WOODY ALLEN: O INTELECTUAL JUDEU ENTRE A CONSTRUÇÃO BIOGRÁFICA E A FIGURA PÚBLICA

Roberta do Carmo Ribeiro

Resumo: Pensar como “cineasta historiador” será o fio condutor desta pesquisa. Pretendemos analisar como Woody Allen “escreve” em algumas obras de sua filmografia a História da América do período entre guerras a partir de elementos advindos de sua formação enquanto judeu americano e artista preocupado com a questão da identidade judaica. Para isso faremos uma apresentação das principais características de sua linguagem cinematográfica. Faz-se, a saber, o uso da linguagem irônica e da sátira para dialogar com o público. Mapearemos a construção da biografia oficial do cineasta, assim como a construção de sua imagem pública. Palavras-Chave: Woody Allen, cinema, ironia, identidade judaica, período entre guerras.

Abstract: Thinking about Woody Allen as "historian movie maker" will be the central idea and core theme of this research. We will examine how Woody Allen "writes" the History of the United States during the interwar period in some of his works, starting with his personal education as an American Jew and artist concerned about the question of the Jewish identity. We will present the main features of his cinematographic language, that is, using satire and ironic language in order to discuss with the audience. We will provide a synthesis of Allen's official biografy, as well as a presentation of his public image. Key words: Woody Allen, cinema, irony, Jewish identity, interwar period.

“As pessoas pensam que a pessoa ficcional que criei sou eu. Não sou. Acontece que ela anda como eu, se veste como eu [ri], é isso realmente o que ela é.” (Woody Allen, em entrevista para Eric Lax)

A primeira cena de Cidadão Kane (1941), considerado por muitos como o maior filme de todos os tempos, é um close numa placa, afixada numa cerca ameaçadora, em que se lê: “proibida a entrada”. Ao fundo, vemos Xanadu, o castelo do personagem título, o milionário da imprensa e do ouro Charles Foster Kane. O recado é direto. Ao longo de todo o

Mestre em História pela Universidade Federal de Goiás (UFG) e professora da Universidade Estadual de Goiás, no Campus de Pires do Rio. Correio eletrônico: [email protected] Revista PLURAIS – Virtual – v.4, n.2 – 2014 – ISSN: 2238-3751

filme se tentará desvendar a personalidade do protagonista. A chave será a palavra Rosebud. Vários depoimentos são recolhidos, alguns se contradizendo. Perspectivas múltiplas, em múltiplas temporalidades desfilam na tela. Na última cena o mistério do “botão de rosa” é desvendado, mas o mistério de Kane permanece. O filme fecha com a mesma placa, com o mesmo recado: “proibida a entrada”. O que fica é uma reflexão: nenhum ser humano pode ser desvendado completamente. Nem mesmo quando se tem todos os dados, aparentemente, imediatos de sua biografia “em marcha”. Sua tese é a de que o ser humano é inescrutável, praticamente impossível de ser decifrado. Um artista, talvez, ainda mais. O cineasta, escritor e músico norte-americano Woody Allen é um bom exemplo. Existem sobre ele diversos livros, infinitos artigos e um número considerável de trabalhos acadêmicos. Mesmo com todo esse material, sua figura permanece nas brumas, apenas se insinua. De certo modo eclipsado por um personagem que ele criou para ser sua persona pública. Portanto, nessa parte do trabalho não temos de modo algum a pretensão de desvendá-lo por meio de sua biografia, mas apenas traçar possibilidades, procurar as marcas deixadas por seu “trenó” na neve de sua filmografia. Quando se refere a seu passado, sua infância e juventude, trata mais do contexto do que dos detalhes, fazendo a mesma coisa em seus filmes. Muitos desses filmes são considerados biográficos e nesse trabalho os trataremos assim. Mas é preciso deixar claro desde o início que se trata de inspiração biográfica, não necessariamente de uma biografia oficial. São memórias aplicadas a arte, não confissões expostas via arte. Em outras palavras: o personagem Woody Allen, em suas diversas facetas fílmicas, como ele mesmo, como uma criança, como um alter ego, não é o mesmo que seu criador, mas, sim, uma das faces desse criador. Da mesma forma que um dos depoimentos sobre Kane, ou mesmo o conjunto deles, não define quem é Kane. Tampouco “rosebud” faz isso. Não procuramos o rosebud de Woody Allen, simplesmente porque sabemos que, se ele existe, não o define. Segundo Allen, “quase todo meu trabalho é autobiográfico, mas tão exagerado e distorcido que me parece ficção” (LAX, 2009, p. 28). Em se tratando de Allan Stewart Konigsberg, o nome verdadeiro de Woody Allen, pensar nesse limite entre real e ficcional é uma tarefa complexa. Não se pode dizer que

Woody Allen seja um artista recluso, ao estilo de J. D. Salinger. O mais correto seria defini-lo

como discreto. Morando em Nova Iorque, não costuma badalar por Hollywood, que fica na 60

outra costa do país. Com exceção do célebre escândalo envolvendo sua ex-companheira a Página Revista PLURAIS – Virtual – v.4, n.2 – 2014 – ISSN: 2238-3751

atriz Mia Farrow e sua enteada de origem vietnamita Soon-Yi, raramente aparecia em colunas de fofocas. Woody Allen sempre foi mais um frequentador de restaurantes exclusivos, ginásios de esportes e shows de jazz do que de festas de celebridades. Muito de sua biografia pública é, deliberadamente, performance. Pouco se sabe sobre sua vida particular. Ele faz questão de mantê-la o mais distante possível da mídia. Mesmo em sua biografia oficial, escrita por Eric Lax, a vida particular é deixada em segundo plano. As biografias não autorizadas, talvez por falta de fontes disponíveis, tendem a ser poucas e a repetir informações já conhecidas. O que se sabe como fato é que nasceu em 01 de dezembro de 1935 no bairro do Brooklyn, em Nova Iorque, nos Estados Unidos. Membro de uma família judia. Seu pai, Martin Konigsberg (1990 – 2001) foi livreiro e restaurador. Sua mãe, Nettie “Cherry” (1908 – 2002), esperava que ele fosse médico ou farmacêutico. Sua irmã, Letty Aronson, trabalha como produtora de seus filmes. Casou-se quatro vezes. A primeira vez com HarleneRosen, de 1956 a 1962, depois com Louise Lasser, de 1966 a 1969,Mia Farrow de 1980 a 1992, e Soon- Yi Previn, de 1997 aos dias atuais. Namorou a atriz em 1969. Tem quatro filhos: , Dylan O’Sullivan Farrow, Bechet Allen, Manzie Tio Allen e Moses Farrow. O nome Woody Allen foi adotado como nome artístico aos 16 anos de idade. Sobre Allen, o jornalista e biógrafo Ruy Castro brincou que “Woody levou apenas alguns anos para fazer sucesso da noite para o dia. Mas também não foi fácil. Como quase todo mundo, ele começou de baixo e custou a decolar. Afinal, não deve ter sido brincadeira nascer no Brooklyn, em 1935, e de uma família pobre” (s/d, p. 3-4). A mãe de Woody Allen deu um depoimento sobre o filho, para o documentário Um Retrato de Woody Allen (1996), da cineasta Bárbara Kopple. Ela diz que

Eu jamais imaginei que o Woody fosse fazer tanto sucesso. Eu sabia que ele tinha uma ótima cabeça, mas ele não demonstrava muito talento. Ele era muito bom em esportes. Mas ele me disse muitos anos atrás que se ele tivesse que escolher uma carreira ele escolheria música. De qualquer maneira já foi (1:36:05).

Esse judeu pobre se tornou comediante, cineasta, roteirista, escritor, ator e de vez

em quando se arrisca como músico tocando clarinete em uma banda de jazz. Atualmente com setenta e oito anos de idade, possui em sua filmografia cerca de cinquenta filmes. Dentre eles

algumas obras-primas, alguns sucessos de grande público e outras produções que 61 Página Revista PLURAIS – Virtual – v.4, n.2 – 2014 – ISSN: 2238-3751

decepcionaram a crítica especializada. Talvez essa oscilação entre um filme e outro seja decorrente de seu constante trabalho. Ele produz pelo menos um filme por ano. Sua carreira pública teve início já na adolescência. Aos dezesseis anos de idade começou a escrever piadas e histórias engraçadas para diversos jornais e revistas em Nova Iorque. Atividade na qual ele mantinha sua identidade em sigilo. Seus escritos eram enviados sempre com um pseudônimo diferente. Não demorou muito e logo adotou o seu nome artístico, sua fama começou a ganhar os holofotes e sua personalidade a circular na mídia. Durante o período em que trabalhou como colaborador em jornais e revistas, segundo o seu biógrafo Eric Lax, estima-se que ele tenha escrito cerca de vinte mil piadas. Nesta fase de sua carreira já era possível perceber algumas características marcantes do cineasta que ficariam muito conhecidas ao longo de sua obra: visão cômica acerca de diversos fatos da vida cotidiana e política utilizando-se de uma linguagem culta e ao mesmo tempo acessível. Uma de suas maiores ambições era a de conseguir escrever roteiros atraentes sobre assuntos sérios. Todavia, com o seu talento idiossincrático e bastante original ele conseguiu ao longo dos anos o status de gênio do cinema. Trabalhar com Woody Allen é considerado uma honra no mundo do cinema. Várias estrelas aceitam atuar em seus filmes recebendo o valor mínimo do sindicato. É compreensível, pois ter um filme de Allen no currículo concede prestígio. Paradoxalmente, é preciso reconhecer que Woody Allen não é um cineasta particularmente técnico, como alguns de seus colegas de geração: Copolla, Scorsese, Spielberg dentre outros. Embora tenha realizado obras impecáveis, do ponto de vista fotográfico e edição, como Manhattan (1979) e Crimes e Pecados (1989), tal qualidade nem sempre transparece no produto final que lança nos cinemas. O crítico de cinema Pablo Villaça, do site “Cinema em Cena”, em um podcast1 dedicado a obra do cineasta, do qual participou a professora Dra. Ana Lúcia Andrade, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), definiu essa característica de Allen como sendo fruto de certa impaciência com o tempo de maturação da produção artística. Para Villaça, Woody Allen, sobretudo nas últimas décadas, tem filmado sempre o primeiro tratamento no roteiro. O curto espaço de tempo entre um filme e outro parece dar razão ao crítico brasileiro, que, embora tenha tecido essa observação, reconhece todos os méritos do

62 1 Esse podcast (conversas gravadas e publicadas em sites da internet) foi colocado no ar no dia 19 de dezembro de 2013. Ver o link: http://www.cinemaemcena.com.br/plus/modulos/noticias/ler.php?cdnoticia=51758 Página Revista PLURAIS – Virtual – v.4, n.2 – 2014 – ISSN: 2238-3751

diretor. Realmente, independentemente dos méritos individuais de cada obra que lança, sua produtividade é um fato incontestável. Com cerca de cinquenta filmes em seu currículo, é espantoso acreditar que Woody Allen ainda diz que quando chega ao set de filmagem não sabe exatamente de que forma a cena será filmada. Diferente de muitos diretores que planejam cada passo do filme na pré- produção não dando chance ao acaso, filmando a mesma tomada por diversas vezes, para alcançar a perfeição técnica. É possível que isso ocorra pelo fato de que o seu ponto forte esteja focalizado nos diálogos ou mais precisamente nos roteiros, já que é ele quem os escreve. Como já dizia o cineasta Stanley Kubrick, Woody Allen é livre para fazer os seus próprios filmes e este é um dos fatores que o diferencia dos demais diretores. Escreve o seu próprio roteiro, decide com quem quer trabalhar e vai para o set de filmagem livre para realizar o seu trabalho. É curioso que, ao mesmo tempo em que foi conquistando grande prestígio artístico junto à crítica e ao público mais sofisticado, Woody Allen cultivou uma imagem pública fortemente calcada em elementos de personalidade tidos como fracos. Para o grande público, e é importante lembrar que Woody Allen foi lançado no cinema em grandes produções, contracenando com astros como Peter Sellers e David Niven, chegando a fazer uma versão cômica de um vilão de James Bond, ele era um homem hipocondríaco, neurótico, medroso, desajeitado e nada sedutor. Nesse sentido, é importante verificar a presença do cineasta na imprensa popularesca e jornalística. É justamente nesses meios de comunicação que se construiu a imagem pública de Woody Allen. Um bom exemplo está no fascículo 26 do suplemento cultural O Mundo Cinema, que vinha encartado no número 192 da revista Caras, uma publicação dirigida para o público das classes média e alta, há uma reportagem que representa bem a figura pública que Woody Allen cultivava nos anos de 1970, 1980, com resquícios nos de 1990.

Ele é baixo e já quis ser jogador de basquete na infância. Anos depois, mesmo com a sua magreza sonhou empunhar luvas de boxe. Sua terceira deficiência, a miopia, o revelou ao mundo como um gênio do cinema e um dos maiores cronistas da vida nova-iorquina do século 20 (1992, p. 4).

O perfil descrito é tão genérico que não é sequer assinado por nenhum autor. Traça

uma relação inexplicável entre miopia e genialidade, como que sugerindo que basta usar 63 Página Revista PLURAIS – Virtual – v.4, n.2 – 2014 – ISSN: 2238-3751

óculos para ser inteligente. Não existem categorias de boxe para pessoas leves, como peso pena ou peso mosca? E quem é inteligente, claro, não pode ser grande e forte? Na edição de 04 de outubro de 2000 da revista Veja, na época do lançamento de Celebridades (1998), a crítica Isabela Boscov refletiu sobre a relação pessoal de Allen com sua condição de homem célebre, principal tema do filme, que dialogava com A doce vida (1960), de Fellini. Segundo Boscov,

para todos os efeitos, Woody Allen detesta ser uma celebridade. Bate ponto no badalado restaurante Elaine’s em Nova Iorque, mas não tolera que o abordem. Usufrui com gosto os privilégios alcançados em quatro décadas de prestígio (...), mas desdenha de quem não fez por merecer a fama, como ele. Também jura não ligar para opinião alheia. No entanto, segundo revela uma biografia do diretor recentemente lançada nos Estados Unidos, The Unruly Life of Woody Allen (A vida conturbada de Woody Allen), ele corteja os críticos de cinema com bilhetinhos, almoços e sessões especiais. Essa relação de amor e ódio com o sucesso fica evidente na comédia Celebridades (2000, p. 222).

Certamente, uma perspectiva sem concessões quanto à figura pública do cineasta, que, de certa forma o humaniza. Porém, contraditoriamente, na mesma matéria, Boscov publicou um box reafirmando a versão anedótica e mitológica sobre ele, na qual diz que

Allen não varia de cardápio do almoço há mais ou menos 45 anos: todos os dias, come um sanduíche de atum no pão branco (...). O diretor converteu o terraço de sua cobertura dupla num prédio da 5º avenida, em Nova Iorque, em um luxuoso jardim. Mas nunca o frequenta, com medo de encontrar insetos. Pior: quando ia a uma casa de campo visitar seus filhos adotivos, fazia questão de circular protegido por um traje de apicultor (2000, p. 222).

Um conjunto de clichês óbvios colocados juntos para dar a ideia de que Allen é um homem excêntrico, levemente louco, um louco simpático que pode ser consumido sem contra indicação. Mistura ator e personagem. Certamente não foram citados por acaso, fazendo parte de uma estratégia de construção de imagem. O jornalista Ruy Castro lembra que em 1991 o crítico canadense Eric Lax lançou uma biografia autorizada de Woody Allen na qual “se conta a história que Woody gostaria que fosse a oficial: a de um gênio tímido, inseguro, neurótico, mas decente e adorável, mais ou menos como o personagem de seus filmes” (2006, p. 359 – 360).

Ele explorou de forma consciente e fortemente essa imagem. Inclusive em mídias diversas ao cinema. No começo da década de 1980 foi publicada uma tira de jornal tendo

Woody Allen como personagem. As tiras eram assinadas por um artista conhecido apenas 64

como Hample. Foram feitas basicamente para aproveitar o sucesso do filme Annie Hall Página Revista PLURAIS – Virtual – v.4, n.2 – 2014 – ISSN: 2238-3751

(1977), pelo qual o cineasta ganhou os Oscar de melhor filme, diretor, roteiro e atriz para Diane Keaton. Posteriormente, uma coletânea dessas tiras foi publicada sob o título de A Vida Privada de Woody Allen. No Brasil as tiras saiam pelo jornal O Globo, sendo que a coletânea em livro foi lançada pela editora Record.2 Analisar algumas passagens dessa obra pode ser interessante para compreendermos alguns aspectos de construção de sua imagem pública.

Figura 01: Capa da revista em quadrinhos A vida Privada de Woody Allen.

A capa de A vida Privada de Woody Allen, por exemplo, é definidora. Mostra Woody Allen, desenhado de modo a enfatizar certa fragilidade física e óbvia fragilidade psicológica, deitado em um divã de psicanalista, com olhos arregalados, olhando para o nada. Sentada ao

lado, empunhando caneta e caderneta, uma psicanalista corpulenta, que descobriremos no

decorrer das tiras se chamar Dra. Fobick, visivelmente mais forte que o paciente e com ar 65

2 HAMPLE. A Vida Privada de Woody Allen. Rio de Janeiro: Record, 1981. Página Revista PLURAIS – Virtual – v.4, n.2 – 2014 – ISSN: 2238-3751

dominador e profissional. Os cabelos da psicanalista são ruivos. Assim como os de Woody Allen. Os criadores da tira parecem sugerir que ela poderia ser sua mãe, e que de fato o domina como uma típica mãe judia. A sugestão do Complexo de Édipo é evidente. Um elemento recorrente na tira é a questão da psicanálise. Luiz Bolognesi acredita que “talvez seja legítimo considerar a obra de Woody Allen como a adaptação literária de Freud para o cinema, aliando à transposição do suporte artístico uma segunda transmutação sui generis de ciência em comédia” (2009, p. 149). De fato, Woody Allen, como parte de sua estratégia de promoção, sempre reforçou o fato de que seria um paciente perpétuo. Que faz análise há décadas. Essa característica de seu personagem tira vantagem do fato de que determinados conceitos complexos da psicanálise foram vulgarizados e incorporados ao vocabulário cotidiano. É comum se usar expressões como “fulano é neurótico” ou “cicrano é narcisista” sem levar em conta seu aspecto de referência médica. De acordo com Dory Rotnemer e Marc-Alain Ouaknin, autores d’A Bíblia do humor judaico, a questão da identidade é elemento central do pensamento freudiano. Acreditam que

a questão da identidade está no centro da problemática do judeu. Tendo historicamente vivido em países que nem sempre o consideravam cidadão a 100%, o judeu criou-se uma identidade em movimento que, por vezes, se exprimia de forma patológica, da simples neurose à psicose. Woody Allen e os seus personagens constituem a encenação dessa questão (1997, p. 31).

Nesse contexto, não se pode desconsiderar o fato de que as bases da moderna psicanálise foram uma criação judaica, baseada nas pesquisas do judeu austríaco Sigmund Freud. “O núcleo da obra de Freud, seu conceito de repressão, parece-me profundamente judaico. A memória e o esquecimento freudiano são uma verdadeira memória e esquecimento judaicos” (BLOOM, 2012, p. 167). Corroborando com Bloom, Dory Rotnemer e Marc-Alain Ouaknin acreditam que

a questão de Freud é a identidade. Judeu ou austríaco? (...) a identidade é paradoxalmente uma “mistura” de identidades; a identidade ontológica deve ser restituída ao riso cômico. Em Freud, essa “mistura” pode resumir-se numa fórmula que ele próprio empregou “um judeu sem Deus” (1997, p. 35).

Perspectiva essa que agrada muito Woody Allen, aproximando-se de diversas

declarações dadas ao longo de sua carreira e também perceptível em muitos de seus filmes.

Porém, não é nossa intenção aprofundar a questão da psicanálise. Citamos tal 66 especialidade médica na medida em que surge nas piadas presentes da HQ que analisamos.

Trata-se de um debate profundo e difícil, estando além dos limites dessa pesquisa, mas sua Página Revista PLURAIS – Virtual – v.4, n.2 – 2014 – ISSN: 2238-3751

presença constante nas tiras não pode ser ignorado, uma vez que Woody Allen, ou o autor da tira que se inspira em sua figura estabelecida no cinema, usa tais referências para fazer humor, simplificando-as e vulgarizando-as para tornar a piada compreensível ao público leitor da tira em quadrinhos. Algo que fica ainda mais claro na página 05, na qual Woody Allen, num balão de pensamento, reflete: “Que bom que a Dra. Fobick concordou em me receber aos domingos. Senão ia me sentir desprotegido os sete dias da semana”. A tira, traduzido para o português por Domingos Demasi, foi criada em inglês. Fobia em inglês é “phobia”, talvez seja aceitável pensar que Fobick venha desse sentido.

Figura 02: Página 05 da revista em quadrinhos A vida Privada de Woody Allen. 67

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Allen, na tira, tem medo de tudo. Medo físico, de homens mais fortes, mas, sobretudo, medo da rejeição feminina. É sobre isso que ele conversa com sua analista e é esse o tema da tira da página 08, na qual ele compra um livro para tentar impressionar uma garota. Temendo parecer pedante usando Sartre, compra um romance de Mario Puzo que ganhou adaptação para o cinema intitulado O Poderoso Chefão (1972), considerado um autor de entretenimento, para parecer “modesto”. Obviamente, visando gerar o efeito humorístico, sua escolha foi equivocada.

Figura 03: Página 08 da revista em quadrinhos A vida privada de Woody Allen. 68

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Na página 26, Woody Allen, novamente para impressionar uma garota, tenta imitar um de seus ídolos: . Não apenas o ator Bogart, mas diversos de seus personagens. Em 1973 ele estrelou Sonhos de um Sedutor (1972), dirigido por Hebert Ross com roteiro seu, em que seu personagem recebe instruções amorosas do fantasma de Bogart. É uma tira que exige certa erudição em termos de cinema para entender as piadas que se sucedem, com Allen tentando encarnar seu herói sucessivamente em Casablanca (1942), A Floresta Petrificada (1936), Sonho Eterno (1940) e O tesouro de Sierra Madre (1948). É importante perceber que, nessa sucessão de papeis, Bogart evolui de um galã cínico para um vilão perigoso até chegar num pobre coitado vítima da cobiça e da febre do ouro, que cai em desgraça. Assim como Allen que é abandonado pela garota. Sua face de cinéfilo descreve sua vocação para derrota. Um fã de Bogart não é Bogart. Da mesma forma que esse Woody Allen perdedor e fraco, não é o verdadeiro Woody Allen, mas uma criação deste, para fazer humor mediante a derrota e a auto-depreciação. Segundo o escritor judeu Philip Roth, “a auto- depreciação, afinal de contas, é uma forma clássica de humor judaico” (2013, p. 225).

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Figura 04: Página 26 da revista em quadrinhos A vida Privada de Woody Allen. Página Revista PLURAIS – Virtual – v.4, n.2 – 2014 – ISSN: 2238-3751

A imagem pública de Woody Allen, apesar de ter sido esboçada e desenvolvida em outros filmes, foi definitivamente sedimentada no imaginário coletivo em Annie Hall (1977). Nesse filme há uma rápida cena em animação, assinada por Chris Ishii, que provavelmente inspirou Hample na criação da tira em quadrinhos de Woody Allen. Aparece nessa breve sequência o personagem de Allen admitindo que quando assistiu Branca de Neve e os sete anões (1937), da Disney, gostou mais da Rainha Má do que da heroína boazinha.

Figura 05: fotograma de Annie Hall (1977). Tempo: 0:53:56.

Nesse fotograma especificamente é possível analisar a imagem na forma de um panorama sobre a eterna Guerra dos Sexos, tema central de muitos de seus filmes. O personagem de Allen, transfigurado em desenho animado, compara seu par romântico, Annie Hall, com a Rainha Má. Para ele, perdido em seu machismo, só existe um motivo para uma mulher ficar irritada: menstruação. A Rainha, levando as mãos a cabeça, contesta impaciente. Enquanto isso, chega um amigo de Allen, inspirado no ator Tony Roberts, e, numa combinação típica do chamado Clube do Bolinha, um clube só para meninas, diz que ele não precisa agüentar a chatice feminina, pois pode lhe conseguir muitas outras mulheres. Acima

deles, um corvo preto, talvez fazendo referência ao famoso corvo do poema de Edgar Alan

Poe olha de modo irritado para a dupla de machistas, como quem diz “nunca mais”, como no 70 Página Revista PLURAIS – Virtual – v.4, n.2 – 2014 – ISSN: 2238-3751

poema. E de fato, o personagem de Allen, após terminar sua relação com Annie Hall, jamais encontra outra que o deixa satisfeito. Com isso ficou definida a figura de Woody Allen como um infeliz no amor. Imagem essa que foi sendo lenta e gradativamente abandonada. A partir da metade da década de 1990 esse perfil mudou. A figura pública fica cada vez mais desligada do criador, enfatizando-se que ele é um ator interpretando um personagem. É provável que os escândalos em sua vida pessoal, as muitas declarações e acusações da ex-esposa Mia Farrow, tenham contribuído para essa mudança de imagem. Seja como for, o fato é que Woody Allen a abraçou e, em certo sentido, esforçou-se para ser levado mais a sério. Cristalizou sua imagem de cronista intelectualizado do mundo moderno, recebendo a declaração de Ruy Castro que reforça sua impressão de que “os problemas de seus personagens são nossos problemas, seu mundo é nosso mundo, e que bom que à minoria de que fazemos parte – a dos adultos, não importa a idade – o tenha como seu porta-voz” (2006, p. 358). Julgando por suas entrevistas, parece que é nessa condição de porta-voz do espectador adulto que Allen se sente confortável. Não que tenha feito campanhas para mudar sua imagem do passado. Simplesmente deixou de fomentá-la, seja mediante produtos artísticos, seja por meio de aparições públicas e entrevistas. Saído da sucessão de escândalos com a imagem um tanto arranhada, mas também fortalecida enquanto “homem de opinião”, que não se importa com o que pensam dele, Woody Allen tem vivido os últimos anos não mais como um comediante popular, que eventualmente faz sucesso de bilheteria, mas como um cineasta cult, que aproximou-se da Europa e que possui um público considerável, que amadureceu junto com ele, e que embora não seja muito grande, é fiel. Para esse público, o Woody Allen “artista completo”, que escreve, atua e dirige, é mais importante do que o Woody Allen engraçado e neurótico vendido nas décadas passadas. Apesar de não ser um campeão de bilheterias, Allen possui um público que acompanha os seus trabalhos, sobretudo desde o início de sua carreira na mídia. É possível perceber isso no documentário Um Retrato de Woody Allen (1996). A cineasta Barbara Kopple o acompanhou durante 23 dias em uma turnê pela Europa com sua banda de jazz. O público não ia necessariamente para assistir Woody Allen tocar o seu clarinete. Ao serem entrevistadas, as pessoas destacavam a curiosidade de ver o cineasta tocando e não o músico. Muitos se

surpreendiam positivamente com a qualidade do espetáculo. 71 Página Revista PLURAIS – Virtual – v.4, n.2 – 2014 – ISSN: 2238-3751

O mesmo vale para sua carreira como escritor. Segundo Ruy Castro, “nem pensem que escrever seja uma atividade secundária para Woody. Seu primeiro sonho na vida real não foi ser o novo Chaplin ou Keaton, mas o de ser o novo Benchley ou Perelman” (s/d, p. 06). Woody Allen é colaborador constante da revista New Yorker, publicando contos e crônicas. Escreve também peças, sendo que muitas delas foram editadas no Brasil. Não é por acaso que em muitos de seus filmes o projeto de vida do protagonista é escrever um livro, ou não apenas um livro, mas o “Grande Romance Americano”. Isaac, o protagonista de sua obra-prima Manhattan (1979), é o exemplo mais notável, mas o mesmo acontece em Celebridades (1998), Annie Hall (1977) e mesmo Desconstruindo Harry (1997), inspirado no clássico Morangos Silvestres (1957), de Ingmar Bergman, além do recente Você vai conhecer o homem de seus sonhos (2010). Curiosamente, em grande parte das vezes esses personagens são escritores que não escrevem ou que estão em crise criativa. Apesar de tudo isso, o sucesso de Woody Allen, é preciso lembrar, costuma ser apontado como sendo maior fora do que dentro dos Estados Unidos. Ele é mais reconhecido na Europa, particularmente na França. Se Manhattan é a casa de Woody Allen, Paris é o seu quintal: é onde ele brinca e se diverte, como ficou provado no documentário Um Retrato de Woody Allen (1996), no qual o cineasta excursiona pela Europa com sua banda de jazz. Nesse caso, a recíproca é verdadeira. Os franceses não se cansam de homenageá-lo. O mais novo exemplar dessa tradição é Paris-Manhattan (2012). O título remete ao longa-metragem cult Paris, Texas (1984), mas ao contrário do pesado drama dirigido pelo cineasta alemão Wim Wenders, o filme da diretora Sophie Lellouche é uma comédia romântica leve, divertida e por incrível que pareça, surpreendente. Os franceses são os principais responsáveis pelo nascimento do cinema. Foi na França do século XIX que foi realizada a primeira exibição pública do que viria a ser considerada a sétima arte. O cinema francês lançou importantes cineastas, como François Truffaut, Jean-Luc Godard e Claude Chabrol. Foram também os franceses os principais responsáveis pela sedimentação de um definitivo reconhecimento artístico a Woody Allen. A despeito de seus prêmios Oscar, Woody Allen nunca rendeu grandes bilheterias em seu país natal. Em Hollywood o prestígio é medido por números. Nos Estados Unidos sempre foi basicamente um cineasta independente

infiltrado no sistema de estúdios. Na França não. Na Terra do baixinho Napoleão, o baixinho 72

Woody Allen é considerado um gigante. Paris-Manhattan (2012) é prova desse fato. O filme Página Revista PLURAIS – Virtual – v.4, n.2 – 2014 – ISSN: 2238-3751

é uma homenagem ao cineasta norte-americano. Justa, pois se a Ilha de Manhattan, em Nova Iorque, a cidade mais importante do mundo, é o palco principal para as suas tramas, foi em Paris que Woody Allen voltou ao topo ao lançar Meia-Noite em Paris, em 2011. O filme ganhou o Oscar de melhor roteiro original e o recolocou no mercado. Mas por que Woody Allen? É isso que todos perguntam a Alice (Alice Taglioni), a protagonista, uma jovem farmacêutica que, segundo seus pais, está passando da hora de se casar. Sua família faz de tudo para que ela encontre um pretendente. Alice é uma grande fã de Woody Allen. Tanto que chega a recomendar seus filmes como parte do tratamento para a cura de algumas doenças ou solução para problemas emocionais. Importante notar que além de ser obcecada por Woody Allen, Alice é, antes de tudo, uma cinéfila, uma amante do cinema. Recomenda também outros filmes como, por exemplo, os do diretor Claude Lelouch. É assim que o longa faz pensar na possibilidade de viver mudanças por meio do cinema. Assistir Paris-Manhattan fez-me lembrar do livro Como Woody Allen pode mudar sua vida (2012), do doutor em psicologia e psicoterapia Éric Vartzbed. A sua principal reflexão, para além do potencial estético dos filmes de Woody Allen, é perceber o quanto um filme possibilita diversas leituras dependendo da sensibilidade e atenção do espectador. Talvez por isso a diretora Sophie Lellouche, possivelmente ela mesma uma “Woody Girl”, elegeu Allen para ser o fio condutor da trama. Ela acredita que seus filmes são extremamente ricos por abordarem temas como amor, sexo, religião, filosofia e moral. Paris-Manhattan destaca também uma família “diferente”. É assim que Alice descreve a sua família para seu pretendente Victor (Patrick Bruel), um homem que trabalha em uma empresa de alarmes de segurança. Sem conseguir ser compreendida em casa, Alice conversa com Woody Allen sobre suas angústias, dúvidas, alegrias e tristezas. Woody Allen foi apresentado a Alice quando ela tinha 15 anos. Daí em diante ela nutre uma total admiração e até mesmo se identifica com muitas histórias de seus filmes. E para contar com a compreensão e ombro amigo do cineasta ela tem um retrato de “seu Woody” no quarto. A trama é recheada de citações da obra de Woody Allen e de sua mitologia pessoal. Logo no início do longa vemos uma cena de Hannah e suas Irmãs (1986) em que o personagem hipocondríaco interpretado por Woody Allen, Mickey Saxe, vai ao médico suspeitando ter desenvolvido um tumor no cérebro. Cole Porter aparece como ídolo musical

de Alice. Claro, Porter é um dos ídolos de Woody Allen, um apaixonado por jazz, que lhe deu 73

muito destaque em Meia-Noite em Paris (2011). Resta saber se a admiração de Alice por Página Revista PLURAIS – Virtual – v.4, n.2 – 2014 – ISSN: 2238-3751

Porter é real ou mera imitação. O filme não esclarece e é melhor assim, deixando a personagem mais complexa. Em meio a decepções e questionamentos sobre sua vida, Alice se vê na mesma condição em que o personagem Isaac do filme Manhattan (1979), e, como ele, faz-se a seguinte pergunta: Por que vale a pena viver? Essa que é uma das mais famosas cenas da filmografia de Woody Allen e que também é homenageada em Paris-Manhattan. Da mesma forma Match Point (2005) é citado. Aparece em um cartaz na entrada de um cinema. Espelha o dilema vivido pela protagonista, que deve escolher entre um homem gentil, bonito, que gosta de arte, mas que se mostra um tanto distante, e um homem simples mas sempre presente, e que está a procura de uma mulher interessante. A comédia cínica Tudo pode dar Certo (2010) também é lembrada, quando Alice tenta adotar um sentido otimista para o que nos parece totalmente pessimista. Os filmes Um assaltante bem Trapalhão (1969), Um misterioso assassinato em Manhattan (1993) e Tiros na Broadway (1994) aparecem em cena quando a farmácia de Alice é assaltada. Ao passar o dinheiro e objetos para o assaltante, ela também entrega essas pérolas de Woody Allen. Certo dia, tomando café em uma padaria, ela reencontra por acaso o assaltante que, ao que parece, após ter assistido aos filmes, repensou a vida e se regenerou. Talvez uma ironia do roteiro com o pessimismo de Woody Allen. O assaltante tenta, timidamente, devolver os filmes. Alice não aceita, dizendo que não precisa mais deles. Está começando a se livrar do fantasma do ídolo para começar a viver a própria vida. Sem deixar de admirá-lo, mas parando de usá-lo como suporte emocional. Algo inesperado no filme acontece. Talvez como forma de demonstrar agradecimento e respeito aos franceses, Woody Allen prestigia o filme e o espectador com sua presença no longa. Aparece em pessoa. A voz que ouvimos nos diálogos entre Alice e Woody Allen são do próprio cineasta, não de um hábil imitador ou fruto de efeitos técnicos de som, como o espectador é levado inicialmente a crer. Possivelmente, Woody Allen fez sua participação enquanto filmava, ou durante a pré ou pós-produção, de Meia-Noite em Paris (2011), já que Paris-Manhattan foi filmada em 2011. Essa surpresa final, de certa forma um presente inesperado ao espectador, não é gratuita. De maneira discreta, o roteiro constrói essa possibilidade desde o começo. Em vários

momentos, diante das cantadas baratas de Victor, Alice pergunta: “É o melhor que pode 74

fazer?” Por ironia do destino e “deus ex machina” do roteiro, Victor consegue dar o melhor Página Revista PLURAIS – Virtual – v.4, n.2 – 2014 – ISSN: 2238-3751

para Alice: proporciona um encontro com o seu grande ídolo, Woody Allen. O momento final de Paris-Manhattan lembra a última cena de Manhattan (1979). Enquanto Isaac, personagem interpretado por Woody Allen, corria pelas ruas de Nova Iorque para não perder Tracy, que estava de viagem marcada para a Europa, Alice corria para o hotel no qual Woody Allen estava hospedado, de viagem marcada para a América. Mudam os lados do Oceano, mas o desejo do encontro ainda é o tema. Mas, infelizmente, diferente de Isaac, Alice chega atrasada. Se fosse um drama ao estilo de Bergman, como A Outra (1988) e Interiores (1978), o filme acabava aí, mas Paris-Manhattan se propõe a deixar o espectador feliz, como o próprio Woody Allen fez em A Era do Rádio (1987) e Meia-Noite em Paris (2011). O cineasta percebe que esqueceu seu clarinete e volta para buscar. Na porta do hotel, testemunha uma cena romântica entre Alice e Victor e não se furta em dizer para a “Woody Girl” que Victor é “o cara”. Com um sorriso no rosto, Victor declara que “aquilo é o melhor que ele pode fazer”. O espectador não duvida. Filmes-homenagem como Paris-Manhattan (2011) são interessantes para mostrar a evolução da figura pública de Woody Allen. Do neurótico temeroso da rejeição feminina das décadas de 1970 e 1980, tornou-se um sábio conselheiro amoroso. O que demonstra ao mesmo tempo a evolução do pensamento europeu quanto ao judaísmo. O sucesso de Woody Allen na Europa vem a despeito dele reafirmar a todo o momento suas origens judaicas. Segundo Gerald Messadié, autor de História geral do anti- semitismo, “o anti-semistimo das Américas constituiu-se, pois, em um pálido reflexo do anti- semitismo europeu” (2003, p. 294). Ainda de acordo com Gerald Messadié,

o anti-semitismo conheceu três épocas principais de extensão desigual. A primeira, pré-cristã, foi causada essencialmente pelo irredentismo de uma grande parcela do povo judeu do Mediterrâneo oriental e sua recusa legitima a se submeter ao jugo estrangeiro, qualquer que ele fosse, religioso, cultural ou político (...). A segunda época, a mais longa, começou com o conflito entre a Igreja cristã nascente e a religião da qual ela foi derivada (...) A terceira, desencadeada com o crescimento dos nacionalistas, terminou com a Shoah e a derrota do Terceiro Reich (2003, p. 400- 401).

Em somatória a essas ideias de Messadié acrescento mais uma fase a essa longa

história do anti-semitismo: a demonização dos judeus verificada no mundo contemporâneo 75 em função da problemática em torno da Questão Palestina. Fora dos Estados Unidos,

sobretudo na Europa e na América do Sul, é encontrado um cenário de forte apoio aos árabes Página Revista PLURAIS – Virtual – v.4, n.2 – 2014 – ISSN: 2238-3751

muçulmanos. Não é de nosso interesse problematizar essa questão, que é repleta de desdobramentos, mas ainda assim não podemos deixar de notar o quanto é curioso perceber a força do cinema nesse contexto. Notemos, por exemplo, o filme Bastardos Inglórios (2009), do cineasta Quentin Tarantino, no qual guerrilheiros judeus metralharam Hitler no final da narrativa, provocando inúmeros episódios de catarse nos cinemas mundo afora. A manipulação emocional gerada pelo cinema é capaz de fazer um jovem intelectual, leitor de Joe Sacco, pró-palestina, torcer momentaneamente pelos judeus, mediante a lembrança de que a nação hebraica passou pelo holocausto. Nos filmes de Woody Allen não há uma manipulação tão explícita dos sentidos, tampouco da história, Allen não “matou” Hitler em um cinema em chamas, limita-se a citá-lo de maneira jocosa, eventualmente ridicularizando-o por meio de falas dinâmicas, que exigem do espectador certo conhecimento prévio do contexto da Segunda Guerra Mundial. Mas para além de ser um judeu americano, condição inescapável, uma vez que se refere às circunstâncias de seu nascimento e contexto cultural original, Woody Allen se coloca como um artista judeu? Talvez isso seja duvidoso, pois pensar nesse tipo de militância parece um tanto anacrônico. No livro com o sintomático título de Abaixo as Verdades Sagradas, o crítico literário Harold Bloom escreveu que “Freud e Kafka nos lembram (...) que cabe a todos os intelectuais judeus contemporâneos reconhecer que são produtos de uma ruptura com a tradição, por muito que anseiem pela continuidade” (BLOOM, 2012, p. 165). Essa ruptura com a tradição foi ironizada numa cena de Annie Hall (1977), onde o personagem interpretado por Allen, o comediante Alvy Singer, participa de um almoço de Páscoa na casa dos pais de sua namorada Annie, interpretada por sua primeira e mais importante musa, Diane Keaton. Trata-se de uma família tipicamente WASP 3de americanos suburbanos e republicanos. Alvy Singer está vestido normalmente para a ocasião, mas a avó olha para ele e só consegue ver um judeu ortodoxo, de longas barbas e cabelos em caracol, vestido de casacão e chapéu preto. A mãe de Annie interrompe o silêncio constrangedor com uma provocação velada, falando para a sua mãe, avó de Annie que:

MÃE DE ANNIE: Muito bom o presunto esse ano. ANNIE: Vovó sempre cozinha muito bem. PAI DE ANNIE: O molho é ótimo! ALVY: Verdade, está demais. (...) 76 3WASP é uma sigla em inglês “White, anglo-saxon and prostestant” ou, traduzindo para o português, significa o cidadão “branco, anglo-saxão e protestante”. Página Revista PLURAIS – Virtual – v.4, n.2 – 2014 – ISSN: 2238-3751

ALVY (falando com a câmera): Não acredito nessa família. A mãe de Annie é muito bonita. Falam sobre feiras e marinas de barco. A velha na ponta da mesa odeia judeus. Têm cara de americanos saudáveis, como se nunca tivessem adoecido. Nada como a minha família, as duas são como água e óleo (0:45:30).

Nesse momento a tela se divide em duas. De um lado o almoço de páscoa silencioso e tenso na casa da família WASP, do outro uma refeição barulhenta e informal na casa da família judaica, onde todos fofocam sobra a vida dos vizinhos e comem, sintomaticamente, costeletas de porco. Carne de suínos é um alimento proibido na dieta dos judeus ortodoxos. A família de Alvy, judeus que assimilaram a cultura americana, não cumpre tal restrição alimentar. Restrição que é salientada pelo comentário feito pela mãe de Annie para a avó. O que se discute aqui é a imagem estereotipada que os gentios teriam sobre o judeu. E, por outro lado, a que o judeu Alvy tem sobre o mundo artificialmente perfeito dos WASP. O escritor judeu Phillip Roth, no romance O Complexo de Portnoy, reflete sobre essa troca de impressões estereotipadas que se transforma em intolerância. Para o personagem narrador do romance,

a indignação, a repulsa que meus pais sentiam pelos gentios estava começando a fazer sentido: os góis se achavam especiais, enquanto na verdade nós é que éramos moralmente superiores a eles. E o que nos tornava superiores não era outra coisa senão o ódio e o desrespeito que eles despejavam sobre nós com tanto gosto! Mas... e o ódio que despejávamos sobre eles? (2013, p. 54).

Assim como Roth, Allen é totalmente consciente dessa via de mão dupla de preconceitos. Contudo, diferente de outros artistas, Allen não prega tolerância de maneira simplista e politicamente correta. Opta por ridicularizar a intolerância por ela mesma, simplesmente mostrando-a de maneira explícita e, até certo ponto, exagerada ao ponto do grotesco. Seu público é fundamentalmente gói, mas também fundamentalmente esclarecido o suficiente para perceber sua estratégia e compactuar com ela. O cineasta conta sempre com a inteligência de seu espectador. Woody Allen, em sua produção fartamente ancorada numa perspectiva cosmopolita de mundo, até porque Nova Iorque é uma das mais cosmopolitas cidades do planeta, não parece querer se prender a rótulos culturais. Não foge deles, e até faz questão de discuti-los em determinados momentos, mas não os transformam em camisas de força. Mais do que

cultura judaica, sua matéria-prima é a cultura humana. E sua História. Sendo que muitas vezes

essa história é mediada a partir de sua experiência pessoal. 77

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