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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO: ...... 2 Gianfranco Marchi e Nelson Marques QUATRO INSIGHTS PSEUDO-FUNDAMENTADOS:...... 5 Tiago Monteiro FILMES NÃO TÃO RUINS, RUINS, PÉSSIMOS QUE ALGUNS FICAM ATÉ BONS! ...... 14 Nelson Marques DESVELANDO OS PIORES FILMES ...... 21 Roselia Cristina de Oliveira TRÊS FORMAS DE TRABALHAR A IRRESPONSABILIDADE ...... 30 Nelson Marques ZUMBIS, MORTOS-VIVOS, REDIVIVOS: ...... 40 Igor Carastan Noboa DE GATAS ESCALDADAS E NINJAS ABORRECIDAS ...... 49 Gianfranco Marchi SOBRE AS PIONEIRAS: ...... 54 Máurea Mendes Leite Fernanda Valli Nummer Luiz Fernando Cardoso Cardoso PÓS-FORDISMO E COWORKING: ...... 74 Breilla Zanon POIESIS ...... 90 Zildenice Matias Guedes Maia A IMITAÇÃO E AS SINGULARIDADES: ...... 92 Patricia R. Gomes da Silva Alexsandro Galeno Araújo Dantas VIDA COMO EXPERIMENTAÇÃO DOS LIMITES E REINVENÇÃO DE SI ...... 97 Fagner Torres de França APRESENTAÇÃO: A Difícil Tarefa de Apreciar o Feio e o Ruim – o Retorno

PRESENTATION: THE HARD TASK OF APPRECIATE THE UGLY AND THE BAD – THE RETURN

Gianfranco Marchi1 e Nelson Marques2

Ao fazer a apresentação do dossiê a “facilidade” de se encontrar no gênero “Uma Antropossociologia de Filmes horror filmes considerados ruins. Na verdade, Não-Recomendáveis” (Cronos 19.1) discu- os bons filmes de horror constituem um timos a dificuldade de se comentar o que é universo muito pequeno dentro deste nicho. feio e ruim em contraponto à facilidade, até É inegável que o estigma da “ruindade” cerca socialmente valorizada, de destacar o belo, o o horror. positivo, o bom, o melhor, ou os melhores! Mas a fama se justifica? Bem, sim e Seja em termos educacionais, ou mesmo não. Muitas vezes os espectadores confun- sociais, somos “treinados” para falar bem dem precariedade dos aspectos técnicos de do bonito, do belo e do bom. Mas não somos um longa com suas sensibilidades estéticas igualmente treinados para falar bem do e temáticas. Há sim filmes de horror muito feio e do ruim e pior. Essa dificuldade pode bons que o grande público reputa como ruins, ser confirmada também nesta introdução à injustamente. Mas há aqueles realmente que segunda parte do dossiê. deixam um gosto intragável na boca, sem Este segundo número traz um ensaio nenhuma qualidade que os redima do inferno sobre o gênero horror e mais dois artigos da sétima arte. Entretanto, a ruindade no alinhavando críticas sobre cinco diferen- cinema não discrimina. Vai do horror até tes filmes de diferentes gêneros. Tiago, mesmo aos tidos mais sérios, de “arte”. em seu ensaio, nos chama a atenção para

1 Bacharel em Direito pela UFRN. Funcionário Público Estadual (TJ-RN). Membro do Cineclube Natal e ACCIRN (Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Norte). Cinéfilo inveterado, editou, escreveu e colaborou em diversos livros sobre cinema: Cenas Brasileiras (EDUFRN, 2009), 80 Cult Movies Essenciais (EDUFRN, 2010) e Sessão Dupla (EDUFRN, 2016). 2 Bacharel e licenciado em Ciências Biológicas (USP). Professor Doutor aposentado da FMUSP, ex-prof colabo- rador voluntário da UFRN. Produtor cultural, fundador e atual presidente do Cineclube Natal. Idealizador, fundador e organizador do festival de cinema Goiamum Audiovisual (RN), organizador do FINC - Festival Internacional de Cinema de Baía Formosa (RN). Organizador e vice-presidente da ACCiRN - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Norte. Editou, escreveu e colaborou em diversos livros sobre cinema: Brasil em Tela Cinema e Poéticas do Social (Editora Sulina, 2008), Cenas Brasileiras (EDUFRN, 2009), 80 Cult Movies Essenciais (EDUFRN, 2010), Sessão Dupla (EDUFRN, 2016), Claquete Potiguar: Experiências Audiovisuais no Rio Grande do Norte (Máquina, 2016). APRESENTAÇÃO

Nesse contexto, o artigo de Igor engloba num texto único características comuns de 3 filmes de épocas e gêneros diferentes. O mesmo acontece com o artigo de Gianfranco, que ao abordar os filmes “Elektra” e “Mulher- gato”, traça um perfil do que há de pior nas produções de super-heróis. Interessante notar que muitas vezes perdoamos um filme ruim quando seus produtores não possuíam um grande orça- mento para suas ideias, ou mesmo quando não se levam a sério. Essa benevolência não se aplica a filmes Hollywoodianos que parecem fazer um genuíno esforço para serem ruins, a despeito de serem produções milionárias. Mas o fato é que todo cinéfilo tem aquele filme que adora odiar, não é? Assistir a uma produção ruim, por incrível que pareça, pode ser uma experiência curiosa, vez que aguça nossa percepção objetiva, ou mesmo pessoal, sobre o que funciona ou não no cinema, em suas variadas manifestações.

Com essa perspectiva, boa leitura.

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DOSSIÊ

Cronos: Revista da Pós-Grad. em Ciências Sociais, UFRN, Natal v.19, n.2, Jul./dez. 2018 QUATRO INSIGHTS PSEUDO-FUNDAMENTADOS: Uma Análise Pouco Rigorosa e Algumas Conclusões Vagas Sobre o Estigma de Ruindade que Cerca o Gênero Horror

FOUR PSEUDO-REASONED INSIGHTS: A NOT VERY RIGOROUS ANALYSIS AND SOME VACANT CONCLUSIONS ON THE STIGMA OF BAD THAT SURROUND THE GENRE HORROR

Tiago Monteiro1

RESUMO: ABSTRACT:

Este ensaio discute e problematiza alguns dos This essay discusses the association between pressupostos estéticos, filosóficos e sociocul- horror as a film genre and its valuation as a turais que fundamentam as associações entre low aesthetic form, to which the label of trash o gênero narrativo audiovisual do horror e is frequently attached. Here I adopt a theore- os estigmas de baixa qualidade e inferiori- tical frame that mixes philosophical, social dade artística que o caracterizam, por vezes and cultural perspectives (mainly, the notions sumarizada na vaga noção de trash. A partir of excess, abjection and liminality) under a de um olhar sobre o sétimo episódio da fran- critical point of view. Furthermore, the text quia Sexta-Feira 13 (A matança continua, takes the seventh episode of the Friday the dirigido por John Carl Buechler em 1987), o 13th film franchise (The new blood, John Carl texto explora os conceitos de excesso, abje- Buechler, 1987) as an example of the genre ção e liminaridade, buscando compreender a contradictions and its relevance. relevância do gênero e seu potencial crítico. Key-words: horror. Friday the 13th. Trash. Palavras-chave: Horror. Sexta-feira 13. genre cinema. Trash. Cinema de gênero.

1 Tiago José Lemos Monteiro é Doutor em Comunicação pela UFF (2012), Mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ (2006) e Bacharel em Comunicação Social (Radialismo) pela mesma instituição (2004). Entre 2016 e 2017, realizou estágio pós-doutoral na Universidade Anhembi Morumbi. Professor do Bacharelado em Produção Cultural e da Pós-Graduação Lato Sensu em Linguagens Artísticas, Cultura e Educação do IFRJ – Campus Nilópolis. Autor do livro “Tudo isto é pop” (Editora Caetés), sobre a música popular portuguesa dos anos 2000. Possui artigos publicados nas revistas E-Compós, Ciberlegenda, Contemporânea, dentre outras, em torno dos temas: música popular massiva, cinema de gênero, cultura das mídias. Além disso, atua como roteirista e realizador audiovisual independente. Link para CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/4954471388974809. QUATRO INSIGHTS PSEUDO-FUNDAMENTADOS

INSIGHT #1. SOMOS CRIAS DA das salas de cinema pornô contemporâneas, ao MODERNIDADE OCIDENTAL, caráter socialmente aceito de certa “literatura A MODERNIDADE OCIDENTAL de banca de jornal”, passando pelo autêntico rito de sociabilidade adolescente que é assistir MENOSPREZA O QUE É DA ORDEM a um filme de terror na companhia dos amigos. DO CORPO, E O HORROR É UM Unificando as percepções hegemônicas acerca GÊNERO DO CORPO dos três gêneros, estaria a ideia de que todos eles se comprazem em proporcionar emoções No afã de romper com as teogonias baratas e superficiais ao público, posto que medievais e promover a razão como traço desconectadas do nosso precioso cérebro, distintivo do ser humano em relação aos ampliando assim a possibilidade de manifes- demais seres vivos, a modernidade ocidental tações artísticas vinculadas à pornografia, ao relegou o corpo e tudo aquilo que a ele se rela- melodrama ou ao horror aparecerem nas listas cionava a um lugar marginal. Assim, no âmbito de “piores...” de todos os tempos, ou sequer das artes, tudo o que nos afetasse primordial- terem seu valor reconhecido. mente no corpo e só depois acionasse nosso intelecto passou a ser considerado como essen- cialmente inferior. A “grande Arte”, com “A” maiúsculo e tal e coisa, passa a ser aquela que INSIGHT #2. O HORROR NÃO desafia nosso sistema cognitivo e nos mobiliza APENAS É UM GÊNERO DO CORPO, do pescoço para cima. Em contrapartida, tudo MAS TAMBÉM É UM GÊNERO NO aquilo que nos mobiliza do pescoço para baixo, despertando reações eminentemente físicas, QUAL O CORPO LUTA, SOFRE E seria capaz de nos lançar de volta ao domínio PERECE NO FINAL – E ISTO NÃO É dos instintos animais, colocando, assim, em NEM UM POUCO RECONFORTANTE xeque, a nossa tão estimada condição humana. PARA NÓS, MORTAIS Alguns gêneros narrativos parecem mais interessados em certas modalidades Desconsiderando vertentes tidas como particulares de produção de presença, em oposi- mais “intelectuais” ou “sofisticadas” (e o ção à produção de sentido fomentada por outros próprio fato de receberem tais alcunhas já universos. A teórica estadunidense Linda diz muito sobre o sistema de valores que as Williams (1991) cunhou a expressão body constitui…), também a comédia pode ser genres, ou gêneros do corpo, para nomeá-los: vista como um gênero que não apenas atinge estes seriam, em linhas gerais, o melodrama, a e mobiliza o corpo do espectador – através do pornografia e o horror. A cada gênero do corpo, riso, por exemplo – como também tematiza por sua vez, poderíamos associar um dado tipo um corpo em luta (MORGAN, 2002) . O corpo de reação física ou frêmito corporal (o choro, o cômico se choca contra paredes, escorrega orgasmo, o grito); um determinado repertório em cascas de banana, dança de patins na beira de fluidos (lágrimas, esperma, sangue, vísce- do abismo, recebe toneladas de substâncias ras); e, por fim, um conjunto de experiências nojentas sobre si, e ao final, quase sempre, coletivas e práticas de espectatorialidade espe- triunfa, restaurando assim o equilíbrio narra- cíficas, que podem ir da quase clandestinidade tivo e, a reboque, nossa crença no mundo.

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O corpo horrífico, por sua vez, é muti- Até aqui, enumeramos os elementos lado, esventrado, decapitado, emasculado, se transversais a todos os gêneros do corpo, e esvaindo em sangue ou sendo reduzido a uma aventamos algumas hipóteses em torno das massa disforme, e ao final do percurso não razões pelas quais incursões no domínio há qualquer sinal de esperança ou vestígio desses gêneros tendem a ser deslegitimadas de conforto que nos console. O horror seria, ou consideradas inferiores do ponto de vista então, uma espécie de “comédia com o sinal estético. Em seguida, identifiquei no caráter invertido”, ou a sombra trágica que espreita disruptor da ordem que pauta as narrativas o verso de todo riso. “Abandonai toda espe- de horror uma provável explicação para o fato rança, vós que aqui entrais...”, já dizia Dante deste gênero em particular ser, com bastante Alighieri, e esta frase deveria constar dos frequência, o alvo de discursos de repúdio que créditos de abertura de qualquer bom filme tendem a atribuir, ao todo genérico, carac- de horror, com um complemento: “… e não terísticas por vezes verificáveis em apenas espere sair daqui se sentindo muito melhor”. alguns exemplares dele. Senão, vejamos: é Precisamente em função de seu caráter muito raro encontrarmos alguém que afirme perturbador da ordem, e mesmo de negação com todas as letras não gostar de comédias ou de um sentido a ser encontrado no fim do dramas, sendo mais provável que esta pessoa túnel, à narrativa de horror não cabe a missão hipotética argumente não gostar de dramas de transmitir conforto, consolo, segurança muito lacrimogênios, ou preferir o refina- ou tranquilidade. Quando um filme de terror mento de um Woody Allen à grossura de um provoca o nosso riso, desconfio que isso tenha ; por outro lado, é até bastante menos a ver com a falência de seus propósitos comum ouvirmos pessoas sustentando não horríficos e mais a este parentesco bastardo gostarem de filmes de horror at all ou, na entre o horror e a comédia, que muitas vezes melhor das hipóteses, apontando dois ou três nos leva a rir de uma desgraça pelo fato de títulos de exceção que “mais sugerem do que ela nos confrontar com a total ausência de mostram” ou que “sejam mais de suspense do sentido do mundo. que de terror” de modo a legitimar o próprio argumento, a despeito de, consoante a pers- pectiva acima exposta, de obras de horror efetivamente se tratarem. INSIGHT #3. POR SER UM Ainda assim, sinto que sequer chegamos GÊNERO QUE, AO REPRESENTAR perto de elucidar por qual razão menções aos O LIMITE, NÃO RARO NOS conceitos de trash, “cinema podreira”, “filme classe z” e afins quase sempre trazerem à memó- CONDUZ AO PRÓPRIO LIMITE DA ria títulos vinculados ou aparentados ao gênero REPRESENTAÇÃO, O HORROR É UMA horror (ou que dele herdem alguns traços). LINGUAGEM SUBMETIDA A UM Proponho, então, que busquemos no caráter CONSTANTE DESAFIO ONTOLÓGICO excessivo, abjeto e liminar das narrativas de – E ELA NEM SEMPRE É BEM horror algumas evidências destas associações. Se o excesso constitui traço basilar de SUCEDIDA NESTA MISSÃO… todos os gêneros do corpo, e a abjeção pode

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Mundial, as pessoas estavam interessadas títulos realmente eficientes, para o especta- era em delirar com os musicais da Metro…); dor médio não exatamente fã de horror, o que a guinada realista do horror hollywoodiano fica é a impressão de uma profusão de filmes dos anos 1970 antecedeu o período das duas oportunistas e rigorosamente iguais entre si. crises do petróleo; a chegada do Terceiro Milênio viu os filmes com temática demo- níaca e de invasão alienígena proliferarem aos borbotões. O ano de 2017 se configurou A ANÁLISE: FÉ CEGA, FACÃO como um dos mais rentáveis da história do ENFERRUJADO, OU “QUANDO cinema de horror em décadas, a reboque JASON FICOU ENTEDIADO EM do sucesso de bilheteria de títulos como Fragmentado (arrecadação de 277 milhões de SEXTA-FEIRA 13 – PARTE VII” dólares), Corra! (252 milhões) e It – A coisa O leitor ou leitora mais casmurro(a) que (tendo ultrapassado os 700 milhões). porventura passar os olhos pelo título deste Chamando Bob Dylan para a conversa, texto certamente resmungará, a título de “There’s something happening here but you provocação: “Parte VII? Não seriam TODOS os don’t know what it is. Do you… Mr. Jones?”. filmes com a presença do assassino da máscara E é precisamente aí que mora o perigo, de hóquei dignos de constarem em uma lista qualitativamente falando: se fizermos um dos piores filmes já vistos?”. Aqui vos peço breve retrospecto histórico dos “períodos um pouco de calma e senso de humor, caro(a) áureos” do horror cinematográfico, veremos leitor(a): não apenas este que vos escreve que a cada curva ascendente de criatividade e considera a saga Sexta-feira 13 amplamente originalidade geralmente se segue uma longa merecedora da atenção e do carinho do nobre entressafra caracterizada pela repetição de espectador, como também pretendo demons- fórmulas ou pelo esgotamento de um modelo trar, por A+B (e se preciso for, por +C também) de sucesso explorado até a exaustão. Basta ver as razões pelas quais a Parte VII do supra- o que ocorreu ao longo do primeiro decênio mencionado decálogo (sim, são dez filmes, se dos anos 2000, quando a vaga torture porn e desconsiderarmos os remakes, reboots, jogos os cacoetes do horror found footage, outrora de videogame, séries de TV e o antológico inovadores à sua maneira, descambaram em longa-metragem no qual Jason e o igualmente artefatos capazes de testar a paciência até do memorável Freddy Krueger trocam afagos) entusiasta mais empedernido. Não obstante, representa o ápice da curva descendente – o cinema de horror parece nutrir uma parti- com o perdão do possível pleonasmo – da saga cular obsessão por franquias, que é onde do outrora menino Voorhees. a sanha capitalista pelo lucro a todo custo O Sexta-feira 132 fundador, que deu início parece se manifestar de forma mais explí- ao mito no cada vez mais distante ano de 1980, cita: foram DEZ filmes da série Sexta-feira 13, é um competente slasher movie totalmente SETE de Jogos mortais (com o oitavo capítulo em sintonia com o zeitgeist horrífico da época, a caminho), NOVE Hellraiser, SEIS Atividade Paranormal e A hora do pesadelo…, e em que 2 ATENÇÃO: A EXPOSIÇÃO QUE SE SEGUE se pese o fato de, ali pelo meio de todas estas CONTÉM SPOILERS ACERCA DAS TRAMAS DOS FILMES. sagas, haver uma meia dúzia de dois ou três SIGA POR SUA CONTA E RISCO…

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REFERÊNCIAS

CARROLL, Nöel. A filosofia do horror ou paradoxos do coração. Campinas: Papirus, 1999. 317 p.

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UMA ANTROPO-SOCIOLOGIA DE FILMES "NÃO RECOMENDÁVEIS"- PARTE II 13 Cronos: Revista da Pós-Grad. em Ciências Sociais, UFRN, Natal, v. 19, n. 2, jul./dez. 2018, ISSN 1982-5560 FILMES NÃO TÃO RUINS, RUINS, PÉSSIMOS QUE ALGUNS FICAM ATÉ BONS!

MOVIES NOT SO BAD, BAD, TERRIBLE. WE HOPE SOME STILL BE GOOD!

Nelson Marques1

RESUMO comparar os títulos aqui relacionados com diversos sítios que apresentam relações Levantamento bibliográfico da literatura variadas de filmes. Você enquanto leitor e sobre filmes ruins de diferentes gêneros e cinéfilo inveterado, pode se dar ao luxo de época. selecionar listas com 10, 20, 25, 50, 100 e até mais filmes. Pode também escolher gêneros Palavras-chaves: Literatura. Filmes. Bom. e épocas. Mais ainda, listas de filmes não tão Mau. Péssimo. Memes. ruins, apenas ruins, ou então os realmente péssimos, ao lado dos bons filmes, apenas para comparar. Com o intuito de facilitar sua vida de leitor, selecionei alguns endereços ABSTRACT que podem ajudá-lo quando for acessar a lite- ratura pertinente: Selected bibliography on bad and worst films of several genera and historical time. • List of films considered the worst – Wikipedia (https://en.wikipedia. Keywords: Literature. Movies. Good. Bad. org/wiki/List_of_films_conside- Worst. Memes. red_the_worst); • Worst Movies Ever Made/According to A bibliografia referente ao tema deste the Razzies (http://screenrant.com/ ensaio é ampla e extensa em termos de worst-movies-ever-made-razzies); conteúdo, gêneros e época. É interessante

1 Bacharel e licenciado em Ciências Biológicas (USP). Professor Doutor aposentado da FMUSP, ex-prof colabo- rador voluntário da UFRN. Produtor cultural, fundador e atual presidente do Cineclube Natal. Idealizador, fundador e organizador do festival de cinema Goiamum Audiovisual (RN), organizador do FINC - Festival Internacional de Cinema de Baía Formosa (RN). Organizador e vice-presidente da ACCiRN - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Norte. Editou, escreveu e colaborou em diversos livros sobre cinema: Brasil em Tela Cinema e Poéticas do Social (Editora Sulina, 2008), Cenas Brasileiras (EDUFRN, 2009), 80 Cult Movies Essenciais (EDUFRN, 2010), Sessão Dupla (EDUFRN, 2016), Claquete Potiguar: Experiências Audiovisuais no Rio Grande do Norte (Máquina, 2016). FILMES NÃO TÃO RUINS, RUINS, PÉSSIMOS QUE ALGUNS FICAM ATÉ BONS

• 25 Movies So Bad They´re Unmissable (https://editorial.rottentomatoes. com/article/25-movies-so-bad- -theyre-unmissable/); • 366 Weird Movies/ Celebrating the cinematically, surreal, bizarre, cult, oddball, fantastique and the just plain weird (366weirdmovies.com/); • List of films considered the best – Wikipedia (https:// en.wikipedia.org/wiki/ List_of_films_considered_the_best); • 100 Best Classic Movies of All Time – (https:// editorial.rottentomatoes.com/ guide/100-best-classic-movies/2/).

UMA ANTROPO-SOCIOLOGIA DE FILMES "NÃO RECOMENDÁVEIS"- PARTE II 15 Cronos: Revista da Pós-Grad. em Ciências Sociais, UFRN, Natal, v. 19, n. 2, jul./dez. 2018, ISSN 1982-5560 FILMES NÃO TÃO RUINS, RUINS, PÉSSIMOS QUE ALGUNS FICAM ATÉ BONS

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UNVEILING THE WORST MOVIES

Roselia Cristina de Oliveira1

RESUMO ABSTRACT

O presente trabalho trata da análise crítica de The present work deals with the critical três filmes que foram por mim considerados analysis of three films that have been consi- enquanto produções cinematográficas infe- dered by me as inferior and film productions riores e que satisfazem apenas a massificação that satisfy only the massification of cinema, do cinema, e que não agregam elementos and that don’t add significant elements and significativos e que possibilitem enxergarmos to see While works of reference. The films enquanto obras de referência. Foram analisa- were analyzed, Norbit; Mr. & Mrs. Smith dos os filmes, Norbit; Sr. & Srª Smith e Uma and A trip to Italy. The three films deal with viagem para a Itália. Os três filmes abordam different themes; we can consider them as temáticas diferentes, podemos considerá- major media productions, but which have -los como grandes produções midiáticas, dubious quality, including scripts that offer mas que apresentam qualidade duvidosa, derogatory content and even violent. In my inclusive com roteiros que ofertam conte- opinion are unnecessary for a film produc- údos depreciativos e até mesmo violentos. tion. To substantiate my criticism turn to Na minha opinião, são desnecessários para authors such as Deleuze, Ecléa Bosi and Pierre uma produção cinematográfica. Para funda- Bourdieu that define some relevant issues mentar a minha crítica recorro a autores about culture and relations of power that como Deleuze, Ecléa Bosi e Pierre Bourdieu permeate the groups who insist on building que definem algumas questões pertinentes, proposals that promote profit before quality acerca da cultura e das relações de poder que and without depth. perpassam os grupos que insistem em cons- truir propostas que promovam lucro sem Keywords: Cultural Industry. Power field. qualidade e sem profundidade. Geographic location.

Palavras-chave: Indústria Cultural. Campo de poder. Localização geográfica

1 Roselia Cristina de Oliveira, Potiguar. Doutoranda (PPGED/UFRN) Professora. Graduação: História (Licenciatura e Bacharelado) – UFRN / Pós-graduação: Mestrado em Educação (PPGED-UFRN). Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/4853704836448136 Email: [email protected] DESVELANDO OS PIORES FILMES

NORBIT2 102 min. Classificação: 12 anos; Diretor de Fotografia: Clark Mathis; Produção: John Norbit () foi criado pelo Davis, Eddie Murphy, Michael Tollin; Roteiro: Sr. Wong (Eddie Murphy), que o encontrou Charles Q. Murphy e Eddie Murphy, David ainda bebê no Restaurante e Orfanato Worton Rohn, Jay Scherick; Maquiador: Rick Baker; Dourado. Foi neste local que ele conheceu Trilha Sonora: David Newman. ELENCO: Eddie sua alma gêmea Kate (Thandie Newton). Eles Murphy = Norbit, Sr. Wong, Rasputia; Thandie se tornam amigos inseparáveis. Até ela ser Newton = Kate; Terry Crews = Big Jack; Clifton adotada e deixar o local. Aos 9 anos, Norbit Powell = Earl; Lester Speight = Blue; Cuba é ameaçado por três garotos da escola, mas Goolding Jr = Delon Hughes; Katt Williams é salvo por Rasputia (Eddie Murphy), uma = Lord Have Mercy; Mighty Rasta = Azulão; robusta garota de 10 anos. Os dois crescem, Anthony Russell = Giovanni; Marlon Wayans namoram e se casam. Juntamente com seus = Buster; Mrs. Ling Ling = Alexis Rhee; Norbit irmãos Jack Grandão (Terry Lewis), Azulão Age 5 = Khamani Griffin; Preacher = Richard (Mighty Rasta) e Earl (Clifton Powell), Rasputia, Gant; Event Organizer = Kristen Schaal administra a construtora Latimore. Norbit é empregado da empresa, sendo sempre ridi- cularizado pelos cunhados. A vida de Norbit não anda nada bem, mas ela muda após reen- SR. & SRª SMITH3 contrar Kate, que decide comprar o antigo orfanato do Sr. Wong, porém o que Kate não John () e Jane Smith (Angelina sabe é que o seu noivo, Deion (Cuba Gooding Jolie) são um casal suburbano com um casa- Jr.), planeja transformar o local em um bar de mento normal e sem vida. Ele é engenheiro strip-tease, contando com a ajuda dos irmãos de sucesso, e Jane uma empresária do ramo de Rasputia. Reanimado por ter reencontrado de sistema de informática. Cada um tem um Kate, Norbit ganha confiança e aos poucos, segredo que o outro desconhece: são lendá- passa a enfrentar a esposa e sua família. rios assassinos. Recebem a mesma missão INFORMAÇÕES E FICHA TÉCNICA: e essencialmente cancelam a missão um do Estreia: 09/03/2007; indicado ao Oscar outro, acabam trocando tiros entre si quando de Melhor Maquiagem, perdendo para o recebem a missão de matar um ao outro. filme, Piaf – Hino ao amor. O ator Eddie Finalmente enquanto guerreavam em casa eles Murphy interpreta 3 personagens (Norbit, se reconciliam e descobrem que suas agências Rasputia e Mr. Wong). O filme ganhou 3 teriam armado a mesma missão para ambos, Prêmios Framboesa de Ouro: pior ator: afim de eliminassem o problema. Por fimas Eddie Murphy; pior ator coadjuvante: Eddie agências enviam assassinos para eliminá-los. Murphy; pior atriz coadjuvante: Eddie INFORMAÇÕES E FICHA TÉCNICA: Murphy. Foram indicados nas categorias de Foi adaptado de uma série de TV pior filme; pior diretor; pior roteiro; pior Americana de 1996. Teve um orçamento de dupla; pior ator: Cuba Gooding Jr. Gênero: 100 US$ Milhões de Dólares. Gênero: Ação, Comédia; Direção: Brian Robbins; Duração: Comédia, Romance, Suspense; duração: 120

2 2007, Brian Robbins, EUA. 3 2005, , EUA.

UMA ANTROPO-SOCIOLOGIA DE FILMES "NÃO RECOMENDÁVEIS"- PARTE II 22 Cronos: Revista da Pós-Grad. em Ciências Sociais, UFRN, Natal, v. 19, n. 2, jul./dez. 2018, ISSN 1982-5560 DESVELANDO OS PIORES FILMES min; distribuidor: FOX Filmes; direção: Doug COMENTÁRIO Liman; produção: Arnon Milchan et. ali; rotei- rista: Simon Kinberg; diretor de Fotografia: Considero o cinema uma das mais Bojan Bazelli; música: John Powel; dublê = Scott importantes criações da humanidade. Uma Waugh e Chad Stanelski; elenco: Brad Pitt = máquina de sonhos que alimenta as inúmeras John Smith, = Jane Smith, Vince engrenagens de nossa imaginação. Deleuze Vaugh = Eddie, Adam Brody = Benjamin Danz, (1985, p. 20) nos instiga a relacionar o cinema, Kerry Washington = Jasmine, Keith David = como sendo “filho da Ciência Moderna, Pai,Chris Weitz = Martin Coleman, Michelle último rebento de uma linhagem que abriga Monaghan = Gwen, Jerry T. Adams = Guard- nomes importantes como Kepler, Galileu, Bull, Melanie Tolbert = Jamie, Stephanie March Descartes, Leibniz e tantos outros”. Sem = Julie, Perrey Reeves = Jessie, Theresa Barrera dúvida, a Sétima Arte tem uma descendên- = Janet,Jennifer Morrison = Jade, Rachael cia nobre, que pode ser explicada pelo fato Huntley = Suzy Coleman, William Fichther = de se integrar à concepção inovadora que a Dr. Wexler (Terapeuta), Angela Basset = Chefe ciência moderna vem trazer do movimento e de Sr. Smith. que marca a Revolução Científica do Período Moderno da nossa história. Eu concordo plenamente com ele, se pensarmos o quanto as novas tecnologias transformaram a indús- UMA VIAGEM À ITÁLIA4 tria cinematográfica nos últimos tempos. Entretanto, vejo com cautela a festa midiática Steve Coogan e Rob Brydon são convi- de grandes empreendimentos e observo o dados pelo jornal The Observer para realizar quanto persiste a invisibilidade de grupos que uma viagem pela Itália, onde deverão avaliar fazem cinema fora do eixo Hollywoodiano, seis diferentes restaurantes. Entre as cidades que tentam abrir espaço para sua arte, a de Ligúria, Toscana, Roma, Amalfi e Capri, os contrapelo, por perceber que os espaços e amigos se envolvem em confusões e propõem suas representações não são democráticos. novas imitações de atores. A política das grandes empresas, ditam as INFORMAÇÕES E FICHA TÉCNICA: regras de como devem ser produzidos os Gênero: Comédia dramática; estreia: melhores filmes, os que dão mais bilheteria, 25/04/2014; duração: 1h 48 min.; produção: os que promovem a beleza e o poder de deter- British Broadcasting Corporation – BBC; minados setores. Efeitos especiais, patrocínio distribuidor brasileiro: Califórnia Filmes; dire- e marketing alimentam a máquina de fazer ção: Michael Winterbottom; produção: Melissa sonhos e mantém um processo desigual de Parmenter, Andrew Eaton; roteirista: Michael oportunidades para artistas e demais profis- Winterbottom; elenco: Rob Brydon = Rob, sionais que tentam a carreira no cinema. Steve Coogan = Steve, Rosie Fellner = Lucy, Fiquei bastante motivada para falar Marta Barrio = Yolanda, Claire Keelan = Emma. sobre os meus critérios de escolha dos piores filmes, porque considero pertinente falar de como atribuo sentido ao mundo fantástico do 4 The trip to Italy (2014). Direção: Michael cinema. Concordo com Marilena Chauí, que Winterbottom, Reino Unido.

UMA ANTROPO-SOCIOLOGIA DE FILMES "NÃO RECOMENDÁVEIS"- PARTE II 23 Cronos: Revista da Pós-Grad. em Ciências Sociais, UFRN, Natal, v. 19, n. 2, jul./dez. 2018, ISSN 1982-5560 DESVELANDO OS PIORES FILMES analisa o poder de manipulação da indústria de um conjunto complexo de ações que se cultural e nos convida a refletir quando define, engendram na rede cruzada e infelizmente, as artes estão a serviço desta estrutura. [...] a cultura como lazer e entreteni- Nesse sentido, escolhi três filmes que mento, diversão e distração, de modo que tudo o que nas obras de arte e de considerei desastres cinematográficos de pensamento significa trabalho de sensi- acordo com seus roteiros e direção. Entre bilidade, de imaginação, de reflexão e de eles, destaco Norbit. Um fiasco de produção. crítica, nesse sentido, não vende. Não há Acompanho a carreira do ator Eddie Murphy, interesse do público em geral. (CHAUÍ, 1996, p. 329). e o considero um dos representantes dessa indústria cultural dominadora que utiliza atores midiáticos para manter seu propósito Por isso vale massificar, banalizando ideológico de manipulação e ânsia de lucro. a expressão artística e intelectual. Importa Considero esse filme um dos representantes gastar milhões de dólares, e isso a Indústria desse processo de manipulação, também pela cinematográfica Americana sabe fazer como presença de bons atores, mas infelizmente ninguém, e alimenta a criação de filmes neste em processo avançado de alienação acerca estilo. Atores que se destacam e que garan- de sua realidade. Lembrando da luta contra tem bilheteria são convidados a embarcar na o preconceito que a população negra viven- vibe massificada, e nisso vale tudo, inclusive cia nos Estados Unidos, não consigo aceitar bater em mulher e tentar assassiná-la. que atores negros se submetam a situações Encontro aporte em Pierre Bourdieu desrespeitosas quanto ridicularizar pessoas, (2015, p. 25), que analisa brilhantemente a usar de violência e banalizar relações. violência simbólica, e nos fala, E falo desse processo de alienação como fator determinante para a manutenção do [...] que ela nunca se exerce, de fato, sem estado de coisas. Não acredito que pessoas uma forma de cumplicidade daqueles que a sofrem. Sua manutenção não seria militantes, sabedoras dos seus direitos, acei- possível sem a colaboração, consciente tariam interpretar cenas em que humilham ou inconsciente, direta ou indiretamente e discriminam. Não acho que pela arte, vale interessada, não só de todos os importa- tudo. Há que se ter critérios de escolha de dores de produtos culturais americanos, mas também de todas as instâncias seus trabalhos, sabendo que alguns filmes culturais que organizam o processo de marcam definitivamente alguns atores e atri- conversão coletiva. zes. E para mim, Eddie Murphy ficou marcado negativamente, pelos três papéis que repre- E nesse sentido, “estabelece que as senta neste filme. artes de viver dominadas sejam quase sempre São gritantes as atitudes preconcei- percebidas, mesmo por seus praticantes, do tuosas e discriminatórias, pelo desrespeito ponto de vista destruidor e redutor da esté- que os homens se referem a uma mulher que tica dominante”. De fato, o campo do poder foge aos padrões considerados pela sociedade é o espaço de relações de força e elas se como “normais”. Não gostei da proposta de configuram e se comportam de acordo com roteiro para a comédia, e nem da forma como o mercado. A dominação é o efeito indireto os personagens se relacionaram na trama.

UMA ANTROPO-SOCIOLOGIA DE FILMES "NÃO RECOMENDÁVEIS"- PARTE II 24 Cronos: Revista da Pós-Grad. em Ciências Sociais, UFRN, Natal, v. 19, n. 2, jul./dez. 2018, ISSN 1982-5560 DESVELANDO OS PIORES FILMES

Penso no que ele pode me acrescentar pela comportamento subserviente e apático de mensagem que tenta passar para o público Norbit frente as atitudes de uma criança e e não encontro. Tentei me divertir com as mulher dominadora. cenas e não consegui. Não era uma comédia. Excessos de agressividade e ironias nas Passei a maior parte do tempo observando relações e cenas de tortura, extorsão e desres- falas e gestos que na verdade me trouxeram peito são constantes. Destaco uma das cenas repulsa e não consegui rir das situações que em que a Rasputia, no dia do casamento, sendo foram roteirizadas como engraçadas. tratada como objeto e com termos deprecia- É lógico que a maquiagem e algumas tivos: “vaca”, “baleia vestida de noiva”, “você expressões utilizadas para os papéis que casou com um gorila”, “você vai precisar de Eddie Murphy representa com os três perso- muita banana, para a sua gorila nova”. Não vejo nagens são significativas, ele é talentoso na graça alguma na piada relacionada ao corpo, a imitação. Mas confesso que seu gestual não foi defeitos físicos, sou contra a piada que humilha. dos melhores. As piadas são de um mau gosto Não há graça no sofrimento do outro. É preciso fora do comum. Algumas cenas de absurda deixar isso claro para crianças e adolescentes. agressividade de Rasputia com Norbit, com a Desnecessário fazer um filme que considera vizinha e o cachorro são ruins demais e diria comédia cenas grotescas de desrespeito. Há até desnecessárias. limites que precisam ser mantidos. O filme tem início em 1968, como pano Numa época em que se banaliza a vida, de fundo temas interessantes que poderiam são comuns os atos de violência, não dá para ter sido melhor explorados como a situação do aceitar que esses comportamentos sejam Orfanato dividir espaço com um restaurante, a reprisados como comédia, atribuindo o riso questão da adoção e do abandono de crianças e a alegria a situações de desrespeito. É fato negras, o orfanato ser administrado por um em nossa sociedade o elevado índice de femi- Chinês, bem como o relacionamento amoroso nicídios, assassinatos, agressões e situações entre Rasputia e Norbit, mas foram pouco vexatórias que oprimem a mulher. explorados ou feitos de maneira inadequada. Eddie Murphy tentou juntar num único Algumas cenas ficaram marcadas filme todas as mazelas sociais, mas trouxe pelo mau gosto, como o Sr. Wong xingando uma mulher que oprimia e traia o marido Norbit de Mariquinha na frente das crianças, com o professor de ginástica na sua cama. revelando a inadequação e o desrespeito do Se vê reações passionais. A cena do desabafo responsável pelo Orfanato, bem como a estra- dele no teatro de bonecos no orfanato, “eu nha mania de caçar baleias com lanças de cansei de você mandar em mim” retratam verdade colocando em risco a vida das crian- esse momento. A tentativa de refazer a vida, ças como se fosse brincadeira, me remeteram os conflitos pela venda do orfanato, a forma aos maus tratos das instituições que recebem como acontece o casamento de Kate são partes crianças e adolescentes em nosso país. de uma proposta de filme que poderia ter Algo interessante de ressaltar, foi o tomado um rumo mais significativo. Assim, companheirismo de Norbit e Kate fruto da considero Norbit um filme inadequado e que carência e do isolamento que enfrentam absolutamente não acrescenta em nada. ao serem abandonados. Chama atenção o

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Seguindo numa proposta de exacerbada principalmente com as crianças, para que violência, trago a minha segunda escolha, o cresçam respeitando a diversidade. filme Sr. & Srª Smith. Considero como um dos Em termos de avaliação acerca das piores filmes que já vi, pela péssima proposta imagens, a tecnologia falou alto durante todo de roteiro, ofertando cenas com forte cono- o filme. O roteiro proposto atingiu o objetivo tação de violência doméstica, agressão física que era utilizar a tecnologia na tentativa de entre o casal, tentativas de assassinato e eliminar os atores. E para isso, demonstram agressões verbais, que em minha concepção arsenal e motivação para tanto. O filme peca seriam desnecessárias para compor um filme. pelo clichê do Sr. & Srª Smith ficarem juntos As cifras que patrocinaram essa obra mantém e construírem uma relação após tanta violên- o sistema da Indústria Cultural funcionando cia. Não recomendo o filme. Na vida real as a pleno vapor. E nesse sentido, representa mulheres são as que mais sofrem com a força um segmento midiático altamente rentável, física e o poder de dominação masculina. ofertando a reprodução de uma violência São recorrentes as notícias de feminicí- simbólica entranhada em nossa sociedade, dio e violência de toda a ordem. Vale tudo. reproduzida pelos espaços de entretenimento Não recomendo qualquer obra de arte que e que precisa ser combatida. A Violência de alimenta esse tipo de violência. gênero, o desrespeito, as ameaças, a tenta- Por último, e não menos ruim, conside- tivas de assassinato, o uso de armamento rei o filme Uma viagem à Itália, como um dos pesado e de tecnologias de guerra configu- piores filmes que já assisti, porque não conse- ram, segunda essa indústria, um atrativo de gui me divertir. Levei um tempo tentando público com bastante aceitação. encontrar sentido para os longos diálogos No filme, a temática a ser explorada e encadeados entre os atores, deixando o filme que foi banalizada era a separação do casal, bastante cansativo. E mesmo com toda a a dificuldade de convivência, a não aceitação beleza da paisagem italiana, a trama não era do outro e das mentiras que o casal ofertava envolvente e não me encantou. Na verdade, dentro de um contexto de vida a dois, que senti vontade de desligar a TV. Os trejeitos, precisa de harmonia, diálogo e cumplicidade. as brincadeiras e excessos de imitações não O tema da Violência contra a mulher tornaram o filme engraçado. é grave e atual, não pode em hipótese O cinema é a forma contemporânea da alguma ser estimulado pela mídia. Mas, pelo arte que envolve as inúmeras nuances de nossa contrário, vemos que todos os dias somos sociedade e, com seus efeitos especiais, pode condicionados a consumir notícias, produtos ampliar a imaginação envolvendo o público. que violam a nossa integridade, mantendo Mas nem sempre as tramas conseguem esse esse estado de coisas. Dados de pesquisas feito. E o filme, não conseguiu envolver seu nacionais e internacionais indicam que as público. O ator que faz comédia, consegue o riso mulheres são as maiores vítimas de violência. de sua plateia, o ator que apresenta um drama Há de fato uma banalização da vida. emociona seu público... É preciso uma sinto- É preciso que a sociedade pare de nia entre o ato e, o que este representa, para consumir e dar ibope a obras que estimulam que se consiga obter o retorno desejado. Fazer a violência. É preciso investir na educação e cinema é sem dúvida uma grande aventura vale trabalhar a temática em todos os espaços, que envolve profissionalismo e competência

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REFERÊNCIA

BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política. Ensaios sobre Literatura e História da Cultura. Obras Escolhidas. v.1, São Paulo, Brasiliense.1985.

BOSI, Ecléa. Memórias e sociedade: lembranças de velhos. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

BOURDIEU, Pierre. Escritos de Educação. In: Nogueira Maria Alice, Catani, Afrânio (org.). 16. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015. p. 25-26.

CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 1996.

DELEUZE, Gilles. Cinema I: a imagem-Movimento. São Paulo: Brasiliense, 1985.

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THREE WAYS OF DEALING WITH IRRESPONSIBILITY

Nelson Marques1

RESUMO 1. O MARGINAL, A POLÍCIA E A VINGANÇA Três filmes, um brasileiro e dois americanos, trabalham de diferentes formas com o mesmo Confronto Final, 2005, Alonso Gonçalves, Brasil tema: a irresponsabilidade ao escolher, dirigir, Marcos Ferranti (Jackson Antunes) mora filmar e exibir um filme contando uma história. em uma grande cidade na qual leva uma vida tranquila com sua família. Após a casa ser assal- Palavras chaves: Assalto. Vingança. tada, Marcos sente o perigo que sua família corre, Espionagem. Non-Sense. Pseudônimo. Alan devido à ação de criminosos e também à inoperân- Smithee. IMDb. cia da polícia. Cada vez mais paranoico, ele decide tornar a sua casa invulnerável à criminalidade que o cerca e parte para uma vingança pessoal contra tudo e contra todos. ABSTRACT Confronto Final é um filme brasileiro de 2005 dirigido por Alonso Gonçalves e protago- Three films one brazilian and two americans nizado pelo ator Jackson Antunes, o Charles that works with different forms with the same Bronson brasileiro, que interpreta o persona- object: the irresponsibility to choose, to direct, gem Marcos Ferrante. Não confundir com os to film and to show a film that tell us a history, filmes de mesmo nome realizados em 2014, por Keoni Waxman, com Steven Seagal, e 2005, por Key Words: Assault. Revenge. Espionage. Dolph Lundgren, com ele também atuando. Non-Sense. Pseudonym. Allan Smithee. IMDb. O filme Confronto Final tem incríveis 5,9/10 pontos no “site” do IMDb (Internet Movie Database), valor muito alto para um

1 Bacharel e licenciado em Ciências Biológicas (USP). Professor Doutor aposentado da FMUSP, ex-prof colabo- rador voluntário da UFRN. Produtor cultural, fundador e atual presidente do Cineclube Natal. Idealizador, fundador e organizador do festival de cinema Goiamum Audiovisual (RN), organizador do FINC - Festival Internacional de Cinema de Baía Formosa (RN). Organizador e vice-presidente da ACCiRN - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Norte. Editou, escreveu e colaborou em diversos livros sobre cinema: Brasil em Tela Cinema e Poéticas do Social (Editora Sulina, 2008), Cenas Brasileiras (EDUFRN, 2009), 80 Cult Movies Essenciais (EDUFRN, 2010), Sessão Dupla (EDUFRN, 2016), Claquete Potiguar: Experiências Audiovisuais no Rio Grande do Norte (Máquina, 2016). TRÊS FORMAS DE TRABALHAR A IRRESPONSABILIDADE filme incrivelmente ruim! Se lermos - nova da cópia de , e depois de mais 3 mente a sinopse do filme talvez consigamos outros filmes de mesma temática, realiza- entender melhor a sua classificação. É um dos em 1985, 1987 e 1994! Mais de dez anos filme de ação, com uma história mais do que depois, 2005, Alonso Gonçalves, com menos batida e conhecida: a vingança pessoal de recursos, com atuações no mínimo sofríveis um indivíduo que se sente ameaçado, e a sua e com um roteiro de má qualidade resolve família também, por criminosos! repetir a mesma história básica! Só pode- Talvez a semelhança grande de Jackson ria resultar mesmo num filme de péssimo Antunes com o ator americano Charles gosto. Não é um filme nacional, mesmo sendo Bronson confunda um pouco os incautos. realizado em Belo Horizonte, não é um filme Bronson, particularmente, tem vários filmes estrangeiro e nem universal, ou seja, não é como o injustiçado que parte para sua nada, e não traz e nem acrescenta nada a uma vingança pessoal como redentor de certos filmografia já pobre. “valores” éticos e em defesa de sua família. O filme foi feito em 2005 e foi- diri São pelo menos 5 filmes de mesmo título (com gido, roteirizado e produzido por Alonso pequenos acréscimos) e basicamente com a Gonçalves, que é mais ator do que diretor. mesma história e personagem, Paul Kersey, Trabalha como ator desde 1982 e seus traba- um pacato arquiteto de Nova York, que se lhos mais recentes foram realizados para TV transforma num “vigilante” noturno após ter como séries: Passione, em 2010, Caminho das a mulher morta e a filha estuprada por três Índias, em 2008 e Faça Sua História, em 2008. marginais (Desejo de Matar – Death Wish, Antes do Confronto Final realizou dois outros 1974, Desejo de Matar 2 – Death Wish 2, 1982, filmes, sem expressão (Tara Maldita, 1982 e Desejo de Matar 3 – , 1985, os Os Treze Pontos, 1985). três dirigidos por , Desejo de Alonso Gonçalves é amigo de Jackson Matar 4 – Operação Crackdown – Death Wish Antunes, ator que vocês devem ter visto em 4: The Crackdown, 1987, de J. Lee Thompson alguma novela da TV (A Regra do Jogo, 2015, e Desejo de Matar 5: A Face da Morte – Death Amorteamo, 2015, O Caçador, 2014) e nos filmes Wish V: The Face of Death, 1994, de Allan A. Mais Forte Que o Mundo, 2016, O Concurso, Goldstein). Outros diretores têm filmes de 2013, A Festa da Menina Morta, 2008, Tapete mesma temática: Sam Peckinpah, com Sob o Vermelho, 2005, entre outros, e juntos resolve- Domínio do Medo – Straw Dogs, de 1971, Gary ram fazer um filme de ação com cenas tão ruins Sherman, com Exterminador Implacável – que devem ter sido realizadas com o auxílio de Wanted: Dead or Alive, de 1987. um ”PowerPoint” qualquer da vida. Quanto ao “nosso” Confronto Final, Podemos dizer, para economizar pala- filmado em Belo Horizonte, MG, só pode- vras, que o filme não é ruim, é péssimo em mos atestar que o filme é ruim desde a sua todos os sentidos. As atuações de atores e concepção, sem originalidade, portanto, até a atrizes são “maravilhosas” de tão toscas. sua realização final. Se o “remake” de Death Deveríamos falar também do “roteiro”, mas Wish de 1974, o Death Wish 2, de 1982, já é como? Não há nada, minimamente, que se uma cópia declarada e ruim do filme original, possa chamar de roteiro. imaginem o filme de Alonso Gonçalves, cópia

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Ficha técnica sobre uma história original de... ! Confronto Final, 2005. Brasil. Direção: O que dizer de um filme que o próprio Bill Alonso Gonçalves; Roteiro: Alonso Gonçalves; Cosby, decepcionado com o resultado obtido, Produção: Andréa Reis Gonçalves e Jorge “aconselhava” publicamente em jornais, Moreno; Direção de Fotografia, Markão; entrevistas e em seu próprio programa de Direção de Arte, Ana Gusmão; Figurino, TV – Bill Cosby Show – a não desperdiçarem Simone Almeida; Maquiagem, Elizinha tempo e dinheiro indo assistir ao filme! Silva; Montagem, Alonso Gonçalves; Som O filme foi lançado em dezembro de direto, Vandder Lima; Edição sonora, 1987 recebendo já de saída críticas extrema- Alonso Gonçalves; Trilha sonora, Vandder mente negativas dos jornais The Lima; Mixagem, Alonso Gonçalves; Elenco: Time (THOMAS, 1987; WILLMAN, 1988) e The Jackson Antunes (Marcos Ferrante), Patrícia New York Times (JAMES, 1987). Novaes (Carolina Ferrante), Ilvio Amaral Se havia a pretensão de que essa comé- (Delegado Alvarenga), Geraldo Carrato, dia de espionagem (ou de ficção científica?) Bárbara Salomão (Luiza Ferrante), Adilson se tornasse uma franquia, como se diz hoje – Maghá (Policial Ferreira), Rodrigo Signoretti daí o título do filme começando na Parte 6 -, (Detetive Glayson). Ação, 98 minutos, cor. morreu aí mesmo, no nascedouro. A inferên- cia de que o filme era o sexto de uma série de filmes com as aventuras de Leonardo Parker, teve até uma tentativa (ou estratégia) de 2. UMA COMÉDIA NON-SENSE UM publicidade às avessas, ao dizer que as outras TANTO IRRESPONSÁVEL partes – as de 1 a 5 – haviam sido sequestra- das por precaução no interesse da segurança Leonardo, Um Agente Muito Trapalhão mundial... Quanta pretensão e falta de jeito (Leonard Part 6), 1987, , EUA mesmo! Até essa estratégia de marketing, Leonard Parker (Bill Cosby) é um ex-espião criando “expectativas” inexistentes, foi uma da CIA. Parker é re-recrutado por seus ex-emprega- grande bobagem. dores para salvar o mundo de uma vegetariana do Na época o jornal Los Angeles Time mal chamada Medusa Johnson que através de uma não deixou por menos: “... Leonard Part 6 é nova tecnologia aplicada nos animais, estes são presunçoso, um exercício tedioso de autoin- controlados para matarem as pessoas. Leonard tolerância... [...] ... Não há praticamente nada se infiltra na base vegetariana, cortando os para rir neste filme...”. O New York Times foi vegetarianos através de uma magia feita com igualmente rigoroso na sua crítica: “... Sr. carne, mágica esta que ele recebeu de uma cigana. Cosby e o diretor Paul Weiland estavam Leonard libera os animais do cativeiro, inunda supostamente em desacordo (pelo que se a base com anti-ácido efervescente (tipo “Alka- disse à época, e mais ainda depois, destaque Seltzer”, ou “Sal de Fruta”) e escapa montado em meu) durante as filmagens de Leonard Part um avestruz que estava no telhado do prédio. 6... [...] ... mas não há muita culpa para eles Leonardo, Um Agente Muito Trapalhão para compartilhar. A Direção do Sr. Weiland , é um filme americano de 1987, produzido e a história do Sr. Cosby e o roteiro de Jonathan dirigido por Bill Cosby, protagonizado por ele Reynolds parecem igualmente banal...”. mesmo, num roteiro de Jonathan Reynolds

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Alguns anos depois, em 1994, o diretor gostam do seu tipo de humor. Muitos o consi- Paul Weiland, numa entrevista, até certo deram estar no pior papel dele no cinema. ponto amarga, afirmou: Joe Don Baker, sempre atuando como coad- “... Foi um erro terrível... quando alguém juvante em mais de 80 filmes, alguns filmes entra nessa posição (a posição de poder de Bill medianos e até bons (Um Homem Fora de Cosby na década de 1980), eles são cercados Série – The Natural, 1984, Assassinato por por bajuladores e ninguém lhe diz a verdade. Encomenda – Fletch, 1985, 007 Marcado para Mas Cosby simplesmente não era engraçado. a Morte – The Living Daylights, 1987, Cabo Eu não podia dizer a ele diretamente. Eu diria do Medo – Cape Fear, 1991), frente à bagunça que ele era “lento” e ele dizia – ‘Você se preo- que está presente no filme é, ainda assim, o cupa com a construção, deixe-me preocupar ator de melhor atuação. O resto do elenco com o engraçado...” (HATTENSTONE, 1994). de suporte não consegue sustentar minima- O jornal da época mente uma história de ficção científica de (dezembro de 1987) observou: “... que embora péssima qualidade e uma comédia, para dizer Weiland fosse o diretor, claramente Cosby o mínimo, idiota! como estrela, produtor e dono da ideia, é o Podemos dizer, para economizar palavras, autor aqui...” ( THOMAS, 1987). Mesmo aque- que o filme não tem competência nem para ser les que de certa maneira estão acostumados ruim, é péssimo mesmo em todos os sentidos. a ver filmes ruins, filmes “trash”, por prefe- As atuações de atores e atrizes são até surpreen- rência ou obrigação, se críticos de cinema por dentes e “maravilhosas” de tão toscas. profissão, concordam, todos, que este éum Este é mais um daqueles filmes “indi- dos piores filmes já realizados. É bom lembrar cados” para aqueles cinéfilos que assistem a que Leonard Part 6 foi o primeiro filme de filmes que são tão ruins, mas tão ruins mesmo, longa-metragem realizado por Weiland. que passam a ser “ótimos” na falta de outra Havia empreendido apenas um curta-metra- classificação. Serve também para aqueles gem em 1983 e fez até o momento 16 filmes, obsessivos que fazem questão de ter os piores dos quais se pode destacar apenas Living with representantes da filmografia mundial para Dinossaurs (para a TV) em 1989, Em Busca do mostrar a todos, amigos e, principalmente, Ouro Perdido (City Slickers II: The Legend inimigos. Deve ser, sempre, um participante of Curly´s Gold), em 1984 e Para Roseanna de uma estante demonstrativa dos piores (Roseanna´s Grave), em 1994. produtos que a indústria cinematográfica já Não é à toa que tem pontuação 2,2/10, realizou. Sem dúvida têm e terão sempre um média de 7.290 votos (em junho de 2017). papel educativo de como não fazer filmes. Ninguém, do diretor à equipe técnica, dos Nesse sentido recomendo com firmeza atores e atrizes aos coadjuvantes, demonstra Leonardo, Um Agente Muito Trapalhão. ter algum talento, nem que seja mínimo. Até Ficha técnica a participação de Jane Fonda, numa pequena Leonardo, Um Agente Muito Trapalhão ponta “vendendo” aqueles famosos vídeos de (Leonard Part 6), 1987, EUA. Direção: Paul exercícios físicos a que ela se dedicou por um Weiland; Roteiro: Jonathan Reynolds, sobre bom tempo, parece constrangida... Bill Cosby uma história de Bill Cosby; Produção: Bill está irreconhecível, mesmo para aqueles que Cosby; Distribuição: Colúmbia Pictures;

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Cinematografia, Jande Bont; Música, Elmer 3. UMA HOLLYWOOD MAIS DO Bernstein; Edição, Gerry Hambling; Elenco: REAL: RESPONSABILIDADE X Bill Cosby (Leonard Parker), Tom Courtenay IRRESPONSABILIDADE (Frayn), Joe Dom Baker (Nick Snyderburn), Moses Gunn (Giorgio Francozzi), Gloria Foster Hollywood – Muito Além das Câmeras (An (Medusa Johnson), Victoria Rowell (Joan Film: Burn Hollywood Burn), 1998, Parker), Anna Levine (Nurse Carvalho), David Arthur Hiller (como Alan Smithee), EUA Maier (Man Ray), Grace Zabriskie (Jefferson), Um diretor com o nome Alan Smithee George Maguire (Madison). Comédia, ação, realiza um filme intitulado TRIO. É um filme ficção científica, 85 minutos, cor. de ação, de grande orçamento e estrelado por Curiosidades , Whoopi Goldberg e Jackie 1. Prêmios Framboesa de Ouro 1988: Chan. O estúdio, no entanto, faz uma edição do “Pior Ator” (Bill Cosby), “Pior filme que não agrada ao diretor Smithee (ele Filme”, “Pior Roteiro” (Jonathan descreve o filme como sendo “... pior do queo Reynolds e Bill Cosby). Foi ainda indi- filme Showgirls...”). Ele quer usar um pseudônimo cado para “Pior Atriz Coadjuvante” (Gloria Foster) e “Pior Diretor” (Paul para retirar a responsabilidade pela realização do Weiland). filme. Mas descobre nesse momento que o único permitido em Hollywood é “Alan Smithee”, que é o 2. Bill Cosby, mesmo fazendo campa- nha contra na mídia algumas seu próprio nome. Ele decide, então, roubar o seu semanas depois da cerimônia filme, fugindo com a intenção de destruí-lo. de premiação, aceitou seus três Hollywood – Muito Além das Câmeras prêmios “Framboesas de Ouro”, é um filme americano do gênero comédia de apresentando-os em vários progra- mas de entrevista na TV. Ele é um 1998 e é considerado pela maioria de críticos dos poucos profissionais do cinema de cinema, como um dos piores filmes de todos que aceitou a indicação e a premia- os tempos. Ganhou 5 prêmios “Framboesa de ção do “Prêmio Framboesa de Ouro”. Ouro” (1998), incluindo o de “Pior Filme”. 3. O filme ainda recebeu indicação, em , produtor, roteirista e ator 2005, para “Pior Comédia de Nossos do filme ganhou quatro! (ver Curiosidades Primeiros 25 Anos” durante a reali- 1). Esta produção de 1998, felizmente quase zação do Prêmio Framboesa de Ouro 2005. esquecida, é mais um daqueles casos em que a proposta do filme e as histórias de bastidores 4. Como o público consome de tudo, Leonard Part 6 foi lançado em são mais interessantes do que o produto em DVD pela (hoje si. Tudo deu errado nesta comédia que nunca propriedade da Sony) em 2005 consegue nem ser engraçada. fazendo mais sucesso do que na época O filme foi lançado nos EUA em 20 de estreia do filme em 1987 (que, na época, para um orçamento estimado de fevereiro de 1998 em apenas 19 salas de de gastos de US$ 24.000.000,00), cinema no país inteiro. Para um orçamento à arrecadou apenas US$ 5 milhões de época de US$ 10 milhões de dólares, arrecadou dólares (US$ 4.916.871,00) nos EUA. na estreia menos de US$ 50.000 dólares! Até Bill Cosby comprou os direitos de apresentação na TV de seu filme hoje não arrecadou mais do que US$ 60.000 para ter certeza de que ele nunca dólares (BOX OFFICE MOJO). O que em si, já aparecesse nessa mídia. é uma primeira indicação de seu “sucesso”

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é uma comédia. Ele é feito na forma de um Burn), EUA, 1998. Direção: Arthur Hiller documentário, com as pessoas falando para (como Alan Smithee); Roteiro: Joe Esterhas; as câmeras e contando a história de um Produção: Ben Myron e Joe Esterhas filme intitulado Trio, que custou mais de US$ (não creditado); Distribuição: Buena 200 milhões de dólares e era estrelado por Vista Pictures; Cinematografia: Reynaldo Sylvester Stallone, Whoopi Goldberg e Jackie Villalobos; Música: Chuck’ D, Joel Diamond Chan. Eles falam como eles mesmos, como se e Gary G-Wiz; Edição: L. James Langlois; fossem a personificação das celebridades...! Elenco: Eric Idle (Alan Smithee), Ryan O´Neal Falando da tão (mal) falada edição, ela não (James Edmunds), Coolio (Dion Brothers), tem alma e nem ritmo. É pior do que os piores Chuck´D (Leon Brothers), Richard Jeni (Jerry exercícios de direção de qualquer classe de Glover), Leslie Stefanson (Michelle Rafferty), alunos de cinema (sem ofensas a estes). Ebert Sandra Bernhard (Ann Glover), Cherie continua sendo mais rigoroso ainda. A única Lunghi (Myrna Smithee), Harvey Weinstein maneira de se ter uma versão “assistível” do (Sam Rizzo), Gavin Polone (Gary Samuels). filme seria uma versão cortada de pelo menos Participações especiais representando a 86 minutos... Ou seja, não sobraria nada, pois si mesmos: Sylvester Stallone, Whoopi essa é a duração do filme! (EBERT, 1998). Goldberg, Jackie Chan, Robert Evans, Robert Apesar do filme Hollywood – Muito Shapiro, Shane Black, Mario Machado, Lisa Além das Câmeras ter um potencial muito Canning, Joe Eszterhas, Naomi Eszterhas, grande ao penetrar nos meandros da indús- Larry King, Peter Bart, Dominick Dunne, Billy tria cinematográfica americana, satirizando Bob Thornton, Billy Barty, Dominick Dunne, e criticando as figuras de produtores, direto- Norman Jewison (sem créditos). Comédia, 86 res, roteiristas, atores e atrizes, não consegue minutos, cor. cumprir o que promete (compare-se, por CURIOSIDADES exemplo, o “Hollywood...”) com o incompará- 1. Joe Eszterhas foi a primeira vel O Jogador (The Player), de 1992, do Robert pessoa a ganhar 4 Prêmios Framboesa de Ouro Altman, que trabalha com temas semelhantes. 1998 para um único filme: “Pior Filme”, “Pior O filme inteiro nada mais é do que um longo Roteiro”, “Pior Ator Coadjuvante” e “Pior ataque pessoal do roteirista (Joe Eszterhas) Nova Estrela” (para uma aparição breve). aos produtores e astros de Hollywood, após o Tecnicamente recebeu ainda a indicação fracasso de seu filme Showgirls e à decadência para o prêmio “Quaisquer Duas Pessoas Que de sua carreira como autor de blockbusters. Aparecem Juntas na Tela”. Mas não ganhou... Vale como retrato de uma época e também 2. Alan Smithee, ou Allen como uma crítica virulenta à interferência Smithee, é um pseudônimo oficial usado por nem sempre positiva dos produtores na reali- cineastas que desejam destituir ou desistir zação de filmes. Nesse sentido ele tem até um de um projeto cinematográfico por discordar certo valor, mas que fica muito aquém de seu dos rumos que o produto final adquiriu. Antes potencial, como chamamos a atenção. de 1968 a Directors Guild of America (DGA) Ficha técnica não permitia que pseudônimos fossem utili- Hollywood – Muito Além das Câmeras zados nos créditos de filmes. Em 1968 a DGA (An Alan Smithee Film: Burn Hollywood preferiu criar um pseudônimo oficial para

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5. Casos ainda mais curiosos cinematográfica em 2000, continuou sendo são os filmes que na sua exibição no cinema utilizado fora da indústria cinematográfica tiveram os créditos de seus diretores reais, em outras mídias e em projetos de filmes que mas quando reeditados para TV, TV a Cabo, não estão sob o domínio da DGA. Alguns video- versões de companhias aéreas, ou por outros clipes creditados a Smithee: “I Will Always motivos, o crédito foi dado ao “Smithee”: Love You”, Whitney Houston, 1992, da trilha Duna (Dune), 1984 (dirigido por David Lynch, sonora de O Guarda-Costas (The Bodyguard), na TV não só a direção, mas o crédito do dirigida por Nick Brandt; “Digging the roteiro foi modificado para Judas Booth); Grave”, Faith No More, 1995 (dirigido por Gunhed (Ganheddo), 1989, (lançado nos Marcos Roboy); “Kiss the Rain”, Billie Myers, Estados Unidos, dirigido por Masato Harada); 1998; “Waiting for Tonight”, Jennifer Lopez, A Árvore da Maldição (The Guardian), 1990 1999 (dirigido por Francis Lawrence); “Lose (apenas para a versão editada para a TV a My Breath”, Destiny´s Child, 2005 (dirigido Cabo, dirigida por , creditada por Marc Klasfeld). a “Alan Von Smithee”); Perfume de Mulher 8. Em Hollywood, com a retirada (Scent of a Woman), 1992 (versões de compa- “oficial” do “genérico” Smithee, qualquer nhias aéreas, dirigido por ), retirada de responsabilidade exige agora uma Rudy, 1993, editado para televisão, dirigido negociação direta com a DGA. Exemplo dessa por David Anspaugh; Fogo Contra Fogo (Heat), situação aconteceu com o filme Supernova 1995 (quando editado para televisão, dirigido (idem) (da MGM), 2000, dirigido por Walter por Michael Mann); Encontro Marcado (Meet Hill, que se retirou do projeto, e foi criado, Joe Black), 1998 (quando editado para exibi- através de um acordo entre a MGM, Hill e a ção em voos comerciais e televisão a cabo, de DGA, o nome substituto “Thomas Lee“. Martin Brest); O Informante (The Insider), Estes três filmes comentados aqui são 1999 (quando editado para televisão, dirigido “indicados” apenas para públicos específi- por Michael Mann). cos, e cinéfilos inveterados com boa bagagem 6. Trabalhos para televisão fílmica, que assistem a filmes que são tão também sofreram o mesmo processo de ruins, mas tão ruins mesmo, que passam a “perda” da responsabilidade e foram diri- ser “ótimos” na falta de outra classificação. gidos por algum “Smithee”: série MacGyver Serve também para aqueles obsessivos que – Profissão: Perigo (MacGyver) 1ª. tempo- fazem questão de ter os piores, ou seriam os rada, episódios “Pilot” (dirigido por Jerrold “melhores”, produtos que o cinema já reali- Freedman) e “The Heist”, 1985; Além da zou! São exemplos didáticos de como não Imaginação (The New Twlight Zone), 1ª. fazer um filme policial, uma comédia, ou o temporada, episódio 7 “Teacher´s Aide/ gênero que seja. Eu iria até mais longe, de Paladino of the Lost Hour”, 1985 (dirigido como NÃO fazer um filme! por Gilbert Cates); La Femme Nikita, “Catch a Falling Star”, episódio 16, da 4ª. temporada em 2000 (dirigido por Joseph L. Scanlan). 7. Interessante que o pseudô- nimo, mesmo tendo sido banido da indústria

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REFERÊNCIAS

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ZOMBIES, LIVING DEADS, WALKERS: THE “NEW” HORROR’S MONSTERS

Igor Carastan Noboa1

RESUMO: ABSTRACT:

Nos últimos anos temos visto de forma In the last years we have seen a renaissance recorrente um renascimento de manifesta- of artistic manifestations with the theme of ções artísticas com temática do denominado the so-called “zombie apocalypse”, a kind of “apocalipse zumbi”, um tipo de destruição das destruction of institutions and societies by instituições e das próprias sociedades por meio the attack a specific type of monster, a reborn do ataque de um tipo específico de monstro, um dead moved by pure instinct, who feeds on the morto renascido movido por puro instinto que living. From video games to comic books, from se alimenta dos vivos. De jogos de videogame home-made audio-visual works to Hollywood a histórias em quadrinhos, de obras audiovisu- blockbusters. These monsters mobilize the ais caseiras a superproduções hollywoodianas. most diverse audiences to reflect on their Esses monstros mobilizam as mais diversas lives, to entertain themselves and to be frigh- audiências para fazer uma reflexão sobre sua tened. Here we analyze two distinct works that vida, se entreter e se assustar. Aqui analisamos deal cleverly with this subject in order to capi- duas obras distintas que lidam com essa temá- talize on the public’s interest on the subject, tica muito mais de forma esperta de capitalizar instead of actually explore the zombie theme no interesse do público sobre o tema do que in contemporary globalized societies. realmente explorar o tema do zumbi nas socie- dades globalizadas contemporâneas. Keywords: Day of the Dead. World War Z. zombie. living dead. Walker. Hollywood. Palavras-chave: Dia dos Mortos. Guerra Mundial Z. Zumbi. Morto-vivo. Redivivo. Hollywood

1 Igor Carastan Noboa é doutorando em História Social pela Universidade de São Paulo, mestre em História Social pela mesma instituição pesquisando História dos EUA, Guerra Fria e obras audiovisuais insólitas. É professor de História desde 2008 pela rede municipal de ensino de São Paulo no Ensino Fundamental II da EMEF Emiliano Di Cavalcanti, onde ajudou a criar um projeto de Escola Integral. Desde 2016, além das aulas regulares de História, ministra cursos que lidam com os mitos e o pensamento cético. É autor do livro “Filmes do Fim do Mundo” (2013) e diversos artigos publicados em coletâneas, sempre analisando e refletindo sobre obras de ficção científica e horror. ZUMBIS, MORTOS-VIVOS, REDIVIVOS

Esse tipo de monstro do horror a que Mortos e Guerra Mundial Z fazem parte desse nos referimos, exemplificado por dois filmes movimento de nova apropriação do morto- marcantes do gênero – Dia dos Mortos e -vivo pela cultura de massa contemporânea, Guerra Mundial Z - mesmo com origens inci- explorado pelo cinema, televisão, rádio, pientes que possam ser traçadas no folclore videogame e histórias em quadrinhos. mundial e nas obras de horror que lidavam com vulgarizações de rituais do vodu, foi apresentado por George A. Romero no filme A Noite dos Mortos-Vivos (Night of the Living DIA DOS MORTOS (2008) Dead) em 1968 e desenvolvido pelo próprio Romero e outras obras que acrescentaram e SINOPSE popularizaram mais elementos como carac- Um ataque terrorista na cidade de terísticas do morto-vivo, como o fato de Leadville, Colorado, libera um vírus que causa comer cérebros, difundido pelo filme A Volta nas pessoas sintomas de gripe e posterior- dos Mortos-Vivos (The Return of the Living mente as transforma em zumbis devoradores Dead, 1985), e a existência de zumbis velozes de carne humana. A cidade é isolada em uma introduzidos pelos jogos de vídeo game e quarentena pelo exército e um grupo de pelo filme Extermínio (28 Days Later, 2002) sobreviventes, escapando de vários locais da – mesmo que tecnicamente os seres do filme cidade, consegue finalmente refúgio em uma Extermínio não sejam mortos-vivos mas sim base subterrânea e descobre que na verdade doentes, é com os zumbis que a obra dialoga. o vírus foi criação de um projeto do governo No decorrer do século XXI o morto-vivo que deu errado e contaminou a cidade. Na e sua temática saiu do gueto dos fãs de horror base, os sobreviventes lutam contra zumbis e e do fantástico e passou a se tornar mains- o cientista responsável pela catástrofe e esca- tream, convencional, em parte por modismo pam da área. e pela novidade introduzida na cultura de Na onda da moda zumbi da primeira massa – em versões diluídas e com maquia- década do século XXI, Steve Miner, veterano gem e efeitos mais realistas que os filmes das diretor de Sexta-Feira 13 partes 2 e 3 (Friday décadas anteriores – em parte pela relevân- the 13th Part 2, 1981 e Friday the 13th Part 3, cia do símbolo morto-vivo como ente que 1982) e Casa do Espanto (House, 1985), entre pauta as relações sociais de um mundo cada outros filmes e séries de diversos gêneros, vez mais conectado e com todas as esferas da dirigiu esse filme que era uma tentativa de vida racionalizados em um processo de desu- realizar um remake atualizado nos moldes manização –, magistralmente apresentado na de Madrugada dos Mortos (Dawn of the Dead, sequência inicial do filme Todo Mundo Quase 2004) da obra de George A. Romero, o pai dos Morto (Shaun of the Dead, 2004) de Simon filmes de mortos-vivos. Pegg, Edgar Wright e Nick Frost, que no Dia dos Mortos, filmado quase total- Brasil recebeu esse título vergonhoso, asso- mente na Bulgária, foi escrito por Jeffrey ciando-o com as paródias hollywoodianas da Reddick, mais conhecido por seu roteiro série fílmica Todo Mundo em Pânico (Scary do filme Premonição (Final Destination, Movie). Os filmes aqui comentados, Dia dos 2000), seu melhor trabalho profissional até o

UMA ANTROPO-SOCIOLOGIA DE FILMES "NÃO RECOMENDÁVEIS"- PARTE II 41 Cronos: Revista da Pós-Grad. em Ciências Sociais, UFRN, Natal, v. 19, n. 2, jul./dez. 2018, ISSN 1982-5560 ZUMBIS, MORTOS-VIVOS, REDIVIVOS momento. Enquanto Madrugada dos Mortos fraco (mas mesmo assim acima da média do até que seguiu o modelo do filme original, subgênero), o remake não pode ser chamado diluindo a crítica social e ironia do filme de exatamente por esse nome. Além da narrativa Romero, Dia dos Mortos foi por outro caminho não ter nada a ver com o filme original, cujo e apenas fez algumas referências em diálogos dia remete ao mundo dominado pelos zumbis, e caracterização de personagens ao filme Dia nesse filme “dia” é apenas o nome usado para dos Mortos (Day of the Dead) de 1985. arrecadar dinheiro de desavisados que conhe- O apelo desse filme era sua aparente ciam o filme de Romero, curiosos e pessoas proposta de remake da obra de George A. que gostaram do remake de Madrugada dos Romero, produzido em um momento onde a Mortos de 2004, como a contratação de Ving grande mídia já aceitava melhor esse tipo de Rhames, que atuou em ambos os filmes com temática e tendo ao seu dispor muito mais recur- personagens distintos pode demonstrar. Esse sos, tanto técnicos quanto financeiros (mesmo é um exemplo de desonestidade da produ- que baixo para o padrão hollywoodiano). É de ção de Dia dos Mortos, que nada tem a ver conhecimento dos fãs do trabalho de Romero e também com o filme de 2004. Além disso, para dos mortos-vivos em geral, que o filme de 1985 completar a piada, o filme se passa à noite e, enfrentou problemas graves e o roteiro, que era portanto, qualquer outro título seria melhor bem interessante, teve que ser adaptado para que Dia dos Mortos, já que não há nenhuma uma verba não condizente com a proposta origi- figura de linguagem no nome do filme. nal, sofrendo com isso de forma notável. Havia a O início do filme prenuncia o caos que expectativa de que esse remake talvez até fosse será observado por quase uma hora e meia: fiel ao roteiro original, não filmado, ou mesmo lembrando seu trabalho na série fílmica Sexta- que adequasse os temas tratados por Romero, feira 13, Steve Miner já apresenta jovens que como a crítica às instituições como a ciência, o querem transar em local abandonado. A carac- militarismo e a mídia para o contexto mundial terização dos mortos-vivos nessa obra não pós 11 de setembro. consegue ser interessante nem acrescentar Dia dos Mortos foi lançado direto para o nada de útil e foi feita a escolha pelos zumbis DVD em 2008 e se tornou um enorme fracasso, corredores, que ainda por cima pulam e raste- com dados estimados de retornos mundiais jam. O tema dos zumbis corredores é discutido de pouco mais de trezentos mil dólares para com afinco pelos fãs de horror e criticado prin- dezoito milhões investidos. Como veremos cipalmente pelos fãs do trabalho de Romero, mais adiante não foi à toa que esse filme foi sendo um elemento que afeta a verossimi- um fracasso em todos os sentidos. lhança se não for muito bem caracterizado, pois se pode concluir que o cadáver revivido, no filme por uma toxina virulenta (bem origi- nal...), se torna um velocista bestial. O próprio DA BULGÁRIA COM AMOR morto-vivo que corre e pula (infelizmente não dança) é um indicativo de um filme que valo- Se o material original já tinha diversos riza mais a ação do que o horror, já alienando problemas, entre os três filmes da “trilogia boa parte do público que seria atraído por uma zumbi” de Romero, o Dia dos Mortos é o mais obra como esta.

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O filme, seguindo a tradição, mostra Este filme de zumbi genérico e esque- cenas sangrentas e violentas ao gosto do cível, mesmo que esboce uma crítica ao público dessas obras, mas sem nenhuma origi- militarismo e a ciência, essa crítica é vazia nalidade, já vimos as mesmas coisas inúmeras e redundante e não se sustenta. Além disso, vezes em outras obras. Se existe algum choque há furos que beiram o desleixo, como o e/ou desconforto isso ocorre naturalmente, misterioso trauma do personagem que anda como ao ver um acidente de trânsito, e não armado. Talvez o filme quisesse incentivar a por alguma grande construção de cena. Não nossa imaginação, pois em nenhum momento se pode falar que esse filme é derivado da houve preocupação em nos explicar qual é o antiga tradição dos filmes “trash”, geralmente problema do personagem, mas como os perso- associados ao horror de baixo orçamento, nagens desse filme são descartáveis, também pois a parte técnica é competente e remete às não nos interessa imaginar que trauma ele produções hollywoodianas padrão, o que nos teria passado. Há também o personagem leva a refletir sobre quanto o acesso a melho- vegetariano que se torna um zumbi que não res efeitos privilegiou esses filmes recentes come carne, um morto-vivo do bem, um belo na criação de sequências que parecem muito momento de vergonha alheia. mais realistas que as dos filmes antigos, mas Indiretamente este filme incentiva os ao mesmo tempo, retirou deles a criatividade, comportamentos antissociais de seu público principalmente da direção. e muitas vezes somos quase que induzidos Talvez o principal problema dessa leva a torcer para que os mortos-vivos matem recente de filmes de mortos-vivos, da qual todos os humanos do universo do filme das Dia dos Mortos é um exemplo, é a diluição formas mais horríveis possíveis e passem a dos temas mais interessantes propostos por dominar o mundo, o que teria potencial de essas obras, como a crítica à sociedade e suas tornar o filme interessante. Infelizmente isso instituições, nos levando a repensar nossos não acontece e vemos a repetição de clichês comportamentos e identificar claramente os filmados sem inspiração como uma criança problemas de um mundo desumanizado, por obrigada pelos pais a terminar a lição de casa vezes apresentado como decadente na melhor de Matemática para poder ir brincar: tudo tradição distópica. Dia dos Mortos está mais feito de qualquer jeito. próximo de um filme de ação acéfalo, tanto Fazendo uma reflexão sobre o filme, quanto as vítimas dos zumbis que comiam podemos nos sentir mal pelos atores, como cérebros em A Volta dos Mortos-Vivos (The Mena Suvari, Nick Cannon, Michael Welch e Return of the Living Dead, 1984). Não que não Ving Rhames e todos que trabalharam nessa possam ser interessantes filmes de ação com fracassada obra. O próprio trabalho do rotei- a temática dos zumbis, mas uma obra que vai rista e diretor em colocar referências a outros por essa linha deve conseguir superar o “fator filmes de ficção científica e horror é interes- videogame”, já que irá competir com parcelas sante, mas para por aí. Imagino a alegria de do público que já “participam” de obras com um ator em ser escolhido para atuar em Dia mortos-vivos em outro nível interativo muito dos Mortos, lendo o roteiro e decorando as mais desafiador, em jogos que exigem habili- falas, viajando até a Bulgária e depois vendo o dade manual, atenção e estratégia. filme completo ser lançado em DVD, achando

UMA ANTROPO-SOCIOLOGIA DE FILMES "NÃO RECOMENDÁVEIS"- PARTE II 43 Cronos: Revista da Pós-Grad. em Ciências Sociais, UFRN, Natal, v. 19, n. 2, jul./dez. 2018, ISSN 1982-5560 ZUMBIS, MORTOS-VIVOS, REDIVIVOS o filme perto do caixa do supermercado GUERRA MUNDIAL Z (2013) enquanto passa as compras. Geralmente o apelo para assistir filmes SINOPSE ruins, ou mesmo se manter assistindo um O ex-agente da ONU, Gerry Lane (Brad filme que já se suspeita ser ruim, seja pela arte Pitt), um homem que decidiu se dedicar a da capa, diretor, atores ou mesmo ao ver os sua família, tem seu mundo abalado quando primeiros minutos da obra, é o caráter de entre- uma epidemia de zumbis começa nos Estados tenimento que essas obras indiretamente, e de Unidos. Ele consegue escapar com sua família forma não intencional, proporcionam: o fator da morte certa por intermédio de um amigo, de se assistir um filme para dar risada e apre- vice-secretário da ONU, e passa a investigar o ciar o nonsense e absurdo de muitas dessas que se acredita ser um tipo de vírus que está obras não pode ser desconsiderado. Isso talvez se espalhando pelo mundo, buscando sua acione para a mesma área de nossa personali- origem, a fim de produzir uma vacina. O vírus dade que ri de filmes de comédia pastelão ou reanima os cadáveres e os transformam em de pessoas tropeçando na rua. Entretanto, Dia máquinas de matar, contaminando quem quer dos Mortos não é um filme dessa categoria, que fosse atacado por eles. Acompanhamos não é um “terrir”, estando mais próximo de os passos de Gerry Lane e sua investigação fazer o público abandonar o filme sem termi- pelo mundo, entrando em contato com mili- nar. Não encontrei nada sobre os bastidores tares e agentes da inteligência, incapazes do filme que justifique o filme ser tão ruim, de lidar com o problema. Após sobreviver tipo briga de produtores, roteirista mudando a invasão de Jerusalém pelos zumbis e um durante as filmagens, troca de diretor e fato- acidente de avião, Gerry testa sua teoria de res que normalmente explicam um filme dessa que os mortos-vivos não atacavam os doentes má qualidade. de outras doenças ou condições e indica uma Revendo o filme dez anos depois, Dia forma de lutar contra os zumbis, utilizando dos Mortos parece ser pior ainda do que à doenças curáveis e controláveis para que os época de lançamento, há o óbvio sinal de ser vivos não fossem mais atacados pelos zumbis um filme de investidores à la filme de Uwe e a epidemia fosse controlada. Reunido com Boll, famoso por suas péssimas adaptações sua família em um campo de sobreviventes ao para o cinema de jogos de videogame, feitas final, indica que a guerra contra os mortos- para pegar dinheiro de incentivos fiscais -vivos está apenas começando e que agora os e investidores, além da tentativa clara de humanos vivos têm uma vantagem. aproveitar da moda das obras de mortos-vi- Guerra Mundial Z é um filme ameri- vos, desrespeitando o público de forma mais cano e britânico lançado em 2013, dirigido clara ao escalar um ator de obra de sucesso por Marc Foster e estrelado e produzido e utilizar o nome do filme de Romero como por Brad Pitt, em sua atuação no cinema de chamarizes. A arte da capa do DVD, um zumbi maior sucesso financeiro e de público até o vomitando um jato amarelo-esverdeado com momento (2017). Adaptação livre do livro uma orelha, dedo e um globo ocular no meio de 2006, World War Z: An Oral History of the do vômito é a melhor e mais honesta síntese Zombie War de Max Brooks, autor também do do filme em uma única imagem. interessante The Zombie Survival Guide (2003),

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UMA ANTROPO-SOCIOLOGIA DE FILMES "NÃO RECOMENDÁVEIS"- PARTE II 46 Cronos: Revista da Pós-Grad. em Ciências Sociais, UFRN, Natal, v. 19, n. 2, jul./dez. 2018, ISSN 1982-5560 ZUMBIS, MORTOS-VIVOS, REDIVIVOS min, cor). Direção: Marc Forster. Roteiro: Matthew Michael Carnahan, Damon Lindelof. Produtora: Paramount Pictures, Plan B Entertainment, Skydance Productions, GK Films, Apparatus Productions, Hemisphere Media Capital, Latina Pictures. Distribuidora: Paramount Pictures.Elenco: Brad Pitt, Eric West, Matthew Fox, David Morse, James Badge Dale, Mireille Enos, David Andrews, Michiel Huisman, Julian Seager, Elyes Gabel.

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REFERÊNCIAS

GUERRA Mundial Z. Estamos Rodando. Disponível em: http:// cine.estamosrodando.com/peliculas/guerra-mundial-z/ficha- tecnica-ampliada/. Acesso em: 15 set. 2017.

GUERRA Mundial Z. Internet Movie Database. Disponível em: http://www.imdb.com/title/tt0816711/. Acesso em: 15 set. 2017.

DAY of the Dead (2008) Review. Love Horror. Disponível em: http://lovehorror.co.uk/zombies/day-of-the-dead-2008/. Acesso em: 18 ago. 2017.

WORLD War Z. Metacritic. Disponível em: http://www. metacritic.com/movie/world-war-z. Acesso em: 15 set. 2017.

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DAY of the Dead (2008). TV Tropes. Disponível em: http:// tvtropes.org/pmwiki/pmwiki.php/Film/DayOfTheDead2008. Acesso em: 18 ago. 2017.

UMA ANTROPO-SOCIOLOGIA DE FILMES "NÃO RECOMENDÁVEIS"- PARTE II 48 Cronos: Revista da Pós-Grad. em Ciências Sociais, UFRN, Natal, v. 19, n. 2, jul./dez. 2018, ISSN 1982-5560 DE GATAS ESCALDADAS E NINJAS ABORRECIDAS

ABOUT SCALDED CATS AND ANNOYING NINJAS

Gianfranco Marchi1

RESUMO weak, a far cry from Catwoman and Elektra’s character comic books roots. Esta análise aborda os aspectos negativos de dois filmes de super-heroínas realizados Keywords: Negative. Female. Superhero. antes da hegemonia dos Estúdios Marvel. Marvel. Sexism. Productions. Budgets. Aponta o sexismo das duas produções, que focam demasiadamente nos aspectos visuais Não há como dizer isso de maneira menos e não no conteúdo. O objetivo é criticar o fato ríspida: Mulher-gato (CATWOMAN, 2004) é de que, apesar dos orçamentos pomposos, o o pior filme de super-heróis já realizado. Na resultado final é fraco, muito longe das raízes verdade deve entrar na lista como uma das das histórias em quadrinhos das personagens superproduções hollywoodianas mais meque- Mulher-gato e Elektra. trefes de todos dos tempos, tendo causado à Halle Berry o constrangimento de ganhar Palavras-Chave: Negativo. Feminino. um Framboesa de Ouro de “pior atriz”, pouco Super-herói. Marvel. Sexismo. Produções. tempo depois de sua aclamada atuação em “A Orçamentos. Última Ceia” (MONSTER’S BALL, 2001), que lhe rendeu o Oscar de melhor atuação feminina. Mulher-gato, o filme, não retrata a sagaz anti-heroína dos quadrinhos da DC, ou ABSTRACT do segundo filme da franquia do homem-mor- cego, dirigida por Tim Burton. Nem mesmo se This review addresses the negative aspects of compara ao charme assumidamente camp da two female superhero films made before the personagem na série sessentista, interpretada hegemony of Marvel Studios. It points out por Julie Newmar e Eartha Kitt). Nas mãos do the sexism of both productions, focusing too francês Pitof (diretor até então com trabalhos much on visual aspects rather than content. apenas em efeitos visuais), “Mulher-gato” é It’s our aim to criticizes the fact that despite um novo tipo de felino: feio e deslocado. the pompous budgets, the end result is

1 Bacharel em Direito pela UFRN. Funcionário Público Estadual (TJ-RN). Membro do Cineclube Natal e ACCIRN (Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Norte). Cinéfilo inveterado, editou, escreveu e colaborou em diversos livros sobre cinema: Cenas Brasileiras (EDUFRN, 2009), 80 Cult Movies Essenciais (EDUFRN, 2010) e Sessão Dupla (EDUFRN, 2016). DE GATAS ESCALDADAS E NINJAS ABORRECIDAS

Sem qualquer ligação com a mitologia da York vazia e plasticizada para cometer furtos personagem, seja dos quadrinhos ou cinema, (afinal ela é uma gatuna, entendeu?) e ocasio- esta encarnação tem mais em comum com nalmente lutar contra “injustiças”, inclusive a história de origem retratada no excelente dos ex-patrões, tragicamente vividos por filme “O Corvo”, qual seja, pessoa inocente Lambert Wilson e Sharon Stone, que certa- morre injustamente e, por força de uma mente estavam precisando da grana desse entidade mística, volta à vida com poderes filme para pagar a hipoteca de alguma de sobrenaturais para executar sua vingança. suas mansões. Há de se dizer que a pobre Halle Berry Afora todos os erros já apontados fez tudo o que pôde para incrementar a massa (esperem que tem mais), certamente o maior disforme do roteiro. Entretanto, não obstante problema do filme é sua trama totalmente sua inegável presença de cena e admirável desprovida de lógica acerca dos vilões empre- entrega à proposta ridícula da personagem, o sariais que inventam o tal creme fatal, que filme falha miseravelmente em atingir qual- corrompe a pele humana com o uso contí- quer alvo que a se propõe: seja na ação, na nuo. Por algum motivo nunca explicado no sensualidade ou na comédia-pastelão. longa, o efeito do tal produto na cútis da Patience Phillips testa, como seu personagem de Sharon Stone é deixá-la mais próprio nome sugere, a paciência do espec- forte que o aço. Tudo no longa é apenas um tador desde sua introdução. Mulher insossa e pretexto para explorar a beleza antagônica apagada, funcionária de uma grande empresa e sexualidade das duas atrizes, que culmina de cosméticos, ao descobrir os efeitos colate- num constrangedor duelo final, com ângulos rais fatais da mais nova linha de produtos de de câmera vulgares e direito até a evidentes rejuvenescimento, finda assassinada por seus dublês masculinos, enfatizando o claro tom patrões vilanescos que, obviamente, querem sexista e fetichista da produção. esconder o terrível segredo do público. Claro que é interessante tentar novas Ressuscitada pelo bafo de um gato abordagens de personagens icônicos, espe- animado em CGI de quinta categoria, Patience cialmente em se tratando de uma que descobre suas novas habilidades felinas, debutou nos quadrinhos há mais de sessenta que incluem sensos aguçados, agilidade anos. Na verdade, uma releitura inventiva da sobre-humana e… beber leite. De um pires. Mulher-gato que mantivesse algumas de suas Sim. Mulher-gato deve ser o único filme da características básicas poderia ter funcio- longa história do cinema que conta com uma nado, em especial se incluísse uma discussão ganhadora do Oscar bebendo leite de quatro sobre diversidade racial e sexual, conside- e sibilando para cachorros na rua. rando a etnia de Halle Berry e os acenos à Depois dessas descobertas, inclusive fluidez sexual de Patience Philips. quanto a totalmente inventada história por Mas infelizmente o produto final é um trás do tal gato egípcio e sua ligação com as filme absolutamente vazio de substância, muitas mulheres-gato da história da huma- descartável, que beira o total ridículo. Não há nidade, Patience Philips decide costurar qualquer linha narrativa, apenas desculpas para uma roupinha sumária de couro (à altura do amontoar cenas de ação de uma personagem mau gosto da produção) e sai por uma Nova renderizada em CGI que parece de borracha,

UMA ANTROPO-SOCIOLOGIA DE FILMES "NÃO RECOMENDÁVEIS"- PARTE II 50 Cronos: Revista da Pós-Grad. em Ciências Sociais, UFRN, Natal, v. 19, n. 2, jul./dez. 2018, ISSN 1982-5560 DE GATAS ESCALDADAS E NINJAS ABORRECIDAS sem nenhuma sensação de peso ao pular de popularidade decorrente de ter protagoni- um prédio para outro. Há diversos jogos de zado a série Alias. Playstation 2 com modelos digitais mais convin- A recepção do longa-metragem do centes, inclusive. O uso excessivo do CGI se dá Demolidor, com Ben Affleck no papel titular, até mesmo em cenas totalmente desnecessárias, foi morna, tanto em termos de bilheteria como numa visão panorâmica de Nova York quanto de crítica. Entretanto um de seus (ainda bem que Gotham foi poupada), alienando inegáveis destaques foi a sólida perfor- o espectador de qualquer sensação de imersão mance da atriz Jennifer Garner no papel da na estória que Pitof quis contar. ninja vingativa Elektra Natchios, interesse Por fim, na falta de Batman – graças a romântico e eventual nêmesis do Demônio da Deus – a forçada subtrama romântica com Cozinha do Inferno. o personagem de Benjamin Bratt, o policial Em tese, a ideia do filme spin off fazia bonzinho, se mostra totalmente irrelevante todo sentido, tendo em conta a desenvol- e desinteressante, dada a evidente falta de tura de Garnes nas cenas de ação e inegável química entre os atores, que parecem querer carisma. O final cliffhanger de Demolidor, o rir de embaraço a cada cena mais picante. Homem sem Medo já abria as portas para essa Talvez a única contribuição relevante possibilidade, diante do desaparecimento do de Mulher-gato ao cinema é o fato de que corpo da ninja ao final do longa. muito dificilmente uma produção posterior Em Elektra, nos é porcamente expli- envolvendo super-heróis de quadrinhos seja cado que a personagem foi ressuscitada pelo tão dolorosamente ruim e desconectada misterioso Stick (Terence Stamp). Fortemente de sua fonte original. Bom, talvez Elektra treinada pelo sensei cego, descobrimos que (ELEKTRA, 2005), com Jennifer Garner. ela desenvolveu poderes sobrenaturais, entre E por falar em Elektra, lançado apenas eles ter visões do futuro. Incapaz de domar seu um ano depois de Mulher-gato, também com desejo de vingança pela morte de seu pai, Elektra a proposta de ser um filme de super-heroína se desvia de seu destino de guerreira honrada e spin off de franquias principais, enfatizamos se torna uma renomada assassina de aluguel. que a idiotice Hollywoodiana conseguiu, mais O filme inicia com Elektra envolta em uma vez, destruir totalmente outra querida sombras, perseguindo um homem fortemente personagem dos quadrinhos, desta vez da protegido por seguranças no que parece ser Casa das Ideias, a Marvel. um esconderijo. Ela se move furtivamente Há de se reconhecer que Elektra é pelas vigas do teto do local e quando se revela apenas um pouco melhor do que o famige- por inteiro, está de costas. Então a assassina rado Mulher-gato. Mas pouco mesmo e isso se vira em câmera lenta, nos dando a visão de não é necessariamente um elogio. Feito numa seus longos cabelos castanhos balançando ao era em que nem se sonhava com o padrão vento e de seus olhos marcantes pesadamente de filmes imposto pelos Estúdios Marvel maquiados. Tudo é filmado como se fosse um com o lançamento de Homem de Ferro, em comercial de shampoo para ninjas (“mate com 2008, Elektra foi concebido para ser apenas estilo e mantenha seu cabelo hidratado”). um produto caça-níquel derivado do filme A abertura dá o tom de todo o filme: Demolidor, o Homem sem Medo, de 2003, que muito estilo sem substância alguma. Tudo é explorasse a beleza de Jennifer Garner e sua

UMA ANTROPO-SOCIOLOGIA DE FILMES "NÃO RECOMENDÁVEIS"- PARTE II 51 Cronos: Revista da Pós-Grad. em Ciências Sociais, UFRN, Natal, v. 19, n. 2, jul./dez. 2018, ISSN 1982-5560 DE GATAS ESCALDADAS E NINJAS ABORRECIDAS filmado de modo que Jennifer Garner pareça Tudo no filme é tratado de modo solene, mais uma modelo da Victoria’s Secret do que como se o diretor achasse que está realmente uma mercenária mortal. apresentando alguma importante lição de Após esses eventos iniciais, Elektra é vida, aspecto que torna o longa involunta- contratada para assassinar o misterioso Mike riamente cômico e, eventualmente, muito (Goran Visnjic) e sua filha adolescente, Abby chato. É uma pena, vez que Jennifer Garder (Kirsten Prout). As coisas dão errado quando possui um inegável timing para a comédia, já Elektra decide abandonar sua missão e passa demonstrado em produções como o divertido a proteger a família, que lhe lembra de sua De Repente Trinta (13 Going on 30, 2004) e na própria tragédia, com a morte de seu pai, própria série Alias. trazendo para si a fúria de seus contratantes, A atuação de Garner aqui é vazia de um grupo de executivos asiáticos conhecidos expressão. Ela sofre. Sempre, a todo tempo. como “O Tentáculo” e seus capangas superpo- Mas não diz absolutamente nada. Sua afeição derosos, que incluem Tattoo, cujas tatuagens maternal pela menina que agora protege não de animais ganham vida com efeitos visuais é explorada de modo satisfatório no longa, duvidosos, e a gótica Typhoid, que possui em ou mesmo seus traumas passados. A produ- seus lábios um veneno mortal (que, verdade ção diz ao espectador a todo momento que seja dita, protagoniza um dos momentos mais Elektra é humana e não apenas uma “máquina interessantes do longa, o interlúdio lesbian de matar”, mas faz pouco em termos de chic entre a personagem e Elektra). desenvolvimento de personagem para nos Os antagonistas, entretanto, servem convencer disso. apenas para levar a suposta trama adiante, É difícil ver a ameaça que Elektra repre- inexistindo qualquer peso real em suas exis- senta aos seus inimigos quando luta com eles tências naquele universo. Se prestam apenas como se estivesse posando para uma revista a aparecerem e adornarem plasticamente de moda, sempre com o cabelo e roupa (sumá- o longa, pretextos para uso de CGI e lutas ria) impecáveis enquanto o banho de sangue obviamente coreografadas. plástico se desenrola na tela. Essa falta de Até a primeira metade do ano 2000, profundidade da personagem, em contraste adaptações cinematográficas de histórias em com suas origens nos quadrinhos, faz com quadrinho não eram conhecidas pela profun- que todos os pontos positivos da produção se didade de desenvolvimento de personagens evaporem em estilosa fumaça, como próprios ou plausibilidade. Elektra, certamente, não se vilões do “Tentáculo” por ela enfrentados. desvia dessa regra. Muito embora suas limi- Em suma, Elektra é bonitinha. Mas ordinária. tações como filme de mero entretenimento sejam previsíveis e, até certo ponto, aceitá- veis, a sua maior falha é a total ausência de senso de humor, vez que a produção se nega a abraçar e nutrir os aspectos cartunescos da protagonista e seus vilões, criando cenários risíveis quando a intenção era a de ser séria.

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REFERÊNCIAS

CATWOMAN. Direção: Pitof. Produção: Denise Di Novi, Edward L. McDonnell. EUA: Warner Bros. Pictures, c2004. DVD (104 min).

MONSTER’S BALL, Direção: Marc Forster. Produção: Lee Daniels. EUA: Lionsgate Films, c2001. DVD (111 min).

ELEKTRA. Direção: Rob Bowman. Produção: Avi Arad, Gary Foster Arnon, Milchan. EUA: 20th Century Fox. c2005. DVD (96 min).

13 GOING ON 30. Direção: Gary Winick. Produção:Susan Arnold, Donna Arkoff Roth, Gina Matthews, Todd Garner. EUA: Columbia Pictures. c2004. DVD (97 min).

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ABOUT THE PIONEERS: GENDER, WORK AND PREJUDICE IN THE MILITARY POLICE OF PARÁ

Máurea Mendes Leite1 Fernanda Valli Nummer2 Luiz Fernando Cardoso Cardoso3

RESUMO Palavras-Chave: Trabalho. Gênero. Polícia militar. Mulheres – emprego. Discriminação Esse artigo é um estudo de origem social e no emprego. da trajetória profissional das oficiais - poli ciais militares femininas e seu pioneirismo na profissão. Optou-se pela abordagem qualitativa de modo a identificar padrões ABSTRACT socioculturais e o saber adquirido pela vivên- cia, além das estratégias de sobrevivência, This article is a study of the social origins afirmação e autoproteção na carreira policial. and career paths of female policy officers Ouvindo seus relatos, percebe-se a herança and a pioneer professional. We opted for identificadora da instituição pelas agentes, a qualitative approach to identify socio- que mesmo na reserva preservam o habi- -cultural patterns and knowledge acquired tus adquirido ao vestir a farda. Percebeu-se by experience, beyond survival strategies, que as policiais sofrem violência quando affirmation and self-protection in the police são estigmatizadas como minoria, que seu career. Hearing their stories we see the legacy trabalho é relegado à esfera administrativa, of the institution by identifying agents, even não havendo reconhecimento de suas habili- in reserve preserve the habitus acquired dades, além ser percebido haver preconceito when wearing the uniform. It was noticed e discriminação pelas cotas de inserção e that the police are abused when they are stig- distribuição de cargos. matized as a minority, their work is relegated

1 Mestre em Defesa Social e Mediação de Conflitos pela UFPA, especialista em Defesa Social e Cidadania pela UFPA, Docente do Instituto de Ensino de Segurança do Pará. Capitão da Reserva da PMPA. 2 Socióloga. Doutora em Antropologia Social pela UFRGS. Professora da Faculdade de Ciências da Universidade Federal do Pará. 3 Pós-doutor em Antropologia Social - University of St. Andrews, Scotland – UK, Doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina, Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política – UFPA, Professor da Faculdade de Ciências da Universidade Federal do Pará. SOBRE AS PIONEIRAS to administrative, non-recognition of their escolaridade antiga 1º grau), quatro alunas skills, as well as prejudice and discrimination sargentos (antigo 2º grau) e três oficiais through quotas insertion and distribution alunas (nível superior), sendo que as dez positions. primeiras colocadas do curso de formação de soldado foram promovidas a cabo. Keywords: Work. Gender. Military policies. A base legal do ingresso feminino nas Employment of women. Discrimination in polícias militares no Brasil só se consolida em employment. 1984 (SOARES; MUSUMECI, 2004, p. 29), incor- porando-se as policiais femininas aos quadros regulares das PMs, nesse ano, com uma nova redação dada ao Decreto-lei Federal 667, de 2 de INTRODUÇÃO julho de 1969 - no estado do Pará, o início das atividades do grupamento de Polícia Feminino A Polícia Militar do Pará abriga, atual- data de fevereiro de 1982, quando o Governador mente em seus quadros, 1929 mulheres, 10% do Estado era o Cel. E.B. Alacid da Silva Nunes; do total do seu efetivo. As mulheres policiais seu decreto de criação é o de nº 2.030, de 15 de fazem parte do efetivo da PMPA desde 1982, Dezembro de 1981, que criou na Polícia Militar quando cinquenta e sete mulheres ingressa- do Pará, o Pelotão de Polícia Feminino, que ram na Corporação. Recorremos à fonte oral, buscava o ingresso de pessoal feminino em seus usando a fala de nove sujeitos dessa turma, efetivos de Oficiais e praças a fim de atender para reconstruir sua história, vinculando-a necessidades das respectivas Corporações em ao contexto histórico, um período de tran- atividades específicas, mediante autorização no sição entre a ditadura e o Movimento pelas Ministério do Exército. Eleições Diretas, buscando compreender as Em primeiro de fevereiro de 1982, esta expectativas, as representações e práticas turma foi coordenada pelo Coronel PM Roberto referentes a esse processo. Para tanto, foram Pessoa Campos-PMPA, pelos Tenentes Vera e realizados dois questionários e uma entre- Neuza, oriundas da Polícia Militar do Estado vista com oficiais femininas, pertencentes de São Paulo-PMESP e pelo Aspirante OF PM à primeira turma de mulheres da PMPA. Clementino Augusto Ruffeil Rodrigues-PMPA, Destaca-se que “Oficial” é a policial militar os quais foram responsáveis pela formação feminina, que faz parte do círculo hierárquico das quatro alunas sargentos e das cinquenta dos oficiais, podendo ter o posto de tenente, alunas soldados, durante três meses de curso Capitão, major, tenente-coronel e coronel; (fevereiro, março e abril/1982), no Centro ”Praça” é a policial feminina, que faz parte de Formação e Aperfeiçoamento de Praças- do círculo hierárquico dos “praças”: subte- CFAP, órgão de Ensino e Instrução da Polícia nentes, sargentos, cabos e soldados - as quais Militar do Pará-PMPA, com as três oficiais se encontram na Reserva Remunerada, após aprovadas no concurso para Oficial da PM, 25 anos de serviços prestados à instituição. sendo enviadas para a Academia de Polícia O Pará foi um dos estados em que a Militar do Barro Branco-PMESP e estagiado mulher teve acesso à Polícia Militar no início durante o mesmo período, já que ainda não da década de 1980, sendo admitida a primeira havia oficiais femininos no Pará. turma de cinquenta alunas soldados (com

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Na década de 1980 o país passa por Militar do Pará e na sociedade, uma instituição redemocratização, com eleições gerais, secular e predominantemente masculina. movimentos para DIRETAS JÁ e movimentos A cultura patriarcal atribuiu o princípio constitucionais. Com a Central Única dos masculino apenas ao homem, fazendo com Trabalhadores-CUT, a bandeira das mulheres que se julgasse o único detentor da racionali- ganhou mais visibilidade dentro do movi- dade, do mundo e da construção da sociedade. mento sindical. Com a comissão Nacional da A mulher até podia desempenhar um papel de Mulher Trabalhadora na CUT, as mulheres força e poder, mas sempre estava em segundo esperavam romper as inúmeras dificuldades plano, apoiando o homem (MURARO; BOFF, existentes na sociedade (COSTA, 1998). Nesse 2002). Tal relação de poder é denominada de sentido, a luta pela democratização das rela- androcêntrica. Já a força da ordem mascu- ções de gênero persistiu e com a Constituição lina pode ser aferida pelo fato de que ela não Federal de 1988 a mulher conquistou a precisa de justificação: a visão androcêntrica igualdade jurídica, destarte esta consagrou se impõe como neutra e não tem necessidade conquistas importantes no campo dos direitos de se anunciar, visando sua legitimação. da mulher, entre as quais cite-se o ingresso às Dessa forma, com a entrada das mulhe- instituições policiais. res nas instituições policiais, ocorre uma A revolução deste período no que se ruptura quanto à tradição da exclusividade refere às forças policiais, foi uma impor- masculina nos quartéis, mas com a chegada tante inovação na abordagem da questão de das mulheres ao espaço símbolo da mascu- gênero dentro do campo da segurança pública linidade, os quartéis, muitas coisas tiveram (SOARES; MUSUMECI, 2004, p. 183). Como que mudar, o espaço teve que ser dividido, resultado de reivindicações dos movimentos a abordagem à população foi suavizada, feministas são criadas, na Polícia Civil (a polícia o ambiente foi modificado para receber o judiciária, não uniformizada), delegacias espe- efetivo feminino. ciais para o atendimento a mulheres vítimas Essa distinção de forças entre homens de violência, prestado, sobretudo por policiais e mulheres, são exigências que por muitas femininas, o que leva também à ampliação do vezes servem para selecionar ou excluir, atra- espaço de atuação profissional para as mulhe- vés de critérios oficiais, mascarando, assim, res no interior dessa força policial. o que não pode ser enunciado formalmente. Com o processo de redemocratização Logo, essa mascaração não deixa de ser uma pós-ditadura, onde se quis retirar a imagem forma de poder: do Policial Militar como mero aplicador da força física e com a mudança do status político As relações de poder são intencionais e objetivas, se produzem a cada instante e social do estado, e as transformações sociais em rede, em todos os lugares, ou melhor, que provocaram o aumento de atividades em toda relação, inclusive nas relações executadas pela mulher, mudaram também de gênero, e “esse poder não se dá, não os objetivos desta ao ingressar na carreira se troca, mas se exerce em ação” numa correlação de forças em que se utilizam policial, as formas de execução do trabalho técnicas de saber, estratégias de poder e feminino e também a maneira como a mulher é procedimentos discursivos. (FOUCAULT, percebida na cultura organizacional da Polícia 1977, p. 175).

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Tem-se, então, que a inserção femi- Brasil, ocorreu de forma gradativa e acompanhou as mudanças ocorridas na nina na Corporação se dá em conjunto com sociedade brasileira nestas últimas déca- outras ações, com a mulher inicialmente das instituições, que necessitavam de um servindo como modelo de relações públicas, efetivo mais “qualificado” para atender propagando a ideia de uma Polícia Moderna, as ocorrências que os homens sentiam- -se pouco à vontade em atuarem, como vinculada com as mudanças sociais e políticas. nas ocorrências envolvendo crianças, Nas instituições policiais, a inserção de mulheres e idosos. mulheres veio acompanhada de um ideal de uma polícia de aproximação, de ampliação A própria evolução do trabalho de e especialização, dando a ideia de um novo segurança pública e o surgimento de novas modelo de polícia, apesar de isto não signi- concepções, associadas à crescente femini- ficar reforma ou modificação da instituição. zação do mercado de trabalho, formará no Guardadas as devidas proporções e as imaginário dos gestores de segurança pública diferenças regionais, percebe-se similitude e da população a suposição da existência na inclusão de mulheres nas instituições. de um novo lugar para a policial feminina Inicialmente, a presença de mulheres na (CAPELLE; MELO, 2010). corporação se concretizou como um grupo Seguindo as orientações teóricas de separado, servindo de apoio às outras unida- Dubar (1998, 2005) ordenamos e interpreta- des operacionais com um efetivo até então mos a mobilidade das policiais entrevistadas exclusivamente masculino (NUMMER, 2005). dentro da corporação desde a escola inicial Esse momento de inserção das mulheres até a última promoção alcançada. Para enten- no espaço público policial coincide com a dê-la, dividimos as trajetórias em subjetivas e entrada de mulheres também na política, objetivas. O resultado mostra similaridade de direcionando esferas de liderança e adminis- elementos tais como idade e tempo de serviço tração, ocupando um novo espaço, no qual é como fatores promocionais, mas ausência priorizado o desenvolvimento de estruturas de valorização de suas competências, inte- horizontais e trabalho em equipe e onde as ligência, agilidade, iniciativa, e força física decisões são democratizadas. adequada a ocorrências. Das entrevistadas, Nesse sentido, a PMPA buscou a inser- 8 entre 11 das pesquisadas, manifestaram ção feminina nas suas fileiras, e o discurso era a representação social do gênero feminino que a mulher, devido a sua natureza, forta- como frágil e que requer proteção. leceria a imagem da Polícia Militar, pois a mulher, segundo estas representações sociais correntes, teria aptidão “natural” de cuidar, amparar, servir e proteger a comunidade de UM OLHAR NO PASSADO: O forma diferenciada, com amabilidade, suti- INGRESSO DE MULHERES NA leza, e afeto. POLÍCIA Em relação a esta temática, Xavier (2008, p. 12) afirma: Não se pode deixar de considerar que, durante muito tempo, as mulheres foram [...] A incorporação das mulheres aceitas no mercado de trabalho apenas para nos quadros das polícias militares no

UMA ANTROPO-SOCIOLOGIA DE FILMES "NÃO RECOMENDÁVEIS"- PARTE II 57 Cronos: Revista da Pós-Grad. em Ciências Sociais, UFRN, Natal, v. 19, n. 2, jul./dez. 2018, ISSN 1982-5560 SOBRE AS PIONEIRAS exercerem profissões, cujas funções estavam Quanto ao ingresso da policial femi- relacionadas àquelas que lhes atribuíram nina nas corporações militares, num primeiro socialmente. Especificamente em relação à momento é possível afirmar que a pretensão polícia, é possível afirmar que não são regis- era que a mulher assumisse alguns campos de tradas grandes diferenças em relação às policiamento, nos quais o homem encontrava demais instituições, quando o assunto é a dificuldades, tais como lidar com as minorias; distribuição das mulheres na hierarquia dos mulheres, crianças, idosos etc., haja vista a cargos policiais e nos postos de comando abertura democrática vivida na época pelo (BITTENCOURT, 2010). país. Esse fato se dá em plena crise das polícias. Percebe-se que a condição feminina é Num segundo momento, podem-se o elemento norteador das relações sociais de vislumbrar outros objetivos, como o de trabalho das oficiais paraenses, sendo fator tentar humanizar as Polícias, melhorando de orientação da sua trajetória profissional. O sua imagem social, haja vista o comprome- processo de inserção da mulher na polícia no timento da imagem da instituição, vinculada mundo guarda alguns aspectos, sendo o mais à ditadura como força auxiliar do Exército importante - o contexto do recrutamento de (SOARES; MUSUMECI, 2005). Até então, as mulheres, vinculado, na Europa, a momentos ações policiais eram vistas pela sociedade de crise das forças policiais, por exemplo, como violentas, ligadas à força bruta utilizada deslocamento do efetivo masculino em perío- contra grupos minoritários como negros, dos de guerra, ou crises de credibilidade, com mulheres e homossexuais. forte deterioração da imagem pública das A permanência da mulher nas institui- polícias (CALAZANS, 2003). ções militares foi justificada pelo argumento A aceitação feminina na esfera pública de que o treinamento oferecido pelas escolas policial não foi tão fácil. Durante muitos de formação orientou os policiais a reduzi- anos, visualizou-se na força física, um item rem o uso da força bruta, substituindo-a por fundamental para ser um policial militar, técnicas eficientes de contenção e defesa. isso ocorria devido à formação militar tradi- Isto possibilitou à mulher a não exclusão das cional. O uso da força bruta era um modelo de atividades mais vigorosas, argumentos utili- demonstração de sua Capacidade na profis- zados por “policiais da antiga”, o que deixava são. Dessa forma, quanto à imagem ideal da as mulheres em desvantagem. corporação que se tende a passar, alguns Na polícia militar essas conquistas se autores citam o preconceito existente contra deram e dão de forma lenta. A posição que as mulheres e sua função nas instituições. A a mulher assume atualmente, ainda, é um partir da leitura de Nummer (2010), sobre reflexo de sua posição no passado. Nãoé a representação corrente na instituição de possível perceber grandes mudanças, apesar que o homem é melhor para o policiamento dos trinta anos de inserção, ainda há subapro- ostensivo e a mulher para o administrativo, veitamento nas unidades, onde a maioria é pode-se inferir que as mulheres concentra- relegada às funções burocráticas, nenhum ram mais sua agency em resistir aos tabus oficial superior feminino no Estado maior e internos de gênero do que na busca de poder. em comando de unidades operacionais. Além disso, persistem as cotas para inserção, onde

UMA ANTROPO-SOCIOLOGIA DE FILMES "NÃO RECOMENDÁVEIS"- PARTE II 58 Cronos: Revista da Pós-Grad. em Ciências Sociais, UFRN, Natal, v. 19, n. 2, jul./dez. 2018, ISSN 1982-5560 SOBRE AS PIONEIRAS o ingresso de mulheres se dá na forma de 10% O Pelotão de Polícia Feminina foi apresen- (dez por cento). tado à sociedade paraense em 1º de fevereiro De acordo com os resultados da de 1982. Após a formatura, foi alocado em pesquisa o novo status de policial feminina uma casa simples, na Av. Almirante Barroso, proporcionou às “novatas”: credibilidade, no bairro do Marco, adaptada para servir de respeitabilidade, visibilidade e um lugar quartel e abrigar as 57 integrantes. A casa dentro da sociedade que não poderia ser possuía sete dependências, convertidas em obtido em outra instituição devido à sua baixa salas que abrigavam as seções – Armamento escolaridade e aos seus incipientes contatos de Munição/Almoxarifado, Sargenteação, sociais. Esse esforço para adquirir uma iden- Comando, Subcomando, um espaço livre para tidade pessoal e profissional implicou em as formaturas matinais, e dois alojamentos, adequar-se às normas rígidas da instituição, para o descanso de quem estivesse de serviço. em submeterem-se a sacrifícios pessoais, ou Era vedada ao público masculino a perma- adequar-se a “normas militares” tais como: nência nas dependências deste quartel, salvo usar cabelo curto estilo “Joãozinho” durante o coordenador do pelotão, oficial responsável oito anos seguidos; não poder engravidar pela formação do pelotão feminino, além da sendo solteira; não poder relacionar-se com guarda masculina, responsável pela segu- pessoa “inadequada”; não poder casar sem rança do prédio no período noturno. autorização nem fazer casamento endógeno - O dia a dia das policiais iniciava com Endogamia diz respeito às relações amorosas a formatura matinal, realizada às 07h00 de intra e entre círculos na estrutura interna da onde era distribuído o policiamento que se corporação (CALAZANS, 2004). Casamentos concentrava no Belo Centro, antiga zona endógenos envolvem praças X praças, oficiais comercial, PM-Boxes nas praças Batista X oficiais, praças X oficiais - cuja pena pode Campos e da República, aeroporto e Terminal ser demissão e/ou licenciamento (a pedido), Rodoviário, todos localizados na cidade de como ocorreu mais de uma vez. Era vedado às Belém. O almoço era servido a partir das policiais femininas relacionar-se com alguém 12h00, seguido de um período de descanso, fora do seu círculo hierárquico – sargentos só e a partir das 14h00 reiniciava o segundo poderiam ter relações afetivas com sargen- turno de trabalho até às 18h30, com o efetivo tos e subtenentes, soldados femininos com seguindo para suas residências. soldados e cabos femininos, oficiais femi- Segundo dados coletados em campo, o ninos com oficiais masculinos etc., assim, efetivo atual da Polícia Militar do Pará é de aquelas que insistiam nos relacionamen- 20.903 policiais, sendo 14.060 em atividade tos fora do padrão, eram obrigadas a pedir e, deste montante, 1.929 são mulheres. Desse licenciamento da corporação, deixando seus efetivo, 87 oficiais compõem o quadro de empregos, fazendo com que os casamentos oficiais combatentes. Nos concursos, quando entre militares ocorressem somente entre são oferecidas cinquenta vagas para soldado, pares; usar maquiagem “adequada”, enfim, 10% dessas vagas são destinadas às mulheres; normas que buscavam “domar” os corpos de no caso dos Cursos de Formação de Oficiais, modo a favorecer os interesses da organiza- igualmente ao curso de soldados, também ção (FOUCAULT, 1977).

UMA ANTROPO-SOCIOLOGIA DE FILMES "NÃO RECOMENDÁVEIS"- PARTE II 59 Cronos: Revista da Pós-Grad. em Ciências Sociais, UFRN, Natal, v. 19, n. 2, jul./dez. 2018, ISSN 1982-5560 SOBRE AS PIONEIRAS são ofertadas 10% das cinquenta vagas para o A origem das agentes de segurança público feminino. pública no Pará da PMPA na primeira turma Nestas cinco décadas de contribuição é basicamente a mesma de suas correspon- ao mundo do trabalho à sociedade brasileira, dentes nas polícias brasileiras: classes sociais as policiais femininas são uma porcentagem de baixa renda, pouca escolaridade, ascenden- de apenas 10% do efetivo total de policiais tes sem profissão estabelecida, cujos ofícios: no Brasil, realidade que se repete no estado mecânicos, marítimos, lavradores, motoristas do Pará. Percebe-se que o efetivo feminino prescindiram de cursos formais de instrução. encontra-se reduzido, provocando dificulda- Salvo poucas exceções, é de maioria branca, des à policial feminina de alçar um nível mais oriunda da Capital do estado, Belém, tem em alto em escalões hierárquicos, os quais lhe média 53 anos, divorciada e de poucos filhos. conduziriam ao topo da carreira policial, aos Em relação aos seus casamentos, principal- postos de comando. Notam-se, também, algu- mente aqueles realizados entre militares, as mas dificuldades no que tange a postos de falas das entrevistadas deixam evidenciado trabalho, ficando a mulher relegada, muitas que eram relações harmoniosas pessoal e vezes, à área administrativa. profissionalmente ainda que os casamentos As entrevistadas, quando questionadas não tivessem a durabilidade desejada: das sobre à motivação para ingressar na institui- entrevistadas, quatro foram casadas com mili- ção, seis declararam ser pela necessidade e tares, sendo três (3) policiais e um bombeiro. apenas três, pela vontade. Necessidade pelo Permaneceram casadas uma média de quatro fato da maioria ser pertencente à classes anos. Atualmente, somente duas são casadas, populares e desejar um emprego e ganhar com o policial e o bombeiro. Nas falas para dinheiro para a sua própria sobrevivência, explicitar a razão para a dissolução de seus e vontade pelo fato de ser um campo novo, relacionamentos, declaram não saber explicar, uma profissão diferenciada e que oportuniza- só que a vida em comum tornou-se inviável ria experiências novas. por causas dos conflitos e foi melhor separar. É correto citar que as informações Instadas a responder se culpavam a institui- acerca da “nova” profissão eram escassas, ção pelo fracasso dos seus relacionamentos, pois até então somente as PMs de São Paulo, negaram o fato apesar de muitas vezes suas Minas Gerais e Paraná detinham mulheres escalas de serviço divergirem das escalas de em seus efetivos. Desta forma, não havia, seus companheiros, provocando desencon- pelo menos para a maioria (8 entrevistadas), tros, mas ainda assim não relacionam seus um exemplo com que se identificar e muito problemas conjugais e consequentes separa- menos projetar expectativas, com exceção ções à sua atividade laboral. das três oficiais alunas, que ingressaram com a patente definida (2º Tenente) e tiveram a O casamento com militares, por outro lado, facilitava nossa integração com a tropa, oportunidade de estagiar em outra institui- pois através dele, podíamos nos relacio- ção, a de São Paulo-PMESP, onde passaram nar com os amigos do marido, o que não por um estágio, antes de assumirem suas ocorreria se fôssemos solteiras, criando funções na instituição paraense. oportunidades para forjar maiores laços com a comunidade miliciana. Nos primór- dios da criação da Companhia feminina,

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os relacionamentos eram limitados aos Odivelas, municípios paraenses). A maioria locais de trabalho, não havia estímulo para que ninguém se encontrasse fora dos (7) é oriunda das regiões periféricas de Belém, postos (Ten. NEUZA, 51 anos). principalmente dos bairros Guamá, Marituba, Jurunas, Cidade Nova. Atualmente residem Para justificar seu atual estado civil, três na cidade de Belém (7) em bairros periféricos: solteiras e quatro divorciadas opinam ser por Pedreira, Condor, Marco, Souza, Coqueiro, e três razões: inicialmente, por causa do salário, duas (2) residem no interior o estado do Pará. pois reconhecem sua condição de bem remu- As pesquisadas frequentaram a escola e neradas, e com as novas regras do Código Civil, algumas famílias eram numerosas (5) e apesar não querem se arriscar a ter que pensionar das dificuldades toda a família conseguiu alguém em caso de separação; em segundo, concluir os estudos, inclusive as que vieram acham que a oferta masculina ficou mais do interior (2). Seus irmãos terminaram o escassa após a ida para a Reserva Remunerada ensino médio e alguns têm graduação (3): - a passagem para a reserva remunerada Direito, Economia, Ciências Contábeis. Quase (aposentadoria) das mulheres policiais pode todas as famílias (7) residiam em bairros peri- ocorrer após o cumprimento de 25 anos de féricos da área metropolitana de Belém, com efetivo serviço, ou seja, era mais fácil namorar 2 exceções (bairro do Marco, considerado alguém da caserna, e finalmente, sua idade classe média), nos quais, apesar da mudança limita um pouco suas escolhas. de status, permanecem até os dias de hoje. As rendas dessas famílias, quase todas Ser casada com um PM significa viver da classe C, com 2 exceções (consideradas num mundo à parte: Se por um lado significa melhor aceitação às normas, classe média), eram oriundas de trabalho uma maior motivação para estar na remunerado, principalmente dos pais, que organização com um companheiro que eram todos alfabetizados, marítimos (2), te apoia e compreende, te possibilitando mecânicos (2) e motoristas (1). Quanto à entender melhor a Organização e seus critérios, por outro lado, te leva para cada profissão dos ascendentes, observou-se que vez mais longe de outras possibilidades as avós são todas oriundas do lar; os avôs de emprego, pelo lado profissional, pois praticaram diversos ofícios: agricultores, um policial militar “compreende melhor mecânicos, marítimos, lavradores; os pais as necessidades do trabalho no quartel, ao passo que estar casada com um civil eram marítimos, mecânicos, técnicos, moto- reduz tuas possibilidades de crescimento ristas, torneiros-mecânicos; as mães quase na carreira, pois és, a todo o momento, na sua totalidade eram/são do lar, com uma confrontada com os horários mais esta- exceção, costureira. pafúrdios nem sempre entendidos por teu companheiro. (Ten. SÔNIA, 53 anos). Em relação à faixa etária, a média das policiais aposentadas é de 52 anos; as mais jovens, duas Capitãs de 51 anos (que ingressa- Em se tratando de moradia, percebe-se ram na PMPA aos 18 anos) e a mais velha, uma que a maioria, seis das policiais, reside em tenente-coronel de 56. Todas ingressaram na área urbana, na Capital do estado, com apenas PMPA em 1982, a primeira turma de policiais três (3) residindo no interior do estado, em femininas paraenses, conforme o Decreto nº área rural (Barcarena, Ourém, S. Caetano de 2.030, DE 15 DE DEZEMBRO DE 1981.

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Belém é o local de nascimento da maio- se observa mudanças nesse status durante a ria (7), com duas policiais descendentes do vida na caserna. interior, dos municípios de S. Caetano de Quanto ao quesito escolaridade das poli- Odivelas/PA e Acará/PA, respectivamente; ciais: uma tem pós-graduação (Cap. Rosilene Quanto ao estado civil, três são solteiras, - Mestrado em Ciência do Desporto); duas têm quatro divorciadas - (sendo duas ex-mulheres curso superior completo (TCel Izanete –Serviço de militares) e duas casadas (com militares, Social, Cap. Sandra - Pedagogia); duas têm C. sargentos PM e BM), confirmando a premissa Superior Incompleto (Cap. Ailsi- Economia/ que a entrada das mulheres na polícia refor- Ten. Sônia-Letras) e as demais (4) o ensino çou a possibilidade de casamento endógeno, médio. Percebe-se, também, que o status quo policial com policial, estabelecendo relações não foi modificado mesmo após a ida para a que transcendem a relação profissional, um Reserva Remunerada, pois apenas uma Capitã fato bastante acentuado na instituição. (Rosilene), possuidora de Pós-graduação stricto No que concerne à família atual, sensu, obteve o título após a reserva remu- percebe-se que todas residem com a famí- nerada, as demais permanecem na mesma lia (marido, filhos e netos). No quesito situação escolar de quando trabalhavam. filhos, seis das pesquisadas têm filhos que Diferente dos demais policiais, em possuem o curso superior, duas têm filhos maioria, que até poderiam passar desper- que concluíram o ensino médio e uma tem cebidos, devido ao volume do seu efetivo, filho cursando o ensino fundamental. É inte- as policiais femininas, recém-chegadas à ressante observar que nenhum dos filhos das sociedade paraense eram apenas 57 e, além entrevistadas seguiu a profissão das mães, de ser a menina dos olhos da Corporação, o não se confirmando a hipótese “consolida- embrião de uma nova experiência, tinham ção da identidade/reprodução dos sistemas” suas atitudes constantemente monitoradas (DUBAR, 2005, p.125). De fato, o futuro desses pela sociedade civil e, principalmente pela descendentes (19=10 homens, 9 mulheres) comunidade miliciana. não se relaciona à formação de suas mães/ Estas afirmações reforçam a ideia de pais: alguns (dois) são universitários ou que as policiais constituíram um habitus graduados (8), estando a maioria (9) cursando pelas origens sociais, Capital social e simbó- o Ensino Médio. Percebe-se que os estilos de lico associados à profissão, de forma a seguir vida das entrevistadas não foram reforçados um comportamento considerado ideal pela pela socialização profissional. No quesito Corporação, um modelo aprendido durante 25 maternidade percebe-se que nenhum dos anos, o qual não foi esquecido, nem durante filhos das entrevistadas seguiu a profissão sua passagem para a Reserva Remunerada. das mães apesar do apelo das normas milita- Ser policial feminino se constituiu numa res e de sua reprodução nos lares dos sujeitos nova forma de identidade profissional criada da pesquisa, como o autoritarismo e o rigor dentro da Polícia Militar do Pará. na criação dos filhos. A religião evangélica predomina nas famílias das entrevistadas (5), sendo quatro católicas, dando-se o mesmo nas famílias, não

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CAMINHAR NO PRESENTE: concurso interno, ingressam no Curso de VIVÊNCIAS E TRAJETÓRIAS Habilitação de Oficiais (CHO), onde passam a fazer parte do círculo de oficiais na qualidade Após “adequar-se” à realidade da de Oficiais de Administração. Em relação à sua caserna, dada a sua Capacidade de adapta- mobilidade, chegaram aos postos de comando ção, flexibilidade e afetividade, as mulheres através de nomeações. Após o término do CHO, contribuíram para a melhoria da imagem da foram classificadas em unidades da Capital (7) Polícia Militar, enquanto organização. Ao e do interior (1), onde passaram a exercer as contrário do que muitos especialistas supu- funções de Almoxarife, Chefe da Reserva de seram, quando acharam que haveria uma Armamento e Aprovisionadora. feminização da Polícia, a realidade dos quar- As instituições militares possuem uma téis é bem diferente. identidade marcante, nas quais a disciplina e Atualmente, as mulheres continuam as a hierarquia são as bases para a formação dos mesmas funções do passado, serviço admi- sujeitos que delas fazem parte. Fidelizando nistrativo e pouca relevância nas unidades modelar os indivíduos a fim de que se adéquem operacionais. Apesar de não saber o que espe- ao perfil exigido pela instituição, institui-se rar por ocasião de sua inserção, em 1982, o um modelo marcial de comportamento, o qual processo de construção social contínuo a que deve ser obedecido sem questionamento sob foram submetidas às milicianas paraenses, pena de ser considerado inadequado à corpo- lhes instou a desejar mais, apesar da cons- ração. Foucault (1977, p. 207) se reporta a esse tante massificação dos valores masculinos, da modelo como disciplinador, visando domar os disciplina e dos meios totalizantes das rela- corpos recalcitrantes, cujo objetivo é ções de trabalho. A maioria (sete) das entrevistadas não exercer sobre eles uma pressão cons- tante, para que se submetam todos ao exercia nenhuma profissão antes de ingressar na mesmo modelo, para que sejam obri- instituição militar, com três exceções: (a tenen- gados todos juntos ‘à subordinação, à te-coronel) exercendo a profissão de assistente docilidade, à atenção nos estudos e nos social; uma exercendo a profissão de comerciá- exercícios, e à exata prática dos deveres e de todas as partes da disciplina’ para ria na zona comercial de Belém e uma exercia o que, todos, se pareçam. ofício de babá, trabalhando informalmente. A trajetória profissional de oito delas inicia com o ingresso no curso de aluna soldado, Desse modo, a docilização aplicada ao com exceção da 1ª Comandante, na ocasião 2º longo de 25 anos, proporcionou uma acomo- Tenente (1), que ingressou como oficial aluna, dação às policiais femininas paraenses, pois por possuir o curso superior (Serviço Social); se de um lado lhes garantiu o acesso à valo- trabalhou em empresas públicas e privadas. rização profissional, à sociedade e à própria Após o Curso de Formação de soldados (CFSd valorização como pessoa humana indepen- Fem), cursado numa turma exclusiva- pros- dente, por outro lado, lhe descaracterizou as seguem no Curso de Formação de Sargentos potencialidades, homogeneizando suas atitu- (CFS) e posteriormente a um período de des de modo a lhe permitir a sobrevivência interstício (cerca de dez anos) -, e mediante dentro da organização militar. Este processo

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UMA ANTROPO-SOCIOLOGIA DE FILMES "NÃO RECOMENDÁVEIS"- PARTE II 64 Cronos: Revista da Pós-Grad. em Ciências Sociais, UFRN, Natal, v. 19, n. 2, jul./dez. 2018, ISSN 1982-5560 SOBRE AS PIONEIRAS aspecto mais operacional da área metropoli- patrulhamento ostensivo a pé era realizado tana de Belém. em duplas (masculino e feminino), denomi- Para todas as entrevistadas, estar na nado “Romeu e Julieta”, na área comercial área administrativa é estar na obscuridade, de Belém. As relações de amizade aos poucos mesmo quando se exerce uma função de foram sendo ajustadas conforme os policiais comando, como almoxarife, chefe da Reserva masculinos se acostumavam com a presença de Armamento ou aprovisionadora, destarte da mulher nos quartéis, forjando outro estas áreas serem imprescindíveis na execu- modelo de companheirismo - masculino X ção do policiamento, pois, para policiar feminino, no qual as mulheres eram protegi- necessitam de coletes balísticos, armamento, das de missões mais árduas e acompanhadas uniforme, alimento etc. “Gostava da rua nas missões mais perigosas. Nesse aspecto era porque o policiamento nos trazia conheci- saudável a relação com graduados; respeitosa mento, éramos vistas, fazíamos amizades e distanciada com os oficiais, pois não fora com várias pessoas e sabíamos quem eram encorajada durante os cursos de formação, os delinquentes da área que trabalhávamos” se apresentava, ainda, diversa dos mode- (Ten. BERNADETH, 53 anos). los atuais onde há um maior convívio entre As lembranças dos cursos de forma- oficiais e praças. ção para todas são boas: companheirismo, competição por antiguidade, muita instru- ção, trabalho em equipe. As lembranças dessa época são de disciplina rígida e a maior VISLUMBRANDO O FUTURO: dificuldade se traduz no cumprimento de PERCEPÇÕES DAS MULHERES normas, na adequação ao mundo masculino e POLICIAIS na saudade da família. Então, a formação era mais voltada ao modelo militar, com ênfase Para a maioria das entrevistas, que na doutrinação, na hierarquia e na disciplina, ingressaram na instituição como praça, a diferente do modelo atual, mais voltado às própria cultura organizacional se encarregou técnicas de polícia. Para se adequarem ao de dar grande significado a essa mudança de rigor do “ser policial”, as mulheres supor- status para oficiais. Esta modificação não foi taram uma longa e árdua aprendizagem só financeira, mas também social. Para a tropa marcada pela violência e sacrifícios pessoais há uma distância considerável entre praças e (CALAZANS, 2004). oficiais, entre os comandos e os executores. De acordo com os relatos a própria A maioria tinha por meta o oficialato e esta relação com os companheiros de instituição mudança provocou mudança no mecanismo era difícil, truncada. Uns por se sentirem da instituição, mesmo que parecessem insig- ameaçados pela presença das mulheres e o nificantes, já que houve a permanência nos risco de serem suplantados em suas missões mesmos bairros de origem da família, na reli- de trabalho, já que as mulheres possuíam gião, na escolaridade. A ascensão na carreira maior escolaridade; outros pelo desejo de possibilitou novos ganhos, principalmente maior familiaridade e aproximação, fato simbólicos como poder de barganha, escolha que incomodava seus cônjuges, que se de locais onde servir, principalmente o inte- sentiam inseguras com o modelo “misto” - o rior, possibilidade de fazer uma faculdade

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pois sempre valorizei mais o ser humano cargas de trabalho excessivas, desvalorização, que a profissão, talvez pela minha formação acadêmica, pois penso que a com a realidade ganhando outros contornos valorização humana faz o sujeito crescer e os problemas inerentes às relações entre em todos os aspectos, apesar de ter sido postos hierárquicos emergindo. O que antes criticada algumas vezes e até taxada de era “justo” passa a ter outro sentido etc. Ao mãezona. (Ten-Cel IZANETE, 56 anos). contrário, conforme demonstrado em algu- mas narrativas vistas a posteriori, o período Questionadas a respeito da possibi- de idealização, para a maioria das policiais lidade de modificar suas histórias de vida, femininas, não acabou, pois mesmo após são unânimes em responder que não teriam a passagem para a Reserva Remunerada, o mudado nada, ratificando a ideia da maioria discurso militarista e totalitário, presente quanto ao ganho social e o Capital simbólico durante toda a vida na caserna, continua no adquirido com a profissão: “Se tivesse que ideário das policiais entrevistadas. recomeçar minha vida daria mais atenção aos Este sistema foi reproduzido durante 25 praças que são o cartão de apresentação da anos, de forma pedagógica, durante o tempo PM; olharia para a minha profissão com mais em que tivemos em contato direto com na atenção” (Cap. SANDRA, 50 anos).“Tenho instituição, uma forma de violência simbó- muito orgulho de ser policial militar, agra- lica, cujo objetivo era impor um conjunto deço a Deus e à minha família, que me deu de significações identificadoras da cultura muito apoio” (Cap. AILSI, 55 anos). daqueles que a praticam e a mantém e que se Percebe-se, desta forma, que as falas mantinha, através da vigilância, uma forma são basicamente as mesmas, apesar dos anos de tecnologia de poder, incidindo sobre transcorridos após o ingresso para a reserva nossos corpos, controlando nossos gestos, remunerada. Percebe-se, ainda, na sua totali- nossa atividade, nossa vida cotidiana. dade, a herança identificadora da instituição. Para todos os sujeitos da pesquisa, ser Ao ingressarem na instituição, “descons- policial militar é ter autoridade, o respeito truíram-se” como pessoas, “construindo-se” das pessoas, é poder ajudar a sociedade, dimi- como novos seres sociais, incorporados de nuir as injustiças, ser feliz tendo um emprego outros habitus ao vestir a farda. Segundo Lima sólido, poder construir uma carreira promis- (2002), este entusiasmo é comum nas candi- sora, sair da obscuridade, pertencer a um datas recém-incorporadas. Pois a profissão grupo, ser reconhecido pela sociedade. militar é carregada de simbolismo e mani- pula isso de forma muito intensa por meio do [...] Mudou radicalmente minha vida, conquistei coisas materiais que se não esti- uniforme, das insígnias e das atitudes que são vesse na PM não conseguiria – minha casa, resultado de várias gerações de militares e criar meus filhos adotivos, dar conforto aos todas trazem em si uma carga de significados meus familiares, pai, mãe, conhecimento muito forte que, inconscientemente, afetam profissional, ser reconhecida na institui- ção. (Ten BERNADETH, 53 anos). o imaginário dos neófitos. Quanto às da Reserva, o natural seria o desencantamento natural com a profis- Quanto à questão de ser PM pioneira são, após anos de embate com preconceitos, na PMPA, sete delas se declararam felizes

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Esta parcela de entrevistadas não reco- administrativa. Nesse particular, os sujeitos nhece ter sido explorada no trabalho. Para que participaram da pesquisa apontam uma elas, o tempo do seu ingresso era de uma trajetória profissional sem perspectivas de época diferenciada onde todas lutavam pela ocupação de funções hierárquicas superiores, sobrevivência, quer buscando por uma vaga com ocorrência de inexpressiva quantidade. num mercado de trabalho inexplorado, quer Ser mulher nas instituições militares, lutando para ser reconhecida na própria ainda é algo anormal, pois a dominação mascu- comunidade se auto afirmando e reivindi- lina tenta, de certa forma, calar os corpos cando um lugar na sociedade. femininos. Esse preconceito deturpador, velado Atualmente pode-se dizer que as e plenamente machista reflete diretamente na entrevistadas, sem exceção, encontram-se construção da identidade da policial militar. O satisfeitas com sua condição de aposentadas. termo “identidade” é aqui empregado na forma Para todas, estar na Reserva Remunerada é de identidades profissionais, centradas nas rela- ter cumprido um papel, realizado um sonho ções entre o mundo da formação e o mundo do mesmo que este não tenha sido seu primeiro trabalho ou do emprego. Trata-se, também, de objetivo, apesar de tudo, ter tido uma carreira identidades sociais, exatamente na medida em bem sucedida compensou as agruras de tempos que, num dado sistema social, a posição social, difíceis, conflituosos. A sensação atual é a de a riqueza, o status e/ou prestígio dependem dever cumprido, principalmente por terem do nível deformação, da situação de emprego alcançado o que almejavam – o oficialato. e das posições no mundo do trabalho. Isto se Por estas falas é perceptível a modela- reflete na permissão da invasão das mulheres gem estabelecida, a docilização aplicada não nos espaços onde a masculinidade era símbolo se diluiu mesmo após tanto tempo de apli- maior, pois se permitiu que as mulheres se cada. Os corpos foram domados de tal modo apropriassem e reconstruíssem esse espaço da que não se aperceberam da sua condição, não forma delas, ou seja, ao criar uma instituição de há espaço para a rebeldia. O militarismo e mulheres dentro da instituição de homens acei- suas divisões hierárquicas apoderaram essas tou-se que as mulheres não se apropriassem do mulheres, dando-lhes o reconhecimento que poder masculino, mas sim que forjassem outra muitas não teriam em outras profissões. forma de poder que as identificassem. Logo, na instituição militar, surge o medo do homem na perda da sua identidade e a mulher na busca da conservação da sua identidade, ou REFLEXÕES FINAIS seja, numa corporação histórica e socialmente considerada masculina, conduzem tanto os Da diversidade de Teorias Sociais que homens quanto as mulheres a um conflito de norteiam esta pesquisa confirmamos a influên- preservação de suas identidades. cia da condição feminina para a ocupação de As policiais femininas paraenses foram postos de trabalho dentro da Polícia Militar. submetidas a trinta anos de adestramento, Do universo amostral utilizado, depreende- a violência simbólica numa relação cons- mos que as funções exercidas em sua maioria truída no seu interior a qual foi incorporada correspondem a tarefas relacionadas à área à organização na vida cotidiana. Foi preciso

UMA ANTROPO-SOCIOLOGIA DE FILMES "NÃO RECOMENDÁVEIS"- PARTE II 70 Cronos: Revista da Pós-Grad. em Ciências Sociais, UFRN, Natal, v. 19, n. 2, jul./dez. 2018, ISSN 1982-5560 SOBRE AS PIONEIRAS superar-se, desconstruir uma imagem, construir outra, mais adequada à organiza- ção e seus processos de gestão justificando estes atos para alcançar determinados fins. Segundo as próprias oficiais femininas, todos os fins justificaram os meios, tendo todas superado seus medos, suas dúvidas. Todas compreenderam o mundo em que viveram de forma positiva, confirmando a premissa que os corpos foram domados de tal modo que foi difícil compreender a relação de domina- ção masculina e docilização dos corpos pelas quais passaram em sua trajetória profissional.

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UMA ANTROPO-SOCIOLOGIA DE FILMES "NÃO RECOMENDÁVEIS"- PARTE II 73 Cronos: Revista da Pós-Grad. em Ciências Sociais, UFRN, Natal, v. 19, n. 2, jul./dez. 2018, ISSN 1982-5560 PÓS-FORDISMO E COWORKING: Uma Nova Fase Do Trabalho Flexível1

POST-FORDISM AND COWORKING: A NEW PHASE OF FLEXIBLE LABOR

Breilla Zanon2

RESUMO: anos de 2013-2015 na Universidade Federal de Uberlândia - UFU, a qual foi capaz de As últimas décadas do século XX mostraram demonstrar, a partir desses escritórios que as mudanças sofridas pelos processos de compartilhados, os engodos trazidos pelos reestruturação produtiva pela qual passou a discursos de conquista da liberdade e da economia global deixariam reflexos eviden- autonomia por meio de arranjos trabalhis- tes no mercado de trabalho. Dá-se início a tas flexíveis, introduzidos por intermédio de um ciclo onde novos modelos e dinâmicas uma reestruturação econômica que modifica produtivas introduzem a flexibilidade como a maneira não só de produzir a materialidade um valor a ser internalizado e colocado em do mundo, mas também a dimensão simbólica prática. É nessa tendência que o coworking que compõe a subjetividade dos indivíduos, aparece como uma nova forma de organiza- no caso, dos trabalhadores nessa nova fase da ção do mercado de trabalho capaz de aliar organização dos mercados de trabalho. a flexibilidade aos desejos de autonomia e de liberdade de um novo perfil de trabalha- Palavras-chave: Coworking. Pós-fordismo. dor. O presente artigo é resultado de uma Novos modelos de trabalho flexível. pesquisa de mestrado realizada entre os Subjetividade.

1 Este artigo contém relatos de profissionais de espaços de coworking. As perguntas, assim como as respostas, foram encaminhadas por e-mail. A fim de manter a privacidade dos entrevistados, trazemos nesses relatos apenas as iniciais de seus nomes. Trata-se de um artigo apresentado no 18º Congresso Brasileiro de Sociologia, realizado em julho de 2017. 2 A autora é Cientista Social e Mestre em Sociologia e Antropologia pela Universidade Federal de Uberlândia - UFU. Atualmente doutoranda em Sociologia pela Universidade Federal de São Carlos - UFSCar. Integrante do LEST-M/UFSCar - Laboratório de Estudos Trabalho e Mobilidades sob a orientação do Professor Dr. Jacob Carlos Lima. Bolsista Capes, atua principalmente nos seguintes temas: reestruturação econômica e novos modelos de traba- lho flexível; redes de sociabilidade no campo da cultura e do trabalho; políticas públicas; políticas da subjetividade; biopolítica; representatividade e autonomia nas relações sociais. As últimas publicações em revistas são “‘faça o que você ama: uma reflexão teórica sobre o desejo e o trabalho no pós-fordismo” In: Café com Sociologia, São Paulo, v. 6, n. 2. p. 191-210, mai./jul. 2017 e “‘Compartilhar é cool!’: o coworking é a nova cara do trabalho do empreendedor jovem, qualificado e flexível” In: Carta Social e do Trabalho, Campinas, n. 36, p. 46-61, jul./dez. 2017. Endereço: Rua Paraíba, 444, Centro, Catanduva/SP. e-mail: [email protected] PÓS-FORDISMO E COWORKING

ABSTRACT: uma nova dinâmica de gestão do trabalho. Apesar do estudo sobre a construção e o surgi- The last decades of the twentieth century mento da palavra ainda carecer de fontes showed that the changes undergone by the acadêmicas, por meio de fontes de revistas productive restructuring process which have e sites especializados nas novas formas de passed the global economy would leave visible trabalho flexível, pudemos descobrir que foi reflexes in the labor market. A cycle of new Brad Neuberg que, em 2005, usou tal nome models and production dynamics is initiated para descrever propriamente um espaço and it introduces flexibility as a value to be físico compartilhado por profissionais. Antes internalized and put into practice. It is amid de usar coworking como termo para definir this trend that coworking appears as a new essa nova experiência, Neuberg nomeava form of organization of the labor market able o espaço como “9 to 5 groups”3, termo que, to combine the flexibility with the wishes of mesmo sendo abandonado posteriormente, autonomy and freedom of a new employee já trazia em si a ideia essencial do coworking profile. This article is the result of a master como novo modelo de trabalho: o comparti- research conducted between the years 2013- lhamento e a flexibilidade. 2015 at the Federal University of Uberlândia O primeiro escritório de coworking - UFU, which was able to demonstrate, chamou-se San Francisco Coworking Space4, from these shared offices, traps brought by e foi fundado em São Francisco (Califórnia, the discourses of freedom and autonomy EUA) no ano de 2005 por Neuberg. Tratava-se achievements through flexible working de uma “casa de bem-estar” que poderia arrangements, introduced through an econo- ser compartilhada por trabalhadores que mic restructuring that changes not only the estavam cansados dos grandes centros way to produce the materiality of the world, empresariais e do isolamento do home-of- but also the symbolic dimension that makes fice. Além de espaço para a realização de up the subjectivity of individuals in the case of workers in this new phase of the organiza- 3 Nota: em português quer dizer “de 9 a 5 tion labor markets. grupos”. 4 Nota: Existem fontes amplamente divulga- Key-words: Coworking. Post-fordism. New das que classificam o Hat Factory como o primeiro flexible labor models. subjectivity espaço de coworking, também fundado em São Franscisco. Essa informação é a que consta em nosso trabalho de mestrado. No entanto, observando a divulgação errônea desse marco, o próprio Neuberg recentemente retificou tal informação, esclarecendo UMA DEFINIÇÃO DE COWORKING que o primeiro espaço de coworking teria sido o San Franscisco Coworking Space e que o Hat Factory havia sido fundado em um segundo momento. Em suas O termo coworking foi especificamente próprias palavras, “the first coworking space was the cunhado pelo designer Bernie DeKoven em San Francisco Coworking Space at Spiral Muse (not 1999. A princípio, o coworking não era usado the Hat Factory as has been misprinted sometimes)”. Disponível em: http://codinginparadise.org/ebooks/ como definição para um espaço de trabalho html/blog/start_of_coworking.html e http://www. em si, tendo como objetivo apenas classificar deskmag.com/en/the-history-of-coworking-spaces- -in-a-timeline . Acesso em: 23set. 2016.

UMA ANTROPO-SOCIOLOGIA DE FILMES "NÃO RECOMENDÁVEIS"- PARTE II 75 Cronos: Revista da Pós-Grad. em Ciências Sociais, UFRN, Natal, v. 19, n. 2, jul./dez. 2018, ISSN 1982-5560 PÓS-FORDISMO E COWORKING seus trabalhos, o local disponibilizava acesso ordem, não só no que tange à produção, mas à internet, refeições compartilhadas, pausas principalmente em relação à organização do para meditação, massagem, passeios de bici- mundo do trabalho. Richard Sennett (2009) é cleta e fechava criteriosamente às 17 horas e um dos autores que já havia atentado sobre 45 minutos da tarde. O espaço fechou no ano essas reformulações das práticas de gestão seguinte, mas seu surgimento já inaugurava pela qual o capitalismo, como um todo, um novo cenário para o mundo do trabalho passou nesse período. De acordo com ele, flexível. A partir de então, e com -a inten siva flexibilização do mercado de trabalho A expressão “capitalismo flexível” descreve hoje um sistema que é mais e das políticas de reengenharia das gestões que uma variação sobre um velho tema. empresariais, o coworking ganhou o mundo, Enfatiza-se a flexibilidade. Atacam-se as passando a ser tomado como uma experiência formas rígidas de burocracia, e também vantajosa tanto para os trabalhadores quanto os males da rotina cega. Pede-se aos trabalhadores que sejam ágeis, estejam para as empresas. É esse momento, nesse tipo abertos a mudanças a curto prazo, assu- de ambiente de compartilhamento – o qual mam riscos continuamente, dependam reflete as novas dinâmicas de trabalho de uma cada vez menos de leis e procedimentos sociedade pós-fordista, formatada a partir formais. (SENNETT, 2009, p. 9). de um capitalismo de acumulação flexível (HARVEY, 2009) e conexionista (BOLTANSKI; Partindo de estudos teóricos sobre CHIAPELLO, 2009) – e entre esses trabalha- a atualidade dos processos de produção e dores que são, na sua maioria, autônomos e gestão do capital, da análise de dados extraí- prezam em seus discursos por preceitos de dos de um survey global realizado por uma independência, liberdade e colaborativismo – revista amplamente reconhecida por adep- que tivemos como objetivo problematizar em tos de novos modelos de trabalho flexível, e que medida esses novos modelos de trabalho realizando inserções de recorte etnográfico baseados na formação de redes, poderiam seguidas de entrevistas, o coworking se produzir uma verdadeira autonomia eman- mostrou um objeto capaz de deixar evidente cipatória aos membros que dela fazem parte. os interesses e práticas dos discursos repro- Podemos dizer que os escritórios de duzidos pelas novas agendas de gestão, coworking surgem como um dos inúmeros marcadamente compostas pelo conexionismo produtos resultantes do processo de reestru- turação econômica capitalista que passa a dar o tom às novas formas de produção e distri- buição a partir do final da segunda metade do século XX. Assim como em outras dinâmicas posição normal. ‘Flexibilidade’ designa essa capa- cidade de ceder e recuperar-se da árvore, o teste de trabalho que surgem nessa tendência, e restauração de sua forma. Em termos ideais, o 5 nele, a flexibilidade passa a ser palavra de comportamento humano flexível deve ter a mesma força tênsil: ser adaptável a circunstâncias variáveis, 5 Como já constatou Richard Sennett (2009), mas não quebrado por elas. A sociedade busca meios “a palavra ‘flexibilidade’” entrou na língua inglesa de destruir os males da rotina com a criação de insti- no século quinze. Seu sentido derivou originalmente tuições mais flexíveis. As práticas de flexibilidade, da simples observação de que, embora a árvore se porém, concentram-se mais nas forças que dobram as dobrasse ao vento, seus galhos sempre voltavam à pessoas.” (SENNETT, 2009, p. 53).

UMA ANTROPO-SOCIOLOGIA DE FILMES "NÃO RECOMENDÁVEIS"- PARTE II 76 Cronos: Revista da Pós-Grad. em Ciências Sociais, UFRN, Natal, v. 19, n. 2, jul./dez. 2018, ISSN 1982-5560 PÓS-FORDISMO E COWORKING e demais valores flexíveis que atravessam o – 54% dos que responderam às perguntas do momento pós-fordista de trabalho6. 2nd Global Coworking Survey8 se classificam Foi por meio do coworking que busca- como freelancers – e buscam nesses ambientes mos responder a seguinte pergunta: seriam flexibilidade de horários, de espaço e diversi- os espaços que exaltam a flexibilidade, o dade de pessoas, com o intuito de garantir o compartilhamento de informações, a liber- bem-estar necessário para a potencialização dade de escolha e os demais discursos em de suas atividades como profissional, além prol da autonomia – fatores primordiais para de ampliar as oportunidades de construírem a verdadeira representatividade desse indiví- networking a partir desses locais, requisito duo em meio à sociedade –, espaços realmente fundamental para a ampliação de seus contatos capazes de formar redes que potencializarão profissionais e, consequentemente, aumento a emancipação dos indivíduos em relação às de suas rendas mensais. Também por meio estruturas dominantes? O que traremos aqui, do survey pudemos ver que cerca de 46% dos portanto, serão os principais resultados e coworkers têm entre 25 e 34 anos, e 72% possui problematizações dessa pesquisa, a qual vem nível superior. avançando atualmente durante o período de Ainda de acordo com o survey – e como doutorado realizado na Universidade Federal podemos ver no mapa a seguir, a maioria dos de São Carlos - UFSCar. espaços de coworking se localizam na Europa, seguida pela América do Norte9. Tal fato nos levou a afirmar que a relação entre números

UM NOVO PERFIL DE 8 Por algum motivo, por nós desconhecido, o layout disponível online do 2nd Global Coworking TRABALHADOR PARA UM NOVO Survey foi modificado, no entanto, os dados e resul- MOMENTO DO TRABALHO tados continuam os mesmos. Dessa forma, os gráficos aqui inseridos correspondem ao material encontrado Como já foi dito, entendemos que os na WEB no ano de 2013, o qual estava disponível na escritórios de coworking surgem como reflexo seguinte página: https://www.deskwanted.com/ static/Deskmag-Global-Coworking-Survey-slides- de uma etapa do capital, com o objetivo de ser lowres.pdf. Como observamos, a diferença estética uma alternativa que vai ao oposto do trabalho dos gráficos não interfere nas análises dos dados, mas rígido das empresas e dos escritórios tradi- mesmo assim optamos por disponibilizar o material cionais. Trata-se, portanto, de espaços de antigo em: http://pt.scribd.com/doc/235076858/ Deskmag-Global-Coworking-Survey-Slides-Lowres. O trabalho compartilhados, propícios à forma- material atual encontra-se disponível em: http://www. ção de networkings, ou seja, conexões entre swivelspaces.com/Share/coworking_survey_booklet. os trabalhadores, sobretudo no que tange pdf. É relevante ressaltar ainda que, de acordo com aos projetos de trabalho; onde a maioria dos a Deskmag, revista que conduziu o estudo – cujo os 7 fundadores são Carsten Foertsch and Joel Dullroy, cien- trabalhadores, os coworkers , são autônomos tista social e jornalista respectivamente –, o 2nd Global Coworking Survey foi realizado em cooperação com um 6 Nota: neste trabalho nos utilizaremos apenas das time da Coworking Europe e apoiada pela Universidade reflexões teóricas sobre o mundo do trabalho, aliadas aos do Texas, entre outras instituições, e os dados são refe- dados do 2nd Global Coworking Survey e às entrevistas rentes ao ano de 2011. Acesso em: 09 jun. 2014. realizadas com coworkers do Brasil e do Canadá. 9 Nota: Esse dado se mantém o mesmo no 3rd 7 Nota: coworker é o termo usado para definir o Global Coworking Survey, pesquisa cujos dados foram trabalhador que utiliza espaços de coworking. colhidos durante o ano de 2012.

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10 O survey também mostrou que espaços com maior número de membros e abertos há mais tempo tendem a ser mais rentáveis. 11 Todos os gráficos apresentados neste trabalho fazem parte do 2nd Global Coworking Survey e foram tradu- zidos a fim de uma melhor compreensão dos dados.

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No entanto, para além das questões a com o aumento das taxas de desemprego12 respeito da renda e da densidade populacional e com a paralela exaltação da flexibilidade de cada local, sugerimos que o pioneirismo e da autonomia no trabalho, tanto por parte nas mudanças da estrutura produtiva gerou das empresas quanto por parte dos trabalha- um excedente de mão de obra nessas regiões dores, houve uma grande proliferação dos citadas devido aos processos de reengenharia home offices13. De acordo com o 2nd Global pelos quais passaram os mercados de traba- Coworking Survey, cerca de 58% dos cowor- lho nesses países (SENNETT, 2009), o que kers trabalhavam em home-offices antes consequentemente, devido à nova estrutura, de fazer parte de um espaço de coworking refletiu-se como demanda por um novo perfil e uma das principais queixas desses traba- de trabalhador. Esse excedente de mão de obra lhadores era que o modelo de home-office, – em sua maioria jovem e qualificada –, aliado além de não conseguir lidar com as inter- aos atributos técnicos e informacionais que rupções cotidianas do trabalho em casa, não são mais bem distribuídos nesses continentes, colaborava com a ampliação de networking. contribuiu para que essas regiões criassem É em derivação desse momento que os escri- um terreno propício para novos arranjos no tórios de coworking ganharam destaque mundo do trabalho, tal qual as experiências como uma oportunidade de sair do home- dos espaços de coworking. Constatações como -office e de lidar com a reestruturação do essa se relacionam ao que David Harvey (2012) mercado de trabalho de forma a retirar do já pontuou há mais de duas décadas, sobre as isolamento esses trabalhadores e, por meio novas características do trabalho e do perfil de espaços compartilhados, criar o que os dos trabalhadores desse período. coworkers chamam de serendipidade, ou seja,

O mercado de trabalho […] passou por 12 De acordo com Sennett (2009), as altas taxas uma radical reestruturação. Diante de desemprego desse período estão relacionadas às da forte volatilidade do mercado, do estratégias de reengenharia. Segundo o autor: “o aumento da competição e do estreita- fato mais destacado na reengenharia é a redução de mento das margens de lucro, os patrões empregos. As estimativas dos números de trabalhado- tiraram proveito do enfraquecimento do res empregados que foram ‘reduzidos’ de 1980 a 1995 poder sindical e da grande quantidade de variam de um mínimo de 13 milhões a um máximo mão-de-obra excedente (desempregados de 39 milhões. A redução tem tido uma relação direta ou subempregados) para impor regimes com a crescente desigualdade, uma vez que só uma e contratos de trabalho mais flexíveis. ( minoria dos trabalhadores espremidos para fora HARVEY, 2012, p. 143). encontrou outro trabalho com os mesmos salários ou maiores. Numa Bíblia moderna sobre esse assunto, Re-engineering the Corporation, os autores Michael É possível ver por meio desses dados Hammer e James Champy defendem a reengenharia que, hoje em dia, esse novo modelo de organizacional da acusação de ser uma mera cobertura trabalho se espalhou por diversos cantos para a demissão de pessoas, afirmando que ‘reduzir e reestruturar significam apenas fazer menos com do mundo seguindo uma tendência que se menos. Reengenharia, em contraste, significa fazer constituiu como resultado das mudanças mais com menos.” ( SENNET, 2009, p. 56). de uma estrutura produtiva mais rígida e 13 Dinâmica de trabalho pela qual o profissional burocratizada, tal como a fordista, para uma tem a possibilidade de trabalhar em casa. Geralmente são profissionais autônomos ou ligados à empresa, mas forma de produção e gestão mais flexível ou, que têm a possibilidade de garantir essa flexibilidade por melhor dizer, pós-fordista. A princípio, devido ao tipo de trabalho ou à distância da empresa.

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Marshall Sahlins (2011) considera que “a história é ordenada culturalmente de diferentes modos nas diversas sociedades, de acordo com os esquemas de significação das coisas” ( SAHLINS, 2011, p. 7). Complementamos essa observação de Sahlins (2011) com o posicionamento antropoló- gico de Clifford Geertz, que serviu de orientação para todo nosso trabalho:

[...] o objetivo da antropologia é o alargamento do universo do discurso humano. De fato, esse não é o seu único objetivo – a instrução, a diversão, o conselho prático, o avanço moral e a descoberta da ordem natural no comportamento humano são outros, e a antropologia não é a única disciplina a persegui-los. No entanto, esse é um objetivo ao qual o conceito de cultura semiótico se adapta bem. Como sistemas entrelaçados de signos interpretáveis (o que eu chamaria símbolos, ignorando as utilizações provinciais), a cultura é um poder, algo ao qual podem ser atribuídos casualmente os acontecimentos sociais, os comportamentos, as instituições ou os processos; ela é um contexto, algo dentro do qual eles podem ser descritos de forma inteligível – isto é, descritos com densidade. (GEERTZ, 1989, p. 24).

É a partir dessa perspectiva que consideramos que essa nova ordem de estruturação e signi- ficação/interpretação do mundo do trabalho pode ser vista claramente por meio da dimensão simbólica dos discursos tanto institucionais, ou seja, nas peças e nos textos publicitários dos espaços de coworking, como também nos discursos pessoais dos trabalhadores envolvidos com essa dinâmica.

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Em uma das entrevistas, realizada com manter do que prioritariamente acessar. O coworkers, perguntei sobre quais seriam, nas que interessa, portanto, é ter contatos dispo- suas opiniões, os principais aspectos a serem níveis e não necessariamente concretizar modificados ou introduzidos no mundo do ações a partir deles. Quando perguntado sobre trabalho tradicional. A resposta revelou as experiências que o coworking proporcio- aquilo que o survey já trazia como dado. A nou nos níveis profissional e social, V. R., 27 maioria dos entrevistados elencou a flexibi- anos, respondeu que “os contatos entre clien- lidade e a oportunidade de estar em contato tes é uma vantagem interessante. Propiciam com outras pessoas. a ampliação do networking”. E isso corres- ponde a uma tendência global do coworking. A flexibilidade de horários já me interes- Um dos coworkers estrangeiro entrevistados, sava, vivo há mais de três anos em home office, porém, um pouco de rotina e ter quando perguntado sobre as vantagens do um espaço fora de casa só fizeram minha coworking em relação às formas tradicionais produtividade aumentar. O espaço de trabalho, nos deu uma resposta capaz de proporciona o conforto necessário, demonstrar clara e sinteticamente como além de conveniências eventuais como data-show e sala de reuniões. O compar- antigas máximas capitalistas, como controle tilhamento foi um ponto bastante e lucro, se relacionam agora com os novos positivo pelo networking. [...] Entendo arranjos flexíveis. Isso se revela quando ele que burocracia e regras são essenciais relaciona o trabalho no coworking como para a organização e produtividade, e até acho que existem pessoas que preci- algo que proporciona, “more distribution of sam disso, não acho que seja o meu caso. knowledge, control and profit. Less business (M.B, 26 anos). systems thinking and more community thin- king” (S. A., 36 anos)14. Logo, podemos afirmar, por meio desses Além da flexibilidade, esse novo gráficos, que a flexibilidade buscada pelos momento capital precisou mobilizar outros membros do coworking relaciona-se muito valores, os quais sintomaticamente passaram mais aos âmbitos espacial e temporal do que a ser disseminados amplamente pelos espa- afetiva possibilidade de compartilhamento de ços de coworking e são vinculados às peças ideias e de informações com diversas pessoas. publicitárias desses espaços, estabelecendo- Por isso, quando perguntado sobre “Qual tipo -se então, um padrão capaz de ser visualizado de flexibilidade mais interessou, a princípio, de maneira global. para você, quando procurou saber mais sobre o coworking: de horários, de locais, número de pessoas compartilhando o espaço, ou algum outro?” A. C., respondeu: “de horário e de local”. Ademais, mais do que uma flexibili- dade e uma potencialidade de ação real entre os membros, esta condição se limita às opor- tunidades de ter possibilidades de conexão, e não de realizá-las em si, como se essa fosse 14 “Mais distribuição de conhecimento, controle uma dimensão a qual importa mais existir e e lucro. Menos pensamento sistemático de negócios e mais pensamento comunitário” (S. A., tradução nossa).

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Observamos a presença desses valores wanted to spend their work days surrounded e, consequentemente, as semelhanças na by fellow entrepreneurs in a creative, open descrição institucional de alguns espaços space. Through co-working in local coffee especialmente desenvolvidos: shops, momentum grew and partnerships DESK – Belo Horizonte –MG started to form that made room for the idea DESK Coworking é um escritó- of a shared workspace in Kelowna. rio compartilhado onde profissionais de Whether you want to call it shared áreas independentes podem desempe- workspace, a co-working space, collaboration nhar suas atividades, interagir com outros space, or even hack space, the idea around profissionais e gerar networking. Missão: it is the same. Create an environment that Proporcionar aos clientes do coworking um gets creative, technology and media entre- ambiente estruturado, agradável, que privi- preneurs out of their home offices, lets them legie o relacionamento entre as pessoas, concentrate when they need to and encou- proporcionando troca de experiências, rages them to share ideas, ask for help, and colaboração e compartilhamento. Valores: challenge each other to do better work15. Compartilhamento; Inovação; Integração; (http://okcolab.com/, grifo nosso). Relacionamento; Sinergia; Transparência; Ética; Relacionamento; Sustentabilidade. 15 “O Co+Lab começou como uma ideia dos (http://www.deskcoworking.com.br/desk/) membros da comunidade tecnológica de Kelownas que queriam passar seus dias de trabalho envoltos Co+Lab – Kelowna/ Canadá por colegas empreendedores em um espaço criativo e The co+Lab started as an idea from aberto. Através do coworking em cafés locais, o ímpeto members of Kelowna’s tech community who cresceu e parcerias começaram a formar aquela sala

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Nex Coworking e Inovação – Curitiba/PR: Mais do que disponibilizar mesas, cadeiras, internet rápida, infraestrutura de trabalho completa e serviços para facilitar o dia a dia dos profissionais, o propósito do NEX Coworking e Inovação é ser a ponte entre pessoas que buscam evoluir por meio da colaboração. (http://www. nexcoworking.com.br,) Ao dizermos que o coworking se insere em uma nova dinâmica de gestão capitalista, seguindo a demanda pós-fordista de organização do mercado de trabalho, queremos dizer que o coworking é um entre os vários modelos de organização do trabalho flexível que se pauta nos requisitos de flexibilidade e autonomia que são requeridos pelo mercado atual, passando a fazer parte da própria subjetividade dos trabalhadores quando formulam seus discursos a respeito do ambiente de traba- lho ideal. Essa tendência fica evidente quando observa-se que existe uma repulsa aos antigos modelos de trabalho, como escritórios tradicionais e trabalhos em centros empresariais.

para a ideia de um espaço de trabalho compartilhado em Kelowna. Se você quer chamar esse espaço de trabalho de um espaço de coworking, espaço de colaboração ou até um espaço recortado, a ideia em torno disso é a mesma. Criar um ambiente que tenha empreendedores criativos, tecnológicos e midiáticos fora dos seus escritórios em casa, deixa-os concentrar quando precisam e os encorajam a trocar ideias, pedir ajuda, e desafiam uns aos outros para um melhor trabalho.” (tradução nossa).

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Esses elementos demonstram que, a de conexão foi sendo cobrada como elemento própria reestruturação capitalista, que a indispensável na nova configuração produ- princípio desmantelou e desestabilizou o tiva. (PELBART, 2003, p. 96). mercado de trabalho, introduziu a lógica da Sendo essa nova estrutura propulsora de flexibilidade e autonomia como qualidade a “liberdade”, garantiu-se, assim, sua aceitação ser buscada em meio ao mercado profissio- entre os trabalhadores criando um contexto nal. Peter Pelbart (2003) é um dos autores capaz de diminuir drasticamente a existência que sintetiza aquilo que Luc Boltanski e Ève de possíveis revoltas trabalhistas. Mas o que Chiapello (2009) classificam como incorpo- em linhas gerais importa observar aqui é que, ração da crítica pelo capital, ao observar que nesse momento, a ideologia do capital se insere essa nova lógica se utiliza principalmente das na superestrutura, nas culturas e na comuni- críticas ao capitalismo formuladas nos anos cabilidade das sociedades pós-fordistas, mas, 60 e 70, momento que corresponde ao início acima disso, o aspecto ideológico dominante das transformações estruturais dos meios de passa a estar fortemente inserido e dissemi- produção capitalista. nado na própria infraestrutura (GUATTARI, Forjou-se assim um novo espírito do 1985), ou seja nos arranjos organizacionais capitalismo, com ingredientes vindos do caldo dos espaços e na gestão de um novo perfil de de contestação ideológico, político, filosófico trabalhador nessas sociedades. Essa confluên- e existencial dos anos 60. Digamos, em linhas cia material e simbólica pôde ser verificada gerais, que as reivindicações por mais auto- por meio dos espaços de coworking. nomia, autenticidade, criatividade, liberdade, até mesmo a crítica à rigidez da hierarquia, da burocracia, da alienação nas relações e no trabalho, foi inteiramente incorporada pelo PONTUAÇÕES CONCLUSIVAS sistema, e faz parte de uma nova normati- vidade que está presente nos manuais de Os dados do survey sobre coworking, management que seus executivos seguem aliados às entrevistas e à análise sobre as hoje. […] Significa que ao satisfazer em parte novas formas de gestão do trabalho pós-for- as reivindicações libertárias autonomistas, dista, nos deram elementos que nos ajudaram hedonistas, existenciais, imaginativas, o capi- a visualizar na prática o potencial de explo- talismo pôde ao mesmo tempo mobilizar nos ração do capital sobre a inventividade, seus trabalhadores esferas antes inatingíveis. sobre o tempo livre e sobre a condição de […] A reivindicação por um trabalho mais instabilidade dos trabalhadores no contexto interessante, criativo, imaginativo obrigou o atual, revelando os discursos e estratégias do capitalismo, através de uma reconfiguração capitalismo flexível, capazes de organizar e técnico-científica de todo modo já em curso, alocar a mão de obra excedente movida pelo a exigir dos trabalhadores uma dimensão desejo de autonomia e liberdade por meio da criativa, imaginativa, lúdica, um empenho promessa de ascensão pelo trabalho. integral, uma implicação mais pessoal, uma Ao problematizarmos os conceitos e dedicação mais efetiva até. Ou seja, a inti- ideias de liberdade e de flexibilidade – hoje tão midade do trabalhador, sua vitalidade, sua exaltados por modelos de trabalho pós-for- iniciativa, sua inventividade, sua capacidade distas – vemos que estes componentes estão

UMA ANTROPO-SOCIOLOGIA DE FILMES "NÃO RECOMENDÁVEIS"- PARTE II 85 Cronos: Revista da Pós-Grad. em Ciências Sociais, UFRN, Natal, v. 19, n. 2, jul./dez. 2018, ISSN 1982-5560 PÓS-FORDISMO E COWORKING interligados de forma a criar conformidade sistema capitalista que se espraiam para além dentro do projeto capitalista de nossos dias. Isso das materialidades, atingindo formas mais nos fez questionar sobre o grau e sobre a quali- simbólicas de sua condução. dade da autonomia que esses espaços e seus O que buscamos visualizar, em linhas discursos promovem. O coworking, portanto, gerais, é o espectro desse novo momento, ou nos faz perceber como a liberdade e subjeti- seja, salientar que toda a mudança das orga- vidade agora são relacionadas à categoria da nizações econômicas e a sua fundamentação flexibilidade que os novos projetos de gestão do no aspecto cultural da sociedade, bem como trabalho passaram a traduzir como imprescin- a nova relação com o tempo e o espaço que dível às suas novas dinâmicas para a conquista passa a ser exaltada como realidade a ser de autonomia nas diversas dimensões da vida vivida, acabaram por influenciar as constru- social. De acordo com Sennett (2009), ções das identidades e dos comportamentos; portanto, também influenciam a construção Para [John Stuart] Mill, o comportamento das subjetividades dos indivíduos, dos seus flexível gera liberdade pessoal. Ainda estamos dispostos a pensar que sim; desejos e, consecutivamente, da formatação 16 imaginamos o estar aberto à mudança, de seus interesses e valores . ser adaptável, como qualidades de cará- O que quisemos deixar evidente, a partir ter necessárias para a livre ação – o ser do exemplo do coworking, é que, por estar rela- humano livre porque capaz de mudança. Em nossa época, porém a nova economia cionada à dimensão econômica, a flexibilidade política trai esse desejo pessoal de liber- exaltada por essas redes também se introduz dade. A repulsa à rotina burocrática e a como parte do comportamento desse novo busca da flexibilidade produziram novas sujeito, ou seja, se faz presente como um compo- estruturas de poder e controle, em vez de criarem condições que nos libertam. nente cultural, o qual pode ser espraiado a todas (SENNETT, 2009, 54). as dimensões da vida em sociedade e, acima de tudo, é pertinente e necessário para a reprodu- ção organizacional do capitalismo. Sennett (2009) nos ajuda evidenciar como a subjetividade do trabalhador pós-for- 16 Aqui devemos posicionar uma pontuação dista passa a ser composta por uma nova ética antropológica, a qual nos servirá de orientação por do trabalho em função do desenvolvimento todo nosso trabalho e isso porque, como observou capitalista que vem preencher o novo perfil Geertz (1989, p. 24), “o objetivo da antropologia é o alargamento do universo do discurso humano. De fato, de trabalhador que já evidenciamos anterior- esse não é o seu único objetivo – a instrução, a diversão, mente. Podemos concluir que o coworking o conselho prático, o avanço moral e a descoberta da permite refletir acerca da flexibilidade como ordem natural no comportamento humano são outros, incremento da liberdade e da subjetividade e a antropologia não é a única disciplina a persegui- -los. No entanto, esse é um objetivo ao qual o conceito nas formas de trabalho contemporâneo. Essas de cultura semiótico se adapta bem. Como sistemas novas experiências e modelos do mundo entrelaçados de signos interpretáveis (o que eu chama- do trabalho nos dão chance de problema- ria símbolos, ignorando as utilizações provinciais), a tizar discursos em prol da autonomia e cultura é um poder, algo ao qual podem ser atribuídos casualmente os acontecimentos sociais, os compor- da liberdade, uma vez que suas dinâmicas tamentos, as instituições ou os processos; ela é um reforçam, de maneira disfarçada e muito contexto, algo dentro do qual eles podem ser descritos mais perversa, dominações elementares do de forma inteligível – isto é, descritos com densidade”.

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POIESIS

Cronos: Revista da Pós-Grad. em Ciências Sociais, UFRN, Natal v. 19, n. 2, jul./dez. 2018 POIESIS

Zildenice Matias Guedes Maia1

SINGELEZA

Aprendi que embora não tenha nada em suas mãos, tudo que tenha seja vergonha, Há algo maior que todas as dores e tristezas, que toda a solidão, O sonho O singelo sonho Sonhar que um dia coisas boas acontecerão Embora você não as mereça Embora todos ao seu redor lembrem a você constantemente que você não merece flores em meios aos espinhos O sonho é mágico Ele lhe dá coragem quando o céu só tem estre- las inalcançáveis Ele lhe dá outro dia para tentar novamente quanto o cansaço e a fome roubaram de você a esperança E sabe o melhor que o sonho pode lhe dar? A fé Ter um pouco de fé nos faz humanos Milagrosamente humanos

1 Dra. em Ciências Sociais e escritora; Pesquisadora do LabRural/UFRN POIESIS

FERRO

Não há muitas explicações capazes de curar sua ausência Ausência não se cura, ela se deixa sentir, ela dói De tantas formas eu gostaria de sentir sua presença Gostaria que o tempo me desse outra chance Devaneio Tudo que encontrei foi aquela cruz de ferro Gélido, sem beleza, com letras apagadas Foi tudo que encontrei Eu lamento a sua sombra É como um contorno mal elaborado Tudo isso não me fez mais forte Tudo isso não me fez mais feliz Só restaram fragmentos, bem pequenos, totalmente sem formas Olhando a cruz de ferro de repente o tempo ficou mais lento Porque acho que é isso que a saudade faz Nos deixa inebriados no vácuo da ausência E de repente, nada o substitui Nem mesmo a cruz de ferro

UMA ANTROPO-SOCIOLOGIA DE FILMES "NÃO RECOMENDÁVEIS"- PARTE II 91 Cronos: Revista da Pós-Grad. em Ciências Sociais, UFRN, Natal, v. 19, n. 2, jul./dez. 2018, ISSN 1982-5560 A IMITAÇÃO E AS SINGULARIDADES: O Jogo Do Social

THE IMITATION AND SINGULARITIES: THE SOCIAL GAME

Patricia R. Gomes da Silva1 Alexsandro Galeno Araújo Dantas2

Em As Leis da Imitação, publicado origi- toda homogeneidade de origem social resulta, nalmente em 1890, o sociólogo francês Gabriel direta ou indiretamente, da imitação. Assim, Tarde (1843-1904), também filósofo, psicólogo toda repetição (seja social, orgânica ou física) e criminalista, dedica-se a demonstrar que advém de uma inovação, logo, o normal, em a sociedade se constitui a partir de relações toda a ordem do conhecimento, provém do intercerebrais. Para tanto, o autor desen- acidental. À vista disto, as propagações de volve três categorias (imitação, adaptação e uma ideia, de uma necessidade, ou de um oposição) que organizam tais relações, e, divi- rito religioso, a partir de um cientista, de um dindo esse livro em oito capítulos, dá ênfase inventor ou um missionário, correspondem a a imitação como categoria fundamental para fenômenos ordenados. definir e compreender o social. Dessa forma, Para Tarde, o ser social é essencial- a microssociologia de Tarde recupera o indiví- mente imitador, o que implica dizer que uma duo na cena social, na medida em que assinala invenção humana, por meio da qual se inau- as ações e os pensamentos inovadores como gura um novo gênero de imitação (a pólvora, as verdadeiras causas dos fatos sociais, via por exemplo) representa uma sugestão capaz irradiações imitativas. Sob tal perspectiva, de provocar irradiações imitativas, bem como movidos por desejos e crenças, somos o infini- uma pedra quando cai na água, provocando tesimal da sociedade, as verdadeiras potências uma onda, e, consequentemente, outras inventivas, ou seja, transformadoras. se repetem, cada invenção ou descoberta Tendo em vista que, em toda área do (aspectos elementares do social) tendem a conhecimento, qualquer progresso do saber se estender em seu meio, isto é, a se alargar, colabora com a ideia de que as semelhanças visto que é composta por coisas semelhan- decorrem da repetição, o autor afirma que tes, “todas ambiciosas ao infinito”. (TARDE,

1 Doutoranda pelo PPGCS – UFRN. 2 Graduado em Geografia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (1989), mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (1996), doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2002). Pós-Doutor pela Universidade de São Paulo (2015), professor do Instituto Humanitas da UFRN, Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da mesma instituição e Presidente da Cooperativa Cultural Universitária. A IMITAÇÃO E AS SINGULARIDADES

2000, p. 38). Por outro lado, tal tendência de das iniciativas bem-sucedidas, quando uma alargamento é, não raro, interrompida pela invenção surge, apresenta-se como uma das concorrência das tendências rivais. possibilidades que a invenção-mãe carregava Portanto, estamos cercados por um em seu ventre, além disso, torna impossível conjunto de condições internas e externas, outras e abre novas invenções que antes comparáveis a um rio com limites estreitos não existiam. Uma vez que toda descoberta de desenvolvimentos, de onde decorrem corresponde a um problema, sobrevivem semelhanças com o curso inicial. Desse modo, as invenções que respondem melhor ao seu perpassando por determinações físicas e tempo. biológicas, o gênio humano foi despertado Ademais, o contágio irradiador das para necessidades virtuais e profundas da civilizações ocorre em virtude da inclina- alma humana, causadas por descobertas ção natural dos homens para copiar, sem e invenções primordiais propagadas pela necessariamente se deslocarem no sentido imitação. Por essa lógica, rudimentos de uma do exemplo, ou melhor, os indivíduos agem linguagem e de uma religião abriram cami- ininterruptamente uns sobre os outros, por nho para o mundo social, “sem essa faúlha, o distâncias espaço-temporais indefinidas. incêndio do progresso jamais se teria decla- Em razão disso, a imitação é social, mas a rado na floresta primitiva cheia de selvagens; preguiça instintiva de onde nasce a tendência e é ela, é a sua propagação por imitação, que de imitar é natural, dispensando a necessi- é a sua verdadeira causa, a condição sine que dade de inventar. non”. (TARDE, 2000, p. 65). Por essa ótica, o que é uma sociedade? O autor ressalta que a necessidade Conforme explica o autor, não são as rela- de inventar e de descobrir se desenvolve ções econômicas, ou seja, a prestação de dependendo de um cruzamento feliz entre serviços mútuos que define uma sociedade. um cérebro inteligente e uma corrente de Pois, se fosse assim, as sociedades animais imitação, seja com uma contracorrente que muito mais que nós, mereceriam esse nome. lhe reforce, ou com uma percepção exterior Contudo, a fé e o desígnio patriótico estabe- intensa, aparentemente imprevista. Porém, lecem as bases para uma verdadeira relação se decompomos tais percepções e sentimen- de sociedade, mantendo necessidades parti- tos, notamos que eles se resolvem quase culares distintas, entreajudando-se nestas ou completamente, ao mesmo tempo em que a não. A sociedade é fundamentada por uma civilização avança em elementos psicológicos unanimidade de coração e de espírito, que se condicionados pelo exemplo. Por conse- constitui pouco a pouco através da imitação guinte, toda ideia, por mais genial que seja, do mais próximo ao mais distante, e, como corresponde ao cruzamento de uma imitação continuação desse processo, desenvolve-se com outras capazes de permitir que determi- um aparato legislativo na medida em que a nado indivíduo, em dado momento, chegue a tendência à imitação fica mais complexa. uma constatação. Tendo em vista que as trocas inces- As invenções apresentam, então, santes de serviços não garantem o título de elementos oriundos de imitações anterio- sociedade, Tarde (2000) aponta a importân- res, destinadas a formar novos compostos cia da assimilação por contágio imitativo, mais complexos. Na árvore genealógica expressa no fato de nem os conquistadores

UMA ANTROPO-SOCIOLOGIA DE FILMES "NÃO RECOMENDÁVEIS"- PARTE II 93 Cronos: Revista da Pós-Grad. em Ciências Sociais, UFRN, Natal, v. 19, n. 2, jul./dez. 2018, ISSN 1982-5560 A IMITAÇÃO E AS SINGULARIDADES da América nem os indígenas terem reco- adormecidas, mas presentes. De forma seme- nhecido direitos uns aos outros, porque não lhante, “tem-se prestígio sobre alguém na formavam o ser mental e social de ideias, de medida em que se respondem à sua neces- desejos, de necessidades, ou seja, de elemen- sidade de afirmar ou querer qualquer coisa tos que compõem o espírito suficientemente atual”. (TARDE, 2000, p. 104). semelhante para compor uma sociedade. Uma ação qualquer sugere aos nossos Nessa acepção, o alargamento por assimilação semelhantes à ideia mais ou menos irrefle- imitativa compreende ao cerne da sociedade, tida de imitar, caso isso não aconteça, tal ação o que permite que as mulheres e os campone- é neutralizada por uma contra tendência ses, por exemplo, insiram-se cada vez mais no oriunda de recordações presentes ou percep- círculo social. Dito de outra maneira, trata-se ções exteriores. Temporariamente privado de uma tendência que, mesmo encontrando dessa força de resistência, o sonâmbulo serve entraves em costumes ou leis, desenvolve-se como parâmetro para explicar a passividade cada vez mais. imitativa do ser social. O sonâmbulo tem Em síntese, o homem não pode olhar, toda sua força de crença e de desejo voltada ouvir, escutar caminhar, escrever, inventar para um polo único, residindo nisso, o efeito ou imaginar, sem recordações musculares e da obediência e imitação por fascinação que coordenadas, assim como, a sociedade não constitui um tipo de polarização inconsciente poderia existir, avançar, transforma-se, do amor e da fé. Nesse sentido, Tarde (2000) sem a formação de uma rotina acrescida de cita homens como Maomé e Napoleão, os ações inventivas. No desenvolvimento desse quais foram capazes de polarizar a alma do enlace, é infinitamente complexa a natureza seu povo, conduzindo a uma fixação por meio íntima da sugestão de célula a célula cerebral de sua glória. que forma a vida mental, igualmente o é a Diferentemente do que costumamos essência dessa sugestão no nível de pessoa pensar, os povos civilizados não despertaram a pessoa. Todavia, para pensar acerca desta desse sono dogmático. De acordo com o autor, última, Tarde faz uma analogia com o fenô- os povos se imitam cada vez mais, aspecto em meno do sonambulismo ou hipnotismo. que a sociedade se parece com o indivíduo, que Tais fenômenos, de forma similar ao quando criança é um verdadeiro sonâmbulo. estado social, são formas de sonho de comando E, ao despertar da admiração dos pais, ocorre e em ação, nos quais temos a ilusão de sermos uma sobreposição de sonos e torna-se ainda espontâneos. Embora acreditemos que somos mais imitador, deslocando a admiração a um menos crédulos, menos dóceis e menos imita- mestre ou colega prestigiado. Como efeito, tivos que outros povos (de hoje ou de outros para compreender o fato social é necessário tempos), que aliás pensam (ou pensavam) o se voltar para os fatos cerebrais infinita- mesmo sobre si, estamos a todo momento mente complicados, trata-se de uma relação reproduzindo ideias sugeridas. A hipnose é um direta, a sociedade é a imitação, e a imitação processo parecido, já que é capaz de, em deter- é um tipo de sonambulismo. Por outro lado, minadas circunstâncias, acessar à obediência o despertar momentâneo do sonho, (familiar passiva mediada pelo prestígio, que remete à ou nacional) para inovar e descobrir, requer existência de uma força potencial de crença e audaciosamente escapar à sociedade, o que só desejo imobilizado em diversas recordações, pode ocorrer pelo o indivíduo.

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Portanto, a imitação e a invenção são atos sociais fundamentais, tendo como subs- tância ou força social uma ideia, um querer, uma opinião ou um desígnio, movido por crenças e desejos. Estas últimas formam as qualidades psicológicas que dão base a todas as qualidades sensacionais da combi- nação, cuja organização imitativa compõe as verdadeiras quantidades sociais, por isso, constituem toda a alma das palavras de uma língua, da administração de um estado, dos artigos de um código, dos processos de uma arte etc. Em outras palavras, as sociedades se organizam por acordo ou oposição de cren- ças, consecutivamente, fortalecendo-se ou se limitado, formando as instituições. Por fim, funcionam a partir da concorrência de dese- jos e necessidades, fomentando o progresso social por meio da sucessão de substituições e acumulações inventivas.

UMA ANTROPO-SOCIOLOGIA DE FILMES "NÃO RECOMENDÁVEIS"- PARTE II 95 Cronos: Revista da Pós-Grad. em Ciências Sociais, UFRN, Natal, v. 19, n. 2, jul./dez. 2018, ISSN 1982-5560 A IMITAÇÃO E AS SINGULARIDADES

REFERÊNCIA

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UMA ANTROPO-SOCIOLOGIA DE FILMES "NÃO RECOMENDÁVEIS"- PARTE II 96 Cronos: Revista da Pós-Grad. em Ciências Sociais, UFRN, Natal, v. 19, n. 2, jul./dez. 2018, ISSN 1982-5560 VIDA COMO EXPERIMENTAÇÃO DOS LIMITES E REINVENÇÃO DE SI

LIFE AS EXPERIMENTATION WITH LIMITS AND REINVENTION OF ITSELF

Fagner Torres de França 1

CARVALHO, Edgard Assis. Conexões da vida: ter uma relação íntima com o livro Conexões uma antropologia da experiência. Natal, RN: da vida – Uma antropologia da experiência, de Una, 2017. Edgard de Assis Carvalho. Lançado recente- mente em Natal, São Paulo e Rio de Janeiro, a O escritor norte-americano Don Delillo autobiografia do antropólogo e professor da abre Ponto ômega (2011) narrando, do ponto PUC/SP faz uso, sobretudo, de seus secretos e de vista de um personagem anônimo, a volumosos diários, de suas memórias recria- experiência de um encontro com uma insta- das, imaginadas, projetadas, tanto quanto do lação artística de Douglas Gordon, em 2006, manuseio de objetos, fotografias e cenários no Museu de Arte Moderna de Nova York. narrativos impregnados de suas intimidades 24 hour Psycho apresenta o filme Psicose, de e singularidades até então não expostas ao Alfred Hitchcock, numa exibição tão lenta grande público. Como um bom escafandrista, que a projeção demora 24 horas para ser fina- o autor de Conexões da vida visita os porões lizada. Trata-se de uma experiência visual e dos acontecimentos vividos de sua psique do pensamento na qual o expectador pode num esforço de reconstrução descontínua observar quase frame por frame, e não nos de uma vida simultaneamente singular e habituais 24 frames por segundo, os mínimos universal, una e múltipla. Mas também, como deslocamentos decompostos dos persona- o lendário Sísifo, o autor reconstrói, no livro, gens em várias etapas, ao invés de capturá-los as desordens da história brasileira vividas em um movimento único, de tal modo que se por ele em meio à decomposição e desloca- torna possível recompor cada cena a partir da mentos de uma geologia ao mesmo tempo observação daquilo que, normalmente, passa perversa e sedutora da cultura e da política. despercebido ao olho descuidado. Longe de ocupar o lugar de vítima ou juiz, o A técnica da decupagem cinematográ- sujeito narrado atua e assume os bônus, mas, fica operada por Delillo, religa o infinitamente sobretudo, os ônus de suas opções de vida. grande ao infinitamente pequeno para expor a Não é sem consequências que por meio incerteza do infinitamente complexo e parece da palavra experiência Carvalho distancia-se

1 Jornalista e Doutor em Ciencias Sociais. VIDA COMO EXPERIMENTAÇÃO DOS LIMITES E REINVENÇÃO DE SI definitivamente do cartesianismo acadêmico coletivo, objetivo e subjetivo, natureza e pautado pela frieza dos argumentos claros e cultura, arte e ciência, é uma das apostas do demonstráveis para se autolapidar e colocar- livro. -se completamente a nu como um sujeito com A aposta ensaística de Carvalho não é contornos ora definidos, ora incertos, mas sem consequências, mas uma atitude ética, sempre em perspectiva. Inacabado. O autor estética e política. Primeiro porque, ao se coloca a favor e contra si mesmo, com confundir arte, filosofia, educação, antro- seus erros e ilusões, destituindo-se de um pologia, sociologia e psicanálise, Conexões pretenso discurso de verdade, mas refazendo pode incomodar (ou ao menos causar certo uma trajetória de vida que contempla falhas desconforto) àqueles que habitam os domí- e acertos, dúvidas, dores e delícias, muitas nios do monopólio dos campos organizados, alegrias, grandes tristezas, outros tantos regulados e disciplinados – alegorias do arrependimentos. Verdades, se existem, são sujeito da ordem. Em segundo lugar, porque feitas de carne e sangue, forjadas nas oficinas para instaurar um acontecimento narrativo é da irremediável condição humana. preciso se distanciar dos velhos modelos cris- Em quatro capítulos intitulados talizados, de resto não uma característica do Sombras, Simetrias, Descontinuidades e Ardores nosso século, mas uma atitude já inaugurada o autor de Enigmas da Cultura (2003) coloca de forma mais explícita, no século XVI, por o resgate da experiência como possibilidade Michel de Montaigne. de se repensar o conhecimento do sujeito em Ensaiar é justamente renunciar à segu- sua relação com o mundo e os outros, num rança da teoria, ao dogmatismo da forma. É momento em que, como já alertava Walter aventurar-se por caminhos desconhecidos, Benjamin (2012) em 1934, vivemos em uma perigosos, insondáveis, que se abrem no pobreza tanto em experiências privadas próprio ato de caminhar. Sem isso, o ensaio é quanto em experiências da humanidade em apenas um estilo narrativo e não uma hibrida- geral. E isso é o prenúncio da barbárie, dizia ção do sujeito com seu interior e os cenários Benjamin (2012), e acaba por gerar uma cres- que lhe consomem. Ensaio, aqui, é quase sinô- cente incapacidade de produzir memória e nimo de experiência: como um flâneur, Edgard construir narrativas. recolhe nas vísceras as marcas do intelectual, Ao acionar as comportas da memória, do amante, do professor e do amigo, que se como diz logo nas primeiras linhas do texto, torna uma emergência narrativa na sua auto- ao problematizar a própria vida, Edgard biografia. O livro deixa pulsar a vida como um Carvalho propõe o que talvez possamos ensaio permanentemente experimentado. chamar também de uma pedagogia da expe- Toda autobiografia é um recrutamento riência contra o pensamento fragmentado, da imaginação e da memória. Reativar a autorreferente, enclausurado, que não esta- memória, como diz Carvalho, é “desviver o belece comunicação com a própria história, passado”, reinventá-lo a partir da experiência como derivado de uma força transcendente, do presente. É operar o a posteriori freudiano, impessoal, incorporal. Religar não apenas é redesenhar o passado como condição de saberes, mas corpo e mente, individual e projetar vias incertas de futuro. “Qualquer recuperação do tempo é, portanto, imperfeita,

UMA ANTROPO-SOCIOLOGIA DE FILMES "NÃO RECOMENDÁVEIS"- PARTE II 98 Cronos: Revista da Pós-Grad. em Ciências Sociais, UFRN, Natal, v. 19, n. 2, jul./dez. 2018, ISSN 1982-5560 VIDA COMO EXPERIMENTAÇÃO DOS LIMITES E REINVENÇÃO DE SI lacunar, esquecidiça, recalcada”, afirma o com o que nos é dado a viver, com o que nos autor na página 17. Conexões não pretende acontece. Leitor de Carl Jung, Carvalho (2017) narrar uma existência tal qual um conjunto estabelece um diálogo permanente entre a de fatos coerente e intencionalmente orien- consciência e sua sombra, esta camada móvel tado para determinado projeto e que pode da alma onde se agitam os demônios, que ser apreendido a partir da compreensão de nos possuem enquanto não compreendemos uma teleologia pessoal, mas sim um trajeto que são nossas fontes vivas, conforme alerta cheio de “desatino, desavenças, contradi- Morin (2010) em Meus demônios. ções, desalentos, alegrias, decepções” (Id.). Um acontecimento traumático – Como o caminhante de Antonio Machado, tão acidente ocorrido em 2004, que o deixa celebrado por seu amigo Edgar Morin, esse politraumatizado – retorna ao Conexões da carioca-paulista-natalense-parisiense foi cons- Vida como se fosse um eco do Virado do Avesso truindo seu caminho enfrentando face a face o (2005), livro que chegou ao público brasileiro que lhe foi dado a viver. Nunca foi um demis- e foi avidamente lido por psicanalistas, fisio- sionário. Nunca fugiu do papel do instaurador terapeutas, psicólogos e cientistas sociais. de novas desordens do conhecimento. Nunca Conexões da vida é um exercício corajoso ficou na corda bamba. Por tudo isso, é claro, de reinvenção e desbravamento do conti- pagou o preço estimado na tabela cultural dos nente brumoso das lembranças, um livro feito paradigmas intelectuais ou morais. de intensidade, vibração e força afetiva mais É por meio dessa gramática instaura- do que analítica. Autobiografia de um sujeito dora de novas ordens que Edgard de Assis singular que se universaliza por conseguir Carvalho tenta dar sentido à sua própria dar uma forma única e particular às inquie- história: um exímio acordeonista que chegou tações dispersas de uma época. Edgard foi a se apresentar no Teatro Municipal do Rio de perseguido e preso durante a ditadura mili- Janeiro, nos anos 1950, mas foi interrompido tar no Brasil, pois esteve constantemente na pelas arbitrariedades paternas cujo maior linha de frente do desbunde cultural nacio- desejo era ver o filho formado na escola mili- nal. “O mundo se extinguiu naquela viagem tar. Anos depois ingressou no curso de direito, até o quartel do segundo Exército”, relembra. aventou a probabilidade da carreira diplomá- Findo o regime de exceção, prosseguiu sua tica e terminou por fazer seu caminho como carreira de professor universitário, equi- reconhecido intelectual, nos bancos universi- librando-se na linha tênue das fronteiras tários e fora deles. disciplinares e existenciais, desviando-se, Aqui os conflitos e desordens -fami sempre que possível, dos ataques assestados liares, que constituíram subjetivamente pelas patrulhas ideológicas protegidas nos o autor e condicionaram algumas de suas bunkers das teorias hegemônicas. escolhas futuras, tanto intelectuais como Desde a década de 1990, aprofunda-se afetivas ou sexuais são abundantes, farta- nas leituras de Edgar Morin e da complexi- mente narrados. Não como acertos de contas, dade. Passa a reorganizar as suas próprias mas como atividade criadora, uma tentativa bases epistemológicas de conhecimento, de compreensão, superação e expansão da uma forma de resistir ao “caráter unitário vida. Porque a experiência deve ser pensada, do conhecimento que foi perdido em nome condição sem a qual não sabemos o que fazer das expertises disciplinares e da vigilância

UMA ANTROPO-SOCIOLOGIA DE FILMES "NÃO RECOMENDÁVEIS"- PARTE II 99 Cronos: Revista da Pós-Grad. em Ciências Sociais, UFRN, Natal, v. 19, n. 2, jul./dez. 2018, ISSN 1982-5560 VIDA COMO EXPERIMENTAÇÃO DOS LIMITES E REINVENÇÃO DE SI punitiva do dispositivo acadêmico”. É dessa tristezas, tormentos, decepções, sucessos e maneira que tenta dissipar sua insatisfação em fracassos, forças e fraquezas. Uma herme- relação a um modelo de universidade pautado nêutica de si urdida com cuidado, paciência, na fragmentação, no enclausuramento de sangue, suor e lágrimas. Sem pretensões saberes em áreas de especialidades e na perda moralistas, Conexões expressa uma lição viva da dimensão subjetiva dos intelectuais. da experiência: “É preciso aprender a viver e De um jeito ou de outro, sempre escolheu conviver com nossos nãos, optar por outros a subversão e a resistência. Por precaução, itinerários, reaprender o espírito das profun- cercou-se de amigos que possibilitaram esse dezas que habitam nossas tonturas e névoas”. deslocamento constante de si. Em Natal, lugar Um livro impactante, mas sem sensacio- que escolheu como fonte de alimento cogni- nalismo. Um livro corajoso, mas desprovido tivo e afetivo e que visita com frequência, fez da apologia da autorreferência. amigos definitivos que proporcionaram um ambiente estimulante de experimentação das ideias e da vida. Com o Grupo de Estudos da Complexidade (GRECOM), na UFRN, conso- lidou uma parceria que já dura décadas, estabelecendo diálogos no sentido de ampliar e renovar a investigação sobre as ciências humanas, reposicioná-las a partir de novos horizontes teóricos, novas abordagens, novas questões. A sua participação ativa em eventos nacionais e internacionais promovidos pelo GRECOM, muitas vezes em parceria com o Complexus (PUC/SP), a descrição de cenários rústicos e intimistas das praias do Rio Grande do Norte, lugares onde ele confessa que se constituíram em momentos de reflexões e encontros consigo mesmo, as inúmeras participações em bancas de pós-graduação da UFRN, as conferências e seminários minis- trados por ele em Natal e cidades vizinhas, a familiaridade com que se desloca por alguns bairros na cidade fazem valer o título de assessor permanente do GRECOM e da UFRN. Quem sabe, um dia, lhe venha a ser outorgado o título de cidadão natalense. Mesmo sendo um relato não linear de uma história de vida, ao final, Conexões apre- senta um sujeito em perspectiva, por inteiro, sem máscaras, com suas angústias, alegrias,

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REFERÊNCIAS

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 2012.

CARVALHO, Edgard de Assis. Conexões da vida: uma antropologia da experiência. Natal, RN: Uma, 2017.

CARVALHO, Edgard de Assis. Virado do avesso. São Paulo: Selecta, 2005.

CARVALHO, Edgard de Assis. Enigmas da cultura. São Paulo: Cortez Editora, 2003.

DELILLO, Don. Ponto ômega. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

MORIN, Edgar. Meus demônios. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.

UMA ANTROPO-SOCIOLOGIA DE FILMES "NÃO RECOMENDÁVEIS"- PARTE II 101 Cronos: Revista da Pós-Grad. em Ciências Sociais, UFRN, Natal, v. 19, n. 2, jul./dez. 2018, ISSN 1982-5560

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE Reitor: José Daniel Diniz Melo Vice-reitor: Henio Ferreira de Miranda

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES Diretora: Profa. Maria das Graças Soares Rodrigues Vice-diretor: Prof. Sebastião Faustino Pereira Filho

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS Coordenador: Alexsandro Galeno Araújo Dantas Vice-coordenador: Orivaldo Pimentel Lopes Júnior

CRONOS – REVISTA DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS Editor Gerente: Orivaldo Pimentel Lopes Júnior Editora: Josimey Costa da Silva Auxiliar de Editoria: Luana Ferreira de Araujo

ORGANIZAÇÃO DO DOSSIÊ “Uma Antropo-Sociologia de Filmes Não Recomendáveis - Parte II”:

COMISSÃO EDITORIAL Alexsandro Galeno Araújo Dantas Ana Laudelina F. Gomes Cimone Rozendo José Antônio Spineli Lindozo Josimey Costa da Silva Orivaldo Pimentel Lopes Júnior

CONSELHO CIENTÍFICO Amaury Cesar Moraes – USP Boaventura de Sousa Santos – Universidade de Coimbra Denise Machado Cardoso – UFPA Edgar de Assis Carvalho – PUC-SP Evaldo Vieira – USP Jessé Souza – UFABC João Emmanuel Evangelista – UFRN John Lemos – New – USA José Manuel Pureza – Universidade de Coimbra Maria da Conceição Almeida – UFRN Mauro Koury – UFPB Michel Zaidan Filho – UFPE Teresa Sales – UNICAMP Vincent de Gaujelac – Université Paris 7 (FRANÇA)

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES Revisora: Karla Geane de Oliveira Gomes Diagramador: Victor Hugo Rocha Silva

IMAGEM DE CAPA: Agnolo Bronzino, Doppio ritratto del Nano Morgante (fronte https://it.wikipedia.org/wiki/Nano_Morgante)

A Revista CRONOS, do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais/UFRN, é publicada em Natal – Rio Grande do Norte, com periodicidade semestral. O propósito da CRONOS é que, ao contribuir com a produção e difusão de material altamente qualifica- do, seja uma referência entre as Ciências Sociais brasileiras, e com forte entrada na América Latina e em outros países. A cada número da revista, um dossiê temático anunciará a problemática em discussão, seguido de seções de artigos inéditos de autores inscritos num movimento transdisciplinar, e contará normalmente com uma entrevista realizada com um pensador da atualidade, uma sessão artístico-poética, e resenhas.

CATALOGAÇÃO NA FONTE

Cronos: Revista do Programa de Pós-graduação de Ciências Sociais da UFRN, v.1, n. 1 (jan./jun. 2000) – Natal, RN: EDUFRN – Editora da UFRN, 2000-.

Trimestral

Descrição baseada em: vol. 19, n. 2 (jul./dez. 2018)

ISSN Versão Impressa: 1518-0689 (até o volume 10: 2009) ISSN Versão Eletrônica: 1982-5560 (a partir do volume 4: 2003)

1. Ciências Sociais – Periódico. 2. Epistemologia – Periódico. 3. Ensino – Periódico. 4. América Latina – Periódicos. 5. Educação – Periódicos. 6. Antropologia – Periódicos.

CDU 301 (05) CDD 300.05

CRONOS – Revista do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes – CCHLA Av. Senador Salgado Filho, 3000 – Lagoa Nova – CEP 59078-970 http://periodicos.ufrn.br/index.php/cronos/login E-mail: [email protected] NATAL, RN – BRASIL

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