNER, J. Beliefs about Beliefs: Representation and Constraining Function of Wrong Beliefs in Young Children’s Understanding of Deception. Cognition, Nova York, v. 13 nº 1, p. 103-128, Janeiro 1983. WING, L.; GOULD, J. Severe Impairments of Social Interaction and Associated Abnormalities in Children: Epidemiology and Classification. Journal of Autism and Developmental Disorders, Londres, v. 9, p. 11-29, 1979. ZELDOVICH, L. How history forgot the woman who defined autism. Spectrum, Nova York, p. 1-8, Novembro 2018. Disponivel em: .

Página 161

Página 162

APÊNDICE I – CURSOS DE ESPECIALIZAÇÃO COM REFERÊNCIA A AUTISMO

Cursos de Especialização com nomenclatura TGD inscrita, por região/estado

Vagas em todas Todas as Vagas à Região Estado as modalidades Modalidades à Distância distância Centro-Oeste Distrito Federal 15 1 2560 160 Centro-Oeste Goiás 24 1 3560 160 Centro-Oeste Mato Grosso 15 0 2000 0 Centro-Oeste Mato Grosso do Sul 15 0 2300 0 Nordeste Alagoas 0 0 0 0 Nordeste Bahia 16 1 2410 160 Nordeste Ceará 16 0 2850 0 Nordeste Maranhão 19 1 2760 160 Nordeste Paraíba 1 1 0 160 Nordeste Pernambuco 2 1 260 160 Nordeste Piauí 0 0 0 0 Nordeste Rio Grande do Norte 3 0 400 0 Nordeste Sergipe 12 0 1800 0 Norte Acre 0 0 0 0 Norte Amapá 12 1 1310 160 Norte Amazonas 3 0 400 0 Norte Pará 12 1 2060 160 Norte Rondônia 7 1 1460 160 Norte Roraima 0 0 0 0 Norte Tocantins 11 2 2200 600 Sudeste Espírito Santo 49 31 12930 9160 Sudeste Minas Gerais 59 31 14310 10280 Sudeste Rio de Janeiro 15 3 2460 660 Sudeste São Paulo 65 40 19090 14180 Sul Paraná 29 6 3340 120 Sul Rio Grande do Sul 31 14 6600 4300 Sul Santa Catarina 13 1 1960 160 Total Todas 444 131 89020 40900 Fonte: MEC, 24 Abr. 2020

Página 163

Figura 27 - Cursos de Especialização com nomenclatura TGD por Região/Estado. Dados obtidos no MEC

Fonte: Gonçalves, 2020. Figura 28 - Cursos de Especialização com TGD no nome - Modalidade à Distância por Região/Estado a partir de dados do MEC

Fonte: Gonçalves, 2020.

Página 164

Cursos de Especialização com nomenclatura TEA inscrita, por região/estado

à Total de Vagas à Região Estado Todas as modalidades Distância Vagas distância Centro-Oeste Distrito Federal 5 0 700 0 Centro-Oeste Goiás 3 0 240 0 Centro-Oeste Mato Grosso 3 0 240 0 Centro-Oeste Mato Grosso do Sul 4 0 480 0 Nordeste Alagoas 5 0 390 0 Nordeste Bahia 7 0 540 0 Nordeste Ceará 4 0 550 0 Nordeste Maranhão 4 0 350 0 Nordeste Paraíba 3 0 140 0 Nordeste Pernambuco 5 0 430 0 Nordeste Piauí 2 0 150 0 Nordeste Rio Grande do Norte 2 0 150 0 Nordeste Sergipe 2 0 150 0 Norte Acre 0 0 0 0 Norte Amapá 2 0 200 0 Norte Amazonas 2 2 140 0 Norte Pará 4 0 450 0 Norte Rondônia 1 0 100 0 Norte Roraima 0 0 0 0 Norte Tocantins 4 0 850 0 Sudeste Espírito Santo 5 2 1000 600 Sudeste Minas Gerais 15 5 3430 2300 Sudeste Rio de Janeiro 6 2 1780 600 Sudeste São Paulo 36 5 8705 1600 Sul Paraná 22 8 9260 6270 Sul Rio Grande do Sul 4 1 785 300 Sul Santa Catarina 2 0 460 0 Total Todas 152 25 31670 11670 Fonte: MEC, 25 Abr. 2020

Página 165

Figura 29 - Cursos de Especialização com TEA na nomenclatura - por Região/Estado. Dados obtidos do MEC

Fonte: Gonçalves, 2020

Figura 30 - Cursos de Especialização com TEA na nomenclatura, por modalidade à distância - por Região/Estado

Fonte: Gonçalves, 2020

Página 166

APÊNDICE II – ROTEIRO DE PERGUNTAS Abaixo deixamos o rol de perguntas efetuadas aos entrevistados. Esclarecemos que, para a elaboração destas, partimos de nosso conhecimento pessoal pré-existente, bem como de contatos anteriores com diversos autistas, sobre o que os incomoda mais ao ser perguntado, e o que eles gostariam de falar que em geral não são perguntados. As perguntas foram de cunho bastante aberto, com amplitude, o que foi informado como sendo difícil de responder por três dos participantes. Então foi necessário conversar particularmente com cada um, vendo o que estes estavam entendendo das perguntas, e o que achavam mais relevante responder naquele quesito.

- Fale um pouco sobre você: o que você gosta, o que não gosta, e o que é autismo para você. - O que não é autismo para você? - Como você se vê autista? - Como sua família trata você sendo autista? - O que mais incomoda você nas outras pessoas neurotípicas? O que você faz que incomoda as pessoas neurotípicas, e como você se sente quanto a isso? - O que você considera mais difícil em um relacionamento com um neurotípico? Se lembrar, cite uma situação que em não entendeu qual era o comportamento desejado de você, e não soube reagir, ou de que forma reagiu. - Quais as ideias populares sobre autismo que você conhece, e o que você acha delas? (aqui se busca informações sobre o que é tradicionalmente dito sobre/para autistas, como gênios autistas , eles vivem em seu próprio mundo , eles não olham nos olhos , eles tem rotinas e interesses particulares , eles não falam , a cura do autismo, as causas do autismo) - Alguma vez você foi discriminado por ser autista? Quando e como isso aconteceu? Como você se sentiu, e o que fez? - O que você conhece sobre legislação? O que você considera seus direitos? - O que você acha da tentativa de normatizar um autista, ou ainda que é “ser normal” (não ser neurotípico) para um autista? - Você foi ou vai à escola? Se sim, como a escola recebeu você? Se não, porque não? A escola é um lugar bom? O que pode melhorar lá? O que não é uma boa escola para um autista? (aqui se busca informações sobre inclusão ou mera presença física do autista no ambiente escolar, os mitos da escola não estar preparada) - Como foi frequentar uma escola de graduação, no que ela pode melhorar para o autista?

Página 167

- Você toma alguma medicação? Se sim, qual a relação dessa medicação com o autismo? Se existir relação, o que explicaram, ou melhor, qual a justificativa que deram para você para tomar essa medicação por ser autista? Quando um autista deve ser medicado, e por qual motivo? Você conhece outro autista que foi medicado? E o que ele disse a você sobre isso? O que você sente quando é medicado por ser autista? - O que você acha dos vídeos de autistas que circulam na internet, tanto aqueles que eles mesmos fizeram, como aqueles em que eles foram filmados, ou ainda aqueles que sugerem mostrar como se sente um autista? - O que faz você feliz? - O que faz você infeliz? - O meio digital facilita ou dificulta sua comunicação? O que achou da entrevista ser feita assim?

Página 168

APÊNDICE V – TRANSCRIÇÃO DAS ENTREVISTAS Indicações: utilizaremos a notação abaixo para informar pausas e outros, conforme Preti (1999)

< > Incompreensão de palavras ou segmentos - Hipótese do que se ouviu / - Truncamento (havendo homografia, usa-se acento indicativo da tônica e/ou timbre) Maiúscula - Entonação enfática ::: - Prolongamento de vogal e consoante (como s, r ) - Silabação ? – Interrogação << >> - Comentários descritivos do transcritor <...> Indicação de que a fala foi tomada ou interrompida em determinado ponto: abaixo, maiores indicativos:

- indica pausa - indica pausa longa - pequenos risos, risadinhas - respiração - respiração profunda

Página 169

ENTREVISTA 1 - ANA

1 - Autismo é uma diferença neurológica natural da espécie humana. Por causa de como nossa sociedade é organizada, autismo é uma deficiência. Autismo é uma forma de processamento cerebral diferente, uma fiação cerebral diferente, por assim dizer, que tem base genética e é uma condição permanente da vida inteira, desde que a pessoa é um embriãozinho até ela morrer, ela vai ser autista. 2 – O que não é autismo...Não é uma doença, não é

algo resultado de trauma, ou alguma coisa que é resultado de alguma coisa que a pessoa fez na vida, não tem como pegar autismo, não é uma doença mental, não é um transtorno mental, não é algo

possível ou sequer desejável de ser curado, porque aí é a forma como o cérebro está organizado, né . Não existe cura para o que você é, às vezes tem adaptações. Eu já esqueci o livro, a gente pode entrar melhor em uma outra pergunta.

É... não é

uma condição de meninos, ou de que seja de alguma forma maior e alguma , em algumas raças por assim dizer, em alguma etnia, assim, acho que autismo é igualmente distribuído entre a humanidade, principalmente entre as mulheres, só que sub-diagnóstico faz a gente ter a impressão de que são só homens, tal, a maioria é homens, isso é outro assunto que dá muito para entrar em detalhes depois, não é uma coisa que vai trazer o sofrimento eterno da vida da pessoa, né, ninguém sofre de autismo, a gente sofre de capacitismo, de exclusão, de negação de direitos humanos, né, de cultura oralista que acha que a fala é a única forma de se comunicar,

ah, sim, autismo não é um mundo à parte, a gente vive no mesmo mundo que todo mundo, né ?

Essa história de mundo interior, próprio mundo, num sei o quê, tá, tá, tá. Não. 3 – Algo que, eu não sei se tem um nome mais científico certo pra isso, mas eu chamo de efeito “maria-vai-com-as-outras” que

, né, é

neurotípicos são capaz de fazer tudo pelo social até mesmo , é, se anular, né? Tem gente, por exemplo, que eu sei que só tem a opinião política que tem por causa de que os amigos tem aquela opinião política, né.

A pessoa não gostava, sei lá, de camisa com bolinhas amarelas, mas aí, camisa com bolinhas amarelas entra na moda, pronto, tô usando. Mas ao mesmo tempo, eu não quero cair na mesma armadilha que as pessoas que criticam autismo, né, que diz coisas assim, porque, né, por exemplo, eu vejo num grupo lá : ah, o meu filho me morde, tem que acabar com esse autismo, ah, me, né, as pessoas querem que eu use uma coisa feia só porque está na moda, vão acabar com o neurotipismo, não, né. Eu entendo que as coisas que as pessoas tem, a gente precisa diversidade, né, o autista é necessário no mundo, neurotípico é necessário, TDAH é necessário, todos os

Página 170 tipos de mentes são necessárias, como diria Temple Grandin, e cada um vai ter seus prós e contras, né, não vou botar a conta de tudo que é negativo no neurotipismo como faz com o autismo e achar que assim é. Ana: Tem algumas perguntas que estão meio confusas pra mim. Pesquisadora: Quais? Vou tentar esclarecer. Ana: Tipo, são perguntas muito amplas. É melhor ser mais específico. Pesquisadora: A próxima, por exemplo, é sobre relacionamento com neurotípicos : tem gente que tem namorado neurotípico, e entende assim a pergunta, mas ela se refere a qualquer relacionamento : amigos numa escola, colegas de trabalho... Mas, Ana, você não é obrigada a responder tudo ! Apenas responda o que quiser! Se não gostar de uma pergunta, diga essa eu não gostei, não quero responder... faz parte também. :) Aliás, acho que você já esclareceu isso bastante na pergunta anterior. :) Você também já falou sobre os mitos que envolvem os autistas, então vamos em frente: a próxima é sobre discriminação: já foi discriminada? Quer falar sobre como e quando aconteceu? Ana : Uma que eu lembro bem, me lembro de uma aula de inglês, né, fiz Center Escolar de Línguas,

eu tava com, que é, uns 15, 16 anos, poraí, e eu tinha um crush lá, num, num colega meu de sala,

e...

ah, falava assim normalmente, tal, a gente tava quase virando amigo, e um dia ele perguntou : ah, porque que você é assim tão diferente, e-estranha, assim, hum assim, acho que diferente só que ele perguntou, tímida, alguma coisa assim. Aí eu, né, Ah, já que ele percebeu, eu vou falar, né. Ah, porque, e-eu tenho síndrome de Asperger, é um tipo de autismo. Num sei o que, aí ele ficou mudo, e aí ele nunca mais falou comigo, nunca foi o mesmo. Ainda bem que eu tive bem a noção de perceber ah, então esse aí não presta pra mim. Pesquisadora: E a escola, principalmente a graduação, como foi? Meu primeiro curso foi

é... tecnólogo em conservação e restauro, numa faculdade particular, e

eu num tava “fora do armário” autista, por assim dizer, né? , Mas assim, eu tive muita sorte de ter uma turma muito boa e professores muito bons. Êh, tinha doze pessoas contando comigo na turma e eu era a única que tinha saído diretamente do ensino médio. Então, eu era a caçulinha da turma. E todo mundo me tratou com muito respeito, tal, me aceitando, as minhas dificuldades, tudo os professores, também, mesmo, só depois assim, só no último semestre que eu fui falar mais oficialmente que eu era autista, e tal. Teve uma vez uma prova lá que eu tava tendo muita dificuldade de entender, de fazer as anais lá que tava pedindo, tal, que era uma matéria de patrimônio, e tinha que observar um monte de documentos, e num sei o quê, e escrever, tá-tá-tá. E aí eu conversei com a professora, olha, eu não estou conseguindo, tal. E aí ela fala assim pra turma: gente, tá todo mundo de acordo em deixar a Ana

Página 171

(nome alterado para o pseudônimo) levar o material para casa e fazer a prova em casa? E todo mundo: ah, sim, claro. Ou seja, eu não precisei de nenhum processo burocrático para conseguir fazer, né? Hen, mas assim, eu dei sorte. Deveria ser, né, ter o suporte em todas as universidades, todas as faculdades, independente de ser particular, pública, que seja

né? Isso... Eu sei que não tem como uniformizar um padrão, porque cada faculdade tem um curso diferente, e é muito diferente do que é da educação básica, tal, mas tem que ter o apoio, né. E se eu não desse sorte? Como é que ia ser? Se fosse uma turma ruim, se fossem professores ruins, né? Por sorte, a UnB, que agora eu “tou” terminando Artes Visuais, ela tem um programa que eu até acho, considero muito bom, o PPNE, que inclusive já ganhou reconhecimento, tal, de inclusão, né, que tem várias adaptações disponíveis, tá, e se não fosse pelo PPNE eu já teria desistido do curso, com certeza, né

e é um curso que, assim, eu sempre quis fazer, eu sempre sonhei

, e

né como é importante o apoio, né. Eu sei de muitos autistas que, tipo, não se declararam lá no PPNE, né, ou que não sabiam que eram autistas, tal, e teve problemas, tal, e foram jubilados, e não consegui, e desistiram do curso do meio do caminho, porque? Não tiveram suporte, (en)tão é, inclusão no ensino superior é tão importante como no ensino básico, mas pouco se fala sobre isso. Minha imagem é essa:

Figura 31 31 - Baleia Narval com a inscrição: I´m the unicorn of the sea - Imagem cedida pela entrevistada Ana

Fonte: acervo próprio (fim da transcrição)

Página 172

ENTREVISTA 2 – CÁSSIA

O que não é autismo para você? Autismo não é doença, um peso, um defeito, um atraso, um erro, algo errado. Autismo não é um problema para ter uma causa e uma solução. Não é algo que cause sofrimento por si só. Não é algo a ser extirpado do indivíduo ou algo a ser diminuído em suas características até sumir. Autismo não é um fardo por si só. Não é algo que se deva ter um remédio para acabar com ele. Não é um conjunto de genes que devem ser modificados em laboratório. Não é sinal de algo errado com as sinapses neuronais. Não é algo a ser evitado ou eliminado.

Como você se vê autista? Eu me vejo como uma pessoa que tem processos cognitivo, de linguagem e sensorial diverso da maioria das pessoas. Com características que me exigem adaptação em muitos contextos e que me trazem vantagens em outros tantos contextos. Alguém para quem muitas atividades que para os outros são corriqueiras se revelam verdadeiros desafios. Me vejo como alguém que vai tentando manter o equilíbrio e a adaptabilidade nesse mundo que constantemente me exige normalidade.

Como sua família trata você sendo autista? somos apenas 3 pessoas na minha família e todas somos autistas, logo, não é nada demais.

O que mais incomoda você nas outras pessoas neurotípicas? o apego que a maioria delas tem à normalidade. Os preconceitos que geralmente elas desenvolvem contra toda e qualquer diferença humana. O hábito de exigir falsidade em quase tudo, a tal falsidade social e ter que falar tudo em entrelinhas e de forma tão indireta que é praticamente impossível saber o que estão dizendo de fato. Continue me cobrando porque eu me perco no tanto de coisa que tenho pra fazer; mil desculpas por ser tão devagar. Pesquisadora: Imagina, querida, você está sendo ótima! Quer que eu coloque pergunta por pergunta para você? Você tinha me dito que umas você não tinha entendido, quais foram? A próxima seria: O que você considera mais difícil em um relacionamento com um neurotípico? Esse relacionamento não é só relacionamento amoroso, é com o seu colega de escola, de trabalho, o trabalhador que você encontra, por exemplo o cobrador do ônibus, o carteiro que vem entregar carta... era mais ou menos por aí a dúvida?

Página 173

Acho que a forma que as pessoas entendem o que é educação e cuidado. Enquanto pra mim é uma boa coisa a pessoa ser sincera, direta e objetiva, para a maioria dos neurotípicos isso é errado. O melhor é mentir pra não magoar a pessoa. Acontece que mentir me magoa profundamente, fazer rodeios e usar de entrelinhas me assusta e me desestabiliza. Lido melhor com a fala direta e objetiva. Outra coisa que me incomoda é o conceito que se tem de carinho e afeto. A maioria das pessoas pensam que quem gosta mesmo de alguém quer essa pessoa por perto o tempo todo. Ter alguém perto de mim muito tempo me dá até aflição. Preciso ficar muito tempo sozinha. Gosto de ficar sozinha e isso é lido como ausência de aceto. Também não lido bem com a forma maldosa com que usam a linguagem. Pesquisadora: E a próxima é para se soltar: Quais as ideias populares sobre autismo que você conhece, e o que você acha delas? (aqui se busca informações sobre o que é tradicionalmente dito sobre/para autistas, como “gênios autistas”, “eles vivem em seu próprio mundo”, “eles não olham nos olhos”, “eles tem rotinas e interesses particulares”, “eles não falam”, a cura do autismo, as causas do autismo) Cássia: Existem muitas ideias sobre autismo que são na verdade mitos. Por exemplo, a ideia de que autistas tem um mundo próprio. Não temos um mundo próprio, não de um modo diferente do que todo mundo tem. Não vivemos em um mundo à parte, isolados. Apenas lidamos com o mundo de um modo distinto da maioria das pessoas. Isso não deveria ser nada demais. O autismo como sendo mais comum em homens também é um mito. O que acontece é que temos subdiagnóstico em mulheres, em negros, em pessoas com outras deficiências e de periferia. O autismo em adultos também é subdiagnosticado. Existem idosos autistas que nunca foram nem serão diagnosticados. O autismo continua sendo visto como algo de criança branca. É comum que a representação do autismo seja feita pela foto de um menino branco. Há também a ideia de que o autismo é uma doença. Isso leva famílias a gastarem muito dinheiro com tratamentos experimentais que fazem seus filhos de cobaia. Eu acho essa ideia a mais perigosa de todas porque há iniciativas claramente eugenistas que são apoiadas por essa crença. Os estereótipos e mitos relacionados ao autismo são muitos. Impossível citar todos. Um ainda muito recorrente é o estereótipo ligado às religiões. Me parece que quase toda religião tem alguma visão estranha sobre pessoas autistas. Somos vistas como endemoniadas, como pessoas que abusaram de sua capacidade de comunicação em vidas passadas, como filhos que vieram para que os pais paguem por pecados que cometeram, como filhos que vem como uma provação divina... Eu penso que isso tudo atrasa demais a nossa inclusão na sociedade e o real entendimento do que é o autismo e de quais são as nossas reais demandas.

Página 174

Discriminação Quando se é autista considerada "leve", a gente sofre discriminação de várias formas diferentes da discriminação dos autistas considerados "severos". A mais comum delas é a desconfiança, ou certeza, de que se está mentindo ou que seu laudo é falso ou inexistente. Essa é a discriminação mais comum pela qual eu passo. Ela acontece muito dentro do ativismo. Pais e mães de autistas tendem a pensar que, se você foi diagnosticada já adulta, você não é autista de verdade, apenas diz que é autista para ganhar alguma vantagem ou até mesmo para aparecer. Essa discriminação é bem pesada, já ouvi gente dizendo que me mataria fácil por achar que eu sou uma "falsa autista". Essa certeza leva as pessoas a me tratarem muito mal. Eu já fiquei muito mal com isso, nunca é fácil ouvir ou ler que uma pessoa tem nojo de mim e gostaria de me matar por achar que eu não sou autista de verdade. É pesado principalmente porque o meu ativismo não me traz vantagens ou dinheiro, é um trabalho voluntário e muito cansativo, eu abro mão de muita coisa porque eu acredito que o que eu faço é importante. Outra discriminação vem de quem percebe que eu sou autista, seja por eu informar isso, seja por perceber alguma diferença no meu comportamento. Nesses casos, a minha capacidade é sempre colocada em dúvida e então algumas oportunidades são perdidas. Esse tipo de discriminação é muito mais comum com o meu irmão porque o autismo dele é muitíssimo mais perceptível. Eu me lembro de no máximo 10 pessoas que, durante toda a nossa vida, não tratou o meu irmão como incapaz. Ele, além de ser autista adulto e não oralizado, tem também diagnóstico de "retardo mental severo" (com essas palavras). O que eu faço diante dessas discriminações é tentar conscientizar as pessoas para que elas desconstruam seu capacitismo e sua psicofobia. Também tento cuidar do meu emocional porque é realmente pesado passar por isso. Eu faço dois tipos de terapia. Psicoterapia individual com psicóloga e terapia em grupo com a supervisão de uma psiquiatra e de uma residente em psiquiatria. Ambas terapias me ajudam muito a suportar essas e outras discriminações que me atingem. Vídeos Os vídeos de autistas falando por si mesmos eu acho maravilhoso que existam. Espero que mais e mais autistas se expressem de todas as formas possíveis. Já tem muita gente que não é autista falando sobre autismo. Vídeos em que autistas são expostos sem seu consentimento ou mesmo conhecimento deveriam ser considerados crimes. Muitos autistas não oralizados são filmados em momentos de crise. Isso é horrível e violento. Sobre eles são ditas coisas terríveis. Esses autistas são os mais vulneráveis a todo tipo de violência e são chamados de agressivos. Mas um dia esses autistas também terão suas vozes ouvidas e toda essa violência irá acabar. É pra isso que lutamos.

Página 175

Meios Digitais. Eu gosto. Me comunico melhor escrevendo. Foi tranquilo. Se fosse por vídeo, acho que não daria conta. Por áudio eu daria conta, mas seria mais complicado e por ligação telefônica seria possível, mas, por experiência, sei que teria muita dor de cabeça quando terminasse.

Um objeto que me define: Meus protetores auriculares. Eles me permitem ir ao cinema, shows e outros eventos sociais.

Figura 32 - Protetor Auricular

Fonte: Google Imagens

(fim da transcrição)

Página 176

ENTREVISTA 3 – HÉRCULES BRENNAND

3 minutos antes do horário marcado, recebo a seguinte mensagem: H. (respiração profunda) rã-rã (limpa garganta) Então inicio a entrevista: P. Boa tarde, Hércules. comecemos então: Quem é você, nas suas palavras? H. ô, Priscilla,

respondendo a sua primeira pergunta: quem sou eu nas minhas palavras? Bom... eu sou uma pessoa que

é...

é...

é me considero diferente sim, mas

é... que não, o que não significa ser uma pessoa normal é normal

é, eu, eu me considero como eu próprio dizendo uma pessoa sou uma pessoa inteligente é.. tenho os meus gostos pessoais, eu gosto de ler, eu gosto de escrever eu gosto

sou fascinado por colecionismo sou

sob qualquer tipo de coisa eu tenho já teve épocas que eu não era tão eclético, hoje eu sou um pouco mais. É umas coisas assim que até questiono por que, de se fixar essa ideia que autista tem o interesse restrito. Ãh...

eu...

eu

eu às ve, eu ultimamente tenho sido mais so, eu tenho sido mais aberto, me comunicado melhor, faço, terá, graças às terapias que eu faço, com fonoaudióloga, com neuroterapia, com psi, com psicólogos, com psiquiatra, tudo, dos montes, que eu posso é...

te descrever. , é, e tudo coisas assim mais é... mais assim que eu me lembro agora, né? Mas, é basicamente isso. P: Como foi sua infância? E depois, como foi a adolescência? H. Já sobre a minha infância, Priscilla, “qui” que eu posso responder...

, como é que foi, foi uma infância ...

(respiração) que eu não diria, não acharia tão que foi tão diferente assim não, foi uma infância que,

das mais comuns. Eu... tinha dificuldade sim de me interagir, era mais solitário, não gostava muito

não gostava muito de viver em grupo. Nesse ponto o entrevistado diz que é muito difícil para ele fazer essa entrevista falando, então ele solicita se pode ser por escrito. Com a anuência, ele passa o seguinte texto: Eu gosto de cinema, gosto de leitura, gosto de Netflix, gosto de música, gosto de estar numa livraria. Gosto de tudo ligado a arte. Gosto de Muay Thai dentre outros. Já o que não gosto é de comer jerimum (abóbora – grifo nosso), omelete, não gosto de gente invasiva. Gente que fala coisas demais. Gente desagradável dentre outros.

Página 177

O autismo para mim simboliza uma condição da minha personalidade. Como autista eu me vejo diferente, mas ao mesmo tempo não me vejo como anormal. Minha família me trata bem, ás vezes eu não gosto de algumas coisas, como algumas faltas de coerências. Uma das coisas que mais me incomoda em pessoas neurotípicas é o quanto que elas são muito incoerentes, principalmente na hora de abrirem a boca para falar coisas desagradáveis como se achassem as corretas do mundo, mas no fundo são tão amorais quanto qualquer um. As eu sinto a sensação que com essa gente parasita a coisa só piora. Mais difícil num relacionamento com neurotípico é ele não perceber que está sendo um invasor, um alien, um penetra. Um exemplo disso é na escola onde teve um colega invasor que não sabia que estava sendo inconveniente e foi verbalmente agressivo comigo e isso, isso machuca esta prática bullying. A escola que ignora não sabe que mais para frente este aluno vai chegar de ter o sentimento vingativo de praticar o massacre. É por culpa se me desculpe o termo chulo desses ratos, que nos infestam que o mundo vive desse jeito e tira a integridade da pessoa. Sobre as ideias populares a respeito do autismo eu tenho a dizer, minha opinião a este respeito é o seguinte: Não devemos nos basear nos estigmas que tentam caracterizar o espectro autistas. Cada autista tem os seus graus, uns mais comprometidos, outros menos comprometidos. Outros mais habilidosos, outros menos habilidosos. O que não se pode criar e isto eu acho um absurdo é criar uma imagem fantasiosa, romantizada do autista sendo representado como um sujeito adulto, infantilizado, assexuado, dependente a vida inteira ou que é um super gênio para ele ser santificado como uma pessoa perfeitamente virtuosa. Eu mesmo não considero uma pessoa perfeitamente virtuosa. Eu também tenho meus defeitos como qualquer neurotípico. Já houve alguns casos isolados em que sofri uma discriminação por ser diferente, minha relatou um caso para minha mãe de uma colega achar que eu parecia um mongoloide. Mas que não teve muitas consequências. A Legislação ela é importante porque é aonde estão as leis que determinam os nosso direitos. Uma das coisas mais importantes que considero de todo o cidadão é o de ir e vir. Quando isso você fica escravo de um sistema. A normatização sobre o autismo eu acho válida porque assim ninguém vai considerar ele um ser abominável. É diferente sim, mas também não é um anormal. A primeira escola que estudei que foi no Maternal em um Colégio Tradicional de Freira, eu tive uma experiência horrível onde pela minha dificuldade em interação com as crianças eu sofri muito o bullying físico a ponto de quando meus pais foram reclamar com a coordenadora dessa escola. Ela muito curta e grossa respondeu que eu era o culpado por tudo. Me fez de bode expiatório. Foi após este episódio que meus pais resolveram mudar de escola e me colocaram

Página 178 em várias inclusivas até eu finalmente chegar numa e conseguir me fixar e ficar até concluir o Ensino Médio. Mas enfrentei muitos desafios, mas graças a Deus consegui superar. Para mim uma boa escola é aonde a gente aprenda conceitos de cidadania e não distinga que é diferente de quem. O que vejo como absurdo é ela fechar os olhos para as práticas de bullyings, especialmente com os autistas. E ignorar que ele também seus sentimentos e suas fragilidades. Coordenador que fecha os olhos e usa de técnicas baratas para tentar levantar o astral dele, me desculpe em dizer, mas ele está sendo muito hipócrita. Já tomei, um Rivotril para aliviar um pouco mais minha tensão. Mas depois parei. Quanto a questão da medicação acho muito relativo, vai muito de acordo com o grau ou mesmo com o caso que se apresenta. A circulação dos vídeos dos autistas falando deles mesmos em seus canais no Youtube tem toda a admiração com relação a coragem deles de expor pela ótica deles no seu espectro. Uma coragem que pessoalmente não teria. Prefiro mesmo aborda em meu canal Cinema com Super-Herói assuntos que eu me familiarizo mais que é o mundo geek/nerd. Uma das coisas que faz mais feliz é quando estou em casa, ouvindo uma musiquinha para relaxar, instrumental então em piano melhor ainda. Também quando pego um livro ou uma revista para ler. Dentre outros. Uma das coisas que me faz infelizes é ver quanto que o mundo está cada vez mais frio. Que estamos mais banalizados. A ponto de sermos constantemente questionados e quanto isto está nos levando ao abismo da depressão. E eu já senti muito isso quando via na rede social foto de gente feliz de qualquer jeito e eu me sentindo um lixo. Um complexo de vira-lata. E o pior é que não é só eu tem ocorrido geral. O que lembra muito a visão pessimista de 30 anos atrás que o cinema em filmes como Blade Runner, por exemplo retratou sobre o futuro tecnológico corporativista deixarem as pessoas frias. Inclusive fiz um texto a este respeito. Vou lhe passar. E em relação à última pergunta, Olha, Priscilla, posso dizer que facilitou e muito, viu, me comunicar pelo meio digital. Antes eu tinha mais, se fosse antes eu não teria tanto, mas hoje em dia sim. E (a entrevista) foi uma experiência boa. Fiquei bem à vontade de falar as coisas, só tenho que dizer isso. Coisas que o resumem, que ele gosta, em suas palavras: “Todos estes para mim tem significado, Priscila”

Página 179

Figura 33 - Este mangá de Cavaleiros do Figura 34 - Meu box de DVD dos filmes de Zodíaco representa bem uma lembrança da Batman representa bem minha paixão pelo minha infância quando eu via o desenho de Super-Heroi. Cavaleiros do Zodíaco na TV. E despertou a minha paixão por mitos.

Fonte Hércules Brennand

Fonte: Hércules Brennand

Página 180

Figura 35 - Minha HQ da Viúva Negra. A Figura 36 – Harry Potter, um dos grandes heroína com sexy appeal que me desperta a estímulos de leitura paixão.

Fonte - Hércules Brennand Fonte Hércules Brennand

Figura 37 Minhas Action Figures símbolo Figura 38 - Marco da minha infância e que da minha paixão Geek. despertou minha paixão pelo Japão.

Fonte: Hércules Brennand Fonte Hércules Brennand

Página 181

Figura 39 - Meu quadrinho favorito, Ghost Figura 40 - O agente que me faz espelhar a in the Shell ser galanteador.

Fonte Hércules Brennand Fonte: Hércules Brennand

Página 182

Figura 41- Meu caderno de anotações com Figura 42 - O DVD do filme mais incrível a Arlequina. que já vi da ficção científica.

Fonte Hércules Brennand Fonte Hércules Brennand

ENTREVISTA 4 – LÓTUS

Fale um pouco sobre você: o que você gosta, o que não gosta, e o que é autismo para você. Sou Lótus, jornalista, relações públicas, radialista, especialista em gestão e comunicação empresarial, escritora, youtuber, palestrante, autista e ativista pela causa. Recebi meu diagnóstico há 3 anos. (2016, grifo nosso) Até então, estudei comunicação para criar estratégias que me facilitassem as relações sociais. Passei minha vida procurando entender minhas mudanças de humor, irritabilidade, dificuldade em entender o ponto de vista do outro. Me esforcei muito para entender o outro e evitar conflitos. Isso me causava extrema tensão e cansaço diários. Mas por outro lado me apaixonei por pessoas e sua riqueza interior. Não suporto falsidade, grosseria e injustiça. - O que não é autismo para você?

Página 183

Autismo é uma formação diferente do cérebro neurodivergente que torna o autista alguém singular que pude sofrer muito não pelo autismo em si, mas pelas condições coexistentes, como transtorno da ansiedade generalizada. - Como você se vê autista? Na verdade, eu me vejo como a Lótus. Mas uma coisa é real: hoje com o autoconhecimento, lido melhor com minhas fragilidades e otimizo as potencialidades. Afinal, eu me entendo muito mais, minha relação com a família melhorou muito e a leveza, finalmente, faz parte da minha vida. - Como sua família trata você sendo autista? Meu filho foi quem suspeitou de meu autismo e me apoiou na busca pelo diagnóstico. Nossa relação melhorou muito pois passamos a nos entender melhor. Por vezes, a rigidez cerebral ainda nos faz cair em armadilhas. Mas logo buscamos estratégias para lidar com isso. A relação com minha mãe também deu um salto. Hoje eu a entendo melhor e ela, a mim também. - O que mais incomoda você nas outras pessoas neurotípicas? O desconhecimento da neurodiversidade que causa sofrimento a todos os envolvidos. O que você faz que incomoda as pessoas neurotípicas, e como você se sente quanto a isso? Se acontece, não consigo perceber. Sempre digo para as pessoas com as quais eu me relaciono mais frequentemente que me sinalizem se eu estiver sendo inconveniente. - O que você considera mais difícil em um relacionamento com um neurotípico? Imagino que o mesmo que acontece em todo o relacionamento humano. A falta do exercício da empatia e do respeito as diferenças de ambas as partes. Se lembrar, cite uma situação que em não entendeu qual era o comportamento desejado de você, e não soube reagir, ou de que forma reagiu. Trabalhava em uma rádio de Minas, o apresentador do programa do qual eu era produtora e participava de um debate comandado por ele me disse que não queria que eu falasse bem de determinado partido (eleições de 2014). Expliquei que só elogiava o que merecia elogio e criticava o que era passível de crítica de acordo com minha opinião. Ele disse: 'mas eu não quero. Você tem de criticar esse tal partido. Senão você entende o que vai acontecer, não é.?' Abaixei a cabeça e saí confusa. Não entendi o que ele quis dizer. Mas estava tranquila. Era minha opinião e eu jamais enganaria meus ouvintes. Realmente eu não havia entendido. Ele queria que eu mentisse e como eu não o faria, fui demitida.

Página 184

- Quais as ideias populares sobre autismo que você conhece, e o que você acha delas? (aqui se busca informações sobre o que é tradicionalmente dito sobre/para autistas, como “gênios autistas”, “eles vivem em seu próprio mundo”, “eles não olham nos olhos”, “eles tem rotinas e interesses particulares”, “eles não falam”, a cura do autismo, as causas do autismo) Tudo isso e um pouco mais. Tentar padronizar pessoas, autistas ou não, é errar na certa. Cada um é único e irrepetível. Autistas aprendem, de uma maneira diferente, mas aprendem. Eu criei muitas estratégias para ser mais 'adequada' e passar mais despercebida pelas pessoas. Aprendi a olhar no olho, a me comunicar melhor (sou comunicadora social), a me relacionar com várias pessoas. Ainda assim, a conta desse esforço vem em forma de grande exaustão (Burnout). - Alguma vez você foi discriminado por ser autista? Quando e como isso aconteceu? Como você se sentiu, e o que fez? Fui encerrar uma conta em um banco e tentaram tirar de meu saldo o limite que eu tinha de cheque especial. Minha gerente sabia que eu fico muito nervosa e confusa para lidar com bancos. E ela tentou se aproveitar disso. Ela não contava com o fato de eu ter reservado o dia para estar no banco, que usei técnicas de respiração para controlar a ansiedade e peguei senha de prioridade. Eu me preparei 8 meses para aquele momento. E foi assim que a gerente não conseguiu me enganar. - O que você conhece sobre legislação? O que você considera seus direitos? Eu conheço a Constituição, a Lei Berenice de Piana e a LBI. Meus direitos estão claros nestas leis. - O que você acha da tentativa de normatizar um autista, ou ainda que é “ser normal” (não ser neurotípico) para um autista? Há uma tendência de padronização da sociedade. É um erro. A diversidade é que promove o crescimento. Ser normal é exatamente ser você, único, singular, irrepetível. Você foi ou vai à escola? Se sim, como a escola recebeu você? Se não, porque não? A escola é um lugar bom? O que pode melhorar lá? O que não é uma boa escola para um autista? (aqui se busca informações sobre inclusão ou mera presença física do autista no ambiente escolar, os mitos da escola não estar preparada) Soube do meu diagnóstico aos 53 anos. Estou quase com 56. Não vivi a escola inclusiva. Sofri muito para dar conjura, me adaptar. Sou perfeccionista. Não aceitava perder um décimo. Não conseguia explicar minhas dúvidas e preferia estudar sozinha em casa. O esforço era tão grande que eu pensava: "Se minha mãe ficar rica hoje, eu 'paro' de estudar ontem.”

Página 185

Ao sair do ensino médio, minha sensação era de que um rolo compressor havia passado sobre mim, o bagaço voltava pra casa e o caldo ficou na escola. Na faculdade foi um pouco melhor pois eu estudava minha área de interesse. - Você toma alguma medicação? Se sim, qual a relação dessa medicação com o autismo? Se existir relação, o que explicaram, ou melhor, qual a justificativa que deram para você para tomar essa medicação “por ser autista”? A medicação que tomo é para as condições coexistentes, o transtorno da ansiedade generalizada e o transtorno obsessivo-compulsivo. Para o autismo o que me ajudou sempre, mesmo antes do diagnóstico, foi a psicologia. No entanto, sinto falta de ter feito fono e terapia ocupacional. Quando um autista deve ser medicado, e por qual motivo? Você conhece outro autista que foi medicado? E o que ele disse a você sobre isso? O que você sente quando é medicado por ser autista? Essa pergunta é técnica. Não tenho qualificação para responder. O restante respondi na pergunta acima. - O que você acha dos vídeos de autistas que circulam na internet, tanto aqueles que eles mesmos fizeram, como aqueles em que eles foram filmados, ou ainda aqueles que sugerem mostrar como se sente um autista? Quanto mais informação, menos preconceito. São iniciativas louváveis até porque essa exposição não é fácil. Eu acredito no lema: "Nada sobre nós ser nós.” - O que te faz feliz? Realizar meu propósito de vida Paz, cultura e educação. Minha missão: ser feliz e fazer o outro feliz. - O que te faz infeliz? A injustiça me dói na alma. - E vou pedir mais uma coisa : eu gostaria que você(s) escolhesse(m) um objeto, ou mais de um, que sejam importantes para você(s), e me diga por que ele é importante : se o(a) representa, porque diz algo especial para você(s), ou foto, ou filme, enfim o que você escolher. Sempre gostei de escrever. Então, sempre carrego comigo, desde a infância (9 anos), um bloquinho e uma caneta. A sensação de que posso perder ou me esquecer de algo me apavora. Esse foi um bom diferencial quando me tornei jornalista.

Página 186

Página 187

ENTREVISTA 5 – LUZ

Fale um pouco sobre você: o que você gosta, o que não gosta, e o que é autismo para você. Sou Luz, 22 anos, jornalista, escritor, youtuber, radialista, palestrante, crítico de cinema, budista, humanista, autista e ativista pela causa. Fui diagnosticado como autista aos 11 anos, em 2008. Gosto de quase tudo ligado às áreas das Artes, Cultura e Comunicação Social, em especial, filmes, literatura e séries de TV. O que mais me incomoda são a injustiça e a impotência, além da tendência de rotular o ser humano, e outras questões que vão contra meus ideais humanistas, como a vingança. Ser autista, para mim, é ter um funcionamento diferente no modus operandi. Isto não significa ser melhor ou pior, mas traz impactos tanto negativos quanto positivos na vida da pessoa. Acredito que sou o autista, não o autismo e, assim, percebo cada pessoa autista como uma vida única, singular. - O que não é autismo para você? Para mim, autismo não é uma sentença em que uma pessoa deva se enquadrar em todas as nuances dos critérios diagnósticos ou nos mitos que rondam essa condição (como o da falta de empatia). Há questões que são fundamentais para fechar ou não o diagnóstico e estão na literatura médica, mas cada indivíduo irá apresentá-las de acordo com suas nuances. - Como você se vê autista? Eu me vejo como alguém quase que obrigado a resistir, a se autoaperfeiçoar em um nível muito maior do que os neurotípicos, diariamente. Não vejo a superação como um processo pronto e acabado. E, acima de tudo, até pelo meu hiperfoco em Comunicação Social, me vejo como alguém que deseja romper os limites desta condição e aproveitar, ao máximo, as potencialidades do cérebro neurodivergente. - Como sua família trata você sendo autista? É difícil porque são muitos autistas no lado materno da minha família. Tive um psicólogo que dizia que, na relação entre dois ou mais autistas, quando as “peças se encaixam”, dá muito certo, mas quando não... Eu e minha mãe, também diagnosticada autista, já tivemos crises juntos e não foi nada agradável. Mas também nos compreendemos muito bem e temos uma ligação que percebo ser mais forte do que entre mães e filhos neurotípicos, ou quando só um é autista. O diagnóstico de ambos é muito importante nesse aspecto, para o autoconhecimento. - O que mais incomoda você nas outras pessoas neurotípicas? Não quero generalizar, mas a falta de empatia com o diferente e o desejo de rotular os autistas em um padrão.

Página 188

O que você faz que incomoda as pessoas neurotípicas, e como você se sente quanto a isso? Meu psiquiatra diz que tenho uma boa inteligência social. Mas, principalmente em família, demando muito a atenção dos outros, por falta de autonomia em algumas questões básicas (que vão da carência à dificuldade motora, que me dificulta fazer atividades simples da vida diária). Isto me deixa triste, gostaria de ser mais independente e vejo que, por mais boa vontade que as pessoas tenham, elas também têm suas próprias vidas e desafios e nem sempre podem me ajudar. - O que você considera mais difícil em um relacionamento com um neurotípico? Adoro o ser humano de forma geral e aprendo muito com os neurotípicos. Mas a grosseria e a falta de empatia de alguns me incomodam. Se lembrar, cite uma situação que em não entendeu qual era o comportamento desejado de você, e não soube reagir, ou de que forma reagiu. Não vou citar uma situação em especial, mas quando era criança eram muitas as vezes em que minha falta de filtro fazia com que eu revelasse assuntos que deixavam as pessoas constrangidas ou mesmo que as poderiam prejudicá-las em certos ambientes. Com o tempo, fui aprendendo a modular isso, às custas de muita dor de cabeça e de um Transtorno da Ansiedade Generalizada que acabou piorando por causa do meu esforço para decodificar o mundo. - Quais as ideias populares sobre autismo que você conhece, e o que você acha delas? (aqui se busca informações sobre o que é tradicionalmente dito sobre/para autistas, como “gênios autistas”, “eles vivem em seu próprio mundo”, “eles não olham nos olhos”, “eles tem rotinas e interesses particulares”, “eles não falam”, a cura do autismo, as causas do autismo) Todas essas que foram apontadas, e algumas outras (como autistas não podem ser escritores de fantasia), me incomodam profundamente, porque são estereótipos que rotulam, limitam e diminuem as pessoas para o seu verdadeiro potencial. - Alguma vez você foi discriminado por ser autista? Quando e como isso aconteceu? Como você se sentiu, e o que fez? Muitas vezes e, o que é pior, com profissionais especialistas no assunto. Uma vez disse a um psicólogo que tinha o desejo de fazer mestrado em Semiótica. Ele se assustou e disse que eu não poderia, por ser autista. Deixei de frequentar esse profissional. Fiquei muito triste. Adoro a área da linguagem subliminar e, talvez até por ser autista, devesse me aprofundar nos estudos dessa seara para compreender algo que neurologicamente é difícil para mim. Senti-me frustrado, porque acreditava que esse profissional deveria dar valor aos meus projetos e me ajudar a persegui-los, ao mesmo tempo em que me senti rotulado, - O que você conhece sobre legislação? O que você considera seus direitos?

Página 189

Eu conheço a Constituição, a Lei Berenice de Piana e a LBI. Acredito que são boas leis, mas que às vezes não são cumpridas por medo ou desconhecimento. - O que você acha da tentativa de normatizar um autista, ou ainda que é “ser normal” (não ser neurotípico) para um autista? Normalizar o autista é agressivo e infelizmente muito aceito em várias terapias e tratamentos. Já abandonei profissionais por conta disso. Mas há que haver um equilíbrio, e o autista pode aprender algumas estratégias do neurotípico para se adequar melhor ao mundo. Você foi ou vai à escola? Se sim, como a escola recebeu você? Se não, porque não? A escola é um lugar bom? O que pode melhorar lá? O que não é uma boa escola para um autista? (aqui se busca informações sobre inclusão ou mera presença física do autista no ambiente escolar, os mitos da escola não estar preparada) A escola sempre me foi um ambiente muito agressivo, tanto no convívio social quanto no volume exacerbado de tarefas que não necessariamente extraiam o que eu tinha de bom a oferecer. Aos poucos, fomos construindo a minha inclusão escolar (mesmo antes do diagnóstico), mas sempre apareciam desafios diários. - Você toma alguma medicação? Se sim, qual a relação dessa medicação com o autismo? Se existir relação, o que explicaram, ou melhor, qual a justificativa que deram para você para tomar essa medicação “por ser autista”? Tomo medicações para insônia, transtorno do humor e ansiedade generalizada. Todas condições coexistentes ao autismo, mas não para tratar a condição de autista em si. Quando um autista deve ser medicado, e por qual motivo? Você conhece outro autista que foi medicado? E o que ele disse a você sobre isso? O que você sente quando é medicado por ser autista? Acredito que o tratamento deva ser baseado nas particularidades de cada um, focando autonomia e qualidade de vida, e não para corroborar as teorias sobre um diagnóstico. - O que você acha dos vídeos de autistas que circulam na internet, tanto aqueles que eles mesmos fizeram, como aqueles em que eles foram filmados, ou ainda aqueles que sugerem mostrar como se sente um autista? Quando o autista o faz para se expressar e ajudar o outro, é algo que colabora para o desenvolvimento social como um todo. Mas não gosto de vídeos feitos com autistas sem o consentimento deles, os mostrando em situações de crise e vulnerabilidade. - O que te faz feliz? Ser felizes e fazer o outro feliz, por meio de um trabalho alicerçado na Comunicação Social e nas Artes.

Página 190

- O que te faz infeliz? A injustiça e o sentimento de impotência. - E vou pedir mais uma coisa : eu gostaria que você(s) escolhesse(m) um objeto, ou mais de um, que sejam importantes para você(s), e me diga por que ele é importante : se o(a) representa, porque diz algo especial para você(s), ou foto, ou filme, enfim o que você escolher. O filme “Para Sempre Cinderela”, com Drew Barrymore e Angelica Houston, que me marcou por unir, com brilhantismo, vários dos meus hiperfocos. É meu filme favorito, mesmo não sendo o melhor que assisti, tecnicamente falando.

Página 191

ENTREVISTA 6 – VANESSA

Fale um pouco sobre você: o que você gosta, o que não gosta, e o que é autismo para você. Eu gosto de ficção científica, de cinema, de ler. Gosto de ir a museus, tomar um bom café ou uma taça de vinho, comer hambúrguer. Gosto de gatos e de filmes da Disney e de me vestir de forma confortável. Gosto quando minha casa está limpa, o que, infelizmente, raramente consigo (minha disfunção executiva não ajuda em nada). Gosto de me sentir capaz e de ser reconhecida pelas coisas bacanas que eu posso fazer. Gosto de viajar e ver lugares bonitos. Eu não gosto de barulho, nem de imprevistos nem de sobrecarregar. Não gosto de estresse, nem de crises de gastrite. Não gosto de quando me tratam com pena ou falam comigo como se eu fosse criança. Não gosto quando perguntam quem está me acompanhando nos lugares. Também não gosto quando me chamam de louca ou me desrespeitam de qualquer forma que seja. Não gosto de etiquetas na gola das roupas. Não gosto de quando meus gatos mijam nas minhas coisas. E não gosto de quando eu escuto uma história revoltante e não posso fazer nada a respeito. Autismo, pra mim, é uma expressão da diversidade humana. É o tipo de cérebro que eu tenho, a forma como eu me desenvolvi desde que era um feto. Autismo é o que eu tenho em comum com outras pessoas autistas. É uma das minhas identidades. É uma deficiência psicossocial e uma parte muito importante de quem eu sou. É uma das coisas que me definem. O que não é autismo para você? Não é uma doença, nem algo a ser curado. Também não é nenhum tipo de castigo ou vergonha. Me traz limitações, é verdade, mas é também motivo de orgulho. Autismo não é algo que faça uma pessoa ter um valor diferente das demais, seja pra mais ou pra menos. Também não torna ninguém menos humano. E autismo certamente não é “azul”. Como você se vê autista? Com os meus olhos, quando eu me olho no espelho. Como sua família trata você sendo autista? Já fui superprotegida, submetida a tratamentos com os quais eu não concordava, super- medicada, humilhada, e mais um monte de coisas ruins. Uma vez tentaram me exorcizar. Mas essas coisas aconteceram antes da minha família saber o que eu tinha. Eu cresci sem diagnóstico, e isso tornou tudo bem mais difícil. Hoje em dia, me tratam com compreensão, respeito, e uma quantidade moderada de paciência. Me dou muito bem com todos, e sempre

Página 192 soube que me amavam muito, mas nem sempre eles estiveram abertos a me dar o apoio que eu precisava. Eu fico feliz que isso tenha mudado. O que mais incomoda você nas outras pessoas neurotípicas? O que você faz que incomoda as pessoas neurotípicas, e como você se sente quanto a isso? Eu não classifico pessoas assim. Só porque alguém não é autista, isso não quer dizer que a pessoa seja “típica”. A humanidade é muito mais complexa que isso. Eu não sei como eu incomodo os outros, mas as coisas que me incomodam não tem nada a ver com padrões neurológicos - eu não gosto de gente rude, pouco empática, que acredita em meritocracia ao invés de reconhecer os privilégios que tem, também não gosto de gente que discrimina os outros por qualquer motivo que seja. E essas coisas aparecem tanto em gente autista quanto em gente não-autista. São comportamentos aprendidos. O que você considera mais difícil em um relacionamento com um neurotípico? Se lembrar, cite uma situação que em não entendeu qual era o comportamento desejado de você, e não soube reagir, ou de que forma reagiu. Não. Todos os relacionamentos são difíceis. Se a gente não estabelece uma comunicação eficaz, não fica mais fácil só porque a pessoa é autista. Eu tenho muitos amigos autistas. Minha irmã é autista. Já namorei gente autista. Mas também tenho amigos que não são autistas. Namoro alguém que não é autista. Tudo é difícil. É legal estar com gente autista porque faz a gente se sentir parte de um grupo, isso eu reconheço, mas isso não quer dizer que seja mais fácil. O que eu considero mais difícil em relacionamentos no geral é entender o que outra pessoa espera de mim, o que ela quer, sobre o que ela gostaria de conversar. As pessoas, no geral, não falam o que elas pensam. Eu já passei por tantas situações em que não soube reagir conforme o esperado que é até difícil dar um exemplo - porque meio que virou tão comum na minha vida, que tudo é corriqueiro. Mas acho que vale a pena contar que já corri risco de ser estuprada várias vezes, e se não aconteceu foi porque tive muita sorte - pra mim é muito difícil perceber quando um convite é inocente ou quando um convite é um convite para sexo. Isso bota a gente em situações de imensa vulnerabilidade.

Quais as ideias populares sobre autismo que você conhece, e o que você acha delas? (aqui se busca informações sobre o que é tradicionalmente dito sobre/para autistas, como “gênios autistas”, “eles vivem em seu próprio mundo”, “eles não olham nos olhos”, “eles tem rotinas e interesses particulares”, “eles não falam”, a cura do autismo, as causas do autismo) Viver em um mundo próprio - bobagem, me revolta profundamente ouvir isso.

Página 193

Autismo é causado por vacinas/vermes/glifosato/etc. - fico muito assustada com o quanto as pessoas acreditam em coisas que não tem nenhum embasamento. Algumas delas chegam a ser ridículas de tão absurdas. E isso é muito perigoso, deixa gente vulnerável a todo tipo de violência ou risco desnecessário. É um problema de saúde pública, de verdade. Autismo é azul/coisa de menino - Esse mito CAUSA o subdiagnóstico feminino. Pessoas estão sofrendo sem apoio por conta desse mito. É um mito que me deixa muito zangada. Gênios autistas - sempre dou risada. Já conheci centenas de autistas, ainda estou esperando encontrar um gênio. Superdotação/altas habilidades não é genialidade, e mesmo esses casos são minoria. As pessoas inventam cada coisa pra elevar o ego…. Autistas “de verdade” (clássicos) não são “capazes” - todo mundo é capaz, essa conversa só serve pra desumanizar. Se você não fala, é porque não tem nada a dizer - negação de direitos humanos… todo mundo tem o que dizer, e todo mundo se comunica, mesmo se não tiver acesso a uma comunicação complexa! Idade mental - não existe e só serve pra desumanizar as pessoas. Alguma vez você foi discriminado por ser autista? Quando e como isso aconteceu? Como você se sentiu, e o que fez? Não consigo imaginar nenhuma situação em que alguém autista possa nunca experimentar a discriminação por conta do autismo. Isso soa bastante utópico. Eu e todas as pessoas autistas que eu já conheci já foram discriminadas por serem autistas. Eu passei por isso em muitos momentos e contextos diferentes. Com o tempo a gente vai mudando a forma como reage. Eu costumava ficar muito deprimida sobre isso, me sentindo um lixo, culpada e tudo mais. Hoje em dia eu sinto ódio, me revolto, porque sei que o problema não está em quem eu sou. Hoje em dia eu consigo me impor. O que você conhece sobre legislação? O que você considera seus direitos? Eu conheço alguma coisa da legislação nacional, tipo código civil, constituição, etc. Eu conheço as legislações sobre deficiência razoavelmente bem. E eu diria que conheço a Convenção Pelos Direitos das Pessoas com Deficiência muito bem. Todos os direitos humanos são meus direitos. Tenho alguns direitos extras por ser pessoa com deficiência - todos eles tem a ver com fazer valer os direitos humanos. Por exemplo, acessibilidade e adaptações razoáveis são pré-requisito pra outros direitos. Não ser discriminada com base na deficiência é um pré-requisito pro direito à igualdade e não discriminação… e assim por diante. O que você acha da tentativa de normatizar um autista, ou ainda que é “ser normal” (não ser neurotípico) para um autista?

Página 194

Eu vejo como uma violação ao direito de preservar nossa identidade (um dos princípios da Convenção Sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência). Todas as pessoas têm o direito de ser quem são, independente de como isso seja. Tenho orgulho de quem eu sou. Normalidade é um padrão inventado. Não devia ser meta pra ninguém. Você foi ou vai à escola? Se sim, como a escola recebeu você? Se não, porque não? A escola é um lugar bom? O que pode melhorar lá? O que não é uma boa escola para um autista? (aqui se busca informações sobre inclusão ou mera presença física do autista no ambiente escolar, os mitos da escola não estar preparada) Sim, eu frequentei escola regular. Eu tive uma excelente experiência durante meu ensino fundamental. A escola onde eu estudava tinha uma pegada de olhar pra cada aluno em sua individualidade, respeitar as diferenças, e isso me ajudou muito. Tive muita sorte. Sei que a maioria das pessoas autistas têm problemas na escola. Eu fui privilegiada. Na época, não sabiam que eu era autista. Me viam como uma menina tímida e “excêntrica”. Isso foi antes do movimento que temos hoje pela inclusão. Ninguém tinha capacitação formal naquela época, mas meus professores eram muito atenciosos, atentos e abertos a adaptar as coisas de acordo com as necessidades de cada aluno, e pra mim isso foi suficiente. Você toma alguma medicação? Se sim, qual a relação dessa medicação com o autismo? Se existir relação, o que explicaram, ou melhor, qual a justificativa que deram para você para tomar essa medicação “por ser autista”? Não, mas eu já tomei muitas. Nenhuma delas “por ser autista”. A maioria era pra depressão, ansiedade, “pensamentos confusos” e outras coisas. Eu me lembro de me sentir dopada pra não me matar. E eu me lembro de pedir por favor pra não me obrigarem a continuar… uma vez um médico disse que se eu soubesse explicar por que eu achava que não precisava dos remédios, eu podia parar. Durante aquela época, estava muito difícil pra mim me comunicar de forma oral, e ele não me deixou escrever, então fui obrigada a continuar com as doses por mais uns 6 meses… até trocar de médico pra um que me respeitava um pouco mais. Eu já era adulta, mesmo assim não me deixavam decidir. Foi uma época muito ruim. Hoje em dia não tomo nenhum remédio psiquiátrico. Quando um autista deve ser medicado, e por qual motivo? Você conhece outro autista que foi medicado? E o que ele disse a você sobre isso? O que você sente quando é medicado por ser autista? Pessoas devem ser medicadas quando elas consentem em ser medicadas. Eu conheço gente demais que foi medicada sem consentimento. Esse é um tema difícil pra mim. Eu não gosto muito de falar dele porque sempre que eu falo sai algo tendencioso.... às vezes remédios ajudam

Página 195 a controlar a ansiedade, a depressão ou outras condições co-ocorrentes. Eu só acho fundamental quando é pra epilepsia ou coisa do tipo.

- O que você acha dos vídeos de autistas que circulam na internet, tanto aqueles que eles mesmos fizeram, como aqueles em que eles foram filmados, ou ainda aqueles que sugerem mostrar como se sente um autista? Eu gosto muito de vídeos, acho que são uma forma muito eficiente de passar informação. Gosto principalmente de vídeos em que gente autista filma a si mesmo. Gosto de desenhos animados que explicam as coisas. E acho que a maioria dos vídeos de simulação são interessantes, alguns (não todos) são realmente realistas. Sou contra exposição não-consentida, como os vídeos de gente em crise e etc. Aquilo não presta pra nada de bom, reforça o estigma social e é também uma violação grande de privacidade, super humilhante mesmo, me deixam muito mal.

- O que te faz feliz? Meu noivo. Meus gatos. Chá quentinho num dia de frio. Boas experiências. Boas conversas. Ter um emprego. Poder ir aonde eu quiser.

- O que te faz infeliz? Solidão. Fracassar em alguma coisa que eu achava que conseguiria. Ser tratada com desrespeito. Não poder opinar. Não ser completamente autônoma (ainda).

(a entrevistada não enviou nenhuma informação sobre um objeto).

Página 196

ANEXO I – PRIMEIRA PÁGINA DO ARTIGO DE GRUNYA IEFIMOVNA SUKHAREVA, NA REVISTA ALEMÃ MONATSSCHRIFT FÜR PSYCHIATRIE UND NEUROLOGIE 60:235-261

Página 197

ANEXO II – TABELA DSM-5 X DESCRIÇÃO DE SUKHAREWA

Página 198

ANEXO III – REPORTAGEM DA REVISTA TIME DE 1948 (26 DE ABRIL) SOBRE AS MÃES-GELADEIRA

Página 199

Página 200

CAPA DA REVISTA TIME 26 ABRIL 1948 CONTENDO A REPORTAGEM DE MÃES- GELADEIRA

Página 201

TRADUÇÃO MECÂNICA DA REPORTAGEM CRIANÇAS GELADAS REVISTA TIME 1948 (26 ABRIL) - PÁG. 77/78

O psiquiatra Leo Kanner costumava se levantara favor dos pais. Ele defendeu-os contra os especialistas, dizendo que era injusto culpar a mãe ou o pai toda vez que algo desse errado com a criança. Na semana passada, porém ele disse à American Ortho-psychiatric * Association, em Manhattan, que alguns pais ele não podia defender. Ele havia examinado seus filhos na clínica psiquiátrica infantil que ele dirige na Johns Hopkins. As crianças pareciam bem: Dr. Kanner os chamou de bem formados, bem desenvolvidos, bastante esguios e atraentes. Muitos também eram brilhantes. Um menino de dois anos poderia identificar todas as fotos da Enciclopédia de Compton; um menino de três anos de idade poderia nomear todos os presidentes e vice-presidentes dos EUA, recitar 37 versos infantis, recitar 25 perguntas e respostas no catecismo presbiteriano. Esquizoides da Idade da Fralda. Mas havia algo errado com todos eles: eles eram apáticos, retraídos, mais felizes quando deixados sozinhos. Eles se encolheram de qualquer coisa que perturbasse seu isolamento: barulhos, objetos em movimento, pessoas, muitas vezes até mesmo comida. Eles tinham o que o Dr. Kanner chama de autismo infantil precoce; é, ele pensa, uma forma de diapergia da doença mental chamada esquizofrenia (personalidade dividida), que pode se desenvolver antes que a criança tenha um ano de idade. Como eles conseguiram isso? O Dr. Kanner deu uma boa olhada em seus pais. À primeira vista, os pais também pareciam bem; eles eram exatamente o tipo de pessoas que, dizem os controladores de nascimento, deveriam ter mais filhos. Exceto em um caso, não havia insanidade conhecida em suas famílias. Os pais eram cientistas, professores universitários, artistas, clérigos, executivos de empresas, psicólogos, psiquiatras. Todas, exceto cinco das mães, foram para a faculdade; todos, exceto um, estiveram ativos, antes ou depois do casamento, como cientistas, técnicos de laboratório, médicos, enfermeiros, bibliotecários, artistas. Perfeccionistas Frios. Mas havia algo errado com todos eles. Eles mostraram uma mecanização dos relacionamentos humanos, descrevendo a si mesmos e seus cônjuges como não-demonstrativos. Kanner descobriu que não havia glamour de desempenho no namoro pré- marital, nem impetuosidade no acasalamento pós-nupcial. Ele viu apenas uma mãe abraçar seu filho calorosamente e aproximar seu rosto do dele; muitos dos pais ocupados mal conheciam seus filhos. Os pais queriam fazer a coisa certa por eles; mas a ideia deles da coisa certa era o serviço mecanizado do tipo que é prestado por um atendente de posto de gasolina

Página 202 excessivamente consciencioso. As crianças, diz o Dr. Kanner, eram mantidas em uma geladeira que não degelava. (grifo nosso). Os pais frios estavam congelando seus filhos na esquizofrenia? O Dr. Kanner não disse sim ou não; mas ele não encontrou nenhum caso de autismo infantil entre filhos de pais sem sofisticação. Disse ele de seus pacientes patéticos: Sua retirada parece ser um ato de se afastar. . . buscar conforto na solidão *

* O administrador Reginald G. Coombe, os doadores Alfred P. Sloan Jr. e Charles F. Kettering. - Os ortodontistas endireitam os dentes tortos; os orto-psiquiatras tentam endireitar mentes distorcidas, e se especializam em problemas de comportamento infantil.

Página 203

ANEXO IV - REPORTAGEM DA REVISTA TIME DE 1965, 7 DE MAIO, SOBRE LOVAAS E O SEU MÉTODO ABA

Página 204

Página 205

Página 206

Página 207

Página 208

Página 209

Página 210

Página 211

Página 212

Página 213

Página 214

ANEXO V – POEMA DE CÁSSIA

Doença Transtorno Desvio Tem CID Tá no DSM Loucura Retardo Problema de cabeça Anormalidade Síndrome Estorvo Cura Psiquiatra Enquadramento Definição médica Defeito Bula Internação Desumanização Segregação Remédio Silenciamento Normalização Objetificação Morte

Mas o que causa revolta em muitos ainda é chamar de condição, falar em neurodiversidade e dizer que não tem cura porque não é doença.

❖ Talvez seja por fazer parte da Abraça - Associação Brasileira para Ação por Direitos da Pessoa com Autismo que é presidida pela Fernanda Santana que é autista, mas eu não consigo entender como organizações sobre autismo ainda acham ok que seus cargos de direção sejam ocupados por pessoas que não são autistas. Também não entendo organizações que não estão se ocupando de tornar isso uma realidade. Qual lógica haveria em organizações sobre direitos das mulheres que fossem presididas por homens? Ou organizações sobre cultura negra e antirracismo presididas por pessoas brancas? Protagonismo não é só estar presente nos eventos, é ter voz e participação política de fato. Temos construído isso na Abraça e, talvez por isso, eu tenha critérios bem definidos. "Nada sobre nós sem nós" é uma construção política importante. Não autistas tem o papel de oferecer os suportes para que autistas ocupem espaços. Organizações que se dizem de defesa de pessoas autistas devem se constituir como espaços de real participação política e empoderamento de pessoas autistas. Basta fazer a analogia com outros grupos: negros,

Página 215 mulheres, LGBTQI+28, indígenas para sabermos que se trata de algo bem óbvio. ❖ Eu, Cássia, tenho laudo de autismo. Para muitas pessoas, é isso que prova que eu sou autista. Fato é que nunca consegui usar esse laudo para acessar direitos. A perícia do meu trabalho, mesmo diante do laudo feito no SUS e dos relatórios médicos apresentando minhas questões sensoriais, sociais e de cuidados com o meu irmão que também é autista, considerou que eu sou funcional demais para ter direito à redução de horário, por exemplo. Estou repetindo essa minha ladainha para dizer que não é um laudo que torna uma pessoa autista. Isso deveria ser óbvio. E também para dizer que ter laudo não garante direitos. Há quem cobre laudo para que pessoas autistas possam se posicionar no ativismo sobre autismo no Brasil. Eu não consigo nem dizer o quão grave isso é. As pessoas precisam ter espaços para discussão política, para entenderem suas características, para trocarem ideias sobre estratégias de sobrevivência, para se entenderem como autistas ou até mesmo se darem conta de que não são autistas. Precisamos ter voz, tem gente demais que não é autista se posicionando em relação ao autismo e com muito mais espaço do que nós. De minha parte, mesmo agora que tenho laudo, continuo dizendo: meu primeiro diagnóstico de autismo foi um autodiagnóstico e. portanto, estou junto com esses autistas que não tem laudo e vou sempre defender o direito deles terem sim voz no ativismo. Estou falando de ativismo e não de acesso a direitos, que fique claro. Por que faço isso? Porque sou mulher negra e de periferia e sei que aqui na base da pirâmide social não há acesso a diagnóstico adequado. Eu vejo o que muitas mulheres como eu sofrem sendo autistas sem nem saberem que são. Eu não quero um ativismo feito quase exclusivamente por autistas brancos de classe média/alta. que é o grupo que tem acesso a diagnóstico médico nesse país. Eu quero todas as vozes do autismo sendo amplamente ouvidas e é pra isso que eu luto. E durmam com esse barulho todos aqueles que defendem modelo médico. Autistar é o verbo da neurodiversidade. Somos autistas, somos diversos e não vão nos calar. ❖ Não dá para falar em ativismo autista no Brasil sem fazer um recorte de classe e de raça. O ativismo "anjo azul" é majoritariamente branco e de classe média e não sabe olhar para questões raciais e econômicas de suas decisões, olha apenas para o próprio umbigo. ❖ Só ontem foram mais de 7 horas dedicadas ao ativismo. Não almoçamos. Fiquei tão exausta que não tive vontade de jantar. Comí coisas ao longo do dia. Me esforcei ao máximo mentalmente para contribuir e interagir. Conhecí pessoas maravilhosas com as quais sinto alegria em lutar junto. Tudo voluntário, sem receber nenhum tostão. Na busca por mudar as coisas que não estão certas, por construir uma sociedade realmente inclusiva. Ativismo é muito trabalhoso, a gente paga um preço muito alto. Dentro desse preço estão as acusações de que nos aproveitamos da causa para ganhar dinheiro ou outras coisas. Valorizem os ativistas desse país, ainda mais nesse momento político no qual o próprio presidente se refere a nós de maneira extremamente negativa. Hoje mesmo, em sua página aqui no Facebook, ele se referiu aos Direitos Humanos de uma maneira extremamente negativa. É sempre muito trabalho e muita correria, mas a certeza de que não estamos sozinhos, de que estamos em rede, me anima e revigora. Ontem demos mais um passo importante na criação da Rede Brasileira de Inclusão de Pessoas com Deficiência (Redin), uma união que terá muito impacto na construção dessa

28 Sigla dividida em duas partes. A primeira, LGB - Lésbicas, Gays e Bissexuais, diz respeito à orientação sexual do indivíduo. A segunda, TQI+ - Transexuais,Queer e Intersexuais, diz respeito ao gênero:

Página 216 sociedade inclusiva que tanto almejamos. Todos juntos bora !!

Página 217

ANEXO VI – TEXTOS DE ANA

❖ Eu sou autista. Tenho 28 anos, um curso superior completo e estou cursando a segunda graduação. Namoro (muito feliz) há 6 anos. Eu tomo mais leite do que água. Se dependesse de mim, nunca iria faltar iogurte em casa, sempre coloco queijo extra nas coisas que levam queijo. Sou laticineos lover abertamente. Também como pão. bolo, biscoito, tudo que tem farinha e glúten como qualquer pessoa. O que eu quero dizer, meus caros, é que NÃO É DE FORMA ALGUMA NECESSÁRIO "remover alimentos venenosos" ou fazer dieta ou tratamento biomédico x ou y para se obter "desenvolvimento saudável", "independência" ou "sucesso" (uma palavra que também muda muito de significado de pessoa para pessoa). Só se corta alimentos se tiver comprovadamente intolerância e/ou alergia. E a forma como se trata isso nas crianças é diversificando ao máximo a alimentação. Porque restringir sem motivo *causa* alergia/intolerância. E , não são todos os autistas que tem alergia. Se alguém te disse isso, essa pessoa não é sua amiga. ❖ Li comentários dizendo que na vida real não existe médico autista. Existe sim. Existe médico autista, psiquiatra autista, psicólogo autista, dentista autista. Desconstruam esse estereótipo de que autistas tem “seus lugares” na sociedade. O lugar do autista é onde ele quiser estar.

❖ Profissionais da saúde querendo medicar a criança autista para retirar stims vocais e motores (movimentos repetitivos com o corpo e repetição de sons com a boca). Não aceitem isso, pais. Medicação é coisa séria. Os stims fazem bem para os autistas. Os médicos é quem precisam estudar mais.

❖ Volta e meia eu vejo nos grupos as pessoas reclamando que seus filhos autistas "não conseguiram" ser alfabetizados. Eu já sabia que o Brasil tinha uma péssima alfabetização e que não seguia as evidências científicas. Mas agora me parece mais claro como isso afeta especialmente os autistas. A gente não se importa com uso social e temos dificuldades em entender coisas não-explícitas. E as pessoas acham que é o autismo que não deixou a pessoa ser alfabetizada...

Página 218

ANEXO VII - POEMA – HÉRCULES BRENNAND

Eu sou autista.... mas não sou vira-lata. Eu sou autista? Sou sim senhor, o que não quer dizer que eu seja diferente de qualquer pessoa dita “normal”. Como qualquer pessoa dita normal, eu tenho meus gostos pessoais e peculiares, mesmo que não sejam vistos de forma muito corriqueira. Existe muito tabu quando se fala em autismo, de uma parte há quem os associe a figura dos grandes gênios, por outro lado há quem crie aquela imagem estigmatizada do tipo mais comprometido com retardo mental que sempre vai ficar dependente pelo resto da vida. Em muitos anos que eu já participei palestrando a convite de entidades que cuidam de autistas, como a Casa da Esperança no Ceará por exemplo, nos congressos internacionais de autismo. Nestes lugares eu observo muito que boa parte ali dos presentes ficam surpreendidos com o meu caso, muito mais do que as apresentações de grandes Ph.D, com pós-doutorado no assunto e com muitos artigos científicos publicados. Eu sou autista? Sou sim senhor.

Muito disso esteja talvez no problema de que como a maioria ali dos profissionais bem gabaritados no estudo de autismo vivem muito baseados em estudos mais tradicionais e repetem a mesma coisa que outros falam e muitas vezes expõe os casos que estudam em um linguajar muito rebuscado para um público cuja presença não é só de profissionais, mais também de muitos pais que tem filhos como pacientes de entidades. Esse tabu gera um grande problema, porque existe pessoas que quando se baseiam o seu discurso neste velho estigma do autista seja como o gênio com grandes habilidades ou como o indivíduo com grau mais comprometido com dificuldade na fala, não importa sempre vão colocar o autista na marginalidade de um indivíduo que se isola, que não interage, que age de forma infantilizada eternamente, sempre dependente dentre outros, sempre vai ser visto como um sujeito estranho perante a sociedade, individualista, com interesse restrito e esquecem que eles também pode ter suas várias camadas. Eu sou autista? Sou sim senhor.

Tem muito indivíduo dito “normal” que é muito mais egoísta, individualista, autoritário e bastante obcecado numa coisa que quando fala muita besteira acha que está se achando o cara mais agradável do mundo, e não é. Quanta gente eu já observei sendo incoerente no que transmitiam palavras bonitas de conforto para mim quando eu estava na pior, com discursos muito pronto de autoajuda barata do tipo vivemos numa democracia, todo mundo tem o direito a exercer o livre-arbítrio, liberdade de expressão dentre outros. Que quando você observa é só balela elas não praticam a metade do que dizem. São muito mais egoístas e mais individualistas, mais materialistas, é neste momento que você observa a máscara de bom moço deles caírem e mostrarem o lado stalinistas deles. Quando você está próxima de uma pessoa que fala demais, e que critica tudo até mesmo o comportamento alheio dos outros e criticando o mal comportamento do filho dos outros. Você pode observar bem ela também é tão mal educada, especialmente quando a boca dela a denúncia. Quem olha para um autista e só se baseia nestas características descritas por profissionais especialistas de ser solitário, que não sabe se socializar, individualista de uma forma muito banal, a ponto de pensar que constantemente nos autistas vivemos num complexo de vira-lata, está sendo muito ingênuo ou me desculpe a colocação, mas um idiota de ainda acreditar nisso.

Página 219

Eu sou autista? Sou sim senhor.

Um profissional com especialização no autismo, não pode falar pela gente achando que sabe o que a gente sente. Eles nunca vão entender que um autista pode ser muito mais eclético do que qualquer indivíduo dito normal. O pior é que tem muito individuo dito normal que tem tão ou mais interesse restrito por suas paixões obsessivas que tem gente que nem sequer acha estranho. Seja por qualquer tipo de coisa: música, cinema, esporte, lazer, leitura etc... Eles nunca vão entender que um autista pode também se apaixonar, como qualquer indivíduo dito normal. Ele também pode demonstrar a sua paixão por alguém mesmo que não seja correspondido. Há muito individuo dito normal que é insensível demais, com suas manias narcisistas, seus sentimentos egoístas de amar alguém como símbolo de posse, onde o ter se sobrepõe ao ser. Neste mundo muito materialista que vivemos. Onde todo mundo vive tão vidrado no celular e termina se esquecendo da pessoa que está próxima a ela. Tem muito individuo dito normal por ai que quando critica político corrupto, bota a culpa na formação familiar dele, que ele desde criança já aprendia a mentir e se preocupa com o exemplo para as futuras gerações. Acontece que sem a gente perceber algumas pequenas más atitudes nossas já geram o mau exemplo, e para formar mau caráter não existe distinção de base familiar ou mesmo de instrução de estudo. A prova disso, tem muito terrorista que nasceram em famílias abastadas e tiveram boas formações acadêmicas e nem por isso se tornaram pessoas de bons caráter, do mesmo modo como no quadrinho do Batman existe um vilão chamado Duas-Caras que é promotor público. É mesmo muita hipocrisia você se deparar com um mundo onde gente dita normal impõe regras de moralismo, mas quando você vê nem mesmo elas seguem as próprias regras. São tão imorais, amorais, vis, ordinárias, podres, nojentas, biltres, patifes etc....

Eu sou autista? Sou sim senhor, O que não significa que eu tenha um interesse restrito a uma coisa como dizem os mais céticos profissionais que trabalham com autismo. Posso gostar de muitas coisas variadas como qualquer sujeito dito normal. Gosto de ouvir música dos mais diferentes estilos, amo ouvir da tradicional e lenta orquestra de grandes maestros como Richard Wagner com sua Cavalgada das Valquírias, com todo aquele ar poético teatral, a bela valsa do Danúbio Azul de Strauss que me faz viajar mentalmente para Budapeste e imaginar o Rio Danúbio ou até mesmo das batidas contagiantes de rock dos Beatles, Led Zeppelin e de outros ritmos e de outros artistas. Que me fazem entrar numa contagiante atmosfera do êxtase e da cartasse. Gosto de apreciar cinema, dos mais diferentes estilos e gêneros. Dos grandes blockbusters até mesmo dos filmes mais de arte, dirigido por grandes diretores geniais como Steven Spielberg, Tim Burton, Akira Kurosawa, Stanley Kubrick e seus peculiares estilos autorais. Assim como também gosto de apreciar uma boa leitura de grandes autores, dos mais diferentes gêneros e dos mais diferentes tipos. Até mesmo quadrinho de Turma da Mônica e de super-heróis de Marvel e DC Comics. Que me servem como uma boa forma de escapismo. Também gosto de assistir as séries de tv, especialmente da Netflix. Também aprecio muito arte, como o museu por exemplo e com os quadros de grandes pintores, as esculturas também onde também me fazem entrar numa viagem a boa atmosfera escapista, especialmente se este lugar for o Instituto Ricardo Brennand com seu imenso jardim verde que mais parece um palácio imperial, cheio de esculturas expostas, um lindo lago e com o Castelo São João que mais parece um cenário fantástico de contos de fada.

Eu sou autista? Sou sim senhor,

Página 220

Mas não sou uma eterna criança, como pensam, e não mereço que alguém invada o meu espaço me tratando como se eu fosse uma criança patética com suas intervenções e querendo me ensinar a forma certa de agir, sem nem mesmo você pratica o certo, até mesmo no falar. Mereço respeito. Acho um absurdo criar a imagem infantilizada que fazem do meu espectro.

Eu sou autista? Sou sim senhor, Do mesmo modo que não sou nenhuma eterna criança em corpo de adulto, eu também não sou um sujeito assexuado. Sinto uma forte atração de sex appeal por mulheres graciosas, exuberantes com ares de femme fatale. Seja nas lindas atrizes de cinema ou mesmo nos traços bem esculpidos das heroínas de quadrinhos. Me desculpem os profissionais que desenvolvem seus trabalhos com os autistas. Mas vocês precisam se reciclarem.

Eu sou autista? Sou sim senhor, Mas não sou nenhum santo, sou como qualquer pessoa dita normal, um sujeito cheio de virtudes e de defeitos. Sou um cara muito amoroso com quem gosto, ao mesmo tempo que sou grosseiro com quem vive me estressando. Me incomoda as vezes as constantes romantizações sensacionalistas que fazem a respeito do meu espectro, principalmente quando sai notícias de sites sobre a superação de alguém no espectro se saindo bem sucedido, numa faculdade ou mesmo no trabalho dentre outros exemplos para nos tornar espelhos para os outros. Para mim fica a falsa sensação de mitificação, como se nós fossemos os seres mais puros do mundo. O que para mim não diz respeito em nada.

Eu sou autista? Sou sim senhor, Mas não me considero a pessoa mais insociável pela descrição estereotipada que me muita gente desses profissionais que trabalham com autismo tanto batem na tecla.

Sou autista? Sou sim senhor, Diante de tudo isso que descrevi, posso concluir dizendo que o fato de eu ter o meu espectro, posso descrever simplesmente: Eu sou autista.... mas não sou vira-lata.

10/07/2019