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ADMINISTRAÇÃO Revista da Administração Pública de

MACAU, 2014 322

AdministraÇÃO Revista da Administração Pública de Macau

Quatro números por ano

Director: José Chu

Director Executivo: Wu Zhiliang

Conselho de Redacção: Cheang Pui Pui Elias Farinha Soares Joana Maria Noronha Lou Shenghua Sou Chio Fai

Propriedade: Governo da RAEM

Edição: Direcção dos Serviços de Administração e Função Pública

Direcção, redacção e administração: Edifício Administração Pública, 26.º andar Rua do Campo, n.º 162, Apartado 463, Macau Telef. 28323623 Fax (853) 89871809 E-mail: [email protected] Distribuição e assinaturas: telef. 89871808 Composição e impressão: Imprensa Oficial da Região Administrativa Especial de Macau 1 500 exemplares ISSN 0872-9174

Os leitores podem aceder às versões chinesa e portuguesa da Revista “Ad- ministração” no seguinte endereço electrónico: http://www.safp.gov.mo; se- leccione a caixa “Informação dos serviços” e escolha a rúbrica “Revista de Administração Pública de Macau”. 323

Número 104 (2.º de 2014) • Volume XXVII • Junho de 2014

SUMÁRIO

325 A contribuição da governança para a melhoria da administra- ção pública e o desenvolvimento nacional Ho Veng On

337 Avaliação do desempenho da administração local na Europa: uma análise comparativa das experiências de Portugal, Grã- Bretanha, França, Suécia e Alemanha Duarte Manuel Forjaz Pacheco Trigueiros

357 Construção do sistema de avaliação do desempenho para os chefes de departamento no governo da RAEM Fong Ka I, Loi Hio Ian, Li Mengna

367 Análise comparativa entre as políticas de salário mínimo de Macau e a teoria dos fluxos Ao Io Weng

385 Acções de beneficência e de interesse público a cargo do sector do jogo de Macau até à abolição do monopólio Lou Shenghua

409 A esfera pública nas bibliotecas de Macau Xie Jingzhen

421 Macau e a política portuguesa em 1821 António Aresta

429 Abstracts 324

Os trabalhos publicados na revista Administração são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. Os trabalhos publicados em “Administração” podem, em princípio, ser transcritos ou traduzidos noutras publicações, desde que se indique a sua origem e autoria. É, no entanto, necessário um pedido de autorização para cada caso. Administração n.º 104, vol. XXVII, 2014-2.º, 325-336 325

A contribuição da governança para a melhoria da administração pública e o desenvolvimento nacional Ho Veng On*

1. Introdução A rápida transformação das funções do Estado, nomeadamente de- corrente do progresso tecnológico, de novas problemáticas ambientais e da crescente integração mundial das economias e dos mercados por via da globalização, introduziu novas realidades e exigências nos processos de administração pública e o conceito de governança como alternativo a Governo foi sujeito a novas concepções e parâmetros definitórios não só a nível académico mas também por parte de grandes organizações inter- nacionais, nomeadamente das Nações Unidas, Banco Mundial, OCDE e Fundo Monetário Internacional, entre outras. A evolução e consciência da importância do conceito de governança para referenciar as melhores práticas de administração pública conduziu inevitavelmente nas duas últimas décadas à necessidade de se explicitar o conceito de boa governança para qualificar a governança que deve servir de exemplo ao exercício do poder político e administrativo nos diferentes Estados. A grave crise financeira de 2008 veio reforçar a compreensão da im- portância da boa governança, perante os maus exemplos de ausência de governança ou de deficiente regulação para prevenir ou conter as falhas de mercado no funcionamento dos sistemas bancário e financeiro, com repercussões internacionais numa crise de crescimento económico, de emprego e investimento produtivo nas economias da OCDE ainda não inteiramente superada.

2. O conceito de boa governança e suas implicações na gestão pública e no desenvolvimento nacional De acordo com o proposto pela INTOSAI no documento sujeito a consulta - INTOSAI GOV 9160 – Enhancing Good Governance for

* lntervenção do Comissário da Auditoria de Macau na VIII Assemblcia Gcral da OISC/ CPLP, Setembro de 2014 - Brasil. As conclusões da intervenção foram integradas na "Declaração de Brasília". 326

Public Assets, Guiding Principles for Implementation, o conceito de gover- nança (governance) não deve ser confundido com o de governo, como órgão constitucionalmente responsável pela condução da política geral e pelo exercício do poder de administração pública num Estado de Direito. A governança consiste no processo de tomada de decisões e no processo segundo o qual as decisões são implementadas. A governança enquanto processo de tomada de decisões e sua implementação envolve não só a actuação do governo, mas também outros parceiros ou sectores da socie- dade, nomeadamente as empresas, as organizações não-governamentais, as instituições financeiras, os institutos de investigação, os meios de co- municação social e os militares. Por seu turno, a boa governança pode ser definida como o exercício do poder ou da autoridade – política, económica, administrativa e outra – para gerir os recursos e assuntos públicos de um país. A boa governança compreende os mecanismos, os processos e as instituições, segundo as quais os cidadãos e grupos articulam os seus interesses, exercem os seus direitos, cumprem as suas obrigações e medeiam as suas diferenças. No documento supra mencionado, a INTOSAI com base em parte nas contribuições das Nações Unidas sobre o significado de boa gover- nança (nomeadamente da publicada pela Comissão Económica e Social para a Ásia e Pacífico das Nações Unidas em 2009 – What is Good Gover- nance?), propõe um conjunto de princípios-chave identificadores de boa governança pública, designadamente os relativos a: • Accountability (assunção de responsabilidades e prestação de contas no sector público); • Abertura (transparência no funcionamento das instituições públi- cas); • Coerência (na gestão das políticas públicas e entre os diferentes ní- veis de autoridade pública); • Consenso-orientado (implica uma mediação entre diferentes interes- ses e sensibilidades da sociedade e uma visão conjunta do que é o melhor para o interesse geral da comunidade numa perspectiva de longo prazo ou seja de desenvolvimento humano sustentável); • Eficiência (produção de resultados que vão encontro das necessida- des da sociedade com o melhor uso possível dos recursos disponí- veis, não descurando a protecção ambiental); 327

• Equidade e inclusividade (uma sociedade que se pretende de bem- -estar exige que se reparta com equidade os benefícios da riqueza criada e que não se exclua ninguém, inclusive os grupos mais vul- neráveis, das oportunidades de acesso a uma vida condigna ou de melhoria da qualidade de vida); • Participação (dos cidadãos, de organizações não-governamentais e dos representantes do sector laboral, entre outros stakeholders, na preparação, implementação e monitoramento das políticas públi- cas); • Capacidade de resposta (a boa governança exige uma tomada de de- cisões em tempo oportuno e no interesse colectivo); e • Estado de Direito (a boa governança requer um enquadramento constitucional e legal justo e imparcial, com um poder judiciário independente e forças de ordem isentas e incorruptíveis). Estes princípios de boa governação são essenciais para que os Estados e economias de cada país proporcionem um ambiente institucional favo- rável a um processo de desenvolvimento nacional com a participação dos cidadãos e para os cidadãos e de uma forma sustentável nas vertentes da economia, financeira, social e ambiental. A boa governança pública contribui indubitavelmente para uma me- lhor administração pública no sentido de que se torna: • Mais transparente e prestadora de contas; • Mais cuidada na definição e concertação das políticas públicas e na mediação de diferentes interesses sociais; • Mais próxima do cidadão e auscultadora da sociedade civil aquan- do da tomada de decisões públicas, sua implementação e monito- ramento; • Mais ciente do dever de garantir a sustentabilidade das finanças públicas e dos sistemas de segurança social de modo a salvaguardar ou melhorar as oportunidades de desenvolvimento das gerações futuras (equidade intergeracional); • Mais atenta aos aspectos equitativos e qualitativos do desenvol- vimento, nomeadamente de participação de todos na criação e 328

benefícios da riqueza produzida e de integração e inclusividade dos grupos sociais mais vulneráveis; • Mais exigente quanto à eficiência e prestação qualitativa dos bens e serviços públicos e no combate à corrupção, evasão fiscal e bran- queamento de capitais; • Mais responsável socialmente e eticamente perante os cidadãos quanto às escolhas públicas, tomada de decisões e visão prospectiva de desenvolvimento humano e sustentável. Os princípios de boa governação pública colocam desafios acresci- dos ao gestor público cuja actuação ao se balizar por aqueles princípios o torna mais responsável quanto ao rigor, transparência, integridade e efi- ciência das opções tomadas, a que acresce o dever de cidadania de prestar contas qualitativas da gestão dos recursos públicos geridos e/ou dos servi- ços públicos prestados. Os mesmos ideais de boa governança afiguram-se aplicáveis a todos os países ou economias do mundo, independentemente do seu estádio de desenvolvimento, e constituem um referencial de princípios na actuação das administrações públicas e concomitante gestão do sector público, ain- da que exercidos por diferentes actores e em diferentes partes do mundo. A boa governança pública é susceptível também de vir a relançar novas problemáticas nos paradigmas de administração pública, tendo em atenção que nos seus princípios (ou virtudes) se encontram valores de igualdade de oportunidades, de maior participação dos cidadãos nas to- madas de decisão do poder político, de dignificação da vida humana nos estratos sociais mais vulneráveis, de sustentabilidade económica, finan- ceira, social e ambiental e de equidade intergeracional que se configuram transcender as escolhas públicas predominantes no modelo da nova ges- tão pública (new public management) muito concentrado nos valores de mercado e na eficiência produtiva. Na realidade, a nova gestão pública, enquanto paradigma ainda do- minante nas economias ocidentais, pretende responder às exigências de uma administração pública mais desconcentrada na tomada de decisões, funcionalmente e organizacionalmente mais complexa e susceptível de melhor se adaptar aos desafios e ameaças da globalização. A nova gestão pública assenta ideologicamente num Estado garan- tidor (baseado na ideia dominante das virtudes dos “mercados”), que 329 prevalece relativamente a um Estado social (onde predominam as preo- cupações sociais e de “bem-estar”). O Estado garantidor valoriza os prin- cípios de funcionamento dos mercados e da prestação de alguns serviços públicos por entidades privadas ou através de parcerias público-privadas, tudo em nome da alegada superioridade da eficiência produtiva do sector privado versus sector público.

3. As Instituições Superiores de Controlo e os desafios do controlo externo e independente da boa governança pública A auditoria externa e independente exercida pelas Instituições Superiores de Controlo (ISC) é parte integrante da boa governança, ten- do em atenção o seu papel relevante no controlo das finanças públicas, na promoção da transparência e prestação de contas públicas, eficiência, economia e eficácia na gestão dos recursos públicos e no suporte de um desígnio de desenvolvimento humano e sustentável das economias nacio- nais. Confinada inicialmente a sua intervenção pública às auditorias financeiras e às auditorias de legalidade e regularidade, o processo evolu- tivo das responsabilidades/competências das ISC tem vindo a processar- -se num sentido de alargamento da natureza das auditorias bem como do objecto das mesmas, perseguindo o seu campo de actuação as diferentes áreas de actuação dos poderes públicos e a forma institucional e local onde os activos públicos são geridos ou os dinheiros públicos despendi- dos, o que por vezes exige um novo ou renovado mandato nacional e/ou alargamento de competências orgânicas e funcionais. No contexto actual, o controlo financeiro externo e de conformidade (da legalidade e regularidade) por parte das ISC, ainda que subsista como contributo imprescindível ao bom desempenho da gestão dos dinheiros públicos nos Estados modernos, é manifestamente insuficiente para co- brir os novos aspectos da gestão dos recursos públicos, particularmente dos decorrentes da nova gestão pública e muito mais ainda dos emergentes dos princípios e práticas da boa governança. O reconhecimento das novas exigências e múltiplas facetas de admi- nistração pública fez com que as auditorias de natureza operacional ou de resultados assumissem nas ISC uma prioridade e centralidade na avaliação 330

dos méritos da gestão pública, podendo as mesmas serem consideradas com um instrumento imprescindível na promoção da boa governança. Na realidade, as auditorias de resultados promovem a transparência e prestação de contas e a criação de valor (value for money) na gestão dos recursos públicos e através das suas conclusões/recomendações assumem um carácter pedagógico em prol de uma gestão pública com princípios de desempenho assentes na economicidade, eficiência e eficácia (os Três Es), a que se podem acrescer os critérios de efectividade e de equidade que basicamente têm a ver com a forma como são realizados os programas públicos e diferenciada a oferta dos serviços em função das necessidades do público-alvo. Os benefícios das auditorias operacionais estendem-se às vertentes das recomendações de melhores disposições e práticas de controlo interno, às quais não podem ser vistas apenas como um mero instrumento de de- tecção de irregularidades (e de eventual corrupção), mas também como um meio de exercer em tempo oportuno uma melhor e mais transparente gestão pública ao serviço das partes interessadas (stakeholders) e do cidadão em geral. Em particular, compete posteriormente às auditorias de segui- mento avaliar o grau de cumprimento das recomendações formuladas nas auditorias operacionais e aferir sobre os progressos registados no desem- penho qualitativo da gestão pública do sujeito a auditoria. Pelo exposto, a avaliação de desempenho da gestão da coisa pública através das auditorias operacionais a cargo das ISC - contribui indubita- velmente para uma melhor administração pública e melhor conhecimen- to do cidadão sobre se a aplicação do dinheiro público está a ser gerida segundo os princípios da boa gestão financeira e com utilidade social (value for money). Importa sublinhar que o escopo das auditorias de natureza opera- cional nalgumas jurisdições pode ser alargado às políticas públicas, aos programas públicos e a matérias que transcendem o mero foro nacional, como as de natureza ambiental, o que se conjuga com um papel mais alargado das ISC não só como promotor de uma boa governança nacio- nal como também de uma melhor governança transnacional. Por seu turno, nos desenvolvimentos mais recentes das problemáti- cas das auditorias vocacionadas para contribuir para uma boa governança pública, susceptível de melhorar a administração pública e promover o desenvolvimento nacional, merece um particular destaque a realização 331 do 21.° Congresso Internacional da INTOSAI, realizado em Outubro de 2013 na República Popular da China, o qual culminou com a “Declaração de Beijing”. Em Beijing, foram objecto de debates duas temáticas centrais aos de- safios actuais de promoção da boa governança pública: auditoria nacional e governança nacional (tema I) e o papel das instituições superiores de contro- lo na salvaguarda a longo prazo da sustentabilidade das políticas de finanças públicas (tema II). Entre as conclusões ou recomendações referentes ao primeiro tema importa salientar o reconhecimento do importante papel que as ISC podem ter a nível de cada Estado-membro no reforço da boa governança nacional, designadamente no que se refere à criação de bases para um desenvolvimento sustentável e para uma “vida humana condigna” para todos os cidadãos e a nível da comunidade internacional na promoção da boa governança global em consonância com a INTOSAI ou suas organi- zações regionais. As perspectivas de expansão do âmbito da auditoria pública no contexto da boa governança pública Os recentes desenvolvimentos na actividade das instituições superio- res de controlo externo têm sido marcados por uma expansão no âmbito de incidência das auditorias ou pelo desenvolvimento de estudos ou debates em grupos de trabalho nos mais variados domínios da auditoria pública, muitos deles sob a coordenação e iniciativa da INTOSAI e seus organismos regionais. Em parte, esta nova dinâmica na actividade das ISC surgiu em res- posta aos desafios e ameaças da crise financeira de 2008, bem assim como dos apelos e resoluções das Nações Unidas e outras organizações interna- cionais a uma melhor governança nacional e global que coloque o desen- volvimento humano e sustentável no centro das atenções dos governantes e responsáveis pela condução das políticas públicas. Em particular, as falhas dos reguladores e das agências de notação de risco de crédito estão em grande parte na origem da grave crise bancária e financeira de 2008, a que acresce o agravamento dos fenómenos de cor- rupção, de evasão fiscal e movimentos ilícitos de capitais ainda não sufi- cientemente combatidos e que em parte causam dificuldades orçamentais e de sustentabilidade financeira dos Estados modernos. 332

Merece um apontamento especial, as recomendações do VIII Con- gresso da INTOSAI referentes ao papel da auditoria pública no que se refere à actividade das entidades reguladoras independentes, as quais con- vergem no sentido de as ISC disporem de competências mais abrangentes para submeterem à auditoria aquelas entidades, incluindo os responsáveis pela supervisão financeira (bancos centrais). Trata-se no fundo de sujeitar as entidades responsáveis pela supervisão dos sectores financeiro e bancá- rio ao controlo da boa governança através do exercício de auditoria exter- na e independente a cargo das ISC. Os desafios que se colocam às ISC na promoção da boa governança no sector público são imensos, atentos os princípios definidores da boa governança pública propostos pela INTOSAI. Em particular, desenha- -se o surgimento de novas orientações ou normas internacionais no cam- po da gestão pública nomeadamente em matéria de promoção da boa governança dos activos públicos que constitui um domínio relevante no universo da gestão dos recursos públicos (proposta da INTOSAI GOV 9160 – Enhancing Good Govemance for Pulic Assets, Guiding Principles for Implementation). Face à nova definição de boa governança e provável aprovação dos respectivos princípios, perspectivam-se novas normas internacionais a definir pela INTOSAI a cobrir mais campos de actuação dos poderes pú- blicos sujeitos a auditoria, à semelhança do proposto recentemente com a boa governança dos activos públicos. Acresce ainda os desafios à auditoria pública na promoção de uma efectiva governança nacional, fundamental para acelerar os progressos das Metas do Desenvolvimento do Milénio (MDG’s), na Agenda Prospectiva do Pós-2015. Boa governança pública, acesso generalizado a serviços pú- blicos básicos de qualidade, existência de instituições capazes de garantir o Estado de direito, a transparência e prestação de contas e a participação dos cidadãos e um desenvolvimento humano inclusivo e sustentável cons- tituem pedras basilares à condução do objectivo universal de “Uma Vida com Dignidade para Todos” no Pós-2015. Os valores e benefícios da participação pública na boa governan- ça pública e na auditoria externa Num novo ambiente institucional nacional e internacional, mode- lado pelos princípios de boa governança pública defendidos pelas Nações 333

Unidas e pela INTOSAI, entre outras grandes organizações transnacio- nais ou relevantes instituições internacionais, a auditoria pública ganha uma valorização acrescida no que se refere a um novo paradigma de re- lacionamento entre os cidadãos e os governantes e na resposta pró-activa das ISC a uma participação dos cidadãos no controlo financeiro do Esta- do e na boa gestão pública a quem a mesma se destina. Na realidade, num Estado e governança pública responsáveis a par- ticipação do cidadão e de outras partes interessadas (stakeholders) nas decisões públicas será susceptível de ser incentivada pelos próprios gover- nantes aquando da preparação, implementação e monitoramento das po- líticas públicas ou de programas públicos, competindo às ISC promover o exercício pró-activo dos direitos de cidadania. À luz da boa governança pública, num Estado responsável e num Governo aberto, os servidores públicos devem saber não só respeitar os critérios técnicos de boa gestão, como também saber dialogar, auscultar as opiniões e comunicar as decisões político-administrativas aos cidadãos, competindo às ISC promover uma cultura de cidadania pró-activa nas questões de administração pública.

4. O papel do Comissariado da Auditoria de Macau na promoção da boa governança, na melhoria da administração pública e do desenvolvimento da Região Administrativa Especial de Macau A auditoria pública na Região Administrativa Especial de Macau tem vindo a processar-se nos últimos anos num ambiente macroeconó- mico favorável, caracterizado por taxas de crescimento económico médio anual de dois dígitos, elevado investimento público e privado, baixíssima taxa de desemprego e apuramento de significativos excedentes na balança externa de bens e serviços e nas contas orçamentais. A RAEM não dispõe de qualquer dívida pública e antes pelo contrário regista uma significativa reserva financeira para fazer face aos riscos de uma elevada concentração das receitas públicas no sector do jogo e ao acentuado envelhecimento prospectivo da população residente. Apesar deste ambiente macroeconómico favorável, o Comissariado da Auditoria da Região Administrativa Especial de Macau (CA) prosse- gue uma actuação de rigor no controlo da gestão dos recursos públicos e 334

de grande exigência quanto à transparência e prestação de contas, ciente das suas responsabilidades sociais em promover uma boa governança pú- blica, ao serviço dos cidadãos de Macau. O CA norteia a sua acção por um conjunto de princípios e boas prá- ticas de auditoria que procuram ir ao encontro dos desafios e exigências que se colocam às Instituições Superiores de Controlo (ISC) enquanto entidades indutoras da boa governança pública, através da prestação de um serviço independente nas auditorias à gestão e aplicação de dinheiros e valores públicos. A prestação do serviço de auditoria pública por parte do CA processa-se nomeadamente através do controlo financeiro e emis- são de parecer sobre a Conta Geral da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM) e da realização de diferentes tipos de auditorias opera- cionais (de resultados ou de desempenho) nomeadamente das dirigidas às práticas de gestão nos serviços e organismos públicos “sujeitos a audito- ria”, aos grandes empreendimentos públicos ainda na sua fase de execu- ção ou à eficiência na gestão dos contratos de concessão de exploração de serviços públicos ao sector privado. Dos princípios e das boas práticas que norteiam as actividades de au- ditoria do CA de Macau, destacamos, nomeadamente, os seguintes: Princípios éticos e profissionais que servem de referência à actua- ção do CA e expressam-se por uma cultura de integridade, transparência, independência, responsabilidade, objectividade, compromisso, profissio- nalismo e inovação; Elevado sentido de responsabilidade social no sentido de desem- penhar as suas atribuições de uma forma informativa/formativa junto dos cidadãos e de garante da boa governança dos recursos públicos, levando a cabo uma comunicação aberta e oportuna das suas actividades e resul- tados de auditoria, através da publicação e divulgação dos relatórios de auditoria na comunicação social e no próprio website; Qualidade dos processos de auditoria – A realização de auditorias tem por referência os padrões e normas de auditoria internacionalmente reconhecidas e provenientes da INTOSAI; Elevada qualificação e especialização dos recursos humanos numa pluralidade de áreas do saber que possam responder aos desafios de auditoria e boa governança pública; 335

Existência de um adequado sistema de controlo de qualidade harmonizado com as normas emitidas pela INTOSAI;

Uso de sistemas e tecnologias de informação e de comunicação, nomeadamente na prestação electrónica das contas públicas e no controlo externo operacionalmente harmonizado com o controlo interno dos ser- viços e organismos públicos;

Cooperação multilateral ou bilateral com instituições congéneres de auditoria, nomeadamente do Interior da China, com a Região Admi- nistrativa Especial de Hong Kong, com os países de expressão portuguesa e a Organização das Instituições Superiores de Controlo da CPLP, entre outros, tendo em vista beneficiar de oportunidades de formação técnica especializada ou de intercâmbio de conhecimentos e actualização de sabe- res segundo princípios, normas e práticas de auditoria internacionalmente reconhecidas.

Actualmente, o CA, a par das auditorias financeiras e das auditorias de resultados ou de desempenho, privilegia a realização de auditorias aos grandes empreendimentos públicos em curso de execução, os quais por envolverem a mobilização de consideráveis recursos públicos – financei- ros, humanos e naturais, entre outros, - exigem da auditoria pública uma particular atenção à eficiência e eficácia da sua gestão pública dado esta- rem em causa a aplicação plurianual de significativos recursos financeiros e a qualidade de vida da população no domínio das políticas de urbanis- mo e de transportes colectivos e do meio ambiente.

Os resultados destas auditorias, cujos relatórios são divulgados aos cidadãos, constituem um contributo do CA para a boa governança pú- blica na RAEM, nomeadamente através de um conjunto de sugestões dirigidas às entidades públicas gestionárias dos projectos no sentido de melhorarem os processos de gestão de controlo interno, de risco de derra- pagens orçamentais, de incumprimento de prazos de execução ou de falta de qualidade dos empreendimentos.

Na base de uma compreensão dos desafios actuais que se colocam à auditoria pública, o CA está pois firmemente empenhado em contribuir para a boa governança pública, centrada nos cidadãos, na transparência e prestação de contas, eficiência na administração pública e sustentabilida- de do desenvolvimento da Região. 336

5. Conclusões Em síntese do tema proposto, podemos concluir o seguinte: • Compete às Instituições Superiores de Controlo contribuir para uma boa governança pública, susceptível de melhorar a adminis- tração pública e de proporcionar melhores condições para um de- senvolvimento humano e sustentável; • A auditoria pública à boa governança pública constitui um enorme desafio técnico, formativo e organizacional e, porventura, de alar- gamento de mandato para as Instituições Superiores de Controlo poderem responder positivamente às exigências de um controlo externo e independente em matérias de governação abrangentes e subjacentes nos princípios (requisitos) definidores da boa gover- nança propostos pela INTOSAI; • Os princípios de boa governança pública propostos pela INTO- SAI, os quais derivam em parte das recomendações das Nações Unidas formuladas ao longo das últimas décadas, advogam o exercício de uma Administração Pública eficiente, transparente e prestadora de contas, respeitadora dos princípios do Estado de di- reito e centrada na participação e interesses dos cidadãos, conjuga- damente com uma governança ética e socialmente responsável na prossecução de objectivos de desenvolvimento humano equitativo e inclusivo e sustentável nas dimensões económica, financeira, so- cial e ambiental; • Este novo enquadramento conceptual e ideário de governança pública reforça indubitavelmente a importância e responsabilidade das Instituições Superiores de Controlo na promoção da boa go- vernança pública nacional e global e potencia um acréscimo no va- lor e benefícios da auditoria pública para os cidadãos, justificando- -se, assim, que a mesma temática pela sua relevância e acrescida actualidade seja susceptível de um continuado e mais aprofundado debate de troca de ideias, concepções e boas práticas de auditoria no seio das acções futuras da Organização das Instituições Superio- res de Controlo da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Administração n.º 104, vol. XXVII, 2014-2.º, 337-356 337

Avaliação do desempenho da administração local na Europa: uma análise comparativa das experiências de Portugal, Grã-Bretanha, França, Suécia e Alemanha Duarte Manuel Forjaz Pacheco Trigueiros*

I. Introdução Desde há muito que os governos e a máquina administrativa do es- tado têm procurado desenvolver indicadores para avaliar o desempenho da administração pública; mas foi durante as décadas de 1960 e 1970 que a avaliação do desempenho administrativo mais se expandiu.1 O movi- mento conhecido como Nova Gestão Pública (New Public Management, NPM) reavivou a avaliação do desempenho, primeiro nos países escandi- navos e depois no resto da Europa, dando-lhe um cariz económico e acres- centando-lhe um novo fim, a modernização da administração pública. Este artigo discute medidas tomadas para avaliar o desempenho das administrações locais em diferentes países Europeus e resultados obtidos. São comparados o caso Português com os da Alemanha, França, Grã-Bre- tanha e Suécia, países que ilustram diferentes caminhos para implementar

* Professor visitante na Universidade de Macau e research fellow da ADETTI-University Institute of Lisbon. O artigo usa a metodologia seguida por Wollmann, H. (2008) Reformen in Kommunalpolitik und verwaltung. England, Schweden, Frankreich und Deutschland im Vergleich. Wiesbaden: VS Verlag; e por Kuhlmann, S. (2010) Perfor- mance Measurements in European Local Governments: a comparative analysis of reform experiences in Great Britain, France, Sweden and Germany, International Review of Ad- ministrative Sciences, 76(2): 331–345. Ao estender a análise ao caso de Portugal, o autor procurou preservar a metodologia e motivações originais. 1 Ver Pollitt, C. e Bouckaert, G. (2004) Public Management Reform. A Comparative Analysis. Oxford University Press; e também Wollmann, H. (ed.) (2003) Evaluation in Public Sector Reform. Concepts and Practice in International Perspective. Cheltenham / Northampton: Elgar. Outros textos de interesse são: Bouckaert, G. e Halligan, J. (2008) Managing Performance, International Comparisons. New York: Routledge; De Lancer, J.P. (2009) Performance-Based Management Systems Effective Implementation and Main- tenance. Boca Raton: Taylor & Francis; Pollitt, C. (2006) Performance Management in Practice: A Comparative Study of Executive Agencies, Journal of Public Administration Research and Theory, 16(1): 25-44. 338

a avaliação do desempenho. A base conceptual do artigo é apresentada na parte II; segue-se a análise separada por país (partes III a VII) e a análise comparativa (parte VIII).

II. Definição dos conceitos usados na comparação entre países Avaliar o desempenho é quantificar e registar ações administrativas usando indicadores e rácios. Quando tais rácios e indicadores são depois usados para melhorar a ação político-administrativa, fala-se de gestão do desempenho. A avaliação do desempenho é pois a autoavaliação da administração pública com o fim de controlar as ações institucionais e os respetivos resultados, analisando e interpretando racionalmente esses resultados e comparando-os com os de outras organizações (comparação de desempenho, benchmarking). A literatura sobre a avaliação do desem- penho na administração pública usa a “visão sistémica” que considera os serviços administrativos como tendo três partes: as entradas (input), o processo e as saídas (output). A cada uma destas partes corresponde uma família de indicadores de desempenho:

1. Os indicadores de entrada medem recursos usados (pessoal, cus- tos, tempo e outros).

2. Os indicadores de processo avaliam procedimentos para tomada de decisões e implementação (por exemplo indicadores de coordenação, gestão e transparência).

3. Os indicadores de saída medem quantidade e qualidade de deci- sões administrativas (por exemplo, indicadores de qualidade dos serviços).

A estes três grupos é costume acrescentar outros dois grupos de indi- cadores globais:

4. Os indicadores de impacto medem aquilo que os beneficiários re- cebem (por exemplo, indicadores de satisfação, de aceitação de medidas, de observância de proibições).

5. Os indicadores de resultado identificam os efeitos na sociedade e as consequências das políticas públicas de longo prazo (indicadores de desigualdade social, de crescimento económico, de qualidade ambiental e outros). 339

É também importante identificar a instituição a quem compete, dentro do sistema político-administrativo de cada país, medir o desempe- nho. A avaliação pode ser feita, quer no interior da organização que está a ser avaliada (avaliação interna ou autoavaliação), quer por organizações externas. Por sua vez, a avaliação externa pode ser vertical (por exemplo, a administração central avalia o município ou um ministério avalia a sua agência local) ou horizontal (vários municípios entre si ou uma assem- bleia local que avalia a respetiva administração). A avaliação interna pode também ser vertical (por exemplo, cada chefia avalia as unidades a seu cargo) ou horizontal (por exemplo, avaliação entre unidades da mesma autarquia). A Figura 1 resume as diferentes configurações institucionais para medir o desempenho.

Figura 1 - Tipologia dos sistemas de avaliação do desempenho na Europa

2 OutrosOutros elementos elementos de análise de a teranálise presente a ter ao presentecomparar aoreformas comparar são osreformas seguintes:2 1.são Oos modo seguintes: de dirigir a reforma: de cima para baixo (top-down) ou de baixo para cima (bottom-up) segundo a iniciativa de reformar tenha partido da administração central 2 Ver, entre outros artigos, Jann, W. e Jantz, B. (2008) A Better Performance of Performance Management(avaliação, inobrigatória) KPMG (ed.), ou Holydas administraçõesGrail or Achievable locais Quest. (avaliação International voluntária); Perspectives 2.on OPublic desenho Sector e implementaçãoPerformance Management dos indicadores, pp. 11-28, de desempenhoKPMG international; adotados, ou que Van pode ser Dooren, W. e Van de Walle, S. (2008a) Reality is merely an illusion, albeit a persistent one: introductiona. generalista to the eperformance dogmático, measurement independente symposium, portanto International do contexto Review onde osof indicadores Administrativeirão Sciences ser usados; (74): 531 ou -pelo 34. Oucontrário ainda Van pragmático Dooren, W., e experimental, Van de Walle, S.orientado (ed.) para a (2008b) Performance information in the Public Sector: How it is used. London: Mcmillan. aprendizagem, para casos concretos, para tarefas administrativas; b. orientado para o controlo (por parte da administração central, por exemplo) ou pelo contrário, para guiar ativamente a reforma e para a aprendizagem; 3. A transparência, isto é, os dados sobre o desempenho serem ou não tornados públicos; 4. O poder para impor sanções: os meios, alcance e intensidade das penalizações e recompensas associadas a um mau e bom desempenho;

5. O grau de difusão em cada país, a uniformidade geográfica da implementação das reformas e a existência ou não de comparações intermunicipais do desempenho. Mas os indicadores são sempre a base de qualquer sistema de avaliação. Sem indicadores não existem políticas nem gestão baseada na evidência (evidence-based policy making / administration). O tipo e o alcance da avaliação do desempenho dependem dos indicadores que

2 Ver, entre outros artigos, Jann, W. e Jantz, B. (2008) A Better Performance of Performance Management, in KPMG (ed.), Holy Grail or Achievable Quest. International Perspectives on Public Sector Performance Management, pp. 11-28, KPMG international; ou Van Dooren, W. e Van de Walle, S. (2008a) Reality is merely an illusion, albeit a persistent one: introduction to the performance measurement symposium, International Review of Administrative Sciences (74): 531 - 34. Ou ainda Van Dooren, W., Van de Walle, S. (ed.) (2008b) Performance information in the Public Sector: How it is used. London: Mcmillan. 340

1. O modo de dirigir a reforma: de cima para baixo (top-down) ou de baixo para cima (bottom-up) segundo a iniciativa de reformar tenha partido da administração central (avaliação obrigatória) ou das adminis- trações locais (avaliação voluntária); 2. O desenho e implementação dos indicadores de desempenho ado- tados, que pode ser a. generalista e dogmático, independente portanto do contexto onde os indicadores irão ser usados; ou pelo contrário pragmático e experi- mental, orientado para a aprendizagem, para casos concretos, para tarefas administrativas; b. orientado para o controlo (por parte da administração central, por exemplo) ou pelo contrário, para guiar ativamente a reforma e para a aprendizagem; 3. A transparência, isto é, os dados sobre o desempenho serem ou não tornados públicos; 4. O poder para impor sanções: os meios, alcance e intensidade das penalizações e recompensas associadas a um mau e bom desempenho; 5. O grau de difusão em cada país, a uniformidade geográfica da implementação das reformas e a existência ou não de comparações inter- municipais do desempenho. Mas os indicadores são sempre a base de qualquer sistema de avalia- ção. Sem indicadores não existem políticas nem gestão baseada na evidên- cia (evidence-based policy making / administration). O tipo e o alcance da avaliação do desempenho dependem dos indicadores que forem escolhi- dos e da subsequente aplicação que deles é feita. A informação registada pelos indicadores deve permitir guiar ativamente a reforma da administra- ção local, nomeadamente para rever políticas e corrigir erros, lacunas ou desvios. Tanto no tipo de indicadores usados como em outros elementos de análise referidos, os países Europeus estudados variam muito.

III. Grã-Bretanha: reforma obrigatória, centralizada, transparente e com sanções A Grã-Bretanha é o país europeu mais conhecido pelo estabele- cimento de instrumentos de avaliação do desempenho administrativo local. O sistema conhecido como “Best Value” (BV) lançado em 1999, 341 bem como o sistema de avaliação global de desempenho, o “Compreensive Performance Assessment” (CPA) iniciado em 2002, tornaram obrigatória a avaliação do desempenho das autoridades urbanas e territoriais (city / county councils) e a sua comparação.3 Estas reformas, impostas desde Londres, refletem a vontade de controlar o desempenho dos municípios em sectores-chave da prestação de serviços. Para tal, o governo central criou todo um arsenal de indicadores de desempenho pontuados de 1 a 4 (excelente, bom, adequado e insuficiente) que são atribuídos por instân- cias especializadas criadas para o efeito ou por agências como a Comissão Central de Auditoria. O desempenho insuficiente pode levar à demissão dos dirigentes municipais eleitos e sua substituição por especialistas exter- nos nomeados. No caso oposto, o governo central recompensa o desem- penho excelente com uma afetação adicional de recursos ou a remoção de certas obrigações legais. O sistema Britânico ilustra bem a variante vertical e externa de avaliação do desempenho. As reformas vêm de cima para baixo, sendo obrigatórias e uniformes em todo o território; os indicadores de desem- penho são generalistas e dogmáticos; a informação sobre o desempenho é muito transparente, sendo semelhante ao “ranking” de escolas ou a uma tabela de posições de clubes num campeonato; e à hora de impor sanções é muito efetiva. Porém, o sistema tem pouco efeito no processo endógeno de aprendizagem e melhoria das autoridades locais. Enquanto o “Best Value” usa indicadores de eficiência, eficácia e or- ganização, ou seja, de entrada, saída e do processo, o sistema CPA (e mais tarde o CAA – “Compreensive Area Assessment”) concentram-se no contro- lo da estratégia global das autoridades locais e territoriais através de indi- cadores de impacto e de resultado como saúde, segurança ou bem-estar. O método Britânico de avaliação do desempenho das administra- ções locais é eficaz e transparente, com boa acessibilidade aos dados, so-

3 As citações e as estatísticas apresentadas nesta seção pertencem aos seguintes artigos: Stewart, J. (2003) Modernising British Local Government. Houndmills: Palgrave; Wegener, A. (2004) Benchmarking-Strategien im öffentlichen Sektor. Deutschland und Großbritannien im Vergleich, in S. Kuhlmann, J. Bogumil and H. Wollmann (ed.) Leistungsmessung und -vergleich in Politik und Verwaltung, pp. 251-266. Wiesbaden: Edition Sigma; ou Davis, H., Downe, J. e Martin, S. (2001) External Inspection of local government. Driving improvement or drowning in detail? Layerthorpe / York: Joseph Rowntree Foundation 2001. 342

fisticação de instrumentos, cobertura territorial e sanções. Mas importa compreender os seus pontos fracos, que são a contrapartida inevitável dos pontos fortes referidos acima. Primeiro, a inspeção permanente e com boa cobertura territorial implica um enorme investimento financeiro (excluindo despesas locais para questionários e medições, os custos de inspeção do “Best Value” em 2000-2001 foram de 600 milhões de libras). Depois, a inspeção pode ser desmotivadora: a crescente reação das auto- ridades locais contra o controlo contínuo por parte de auditores centrais, coloca dificuldades à avaliação e tende a reduzir a sua qualidade. Hoje, a validade e a confiabilidade dos indicadores de desempenho são ques- tionadas com base na suspeita de que essas medições são manipuladas localmente. Os procedimentos de inspeção são cada vez mais vistos como encenações onde as autoridades locais atuam como comediantes, capazes de transmitir um clima favorável para receberem o “Best Value” das mãos dos inspetores. As autoridades locais que sejam boas a produzir estratégias e planos, a colher ou criar dados para a auditoria, conseguem esconder problemas que porventura existam na prestação de serviços, subterrando- -os debaixo de uma montanha de papel e de dados.

IV. França: reforma voluntária, descentralizada, sem sanções

A avaliação do desempenho posto a funcionar pelas “comunas” (ad- ministrações locais Francesas) é o oposto da praticada na Grã-Bretanha. Nem o governo Francês nem outra instância do poder central intervieram nas reformas.4 Desde o início da década de 1990, várias comunas (conhe- cidas como “communes innovatrices”) começaram discretamente a pôr em prática procedimentos para medição e controlo do desempenho da sua gestão. Este fenómeno, que Dominique Lorrain define como uma “re-

4 As citações e dados apresentados nesta seção são de Richard, P. (2006) Solidarité et Performance. Les enjeux de la maîtrise des dépenses publiques locales. Rapport publié le 11/12/2006 (www.interieur.gouv.fr, 5.3.2007), de Beaulier, M. e Saléry, Y. (2006) 20 ans de contrôle de gestion dans les collectivités locales: bilan et perspectives, Revue Française de Finances Publiques, 95: 69-86; Lorrain, D. (1995) France: le changement silencieux, in D. Lorrain and G. Stoker (ed.), La privatisation des services urbains en Europe, pp. 105-129. Paris: La Découverte; Meyssonnier, F. (1993) Quelques enseignements de l’étude du contrôle de gestion dans les collectivités locales, Revue Politiques et Management Public, 11(1): 129-45. 343 volução silenciosa” foi desigual, dada a enorme fragmentação de divisão territorial francesa (37.000 comunas, das quais 75% com menos de 1.000 habitantes). Por sua vez, essa desigualdade na distribuição da moderniza- ção administrativa fez nascer uma França a duas velocidades: a dinâmica para medir o desempenho e os resultados da administração local está li- mitada às grandes cidades, aos órgãos de cooperação intermunicipal e aos “departamentos” (administração territorial Francesa).

As autoridades locais Francesas têm sido incapazes de chegar a acor- do sobre uma política comum para a reforma da administração local. O cálculo dos indicadores e painéis de bordo do desempenho é feito com base em requisitos específicos, que dizem respeito a tarefas ou serviços concretos; mas não obedecem a uma definição ou forma de implemen- tação única. Isto permite adaptar os instrumentos de medição às necessi- dades de cada gestor (chefe de serviço, diretor geral) mas impede a com- parabilidade e portanto a transparência. Por outro lado, existe uma clara resistência por parte desses mesmos gestores, especialmente os de topo, a medidas que aumentem a transparência através da divulgação dos resulta- dos da avaliação do desempenho dos seus serviços.

Formalmente, as comunas francesas implementaram reformas de gestão de desempenho local; mas nenhum instrumento que permita a comparação intermunicipal foi posto a funcionar. Tanto as associações de consumidores como algumas autoridades locais têm pedido insisten- temente que os novos instrumentos de avaliação do desempenho sejam usados “democraticamente”, isto é, em favor dos utentes e de forma transparente, para assim ser possível controlar os contratos de concessão a consórcios privados responsáveis por serviços municipais.

Em França, portanto, a avaliação do desempenho municipal foi inicia- da voluntariamente e de baixo para cima. O movimento heterogéneo que esteve na sua origem deu-lhe um caráter díspar, desigualmente distribuído no território. A organização institucional da avaliação do desempenho é interna e vertical. Não há nenhum sistema de sanções e o princípio da não- -divulgação de informação continua a ser regra. Os indicadores de desem- penho usados são fáceis de quantificar e medir: recursos, custos e número ou qualidade de serviços (indicadores de entrada e saída como tempos médios de espera ou percentagens de pedidos a que se deu seguimento). Indicadores de impacto, resultado e procedimento são raramente usados. 344

V. Suécia: reforma voluntária e descentralizada mas homogénea e transparente O movimento Sueco de avaliação do desempenho não partiu do governo central. Foi a Federação Sueca das Autoridades Locais (Svenska Kommunförbund) quem guiou ativamente este processo.5 O percurso Sue- co para medir o desempenho da administração local é mais próximo do Francês e do Alemão do que do Britânico. No entanto, à semelhança da Grã-Bretanha, a Suécia conseguiu instalar uma avaliação do desempenho uniforme em todo o território e usou uma abordagem baseada no utente que se revelou muito transparente. O modelo Sueco pode ser considerado como o protótipo de uma iniciativa dinamizada localmente, autónoma e orientada para o utente. As reformas conduziram, em todo o território Sueco, a uma grande transparência dos resultados e portanto a um siste- ma de sanções que funciona e que os utentes têm nas suas mãos. O sistema de medição e controlo do desempenho é duplo. Por um lado, é externo e horizontal através da comparação intermunicipal e das redes de qualidade que unem vários municípios; por outro, está organiza- do verticalmente dentro de cada município já que cada autoridade local compara o desempenho dos serviços administrativos centrais com os que lhe estejam abaixo. O sucesso Sueco foi possível devido a uma cultura marcada pela li- berdade de informação, uma longa tradição de avaliar e um sistema polí- tico caracterizado pela democracia do consenso. É este último ponto que tem aberto as portas à comparação intermunicipal do desempenho e às redes de qualidade. Ao lado da introdução de instrumentos de liderança orientados para o resultado (divisão entre clientes e fornecedores de ser- viços, gestão por contrato e por objetivo, orçamentação orientada para os

5 Citações e dados apresentados nesta seção vêm das seguintes fontes: Reichard, C. (1998) Der Produktansatz im Neuen Steuerungsmodell – von der Euphorie zur Ernüchterung in D. Grunow and H. Wollmann (eds.) Lokale Verwaltungsreform in Aktion. Fortschritte und Fallstricke, pp. 85–102. Basel et al.: Birkhäuser; Strid, L. (2004) Comparative Municipal Quality Networks, in S. Kuhlmann, J. Bogumil and H. Wollmann (eds.) Leistungsmessung und -vergleich in Politik und Verwaltung, pp. 267-76. Wiesbaden: Edition Sigma; Wollmann, H. (2005) Neue Handlungsansätze im Zusammenwirken von Kommunen, Bürgern, gesellschaftlichen und Marktakteuren in Großbritannien, Frankreich und Schweden. Was kann hieraus für Deutschland gelernt werden, in M. Haus (ed.) Institutionenwandel lokaler Politik in Deutschland, pp. 256-84, Wiesbaden: Edition Sigma. 345

“outputs”), foi também criada em 1987 uma base de dados do desempe- nho de todos os municípios Suecos. Essa base de dados é conjuntamente administrada pela Federação dos Municípios Suecos e pela Administração Sueca de Estatística (Statistiska Centralbyrån). Os custos unitários dos serviços locais (escolas, estruturas para idosos e deficientes, etc.) são regis- tados e ficam acessíveis a todos, o que permite uma comparação intermu- nicipal ao longo do tempo. A Federação dos Municípios Suecos lidera, desde finais da década de 1990, a implementação de uma nova forma de comparação intermunici- pal orientada para a qualidade dos serviços. O método destina-se a definir indicadores de qualidade e a compará-los ao nível intermunicipal através das chamadas “redes de qualidade municipal comparada”. De acordo com um estudo realizado pela Federação de Municípios Suecos, metade dos 280 municípios concordou em participar nessa rede. As reformas Suecas seguiram dois caminhos diferentes mas conciliá- veis: por um lado são orientadas para o resultado como exige a ortodoxia do “New Public Management”; por outro, elas resultam da participação ativa dos utentes e funcionam numa “democracia do utente”. As autori- dades locais Suecas olham para os indicadores de desempenho e qualida- de como meios de aprendizagem, não de controlo; e o tipo de indicado- res de desempenho escolhidos mostra capacidade para conciliar diferentes aspetos: ao lado de indicadores convencionais como custos, são também tidos em conta indicadores de qualidade (entrada, saída), de satisfação do cliente (impacto) e de eficácia e eficiência de políticas públicas (produto esperado e resultado real).

VI. Alemanha: reforma voluntária e sem sanções, uma burocracia dos indicadores Na Alemanha, a liderança orientada para o resultado e a avaliação / gestão de desempenho assentam numa versão da Nova Gestão Pública, a “Neues Steuerungsmodell, NSM”6 cuja doutrina tem sido propagada desde

6 As fontes utilizadas nesta seção são as seguintes: Bogumil, J., Grohs, S., Kuhlmann, S. et Ohm, A. (2007) Zehn Jahre Neues Steuerungsmodell. Eine Bilanz kommunaler Verwaltungsmodernisierung. Berlin: Edition Sigma; Kommunale Gemeinschaftsstelle für Verwaltungsmanagement – KGSt (1999), «Kennzahlensystem Einwohnermeldewesen (Bürgerservice) . Köln: KGSt IKO-Netz. E também Kuhlmann, S. (2008) Tirer les 346

1993 pela Organização Municipal Alemã para a Gestão Administrativa (Kommunale Gemeinschaftsstelle für Verwaltungsmanagement, KGSt). A KGSt é um comité de especialistas influentes que se pronuncia sobre ad- ministração municipal. Durante a década de 1990, a maioria das autoridades locais Alemãs, 82%, decidiram introduzir reformas em linha com o NSM. Os instru- mentos mais populares nessa época foram as novas formas de orçamenta- ção, a liderança orientada para o produto e os sistemas de controlo, relato e gestão da qualidade com base na comparação intermunicipal. Este último desafio envolveu mais de 60% dos municípios e teve por objetivo comparar estruturas, procedimentos, custos e qualidade. A reforma Alemã da avaliação do desempenho é semelhante à da França no seu conteúdo. Os indicadores de desempenho são custos ou outras entradas e saídas facilmente quantificáveis e algumas vezes também indicadores de processo. Outros indicadores, como os de qualidade (efi- cácia, eficiência e impacto de políticas públicas), definidos acima como indicadores de impacto e de resultado, praticamente não são usados. Como na Suécia, o papel do Estado nas várias iniciativas de reforma é diminuto. É portanto uma abordagem de baixo para cima. Os muni- cípios são livres de decidir se a informação relativa ao seu desempenho é tornada pública ou não. E regra geral a informação decorrente da compa- ração intermunicipal permanece secreta e tem pouco poder de sanção. O envolvimento dos atores locais na reforma e modernização ad- ministrativa ajudou a instalar novos procedimentos orientados para a avaliação do desempenho e instrumentos de autoavaliação e acompanha- mento contínuo da ação administrativa. No total, 29% dos municípios alemães criaram catálogos de objetivos e seus indicadores; 46% adotaram uma contabilidade de custos baseada na atividade (ABC, Activity Based

leçons de l’économisation de la politique et de l’administration locales en Allemagne: Le Neue Steuerungsmodell a-t-il échoué?, Pouvoirs Locaux (Paris) 79: 115–20; Kuhlmann, S. et Wollmann, H. (2006) Transaktionskosten von Verwaltungsreformen – ein “missing link“ der Evaluationsforschung, in W. Jann, M. Röber and H. Wollmann (eds) PublicManagement. Grundlagen, Wirkungen, Kritik. Festschrift für Christoph Reichard zum 65. Geburtstag, pp. 371–90. Wiesbaden: Edition Sigma; Kuhlmann, S., Bogumil, J. et Grohs, S. (2008) Evaluating Administrative Modernization in German Local Governments: Success or Failure of the “New Steering Model”? Public Administration Review 68(5): 851–63. 347

Costing); 22% melhoraram a informação interna através da criação de relatórios baseados em indicadores e 26% criaram uma liderança especí- fica para coordenar e integrar a circulação de informação internamente. Apesar destes bons resultados, os dados de desempenho não são usados na aprovação do orçamento nem na reorganização dos procedimentos administrativos nem na comparação intermunicipal. É especialmente chamativo ver que 14% dos municípios não usam tal informação para qualquer fim. Ainda não se deu a tão apregoada passagem de uma direção convencional (orientada para o cumprimento de normas), para uma ges- tão baseada no objetivo. O conceito Alemão de objetivo, tal como foi desenvolvido no final da década de 1990, está sob crítica por ser perfecionista e pelo receio que esse perfecionismo conduza a uma nova burocracia. As reformas Ale- mãs tendem a juntar à burocracia das normas e dos procedimentos uma burocracia dos números e dos objetivos. A KGSt, por exemplo, oferece 66 indicadores de desempenho com detalhadas instruções de medição. Alguns catálogos contêm mais de um milhar de indicadores, em geral orientados para a avaliação tipo entrada / saída. Não admira portanto que vários municípios contratem consultores externos cujos honorários são em média 171.400 Euros por município. O perfecionismo tem custos elevados em tempo e em pessoal (15 meses de trabalho individual médio só para elaborar um catálogos de objetivos e indicadores) e não conduz aos resultados esperados. Em particular, não leva ao estabelecimento de uma liderança mais ativa nem a uma redução de custos.

VII. Portugal: reforma obrigatória, centralizada e com sanções A avaliação do desempenho em vigor nas “câmaras municipais” por- tuguesas7 foi, como na Grã-Bretanha, desenhada pelo governo central; e

7 O autor agradece à Dr.ª Sílvia Cabrita, Diretora de Serviço, pelas trocas de impressões sobre o tema e pelas correções que introduziu no texto. Também agradece à Dr.ª Alexandra Alexandre, Diretora de Serviço, pelas discussões e pelo material que disponibilizou. Para além de entrevistas a dirigentes municipais, as fontes utilizadas nesta seção são: Cardoso, C. (2012) Avaliação de Desempenho: abordagem a uma autarquia, Working Paper, Faculdade de Letras, Universidade do Porto; Vicente, J. (2000) Conteúdos Funcionais, ATAM, Associação dos Técnicos Superiores Municipais. Diário da República (2007), Lei 66-B de 28 de Dezembro, Imprensa Nacional, Lisbon. 348

o sistema é uma adaptação do que se aplica à restante administração pú- blica.8 Mas ao contrário do “Best Value”, não impõe metas ou indicadores pré-estabelecidos para todo o território: cada município define os seus ob- jetivos. Também não existem auditores ou avaliadores externos, sendo os municípios quem se autoavaliam. O executivo camarário define grandes objetivos de gestão para si e para as suas “unidades orgânicas” (designação genérica para serviço administrativo), as quais, por sua vez, traduzem os objetivos em metas individuais para elas mesmas e para cada funcionário. Cada superior avalia os seus subordinados e é avaliado pela sua chefia. Não estão previstas comparações intermunicipais; as únicas comparações contempladas são internas e horizontais entre unidades ao mesmo nível hierárquico. Para efeitos de avaliação do desempenho, portanto, cada município é uma hierarquia administrativa convencional onde todos os procedimentos a seguir, relatórios, datas, despachos e respetivos prazos, se encontram minuciosamente detalhados em regulamentos internos de acesso público. Está previsto que a divulgação dos resultados da avaliação dos municípios e unidades orgânicas seja obrigatória; a divulgação da ava- liação do desempenho de funcionários não é obrigatória exceto para notas elevadas (“excelente”). A avaliação tem associadas sanções cujo recurso é também hierárquico. O “Sistema Integrado de Avaliação do Desempenho da Adminis- tração Pública” portuguesa ou SIADAP como é conhecido, entrou em vigor em finais de 2007 e a sua adaptação à administração local ocorreu no ano seguinte. O sistema divide-se em três “subsistemas”, um para ava- liar unidades orgânicas, outro para avaliar dirigentes e um terceiro para avaliar os demais trabalhadores. A avaliação de desempenho das unidades orgânicas é feita anualmente como parte do ciclo de gestão do município. São avaliadas a eficácia (facilidade com que a unidade atinge objetivos e resultados esperados), eficiência (relação entre bens produzidos ou servi-

Diário da República (2009), Decreto Regulamentar N. 18/2009 de 4 de Setembro, Imprensa Nacional, Lisbon; Ribeiro, M. (2012) O Sistema Integrado de Avaliação do Desempenho da Administração Pública nas Autarquias Locais, MSc dissertation, University of Minho, Faculty of Law. 8 Tal adaptação não resultou de uma decisão política. É antes consequência de uma imposição legal. A Constituição da República Portuguesa consagra o princípio da autonomia do Poder Local em matéria administrativa, financeira, patrimonial e também regulamentar. Daí a necessidade de respeitar, através de um novo articulado, tal autonomia. 349

ços prestados e recursos utilizados) e qualidade (características de bens e serviços que permitem satisfazer necessidades dos utentes). Os objetivos de cada unidade e os correspondentes indicadores de desempenho são aprovados pelo seu órgão executivo antes do fim do ano anterior ao que dizem respeito. Também é então feita a operacionalização das pontuações a atribuir. Findo o ano, os resultados, expressos através dos indicadores de desempenho, são avaliados e geram um de entre três níveis de graduação: superou, atingiu ou não atingiu o objetivo. A unidade orgânica apresenta então o seu relatório de desempenho ao órgão executivo de que depende, o qual faz a avaliação final, cuja nota pode ser excelente, bom, satisfatório ou insuficiente. Mas existem quotas anuais que limitam o número de unidades que podem receber nota elevada e as correspondentes recom- pensas. Todo este processo era suposto ocorrer no âmbito do Quadro de Avaliação e Responsabilização (QUAR) de cada município. O QUAR é uma declaração obrigatoriamente pública da missão de cada município e seus objetivos (tanto de longo como medio-prazo), dos indicadores usados, meios disponíveis, resultados obtidos e desvios em relação ao pre- visto. Inclui os resultados finais da avaliação do desempenho da própria instituição e suas unidades. Porém, são muitas as autarquias que, com fundamento no artigo 241 da Constituição da República Portuguesa (que lhes atribui o poder regulamentar) e em outros artigos referentes à autonomia do Poder Local, ignoram o QUAR e recusam-se a publicar os conteúdos previstos. Devido a esta situação, a transparência da avaliação do desempenho autárquico em Portugal tem sido grandemente afetada.

Os dirigentes estão divididos em dois grupos, os superiores e os in- termédios. A avaliação dos dirigentes superiores é intercalar e integra-se no ciclo de gestão do município, tendo por base o grau de cumprimento dos compromissos que constam da sua “carta de missão” e as compe- tências de liderança, de visão estratégica e de gestão demonstradas. Os dirigentes superiores são avaliados pelo presidente da câmara municipal ou pelo vereador com o respetivo pelouro. A avaliação dos dirigentes in- termédios tem por base os resultados da unidade orgânica que dirigem e também as competências adequadas ao exercício do cargo. Os dirigentes intermédios são avaliados pelo superior hierárquico. A pontuação dos resultados obtidos em cada objetivo tem 3 níveis: objetivo superado (5 pontos); atingido (3 pontos); e não atingido (1 ponto). As competências são também pontuadas de 1 a 5. A pontuação final é uma média ponde- rada onde os resultados valem 75% do total. A avaliação do desempenho 350

dos trabalhadores é bianual,9 é feita pelo superior hierárquico e incide também sobre resultados e competências. A pontuação é semelhante à dos dirigentes intermédios mas com um peso menor dos resultados (60% ou menos). O grau de cumprimento dos objetivos tem em conta a pro- porcionalidade entre os resultados obtidos, os meios disponíveis e o tem- po em que são executados. Para trabalhos em equipa podem ser fixados objetivos partilhados. Dirigentes e trabalhadores têm desempenho “relevante” quando a sua pontuação está entre 4 e 5, “adequado” se está entre 2 e 3,999 e “inadequado” se é inferior a 2. Esta avaliação tem efeitos de sanção mas, também aqui, existem quotas anuais que limitam a percentagem de boas classificações. Por exemplo, só 25% dos funcionários de um município podem ter desempenho relevante num dado ano e destes só 5% podem obter a menção especial de “excelente” (de divulgação obrigatória). Existem dentro de cada município dois órgãos dedicados a apoiar a avaliação do desempenho: o Conselho Coordenador da Avaliação, que estabelece orientações sobre objetivos, competências e indicadores, emite pareceres sobre a avaliação de dirigentes e harmoniza as pontuações de modo a que obedeçam às quotas anuais; e a Comissão Paritária, onde se sentam os representantes eleitos pelos trabalhadores e outros, com com- petência consultiva para apreciar propostas de avaliação. O ciclo de avaliação começa com o planeamento, o qual é da inicia- tiva do dirigente. O SIADAP pretende ser um instrumento de acompa- nhamento e avaliação do cumprimento dos objetivos estratégicos, anuais e planos de atividade das unidades orgânicas. Guiando-se pelas compe- tências da unidade orgânica, o planeamento define objetivos e resultados a atingir. Dirigentes e trabalhadores são chamados a participar. Esta fase decorre no último trimestre de cada ano civil. Segue-se, já no início do ano seguinte, a autoavaliação e a avaliação do ano anterior. A primeira procura envolver o avaliado e promover oportunidades de desenvolvi- mento profissional. Feita a avaliação, o Conselho Coordenador da Ava- liação harmoniza todas as propostas de forma a assegurar o cumprimento das quotas anuais. Na mesma sequência, realizam-se também as reuniões da Comissão Paritária. A homologação final das avaliações compete ao

9 Começou por ser anual mas, a partir do diploma que publicou o Orçamento de Estado para 2013, a avaliação passou a ser feita de dois em dois anos. Tenta-se assim diminuir a carga de trabalho que a avaliação acarreta, a qual é excessiva como se refere a seguir. 351 presidente da câmara e as reclamações são-lhe dirigidas, ouvida a Comis- são Paritária e o Conselho Coordenador da Avaliação. O ciclo termina com a monitorização, uma análise entre avaliador e avaliado ou no seio da unidade orgânica, para reformular objetivos e resultados, clarificar as- petos úteis ao futuro e recolher reflexões. O SIADAP é um edifício impressionante mas que, ao procurar o equilíbrio, contradiz ou dilui alguns dos seus objetivos. O seu carác- ter normativo, por exemplo, não é fácil de conciliar com a aspiração a tornar-se num instrumento de aprendizagem e liderança; e é também acusado de não respeitar a autonomia dos municípios. Se o SIADAP ti- vesse aparecido como uma matriz à qual os municípios aderiam volunta- riamente e onde fosse possível introduzir adaptações, nomeadamente de escala, certamente que teria trazido frutos visíveis. Tal como está, é visto à partida como um formalismo ou como uma intromissão. A disputa em torno do QUAR leva a que, numa percentagem significativa de câmaras municipais, a avaliação do desempenho decorra de forma opaca, o que expõe todo o processo a abusos e deformações. A execução do SIADAP é também trabalhosa e complexa: implica a definição de objetivos para cada trabalhador, o que exige o conhecimento aprofundado de cada posto de trabalho, das capacidades e rendibilidade do trabalhador e da própria legislação; exige igualmente a definição de objetivos para a unidade or- gânica; e obriga ao cumprimento de várias formalidades (reuniões, for- mulários e outras). Um dirigente pode gastar até um mês de trabalho por cada 20 subordinados a avaliar e em unidades com muitos trabalhadores a tarefa torna-se inexequível. O excesso de trabalho tem levado, por sua vez, a simplificações que roubam significado à avaliação. Outro problema é a assimetria entre recompensas e punições. As quotas anuais roubam força e tornam arbitrárias as recompensas a trabalhadores e dirigentes intermédios enquanto uma má pontuação pode levar à “mobilidade”, antecâmara do despedimento, ou à cessação da comissão de serviço. Os dirigentes superiores, por contraste, são tratados com benevolência pois são promovidos mesmo que a sua unidade não apresente bom desempe- nho.10 Finalmente, a ponderação dada às competências (chega aos 75%)

10 Existem poucos dirigentes superiores nas Câmaras Municipais Portuguesas mas os que existem recebem um tratamento de exceção: ao contrário do que acontece com os restantes dirigentes superiores do Estado, que devem passar pelo crivo da Comissão para o Recrutamento e Seleção para a Administração Pública (CRESAP), estes entram por nomeação e podem ser promovidos por despacho. 352

dilui a pretendida avaliação pelo resultado. Em resumo, o SIADAP não privilegia a aprendizagem nem é experimental pois foi erigido sem a par- ticipação ativa dos municípios. Reúne o dirigismo Britânico com a adap- tabilidade Francesa na escolha de objetivos mas sem o caráter voluntário desta. Como na Alemanha, origina uma sobrecarga burocrática e como no Reino Unido os resultados podem não ser tão fiáveis ou interessantes quanto desejado. A informação devida nem sempre é disponibilizada, o que dificulta a comparação entre municípios. Enquanto durar a atual si- tuação, o SIADAP dificilmente promoverá uma cultura do mérito.

A definição dos objetivos é a única tarefa onde tem existido concer- tação intermunicipal criativa e autónoma, fruto do empenho dos sindica- tos em evitarem que os trabalhadores aceitem objetivos que extravasem as suas funções11 ou que sejam inumanos. Existe uma crescente catalogação e uniformização de objetivos usados para funções idênticas e uma efetiva proteção dos trabalhadores contra arbitrariedades que um normativo pu- ramente interno e hierárquico permite. Com o passar dos anos e com a ajuda destas associações profissionais e outras, o SIADAP poderia evoluir para uma prática voluntária e criativa onde as querelas com o Poder Cen- tral deixariam de ter sentido. Uma tal prática estaria próxima da que se observa na Suécia.

VIII. Comparação entre países e comentários finais

A avaliação do desempenho autárquico foi implementada de forma diferente nos cinco países estudados. A Grã-Bretanha é o protótipo de re- formas impostas pelo governo central: restritiva, territorialmente generali- zada, contínua, muito transparente e portanto com forte poder de sanção. Em França, a avaliação do desempenho municipal foi feita totalmente ao contrário da Grã-Bretanha. Iniciada pelas administrações locais, as refor- mas mantêm-se até hoje como voluntárias e desigualmente distribuídas no território. A ausência de uma institucionalização das reformas ajudou as comunas Francesas a adaptarem-nas às suas políticas e funções especí- ficas, resultando num uso pragmático, capaz de melhorar a liderança mas algo opaco e com pouco poder de sanção.

11 Os sindicatos opõem-se à “pluralidade de funções”, não tanto por princípio mas pelos abusos a que pode dar azo. 353

Uma análise comparativa das abordagens Francesa e Britânica mos- tra que a segunda se baseia num sistema complexo de indicadores de de- sempenho, audições e procedimentos de controlo, o qual simboliza bem o perfeccionismo e ênfase em regras e procedimentos legalistas, não tanto no resultado. Pelo contrário, a administração Francesa, que é acusada de estar presa a regras e procedimentos, demonstrou pragmatismo, adapta- bilidade e capacidade de aprendizagem.12 A Suécia encontra-se entre estes dois extremos: apesar da avaliação do desempenho municipal ter sido iniciada voluntariamente pelos agentes locais, ela foi aplicada em todo o território, com resultados positivos na transparência e na capacidade para moldar o comportamento administrativo.

A análise comparada das cinco reformas mostra que o caso Alemão tem semelhanças com todos os outros. Como na Suécia, as reformas avançaram voluntariamente por ação dos municípios (de baixo para cima); como em França, as práticas de privacidade mantiveram-se, impe- dindo o estabelecimento de sanções; finalmente, como na Grã-Bretanha, o perfeccionismo administrativo levou ao estabelecimento de critérios de desempenho demasiado detalhados, raramente usados pelos municípios para a tomada de decisões ou para tornar a liderança mais ativa.

A reforma Portuguesa tem um desenho atraente, virado para a di- reção ativa e para a aprendizagem, pensada para se integrar no ciclo de gestão da autarquia. Mas é normativa e foi imposta de cima, o que lhe limita o alcance. O peso das competências em relação ao dos resultados, junto com a limitação imposta pelas quotas, roubam força e aplicabilida- de à avaliação. Uma característica única desta reforma é a hierarquização exclusivamente interna, unida a um elevado poder punitivo desligado da transparência. Os sindicatos têm, em geral, conseguido mitigar excessos que daqui adviriam e o seu papel é também positivo na uniformização de objetivos para tarefas idênticas. É possível que, no futuro, se venha a instalar uma prática de transparência e comecem a surgir comparações intermunicipais.

A Tabela 3 resume os elementos de comparação de diferentes países.

12 Ashford, D. (1982) British Dogmatism and French Pragmatism. Central-Local Policy- making in the Welfare State. London: Unwin. 354

Tabela 3 — Avaliação do desempenho na união europeia: comparação de perfis

Elementos de Reino Unido Alemanha França Suécia Portugal análise Condução do “top down”, “bottom up”, “bottom up”, “bottom up”, “top down”, processo controlo está- controlo local controlo local controlo local controlo está- (central ou tico, reformas autónomo, autónomo, autónomo, tico, reformas local) obrigatórias reformas não reformas não reformas não obrigatórias obrigatórias obrigatória obrigatória Comando e Dogmático, Generalista, Pragmático, Experimental, Dogmático, instalação generalista, perfecionista, experimental, orientado burocracia burocracia dos uma burocra- orientado localmente, normativa indicadores cia dos produ- localmente dirigido clássica tos Transparência Transparência Não-obriga- Não-obriga- Transparência Obrigato- de informação toriedade da toriedade da de informação riedade de para fora da divulgação de divulgação de para fora da divulgação administração informação informação administração de informa- local local ção sobre unidades e sobre a nota “excelente” Poder de Grande poder Ausência de Ausência de Grande poder Grande poder sanção de sanção a sanções ativas sanções ativas de sanção a de sanção (ex- indivíduos e indivíduos e ceto dirigentes autarquias autarquias sup.) Difusão e uni- Forte difusão, Difusão Difusão fraca, Forte difusão, Forte difusão, formidade uniformidade mediana, variantes uniformidade uniformidade variantes

A experiência destes cinco países mostra os pontos fortes e fracos de cada um deles e pode servir como base para saber o que fazer e não fazer no futuro. Assim, oferecem-se agora três sugestões concretas: promover a transparência e a comparabilidade dos resultados, a adoção das reformas deve ser conduzida localmente e voluntariamente; a informação obtida com a avaliação do desempenho deve ser usada para aprender e tomar decisões. Promover a transparência e comparabilidade dos resultados: as reformas na Suécia e no Reino Unido são exemplos de transparência dos dados de desempenho dos municípios. As autoridades locais torna- ram a informação sobre desempenho municipal acessível aos cidadãos, permitindo-lhes inspecionar o desempenho de seu município. Na Grã- -Bretanha, a avaliação do desempenho dos municípios também é usada para aumentar o controlo e a intervenção por parte do governo central. 355

Isso pode levar à perda do interesse dessa informação. Mas a situação oposta, a ausência de instâncias exteriores aos municípios e de compara- ções intermunicipais, como em França e em Portugal, também contribui para a irrelevância dos dados. A adoção das reformas deve ser conduzida localmente e volun- tariamente: o desempenho de um município não é uniforme para todos os setores administrativos ou tarefas e deve ser avaliado de acordo com critérios e indicadores adaptados a essas tarefas ou setores. A experiência internacional tem demonstrado que a avaliação do desempenho, ​​quando insensível a especificidades de cada tarefa, conduz a conclusões aberrantes. Por exemplo, os critérios de avaliação de tarefas assumidas passivamente pelos municípios, como a inspeção presencial ou o tratamento de pedidos de assistência social, devem ser diferentes dos critérios a aplicar a tarefas proactivas como o desenvolvimento de crianças e jovens, a promoção do crescimento económico ou o planeamento urbano. Se a prática alemã de comparação à escala intermunicipal enfrentou problemas, ela pode mes- mo assim servir de exemplo. A avaliação do desempenho municipal não deve tornar-se no instru- mento de estandardização dos municípios, imposta desde cima, como na Grã-Bretanha. Tal estandardização asfixia a diversidade. No que se refere às escolas Britânicas, por exemplo, “quaisquer divergências em relação ao modelo normativo, mesmo as que reforcem uma louvável diversidade, aparecem como desvios censuráveis e são suprimidos”.13 É necessário que os indicadores de desempenho sejam definidos a nível local. Por exemplo, na Suécia e em Portugal, países com um sistema uniforme de procedi- mentos, são os municípios quem define os indicadores a utilizar em cada caso; em França são as comunas e os serviços administrativos locais quem criam os “tableaux de bord” adaptados às suas necessidades. Porém, ao contrário da Suécia, a França e Portugal não comparam o desempenho dos seus municípios de forma sistemática, o que contribui para a menor relevância da informação recolhida. A informação obtida com a avaliação do desempenho deve ser usada para aprender e tomar decisões: a missão dada aos auditores e inspetores Britânicos é a de detetar autoridades locais “incapazes ou relu-

13 Hargreaves, D.H. (1995) Inspection and school improvement, Cambridge Journal of Education, 25 (1): 117-25. 356

tantes em atender às demandas da agenda moderna […] e transferir para outros as suas atribuições”.14 O uso que se faz dos indicadores de desem- penho em França, na Suécia ou mesmo em Portugal é bem mais frutífero. Na Suécia, os indicadores originam um processo de aprendizagem. E a comparação sistemática do desempenho municipal é acompanhada pela democratização da informação, o que aumenta o uso dos dados e o seu impacto. Como os indicadores de desempenho são acessíveis a todos, eles não são apenas usados para gerir e controlar internamente uma ad- ministração: são levados a sério por políticos e por quem os elege. O caso oposto é o da França e, em vários municípios, o de Portugal, onde o uso interno e reservado dos indicadores de desempenho dificilmente levará a processos de aprendizagem. A forte orientação “para fora” em vigor na Suécia é um exemplo a seguir. Recomenda-se pois ajustar a avaliação do desempenho às necessidades dos utentes, ou seja, democratizar a avaliação do desempenho local. Esta abordagem, que tanto sucesso teve na Suécia, merece ser tentada em outros países. Nota final: este estudo comparou sistemas de avaliação do desem- penho sem nunca discutir assuntos laterais, mesmo decisivos. Vale pois a pena referir que a liderança ativa não é um fim a atingir mas antes um alicerce ou começo. À partida, o dirigente deve possuir três disposições: gerir por objetivos, contar com o passar do tempo e nunca olhar para o resultado como manifestação de mérito, antes como indicador de aper- feiçoamento. Desta forma e com o passar dos anos nasce uma dinâmica de superação e é essa dinâmica que leva ao uso de indicadores para tomar decisões e para aprender, transparência, comparações intermunicipais, sanções.

14 Blair, T. (1998) Leading the Way: A New Vision for Local Government. London: Institute for Public Policy Research. Administração n.º 104, vol. XXVII, 2014-2.º, 357-366 357

Construção do sistema de avaliação do de- sempenho para os chefes de departamento no governo da RAEM Fong Ka I* Loi Hio Ian** Li Mengna***

Nos anos 1960 e 1970, o método de medição do desempenho ad- ministrativo passou por um período de expansão à escala internacional. Nos anos 80 e 90, na Nova Administração Pública (New Public Admi- nistration/NPM), que surgiu pela primeira vez na Europa, a avaliação do desempenho tornou-se uma das principais obras no processo de mo- dernização do governo. Nos últimos anos, o governo da RAEM tentou estabelecer o seu próprio sistema de avaliação de desempenho, e lançou oficialmente o padrão legal da avaliação do desempenho para os chefes de departamento no ano passado. Este ensaio pretende explorar as ideias da criação dos sistemas de avaliação do desempenho com base na experiência administrativa do governo de Macau.

I. Origem do sistema de avaliação do desempenho para os chefes de departamento no governo da RAEM Nas Políticas Administrativas de 2013 e 2014, o governo da RAEM salientou “melhorar o sistema de avaliação do desempenho dos chefes de departamento, avançar com a gestão de desempenho”. A orientação e objetivo da avaliação obriga os funcionários a tentar o seu melhor para alcançarem as metas estabelecidas a diferentes níveis, não importando os aspectos da implementação das políticas ou da execução; o importante é que a liderança se aperfeiçoe continuamente nos diferentes sistemas e in- dicadores. Assim, não devem separar-se alguns aspectos para avaliar o de- sempenho dos chefes de departamento, o que inclui a implementação de políticas, a gestão, a capacidade de decisão, a responsabilidade, a missão, a ética e assim por diante, a fim de promover a capacidade de trabalho dos chefes de departamento, bem como a capacidade do departamento de atendimento ao público em geral.

* Estudante de bacharelato em Administração Pública no Instituto Politécnico de Macau. ** Estudante de bacharelato em Administração Pública no Instituto Politécnico de Macau. *** Estudante do mestrado em Administração Pública na Universidade de Macau. 358

De acordo com a Lei Básica de Macau, o Chefe do Executivo é o dirigente máximo da RAEM coadjuvado por cinco Secretarias seguindo- -se as Direcções de Serviços, os Departamentos e as Divisões. O que cha- mas Direcção, refere-se aos altos funcionários das Direcções de Serviços, nela se incluindo o director e o director- adjunto. Em geral, a Direcção é responsável por auxiliar o Chefe do Executivo e o respectivo Secretário na realização e coordenação das políticas ; por planear as políticas adminis- trativas do governo como uma série de projectos de execução, esquemas e medidas; por organizar e levar os funcionários do departamento a execu- tar os políticas; por comunicar e se relacionar com o exterior e os depar- tamentos inferiores, com o objective de executar e coordenar as políticas. Assim, pode-se observar que durante o processo de decisão política, a Di- recção está intimamente relacionada com todo o processo e desempenha um papel importante na elaboração das políticas e da política de imple- mentação, dirigindo e coordenando o funcionamento eficaz dos departa- mentos, com o objetivo de levar a cabo os objetivos administrativos.

Em 2009, o governo da RAEM promulgou Lei n.º 15/2009 “Dis- posições Fundamentais do Estatuto do Pessoal de Direcção e Chefia” e o “Regulamento Administrativo n.º 26/2009 “Disposições Complemen- tares do Estatuto do Pessoal de Direcção e Chefia”. Estes dois diplomas legais especificam as principais responsabilidades destes funcionários, as avaliações de desempenho e o código de conduta. As “Disposições Fun- damentais do Estatuto do Pessoal de Direcção e Chefia” determinam que o desempenho de pessoal de direcção é sujeito a apreciação anual; os Se- cretários do Governo devem apresentar relatórios ao Chefe do Executivo, relativos ao desempenho do pessoal de direcção e chefia e entidades que estejam na sua dependência. O relatório contém informações para apre- ciação do desempenho do pessoal em causa e menção à capacidade de li- derança, de execução das metas e de realização dos objectivos pré-determi- nados. Além disso, determina que o pessoal de direcção e chefia responde civil, criminal disciplinar e financeiramente pelos actos ilícitos cometidos no exercício de funções, nos termos da legislação aplicável. Por outro lado, determina ainda que ao pessoal de direcção e chefia incumbe coadjuvar o Governo na definição e elaboração das políticas relativas ao sector em cau- sa e organizar e dirigir o serviço para assegurar a sua execução.

De acordo com estas disposições, o pessoal que for avalido com a menção “satisfaz pouco’’ ou “não satisfaz’’ fica inibido de desempenhar funções de direcção ou chefia. 359

As “Disposições Complementares do Estatuto do Pessoal de Di- recção e Chefia” especifica principalmente as obrigações do pessoal de direcção, incluindo a obediência às leis e regulamentos, o tratamento dos subordinados de forma justa, assegurando e supervisionar que os subordi- nados obedeçam às leis, relatando com lealdade todos os assuntos impor- tantes para o governo, e manter a informação que obtiverem por causa e no exercício das suas funções. Além disso, as disposições complementares também especificarem o poder funcional do pessoal de direcção, incluin- do a orientação prática e os instruções políticas definidas pelo Chefe do Executivo e pelo governo, o planeamento, a implementação, a supervisão e a avaliação de todas as acções que se relacionem com a função do depar- tamento, a gestão de forma eficaz dos recursos humanos, científicos e tec- nológicos dos departamentos que lideram, o acompanhamento e avaliação continua da qualidade dos serviços dos departamentos, e assim por diante.

Em 2013 o Despacho do Chefe do Executivo n.º 305/2013 voltou a recordar que o desempenho do pessoal de direcção está sujeito a apre- ciação anual e que os Secretários do Governo devem apresentar ao Chefe do Executivo um relatório relativo ao desempenho do pessoal de direcção dos serviços e entidades que estejam na sua dependência hierárquica ou tutelar. Assim, os Secretários devem entregar relatórios sobre o desempe- nho do pessoal de direcção que consigo tem relações de subordinação ou que trabalha nos serviços ou entidades por si supervisionadas, ao Chefe do Executivo. Estipula ainda este Despacho que, conforme consta do Relatório das Linhas de Acção Governativa para o Ano Financeiro de 2013, o Governo está fortemente empenhado em aperfeiçoar o regime de apreciação do desempenho do pessoal que exerce funções de direcção, para melhor poder avaliar a eficácia das suas acções e com vista a elevar o sentido de responsabilidade do pessoal dirigente.

Assim, considerou ser de toda a conveniência que a apreciação do desempenho do pessoal de direcção se faça de acordo com princípios pa- dronizados, sistemáticos e científicos, e que a mesma se processe de forma uniforme, independentemente do Secretário do Governo que aprecia o desempenho do pessoal de direcção dos serviços e entidades que estejam na sua dependência hierárquica ou tutelar.

Assim, pode ver-se que o objetivo do governo de Macau em realizar a avaliação do desempenho é avaliar o pessoal de direcção, com base na realização do seu trabalho. Este Despacho do Chefe do Executivo tam- 360

bém estipula os critérios de avaliação de desempenho dos principais dos funcionários, que incluem três partes: 1. competência demonstrada na execução das orientações superiormente fixadas e na realização dos objec- tivos pré-estabelecidos; 2. competência demonstrada na direcção e gestão do serviço; 3. ética do serviço público e sentido de responsabilidade e que pode ser subdividido em 13 subitens. A partir do conteúdo da avaliação, podemos saber que a avaliação para o pessoal de direcção no presente já incluiu todos os aspectos da liderança do funcionário; por exemplo, entidades de supervisão, implementação e “feedback” durante o processo de decisão política, capacidade de gestão e liderança do departamento de recursos materiais e humanos, bem como integridade pessoal. Nas linhas de acção governativa para 2014, o Chefe do Executivo ain- da se refere ao estudo da viabilidade da criação de uma entidade indepen- dente de apreciação. Nas linhas de Acção no domínio da Administração e Justiça indicou-se explicitamente que o conteúdo da avaliação seria baseado no inquérito sobre o “grau de satisfação dos cidadãos’’ e no mecanismo de avaliação de serviço, para conjugar os efeitos da implementação das políti- cas e da qualidade do serviço com o desempenho do pessoal de direcção.

II. Instrumentos de avaliação de desempenho do Governo da RAE de Macau De acordo com a última obra do Governo da RAEM, têm sido gradu- almente promovidos pelos SAFP os seguintes instrumentos de avaliação:

1. Sistemas de Gestão de Qualidade ISO9000 O governo de Macau tem vindo a melhorar o sistema de avaliação de desempenho do pessoal de direcção, tendo a intenção de apresentar o Sistema de Gestão de Qualidade ISO9000 para melhorar o fluxo do tra- balho atual em assuntos administrativos. Nas linhas de secção governativa para o ano de 1999, definiu um “programa sobre o estudo de aplicação do sistema de gestão de qualidade padronizada ISO9000 na Administra- ção Pública”. As certificações internacionais do ISO9000: 2000 Sistemas de Gestão de Qualidade, que têm efeitos positivos sobre o desempenho da gestão, a eficiência do trabalho, a qualidade dos serviços e a respon- sabilidade relativa à consciência do serviço, também foram introduzidas gradualmente devido à necessidade do desenvolvimento de negócios por 361 parte do sector público. Por isso, o governo de Macau coloca a exten- são das certificações internacionais do Sistema de Gestão da Qualidade ISO9000 como um elemento-chave anualmente na categoria legal admi- nistrativa. Até outubro de 2010, 11 departamentos no total passaram na certificação internacional ISO.1 O quadro do actual sistema de avaliação do desempenho de Macau do pessoal de direcção, que ainda se baseia principalmente na padroniza- ção do fluxo de trabalho e no seu controlo intensivo. Por exemplo, pode apresentar-se o Sistema de Gestão de Qualidade ISO9000 para melhorar o fluxo do trabalho atual em assuntos administrativos. Por outro lado, pode iniciar-se uma reforma do sistema de avaliação de desempenho do pessoal de direcção e melhorar o sistema de normas de avaliação do de- sempenho, de modo a melhorar o controlo sobre o desempenho do pes- soal de direcção. No entanto, a reforma do sistema de avaliação do pessoal de direc- ção na RAEM e a introdução do Sistema de Gestão de Qualidade assume que não é orientado para os resultados ou orientado para o cidadão. Este também é um grande problema existente na reforma administrativa da RAEM. Portanto, Governo de Macau deve ter a certeza da melhoria. A melhor forma de introduzir a avaliação de desempenho orientada para o cidadão é uma questão controversa.

2. “Regime de Reconhecimento da Carta de Qualidade” Por uma questão de melhorar a eficiência da política, da RAEM têm feito certos regulamentos relativos ao sistema de avaliação de desempenho da liderança. Além disso, em termos de serviço público é introduzido o “Regime de Reconhecimento da Carta de Qualidade”, visando construir um governo orientado para os serviços e para a prestação de serviço “ao cidadão”. Através da adopção sistemática baseada na, cientificação e na opinião pública, a avaliação abrangente do sector público que presta servi- ços aos cidadãos é feita regularmente, para garantir que o serviço público atinja um certo nível. Todos os departamentos públicos e entidades que introduzem o programa da Carta de Qualidade, tem uma restrição no Regime de Reconhecimento. Essa avaliação é promovido pela Comissão

1 Fonte dos dados: Página Otimizar o serviço público da RAEM, http://app.safp.gov. mo/qs/iso_status, 2014/03/21. 362

de Avaliação dos Serviços Públicos. Os membros da Comissão incluem o director dos SAFP e quatro especialistas na área da administração pública, gestão, do desempenho e atendimento ao cliente. Além disso, os departa- mentos que ganhem o reconhecimento, devem aceitar a nova verificação da Comissão de Avaliação dos Serviços Públicos. Só passando a nova verificação, podem prolongar a validade do reconhecimento. Até Julho de 2011, 42 departamentos no total passaram o Sistema de Reconhecimento.2 Este mecanismo de avaliação abrange quatro partes principais: 1 Plano; 2. Elaboração e Execução; 3 Comentários; 4. Perfeição e pode ser subdividida em 14 sub-projetos. Além disso, várias partes do processo de implementação da política estão incluídas neste sistema, que é semelhan- te ao de 2013. Assim, esses dois mecanismos podem ser bem combinados com a avaliação do desempenho, e em seguida, tornar-se parte dos pa- drões de avaliação. Quando há um excesso de conquista dos padrões esta- belecidos, devem ser dadas certas recompensas ao pessoal de direcção ou, ao contrário, aplicadas punições. Fazendo com que o pessoal de direcção aceite e preste atenção à avaliação do desempenho, significa responder às aspirações da sociedade para melhorar o nível do serviço.

3. “Inquérito sobre o “grau de satisfação dos cidadãos” Para conhecer as necessidades do público, o Governo da RAEM apresentou o plano de avaliação da satisfação do cidadão nos vários de- partamentos do governo em 2005. Este plano foi usado como base im- portante para melhorar a qualidade do serviço público. Como o nome indica, “a satisfação dos cidadãos” foi avaliada no satisfação do serviço público. O serviço público pode ser avaliada através da medição do nível de satisfação. Além disso, ele pode ser usado para saber as necessidades de mudança dos cidadãos e para medir o efeito do serviço. Em 2001, o Governo da RAEM encomendou às instituições de ensino superior que efectuassem pesquisas sobre o “grau de satisfação dos moradores quanto ao serviço público” e usou essa pesquisa como base para estabelecer a medida da qualidade do serviço. De acordo com a pesquisa, a necessidade de fornecer bons serviços, o desempenho das equipas, a necessidade de um bom ambiente no departamento, o funcio-

2 Fonte dos dados: Página Otimizar o serviço público da RAEM, http://app.safp.gov. mo/qs/progress, 2014.3.21. 363 namento e o efeito dos processos internos têm um lugar relevante para a importância da avaliação do serviço público junto da população. De acordo com o “Regime de Reconhecimento da Carta de Qua- lidade” publicada em 2007, pontos 2 e 3, são critérios de avaliação “re- conhecer a qualidade e a eficiência dos serviços públicos e informar pe- riodicamente a tutela dos resultados”. Assim, os serviços públicos foram convidados a ter pelo menos uma avaliação sobre a satisfação do serviço prestado, desde o primeiro reconhecimento em 2008. Todos os 42 de- partamentos que requereram o “Regime de Reconhecimento” já foram objecto de avaliação relativa ao grau de satisfação dos cidadãos. Por outro lado, a “Comissão de Avaliação dos Serviços Públicos” já emitiu parecer em relação a todos os departamentos sobre o aumento da qualidade e eficiência dos serviços prestados aos cidadãos, antes da reverificação de 2012. Satisfazer os cidadãos manter um eficiente mecanismo de trata- mento de queixas, pode desenvolver na opinião pública o sentimento e incentivo da qualidade dos serviços, para atingirem elevados padrões de qualidade e eficiência. Importa que a satisfação dos cidadãos verificada pela Comissão de Avaliação em relação aos diferentes departamentos seja constante. Assim, o Governo pode obter, no futuro, informações contínuas relativamente aos diferentes departamentos e melhorar ainda mais o mecanismo de ve- rificação da satisfação dos cidadãos, de uma forma abrangente e objetiva. Ao garantir a quantidade dos serviços, a qualidade também deve ser considerada. Uma vez alcançados estes objectivos pode entender clara- mente se a qualidade do serviço é boa ou ruim. Deste modo, o pessoal poderá ser recompensado, caso os cidadãos achem que o serviço é bom e satisfatório. Pelo contrário, se os cidadãos entenderem que a qualidade dos serviços é pobre e insatisfatória, embora a quantidade possa satisfazer os requisitos, pode haver necessidade de saber se deve haver qualquer re- compensa. Portanto, Governo de Macau deste estabelecer uma avaliação do desempenho eficaz, com as correspondentes recompensas e penalida- des, a fim de assegurar que os padrões estabelecidos, tanto quantitativos como qualitativos, sejam cumpridos.

III. Construção do sistema de avaliação da liderança A construção do sistema de liderança como objectivo consiste em estabelecer um trabalho essencialmente orientado para a avaliação do de- 364

sempenho, desempenho no trabalho e liderança pessoal no planeamento e implementação de uma acção eficaz, para garantir que os objectivos da política do Governo são implementados e para reforçar a capacidade de implementação efetiva e a capacidade de resposta. Enquanto isso, a avaliação do desempenho, a promoção e valorização do sentido de res- ponsabilidade, do sentido de servir, da ética profissional, da cultura dos funcionários públicos, são bases para a nomeação dos principais talentos. De acordo com as respectivas leis e regulamentos a liderança e a experiên- cia adquirida nas áreas de avaliação do desempenho do pessoal de direc- ção são fundamentais para manter o regime de avaliação do desempenho. Acreditamos na avaliação do desempenho, que envolve muitos aspectos, incluindo as normas legais, os objectivos políticos do Governo, a eficácia do trabalho, a capacidade de resposta dos recursos, a gestão e a liderança e a responsabilidade moral do pessoal.

De acordo com as leis e os regulamentos pertinentes, foi desenvol- vido e implementado em Macau o regime de avaliação do desempenho. No entanto, o regime de avaliação de desempenho do Governo de Macau atualmente praticado em cada departamento, é de participação voluntária, não havendo legislação obrigatória sobre essa participação, apenas partici- pando nele alguns departamentos. A fim de melhorar a avaliação do de- sempenho, deve primeiro estabelecer-se uma entidade legal especializada para institucionalizar a avaliação e obrigatória, para avaliar o desempenho e alargá-lo a todos os departamentos do Governo. A avaliação do desem- penho, para além de uma política, é um trabalho fortemente profissionali- zado, devendo ser realizada por uma entidade especializada. Assim, só um rigoroso mecanismo de funcionamento e monitorização garante resulta- dos de avaliação precisos e com autoridade. Uma série de mecanismos de acompanhamento, incluindo a fixação de metas, o acompanhamento do “feedback”, os resultados da avaliação, a melhoria e os resultados, definem este processo de mecanismo de avaliação do desempenho.

No decurso do processo, em primeiro lugar é necessário desenvolver um mecanismo de avaliação responsável pela formulação de metas de desempenho para a participação do setor e critérios e indicadores adequa- dos com base na natureza dos diferentes departamentos. O conteúdo da nova liderança para implementar as avaliações do desempenho, inclui três aspectos: (1) a capacidade para executar e atingir metas; (2) capacidade de liderança e gestão dos departamentos; (3) implementação da ética e exigência de responsabilidades. Cada área tem os respectivos indicadores 365 para avaliar o seu desempenho. Em relação à execução e capacidade para atingir os objetivos, os indicadores incluem a liderança e a supervisão do pessoal de direcção, o grau de implementação dos objectivos, o grau de implementação e execução pelo pessoal de direcção e outros aspectos dos orçamentos dos departamentos. Quanto à capacidade para liderar e gerir os departamentos, os indicadores incluem o desempenho, a gestão dos recursos, o planeamento e a capacidade de decisão. Quanto à ética e à responsabilidade para exercer funções oficiais ter-se-à sempre presente melhor servir a população, o sentido do trabalho de missão, o poder e as responsabilidades, bem como a capacidade de resposta dos recursos ou outros indicadores.

Depois de estabelecer padrões, a coisa mais importante é a partici- pação do cidadão. A avaliação do desempenho é, sem dúvida, um canal de comunicação entre o Governo e os cidadãos. Assim, o elemento mais importante para a nova gestão pública é a participação do público, por- que o público é o utente dos serviços públicos. Assim continuar a ouvir a opinião pública e agir de acordo com essa opinião e melhorar o atendi- mento, tornar-se um imperativo para satisfazer as necessidades públicas. De acordo com este método, em seguida, o governo pode promover com sucesso o processo de desenvolvimento da avaliação do desempenho. O projecto de avaliação pode ser aplicado soba forma de um questionário para avaliar a satisfação e percepções dos cidadãos. Os departamentos do governo utilizam este método como forma de obter dados, mas neste mo- mento ele um arranjo sistemático e um tempo uniforme de acompanha- mento; por isso, não pode obter, de forma efectiva e alargada opiniões. Em segundo lugar, a falta de abertura e transparência. As informações no site sobre o serviço público reportam-se a dois ou três anos atrás, o que leva as pessoas a terem dificuldades em obter informações. Por fim, apre- sentação de relatórios periódicos sobre o desempenho e resultados, para mostrar as inadequações do projeto ou do serviço. Perante eles, o Go- verno pode melhorar o funcionamento e os resultados do projecto e dar suporte no futuro, para imprimir uma direção adequada e novas metas.

O Governo da RAEM tem vindo a implementar o conceito de “Implementar a política de modo científico”, continuando a promover a reforma da administração pública, na esperança de melhorar a eficácia da política governamental, de promover a prosperidade e o desenvolvi- mento da sociedade e de melhor servir o público. Após o lançamento de uma política, por vezes, os seus efeitos não são os mais desejáveis apesar 366

de estarem intimamente relacionados com o execução da política. Nas linhas de Acção governativa para 2013, o Chefe do Executivo aponta que Macau deve estabelecer um regime de avaliação do desempenho e a primeira coisa é implementar o regime de avaliação do desempenho do pessoal direcção. Implementar a política de modo científico é o princípio mais importante para o governo de Macau. Neste sentido, deve haver um regime que assegure o nível da avaliação e garanta a orientação polí- tica da avaliação. Com a expansão contínua das funções do governo, os gastos do governo aumentarão de forma significativa, mas a ineficiência nos gastos trará, inevitavelmente, declínio de qualidade; assim, o foco da avaliação vira-se, inevitavelmente, para a qualidade dos serviços, para estabelecer um mecanismo perfeito de avaliação do desempenho. Para definir um regime rigoroso de supervisão, o foco é o publico; o regime de avaliação do desempenho com troco no público, reforça a supervisão pública. Importa, pois, divulgar o programa de avaliação do desempe- nho, os seus princípios, design e métodos, os resultados da avaliação dos serviços públicos e os resultados da avaliação do desempenho global do governo. Importa também que, o governo aceite a supervisão pública e, com base nela, aperfeiçoe o regime da supervisão e fiscalização e o sistema da inspeção e controlo da melhoria de desempenho. Sem uma supervisão rigorosa e um sistema de controlo, a objetividade e a imparcialidade da avaliação do desempenho é difícil de garantir e se não existir um sistema de inspeção e de controle da melhoria do desempenho em tempo útil as actividades de gestão do desempenho podem facilmente tornar-se uma mera formalidade. Assim, no futuro, o Governo deve permitir que servi- ços especiais da administração pública, residentes e outras entidades de avaliação externa possam participar deste sistema de avaliação, para fazer com que a avaliação possa melhorar os efeitos da política e fazer com que o pessoal de direcção dos departamentos formem uma força de incentivo e encorajamento. Administração n.º 104, vol. XXVII, 2014-2.º, 367-384 367

Análise comparativa entre as políticas de salário mínimo de Macau e a teoria dos fluxos Ao Io Weng*

O conceito de salário mínimo é uma política universal de proteção dos direitos dos trabalhadores de todo o mundo, cuja implementação é transversal a diferentes sistemas económicos. Macau, como uma econo- mia de mercado livre, assistiu à inclusão formal da discussão à volta do conceito de salário mínimo na agenda legislativa do seu Governo. No en- tanto, ao contrário do que sucedeu noutros lugares, a proposta de salário mínimo do Governo da RAEM tem aplicação limitada aos trabalhadores dos sectores da administração de condomínios, limpeza e segurança, em vez de ser aplicável a todos os setores de actividade. Por esta razão, a po- lítica do Governo de Macau pode ser descrita como um caso especial no mundo. De fato, os membros do Governo da RAEM têm referido que Macau não está capacitado para implementar um salário mínimo, e por isso optaram por uma atitude passiva. No entanto, em 2008, o governo da RAEM implementou o suplemento ao rendimento do trabalho, como uma política alternativa ao salário mínimo, com o intuito de proteger os direitos dos trabalhadores. Assim, pergunta-se quando é que a política de salário mínimo de Macau entrou na agenda política do Governo? Que fa- tores levaram à mudança de atitude acerca da política do salário mínimo? Por que é que entrou na agenda de decisão de Macau, uma política de salário mínimo que é diferente de outras regiões? Estas são perguntas da agenda política local que vale a pena discutir. O estudioso político de re- nome, John w. Kingdon, dos EUA pensa que existem fatores importantes por detrás do aparecimento de problemas e políticas, e para compreender a existência de leis objetivas da pesquisa em políticas públicas há o im- portante significado teórico e prático. Portanto, este trabalho tem como objetivo responder a estas perguntas aplicando múltiplas correntes da Te- oria de Kingdon, discutir características e esclarecer a definição da agenda política e, ao mesmo tempo, compensar a deficiência desta pesquisa nas áreas da agenda política de Macau.

* PhD Candidate, School of public administration at Renmin University of China. Doutorando da Faculdade de Administração Pública da Universidade Renmin da China. 368

I. O quadro analítico: A teoria dos fluxos ou correntes múltiples

Relativamente à questão negligenciada, mas importante, do porquê do adiamento da agenda de decisão política, no início de 1972 Mihacel Cohen, James March e John Olsen propuseram usar o “Garbage Can Model” para a explicar. Este modelo refere que a decisão da Organiza- ção depende de quatro forças independentes entre si, mas com o tempo formam a chave de cruzamento que leva a política a entrar em agenda, e elas são os problemas e soluções alternativas, participação pessoal e oportunidades de decisão. Kingdon pensa que ou o modelo 1“Rational Decision Making” ou o modelo “Incremental Decision Making”, falha- ram na explicação eficaz do processo de tomada de decisão do Governo dos Estados Unidos, em particular, porque algumas políticas melhoraram repentinamente como um foco em questões, enquanto outras desaparece- ram, de modo que todas essas políticas são difíceis de ser explicadas com estes dois modelos. Em contraste, Kingdon concordou mais com o “gar- bage can model”, argumentando que ele é capaz de explicar o processo do Governo Federal da tomada de decisão. Em seguida, em 1984, editou a publicação clássica em políticas públicas, “Agendas, Alternativas, e Po- líticas Públicas”, na qual foram feitas alterações a este modelo, integrado com o processo de política do Governo Federal dos Estados Unidos e da famosa proposta, “Teoria das correntes múltiplas”. Esta teoria classificou o processo de decisão do Governo Federal em três correntes: problema, política e políticos. Kingdon acha que estas três correntes se realizaram em paralelo e independentes umas das outras, enquanto dominadas por diferentes forças, considerações e estilos, até um determinado momento quando alguns eventos aleatórios ocorreram, como a Janela Política, ha- verá a política dos empreendedores, que terá o compromisso de integrar as abordagens de solução de problemas, preocupações sociais e situação política favorável, para combinar perfeitamente as três correntes para em- purrar a política para a agenda de decisão2.

1 John. W. Kingdon, Ding Huang, Fang Xing translation, 2004. Agendas, Alternativas, e Políticas Públicas 2 John. W. Kingdon, Ding Huang, Fang Xing translation, 2004. Agendas, Alternativas, e Políticas Públicas (2ª. Edição), China Renmin University Press, Beijing, p.110. 369

1. A tendência dos problemas

A tendência dos problemas refere-se aos problemas que o Governo tem para resolver. Temos que entender que há muitas questões sociais, e nem todas elas podem chamar a atenção do público e dos responsáveis políticos, mas apenas, as questões que satisfazem determinados critérios, a fim de ganhar atenção. Kingdon pensa que os problemas preocupam as pessoas e requerem quantificação de alguns indicadores influentes, caso contrário é mais difícil atrair a atenção do público e dos funcioná- rios3. Além disso, os indicadores também precisam de alguns drivers para chamar a atenção dos governos e das sociedades, incluindo uma série de crises ou símbolos que podem ser propagados facilmente. Em geral, depois de várias crises semelhantes numa sociedade, as pessoas podem co- meçar a estar cientes de um problema generalizado, e certos símbolos (por exemplo, algumas declarações icónicas) que transportam capacidades de forte comunicação também terão um efeito de reforço sobre as questões. Além disso, a definição e a classificação dos problemas, também tem um impacto importante, a que devemos prestar atenção relativamente às dife- renças entre as questões e as situações. Na sociedade, em cada dia há uma variedade de condições, tais como o tempo (por exemplo, húmido, frio), e quando começamos a tomar medidas sobre a situação e tentar mudar a situação, estas condições podem ser definidas como questões4. Quando a questão é classificada como certa classe de problemas, em vez de quais- quer outros tipos de perguntas, as medidas políticas relevantes também serão totalmente diferentes5.

3 John. W. Kingdon, Ding Huang, Fang Xing translation, 2004. Agendas, Alternativas, e Políticas e Públicas (2ª. Edição), China Renmin University Press, Beijing, p.119. 4 John. W. Kingdon, Ding Huang, Fang Xing translation, 2004. Agendas, Alternativas, e Política Públicas (2ª. Edição), China Renmin University Press, Beijing, p.120. 5 Um exemplo interessante é o transporte de pessoas com deficiência. Na década de 70 do século passado, alguns defensores das pessoas com deficiência, diziam que elas não tinham igual oportunidade de desfrutar do metro público, mas muitos operadores de transporte público pensaram que se houvesse uma chamada para o serviço de táxis ou de ambiente financeiro para elas usarem um táxi, os custos poderiam ser inferiores à instalação de recursos para ajudar as pessoas com deficiência no metro. Se isso fosse apenas classificado como problema de transporte, então poderia haver outros regimes de apoio para ajudar a resolver o problema. John. W. Kingdon, Ding Huang Fang tradução Xing, 2004 Agendas, Alternativas e Políticas Públicas (segunda edição), China Renmin University Press, Pequim, p.140. 370

2. A tendência das políticas A política é formada por uma série de recomendações políticas como forma de resolver problemas. A Tendência das políticas serve-se da ana- logia com o “caldo primitivo de políticas” de Kingdon, que considera a comunidade política formada por investigadores individuais. Funcioná- rios do Congresso, académicos e grupos de interesse individuais fazem nascer ideias alternativas e recomendações de políticas que flutuam na comunidade, como o que os biólogos moleculares chamaram de “caldo” na era antes do nascimento da vida. Depois de uma ronda de mútua co- lisão, a reestruturação e a combinação entre os diferentes pensamentos, alguns deles atenderam a certos padrões que sobreviveram e obtiveram atenção6. No processo de sobrevivência do pensamento e das recomenda- ções políticas, as iniciativas políticas desempenham um papel importante e Kingdon chamou aos seus criadores empreendedores políticos, que não permitem que estes pensamentos políticos ou recomendações flutuem à deriva na sopa política; ao invés, propõem ativamente os seus pontos de vista, tentando afetar ou persuadir as forças impedindo a mudanças na comunidade, ao mesmo tempo que influenciam as massas sociais, acostu- mando-as às ideias defendidas por eles e aceitando as suas recomendações políticas7. Kingdon refere-se a este processo como “amolecimento”. O público é o tema principal que tenta suavizar; mais especificamente, é ne- cessário educar o público, com o objetivo de aumentar o conhecimento do público, para garantir que a comunidade está bem preparado para a chegada de algumas propostas políticas8.

3. A tendência da política A corrente política é uma parte importante do processo de desenvol- vimento das políticas, que se desenvolve independentemente dos fluxos de problemas e dos fluxos da política. É composta por fatores como a opinião pública, a competição entre os grupos de interesse, os resultados das eleições, o partido e a ideologia, incorporando as características das

6 John. W. Kingdon, Ding Huang, Fang Xing translation, 2004. Agendas, Alternatives, and Public Policies (Second Edition), China Renmin University Press, Beijing, p.148. 7 John. W. Kingdon, Ding Huang, Fang Xing translation, 2004. Agendas, Alternativas, e Política Pública (2ª. Edição), China Renmin University Press, Beijing, p.160. 8 John. W. Kingdon, Ding Huang, Fang Xing translation, 2004. Agendas, Alternativas, e Política Pública (2ª. Edição), China Renmin University Press, Beijing, p.162. 371 políticas democráticas ocidentais9. Em primeiro lugar, a opinião pública pode promover ou inibir a agenda política como, aliás, os responsáveis políticos podem colocar questões políticas na agenda através da opinião pública, por meio das quais também podem restringir ou inibir certos assuntos importantes na agenda da política. Mas os responsáveis políticos têm necessidade de saber não só a opinião dos cidadãos, mas também têm necessidade de compreender as suas alternativas. Kingdon considera que a opinião pública muda como um pêndulo e não existe, necessaria- mente, na população em geral, podendo ser obtida através de sondagens e de entrevistas, sendo os representantes eleitos e os meios de informação a revelá-las. A opinião pública é importante porque pode transformar as recomendações políticas não viáveis em viáveis, ao mesmo tempo que também pode transformar sugestões políticas viáveis em não-viáveis, o que constitui a principal razão que os políticos têm de ter em conta10.

Os grupos de interesse são a segunda importante corrente polí- tica, os quais muitas vezes são os beneficiários do sistema existente. Eles não tomam a iniciativa de conduzir o problema para a agenda. Na medida em que a opinião pública está em causa, os grupos de interesse têm um efeito supressor sobre questões da política que es- tabelecem a promoção. Mas, logo que as questões entram na agen- da, eles vão organizar-se, influenciando as políticas e os programas que destinam a obter resultados a seu favor. No entanto, se hou- ver um forte apoio público para as reformas e programas políticos, os grupos de interesse poderosos, às vezes, podem ser superados11. Além da opinião pública e dos grupos de interesse, os resultados das elei- ções para o Governo e os fatores políticos, como a mudança de Governo, a transferência oficial de pessoal e outras mudanças, também afetarão a agenda política. Por exemplo, uma mudança de Governo pode significar um ajuste, numa alteração ou uma revogação da necessidade das políticas do Governo anterior, em resposta às demandas dos eleitores e ao estabele- cimento do desempenho de novos funcionários do Governo, que muitas

9 John. W. Kingdon, Ding Huang, Fang Xing translation, 2004. Agendas, Alternativas, e Política Pública (2ª. Edição), China Renmin University Press, Beijing, p.184. 10 John. W. Kingdon, Ding Huang, Fang Xing translation, 2004. Agendas, Alternativas, e Política Pública (2ª. Edição), China Renmin University Press, Beijing, p.188. 11 John. W. Kingdon, Ding Huang, Fang Xing translation, 2004. Agendas, Alternativas, e Política Pública (2ª. Edição), China Renmin University Press, Beijing, p.205. 372

vezes levantam algumas questões para serem resolvidas e, como tal, o pro- blema irá entrar na agenda do Governo.

4. Abertura da política e convergência das três tendências A abertura política é crucial para a transição suave de uma das três correntes. Quando está aberta, os empresários políticos aproveitarão a oportunidade para combinar as questões políticas, a fim de as suas reco- mendações políticas permitirem que as três correntes possam convergir. Isso pode acontecer devido a alterações na corrente política que abre janelas de políticas e pode haver mudanças na tendência do problema e na abertura do mesmo. O tempo de abertura política não pode ser longo. Se as três correntes não se conseguem combinar de forma eficaz, as opor- tuntidades para a política estar na agenda desaparecem e é preciso esperar uma próxima oportunidade12. Em geral, a teoria da tendência múltipla proporciona uma boa inter- pretação da evolução da agenda política. A teoria é baseada em pesquisas empíricas e foi usada no passado para explicar o processo das políticas públicas em diferentes países, apoiado por algumas pesquisas bastante empíricas13. Portanto, este artigo vai fazer uso desta teoria para analisar as causas da política do salário mínimo em Macau.

II. Características do salário mínimo Por definição, o salário mínimo refere-se à necessidade de os empre- gadores pagarem os salários dos funcionários, pelo menos até certo mon- tante, de acordo com a lei. Embora as políticas de salário mínimo existam em todo o mundo, esta questão, na verdade, é uma política altamente controversa. Os trabalhadores e os empregadores são dois grupos apos- tos; os partidários do trabalho afirmam que, devido à falta de poder de negociação, as pessoas de baixos rendimentos, são explorados pelos seus empregadores e quase não têm dinheiro suficiente para se sustentarem. Através da legislação do salário mínimo garante-se que os trabalhadores

12 John. W. Kingdon, Ding Huang, Fang Xing translation, 2004. Agendas, Alternativas, e Política Pública (2ª. Edição), China Renmin University Press, Beijing, p.245. 13 Zhu Yapeng, 2013. Research on the Public Policy Process: the Theory and Practice, Central Compilation and Publication, p.37. 373 recebam um salário de base, para resolver o problema dos “trabalhado- res pobres”. No lado oposto, os empregadores, consideram que o salário mínimo iria interferir no funcionamento do mercado e levar à distorção da concorrência, devido às desvantagens da competitividade das pessoas de baixos rendimentos, numa política que causaria o aumento do desem- prego, o aumento dos custos da empresa, a inflação e outros impactos negativos. No entanto, em relação ao debate sobre o salário mínimo, um economista, num artigo publicado em 24 de novembro de 2012, citou estudos realizados por economistas, ressaltando que os efeitos actuais do salário mínimo ainda não chegaram a uma conclusão absoluta14. Por ou- tro lado, há também o argumento de que o salário mínimo não deve ser analisado exclusivamente a partir de um ponto de vista económico, mas também de um ponto de vista dos princípios morais e de justiça. O salá- rio mínimo não é apenas para melhorar o nível de vida dos trabalhadores e do poder de compra, mas também faz parte de uma sociedade justa e equitativa, sendo um elemento importante para garantir que os trabalha- dores gozem de valores básicos e dignificantes. Portanto, do ponto de vis- ta normativo, o salário mínimo é uma condição necessária de uma socie- dade equitativa para que os cidadãos vivam com dignidade15. Portanto, as atuais posições doutrinais sobre os prós e contras de um salário mínimo não são consistentes e a análise desenhará diferentes conclusões a partir das diferentes perspectivas. As análises académicas acerca do conceito do salário mínimo são inconclusivas e podem causar certos obstáculos em termos de integração dos pensamentos na corrente política e no abranda- mento das atividades dos empresários políticos.

III. História legislativa do salário mínimo em Macau A Organização Internacional do Trabalho vinda dependendo as po- líticas do salário mínimo, e, atualmente, mais de 90 dos países ou regiões têm legislação sobre o salário mínimo. Já em 1959, a administração Por- tuguesa de Macau alargou o número 26 da “Convenção sobre os instru-

14 The Economist. The argument in the floor. Nov 24th 2012. Available at: http://www. economist.com/news/finance-and-economics/21567072-evidence-mounting-moder- ate-minimum-wages-can-do-more-good-harm?zid=309&ah=80dcf288b8561b012f60 3b9fd9577f0e 15 Oren Levin-Waldman. (2010). The Minimum Wage and the Cause of Democracy. Review of Social Economy, 61(4), 487-510. 374

mentos de Fixação do Salário” da Organização Internacional do Trabalho a Macau, e estabeleceu as “Bases da Política de Emprego e dos Direitos Laborais”, (Lei nº. 4/98/M, de 30.1-1998), No seu artigo sétimo foi pre- visto tomar medidas para garantir que o salário mínimo fosse ajustado periodicamente e aplicável até aos dias de hoje. No entanto, nos primei- ros anos após a reunificação, por causa da crise económica, depararam-se certas dificuldades na fixação de um salário mínimo, pelo que o governo e a comunidade não lhe prestaram atenção. Até 2005, e posteriormente, a economia do Macau emergiu, o afluxo de mão-de-obra estrangeira afetou os salários locais e o problema do baixo rendimento dos trabalhadores locais tornou-se cada vez mais preocupante. Para proteger os interesses dos salários locais, posteriormente, as associações representativas dos interesses trabalhistas expressaram a exigência de uma legislação para desenvolver o salário mínimo e, por isso, o Governo, em 2007 e 2008, respectivamente lançou duas políticas, “salário mínimo dos trabalhadores dos serviços de segurança e limpeza contratados pelo governo” e “Medidas Provisórias para os Subsídios de rendimento do trabalho” como resposta. Durante esse período, a comunidade tinha em curso a controvérsia sobre a possibilidade de estabelecer o salário mínimo; devido à falta de consen- so entre empregadores e empregados, a legislação do salário mínimo não viu qualquer progresso. Em setembro de 2013, o governo consultou for- malmente sobre a legislação do salário mínimo para serviços de limpeza e segurança. Em 2014, o salário mínimo entrou oficialmente no processo legislativo. Quais os fatores que conduziram a questão do salário mínimo à agenda de decisão, e que justificaram a sua implementação parcial? A seguir apresentar-se-á a análise dos detalhes sobre o problema, a política e as suas tendências.

IV. Análise da política do salário mínimo Agenda de Macau

1. A tendência do problema Em Macau, o salário mínimo servirá para tentar resolver o problema da “pobreza do trabalho”. Na verdade, Macau como uma economia livre, teve sempre problemas de pobreza, embora estes não sejam considerados graves. Após a transferência de soberania, a liberalização do licenças do jogo em 2002, especialmente, conduziram Macau a uma economia que tem visto um rápido desenvolvimento, sob a liderança da indústria do 375 jogo. A vida dos cidadãos em geral, melhorou, enquanto o fosso entre os ricos e os pobres, obviamente, se intensificou. Considerando os dados da direcção Serviços de Estatística e Censos em 2002/2003, 2007/2008 e 2011/2012, relativamente aos rendimentos do agregado familiar e despesas o coeficiente de Gini de Macau é de 0,39, 0,37, 0,35, respecti- vamente, com os números a revelar uma tendência de queda constante. Embora a diferença não seja um problema grave, a pobreza de base e o problema da pobreza, principalmente, continuam a trabalhar para cha- mar a atenção. Pela definição atual de pobreza, geralmente baseada na pobreza relativa, os países da OCDE baseiam-se nos 50% do rendimento médio como uma linha de pobreza, embora a UE adopte 60% da renda mediana de 60% como padrão. De acordo com as estatísticas sobre pes- quisa de emprego, em 2005, havia cerca de 42.500 pessoas que ganha- vam menos de metade do rendimento mediano16. Naquela época, a po- pulação de Macau era de 484.000, e a proporção era de 8,7%, enquanto a figura mostra que a “pobreza do trabalho” ainda é um problema sério, e o desenvolvimento económico não foi capaz de chegar a todas as pessoas das camadas populares. Para Macau como uma sociedade comunitária, a sociedade é um importante representante do público. Sobre a questão da “pobreza de trabalho”, a Federação das associações dos operários de Macau (doravante denominado “MFWU”), que representam os direitos dos trabalhadores, pensava que os rendimentos de base dos trabalhadores, sendo muito baixos eram uma das principais razões. Assim, em 2009, nas eleições, a associação formada por representantes da MFWU definiu o salário mínimo como uma das suas plataformas e tentou ativamente an- gariar apoio17. Além disso, uma outra associação, a associação dos empre- gadores de Macau, em 2009, também apresentou petições ao Governo da RAEM para exigir a criação de um sistema de salário mínimo em Macau o mais breve possível, a fim de aliviar o problema da pobreza do trabalho no sentido de melhorar a vida dos trabalhadores18. Outra razão importante para a “pobreza do trabalho” como uma pre- ocupação social é que a notícia se espalhou rapidamente como um símbo-

16 Direcção dos Serviços da Estatística e Censos, 2005. Relatório Sobre o Emprego no 4º. Trimestre 17 Together to Protect Employment Rights, Guan Choi Hung Says Focus on The Mini- mum Wage Legislation”, , September 7, 2009. 18 “Property Management Association Demanded to Reduce Working Poverty,” Macao Daily News, September 15, 2009. 376

lo móvel nos órgãos de informação. Por exemplo, entre 2005-2009 o ter- mo “pobreza do trabalho” nos relatos da imprensa de Macau apareceu 533 vezes, enquanto em comparação com os anos entre 2001-2004, ocorreu apenas uma vez19. O aumento significativo desta “exposição” contribuiu diretamente para a atenção da sociedade ao problema em questão.

A fim de responder às aspirações sociais sobre a “pobreza do traba- lho”, o Governo da RAEM implementou um sistema de salário mínimo para os trabalhadores dos sectores da segurança e limpeza em 2007, e lançou as “Medidas Provisórias para o trabalho e subsídios de rendi- mento”, em 2008, dados temporariamente aos cidadãos que ganhassem menos de 4.000 por mês, como alternativa para legislar uma política de salário mínimo, juntamente com uma série de medidas de bem-estar implementadas pelo Governo em relação ao mesmo período, incluindo o plano de divisão de dinheiro, elevando o índice mínimo de subsistência, o subsídio para idosos e a distribuição de vales de saúde, etc, mostrando que o problema dos “trabalhadores pobres” tem recebido considerável atenção dos funcionários do governo. No entanto, naquele momento, a estratégia do Governo da RAEM usou principalmente as políticas de bem-estar para lidar com este problema e o salário mínimo não é um plano a ser considerado pelo Governo, indicando que o mesmo ain- da não tinha cumprido as condições para entrar na agenda de decisão. No entanto, como o resultado desses benefícios sociais não foi contabili- zado como receita, em 2009, ainda havia 46.200 pessoas que ganhavam menos de metade do rendimento médio da população trabalhadora como um todo20. Por outras palavras, “a pobreza do trabalho” de Macau, aumentou, e as vozes da sociedade que queriam definir o salário míni- mo aumentaram igualmente. Além disso, o problema da “pobreza do trabalho”, conforme definido pela sociedade também mudou essencial- mente. Além de visualizar “a pobreza do trabalho” como um problema de rendimento, um dos pontos de vista que a classe trabalhadora perdeu foi a sua dignidade perante a economia em expansão, ganhando apenas salários miseráveis. Por exemplo, um artigo que apareceu no Shi Min Diário, em 2 de Maio de 2008, intitulado “O governo deve perseguir a justiça dos trabalhadores desfavorecidos”, apontava que os trabalhadores

19 Wisers Information Ltd 20 Direcção dos Serviços da Estatística e Censos, 2009. Relatório Sobre o Emprego no 4.º Trimestre. 377 viram os seus salários retirados e não conseguiram mostrar a dignida- de do trabalho. Como tal, o Governo não os devia supervisionar21. O Daily News de Macau em 11 julho de 2011 relatou que o MFWU ex- pressou “a fixação de um salário mínimo é para proteger os empregados do trabalho duro e obter um salário digno, defendendo a dignidade do trabalho”22. O problema do rendimento pode ser abordado por outras políticas de bem-estar. A dignidade do problema do trabalho, deve contar com a aplicação do salário mínimo, a fim de efetuar uma cura radical. Em suma, no âmago do problema, o número de trabalhadores pobres na expansão da economia tem aumentado, ao invés de ter caído, o que jun- tamente com as alterações das perspectivas sobre a questão da pobreza do trabalho pela sociedade, entrou pelos olhos do público e contribuiu para que entrasse na agenda de tomada de decisão.

2. A tendência das políticas Em termos de tendências políticas, as Associações de Macau são im- portantes defensoras das políticas de Macau. Na legislação sobre a ques- tão do salário mínimo, o MFWU como uma importante salvaguarda dos direitos e interesses dos trabalhadores locais de Macau, pode ser descrito como o defensor mais ativo, fazendo o papel dos empreendedores das políticas. Desde 2005, o MFWU começou a realizar a defesa de ativida- des de reforço da legislação através de um conjunto de iniciativas sobre salário mínimo nos media, imprensa, campanhas eleitorais, palestras, conferências de imprensa, pesquisas e outros canais para deixar a socieda- de conhecer a situação de vida difícil dos trabalhadores e compreender a importância de salvaguardar os direitos e interesses dos trabalhadores com o salário mínimo. Por exemplo, o MFWU em 2009 coordenou a forma- ção de uma equipa de trabalho, convidou à participação de especialistas do continente, através de um grande número de entrevistas para reunir dados, e visitou um número de estudiosos em Macau para recolher as suas opiniões sobre se eles apoiavam ou não o salário mínimo. O relatório “O Estudo da legislação do salário mínimo de Macau”, com mais de 170 páginas, foi escrito para mostrar o apoio da legislação promulgada sobre

21 “The Government Must Pursue Justice for Deprived Workers”, Shi Min Daily News, May 2, 2008. 22 Defending the dignity of labor, let’s all bear the social responsibility, WFMU contin- ued to push up the minimum wage”, the Macao Daily News, July 11, 2011. 378

salário mínimo e apresentado ao Governo, para referência, em 201123. De acordo com as associações em atividade de abrandamento político em Macau, parte pertencente à gestão das organizações de empregado- res, começou a aceitar-se e apoiar-se a legislação do salário mínimo; por exemplo, em 2011 as associações comerciais da indústria de serviços de entretenimento expressaram o seu apoio à legislação do salário mínimo, a associação de administração de imóveis em geral manifestou aceitar a legislação do salário mínimo do setor24. Podemos ver que como corrente política, o salário mínimo foi estabelecido, como uma política de trabalho para a resolução dos programas de pobreza. No entanto, em termos de como implementar o salário mínimo, ainda há muita controvérsia na sociedade. Por exemplo, para a comuni- dade empresarial se o salário mínimo por rapidamente implementado, ela terá um impacto negativo sobre as PME25. A Associação dos Profissionais de Gestão de Imóveis também manifesta a preocupação de que o salário mínimo conduza ao encerramento das PME26. As associações de proprie- tários de imóveis expressaram que, se não existir uma margem clara e com critérios razoáveis, o salário mínimo pode levar ao desemprego das pesso- as idosas e das pessoas menos instruídas27. Na verdade, o MFWU admi- tiu que havia uma grande controvérsia sobre o nível do salário mínimo, e por isso houve falta de consenso entre os estudiosos. Foi difícil chegar a um consenso, e, portanto, o MFWU instou o Governo a propor um esquema básico para o salário mínimo, o mais rapidamente possível, caso contrário não haveria conclusões28 para as discussões entre os trabalhado- res e os empregadores. Os legisladores que representavam os grupos de trabalhadores também solicitaram ao Governo que iniciasse um estudo29

23 Macau Federation of Workers’ Union (2011). Study on Minimum Wage Legislation in Macao. From: http://www.faom.org.mo/files/research/201006rep02.PDF 24 “Civic Exchange Network Forum Discussed with the Public, the Opinions on the Minimum Wage Legislation Were Divided”, Macao Daily News, September 5, 2011. 25 “Macao’s SMEs: the Minimum Wage Should Balance Interests”, Macao Daily News, September 24, 2011. 26 Feared triggered layoffs and failures of SMEs, Chen Xidian Said: Minimum Wages Should Not Push with Undue Haste”, Macao Daily News, June 8, 2011. 27 “Minimum Wages for Property Management Must be Considered Carefully”, Macao Daily News, June 8, 2011. 28 “Setting a Minimum Wage in Macao, Li Jingyi Said that Employers Had Not Reached Consensus”, Va Kio Daily News, October 28, 2011. 29 “Members of The Labour Sector Advocates Step-By-Step Implementation of The Minimum Wage”, Macao Daily News, May 7, 2008. 379 de viabilidade imediata para se concentrar na aplicação integral do salário mínimo. Assim, em relação à implementação do programa do salário mí- nimo e à controvérsia sobre o mesmo, não foi apresentada pelos grupos sociais uma recomendação política convincente e assim, a política preli- minar corrente desempenhou apenas o papel de recomendações políticas, fazendo com que a tarefa dos programas de execução da política recaísse sobre os ombros do Governo. Neste caso, as influências do Governo na corrente política aumentaram grandemente bem como as suas propostas políticas apresentadas com uma certa autoridade, o que fez com que fos- sem aceites mais facilmente. Ao mesmo tempo, deve evidenciar-se que, com base nas caracterís- ticas da sociedade de Macau, o Governo da RAEM criou um certo nú- mero de órgãos consultivos, funcionários nomeados em diferentes áreas políticas, representantes da comunidade, especialistas e estudiosos como membros de organizações políticas, para alcançar um consenso abrangen- te de opiniões que levasse à tomada de decisão democrática no processo político. Por exemplo, o Conselho Permanente de Concentração Social nas discussões sobre o salário mínimo proposto, foi consituído pelo o Se- cretário para a Economia e Finanças, o Director dos serviços para os As- suntos baforais, o Diretor dos Serviços de Economia, legisladores, repre- sentantes das várias associação e representantes das organizações laborais. Esta circunstância tornam os que mecanismos de consulta e correntes po- líticas de Macau não fossem desenvolvidos de uma forma independente, mas estreitamente relacionada com a interação. Na situação de Macau, o Governo tem o papel importante de pesquisa e propõe regimes políticos específicos, em certa medida e também joga o papel de empreendedor político. Através de organizações de consultoria em várias áreas políticas, discute-se e comunica-se regularmente com a opinião pública e com os grupos de interesse relevantes, promove-se a combinação das políticas e das correntes políticas e aumenta-se a aceitabilidade e a viabilidade das políticas sobre os regimes políticos do Governo e suas recomendações.

3. A tendência da política Como havia enorme polémica no salário mínimo, devido à elevada resistência por parte dos empregadores, e a grande discordância com os trabalhadores, havia também grande resistência política a que o governo devesse implementar um salário mínimo. Embora os empregadores se opusessem ao sistema de salário mínimo, em face do agravamento do 380

problema da pobreza do trabalho, o salário mínimo foi uma exigência po- lítica em todos os tipos de atividade política e alcançou uma determinada posição, a suficiente, para a resistência dos empregadores rivais poderosos dos grupos de interesse. Por exemplo, em 2007, e depois de alguns anos de manifestação no Dia do Trabalhadores, uma das principais exigências dos trabalhadores foi pedir ao Governo para introduzir legislação sobre o salário mínimo. Em Setembro de 2009 nas eleições para a Assembleia Legislativa, algumas círculos eleitorais incluíram o pedido ao Governo para aprovar uma política de salário mínimo nas suas plataformas eleito- rais. Nos resultados das eleições, os representantes do setor trabalhador, os candidatos que levantaram questões sobre salário mínimo ganharam a maioria dos votos, num total de mais de vinte mil votos30, refletindo claramente os fortes interesses dos eleitores de Macau para lutar pelos di- reitos dos trabalhadores, o que representou uma mudança significativa na opinião pública dos direitos dos trabalhadores de Macau. Essa mudança refletiu-se, não só, na atividade política ou políticos individuais, mas tam- bém no público em geral. Uma pesquisa realizada pela MFWU sobre os pontos de vista dos residentes de Macau a respeito da promulgação do sa- lário mínimo mostrou que, nos mais de 4.000 entrevistados, mais de 80% foi a favor de a Assembleia Legislativa estabelecer um sistema de salário mínimo em que a legislação pudesse: “proteger os padrões de vida e bem- -estar dos trabalhadores”, “evitar a continuação do declínio dos salários”, “reduzir a possibilidade de exploração do empregador”, “promover a har- monia de uma sociedade justa e estável”, “promover a partilha dos frutos do desenvolvimento económico do trabalhador”, e assim por diante31. Os resultados diretos das mudanças na opinião pública traduziram-se em mu- danças na corrente política que resultaram na abertura das políticas. Além disso, a implementação de uma política de salário mínimo em Hong Kong teve um efeito indirecto em Macau. Em 2006, o Governo da RAE de Hong Kong, em resposta às exigências da sociedade, apresentou o “Movimento de Defesa do Salário (WPM)” para o pessoal de segurança e de limpeza e atraiu a participação activa dos empregadores para prote- ger os salários dos trabalhadores voluntários em meios não legislativos. Os resultados num período de dois anos WPM foi ineficaz, obrigando a

30 Macau Legislative Assembly Elections 2009 Official Website, taken from: http://www. EAL.gov.Mo/zh_TW/2009.html 31 “More Than 80% of the Respondents Supported the Minimum Wage”, Macao Daily News, September 6, 2010. 381

Câmara de Comércio tradicional a suavizar a sua oposição à legislação, e também a fazer com que o Governo da RAE de Hong Kong decidisse legislar o salário mínimo32. O MFWU também usou a experiência de Hong Kong como ferramenta de propaganda, convocando Macau para seguir Hong Kong para promulgar a legislação do salário mínimo. Neste sentido, foi assumida a compreensão de que algumas associações de traba- lhadores de Macau esperam igualar a implementação de uma política de salário mínimo em Hong Kong e esperam que o Governo e a sociedade civil possam realizar debates aprofundados sobre tópicos relacionados33. Assim, sob os efeitos da repercussão política, o sucesso da implementação do salário mínimo em Hong Kong teve uma certa influência sobre grupos que se opunham à legislação, suavizando um pouco a resistência política.

É interessante notar que as transições do Governo da RAEM tam- bém ajudaram a fazer a mudança da corrente política. Em Dezembro de 2009, na transição do Governo da RAEM, o terceiro Chefe do Executivo do Governo da RAEHK propôs uma política de “tomada de decisão cien- tífica” sobre este importante conceito, publicado em 2010, afirmando que “no processo de tomada de decisão científica, devem haver uma consulta pública abrangente e serem extensivamente ouvidas as opiniões das diver- sas áreas para alcançar a democratização da tomada de decição. “Este novo conceito de governanção apresenta as condições favoráveis para a inau- guração da abertura política do salário mínimo. Em Outubro de 2010, o Secretário para a Economia e Finanças reuniu-se com os representantes do MFWU, que apresentaram o relatório sobre o questionário do salário mínimo. O secretário disse que, em relação à formulação do sistema de salário mínimo, a atitude do Governo da RAEM tinha mudado ampla- mente no sentido de procurar activamente o consenso social e esperar que a sociedade, por meio de discussão e pesquisa, melhorasse a aceitação do salário mínimo34. Como pode ver-se, no conceito da política de tomada de decisão científica, a política do salário mínimo, com fundamento na opinião pública, foi posteriormente incorporada na agenda do governo.

32 Macao Federation of Workers Union (2011). Study on Minimum Wage Legislation in Macao. From: http://www.faom.org.mo/files/research/201006rep02.PDF 33 “Macao’s SMEs: the Minimum Wage Should Balance Interests”, Macao Daily News, September 24, 2011. 34 “TAM: Confidence to Have Solid Progress on the Minimum Wage for Next Year”, Macao Information Office, taken from: http://www.gcs.gov.mo/showNews. php?DataUcn=48729&PageLang=C 382

4. A Inauguração da política: a convergência das três ten- dências A abertura política é o melhor momento para a convergência das três correntes: o problema, as políticas e a política. Na agenda para a política de salário mínimo, o sinal para a abertura política dá-se quando os mem- bros da comissão permanente de coordenação social estabelecidos pelo governo, empregadores e empregados e outros representantes da comuni- dade discutiram sobre a questão do salário mínimo. Em agosto de 2010, o Conselho Permanente da Concentração Social, decidiu discutir na agenda da próxima reunião, a inclusão do salário mínimo, um símbolo da convergência formal do problema, das políticas e da corrente política. Em fevereiro de 2011, o Conselho, discutiu pela primeira vez a questão do salário mínimo, com base nos dados da Direcção dos Serviços de Estatís- tica e Censos e nas medidas provisórias de apoio ao rendimento com foco nos trabalhadores da indústria com menor salário ou seja, os administra- dores dos condomínios e o pessoal de limpeza, propondo um esquema de compromisso com aplicação parcial do salário mínimo a partir destes dois sectores, enquanto o compromisso para os empregadores que anterior- mente não estavam dispostos a negociar, foi alcançado na reunião, com os dois lados a chegar a um consenso para implementar o salário mínimo na administração de imóveis e serviços de limpeza. Posteriormente, após várias reuniões, com base no consenso alcançado pelos empregadores e os trabalhadores, em setembro de 2013, o Governo lançou oficialmente o projecto de consulta para “a fixação de um salário mínimo para os fun- cionários que trabalham na limpeza e segurança dos Serviços de Gestão de Propriedades”, e em junho de 2014, o projecto de lei foi apresentado à Assembleia Legislativa.

V. Conclusões e Recomendações A teoria das múltiplas tendências propostas por Kingdon ajudou-nos a compreender como a política de salário mínimo de Macau entrou na agenda de tomada de decisão, ao mesmo tempo que revela as característi- cas da definição da agenda política de Macau. A questão da “pobreza do trabalho” tem sido uma preocupação constante da sociedade e a política de salário mínimo como uma das soluções também tem sido altamente valorizada. Na corrente política, os dois não são desenvolvidos de forma independente, e com a promoção ativa da MFWU, o salário mínimo 383 como uma solução dos “trabalhadores empobrecidos” está a ser gradual- mente reconhecido e estabelecido, mas o governo ainda tem a tarefa de estudar e propor mecanismos de aplicação específica, em conjunto com as características do sistema de aconselhamento política em Macau, para que o Governo da RAEM desempenhe um papel de liderança para pro- mover continuamente políticas, para uma direção comum de integração gradual. Por fim, com base no novo conceito de governanção de tomada de decisão científica na terceira administração do Governo, o Chefe do Executivo promoveu ativamente negociações e consultas entre empre- gadores e empregados, de modo que a política possa ser aberta e o pro- cesso proposto para aplicação parcial do esquema de salário mínimo em indústrias selecionadas, um compromisso, mas também, recomendações de políticas viáveis de forma a promover uma transição suave das três ten- dências, o que acabará por empurrar a política de salário mínimo para a agenda de tomada de decisão.

A análise acima tem alguma inspiração na melhoria do processo po- lítico em Macau. Em primeiro lugar, reforçar a consciência dos problemas sociais e a definição correta das questões políticas. O cientista político, William N. Dunn, apontou que o “problema” é mais importante do que a “solução”e, encontrar o problema certo, significa encontrar metade da so- lução35. Actualmente, Macau está num período de rápido desenvolvimento e uma variedade de problemas sociais interligados estão a começar a vir à tona. Para conseguir uma correta compreensão dos problemas sociais, é preciso ter uma forte consciência do problema, através de uma compreen- são da percepção do público e atenção as problema, para o definir de forma clara e o classificar corretamente, e para adicionar proativamente as preo- cupações da sociedade na agenda do governo, melhorando assim a parte de entrada do processo político, a fim de ser tornada a opção correcta.

Em segundo lugar, exercer plenamente o papel de empreendedores de políticas e reforçar a sua função de suavização do processo político. O processo de elaboração de políticas públicas em questões encontradas frequentemente e os problemas de reação apática das pessoas, residem no paradoxo de que, quando a política é introduzida, muitas vozes opostas se levantam. Na verdade, falta a atividade do abrandamento do processo político; para ser mais específico, isso envolve a questão do papel dos em-

35 William N. Dunn. (1994). Public Policy Analysis: An Introduction. Prentice Hall, p.2. 384

preendedores das políticas. No processo político, os empresários políticos desempenham um papel muito importante, eles têm fortes capacidades de comunicação e capacidade de persuadir, para diminuir a resistência dos grupos sociais e do público através de vários meios para que compre- endam e apoiem a política. Embora a atividade de abrandamento seja uma tarefa longa e difícil no campo da educação, é indispensável para melhorar o processo político em Macau. Portanto, o Governo da RAEM, na implementação dos objectivos da política de formação de talentos, deve considerar que a formação de empreendedores das políticas deve ser um dos pontos-chave.

Em terceiro lugar, nível científico do reforço dos sistemas políticos. O conceito enfatiza cada vez mais a participação diversificada da socieda- de, a formulação de políticas não é apenas responsabilidade do Governo e os grupos sociais também têm a responsabilidade de propor regimes políticos. Portanto, para aumentar o nível de discussão racional e cientí- fica, cada grupo apresenta um programa que precisa de ter alguma justi- ficação científica, e também se apoie na teoria científica como um guia e em procedimentos e especificações em todos os tipos de reorganizações e processos de fusão de pensamentos e regimes políticos. A partir daqui, a escolha de um ponto de interesses mais públicos, e de consultas contínuas e mecanismos interativos, ajudar ambas as partes a procurar ativamente o consenso. Assim, é possível melhorar efetivamente a eficiência e a quali- dade dos sistemas do processo de produção das políticas, para implemen- tar a “decisão científica” como um conceito importante.

Em quarto lugar, aproveitar a oportunidade chave da abertura polí- tica. No conceito “tudo está pronto, apenas se esperando melhor vento”, a abertura é este “vento” que empurra as soluções políticas para a agenda de decisão. A fim de reduzir a resistência na implementação da política, os departamentos políticos relevantes precisam de ter uma boa compre- ensão das mudanças no fluxo de problemas e políticas, para aproveitar a abertura de oportunidades e lançar as políticas. Além disso, no meio das consultas e de outros mecanismos podem também constar a consulta po- lítica e a formação de consensos. Os especialistas políticos, funcionários do Governo e representantes do povo reuniem-se para, trocar pontos de vista sobre as questões sociais e criar ativamente condições para a política de abertura, aumentando assim a oportunidade para entrar com sucesso na agenda de tomada de decisão política. Administração n.º 104, vol. XXVII, 2014-2.º, 385-408 385

Acções de beneficência e de interesse público a cargo do sector do jogo de Macau até à aboli- ção do monopólio Lou Shenghua*

Em Macau, existe uma longa história de interligação entre o sector do jogo e as acções de assistência social e de interesse público. Enquanto Território onde o jogo se encontrava legalizado desde há muito, a anga- riação de fundos para acções de beneficência e de interesse público através do jogo, tem sido um fenómeno normal no processo de desenvolvimento dessas acções no Território. Um aspecto da maior relevância é que, com a fixação de residência dos portugueses em Macau a partir do século XVI, Macau passou a ser uma faixa de intercâmbio entre a China e o Ociden- te. Neste sentido, Macau não só foi um território onde coexistiam insti- tuições vocacionadas para acções de beneficência e de interesse público de origem chinesa e ocidental e actividades de jogo de modalidades chinesas e ocidentais, mas também foi o primeiro território chinês onde foram introduzidas lotarias ocidentais que serviam de meio para a angariação de fundos. Pode afirmar-se que Macau é um campo-piloto onde se concilia a assistência social com o jogo no âmbito de todas comunidades chinesas.

I. A legalização dos jogos e a sua contribuição para a finanças públicas Em Macau, os jogos chineses enquanto forma de divertimento le- gado de geração em geração na comunidade chinesa têm uma longínqua história. Na realidade, de entre as obras literárias e pinturas de artistas estrangeiros sobre Macau nos seus primeiros tempos, não faltam aquelas que têm como temática a vida dos chineses na vertente de apostas em jo- gos. Assim, não é difícil pensar que os jogos eram bastante “generalizados” na sociedade de Macau. Apesar de assim ser, existiam vestígios de que as actividades do jogo vinham sendo legalizadas por parte do Governo.

* Professor Catedrático do Instituto Politécnico de Macau. 386

Após a Guerra do Ópio, Hong Kong tornou a ser, em 1842, colónia da Grã-Bretanha que foi logo declarada porto franco. Macau perdeu as suas vantagens na vertente comercial a favor de Hong Kong, na sequência da abertura deste enclave, facto que determinou a depressão económica célere de Macau. Perante isto, Macau foi posteriormente declarado, de modo obrigatório, porto franco, seguindo os passos da colónia britânica, o que fez com que as receitas decorrentes dos direitos aduaneiros tivessem diminuído de forma rápida. Ao que acresceu que os residentes chineses não estavam dispostos a pagar impostos e contribuições às autoridades portuguesas, as finanças da Administração Portuguesa encontravam-se numa situação extremamente difícil, o que a obrigou a contrair emprés- timos junto dos cidadãos. A Administração Portuguesa, que aproveitou a ocasião da decadência da China, com a sua derrota na Guerra do Ópio, para se apoderar da administração de Macau, não podia deixar de “ex- plorar” uma nova fonte financeira. Assim, em 16 de Fevereiro de 1846, por Portaria do Governador de então foi autorizada a exploração do jogo “Fantan”, sendo as casas de “Fantan” licenciadas em 1849. Em Janeiro de 1847, o Governador de Macau deu autorização para a exploração da lotaria chinesa “Vae Seng”, sendo os respectivos impostos considerados receitas da Administração Portuguesa de Macau. Relativamente à conces- são exclusiva da exploração de jogo mediante o pagamento de uma renda fixa, ela teve início nos anos 50 do século XIX.1 A partir desse momento, as receitas provenientes dos impostos sobre o jogo, com a legalização das actividades do jogo, passaram a ser uma fatia de grande importância nas receitas financeiras da Administração Portuguesa de Macau. Para saber o peso, nas receitas financeiras de Macau, dos impostos sobre lotarias chi- nesas (incluíndo: “Vae Seng”, “Sanpio” e “Pacapio”,) e o jogo “Fantan”, ver o Mapa I.

1 Boletim da Província de Macau e Timor, de 10 de Fevereiro de 1883, conforme trans- crição de Wu Kan, O Sector do Jogo de Macau na Fase Inicial, edição da Joint Pu- blishing (Hong Kong) Company Limited e Fundação Macau, 2011, pág. 12. Por outro lado, “Vae Seng” e “Fantan” são jogos chineses. Enquanto “Vae Seng” é um tipo de lotaria que tem como objecto acertar os nomes dos primeiros classificados nos Exames na China Imperial, “Fantan” é um jogo de fortuna e azar em banca. 387

Tabela I - Estatística sobre os impostos dos jogos e as receitas financeiras globais de Macau

Moeda: Réis2

Receitas financeiras Impostos sobre Impostos sobre Despesas Ano Total lotarias chinesas “Fantan” financeiras Montante Peso Montante Peso 1876 341.947.000 54.513.000 15,9% 132.642.000 38,8% 258.590.000 1884 508.507.000 219.328.000 43,1% 130.000.000 25,6% 507.156.000 1888 365.615.000 68.850.000 18,8% 119.260.000 32,6% 442.878.000 1894 530.545.000 94.000.000 17,7% 123.000.000 23,2% 361.226.000 1899 433.575.000 86.336.000 19,9% 96.000.000 22,1% 388.929.000 1900 473.087.000 76.333.000 16,1% 96.000.000 20,3% 425.000.000 1901 627.534.000 86.333.000 13,8% 222.666.000 35,5% 426.341.000 1902 655.991.000 86.336.000 13,2% 248.000.000 37,8% 445.687.000 1903 695.481.000 111.024.000 16,0% 214.415.000 30,8% 486.272.000 1904 685.781.000 109.388.000 16,0% 206.048.000 30,0% 448.347.000 1905 632.000.000 93.288.000 14,8% 221.078.000 35,0% 475.273.000 1906 665.883.000 99.463.000 14,9% 214.112.000 32,2% 529.368.000 1907 711.091.000 67.403.000 9,5% 236.330.000 33,2% 323.774.000 1908 662.166.000 77.551.000 11,7% 253.000.000 38,2% 678.404.000 1909 553.344.000 80.460.000 14,5% 243.000.000 43,9% 639.136.000 1910 529.713.000 70.638.000 13,3% 217.687.000 41,1% 636.450.000

Fonte: Calculado com base no “Mapa de Receitas e Despesas Financeiras de Macau 1875 a 1910”. Província de Macau, Relatório do Governo - 1911. Macau. Imprensa Nacional, 1912, Mapa constante da página 16,

2 A transliteração em chinês de Réis, Real no plural, é “厘士”. Real é a antiga unidade monetária de Portugal e do Brasil, moeda de liquidação entre o Governo de Macau e o Governo Português e de meio de pagamento dos vencimentos dos trabalhadores da Administração Potuguesa de Macau nos anos finais da Dinastia Qing. O câmbio de Réis em realção à Pataca, que era indexada à prata, variava ao longo do tempo: uma Pataca equivalia em 1880 a 860 Réis; em 1895, 640 Réis e em 1911, 420 Réis. Con- forme, Custódio Cónim e Maria Teixeira, “Macau e a evolução populacional de 500 anos (1500-2000): População, Sociedade e Estudos Económicos”, Macau, Direcção dos Serviços de Estatística e Censos, 1998, pág. 452 (versão chinesa). 388

A Tabela I demonstra que, no período compreendido entre 1876 e 1910, o peso dos impostos sobre lotarias chinesas nas receitas financei- ras da Administração Pública varia entre os 9,5% e os 43,1%, enquanto o peso dos impostos sobre o jogo “Fantan” oscila entre os 20,3% e os 43,9%. Verifica-se, assim, que os impostos sobre jogos foram muito re- levantes para o funcionamento estável da Administração Portuguesa em Macau. É certo que, custava muito manter o normal funcionamento da Administração Portuguesa sem as receitas provenientes dos impostos so- bre jogos, nem valia a pena abordar o fomento dos empreendimentos da sociedade.

Tenho a legalização dos jogos sido nos primeiros tempos uma deci- são tomada por parte da Administração Portuguesa de Macau para fazer face às mudanças da conjuntura económica, com a intenção de aumentar as receitas públicas aliviando as dificuldades financeiras, as receitas de- correntes dos impostos sobre o jogo passaram, de modo gradual e com o crescimento da indústria do jogo, a ser uma fonte indispensável nas receitas públicas. Assim, Macau entrou num processo evolutivo em que a indústria do jogo predomina e orienta o desenvolvimento económico- -social.

De um modo geral, o aumento das receitas públicas pode ser uma condição favorável ao desenvolvimento das acções locais de interesse público. Só que as mesmas acções em Macau nos seus primeiros anos foram empreendidas por instituições particulares, não havendo nenhuma regulamentação relativa à canalização institucionalizada de recursos para acções de assistência social e de interesse público, nem se encontrou ne- nhum registo específico sobre a colocação financeira efectiva por parte da Administração nas matérias de assistência social e de interesse público.

II. Lotarias de caridade: a lotaria da Santa Casa da Misericórdia de Macau como exemplo Na perspectiva do relacionamento entre os jogos e a caridade, o aumento das receitas públicas proveniente da legalização da exploração do jogo e a sua distribuição por parte do governo constitui rendimentos dos impostos sobre o jogo que fazem parte das receitas financeiras globais 389 tratando de redistribuição de rendimentos. Em face da angariação direc- tamente das receitas dos jogos de fundos destinados à assistência social e às acções de interesse público, aquelas relações são sem dúvidas indirectas. De facto, muito antes da realização dos concursos de concessão da explo- ração de jogos chineses mediante pagamento de uma renda fixa, foram introduzidas em Macau lotarias ocidentais enquanto meios de angariação directa de fundos para fins altruísticos. A exploração destas lotarias que durou mais de um século foi um meio de angariação de fundos devida- mente autorizado de uma organização de caridade de cariz ocidental - Santa Casa da Misericórdia de Macau. A Santa Casa da Misericórdia que é a mais antiga organização oci- dental religiosa de assistência em Macau, foi fundada em 1569 e é uma instituição de beneficência criada em Macau por iniciativa conjunta de jesuítas católicos e do primeiro bispo da Diocese de Macau, D. Belchior Carneiro Leitão (1516 a 1583).3 A Santa Casa da Misericórdia tem desenvolvido serviços assistenciais e de abrigo destinados a pobres, po- pulações desfavorecidas, bem como a mulheres e crianças. Assim, foram criados sucessivamente o primeiro hospital de medicina ocidental (o Hos- pital dos Pobres) e o primeiro orfanato (Casas dos Expostos) de Macau, estabelecimentos que tinham como subunidades uma leprosaria e um asi- lo para mulheres.4 Os destinatários do hospital são todos os doentes sem provisão e aqueles que vieram doutras terras sem sustento.5 A leprosaria destinava-se a hospitalizar e a isolar aqueles que sofriam de lepra, tendo

3 Na altura, a Santa Casa da Misericórdia de Macau era conhecida pelos chineses de Ma- cau como“o templo celeiro”, ver Yin Guangren e Zhang Rulin, "Ou-Mun Kei-Leok" anotado por Zhao Chunchen, Volume II (dedicado a Estrangeiros em Macau), Macau, Instituto Cultural de Macau, 1992, pág. 150. 4 O Compromisso da Santa Casa da Misericórdia estipula as catorze obras de misericór- dia, das quais umas são espirituais e outras corporais. Obras que são bastantes abrangen- tes e consistem em “remir os cativos, dar de comer a quem tem fome, dar de beber aos que têm sede, vestir os nus, visitar os enfermos e encarcerados, dar pousada aos peregri- nos e pobres e enterrar os mortos”. Para mais pormenores, ver: Leonor Diaz de Seabra, Práticas Assistenciais e Mecanismos de Poder nas Origens das Misericórdias, Revista de Administração Pública de Macau, número 80, pág. 359 (versão chinesa, para a versão portuguesa, ver: pág. 521). 5 Dong Shaoxin, Feitos dos Missionários Ocidentais na China nos Primeiros Tempos no Âmbito da Medicina, Tese de Doutoramento pela Universidade Dr. Sun Yat-sen, 2004, pág. 12. 390

internatos que variavam entre uma centena e várias dezenas.6 O albergue para senhoras deu abrigo a mulheres abandonadas. Além disso, cons- truiu, também, a Santa Casa, moradias de renda económica e Cozinha Económica. “A sua acção de beneficência fez-se sentir, também, (...) para as classes menos favorecidas. Concedia, igualmente, subsídios aos alunos pobres; dava-lhes alimentação, roupa, livros e pagava-lhes a matrícula.”. E as moradias de renda económica, por sua vez, foram construídas, “a fim de ir em auxílio de tantas famílias que delas precisavam”.7 Verifica-se assim que o âmbito dos serviços assistenciais a cargo da Santa Casa da Misericórdia era bastante alargado. Como os serviços as- sistenciais de grande dimensão só eram viáveis quando tivessem recursos suficientes, a forma de lotaria da Santa Casa da Misericórdia de Portugal - instituição que angariava fundos através da exploração de lotarias - foi introduzida em Macau. Assim, esta lotaria explorada pela Santa Casa da Misericórdia de Macau passou a ser o primeiro tipo de “lotaria assisten- cial” lançada e registada em Macau8, sendo também o primeiro tipo de lotaria ocidental na China.9 Relativamente à origem das lotarias da Santa Casa, o académico português Pedro Dá Mesquita refere na sua obra intitulada “A Santa Casa e as Lotarias no Oriente”: “(…) a aplicação das receitas provenientes das lotarias ao financiamento da Santa Casa foi aprovada, em 1810, pelo Senado de então”10. De facto, foi promulgada em Junho de 1810, em

6 Anders Ljungstedt, Um Esboço Histórico dos Estabelecimentos dos Portugueses e da Igreja Católica Romana e das Missões na China & Descrição da Cidade de Cantão, Tradução em chinês intitulada “Hístória de Macau nos seus Primeiros Anos” de Wu Yixiong e outros, Pequim, Editora Dongfang, 1997, pág. 56. 7 Leonor Diaz de Seabra, Práticas Assistenciais e Mecanismos de Poder nas Origens das Misericórdias, Revista de Administração Pública de Macau, número 80, pág. 367 (versão chinesa, para a versão portuguesa, ver: pág. 531). 8 João José da Silva, Reportório Alphabético e Choronológico Índice Remissivo da Le- gislação Ultramarina, pág.183. 9 Lam Wan Mei, Uma Análise sobre as Lotarias da Santa Casa da Misericórdia de Ma- cau, Boletim do Instituto Politécnico de Macau, número 1 do ano 2009, pág. 28. 10 Boletim Oficial da Colónia de Macau, n.º 23, de 10 de Junho de 1933, Arquivo His- tórico de Macau - Processo n.º 1900.12. Beatriz Basto da Silva, Cronologia da História de Macau - Século XX, tradução em chinês por Xiao Yu, Macau, Fundação Macau, pág. 292. Transcrição de Lam Wan Mei, Uma Análise sobre as Lotarias da Santa Casa da Misericórdia de Macau, Boletim do Instituto Politécnico de Macau, número 1 do ano 2009, pág. 27 a 31. 391

Portugal, uma Carta Régia que autorizou as instituições de beneficência a emitir lotaria anualmente, com vista a “manter as instituições assistenciais em funcionamento”, sendo o Senado de Macau o órgão directamente autorizado para o efeito. Como o Senado “manifestamente tinha falta de iniciativa em explorar lotarias”, a Santa Casa participou de modo activo em matéria da sua exploração. De 1810 a 1830, o Senado autorizou vá- rias vezes a Irmanidade da Santa Casa da Misericórdia a explorar lotarias. “Em 1833, o Governador Geral da Índia Portuguesa autorizou as insti- tuições de caridade a emitir lotarias a todo o tempo, em vez de autoriza- ção provisória ou casual”.11 Assim, a Santa Casa da Misericórdia explorou lotarias até ao ano 1943. Ao longo dos anos em que explorava lotarias, os seus rendimentos enquanto fonte de receitas no orçamento da Santa Casa deixaram registos. Os bilhetes das lotarias da Santa Casa da Misericórdia foram emiti- dos nos termos de regulamento específico. Na fase inicial, a Santa Casa era directamente responsável pela emissão, havendo quatro a seis sorteios por ano sob a superintendência da autoridade competente da Adminis- tração Portuguesa de Macau. A partir de 1833, a Repartição Superior da Fazenda da Província de Macau começou a organizar concursos públi- cos para propostas em carta fechada para a arrematação da revenda em exclusivo dos bilhetes de lotaria. A exploração seria arrematada a quem oferecesse o prémio mais elevado e a validade do contrato de concessão a celebrar seria de um ano, com vista a promover a eficiência da exploração das lotarias. Os bilhetes de lotarias eram emitidos até um limite prede- terminado, sendo os lucros apurados após o pagamento dos prémios, rendimento do vendedor e demais custos inerentes ao seu lançamento, revertidos para a Santa Casa da Misericórdia. Os limites dos bilhetes, sem valor total e valor facial variavam de ano para ano. A título exemplifica- tivo, em 1963, o limite foi de 4 000 bilhetes com o valor facial de 2 pa- tacas cada, sendo o valor total de 8 000 patacas. Ao longo do ano, houve 4 séries de lotarias cujos sorteios se realizaram em datas predeterminadas em cada estação do ano. E para cada série, o limite de bilhetes lançados era de 1 000, dos quais eram premiados 120 com valores diferentes. Em 1898, foram lançados 10 000 bilhetes de valor facial de 4 patacas, sendo o valor total 40 mil patacas, enquanto à Santa Casa da Misercórdia foram

11 A Santa Casa da Misericórdia de Macau: no Passado e no Futuro, Santa Casa da Mise- ricórdia de Macau, Macau, 2011, pág. 55 e 56. 392

entregues 3 200 patacas.12 Segundo apurado, as lotarias da Santa Casa da Misercórdia entraram em 1897 numa época de auge que durou até 1907. Ao longo deste período de uma década, foram realizadas 119 séries, ou seja, 12 séries de lotarias por ano.13 Estas lotarias, enquanto lotarias com fins específicos de caridade, contribuíam efectivamente para o financi- mento parcial da Santa Casa, o que possibilitou a realização de acções fi- lantrópica de modo contínuo pela mesma instituição. Conforme registos, dos lucros provenientes da venda de bilhetes de lotarias durante 1835 e 1850, à Santa Casa de Misercórdia foram atribuídas 16 055,65 patacas. E, num intervalo de doze meses (de Junho de 1898 a Junho de 1989), o rendimento decorrente das lotarias chegou a 72 400 patacas.14 Foram verificadas algumas irregularidades nas contas no período de a emissão de bilhetes de lotarias a cargo da Santa Casa, facto que susci- tou disputas no seio da Administração Portuguesa de Macau. Segundo notícias do jornal “Echo Macaense”, o Governador de Macau mandou fazer um inquérito sobre as lotarias a cargo da Santa Casa da Miseri- córdia no período compreendido entre Julho e Setembro de 1895. Nos termos do relatório do mesmo inquérito, verifica-se que: a) existiam er- ros nas receitas e despesas nas contas; b) não se procedeu à auditoria nos três anos passados; c) havia falta de mais de 1 000 patacas; d) liquidação adiada do montante devido à Repartição Superior da Fazenda da Provín- cia de Macau durante várias meses, entre outros. Nesta conformidade, o Governador de Macau decidiu: a) suspensão da cobrança de receitas decorrentes das lotarias a partir de 1 de Setembro daquele ano; b) subs- tituição de vários membros da direcção da mesma Santa Casa, incluindo o Barbosa (provedor da Santa Casa e Inspector da Fazenda) e o Vasco. Depois, estes foram demitidos e obrigados a deixar Macau por ordem emitida por Lisboa.15

12 Cota: AH/SCM/029, MIC:A0312 e AH/AC/P-1977, Arquivo Histórico de Macau. 13 A Santa Casa da Misericórdia de Macau: no Passado e no Futuro, Santa Casa da Mise- ricórdia de Macau, 2011, pág. 56. 14 Lam Wan Mei, Uma Análise sobre as Lotarias da Santa Casa da Misericórdia de Ma- cau, Boletim do Instituto Politécnico de Macau, número 1 do ano 2009, pág. 29. 15 Síntese de Informações Oficiais, in Echo Macaense, de 31 de Julho de 1895; Coragem, de 21 de Agosto de 1895; Suspensão Temporária de Cobrança, de 14 de Agosto de 1895; Lutas, de 4 de Setembro de 1895; Persistência Fora do Comum, in Echo Maca- ense, de 18 de Setembro de 1895. 393

É de notar que as lotarias de caridade, enquanto meio de financia- mento para instituições de assistência social, também beneficiavam outras instituições para além da Santa Casa da Misericórdia. Segundo apurado, a Administração Portuguesa de Macau autorizou, em 1927, a emissão conjunta de bilhetes de uma lotaria especial por parte da Santa Casa da Misericórdia e do Hospital Kiang Wu com vista a angariar fundos desti- nados às acções filantrópicas. No âmbito desta série de lotaria, foi prevista a emissão de 22 000 bilhetes de valor de 10 patacas, sendo o valor total 220 mil patacas. As receitas foram distribuídas da seguinte forma: 70% ou 154 mil patacas destinadas a prémios; 7,5% para os vendedores; 1% para instituições ultramarinas; os restantes 21,5% são repartidos em par- tes iguais pela Santa Casa e pelo Hospital Kiang Wu, depois de deduzidas as despesas inerentes. No ano seguinte, as mesmas instituições emitiram em conjunto, de novo, bilhetes de lotaria especial, sendo prevista a emis- são de 8 000 bilhetes de valor de 10 patacas, com o valor total de 80 mil patacas. Desta emissão às mesmas instituições foram entregues 6 677,5 patacas a cada uma.16 Esta modalidade de angariação de fundos para acções assistenciais por meio de emissão de bilhetes de lotarias foi também aplicada, para além da Santa Casa da Misericórdia, a outros projectos de interesse públi- co tais como os de educação. Cita-se como exemplo, em 20 de Setembro de 1852, o Sendo de Macau foi autorizado a emitir uma série de bilhetes de lotaria por ano, com o objectivo de obter fundos para as escolas dele dependentes. Em Janeiro de 1862, um estabelecimento de ensino deno- minado “Nova Escola Macaense” foi estabelecido por iniciativa de indiví- duos de nacionalidade portuguesa, escola que tinha uma secção de ensino secundário e outra de ensino primário, admitindo estudantes do sexo feminino e com isenção de proprinas para os pobres. E para financiamen- to da instalação desta escola, foi autorizada pela autoridade portuguesa a emissão de uma única série de bilhetes de lotaria, com vista a obter fun-

16 Boletim Oficial da Província de Macau, n.º 23, de 4 de Junho de 1927, Arquivo His- tórico de Macau - Processo n.º BO1900.09. Boletim Oficial da Colónia de Macau, n.º 13, de 31 de Março de 1928, Arquivo Histórico de Macau - Processo n.º BO1900.10. Transcrição de Lam Wan Mei, Uma Análise sobre as Lotarias da Santa Casa da Miseri- córdia de Macau, Boletim do Instituto Politécnico de Macau, número 1 do ano 2009, pág. 27 a 31. 394

dos no valor de 1 200 patacas.17 Um outro exemplo, em Junho de 1862, Lourenço Marques, Procurador do Leal Senado de Macau apresentou uma proposta para realizar uma reunião para abordar a construção de um monumento no Jardim da Vitória, em memória da felicíssima victoria ganhada por esta cidade contra os holandeses em 1622. A deliberação tomada nessa mesma sessão foi no sentido de que as despesas inerentes àquele monumento seriam satisfeitas por meio de uma lotaria, para além de subscrições pessoais.18 Na realidade, o Leal Senado de Macau, en- quanto órgão dotado de autonomia, foi parcialmente financiado com a comparticipação de receitas decorrentes da emissão de bilhetes de lotaria da Santa Casa da Misericórdia. Segundo as respectivas informações, nos primeiros dez anos da exploração de lotarias por parte da Santa Casa da Misericórdia, ao Leal Senado foram entregues 150 475 patacas.19 Dos anúncios publicados no jornal “The Friend of China”, resulta que um dos objectivos da emissão de bilhetes de lotaria era a reversão de 15% do seu lucro para os Cofres do Governo para financiar despesas com obras pú- blicas.20

III. Contribuições pessoais dos exploradores do jogo para acções de beneficência e de interesse público Posta em prática a política da legalização do jogo pela Administração Portuguesa de Macau e com a concessão da exploração em exclusivo de diferentes jogos através de concurso público, quase todos os comerciantes chineses de renome em Macau se envolveram no sector de jogo e foram numerosos aqueles que enriqueceram à custa do jogo. Entretanto, Macau foi sujeito à governação da Administração Portuguesa enquanto poder

17 Beatriz Basto da Silva, Cronologia da História de Macau - Século XIX, Macau, Funda- ção Macau, 1998, pág. 114, 146 e 147. A.H.de Oliveira Marques, História dos Portu- gueses no Extremo Oriente, Vol. 3, pág.501. 18 Beatriz Basto da Silva, Cronologia da História de Macau - Século XIX, Macau, Funda- ção Macau, 1998, pág. 148. 19 M.Teixeira, D. Melchior Carneiro, Fundador da Santa Casa da Misericórdia de Macau, Macau: Composto e Impresso na Tipografia da Missão do Padroado, 1969. pág.90. Transcrição de Lam Wan Mei, Uma Análise sobre as Lotarias da Santa Casa da Misericórdia de Macau, Boletim do Instituto Politécnico de Macau, número 1 do ano 2009, pág. 29. 20 The Friend of China, 23 de Fevereiro, 1853. Vol. 12, N.º.16, pág.62. 395 político estranho, se bem que em Macau a população chinesa fosse pre- dominante. Como os serviços públicos torneados pela Administração Portuguesa pouco beneficiavam a comunidade chinesa em Macau, os seus membros desfavoráveis só podiam contar com o cuidado prestado pela comunidade de que faziam parte. Assim, os exploradores de jogos que acumulavam grande fortuna prestavam auxílio à comunidade chinesa normalmente através de criação de instituições assistenciais e de conces- são de donativos para os de origem chinesa. Como é sabido, duas famosas instituições de beneficência chinesas de Macau - Hospital Kiang Wu e Associação de Beneficência Tung Sin Tong - foram criados por comerciantes chineses de Macau, dos quais não faltaram aqueles que enriqueceram à custa de jogos. O Hospital Kiang Wu fundado em 1871 é a mais antiga instituição de beneficência global criado por chineses em Macau. Os serviços filan- trópicos prestados pelo mesmo Hospital abrangiam, para além de acções ligadas à medicina tais como consultas e medicamentos gratuitos, abrigo a deficientes mentais e físicos e depósito de caixões, serviços diferentes de interesse público, tais como assistência a refugiados, socorro a sinistrados, arruamento, abastecimento de água portável aos residentes, controlo dos preços, solução de conflitos, protecção de livros antigos e cultura, bem como gestão de propriedades de todos os templos e instituições de beneficência de Macau. De entre os fundadores e membros da direcção do Hospital, muitos foram comerciantes que exploravam a indústria do jogo. Dos quatro representantes nomeados por chineses para efeitos do tratamento das formalidades inerentes à celebração da escritura da sede do Hospital Kiang Wu junto da Junta da Fazenda Pública de Macau, dois (Chou-iau e Wang Lu) eram provenientes de famílias conhecidas de exploradores de jogos de então.21 Muitos dos membros e presidentes da direcção do Hospitial Kiang Wu eleitos anualmente foram exploradores de jogos, até “reis do jogo”. A título exemplificativo, Fong-Seng (1878, ano em que foi membro ou presidente da direcção)22 foi vendedor de

21 Lin Guang Zhi, Estudos sobre Comerciantes Chineses e Sociedade Chinesa de Macau nos Finais da Dinastia Qing, Tese de Doutoramento pela Universidade Jinan, 2005, pág. 151. 22 O tempo de mandato reproduzido a partir da “lista nominativa dos membros da mesa da assembleia, direcção e do conselho fiscal de todos os mandatos” constante da “His- tória da Associação de Beneficência do Hospital Kiang Wu”, compilação de Ng Yun Sang. Ver pág. 245 a 249. 396

Pacapio em Macau, Taipa e Coloane durante 1877 e 1879, adjudicante de Fantan na Taipa em consócio com Holin-Von, no período compre- endido entre 1874 e 1876 e adjudicante de “Vae Seng” em Macau, em consórcio com um português de 1881 a 1884. Xiao Yingzhou (também conhecido por Xiao Deng, 1896, 1906 e 1909) foi vendedor de Pacapio em Macau, Taipa e Coloane de 1902 a 1905, adjudicante de Fantan em Macau, em consórcio com Lu Guangyu, no período compreendido entre 1907 a 1912, adjudicante de “Vae Seng” em Macau, Taipa e Coloane, em consórcio com Lou Lim Ieoc, durante 1905 a 1910 e 1907. Lu-Cau (1879) foi o único adjudicante do jogo de Fantan em Macau de 1889 a 1894 e de 1894 a 1905, também adjudicante do jogo de Fantan em Ma- cau, em consórcio com Holin-Von, em 4 concursos referentes a 1885 - 1886, 1886 -1887, 1887 - 1888 e 1888 - 1889 e adjudicante de Fantan na Taipa, em consórcio com Hu Gunchen, nos anos 1883 - 1884, 1885 - 1886. Lou Lim Ieoc (filho de Lu-Cau, 1913, 1919, 1921, 1923) foi adjudicante de “Vae Seng” em Macau, Taipa e Coloane, em consórcio com Xiao Deng, nos anos 1905 a 1910 e 1907, adjudicante das lotarias da Santa Casa da Misericórdia, em consórcio com Lu Guangyu, nos anos de 1897 a 1907 e adjudicante de “Chumpupio” em Macau, Taipa e Coloane. Um outro filho de Lu-Cau, Lou Kuong U (1899), foi conces- sionário de “Vae Seng” em Macau, Taipa e Coloane, em consórcio com um conde português, Fernandes, durante 1899 e 1902. He Tingguang (também conhecido por Holin-Von, 1881), foi concessionário do jogo de Fantan em Macau no período de 1882 a 1883, adjudicante do jogo de Fantan em Macau, em consórcio com Lu-Cau, em 4 concursos referentes a 1885 - 1886, 1886 -1887, 1887 - 1888 e 1888 - 1889 e adjudicante de Fantan na Taipa, em consórcio com Fong-Seng, nos anos 1874 a 1876.23 De entre estes nomes, Lu-Cau, Lou Lim Ieoc e He Lian Wang foram re- conhecidos “reis do jogo” de Macau por serem concessionários por longo período de tempo de vários jogos. A Associação de Beneficência Tung Sin Tong foi formada 1892. Embora a sua fundação seja posterior ao Hospital Kiang Wu, ela é uma instituição de beneficência da população chinesa cujo âmbito de acção de interesse público é em grande medida semelhante àquele Hospital. Aliás,

23 Lin Guang Zhi, Estudos sobre Comerciantes Chineses e Sociedade Chinesa de Macau nos Finais da Dinastia Qing, Tese de doutoramento pela Universidade Jinan, 2005, pág. 88 a 90. 397 os fundadores foram também sobrepostos. O pacto de constituição da Associação foi assinado por 46 indivíduos, enquanto o pedido submetido à autorização do Governador de Macau só foi subscrito por 6 pessoas, a saber: Lu-Cau, Holin-Von, Wang Linsheng, Wang Airen, Zhang Jingtang e Cai Hepeng. De entre estes subscritores, as personagens principais - Lu- -Cau e Holin-Von (que era também fundador da Sociedade de Benefi- cência Ka Sin Tong de Macau), como referido atrás, foram exploradores de jogos conhecidos em Macau. Constituída a Associação de Beneficência Tung Sin Tong, a sua reconstrução foi por iniciativa de Lou Lim Ieoc que também foi explorador de jogos. Quanto ao senhor Kou Ho Neng, presi- dente perpétuo da mesma Associação, o mesmo concedeu sucessivamente e ao longo do tempo vários generosos donativos que totalizaram vinte mil patacas até 1939, para a mudança e reconstrução da sua sede, criação de estabelecimento de ensino gratuito, bem como consultas e medicamentos gratuitos.24 Assim, foi deliberado pela mesma Associação a colocação de um busto de bronze no pátio da sua sede. No próprio dia do descerra- mento do seu busto, Kou Ho Neng fez um donativo à Tung Sin Tong de moedas de 20 avos no valor de dez mil patacas que se destinava a criar uma farmácia.25 Posteriormente, o mesmo doou uma propriedade sua para instalar a farmácia da Tung Sin Tong. Como se sabe, depois de ter sido arrematada a exploração das casas de jogos em Macau, o senhor Kou Ho Neng constituiu várias sociedades comerciais, a saber: Companhia Tac Seng, Companhia Iou Seng, Companhia de Navegação Tong On de Cantão, Hong Kong e Macau, Casa de Câmbio Fu Hang, bem como vá- rias grandes casas de penhor como Tac Sang e Iu Fong. Assim, o mesmo passou a ser um super-rico nos primeiros anos da República da China, sendo apelidado “rei do sector dos penhores” de Cantão, Hong Kong e Macau. Em 1937, Kou Ho Neng e Fu Tak Iong constituíram uma socie- dade denominada “Tai Heng”, que viria a ser concessionária da explora- ção em exclusivo do jogo em Macau, mediante promessa de pagamento de uma renda anual de 1,8 milhões de patacas. Kou Ho Neng passou efectivamente a ser o “rei do jogo” de Macau. Do exposto, verifica-se que os exploradores contribuíram bastante para a criação e financiamento de instituições de beneficência.

24 “Referências e Notas sobre a Estátua do Senhor Kou Ho Neng”, conforme inscrições na base da Estátua do Senhor Kou Ho Neng situada no pátio da Associação de Benefi- cência Tung Sin Tong. 25 Jornal Va Kio (de Macau), 31 de Dezembro de 1939. 398

Para além de procederem a acções de caridade e de interesse público mediante iniciativas ou participação na criação de instituições de bene- ficência local, os exploradores de jogos de Macau envidaram esforços, com uma imagem filantrópica e bondosa, para organizar ou participar em acções de doação de dinheiro ou em espécie, em ocasiões de desas- tres naturais e calamidades humanas, ou demais situações em que era necessário socorro. Cita-se como exemplo, em 1889, na sequência do acontecimento de uma calamidade natural no Norte da China, a Admi- nistração Portuguesa de Macau organizou uma comissão para sensibilizar toda a população de Macau no sentido de “enviar socorros para mitigar tão grandes desgraças”. Para o efeito, foram nomeados como membros da comissão os comerciantes chineses Lu-Cau e Holin-Von, encarregados “de promover, por todos os meios ao seu alcance, donativos, (…) empre- gar todo o zêlo e sentimentos caritativos (…)” no sentido de socorrer os sinistrados do norte.26 Em Maio de 1895, houve um surto de peste bu- bónica em Macau. Assim, era necessário construir uma grande tenda em Van Chai para albergar os doentes. Lu-Cau e He Tingguang “envidaram todos os seus esforços para prestar apoio na matéria, recrutando de ime- diato técnicos e trabalhadores, seleccionando um local demoninado Seak Kok Chui próximo a um baldio ao pé de Gongbei onde se montou uma grande construção com dois pisos que podia albergar centenas de pessoas. Começou hoje a transportar 20 doentes do Hospital para a tenda, … He e Lou prometeram contribuir com mil patacas cada um para o efeito”.27 Em 1914, Lou Lim Ieoc e outros contribuíram para um fundo, no senti- do de criar um estabelecimento de ensino designado Escola Confuciana, que se destinava ao ensino de adolescentes pobres. O período da Guerra Sino-Japonesa que ocorreu nas décadas 30 e 40 do passado século XX foi um lapso de tempo em que-se registou maior número de socorros no seio de Macau e fora dele. Os explorado- res de jogos que eram agentes de socorro civil e a população de todos os sectores assumiram as suas responsabilidades nesta matéria. Em 27 de Novembro de 1931, com o ocorrer do “Evento de 18 de Setembro”, por iniciativa dos exploradores Fan Che Pang, Kou Ho Neng, entre outros, foi constituída uma Associação de Caridade para Socorro aos Sinistrados

26 Boletim da Província de Macau e Timor, n.º 7, de 14 de Fevereiro de 1889. 27 Jornal “Ching-Hai Tsung-Pao”, Ano 2, número 44 (29 de Maio de 1895). 399

Bélicos, com vista a angariar fundos e apoiar na resistência contra a inva- são.28 Em 28 de Junho de 1938, Kou Ho Neng fez dois donativos: um no valor de 10 000 patacas que foi transferido para o Governo da Pro- víncia de Guangdong e outro também no montante de 10 000 patacas para diferentes groups de socorro em Hong Kong e Macau, contribuindo também com milhares de patacas destinadas à alimentação dos pobres.29 Em 15 de Abril de 1941, com vista a socorrer os refugiados chineses que entraram em Macau, Kou Ho Neng doou ao Governador de Macau 5 000 Hong Kong Dólares em reforçar as verbas destinadas às despesas de beneficência.30 Com a ocorrência da Guerra do Pacífico, Macau e as regi- ões circunvizinhas estavam num período difícil. Assim, em 21 de Setem- bro de 1942, Kou Ho Neng concedeu um donativo no montante de 100 mil Dólares em moeda da República da China, que representou o total das prendas do casamento do seu filho Kou Foc Veng com a seguinte dis- tribuição: mil para o Governador de Macau, 30 mil para a Associação dos Comerciantes de Macau, 20 mil para a Associação dos Comerciantes da Baía de Cantão e 20 mil para a sua terra de origem Povoação Guanyong, solicitando às mesmas entidades que transferissem para associações de beneficência essas verbos para socorrer os pobres.31 Em Março de 1942, a Administração Portuguesa de Macau pretendia recambiar 50 mil refu- giados para suas terras de origem, para o que era necessário uma verba de mais de cinco milhões de patacas. Para o efeito, os dois exploradores de jogos Kou Ho Neng e Fu Tak Iong (também conhecido por Fu Vai Sang) assumiram uma décima parte daquele montante.32 Em 26 de Janeiro de 1942, Kou Ho Neng prometeu compensar as Obras Sociais da Diocese de Macau com uma quantia correspondente ao prejuízo da cantina eco- nómica a seu cargo na mesma data, sendo as refeições vendidas nesse dia denominadas “refeições de Kou Ho Neng”.33

28 Jornal “Ching-Hai Tsung-Pao”, Ano 2, número 44 (29 de Maio de 1895). 29 Fu Iok Lan, Macau na Segunda Guerra Sino-Japonesa, Macau, Museu de Macau do Instituto Cultural de Macau, 2001, pág. 189. 30 Fu Iok Lan, Macau na Segunda Guerra Sino-Japonesa, Macau, Museu de Macau do Instituto Cultural de Macau, 2001, pág. 191. 31 Jornal Va Kio (de Macau), 22 de Setembro de 1942. 32 Artigos no Jornal Va Kio: “Colaboração intensificada, criado ontem o Grupo de Re- câmbio (de refugiados)”, de 24 de Março de 1942; “Governo resolveu apoiar o Grupo de Recâmbio, enviando 50 mil pessoas para a sua terra natal”, de 7 de Maio de 1942; “Grupo de Recâmbio financiou um total de 1600 pessoas, pedindo recursos à popula- ção no sentido de colmatar o seu deficit”, de 10 de Maio de 1942. 33 “Acção continua amanhã”, Jornal Va Kio, 25 de Janeiro de 1942. 400

As acções individuais de concessão de donativos análogas às mencio- nadas eram sucessivas e incessantes, sendo impossível a sua enumeração exaustiva. Face às acções generosas no âmbito da caridade e da huma- nidade dos exploradores de jogos, o Governo de Macau e os Governos do Continente Chinês vieram a distingui-los. A título exemplificativo, em 17 de Junho de 1880, “em atenção às suas circunstâncias e como testemunho da real munificência”, Fong-Seng (também conhecido por Francisco Xavier) foi agraciado com mercê honorífica, pelo rei de Portu- gal, “Cavalleiro da Ordem Militar de Nosso Senhor Jesus Christo”.34 Em Junho de 1881, “em atenção às suas circunstâncias e como testemunho da real munificência”, Ho-quai foi agraciado com mercê honorífica, pelo rei de Portugal, “Cavalleiro da Ordem Militar de Nosso Senhor Jesus Christo”.35 Em Junho de 1884, Holin-Von foi agraciado com mercê honorífica, pelo rei de Portugal, “Cavalleiro da Ordem Militar de Nosso Senhor Jesus Christo”.36 Lu-Cau, por sua vez, foi condecorado duas vezes pelo rei de Portugal, com medalhas honoríficas. O primogénito de Lu- -Cau, Lou Lim Ieoc, foi condecorado pela Corte da Dinastia Qing, com dois títulos honoríficos diferentes, pelos seus feitos no âmbito do bem es- tar social, beneficência e de ensino e sendo também concedido, em 1915, pelo Presidente da República da China, a Medalha de Espiga de 3.ª classe e uma placa com inscrição para reconhecer os seus feitos filantrópicos, sendo condecorado com medalhas de serviços distintos de Portugal e em Abril de 1925, Medalha de Cavalleiro da Ordem Militar de Nosso Se- nhor Jesus Christo.37

Na realidade, o fenómeno de que os exploradores de jogos de Macau foram reconhecidos filântropos pelo seu zelo nas actividades de interesse público não é esporádico, mas sim tradicional.

34 Boletim da Província de Macau e Timor, n.º 32, de 7 de Agosto de 1880. 35 Beatriz Basto da Silva, Cronologia da História de Macau - Século XIX, Macau, Funda- ção Macau, 1998, pág.223. 36 Boletim da Província de Macau e Timor, n.º 38, de 20 de Setembro de 1884. 37 Lou Shenghua, Estudo sobre as Associações de Macau no Período da Transformação - Uma Interpretação sobre o Sistema Corporativista numa Sociedade Pluralista, Editora Ren- min de Guangdong, China, 2004, pág. 269. 401

IV. Acções de interesse público da Sociedade de Turismo e Diversões de Macau no período da exploração monopolista do jogo Em 1930, o Governo de Macau resolveu remodelar a indústria de jogos, no sentido de limitar o número dos seus operadores e de instalar casino moderno em hotel de luxo segundo o modelo de Monte Carlo, aproveitando a ocasião para tornar o território num “Monte Carlo do Oriente”. No mesmo ano, a exploração de jogos em exclusivo foi adju- dicado, mediante concurso público e pela renda fixa, à Companhia Hou Heng, constituída entre os comerciantes Wang Suping e Fan Che Pang, entre outros. A partir deste momento, a indústria de jogos entrou numa fase de gestão regulamentada e de exploração monopolizada, situação que se manteve até 2000, ano em que foi posta em prática uma nova política de abertura adequada e de concorrência limitada. Entretanto, o exclusivo da exploração de jogos em Macau sucedeu por duas vezes. Em 1937, a exploração em exclusivo de jogos em casino veio a ser arrematada à Companhia Tai Heng, dirigida pelos comerciantes ricos Fu Tak Iong e Kou Ho Neng. Nos termos do contrato de concessão, a Companhia Tai Heng devia pagar ao Governo de Macau um renda anual no valor de 1,8 milhões patacas. Nos termos da Portaria n.º 18 267, de 13 de Fevereiro de 1961, do Ministério do Ultramar de Portugal, Macau foi classificado como uma “zona de turismo” e “zona de jogos”.38 Em 4 de Julho do mesmo ano, o Governo da Província de Macau aprovou o Diploma Legislativo n.º 1496 que regulava a exploração de jogos. A partir deste momento, os jogos foram definidos como “divertimento extraordinário”. No anos seguinte, à Sociedade de Turismo e Diversões de Macau, S.A.R.L. (abreviadamente STDM) constituída entre Stanley Ho Hung Sun, Ip Hon, Terry Ip Tak Lei, entre outros foi concedida a exploração em exclusivo dos jogos em Macau. Ao longo dos seguintes 40 anos, a STDM alargou o seu âmbito de exploração a outros jogos, por meio de revisão e renovação do contrato de concessão. Para além de jogos em casino, a STDM obteve a concessão em anos diferentes da exploração de pacapio e chumpupio39 (em 1961),

38 Embora promulgada a legalização de jogos em Macau já em 1847, em Portugal, Esta- do soberano de Macau, foi posta em prática a política da proibição de jogos. Se bem que os diplomas legais não fossem estendidos a Macau, a legalidade de exploração de jogos em Macau ficava numa zona cinzenta. 39 A lotaria “chumpupio” foi eliminada em Maio de 1985, em virtude da redução de mercado. 402

Tômbola ou Loto (em 1972), corridas de galgos (em 1984), lotarias ins- tantâneas (em 1987), corridas de cavalos (em 1991), lotaria desportiva - apostas no futebol (em 1998), lotaria desportiva - apostas no basquetebol (em 2000). Isto quer significar que os três tipos de jogos - jogos de for- tuna ou azar, jogos de apostas mútuas e lotarias - foram todos explorados em regime exclusivo pela STDM. O monopólio na exploração da STDM prolongou-se até ao dia 31 de Março de 2002.

Como se sabe, o sector do jogo tornou-se sucessivamente a indús- tria predominante de Macau, a partir dos anos 60 do século transacto. A STDM, enquanto entidade que monopolizava a exploração do jogo em Macau e na conjuntura de “única empresa numa cidade”, encarregava-se naturalmente de uma responsabilidade que excedia à de qualquer outra empresa normal. Durante a sua exploração de jogos em exclusivo, o cam- po do seu envolvimento em acções de interesse público era bem diversifi- cado, largo e abrangente. Vamos fazer uma observação sobre o seu envol- vimento apenas em termos das suas obrigações constantes do contrato de concessão celebrado com o Governo.

Tabela II - Obrigações contratuais assumidas pela STDM no período da exploração monopolista dos jogos

Obras Habita- Assistência Impostos Instalações Infra- ção para Outro social do jogo e -estrutura remoção de turismo urbanística edificações informais Revisão - A renda - Finan- - Amplia- Investi- do anual ciamento ção do Ho- mento para contrato em passaria a anual para tel Estoril; o desenvol- 1964 ser 5.167 acções de - constru- vimento milhões beneficên- ção de um de Macau de patacas cia no valor clube noc- não inferior a partir não inferior turno de a cinco de 1965; a 300 mil luxo, com milhões de - a renda patacas investi- patacas em anual au- por ano; mento não cada quin- mentaria - sobre inferior a quénio 403

Obras Habita- Assistência Impostos Instalações Infra- ção para Outro social do jogo e -estrutura remoção de turismo urbanística edificações informais

um milhão a renda 30 milhões de patacas anualmente de patacas a partir de percebida 1970; recaíram as - a renda percenta- anual gens de 5% aumenta- e 1% a re- ria meio verter para milhão de o Fundo de patacas a Turismo e partir de Montepio 1980 Oficial de Macau

Revisão - A renda - Cons- - Aumento do anual au- trução de do Investi- contrato em mentaria 4 edifícios mento para 1972 um milhão para aloja- o desenvol- de patacas mento dos vimento a partir de residentes de Macau 1973 em edi- para 1,25 - A renda ficações milhões de anual informais, patacas por voltaria a número de ano aumen- edifícios tar meio que se milhão de sujeitariam patacas a a alteração partir de quando 1980; necessário - Pagamen- to de uma nova “taxa de fiscaliza- ção” anual no valor de 200 mil patacas 404

Obras Habita- Assistência Impostos Instalações Infra- ção para Outro social do jogo e -estrutura remoção de turismo urbanística edificações informais

- Autori- zação de montagem de mais 100 “slot machines”, mediante o pagamento de uma taxa de 250 mil patacas

Revisão - A renda - Constru- - Inves- - Compen- - Promoção do anual passa- ção de um timento sar, à custa de indús- contrato em ria a ser de edifício anual de da STDM, trias manu- 1976 30 milhões para o 30 milhões os resi- facturadas de patacas terminal de patacas dentes em fora da marítimo na Com- edificações tecelagem na Zona panhia de informais, de Aterros Electrici- de 200 do Porto dade de agregados Exterior Macau, de familiares (ZAPE); modo a por ano - Constru- fazer o seu ção de um investimen- complexo to chegar de doca em a 100 colaboração milhões de com a Ad- patacas; ministração - Encarre- gar-se de acções de interesse público e da urbani- zação, obras de aterros no ZAPE; 405

Obras Habita- Assistência Impostos Instalações Infra- ção para Outro social do jogo e -estrutura remoção de turismo urbanística edificações informais

- Imple- mentar a promessa de draga- gem dos canais de navegação; - Obras de urbanização no ZAPE

Revisão - Prorro- - Aquisição - Cons- do gação do de dois bar- trução de contrato em exclusivo da cos rápidos 5 edifícios 1982 exploração com lota- económicos de jogos da ção de 700 com 400 STDM, passageiros fracções mediante o e dois jacto- destinados pagamento planadores a albergar do prémio destinados os resi- de 700 ao trans- dentes em milhões de porte de edificações patacas passageiros informais - O impos- entre Hong no ZAPE to sobre Kong e jogos passa- Macau ria, a partir de 1982, a ser 25% do rendimento bruto da STDM; - A taxa do mesmo imposto cresce 1% nos anos 406

Obras Habita- Assistência Impostos Instalações Infra- ção para Outro social do jogo e -estrutura remoção de turismo urbanística edificações informais

posteriores, até 1991, ano em que essa taxa passaria a ser 30%

Revisão - Constru- - Partici- do ção de um pação na contrato em novo com- construção 1986 plexo de do Aero- transporte porto Inter- marítimo nacional de no valor até Macau; 80 milhões - Partici- de patacas; pação no - Investi- projecto da mento na Nova Taipa construção de um heli- porto

Fonte: Wu Zhiliang e Ieong Wan Chong, Enciclopédia de Macau (edição revista), Macau, Fundação Macau, 2005, pág. 318 e 319.

Das informações constantes da tabela supra, verifica-se que a STDM enquanto concessionária da exploração monopolista dos jogos era respon- sável, nos termos do contrato celebrado com o Governo, por um âmbito bastante vasto de acções de interesse público, acções que variam ao longo deste período de quatro décadas. Analisados os contratos celebrados em diferentes épocas, é de afirmar que, só pelo contrato de 1962, a STDM reveste a natureza de “empresa social”, uma vez que no próprio pacto social se encontrava definida a distribuição de lucros da STDM. Segundo Henry Fok Ying Tung, um dos fundadores da STDM, o objecto social definido no momento da sua 407 constituição não tinha fins lucrativos, sendo os lucros destinados ao de- senvolvimento de Macau e ao fomento de acções caritativas em Macau.40 Nos termos do pacto, 10% dos lucros (rendimentos depois de de- duzidos os impostos do jogo, investimento em infra-estruturas e despesas com a exploração) da STDM eram destinados a acções de beneficência em Macau, sendo os restantes 90% aplicados no desenvolvimento de Macau. Em segundo lugar, do ponto de vista das obrigações fiscais, o imposto que passou de uma renda fixa para um valor proporcional ten- dia a ser mais racional e científico. Até 1991, a STDM pagava 30% do seu rendimento bruto em imposto sobre o jogo. Ao longo dos 40 anos, a quantia do imposto sobre o jogo passou de 3,167 milhões de patacas em 1962 para 6,29 biliões de patacas em 2001. Em terceiro lugar, as obrigações no âmbito das acções caritativas e da assistência social deram sucessivamente lugar às do desenvolvimento urbanístico, especialmente no que dizia respeito a instalações de transportes e infra-estruturas ur- banísticas, instalações complementares relativas aos sectores do jogo e turismo (como o Terminal Marítimo do Porto Exterior, novo complexo de transporte marítimo, doca e heliporto), até à dragagem dos canais de navegação, central electrotérmico, construção do aeroporto internacional, bem como à urbanização do ZAPE e da Taipa, construção de edifícios destinados a residentes em construções informais e promoção de indús- trias manufacturarias para além da tecelagem. Constata-se assim que a STDM, enquanto empresa concessionária da exploração em exclusivo do jogo, não só tinha a seu cargo obrigações que muito excediam o âmbito da beneficência e assistência social, como também assumia grandes res- ponsabilidades de desenvolvimento físico e económico de Macau - criou mais de 14 000 empregos que representavam os 6,8% da população acti- va em 2001. Numa outra perspectiva, este facto reflectia que o Governo de Macau estava cada vez mais dependente da empresa concessionária da exploração em exclusivo do jogo. Para além das obrigações definidas nos contratos, relativamente ao financiamento de acções de interesse público, a STDM apoiou uma série de concursos e festividades realizados em Macau, incluindo corridas de automóveis no âmbito do Grande Prémio de Macau, Festival Internacio-

40 “Timothy Fok Tsun-ting: desempenho do cargo de director executivo contribuindo para Macau”, in Jornal Ou Mun, de 2 de Novembro de 2010, pág. A01. 408

nal de Artes, Festival Internacional de Música de Macau, Concurso Inter- nacional de Fogo de Artifício, Regatas Internacionais de Barcos-Dragão de Macau, entre outros. No campo da educação, a STDM participou na fundação da Universidade da Ásia Oriental, a antecessora da Universida- de de Macau.41 Além disso, a STDM também contribuiu de modo activo e generoso para o socorro a sinistrados, donativos de antiguidades, bem como para as acções culturais e educativas. Em resumo, numa retrospecção sobre as interacções entre o sector do jogo e as actividades de beneficência e de interesse público, após a legalização da exploração de jogos verifica-se que, no processo em que o sector do jogo passou a ter um papel cada vez mais dominante no desen- volvimento socioeconómico de Macau, os operadores de jogos têm sido desde logo uma das fontes de financiamento para o desenvolvimento das acções de beneficência e de interesse público, sendo os modos de financia- mento variados e a sua cobertura bastante vasta, passando-se, em termos de tendências de acções tradicionais de assistência, para acções contempo- râneas de interesse público. No entanto, a prestação dos exploradores de jogos para as acções de beneficência e de interesse público caracterizaram- -se pela “preponderância do envolvimento mediato e passivo”. O seu envolvimento não foi suficientemente regulamentado e institucionali- zado, nem foi planeado de forma contínua, o que determinou a falta de formação de um modelo contemporâneo de participação em acções de beneficência e de interesse público, bem como a falta de constituição de uma “marca” neste âmbito, mesmo que tenham acumulado uma grande fortuna em virtude da prosperidade do sector do jogo. Assim, com vista a incentivar os operadores de jogos a cumprir as suas responsabilidades sociais de forma activa e a contribuir mais para as acções de beneficência e de interesse público, torna-se necessário que a entidade fiscalizadora do sector do jogo intervenha de forma apropriada, através de meios combi- nados de regulamentação e de incentivo, com o objectivo de equacionar um enquadramento no sentido de institucionalizar a concessão dos fi- nanciamentos pelo sector do jogo para o desenvolvimento de acções de beneficência e de interesse público.

41 Wu Zhiliang e Ieong Wan Chong, Eciclopédia de Macau, edição revista, Macau, Fun- dação Macau, 2005, pág. 503. Administração n.º 104, vol. XXVII, 2014-2.º, 409-419 409

A esfera pública nas bibliotecas de Macau Xie Jingzhen*

Para a generalidade das pessoas, as bibliotecas públicas são lugares comuns que servem para emprestar e devolver livros, mas na verdade as funções das bibliotecas públicas são muito mais do que isso. As bibliote- cas públicas por força do seu espírito de liberdade intelectual e racionalis- mo únicos e que se destacam do resto da sociedade, tornaram-se uma das infraestruturas base de uma sociedade democrática moderna. Atualmente existem três sistemas de bibliotecas públicas em Macau. Mais de 80 bi- bliotecas e salas de leitura são operadas pelo governo ou por instituições privadas nas mais variadas formas1, pelo que Macau se tornou num dos lugares do mundo com o maior número de bibliotecas2. As bibliotecas e as salas de leitura estão localizadas na Península de Macau, Taipa e Colo- ane, testemunhando a tradição deste tipo de infraestrutura ao serviço dos residentes de Macau e refletindo o espírito humanista da região e que por si é também uma infraestrutura importante da sociedade local3. Nos últi- mos anos, os académicos realizaram vários estudos sobre a história, recur- sos e classificação das bibliotecas públicas de Macau. Este artigo analisa a contribuição das bibliotecas públicas para a melhoria da opinião pública local a partir da perspectiva das ciências social e política e da teoria do uso da esfera pública de Habermas, um dos principais representantes da Escola de Frankfurt.

* Professor Universidade de Ciência e Tecnologia de Macau 1 Guo Zijian, and Wang Guoqiang: “The 2010 Macao Statistics and Analysis on the Li- braries,” The Institutional Repository Development at Three Cross-Strait Places, Macao Association for Library and Information Management, 2012, p.109-110 2 Lijia, “Macao - The World's Largest Library,” The Library Journal, 2006, issue no. 7 3 Yang Kai Jing Hao, Zhao Xinli, Study of the Library System in Macao, Guangzhou, Guangdong People's Publishing House, 2007; Wu Jiajun: “The Current Status and Assessment of the Sharing of Information Resources at Macao’s Public Libraries,” 2008,Library and Information, issue no. 6; He Lijia, and Zeng Aiqun, and Luo Ruiwen, “The Dewey Decimal Classification and Biblioteca Pública da Associação Comercial de Macau,” The Library Forum, 2005, issue no.24; Yang Kai Jing, “The Planning and Resource Sharing Macao’s Library Collection,” University Library Journal, 2000, issue no.18; Ni Bo, and Wu Guocai, “The Macao Public Libraries,” The Library Forum, 1996, issue no.1, etc. 410

I. Teoria do uso da esfera pública de Habermas Jurgen Habermas é um excelente representante da Escola de Frank- furt, e é um dos filósofos ocidentais mais influentes do século XX. Ele apresentou a teoria da opinião pública na sua tese de Doutoramento que se intitulou “A mudança estrutural da esfera pública”, que foi publicada em 1962. A sua tese dissertou sobre a forma como os direitos humanos e a democracia tiveram origem na monarquia cujo poder efetivo derivava de Deus. De acordo com a análise de Habermas, o nascimento e desen- volvimento das economias de mercado estão intimamente relacionados com o aparecimento da opinião pública: no século XVIII, o desenvolvi- mento do comércio e do sistema capitalista Europeus estiveram na base de uma enorme transformação social, de tal forma que a monarquia dei- xou de governar de forma plena, tendo sido criado o conceito de opinião pública. A opinião pública significa por isso a liberdade de opinar sobre a governação em espaços de discussão política, incluindo nos locais públi- cos, como cafés, mercados e salões literários, bem como nos meios polí- ticos, tais como assembleias e associações, incluindo também publicações como jornais e revistas. A Burguesia emergente fez uso destes fóruns para discutir livremente e de forma independente as grandes questões da vida social bem como as principais políticas sociais, a troca de ideias e concei- tos. Os objetivos políticos da opinião pública passaram a ser a regra real, e passaram a ser um meio pacificamente utilizado pela burguesia para lutar pelos direitos sociais. A opinião pública herdou o paradigma da discussão pública do grego antigo, aprendendo com o Iluminismo do século XVIII, a Revo- lução Francesa e a essência ideológica da Revolução Americana, tendo ao mesmo tempo uma característica distinta do humanismo.. Quando a burguesia se tornou a classe governante, a opinião pública passou a ser mais do que um sistema4. “O objetivo é, por um lado, supervisionar a atuação política através da discussão pública reforçando por outro, a sua legitimidade.”5 Se numa fase inicial a opinião pública resultava dos atos não-violentos da burguesia contra a governação real, numa fase posterior, com o desenvolvimento da democracia capitalista, a opinião pública tornou-se o meio para uma sociedade obter direitos políticos. Social-

4 Chen Xunwu: “Habermas's Critical Biography”, Guangzhou, Zhongshan University Press, 2008, p.64 5 Chen Xunwu: “Habermas's Critical Biography”, p.64 411 mente vulneráveis os grupos e personagens mais marginalizados, como as mulheres, os imigrantes, os gays, os afro-americanos, que haviam sido inicialmente excluídos da vida política, foram gradualmente ganhando direitos políticos na sociedade democrática, tornando-se com isso mem- bros por igual dessa mesma sociedade. A opinião pública é por isso uma manifestação do espírito, da crítica e do diálogo racionais, através da par- ticipação ativa dos cidadãos na vida social e política, através da promoção da democracia nas sociedades capitalistas, com o propósito de tornar as sociedades cada vez mais razoáveis. Um dos mais famosos legados de Habermas, após o nascimento da sua teoria da esfera pública, foi o estímulo da discussão de questões como a democracia, a sociedade civil, na vida pública e a mudança social do liberalismo do século XX, entre os académicos ocidentais, não faltando no entanto críticas e perguntas. Alguns estudiosos têm apontado que a opinião pública do século XVIII foi dominada por homens brancos ricos burgueses não tendo os grupos socialmente vulneráveis qualquer partici- pação naquela6. Alguns estudiosos acreditam que, a opinião pública aliás só existiu em alguns países ocidentais, por isso carrega um forte sabor de utopia. Alguns estudiosos acreditam que a opinião pública não era de todo perfeita, porque, no virar do século, quando as mulheres gradual- mente garantiram direitos políticos, foi Habermas que argumentou que a opinião pública duma sociedade capitalista começava a diminuir7. No entanto, a teoria da esfera pública de Habermas recebeu a atenção das sociedades ocidentais devido à sua excitação sobre o pensamento das pes- soas acerca das condições para a democracia real.

II. A teoria da esfera pública nas bibliotecas Em comparação com outros tipos de bibliotecas, como as bibliote- cas das universidades e as bibliotecas corporativas, as bibliotecas públicas têm uma singularidade considerável, com a sua utilização como base de igualdade, independentemente de raça, sexo, idade, religião, língua, status

6 Douglas Kellner, “Habermas, the Public Sphere, and Democracy: A Critical Interven- tion,”2000, http://knowledgepublic.pbworks.com/f/Habermas_Public_Sphere_De- mocracy.pdf, May 23, 2014. 7 Mary Ryan, “Gender and Public Access: Women’s Politics in Nineteenth Century America,” in C.J. Calhoun, Ed., Habermas and the Public Sphere, Cambridge, Mass: MIT Press, 1992, pp. 259-288 412

social ou tendência política para fornecer informação livre e serviços para todos os setores da sociedade8. O espírito da biblioteca pública do século XXI ou o valor pode ser resumido nos oito seguintes pontos: deveres de manutenção, liberdade intelectual, racionalismo, promoção das capacida- des de leitura e busca de conhecimento, garantia e oferta de liberdade, uso ilimitado e acesso à informação, proteção da vida privada9. Entre eles, a liberdade intelectual é o valor mais importante e a filosofia das bibliotecas públicas. A liberdade intelectual é o núcleo de serviços prestados por uma biblioteca e a base para o desenvolvimento de uma democracia, o que ga- rante que todos os cidadãos, não só tenham direito de reservar e expressar os seus pontos de vista, mas também tenham o direito de investigar e de ter novas informações. A sociedade de pleno conhecimento é mais capaz de integrar o racionalismo da democracia, e, portanto, vai para além do conceito puro e duro de democracia. A liberdade intelectual é também um dos mais elementares direitos humanos, porque “a obtenção de todas as formas de conhecimento, pensamento criativo e atividades intelectu- ais, bem como falar abertamente, é um direito humano fundamental.”10 As bibliotecas públicas são instituições sociais em que todos os cidadãos são tratados de forma igual, proporcionando-lhes igualdade de oportuni- dades de conhecimento, defendendo e buscando a liberdade intelectual de forma clara, que é, inegavelmente, o bem público de uma sociedade contemporânea. O pai da biblioteca pública, Andrew Carnegie, uma vez orgulhosamente disse: “sistemas de bibliotecas públicas gratuitas é o berço original da democracia na terra.”11 Assim, as bibliotecas públicas são as instituições sociais mais dignas do investimento do governo. Em “A Mudança Estrutural da Esfera Pública”, Habermas considera que o nascimento das bibliotecas públicas foi contemporâneo da opinião pública. Em meados do século XVIII, os gostos estéticos da burguesia representavam uma posição dominante nos teatros, museus e concertos, e

8 Michael Gorman, Our Enduring Values: Librarianship in the 21st Century, Chicago: American Library Association, 2000, pp. 26-27. 9 IFLA, “Theme Report 2004,” 2004, p.95, http://www.ifla.org/files/assets/faife/publica- tions/theme-report-2004.pdf, May 16, 2014 10 IFLA, “IFLA Statement on Libraries and Intellectual Freedom,” http://www.ifla.org/ publications/ifla-statement-on-libraries-and-intellectual-freedom, May 23, 2014 11 Andrew Carnegie, The Boundaries of Freedom and Order in American Democracy, Kent: Kent State University Press, 2001, p. 186 413 em diversos jornais e obras literárias pregava-se a moralidade da burguesia europeia. O mais representativo é o escritor britânico Samuel Richardson através do seu romance “Pamela”12, que se tornou num bestseller. Haber- mas, no seu livro destacou que “Dois anos depois de “Pamela”, ter sido publicado, foi fundada; a primeira biblioteca pública de seguida surgiram os clubes e os grupos de leitura e ainda as bibliotecas de associados.”13 Se como Habermas disse a primeira biblioteca pública foi efetivamente cria- da dois anos após a publicação do romance “Pamela”, esta é uma conclu- são questionável. No entanto, bibliotecários e profissionais de bibliotecas começaram realmente a surgir depois de 1750. Ou seja, a partir de 1750 até a segunda metade do século XIX, com o desenvolvimento do capita- lismo, as bibliotecas europeias também passaram a ser geridas de forma profissional.14 Portanto, a filosofia central da biblioteca, como lugar de liberdade intelectual, de busca do racionalismo e do direito de adquirir conhecimento derivou no essencial da ideologia burguesa.

A opinião pública nas bibliotecas públicas é dada a conhecer nos se- guintes aspetos: em primeiro lugar, as bibliotecas, mantendo no seu acer- vo tanto obras literárias como obras em que se pode consultar informação as forneciam ainda o uso irrestrito e a forma de acesso à informação com o objetivo de promover o diálogo racional. Em segundo lugar, as bibliote- cas são ainda uma forma neutra e objetiva de promover a inclusão social e de defender os princípios da crítica racional e do debate, através da construção de coleções equilibradas e do fornecimento de uma varieda- de de conhecimentos. Em terceiro lugar, a longa história das bibliotecas demonstra que elas podem facilitar a investigação, através da utilização dos recursos arquivados e organizados, tanto relativos aos tempos antigos, como aos modernos, e assim, levar adiante o espírito da democracia, e

12 A personagem principal do romance Pamela, que é filha de uma família pobre, foi em- pregada doméstica de um homem rico. O jovem empregador admirava a sua beleza e utilizava varias formas para a seduzir. Pamela que preservava os seus valores morais va- lorizava a sua virgindade e pureza tendo escapado as intenções do seu patrão vezes sem conta. No final do romance, o patrão deixou-se tocar pelo caracter de Pamela tendo-se apaixonado pela jovem. Casaram-se e tornaram-se marido e mulher. 13 Jügen Habermas, The Structural Transformation of the Public Sphere, Cambridge: The MIT Press, 1991, pp. 49-51. 14 History of Libraries,” April 21, 2014, http://en.wikipedia.org/wiki/History_of_libra- ries, May 23, 2014. 414

ajudar a estender o debate racional e o espírito da opinião pública. Em quarto lugar, através de políticas e ações específicas, as bibliotecas procu- ram servir todas as pessoas, incluído aquelas que nunca conceberam pre- cisar dos serviços de um biblioteca, o que levou à popularização genuína da promoção da informação e formação dos leitores.15 Para resumir os quatro pontos, as bibliotecas públicas, devido à sua posição neutra e objetiva, fornecem documentação e informação que con- tém uma variedade de perspetivas e ideias que servem toda a comunidade, e tornam-se locais de confronto ideológico. Isto é, no que diz respeito a um determinado evento ou conceito, o público pode ficar a conhecer os pontos de vista das várias partes da história, se são positivos ou negativos, para formar as suas próprias opiniões, revendo as coleções das bibliotecas. É também através da compreensão destes pontos de vista e dos lados posi- tivos e negativos que o público adquire o espírito do pensamento racional e o debate. Portanto, as bibliotecas públicas foram os melhores lugares para promover o espírito do debate racional da opinião pública do século XVIII. Reconhecendo que as bibliotecas públicas são igualmente importan- tes para a o público em geral, hoje em dia dá-se algum ênfase à biblioteca profissional de educação específica sobre conhecimentos e habilidades, e ignorar-se o espírito profissão e valores na educação, o que não é correto. A educação sobre os valores e as habilidades específicas da biblioteca são igualmente importantes. Se os recursos e tecnologias são o hardware para o desenvolvimento das bibliotecas públicas, a preservação e o respeito dos valores de bibliotecas são o software e o núcleo do desenvolvimento sustentável e saudável das bibliotecas. Os bibliotecários precisam de sa- ber não só as competências desenvolvidas, mas também saber de forma profunda a compreensão e o reconhecimento dos valores e missões das bibliotecas públicas. Só então eles podem realmente e efetivamente refle- tir os valores das trabalho que está a ser realizado. O desenvolvimento das bibliotecas públicas também precisa de apoio público. O entendimento dos valores e importância das bibliotecas pelo público é o primeiro passo crítico para obter o apoio da comunidade. Quando o público se tornar um usuário da biblioteca, ele vai tomar a iniciativa de usar os serviços da biblioteca e ser beneficiado com isso. Nesse caso irão ser feitas sugestões sobre as operações e o desenvolvimento. Somente em tal caso, o governo

15 John Buschman, “On Libraries and the Public Sphere,” Library Philosophy and the Public Sphere, Vol. 7, No. 2 (Spring 2005), pp. 1-8 415 vai compreender a razão da existência das bibliotecas públicas, e obter financiamento adequado para, a longo prazo, as desenvolver de forma saudável.

III. Promover a opinião pública nas bibliotecas de Macau Desde a criação da biblioteca central de Macau em 1895, até à presente data a história da biblioteca pública em Macau tem mais de 100 anos e espalhou-se por três séculos. As bibliotecas foram inicialmente criadas para promover a leitura junto do público. De acordo com os dados existentes, nesse tempo a cultura da leitura de Macau estava atrás de Hong Kong, Shanghai, Tianjin e de outras cidades. Foi decidido que as bibliotecas públicas eram instalações necessárias à educação cultural da comunidade e que ajudavam a elevar o nível cultural do povo.16 Durante os mais de 100 anos de existência, as bibliotecas de Macau têm enfatizado as suas responsabilidades para educar o público local. Por exemplo, como a mais representativa das bibliotecas públicas Macau, a Biblioteca Central, cumpriu as suas principais tarefas, “educando o público, disseminando o conhecimento, a herança e promoção da cultura, bem como a promoção da leitura saudável e lazer”, através da forma de promover a leitura.17 Desde a intenção original do seu estabelecimento até à sua missão atual, a Biblioteca Central de Macau, e as bibliotecas públicas de Macau nunca foram, apenas um lugar para empréstimo de livros. Os serviços oferecidos tem um monte de conotações, incluindo a educação pública, a divulgação de conhecimentos, herdando e promovendo a cultura, etc. Estas conotações juntamente com o espírito das bibliotecas públicas, será capaz de contribuir para a promoção do espírito local da opinião pública. Em primeiro lugar, a variedade de recolha ajuda a desenvolver o espírito de debate racional dos cidadãos. A partir do século 16 até ao século 19, Macau foi o centro do intercâmbio cultural entre as culturas chinesa e ocidental no Extremo Oriente. A integração das culturas chinesa e ocidental criou recursos diversificados de literatura, e as características

16 Instituto Cultural de Macau, “The Central Library of Macao,” Macao: Macao Govern- ment Printing Agency, 1992, p.13 17 Biblioteca Central de Macau, About the Library, July 2012, http://www.library.gov.Mo/ CN/General/library.aspx,2014, accessed May 16, 2014 416

mais evidentes das bibliotecas públicas de Macau é a coleção rica em Chinês e Português. A literatura chinesa inclui “literatura chinesa publicada pelos chineses em todo o mundo e no continente; de Taiwan também existem diversos tipos de documentos nas bibliotecas públicas de Macau. Por conseguinte, o acervo das bibliotecas locais apresenta uma formação de literatura multinacional.18 “Quanto à literatura estrangeira, há o acervo da biblioteca em Português mas para além disso, há uma abundante quantidade de livros, revistas e literatura em Inglês, francês, alemão, latim, etc. Estes recursos foram sendo adquiridos desde o tempo da administração portuguesa até ao momento actual. Os estudos e pesquisas daqueles irão permitir às pessoas de Macau terem uma compreensão objetiva e racional da história e culturas de Macau, e ajudar a desenvolver o seu espírito de pensamento racional e discussão. Vale a pena ressalvar a biblioteca pública octogonal (ou a Bibliote- ca Pública da Associação Comercial de Macau), no coração de Macau. O edifício em forma de octógono projetado pelo arquiteto local, Chen Kunpei foi construído em 1927. Em 1947, o vice-presidente da Câmara Chinesa de Comércio Geral, Sr. Ho Yin, comprou o edifício em forma de octógono e doou-o à Câmara Geral de Comércio Chinês como uma sala de leitura. De acordo com registos, durante o período da administração portuguesa, foi também uma das poucas bibliotecas que pertenceram à Câmara de Comércio no Continente, Hong Kong e Macau.19 Em 1948, a Biblioteca Octogonal foi oficialmente inaugurada, e tornou-se a primei- ra biblioteca chinesa local. É também na década de 1980 o maior acervo de biblioteca de livros chineses em Macau com 34.000 livros em chinês20. A partir do dia de abertura até hoje, a Biblioteca Octogonal é um modelo de integração da cultura e da informação. Hoje em dia a biblioteca abriga mais de 20 mil volumes e fornece aos residentes mais de noventa tipos de jornais e revistas, principalmente chineses, além de possuir publica- ções, com cinquenta e setenta anos, do “Jornal Va Kio”, “Macau Daily News”, “Wen Wei Po”, “Ta Kung Pao”, “Guangming Daily” e outros volumes encadernados de jornais. Esta pequena Biblioteca Octogonal é

18 Li Wu, “The History and Current Situation of The Development of Libraries In Ma- cao,” Library Building, 2001, Issue S1, p.290 19 Feng Jia, The ROC Period Chamber of Commerce Libraries, Library and Information Service, 2010, Issue No.9 20 Wang Guoqiang, “The History and Background of Macao’s Library Collection Deve- lopment,” Library and Information Service, 2003, Issue no. 11, p.11 417 verdadeiramente um centro de informação, a sua existência permite que os residentes de Macau sejam informados dos vários eventos que ocorrem em Macau e nas regiões vizinhas e que tomem ainda conhecimento das questões emergentes e os vários pontos de vista sobre um determinado evento para ajudar a cultivar o espírito de participação dos moradores, habilitando-os a tornarem-se cidadãos conscientes. Em segundo lugar, as bibliotecas públicas de Macau promovem o desenvolvimento do espírito da opinião pública, fornecendo serviço de internet gratuito e todos os tipos de jornais eletrónicos. Numa socieda- de moderna, a Internet é o lugar para obter uma série de informações, e também o lugar onde uma variedade de diálogo e discussão pública acontece. Alguns estudiosos nos seus estudos publicados sobre a Internet como uma opinião pública alternativa em Macau, salientam que “a Inter- net é vista como o espaço formado por numerosos espaços de discussão repletos de divergências, conflitos e controvérsias, mas formando um espaço alternativo de resistência ao poder hegemónico.21 “A Internet, por um lado ajuda as pessoas a entender prontamente os eventos que acon- tecem em todo o mundo, bem como vistas de diferentes ângulos. Por outro, as pessoas usam ferramentas das redes sociais para expressar as suas opiniões e troca de pontos de vista e para formar a discussão pública. Em Macau, há uma alta penetração da Internet. De acordo com dados for- necidos pela Direcção de Estatística e Censos de Macau, em 2013 havia 152.900 famílias utilizadoras de internet em Macau; a proporção era de 82%.22 No entanto, o serviço de Internet em Macau também tem alguns problemas, tais como os custos elevados e instabilidade da velocidade. As bibliotecas públicas de Macau prestam um serviço gratuito de Internet às pessoas, que são os serviços gratuitos para os cerca de 20% por várias razões ainda não se solicitaram serviços de Internet e as bibliotecas for- necem Internet instantânea e conveniente para cada leitor que visite as bibliotecas, independentemente de terem subscrito serviços de Internet. Por exemplo, em 2013, o número de vezes em que o público acedeu ao serviço gratuito de Internet na Biblioteca Central de Macau foi de 71.928 vezes. Combinado com o espírito acima mencionado da opinião pública,

21 Liu Shiding, and Lao Lizhu, “The Internet as an Alternative Public Sphere in Macao,” Journalism Studies, 2010, Issue no. 1, p.255. 22 Gabinete de Estatisticas e Censos de Macau: “The 2013 Survey on Household Use of Information Technology,” http://www.library.gov.mo/cn/general/library.aspx, accessed 23 May 2014 418

as Bibliotecas Públicas de Macau promovem o espírito da opinião pública local também por causa dos serviços gratuitos de Internet que prestam.

Por outro lado, devido a uma variedade de recursos eletrónicos dis- poníveis gratuitamente nas bibliotecas públicas, especialmente jornais ele- trónicos e revistas, elas ajudam a alimentar o espírito local do espaço pú- blico. Os recursos eletrónicos são formas poderosas de complementar as coleções físicas das bibliotecas, sendo uma das principais funções permitir que os leitores as utilizem e acedam às informações que não podem obter através das coleções físicas. Tomando como exemplo a Biblioteca Central de Macau, as bibliotecas públicas servem como a maior base de dados das relações de 450 anos entre Macau-Portugal, Longyuan rede revistas, Airiti Biblioteca, EBSCO jornais eletrónicos e outros recursos eletrónicos distintos. Estes recursos eletrónicos, especialmente Wise News, Airiti Bi- blioteca e EBSCO, são muito agradáveis para que a opinião pública possa entender os vários pontos de vista. A “plataforma de leitura on-line” é um registo central de coleta de livros, jornais e revistas eletrónicos, um portal de Internet que é muito fácil de utilizar O leitor através do uso desses recursos aprende e compreende uma variedade de pontos de vista e opini- ões, cultivando o espírito de pensamento racional e o debate.

Em terceiro lugar, as bibliotecas públicas de Macau promovem o espírito local da opinião pública através da organização de vários semi- nários. A organização de vários seminários sobre os temas mais distintos são um importante serviço que é prestado aos residentes de Macau pelas bibliotecas públicas. O seminário por si só é um diálogo, que culmina na troca de experiências entre o orador e a audiência. Um seminário com interação entre o orador e o público tornar-se um espaço de diálogo racional. O autor foi testemunha, em 13 de abril de 2014, no “Espaço Livro, espaço cultural” de uma palestra organizada pela Biblioteca Cen- tral de Macau, de interação positiva entre os palestrantes e o público ali presente que finalmente transformou a palestra numa cuidadosa reflexão e discussão racional de leitura proporcionada por aquela biblioteca à comunidade. Portanto, uma variedade de seminários organizados pela biblioteca ajuda a desenvolver o espírito crítico dos moradores; o diálogo racional que ali normalmente acontece ajuda a potencia a opinião pública local. Para isso, as bibliotecas públicas de Macau devem promover a or- ganização de mais seminários deste tipo. Por fim, o espírito de tolerância da opinião pública e o efeito das bibliotecas públicas de Macau estão inti- mamente ligados. O diálogo na esfera pública consubstanciado na escuta 419 e respeito pelas opiniões dos outros, a fim de chegar a uma solução final para a maioria das pessoas, tem um forte espírito de tolerância e inclusão. O assunto do serviço de bibliotecas públicas de Macau é para cada cida- dão e até mesmo para os visitantes de Macau, o que reflete precisamente o espírito de tolerância e inclusão. Macau como uma cultura diversa, seu espírito geral é de tolerância e inclusão, por isso as bibliotecas públicas são as instituições emblemáticas para mostrar o espírito de Macau. Por outro lado, desde a liberalização do jogo, Macau tornou-se famosa pelos locais de entretenimento de jogo e lazer. Os hotéis e centros comerciais e outros locais movimentados, refletem a prosperidade da economia e do turismo florescente de Macau, que se tem sobreposto aos 450 anos de história e de património cultural de Macau. As bibliotecas públicas, por causa da sua importância para a opinião pública, tornaram-se um local de excelên- cia e a instituição encarna o espírito humanista de Macau, promovendo de forma vigorosa a imagem humanista de Macau.

V. Conclusão A teoria da esfera pública de Habermas, embora com algum idealis- mo, reflete a filosofia do espírito crítico e a sua função na transformação social. Ela promove a instauração da democracia, encoraja os cidadãos a participarem no debate racional e público, inspirando-os ainda a desem- penharem um papel ativo no desenvolvimento da sociedade. As bibliote- cas públicas são dos poucos lugares e instituições no mundo a destacar o espírito da esfera pública. A essência da esfera pública, como a liberdade intelectual, o acesso ilimitado a bibliotecas públicas, o debate racional e a educação cívica, estão intrinsecamente ligados, sendo a força motriz na promoção do progresso social. As mais de 80 bibliotecas públicas e salas de leitura de Macau são uma enorme riqueza social, melhorando a possi- bilidade do público reconhecer e compreender as relações entre os valores e os conceitos das bibliotecas e o seu desenvolvimento e espírito de comu- nidade, de modo que o conceito de bibliotecas públicas de Macau tenha um novo significado, que é essencial para a qualidade da construção do desenvolvimento saudável de longo prazo dos serviços das bibliotecas e do respeito pelo espírito cívico.

Administração n.º 104, vol. XXVII, 2014-2.º, 421-427 421

Macau e a política portuguesa em 1821 António Aresta*

RESUMO Nas Cortes Constituintes de 1821 um grupo de deputados colocou a possibilidade de se poder alienar, trocar ou vender algumas parcelas ter- ritoriais do império português. Para além dos problemas constitucionais e políticos, o debate foi emotivo e mobilizou a opinião pública. Os depu- tados pretendiam trocar Macau pela Galiza (Espanha). Sem consultar o Imperador e o Vice-Rei de Cantão. A proposta foi recusada pela maioria dos deputados na Corte.

O magno trabalho das Cortes Constituintes de 1821, sob a presi- dência de Manuel Fernandes Tomás1, reunidas no Palácio das Necessida- des2 desde 24 de Janeiro de 1821 até 4 de Novembro de 1822, foi o de dar sentido a uma respeitável nação com uma velha história, servida por uma anacrónica organização senhorial e uma deficitária máquina produ- tiva e económica.

Numa das épocas mais sombrias da história portuguesa, pouco mais de meio século após o grande terramoto de 17553, com o País saqueado e martirizado pelas três invasões francesas4 [Junot5, em 1807; Soult6, em

* Professor e Investigador. Autor de diversas obras sobre a história de Macau. 1 Manuel Fernandes Tomás (1771-1822), magistrado formado pela Universidade de Coimbra, deputado e ministro. 2 O antigo Convento de Nossa Senhora das Necessidades foi transformado em Palácio Real e desde 1910 é a sede do Ministério dos Negócios Estrangeiros. 3 Ocorrido no dia 1 de Novembro, destruiu quase por completo a cidade de Lisboa. O filósofo Voltaire dedicou-lhe o “Poème sur le desastre de Lisbonne”. 4 Napoleão Bonaparte tinha conquistado e dominava uma grande parte da Europa. Impôs em 1806 o Bloqueio Continental para impedir a circulação dos navios ingleses. Portugal, um dos mais velhos aliados da Inglaterra, recusa aderir ao Bloqueio Continental e por isso as tropas napoleónicas invadem o país em Novembro de 1807. Escassos dias antes, uma armada conduz o Rei e a Família Real portuguesa para o Brasil, ficando uma Junta Governativa a assumir o governo de Portugal. 5 Jean-Andoche Junot (1771-1813), general e duque de Abrantes. 6 Nicolas Jean-de-Dieu Soult (1769-1851), general e 1º ministro de França. 422 423

1809; Massena7, em 1810], com a Família Real no Brasil desde 1807 e a (in)gerência inglesa de Beresford8, o País, dizia, encontrou forças para reerguer-se e reorganizar-se, enfim, retomar a soberania sobre si próprio na condução do seu destino. Um turbilhão de problemas, com perdas duríssimas em vidas e pa- trimónio, a juntar às dissenções internas com os mártires da pátria, como ficou conhecido o processo de Freire de Andrade9 e mais doze notáveis. Nessa específica conjuntura se instalou o debate sobre a hipotética alienação de parcelas do império e sobre a soberania e a filosofia política da unidade e integralidade territorial. Colocou-se a possibilidade de se poder vender ou trocar uma colónia, um território, um arquipélago ou mesmo uma cidade. Macau10 esteve involuntariamente presente nas dis- cussões. Recorde-se a configuração intercontinental de Portugal , plasmada na Constituição de 182211: “A Nação Portuguesa é a união de todos os Portugueses de ambos os hemisférios. O seu território forma o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, e compreende: I-Na Europa: o reino de Portugal, que se compõe das províncias do Minho, Trás-os-Montes, Beira, Estremadura, Alentejo e reino do Algarve, e das Ilhas Adjacentes, Madeira, Porto Santo e Açores; II- Na América: o reino do Brasil, que se compõe das províncias do Pará e Rio Negro, Maranhão, Piauí, Rio Gran- de do Norte, Ceará, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Bahia e Sergipe, Mi- nas Gerais, Espírito Santo, Rio de Janeiro, S. Paulo, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Goiás, Mato Grosso e das Ilhas de Fernando de Noronha, Trindade e das mais que são adjacentes aquele reino; III- Na África Oci- dental, Bissau e Cacheu; na Costa de Mina, o forte de S. João Baptista de Ajudá, Angola, Benguela e suas dependências, Cabinda e Molembo,

7 André Massena (1758-1817), general e príncipe d’Essling. 8 William Beresford (1768-1854), marechal do exército. 9 Gomes Freire de Andrade (1757-1817), general português nascido em Viena de Áus- tria, com uma distinta carreira militar em Portugal, na Espanha e na Rússia. Amigo de Wolfgang Amadeus Mozart. Após um processo político muito polémico, foi acusado de conspirar contra o Rei D. João VI. Foi preso e enforcado. 10 António Aresta, “Macau nas Cortes Constituintes de 1821”, , 29.05.2013. 11 Jorge Miranda, As Constituições Portuguesas : de 1822 ao Texto Actual da Constituição, Livraria Petrony, Lisboa, 1984, 2ª edição, pp. 23-24. 424

as Ilhas de Cabo Verde, as de S. Tomé e Príncipe e suas dependências; na Costa Oriental, Moçambique, Rio de Sena, Sofala, Inhambane, Queli- mane e as Ilhas de Cabo Delgado; IV- Na Ásia: Salsete, Bardez, Goa, Da- mão, Diu e os estabelecimentos de Macau e das Ilhas de Solor e Timor. A Nação não renuncia o direito, que tenha a qualquer porção de território não compreendida no presente artigo. Do território do Reino Unido se fará conveniente divisão”. Um império colonial tão atomizado era, evidentemente, quase ingo- vernável, a partir de uma capital europeia, Lisboa. É, pois, neste contexto de desagregação eurocêntrica, que o debate se instalou. O deputado Manuel Borges Carneiro12, esclarecido legislador e teó- rico do liberalismo, na sessão de 27 de Julho das Cortes Constituintes de 1821, coloca este desafio aos seus confrades13: “Temos pois que se deve estabelecer na Constituição pelas razões, que acaba de apontar o ilustre Preopinante, que às Cortes pertence o alienar parte do território. Tenho porém uma reflexão a fazer, e vem a ser que nem só no caso de necessida- de mas também no caso de utilidade. Eu não considero só o caso de ne- cessidade como por exemplo uma guerra, mas trato também do caso de uma utilidade evidente. Suponhamos por exemplo que por convenção, ou tratado que se julga mais útil, que nós abandonemos a nossa ilha do Príncipe14 ou Macau, que havia um tratado que julgara isto muito útil, fazer uma permutação e, em consequência disto abandonar o que acabei de dizer para receber uma porção mais conveniente. Porque razão não podemos alienar no estado de conveniência e utilidade parte do nosso território?”. A discussão tomou conta das bancadas, com os deputados Anes de Carvalho, Manuel António Carvalho, Ferreira Borges, Bispo de Beja, Ser- pa Machado, Soares Franco, Castelo Branco e Xavier Monteiro a esgrimi- rem argumentos contraditórios com grande veemência. O Bispo de Beja15, Luiz da Cunha Abreu e Melo, defende em abs- tracto essa ideia: “que uma Nação possa alienar parte do seu território,

12 Manuel Borges Carneiro (1774-1823), magistrado e político influente, autor de, entre outros, Portugal Regenerado em 1820 e ainda Direito Civil de Portugal, 1826. 13 Diário das Sessões, 27 de Julho de 1821, p. 1662. 14 Arquipélago de São Tomé e Príncipe, em África. 15 Diário das Sessões, 27 de Julho de 1821, p. 1663. 425 quando a necessidade o pedir, isto é uma verdade consignada em todos os publicistas, ainda não li um só que diga o contrário. Quando se diz que duas terças partes de Deputados de Cortes é que podem estabelecer a alienação, eu julgo também forçoso que a Nação o declare, que os De- putados venham munidos com autoridade especial para este fim, e que a Nação os autorize”. O deputado Castelo Branco16, refuta a tese de Borges Carneiro, centrando-se na defesa dos direitos dos cidadãos: “eu não poderei jamais suportar, que se dê a uma Nação a ideia de que é lícito, de que é possível dividir uma parte do seu território, isto é deixar em desespero essa parte de cidadãos, porque a alienação dessa parte leva consigo uma porção de concidadãos, que tem direito sem dúvida alguma aos últimos esforços da última parte para os sustentar, ou sucumbirem todos na causa pública. Eu vejo que estes são os princípios em tese, por que deve regular-se e consti- tuir-se o espírito público da Nação. Entretanto na prática não seria possí- vel principalmente em uma Nação tão diminuta de forças, como a nossa: entretanto não convenho jamais em que este princípio, de que parte do território da Nação Portuguesa pode ser alienado; seja do sancionado na nossa Constituição. Não se trate desta matéria, não se declare à Nação, que é possível alienar uma parte do seu território. Se as nossas desgraçadas circunstâncias nos levarem para o futuro a esse desgraçado fim, então o Governo, então a Assembleia Legislativa da Nação decidirá o que se deve fazer neste caso. Entretanto não vamos consignar na nossa Constituição um princípio de tal natureza”. Três dias depois, na sessão de 30 de Julho, Borges Carneiro17, aper- feiçoa a sua proposta: “Deve legislar-se na Constituição, que o território da Nação Portuguesa pode ser alienado pelas Cortes, concorrendo para isto duas terças partes dos Deputados, e senão diga-se: que aproveitou, que os Espanhóis tivessem declarado que o seu território era inalienável, se eles há pouco cederam as Floridas? De que servirá também que nós declaremos na Constituição, que o território português é inalienável, se houver um caso de necessidade, ou de utilidade, e exija que isto se possa verificar? Suponhamos nós, que era possível contratar com Espanha, a que ela nos desse a Galiza, e nós perdêssemos Macau? Porque razão o Governo não havia entrar nestes tratados, submete-los à discussão das Cortes, e estas, vendo que eram justos e úteis, sancioná-los então?”.

16 Diário das Sessões, 27 de Julho de 1821, p. 1663. 17 Diário das Sessões, 30 de Julho de 1821, p. 1691. 426

Esta tese não vingou, como bem sabemos. Se a discussão tivesse tido mais enfâse e maior suporte parlamentar, teria havido condições políticas para trocar Macau pela Galiza? No limite, a ideia de Borges Carneiro até nem era destituída de senso: a Galiza era um território18 estrategicamente importante e apetecível para Portugal e Macau como estava perto das Fi- lipinas19, poderia integrar o conglomerado colonial espanhol no extremo oriente. Mas, ninguém se lembrou da palavra que teria a China, através do vice-rei de Cantão e, naturalmente, do Imperador. Para memória futura, conviria esclarecer muito bem essa problemática. Assim, no “Tratado de Amizade e Comércio entre Portugal e a China” , firmado em 26 de Mar- ço de 1887, escreveu-se no artigo terceiro: “Portugal confirma, na sua ín- tegra, o artigo 3º do protocolo de Lisboa sobre o compromisso de nunca alienar Macau sem prévio acordo com a China”. De resto ,em Portugal, o conhecimento de Macau e da China, da sua história e dos seus proble- mas, era escasso , desactualizado e imperfeito. Na sessão de 14 de Agosto, cerca de um ano depois, o deputado Ferreira da Costa20 perguntava-se: “ignoro se somos senhores de alguma parte do território de Macau, mas consta-me que nós pagamos ali um fôro de cem mil reis por ano ao Imperador da China. O comércio que fa- zemos por aquele estabelecimento, e o respeito que ele faz dar à bandeira portuguesa nos mares do oriente lhe merecem atenção particular”. A fraca visibilidade política de Macau era imputada aos filhos da terra, como notava o deputado Vilela21, “em Portugal há filhos de Macau, na universidade conheci alguns”, que estavam voluntariamente arredados do centro das decisões políticas. Tudo isto foi, aparentemente, ignorado em Macau onde o jornal “A Abelha da China”22 vai fazendo eco dos trabalhos das Cortes ao mesmo tempo que amplifica as angústias do Leal Senado, “penetrado de um sin- cero patriotismo”, que decide fazer o primeiro referendo à população, em

18 Situado a norte de Portugal, com uma área de 29. 574 quilómetros quadrados. 19 Veja-se Estado de las Islas Filipinas en 1810, brevemente descrito por Tomás de Comyn, con Permiso del Supremo Consejo de Indias, Madrid, Imprenta de Repullés, 1820. 20 Diário das Sessões, 14 de Agosto de 1822, p. 152. 21 Diário das Sessões, 14 de Agosto de 1822, p. 153. 22 “A Abelha da China”, Nº XI , 21 de Novembro de 1822. 427

13 de Novembro de 1822, para saber, entre outras coisas, “qual deve ser o plano da educação para ambos os sexos, mais acomodada às actuais cir- cunstâncias do país, e quais os meios mais suaves e seguros, de que possa lançar mão o Governo para o pôr em execução e conservá-lo”. Tudo isto para “expor a Sua Magestade e ao Soberano Congresso”. E logo no seu primeiro número23, procura reunir as energias cons- trutivas dos cidadãos: “Transmitir pois aos nossos concidadãos a energia do povo Macaense em sacudir o jugo da opressão, o zelo e a actividade do Sábio Governo Provisório, que acabamos de instalar; instruir o povo acerca dos seus deveres e dos seus direitos ; apontar finalmente os melho- ramentos de que é susceptível esta Cidade, será todo o nosso empenho”. A instabilidade governativa parecia criar raízes em Macau, incluindo o frustrado assomo absolutista do Ouvidor Arriaga24. O Senado, o Con- selho Governativo, os Governadores e o Bispo Francisco Chacim25 foram obrigados a entenderem-se a bem da sobrevivência do Território. Como o ódio velho não cansa, o professor régio José Miranda e Lima26, será de- mitido do cargo de professor de gramática latina, treze anos depois, em 1836, “pelos seus reconhecidos sentimentos de desafeição ao Meu Legíti- mo Governo e à Carta Constitucional da Monarquia”, como se pode ler no decreto assinado pela Raínha. Começava outra grande discussão política, se Macau deveria ter, por direito próprio, um deputado nas Cortes.

23 “A Abelha da China”, Nº I, quinta-feira, 12 de Setembro de 1822. 24 Miguel de Arriaga Brum da Silveira (1776-1824). Para se perceber quais eram as funções do Ouvidor , veja-se Padre Manuel Teixeira, Vultos Marcantes em Macau, ed. Direcção dos Serviços de Educação e Cultura, 1982, p. 99 : “Era um Juiz com funções muito mais vastas do que as dos nossos juízes de comarca. O Ouvidor superintendia em todos os ramos da administração pública – fazenda, município, provedorias, cape- las, educação, no foro judicial como julgador e intérprete das leis e até no campo mi- litar. Por outras palavras, era um pequeno rei”. Em Macau há uma importante artéria citadina que tem justamente o nome de Avenida do Ouvidor Arriaga. 25 Francisco da Nossa Senhora da Luz Chacim, Bispo de Macau entre 1804 e 1828, inte- grou o Conselho de Governo de Macau em 1823-1825 e 1827. 26 José Baptista de Miranda e Lima (1782-1848), natural de Macau, professor régio, mo- ralista e poeta. A Portaria com a sua demissão foi publicada em, António Aresta, José Miranda e Lima, Professor Régio e Moralista, edição da Direcção dos Serviços de Educa- ção e Juventude, Macau, 1997, pp. 85-86.