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DO LAMBDA AO BAZINGA! Transformações E Recriações Culturais No Universo Nerd

DO LAMBDA AO BAZINGA! Transformações E Recriações Culturais No Universo Nerd

UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO DIRETORIA DE PÓS GRADUAÇÃO E PESQUISA Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social

ANDERSON ALVES DA ROCHA

DO LAMBDA AO BAZINGA! Transformações e recriações culturais no universo Nerd

São Bernardo do Campo, 2020

UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO DIRETORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social

ANDERSON ALVES DA ROCHA

DO LAMBDA AO BAZINGA! Transformações e recriações culturais no universo Nerd

Tese apresentada em cumprimento às exigências do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Metodista de São Paulo (UMESP), área de concentração: Processos Comunicacionais e linha de pesquisa: Comunicação midiática, processos e práticas culturais, como requisito para a obtenção do grau de Doutor em Comunicação. Orientador: Prof. Dr. Herom Vargas

São Bernardo do Campo, 2020

FICHA CATALOGRÁFICA

R582d Rocha, Anderson Alves da Do Lambda ao Bazinga!: transformações e recriações culturais no universo nerd / Anderson Alves da Rocha. 2020. 217 p.

Tese (Doutorado em Comunicação Social) --Diretoria de Pós-Graduação e Pesquisa da Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2020. Orientação de: Herom Vargas.

1. Cultura popular 2. Comunicação de massa e cultura 3. Mídia e cultura I. Título. CDD 302.2

FOLHA DE APROVAÇÃO

A Tese “DO LAMBDA AO BAZINGA! Transformações e recriações culturais no universo Nerd” elaborada por Anderson Alves da Rocha foi defendida e aprovada no dia 16 de setembro de 2020, perante banca examinadora composta por Prof. Dr. Herom Vargas (Presidente/UMESP), Prof. Dr. Mateus Yuri Ribeiro da Silva Passos (Titular/UMESP), Profa. Dra. Zuleika de Paula Bueno (Titular/UEM), Profa. Dra. Monica Rebecca Ferrari (Titular/ESPM) e Prof. Prof. Dr. Antonio Roberto Chiachiri Filho (Titular/ UMESP).

______Prof. Dr. Herom Vargas Orientador e Presidente da Banca Examinadora

______Prof. Dr. Vander Casaqui Coordenador do Programa de Pós-Graduação

Programa: Pós-Graduação em Comunicação Social Área de Concentração UMESP: Processos Comunicacionais. Linha de Pesquisa: Comunicação midiática, processos e práticas culturais

While I subscribe to the “Many Worlds” theory, which posits the existence of an infinite number of Andersons in an infinite number of universes, I assure you that in none of them am I happy without my Priscila

Excelsior! ― Stan Lee

AGRADECIMENTOS

Eu sempre agradeço a Deus pela oportunidade. Tento manter consciência das oportunidades que tive para estudar, praticar esportes, cuidar da saúde física e mental. Sempre tive suporte de todos os tipos. Por esse apoio constante eu agradeço ao meus pais, Vera Lucia e Genésio. Sou muito grato por me proporcionarem grande parte das oportunidades na vida. Sem o apoio deles, minhas conquistas seriam muito mais difíceis. Agradeço a minha irmã Dayane pela amizade e companheirismo. Em muitas coisas ela foi um exemplo. Minha família toda, cada um à sua maneira foi um exemplo. Agradeço a minha esposa Priscila. Não por ser minha esposa, mas por ser minha amiga, companheira e suporte em tudo na vida. Obrigado, Pri, pelas correções na tese, pelo apoio quando eu estava mal humorado e pelo carinho nos momentos de tensão. Eu não sei como poderei retribuir todo o suporte e paciência. Você é um exemplo constante de dedicação. Ao Celso e Ivonete, meus sogros, uma família que me acolheu e apoiou sempre, meu muito obrigado. Um trabalho como esse nunca é feito sozinho, muitas pessoas como minha esposa e minha família, de uma forma ou outra, contribuíram. Mas quem caminhou ao meu lado durante os mais de 4 anos dessa jornada foi meu orientador Prof. Dr. Herom Vargas, e pelos ensinamentos, correções e camaradagem eu sou muito grato. Obrigado, Herom, pelas trocas de experiência e conhecimento. Espero que esse trabalho tenha tornado você um pouco mais nerd. Agradeço ao Prof. Dr. Mateus Yuri Ribeiro da Silva Passos e ao Prof. Dr. Antonio Roberto Chiachiri Filho, docentes do programa de quem não tive a oportunidade de ser aluno, mas sou grato pela leitura e apontamentos ao trabalho, assim como agradeço à Profa. Dra. Monica Rebecca Ferrari Nunes pelas contribuições nesta pesquisa, como avaliadora e referência do trabalho. Por fim, muito obrigado à Profa. Dra. Zuleika de Paula Bueno, minha orientadora do mestrado e intelectual brilhante que eu admiro. Sou grato Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Metodista de São Paulo – PósCom, casa que sempre admirei e que abrigou pessoas que levarei para sempre comigo. Minha gratidão se estende aos funcionários e professores do programa. Especialmente àqueles com quem pude compartilhar o conhecimento, em

especial agradeço às professoras Dra. Magali Cunha e Dra. Marli dos Santos, e ao Dr. José Salvador Faro, pela sensibilidade intelectual e por me ensinar a ser professor. Agradeço aos raros governantes e governos desse país que com muito pouco estenderam a muitos estudantes o direito de buscar um curso superior, o mestrado e o doutorado. Eu recebi bolsa em parte do meu mestrado e em parte desta pesquisa de doutorado, por isso agradeço a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pelo apoio financeiro.

RESUMO ROCHA, Anderson Alves. DO LAMBDA AO BAZINGA! Transformações e recriações culturais no universo Nerd, 2020, 217 p. Tese (Doutorado em Comunicação Social) Programa de Pós Graduação em Comunicação Social. Universidade Metodista de São Paulo (UMESP, 2020). A cultura nerd representa um conjunto de ritos, práticas, signos e linguagens que, são desde sua origem articuladas, pelos veículos de comunicação. A representação dessa cultura está ligada diretamente ao ambiente de produção e consumo e ao momento histórico em que seus personagens e tramas são mostrados. É possível ver as transformações da cultura nerd, de suas representações midiáticas e de suas histórias e personagens em dois recortes no tempo, por meio da análise de produções midiáticas que pretendem representa-la. Assim, o objetivo deste trabalho é investigar os aspectos que identificam a cultura nerd em duas obras audiovisuais: o filme A Vingança dos Nerds (1984) e a série (2007 – 2019), quais suas representações por meio dos personagens, histórias e situações, quais os textos que demonstram os elementos dessa cultura, e a partir destes objetos refletir como a cultura nerd se transformou, criando novas significações e representações, hibridizando novos elementos e textos ao seu redor, como um objeto da cultura da mídia. O pressuposto é que toda cultura é dinâmica e está sempre em transformação, como sua característica fundamental, seja pelo contato com outras culturas, ou pelas transformações inerentes a cada sociedade em cada momento distinto. Para discutir essas ideias, o trabalho será pautado nos estudos da Semiótica da Cultura e também nos Estudos Culturais como arcabouço teórico. Inicialmente, a pesquisa versará sobre os conceitos fundamentais da cultura, sua relação com a comunicação de massa e midiática e suas formas de (re)significação, tendo como base as ideias de semiosfera cultural e tradução defendidos por Iuri Lótman. Na sequência, a proposta é apresentar uma definição e um histórico sobre o conceito de nerd e sobre sua cultura. Palavras-chave: Cultura Nerd; Cultura da mídia; Representações.

ABSTRACT ROCHA, Anderson Alves. FROM LAMBDA TO BAZINGA! Cultural transformations and recreations in the Nerd universe, 2020, 217 p. Thesis (Doctoral Thesis) Postgraduation Program of Social Communication. Universidade Metodista de São Paulo (UMESP, 2016). The nerd culture represents a set of rites, practices, signs and languages that, since their origin, have been articulated by the media. The representation of this culture is directly linked to the environment of production and consumption and to the historical moment in which its characters and plots are shown. It is possible to see the transformations of nerdy culture, its media representations and its stories and characters in two cuts in time, through the analysis of media productions that intend to represent it. Thus, the objective of this work is to investigate the aspects that identify nerdy culture in two audiovisual works: the movie (1984) and the series The Big Bang Theory (2007 - 2019), what are their representations through the characters, stories and situations, which texts demonstrate the elements of this culture, and from these objects reflect how the nerdy culture has been transformed, creating new meanings and representations, hybridizing new elements and texts around it, as an object of media culture. The assumption is that every culture is dynamic and is always in transformation, as its fundamental characteristic, whether through contact with other cultures, or through the transformations inherent to each society at each distinct moment. To discuss these ideas, the work will be based on the studies of Semiotics of Culture and also on Cultural Studies as a theoretical framework. Initially, the research will focus on the fundamental concepts of culture, its relationship with mass and media communication and its forms of (re) signification, based on the ideas of cultural semiosphere and translation defended by Iuri Lótman. In the sequence, the proposal is to present a definition and a history about the concept of nerd and about its culture. Keywords: Nerd Culture; Media culture; Representations.

RESUMEN ROCHA, Anderson Alves. ¡DE LAMBDA A BAZINGA! Transformaciones culturales y recreaciones en el universo Nerd., 2020. 217 p. Tese (Doctorado e Comunicación Social) Programa de Posgrado en Comunicación Social. Universidade Metodista de São Paulo (UMESP, 2016). La cultura nerd representa un conjunto de ritos, prácticas, signos e idiomas que, desde su origen, han sido articulados por los medios de comunicación. La representación de esta cultura está directamente relacionada con el entorno de producción y consumo y con el momento histórico en el que se muestran sus personajes y tramas. Es posible ver las transformaciones de la cultura nerd, sus representaciones mediáticas y sus historias y personajes en dos cortes en el tiempo, a través del análisis de las producciones mediáticas que pretenden representarla. Por lo tanto, el objetivo de este trabajo es investigar los aspectos que identifican la cultura nerd en dos obras audiovisuales: la película La Revenge of the Nerds (1984) y la serie The Big Bang Theory (2007 - 2019), cuáles son sus representaciones a través de los personajes, historias y situaciones, cuyos textos demuestran los elementos de esta cultura, y de estos objetos reflejan cómo se ha transformado la cultura nerd, creando nuevos significados y representaciones, hibridando nuevos elementos y textos a su alrededor, como un objeto de la cultura de los medios. La suposición es que cada cultura es dinámica y siempre está en transformación, como su característica fundamental, ya sea a través del contacto con otras culturas o mediante las transformaciones inherentes a cada sociedad en cada momento distinto. Para discutir estas ideas, el trabajo se basará en los estudios de Semiótica de la Cultura y también en Estudios Culturales como marco teórico. Inicialmente, la investigación se centrará en los conceptos fundamentales de la cultura, su relación con la comunicación de masas y medios y sus formas de (re) significación, basadas en las ideas de semiosfera cultural y traducción defendidas por Iuri Lótman. En la secuencia, la propuesta es presentar una definición y una historia sobre el concepto de nerd y sobre su cultura. Palabras llave: Cultura Nerd; Cultura mediática; Representaciones.

LISTA DE FIGURAS

Figura 1: A criatura Nerd no livro If I Ran a Zoo...... 91 Figura 2: Todd DiLaMuca e Lisa Loppner ...... 93 Figura 3: Tony Star, o Homem de Ferro ...... 98 Figura 4: Capa de uma edição do livro do RPG Dungeons & Dragons ...... 102 Figura 5: Os garotos jogando uma partida de Dungeons & Dragons ...... 103 Figura 6: Capa da Action Comics #1, primeira aparição do Superman ...... 111 Figura 7: Personagens nerds de A Vingança dos Nerds ...... 133 Figura 8: A Vingança dos Nerds (1m50s) ...... 133 Figura 9: A Vingança dos Nerds (6m27s) ...... 136 Figura 10: A Vingança dos Nerds (6m27s) ...... 136 Figura 11: A Vingança dos Nerds (11m30s) ...... 136 Figura 12: A Vingança dos Nerds (13m50s) ...... 137 Figura 13: A Vingança dos Nerds (14m55s) ...... 138 Figura 14: A Vingança dos Nerds (18m14s) ...... 138 Figura 15: A Vingança dos Nerds (20m07s) ...... 138 Figura 16: A Vingança dos Nerds (21m39s) ...... 139 Figura 17: A Vingança dos Nerds (22m57s) ...... 139 Figura 18: A Vingança dos Nerds (24m54s) ...... 140 Figura 19: A Vingança dos Nerds (25m14s) ...... 140 Figura 20: A Vingança dos Nerds (27m30s) ...... 141 Figura 21: A Vingança dos Nerds (27m30s) ...... 141 Figura 22: A Vingança dos Nerds (27m30s) ...... 142 Figura 23: A Vingança dos Nerds (29m30s) ...... 142 Figura 24: A Vingança dos Nerds (32m11s) ...... 143 Figura 25: A Vingança dos Nerds (33m37s) ...... 143 Figura 26: A Vingança dos Nerds (37m07s) ...... 144 Figura 27: A Vingança dos Nerds (39m51s) ...... 144 Figura 28: A Vingança dos Nerds (44m40s) ...... 145 Figura 29: A Vingança dos Nerds (46m35s) ...... 145 Figura 30: A Vingança dos Nerds (51m52s) ...... 146 Figura 31: A Vingança dos Nerds (54m35s) ...... 147 Figura 32: A Vingança dos Nerds (56m52s) ...... 147 Figura 33: A Vingança dos Nerds (56m58s) ...... 148

Figura 34: A Vingança dos Nerds (59m49s) ...... 149 Figura 35: A Vingança dos Nerds (1h06m42s) ...... 149 Figura 36: A Vingança dos Nerds (1h10m34s) ...... 150 Figura 37: A Vingança dos Nerds (1h13m19s) ...... 151 Figura 38: A Vingança dos Nerds (1h14m40s) ...... 151 Figura 39: A Vingança dos Nerds (1h16m40s) ...... 151 Figura 40: A Vingança dos Nerds (1h18m56s) ...... 152 Figura 41: A Vingança dos Nerds (1h18m56s) ...... 152 Figura 42: A Vingança dos Nerds (1h22m24s) ...... 153 Figura 43: A Vingança dos Nerds (1h25m44s) ...... 154 Figura 44: Sheldon (esquerda) e Leonard (direita) ...... 160 Figura 45: Sheldon, Leonard e Penny ...... 161 Figura 46: Howard (esquerda) e Rajesh (direita) ...... 162 Figura 47: Penny (esquerda), Bernadette (centro) e Amy (direita) ...... 164 Figura 48: Penny (esquerda) e Stuart (direita)...... 164 Figura 49: A diferença entre geeks, nerds e dorks “explicada" ...... 169 Figura 50: “Geek Power”: capa da revista Wired com Bill Gates e Mark Zuckerberg. Edição de maio de 2010...... 174 Figura 51: A Vingança dos Nerds (7m01s) ...... 177 Figura 52: Os quatro nerds e a máquina do tempo ...... 178 Figura 53: Leonard encontrando Jimmy em um bar...... 183 Figura 54: Sheldon, Leonard e Kurt na festa de Halloween ...... 184 Figura 55: Personagens fantasiados de Liga da Justiça ...... 184 Figura 56: A Vingança dos Nerds (1h23m55s) ...... 186 Figura 57: A Vingança dos Nerds (30m10s) ...... 189 Figura 58: Leonard e Howard sendo servidos por um braço robô ...... 190 Figura 59: A Vingança dos Nerds (03m29s) ...... 192 Figura 60: Howard, Raj, Leonard e Sheldon ...... 194 Figura 61: Sheldon e Kripke na disputa de basquete...... 195 Figura 62: Judy, Betty e outra Pi Delta Pi ...... 196 Figura 63: Bernardette e Amy ...... 198 Figura 64: A Vingança dos Nerds (29m52s) ...... 202 Figura 65: Gilbert lowe e Lewis Skolnick ...... 203 Figura 66: ...... 204

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...... 14 1 – REFLEXÕES TEÓRICAS ACERCA DA IDEIA DE CULTURA ...... 34 1.1 – Maneiras de entender cultura ...... 34 1.2 – A centralidade da cultura ...... 38 1.2.1 – Comunicação e cultura ...... 45 1.2.2 – Linguagem e significação dos textos da cultura ...... 55 1.3 – A semiótica da cultura ...... 61 1.3.1 – Mecanismos da cultura ...... 63 1.3.2 - A semiosfera ...... 68 1.4 – Da Cultura de Massa ao Pop ...... 73 1.4.1 – Nasce a Cultura Pop ...... 76 1.4.2 – O que é Pop ...... 78 2 – A HISTÓRIA DO MEU POVO ...... 84 2.1 – Onde nascem os nerds ...... 85 2.2 – Nerds desenhados, escritos, falados e filmados ...... 89 2.3 – O que te faz um nerd ...... 104 2.4 – Fandom e a cultura nerd ...... 116 3 – A EXPLOSÃO DO UNIVERSO NERD ...... 126 3.1 – The Nerd Power ...... 127 3.1.1 A Vingança dos Nerd ...... 131 3.2 – A breve história do big bang ...... 154 3.2.1 – As características do Big Bang ...... 158 4 – RECONFIGURAÇÃO NERD: do dork ao cool ...... 165 4.1 – This is a nerd ...... 167 4.1.1 – A cultura nerd ...... 170 4.2 – Do Lambda ao Bazinga! ...... 172 4.2.1 – Nerds: entre o cinema e a televisão ...... 180 4.3 – A cultura é nerd ...... 205 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...... 208 REFERÊNCIAS ...... 212

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INTRODUÇÃO

“Home is behind, the world ahead, and there are many paths to tread through shadows to the edge of night, until the stars are all alight.” - J.R.R. Tolkien, The Lord of the Rings

A figura do nerd é facilmente percebida em diversos produtos da cultura pop. Principalmente no cinema e na televisão, os personagens débeis física e socialmente são representados em diversas obras. No geral, suas características são bem conhecidas: falta de traquejo social, poucos atributos físicos, interesse em tecnologia e ciências, inteligência acima da média e afinidade com produtos antes marginalizados na cultura de massa, como RPG e quadrinhos. Porém, essa figura do nerd que se difundiu no cinema dos anos 1980, apesar de bem estabelecida no imaginário de determinados públicos, se reconfigurou, como um produto da cultura, e se transformou no passar das últimas três décadas. Hoje, o nerd se tornou cool. Sua transformação pode ser percebida em novos produtos da cultura pop que ressignificam o nerd, hibridizando novos elementos contemporâneos e traduzindo aquela figura em um novo tipo de nerd. A cultura nerd saltou do Lambda1 para o Bazinga!2, ressignificou seus textos, e com isso, transformou suas práticas e a identidade nerd. Esse processo que pode ter começado no início da década de 2000 com o lançamento de filmes de herói como a série X-Men3e Homem-Aranha4, além da trilogia baseada na obra de J. R. R. Tolkien O Senhor dos Anéis5, ganhou ainda mais força nos anos seguintes,

1 A Lambda Lambda Lambda (ΛΛΛ ou Tri-Lambs) foi uma fraternidade fictícia até o ano de 2006, quando foi fundada, inspirada no filme que a deu origem, na University of Connecticut. 2 Bazinga é um neologismo criado pelo personagem em The Big Bang Theory. A interjeição pontua uma situação de humor dentro dos diálogos do protagonista. A expressão se popularizou na cultura pop virando marca de produtos diversos. 3 Série de filmes americana de super-heróis baseada na HQ criada por Stan Lee e Jack publicadas pela Marvel Comics e distribuída no cinema pela 20th Century Fox. O primeiro filme da franquia foi lançado em 2000. 4 Originalmente a primeira trilogia apresentando o herói foi lançada em 2002. A franquia foi reiniciada mais duas vezes. Os filmes são baseados em personagens de HQ criados por Stan Lee e Jack publicadas pela Marvel Comics. No cinema as franquias do herói são produzidas e distribuídas Columbia Pictures, Sony Pictures e Marvel Studios 5 Dirigida por Peter Jackson com base na obra-prima homónima de J.R.R. Tolkien. Distribuída pela New Line Cinema entre 2001 e 2003. 15

impulsionado pela tv e por diversas outras produções cinematográficas de Hollywood. Não sem motivos, é facilmente percebível a enxurrada de filmes baseados em histórias e personagens que pareciam pertencer exclusivamente ao universo nerd. As produções do Universo Cinematográfico Marvel6 já contam (até julho de 2020) com 24 filmes para cinema. Ainda foram produzidas nove séries de televisão exibidas originalmente na rede ABC e na empresa de streaming Netflix. Além de filmes baseados nos heróis de quadrinhos da DC Comics, como Superman, Batman, Mulher Maravilha, entre outros. A esses filmes somam-se o retorno das franquias Star Wars7 e Star Trek8. Diversas outras produções ainda poderiam fazer parte dessa lista, porém, o que é possível notar é que a cultura nerd passou a ocupar lugar de destaque na produção massiva da cultura pop.

Nos últimos anos, a imagem do nerd parece ter mudado na mídia. Um dos principais fatores que levaram a esta transformação é o sucesso financeiro atingido por profissionais que trabalham com tecnologia, área costumeiramente associada ao grupo. Vemos, atualmente, nerds “descolados” estrelando filmes, séries e vários produtos culturais, com um estilo de vida não mais rejeitado pela sociedade, mas agora desejado por jovens e adultos por estar na moda (SILVA, 2016, p. 16).

Esse fenômeno não passou ao largo do olhar acadêmico. É possível encontrar publicações, pesquisas de mestrados e doutorado que apresentam o nerd, seus personagens, produtos e sua cultura, como objeto de estudo acadêmico. Observam-se trabalhos que se dedicam a uma exploração antropológica do tema e buscam, por meios etnográficos, identificar os hábitos culturais em localidades específicas e compreender as relações de lazer e sociabilidade em torno da identidade cultural que os nerds compartilham, e também de investigar a maneira como esses nerds interagem entre si por meio da apreciação compartilhada de bens, sobretudo audiovisuais (AZEVEDO, 2015). Outras pesquisas averiguam a percepção sobre o estereótipo do nerd veiculado pelos produtos culturais midiáticos para entender sua relação com estes mesmos produtos e compreender se a imagem que têm do grupo é a mesma que a mídia transmite (SILVA, 2016; MELO E SILVA, 2016).

6 http://www.imdb.com/list/ls068748493/ 7 Guerra nas Estrelas no Brasil é uma franquia de filmes, jogos, animações, livros e quadrinhos classificada como Space Opera. Seu primeiro filme Uma Nova Esperança de 1977 inaugurou a era de blockbuster no cinema mundial. A saga foi idealizada por George Lucas que realizou os seis primeiros filmes a série. Hoje a marca pertence a Walt Disney Company e é um dos produtos de entretenimento mais lucrativos do mundo. 8 Jornada nas Estrelas no Brasil é uma franquia de entretenimento americana criada por Gene Roddenberry. A franquia iniciou-se como uma série de televisão em 1966 e até hoje conta com os mais diversos produtos derivados da série, 13 filmes e sete séries spin off na televisão. 16

Outros trabalhos apresentam uma relação dos produtos com os hábitos de consumo do grupo e buscam compreender o significado de uma série de discursos que celebram o estilo de vida nerd por parte de diversos agentes nos últimos anos, explorando o uso do termo “nerd” em uma variedade de meios da cultura da mídia (consumo) (YOKOTE, 2014; SANTOS, 2014). Por fim, são encontradas pesquisas que se dedicam a entender a produção e consumo de conteúdos voltados para esse público e que são grande sucesso na atualidade (GOSMES, 2015; MONT’ALVÃO JÚNIOR, 2016). Destacam-se entre esses produtos as séries de televisão The Big Bang Theory e The Walking Dead9 e os sites de conteúdo de cultura pop Omelete10 e Jovem Nerd11 (os produtos do site que são analisados nos trabalhos: o podcast Nerdcast e programa de vídeo semanal NerdOffice). Outro objeto de estudo encontrado nas teses e dissertações pesquisadas são as produções literárias voltadas para esse público nerd. Como um nicho de mercado literário, é possível encontrar pesquisas focadas na editora Nerdbooks (pertencente ao Grupo JovemNerd) e em seus lançamentos, nos quais se destaca o livro do escritor Eduardo Spohr12 A Batalha do Apocalipse. Esses trabalhos apresentam um caminho para esta pesquisa e propõem um amplo e rico objeto de pesquisa: a cultura nerd e seus rituais, práticas, produtos e personagens. Pensando nesse rico objeto de produções culturais, dentro de uma lógica de produção massiva e larga distribuição, este trabalho pretende centrar sua discussão na ideia de cultura. Assim, proponho entender a cultura como conhecimentos adquiridos, ritos e práticas sociais, sempre sujeitos a transformações, que se reconfiguram ao interagir com elementos novos. Sua forma está sempre em tensão e o dinamismo é sua característica mais evidente. Cultura, de maneira maia ampla, na concepção de Kellner (2001, p. 11), pode ser definida como “uma forma de atividade que implica alto grau de participação, na qual as pessoas criam sociedades e identidades”. Todo processo de criação, em um sentido cultural, é anteposto por uma apreensão de dados existentes na sociedade, que se reconfiguram para reaparecer sob uma nova forma. Essa ideia tem reflexo nas afirmações de Hobsbawm (1984, p. 14), a saber: “às vezes, as novas tradições podiam ser prontamente enxertadas nas velhas; outras vezes, podiam ser inventadas com empréstimos fornecidos pelos depósitos bem supridos do ritual, simbolismo e

9 Baseado nos quadrinhos de mesmo nome criado por Robert Kirkman, The Walking Dead estreou no dia 30 outubro de 2010, no canal de televisão a cabo AMC, nos Estados Unidos. 10 https://omelete.uol.com.br/ 11 jovemnerd.com.br 12 Eduardo Spohr é um jornalista, escritor, professor, blogueiro brasileiro, autor do livro A Batalha do Apocalípse, obra traduzida para três línguas e da trilogia Filhos do Éden, saga com mais de 700 mil exemplares vendidos no Brasil. 17

princípios morais oficiais”. As práticas que se reabastecem num repositório cultural criam o dinamismo transformador da cultura e geram novas formas de identificação. Esse processo é amplificado pelos meios de comunicação de massa. Kellner (2001, p. 9) afirma que a cultura é composta por todos os dispositivos de disseminação massivos, tal como a televisão, o rádio e o cinema, entre outros. A participação dos meios massivos acelera a disseminação de antigas ou novas formas culturais, estimulando novas identificações, sínteses distintas e novos rituais. Entretanto, essa mudança, em grande parte, é atrelada à produção massificada de veículos de comunicação que se relacionam com a indústria do entretenimento, e é nesse contexto de produção que localizamos a cultura nerd. Mesmo assim, esses produtos não podem ser vistos com menor importância ou credibilidade inferior, já que seus processos geram grande reflexo nas práticas sociais. Morin (2011, p. 5), ao questionar a visão da Escola de Frankfurt e da Teoria Crítica sobre a cultura de massa, expõe sua relevância naquele contexto, sobretudo porque rompe com alguns paradigmas conceituais do termo. Entre as razões de entendê-la é preciso perceber que “uma cultura fornece pontos de apoio imaginários à vida prática, pontos de apoio práticos à vida imaginária; ela alimenta o ser semirreal, semi-imaginário que cada um secreta dentro de si [...]” A definição de cultura proposta por Greame Turner sintetiza o entendimento proposto sobre o conceito:

A cultura, conforme pretendo discutir aqui, é um processo dinâmico que produz os comportamentos, as práticas, as instituições e os significados que constituem nossa existência social. A cultura compreende os processos que dão sentido ao nosso modo de vida (TURNER, 1997, p. 51).

Tendo em vista esse dinamismo da cultura e sua capacidade de se reelaborar, admitindo novos significados por meio da hibridação de elementos externos, é possível refletir sobre como a cultura nerd se reconfigurou nos meios massivos, tais como o cinema e a televisão. A proposta é investigar como a transformação da figura nerd, suas práticas, personagens, e identidade se alteraram em função de novos elementos da realidade cultural e social. A ideia é entender e apresentar como a representação da cultura nerd se modificou, usando como base as duas obras que retratam, cada uma em seu tempo, essas representações da cultura nerd. É preciso levar em conta que as referências mais recentes à cultura nerd são apresentadas em um ambiente de produção e consumo dos produtos da mídia muito diferente daquele em que a figura do nerd foi originalmente apresentada. A cultura da mídia se 18

estabeleceu como elemento impulsionador das relações culturais. O ambiente de convergência dos meios de comunicação deu destaque ao papel da tecnologia como não poderia ser previsto na década de 1980. Além disso, a cultura de fãs impôs na dinâmica da cultura pop uma nova relação entre os produtos (e a produção) de filmes, séries de televisão e histórias em quadrinhos com seu público. Esse novo ambiente impulsiona a transformação cultural pelo qual a cultura nerd caminhou entre sua apresentação na década de 1980 e a atualidade. Não é à toa que o nerd ocupa outro papel no espaço da cultura pop, já que a realidade em que busca afirmar sua identidade, praticar os seus rituais e consumir seus produtos se apresenta reorganizada por meio da hibridação de novos elementos. Desta forma, é possível aprofundar a investigação sobre como se deram essas transformações e por quais mecanismos a cultura nerd ganhou essa nova forma. Assim, proponho dois recortes no tempo e dois objetos de análise. No ano de 1984, o filme A Vingança dos Nerds estabeleceu um padrão amplamente difundido desses personagens e de sua cultura. Existem, é claro, outras obras cinematográficas que se utilizaram dessa identidade e dessa cultura como pano de fundo para suas narrativas, porém, esse filme estabelece um cenário propício para o estudo. Os personagens e suas características são o centro da história e seus hábitos são destacados para fortalecer uma imagem do que representa ser nerd. Mais recentemente, em 2007, outros personagens nerds surgiram na televisão dos EUA e logo chegaram ao Brasil. A série The Big Bang Theory novamente colocou em evidencia a cultura nerd. Em alguns momentos, os personagens reforçavam uma imagem criada anteriormente, mas em outras situações se afastavam das características originais do tipo nerd, e, sobretudo, apresentam ao público uma possibilidade maior de aproximação com aqueles personagens. Atualmente, no seu 11º ano de exibição, o programa é a sitcom13 de maior audiência na televisão dos Estados Unidos. Esses dois produtos, separados por mais de 30 anos no tempo, cristalizam duas imagens da cultura nerd e evidenciam suas transformações no tempo. Estudá-los pode demonstrar como a cultura ganha nova aparência, se modificando em função do contato com novos textos, se hibridizando e ressignificando. Assim, é possível buscar entender quais foram as transformações da cultura nerd por meio das duas obras. Intenta-se identificar qual era o nerd mostrado originalmente nos anos 1980 e sob quais influência culturais, porém, principalmente,

13 Abreviatura da expressão inglesa situation comedy (comédia de situação, tradução livre), é usado para designar uma série de televisão com personagens comuns onde existem uma ou mais histórias de humor encenadas em ambientes comuns como família, grupo de amigos, local de trabalho. 19

demonstrar como aquela figura e sua cultura se modificaram, apresentando os elementos culturais que compõem a cultura nerd na atualidade, e quais textos da cultura são utilizados para criá-la e difundi-la como produto de uma cultura midiática. Nessa tentativa, uma primeira tarefa é tentar entender o que significa ser nerd. Para podermos nos aprofundar em sua cultura.

Definir o que é nerd é uma tarefa bastante complexa, por ser uma definição que creio se aproxima mais de uma prática relacionada a mecanismos performáticos, ativados por seus sujeitos, do que por uma classificação identitária mais rígida (SILVA, 2016, p. 130).

Em 2010, o Dicionário Aurélio14 ganhou um novo verbete: nerd. A palavra, que não era estranha na língua portuguesa, abriu espaço em meios mais formais de definição de vocábulos. Em uma procura em sites de busca na internet, a definição do termo é geralmente semelhante, isto é, define pessoas interessadas em tecnologia, com inteligência acima da média, facilidade para os estudos e interesse em elementos mais fantásticos da cultura pop (heróis, ficção científica e fantasia). Nos Estados Unidos, onde a palavra surgiu, está diretamente ligada ao mesmo significado. A origem do termo está associada à língua inglesa e é sinônimo de bore, dork, dweeb ou loser (chato, bobo, panaca ou perdedor - tradução livre). Apesar de o termo não ser traduzido para o português, pode significar literalmente “estranho” ou “desajeitado”. No Brasil, a mesma ideia já esteve associada ao acrônimo CDF15 há algum tempo. O primeiro uso documentado da palavra foi no ano de 1950, em um livro do cartunista e escritor americano Dr. Seuss16, como nome de um personagem considerado estranho/diferente dentro do contexto da narrativa. Existe outra explicação para a expressão, na qual “seu uso como gíria parece datar de 1951, quando a revista Newsweek reportou seu uso popular como sinônimo de pessoa ‘quadrada’ ou desinteressante” (FERNANDES; RIOS, 2011, p. 5). Outra versão relaciona seu uso a funcionário de um laboratório: “Datam a origem do grupo a partir da década de 1950, com os trabalhadores dos laboratórios do Northern Electric Research and Development, cuja abreviação é N.E.R.D.” (SILVA, 2016, p. 20).

14 http://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2010/09/aurelio-ganha-nova-versao-com-verbos-como-tuitar-e- blogar.html, acessado em 01/12/2016. 15 Crânio ou cabeça-de-ferro; cu de ferro em algumas regiões. 16 Theodor Seuss Geisel (1904 – 1991) foi um escritor e cartunista norte-americano, mais conhecido por seu pseudónimo, Dr. Seuss. Lançou mais de 60 livros infantis e ganhou o Oscar de melhor Documentário no ano de 1947. 20

Porém, para além da origem do termo, a definição da palavra nerd ganhou novos significados e se transformou com o decorrer do tempo. Entre suas características principais, como o interesse pela ciência e pela tecnologia e o consumo de cultura pop – parecem permanecer. Porém, outras distinções deste grupo como, por exemplo, a marginalidade dos consumidores desses produtos, o comportamento antissocial e atrapalhado, parecem estar se modificando. Na cultura pop, é possível perceber essa transformação em produtos que tiveram os nerds e/ou a sua cultura como tema principal. Personagens nerds foram apresentados ao público de televisão nos Estados Unidos pelo programa Saturday Night Live17. Na década de 1980, o ator Bill Murray18 interpretou, em um dos quadros, um jovem desajustado que passava por situações constrangedoras. Em The Nerds:

dois personagens, chamados Todd DiLaMuca e Lisa Loopner, apareceram em diversas esquetes do programa, como “Nerd Rock”, “Nerd Nativity” e “Nerds of Seduction”. A visualização dos personagens fez a ligação com o nome, que, a partir daí, ganhou popularidade (SILVA, 2016, p. 23).

Os atributos físicos e as indumentárias característicos dos personagens reapareceram em um filme de 1984, o Revenge of the Nerds (A Vingança dos Nerds), que apresentou o mesmo estereótipo inaugurado por Bill Murray. Na narrativa, os calouros da universidade membros da fraternidade19 Lambda Lambda Lambda eram representados com todas as mesmas características físicas e psicológicas e no desenvolvimento da trama eram colocados em conflito com outro grupo de universitários: os esportistas, mais adequados aos padrões de beleza do período, eram os “populares”. “Filmes como A Vingança dos Nerds (Revenge of the Nerds, 1984) procuravam enquadrar os nerds no modelo hegemônico de masculinidade da época. Daí o embate constante com figuras como o esportista, o popular ou o valentão” (SANTOS, 2014, p. 27). A dicotomia a partir desses dois estereótipos formou uma percepção geral sobre o que era ser nerd. No filme, os personagens desajustados se destacavam pela inteligência e apresentavam poucos atributos físicos.

17 Série televisiva de grande sucesso nos EUA está no ar desde 1975. O programa gira em torno de uma série de sketches parodiando a cultura e a política americana. Diversos atores de Hollywood foram lançados pelo programa. Entre eles: Dan Aykroyd, Jimmy Fallon, Will Ferrell, Eddie Murphy, Bill Murray e Adam Sandler. 18 William James Murray (1950 – ) é um ator e comediante americano vencedor do Globo de Ouro de 2004 pelo filme Lost in Translation. 19 Fraternidades de estudantes são comuns em universidades e faculdades nos Estados Unidos. As instituições datam de 1770. A mais antiga registrada é a Chi Phi na Universidade de Princeton. Comumente as associações incluem diversas atividades intelectuais, filantrópicas, esportivas e de entretenimento. 21

Não por acaso, A vingança dos nerds é ambientado em uma universidade. Isso porque, nesse momento, a imagem do nerd estava quase que exclusivamente vinculada ao ambiente acadêmico/escolar. Ao longo da década de 1980 e das subsequentes, em quase todos os níveis de ensino, tirar ótimas notas ou ser muito introvertido era, em muitos casos, o bastante para ser visto como um nerd (YOKOTE, 2014, p. 17).

Como o filme reforçava, esse grupo sempre apareceria com destaque negativo, pouco interessante socialmente, marginalizado pelos colegas e buscando identificação nos pares. Na sequência, ainda nos anos 1980, entre outros filmes, algumas produções procuraram dar destaque à figura do nerd e ao seu embate com os estudantes “populares”, se opondo a eles ou tentando um espaço junto ao grupo.

A trama do filme Gatinhas e Gatões (Sixteen Candles, 1984) gira em torno justamente dessas tensões. Não por acaso o filme retrata o aniversário de 16 anos da personagem principal (a idade das debutantes na cultura norte- americana), além das constantes tentativas frustradas do grupo de nerds, liderados pelo personagem apelidado de “The Geek”, em ter contato com garotas e com o mundo adulto (SANTOS, 2014, p. 22).

Em Weird Science (Mulher Nota 1000, 1985), outro filme de sucesso nesse período, “dois garotos sem amigos e nenhum traquejo social, humilhados pelos valentões da escola e ignorados pelas garotas decidem criar sua própria mulher ideal com a ajuda de um programa de computador” (SANTOS, 2014, p. 23). Os temas tecnologia, relacionamentos e deslocamento social se repetiam nos filmes da década de 1980. Na película Can’t Buy me Love (Namorada de aluguel, 1987), um nerd tenta ascender ao grupo de destaque na escola alugando a garota mais popular como namorada. Em Three O’Clock High (Te Pego Lá Fora, 1987), o personagem principal, Jerry Mitchel, tem que enfrentar o bully da sua escola que agendou para o fim da aula uma briga. Entre outros exemplos, os filmes representavam personagens que passavam pelos mesmos problemas, com aparência e gostos semelhantes, repetindo os mesmos rituais que se destacam no sistema de High School americano tão popularizado pelo cinema de Hollywood. Juntamente com a televisão, o cinema serviu com grande força para difundir essa identidade pelo mundo. A figura do nerd não emergiu no cinema ou na tv, mas esses dispositivos ajudaram a propagar amplamente as suas características. Os meios de comunicação de massa têm potencial para distribuir esses conteúdos e referenciar no imaginário social esses personagens. Entretanto a aceitação do público sempre será negociada. 22

A imagem em movimento acompanhada por música e efeitos sonoros, além de uma indústria de entretenimento, pode ser entendida como uma prática social, formadora de identidades. Esses meios constituem uma força capaz de emergir a imaginação em um mundo novo. Segundo Edgar Morin, “abarca o real, o irreal, o presente, o vivido, a recordação e o sonho, a um nível mental comum” (MORIN, 1970, p. 242). Assim, a figura, o consumo, a personalidade, em resumo, a identidade nerd se desenvolveu e se espalhou pelo mundo, empurrada pela indústria do entretenimento, criando identificações pelo planeta. Anos depois, no começo deste século, outras figuras apareceram evocando algumas características difundidas pela idiossincrasia desse grupo e ampliando a imagem e tipos que compõem a figura nerd. The Big Bang Theory (TBBT) é uma americana. Hoje considerada a de maior sucesso e audiência nos Estados Unidos.

Com média de treze milhões de espectadores nos Estados Unidos, sendo também exibida em outros setenta países, incluindo Brasil, Albânia e Venezuela […]. A série é também sucesso de crítica, está confirmada na grade da emissora CBS até a décima temporada e acumula quarenta e cinco prêmios, entre os quais um Globo de Ouro (OLIVEIRA, 2016, p. 1).

A série apresenta o dia-a-dia de quatro cientistas da Calltech20 (Sheldon Cooper21 é físico teórico, Leonard Hofstadter22 é físico experimental, Rajesh Koothrappali23 é astrofísico e Howard Wolowitz24 é engenheiro e astronauta) que têm uma vida mergulhada em elementos populares da cultura nerd - tecnologia, história em quadrinhos, ficção científica, fantasia -, possuem carreiras de sucesso em seus respectivos campos, mas tentam se encaixar numa vida social ordinária, com problemas de relacionamento, família e atividades sociais em geral. Os personagens representam uma reconfiguração nos estereótipos, se comparados aos filmes dos anos 1980, sobretudo na indumentária. Mas a maior quebra com as primeiras representações se dá com a fase da vida exposta na tela. Agora não são mais adolescentes na escola ou universidade. Os nerds da série são adultos de sucesso (a menção a grandes feitos na área da física e engenharia de todos eles nos episódios) que, em certa medida, representam o

20 Instituto de Tecnologia da Califórnia ( Institute of Technology) é uma universidade privada norte- americana, localizada em Pasadena na Califórnia. Comumente citada como uma das melhores universidades na área de tecnologia do mundo. Entre seu alunos, ex-alunos e professores constam 34 ganhadores do Prêmio Nobel. https://www.caltech.edu/content/caltech-glance, acessado em 09/12/2016 21 É vivido pelo ator (1973 – ) que venceu 4 premiações do Emmy e um Globo de Ouro por interpretar o personagem. 22 Interpretado pelo ator belga-americano (1975 – ). 23 O personagem indiano é vivido pelo ator britânico (1985 – ). 24 Simon Helberg (1980 – ) é uma ator de televisão e comediante do gênero stand up. 23

futuro que os personagens de 30 anos atrás buscavam em suas carreiras profissionais. Essa diferenciação faz parte do processo de cultura. Ela não é estanque. E os produtos culturais, principalmente dos meios de comunicação massivos, mesmo que por interesses ligados ao capital, exprimem esse dinamismo.

As expressões culturais e os fenômenos comunicacionais se misturam, transformando e convergindo a cultura e a comunicação em uma só conexão. Se acrescentarmos a esta perspectiva a de Thompson (2001), na qual comunicação é ação, inserida no contexto da vida social e parte integrante desta, percebemos o dinamismo das áreas, que vivem em constante mudança, acelerado especialmente nas últimas décadas com o desenvolvimento e consolidação dos meios de comunicação de massa e das novas tecnologias de comunicação (SILVA, 2016, p. 47).

Pensando no caráter dinâmico que a cultura assume, cabe aqui falar da ideia de performatividade, de George Yúdice (2004), que

[...] se refere aos processos pelos quais identidades e entidades da realidade social são constituídas pelas repetidas aproximações dos modelos gerais, bem como por aqueles ‘resíduos (exclusões constitutivas) que são insuficientes. [...] à medida que a globalização se aproxima de culturas diferentes para contato mútuo, ela aumenta o questionamento das normas e, com isso, instiga a performatividade (YÚDICE, 2004, p 53).

Assim, representamos esses dois momentos da cultura nerd com as expressões “Lambda” e “Bazinga”, como forma de marcar os dois períodos que serão discutidos no trabalho. A letra grega marca o filme dos anos 1980, pois representava fraternidade dos personagens nerds daquela obra. O neologismo Bazinga se tornou conhecido na cultura pop pelo seriado TBBT. Usada pelo físico Sheldon Cooper para fazer piada, a expressão marca uma cultura nerd mais recente e transformada. Ao olhar para a figura do nerd e pensar na transformação da sua cultura e seus personagens, é possível tentar entender quais são os elementos dessa mudança. Tendo em vista que a cultura, de maneira geral, está sempre se modificando por meio do contato com novos textos, com um novo ambiente social, e essas mudança alimenta e é alimentada pela cultura da mídia, a pesquisa se propõe a refletir sobre a cultura nerd nos meios de comunicação de massa, tendo como corpus de análise o filme A Vingança dos Nerds e a série de televisão The Big Bang Theory. É preciso entender quais as principais mudanças no significado midiático de ser nerd, como essas representações são apresentadas em momentos distintos e como essas representações cristalizam uma imagem na mídia do tipo nerd. Além disso, descobrir como essa 24

transformação da cultura nerd foi reorganização, por meio de quais signos provenientes da cultura midiática, que recriaram sua identidade, sua representação e seus rituais. Desta forma, o objetivo principal deste trabalho é investigar os aspectos que identificam a cultura nerd em duas obras audiovisuais: o filme A Vingança dos Nerds e a série The Big Bang Theory, e, a partir desses objetos, refletir como a representação da cultura nerd se transformou, hibridizando novos elementos e textos ao seu redor, como um objeto da cultura da mídia. A proposta é apresentar de forma original, por meio da análise das duas obras, tendo como base o arcabouço teórico fornecido pelos Estudos Culturais e pela Semiótica da Cultura, as transformações da representação da cultura nerd. Assim, podemos elencar como objetivos específicos: refletir sobre a cultura das mídias e a cultura pop, suas dinâmicas, contradições e complexidades; apresentar o histórico da cultura nerd e sua reconfiguração nos produtos culturais nas mídias, isto é, em filmes, séries, propagandas etc., a fim de situar a relevância dos meios de comunicação para os processos que levaram às redefinições dessa cultura; a partir desse levantamento, visamos construir uma definição do nerd em função das dinâmicas da cultura midiática; demonstrar, por meio da revisão de literatura, com base nos pressupostos teórico-metodológicos dos Estudos Culturais e da Semiótica da Cultura, como a cultura nerd se sustenta como cultura; investigar de que forma a convergência midiática reforça e retroalimenta a dinâmica da cultura nerd e, vinculado a este processo, debater a cultura de fã, um dos pilares de sustentação desta cultura na contemporaneidade; analisar o filme A Vingança dos Nerds e a série The Big Bang Theory como produtos que cristalizam essa cultura, bem como apresentar as suas transformações com base nos referenciais estudados. Como hipótese, tem-se que a cultura nerd represente em si a essência da dinâmica transformadora da cultura. Ao aproximar-se de outros textos e contaminar-se por eles, o nerd se torna, essencialmente, um personagem plural. A cultura nerd, criada em seus signos, rituais, representações e práticas por meio da assimilação e reorganização de elementos de outras formas culturais, que são, por sua vez, distribuídos pelos meios de comunicação de massa, fazendo parte do mesmo processo dinâmico da cultura, e, sustentado e reforçado por elementos da atualidade como a cultura de fã e a cultura da convergência. Esses dois elementos contemporâneos podem ser vistos como base de sustentação para as transformações, e para a irradiação recente da cultura nerd. As pesquisas no campo da Comunicação Social parecem ser um dos primeiros espaços para a inserção de objetos que antes se encontravam longe do cânone acadêmico. A música pop, as novelas, o cinema e as histórias em quadrinhos, videogames, entre outros, mesmo que 25

lentamente, têm ocupado espaço nas pesquisas como objeto válido ante àquilo que anteriormente era mencionado como Alta Cultura. Ainda que haja algum tipo de resistência, esses produtos não podem ser relegados somente à crítica da Indústria Cultural. Seja pelos produtores que colocam no mercado massivamente e influenciam fortemente as práticas sociais em geral, ou pelas novas relações de sociabilidade que esses produtos geram, os objetos provenientes da cultura pop se impõem ao olhar acadêmico. Esse conceito vem fortemente atrelado ao pensamento de uma cultura midiática, que se apresenta como um forte mediador das práticas sociais. A ideia influenciada pelos Estudos Culturais e proposta por Douglas Kellner (2001, p. 9) argumenta:

Há uma cultura veiculada pela mídia cujas imagens, sons e espetáculos ajudam a urdir o tecido da vida cotidiana, dominando o tempo de lazer, modelando opiniões políticas e comportamentos sociais e fornecendo o material com que as pessoas forjam sua identidade. O rádio, a televisão, o cinema e os outros produtos da indústria cultural fornecem os modelos daquilo que significa ser homem ou mulher, bem-sucedido ou fracassado, poderoso ou impotente. A cultura da mídia também fornece o material com que muitas pessoas constroem o seu senso de classe, de etnia, de raça, de nacionalidade, de sexualidade, de ‘nós’ e ‘eles’. Ajuda a modelar a visão prevalecente no mundo e os valores mais profundos: define o que é considerado bom ou mau, positivo ou negativo, moral ou imoral.

Apesar desse pensamento não representar uma imposição dos meios sobre o cotidiano do público consumidor, há uma clara influência da cultura da mídia nos ritos e nas práticas diárias. Kellner privilegia sua ideia sobre produtos midiáticos atrelados à chamada cultura pop e ao entretenimento por considera-los aqueles que melhor permitem entender “a produção, a natureza e os efeitos dessa cultura” (2001, p. 13). Os dois objetos propostos fazem parte dessa cultura midiática, se enquadram no seu universo e dão força a essa cultura. Pretende-se examinar e entender como suas transformações podem ser representativas, dada a grande influência do universo da cultura pop dentro do consumo cultural contemporâneo, e, ainda mais, perceber que esses produtos estão fortemente ligados a narrativas e personagens que anteriormente pareciam restritos a cultura nerd. Outro aspecto relevante é considerar que as transformações recentes das práticas, consumo e personagens nerds podem estar atrelados a dois pensamentos que têm ganhado força e se tornado relevantes nos estudos sobre cultura na atualidade. A cultura de fã e cultura da convergência, somados, reforçam uma transformação na relação do público consumidor com os produtos da cultura pop. Essas duas ideias estão ancoradas nos Estudos Culturais Britânicos. Segundo Jenkins (1992, p.1), foi inspirado por essa tradição “que ajudou a reverter o desprezo 26

público pelas subculturas da juventude, [...] uma que visse os consumidores de mídia como ativos, criticamente engajados e criativos”.25 Nesse contexto, a evolução dos dispositivos de comunicação e da internet são essenciais. A cultura da convergência alimenta e reforça a cultura de fãs.

Todo o aparato tecnológico necessário para as práticas de fãs e para o consumo do produto cultural, desde os primeiros filmes exibidos no cinema, e antes deles o consumo de livros, músicas e peças de teatro, até os atuais vídeos online, fansites, grupos virtuais, fazem parte das ferramentas já conhecidas pelos fãs (OLIVEIRA, 2016, p. 12).

Esse universo ganha cada vez novas possibilidades. Os fãs interagem, produzem, e se consomem, por meio de podcasts, vídeos e textos em redes sociais. Esses produtos fazem aumentar o consumo das produções midiáticas e reforçam suas práticas.

E fãs de um popular seriado de televisão podem capturar amostras de diálogos no vídeo, resumir episódios, discutir sobre roteiros, criar fanfiction (ficção de fã), gravar suas próprias trilhas sonoras, fazer seus próprios filmes – e distribuir tudo isso ao mundo inteiro pela internet (JENKINS, 2009, p. 44).

Por esses motivos, parece óbvio que os Estudos Culturais sirvam de alicerce teórico- metodológico para as discussões. Sua possibilidade de entender a cultura como um processo dinâmico que modifica e é modificado pela sociedade vai além da crítica superficial. “A cultura veiculada pela mídia não pode ser rejeitada como instrumento banal da ideologia dominante, mas deve ser interpretada e contextualizada de modos diferentes dentro da matriz dos discursos e das forças sociais concorrentes que a constituem” (KELLNER, 2001, p. 27). Esse pensamento dá fôlego para analisarmos os objetos sob um leque de novas possibilidades. Essa perspectiva sobre a cultura ganha reforço quando somada a outra matriz teórica que também percebe o caráter dinâmico e interativo da cultura: A Semiótica da Cultura entende que:

Cultura é memória não-genética, um conjunto de informações que os grupos sociais acumulam e transmitem por meio de diferentes manifestações do processo da vida, como a religião, a arte, o direito (leis), formando um tecido, um “continuum semiótico” sobre o qual se estrutura o mecanismo das relações cotidianas. A cultura é […] inteligência coletiva, um sistema […] que molda a dinâmica da vida social, mas leva em consideração não só os aspectos do

25Traduzido do original: “which helped reverse the public scorn directed at youth subcultures, I wanted to construct an alternative image of fan cultures, one that saw media consumers as active, critically engaged, and creative”. (Todas as traduções de citações nesta tese foram feitas pelo autor.) 27

socius, mas todos os fenômenos que incidem sobre a consciência coletiva. São programas de comportamento que permitem converter acontecimentos em conhecimento (VELHO, 2009, p. 2).

Nos estudos da Semiótica da cultura, teoria enraizada nos Seminários de Verão da Escola de Tartu-Moscou, grosso modo, propõe entender a cultura como um espaço semiótico, onde toda e qualquer informação, formada por diversos signos, e transmitida nas relações sociais, pode ser entendida como textos. “A cultura organiza a informação em códigos que são absorvidos e sistematizados no cotidiano. Esses códigos têm a função de culturalizar o mundo, ou seja, dar às informações uma estrutura de cultura” (ROCHA; VARGAS, 2019, p. 28). Sob essa visão, o principal nome é Iuri Lotman. Inserido nesse pensamento o pesquisador propõe que os textos da cultura se organizam de forma semelhante ao da biosfera. A semiosfera de Lotman representa o espaço onde os textos se organizam, criam códigos e dão sentido a um tipo de cultura, que, em contato com outra semiosfera se modifica, traduzindo os textos de outras esferas. A semiosfera garante “a diversidade dos sistemas culturais que a compõem, pois, cada cultura opera dialogicamente frente às demais, contaminando essas e aquelas e permitindo-se contaminar por outras” (RAMOS et al, 2007, p. 35). Por fim, é preciso reforçar a potência e a importância dos dois objetos de pesquisa dentro do universo nerd. A série de televisão e o filme representam dois marcos nas produções audiovisuais para caracterizar o universo, os personagens e as situações nerds. Eles apresentaram para o mundo esses elementos e a ideia do que é ser nerd. Ainda, sobre o tema da cultura nerd, é importante ressaltar que esse trabalho se justifica também pelo objetivo de criar um histórico sobre a cultura nerd, assunto pouco publicado em língua portuguesa e que carece de material bibliográfico para a pesquisa. Como fundamentação teórica, serão utilizadas duas grandes matrizes – Estudos Culturais e a Semiótica da Cultura – que irão auxiliar no estudo da cultura e ajudam a compreender sua dinâmica, seus processos e produtos para além de uma visão que determine hierarquicamente o que é a cultura. Assim, os conceitos de Edgar Morin (1970) podem servir de auxílio, já que o autor entende e endossa a ideia de que os meios de comunicação de massa são responsáveis pela criação e distribuição da cultura a partir do século XX. Para ele, o cinema é um mecanismo poderoso, pois, por meio de sua ação, a imagem em movimento reflete a troca mental entre o público e o mundo. Uma assimilação intelectual de conhecimento, informação e consciência.

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Tudo, efetivamente, penetra em nós, se conserva se antevê e comunica por meio duma série de imagens impregnadas de imaginário. Este complexo imaginário, que assegura e ao mesmo tempo perturba as participações, produz uma secreção placentária, que nos envolve e nos alimenta. Mesmo em estado de vigília, e mesmo fora do espetáculo, o homem caminha, solitário, envolto por uma nuvem de imagens, pelas suas “fantasias” (MORIN, 1970, p. 247).

O “homem real” não pode ser separado do imaginário. Essa matéria prima fornecida pelo cinema funciona como base para a construção desse homem. As imagens refletidas na tela constroem no público sua própria realidade. “É o verdadeiro alicerce de projeções- identificações, a partir do qual o homem, ao mesmo tempo que se mascara, se conhece e se constrói” (MORIN, 1970, p. 250). Timothy Brennan (1995, p. 122) reforça que o conceito da criação e recriação de identidades e identificações depende de “um aparato de ficções culturais nas quais a literatura imaginativa tem um papel decisivo”, tal como foi apresentado até aqui. A cultura nerd, assim, pode ser entendida como parte de uma cultura de produção massiva, já que “constituí um corpo de símbolos, mitos e imagens concernentes à vida prática e à imaginária, um sistema de projeções e identificações específicas” (MORIN, 2011, p. 6). Essas ideias encontram respaldo nas discussões de identidade propostas por Stuart Hall. O que o autor define como identidade pós-moderna é representada por essa transformação e esse hibridismo que emergem da cultura nerd. “A identidade torna-se uma ‘celebração móvel’: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam” (HALL, 2006, p. 13). Essa formação não pode ser desassociada, neste caso, do consumo. É obvio que a participação desse grupo de identificações tem forte ligação com a indústria do entretenimento, o que, por si só, não o desqualifica, nem como objeto, nem como fenômeno social de ampla repercussão. “A cultura veiculada pela mídia não pode ser rejeitada como instrumento banal da ideologia dominante, mas deve ser interpretada e contextualizada de modos diferentes dentro da matriz dos discursos e das forças sociais concorrentes que a constituem” (KELLNER, 2001, p. 27) A cultura como recurso, também como um instrumento (que além de poder servir para a resolução de conflitos socioculturais, também possibilita gerar investimentos e buscar o retorno da economia cultural), explica o desenvolvimento de estratégias para criar produtos culturais que negociam, promovem e propagam a identidade cultural, por meio da divulgação de aspectos culturais dos mais diversos. “Seria realmente cínico qualificar políticas de 29

identidade como uma aberração quando a conveniência da cultura é uma característica óbvia da vida contemporânea” (YÚDICE, 2004, p. 47). Toda a indústria de entretenimento e de bens culturais – cinema, televisão, quadrinhos, moda, etc. – lança mão desses recursos como forma de criar e divulgar seus produtos que, por sua vez, são absorvidos e ressignificados na audiência, dando material para a formação das identidades e das identificações. Kellner argumenta que “suas imagens substituem a família, a escola e a igreja como árbitros de gosto, valor e pensamento, produzindo novos modelos de identificação e imagens vibrantes de estilo, moda e comportamento” (KELLNER, 2001, p. 27). Porém, não há aqui um determinismo midiático. A comunicação, como um dos pilares da construção da cultura, entra em disputa com outros pilares, que por sua vez são lidos, avaliados, reavaliados e aceitos ou rejeitados por indivíduos ou grupos. Não há uma relação de causa e efeito, e sim uma construção dinâmica de formas culturais e identificações na qual comunicação tem grande participação, pela abrangência e velocidade. Raymond Williams (1992, p. 13) chamou de “práticas significativas” a relação dos meios de comunicação de massa com a produção cultural, ampliando a ideia da participação mediadora das mídias e abrindo espaço para uma tensão entre os produtos e sua utilização. Para o autor, o que é verdade sobre a cultura é “o fato de jamais ser uma forma em que as pessoas estão vivendo, num certo momento isolado, mas sim uma seleção e organização, de passado e presente, necessariamente provendo seus próprios tipos de continuidade” (WILLIAMS, 1992, p. 182). Finalmente, essa é a compreensão de cultura, para debater e entender como são criadas as identificações, práticas e ritos, que nascem em uma subcultura, como o caso da cultura nerd. Nessa ideia, é preciso levar em consideração a agilidade e o dinamismo da cultura, somado ao hibridismo – sua capacidade de somar textos e reaplica-los.

A ‘cultura’ foi redefinida como o processo que constrói o modo de vida de uma sociedade: seus sistemas para produzir significado, sentido ou consciência, especialmente aqueles sistemas e meios de representação que dão às imagens sua significação cultural. O cinema, a televisão e a publicidade tornam-se assim os principais alvos de pesquisa e análise ‘textual’. No âmbito desta pesquisa, a cultura é vista como sendo composta de sistemas de significados interligados. Assim, pode-se começar examinando as tiras de quadrinhos e terminar falando sobre códigos de vestuário nas subculturas urbanas (TURNER, 1997, p. 48).

Assim, é possível entender que o nerd – seus tipos, ritos, hábitos e consumos – criam, com grande participação dos meios de comunicação de massa, uma estrutura de práticas reproduzidas e identificadas que dão a esse grupo a sua possível unidade. 30

Outro grupo de estudiosos que apoiam o entendimento dinâmico da cultura e do cruzamento entre ritos e signos da vida cotidiana formando novas formas culturais pode ser respaldado na Semiótica da Cultura e nos pesquisadores de Tartu-Moscou. Ao entender a formação da cultura nerd, é possível perceber que ela existe baseada em uma variedade de sistemas culturais que, tensionados, estabelecem um movimento paradoxal de concretizar a figura ou identidade do sujeito definido como nerd, e, ao mesmo tempo, alteram as estruturas desse sistema a partir do contato com outros que o ajudam a construir e definir. O seu dinamismo se dá no contágio entre as estruturas e nos processos tradutórios que a envolve. “Tomados separadamente, nenhum deles tem, de fato, a capacidade de trabalhar. Eles só funcionam submersos em um contínuo semiótico, completamente ocupado por formações semióticas de vários tipos e encontradas em vários níveis de organização” (LOTMAN, 1996, p. 11)26. Além disso, segundo Nunes (2014), Lótman define a cultura

[…] como semioticamente não-homogênea, composta pela diversidade de sistemas sígnicos que modelizam os textos: texto cultural com funções de comunicação, de geração de sentido e de memória, porque o texto condensa informações, não só recebe informações de fora dele, mas também as ocasiona, e, assim, adquire memória. Na heterogeneidade da semiosfera, o intercâmbio entre os diferentes textos pode ser concebido como dialógico. E é neste trânsito que ocorrem as confluências imprevisíveis, criando novas organizações de linguagem, novos textos de cultura (NUNES, 2014, p. 228).

Esse processo ocorre da irradiação de diversos textos midiatizados da cultura convergindo em uma nova esfera. A cultura nerd é, entre outras coisas, o resultado desse continuum semiótico, em que signos ganham nova codificação, e se transformam em novos textos da cultura, repletos e reabastecidos por outros sistemas. Uma hibridação, ou tradução para criar essa estrutura, que em si mesma, ganha reorganização através do tempo. “A reserva de textos, códigos e diferentes signos que partem da cultura antiga para a cultura nova e mais jovem [...] é depositada na memória cultural da comunidade como um valor auto-suficiente” (LOTMAN, 1996, p. 36)27.

26 Traduzido do espanhol: “Tomado por separado, ninguno de ellos tiene, en realidad, capacidad de trabajar. Sólo funcionan estando sumergidos en un continuum semiótico, completamente ocupado por formaciones semióticas de diversos tipos y que se hallan en diversos niveles de organización”. 27 Traduzido do espanhol: “La reserva de textos, códigos y distintos signos que se precipita de la vieja cultura a la cultura nueva, más joven [...] Se deposita en la memoria cultural de la colectividad como un valor auto- suficiente”. 31

A renovação do caráter explícito da figura do nerd é sinal da evolução e do dinamismo que a cultura apresenta na semiosfera. Sua aproximação de outras estruturas que criam ressignificações da visão sobre essa identidade é uma demonstração dessa dinâmica. Os dispositivos de criação na memória coletiva incluem, entre outros, os códigos e textos midiáticos, como no caso da cultura nerd, para se estabelecer como um texto comum. “Pelo corpo, o texto narrativo midiático cresce por si mesmo, transformado pela invenção dos materiais e de outro tempo que o condiciona. Feito de novas materialidades, propulsor de novos sentidos, torna-se, então, texto-memória expandindo-se no espaço semiótico” (NUNES, 2014, p. 232). Lótman define cultura como não-homogênea, sendo composta pela diversidade de textos que dialogam com a função de criar novos sentidos, modelizados pela linguagem da cultura. Por isso, o nerd e seus aspectos culturais – definidos em seus mitos, ritos e práticas – configuram-se dentro dessa noção, pois realizam um intercâmbio dialógico entre seus textos e códigos. A figura do nerd não tem lugar estático, mas se reconfigura e ganha novas roupagens por meio desse mecanismo. A semiosfera interpela linguagens de outras esferas, assim como faz circular seus textos da fronteira para o núcleo e vice versa. “Tal como o diálogo, a assimetria é um mecanismo da cultura que diz respeito a esta circulação de textos, ao traslado de um sistema de codificação a outro” (NUNES, 2014, p. 228). Dessa maneira, a concepção que se tem sobre a cultura pode modificar-se estruturalmente, ganhando nova aparência, e, posteriormente, repetir essa ação, a partir de novos textos. Se é trabalho da semiótica da cultura “examinar os complexos sistemas de signos que estão modelizados sob forma de texto” (RAMOS et al, 2007, p. 33), o que se propõe nesta pesquisa é possibilitar discussões que têm reflexo nesse pensamento. As contribuições da Semiótica da Cultura e de Lotman oferecem, somados a outras correntes de pensamento já apresentadas, um conjunto de possibilidades para entender, por meio dos textos culturais midiáticos, a cultura nerd. Assim, cabe ressaltar o entendimento de que o nerd e seus textos e códigos apresentados nas mídias representam uma esfera semiótica, que se estrutura em si mesma, e com outras esferas que traduzem, modificam e transformam a sua linguagem, num continuum semiótico, através do tempo. Pensando em como proceder no tratamento da literatura levantada e nos objetos propostos, o autor Benjamin Nugent apresenta um resumo de como realizar a tarefa: “Eu farei 32

uma abordagem séria para um assunto que geralmente é tratado superficialmente, o que é uma coisa nerd a se fazer” (2008, p. 11)28. Metodologicamente, a análise partirá do que Kellner (2001) chamou de “estudo cultural crítico”. Para o autor, é necessário articular o olhar sobre os objetos com o contexto social e cultural, também com as relações de poder que se manifestam no processo de produção e consumo da mídia. “Em termos simples, um estudo cultural multiperspectivo utiliza uma ampla gama de estratégias textuais e críticas para interpretar, criticar e descontruir as produções culturais em exame” (2001, p. 129). Para Kellner, é possível e preciso avaliar os produtos da cultura da mídia em relação ao seu contexto de produção e consumo. “Um estudo cultural contextualista lê os textos culturais em termos de lutas reais dentro da cultura e da sociedade contemporânea” (p. 135). A proposta deste trabalho é, com base nas teorias adotadas, propor uma análise cultural crítica, que perceba a produção cultural como resultado de um campo de disputas e negociações, de significados e ressignificações, dentro do qual os produtos da cultura midiática servem como objetos de análise para entender a transformação da cultura e, por consequência, da sociedade que a rodeia. Além disso, a pesquisa parte de uma ideia proposta por Jenkins (2006) em que o pesquisador se coloca na situação de “aca-fan”, ou um acadêmico e ao mesmo tempo fã (participante) do objeto que pretende analisar. Ao analisar as pesquisas sobre fandom, o autor propõe uma mudança nas gerações de pesquisadores, até chegar naqueles que nomeia “aca- fan”, “para quem essas identidades não são problemáticas de se misturar e combinar e que são capazes de escrever de maneira mais aberta sobre suas experiências em fandoms sem a ‘obrigação da defesa’, sem precisar defender a comunidade” (JENKINS, 2006, p. 12)29. Assim, tendo como base uma pesquisa realizada por meio de revisões, interpretações, descrições e análise, este trabalho se apropriará da pesquisa qualitativa, cuja preocupação é analisar e interpretar aspectos mais profundos de um fenômeno. Entre os tipos de pesquisa qualitativa, seguindo essa metodologia proposta, cabe ressaltar que esta pesquisa trata de um estudo de caso, tendo como objetos as produções audiovisuais.

28 Traduzido do original: “I will take a serious approach to a subject usually treated lightly, wich is a nerdy thing to do”. 29 Traduzido do original: “for whom those identities are not problematic to mix and combine, and who are able then to write in a more open way about their experience of fandom without the “obligation of defensiveness,” without the need to defend the community”. 33

Somando-se ao estudo de caso, este trabalho apresentará como técnica fundamental para o desenvolvimento de todo o estudo a pesquisa em referências bibliográficas, imprescindível no estudo de caso, haja vista sua finalidade contributiva no que diz respeito à análise do objeto. Como forma de manusear os materiais sem o tratamento científico, é necessário a adição da Análise Documental como ferramenta de apoio ao trabalho. A pesquisadora Goldenberg (2007, p. 33) acredita que “estudo de caso não é uma técnica específica, mas uma análise holística, a mais completa possível, que considera a unidade social estudada como um todo [...] com objetivo de compreendê-los em seus próprios termos”. Na sequência, a autora enfatiza que “o estudo de caso possibilita a penetração na realidade social, não conseguida pela análise estatística” (2007, p. 34). Este trabalho propõe também, técnica fundamental para o desenvolvimento de todo o estudo, a pesquisa em referências bibliográficas, imprescindível no estudo de caso, haja vista sua finalidade de contribuir à análise dos objetos. Assim, para contemplar as propostas, esta pesquisa irá apresentar e discutir os seguintes assuntos. No primeiro capítulo, serão apresentados os conceitos teóricos-metodológicos que embasam a pesquisa, com a finalidade de embasar o olhar sobre os objetos analisados. O segundo capítulo tem como objetivo apresentar a cultura nerd, sua história e seus produtos. Como um dos objetivos propostos neste trabalho, pretende apresentar uma ampla trajetória histórica dos nerds na sociedade ocidental moderna. O terceiro capítulo pretende apresentar as produções que serão analisadas nesta pesquisa; a intenção é permitir ao leitor a fácil compreensão das histórias, personagens, cenários e situações, ou seja, da representação da cultura nerd nas obras. Posteriormente, o quarto capítulo trará a análise, confrontando as representações da cultura nerd apresentadas no capítulo anterior com o arcabouço teórico levantado. O objetivo é entender e apresentar as transformações culturais que levaram a novas representações do universo nerd na cultura midiática, resultando, entre outras coisas, em um novo imaginário da cultura nerd. No desfecho, as considerações finais apresentarão o fechamento das ideias propostas, oferecendo a visão do autor sobre as definições da cultura nerd e seus elementos, sua posição na contemporaneidade e as possibilidades que se abrem por meio deste trabalho para novas discussões.

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1 – REFLEXÕES TEÓRICAS ACERCA DA IDEIA DE CULTURA

“Don't Panic.” - Douglas Adams, The Hitchhiker's Guide to the Galaxy

O objetivo deste capítulo é apresentar os referencias teórico-metodológicos que servirão de sustentação para a análise dos objetos propostos. Para isso serão levantados apontamentos acerca da cultura e apresentadas discussões baseadas nos Estudos Culturais Ingleses e na Semiótica da Cultura. Esses serão os aportes teóricos empregados para demonstrar que a cultura nerd se sustenta – e se transforma, reorganiza e recria – como um tipo de cultura, tendo em vista seus símbolos, ritos, prática e sistema de significação. Com esta finalidade, será realizada uma breve apresentação do conceito histórico de cultura, focando especialmente numa linha que conduza às discussões pertinentes a esse trabalho. Posteriormente, serão apresentados os marcos teóricos, a saber, os conceitos de cultura entendidos pelos Estudos Culturais Ingleses e as definições da Semiótica da Cultura Soviética. A intenção é apresentar o entendimento de cultura como forma presente, dinâmica e integrada a nossa existência social, além de possibilitar o entendimento dos mecanismos de cultura que formam e sustentam a cultura nerd. O objetivo é apresentar seus entendimentos sobre a cultura, a relação com as dinâmicas da comunicação de massa e das mídias e demonstrar como a cultura é uma das formadoras da nossa existência social e da nossa identidade, como forma de sustentar a análise dos objetos propostos, buscando definir a cultura nerd como um sistema cultural – em que estão presentes textos, identidades, práticas, representações e negociações – que será apresentado na análise.

1.1 – Maneiras de entender cultura

Cultura é uma palavra tão complexa quanto é presente na história humana. Sabemos que o termo foi utilizado pelos romanos (colere em latim) com o significado de cultivo. Desde de então o termo passou a ter diversos outros significados. De sentido polissêmico esteve associada a diferentes práticas, e foi alvo de debates filosóficos e acadêmicos. Os conceitos de cultura encontram campo aberto de debates e reinterpretações. Classificações foram criadas para determinar o significado e as utilizações da palavra. Na comunicação, sempre esteve 35

associada a estudos que a aproximavam das discussões acerca da comunicação de massa, sobretudo em debates sobre a cultura de massa, a cultura erudita e a cultura popular.

A ideia de cultura corresponde a um esforço comum de estudo e de tomada de consciência, mas as conclusões, bem como os pontos de partida, foram diversos. A palavra cultura não pode ser automaticamente utilizada como forma de diretiva social ou pessoal. Seu surgimento, com os significados modernos, assinala o esforço por uma avaliação qualitativa total, mas não chega propriamente a uma conclusão, sendo antes um processo (CUNHA, 2010, p. 47).

A primeira definição antropológica de cultura foi formulada por Edward Tylor30, segundo Jorge Roque Laraia (2001), na segunda metade do século XIX, usando apoio das ciências naturais – pois considerava a cultura um fenômeno natural. Taylor, armado de uma mentalidade comum naquele momento, aproximou a sua ideia de cultura do pensamento recém- publicado acerca da evolução das espécies de Charles Darwin31. É preciso lembrar que naquele período o conceito de cultura esteve fortemente atrelado às raízes biológicas e geográficas e seu entendimento dependida dos paralelos com outras ciências. Mesmo que o próprio Tylor, em 1871, já tivesse definido cultura “como sendo todo o comportamento aprendido, tudo aquilo que independe de comportamento aprendido, tudo aquilo que independe de uma transmissão genética, como diríamos hoje”, (LARAIA, 2001, p. 16), ainda é importante salientar que

Tylor, ao colocar esta visão universalista de cultura, rompe com as visões restritivas e individualistas no debate franco-alemão, por vezes considerada antítese da civilização; não apenas para Tylor, mas, para muitos antropólogos, a cultura consiste em ideias, abstrações e comportamentos (CUNHA, 2010, p. 23).

É relevante destacar que antes dele outros pensadores já trabalhassem com um conceito mais próximo do que pretendemos utilizar neste trabalho, como é o caso de John Locke32. Segundo Laraia:

Locke refutou fortemente as ideias correntes na época (e que ainda se manifestam até hoje) de princípios ou verdades inatas impressas hereditariamente na mente humana, ao mesmo tempo em que ensaiou os

30 Edward Burnett Tylor (1832 – 1917) foi um antropólogo britânico, pertencente a escola antropológica do evolucionismo social. 31 Charles Robert Darwin (1809 – 1892) foi um naturalista britânico conhecido por estudar a ocorrência da evolução das espécies e propor uma teoria para explicar como ela se dá por meio da seleção natural e sexual 32 John Locke (1632 — 1704) foi um filósofo inglês. 36

primeiros passos do relativismo cultural ao afirmar que os homens têm princípios práticos opostos (LARAIA, 2001, p. 15).

Nas palavras do filósofo inglês:

Quem investigar cuidadosamente a história da humanidade, examinar por toda a parte as várias tribos de homens e com indiferença observar as suas ações, será capaz de convencer-se de que raramente há princípios de moralidade para serem designados, ou regra de virtude para ser considerada... que não seja, em alguma parte ou outra, menosprezado e condenado pela moda geral de todas as sociedades de homens, governadas por opiniões práticas e regras de condutas bem contrárias umas às outras (LOCKE, 1999, p. 47).

Muito próximo disso, Jean Jacques Rousseau já apoiava a ideia de que a criação e a educação eram fundamentais para a construção do indivíduo e as havia publicado em suas obras. Nesta mesma linha de raciocínio, Jacques Turgot escreveu:

Possuidor de um tesouro de signos que tem a faculdade de multiplicar infinitamente, o homem é capaz de assegurar a retenção de suas ideias eruditas, comunicá-las para outros homens e transmiti-las para os seus descendentes corno uma herança sempre crescente (TURGOT apud LARAIA, 2001, p. 15).

Excluindo a palavra “eruditas” essa parece uma boa definição para a ideia de cultura. Mesmo assim, quase dois séculos após essas discussões terem se iniciado não é possível dizer que o debate esteja apaziguado, a discussão sobre o tema permanece, envolto em premissas teórico-metodológicas que subsidiam o pesquisador na sua análise. Por isso, cabe a esse trabalho assumir o conceito de cultura e os autores que orientarão a análise dos objetos. Essas ideias estão fortemente ligadas ao entendimento da cultura como uma força dinâmica, transformadora e (re) criadora. A cultura entrelaça elementos do passado e do presente recriando maneiras de pensar e agir, dando dinâmica à existência humana, como indivíduo e como sociedade. “De uma forma aproximada, a cultura pode ser resumida como o complexo de valores, costumes, crenças e práticas que constituem a forma de vida de um grupo específico” (EAGLETON, 2003, p. 52). Na década de 1960, o conceito de cultura estava novamente sendo revisado. Por um lado, os estudos nascidos na França, como pulicado por Edgar Morin33 em L’esprit du temps (1962) – Cultura de Massa no Século XX, no Brasil – pretendiam promover um debate sobre o

33 Nascido Edgar Nahoum (1921 – ), é um antropólogo, sociólogo e filósofo francês judeu. 37

real perfil da cultura inundada na comunicação massiva. A visão do antropólogo francês privilegiava a abertura do pensamento sobre os efeitos da comunicação na produção cultural e não somente o descarte desse tipo de cultura. Morin critica os intelectuais daquele período que relegavam a cultura de massa aos infernos infraculturais. Em atitude oposta, o posicionamento do autor convidava ao debate. “Meu objetivo aqui não é exaltar a cultura de massa, mas diminuir a ‘cultura cultivada’ [...], para fazer explodir a praça forte – o Montségur – de onde temos o hábito de contemplar esses problemas, e, também, restabelecer o debate em campo aberto” (MORIN, 2011, p. 9). Em outra frente, na Inglaterra, nascia também um tipo de pensamento que pretendia trazer à tona outra perspectiva, uma nova maneira de entender a cultura. Um dos pontos inaugurais desse pensamento pode ser encontrado nos escritos do acadêmico galês Raymond Williams34. Em 1958, ele publicou o texto Culture is Ordinary (ou Cultura é Para Todos, tradução de Maria Elisa Cevascos). Ao narrar suas observações sobre a dinâmica do mundo que o rodeava, Williams propôs uma nova perspectiva. Sua ideia dava à cultura mais um caráter paradoxal de ser, ao mesmo tempo, o mais habitual e ordinário elemento da existência humana e também a base para a formação na nossa coesão social e construção de significados.

A cultura é de todos: este o fato primordial. Toda sociedade humana tem sua própria forma, seus próprios propósitos, seus próprios significados. Toda sociedade humana expressa tudo isso nas instituições, nas artes e no conhecimento. A formação de uma sociedade é a descoberta de significados e direções comuns, e seu desenvolvimento se dá no debate ativo e no seu aperfeiçoamento, sob a pressão da experiência, do contato e das invenções, inscrevendo-se na própria terra (WILLIAMS, 1958, p. 1-2).

Não é objetivo deste trabalho criar uma definição sobre cultura e penso que nem seria uma tarefa prontamente realizável. Ao invés disso, é preciso entender que apesar do amplo espectro e o debate constante – como questiona Eagleton: “quando é que a cultura não esteve em crise?” (2003, p. 56) –, é possível assumir um posicionamento acadêmico acerca do tema para alicerçar a análise dos objetos propostos. Embora a compreensão sobre cultura não seja simples e seu sentido seja amplo, é preciso encontrar e definir quais serão os pontos de apoio para utilizá-los no trabalho; especialmente, apresentar o conceito de cultura em que a pesquisa será alicerçada.

34 Raymond Williams (1921 – 1988) foi um acadêmico, crítico literário e novelista Galês. Com pensamento baseado no Marxismo foi atuante na Nova Esquerda Inglesa e autor fundamental os Estudos Culturais Ingleses. 38

Difícil resistir à conclusão de que a palavra “cultura” é simultaneamente demasiado ampla e demasiado restrita para ter grande utilidade. O seu significado antropológico abrange tudo, de cortes de cabelo e hábitos de bebida à forma como devemos dirigir-nos ao primo em segundo grau do nosso cônjuge, enquanto a acepção estética da palavra inclui Igor Stravinsky mas já não a ficção científica. A ficção científica pertence à cultura “de massas” ou popular, uma categoria que flutua ambiguamente entre o antropológico e o estético. Inversamente, pode considerar-se o significado estético demasiado nebuloso e o antropológico demasiado redutor (EAGLETON, 2003, p. 49).

Essa linha de pensamento irá ajudar a superar um tipo de entendimento anterior sobre a cultura. E essas propostas serão parte da base teórica que irá acompanhar o desenvolvimento deste trabalho e a análise dos objetos. A cultura que proponho aqui engloba um conjunto massivo de entendimentos e não somente um conjunto de realizações humanas ligadas a ideia de arte. É preciso complexificar o conceito de cultura para entende-lo.

É especialmente interessante que, na arqueologia e na antropologia cultural, a referência à cultura ou a uma cultura seja primordialmente à produção material, enquanto na história e nos Estudos Culturais a referência é principalmente a sistemas simbólicos ou significação. Isso muitas vezes confunde, mas ainda mais frequentemente esconde a questão central das relações entre produção "material" e "simbólica", que em algum argumento recente - minha própria cultura - sempre tem que ser relacionada e não contrastada. Dentro desse argumento complexo, há posições fundamentalmente opostas, assim como efetivamente sobrepostas; há também, compreensivelmente, muitas questões não resolvidas e respostas confusas. Mas esses argumentos e questões não podem ser resolvidos reduzindo a complexidade do uso real (WILLIAMS, 1985, p. 91, tradução nossa)35.

Entender que a cultura faz parte de um complexo sistema simbólico de significações e atribuição de sentidos contribui para que esses referenciais auxiliem na visão sobre os objetos propostos nesse trabalho e na sua posterior análise.

1.2 – A centralidade da cultura

35 Traduzido do original: “It is especially interesting that in archaeology and in cultural anthropology the reference to culture or a culture is primarily to material production, while in history and cultural studies the reference is primarily to signifying or symbolic systems. This often confuses but even more often conceals the central question of the relations between ‘material’ and ‘symbolic’ production, which in some recent argument - cf. my own Culture - have always to be related rather than contrasted. Within this complex argument there are fundamentally opposed as well as effectively overlapping positions; there are also, understandably, many unresolved questions and confused answers. But these arguments and questions cannot be resolved by reducing the complexity of actual usage.” 39

Na década de 1950, na Inglaterra, organizados no Departamento de Língua Inglesa na Universidade de Birmigham36, pesquisadores marxistas, participantes da New Left37 inglesa, iniciaram, por meio do lançamento de suas obras, uma nova proposta de entender e debater a cultura como fenômeno tangente às preocupações acadêmicas. Foram as publicações inaugurais que deram início ao pensamento dos Estudos Culturais: As utilizações da cultura, publicado de Richard Hoggart38 em 1957; Cultura e sociedade, de Raymond Williams de 1958; e Formação da classe operária inglesa, escrita por Edward Thompson39 de 1963. Outro membro de destaque entre esses autores foi o pesquisador jamaicano, radicado na Inglaterra, Stuart Hall. Esses livros se destacaram por darem à cultura papel essencial no entendimento sobre as transformações históricas da humanidade, dando a ela uma função de destaque. Essa união de acadêmicos preocupados em discutir sobre cultura e seus reflexos na sociedade contemporânea formou, em 1967, o Centre for Contemporary Cultural Studies (CCCS), tendo Richard Hoggard como seu primeiro diretor. Stuart Hall dirigiu o Centro entre 1969 e 1979 dando grande destaque aos estudos. O objetivo dos Estudos Culturais, para Hall, era “dar à Cultura um papel constituído e determinado na compreensão e na análise de todas as instituições e relações sociais” (HALL, 1997, p. 11). Assim, os Estudos Culturais Britânicos valorizavam a dimensão cultural das relações, como base para as transformações, e não somente como superestrutura de uma infraestrutura econômica. “Eles não apenas levaram a cultura a sério, como uma dimensão sem a qual as transformações históricas, passadas e presentes, simplesmente não poderiam ser pensadas de maneira adequada” (HALL, 2003, p. 133). Para os pensadores dos Estudos Culturais, a noção de Cultura concentrava em si as grandes transformações da existência humana na política, economia e sociedade.

Nesse aspecto, é possível afirmar que os Estudos Culturais se preocupam com o estudo da cultura, mas a partir de uma abordagem que privilegia uma espécie de intervenção política, como, por exemplo, os estudos da política cultural da diferença racial e sexual que tanto marcaram o campo (ZIVIANI, 2017, p. 11).

36 The University of Birmingham, fundada em 1900 está localizada no bairro de Edgbaston, em Birmingham, no Reino Unido. 37 Termo usado para se referir a movimentos políticos de esquerda nascidos na década de 1960 em vários países pelo mundo. 38 Herbert Richard Hoggart (1918 – 2014) foi um acadêmico com a carreira ligada a literatura inglesa e aos estudos em sociologia. 39 Edward Palmer Thompson (1924 – 1993) foi um historiador marxista inglês. 40

O debate acerca da cultura como elemento importante na nossa existência social, inaugurada por Williams em Cultura e sociedade (1969) e ampliada em The long revolution (apud HALL, 2003, p. 135), não encarava mais a cultura como a soma dos conhecimentos adquiridos, como ápice do pensamento humano, um caminho para qual todos apontam; ao invés disso, o autor propunha que a cultura se constrói de maneira democrática. Ela é ordinária, comum e cotidiana. Desse raciocínio não escapava nem mesmo a arte, que anteriormente se pensava estar em uma posição de privilégio, como a materialização e concretização desse pensamento elevado. A arte existe somente como atividade humana, reflexo da sociedade, da mesma forma que outras atividades tal como o comércio, a política, o trabalho ou as relações familiares.

Assim, a arte, ao passo que se relaciona claramente às outras atividades, pode ser vista como expressão de certos elementos da organização que, dentro dos termos daquela organização, só poderiam ter sido expressos dessa forma. Não se trata então de uma questão de relacionar a arte à sociedade, mas de estudar todas as atividades e suas inter-relações, sem qualquer concessão de prioridade a qualquer uma que possamos escolher para abstrair (WILLIAMS, 2001, p. 62, tradução nossa)40.

Nessa perspectiva era importante ter em mente a comunicação. Para Williams, a comunicação é portadora de textos repletos de significados culturais. Essa visão abria um novo horizonte de possibilidades – dos quais esse trabalho pretende se apropriar – que relacionavam as práticas, a produção material, e a existência social como resultados da cultura (ou culturas) vigente(s). Pretendia-se uma menor distinção como objeto válido e problema aceitável entre os tipos de cultura, uma menor distinção entre a alta arte e cultura e o entretenimento popular.

É interessante que a expansão social e uso antropológico de cultura e cultural e tais formações como subcultura (a cultura de um grupo menor distinguível), exceto em certas áreas, contornou ou diminuiu efetivamente a hostilidade e sua inquietação associada e o constrangimento (WILLIAMS, 1985, p. 92)41.

A posição do autor questionava as separações entre culturas, ou a ideia de cultura era algo que pertencia somente a um pequeno grupo (classe dominante), e a redução da cultura aos

40 Traduzido do original: “Thus art, while clearly related to the other activities, can be seen as expressing certain elements in the organization which, within that organization’s terms, could only have been expressed in this way. It is then not a question of relating the art to the society, but of studying all the activities and their interrelations, without any concession of priority to any one of them we may choose to abstract” 41 Traduzido do original: “It is interesting that the steadily extending social and anthropological use of culture and cultural and such formations as sub-culture (the culture of a distinguishable smaller group) has, except in certain areas, either bypassed or effectively diminished the hostility and its associated unease and embarrass” 41

seus produtos. Na perspectiva do autor não havia distinção entre culturas. E o debate deveria girar ao redor do sistema simbólico que permeia essa ideia. Assim, a cultura passaria a ser entendida como produção de sentidos.

Cultura está relacionada com as artes e a produção espiritual, no âmbito do simbólico e das representações, como também se relaciona com as diferentes práticas que ressignificam e dão sentido às questões do simbólico e das representações. A cultura é um tipo de vivência que provê de sentido o modo como a sociedade organiza a sua vida e faz dela um todo coerente e inteligível (ZIVIANI, 2017, p. 14-15).

A noção de cultura proposta se aproximava e se relaciona com as práticas sociais. A cultura representa o padrão no qual o modo de pensar e agir se organiza. Ela dá coesão ao ato de viver em sociedade e se entrelaça a todas as práticas sociais. Buscando a definição de Thompson.

Ele define cultura ao mesmo tempo como sentido e valores que nascem entre as classes e grupos sociais diferentes, com base em suas relações e condições históricas, pelas quais eles lidam com suas condições existenciais e respondem a estas; e também como as tradições e práticas vividas através das quais esses “entendimentos” são expressos e nos quais são incorporados (THOMPSON apud HALL, 2003, p. 142).

Essa posição consolida a visão de que a cultura ocupa papel central, transpassando às práticas cotidianas, apresentando-se como uma força ordenadora das significações dos textos de um ou mais grupos. Assim, dá-se a cultura papel fundamental na organização das relações sociais humanas, o que Hall (1997) denominou de centralidade da cultura. “Entendemos o lugar da cultura na estrutura empírica real e na organização das atividades, instituições, e relações culturais na sociedade, em qualquer momento histórico particular” (HALL, 1997, p. 16) É importante ressaltar que entender a cultura como algo amplo e de acesso irrestrito; valorizar as práticas e significações de cada esfera social; e superar as noções de alta e baixa cultura para ampliar o debate sobre as práticas, os elementos simbólicos e os produtos, não significa aceitar ou acreditar que as disputas em torno da cultura não existam. A cultura ordinária (ou cotidiana) ainda se estabelece dentro da perspectiva de hegemonia de Gramsci42. O sistema de hegemonia se dá (entre outros campos de disputa) pela cultura e, como consequência, pelo modo de viver. “Os embates e acordos em torno da construção social têm na cultura elemento fundamental, uma vez que numa sociedade baseada na dominação, as

42 Antonio Gramsci (1891 - 1937) foi um filósofo marxista, jornalista, crítico literário e político italiano. Sua produção e pensamento foram de grande influência para os autores ingleses que fundaram os Estudos Culturais 42

disputas sociais são permanentes e apresentam as contradições que estruturam esse modo de vida” (ZIVIANE, 2017, p. 17). Na perspectiva de Williams, é nessa forma de organizar a sociedade imposta pelas disputas, na qual a cultura desempenha papel de destaque, que é possível compreender a significação e os significados oriundos da dominação, negociação e resistência. É a partir dessa dinâmica que se formam as estruturas que sustentam nossa existência somo sociedade. Ziviane (2017, p. 18), ao discutir em Williams essa ideia, afirma: “a partir da compreensão das formações culturais e do que estrutura os modos de vida, é possível descrever e interpretar a sociedade que acaba por conformar tais formas culturais e modos de vida”. Raymond Williams ainda destaca que apesar dos processos de dominação inerentes também à esfera cultural, por meio da pressão das classes dominantes sobre os oprimidos, o poder hegemônico pode controlar os processos de produção cultural, mas não a significação desses produtos: “Pois os grupos dominantes nem sempre controlam (historicamente, de fato, muitas vezes não o fazem) o sistema de significações global de um povo; tipicamente são antes dominantes dentro dele do que sobre e acima dele” (WILLIAMS, 1992, p. 217). Nessa perspectiva, é necessário entender que as relações de hegemonia não resistidas, ressignificadas e negociadas entre os grupos. Para o autor a produção cultural, mesmo que hegemônica, deve encontrar espaço para ser distribuída a todos. O que define a produção cultural está ligada não somente ao produtor, mas também aos indivíduos consumidores. “A ligação (produtores culturais e grupos dominantes) pode ser exclusiva, de modo que o trabalho cultural é desempenhado apenas para o grupo dominante. Pode ser estrategicamente inclusiva, de modo que, embora seja desempenhado para todos, isso se faz no interesse do grupo dominante” (WILLIAMS, 1992, p. 216). Hall ainda desdobra essa ideia. O pensador jamaicano entende que as práticas de significação e reinterpretação de grupos dominados, ou que são receptores de uma nova cultura hegemônica, dá dinamismo para as transformações culturais. Esse choque transforma a subordinação em hibridismo. Para Hall (1997, p. 19), “o resultado do mix cultural, ou sincretismo, atravessando velhas fronteiras, pode não ser a obliteração do velho pelo novo, mas a criação de algumas alternativas híbridas, sintetizando elementos de ambas, mas não redutíveis a nenhuma delas” Assim, o ponto fundamental é perceber que os Estudos Culturais deram à cultura um peso explicativo muito maior do que já havia sido dado. Foi criado um espaço para perceber que os mecanismos que intermediam as relações humanas estão imbuídos de significados. Os textos, os signos coexistem interdependentes de nós. 43

Os seres humanos são seres interpretativos, instituidores de sentido. A ação social é significativa tanto para aqueles que a praticam quanto para os que a observam: não em si mesma, mas em razão dos muitos e variados sistemas de significado que os seres humanos utilizam para definir o que significam as coisas e para codificar, organizar e regular sua conduta uns em relação aos outros. Estes sistemas ou códigos de significado dão sentido às nossas ações. Eles nos permitem interpretar significativamente as ações alheias. Tomados em seu conjunto, eles constituem nossas "culturas". Contribuem para assegurar que toda ação social é "cultural", que todas as práticas sociais expressam ou comunicam um significado e, neste sentido, são práticas de significação. (HALL, 1997, p. 16)

Na contemporaneidade, esse fenômeno ganhou ainda mais celeridade. As trocas de informações, os pontos de contato e a disseminação foram potencializados pelos veículos de comunicação de massa, sobretudo pela internet, em que a produção cultural vem se ampliando. A revolução dos meios de comunicação na década de 1990 impulsionou a circulação da produção cultural: “A cultura tem assumido uma função de importância sem igual no que diz respeito à estrutura e à organização da sociedade moderna tardia, aos processos de desenvolvimento do meio ambiente global e à disposição de seus recursos econômicos e materiais” (HALL, 1997, p. 17). Ao mesmo tempo, a produção industrializada se tornou ainda mais relevante nesse horizonte, pois as mediações e as práticas de significação estão cada vez mais interligadas à produção massiva da cultura. Se no começo do século passado a indústria de ferro, movida a carvão e petróleo alimentava a base da produção capitalista, no início do século XXI a informação e os produtos culturais são a matéria prima. “Hoje, a mídia sustenta os circuitos globais de trocas econômicas dos quais depende todo o movimento mundial de informação, conhecimento, capital, investimento, produção de bens, comércio de matéria prima e marketing de produtos e ideias” (HALL, 1997, p. 17). E esse tipo de mudança cria, por meio da cultura, uma transformação social. Williams (2000) ressalta o fato que essa produção de cultura material não pode ser separada dos mecanismos sociais de sua criação. O autor propõe que o entendimento deve ser feito de forma completa levando em consideração as relações entre instituições, práticas e obras resultantes e criadoras dessa cultura.

Assim, a organização social da cultura, como um sistema de significações realizado, está embutida numa série completa de atividades, relações e instituições, das quais apenas algumas são manifestamente ‘culturais’. Pelo menos para as sociedades modernas, esta é uma utilização teórica mais eficiente do que o sentido de cultura como um modo de vida global. Esse 44

sentido, oriundo da antropologia, tem o grande mérito de salientar um sistema geral – específico e organizado de práticas, significados, e valores desempenhados e estimulados. Ele é em princípio potente contra os hábitos de estudos isolados, historicamente desenvolvidos dentro da ordem social capitalista, a qual pressupõe, na teoria e na prática, um “lado econômico da vida”, um “lado político”, um “lado privado”, um “lado de lazer” e assim por diante (WILLIAMS, 2000, p. 208).

Nesse contexto, é preciso apresentar a ideia da centralidade da cultura. É possível perceber uma transformação no modo de vida das populações do mundo todo; em um ritmo e com ações diferentes e diferentes lugares e diferentes situações. Condições econômicas são também causadoras dessa transformação, assim como a política, os conflitos armados, as migrações. Mas é necessário um olhar atendo para verificar que muito do que é visto na modificação no cotidiano do mundo tem relação com a transformação induzida pelas mediações culturais oferecidas, em grande escala, pelos produtos da comunicação de massa. Azevedo (2017), atribui a Williams e a Thompson a visão de que essas dimensões não podem ser dissociadas.

Os procedimentos econômicos e políticos organizam a vida social. Já a cultura é o campo por meio do qual essa organização se expressa no concreto, na forma de um modo de vida real. Em particular, a cultura é o modo como a sociedade é concebida e vivida pelas pessoas. Não se trata de algo “derivado” ou “secundário”, e por esse motivo não devemos pensar a cultura em situação de divórcio com a sociedade (AZEVEDO, 2017, p. 227).

A cultura é uma poderosa criadora de ritos, práticas, costumes. A cultura oferece pontos de apoio à vida prática e interfere no nosso cotidiano. Sustenta a criação daquilo que achamos mais íntimo, como a nossa própria construção de identidade. Ela é central na nossa existência.

A expressão "centralidade da cultura" indica aqui a forma como a cultura penetra em cada recanto da vida social contemporânea, fazendo proliferar ambientes secundários, mediando tudo. A cultura está presente nas vozes e imagens incorpóreas que nos interpelam das telas, nos postos de gasolina. Ela é um elemento-chave no modo como o meio ambiente doméstico é atrelado, pelo consumo, às tendências e modas mundiais. (HALL, 1997, p. 22)

Essa forma de enxergar está baseada na ideia de que a cultura é um campo rico de disputas simbólicas, significações; espaço propicio para a criação de identidades, ritos e práticas do cotidiano. Este ponto de vista possibilita a compreensão de que a cultura não está ligada somente a produção artística ou ao acúmulo de conhecimento e que há, na dinâmica da 45

existência social, um espaço para negociação e reinterpretação dos signos da cultura. Deste modo, não podemos reduzir a ideia de que há uma aceitação passiva de uma massa inerte, mas “sim de que nela está entranhada a dimensão do conflito, do processo de disputa e de luta social política” (ZEVIANI, 2017, p. 19). A cultura é fonte de uma força transformadora que dá forma a sociedade, em outras palavras, é a nascente das disputas simbólicas que movem a dinâmica social; objeto de análise rico e ubíquo na contemporaneidade.

Por bem ou por mal, a cultura é agora um dos elementos mais dinâmicos - e mais imprevisíveis - da mudança histórica no novo milênio. Não deve nos surpreender, então, que as lutas pelo poder sejam, crescentemente, simbólicas e discursivas, ao invés de tomar, simplesmente, uma forma física e compulsiva. (HALL, 1997, p. 20)

Do ponto de vista dos Estudos Culturais, a cultura é lugar de tensionamento, espaço privilegiado para se fazer a leitura da sociedade, das suas estruturas e relações. Esse diagnóstico, neste trabalho, será realizado por intermédio da análise de seus produtos, a saber, uma série de televisão e um filme de cinema, na medida que esses produtos são portadores de sentido e alvo de ressignificações para o público consumidor. Os produtos culturais midiáticos ajudam a criar textos culturais, que serão interpretados e reinterpretados no tempo e no espaço, e auxiliaram a construir práticas, identidades e ritos que estão alinhados à cultura nerd.

1.2.1 – Comunicação e cultura A análise da relação entre a cultura e as práticas e produtos culturais parte sempre dos textos, pois são eles portadores de sentidos que estruturam nossa existência social. Esses processos são percebidos especialmente na comunicação e, como no caso dos objetos deste trabalho, na comunicação de massa. Segundo Hall (2003), a comunicação de massa se apresenta como grande mediadora das interações sociais, uma forte ferramenta para a formação de identidades. Gramsci (2001, p. 78) destaca o jornalismo como o representante dessa comunicação massiva: “a imprensa é a parte mais dinâmica da estrutura ideológica, [...] tudo o que influi ou pode influir sobre a opinião pública, direta ou indiretamente, faz parte dessa estrutura”. Essa relação se dá como disputa ideológica, em forma de negociação. Para Zeviani (2017, p. 26-27) “na visão de Gramsci, os meios de comunicação são órgãos formadores de consenso, cuja meta é dissipar as expressões de dissenso e fazer reverberar o ideário dominante”. 46

Martín-Barbero define essa relação explicando sua mudança histórica:

O longo processo de enculturação das classes populares no capitalismo sofre desde meados do século XIX uma ruptura mediante a qual obtém sua continuidade: o deslocamento da legitimidade burguesa “de cima para dentro”, isto é, a passagem dos dispositivos de submissão aos de consenso. Esse “salto” contém a pluralidade de movimentos entre os quais os de mais longo alcance serão a dissolução do sistema tradicional de diferenças sociais, a constituição das massas em classe e o surgimento de uma nova cultura, de massa (2013, p. 173).

Embora se entenda que a comunicação de massa participa de um processo hegemônico que compõe a estrutura social, não significa aceitar que isso resulte em alienação ou submissão dos receptores. Os textos da comunicação são carregados de manifestações simbólicas que serão utilizados na construção de sentidos, porém, os mesmos serão ressignificados e reinterpretados por meio da contextualização de cada receptor ou grupo de receptores. Nessa perspectiva, segundo Martín-Barbero (2013), é trazido para o processo de produção de sentido o papel de quem recebe a mensagem, deslocando essa função que era exclusiva do produtor. “O novo paradigma traz para o centro da produção de sentidos da mensagem também o receptor, que ao contrário do pressuposto pelos frankfurtianos, possui capacidade crítica para selecionar e reelaborar o conteúdo dos meios massivos” (ZEVIANI, 2017, p. 27).

A cultura de massa não aparece de repente, como uma ruptura que permita seu confronto com a cultura popular. O massivo foi gerado lentamente a partir do popular. Só um enorme estrabismo histórico e um potente etnocentrismo de classe que se nega a nomear a popular como cultura pôde ocultar essa relação, a ponto se não enxergar na cultura de massa senão um processo de vulgarização e decadência da cultura culta (MARTÍN-BARBERO, 2013, p. 175).

Para Williams (1969) ter a comunicação como objeto de análise da cultura era fundamental. Os meios massivos propagam a mensagem e remanejam uma enorme quantidade de bens simbólicos por meio de uma rápida rede de distribuição, além disso, “Williams considera as comunicações um elemento crucial no estudo da cultura, porque é a linguagem que está na base da definição dos seres humanos” (CUNHA, 2010, p. 52). A cultura de massa, relacionada aos meios de distribuição massivos, é parte do aparato que forma as práticas do cotidiano e produção de bens culturais. A cultura, é claro, se transformou a partir do início da era industrial, transformando, por consequência, a existência social. 47

Cultura não foi apenas uma resposta aos novos métodos de produção – à nova Indústria. Ligava-se também aos novos tipos de relações pessoais e sociais, constituindo, repito, um reconhecimento de separação prática e uma forma de acentuar alternativas. A ideia de cultura seria mais simples se fosse resposta ao industrialismo apenas; foi, porém, resposta a novos desenvolvimentos políticos e sociais (WILLIAMS, 1969, p. 20).

Para Martín-Barbero, não há dissociação entre a cultura de massa e os meios de comunicação de massa. Segundo o autor, “dizer ‘cultura de massa’ equivale, em geral, a nomear aquilo que é entendido como um conjunto de meios massivos de comunicação” (2013, p. 196). Na mesma perspectiva do autor, é possível entender que essa relação, diferente do que teorizado, por exemplo, na Teoria Crítica, extrapola a noção de submissão e dominação e o fatalismo da lógica mercantil, para revelar uma face mais dinâmica. “Estamos afirmando que as modalidades de comunicação que neles e com eles aparecem só foram possíveis na medida em que a tecnologia materializou mudanças que, a partir da vida social, davam sentido a novas relações e usos” (MARTÍN-BARBERO, 2013, p. 197). A análise dos meios como mediadores é fundamental para entendermos a cultura como esse processo dinâmico que dá subsídios para os nossos ritos e práticas cotidianos, as mediações aqui surgem como um processo de transformações culturais que não tem início nos meios, mas, que com a distribuição acessível de produtos culturais massivos passaram a desempenhar um papel fundamental nas relações sociais. Cunha (2010), ao descrever em Williams o potencial de se analisar a comunicação de massa como ferramenta para entendermos e avaliarmos o mundo em que vivemos comenta que

O autor defende que não podemos examinar (ou interrogar) os processos gerais de comunicação na sociedade moderna sem examinar os formatos das instituições. Se entendermos a importância da comunicação, em todas as nossas atividades sociais, descobriremos que ao examinar os processos e instituições também estaremos examinando a nossa sociedade (CUNHA, 2010, 1964).

Dessa forma evita-se o maniqueísmo na análise e a hierarquização da qualidade da cultura. Foca-se no processo de comunicação como sendo fundamental para a análise dos objetos propostos. Para Williams, a relação comunicação e cultura é o que alimenta a nossa apreensão de bens simbólicos, e possibilita a nossa ressignificação dos conteúdos.

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Pois não se trata apenas de transmitir ou receber informação, mas de um processo de recepção e interpretação, em função de um contexto sociocultural. Não se pode subestimar a capacidade das pessoas, mas respeitar seus interesses, mais que suas limitações. Elas dispõem dos meios de comunicação, não são vítimas passivas, pois trazem uma cultura consigo. Por isso a cultura aparece como viés privilegiado para compreender os processos de comunicação. (CUNHA, 2010, p. 93)

Ao escrever o prefácio à edição brasileira de Televisão: tecnologia e forma cultural, de Raymond Williams (2016), o pesquisador australiano Greame Turner retoma definições essenciais do autor para conceituar a ideia de forma cultural: “a cultura, como forma, ‘tanto resulta das tecnologias como molda o que elas irão produzir’, mas a cultura, “compreendida como poder e capital, tenta sempre fazer com que a tecnologia realize o que o lucro e a política preferem” (TURNER, 2019, p. 9). Essa ideia é base para se perceber o relacionamento circular entre a cultura e as estruturas sociais existentes. Um produto cultural ou uma tecnologia nova não causa, por si mesma, mudança social, cultural ou histórica; mas o complexo sistema onde essa cultura existe é um motor impulsionador de transformações, aliadas ao capital e ao lucro, mas resinificadas em espaços e momentos diferentes. Na contemporaneidade, o enfoque sobre a análise da cultura se encerra na relação entre cultura e comunicação. Esse fenômeno foi denominado Cultura das Mídias, e é ponto de interesse de autores e pesquisadores sob mais de um escopo teórico. O termo muito popular pela obra de Douglas Kellner (2001) representa o espírito do tempo sob o qual a cultura e a comunicação formam uma nova forma de existir, um fenômeno atual e ubíquo em grande parte do mundo. Essa ideia ganha reforço na perspectiva de Lúcia Santaella (1996). Para a autora esses dois termos estão sempre associados e são responsáveis, em conjunto, pela aceleração das dinâmicas culturais (produto e recepção) e pelo intercâmbio de diversas formas de cultura.

Se cultura já é inseparável de comunicação, no caso das mídias isto se torna inda mais indissociável, uma vez que mídias são, antes de tudo, veículos de comunicação, do que decorre que essa cultura só pode ser estudada levando- se em conta as inextricáveis relações entre cultura e comunicação (SANTAELLA, 1996, p. 29).

Para Kellner, a cultura da mídia, formada pelos meios de comunicação de massa existentes, é responsável por moldar a forma de viver e se expressar. É a partir das produções dessa cultura que muitas pessoas constroem sua própria identidade, seus valores morais e éticos, 49

e sua visão sobre o outro. “As narrativas veiculadas pela mídia fornecem os símbolos, os mitos e os recursos que ajudam a construir uma cultura comum para a maioria dos indivíduos em muitas regiões do mundo de hoje” (KELLNER, 2001, p. 9). Ainda para o autor, essa cultura é distribuída pelos canais pertencentes a comunicação de massa (cinema, televisão, rádio, internet e a imprensa), é industrial e comercial e seus produtos são mercadorias. Essa ideia remete a proposta apresentada por George Yúdice (2004), que propõe pensar a cultura como um recurso. “A maior distribuição de bens simbólicos no comércio mundial (filmes, programas de televisão, música, turismo etc.) deram à esfera cultural um protagonismo maior do que em qualquer outro momento da história da modernidade” (2004, p. 26). A cultura como recurso serviria como matéria prima para a criação de produtos culturais que serão distribuídos pelos meios da cultura de massa e ressignificados por inúmeros consumidores. Outra característica da cultura das mídias, segundo Santaella (1996), é a mobilidade da informação entre uma mídia e outra. Com breves modificações a informação transita de um meio para o outro, sendo distribuída e consumida constantemente. Isso porque as mídias conhecem suas limitações e tendem a criar redes intercomplementares. “Cada mídia, devindo à sua natureza, apresenta potenciais e limites que lhe são próprios. Esses não são nunca idênticos de uma mídia à outra, de modo que na rede das mídias, cada uma terá funções diferenciais” (SANTAELLA, 1996, p. 37). Nessa cultura interconectada no processo de distribuição de mensagens e informações, o poder por ela exercido ajuda a definir a percepção do mundo sobre seus próprios dilemas e debates. A informação da imprensa distribuída pelos jornais escritos, radiofônicos e televisivos impacta sobre a existência do indivíduo, assim como, os bens produzidos pela indústria do cinema ou da música. Essa rede de distribuição “dramatizam e legitimam o poder das forças vigentes e mostram aos não poderosos, que, se não se conformarem, estarão expostos ao risco de prisão ou morte” (KELLNER, 2001, p. 10). É importante frisar que as modificações técnicas e tecnológicas dão impulso à cultura da mídia. As transformações permitidas pela televisão por satélite, ou a internet são marcadores históricos da mudança. Kellner reconhece isso, mas desloca o olhar da análise para os meios como mediadores das mudanças. Para o autor a ideia é analisar “os efeitos dos textos da cultura da mídia, o modo como o público se apropria dela e a usa, além dos modos como imagens, figuras e discursos da mídia funcionam dentro da cultura em geral” (KELLNER, 2001, p. 77) Esse pensamento tem reforço da proposta de Santaella sobre a cultura das mídias, já que a autora acredita que “é a cultura em geral que a cultura das mídias tende a colocar em 50

movimento, ou seja, tende a acelerar o trânsito entre as diversas formas de cultura” (SANTAELLA, 1996, p. 39). Para a semioticista, esse fenômeno também se estabelece na relação entre as novas tecnologias e as práticas sociais que se originam delas. A expressão cultura das mídias “procurava dar conta de fenômenos emergentes e novos na dinâmica cultural” (SANTAELLA, 2003, p. 52). A pesquisadora aborda o surgimento da cultura da mídia como suplantadora da cultura de massa. Uma vez que a apropriação dos meios de produção e reprodução ficou disponível a uma quantidade cada vez maior de pessoas, e a verticalidade do esquema produtor/receptor tendia a uma horizontalização, por conta, principalmente, dos meios digitais de comunicação. Apesar da autora manter um olhar maior para os meios, ela afirma que as mídias novas e as transformações das mídias antigas proporcionam mudanças na prática cotidiana e na existência social. Apesar de manter seu foco na análise dos efeitos e das ressignificações das mensagens, Kellner mantém ciência sobre a mudança proporcionada pelos novos meios de produção. Um materialismo cultural, ao citar Raymond Williams, que não dispensa o entendimento sobre a economia e a política para entender os produtos da cultura. “Pretendemos que nosso estudo, da cultura da mídia seja uma tentativa de situar as produções culturais em contextos econômicos, sociais e políticos mais amplos dos quais elas emergem e nos quais exercem seus efeitos” (KELLNER, 2001, p. 74) Usando o conceito de hegemonia de Gramsci e, certamente, uma boa medida da Teoria Crítica da Sociedade, Kellner (2001) ressalta que mesmo sob uma distribuição mais horizontal da produção, as mensagens ainda pertencem aos grupos hegemônicos, e o controle dela, mesmo que menos restrito, ainda se disponibiliza em um número limitado de opções. Mesmo assim, “precisamos ver a importância de uma infinidade de lutas entre vários grupos, como lutas entre grupos dominantes e dominados e entre setores de classe pelo controle da sociedade” (KELLNER, 2001, p. 79). Na visão do autor essas disputas acontecem nas produções e nos textos da cultura, e, portanto, a cultura da mídia se torna um terreno fértil para uma observação crítica.

A expressão 'cultura da mídia' também tem a vantagem de dizer que a nossa é uma cultura da mídia, que a mídia colonizou a cultura, que ela constitui o principal veículo de distribuição e disseminação da cultura, que os meios de comunicação de massa suplantaram os modos anteriores de cultura como o livro ou a palavra falada, que vivemos num mundo no qual a mídia domina o lazer e a cultura. Ela é, portanto, a forma dominante e o lugar da cultura nas sociedades contemporâneas (KELLNER, 2001, p. 54). 51

O autor define que os produtos da cultura de massa não são somente conservadores ou liberais, sua estratégia é comunicar com uma grande quantidade de espectadores. A cultura da mídia, mesmo hegemônica, apresenta estratégias de difusão em uma grande quantidade de espectadores, como mercadoria, ou recurso, se retornarmos a proposta de Yúdice (2004). Os produtos da cultura de massa visam uma grande distribuição.

Os textos da cultura da mídia incorporam vários discursos, posições ideológicas, estratégias narrativas, construção de imagens e efeitos) por exemplo, cinematográficos, televisivos, musicais) que raramente se integram numa posição ideológica pura e coerente. Tentam oferecer algo para atrair o maior público possível e, por isso, muitas vezes incorporam um amplo espectro de posições ideológicas (KELLNER, 2001, p. 123).

Ele ainda salienta que mesmo tentando incorporar uma grande variedade de ideologias, é importante ressaltar que, em alguns casos, esses textos refletem um ponto de vista específicos daquele espaço e/ou tempo “estabelecendo uma relação deles com os discursos e debates políticos de sua época” (KELLNER, 2001, p. 123). Desta forma, a cultura midiática representa um importante marco na relação entre a comunicação e cultura. Sua produção influencia grandemente os nossos hábitos e nosso modo de existir socialmente. A renovação e a invenção tecnológica impulsionam essa cultura e suas transformações técnicas alteram suas produções. Criam-se novas formas de existir por meio das transformações materiais, que modificam a cultura, que por sua vez, medeiam nosso cotidiano. A definição de Santaella para a cultura midiática ilustra essa ideia:

A dinâmica da cultura midiática se revela assim como uma dinâmica de aceleração de tráfego, das trocas e das misturas entre múltiplas formas, estratos, tempos e espaços da cultura. Por isso mesmo, a cultura midiática é muitas vezes tomada como uma figura exemplar da cultura pós-moderna (SANTAELLA, 2003, p. 59)

A cultura da mídia proporciona essa circulação rápida e fluída, pois distribui produtos e dá subsídios para a criação de hábitos, ritos e práticas. A cultura da mídia é ubíqua na nossa existência e é motor de transformações na nossa identidade cultural, por exemplo, na criação de novos hábitos de consumo e pelo hibridismo contemporâneo. Para a autora a cultura da mídia é “inseparável do crescimento acelerado das tecnologias comunicacionais” (SANTAELLA, 2003, p. 59). 52

E a essa relação, ou mais propriamente dito, ao fenômeno relacionado à essas transformações culturais e à uma nova cultura que se moldou por meio da existência desse “crescimento acelerado das tecnologias comunicacionais”, o pesquisador americano Henry Jenkins chamou de Cultura da Convergência (2009). A expressão que se popularizou dentro e fora do contexto acadêmico tenta dar conta de explicar uma nova cultura que nasceu pela popularização de meios digitais de comunicação e da apropriação dos receptores desses meios. Em um novo ambiente de práticas e hábitos, onde as reuniões de uma empresa ou o encontro romântico de um casal de namorados pode ser mediado pela tela de um dispositivo que tem os dados transmitidos pela internet a qualquer lugar do mundo muda todo o nosso modo de existir, cria-se uma nova “lógica cultural” (JENKINS, 2009, p. 44). Na cultura da mídia, em que os receptores têm sua apreensão do mundo intermediadas pelos meios de comunicação de massa, a cultura da convergência representa uma nova etapa dessa cultura contemporânea, em que “os consumidores estão lutando pelo direito de participar mais plenamente de sua cultura” (JENKINS, 2009, p. 47).

A cultura da convergência assinala a movimentação de uma cultura mais participativa, marcada pela transição de uma postura passiva dos consumidores de mídia para uma postura participativa. Com o espaço aberto pela disponibilização e facilidade de acesso a ferramentas do ciberespaço, consumidores de mídia se tornaram agentes participativos do processo de produção midiático, investigando e discutindo sobre as atrações a que antes eram somente assistidas, e também produzindo e disponibilizando conteúdos (MONT’ALVÃO JÚNIOR, 2016, p. 23).

Jenkins supera o debate sobre comunicação horizontal, sem esquecer dos interesses ideológicos e mercantis dos meios de comunicação massivos, para apresentar e discutir uma nova realidade, impulsionada pela existência da comunicação digital e dos novos dispositivos de comunicação. Para o autor, “o momento atual de transformação midiática está reafirmando o direito que as pessoas comuns têm de contribuir ativamente com sua cultura” (JENKINS, 2009, p. 189). Essa ideia, que é reflexo da análise do cotidiano urbano, pontua uma nova forma cultural, fortemente ligada à participação dos receptores no processo completo da comunicação de massa.

A cultura da convergência assinala a movimentação de uma cultura mais participativa, marcada pela transição de uma postura passiva dos consumidores de mídia para uma postura participativa. Com o espaço aberto pela disponibilização e facilidade de acesso a ferramentas do ciberespaço, consumidores de mídia se tornaram agentes participativos do processo de produção midiático, investigando e discutindo sobre as atrações a que antes 53

eram somente assistidas, e também produzindo e disponibilizando conteúdos (MONT’ALVÃO JÚNIOR, 2016, p. 23).

Essa cultura representa algo além de somente um processo de transformações tecnológicas. Apesar de ligada às inovações técnicas, “a convergência representa uma transformação cultural, à medida que consumidores são incentivados a procurar novas informações e fazer conexões em meio a conteúdos de mídia dispersos” (JENKINS, 2009, p. 30). A cultura da convergência não ocorre nos aparelhos modernos, mas sim nas transformações dos hábitos, ritos e práticas sociais. A convergência é a transformação da cultura, e se dá, principalmente, por três fatores: o contraste com ideias antigas sobre o lugar do receptor na produção de conteúdos de comunicação de massa, ocupando lugar passivo, ao invés disso, o autor sugere a ideia de cultura participativa para destacar cada vez mais ativo do público nesse processo; ao processo de união e compartilhamento de conhecimentos e interesses, no qual o público cria redes associativas para somar e dividir, potencializando a capacidade de partilhar entre os consumidores, para o autor “a inteligência coletiva pode ser vista como uma fonte alternativa de poder midiático” (JENKINS, 2009, p. 30); e a convergência do meios, que representa a mudança de comportamento na produção, distribuição e consumos dos produtos, como a produção de aparelhos e dispositivos e das narrativas multiplataformas. É interessante notar que esse tripé proposto por Jenkins condensa quase que totalmente a maneira como o nerd se relaciona com os meios de comunicação de massa há praticamente um século. “Verifica-se que a cultura nerd se insere no contexto da Cultura da Convergência, pois agrega os três conceitos que embasam a teoria desenvolvida por Jenkins, quais sejam: convergência dos meios de comunicação, cultura participativa e inteligência coletiva” (MONT’ALVÃO JÚNIOR, 2016, p. 11). De certa forma, o nerd sempre esteve ligado à convergência, ou melhor, a cultura da convergência contemporânea potencializou práticas já existentes na cultura nerd. Isso, sobretudo, porque a cultura nerd sempre esteve relacionada a participação ativa, e o interesse de narrativas sobrepostas ou sequenciais em mais de uma plataforma. Esse tipo de prática de consumo e ao mesmo tempo de sociabilidade sempre foi parte dos hábitos da cultura nerd. Na convergência, essa forma de consumo se torna ainda mais sobressaltada e os produtos da comunicação de massa passam a promover narrativas que extrapolam os limites de um único suporte, “percorrendo múltiplas mídias, sendo cada trecho do percurso um ponto importante para a complementação do sentido de uma obra” (MONT’ALVÃO JÚNIOR, 2016, p. 11). Uma 54

forma de produção e consumo que já era comum na cultura nerd. Nesse tipo de produção, Jenkins exemplifica o conceito de “narrativa transmídia”:

Histórias que se desenrolam em múltiplas plataformas de mídia, cada uma delas contribuindo de forma distinta para nossa compreensão do universo; uma abordagem mais integrada do desenvolvimento de uma franquia do que os modelos baseados em textos originais e produtos acessórios (JENKINS, 2009, p. 384).

A cultura, quando convergente, acelera ainda mais o processo de inserção dos produtos produzidos pelos mais massivos nas práticas cotidianas e na existência social dos receptores, acrescentando ainda mais elementos e reforçando outros. A cultura da convergência reflete a mais contemporânea relação entre a cultura e a comunicação, sua influência pode ser percebida na grande maioria das esferas culturais, mas, sobretudo, na cultura nerd.

Jenkins chega à conclusão de que a cultura da convergência está edificada em três conceitos: convergência dos meios de comunicação, cultura participativa e inteligência coletiva. Na relação entre esses três conceitos, ou seja, nesse cenário de múltiplas possibilidades da cultura da convergência, desponta a cultura nerd (MONT’ALVÃO JÚNIOR, 2016, p. 22).

A cultura está viva, é móvel e dinâmica, fatos novos influenciam a transformação de hábitos culturais e (re)criam hábitos e práticas, modificam nossa existência social, permitem novas significações de textos novos e dos existentes. A comunicação de massa contribui grandemente para essa realidade. Apropriando-se brevemente do pensamento de Marshall Mcluhan (2011) sobre o impacto das comunicações de massa na cultura, podemos pensar como as tecnologias de comunicação e distribuição massivas modificaram decisivamente as formas e canais de distribuição do conhecimento, da informação e da cultura. A reunião de imagem e som apresenta uma nova dinâmica aos sistemas de comunicação formal e, por sua vez, à disseminação cultural. Discussões semelhantes se apresentam em cada modificação no meio de transporte do conhecimento, da cultura e da informação. Para Jenkins (2009, p. 369), “o momento atual de transformações das mídias está provocando mudança no modo como as instituições cruciais operam. Todos os dias, vemos sinais de que práticas antigas estão sujeitas à mudança”. As novas ferramentas possibilitaram nas ideias, novas práticas mudaram a forma de existir enquanto indivíduos e na relação com o outro; esse é um sinal claro de cultura, da sua transitoriedade, e da sua capacidade de modificar o mundo a sua volta. A comunicação de massa é uma ferramenta poderosa na distribuição dos 55

textos culturais, seus mecanismos são muito relevantes na formação e manutenção de uma cultura, como a nerd.

1.2.2 – Linguagem e significação dos textos da cultura Cultura diz respeito a significados compartilhados, segundo Hall, e é a linguagem a forma de darmos sentido ao mundo que nos rodeia. A linguagem pode ser percebida como a engrenagem que faz a comunicação funcionar, que normaliza os significados que serão compartilhados. “Assim, esta se torna fundamental para os sentidos e para a cultura, e vem sendo invariavelmente considerada o repositório-chave de valores e significados culturais” (HALL, 2016, p. 17). A comunicação assume a forma de signos e símbolos para transmitir o que pretendemos comunicar. A linguagem opera como um sistema representacional, e assim são compartilhados os significados. Neste sentido, é esse o mecanismo que constrói a cultura, quando se entende cultura como produção e intercâmbio de sentidos. É importante compreendermos a relação entre a linguagem e cultura para a comunicação. Uma mensagem precisa de linguagem para ser transmitida e a mesma precisa de cultura para ser interpretada, já que ela que organiza a nossa forma de convivência, nosso modo de existir com os outros e como indivíduos.

A expressão do meu rosto pode até “revelar algo” sobre quem eu sou (identidade), ou o que estou sentindo (emoções) e de que grupo sinto fazer parte (pertencimento). Ela pode ser lida e compreendida por outros indivíduos mesmo que eu não tenha a intenção deliberada de comunicar algo formal como “uma mensagem”, e ainda que o outro sujeito não consiga perceber de uma maneira muito lógica como chegou a entender o que eu estava “dizendo”. Acima de tudo, os significados culturais não estão somente na nossa cabeça – eles organizam e regulam práticas sociais, influenciam nossa conduta e consequentemente geram efeitos reais práticos (HALL, 2016, p. 20).

Para Hall (2003, p. 354), “a mensagem é uma estrutura complexa de significados que não é tão simples como se pensa”. Portanto, não é possível operar com base em um modelo de comunicação determinista, que toma como pressuposto de que o significado da mensagem é fixo, “de que existe uma lógica global que nos permita decifrar o significado ou o sentido ideológico da mensagem contra alguma grade”. Para o autor, o sentido possui várias camadas, é sempre multirreferencial (ZEVIANI, 2017, p. 28). São os participantes da cultura que são capazes de dar sentido à mensagem. O que “em si” está sendo comunicado raramente é somente aquilo, sua significação transpassa diversas 56

esferas culturais para criar uma significação no indivíduo. Esse processo é o que Hall (2016) chama de “circuito da cultura”. Para o autor, se inclui nesse “circuito da cultura” os sistemas de comunicação de massa, que cria e distribui uma variedade de culturas, que circulam pelos sistemas globais de comunicação. Inclui ainda o ato de consumir, ou se expressar por meio desses objetos culturais, ou seja, “quando nós os integramos de diferentes maneiras nas práticas e rituais cotidianos e, assim, investimos tais objetos de valor e significado. Ou, ainda, quando tecemos narrativas, enredos – e fantasias – em torno deles” (HALL, 2016, p. 22). Esses exemplos todos podem ser facilmente visualizados dentro da cultura nerd, como pretendo apresentar nesse trabalho. Para criar essa relação entre sentido e linguagem Hall (2016), vai buscar apoio na ideia de representação. Para o autor, este termo significa utilizar uma linguagem para dar forma e expressar algo sobre o mundo, simboliza-lo a outras pessoas. “Representação é uma parte essencial do processo pelo qual os significados são produzidos e compartilhados entre os membros de uma cultura” (HALL, 2016, p. 31). De maneira sucinta, representação diz respeito à produção de sentido por meio da linguagem. Ao traduzirmos o mundo que nos rodeia transformamos ideias em signos linguísticos ou em imagens. Qualquer tentativa de traduzir a nossa apreensão do mundo em comunicação será realizada por esse processo. É assim que expressamos pensamentos ou retratamos objetos fictícios e reais. “E aqui é onde a representação aparece: ela é a produção dos significados dos conceitos da nossa mente por meio da linguagem” (HALL, 2016, p. 34). Para que essa ideia funcione é necessário que exista um “sistema de representação” que equalizará a forma como apreendemos e interpretamos aquele simbolismo como indivíduos, dando marca próprias àqueles signos, mas que ainda se mantém em um “sistema de representação” que pode ser compartilhado e divido coletivamente, onde um grupo social ou até uma grande diversidade de pessoas darão significados muito semelhantes à ideia, objeto ou circunstância apresentados.

Poderia ocorrer que o mapa conceitual que carrego na minha cabeça fosse totalmente diferente do seu, o que nos levaria – eu e você – a interpretar ou dar sentido ao mundo de maneira totalmente diversas. Seriamos incapazes de compartilhar nossos pensamentos ou de trocar ideias sobre o mundo. Na verdade, entenderíamos e interpretaríamos o mundo de uma maneira única e individual. Somos, entretanto, capazes de nos comunicar porque compartilhamos praticamente os mesmos mapas conceituais e, assim, damos sentido ou interpretamos o mundo de formas mais ou menos semelhantes. Isso é, de fato, o que significa pertencer “à mesma cultura”. (HALL, 2016, p. 36)

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Não é à toa que cultura também é definida como “sentidos compartilhados”, uma vez que ao compartilharmos o mesmo sistema simbólico podemos estruturar formas de conivência ao redor dele. Podemos buscar na filosofia uma confirmação para a possibilidade dessa existência coletiva baseada na interpretação comum dos códigos. Para Flusser (2007), usamos os signos e a representação (códigos) para traduzir uma face não-natural da existência humana. Para o autor, a cultura é artificial ou “inatural” e a comunicação um processo secundário

Após aprendermos um código, tendemos a esquecer a sua artificialidade: depois que se aprende o código dos gestos, pode-se esquecer que o anuir com a cabeça significa apenas aquele "sim" que se serve desse código. Os códigos (e os símbolos que os constituem) tomam-se uma espécie de segunda natureza, e o mundo codificado e cheio de significados em que vivemos (o mundo dos fenômenos significativos, tais como o anuir com a cabeça, a sinalização de trânsito e os móveis) nos faz esquecer o mundo da primeira natureza. E esse é, em última análise, o objetivo do mundo codificado que nos circunda: que esqueçamos que ele consiste num tecido artificial que esconde uma natureza sem significado, sem sentido, por ele representada (FLUSSER, 2007, p. 90).

Para Miriam Silva (2014, p. 55), “ocorre, deste modo, uma falsa naturalização daquilo que nasce artificial. Os códigos, explica, tornam-se uma espécie de segunda natureza. O mundo artificializado da segunda natureza é que nos faz esquecer o mundo da primeira natureza”. Para Hall (2016), esse sistema criado de representação, de codificação de ideias, objetos e circunstâncias em códigos de significados que são compartilhados é fundamental para se entender a cultura. A existência social humana está relacionada a essa capacidade de enxergar o mundo sob o mesmo mapa conceitual e de compartilhar significados. Ideia que tem reflexo nos pensamentos de Flusser.

Um código é um sistema de símbolos. Seu objetivo é possibilitar a comunicação entre os homens. Como os símbolos são fenômenos que substituem ("significam") outros fenômenos, a comunicação é, portanto, uma substituição: ela substitui a vivência daquilo a que se refere. Os homens têm de se entender mutuamente por meio dos - códigos, pois perderam o contato direto com o significado dos símbolos. O homem é um animal "alienado", e vê-se obrigado a criar símbolos e a ordená-los em códigos, caso queira transpor o abismo que há entre ele e o "mundo". Ele precisa "mediar", precisa dar um sentido ao "mundo". (FLUSSER, 2007, p. 130)

A linguagem, que significa, sobretudo, um sistema de signos organizado, que transporta sentidos decodificáveis pelo nosso sistema de mapas conceituais mais ou menos semelhantes e que não existem na natureza, mas nascem das nossas convenções sociais, são 58

fundamentais na formação daquilo que chamamos de cultura, “que aprendemos e, inconscientemente, internalizamos quando dela nos tornamos membros” (HALL, 2016, p. 54) É importante notar que na percepção de Hall (2016), os objetos, pessoas ou eventos do mundo não possuem em si sentido próprio, fixo ou verdadeiro. São as relações humanas, por meio da cultura, que atribuem significado a tudo. “Sentido, consequentemente, sempre mudarão, de uma cultura ou período a outro” (2016, p. 108). Isso por que os códigos da culturais sempre se modificam de uma cultura para a outra; não há garantias que o mesmo código fará sentido em uma cultura diferente. A linguagem estabelece uma normatização – ou algo próximo disso – para o compartilhamento de códigos comuns, dentro de um mesmo sistema de representação. “Então, uma ideia importante sobre representação é a aceitação de um grau de relativismo cultural entre uma cultura e outra, certa falta de equivalência e a necessidade de tradução quando nos movemos de um universo mental ou conceitual de uma cultura para outro” (HALL, 2016, p. 108). Duas ideias são importantes a partir desse pensamento. A primeira, o relativismo cultural, é de suma importância para entender os processos de ressignificação e utilização da cultura quando analisarmos a cultura nerd e debatermos as possíveis transformações de seus signos nas obras que serão estudadas. A segunda, o conceito de tradução, é reforçado em outra escola de pensamento, que, como os pesquisadores dos Estudos Culturais, se debruçaram sobre a forma dinâmica da cultura – a Semiótica da Cultura – e se apropria da ideia de tradução para explicar a forma de transformação das esferas culturais, como pretendo apresentar mais à frente. A partir dessas ideias é possível se aproximar de outra argumentação também introduzida por Stuart Hall (2003), na obra Da diáspora: identidades e mediações culturais. Ao discutir o processo de codificação/decodificação o autor sugere uma nova percepção sobre o a recepção dos conteúdos dos meios de comunicação de massa.

A obra de Stuart Hall e seu modelo “encoding and decoding” (codificação e decodificação) é um instrumento bastante prático de como pensar operacionalmente as distintas formas de recepção dos meios de comunicação de massa, já que reconhece uma sutileza basal no estudo do consumo cultural: o que é produzido não necessariamente é interpretado da forma pretendida pelos codificadores (COSTA, 2012, p. 10).

Para Hall (2003), a mensagem é uma estrutura complexa de significados, e a recepção um ato complexo e não linear. Seguindo ideias apresentadas por Marx, o autor discute a prática de produção, circulação e consumo de comunicação, analisando especialmente a televisão. 59

Segundo Hall (2003), há uma relação direta entre a produção e o consumo, em que um regula o outro, não sendo a recepção uma mera consequência da produção. Nos meios de comunicação modernos, o resultado dessa relação é um tipo específico de linguagem, carregada de códigos e signos, para iniciar o “circuito” nesse modelo comunicativo, já que para o autor, “não há discurso inteligível sem a operação de um código” (HALL, 2003, p. 393). O autor argumenta que a forma discursiva da mensagem tem vantagem nos processos de troca comunicativa e no modelo de codificação/decodificação, um evento não pode ser transmitido antes de ser transformado em uma linguagem que se adeque ao meio em que ele será transmitido, “o acontecimento deve se tornar uma ‘narrativa’ antes que possa se tornar um evento comunicativo” (HALL, 2003, p. 388-389) A linguagem é, assim, fator preponderante para o processo de comunicação. O que o autor argumenta é que a construção dessa linguagem pode ser entendida em seus momentos específicos – produção, circulação, consumo e reprodução – e que cada uma dessas etapas não é isenta, elas se constroem sobre um aparato de ideias e valores que a modificam em cada nível.

Circulação e recepção são, de fato, “momentos” do processo de produção na televisão e são reincorporados via um certo número de feedbacks indiretos e estruturados no próprio processo de produção. O consumo ou recepção da mensagem da televisão é, assim, também ela mesma um “momento” do processo de produção no seu sentido mais amplo, embora este último seja “predominante” porque é “o ponto de partida para a concretização” da mensagem (HALL, 2003, p. 390).

O autor ainda ressalta que, antes que a mensagem possa ser distribuída, esse conjunto de relações e práticas institucionais e sociais deve se adequar em um código, uma regra discursiva, formar uma mensagem, um discurso carregado de significados, isto é, codificada para posteriormente ser submetida ao processo de decodificação. Esse processo parece tão convencional, que alguns signos são amplamente divulgados e podem ser aprendidos rapidamente, criando um caráter natural. Signos visuais tendem a ter esse tipo de perfil universal, sendo amplamente conhecidos em diversas culturas. Isso não significa que esses códigos são naturais, ao contrário, os códigos foram “profundamente naturalizados”. Essa ideia encontra reflexo nas discussões de Hobsbawm (1984) sobre a invenção das tradições. Para o historiador inglês, as tradições aparentam serem naturais, porém, na realidade, elas são obras da naturalização de códigos de uma cultura. Para ele, a invenção das tradições é apresentada por, 60

um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente; uma continuidade em relação ao passado (HOBSBAWN, 1984, p. 9).

Para Hall (2003), essa naturalização de códigos se produz quando há “um alinhamento fundamental e uma reciprocidade – a consecução de uma equivalência – entre os lados codificador e decodificador” (p. 393) É importante esclarecer os atos de codificação e decodificação fazem parte do processo de construção da cultura. A transformação da mensagem em códigos e linguagem estabelecem vínculo entre a produção e a recepção. Cada uma dessas etapas é carregada de ideologias, e tanto a produção quanto a recepção instrumentalizam nossa ação de dar sentido ao mundo.

Esses códigos são os meios pelos quais o poder e a ideologia são levados a significar em discursos específicos. Eles remetem os signos aos “mapas de sentido” dentro dos quais qualquer cultura é classificada; e esses “mapas da realidade social” contêm “inscritos” toda uma série de significados sociais, práticas e usos, poder e interesse (HALL, 2003, p. 396).

Mais do que pensar a relação entre produção e consumo como simples alienação, o que se propõem aqui é perceber a série de fatores complexos que compõe esse processo, e entender que a construção de uma cultura é ordenada por uma gama de produções, apreensões e ressignificações de mensagens do cotidiano. A existência social está diretamente relacionada ao ato contínuo de consumir e negociar.

Pode-se dizer que é na esfera cultural que se dá a luta pela significação. Nesse sentido, os textos culturais são o próprio local onde o significado é negociado. Destarte, o consumo de uma música ou um de filme não pode ser simplesmente pensado como uma pueril manifestação cultural, nem tampouco como simples canal da ideologia, mas sim, como um artefato produtivo, prática produtora de sentido: aceito, negociado ou simplesmente rejeitado (COSTA, 2012, p. 3).

Martin-Barbeiro resume bem esse pensamento ao afirmar que “o consumo não é apenas reprodução de forças, mas também produção de sentidos” (2013, p. 292). Para o autor é necessário possuir um “mapa noturno”, não para fugir e sim para reconhecer no consumo as brechas e realizar as mediações. As disputas hegemônicas que se apresentam no campo da cultura são terreno fértil para discussão e crítica. O receptor não pode ser mais visto como 61

“tabula rasa”, mas, ao contrário, é nítido perceber nele potencial para prevalecer e criar novos sentidos nas mensagens.

A cultura articula conflitos e volta e meia legitima, desloca ou controla a razão do mais forte. Ela se desenvolve no elemento de tensões, e muitas vezes de violências, a quem fornece equilíbrios simbólicos, contratos de compatibilidade e compromissos mais ou menos temporários. As táticas do consumo, engenhosidades do fraco para tirar partido do forte, vão desembocar então em uma politização das práticas cotidianas (CERTEAU, 1994, p. 45).

Aquilo que Certeau chamou de táticas são ações do receptor para negociar os produtos conforme lhe pareçam mais agradável ou útil. “Sem sair do lugar onde tem que viver e que lhe impõe uma lei, ele aí instaura pluralidade e criatividade. Por uma arte de intermediação, ele tira daí efeitos imprevistos” (CERTEAU, 1994, p. 93). A lógica de produção da comunicação de massa está, obviamente, aliada a uma ideologia hegemônica e mercantil, que transforma a mensagem em lucro. Porém, é preciso olhar para além desse ponto para entender a forma como se constrói a cultura nas sociedades modernas. A formação de ritos, práticas, afetos e identificações está, em grande medida, ligada a forma como a comunicação de massa realiza o processo de produção e distribuição de seus produtos, e a recepção e redistribuição dos mesmos pelos consumidores. O processo de comunicação é mais complexo e abre um leque maior de possibilidades para a análise que incluem a construção das mensagens, os processos de criação e as várias formas de recepção dos conteúdos. Isso porque “vemos a cultura da mídia como um terreno de disputa que reproduz em nível cultural os conflitos fundamentais da sociedade, e não como instrumento de dominação” (KELLNER, 2001, p. 134)

1.3 – A semiótica da cultura

Historicamente, é possível a situar os estudos da Semiótica da Cultura em Tartu, na Estônia, durante a década de 1960. No país do então bloco soviético, um grupo de pesquisadores e pensadores se reuniam em seminários de verão, sistematizando seus debates “na melhor tradição do diálogo socrático e da prática reflexiva de Santo Agostinho” (MACHADO, 2003, p. 34). Esses intelectuais buscavam discutir e entender as várias formas de cultura. 62

Influenciados por Roman Jakobson43 e Mikhail Bakhtin44, os estudiosos empreendiam em debates na tentativa de sistematizar o entendimento sobre a cultura a partir dos referenciais da linguística.

Para os estudiosos, onde há comunicação existe também um sistema linguístico, portanto, de signos. Dentre esses sistemas de signos estão o gestual, os sistemas sonoros, a arquitetura, o teatro etc. O intuito era compreender o conjunto de práticas humanas que denominamos cultura – mitos, religião, folclore, artes, hábitos etc. – como uma linguagem, um grande sistema sígnico (VARGAS; ROCHA, 2019, p. 27-28).

Os estudos de Tartu, ligados ao pensamento linguístico de origem russa, criaram um eixo de intercâmbio de ideias, que deu o nome à Escola de Tartu-Moscou (ETM). A escola surgiu desses debates realizados na Estônia que passaram a ser escritos e publicados isoladamente em universidade da Rússia e em Tartu. “Entre os grandes nomes da Escola estão: Ivanov, Piatigórski, Topórov, Uspenski e, especialmente, Iuri Lótman, que se tornou um expoente e um aglutinador do grupo” (VELHO, 2009, p. 3). Uma das características marcantes dos pesquisadores que se reuniam nos seminários de verão em Tartu era seu caráter apolítico, que tentava se afastar do regime soviético daquele período.

Lótman, assim como todos os outros participantes da Escola, pertence à intelliguênstia, camada na sociedade russa composta por intelectuais, cujo rigoroso modelo de conduta ético-moral divergia bruscamente da ideologia soviética. Impossibilitados de expressar a sua verdadeira posição, os semioticistas russos abstinham-se dos assuntos políticos (o que não deixa de ser também uma forma de resistência), porém suscitavam reflexões sobre o regime soviético por meio de sua pesquisa, constituindo uma espécie de linguagem esópica. (AMÉRICO, 2017, p. 2,)

Ekaterina Américo (2012) ainda salienta que os estudiosos da escola se reuniam em um círculo fechado de participantes, visando evitar a intromissão política, inclusive de membros da KGB45.

A escola tinha adeptos em várias universidades soviéticas e gozava de uma influência considerável sobre o universo acadêmico, mas apesar disso, de

43 Roman Osipovich Jakobson (1896 – 1982) foi um pensador russo, linguistas e pioneiro da análise estrutural da linguagem, poesia e arte. 44 Mikhail Mikhailovich Bakhtin (1895 – 1975) foi um filósofo e pensador russo. 45 Traduzindo do russo significa "Comitê de Segurança do Estado. A KGB foi a principal organização de serviço secreto e inteligência da União Soviética, e desempenhou as suas funções entre 1954 e 1991 63

cerdo modo era uma fuga da realidade soviética e, portanto, os seus membros formavam uma sociedade hermeticamente fechada com seu próprio código de conduta (AMÉRICO, 2012, p. 76).

A premissa, dentro dos debates nos seminários de verão, é de que cultura é linguagem. Por isso, “aplicaram-se em compreender toda e qualquer linguagem, todas as formas de expressão, que vão além da esfera social, estão na cultura e abarcam todos os aspectos da vida” (VELHO, 2009, p. 2). Os pensadores da Escola de Tartu-Moscou buscavam compreender os elementos que estruturam a cultura, com base nos signos e textos.

Para a ETM, cultura é memória não-genética, um conjunto de informações que os grupos sociais acumulam e transmitem por meio de diferentes manifestações do processo da vida, como a religião, a arte, o direito (leis), formando um tecido, um “continuum semiótico” sobre o qual se estrutura o mecanismo das relações cotidianas. A cultura é […] inteligência coletiva, um sistema […] que molda a dinâmica da vida social, mas leva em consideração não só os aspectos do socius, mas todos os fenômenos que incidem sobre a consciência coletiva. São programas de comportamento que permitem converter acontecimentos em conhecimento (VELHO, 2009, p. 2).

Para eles, onde há cultura, há também um sistema linguístico, portanto, de signos. São os textos e os signos que estruturam cada aspecto da vida cotidiana, e sua transformação cria diversas outras estruturas, ou sistemas, que são também organizados em novos códigos. A função desses códigos é “culturalizar” o cotidiano, ou seja, transformar os textos e signos em cultura. “Assim, visando encontrar os elementos da cultura que a estruturam com base no uso dos signos e textos, surgiu a Semiótica da Cultura (SC), um campo conceitual e teórico-aplicado formado com a missão de estudar as linguagens na cultura” (VARGAS; ROCHA, 2019, p. 28)

1.3.1 – Mecanismos da cultura “É importante destacar o princípio de acordo com o qual cultura é informação” (LÓTMAN, 1979, p. 32). É sob essa perspectiva que o semioticista desenvolveu seus trabalhos sobre a cultura. Seja em forma de ritos e práticas ou mesmo em uma configuração material – como monumentos ou estátuas –, para Lotman (1979, p. 31), cultura é "o conjunto de informações não-hereditárias, que diversas coletividades da sociedade humana acumulam, conservam e transmitem". Outra característica evidente sobre a cultura para a SC é o entendimento de que cultura é memória, uma memória coletiva e não-hereditária, cristalizada na passagem de informação de um momento para outro. Os textos constroem a memória por meio de suas manifestações. 64

Para Lótman (1979), a cultura, como mecanismo voltado à preservação e organização das informações, carece a longevidade dos textos para a preservação dessa memória. “Toda cultura se cria como um modelo inerente à duração da própria existência, nos diz, e à continuidade da própria memória. Em tal sentido, todo texto contribui tanto para a memória como para o esquecimento” (FERREIRA, 1994, p. 118). Esse pensamento leva a outra ideia sobre os mecanismos da cultura nos estudos da SC: os textos se relacionam hierarquicamente, e quanto mais tempo um texto permanece mais alto grau hierárquico (tradição) e mais validade esse texto terá.

A longevidade dos textos forma, no interior da cultura, uma hierarquia que se identifica correntemente com a hierarquia dos valores. Os textos que podem considerar-se mais válidos são os de maior longevidade, do ponto de vista e segundo critérios de determinada cultura (LÓTMAN; USPENSKI, 1981, p.43)

Para o autor, a memória – portanto, a cultura – se cria na propagação de certos textos. “A memória [...] é assegurada, em primeiro lugar, pela presença de alguns textos constantes e, em segundo lugar, pela unidade dos códigos ou por sua invariância ou pelo caráter ininterrupto e regular de sua transformação” (LOTMAN, 1996, p. 109)46. A cultura organiza aquilo que é de interesse coletivo e transfere essa informação. “As informações da natureza e dos fenômenos históricos e ambientais vão inferindo consciência no grupo social e se transformam de não- cultura (informação não processada) em cultura (dados em sistemas com organização)” (VELHO, 2009, p. 250), assim passam a fazer parte da memória coletiva. A rigor, para o autor russo, cultura é memória, por ser sempre acúmulo de textos:

Os aspectos semióticos da cultura, [...] se desenvolvem melhor, de acordo com leis que lembram as leis da memória, sob as quais o que aconteceu não é aniquilado ou passa à inexistência, mas, sofrendo uma seleção e uma codificação complexa, acontece de ser conservado, para, sob certas condições, se manifestar novamente (LÓTMAN, 1998, p. 109)47.

Outra forma de entender cultura, como definiram Lótman e Uspenski (1981, p. 46), é: "a cultura pode representar-se como um conjunto de textos; mas do ponto de vista do

46 Traduzido do espanhol: “la memoria [...] es asegurada, en primer lugar, por la presencia de algunos textos constantes y, en segundo lugar, o por la unidad de los códigos, o por su invariancia, o por el carácter ininterrumpido y regular de su transformación”. 47 Traduzido do espanhol: “Los aspectos semióticos de la cultura [...] se desarrollan, más bien, según leyes que recuerdan las leyes de la memoria, bajo las cuales lo que pasó no es aniquilado ni pasa a la inexistencia, sino que, sufriendo una selección y una compleja codificación, pasa a ser conservado, para, en determinadas condiciones, de nuevo manifestarse”. 65

investigador, é mais exato falar da cultura como mecanismo que cria um conjunto de textos e dos textos como realização da cultura". Assim, os textos representam a concretização – material e simbólica – da cultura. Como informação, a cultura se organiza em forma de linguagem visando a transmissão de códigos culturais, que buscam a transferência dessas informações por meio de signos. Os códigos modelizam os textos que são responsáveis pela estruturação de um sistema cultural. Além disso, “cada tipo de cultura representa uma hierarquia de códigos extremamente complexa” (LÓTMAN, 1979, p. 35), e isso significa que cada sistema cultural reproduz, por meio dos signos, um modelo de mundo. Buscando referenciais na linguística, o modelo primário de estruturação de uma cultura é a língua natural. Assim, para o autor existem dois tipos de sistemas que dão forma as estruturas da cultura:

Por sistemas modelizantes entendem-se as manifestações, práticas ou processos culturais cuja organização depende da transferência de modelos estruturais, tais como aqueles sob os quais se constrói a linguagem cultural. Carente de uma estrutura, o sistema modelizante de segundo grau busca estruturalidade na língua, que somente nesse sentido pode ser considerada sistema modelizante de primeiro grau. Assim considerados, todos os sistemas semióticos da cultura são modelizantes uma vez que todos podem correlacionar-se com a língua (MACHADO, 2003, p. 49).

A ideia de modelização “no campo da cultura, passa a designar processos de regulação de comportamento dos signos para construir sistemas” (RAMOS et al, 2007, p. 29). Entendendo que os sistemas culturais são modelos que organizam a transmissão de informação, a língua natural dá base para esse processo, portanto ela modeliza em primeiro grau. Todas outras formas de cultura, material ou simbólica, são, então, organizados como uma linguagem (texto), logo de segundo grau. Outro ponto fundamental para entendermos o pensamento da ETM é perceber que a noção de texto está relacionada com a intertextualidade. O texto não é somente o enunciado, mas um elemento relacional, que tem como natureza o contexto. O texto, segundo essa linha de pensamento, possui o mesmo tipo de mecanismo dinâmico da cultura. Nesse caso, a cultura se manifesta como linguagem e modeliza os sistemas de signos e textos. Esses sistemas são espaços semióticos onde se realiza constante interação entre diversos outros textos, que se interferem e se reorganizam em novas estruturas. Dessa forma, a decodificação de seus códigos depende de um sistema prévio para mediar esse processo.

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Nesse sentido, visto como espaço semiótico, o texto também conjuga vários sistemas e pressupõe um caráter codificado. Isso porque os sistemas de signos podem ser considerados sistemas codificados que se manifestam como linguagem, portanto, quando se define um objeto ou processo como texto é porque ele está codificado de alguma maneira. (RAMOS, et al., 2007, p. 31)

Os códigos da cultura são aprendidos em forma de textos e signos que estão em constante transformação e reorganização. E cada código carece de um entendimento anterior, dos indivíduos ou grupos, para que seja decodificado. Nesse espaço semiótico, dinâmico e ativo, o contato entre textos cria novas estruturas culturais e modifica a decodificação prévia dos textos que estiveram em contato.

É preciso indicar ainda um ponto importante: peculiaridade substancial dos textos culturais é a sua mobilidade semântica: um texto pode fornecer a seus diferentes "consumidores" informações diferentes [...] toda hierarquia de códigos que compõe este ou aquele tipo de cultura pode ser decifrada por meio de uma estrutura de código idêntica, ou por meio de uma estrutura de código de outro tipo, apenas em parte interferindo com a que foi utilizada pelos criadores do texto, ou ainda, por meio de uma estrutura completamente alheia a ela (LÓTMAN, 1979, p. 35).

A cultura existe como um movimento constante de transformação, onde estruturas são criadas e reorganizadas como consequência do contato entre sistemas em um continuum semiótico. Na perspectiva da formação da memória, os textos da cultura reforçam e consolidam práticas e ideias com o tempo e com sua a hierarquização. Por outro lado, esse constante contato e a dinâmica natural da cultura realizam um movimento inverso, de transformação, recriando as tradições já estabelecidas, possibilitando a criação de novas leituras para os textos, ressignificando os signos. Os estudos da Escola de Tartu-Moscou entendiam que o espaço semiótico onde existem os signos está em constante alteração e transformação, por sua própria natureza sígnica. Essa ideia garante outro aspecto importante da SC: a tradução da tradição

A tradução da tradição pode ser assim compreendida como um encontro entre diferentes culturas a partir do qual nascem códigos culturais que funcionam como programas para ulteriores desenvolvimentos. Nesse caso, os códigos culturais são fontes de gestação da memória não-hereditária, tal como a entendeu Lótman, que se encarrega de formatar os sistemas semióticos da cultura (MACHADO, 2003, p. 30).

Cada texto e código carece de um entendimento anterior, por parte do indivíduo ou do grupo, para ser decodificado. A relação existente entre dois ou mais textos, ou seja, seu 67

contexto, altera a decodificação de cada código da cultura. Dessa forma, a tradição estabelecida pela memória permanece, porém, ao entrar em contato com novos textos e signos, a tradição é reinterpretada, podendo criar, por meio desse processo, uma nova estrutura cultural.

A tradução da tradição cria constantemente novos sistemas culturais que não estão submetidos aos prévios, mas apropriam-se deles para gerar novas significações. Esses movimentos são um mecanismo fundamental para compreender as semioses na cultura, sobretudo o caráter dinâmico dos textos culturais (VARGAS; ROCHA, 2019, p. 29).

É assim que se alimenta o movimento constante das transformações culturais. Vale ressaltar que a tradução na visão da SC é um processo modelizante, em que os códigos são transformados para criarem sentido em um outro sistema, “o processo relacional instaurado entre dois ou mais sistemas modelizantes não corresponde a uma transferência linear de informações” (RAMOS et al, 2007, p. 38), de forma que há sempre alguma forma de redefinição dos mesmos. Na tradução, textos e signos que já possuem uma significação, ou fazem parte da memória – tanto para indivíduos ou grupos –, passam a ter outros significados para outros indivíduos ou grupos, por meio dessa reorganização. Para Velho (2009), o mecanismo semiótico da cultura funciona da seguinte forma:

Os sistemas estão expostos a infinitos movimentos de organização que têm como função processar as informações, as demandas que surgem de fora, do ambiente e de outros sistemas. Essas informações que entram no espaço semiótico de determinado indivíduo ou grupo são armazenadas por ele e sofrem um processamento. A partir do repertório disponível na realidade de cada um, os dados são reelaborados, reconformando-se em signos, em textos que estejam em sintonia com sua experiência semiótica (VELHO, 2009, p. 254).

Dessa forma, a realidade, dentro da perspectiva dos estudos de Tartu-Moscou, é explicada por meio de sistemas culturais, baseados em premissas da linguística, em que se entende a língua como originadora desses sistemas, portanto seu modelo primário. Assim, todas as manifestações culturais – simbólicas ou materiais – organizadas em linguagem (ou textos) são, portanto, modelos de segundo grau; o encontro entre sistemas, a troca de textos e as novas codificações são capazes de criar novos sistemas culturais. Essa é a forma dinâmica de transformação e reorganização da cultura, dentro da SC. Em resumo, a ideia de modelização, 68

“no campo da cultura, passa a designar processos de regulação de comportamento dos signos para construir sistemas” (RAMOS et al, 2007, p. 29). A partir dessas ideias, Lótman propôs um formato, baseado em ideias que se conectavam ao Estruturalismo e achavam referência na biologia, para entender a dinâmica da cultura dentro de seus sistemas e na interação entre um sistema e outro. Fundamentado na ideia de biosfera – conjunto de ambientes terrestres onde os serem vivos interagem, composto por cada ecossistema diferente do planeta – Lótman transfere o princípio para o estudo da cultura. “A semiosfera funciona como a biosfera, aquele ambiente com características específicas e elementos disponíveis para serem acessados e dar condições à vida, à cultura” (VELHO, 2009, p. 7).

Lotman sugere denominar de semiosfera o espaço semiótico. O conceito origina-se, ao mesmo tempo, nas noções de biosfera e de noosfera: esse último surgiu, pela primeira vez, na obra do filósofo, biólogo e geólogo russo Vladímir Vernádski (1863-1945). Para Vernádski, noosfera engloba todo o universo do pensamento humano, que representa uma "força geológica" cada vez mais poderosa, capaz de transformar o planeta e até mesmo o universo. Já o conceito lotmaniano de semiosfera abarca todo o universo de sentidos e se aproxima da noção de cultura (AMÉRICO, 2017, p. 3).

Para o autor russo, a cultura sempre está se dispondo em um determinado espaço- tempo e não pode existir fora dessa forma de organização. A semiosfera é a forma dessa organização.

1.3.2 - A semiosfera

O conceito de semiosfera busca esse paralelo na biologia para tentar dar conta da complexidade e da dinâmica com que signos e textos se organizam em espaços próprios, onde cada esfera ou sistema cultural assume características semelhantes às de organismos vivos: “a semiosfera funciona como a biosfera, aquele ambiente com características específicas e elementos disponíveis para serem acessados e dar condições à vida, à cultura” (VELHO, 2009, p. 7).

A semiosfera pode ser compreendida como uma esfera sígnica que não se restringe à soma dos códigos, linguagem e textos que por ela transitam. Ela pode ser vista como um ambiente no qual diversas formações semióticas se encontram imersas em diálogo constante, um espaço-tempo, cuja a existência antecede tais formações e viabiliza o seu funcionamento, enquanto torna possível seu próprio ciclo vital. Não é por acaso que uma das imagens mais 69

utilizadas para representar esse espaço seja justamente uma imagem biológica [...] (RAMOS et al, 2007, p. 34).

Na concepção de Lótman, a semiosfera age como um organismo vivo, dinâmico e complexo. Sua natureza é de transformação, em que textos, signos e diversos sistemas culturais interagem. “Todo espaço semiótico pode ser considerado como um mecanismo único (se não como um organismo)”48, definiu o autor russo (LÓTMAN, 1996, p. 12). É na semiosfera que os signos constroem textos, linguagens e sentidos, onde esses elementos expostos a vários níveis de interação. “Em outras palavras, semiosfera é um conjunto de sistemas culturais que se aproximam e criam laços, fazem trocas, mas subsistem com organizações próprias, ao mesmo tempo que se transformam ao interagir com outros sistemas” (VARGAS; ROCHA, 2019, p. 31). Na semiosfera, os textos interagem frequentemente dentro de cada sistema cultural, permitindo que a cultura – por meio dos textos – seja sempre ressignificada e criando novas maneiras de interpretação dos signos, ao mesmo tempo cada sistema está sempre em contato com outras esferas permitindo que seus textos interajam com os textos de outra semiosfera, alterando assim os dois sistemas culturais. A semiosfera garante “a diversidade dos sistemas culturais que a compõem, pois, cada cultura opera dialogicamente frente às demais, contaminando essas e aquelas e permitindo-se contaminar por outras” (RAMOS el al, 2007, p. 35). Porém, há nesse mecanismo de contágio e, consequentemente, transformação dos textos da cultura um sistema observado pelo autor. Para Lótman (1996), a semiosfera apresenta, grosso modo, um enrijecimento dos textos da direção da borda para o centro. Na esfera semiótica, os textos que se encontram na região periférica estão mais próximos da zona onde acontece a maior atividade semiótica, a ligação e o contágio com outras esferas. No centro há uma maior rigidez dos textos da cultura, e é na relação entre as bordas e o centro é que nasce a renovação e novas formas culturais.

O espaço semiótico é caracterizado pela presença de estruturas nucleares (na maioria das vezes várias) com uma organização manifesta e um mundo semiótico mais amorfo que tende para a periferia, no qual as estruturas nucleares estão submersas [...] A interação ativa entre esses níveis se torna

48 Traduzido do espanhol: “todo el espacio semiótico puede ser considerado como un mecanismo único (si no como un organismo)”. 70

uma das fontes de processos dinâmicos dentro da semiosfera (LÓTMAN, 1996, 16, tradução nossa)49.

É importante não tomar a semiosfera como um organismo rígido e cristalizado. Ao contrário, a semiosfera é um espaço de interações ativas permanentes, em que existe uma tensão constante movimentando núcleos e periferias, assim, o centro de uma esfera pode ser a borda de outra. A interação entre sistemas é base para a transformação cultural, já que cada semiosfera representa em si uma cultura. Porém, além disso, a relação entre uma serve para definir o próprio sistema, já que “toda cultura (semiosfera) necessita de outra cultura para definir a sua essência e os seus limites” (AMÉRICO, 2017, p. 4). Assim, dentro da concepção de Lótman de cultura e de seus mecanismos dinâmicos, a fronteira da semiosfera se torna um elemento relevante. Para Américo (2017, p. 5), “é nesse contexto que surge a noção lotmaniana de fronteira. Obviamente, trata-se de um divisor abstrato e imaginário que possibilita a troca de informações entre a semiosfera e o espaço que a circunda”. Para Lótman, a explicação de fronteira tem um caráter estrutural que define sua função e existência.

A fronteira do espaço semiótico é uma posição funcional e estrutural muito importante, que determina a essência do seu mecanismo semiótico. A fronteira é um mecanismo bilingual que traduz as mensagens externas para a linguagem interna da semiosfera e vice-versa. Dessa forma, apenas com a sua ajuda a semiosfera pode entrar em contato com o espaço não semiótico e extrassemiótico (LÓTMAN, 1996, p. 13-14)50.

Assim, a informação é recodificada em uma linguagem que será aceita na nova semiosfera. Além disso, esse é num movimento de via-dupla, pois os textos periféricos de um sistema serão assimilados concomitantemente pelo outro. A fronteira da semiosfera representa um fenômeno paradoxal, já que, ao mesmo tempo, separa e define um sistema, ela também os une, sendo o espaço de passagem de uma esfera para a outra. É desta forma que percebemos a

49 Traduzido do espanhol: “El espacio semiótico se caracteriza por la presencia de estructuras nucleares (con más frecuencia varias) con una organización manifiesta y de un mundo semiótico más amorfo que tiende hacia la periferia, en el cual están sumergidas las estructuras nucleares. Si una de las estructuras nucleares no sólo ocupa la posición dominante, sino que también se eleva al estadio de la autodescripción y, por consiguiente, segrega un sistema de metalenguajes con ayuda de los cuales se describe no sólo a sí misma, sino también al espacio periférico de la semiosfera” 50 Traduzido do espanhol: “La frontera del espacio semiótico no es un concepto artificial, sino una importantísima posición funcional y estructural que determina la esencia del mecanismo semiótico de la misma. La frontera es un mecanismo bilingüe que traduce los mensajes externos al lenguaje interno de la semiosfera y a la inversa. Así pues, sólo con su ayuda puede la semiosfera realizar los contactos con los espacios no-semiótico y alosemiótico. Tan pronto pasamos al dominio de la semántica, nos vemos en la necesidad de apelar a la realidad extrasemiótica”. 71

fronteira como o lugar de maior semiose dentro de cada sistema cultural, já que é ali o lugar de maior troca de textos e signos. Dentro de cada sistema, a fronteira mantém uma separação para textos que são alheios àquela semiosfera, limitando uma invasão descontrolada de novos elementos, ao mesmo tempo que é na fronteira que os elementos externos serão filtrados e transformados, para um código que se adapte à semiosfera em questão, transformando não só o espaço de fronteira, mas, também tendendo a transformar o núcleo.

Assim, a semiosfera é cruzada muitas vezes por fronteiras internas que especializam os setores da mesma do ponto de vista semiótico. A transmissão de informações através dessas fronteiras, o jogo entre diferentes estruturas e subestruturas, as ininterruptas "irrupções" semióticas orientadas por essa ou aquela estrutura em um território "estrangeiro" determinam gerações de significado, o surgimento de novas informações (LÓTMAN, 1996, 16, tradução nossa)51.

É interessante notar que um texto pode ser determinado como estranho ou conhecido em diferentes sistemas por percepções que não são fixas sobre aquele texto. “O curioso é que as diferenças entre o ‘nosso’ e o ‘alheio’ costumam ser constituídas de forma espelhada: aquilo que é proibido em um espaço é permitido em outro” (AMÉRICO, 2017, p. 5). De maneira geral, toda a semiosfera é preenchida por textos da cultura (música, dança, literatura, ideologias, práticas e ritos) que estão sempre em contato. Uma esfera cultural é um lugar dinâmico e irascível por natureza, sua heterogeneidade é condição mínima para sua existência. Porém, é possível percebermos uma mudança na dinâmica interna e na fluidez da semiosfera. Do centro para a borda os textos são mais estáveis e menos suscetíveis à mudança. Conforme avançamos para as fronteiras os contatos e transformações são mais frequentes, e esses textos tendem ao centro tentando ocupar o seu lugar. Segundo Lótman (1996, p. 28), “a fronteira também tem outra função na semiosfera: é um domínio de processos semióticos acelerados que sempre ocorrem mais ativamente na periferia do oikumena cultural, daí para abordar as estruturas nucleares e desalojá-las”. Pensamento que é complementado por Américo:

Os textos periféricos estão em contato com o espaço alheio e representam um elemento catalisador da cultura, gerando sempre novos sentidos e novos textos. Por serem mais dinâmicos, com o tempo eles tendem a ocupar o centro

51 Traduzido do espanhol: “Así pues, la semiosfera es atravesada muchas veces por fronteras internas que especializan los sectores de la misma desde el punto de vista semiótico. La transmisión de información a través de esas fronteras, el juego entre diferentes estructuras y subestructuras, las ininterrumpidas «irrupciones» semióticas orientadas de tal o cual estructura en un «territorio» «ajeno», determinan generaciones de sentido, el surgimiento de nueva información”. 72

da semiosfera e então os textos “centrais” tornam-se periféricos. Acontece uma inversão da oposição centro-periferia (AMÉRICO, 2017, p. 6).

É esse movimento que traz a transformação na cultura – material e simbólica. A constante movimentação e o espaço de tradução de linguagens permitido pelo espaço de fronteira é que abre o espaço necessário para a tradução de textos em novas linguagens. “Os elementos homogêneos na fronteira entre os sistemas permitem a hibridização, o diálogo, e os heterogêneos vão se conformar oferecendo a possibilidade de novos textos, novas composições com novos significados” (VELHO, 2009, p. 8). O contato entre esferas da cultura não possibilita somente a transformação das bordas, e consequentemente, uma mudança no núcleo, mas essa interação também é capaz de criar novas semiosferas. Segundo Lótman (1996, p. 48), “a formação de uma nova situação cultural e um novo sistema de autodescrições reorganizam os estados que a precederam, ou seja, cria uma nova concepção de história”. O autor russo ainda pondera que essa reorganização e a criação de novas esferas da cultura, podem vir seguidas de questionamentos aos fatores históricos – memória – das esferas formadoras. Existe sempre a possibilidade de um reordenamento dos textos levar a questionamento de textos prévios. Porém, é preciso entender que esses pontos de contato são singulares no espaço-tempo e sua aproximação é que possibilita a transcrição de código. A intersecção entre dois sistemas é capaz de gerar um novo sistema cultural contendo textos recodificados em uma nova linguagem, exatamente no espaço onde culturas irão se encontrar:

Estas, por sua vez, vão criar uma nova semiosfera, com novos textos, resultantes das traduções. Por isso, as linguagens modelizantes criadas na cultura não estão separadas inteiramente umas das outras. É necessário o contexto, o dialogismo que irá permitir a tradução de textos e códigos em novos textos e novos códigos, portanto, criando uma nova cultura (VARGAS; ROCHA, 2019 p. 32).

A fronteira, espaço de semioses, se torna um lugar produtivo por sua capacidade de permitir as trocas culturais, a recodificação das linguagens, as traduções dos textos. É na fronteira que o caráter mais visível da cultura se manifesta, sua dinâmica, forçando a transformação e a criação de novos sistemas culturais. A ideia de esferas culturais que representam os diversos tipos de cultura (ritos, práticas, hábitos, consumos, criações), e leve em conta seu dinamismo deve prever um sistema de trocas e ressignificações, como forma de demostrar as transformações constantes da cultura.

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Para compreender a cultura como semiosfera, e, portanto, como diálogo entre linguagens e textos gerados pelo sistema de signos, temos que entender que a fronteira responde justamente pela possibilidade de um espaço comunicar-se com o outro, codificando de modo estranho a uma semiosfera dada. A cultura, então, cria sua organização interna e igualmente seu tipo de desorganização externa, que, graças à fronteira, pode ser absorvida, de modo que p que parecia choque pode se transformar em encontro e resultar em produção de inusitados sistemas de signos, códigos, textos e linguagens, isto é, em uma nova informação, reforçando o dinamismo, o dialogismo e o continuum cultural (NUNES, 2011, p. 20).

É dessa forma que a cultura transmite informação, gera memória. Para Lótman (1996, p. 58), a cultura não é orientada à criação de novos textos, mas para a organização, transcrição e tradução de textos existentes. É a criação desse canal contínuo de informação passada à frente sempre se recodificando que se forma a cultura. Para o autor, é papel do pesquisador em cultura entender os processos de ressignificação dos textos, mas, além disso, entender como os textos da cultura são capazes de gerar sentido. A transformação de novos textos e novas linguagens (aqueles que surgem por meio do contato e da criação de novos sistemas culturais) são organizadores de novos hábitos, consumos, ideologias, ritos e práticas. “A geração de significado ocorre em todos os níveis estruturais da cultura. Esse processo envolve a entrada de alguns textos no sistema e a transformação específica e imprevisível deles durante o movimento entre a entrada e a saída do sistema” (LÓTMAN, 1998, p. 101)52. Essa sequência de transformação constante é a essência da própria cultura; e é na transformação das esferas culturais adjacentes ou centrais à cultura nerd que pretenderemos entender a ressignificação do tipo nerd.

1.4 – Da Cultura de Massa ao Pop

Em 1947, os fundadores da Escola de Frankfurt lançaram a obra Dialética do esclarecimento - Fragmentos filosóficos. Naquele texto, Adorno53 e Horkheimer54 discutiam, entre outros temas, a transformação das produções humanas em produtos sob a égide do processo de criação industrial capitalista. Esse fenômeno ficou amplamente conhecido como Indústria Cultural. Os autores alemães apresentam no texto sua percepção de como esse

52 Traduzido do espanhol: “La generación del sentido tiene lugar en todos los niveles estructurales de la cultura. Este proceso supone el ingreso de algunos textos en el sistema y la transformación específica, impredecible, de los mismos durante el movimiento entre la entrada y la salida del sistema”. 53 Theodor Ludwig Wiesengrund-Adorno (1903 – 1969) foi um filósofo, sociólogo, musicólogo e compositor alemão, fundador do Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt. 54 Max Horkheimer (1895 — 1973) foi um filósofo e sociólogo alemão primeiro diretor da Escola d Frankfurt. 74

processo representava o retrocesso do avanço humanístico nas produções de cultura. A indústria cultural representava, naquele momento, a realização do intuito capitalista de vulgarização e massificação da arte. “Os elementos irreconciliáveis da cultura, da arte e da distração se reduzem mediante sua subordinação ao fim a uma única fórmula falsa: a totalidade da indústria cultural” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 110). É obvio que a invenção dos meios elétricos de transmissão e posteriormente os eletrônicos transformaram grandemente o relacionamento humano com as formas de produção cultural. Mesmo antes disso, ainda na Idade Média, com a Prensa de Tipos Móveis de Johannes Gutenberg55, essa relação já tinha se modificado. A massificação da produção cultural não é um fenômeno inexistente pré-Revolução Industrial, porém, é nesse período que as transformações dão o seu maior salto.

O entretenimento e os elementos da indústria cultural já existiam muito tempo antes dela. Agora, são tirados do alto e nivelados à altura dos tempos atuais. A indústria cultural pode se ufanar de ter levado a cabo com energia e de ter erigido em princípio a transferência muitas vezes desajeitada da arte para a esfera do consumo, de ter despido a diversão de suas ingenuidades inoportunas e de ter aperfeiçoado o feitio das mercadorias (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 110).

A percepção descrita por Adorno e Horkheimer se consolidou no pós-Segunda Guerra Mundial. A grande cultura de massa explodiu pelo mundo após o fim dos conflitos e se tornou um fenômeno impactante na cultura ocidental. As mudanças advindas das tecnologias de comunicação permitiram a exacerbação das ideias anteriormente relatadas pelos pensadores alemães. Na década de 1950 e 1960, uma nova percepção acadêmica começou a perceber o fenômeno da cultura de massa para além da crítica aos produtos da Industria Cultural. Edgar Morin na sua obra L'esprit du Temps (1962, traduzida no Brasil como Cultura de Massa no Século XX) oferece uma nova percepção sobre o tema, entendendo que a cultura de massa é um fenômeno importante daquele período. “Embora não sendo a única cultura do século XX, é a corrente verdadeiramente maciça e nova deste século” (MORIN, 2011, p. 6). Para o autor era necessário um olhar mais interessado sobre os processos sociais influenciados pela existência da cultura de massa, e não somente uma análise crítica e

55 Johannes Gensfleisch zur Laden zum Gutenberg (1400 [ano provavel] - 1468) foi um inventor do Sacro Império-Germânico. Sua principal invenção, a Prensa Móvel, teve um papel fundamental no desenvolvimento da Renascença, Reforma e na Revolução Científica e lançou as bases materiais para a moderna economia baseada no conhecimento e a disseminação em massa da aprendizagem. 75

pessimista. “Os intelectuais atiram a cultura de massa aos infernos infraculturais” (MORIN, 2011, p. 7), afirmou Morin. Para o autor, os estudiosos do período baseavam-se em percepções elitistas e aristocráticas para observar o tema. Ao contrário, o pensador francês enxergava na cultura de massa um tipo óbvio e relevante de cultura para explicar a sociedade contemporânea. “A cultura de massa é uma cultura: ela constitui um corpo de símbolos, mitos, e imagens concernentes à vida prática e à vida imaginárias, um sistema de projeções e identificações específicas” (MORIN, 2011, p. 6) A ideia de Morin não era desacreditar o conceito de Indústria Cultural e as suas características mercantis. O autor pretendia trazer para o debate a existência e a importância da cultura de massa como um tipo de cultura predominante no mundo ocidental, principalmente após a Segunda Guerra. Uma cultura que ganhava importância e ajudava a estruturar a organização social. Não é possível afirmar que a cultura de massa é incontestável na maneira que os indivíduos entendem e atuam no seu cotidiano, ela concorre com a cultura nacional, a cultura religiosa e popular; porém, é inegável sua importância destacada entre o universo de esferas culturais que nos rodeiam. Uma das características mais relevantes dessa cultura que emergiu nos anos 1950 é a mercantilização das produções culturais numa escala industrial. Um dos resultados para esse fenômeno foi a universalização do público consumidor. A produção massificada aboliu as fronteiras entre os tipos de cultura. O teatro pertencia à um consumo burguês, enquanto as classes operárias fechavam em outros tipos de consumo, assim como a cultura camponesa. “As fronteiras culturais são abolidas no mercado comum das mass-media. Na verdade, as estratificações são reconstituídas no interior da nova cultura” (MORIN, 2011, p. 31). A produção massificada exige um novo tipo de consumo, algo que possibilite um acesso médio aos produtos. A indústria de produção cultura é regida pelas leis de mercado (é preciso notar, que apesar de convergir sobre o dinamismo e a ubiquidade da cultura, o entendimento de fronteiras é diferente para Morin e Lótman, que enxerga a fronteiro como o espaço de semioses e trocas culturais). Como em outros itens de produção massiva, a cultura ganhou características da criação industrial, entre elas a facilidade de acesso e consumo. “Em outras palavras, a nova cultura se inscreve no complexo sociológico constituído pela economia capitalista, pela democratização do consumo” (MORIN, 2011, p. 33). A lógica de mercado industrial é a mesma que opera nas produções culturais. A essência desse pensamento é a produção e a distribuição ampla de seus produtos.

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“A cultura de massa, no universo capitalista, não é imposta pelas instituições sociais, ela depende da indústria e do comércio, ela é proposta. Ela se sujeita aos tabus (da religião, do Estado etc.) mas não os cria; ela propõe modelos, mas não ordena nada. Passa sempre pela mediação do produto vendável e por isso mesmo toma emprestadas certas características do produto vendável, como a de se dobrar à lei do mercado, da oferta e da procura” (MORIN, 2011, p. 36)

Esse consumo é realizado pelo homem médio, ou o que Morin (1970) chamou de “homem imaginário”, que busca acesso ao divertimento, ao jogo, a curiosidade, ao mito e ao conto. “Assim, é sobre esses fundamentos antropológicos que se apoia a tendência da cultura de massa à universalidade” (MORIN, 2011, p. 35). Porém, essa busca por uma universalidade foi realizada a partir de elemento particulares. Em específico, baseada no modo de vida americano que se proliferou pela cultura mundial com o fim da Guerra.

1.4.1 – Nasce a Cultura Pop As décadas de 1950 e 1960 viram movimentos de apropriação cultural de diversas vertentes: a segunda onda feminista56, os movimentos negros nos EUA57, a Pop Art58, a Contracultura59, entre outros. Na academia, esse fenômeno também não passou ao largo, diversas escolas de pensamento se debruçaram sobre a dinâmica da cultura, como, por exemplo, os estudos culturológicos e os pensadores da Escola de Birmingham. A efervescência político- econômica e cultural do pós-Guerra deixou sua marca no período. É em meio as disputas por poder das duas superpotências do mundo, sob a guarda dos Estados Unidos sobre o ocidente capitalista, e dos movimentos de apropriação cultural daquele período que nasceu a cultura pop. Seguindo uma ideia similar àquela já apresentada por Edgar Morin (2011) Martín- Barbero dá pistas de como esse processo aconteceu, transformando a cultura mundial.

56 Período de atividade feminista que começou na década de 1960 nos Estados Unidos e eventualmente se espalhou por todo o mundo ocidental 57 Período de atividade feminista que começou na década de 1960 nos Estados Unidos e eventualmente se espalhou por todo o mundo ocidental. O momento foi marcado por conflitos e garantiu dideitos fundamentais aos negros dos EUA como direito ao voto e o fim da segregação racial em espaços públicos. As duas principais lideranças foram ativista Malcolm X, e Pastor Martin Luther King, Jr (vencedor do Nobel da Paz de 1964) 58 Movimento artístico iniciado nos anos 1950 da Inglaterra e EUA. “Propunha a admissão da crise da arte que assolava o século XX e a demonstração destes impasses nas artes com obras que refletissem a massificação da cultura popular capitalista” (SOARES, 2015, p. 18). Teve como grandes representantes Richard Hamilton e Andy Wharol. 59 Contracultura é um movimento de mobilização e contestação social e utilizando novos meios de comunicação em massa. Os jovens do período voltaram-se contra os valores tradicionais conservadores propondo ideias mais liberais nos costumes e modo de vida. São exemplos a cultura Underground, o movimento Hippie e a geração Beatnik. 77

A partir dos anos 1960, a cultura popular urbana passa a ser tomada por uma indústria cultural cujo o raio de influência se torna cada vez mais abrangente, transpondo modelos em larga medida buscados no mercado transnacional. A proposta cultural se torna sedução tecnológica e incitação ao consumo, homogeneização dos estilos de vida desejáveis, banimento do nacionalismo para o “limbo anterior ao desenvolvimento tecnológico” e incorporação dos antigos conteúdos sociais, culturais e religiosos à cultura de passa (MARTÍN-BARBERO, 2013, p. 270-271).

É impossível não traçar a relação da cultura pop com a cultura de massa criada nos Estados Unidos após o fim da Segunda Guerra Mundial. O cinema de Hollywood e suas vedetes, o rock ‘n roll e seus astros, a indústria de quadrinhos e seus heróis, os desenhos animados e seus personagens; todos se juntavam para criar uma onda de influência ao redor do mundo ocidental capitalista.

Literalmente tudo – da música às histórias em quadrinhos, do cinema aos enlatados para TV, da produção em massa para o consumo em massa – o pop americano tornou-se presença comum em lares distantes da América. Assim quase todo o mundo ocidental passou a ver o que os americanos viam, ler o que eles liam, ouvir o que eles ouviam e, não raras vezes até mesmo querer o que eles queriam. Vários ícones industrializados americanos tornaram-se universais: Elvis, rock ‘n roll, Marilyn, Superman, Mickey, hambúrgueres, Barbie. Nenhuma nação ocidental no pós Guerra foi imune a esta influência (SATO, 2007, p. 14).

É admissível pensar que o rock ‘n roll foi responsável por inaugurar o termo pop. “‘Música pop’ passa a ser utilizado nos anos 1950, tentando circunscrever as expressões originárias do rock and roll e, naturalmente, seu apelo para as massas e a caracterização inicial de fazer um tipo de música que se propusesse ‘universal’, para todos os públicos” (SOARES, 2015, p. 24). Ancorado no movimento artístico britânico que se disseminou nos Estados Unidos, a Pop Art, a expressão Pop passou a referenciar esse produto amplamente distribuído nos meios de comunicação de massa e de fácil consumo, orientados para o que Morin (2011) chamou de “Grande Público”, “e que são produzidos dentro de premissas das indústrias da cultura (televisão, cinema, música, etc.). Seria o que, no Brasil, costuma-se chamar de “popular midiático” ou “popular massivo” (SOARES, 2015, p. 19).

O termo “cultura pop” porta uma ambiguidade fundamental. Por um lado, sublinha aspectos tais como volatilidade, transitoriedade e “contaminação” dos produtos culturais pela lógica efêmera do mercado e do consumo massivo e espetacularizado; por outro, traduz a estrutura 78

de sentimentos da modernidade, exercendo profunda influência no(s) modo(s) como as pessoas experimentam o mundo ao seu redor. Nesse sentido, pode-se afirmar que a cultura pop tem óbvias e múltiplas implicações estéticas, sublinhadas por questões de gosto e valor; ao mesmo tempo em que ela também afeta e é afetada por relações de trabalho, capital e poder (SÁ, CARREIRO; FERRARAZ, 2015, p. 9).

É preciso esclarecer uma confusão criada na tradução da expressão Pop de sua língua original, o inglês, para o português. A denominação Pop cria um problema para o entendimento pleno do seu significado quando traduzido. Na sua origem, a expressão faz referência a palavra “Popular” como algo de acesso midiático. Na língua portuguesa, a ideia de cultura popular está mais ligada à uma cultura que se manifesta em movimentos representativos e tradicionais de uma população. Em inglês, esse tipo de cultura está representado na expressão folk (relativo a folclore). “Então, ao mencionarmos a ideia de ‘cultura popular’, em língua portuguesa, estamos nos referindo a duas expressões: a da cultura folclórica, mas também, aquela que chamamos de ‘cultura pop’ ou a ‘cultura popular midiática/massiva’” (SOARES, 2014, p. 6). Porém, no seu entendimento original, em inglês, o Pop está ligado somente ao sentido midiático, de fácil acesso e consumo.

1.4.2 – O que é Pop Frédéric Martel (2012) nomeia o Pop como “mainstream”. Para o autor, o mainstream é “a produção de bens culturais criados sob a égide do capitalismo tardio e cognitivo que ocupa lugar de destaque dentro dos circuitos de consumo midiático” (MARTEL, 2012, p. 11), e está ligado à difusão de produtos culturais massivos, criados primeiramente nos Estados Unidos, e distribuídos pelos veículos de comunicação de massa a partir da década de 1950 e 1960 pelo mundo. Assim, as produções Pop têm como seu berço de origem na indústria de produção cultural americana e europeia (principalmente a Inglaterra) do início da segunda metade do século XX, para quase instantaneamente se espalharem pelo mundo. Porém, ela também se desenvolveu em ambientes regionais, hibridizando os produtos vindos de fora com as tradições locais, e algumas dessas produções acabaram ganhando o mundo em uma segunda fase, como 79

é o caso dos animes60 / mangás61 do Pop japonês, e mais recentemente o K-Pop62. Ao relatar o poder da cultura pop japonesa, Cristiane Sato (2007) faz referência ao hibridismo de suas produções; o Japão foi bombardeado pela cultura americana no pós-Segunda Guerra, “mas ao invés de meramente copiar aquilo que vem de fora, é o amago dos japoneses pegar influências estrangeiras e reinventá-las conforme a cultura local” (SATO, 2007, p. 14). Esses produtos carregavam em si toda a lógica de produção capitalista industrial no seu modo de produção, mas, distribuíram pelo mundo uma enorme carga de textos, que logo se transformaram em afeto e modificaram a cultura ocidental. Isso porque a cultura pop não representa somente o resultado do desenvolvimento da lógica capitalista na produção cultural, mas também uma indústria de produção de bens simbólicos, ritos e práticas incorporadas nos seus textos. “O consumo, portanto, não deve ser compreendido apenas como consumo de valores de uso, de utilidades materiais, mas primordialmente como consumo de signos” (FEATHERSTONE, 1995, p. 122). Se a discussão de qualidade sobre os produtos da cultura pop sempre esteve vinculada à um certo senso de elitismo intelectual, opondo suas produções as criações da “alta cultura”, é preciso ter em mente que essas são expressões “abstratas e culturalmente construídas e, portanto, não se referem a um conjunto fechado de produtos, elas definem uma série de fenômenos sociais em torno dos produtos midiáticos que delineia muito do papel social contemporâneos desses produtos” (HOLZBACH et al., 2015, p. 132). Uma característica que não pode ser negada para as produções Pop é sua relação direta com a produção de entretenimento. O Pop está sempre associado as produções ligadas à diversão em massa. Assim, podemos separar certas produções da cultura de massa como, por exemplo, o jornalismo, como não sendo Pop. Se bem que mesmo essa dicotomia tem sido posta à prova na contemporaneidade, com produções jornalísticas tentando se aproximar cada vez mais da linguagem e da estética do entretenimento. De toda forma, o entretenimento está ligado à fruição, ao lazer, aos momentos de recreação. Mesmo que haja a discussão sobre seu valor estético em contraposição com outras produções de mais alto valor permaneça, é necessário superá-la e reconhecer as potencialidades

60 Anime e refere à animação que é produzida por estúdios japoneses. A palavra é a pronúncia abreviada de "animação" em japonês, onde esse termo se refere a qualquer animação. No ocidente a palavra faz referência a todo tipo de animação produzida no Japão com o estilo narrativo e traços de desenho japoneses. 61 O mangá é a palavra usada para designar história em quadrinhos feita no estilo japonês. Os mangás têm suas raízes no século VIII com o aparecimento dos primeiros rolos de pinturas japonesas. 62 K-pop (ou música pop coreana) é um gênero musical originado na Coreia do Sul, que se caracteriza por uma grande variedade de elementos audiovisuais. Tem grande influência do Rock, Pop, R&B e Hip Hop ocidental. Foi a partir do século XXI que esse gênero ganhou grande reconhecimento no ocidente. 80

da cultura pop e do entretenimento nas práticas sociais cotidianas e do valor existente nessas produções. Isso, pois, como argumenta Janotti Júnior,

como qualquer expressão midiática, os produtos de entretenimento devem ser analisados a partir das proposições/funções prescritas em seus programas de produção de sentido. Mas isso, não deve obliterar o fato de que entreter-se também significa algo mais, não se pode confundir a presença massiva, e por que não, muitas vezes maçante, da música no cotidiano com a capacidade que certas peças musicais do mundo pop têm de possibilitar fruições estéticas (JANOTTI JÚNIOR, 2009, p. 5).

Não se trata de negar o fato de a produção Pop estar ligada aos processos mercantis do capitalismo, porém “olhar apenas esses aspectos da produção oblitera boa parte dos processos criativos presentes na produção dos produtos de entretenimento, que interagem de maneira polêmica-valorativa com as estratégias mercadológicas” (JANOTTI JÚNIOR, 2009, p. 6). Além disso, é preciso reconhecer a autonomia dos consumidores e os processos de negociação e mediação que ocorrem ao recebermos e incorporarmos as produções. Esses são pontos que não devem passar ao largo da percepção sobre os produtos da cultura pop. “Os sujeitos dentro do contexto da cultura pop interpretam, negociam, se apropriam de artefatos e textos culturais ressignificando suas experiências” (SOARES, 2015, p. 22). Essa ideia surge como um dos marcos dos Estudos Culturais, o entendimento de que o receptor é ativo e consciente na interação com os produtos. Jannotti Júnior (2009) ainda destaca mais uma característica contemporânea do entretenimento no cotidiano. Ao percebermos como apreendemos e aprendemos sobre o mundo ao nosso redor, podemos entender o papel da cultura pop e do entretenimento nesse processo. Em como criamos nossas identidades culturais ou criamos práticas e ritos cotidianos. Como argumentam Andrade e Sá ao discutirem a relação entre cultura do entretenimento e o videogame:

isto significa compreender, por um lado, que a partir dos jogos desenvolvem- se competências cognitivas que se tornam úteis para as mais diversas atividades da vida cotidiana – desde alterações corporais ligadas ao domínio da coordenação motora até certas competências visuais ou de raciocínio (ANDRADE; SÁ, 2008, p.7).

O mundo que nos cerca está intrinsicamente conectado à cultura pop e a seus produtos. Nossa apreensão do mundo e, portanto, a execução de práticas e ritos estão intimamente ligadas à comunicação na indústria do entretenimento. Os textos da cultura pop nos rodeiam 81

continuamente, influenciando em outras esferas culturais do nosso cotidiano. A cultura pop se comunica conosco.

Assim, pode-se inferir, ampliando essas ideias para o diálogo com as estratégias do infotainment, que não se trata somente de banalizar ou tornar digeríveis as informações, bem como, atrelá-las, injetando sentido às sensibilidades e aos aprendizados desenvolvidos nas apropriações das narrativas, dos reflexos, sensações gustativas e sonoras dos produtos de entretenimento (JANOTTI JÚNIOR, 2009, p. 8).

É preciso entende, ainda, que a produção de cultura pop está ligada à um tipo de fruição dos produtos que cria novas dinâmicas na recepção dessas obras. O resultado pode ser visto em práticas como a cultura de fã (fandom), a formação de identidades cultuais, o hibridismo e a cultura da convergência.

O jogo proposto pelos produtos pop é o de perceber que há a engrenagem dinâmica de um sistema produtivo em ação; que o produto, em si, é parte integrante deste processo; que a enunciação se dá a partir da suspensão de certos padrões normatizados de valores e que a fruição é parte integrante do que chamamos de estilo de vida (SOARES, 2015, p. 25).

A própria apreensão de quem somos e como nós percebemos no mundo está inexoravelmente ligada à cultura de massa. Os textos da cultura são fortes construtores da nossa identidade na modernidade. “Não importa se escrito, musical, visual ou audiovisual, um texto contém em si o potencial de contribuir para a construção identitária" (GONÇALVES, 2011, p. 28). Além disso, a cultura pop “participa na construção da realidade, discute e dramatiza o mundo, para um público que a consome, mediado por suas crenças, ideologias, interesses. Nesse ponto de vista, há sempre um ressignificar do conteúdo assimilado” (ROCHA. 2014, p. 82).

Se as formas de cultura popular comercial disponibilizadas não são puramente manipuladoras, é porque, junto com o falso apelo, a redução de perspectiva, a trivialização e o curto-circuito, há também elementos de reconhecimento e identificação, algo que se assemelha a uma recriação de experiência e atitudes reconhecíveis as quais as pessoas respondem. O perigo surge porque tendemos a pensar as formas culturais como algo inteiro e coerente: ou inteiramente corrompidas ou inteiramente autênticas, enquanto que elas são profundamente contraditórias, jogam com as contradições, em especial quando funcionam no domínio do popular. (HALL, 2003, p. 256)

Estar inserido nessa cultura e ser dela participante é muito mais do que consumo frívolo e acrítico de suas produções. Há um senso de pertencimento, a criação de afetos, uma 82

ideia de proximidade com os produtos. “A cultura pop estabelece formas de fruição e consumo que permeiam um certo senso de comunidade, pertencimento ou compartilhamento de afetos e afinidades que situam indivíduos dentro de um sentido transnacional e globalizante” (SOARES, 2015, p. 22). As práticas ligadas à cultura pop movimentam a cultura, interagem com outras esferas e as transformam. A indústria da moda, da decoração, da alimentação, entre outras, se vem afetadas pela relação de seus clientes com a cultura pop. Não atoa costumam participar da produção de filmes e séries com o merchandising de seus produtos. “O indivíduo moderno tem consciência que se comunica não apenas por meio de suas roupas, mas também através de sua casa, mobiliários, decoração, carro e outras atividades, que serão interpretadas e classificadas em termos da presença ou falta de gosto” (FEATHERSTONE, 1995, p. 123). O que se advoga não é defender que todos os produtos da cultura pop apontam para uma experiência estética complexa, mas perceber as potencialidades artísticas e culturais de tais produtos. A cultura pop está ligada ao prazer, aos momentos de descanso e diversão. Sua padronização é normatizada pelas regras da produção capitalista na indústria da cultura, embora isso não invalide “abordagens sobre a pesquisa neste segmento da cultura que reconhece noções como inovação, criatividade, reapropriação, entre outras, dentro do espectro destes produtos midiáticos” (SOARES, 2015, p. 23). É preciso ponderar sobre esses pontos e reconhecer a validade dos objetos.

Um produto midiático de entretenimento tem como principais funções a distração e a recreação de seus receptores, não adianta criticá-lo por sua suposta “pobreza poética”. Mesmo porque não há equação entre arte e produtos de entretenimento e sim produtos midiáticos que possuem programas poéticos e possibilidades de experiências estéticas diante de produtos de entretenimento (JANOTTI JÚNIOR, 2009, p. 13)

Essa é uma relação poderosa, que pode gerar grandes modificações na maneira que o indivíduo encara o mundo ao seu redor. A nossa ligação com os produtos da cultura de massa está cada vez mais visível na contemporaneidade, a convergência nos levou a um novo tipo de consumo das produções da mídia; mesmo em disputa com as produções em streaming63 o cinema tem aumentado sua arrecadação e suas bilheterias batem recordes de público a cada lançamento de um novo blockbuster; o mercado fonográfico que parecia ameaçado no início do

63 Tecnologia de transmissão contínua, ou seja, sem a necessidade de o usuário baixar o arquivo em seu dispositivo para acessá-lo, sendo comum na exibição de vídeos, músicas e jogos de videogame. É a base para existência de plataformas como o Netflix, Spotify, entre outros. 83

século pelo compartilhamento de arquivos digitais achou na internet novas possibilidades de expandir seus negócios; as histórias em quadrinhos nunca estiveram tão fortemente ligadas ao mainstream. Essa realidade invoca o olhar apurado do pesquisador para as possibilidades da cultura pop e sua relação com seus consumidores. Dessa forma, a cultura pop envolve o universo nerd em seus produtos e suas produções. O consumo de produtos ligados às grandes produções do entretenimento, distribuídos pela lógica de mercado capitalista, tornou-se, contemporaneamente, uma marca do universo nerd. Todos as ideias sobre a cultura e a produção cultural tratados até aqui servirão de base para o entendimento da cultura nerd como possuidora de todas as características de uma cultura como apresentado nesta seção. A cultura nerd como esfera cultural, criadora de signos e textos, representada em obras produzidas pelos meios de comunicação é um ponto fundamental para a análise proposta nesta pesquisa. Assim, cabe agora apresentar os elementos conceituais e históricos da cultura nerd, seus personagens, situações e representações na cultura divulgada pelos meios de comunicação de massa.

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2 – A HISTÓRIA DO MEU POVO

“Words are like breath," she said, "you say them and they're gone. But writing traps them.” - Bernard Cornwell, The Pale Horseman

Ao procurar nerd na wikipedia, a página que descreve o verbete apresenta a seguinte afirmação: “muitos chamados nerds são descritos como sendo tímidos, excêntricos, pedantes, e não atraentes, bem como com muita dificuldade em praticar, ou mesmo acompanhar esportes”64. A descrição comum do tipo nerd é recorrente em diversas buscas na internet e em resumo é bastante precisa, porém, paradoxalmente, é também incorreta. Essa descrição dá a entender que o nerd é um sujeito com pouca habilidade para o convívio social. Dizer que ele desajustado socialmente pode englobar uma quantidade grande de pessoas que não se caracterizam ou consomem como nerds. O mesmo pode ser dito sobre aqueles que não praticam ou se interessam por esportes. Isso acontece porque sempre que tentamos descrever o nerd como figura social nos alimentamos do imaginário dado pela indústria cinematográfica e de televisão como recurso para visualizar esse personagem. Essas imagens não estão erradas, mas como em qualquer outro caso que precisemos explicar um grupo complexo, incorreremos no erro de reduzi-lo ao seu estereótipo. Para explicar sua figura, seus hábitos, seus ritos e comportamento, aquilo que nomeio tipo nerd, é necessário passarmos por sua história – construída em grande medida pelos meios de comunicação de massa, bem como é preciso conhecermos seus heróis, sua formação como grupo social. Em outras palavras, é importante entender a formação dos seus hábitos e seus interesses. Esse é o objetivo deste capítulo: apresentar o nerd, desde sua origem até a contemporaneidade. O tipo social nerd, como outras identidades na contemporaneidade, não é fácil de se caracterizar, sua existência não é construída a partir de uma única fonte e sua relação com o espaço está sempre se alterando. Assim, a ideia é que com a ajuda desse histórico, ao final do trabalho, possamos e, se possível, definir um tipo nerd. Por fim, o desejo de realizar a pesquisa para esse capitulo se dá também pela oportunidade de organizar a história e os interesses da cultura nerd, que pouco são conhecidos no Brasil e com pouca bibliografia.

64 Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Nerd, acessado em 05/2016 85

2.1 – Onde nascem os nerds

A definição do nascimento do termo nerd é controverso em diversas fontes pesquisadas, porém, ele data sempre de um período semelhante. Apesar de tipos nerds (possivelmente) terem existido desde sempre, eles só ganharam nome nos Estados Unidos entre o fim dos anos 1950 e início de 1960. Podemos datar o uso do termo no acrônimo N.E.R.D – fazendo referência aos pesquisadores do Northern Electric Research and Development –, ou na menção da palavra no livro de Theodor Seuss; esses são, geralmente, o ponto de partida para o debate e a data de início da sua descrição. Mas, é possível procurar o nascimento do nerd – e suas implicações sociais – a partir de um período mais antigo, antes mesmo dele ter sido nomeado. Podemos começar a descrever a existência do nerd no final do século XIX nos Estados Unidos, junto com as transformações do modo de vida rural para o urbano, resultado consequente da industrialização. Essa mudança fez ressaltar – entre outras incontáveis modificações sociais – a distinção entre dois tipos de indivíduos na sociedade americana. Essa é a proposta de Benjamin Nugent (2008) para começarmos a entender a existência do nerd nos EUA. O autor sugere que o nascimento do tipo nerd é resultado da Revolução Industrial e por consequência da urbanização crescente, que modificou o perfil da população drasticamente. Se em 1830 um a cada 15 americanos vivia na cidade, em 1910 essa proporção já era de 50% (NUGENT, 2008). Esse ambiente fez surgir um novo antagonismo nos jovens daquele período. A aristocracia rural que começava a se apropriar dos espaços urbanos foi colocada em confronto com uma outra categoria: os jovens burgueses filhos de imigrantes capazes de operar a máquina e detentores do conhecimento técnico.

Este ressentimento da aristocracia rural diante da expertise dos burgueses industriais fez surgir uma nova tendência na educação, na qual o estudante ideal era robusto e saudável, e os alunos magros e estranhos eram considerados inaptos. O confronto físico e a participação em concursos que cultuavam o corpo era algo requisitado dos alunos, na escola e no cotidiano, como maneiras constantes de se autoafirmar na era industrial. Pessoas mais lógicas e menos espontâneas foram sendo consideradas menos humanas; sua racionalidade fez com que a sociedade deixasse de considerá-las emocionalmente, tratando-as cada vez mais como máquinas (SILVA, 2016, p. 20).

Essa ideia foi reafirmada com medidas do governo dos Estados Unidos que, perseguindo ideias eugenistas (NUGENT, 2008, p. 29), havia iniciado no ensino formal dos 86

alunos a prática da educação física como forma de exacerbar o perfil biótipo do americano já estabelecido naquele país contra um possível enfraquecimento vindo com as transformações decorrentes da Revolução Industrial e da imigração. Esses sentimentos de defesa racial somado à sensação que o ser humano podia se tornar “super-civilizado”, no final do século XIX e início do XX, chamaram a atenção para uma formação dos jovens que desse cada vez mais importância para seu vigor físico. O início das aulas de educação física somava-se à necessidade de afirmação frente ao conhecimento frio e técnico que era necessário para operar e trabalhar com as máquinas, criando uma nova demanda. “Para homens que se sentia emasculados pela era industrial, esportes eram o caminho para fazer as habilidades de machão importantes novamente”. (NUGENT, 2008, p. 30)65. Para o trabalhador americano na primeira década de 1900, o esporte passou a representar um sentimento de manutenção da virilidade e força perdida pela vida urbana e para a indústria. As propagandas e a comunicação corroboravam essa sensação. “Todo garoto ama baseball’, escreveu o romancista Zane Grey numa revista de baseball em 1909. E se não amam, ‘não são garotos de verdade’” (NUGENT, 2008, p. 31). O presidente dos Estados Unidos Teddy Roosevelt66, entusiasta desse pensamento, costumava a se referir como maricas (sissy em inglês), tímido ou preguiçoso aqueles que afrontavam a supremacia do seu país, além de ressaltar em seus discursos e textos que a necessidade de uma supremacia física dos jovens em oposição aos fracos, gordos e descuidados, como forma de definição do caráter necessário para liderar a nação. (NUGENT, 2008) Essa soma de fatores abriu espaço para surgir a figura visível até hoje no cinema, televisão e quadrinhos: o esportista ou atleta (jock, em inglês). E, em antagonismo, os que não se enquadravam nesse perfil eram definidos como os fracos, pouco capazes e menos importantes para a consolidação e desenvolvimento daquele país. Apesar do termo ainda não ter nascido,

o conceito de nerd veio do conceito de esportista, e explica que a preparação dos jovens (principalmente os aristocratas) estava associada ao seu desenvolvimento para a liderança e à consolidação de seu caráter. Este incentivo e dedicação demonstrariam sua superioridade perante os imigrantes e os técnicos que desenvolviam as máquinas. (SILVA, 2016, p. 20)

65 Traduzido do original: “For men who felt emasculated by the industrial age, sport was a way of making tough-guy skills important again”. 66 Theodore Roosevelt, Jr (1858 – 1919) foi um militar, explorador, naturalista, autor e 26º Presidente dos Estados Unidos de 1901 a 1909 87

Essa relação de oposição entre o jovem aristocrata forte e habilidoso nos esportes e o jovem pobre e débil fisicamente, porém intelectual e tecnicamente bem-sucedido, é base para grande parte das histórias e personagens nerds que nasceram na televisão e no cinema nos anos 1980. Entretanto, ainda é possível retornar ainda mais na história e procurar na literatura esse personagem que contém características do tipo nerd. Aos 19 anos de idade Mary Shelley67 escreveu Frankestein: or the Modern Prometheus. Lançado em 1818 e sem identificar a autora, a obra ganhou notoriedade e se tornou uma das mais populares obras literárias recentes. Conhecida mais comumente pelo nome de Frankestein, o livro foi adaptado para o teatro, televisão e cinema. A autora conta no texto de introdução do livro68 que a ideia nasceu de conversas entre ela, o marido Percey Shelley69 e o poeta Lord Byron70, no verão de 1816, sobre experiência com eletricidade e a reanimação de membros humanos mortos. Muito conhecida, a história narra a vida de Victor Frankestein, um jovem aristocrata suíço talentoso e com aspiração na medicina. Após a morte da mãe, e com os aprendizados da alquimia, ele passa a observar o processor natural da morte, como um problema a ser solucionado. Seu objetivo era “penetrar nos segredos da natureza. A despeito das notáveis descobertas dos sábios modernos, as suas conclusões deixavam me insatisfeito e descontente” (SHELLY, 2002, p. 42)71. No romance, a busca por seu objetivo afasta o protagonista do que se supunha ser um traço natural humano. Ele se torna recluso e obcecado por desvendar os mistérios das ciências naturais e pela aquisição de conhecimento. “Meu rosto se tornou pálido por causa das horas de estudo, e meu corpo ficou fraco” (SHELLY, 2002, p. 54)72, o personagem diria para ilustrar sua condição. No livro, sua busca por resolver o enigma da morte não consegue enxergar os problemas éticos e morais, levando aos eventos dramáticos narrados na obra. Para Nugent (2008), os erros do jovem cientista revelam uma combinação de pensamento racional e capacidade técnica, somado a uma falta de sensibilidade e entendimento completo da existência do outro. Ele falha em entender o outro, emocionalmente. A falta de

67 Mary Wollstonecraft Shelley, nascida Mary Wollstonecraft Godwinc (1797 – 1851) foi uma escritora britânica 68 Mary Shelley. Frankenstein: or the Modern Prometheus, 2002. Disponível em: tcpl.org/community- read/Frankenstein/mary1831.pdf 69 Percy Bysshe Shelley (1792 – 1822) foi um poetas românticos inglês. 70 George Gordon Byron, 6º Barão Byron (1788 – 1824) foi um poeta britânico e figura influente no romantismo. 71 Taduzido do original: “penetrate the secrets of nature. In spite of the intense labour and wonderful discoveries of modern philosophers, I always came from my studies discontented and unsatisfied”. 72 Traduzido do original: "My cheek had grown pale with study, and my person had become emaciated with confinement" 88

empatia para entender sua obra, sobretudo seus reflexos, gera um grande sofrimento em todos que o cercam. Todavia essa falha exalta a condição de Victor Frankestein como homem moderno. “Numa pessoa idiota essa falta de empatia pode não significar nada, mas no homem moderno com capacidades semelhantes a um deus, pode muitas coisas, pode criar um desastre” (NUGENT, 2008, p. 25,). A raiz do problema do personagem está no seu brilhantismo científico. “Shelley faz uma crítica a este estilo de vida, que prefere a ciência e a tecnologia ao invés da emoção, da vida social” (SILVA, 2016, p. 21). Essa condição parece ser uma dicotomia que permanentemente acompanha os personagens nerds. Uma visão sempre crítica a seu modo de viver e agir.

A crítica de Shelley a Victor ainda paira no ar. A uma perceptível cadeia de pensadores influentes e educadores guiam os romances ingleses até o conceito de nerd americano. [...] Para entender o quão próximo o conceito de nerd está do Dr. Frankestein você só precisa assistir os primeiros 45 minutos da comédia de 1985 de John Hughes Weird Science [Mulher Nota 1000 no Brasil] (NUGENT, 2008, p. 25-26)73.

Logo após assistir a Frankestein na TV, dois jovens nerds resolvem criar uma mulher, Lisa, em um computador, esperando que ela seja a resposta para seus problemas sociais e sexuais. A imagem do monstro de Frankestein está metaforicamente refletida em Lisa e a imagem do médico suíço nos garotos nerds dos anos 1980. Essa é origem do nerd. Eles nasceram como contrapartida à ascensão do espírito atlético e viril cultuado nos Estados Unidos desde o final do século XIX. Sem querer, mas por sua própria natureza inata, eles se tornaram a oposição a um ideal conservador que visava manter uma natureza rural em uma sociedade em transformação frenética. Eles representavam desde o início a palidez do trabalho recluso e o medo que o conhecimento científico e domínio do mundo natural despertava em parte da população; e traduziram essa disputa no embate entre o intelecto e a força física nas escolas e universidades americanas desde aquele período até os dias atuais.

Os nerds foram criados parte por romancistas como Mary Shelley – pessoas suspeitas por seu conhecimento técnico, pois eles parecem se retirar da vida familiar, são emocionalmente desvinculadas, pervertidas por um impulso

73 Traduzido do original: “Shelly´s critique of Victor still hangs in the air. There’s is a perceptible chain of influential thinkers and educator that leads from English Romanticism to the American concept of the nerd. […] To understand how close the contemporary concept f the nerd is to Dr, Frankenstein, you have only to watch the first forty-five minutes of John Hughe’s 1985 comedy Weird Science”. 89

fundamentalmente masculino para penetrar os segredos da natureza – e em parte por conservadores Cavaleiros Vitorianos, que esperavam criar no cavalheiro-atleta um herdeiro masculino para a aristocracia da espada. Os nerds, quase por definição, chegaram ao poder no final, porque a modernidade estava do seu lado, mas isso não significava que alguém tivesse que gostar deles. A eles ainda podiam ser negados prestígio e afeição (NUGENT, 2008, p. 37-38)74.

É preciso entender de onde nasceram os nerds. Sua formação como tipo social é interessante para entender sua relação com a cultura pop dos anos 1980 – especialmente cinema e televisão, bem como com seus antagonistas e principalmente seus hábitos culturais. O conceito de nerd não pode estar desatrelado desse pensamento. A sua criação e posterior disseminação nos meios de massa estão recorrentemente relacionados com seu aspecto físico e seu fascínio pela tecnologia e pelo exercício intelectual. Desde o princípio, essa relação parecia despontar como sua característica mais marcante. E continua a ser importante e a representa-los até hoje.

[…] o nerd / otaku / geek / dork é um conceito que envolve: a natureza solitária, repetitiva e mecânica do trabalho na era industrial e pós-industrial; o modo como a modernidade permite que o corpo caia em desuso e a forma como os meios de massa contemporâneos convidam as pessoas a relações voyeurísticas com ficções e as anestesiam para os prazeres da vida real. Entender os nerds é aumentar nossa compreensão sobre muitos demônios (NUGENT, 2009, p.11)75.

Essa marca, que é partilhada por muitos nerds do cinema e da televisão, torna-se importante para explorarmos as outras possibilidades com relação ao seu universo e a sua cultura.

2.2 – Nerds desenhados, escritos, falados e filmados

74 Traduzido do original: “The nerd was created partly by romantics like Mary Shelly – people suspicious of technical experts because they seemed cut off from family life, emotionally disengaged, perverted by a fundamentally male drive to penetrate the secrets of nature – and partly by Victorian preservationists of the knight, who hoped to create in the gentleman-athlete a male heir to the aristocracy of sword. Nerds, almost by definition, came to power in the end, because modernity was on their side, but that didn’t mean anybody had to like them. They could still be denied prestige and affection”. 75 Traduzido do original: “[...] nerd / otaku / geek / dork is a concept that involves: loneliness; the rote, mechanical nature of work in the industrial and postindustrial ages; the way modernity allows the body to fall into disuse; and the way contemporary mass media invite people into voyeuristic relationships with simple fictions and numb them to the pleasures of real life. To understand nerds is to enrich our understanding of many demons”. 90

A palavra nerd surgiu quase meio século após a própria concepção do tipo nerd. Antes dela existir, outras palavras foram usadas – principalmente nas escolas e universidades – para designar os estudantes socialmente inaptos, mais próximos da tecnologia do que dos colegas:

O primeiro nome a classificar estas pessoas “menos humanas” foi Greasy Grind, ou Greaser (alguém “oleoso”, em uma tradução livre – referência ao aspecto do cabelo dos indivíduos e ao óleo das máquinas); surgiu no final do século XIX, dentro das faculdades e internatos, para designar alunos que não se integravam aos outros (SILVA, 2016, p. 21).

Essa primeira alcunha, surgiu no final do século XIX (NUGENT, 2008) e separava principalmente os alunos envolvidos nas atividades cotidianas e dos mais reservados e apáticos, principalmente no que dizia respeito à prática esportiva. Em 1880 Charles W. Elliot, o presidente de Harvard relatou ao conselho da instituição seu progresso como líder daquela instituição ao transformar alunos em um tipo ideal de “jovens curvados, fracos e doentes em indivíduos robustos, bem formados e saudáveis” (NUGENT, 2008, p. 36). Apesar da separação entre esses tipos de jovens discentes, e de já existirem apelidos para aqueles que menos se enquadravam no tipo físico e social buscado pela sociedade americana daquele período (e que possivelmente continua sendo buscado até hoje), o termo nerd só apareceu em uma obra de literatura infantil da década de 1950. O psicólogo David Anderegg (2011) apresenta algumas possibilidades para o início do uso da expressão.

A palavra “nerd” apareceu pela primeira vez em 1950, em um livro de Dr. Seuss, If I Ran the Zoo, no qual era apenas mencionada entre outras palavras em uma longa lista de criaturas fantásticas: “E então, somente para apresentá- las, eu vou zarpar até Ka-Troo, e trazer de volta um IT-KUTCH, um PREEP, e um PROO, um NERKLE, um NERD, e um SEERSUCKER, também”. A primeira aparição impressa na atual concepção ocorreu logo depois. Em um artigo da Newsweek de 1951, “nerd” fez sua estreia jornalística: “Em Detroit, alguém que antes seria chamado de chato ou quadrado é agora, lamentavelmente, um nerd (ANDEREGG, 2011, p. 35-36)76.

A criatura fantástica narrada na obra infantil era representada no livro como um estranho animal humanoide, de feições severas e cabelos desgrenhados (Figura 1). Mesmo que

76 Traduzido do original: “The word ‘nerd’ first appeared in 1950, in a book by Dr. Seuss, If I Ran the Zoo, where it referred to just another in a long list of fantastic creatures: ‘And then, just to show them, I’ll sail to Ka- Troo, and bring back an IT-KUTCH, a PREEP, and a PROO, a NERKLE, a NERD, and a SEERSUCKER, too’. The first appearance in print its current sense appeared soon thereafter. In a 1951 Newsweek article, ‘nerd’ made its journalist debut: ‘In Detroit, someone who once would be called a drip or a square is now, regrettably, a nerd.”. 91

os efeitos na cultura popular não tenham sido imediatos, ou seja, o apelido de nerd não passou a vigorar nas escolas e universidades imediatamente após o livro, essa é a primeira aparição da palavra em uma mídia.

Figura 1: A criatura Nerd no livro If I Ran a Zoo

Fonte: https://goo.gl/pc1rhi (acesso em 02/2018)

Outras fontes que indicam o uso do termo são sempre relembradas para citar as primeiras menções à nomenclatura. Essas referências são importantes pois é possível traçar pontos em comum em todas elas.

Duas fontes etimológicas têm sido aceitas: em uma, a palavra começou como uma sigla para Nothern Electric Research and Development, um laboratório de Ottawa fundado em 1959. A outra lenda dessa origem é que “nerd” começou como uma piada: a grafia original era “knurd”, ou “drunk” [bêbado] soletrado ao contrário. Um colegial knurd, então, era o oposto de um colegial bêbado, especialmente no Rensselaer Polytechnic Institute, cujos alunos frequentemente reivindicam sua universidade como o local de nascimento do termo. Qualquer que seja a origem, etimologistas profissionais e leigos atribuem ao show da televisão Happy Days, que passou entre 1974 e 1984, a disseminação do termo como um vírus tóxico. O personagem de Henry Winkler, Fonz, usou livremente o termo em seu sentido atual, e o resto, por assim dizer, é história (ANDEREGG, 2011, p. 36)77.

É interessante perceber que essas duas hipóteses para a origem do termo o nerd estão associadas ao ambiente de pesquisa, técnico e frio – no laboratório canadense – e ao ambiente

77 Traduzido do original: “Two etymological sources have been given wide currency: one, that the word start as an acronym for Northern Electric Research and Development, an Ottawa lad founded in 1959. The other origin tale is that ‘nerd’ began as a joke: the original spelling was ‘knurd’, or ‘drunk’ spelled backward. A collegiate knurd, then, was the opposite of a collegiate drunk, especially at Rensselaer Polytechnic Institute, whose alums frequently claim their alma mater as the term’s birthplace. Whatever the origin, professional and lay etymologists give credit the television show Happy Days, wich ran from 1974 to 1984, for spreading the term like a toxic virus. Henry Winkler’s character, the Fonz, used it liberally in its current sense, and the rest, so to speak, is history”. 92

acadêmico – na universidade. Esses dois espaços parecem cercar as histórias e personagens nerds em quase todas as mídias em que eles são apresentados. O nerd pertence (quase que por definição) ao espaço acadêmico e de pesquisa, desde sua concepção até a sua representação na cultura pop. Vale ressaltar que a cultura pop envolve os personagens e histórias nerd e colabora significativamente para a construção de bens simbólicos, ritos e prática, como foi explorado na primeira seção da tese. Na década de 1950, os acadêmicos do Massachusetts Institute of Technology78 (MIT) fundaram a revista Bachelor. A publicação contava com fotos, piadas, histórias satíricas e ficção científica, além de uma sessão de carta que continha textos autodepreciativos com relação a postura antissocial dos próprios discentes. Na década de 1960 surgiu um personagem chamado Nurdly em uma das histórias, apresentado como um aluno fraco que queria ser aprovado nos testes de aceitação em uma fraternidade (situação que comumente exige uma boa aptidão física) (NUGENT, 2009). A partir do personagem “outras histórias foram surgindo e os fonemas de nurd ficaram mais frequentes, até que os escritores da revista começaram a usar a palavra nerd para se descreverem” (SILVA, 2016, p. 22). Ironicamente, o primeiro nerd da televisão não demonstrava nenhuma aptidão acadêmica ou intelectual. Warren “Potsie” Weber, interpretado por Anson Williams79, é um dos personagens da sitcom Happy Days80 que foi ao ar entre 1974 e 1984 no canal ABC dos Estados Unidos. A série de muito sucesso naquele período deu destaque a Henry Winkler81 no papel de Fonzie, e era ambientada entre os anos de 1950 e 1960, nos Estados Unidos. O personagem Potsie fazia parte do grupo de adolescente na trama. Segundo a Wikia da série em inglês, ele era caracterizado “como não sendo muito brilhante, um pouco crédulo, socialmente desajeitado, e em uma visão moderna, muito ‘quadrado’. A falta de traquejo social do personagem rendeu o apelido de nerd, dado por seus colegas. Segundo Anderegg (2011), o sucesso da série fez popularizar o termo que se espalhou entre os espectadores. A partir de então aquele personagem, que já existia no cotidiano americano desde o final do século XIX, ganhava seu nome mais conhecido. A palavra nerd, termo que já havia

78 É uma universidade privada de pesquisa localizada em Cambridge, Massachusetts, Estados Unidos. Foi Fundada em 1861, como consequência da crescente industrialização dos Estados Unidos e adotou um modelo europeu universidade politécnica, salientando a instrução laboratorial em ciência aplicada e engenharia. Até o ano de 2017 seu quadro de acadêmicos conta com 88 laureados com o Prêmio Nobel e 34 astronautas. É citada como a 6ª melhor universidade do mundo segunda a publicação QS World University Rankings 79 Anson William Heimlich (1949 – ) é um ator e diretor americano. 80 Foi ao ar entre 15 de janeiro de 1974 e 24 de setembro de 1984. O sucesso da série levou a criação de diversos spin-off, animações, um jogo eletrônico, um livro e um musical 81 Henry Franklin Winkler (1945 – ) é um ator, comediante, diretor e produtor americano. 93

sido inventado e usado 20 anos antes, se ligava definitivamente ao tipo de pessoa que ela iria representar pela primeira vez em um produto da mídia de massa. O último passo na televisão, antes de ganharem as telas do cinema, foram os esquetes exibidos no programa semanal de humor Saturday Night Live nomeados The Nerds, a partir de 1978. Bill Murray e Gilda Radner interpretaram Todd DiLaMuca e Lisa Loppner; o relacionamento dos dois estudantes era o foco da narrativa que os caracterizava como socialmente estranhos, tanto nos modos como na indumentária (Figura 2).

Figura 2: Todd DiLaMuca e Lisa Loppner

Fonte: https://goo.gl/UeZS9f (acessado em 02/2018)

A partir das telas da TV, os personagens iniciaram a trajetória no cinema. A década de 1980 foi povoada por personagens e situações que destacavam (como vilões, heróis e papéis secundários) os personagens que se enquadravam no tipo nerd. Mesmo quando não eram necessariamente o destaque da película, ainda assim a temática atraia esse público, como em filmes tipo Back to the Future82 (De Volta para o Futuro – 1985) ou a trilogia Star Wars (Uma Nova Esperança – 1977, O Império Contra-Ataca – 1980, O Retorno de Jedi – 1983). Ou ainda apresentando aventuras de personagens nerds em contextos deslocados do ambiente escolar/universitário como os filmes do arqueólogo americano Dr. Henry Jones Jr, ou simplesmente Indiana Jones83 (Os Caçadores da Arca Perdida – 1981, Indiana Jones e o Templo da Perdição – 1984, Indiana Jones e a Última Cruzada – 1989); outro exemplo, os cientistas nerds que utilizavam todo tipo de tecnologia estranha para combater as forças do além nos dois filmes da série Ghostbuster84 (Os Caça Fantasmas, lançado em 1984 e a continuação, Caça Fantasmas II de 1989), uma combinação de comédia e ficção científica que apresentavam

82 Estreitou em 1985, dirigido por Robert Zemeckis e produzido por Steven Spielberg. O filme é estrelado por Michael J. Fox, Christopher Lloyd, Lea Thompson, Crispin Glover. 83 A série de filme estriou nos cinemas em 1981 estrelado por Herrison Ford e dirigido por Steven Spielberg 84 Dirigido por Ivan Reitman. O roteiro foi escrito por Dan Aykroyd e Harold Ramis, que também participam como atores juntamente com Bill Murray, Sigourney Weaver, Rick Moranis e Ernie Hudson 94

personagens que misturavam o aventureiro com o intelectual cientista. Esses filmes, entre outros, foram marcas das obras de Hollywood nesse período. Vale destacar nesse período o filme A Vingança dos Nerds, de 1984, que será objeto de análise deste trabalho. Seja para retratar seus modos antissociais e até mesmo ridículos, ou para atrair a atenção desse público por meio da identificação com personagens e temáticas, os filmes e programas de televisão seguiram do fim da década de 1970 até o fim dos anos de 1990 apresentando esses personagens e situações. O personagem nerd se tornou comum em histórias do cinema e da televisão, condensando em um ou mais personagem uma figura comum do cotidiano americano e por consequência do ocidente. Um famoso exemplo pode ser lembrado pela sitcom Friends85. Entre os personagens que fizeram sucesso mundo a fora, podemos lembrar de Ross Geller (interpretado por David Schwimmer86) como o nerd do grupo. Ross é doutor em paleontologia e trabalha no Museu de História Natural de Nova Iorque e como professor na Universidade de Columbia. Na sua relação com os amigos ele é retratado como o mais antissocial, tem um estilo professoral nas conversas e dificuldade nos relacionamentos amorosos. “Enquanto ele é inteligente, educado, atencioso, pensativo e gentil, Ross é muitas vezes desajeitado e socialmente estranho - demonstrando as características estereotipadas do ‘nerd perdedor’” (tradução livre)87. Esses exemplos de situações e personagens se tornaram comuns nas produções audiovisuais dos Estados Unidos. Porém, em 1999, um marco na indústria do cinema foi projetado nas telas de cinema do mundo todo. A obra que revolucionou a feitura de filmes de Hollywood – tanto pela concepção de uma história criativa e intrincada, e tanto pelos efeitos especiais inovadores – o primeiro filme da trilogia The Matrix88 pode ser definido com um ponto de mudança na cultura pop, Matrix “tornou-se na história da ficção científica no cinema” (FERNANDES; RIOS, 2011, p. 134). O roteiro apresenta o programador de uma respeitável empresa de software Thomas A. Anderson, que assume a alcunha de Neo como hacker em sua vida paralela nas madrugadas. O cotidiano de Neo muda ao descobrir que ele e todos os seres humanos vivem uma realidade simulada – A Matrix – que mantém suas mentes vivas em um simulacro enquanto seus corpos são usados como fonte de energia, fora dessa simulação, em um futuro distópico em que pouco seres humanos livres estão vivos e lutam para libertar os cativos. Nesse enredo, Neo aparece

85 Friends é uma série americana criada por David Crane e Marta Kauffman e apresentada pela rede de televisão NBC entre 22 de setembro de 1994 e 6 de maio de 2004, com um total de 236 episódios. 86 David Lawrence Schwimmer (1966 – ) é um ator e diretor americano. 87 Texto retirado de friends.wikia.com/wiki/Ross_Geller, acessado em 02/2018 88 Primeiro filme da trilogia lançado em 1999, é uma obra de ação e ficção científica dirigido por Lilly e Lana Wachowski e protagonizado por Keanu Reeves, Laurence Fishburne e Carrie-Anne Moss. Custou US$ 63 milhões e arrecadou US$ 463 milhões. O filme venceu 4 categorias no Oscar. 95

como um nerd. Um hacker pálido e isolado do contato humano, e que ao descobrir esse mundo insólito descobre também ser o escolhido para salvar a humanidade dessa realidade. Tão confuso quanto possa parecer a película catapultou a ficção científica a outro patamar. Atraiu para o cinema o típico público nerd que se gabava de ter compreendido integralmente o intrincado roteiro e percebido todas as referências colocadas; “A partir do seu lançamento, a trilogia Matrix teve forte influência nos filmes de ação e na ficção científica como um todo, tornando-se referência para nerds em geral” (FERNANDES; RIOS, 2011, p. 135). Mas, além disso, abriu espaço – assim como Star Wars tinha feito em 1977 – para uma audiência genérica, que passou a ser alvo potencial de história e tramas que pareciam pertencer ao nicho nerd. Nos anos 2000, a experiência nerd passou a ser domínio de uma massa maior de pessoas, que não se auto classificariam como nerds, mas passaram a aproveitar seus produtos, principalmente no cinema e na televisão. A indústria de entretenimento passou a prover esse desejo de consumo com produtos constantes. Em 2000, a saga cinematográfica dos heróis da editora Marvel começou com a produção da 20th Century Fox: X-Men. O filme dirigido por Bryan Singer89 trazia uma nova visão de super-heróis que ainda não tinham sido abordadas pelas obras que retrataram o Superman90 e o Batman91 no fim da década de 1970 até os anos de 1990, e abriram o espaço para muitos filmes baseados no universo das histórias em quadrinhos – outro item de consumo massivamente nerd – que se seguiram. Porém, em 2001, um produto que se podia considerar o bastião da cultura nerd (NUGENT, 2009) ganhou espaço na projeção colossal de Hollywood. A trilogia Senhor dos Anéis estreou nos cinemas no dia 10 de dezembro de 2001 com sua primeira parte: The Lord of the Rings - The Fellowship of the Ring (O Senhor dos Anéis - A Sociedade do Anel foi lançado no Brasil em 1º de janeiro de 2002). A obra, que custou US$ 90 milhões, arrecadou quase 10 vezes mais, chegando a US$ 871 milhões. O filme produzido e dirigido por Peter Jackson92

89 Bryan Singer (1965 – ) é um produtor e diretor norte-americano. 90 Superman (1978) Dirigido por Richard Donner, o filme é um empreendimento conjunto britânico, suíço, panamenho e americano produzido pela Warner Bros. uperman é estrelado por Christopher Reeve representando Clark Kent/Superman, além de Marlon Brando, Gene Hackman e Margot Kidder. A franquia continuou em Superman II (1980), Superman III (1983) e Superman IV (1987). 91 Batman (1989) dirigido por Tim Burton, é o primeiro longa-metragem da série de filmes inicial do Batman da Warner Bros. O filme é estrelado por Michael Keaton como Bruce Wayne/Batman, com Jack Nicholson como o antagonista O Coringa. Teve uma continuação em 1992 com o título Batman Returns 92 Sir Peter Robert Jackson (1961 – ) é um ator, roteirista, diretor e produtor neozelandês vencedor de três Oscar da academia por seus trabalhos na trilogia Senhor dos Anéis. 96

adapta a mais famosa criação de J. R. R. Tolkien93. A obra literária, escrita entre 1937 e 1949, era composta de um único volume massivo, mas foi dividido pelos editores em três volumes lançados entre 1954 e 1955 na Inglaterra. A história é base para diversos produtos incorporados à cultura nerd. A estética, os personagens e as histórias dos jogos de RPG do universo Dungeons & Dragons, por exemplo, estão fortemente baseados no mundo construído por Tolkien (NUGENT, 2009). No cinema, esse mundo fantasioso alcançou um público muito maior do que aquele restrito às rodas de RPG e às livrarias especializadas em literatura fantástica – onde, geralmente, se consomem outros produtos nerds como quadrinhos, cards de jogos, action figures e estatuetas com personagens, entre outros produtos – para ganhar uma audiência muito maior. Além disso, os filmes receberam a legitimação máxima de Hollywood: são 17 Prêmios da Academia entre 30 indicações para os três filmes. The Lord of the Rings - The Return of the King (O Senhor dos Anéis - O Retorno do Rei, 2003), terceiro filme da série recebeu 11 premiações no Oscar, se tornando o maior vencedor juntamente com Ben-Hur94 (1960) e Titanic95 (1998). Essa legitimação criou no filme uma esfera que o separava da cultura nerd e o colocava definitivamente na grande cultura pop mundial, dando mais visibilidade e força a esse produto.

O Senhor dos Anéis possui uma trama bastante interessante e atraente, levando milhares de pessoas aos cinemas. Porém, antes dos filmes de Peter Jackson, o imaginário fantástico de Tolkien era de exclusividade da cultura nerd (MONT’ALVÃO JÚNIOR, 2016, p. 43).

Os anos de 2007 e 2008 são importantes para a existência da cultura nerd como ela é hoje. Isso porque no dia 24 de setembro de 2007 foi ao ar o episódio piloto da série The Big Bang Theory – objeto desta pesquisa que será aprofundado em um capítulo à parte. A sitcom de maior sucesso para o público dos Estados Unidos ficou 12 anos no ar (até maio de 2019) e ajudou a expandir o universo dos nerds para um público cada vez maior de espectadores. A série “tornou-se um sucesso tão enorme e inesperado que fez os executivos das emissoras americanas conceberem mais e mais seriados estrelando nerds” (FERNANDES; RIOS, 2011, p. 36). As histórias dos quatro jovens cientistas nerds tentando se adequar aos dilemas e

93 John Ronald Reuel Tolkien (1882 - 1972) foi um premiado escritor, professor universitário e filólogo britânico, lecionando em Oxford entre 1925 e 1945. Nascido na África, que recebeu o título de doutor em’ Letras e Filologia pela Universidade de Liège e Dublin, em 1954. 94 Ben-Hur é um filme épico americano de 1959 dirigido por William Wyler e estrelado por Charlton Heston. 95 Titanic é um épico de romance e drama americano de 1997, escrito e dirigido por James Cameron. A história de ficção é baseada no naufrágio real do RMS Titanic em 1912. O filme foi estrelando Leonardo DiCaprio como Jack Dawson, e Kate Winslet como Rose DeWitt Bukater 97

situações da vida adulta transportaram a rotina dos nerds para a tv aberta em horário nobre nos EUA e fizeram esses personagens ganharem uma nova roupagem, diferente em muitos aspectos daquela apresenta por filmes e programas de televisão dos anos 1980. A série passou a espelhar de forma mais natural uma “maioria até agora silenciosa que durante muito tempo não se viu refletida nas séries de televisão”. Até a estreia do programa, personagens como os cientistas tinham pouco destaque e eram relegados ao segundo plano nas narrativas. Um contraponto cômico aos protagonistas “normais”. Em 2008, mais um ponto de virada para personagens e produtos nerds. A Marvel Studios96, remanescente da Marvel Films lançou sua primeira produção própria, independente de outro estúdio maior, realizando sozinha a produção da película. Anos antes, a empresa havia negociado seus heróis mais reconhecidos na cultura pop, por problemas financeiros, e assistiu aos estúdios de Hollywood faturarem alto com obras baseadas em histórias do Spider Man e dos X-Men, por exemplo. À Marvel Studio tinham sobrados personagens secundários, menos reconhecidos, e por isso não desejados para comercialização. E no dia 12 de abril daquele ano um desses personagens menos importantes em reconhecimento e vendas estriou seu filme solo: Iron Man97 (Homem de Ferro estreou no dia 30 de abril no Brasil) lançou uma nova onda de personagens, histórias e situações amplamente conhecidas e difundidas no mundo dos nerds, mas, que agora se conectavam com um público muito maior. O filme conta a história de Tony Stark (figura 3) (interpretado por Robert Downey Jr98.), um bilionário gênio da indústria armamentista que é surpreendido em um ataque, ferido mortalmente com as armas de sua própria fabricação e pego como refém. Durante o cativeiro, ele desenvolve um reator capaz de gerar energia para manter seu coração vivo e capaz também de alimentar uma armadura construída com sucatas na sua prisão. Após fugir, ele resolve se tornar um herói protetor contra as injustiças e desativa a divisão de desenvolvimento de armas da sua empresa.

96 Foi fundado em 1993 e atualmente faz parte da Walt Disney Company. 97 imdb.com/title/tt0371746, acessado em 02/2018 98 Robert John Downey, Jr (1965 - ) é um ator, músico, cantor e compositor americano. Ele foi indicado ao Golden Globe Award e ao Oscar de 1993 por interpretar Charles Chaplin nos cinemas 98

Figura 3: Tony Star, o Homem de Ferro

Fonte: https://goo.gl/dns9QM (acessado em 02/2018)

O que mais chama atenção em Iron Man é que Tony Stark também é um nerd. Um personagem com fobias, dificuldades de relacionamento amoroso, pouco cortês e mais próximo da tecnologia do que do contato humano. Nos filmes da franquia, boa parte de seus diálogos é com uma inteligência artificial, que o auxilia nas tarefas diárias e nos atos de heroísmo. Porém, Stark é mais do que isso: ele é o desejo realizado do nerd.

Homem de Ferro, apresenta intelecto avançado, voltado para a tecnologia, que trouxe sucesso profissional e financeiro ao cientista. Entretanto, sua personalidade é excêntrica e “descolada”: tem uma boa aparência, vive cercado de belas mulheres, é assediado por jornalistas [...] Ele representa, assim, o “sonho” daquele que se imagina como sendo o estereótipo do nerd: ser reconhecido por suas capacidades intelectuais, ter habilidades de relacionamentos sociais e amorosos e ser admirado pela sociedade (SILVA, 2016, p. 43).

Mas, além disso, o filme abriu outras portas para uma invasão de novos personagens de quadrinhos. O que passou a ser conhecido como Universo Cinematográfico Marvel (MCU, sigla em inglês), representou uma entrada em larga escala da cultura de super-heróis no cotidiano da cultura pop. Ignorando as histórias adaptadas para a televisão, até julho de 2020 a Marvel Studios lançou para o cinema: Homem de Ferro (2008), O Incrível Hulk (2008), Homem de Ferro 299 (2010), Capitão América: O Primeiro Vingador100 (2011), Thor (2011)101, Os Vingadores102 (2012), Homem de Ferro 3103 (2013), Thor: O Mundo Sombrio104 (2013), Capitão

99 imdb.com/title/tt1228705, acessado em 03/2018 100 imdb.com/title/tt0458339, acessado em 03/2018 101 imdb.com/title/tt0800369, acessado em 03/2018 102 imdb.com/title/tt0848228, acessado em 03/2018 103 imdb.com/title/tt1300854, acessado em 03/2018 104 imdb.com/title/tt1981115, acessado em 03/2018 99

América: Soldado Invernal105 (2014), Guardiões da Galáxia (2014)106, Vingadores: A Era de Ultron107 (2015), Homem Formiga108 (2015), Doutor Estranho109 (2016), Capitão América: Guerra Civil110 (2016), Guardiões da Galáxia Vol. 2111 (2017), Homem-Aranha: De Volta ao Lar112 (2017 - o herói teve seus direitos parcialmente readiquiridos pela Marvel Studios, mas ainda pertence à Sony), Thor: Ragnarok113 (2017) e Pantera Negra114 (2018 - o filme conta a história do primeiro super-herói negro da editora Marvel e no elenco conta com 95% dos atores com ascendência africana), Vingadores: Guerra Infinita (2018), Homem-Formiga e a Vespa (2018), Capitã Marvel (2019), Vingadores: Ultimato (2019) e Homem-Aranha: Longe de Casa (2019). São 24 obras entre 2008 e 2020, e ainda existem várias outras com data de lançamento agendada. O MCU escancarou a via de acesso da cultura nerd para outros nichos muito mais amplos. Não que os filmes de super-heróis fossem novidade – também vale lembrar que outros estúdios continuaram produzindo longas-metragens live action e animações com essa temática, como é o caso dos filmes baseados no universo da DC. Porém, a organização da cinematografia proposta pela Marvel Studios faz o fã nerd relembrar as histórias publicadas nas HQs, com algumas de suas características primordiais como o cruzamento de personagens (crossover), a sequência de uma trama em outra e os famosos cliffhangers115 que agradam também ao público não nerd e que também tem atraído a grande massa de fã de cinema e consumidores de produtos da cultura pop. Tanto que as histórias de super-heróis ganharam amplo espaço na televisão. Na tevê dos Estados Unidos heróis ainda menos conhecidos do grande público ganharam shows próprios ou em equipes. Suas histórias correm paralelas ao MCU. Porém, na Netflix com suas superproduções, mais personagens ganharam destaque. O Demolidor116, a heroína Jessica

105 imdb.com/title/tt1843866, acessado em 03/2018 106 imdb.com/title/tt2015381, acessado em 03/2018 107 imdb.com/title/tt2395427, acessado em 03/2018 108 imdb.com/title/tt0478970, acessado em 03/2018 109 imdb.com/title/tt1211837, acessado em 03/2018 110 imdb.com/title/tt3498820, acessado em 03/2018 111 imdb.com/title/tt3896198, acessado em 03/2018 112 imdb.com/title/tt2250912, acessado em 03/2018 113 imdb.com/title/tt3501632, acessado em 03/2018 114 imdb.com/title/tt1825683, acessado em 03/2018 115 Cliffhanger – na tradução literal para a língua portuguesa significa “ficar à beira do precipício” – é um recurso de roteiro que se caracteriza pela exposição do personagem a uma situação limite, precária, tal como um dilema ou o confronto com uma revelação surpreendente na sequência, quase sempre em outra edição, livro, filme ou episódio. 116 Daredevil (em inglês) foi criado por Stan Lee e pelo artista Bill Everett e apareceu pela primeira vez em Daredevil #1 (Abril de 1964 nos EUA). Na Netflix a série estreiou em Abril de 2015 e conta com três temporadas. O programa foi criado por Drew Goddard e o personagem é interpretado por Charlie Cox. 100

Jones117, Luke Cage118, O Punho de Ferro119 e o Justiceiro120 ganharam séries solos e uma temporada de uma série em equipe. O Universo Marvel na Netflix As séries da Netflix têm se notabilizado não somente por aproveitar as propriedades intelectuais da Editora Marvel e de seus personagens que estão em grande evidência, mas por aproveitá-los para apresentar na tela temas recorrentes no debate mundial. Abuso, violência contra mulheres, racismo, violência urbana, porte de armas e vigilantismo são temas frequentes e tem dado o tom das histórias. Em Jessica Jones os roteiristas aproveitam a obra de ficção fantástica para discutir situações de abuso físico e psicológico reais. A Atriz Krysten Ritter relatou em entrevista que foi procurada por vítimas de abuso que compartilhavam com ela suas histórias121. Sites de notícia, análise e até páginas feministas apresentaram críticas positivas à série:

Tratando de temas delicados relacionados à violência doméstica, violência sexual, violência psicológica, aborto e punitivismo, considerada uma série feminista e produzida por uma mulher, Melissa Rosenber, a séria ganha pontos também pela diversidade dos personagens. Temos relacionamentos lésbicos (vividos por uma personagem que era um homem no quadrinho), mulheres inteligentes, fortes e poderosas que não usam de sua sexualidade para conseguir status e homens negros em papel de destaque que trazem alguns pontos ao debate sobre racismo.122

Em Justiceiro, o ator Jon Bernthal interpreta Frank Castle um veterano das forças especiais do exército americano que vê a família assassinada em uma intriga que está ligada ao tráfico internacional de drogas. Traumatizado pela morte da família e com profundas marcas psicológicas deixadas pela guerra ele resolve se vingar de todos que estiveram envolvidos na execução da mulher e filhos. O Justiceiro (Punisher em inglês) não é um herói; é um homem perturbado que não acredita na justiça e nas instituições. E essa temática é o guia da história.

117 A heroína foi criada por Brian Michael Bendis e pelo artista Michael Gaydos, a personagem fez sua primeira aparição em Alias #1 (Novembro de 2001). Melissa Rosenberg foi responsável pela adaptação para a Netflix e a personagem é interpretada por Krysten Ritter. 118 Apareceu pela primeira vez em Luke Cage, Hero for Hire # 1 (junho de 1972) e foi criado por Roy Thomas, Archie Goodwin e John Romita Sr. Ele foi o primeiro super-herói negro a ter sua própria edição de história em quadrinho. Mike Colter interpreta Luke Cage na adaptação para a série da Netflix. 119 Iron Fist (no original em inglês) é o alter ego de Daniel Rand. Criado por Roy Thomas e Gil Kane, Punho de Ferro apareceu pela primeira vez na Marvel Premiere #15 (maio de 1974). Criada para Netflix por Scott Buck. Finn Jones estrela como Danny Rand / Punho de Ferro. 120 Criado por Gerry Conway e pelos artistas Ross Andru e John Romita, Sr. apareceu pela primeira vez em The Amazing Spider-Man #129 (Fev. 1974) e foi adaptada para a Netflix por Steve Lightfoot e o personagem é interpretado por Jon Bernthal. 121 Disponível em: https://observatoriodocinema.bol.uol.com.br/series-e-tv/2018/01/jessica-jones-atriz-diz-que- foi-abordada-por-vitimas-de-abuso-sexual-comovidas-com-a-personagem, acessado em 03/2018. 122 Disponível em: blogueirasfeministas.com/2015/12/jessica-jones-abuso-resistencia-e-mulheres-que-nao- precisam-de-homens-para-salva-las, acessado em 03/2018 101

“O Justiceiro” tem como objetivo ‘apontar um espelho para a sociedade e fazer com que a sociedade se faça perguntas’ sobre a questão da violência com armas”.123 De forma semelhante, Luke Cage, o primeiro personagem negro a ter uma publicação solo nas histórias em quadrinhos nos Estados Unidos, usa seu seriado para dar espaço à cultura afro-americana em uma trama de super-heróis (algo semelhante foi feito com o filme Pantera Negra, personagem também pertencente à Marvel, nos cinemas). “O criador da série, Cheo Hodari Coker, coordena os produtores musicais Adrian Younge e Ali Shaheed Muhammad, além de uma equipe de roteiristas formada majoritariamente por negros”124. Toda a trama é passada no Harlem – tradicional bairro negro de Nova Iorque – e conta com os cenários e personagens típicos desse ambiente cultural, além da trilha sonora. A representatividade é uma das marcas destacadas da série.

Temas como representatividade, respeito, reconhecimento, protagonismo da comunidade negra é o foco. Os heróis da cultura negra são citados. Além disso, Luke é negro e é galã. A todo momento sua beleza é exaltada. Impossível não lembrar de Mohammed Ali dizendo ser o homem mais lindo do mundo.125

De heroísmo e situações cômicas à problemas sociais reais e relevantes às séries e filmes, personagens vêm conquistando um público cada vez mais diverso e menos intimamente ligado ao universo nerd. Cada vez mais, eles passaram a habitar nas histórias de ficção e no cotidiano um lugar, e passaram a ser percebidos. Os nerds estão em todos os lugares e de alguma forma, a maioria das pessoas se relacionam com eles. Em 2016, a empresa de conteúdos para internet lançou na sua plataforma mais uma produção original que despertou saudosismo nos adultos ligados ao universo nerd dos anos 1980. Criada, dirigida e produzida pelos irmãos Matt e Ross Duffer126, juntamente com Shawn Levy127 a série Stranger Things estreou com sucesso em julho daquele ano contando a história de três garotos que seguem aventuras para achar seu amigo Will, que desapareceu sob circunstância misteriosas, e acabam encontrando Eleven, uma garota que possuí superpoderes. Com inúmeras referências às obras de Steven Spielberg, John Carpenter e Stephen King, entre

123 Disponível em: br.reuters.com/article/entertainmentNews/idBRKBN1DH1ZO-OBREN, acessado em 03/2018 124 Disponível em: epoca.globo.com/vida/noticia/2016/09/serie-luke-cage-encara-um-inimigo-incomodo-da- sociedade-tensao-racial.html, acessado em 03/2018 125 Disponível em:huffpostbrasil.com/rafael-alves-de-oliveira/luke-cage-e-a-representat_b_12308322.html, acessado em 03/2018 126 Matt Duffer e Ross Duffer (Estados Unidos, 1984 – ) são irmãos gêmeos conhecidos por escrever e dirigir séries de ficção científica e horror para o cinema e televisão. 127 Shawn Levy (Canadá, 1967 – ) é um ator, produtor e diretor canadense. 102

outros, a trama é ambientada nos anos 1980, na cidade fictícia de Hawkins no estado americano de Indiana, o programa prima por uma estética cinematográfica e musical daquele período. Uma mistura de ficção científica, fantasia e aventura infantil típica dos filmes da Sessão da Tarde, a série reúne diversos elementos da cultura nerd.

As alusões à década de 1980 feitas por Stranger Things não se esgotam a isso. A série é composta também por referências intertextuais em seu roteiro a diversas produções cinematográficas do período mencionado: Alien – o Oitavo Passageiro (1979), de Ridley Scott; E.T. – O Extraterrestre (1982), de Steven Spielberg; Viagens Alucinantes (1980), de Ken Russell; Chamas da Vingança (1987), de Tony Scott (1985); e Os Goonies (1985), de Richard Donner. Winona Ryder e Matthew Modine, atores consagrados nos anos 1980, integram o elenco da série. Aliado a esses nomes, estão também o elenco de atores mirins: Millie Bobby Brown, Gaten Matarazzo, Finn Wolfhard, Noah Schnapp e Caleb Mclaughlin. Segundo dados divulgados pela empresa Symphony Advanced Media, em aproximadamente 30 dias, Stranger Things foi assistida por 14 milhões de adultos entre 18 e 49 anos, tornando-se a terceira temporada de maior audiência de Netflix. (ALZAMORA; SALGADO; MIRANDA; 2017, p. 40)

A primeira cena do primeiro episódio dá uma pista de referências ao universo nerd. Os quatro garotos estão reunidos ao redor de uma mesa divertindo-se com um dos ícones da cultura nerd. Eles estão jogando uma partida de RPG no sistema Dungeons & Dragons (Figura 4 e Figura 5). Os quatro protagonistas da série são amplamente representados como nerds. Referências a Star Wars, jogos de videogame e aos livros de ficção e fantasia e histórias em quadrinhos são frequentes.

Figura 4: Capa de uma edição do livro do RPG Dungeons & Dragons

Fonte: Stranger Things (Netflix), Episódio 01, Temporada 01 (acessado em 03/2018)

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Figura 5: Os garotos jogando uma partida de Dungeons & Dragons

Fonte: Stranger Things (Netflix), Episódio 01, Temporada 01 (acessado em 03/2018)

A série cria uma esférica nostálgica no público que viveu sua infância e adolescência entre os anos de 1980 e 1990; assim, como cria num público mais jovem, mas, que consumiu esses produtos da cultura pop uma sensação de retorno àquele período. “Esse é o caso do ‘capital nostálgico’ nas dinâmicas nas comunidades de Stranger Things. Pode-se dizer que existe um reconhecimento pelo capital investido na publicação de cada fã, de acordo com seu conhecimento sobre os anos 80” (RIBEIRO, 2017, p. 12). Além disso, a série foi alvo de outra novidade. A princípio surgiu como uma especulação, mas o seriado foi desenvolvido aproveitando o algoritmo de avaliação dos gostos e do tipo de público, como uma pesquisa invisível o levantamento de dados dos assinantes do serviço forneceram material para que os diretores e roteiristas trabalhassem o tema.

A produção de Stranger Things se caracteriza, segundo seus criadores, como uma espécie de homenagem aos anos 1980, com referências a produções cinema-tográficas, literárias e musicais da época (todas admiradas pelos autores, desde sua juventude). Esse processo criativo, entretanto, levou em conta dados pessoais digitais de públicos com preferências semelhantes (admiração pelos irmãos Duffer, elementos da década de 1980, produções audiovisuais dessa época). Assim, Netflix não apenas apostou na construção de um produto com diversas referências a títulos que possuem uma base consolidada de fãs, como também investiu em conteúdo original que dialoga intensamente com essas referências (ALZAMORA; SALGADO; MIRANDA, 2017, p. 53).

Os nerds abundam no cotidiano da vida real, bem como no contexto de personagens da cultura pop. Não era intuído retratar a todos eles, mas fazer um histórico dos nerds em diversas mídias, principalmente nas que se relacionam ao tema dessa pesquisa. Existem, é claro, diversos outros filmes programas de televisão, e narrativas no geral que apresentam nerds fazendo “nerdices”. Possivelmente, nem uma pesquisa daria conta de elencá-los todos.

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2.3 – O que te faz um nerd

Paul A. Wood128, ao escrever sobre o popular diretor e roteirista Quentin Tarantino, usa a palavra nerd para classificá-lo (2012, p. 21). Isso porque no apartamento do cineasta em Hollywood é possível encontrar caixas de disco por todos os lados e prateleiras altas com filmes e vídeos, indicando sua paixão por obras cinematográficas dos mais diversos gêneros. Tarantino conhece e estuda o cinema. Seu perfil aficionado é visível em suas produções que carregam referências e homenagens a diversas outras obras. A obsessão e o interesse classificam o diretor como um nerd. É realmente muito difícil definir o que faz um nerd. Como qualquer grupo social contemporâneo seus traços de identificação não são classificados por uma tabela simples de coordenadas cartesianas. É necessário um olhar tridimensional que respeite diversos fatores identitários, como o consumo, práticas sociais e afinidades. Porém, quando trabalhamos com personagens de ficção, no cinema, televisão ou literatura há uma descrição mais bidimensional para facilitar a identificação, comumente conhecida como estereótipo. No tipo nerd essa identificação também é aplicada. Seus traços físicos e de personalidade; sua inabilidade social; seu interesse por ciências e pelo conhecimento de forma geral; o consumo intenso de produtos da cultura pop; sua obsessão e profundo conhecimento sobre um determinado tema são traços que, no geral, unem esse grupo.

Os nerds gostam de se aprofundar em qualquer assunto que lhes interesse, que geralmente gravitam em torno da ficção científica, fantasia, histórias alternativas e teoria da conspiração, concretizadas em jogos, colecionáveis, narrativas literárias ou cinematográficas (MONT’ALVÃO JÚNIOR, 2016, p. 46).

Porém, além disso, tudo aquilo que pode ser entendido como cultura encontra nesse tipo social o seu lugar. O nerd tem suas próprias práticas, ritos e identificações. Claro que não homogêneos, como não é de se esperar de nenhum grupo, mas existem diversos traços em comuns que definem a cultura nerd. O nerd compartilha no seu grupo traços culturais distintos que ajudam a defini-lo. Dessa forma podemos circular por um universo de condições que se alinham – não necessariamente todas ao mesmo tempo – para fazer de alguém um nerd.

128 Wood, Paul A. Quentin Tarantino. Leya: São Paulo, 2012. 105

Pensando assim, o primeiro item a unificar os interesses nerd foi levado ao Estados Unidos por um imigrante de Luxemburgo, e chegou a Nova Iorque em 1904. Hugo Gernsback129 migrou para os EUA aos 19 anos. Segundo Nugent (2008), em 1908 ele lançou a primeira revista que se tem registro focada especificamente em componentes eletrônicos e rádio, a Modern Electrics, na qual, posteriormente, começou a publicar histórias curtas que geraram interesse em seus leitores. Inicialmente denominadas scientifiction, os contos acabaram nomeadas posteriormente de science fiction (ou ficção científica, tradução livre). No ano de 1911, ele escreveu o romance Ralph 124C 41+, publicado em 12 partes na sua revista. Esse foi o primeiro passo para o um produto que se tornaria referência na cultura nerd mundial. A Modern Electrics foi vendida e deixou de existir ainda na década de 1910, porém o maior sucesso de Gernsback ainda estava por vir. A revista Amazing Stories130 foi lançada em 1926 pela Experimenter Publishing131, editora de Gernsback. A publicação ajudou a consolidar e definir um gênero literário de muito sucesso na primeira metade do século passado nos Estados Unidos: as revistas de pulp fiction132.

Amazing Stories começou a publicar Jules Verne e H.G. Wells. Quando Gernsback se encontrou com pouco material clássico, ele começou a aceitar submissões de escritores aspirantes. Mas os textos mais influentes publicados foram as Cartas [...]. A sessão de cartas da Amazing Stories era um lugar onde os leitores podiam achar evidência que existiam pessoas como eles mesmos [...]. As cartas da Amazing Stories vieram a funcionar como uma pequena internet, fornecendo nomes e endereços para ajudar pessoas a alcançarem pares com a mentalidade semelhante. (NUGENT, 2008, p. 40)133.

A ficção científica (sci-fi) deu a esse público uma possibilidade de aventuras tão infinitas quanto o universo. Seus personagens e histórias criaram identificações entre os fãs da cultura nerd que duram (intensamente) até hoje. Histórias como as do universo de Star Trek e

129 Hugo Gernsback (1884 — 1967) nascido em Luxemburgo, foi um inventor e editor, além de autor de ficção científica. O principal prêmio mundial de literatura em ficção científica e fantasia é nomeado Hugo Award em homenagem ao autor. 130 A revista foi lançada em abril de 1926 e teve publicações até março de 2005. Foi base para lançamento de diversos personagens da ficção e influenciou grandemente as publicações de histórias em quadrinhos. Tem uma série de televisão homônima derivada da revista que foi ao ar entre 1985 e 1987. 131 Uma empresa de mídia dos Estados Unidos fundada por Hugo Gernsback em 1915. Publicou The Electrical Experimenter (1913–1931), Radio News (1919–1985) e Amazing Stories (1926–2005). 132 Pulp Fiction eram revistas de fantasia e ficção científica no início do século passado feitas da polpa da celulose o que as tornava o papel em que eram impressas barato e de baixa qualidade. 133 Traduzido do original: Amazing Stories started out publishing Jules Verne and H. G. Wells. When Gernsback found himself short on classic material, he started to accept submissions from aspiring writters. But the most influencial prose he published was in Letters […] The letters section of Amazing Stories was a place where readers could find evidence that there were people like themselves [...]. Amazing Stories letters came to function as tiny internet, supplying names and addresses to help people reach out to like-minded peers. 106

Star Wars, além de uma infinidade de personagens de HQs, tem o pé fincado das publicações de sci-fi. Viagens no tempo, formas de vida estranhas, robôs, outros planetas. Tudo estava contido ali. A literatura de sci-fi adiantou acontecimentos do mundo real com anos de antecedência. Nas publicações pulp, do começo dos anos 1900, como em Flash Gordon134, por exemplo, a existência de outros planetas fora do nosso sistema solar era um elemento comum em qualquer narrativa. Entretanto, foi só na década de 1990 que as agências espaciais, em especial a Nasa, confirmaram a existência de exoplanetas135. Outra temática que está na raiz da cultura nerd, principalmente na literatura, mas que transborda para uma enorme gama de interesses, é a fantasia medieval, sub-gênero das publicações de literatura fantástica. Elfos, Goblins, Anões, Bárbaros e Magos poderosos são todos comuns nessas narrativas que combinam elementos mais realísticos retirados de períodos factuais da história humana – principalmente a Idade Antiga e Medieval – e misturam com elementos fantasiosos, em grande parte retirados de uma infinidade narrativas mitológicas ocidentais (e ocasionalmente até orientais). Entre as obras iniciais destacam-se Alice no País da Maravilhas, de Lewis Carrol136 (lançado em 1865) e O Maravilhoso Mágico de Oz, de L. Frank Baum137 (lançado em 1900). As duas obras estão no cerne do nascimento do gênero de literatura fantástica e seus elementos dão base para novos itens que se incorporaram ao modo de vida nerd. Porém, a fantasia medieval, elemento sempre presente na tradição da cultura nerd, orbita e se organiza ao redor de um autor e suas publicações que deram forma a esse interesse do universo nerd. John Ronald Reuel Tolkien escreveu sua primeira série de história fantasiosas ainda nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial, onde foi combatente pela Inglaterra. “Tendo adoecido e sendo mandado de volta para a Inglaterra e, na convalescença, começou a escrever as histórias e poemas que reuniria em O Livro dos Contos Perdidos” (FERNANDES; RIOS, 2011, p. 208). A partir do fim dos conflitos sua carreira tomaria a direção da vida acadêmica. Interessado pelo estudo das línguas assumiu uma cadeira na Universidade de Oxford na década de 1920.

Nos aos de 1930, depois de haver escrito vários poemas e histórias sobre elfos, incluindo O livro dos Contos Perdidos uma cosmogonia, Tolkien começou a escrever uma história sobre homenzinhos que chamou de hobbits. Em 1937

134 Fash Gordon é um herói de aventura e ficção científica originalmente desenhado por Alex Raymond e publicada pela primeira vez em 07 de janeiro de 1934. 135 Disponível em: http://www.bbc.com/portuguese/vert-earth-37987461, acessado 04/2018 136 Charles Lutwidge Dodgson, mais conhecido pelo seu pseudônimo Lewis Carroll (1832 – 1898) foi um romancista, fabulista, poeta, desenhista, matemático e reverendo anglicano inglês. Ele chegou a lecionar matemática no Christ College, em Oxford. 137 Lyman Frank Baum (1856 - 1919) um escritor, editor, ator, roteirista e produtor de cinema americano. 107

essa história seria publicada com o nome de O Hobbit. O grande sucesso fez com que a editora pedisse mais histórias de hobbits (FERNANDES; RIOS, 2011, p. 208).

Em 1954 e 1955, foi lançado, em 3 volumes, sua principal obra: O Senhor dos Anéis, que levou quase duas décadas para ser escrito e aprofundava a Terra-Média apresentada aos leitores em O Hobbit. O livro dava um manual completo para um mundo fantástico que era regido com política, intriga, e conflitos entre seres de diversas estirpes: homens, anões, hobbits, orcs, trolls e elfos. Apresentava deuses, demônios e religiões. Além disso o autor formatou duas línguas artificiais fictícias138 para servirem ao seu mundo fantástico. “Tolkien era linguista, especializado em inglês antigo e médio, e criou idiomas como parte fundamental do mundo em que se passa a sua narrativa” (GOMES, 2014, p. 489). Numa breve busca pela internet é possível encontrar cursos (até em universidades) e livros dedicados a ensinar aos interessados. O Quenya e o Sindarin são línguas que contam com gramática e fonética. “As duas variedades da língua élfica apresentam material para elaborar gramáticas, apesar de trazerem pouco vocabulário” (GOMES, 2014, p. 493). Por fim, em 1977 foi lançado sua obra póstuma, O Silmarillion. Tolkien havia escrito um conjunto de poesias e contos até sua morte em 1973 que foram editados e lançados por seu filho Christopher Tolkien139. O livro apresenta a gênese do mundo criado por Tolkien, seus mitos de criação, seus primeiros habitantes e seus heróis. Esse universo criado pelo filólogo inglês se tornou muito representativo na identificação nerd. Para Mont’alvão Júnior (2016, p. 45) “o público nerd tem uma relação especial de devoção com os livros”. Embora o autor relembre que esse espaço de devoção a obra passou a ser dividido com um público muito mais amplos após a realização da adaptação cinematográfica de O Hobbit e O Senhor dos Anéis dirigida por Peter Jackson. Porém, além das produções de Tolkien por si, a cultura que se expandiu a partir dos seus escritos parece infindável. Sua influência tomou outros escritores – como nas obras de sucessos da atualidade As Crônicas de Gelo e de Fogo140 e na saga Harry Potter141 – além de

138 Na realidade o autor criou 9 línguas fictícias no total, mas destacam-se o Quenya e Sindarin por apresentarem elementos como vocabulário, fonética, gramática e alfabeto. 139 Christopher Reuel Tolkien (1924 – ) é o terceiro filho de J. R. R. Tolkien mais conhecido por ser o editor de muitos trabalhos postumamente publicados de seu pai. 140 A Song of Ice and Fire é uma série de livros de alta fantasia escrita pelo romancista e roteirista norte- americano George R. R. Martin. O primeiro volume foi lançado em 1996. Até 2015, os livros já tinham vendido mais de 60 milhões de cópias pelo mundo e em janeiro de 2017, já tinha sido traduzido para 47 idiomas. Em 2010 a emissora americana HBO lançou a adaptação televisiva da série chamada de Game of Thrones. O seriado entrou para o Livro de Recordes como a série dramática com a maior transmissão simultânea ao redor do mundo 141 É uma série de sete romances de alta fantasia escrita pela autora britânica J. K. Rowling. A série narra as aventuras de um jovem chamado Harry James Potter, que descobre aos 11 anos de idade que é um bruxo ao ser 108

meios completamente diferentes, como os quadrinhos e RPG. Mesmo assim, as publicações baseadas no universo criado pelo autor se tornaram um ponto de referência para essa cultura. “Se você o tivesse lido, você era, por definição, um nerd” (ANDEREGG, 2007, p. 211-212)142. Existe um outro exemplo de interesse nerd que está muito próximo a esse. O universo da fantasia medieval desemboca em uma outra prática, mais comum nos Estados Unidos, mas que tem se tornado mais familiar no Brasil. As feiras medievais criam espaços comuns para diversos grupos medievalistas se reunirem e colocarem em prática seu apego por elementos do passado. O ambiente que tenta criar uma atmosfera medieval convida os participantes a várias atividades, que podem se complexificar, dependendo do grau de sofisticação do evento, como “apreciar as justas e os combates dos cavaleiros, as apresentações dos menestréis e dos bobos’ (FERNANDES; RIOS, 2011, p. 84). Os produtos vindos desse espírito medieval, mesclados a elementos fantásticos – ou reais – rechearam a cultura pop nas mais diversas mídias e transformaram-se em representativos da cultura nerd.

Os exemplos podem se multiplicar: O Senhor dos Anéis é um conto épico de cavalaria; Game of Thrones se estabelece em um cenário próximo a transição de uma Inglaterra anglo-saxônica para normanda; há uma ordem de cavalaria militar-religiosa em Star Wars próxima dos cavaleiros Templários, os Jedis; [...] O Nome da Rosa, com uma Idade Média semioticamente reconstruída por Umberto Eco, e seria possível continuar uma onga lista que incluiria, entre outros, Cruzada, Eragon, O Corcunda de Notre-Dame e mesmo, na chave paródia, Monty Python e o Cálice Sagrado e Shrek (MARTINO, 2017, p. 311).

Outro item de interesse, que inicialmente se aproveita da mistura entre o fictício e o factual na história humana para criar uma área de atração para os nerds da década de 1970, são os jogos de interpretação de papel, ou, Role-Playing Game (RPG) em inglês. O jogo consiste em realizar ações mediadas por um mestre (ou narrador) em um ambiente completamente imaginado e regulado por uso de dados. Nos jogos de RPG, os participantes devem interpretar papéis e realizar ações de natureza social, romântica/sexual e principalmente disputas e lutas, narrando suas ações que são avaliadas por uma ficha previamente montada em que seus atributos estão definidos. O fator sorte é decido no rolar dos dados e condução da história fica a cargo do mestre/narrador.

convidado para estudar na Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts. Desde do primeiro volume Harry Potter e a Pedra Filosofal, lançado em 1997, os livros ganharam uma imensa popularidade, aclamação da crítica e foram um sucesso comercial em todo o mundo. Os livros foram adaptados para o cinema. 142 Traduzido do original: “If had read it, you were by definition a nerd”. 109

O primeiro sistema a ser desenvolvido foi nomeado Dungeons and Dragons (D&D). Segundo Fernandes e Rios (2011, p. 176), esta história teve grande influência de O Senhor dos Anéis e as outras publicações de Tolkien, fato que rendeu aos criadores processos judiciais por plágio.

Gary Gygax e Dave Arneson – criadores do D&D – sempre alegaram que pouco tiveram de influência de J. R. R. Tolkien para criar o jogo (talvez os processos judiciais da Tolkien Society contribuam para este discurso), mas os elementos presentes no universo tolkiniano (em obras como Silmarilion e O Senhor dos Anéis) estão também presentes no D&D, como os anões, elfos, halflings (hobbits, para Tolkien), dragões e torres de magia (YOKOTE, 2014, p. 87).

Anderegg adiciona outras influências à criação do jogo:

O padrinho de todos os role-playing games, D&D, publicado pela primeira vez em 1974 e ainda o role-playing game mais popular, recebe o crédito de ser o inventor da categoria do role-playing game (RPG). D&D tem, como seu próprio antepassado espiritual, a maior fascinação das crianças com épocas medievais e mitologia Celta, incluindo as aventuras do Rei Arthur ou os romances de Sir Walter Scott. [...] Também é um descendente direto de Tolkien e , junto com muitas outras fontes de pulp-fiction (ANDEREGG, 2011, p. 206-207)143.

Após a ascensão dos jogos baseados no sistema D&D outros sistemas surgiram frente ao interesse comercial. “No final da década de 1980 o americano Steve Jackson criou o Gurps – Generic Universal Role Playing System” (FERNANDES; RIOS, 2011, p. 176). Nesse sistema básico, outras temáticas foram incorporadas. Além das histórias de fantasia medieval o Gurps incorporou ao seu jogo a ficção cientifica, cyberpunk, viagem no tempo e outras narrativas fantasiosas. Muitos outros sistemas surgiram (e continuam a surgir com a criação e modificação dos fãs). Na década de 1990, Mark Rein-Hagen144 lançou pela editora americana White Wolf o sistema Storyteller que possuía uma temática mais adulta e sombria para os jogos fantasiosos. O consumo de RPG se expandiu das mesas de jogadores sozinhos em casa com livros e dados de várias faces para um universo maior, a partir dessa matriz “houve também o surgimento de jogos de tabuleiro, com figuras movimentadas pelos jogadores; de cards colecionáveis que

143 Traduzido do original: “The godfather of all role-playing games, Dungeons & Dragons. D&D, first published in 1974 and still the most popular role-playing game, is credited with inventing the role-playing game (RPG) category. D&D has, as its own spiritual ancestor, the most kids’ fascination with medieval times and Celtic mythology, including the tales of King Arthur or the novels of Sir Walter Scott. [...] It is also a direct descendant of Tolkien and Conan, along with many other sources of pulp-fiction sources”. 144 Mark Rein·Hagen é autor de livros de RPG da série de Vampiro: A Máscara e Lobisomem: O Apocalipse, entro outros livros de RPG 110

formam decks com os quais as pessoas se reúnem para jogar” (FERNANDES; RIOS, 2011, p. 177). Existem, ainda, mais produtos. As histórias baseadas no sistema D&D basearam a animação Dungeons and Dragons, conhecida como A Caverna do Dragão no Brasil. Os 27 episódios produzidos entre 1983 e 1985 tiveram seus cenários e aventuras baseadas no jogo.

O motivo pelo qual D&D é considerado nerd é a quantidade de imaginação necessária para jogar, mas também o tempo e investimento necessários para decorar dezenas de regras complexas e detalhes sobre o universo do jogo, o que combina perfeitamente com a tendência mais introspectiva dos nerds. O jogo envolve também a criação de personagens e as aventuras podem durar semanas e até meses – algo que pais preocupados, alimentados pela opinião de supostos especialistas através da mídia, consideravam uma forma excessiva de escape (SANTOS, 2014, p. 25).

Jogar RPG talvez seja um dos elementos clássicos da cultura nerd que melhor representa seu modo de vida, não é à toa que a referência aos jogos e cenas de personagens ao redor de uma mesa rolando dados é tão presente em vários momentos da cultura pop para identificar um nerd.

O Role-Playing Game é um item característico do universo nerd e exige obediência a uma detalhada estrutura fundamentada em um conjunto coerente de regras. Logo, as atividades que precedem o início de uma aventura, desde a elaboração do enredo à construção dos personagens, são nerdemente produzidas, consumindo bastante tempo e disposição de quem integra a narrativa. O Role-Playing Game vai além de ser apenas um jogo: é um importante sistema de exercício de criatividade narrativa (MONT’ALVÃO JÚNIOR, 2016, p. 36).

Talvez o elemento mais difundido fora do universo nerd, mas que durante muito tempo pertenceu (quase exclusivamente) à cultura nerd, foi apresentado ao mundo em 1938: os super- heróis de quadrinhos. As HQs já existiam antes disso, “os ‘comics’ verdadeiramente modernos começaram a aparecer: em 1889 na França e em 1896, com a forma atual, nos Estados Unidos da América” (RAHDE, 1996, p. 105). Publicações populares como Flash Gordon, Tarzan e O Fantasma145 já recheavam as publicações de quadrinhos e pulp e tinham cativado seu público jovem, mas foi só em junho daquele ano que a editora Detective Comics, Inc146 apresentou o conceito de super. Superman (que já foi traduzido para Super-Homem no Brasil) debutou nas

145 Esses personagens surgiram nas revistas Pulp entre 1900 e a década de 1930, antes do inicio da Era de Ouro dos quadrinhos com a criação dos super-heróis como Supermam (1938) e Batman (1939) 146 Detective Comics, Inc, mais conhecida como DC é uma editora criada em 1934 e responsável pelo lançamento de história em quadrinhos de grande sucesso no mundo. Tornou-se subsidiária da Warner em 2009. 111

páginas de quadrinho fazendo um novo universo de personagens fantásticos o seguirem (figura 6).

Figura 6: Capa da Action Comics #1, primeira aparição do Superman

Fonte: https://goo.gl/xiZqgR (acesso em 04/2018)

Christopher Knowles em The Gods Wear Spandex (Os Deuses Vestem Lycra, tradução livre) afirma que o nascimento dos super-heróis está ligado a um momento difícil do cotidiano dos Estados Unidos e da necessidade de afirmação daquele país.

O super-herói moderno ganhou vida no meio da Grande Depressão e no alvorecer da Segunda Guerra Mundial. Os americanos estavam com medo e os super-heróis forneciam um meio de conforto e fuga. Superman, o primeiro dos grandes super-heróis, não lutou contra robôs ou alienígenas em suas primeiras aventuras; ele lutou contra os vilões que as pessoas estavam realmente preocupadas na época: gângsteres, políticos corruptos, fascistas e aproveitadores da guerra. Depois de Pearl Harbor, super-heróis se tornaram as mascotes do esforço de guerra (KNOWLES, 2007, p.3-4)147.

Logo após ao nascimento do Superman, uma leva de novos heróis fantasiados ingressou no cotidiano do jovem americano. Batman, Lanterna Verde, A Mulher Maravilha e The Flash como ícones da editora DC, um conglomerado editorial americano que ascendeu no mercado de HQs adquirindo editoras menos e seus personagens. Como consequência do esforço de guerra, as histórias se tornaram uma diversão barata o que impulsionou o mercado.

147 Traduzido do original: “The modern superhero came to life in the midst of the Great Depression and at the dawn of the Second World War. Americans were afraid, and superheroes provided a means of comfort and escape. Superman, the first of the great superheroes, didn’t fight robots or space aliens in his early adventures; he fought the villains that people were really worried about at the time: gangsters, corrupt politicians, fascists, and war profiteers. After Pearl Harbor, superheroes became the mascots of the war effort”. 112

Esse foi o momento de consolidação desse tipo de entretenimento entre os jovens. A década de 1940 deu forma a essa mídia e definiu seus conceitos. “De fato, a atual forma das histórias em quadrinhos que tiveram sua origem nos jornais americanos do século passado, passou a ter um personagem constante, a sequência narrativa das imagens e o balão com o texto/diálogo” (RAHDE, 1996, p. 105-106). O fim da Guerra e o contexto americano nos anos 1950 foram um baque para a indústria de quadrinhos. Os jovens que retornaram do conflito não pareciam se interessar mais nas narrativas e as vendas caíram drasticamente. Além disso, uma associação comumente feita até hoje teve origem nesse período. O Psiquiatra alemão radicado nos Estados Unidos, Fredric Wertham148, publicou em 1954 Seduction of the Innocent (Sedução dos Inocentes) e nesse livro “Wertham atacava os super-heróis, argumentando que a violência e o vigilantismo em seus fios encorajavam o comportamento antissocial, a perversão sexual e os impulsos fascistas” (KNOWLES, 2007, p. 137). O impacto foi tamanho que as ideias do pesquisador alemão levaram a uma comissão do Senado Americano a investigar as histórias em quadrinhos. Como forma de evitarem maiores complicações a própria indústria formatou um modelo de autocensura.

Em 1954, os principais editores se uniram e formaram um órgão estritamente auto censurável chamado CCA (Comics Code Authority). A Autoridade proibiu palavras como "terror" e "horror" de títulos, lobisomens banidos, vampiros e zumbis, e proibiu representações gráficas de assassinato ou sexo. Todos os quadrinhos deveriam ser submetidos ao CCA para o seu selo literal de aprovação (KNOWLES, 2007, p. 137)149.

Mas foi nos anos 1960, quando as HQs não apareciam mais um produto de grande interesse, que o mercado se reaqueceu. Parte disso está na ascensão da editora Marvel Comics, empresa que ao lado da DC Comics formaram um oligopólio mundial da criação e distribuição de revistas de herói.

Revoluções geralmente ocorrem quando ninguém está olhando, e certamente poucas pessoas estavam olhando para a Marvel Comics em 1961, quando o editor Martin Goodman pediu a Stan Lee para criar uma equipe de super-

148 Friedrich Ignatz Wertheimer (1895 – 1981) foi um psiquiatra, pesquisador e escritor alemão, que se mudou para Estados Unidos em 1922, onde se tornou professor. Suas publicações protestavam contra os efeitos supostamente nocivos de imagens violentas na mídia de massa e revistas em quadrinhos sobre o desenvolvimento das crianças. 149 Traduzido do original: “In 1954, the major publishers banded together and formed a strict self-censorship body called the Comics Code Authority (CCA). The Authority banned words like “terror” and “horror” from titles, banished werewolves, vampires, and zombies, and forbade graphic depictions of murder or sex. All comics were to be submitted to the CCA for their literal seal of approval”. 113

heróis para competir com a Liga da Justiça da DC. Lee, que estava pensando seriamente em abandonar os quadrinhos, telefonou para seu artista, Jack Kirby. Os dois se juntaram e criaram um gibi cuja única semelhança com a Liga da Justiça é que ele apresenta um grupo de personagens com superpoderes (KNOWLES, 2007, p. 173)150.

Em 1961, a editora lançou Fantastic Four #1, a revista que colocou a empresa numa trilha de novos sucessos. Conceitualmente os quatro heróis não eram grande novidade, havia uma enorme semelhança com alguns personagens existentes de outras publicações, mas o sucesso deu novo folego a empresa e a possibilidade de novas criações. Talvez o mais conhecido deles só veio surgir em 1962.

Um dos personagens mais conhecidos do mundo é o Homem-Aranha, criado por Stan Lee e Steve Ditko em 1962 (Amazing Fantasy # 15). Homem-Aranha ganhou incontáveis milhões para a Marvel Comics, aparecendo em quadrinhos, desenhos animados, filmes, livros para colorir, romances, discos e livros infantis. Ele está acostumado a vender brinquedos jogos, cereais, alimentos enlatados, produtos de papel, doces, sabonetes, fantasias e qualquer outra coisa que você possa imaginar. O Homem-Aranha age como o mascote oficial da Marvel, assim como o Mickey Mouse faz para a Disney (KNOWLES, 2007, p. 123)151.

O Homem-Aranha ganhou destaque nesse período e se tornou um dos grandes símbolos da editora, entre outros motivos por apresentar as histórias de um jovem nerd americano dividindo sua vida entre os problemas adolescentes no ensino médio e a vida de lutas e desafios em suas aventuras heroicas. A dualidade do nerd e super-herói de um grande destaque para o personagem. A partir da década de 1970, as HQs estavam consolidadas no gosto do público americano e começaram a se difundir também no Brasil. Aqui, inicialmente, as histórias em quadrinhos tiveram outro significado. “No Brasil, histórias em quadrinhos, antes de ser uma das principais artes da cultura nerd, eram reconhecidas como uma arte direcionada a crianças e

150 Traduzido do original: “Revolutions usually occur when no one is looking, and certainly few people were looking at Marvel Comics in 1961 when publisher Martin Goodman asked Stan Lee to create a superhero team to compete with DC’s Justice League of America. Lee, who was seriously thinking of quitting the comics, rang up his star artist, Jack Kirby. The two got together and came up with a comic whose only resemblance to the Justice League is that it features a group of characters with superpowers”. 151 Traduzido do original: “One of the most recognizable characters in the world is Spider-Man, created by Stan Lee and Steve Ditko in 1962 (Amazing Fantasy #15). Spider-Man has earned countless millions for Marvel Comics, appearing in comics, cartoons, movies, coloring books, novels, records, and children’s books. He’s been used to sell toys, games, cereal, canned foods, paper products, candy, soap, costumes, and just about anything else you can think of. Spider-Man acts as Marvel’s official mascot, just as Mickey Mouse does for Disney”. 114

adolescentes” (MONT’ALVÃO JÚNIOR, 2016, p. 85). Porém, aos poucos passaram a constituir o cotidiano de quem era considerado um nerd. Anderegg (2007, p. 34-35) denomina de nerd pessoas fanáticas por histórias em quadrinhos e o quadrinista Will Eisner dá pistas da razão.

As histórias em quadrinhos apresentam uma sobreposição de palavra e imagem, e, assim, é preciso que o leitor exerça as suas habilidades interpretativas visuais e verbais. As regências da arte (por exemplo, perspectiva, simetria, pincelada) e as regências da literatura (por exemplo, gramática, enredo, sintaxe) superpõem-se mutuamente. A leitura da história em quadrinhos é um ato de percepção estética e de esforço intelectual (EISNER, 2010, p. 2).

Ainda é possível adicionar a intertextualidade das histórias, as narrativas sem fim, os universos que se renovam, entre outros demandam dos nerds uma grande quantidade de dedicação e tempo. Por isso, as histórias em quadrinhos representam um dos elementos centrais em sua cultura. Ao assistir uma série de televisão ou um filme de Hollywood é fácil perceber qual personagem vai representar o tipo nerd. Ele terá alguma dificuldade social, estará com uma indumentária condizente (camiseta de heróis, com formulas ou frases inteligentes e até bandas de rock’n’roll, e provavelmente um par de óculos) e muito provavelmente ele terá um emprego ligado às ciências e ao desenvolvimento. Não é à toa que a maioria dos personagens citados até aqui é representada assim, pois nerds adoram ciências. Se você não sabe o que é o Bóson de Higgs152, ou para que serve o Grande Colisor de Hádrons153, ou não tem ideia das contribuições de Stephen Hawking154 para a astronomia, possivelmente você não é um nerd. Não que eles saibam tudo e conheçam profundamente todos esses conceitos, mas provavelmente a curiosidade de aprender sobre temas pouco comuns à população em geral (no que se refere a ciência e desenvolvimento tecnológico) classificaria alguém como nerd. Anderegg (2007, p. 171) atribui isso à necessidade de classificação dos pares existentes no ensino médio dos Estados Unidos. Para o psicólogo e pesquisador, a categorização é

152 Bóson de Higgs, nomeada popularmente como Partícula de Deus, é uma partícula elementar prevista pelo Modelo Padrão de partículas confirmada após o início do funcionamento do LHC. 153 LHC (Large Hadron Collider) é o maior acelerador de partículas e o de maior energia existente do mundo. O laboratório localiza-se em um túnel de 27 km de circunferência, bem como a 175 metros abaixo do nível do solo na fronteira franco-suíça, próximo a Genebra, Suíça. 154 Stephen William Hawking (1942 – 2018) foi um físico teórico e cosmólogo britânico e um dos mais consagrados cientistas da atualidade. Doutor em cosmologia, foi professor lucasiano emérito na Universidade de Cambridge, um posto que foi ocupado por Isaac Newton. 115

estimulada e aqueles que se agrupam em interesses pouco convencionais ao restante do grupo social acabam sendo tratados como nerds. Um paralelo pode ser feito para o apelido CDF no Brasil, que servia para alunos mais envolvidos e dedicados ao processo de aprendizagem. É evidente que uma visão mais rápida dá conta de perceber um tipo de nerd: o interessado em ciência naturais, porém, os nerds são sobretudo curiosos e estudiosos. Há, claro, aqueles que buscam se aprofundar em outras áreas, como a história, a arte e a filosofia. Podemos dividir o “universo geek em duas grandes esferas: uma baseada nos mitos, na qual residem os geeks mais voltados para as áreas humanas, como escritores e cineastas; outra baseada na matemática, na qual residem os geeks ligados às ciências exatas, como os que gravitam em torno da tecnologia” (MONT’ALVÃO JÚNIOR, 2016, p. 54). Essa relação do tipo nerd com o conhecimento pode ser traçado até a nascimento dos nerds no final do século XIX, como propôs Nugent (2008), com os jovens interessados em tecnologia rivalizando socialmente com a burguesia rural. O resultado é que “dominando as ciências e seus sucedâneos, os nerds modificaram as relações do ser humano com o planeta – desde o momento em que um ancestral das cavernas fabricou uma alavanca até que seus descendentes remotos desenvolveram a linguagem binária” (FERNANDES; RIOS, 2011, p. 7). Entre esses elementos que ligam os nerds, um tem mais reverberações no seu comportamento como grupo social atualmente, e merece ser mais aprofundado. Todo nerd, essencialmente, é alguém que se interessa com profundidade sobre algum(ns) assunto(s). Grandes personalidades da ciência, do desenvolvimento tecnológico e até da política se declararam nerds; o astrofísico Neil deGrasse Tyson155 comumente aparece em entrevistas explicando conceitos científicos nas histórias de ficção e em declaração à televisão nos Estados Unidos se assumiu um nerd156. O ex-presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, declarou em entrevista “Eu sou um geek da ciência. Eu sou um nerd. E eu não peço desculpas por isso”157, também já tinha declarado que era “nerd antes disso se tornar algo legal”158, e em 2016 o criador do Facebook, Mark Zuckerberg, incentivou as meninas em idade escolar: “seja uma nerd”159, no intuito de incentivar as meninas a se tornarem o próximo inventor de sucesso. No Brasil, o biólogo, pesquisador e doutor em microbiologia Atila Iamarino mantém um canal no

155 Neil deGrasse Tyson (1958 - ) é doutor em astrofísica, professor, divulgador científico e diretor do Planetário Hayden no Centro Rose para a Terra e o Espaço em Nova York. 156Disponível em: www.youtube.com/watch?v=Tr0vNzS7UTs, acessado em 04/2018 157 Disponível em: .com/obamawhitehouse/status/786657957052243968, acessado em 04/2018 158 Disponível em: www.politico.com/story/2016/02/obama-i-was-a-nerd-219133, acessado em 04/2018 159 Disponível em: www.usatoday.com/story/tech/news/2016/01/04/facebook-mark-zuckerberg-be-the-nerd- dont-date-the-nerd/78284678, acessado em 04/2018 116

chamado Nerdologia160. Com mais de 2 milhões de inscritos e uma média superior a 150 mil visualizações do vídeo, ele mantém semanalmente explicações científicas para assuntos que fazem parte do dia a dia nerd. Bill Gates161, Steve Jobs162, Elon Musk163. Os exemplos não param. E esses nerds transformaram seu objeto de interesse em reconhecimento financeiro e acadêmico. Outros nerds canalizaram seu interesse para o universo pop. Nugent (2008, p. 41) afirma que o importante no lançamento da Amazing Stories não foi só as publicações de ficção científica – que se tornaram um importante elemento do universo nerd – mas também induzir as pessoas a escrever e comentar obsessivamente sobre aquele assunto. “Nos anos trinta e quarenta [do século XX], esses escritores de cartas começaram a se juntar em clubes locais com hectógrafos e mimeógrafos para produzir zines” (NUGENT, 2008, p. 4). Clubes como esses incluíram escritores e pensadores como Isaac Asimov164. Além disso, criaram essa relação entre as produções e os consumidores, que é uma forte marca contemporânea da existência nerd: a cultura de fã.

2.4 – Fandom165 e a cultura nerd

Albin Johnson nasceu em 1969 nas montanhas de Ozark166, em uma pequena comunidade pobre. Sua família frequentava uma igreja pentecostal onde ele aprendeu que George Lucas havia assinado um acordo com o Diabo para ter sucesso na franquia Star Wars. Mesmo assim o garoto foi ao cinema 20 vezes assistir o primeiro filme. Nos anos 1990 Johnson perdeu a perna esquerda em um acidente de carro e entrou em depressão. Não conseguia lidar bem com a falta do membro.

Johnson manteve o emprego de segunda a sexta na Circuit City – “fazendo bom uso do meu diploma em psicologia”, diz ele –, e foi lá que, no fim de

160 Disponível em: youtube.com/channel/UClu474HMt895mVxZdlIHXEA, acessado em 04/2018 161 William Henry Gates (1955 – ) ficou conhecido por fundar junto com Paul Allen a Microsoft, a maior e mais conhecida empresa de software do mundo em termos de valor de mercado. Gates era aluno de Direito e Matemática em Havard quando abandou a universidade para se dedica a criação de sua empresa. 162 162 Steven Paul Jobs (1955 – 2011) cofundador da Apple Inc. e responsável por grande parte das tecnologias desenvolvidas pela empresa até a sua morte. 163 Elon Reeve Musk (1971) é um investor e empresário sul-africano radicado nos EUA. É o fundador de empresas de tecnologia como a SpaceX (responsável por viagem espaciais) e da Tesla Motors (carros elétricos) entre outras. 164 Isaak Yudavich Azimov (1920 – 1992) foi um escritor e bioquímico radicado nos EUA e nascido na Rússia, autor de obras de ficção científica e divulgação científica. 165 Expressão de língua inglesa para identificar um grupo de pessoas que comungam de gosto e interesse por algum produto da cultura pop 166 Ou Planalto de Ozark é uma cordilheira rochosa no centro sul dos Estados Unidos. 117

1996, um colega chamado Tom Crews tomou como missão animar Johnson. Eles conversaram sobre interesses em comum: caratê, rock’n’roll. Depois, falaram sobre Star Wars. Ei, será que Johnson sabia que os filmes voltariam aos cinemas, nas supostas edições especiais? Johnson ficou radiante. “Tudo o que conversamos naquele dia foi a cena de abertura na qual os stormtroopers chegam derrubando a porta da Tantive IV. Não conseguíamos parar de pensar naquele conceito” (TAYLOR, 2015, pos. 1042).

As conversas com o amigo fizeram surgir memórias do filme que animaram Albin. E os dois começaram a se imaginar interpretando os soldados imperiais. “Quando se é um stormtrooper, ninguém sabe se a pessoa é amputada. É de se esperar que a pessoa se camufle, seja dispensável – perfeito para um sujeito tímido e envergonhado” (TAYLOR, 2015, pos. 1047). Os dois fãs de Star Wars e amigos começaram a buscar fantasias ou réplicas da armadura de stormtrooper para uma exibição da trilogia de filmes em um cinema local. Na primeira aparição pública Albin estava sozinho. Algumas semanas depois Crews também tinha conseguido montar seu uniforme e os dois foram juntos ao evento.

Dessa vez, o público parecia espantado e com um pouco de medo enquanto o par patrulhava o salão com um andar confiante. “Foi aí que a ficha caiu”, diz Johnson. “Quanto mais stormtroopers, melhor o efeito. Eu resolvi que, de alguma forma, durante a minha vida, eu conseguiria juntar até dez stormtroopers no mesmo lugar. Esse era o tamanho da minha ambição” (TAYLOR, 2015, pos. 1075).

A dupla tirou fotos, criou website e postou anúncios em feiras estaduais, lojas de quadrinhos e todo tipo de evento em que o anúncio pudesse ser visto. Isso tudo em 1997, antes das redes sociais na internet. Johnson criou histórias e deu nomes para os dois soldados, tudo referenciado no universo original dos filmes, mas expandindo para além do roteiro original. Em algumas semanas as primeiras respostas começaram a aparecer por e-mail. Empolgado com novos membros para sua equipe ele resolveu nomear o grupo. “Tentou pensar em nomes que lembrassem o esquadrão de pilotos de caça do pai, na Segunda Guerra Mundial – ‘algo cheio de energia, algo maneiro’ –, adicionou um pouco de aliteração e criou a Fightin’ 501st.” Além disso ele escreveu uma história de fundo para o grupo, apresentando-os como um destacamento de elite, uma “legião secreta” a serviço de Darth Vader.

Aquela era, concordaram os amigos, uma ideia muito bacana. Eles o ajudaram a distribuir panfletos em convenções. “Você é leal? Trabalhador? Completamente dispensável? Junte-se à Legião Imperial 501st!” Em 2002, Johnson amealhou mais ou menos 150 pessoas fantasiadas de stormtroopers 118

em Indianápolis na Celebration II, a segunda convenção oficial de Star Wars, e ofereceu seus serviços à cética Lucasfilm para deixar que a 501st ajudasse a controlar a multidão quando a segurança do evento provou ser completamente inadequada para os 30 mil presentes. A Lucasfilm foi conquistada pelos incansáveis e superorganizados troopers e começou a usar a 501st como voluntários para todos os seus eventos (TAYLOR, 2015, pos. 1094).

A ideia de Johnson não ficou restrita aos Estados Unidos e o número de soldados imperiais se multiplicou. Hoje, a Legião 501st é reconhecida como umas maiores organizações fantasiadas do mundo. Conta com 6.500 membros em 47 países em 5 continentes, e tem 20% do seu efetivo de mulheres. “Mais importante, a criação de Johnson e Crews alcançou aquela galáxia muito, muito distante. Em 2004 foi lançado o primeiro romance oficial de Star Wars a incluir a 501st, escrito pelo famoso autor da série Timothy Zahn”. Em 2005 o sexto filme da franquia “Episódio III: A Vingança dos Sith” incluiu no filme, na cena onde o recém-nomeado Darth Vader invade o Templo Jedi para massacrar os membros remanescentes da ordem, um grupo de clonetroopers (antecessores dos stormtroopers) nomeados no roteiro como Legião 501st. A Hasbro167 já fabricou e vendeu mais de 5 milhões de soldados de brinquedo da Legião 501st. A inserção da marca na franquia foi tanta que fãs desavisados começaram a acusar a Legião de copiar o nome criado por George Lucas, e não o contrário. A história da Legião 501st continua e seus membros ainda se apresentam em comemorações oficiais e eventos oficiais organizados por Lucas. Porém, o mais relevante nessa história é como ela exemplifica a cultura de fãs no universo nerd. Albin Johnson e Tom Crews invadiram o texto e expandiram os seus limites. Essa apropriação da obra pelo fã encontra explicação naquilo que Jenkins (2015), usando as ideias de Michel de Certeau, chamou de invadir o texto. “A analogia de ‘invasão’ de Certeau caracteriza o relacionamento entre leitores e escritores como uma disputa constante pela posse do texto e pelo controle dos seus significados” (JENKINS, 2015, p. 43). Para o autor americano existe uma cultura de participação e disputa de posse dos textos da cultura de massa – séries televisivas, cinema e quadrinhos – cujos consumidores, os fãs, assumem controle das obras, expandindo suas fronteiras e ressignificando essas produções dentro de suas próprias realidades. Nessa cultura de fãs, as histórias ganham uma coautoria de indivíduos ou grupos que dividem com os criadores originais suas narrativas.

Longe de serem sincopáticos, os fãs afirmam ativamente seu domínio sobre os textos de produção massiva que servem de matéria-prima para suas próprias

167 Com sede em Rhode Island, nos Estados Unidos, a Hasbro é uma empresa americana fabricante de brinquedos e jogos. É a terceira maior empresa mundial neste ramo. 119

produções culturais e base para suas interações sociais. Assim, fãs deixam de ser audiência desses textos, ao invés disso, tornam-se partícipes da construção e circulação de significados textuais (JENKINS, 2015, p. 42).

A categoria fã pode ser percebida em outros tipos de consumo. Há fãs de esportes que se engajam ativamente na torcida por uma agremiação esportiva. O mesmo pode ser percebido na música, cinéfilos ou outros apreciadores de um produto cultural específico. Porém, aqui, os fãs assumem uma postura lateral ao produto. Seu engajamento extrapola a apreciação, eles “agem sobre elas de forma que se tornam propriedades que, em certo sentido, são suas”, por outro lado os participante desse tipo de cultura “também têm ciência aguda e triste de que essas ficções não pertencem a eles e que outra pessoa tem o poder de fazer coisas com esses personagens que contradizem diretamente os interesses culturais dos próprios fãs” (JENKINS, 2015, p. 42). Em outra definição, Matt Hills (2015) resume o conceito de fã e o relaciona com o fandom, como busca de uma identidade, proporcionado pelo acesso, pela proximidade, e pela possibilidade de manipular, criar e expandir um produto da cultura pop.

Creio que em muito o fandom relaciona-se a representar uma identidade, é sobre um sentido para o eu, sobre afeto, em termos de atuar num nível emocional, subjetivo. E é sobre o indivíduo ser colocado numa comunidade, na qual é preciso uma noção de discurso, bem como emoção (HILLS; GRECO, 2015, p. 150).

Emoção que o autor percebe como fundamental para entendermos a ideia de fã. “Sem os apegos emocionais e paixões dos fãs, as culturas de fãs não existiriam, mas os fãs e acadêmicos muitas dão como certos esses apêndices ou não os colocam no centro do palco suas explorações de fandom” (HILLS, 2002, p. 60)168. Para o autor há uma diferença fundamental entre aqueles que se propõem a acompanhar – por diversão e interesse – um produto cultural como um filme ou uma série, e o fã. Essa diferença está notadamente ligada à apropriação desse conteúdo como forma de integrar a identidade cultural do fã. “A diferença entre um fã e um seguidor é que um fã pode reivindicar uma identidade cultural por meio do seu fandom, de modo que vestem camisetas, desempenham o papel de outros – verdadeiros ou imaginários – e também estão envolvidos na produção

168 Traduzido do original: “Without the emotional attachments and passions of fans, fan cultures would not exist, but fans and academics often take these attachments for granted or do not place them centre-stage in their explorations of fandom”. 120

textual” (HILLS; GRECO, 2015, p. 152). Jenkins (2006, p. 23)169 complementa essa ideia: “é sobre ter o controle e domínio sobre a arte, trazendo-a para perto e integrando-a em seu sentido do eu”. A identidade e o afeto do fã fazem essa relação mais profunda, se comparada à experiência do consumo cotidiano desses produtos. “Onde as audiências ou espectadores estão consumindo a mídia, elas não estão articulando este consumo de maneira significativa com a auto identidade representada e vivida” (HILLS; GRECO, 2015, p. 152) Perceber o fã como esse agente ativo no processo de comunicação deve-se muito a mudança de paradigma nos estudos de comunicação a partir dos anos 1960 e 1970, principalmente com a tradição de pesquisa vinda da Escola de Birmingham. Para Jenkins (2006, p. 1)170 os estudos culturais ajudaram a “reverter o desprezo público pelas subculturas da juventude, eu queria construir uma imagem alternativa das culturas dos fãs, uma que visse os consumidores de mídia como ativos, criticamente engajados e criativos.” Essa noção deu novo destaque à audiência, ao receptor dos conteúdos, e as transformações que as produções midiáticas articulavam novos novas sociabilidade dos indivíduos ou grupos. “No caso especial dos fãs, isso significou perceber que, mais do que um grupo de interessados em filmes ou bandas, eles desenvolviam seu próprio circuito cultural e se tornavam uma audiência produtiva” (MARTINO, 2015, p. 160). A cultura de fã se articula por meio de uma rede de afetos, interesses e identificações, hoje, impulsionada pelos meios digitais que facilitaram a reunião de indivíduos e a disponibilização de conteúdo. Os fãs se apropriaram do texto e expandiram suas fronteiras, realizando um trabalho de consumidor/produtor. E essas características marcam visivelmente a cultura nerd.

À primeira vista, esse perfil do nerd pode até parecer algo pueril; no entanto, na verdade, é fruto da estrutura de funcionamento conduzida por essa era da cultura da convergência, da qual, é importante ainda reafirmar, a cultura nerd sempre integrou (MONT’ALVÃO JÚNIOR, 2016, p. 36).

A “cultura da convergência” (JENKINS, 2015) potencializou essa prática que de uma forma ou de outra sempre esteve presente entre os nerds. Escrever, adaptar, recriar e expandir histórias e personagens sempre acompanhou a trajetória dessa cultura. O que esse novo paradigma fez foi facilitar o acesso às tecnologias de criação de distribuição desses conteúdos.

169 Traduzido do original: “it’s about having control and mastery over art by pulling it close and integrating it into your sense of self”. 170 Traduzido do original: “which helped reverse the public scorn directed at youth subcultures, I wanted to construct an alternative image of fan cultures, one that saw media consumers as active, critically engaged, and creative”. 121

Fãs de um popular seriado de televisão podem capturar amostras de diálogos no vídeo, resumir episódios, discutir sobre roteiros, criar fanfiction (ficção de fã), gravar suas próprias trilhas sonoras, fazer seus próprios filmes – e distribuir tudo isso ao mundo inteiro pela internet. (JENKINS, 2015, p. 44)

É importante perceber que a cultura nerd sempre esteve conectada com participação, criação e recriação de conteúdos – ligados a um material base pré-existente, ou não. É uma característica marcante nos movimentos que circundam a cultura nerd desde seu nascimento a intensa participação nos seus interesses, sejam eles quais forem. O importante é assumir uma certa posse sobre aquele conteúdo.

O nerd é um fã dedicado às coisas de seu interesse. Somado a isso, existe ainda a peculiaridade do nerd de se aprofundar, impulsionado por sua curiosidade. Ao se unirem, formando, assim, o fandom, que é um exemplo claro de cultura participativa e de inteligência coletiva, os nerds acabam se tornando auditores rigorosos do controle de qualidade e de propagação de suas marcas favoritas, sendo o fandom algo como o órgão regulador desse controle (MONT’ALVÃO JÚNIOR, 2016, p. 37).

Diferente de um profissional de destaque em uma determinada área do conhecimento, que, por realizar uma grande carga de estudo e dedicação a certo tema, pode com propriedade pode defender ideias e apresentar soluções para problemas, o nerd faz isso por diversão, pelo afeto, pela identificação. Os nerds, como Albin Johnson, gastam horas pesquisando, discutindo, (re)criando e consumindo seus produtos de interesse.

Desde o seu princípio, o fandom proporciona aos nerds um espaço para travar com propriedade intensas discussões sóbrias de seus assuntos corriqueiros: filmes, quadrinhos, games, ficção científica, fantasia, horror, terror, ficção histórica, RPG – Role-Playing Game, jogos de tabuleiro, action figures, teorias da conspiração, histórias alternativas, miniaturas colecionáveis que podem ser pintadas à mão, card games. Isso torna o fandom um importante elemento para a formação da identidade nerd (MONT’ALVÃO JÚNIOR, 2016, p. 37).

Uma das características da contemporaneidade discutidas por García Canclini (2008) é a sociedade de consumo. Para o autor o consumo de bens tem maior impacto nos indivíduos do que práticas que anteriormente eram consideradas mais relevantes.

Para muitos homens e mulheres, sobretudo jovens, as perguntas próprias dos cidadãos, sobre como obtemos informação e quem representa nossos interesses são respondidas antes pelo consumo privado de bens e meios de 122

comunicação do que pelas regras abstratas da democracia pela participação em organizações políticas desacreditadas (GARCÍA CANCLINI, 2008, p. 14).

Nesse sentido, o fandom, como espaço de consumo e ressignificação dos produtos culturais da mídia, abre espaço para que os participantes da cultura nerd tenham a possibilidade de criar suas identidades associadas às práticas coletivas, ou a produtos consumidos individualmente – embora mais raros. A relação entre a cultura nerd e a cultura do fandom é indissociável desse ponto de vista. A cultura de fã se torna uma ferramenta eminente na elaboração dos textos da cultura, dentro das práticas cotidianas da cultura nerd. Colaborando com a ideia de sociedade de consumo e as novas práticas da contemporaneidade, o sociólogo britânico Mike Featherstone ressalta: “o consumo, portanto, não deve ser compreendido apenas como consumo de valores de uso, de utilidades materiais, mas primordialmente como consumo de signos” (FEATHERSTONE, 1990, p. 122). A existência das comunidades de fãs está relacionada com a formação a possibilidade de formação de identidades, de gostos e afetos; da criação de estilo pessoal e da produção e consumo simbólico que surgem espontaneamente nesses grupos. A cultura nerd existe se apropriando de elementos da cultura pop e transformando em objeto de interesse e afeto – que se desdobra em performance – para os interessados naquela cultura. O fandom e a cultura nerd existem como "uma subcultura que existe nas ‘fronteiras’ entre a cultura de massa e vida cotidiana e que constrói sua própria identidade e artefatos de recursos emprestados de textos já em circulação" (JENKINS, 1992, p. 3)171. É importante ressaltar que os textos consumidos e invadidos pelos fãs – nerds ou não – ganham novos significados nesse processo de apropriação. É lógico que um texto depende de um contexto e todo esse processo envolve uma participação ativa dos indivíduos que integram um fandom.

As audiências estão constantemente criando seu próprio ambiente cultural a partir dos recursos culturais que estão disponíveis. Assim, as audiências não são compostas de dopados culturais; as pessoas geralmente estão bem conscientes de suas próprias implicações nas estruturas de poder e dominação, e das maneiras pelas quais as mensagens culturais (podem) manipulá-las. Além disso, o público da cultura popular não pode ser concebido como uma entidade homogênea singular; temos que levar a sério as diferenças dentro e entre as diferentes frações do público popular (GROSSBERG, 2001, p. 53)172.

171 Traduzido do original: “and everyday life and that constructs its own identity and artifacts from resources borrowed from already circulating texts”. 172 Traduzido do original: “Audiences are constantly making their own cultural environment from the cultural resources that are available to them. Thus, audiences are not made up of cultural dopes; people are often quite 123

A relação do fã nerd com o(s) objeto(s) que lhe interessam o coloca em estreita relação com a cultura de fã. Os textos consumidos na cultura nerd são avaliados, catalogados e hierarquizados dentro dos grupos e constituem um mapa de importância na representação desses grupos. Os nerds realizam um trabalho de curadores da cultura pop; essa relação tão próxima com o texto da cultura realiza um serviço constante de valoração dos bens culturais e sua organização na cultura pop. Assim, é possível perceber como a cultura nerd se aproxima da cultura de fã. Os nerds são consumidores vorazes de textos produzidos pela cultura de massa, e neles buscam ressignificar seus conteúdos, se apropriar de suas histórias e personagens e promover parte de suas identidades culturais. Martín-Barbero, falando do cinema, explica essa relação: “as pessoas de alguma forma projetam e recriam ao se verem a partir de um cinema que as rebaixa e ufana, que catalisa suas carências e sua busca de novos sinais de identidade” (MARTIN-BARBERO, 2009, p. 238). Se Jenkins (1992) escreveu sobre como os fãs haviam invadido o texto e disputado a sua propriedade com seus produtores, não é possível excluir a cultura nerd dessa reflexão. Os nerds invadiram o texto há muito tempo, desde os primeiros instantes em que a cultura nerd passou a se conectar, por meio dos fanzines, com a criação de narrativas de ficção-científica e fantasia, distribuindo suas histórias por cartas e enviando-as para as primeiras revistas do gênero, os participantes dessa cultura estavam buscando a apropriação desses textos. Ali se “iniciou um processo [...] que mostra como o fandom possui muitas características da cultura da convergência discutidas por Henry Jenkins” (MONT’ALVÃO JÚNIOR, 2016, p. 37). “A categoria de fã, no entanto, só pode ser entendida em relação a uma sensibilidade diferente. A relação do fã com textos culturais opera no domínio do afeto ou humor” (GROSSBERG, 2001, p. 56). A relação dos nerds com seus objetos de interesse está representada naquilo que Jenkins na Cultura da Convergência (2009) denominou de “economia afetiva”. Ainda, para Grossberg, afeto “define a força de nosso investimento em determinadas experiências, práticas, identidades, significados e prazeres” (2001, p. 57). E essa é uma característica marcante da cultura nerd.

aware of their own implication in structures of power and domination, and of the ways in which cultural messages (can) manipulate them. Furthermore, the audience of popular culture cannot be conceived of as a singular homogeneous entity; we have to take seriously the differences within and between the different fractions of the popular audience”. 124

Uma das principais características das culturas de fãs é selecionar textos a partir de um repertório de entretenimento produzido e distribuído em massa e, de forma intensamente prazerosa e significativa, transformá-lo em uma cultura pop que é ao mesmo tempo similar e significativamente diferente da cultura das audiências massivas (SANTOS, 2014, p. 89).

A cultura pop criou uma série de personagens, cenários e narrativas por meio da televisão, cinema e quadrinhos. Essas histórias atingiram de maneira global a população consumidora e se tornaram signos importantes dessa cultura. Star Wars, Star Trek e Doctor Who, por exemplo, são alguns dos representantes desse tipo de produção cultural que foi apropriada pelos nerds. Existe, obviamente, um consumo desinteressado desses produtos (e de outros), porém, para o nerd, essas referências se tornam mais do que entretenimento. Fãs de Star Wars, Trekkies e Whovians encontram nesses produtos “a possibilidade de se tornar parte de um grupo ou comunidade, de desenvolver uma rede de relações sociais com outros que compartilham a mesma orientação” (THOMPSON, 1998, p. 194). Porém, não é somente isso; a relação com esses textos, permite trocas culturais entre o consumidor, o produto, os produtores e outros consumidores. Essa relação aumenta os vínculos da comunidade e fortifica o afeto entre os participantes dessa cultura. A cultura de fã permite uma prática intensa de relação com o objeto de interesse. Os cosplay, as partidas de RPG, os Fanzines, os fóruns de discussão (entre outras práticas) aprofundam essas conexões.

à medida que nossa compreensão do passado se torna cada vez mais dependente da mediação das formas simbólicas, e a nossa compreensão do mundo e do lugar que ocupamos nele vai se alimentando de produtos da mídias, do mesmo modo a nossa compreensão dos grupos e comunidades com quem compartilhamos um caminho comum através do tempo e do espaço, uma origem e um destino comuns, também vai sendo alterada: sentimo-nos pertencentes a grupos e comunidades que se constituem em parte através da mídia (THOMPSON, 1998, p. 39).

Estar ligado a um fandom; se interessar tão profundamente em um assunto que ao público geral pode parecer banal; buscar todas as referências num filme baseado em HQs; passar horas discutindo e teorizando universos, personagens e histórias fictícias; essas são práticas comuns a cultura de fã, e intrinsecamente relacionadas com a cultura nerd. Os textos culturais, produzidos na cultura de massa, são – e sempre foram – de grande importância para os nerd.

No âmbito da sensibilidade afetiva, os textos culturais servem como ‘outdoors’ de um investimento, mas não podemos saber o que o investimento é separado do contexto em que ele é feito (este é o aparato). [...] Eles são o 125

local em que nós podemos construir nossa própria identidade como algo em que se investir, como algo que importa (GROSSBERG, 1992, p. 57)173.

O nerd é um fã. Suas práticas, ritos, afetos e identidade estão geralmente ligados a textos da cultura pop. Suas trocas simbólicas fortalecem as características mais inicias da cultura nerd e a cultura de fã é uma ferramenta poderosa nesse processo.

173 Traduzido do original: "Within an affective sensibility, texts serve as ‘billboards’ of an investment, but we cannot know what the investment is apart from the context in which it is made (that is the apparatus). [...] They are the places at which we can construct our own identity as something to be invested in, as something that matters". 126

3 – A EXPLOSÃO DO UNIVERSO NERD

One cries because one is sad. I cry because others are stupid and that makes me sad ― Sheldon Cooper (The Big Bang Theory)

Os dois produtos que pretendemos analisar para cumprir os objetivos propostos nesse trabalho são peças audiovisuais, porém, em formatos diferentes. A Vingança dos Nerds, de 1984, é um filme com 90 minutos e 7 segundos de duração. Por outro lado, o programa de televisão The Big Bang Theory (2007 – 2019) é uma série, exibida em episódios com a duração média de 22 minutos. Se multiplicarmos o número de episódios das 12 temporadas da série pela média de tempo de casa episódio o resultado será 6.138 minutos. Embora a apresentação das duas obras com características diferentes sugira propostas distintas, a ideia desta seção é disponibilizar ao leitor o conhecimento mais completo sobre essas peças, independentemente do seu formato, para subsidiar, posteriormente, as análises. Dito isso, é preciso ter em mente outro problema quando se opta por trabalhar com produtos sonoros ou audiovisuais: como fazer esta apresentação de forma clara e objetiva ao leitor. Para tanto, optamos por aplicar o método de transcrição fílmica. A transcrição das cenas tem como objetivo auxiliar em alguns aspectos para entendimento mais fácil de toda a história e dos elementos gráficos do filme. Mas é trabalho impraticável tentar traduzir uma obra cinematográfica em texto e imagens estáticas (ROCHA, 2014, p. 109).

Para tornar mais didático, no filme, as cenas foram descritas de forma mais cronológica aos acontecimentos. Na série, o destaque foi maior à descrição dos personagens em virtude da quantidade grande de episódios. A ideia é representar de maneira esclarecedora os elementos principais, a narrativa e o desenvolvimento de histórias e personagens. Mas, ao mesmo tempo, perceber que a

transcrição não representa toda a obra, e sim elementos que resumem concisamente a narrativa e imagens importantes para a compreensão do trabalho. Assim, algumas cenas serão detalhadas com um maior número de imagens, enquanto outras cenas serão mostradas com menos detalhes visuais (ROCHA, 2014, p. 109).

127

A descrição nem sempre é fácil, como, por exemplo, tentar relatar elementos sonoros das obras na mídia impressa. Uma demonstração é a gargalhada do personagem Lewis174 ou outros trejeitos de fala dos personagens. Elemento marcante do desenvolvimento das figuras no filme e no seriado televisivo, o som é intransponível para o papel. Entretanto, considerando a necessidade para melhor compreensão do próximo capítulo, buscaremos atender esse objetivo descrevendo as principais cenas de apoio à fase analítica e sintetizando os enredos para a compreensão mais geral das peças.

3.1 – The Nerd Power

A década de 1980 é importante para a demarcação dos personagens e da cultura nerd. Se as revistas, jornais e televisão já haviam anunciado o conceito de nerd em anos anteriores com textos e programas de humor, o cinema encontrou nesse personagem um novo potencial para desenvolver histórias. Não é possível descontextualizar o filme responsável por dar contornos à imagem do nerd na cultura de massa de seu tempo histórico. Isso por que o ambiente criativo do período era propício para a produção da película. O Vale do Silício, no oeste dos Estados Unidos, parece ser hoje o centro do desenvolvimento tecnológico do mundo, e é comumente citado como referência de criação de inovação mesmo por quem tenha pouca familiaridade com o seu funcionamento, realidade que já existia desde a década de 1970. Um marco do desenvolvimento tecnológico, os computadores pessoais foram apresentados para o mundo com o lançamento do ALTAIR 8080175, em 1975. O primeiro PC lançado no mundo, desenvolvido a partir do microprocessador Intel 8080, foi um marco no desenvolvimento da informática e permitiu uma onda de inovação e a criação de empresas que até hoje se estabelecem como hegemônicas nesse mercado – como a Microsoft176 e a Apple177. O documentário de 1996 The Triumph of the Nerds: The Rise of Accidental Empires (O Triunfo dos Nerds: A Ascenção de Impérios Acidentais, tradução nossa), conta essa história.

174 Gargalhada de Lewis, disponível em: www.youtube.com/watch?v=eEqr674foyg (acessado em 19/02/2020) 175 O MITS Altair 8800 é um computador pessoal projetado em 1975, baseado na CPU Intel 8080. O aparelho era vendido originalmente como um kit através da revista norte-americana Popular Electronics, os projetistas pretendiam vender apenas algumas centenas de unidades, tendo ficado surpresos quando venderam 10 vezes mais que o previsto para o primeiro mês. 176 Microsoft Corporation é uma empresa de desenvolvimento de tecnologia fundada por Bill Gates e Paul Allen em 1975. 177 Apple Inc. fundada como Apple Computer, Inc em 1976 por Steve Jobs, Steve Wozniak e Ronald Wayne é multinacional norte-americana que produz e comercializa produtos eletrônicos de consumo, software, computadores pessoais, dispositivos de mídia e telecomunicação. 128

Roteirizado e apresentado por Robert X. Cringely, a narrativa conta a história dos acanhados garotos da Califórnia que se reuniam em espaços das universidades (como Stanford, por exemplo) e nas garagens das casas dos pais para discutir tecnologia, ler sobre o assunto e desenvolver projetos ligados ao tema. Uma das primeiras iniciativas desse tipo foi a Homebrew Computer Club, um grupo de estudos que se reunia na Universidade de Stanford às quartas-feiras de manhã e nos fins de semana. O grupo é tão relevante que, segundo Robert Cringely (1992), “Steve Wozniak inventou a primeira versão do computador Apple I para se destacar entre os amigos do Homebrew Computer Club” (CRINGELY, 1992, p. 62). Os encontros de entusiastas eram frequentados por nomes importantes do desenvolvimento tecnológicos daquele período, a saber: Lee Felsenstein178, Adam Osborne179, Steve Wozniak180 e Steve Jobs; O clube e foi retratado em outras obras do cinema: no filme televisivo Pirates of Silicon Valley181 (Piratas do Vale do Silício, 1999) e no filme biográfico Jobs182 (2013). Esses universitários (nerds) interessados em tecnologia e informática fariam frente nas décadas seguintes às principais indústrias do mundo – como automóveis, moda, comida e petróleo183 – e revolucionariam a nossa relação com a tecnologia, o acesso e a facilidade da comunicação, sendo em grande parte responsáveis por novos modos de sociabilidade impulsionados no início deste século. Ao mesmo tempo, nomes como Gates, Jobs e Wozniak foram os heróis do mundo real de uma grande quantidade de universitários dos anos 1980. Jovens que entravam nas universidades dos Estados Unidos buscando se colocar em um espaço de intelectualidade,

178 Engenheiro da computação americano e um dos responsáveis pelo desenvolvimento dos computadores pessoais. 179 Programador e designer de computadores tailandês e radicado nos Estados Unidos. Foi o responsável pelo primeiro PC de sucesso comercial o Osborne-1, lançado em 1981. 180 Stephen Gary "Woz" Wozniak (1950 – ) é um dos fundadores da Apple Inc. e responsável pelo desenvolvimento de um grande número de tecnologias ligadas à informática, entre elas o desenvolvimento dos computadores Macintosh. 181 Piratas do Vale do Silício é um filme feito para a televisão, pela TNT, escrito e dirigido por Martyn Burke. A obra oferece uma versão dramatizada do nascimento da era da informática doméstica, desde o primeiro PC, através da histórica rivalidade entre a Apple Inc e a Microsoft, indo desde o Altair 8800 da empresa MITS, passando pelo MS-DOS, pelo IBM PC e terminando no Microsoft Windows. 182 Jobs é um filme biográfico americano baseado na vida de Steve Jobs. A obra é dirigida por Joshua Michael Stern, escrito por Matt Whiteley, e produzido por Stern e Mark Hulme. Steve Jobs é interpretado por Ashton Kutcher. 183 As indústrias que mais faturaram no mundo. Matéria da Forbes disponível em: https://forbes.uol.com.br/listas/2016/03/como-os-bilionarios-ficam-ricos-quais-industrias-mais-geram- megafortunas/, acesso 05/2019 129

tecnologia e desenvolvimento, a realização dos tímidos e inaptos adolescentes que buscavam realizar proezas como a de seus ídolos. Para entender como esses jovens nerds são retratados no filme é preciso ficar claro a respeito de um aspecto singular do cotidiano nas universidades dos Estados Unidos: as fraternidades. Muitas vezes retratadas de forma cômica e estilizada no cinema e na televisão nos filmes e séries dos EUA, as fraternidades são uma parte importante da dinâmica social da universidade e dos estudantes. Segundo Parks e Torbenson (2009), a primeira fraternidade nasceu nos Estados Unidos em 1776 no William and Mary College, na cidade de Williamsburg no estado na Virgínia.

Os jovens John Heath, Thomas Smith, Richard Booker, Armistead Smith e John Jones desenharam [como símbolo da sua associação] uma moeda quadrada gravada com as letras SP, as inicias da expressão latina Societas Philosophiae. No outro lado da moeda estavam as iniciais gregas Φ Β Κ (PARKS; TORBENSON, 2009, p. 15)184.

Phi Beta Kappa (ΦΒΚ) se tornaram as três primeiras letras do alfabeto grego a nomear uma associação de alunos universitários nos Estados Unidos. Porém, foi a partir da década de 1820 que esse tipo de união de estudantes começou a se tornar popular. Hoje existem mais de 150 fraternidades e sororities (fraternidades femininas) espalhadas nas universidades daquele país. Segundo informações levantadas pela BBC e publicadas no portal G1 (2017), “as sororidades (ou irmandades, para mulheres) e fraternidades têm aproximadamente 400 mil estudantes de graduação como membros em todo o país - e cerca de US$ 3 bilhões em propriedades” 185. Esses grupos foram criados com objetivos coletivos para engajar mais alunos em conversas e discussões sobre literatura, políticas e temas de interesse público. “Realizando encontros em dormitórios estudantis, os membros liam poemas e discutiam assuntos enquanto fumavam e bebiam" (PARKS; TORBENSON, 2009, p. 19, tradução nossa). Fundada em valores de camaradagem e filantropia esse tipo de organização atrai a participação de grande parte dos calouros em instituições de ensino superior americanas. Os vínculos dos participantes tendem a ser duradouros e seus esforços de ajuda mútua está presente

184 Traduzido do original: “These youg men, John Heath, Thomas Smith, Richard Booker, Armistead Smith e John Jones, designed a square silver medal engraved with SP, the inicials for Latin Societas Philosophiae. On the other side of the mede were the Greek initials Φ Β Κ” 185 Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/morrer-tentando-ser-aceito-os-estudantes-que-morrem- nas-cerimonias-de-fraternidades-nos-eua.ghtml, acessado em 05/2019 130

nas tradições americanas. Desde a organização de festas, eventos esportivos, acadêmicos e filantrópicos, muito do cotidiano de um estudante universitário está ligado às fraternidades. Em 2017, o jornalista americano do canal Bloomberg John Hechinger lançou o livro True Gentlemen: The Broken Pledge of America's Fraternities” (O verdadeiro Cavalheiro: a promessa quebrada das fraternidades da América, tradução nossa), em que lança luz sobre a realidade das fraternidades dos EUA, revelando casos de racismo, violência sexual e abuso de álcool que levou a morte estudantes em processo de iniciação realizado pelos grupos. Em entrevista dada ao site reporterslab.org186, o jornalista afirmou que as empresas de seguro já consideram as fraternidades um risco quase tão grande quanto companhias de descarte de lixo tóxico, porém, ele explica o fascínio dos calouros universitários por fazer parte desses grupos:

homens de fraternidade tendem a ganhar salários mais altos depois da faculdade do que homens sem fraternidade com maiores notas médias, de acordo com a Bloomberg News. Eles também dominam negócios e política. Os membros da fraternidade representam cerca de 76 por cento dos senadores dos EUA, 85 por cento dos juízes do Supremo Tribunal e 85 por cento dos executivos da Fortune 500.

Não é incomum que políticos ou pessoas de relevância financeira e social no cotidiano dos Estados Unidos sejam oriundos de fraternidades. Por isso, as próprias universidades fazem esforço para manter o funcionamento desse tipo de associação, como subsidiar aluguel ou outros benefícios, já que essas associações costumam atrair alunos. “Apesar de geralmente serem financiadas de maneira independente, através de doações de alunos e ex-alunos, as fraternidades às vezes recebem incentivos e subsídios das universidades, como alugueis mais baratos em propriedades no campus”, segundo as informações da BBC e G1. É perceptível, em diversas obras audiovisuais, que grande parte da vida social dos estudantes universitários está ligada às fraternidades. Os alunos de maior destaque (intelectual ou esportivo) são membros e nas sedes são realizadas festas que movem boa parte da interação entre os discentes. Por isso elas são comumente retratadas em filmes e séries que pretendem usar como o cenário as universidades dos Estados Unidos, seja de forma caricata como em A Vingança dos Nerds e em outros filmes daquele período, ou de maneira mais madura como no drama de David Fincher187 The Social Network (A Rede Social, 2010). O fato é que as

186 Disponível em: https://reporterslab.org/john-hechinger-fraternities-bloomberg-news/, acesso 05/2019 187 David Andrew Leo Fincher (1962 – ) é um diretor e produtor americano. Dirigiu, entre outras obras os filmes Seven (1995) e Fight Club (1999). Venceu o Globo de Ouro de 2011 pelo filme The Social Network. 131

fraternidades se provam na cultura pop como um objeto sempre presente em narrativas e cenários. Ainda é preciso destacar que a fraternidade Lambda Lambda Lambda (Λ Λ Λ), que aceita a filiação dos personagens nerds na película, não existia realmente nas universidades americanas até a realização do filme, assim como a Alpha Beta (ΑΒ), fraternidade dos jocks.

3.1.1 A Vingança dos Nerd A obra chegou aos cinemas nos Estados Unidos em 20 de julho de 1984. Os meses de julho e agosto são datas comumente usadas para o lançamento de filmes de apelo popular, pois coincidem como as férias de verão no sistema educacional dos EUA. No Brasil, o filme estreou em 7 de março de 1985. Com 90 minutos de duração, o longa-metragem foi dirigido por Jeff Kanew188 e produzido pela Interscope Communications. A distribuição ficou a cargo da 20th Century Fox. O filme tem classificação indicada “R” (o que significa situações e linguagem adulta e nudez). Segundo dados publicados no site IMDB189, o custo total do filme foi US$ 6 milhões e a arrecadação final, incluindo os ganhos com a distribuição para locadoras e residências, é de US$ 60 milhões. A maior parte da obra foi filmada em Tucson no estado americano do Arizona, na University of Arizona. As gravações aconteceram entre janeiro e março de 1984. Com uma arrecadação 10 vezes maior do que o investimento e uma boa recepção da audiência e da crítica – no site agregador de críticas , o filme conta com 70% de avaliação positiva da crítica na imprensa e 73% do público em geral –, é normal a existência de sequências. A franquia conta com quatro filmes, os dois primeiros para cinema; após o filme de 1984 é lançado Revenge of the Nerds II: Nerds in Paradise em 1987, além dos dois filmes televisivos Revenge of the Nerds III: The Next Generation (1992) e Revenge of the Nerds IV: Nerds in Love (1994). O filme é protagonizado pelos atores americanos (1954 – ) e Anthony Edwards (1962 – ). Em A Vingança dos Nerds, Carradine interpreta o universitário Lewis Skolnick, papel ao qual retorna em todas as sequências da franquia. Sua carreira conta com dezenas de filmes para cinema e televisão e outros tipos de programas televisivos com

188 Jeffrey Roger Kanew (1944 – ) é um diretor e roteirista americano conhecido por trabalhar no cinema e na televisão com comédias e sitcons. 189 Disponível em: https://www.imdb.com/title/tt0088000/, acessado em 05/2019 132

participações esporádicas em séries. Em 2013, ele apresentou ao lado de Curtis Armstrong o reality show King of the Nerds, transmitido pelo canal americano TBS190. Outro protagonista do filme é Gilbert Lowe, interpretado por Anthony Edwards. Assim como seu colega, o ator retornou para o papel no segundo filme da franquia, mas não repetiu o personagem nas outras continuações para televisão. Edwards conseguiu papel de destaque em 1986 ao interpretar, ao lado de Tom Cruise, o Tenente da Marinha dos EUA Nick "Goose" Bradshaw no filme Top Gun (Top Gun – Ases Indomáveis). Além dos dois personagens, o grupo de nerds do filme também é composto por Dudley Dawson, conhecido como “Booger” (apelido para representar o comportamento nojento e mal educado), o personagem é interpretado por Curtis Armstrong (1953 – ); Arnold Poindexter é interpretado por Timothy Busfield (1957 – ); Andrew Martin Cassese (1972 – ) representa Harold Wormser, um adolescente muito mais jovens do que os colegas da universidade; Larry B. Scott (1961 – ) vive Lamar Latrelle, um personagem negro e gay; por fim, Brian Tochi (1959 – ) interpreta Toshiro Takashi. Os outros personagens de destaque formam o grupo de estudantes atléticos da fraternidade Alfa Beta e as líderes de torcida da sororidade Pi Delta Pi. No papel feminino de maior destaque está Julia Montgomery (1962 – ) interpretando Betty Childs; Ted McGinley (1958 – ) atua como Stan Gable, o líder a fraternidade e capitão do time de futebol americano; Donald Gibb (1954 – ) dá vida ao personagem Frederick W. Palowosky, o Ogro (Ogre), papel ao qual ele retornou no segundo e quarto filmes da franquia. Outros personagens que valem a pena serem citados são: Judy, interpretada por Michelle Meyrink (1962 – ) é uma jovem universitária e interesse romântico de Gilbert; O Reitor Ulich, interpretado por David Wohl (1953 – ); e, por fim, o ator John Goodman (1952 – ), no papel de treinador Harry.

190 Turner Broadcasting System é de televisão aberta dos Estados Unidos e pertence ao grupo WarnerMedia Entertainment 133

Figura 7: Personagens nerds de A Vingança dos Nerds

Fonte: Revenge of the Nerds (1984)

Na fileira de baixo (Figura 7), da esquerda para a direita, estão alinhados: Takashi, “Booger”, Gilbert, Lewis, Poindexter e Lamar; o adolescente no centro é Wormser. Esses são os principais personagens que formam a fraternidade Lambda, Lambda, Lambda. A partir desse ponto pretendo fazer uma breve apresentação do enredo da obra, buscando apresentar as situações e personagens que serão analisados posteriormente. O filme começa com os dois jovens adultos, Lewis e Gilbert deixando a casa dos pais para o primeiro dia na universidade Adams College. Os dois são apresentados ao espectador como amigos próximos que ingressaram juntos no ensino superior. A cena mostra Lewis, juntamente com seu pai, buscando Gilbert na casa da mãe (Figura 8).

Figura 8: A Vingança dos Nerds (1m50s)

Fonte: Revenge of the Nerds (1984)

Com as malas amarradas no teto do pai de Lewis, os jovens são levados à universidade. No trajeto, eles conversam sobre o início da vida universitária, o departamento de informática e a possibilidade de fazer sexo com garotas. A trilha sonora original segue durante todo o 134

percurso de estrada e urbano até a entrada do campus. A música executada pela banda americana The Rubinoos191 se chama Revenge Of The Nerds e foi composta por Helmut Gerhard e Bobby Paine. A canção, em ritmo de pop eletrônico, gênero comum do período, já apresenta o clima proposto para o filme.

"Okay guys! Let's go!" packs us a lunch and we're off to school They call us nerds 'cause we're so uncool They laugh at our clothes They laugh at our hair The girls walk by with their nose in the air So go ahead, put us down One of these days we'll turn it around Won't be long mark my word Time has come for revenge of the nerds Revenge of the nerds, revenge of the nerds We wear horn-rimmed glasses With a heavy duty lens Button down shirts And a pocket full of pens Straight "A" students Teachers pets They call us nerds But we don't regret Revenge of the nerds (nerds) Revenge of the nerds (ha-ha-ha) Revenge of the nerds (nerds) Revenge of the nerds While the jocks work out With the football team We're trying to score With the girl of our dreams You know we ain't good looking But here's the surprise Nerds are great lovers In Disguise (ah) So go ahead put us down

191 The Rubinoos são uma banda norte-americana de power pop, formada em 1973 por Tommy Dunbar e Jon Rubin. A banda encerrou as atividades em 1985, porém, voltou em 1998 e se mantém até hoje. 135

One of these days we'll turn it around Won't be long mark my word Time has come for revenge of the nerds Revenge of the nerds Revenge of the nerds (nerds!) Revenge of the nerds (nerds.) Revenge of the nerds (ha-ha-ha) So if they call you a dork A spaz or a geek Stand up and be proud Don't be meek (hey!) Beautiful people Haven't you heard The joke's on you It's revenge of the nerds Revenge of the nerds (nerds!) Revenge of the nerds Revenge of the nerds (who me?) Revenge of the nerds Revenge of the nerds (ha-ha-ha) Revenge of the nerds (nerds) Revenge of the nerds (nerds!) Revenge of the nerd (The Rubinoos, trilha sonora original do filme Revenge of the Nerds, 1984)

Ao entrar no campus com suas malas, os dois posam para uma foto (figura 9) e seguem para o alojamento. No trajeto, caminhando pelo campus, eles passam em frente à sede da fraternidade Alpha Beta e Ogre, onde um dos membros, ao avistá-los, grita agressivamente: “Nerds! Nerds!”. Todos ao redor começam a gritar em coro a provocação. Isso faz com que os dois “apertem o passo” em direção ao destino. No alojamento, ao desfazer as malas, penduram na parede um poster de anúncio de um computador e Lewis retira da bagagem caixas para montar um robô (figura 10). Ao mesmo tempo, na fraternidade Alpha Beta, os atletas e líderes de torcida estão em uma festa (figura 11), quando um dos membros da fraternidade brinca com fogo e bebida alcoólica, provocando, acidentalmente, um incêndio no local. Stan Gable, capitão do time de futebol americano e líder da fraternidade, discute com o treinador e o reitor as causas do acidente, argumentando falha na fiação elétrica. Apesar da desconfiança do reitor, o treinador Harry apoia o atleta e parece mais preocupado em arrumar uma nova habitação para os jogadores, que estavam se preparando para o início de uma competição. A sugestão de Stan é remover os calouros dos seus alojamentos e instalar o time em seu lugar.

136

Figura 9: A Vingança dos Nerds (6m27s)

Fonte: Revenge of the Nerds (1984)

Figura 10: A Vingança dos Nerds (6m27s)

Fonte: Revenge of the Nerds (1984)

Figura 11: A Vingança dos Nerds (11m30s)

Fonte: Revenge of the Nerds (1984)

Na manhã seguinte, os atletas atacam agressivamente o dormitório dos calouros. A música de fundo é uma marcha militar celebratória. Como um ataque militar, os jogadores invadem o prédio para tomar o espaço dos residentes e jovens são arremessados pelas janelas 137

com seus pertences. Sob um olhar desconfiado do reitor Ulich e de satisfação do treinador Harry; em pouco tempo os calouros – entre eles Lewis e Gilbert – estão em frente ao prédio, alguns com roupas de dormir ou cuecas, enquanto os novos moradores comemoram lá dentro (figura 12). Eles seguem para um alojamento provisório. Enquanto caminham para o novo destino são insultados pelos atléticas que gritam: “Nerds! Nerds! Nerds! Nerds!”

Figura 12: A Vingança dos Nerds (13m50s)

. Fonte: Revenge of the Nerds (1984)

Os alunos são colocados temporariamente em um alojamento improvisado dentro do ginásio de esportes (Figura 13). Após uma reconfiguração, alguns calouros se instalam em outras fraternidades, contudo, aqueles que não conseguiram (os “nerds”) poderiam permanecer no alojamento improvisado e precário pra descansar até o início da temporada de basquete. Buscando resolver o problema de moradia e, também, uma aproximação com a garotas da universidade, Lewis convida Gilbert para visitarem a sororidade Pi Delta Pi, em busca de ajuda (figura 14). Lá eles têm o primeiro contato com Betty Childs (namorada do líder do capitão de futebol americano), que indica aos rapazes procurarem a fraternidade Alpha Beta para se inscreverem como possíveis membros, mostrando simpatia com os dois e afirmando que eles serão certamente aceitos. Empolgados, Lewis a convida para um café “quando ela não estiver ocupada”. A cena seguinte mostra que, na verdade, caíram em uma armadilha e são humilhados pela fraternidade Alpha Beta (figuras 15 e 16).

138

Figura 13: A Vingança dos Nerds (14m55s)

Fonte: Revenge of the Nerds (1984)

Figura 14: A Vingança dos Nerds (18m14s)

Fonte: Revenge of the Nerds (1984)

Figura 15: A Vingança dos Nerds (20m07s)

Fonte: Revenge of the Nerds (1984)

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Figura 16: A Vingança dos Nerds (21m39s)

Fonte: Revenge of the Nerds (1984)

No chuveiro, os dois amigos conversam sobre a situação de moradia provisória. Gilbert acusa a cheerleader Betty Childs de tê-los enviado em uma armação, mas Lewis, apaixonado, reluta em aceitar. Na manhã seguinte, Gilbert, no laboratório de informática, conhece Judy, uma estudante da universidade (figura 17), representada com aparência simples e não erotizada. Os dois conversam sobre informática e Gilbert desenha os dois na tela do computador, mostrando certo interesse por ela.

Figura 17: A Vingança dos Nerds (22m57s)

Fonte: Revenge of the Nerds (1984)

Em diversas cenas, os nerds são satirizados (figura 18) e não conseguem encontrar fraternidade que os aceitem. Sem sucesso, utilizam o robô de Lewis (figura 19) para imprimir uma lista de endereços de potenciais residências e começam a procurar um lugar pra morar, mas ainda sim passam situações constrangedoras. Lewis encontra uma casa em péssimo estado (figura 20), mas mesmo assim resolvem alugar e reformar o local. A trilha sonora começa a 140

subir tocando um pop rock e uma cena em time-lapse192 mostra os jovens limpando e reformando a sua nova casa. Limpeza, restauração e decoração – com ações atrapalhadas que resultam em erros e acidentes – são realizadas pelos jovens; em uma das cenas, Pointdexter limpa um chão empoeirado com a ajuda do robô de Lewis (figura 21).

Figura 18: A Vingança dos Nerds (24m54s)

Fonte: Revenge of the Nerds (1984)

Figura 19: A Vingança dos Nerds (25m14s)

Fonte: Revenge of the Nerds (1984)

192 Também conhecido como Câmera-Rápida é um processo cinematográfico em que a frequência de cada fotograma ou quadro (frame) por segundo de filme é muito menor do que aquela em que o filme será reproduzido, dando a impressão que o tempo passa mais rápido. 141

Figura 20: A Vingança dos Nerds (27m30s)

Fonte: Revenge of the Nerds (1984)

Figura 21: A Vingança dos Nerds (27m30s)

Fonte: Revenge of the Nerds (1984)

No fim, a casa está pronta e parece completamente renovada; Stan e Betty passam de moto em frente à residência. A garota parece animada pelos calouros terem conseguido a restauração do imóvel; o capitão do time, ao contrário, parece frustrado pela conquista e, em tom de ameaça, avisa que o trabalho não ficará assim por muito tempo. Antes de sair com a moto ele pergunta para Booger, que o observava encostado na cerca: “O que está olhando, nerd?” (figura 22). Depois disso, os jovens passam a residir na casa. Durante o café-da-manhã uma pedra é arremessada para dentro da cozinha e o som de uma moto acelerando para longe da casa é ouvida. Gilbert levanta da mesa para buscar o objeto (figura 23). O estudante lê a mensagem escrita em voz alta: “nerds, deem o fora!”. Takeshi indaga os colegas: “o que é ‘nerd’?” e Gilbert responde: “somos nós”.

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Figura 22: A Vingança dos Nerds (27m30s)

Fonte: Revenge of the Nerds (1984)

Figura 23: A Vingança dos Nerds (29m30s)

Fonte: Revenge of the Nerds (1984)

Os estudantes buscam ajuda da polícia do campus, mas a segurança argumenta que o caso é entendido apenas com uma brincadeira entre fraternidades e os aconselha a procurarem “O Conselho Grego”, como única entidade que poderia resolver o problema, cujo presidente é Stan Gable, o capitão do time de futebol americano. Eles solicitam o direito de formar uma fraternidade própria, porém, todos os votos são contrários (figura 24). Com a recusa, a única possibilidade é ser indicado por uma entidade nacional. Após vinte e nova tentativas frustradas com fraternidades nacionais, finalmente recebem uma carta-resposta concordava em recebe- los: a fraternidade Lambda Lambda Lambda.

143

Figura 24: A Vingança dos Nerds (32m11s)

Fonte: Revenge of the Nerds (1984)

Figura 25: A Vingança dos Nerds (33m37s)

Fonte: Revenge of the Nerds (1984)

Os estudantes são recebidos pelo líder Jefferson dos Lambdas, que explica que aceitou recebe-los pois a entidade não tem representação em Adams College, mas explica que será difícil a aceitação dos jovens, pois “vocês são nerds” (figura 25)193. Mesmo com a primeira resposta negativa, eles são aceitos por um período de teste de 60 dias, em conformidade com o estatuto da entidade. Para comemorar o fato, Lewis propõe uma festa e convida os dois membros para observá-los como componentes dos Tri-Lambdas. Lewis vai até a sororidade convidar a líder-de-torcida, Betty Childs, para a festa, mas ela ignora o convite, no primeiro momento, e depois articula outra armação aos nerds junto com seu namorado. Para isso, as garotas da sororidade Pi Delta Pi aparecerem na entrada da casa (figura 26), cantando um coro angelical com elogios aos Lambda e repúdios aos atletas, pedindo

193 É preciso explicar que antes de chamá-los de nerds, o filme quer passar a sensação de que eles não serão aceitos pois são jovens, com exceção de Lamar, não negros. 144

aos nerds escolham uma delas como acompanhante na festa e se oferecem a ajudar como for necessário. No dia da festa, contudo, as jovens não aparecem, o que desagradou os nerds e o líder dos Lambdas que veio avalia-los. Para tentar ajudar a movimentar a festa, Judy, companheira de Gilbert, convida as estudantes da Omega Mu (ΩΜ), que chegam no local caracterizadas – pelas roupas, tipo físico, aparência – como pouco interessantes aos calouros. De toda forma, mesmo com a presença das meninas, a celebração não fica animada, como desejavam (figura 27).

Figura 26: A Vingança dos Nerds (37m07s)

Fonte: Revenge of the Nerds (1984)

Figura 27: A Vingança dos Nerds (39m51s)

Fonte: Revenge of the Nerds (1984)

Após algumas tentativas para tentar animar a festa, finalmente, sob a trilha sonora toca Thriller, de Michael Jackson, o grupo começou a se divertir e os casais começam a se formar. Lewis vai para o quarto com uma garota e, aos poucos, um clima mais sensual vai se formando nas cenas que aparecem os casais. O mais jovem dos nerds, o adolescente Wormser, conversa com duas estudantes mais velhas sobre sua mudança de interesse acadêmico de engenharia 145

aeronáutica para informática. O enquadramento mostra o menino com os olhos na altura dos seios das alunas (figura 28).

Figura 28: A Vingança dos Nerds (44m40s)

Fonte: Revenge of the Nerds (1984)

A festa é interrompida com a entrada de porcos na sede da fraternidade. Uma confusão se instaura e os estudantes correm para fora da casa. Na rua, sobre um caminhão, os membros da fraternidade Alpha Beta e Pi Delta Pi cantam músicas provocando os nerds (Figura 29). Tudo observado pelos jovens frustrados com o fim da festa, e pelo líder dos Lambda.

Figura 29: A Vingança dos Nerds (46m35s)

Fonte: Revenge of the Nerds (1984)

Mais uma vez humilhados, eles discutem maneiras de se vingarem contra o ataque que sofreram. Gilbert propõe que eles vençam o próximo festival de boas-vindas194 (Homecoming Carnival), uma vez que, o vencedor da disputa entre fraternidades poderia indicar o próximo

194 Homecoming são festas tradicionais em escolas e universidades nos EUA. Geralmente são realizadas no início do semestre letivo para receber os calouros e veteranos da instituição de ensino. 146

presidente do Conselho Grego. Todos aceitam a ideia, mas além disso, eles concordam que é necessária uma retaliação imediata. Lewis avisa que sabe o que fazer. Então a próxima cena se inicia com a trilha original da série Mission: Impossible (1966–1973) e com imagens dos nerds invadindo sorrateiramente a sororidade Pi Delta Pi. O objetivo é instalar câmeras escondidas nos quartos das garotas. As cenas mostram alguns deles perseguindo estudantes seminuas e roubando roupas íntimas, enquanto Wormser e Lamar instalam as câmeras. Os nerds correm até a fraternidade para passarem a noite em frente à televisão, assistindo empolgados às garotas trocando de roupa ou no banheiro, por meio das câmeras instaladas (Figura 30). Depois de “acertarem as contas” com as estudantes da sororidade, Lewis propõe que é hora buscar a vingança contra os Alpha Beta. Os nerds roubam um produto de massagem que esquenta a pele, sobretudo quando não diluído, invadem o vestiário do time de futebol americano e despejam o líquido nos jockstrap (uma espécie de cueca e protetor de genital usado em esportes nos EUA) dos atletas (Figura 31). Em seguida, o treinador Harry faz uma palestra no meio do campo de futebol americano, explicando aos atletas sobre a chegada do campeonato e da expectativa em relação ao time. Os nerds observam escondidos enquanto alguns jocks começam a sentir um incômodo. Aos poucos, todo o time passa a sentir o desconforto na região genital, os atletas se contorcem, gritam e, ao final, saem correndo ao vestiário.

Figura 30: A Vingança dos Nerds (51m52s)

Fonte: Revenge of the Nerds (1984)

147

Figura 31: A Vingança dos Nerds (54m35s)

Fonte: Revenge of the Nerds (1984)

Após a vingança, o líder dos Lambdas confirma que eles serão aceitos como membros definitivos “como uma ótima adição ao Tri-Lambda”. Para comemorar, eles fazem uma fotografia com todos os membros uniformizados em frente à casa da fraternidade (pode ser vista novamente pela figura 7), que é exposta na parede da sede Lambda Lambda Lambda pelo líder, junto com outras imagens de membros da fraternidade. Enquanto os novos membros da fraternidade brindam à nova conquista (figura 32), um letreiro incandescente é aceso do lado de fora da casa queimando a palavra “NERDS” (figura 33). Após o novo ataque, eles decidem que será necessário vencer as festividades de boas-vindas para conquistarem o direito de indicar o próximo presidente.

Figura 32: A Vingança dos Nerds (56m52s)

Fonte: Revenge of the Nerds (1984)

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Figura 33: A Vingança dos Nerds (56m58s)

Fonte: Revenge of the Nerds (1984)

Na cena seguinte, o reitor faz um discurso de abertura dos jogos gregos, onde fraternidades e sororidades competirão em várias modalidades umas contra as outras (uma irmandade masculina se junta com uma feminina para a competição). Um dos times é formado pelos Alpha Betas juntamente com as Pi Delta Pi, e os Tri-Lambda se unem com as Omega Mu. Entre outros tipos de competição, o reitor anuncia os três principais eventos: primeiro uma corrida, seguida de uma competição de arrecadação de fundos para a caridade e, por fim, uma apresentação artística (teatro ou musical). O treinador Harry assume o microfone para explicar que a corrida de triciclo será de 20 voltas no circuito, em cada uma delas o competidor terá que fazer uma parada para beber uma lata de cerveja (figura 34). Takeshi, o representante da fraternidade Lambda, na sua primeira parada para beber, antes de ingerir a cerveja, Pointdexter dá ao colega uma pílula de triclorometaleno que, segundo o jovem, vai impedir os efeitos do álcool no seu organismo. Com esta substância, Takeshi vence a prova.

149

Figura 34: A Vingança dos Nerds (59m49s)

Fonte: Revenge of the Nerds (1984)

Outras competições seguem: a primeira, na Luta de braço195 nenhum membro dos Lambdas consegue vencer as Pi Delta Pi, com exceção de Booger que trapaceia. Geralmente, as modalidades que envolviam melhor desempenho físico são vencidas pela fraternidade dos atletas, enquanto Booger vence Ogre em um concurso de arrotos. Mesmo sendo uma modalidade atlética, no lançamento de dardo, os Lambda conseguem vencer usando um dardo projetado por Wormser e arremessado por Lamar (figura 35).

Figura 35: A Vingança dos Nerds (1h06m42s)

Fonte: Revenge of the Nerds (1984)

A competição seguinte é a arrecadação de fundos para caridade. Os Alpha Beta juntamente com as estudantes do Pi Delta Pi competem com uma barraca do beijo. Lewis tenta comprar um beijo de Betty, mas a garota recusa beijar um nerd e sai do posto. Lewis, disfarçado, vai atrás dela e, numa sala escura, imitando paisagens lunares, tem um encontro sexual com ele,

195 Modalidade esportiva também conhecida como braço de ferro ou queda de braço. 150

acreditando que seria o namorado. Depois do sexo, Betty descobre que, na verdade, era Lewis quem estava com ela. Após uma primeira reação negativa, a garota se mostra interessada em Lewis e o convida para um encontro. Em paralelo, para arrecadar os recursos, Os Lambdas e as Omega Mu oferecem uma torta (figura 36). Do lado de fora, os jocks se questionam as razões pelas quais tantas pessoas estão interessadas nas tortas vendidas pelos nerds. Um grupo de atletas liderados por Stan resolve investigar e descobre que os pedaços de tortas estavam sendo vendidos em pratos cobertos com a imagem de Betty, namorada de Stan, com os seios à mostra.

Figura 36: A Vingança dos Nerds (1h10m34s)

Fonte: Revenge of the Nerds (1984)

A terceira competição é um show de talentos. Os Alpha Beta e as Pi apresentam um musical em que os rapazes se vestem como cheerleader e as garotas como jogadores de futebol americano. O cenário simula um campo de futebol e no placar é possível ler “Alpha Beta Pi 69, Nerds 0” (figura 37). A apresentação é aplaudida pelo público, mas é interrompida por fogos de artifício. Em um palco oposto, luzes se acendem e a plateia dá as costas para os Alpha Beta e se voltam a apresentação dos Lambdas e das Omega Mu. No palco, todos caracterizados, Lewis e Gilbert tocam uma música com Pointdexter no violino e Booger na guitarra (figura 38). Lamar entra dançando e cantando em forma de rap e, por fim, Wormser se junta aos outros membros da fraternidade. O show empolga a plateia. Finalmente, o reitor Ulich sobe ao palco para declarar a equipe dos nerds como vencedora (figura 39), entrega o troféu e confirma que eles poderão escolher o próximo presidente do Conselho Grego. Lewis pega o microfone e imediatamente faz a indicação: Gilbert Lowe.

151

Figura 37: A Vingança dos Nerds (1h13m19s)

Fonte: Revenge of the Nerds (1984)

Figura 38: A Vingança dos Nerds (1h14m40s)

Fonte: Revenge of the Nerds (1984)

Figura 39: A Vingança dos Nerds (1h16m40s)

Fonte: Revenge of the Nerds (1984)

No palco à frente, os jocks assistem ao desfecho da competição. Stan puxa Betty para segui-lo, mas ela recusa e avisa que tem um encontro com um dos membros do tri-Lambda. Ao sair, incrédula, ela fala sozinha: “Deus, eu me apaixonei por um nerd!”. O treinador Harry, no 152

vestiário, discursa aos seus atletas sobre a vergonha ao ser derrotado para um “bando de nerds”. Furiosos, deixam o vestiário gritando “nerds” e saem correndo em direção à sede da fraternidade tri-Lambda, que é destruída pelos atletas (figura 40). Quando os nerds chegam em casa encontram um cenário de completa destruição. As paredes estão pichadas e os móveis e objetos quebrados (figura 41). Lewis, resignado, argumenta que os jovens são nerds e nunca conseguirão conquistar nada contra os jocks. Gilbert não aceita a situação e pensa em uma resolução.

Figura 40: A Vingança dos Nerds (1h18m56s)

Fonte: Revenge of the Nerds (1984)

Figura 41: A Vingança dos Nerds (1h18m56s)

Fonte: Revenge of the Nerds (1984)

Durante a apresentação dos jogadores do campeonato, os atletas são chamados pelo treinador Harry para subirem ao palco e receberem os aplausos do público. Gilbert tenta pegar o microfone, mas é impedido pelos jocks, que só cessam a agressão sob ordens do reitor. O técnico se irrita, sendo interrompido apenas quando um grupo de homens negros chega ao local, vestidos com o uniforme da fraternidade Lambda. Os homens se alinham em frente ao palco 153

(figura 42) e o líder da fraternidade Lambda passa o microfone para Gilbert, que faz um discurso sobre sua condição de nerd:

Eu só queria dizer que eu sou um nerd. E estou aqui nessa noite para defender os direitos de outros nerds. O que quero dizer é que durante nossas vidas servimos de objeto de chacota e fizeram com que nos sentíssemos inferiores. E hoje à noite aqueles bastardos, transformaram nossa casa num lixo. Por quê? Porque somos inteligentes? Porque parecemos diferentes? Bem, não somos. Eu sou um nerd, e tenho muito orgulho disso (REVENGE OF THE NERDS, 1984).

Figura 42: A Vingança dos Nerds (1h22m24s)

Fonte: Revenge of the Nerds (1984)

Lewis adere à fala do amigo e também se assume nerd. No seu discurso ele conclama outros alunos e ex-alunos presentes, que sempre foram rejeitados, chamados de dork ou geek a se juntarem a eles. Betty e Judy são as duas primeiras pessoas a se juntarem aos dois amigos. Gilbert reforça o convite a todos dizendo que “ninguém se sentirá livre até que toda perseguição aos nerds termine”. A música We are the Champions196 começa a tocar como trilha sonora. Os demais membros da fraternidade se juntam aos dois nerds e, aos poucos, o público se vai se juntando ao grupo. Enquanto isso, o reitor avisa que os Alpha Betas terão que deixar o prédio que estão ocupando para se tornar a casa dos Lambdas, enquanto eles reconstroem o imóvel destruído. Além disso, eles terão que morar no ginásio no período dos reparos. O filme termina com todos reunidos ao redor dos Lambdas saudando e gritando “nerds! Nerds! Nerd!” (figura 43).

196 Música da banda britânica Queen, fundada em 1970 e ativa, sob sua formação clássica, até 1991. Seus integrantes originais são: Brian May (guitarra e vocais), Freddie Mercury (vocais e piano), John Deacon (baixo) e Roger Taylor (bateria e vocais) 154

Figura 43: A Vingança dos Nerds (1h25m44s)

Fonte: Revenge of the Nerds (1984)

3.2 – A breve história do big bang

Em 2006, histórias sobre nerd não eram nenhuma novidade paras produções de cinema americanas, e já tinham se mostrado lucrativas anteriormente. As décadas de 1980 e 1990 estavam repletas desses personagens nas salas de cinemas e o público estava acostumado a rir de suas características peculiares e das situações que representavam seu cotidiano, especialmente na relação entre os nerds e as garotas. A ideia de uma série que apresentava o cotidiano de jovens nerds no século XXI não parecia atrair grandes expectativas, pelo menos, nada que o diferenciasse das histórias já conhecidas. Assim, em 2006, foi apresentado o primeiro programa piloto aos executivos da CBS197, porém, os avaliadores reprovaram o projeto198. Um ano mais tarde, a série estava no ar, em um dos principais canais de televisão dos Estados Unidos e se tornou, 12 anos depois, uma das maiores audiências naquele país. Do programa piloto rejeitado para a série em formato multi-câmera199 com o maior número de episódios da história das produções televisivas nos EUA200 (com 279 episódio, o título anteriormente pertencia a sitcom , com 275) aconteceu uma transformação na narrativa. A proposta de The Big Bang Theory, quando estreou em 24 de setembro de 2007, não era somente que o público zombasse dos nerds, mas que a audiência risse juntamente com eles, sobretudo seu estilo de vida. A proposta não era mais tratar aquele mundo como exótico e os

197 Columbia Broadcasting System, uma das maiores rede de televisão aberta dos Estados Unidos. Na sua programação foram (ou são) exibidos programas de grande audiência como The Late Show with David Letterman, , , Big Brother, e as séries CSI, entre outros. 198 Disponível em https://www.youtube.com/playlist?list=PL-SOlcxKAXcJKlXC19sZXS3tEPgZeMr5I 199 Denomina-se sitcom multi-câmera (ou three câmera) as séries filmadas em estúdio em frente a uma plateia ao vivo. 200 Disonível em: encurtador.com.br/iLNQY, acessado 06/2019 155

personagens como aberrantes, mas reconhecer em seus exageros um pouco do cotidiano contemporâneo. Por isso a série “não ofereceu piadas batidas, mas apresentou um novo olhar sobre o mundo nerd. Apesar do velho contraste entre nerds e garotas, a diferença crucial da série é a celebração, e não a difamação do nerdismo” (BEAHM, 2012, p. 10). O show foi criado por Bill Prady201 e Chuck Lorre202. Os dois são veteranos da televisão nos Estados Unidos, tendo participado de séries conhecidas do público, algumas de grande sucesso. Lorre é o criador – juntamente com Lee Aronsohn203 – da sitcom Two and a Half Man (Dois Homens e Meio no Brasil, 2003 – 2015), seu maior destaque até então. Prady tinha trabalho como roteirista em séries como Star Trek: Voyager (1995 – 2001) e The Gilmore Girls (2000 – 2007). Em 2006, os dois tinham ideias para séries diferentes, Prady pensava em uma atração sobre uma jovem solteira tentando encontrar seu lugar no mundo, Lorre pensava em um show sobre nerds inteligentes que não conseguem se relacionar com mulheres. A amalgama de ideias levou ao piloto de 2006, que foi rejeitado pela rede de televisão. A proposta, no entanto, foi lapidada e reposicionada para estrear no ano seguinte um novo piloto, que foi seguido por mais 278 episódios em 12 anos de exibição. O último item do rearranjo necessário era o nome da sitcom: “O título original da série – Lenny, Penny and Kenny – foi destruído em favor de um mais bombástico: Big Bang, a teoria, que possuí um trocadilho intencional. Em inglês, o temo ‘bang’ pode ser entendido como ‘transa’” (BEAHM, 2012, p. 16). As gravações do show aconteciam no estúdio 25 da Warner Bros. e contavam com uma plateia de 250 espectadores que recebiam ingressos gratuitos por ordem de chegada. Durante os 12 anos da série, o auditório sempre esteve lotado durante as filmagens. Baseada em ciência real – a série conta com consultores científicos para dar veracidade aos termos, explicações da física e fórmulas que são apresentadas204, a série se tornou um sucesso rapidamente. “Assistida em mais de 70 países, os quatro nerds e a garota já provaram ser uma combinação vencedora desde a Albânia até a Venezuela” (BEAHM, 2012, p. 17). A ciência é o pano de fundo da série e o cuidado científico é um fator de interesse. David Saltzberg, consultor científico do programa, já declarou em entrevista205 que piadas foram

201 William Scott Prady (1960 – ) é um produtor e roteirista americano. 202 Charles Michael Levine (1952 – ), é um escritor, diretor, produtor e compositor americano que criou várias americanas. 203 Lee Aronsohn (1952 – ) é um produtor e roteirista americano. Ele participou com Lorre de várias séries inclusive como roteirista em The Big Bang Theory. 204 O principal consultor é o pesquisador e professor da Universidade da Califórnia David Saltzberg, doutor e física pela Universidade de . Disponível em: http://www.physics.ucla.edu/~saltzberg/index.html, acesso 06/2019 205 Disponível em: revistagalileu.globo.com/Cultura/noticia/2017/10/consultor-cientifico-de-big-bang-theory- explica-formula-da-serie.html, acesso 06/2019. 156

modificadas para acertar na acuidade científica do texto. De todos os membros principais do elenco, somente a atriz (interpreta a neurocientista Amy F. Fowler) possui formação cientifica, com doutorado em neurociência pela Universidade da Califórnia em Los Angeles. Para aumentar a verossimilhança entre os personagens acadêmicos com o mundo científico, os atores foram levados em visitas à UCLA para conhecerem e compartilharem das atribuições de um cientista. “Por causa da representação positiva do grupo de nerds, a série foi recebida com entusiasmo pela comunidade científica, que está mais acostumada a ver estereótipos e, pior, representações enganosas que fazem os cientistas parecerem ridículos” (BEAHM, 2012, p. 196). Em seu blog pessoal: The Big Blog Theory - The science behind the science (thebigblogtheory.wordpress.com/), Saltzberg discute fatos relacionados à ciência da série, e faz análises de outros filmes e séries com base científicas, apontando erros e a falta de uma consultoria na área. Nas suas postagens, o pesquisador deixa claro que a ciência apresentada nos diálogos ou nas imagens não são escolhas aleatórias na esperança que o público não perceba qualquer falha.

Existe uma grande quantidade de cientistas que saberia a diferença, e se houvesse algum erro, iria resmungar que Hollywood, mais uma vez, fez besteira. Mas dessa vez, com Big Bang, a teoria, os cocriadores e roteiristas não fizeram besteira, o que significa que a série não insulta nossa inteligência. Embora a maioria das pessoas não perceba as referências sobre física, aqueles na comunidade as percebem (BEAHM, 2012, p. 197).

Esse tipo de preocupação gerou uma aproximação de diferentes públicos com a série. O nerd apreciador das referências e piadas recorrentes no programa e o expectador comum, interessado em uma comédia situacional com humor leve e corriqueiro. Mas isso não reduziu a necessidade de contemplar um público mais técnico. A série está cheia de termos complexos até para pessoas instruídas e em grande parte dos episódios são debatidos temas relacionados à mecânica quântica e neurociência. Os diálogos são alterados entre conversas técnicas, piadas cotidianas e trocadilhos. O Gato de Schrödinger206, o Efeito Doppler207, o LHC208 e a Teoria das

206 O Gato de Schrödinger é uma experiência intelectual proposta pelo físico austríaco Erwin Schrödinger, em 1935. A experiência procura ilustrar a interpretação de Copenhague da mecânica quântica, imaginando-a aplicada a objetos do dia-a-dia. No exemplo, há um gato encerrado em uma caixa, de forma a não estar apenas vivo ou apenas morto, mas sim "vivomorto". 207 Nomeado em homenagem a Johann Christian Doppler, que o descreveu teoricamente pela primeira vez em 1842. Efeito Doppler é um fenômeno físico observado nas ondas quando emitidas ou refletidas por um objeto que está em movimento com relação ao observador. 208 O Grande Colisor de Hádrons (em inglês: Large Hadron Collider ) – o LHC pertence a Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear, é o maior acelerador de partículas e o de maior energia existente do mundo. 157

Cordas 209 são temas recorrentes no programa. Espectadores e outros interessados “podem até considerar a ciência apenas um pano de fundo, mas claramente a ciência importa – e muito” (BEAHM, 2012, p. 197). Não à toa, personalidades do mundo científico (alguns laureados com o Prêmio Nobel) fizeram participações e várias ocasiões na atração. O primeiro a fazer uma participação na série foi o astrofísico americano George Smoot210. Ele recebeu, juntamente com John Mather, o Prêmio Nobel de Física de 2006. Smoot participa dos episódios The Terminator Decoupling (episódio 17, 2ª temporada) e retorna em The Laureate Accumulation (episódio 18, 12ª temporada). Nesse capítulo da série, também estão presentes mais dois pesquisadores renomados: Frances Arnold211, laureada no Nobel de Química por seu trabalho em evolução dirigida, tornando-se a quinta mulher a receber o prêmio em seus 117 anos de existência e a primeira mulher americana; e do físico teórico Kip Thorne212, ganhador do prêmio Nobel de Física em 2017, por sua participação na detecção de ondas gravitacionais. Além dos laureados com o Nobel, outros nomes conhecidos do mundo científico participaram em várias oportunidades da série. O famoso físico inglês fez várias participações: (episódio 21, 5ª temporada) The Extract Obliteration (episódio 6, 6ª temporada [somente voz]), The Celebration Experimentation (episódio 17, 9ª temporada) e The Proposal Proposal (episódio 1, 11ª temporada); além de ser citado diversas vezes desde o episódio piloto. O astrofísico Neil deGrasse Tyson também fez participações na série, como em The Apology Insufficiency (episódio 7, 4ª temporada) e The Conjugal Configuration (episódio 1, 12ª temporada). Outros nomes ligados ao pensamento científico, à pesquisa ou à tecnologia já fizeram aparições, como o astronauta americano, segundo homem a pisar na superfície lunar, Buzz Aldrin213 em The Holographic Excitation (episódio 5, 6ª temporada), e o astronauta e doutor em

209 Teoria das cordas é um modelo físico matemático onde os blocos fundamentais são objetos extensos unidimensionais, semelhantes a uma corda, e não pontos sem dimensão (partículas), que são a base da física tradicional. 210 George Fitzgerald Smoot III é doutor em física pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) e trabalha como professor na Universidade da Califórnia em Berkeley. 211 Frances Hamilton Arnold (1956 – ) é uma pesquisadora americana, doutora em engenheira química pela Universidade de Berkeley, e professora do Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech). Ela recebeu o Nobel de Química em 2018. 212 Kip Stephen Thorne (1940 – ) é um físico teórico formado no Caltech e pós graduado (mestrado e doutorado) na Universidade de Princeton. Thorne recebeu o Nobel de Física em 2017. Ele é conhecido por ser o consultor técnico do filme Interstellar (2014) do diretor Christopher Nolan. 213 Edwin Eugene Aldrin Jr (1930 – ) é um engenheiro mecânico, piloto e astronauta -americano que foi um dos três tripulantes do da missão Apollo 11. 158

engenharia mecânica Mike Massimino214, que apareceu em The Friendship Contraction (episódio 15, 5ª temporada), The Countdown Reflection (episódio 24, 5ª temporada), The Re- Entry Minimization (episódio 4, 6ª temporada), The Table Polarization (episódio 16, 7ª temporada) e The First Pitch Insufficiency (episódio 3, 8ª temporada). Ademais, personalidades do desenvolvimento da informática e inovação tecnológica como o co-criador da Apple Steve Wozniak que apareceu em The Cruciferous Vegetable Amplification (episódio 2, 4ª temporada), e o fundador da Microsoft Bill Gates The Gates Excitation (episódio 18, 11ª temporada); além do empreendedor do ramo de tecnologia . The Platonic Permutation (episódio 9, 9ª temporada).

3.2.1 – As características do Big Bang A história da série é contada em Pasadena215, no condado de Los Angeles, estado da Califórnia, EUA. Na cidade está instalado, desde 1891, o Instituto de Tecnologia da Califórnia (California Institute of Technology, em inglês) ou, simplesmente Caltech, uma instituição privada de pesquisa, desenvolvimento tecnológico e ensino superior. Entre as graduações (majors) ofertas pela instituição216 se destacam cursos nas áreas de engenharia, ciências planetárias, biologia, física, matemática e astronomia; a entidade também oferta formação nas áreas humanas e tem em sua história 73 laureados com o Prêmio Nobel. É nessa instituição que trabalham seus quatro protagonistas masculinos. Eles são professores e pesquisadores da física, engenharia e astronomia no renomado instituto. Um dos dois personagens principais é Sheldon Lee Cooper (interpretado por Jim Parsons217). Ele é apresentado no programa de televisão como um jovem gênio que nasceu no estado americano do Texas em uma família cristã e conservadora – na qual sempre teve problemas para se encaixar. O garoto se graduou na universidade aos 14 anos e percorreu a vida acadêmica desde então. A série não esclarece todos os eventos de sua formação, mas é citado que ele concluiu o primeiro de seus dois doutorados aos 16 anos e aos 23 foi contratado para trabalhar como físico teórico no Caltech. O personagem prontamente ganhou atenção do público, gerando uma grande quantidade de fãs. Ele é representado com uma personalidade

214 Michael James Massimino (1962 - ) é formado em engenharia industrial na Universidade de Columbia e doutor em engenharia mecânica pelo MIT. Foi qualificado como especialista de missão pela Nasa em 1998 e integrou duas missões espaciais nos ônibus espaciais Columbia e Atlantis. 215 Cidade com 142 mil habitantes (2017) onde está instalado do estádio Rose Bowl, local da final da Copa do Mundo de 1994, onde a seleção brasileira conquistou o tetra campeonato. 216 Site do Caltech com a indicação das majors ofertadas: www.admissions.caltech.edu/explore/academics/options-majors, acesso 06/2019 217 James Joseph Parsons (1973 – ) é um ator e produtor americano bacharel em teatro (1996) e mestre em artes dramáticas (2001) pela Universidade de San Diego. 159

antissocial, agorafobia218 e afefobia219. As relações com os amigos, colegas de trabalho, outros seres humanos e até com animais são momentos complicados para o personagem, o que a série transforma em humor. Parsons, por interpretar Sheldon, foi indicado seis vezes ao Prêmio Ammy na categoria de Melhor Ator em uma Série de Comédia vencendo quatro vezes (2010, 2011, 2013 e 2014), além de ser indicado três vezes na premiação do Globo de Ouro na categoria Melhor Ator em uma Série de Comédia ou Musical, vencida pelo ator em 2011. O sucesso do personagem alcançou índices tão altos que uma série spin-off foi lançada pela CBS em 2017: conta histórias do personagem na sua infância ainda no Texas. O programa terminou sua segunda temporada com bons números de audiência.

A popularidade de Sheldon como personagem televisivo é o reflexo de outra maioria. Uma maioria até agora silenciosa que durante muito tempo não se viu refletida nas séries de televisão. Porque, até a chegada de Sheldon, personagens como ele estavam destinados a segundo plano, ao contraponto cômico perante os protagonistas ‘normais’ (TORRE, 2014, p. 14)

A mesma ideia se aplica aos outros personagens protagonistas masculinos em The Big Bang Theory, como, por exemplo, Leonard Leakey Hofstadter (interpretado por Johnny Galecki220). Leonard nasceu em uma família de intelectuais, seus pais são professores da Universidade de Princeton; sua mãe, Beverly Hofstadter (Christine Baranski221) é uma respeitada psiquiatra e neurocientista autora de livros sobre desenvolvimento infantil; seu pai, Alfred Hofstadter (Judd Hirsch222) é um antropólogo. Apesar dos pais acadêmicos, Leonard tem problemas na relação com a família, assim como Sheldon. Sua mãe é apresentada como fria e distante e as memórias que ele tem na infância não incluem episódios de afeto. Na segunda temporada, no episódio The Maternal Capacitance descobrimos que Leonard “nunca recebia abraços, e aos 10 anos ele construiu uma máquina de abraços com um manequim de loja preenchido com cobertores elétricos e completado com dois braços automáticos que o abraçavam” (BEAHM, 2012, p. 56). Na série, outros fatos da sua infância são usados para criar situações cômicas; a primeira festa de aniversário que ele comemorou foi com os amigos em

218 Medo de situações e lugares que vão causar pânico. 219 Medo de tocar e ser tocado. 220 John Mark Galecki (1975 – ) nasceu em Bree na Bélgica filho de um oficial da Força Aérea dos EUA. Ele atuou em várias séries na televisão americana e em papeis secundários no cinema. Foi indicado em Globo de Ouro em 2012 por sua performance como na categoria de Melhor Ator em Televisão Musical ou Comédia. 221 Christine Jane Baranski (1952 – ) é uma atriz, cantora e produtora americana indicada 15 vezes ao Prêmio Emmy sendo vencedora em 1995. 222 Judd Seymore Hirsch (1935 – ) o ator americano já venceu um Tony Award na categoria de melhor ator em peça de teatro e um Globo de Ouro por atuação em série musical ou comédia. 160

The Peanut Reaction (episódio 16, 1ª temporada), isso porque sua família só comemorava realizações e “ser expelido durante o parto” não era um feito dele. O mesmo acontecia com as festas de Natal, que “não eram celebrados, mas estuados em suas implicações psicológicas e antropológicas” ao invés de presentes, eles trocavam artigos “e depois sentávamos para criticar uns aos outros” (BEAHM, 2012, p. 56). Leonard é formado na Universidade de Princeton e foi para o Caltech trabalhar como físico experimental. Ele e Sheldon dividem um apartamento na Avenida Los Robles, n° 2311, Pasadena, e logo no início do episódio Pilot (Figura 44), ao chegar em casa juntos, descobrem que o imóvel em frente tinha sido alugado para Penny, a vizinha atraente dos dois físicos (Figura 45).

Figura 44: Sheldon (esquerda) e Leonard (direita)

Fonte: The Big Bang Theory (Pilot, ep. 1, 1ª temp.)

“Penny nasceu no Estado do Nebraska e trabalha como garçonete e bartender no restaurante Cheesecake Factory. Ela concluiu o Ensino Médio, é vizinha de Sheldon e Leonard e quer ser atriz” (BEAHM, 2012, p. 80). Essa é a biografia resumida da personagem. Penny (Kaley Cuoco223) é jovem (21 anos na primeira temporada), loira e evoca o tipo de mulher sensual, notável apenas pela beleza; ela foi rainha do baile de formatura e a garota mais popular da escola durante o ensino médio. A personagem também faz referência a uma situação comum em Los Angeles, onde jovens mulheres atraentes deixam o interior dos Estados Unidos para buscarem uma chance nas produções de Hollywood. A jovem tem uma formação completamente diferente dos vizinhos. Penny foi criada em uma fazenda, em uma área rural dos EUA, demonstra habilidades físicas que os dois cientistas não são capazes de reproduzir e desenvoltura para tarefas do cotidiano mais ligadas ao serviço braçal. Ela não demonstra

223 Kaley Christine Cuoco (1985 - ) é uma atriz norte americana que começou com sete anos interpretando papeis em filmes para a tv e seriados. 161

conhecimento e nem interesse por assuntos ligados à ciência ou à cultura pop e nerd. Ao contrário dos cientistas, ela acredita em astrologia, videntes e conhecimentos místicos. A garçonete – e pretendente à atriz – é o interesse romântico de Leonard. Durante os 12 anos de exibição da série eles vão se relacionar com términos e retornos; no fim eles se casam e ela anuncia a gravidez no último episódio do programa.

Figura 45: Sheldon, Leonard e Penny

Fonte: The Big Bang Theory (Pilot, ep. 1, 1ª temp.)

Outro personagem importante da série é o engenheiro Howard Joel Wolowitz, interpretado por Simon Helberg224. Howard é o único não doutor entre o quarteto de amigos e cientistas, porém, possui mestrado no MIT. A falta de doutorado é uma das situações cômicas abordada na série, “em qualquer situação formal, na qual seus amigos são todos cumprimentados com o honroso título de doutor, Howard é sempre chamado simplesmente de senhor” (BEAHM, 2012, p. 63). Outra idiossincrasia do personagem bastante explorada é o fato de ele ainda morar com a mãe. O engenheiro não saiu de casa para morar sozinho como os colegas, fato bastante incomum no costume dos jovens americanos, e, portanto, continua sob os cuidados de uma mãe superprotetora. Por fim, Howard é judeu e, apesar de não resguardar os ritos e costumes da religião, está muito ligado aos estereótipos relacionados com o tipo físico e características comportamentais estereotipadas da ascendência judaica. Entre as proezas acadêmicas do engenheiro destaca-se sua linha de trabalho: ele desenvolve componentes para missões espaciais como criar “um sistema de eliminação de dejetos para a Estação Espacial internacional (ISS), realizar a manutenção a longa distância nos jipes-robôs em Marte e criar componentes para um satélite que tirou fotos de Saturno” (BEAHM, 2012, p. 61). Além disso, na 5ª temporada ele é convidado pela Nasa para fazer parte de uma missão tripulada e realizar

224 Simon Maxwell Helberg (1980 – ) é um comediante, musico e ator americano. 162

manutenção de equipamentos na ISS; ele vai para o espaço e, portanto, se torna o astronauta Wolowitz. Rajesh Ramayan Koothrappali é o único estrangeiro entre os personagens do elenco principal e coadjuvantes da série; Raj (como é chamado pelos amigos) realizou seu doutorado em Astrofísica na Universidade de Cambridge, na Inglaterra. Apesar de nascido em Nova Déli, na Índia, o cientista é de uma família muito rica; ele é o irmão caçula de cinco filhos do ginecologista Dr. V. M. Koothrappali. O ator que dá vida ao personagem é o inglês Kunal Nayyar225. Raj é os mais tímidos entre os quatro amigos, apresentando um distúrbio raro até a sexta temporada: mutismo seletivo. O astrofísico é incapaz de conversar com mulheres, ao menos que ele esteja sob o efeito do álcool (ideia de , que já teve um colega com o mesmo problema), o que a série usa para criar situações cômicas. Raj é o mais sensível entre o grupo de amigos, ficando sempre muito próximo de interesses femininos. Ele se define como metrossexual e equilibra-se entre dois mundos: a tradição e costumes da Índia e a nova vida nos EUA. Seus pais tentam arranjar um casamento com uma mulher indiana, o que Raj tenta sempre evitar. Ele procura se relacionar com mulheres americanas, mas sempre encontra dificuldades para manter os relacionamentos e é o único a terminar os 12 anos de série sem um relacionamento estável ou casamento no fim da série. Assim, como Leonard e Sheldon são os melhores amigos um do outro, Howard e Raj são amigos inseparáveis (Figura 46).

Figura 46: Howard (esquerda) e Rajesh (direita)

Fonte: The Big Bang Theory (Pilot, ep. 1, 1ª temp.)

225 Kunal Nayyar (1981 – ) é um ator de televisão inglês de ascendência indiana. Kunal passou a maior parte da infância e juventude em Nova Deli. Ele estudou Administração na Universidade de Portland e Mestrado em Artes Dramáticas na Universidade Temple (Filadélfia) 163

Esses são os personagens principais da série nas três primeiras temporadas. Entretanto, mais duas atrizes entraram para o elenco no decorrer do programa. Em The Creepy Candy Coating Corollary (episódio 5, 3ª temporada) Howard é apresentado a Bernadette Rostenkowski, colega de trabalho de Penny como garçonete . Bernadette (interpretada por Melissa Rauch226) é uma estudante de doutorado em microbiologia que trabalha no restaurante para ajudar a pagar os estudos, se tornando permanente na série a partir da quarta temporada. No show, ela e Howard se casam (5ª temporada) e, até o fim da série, têm um casal de filhos. Bernadette é apresentada como uma mulher atraente, uma cientista competente, com personalidade autoritária e voz aguda e estridente. Assim que conclui o doutorado é contratada por uma empresa farmacêutica e se torna a mais bem-sucedida financeiramente no grupo. A atriz Mayim Bialik227 aparece pela primeira vez em The Lunar Excitation (episódio 23, 3ª temporada) interpretando a doutora em neurobiologia . A personagem é representada no início com uma personalidade muito semelhante ao de Sheldon, sendo antissocial e de fala robótica. A personalidade da personagem sofreu uma grande alteração com o passar das temporadas e ela acabou incorporando interesses de Penny (sua melhor amiga). Amy não tem como atributo o apelo sensual, a personagem se veste de forma pouco convencional, como alguém muito mais velha, não usa maquiagem e acessório ou outros elementos para destacar o corpo ou o rosto (Figura 47). É o interesse romântico de Sheldon, e eles se casam no último episódio da 10ª temporada. Por fim, o último personagem a ser destacado é Stuart Bloom (Kevin Sussman228), que está ligado a um dos cenários mais importantes da série: a loja de quadrinhos. Stuart é um artista formado na prestigiada Rhode Island School of Design, mas é frustrado por não ter conseguido destaque como artista gráfico e acabou se tornando proprietário desse estabelecimento. Retratado como frágil fisicamente e com problemas financeiros, o personagem é recorrente na série, sendo creditado como secundário ou principal em vários episódios, estando presente nos 12 anos do programa. O cenário da sua loja é um dos pontos que mais ligam os personagens à cultura pop (Figura 48).

226 Melissa Ivy Rauch (1980 – ) é uma atriz e comediante americana 227 Mayim Hoya Bialik (1975 – ) é uma atriz e neurocientista americana mais conhecida por suas interpretações em Beaches, Blossom, além de The Big Bang Theory. 228 Kevin Sussman (1970 – ) é um ator de televisão e cinema nascidos nos EUA. 164

Figura 47: Penny (esquerda), Bernadette (centro) e Amy (direita)

Fonte: The Big Bang Theory (The Focus Attenuation, ep. 5, 8ª temp.)

Figura 48: Penny (esquerda) e Stuart (direita)

Fonte: The Big Bang Theory (The Hofstadter Isotope, ep. 20, 2ª temp.)

Nos 12 anos em que a atração permaneceu no ar, vários personagens tiveram importância no decorrer da história, com cenas distribuídas em diversos locais (a universidade, a loja de quadrinhos, os restaurantes, entre outros). Alguns têm participação esporádica, como o físico Barry Kripke (John Bowie229) – que é um antagonista do grupo de amigos e faz ao menos uma aparição em todas as temporadas – ou, deixam de aparecer no programa, como a física experimental Leslie Winkle (Sara Gilbert230) – que também é interesse romântico de Leonard nas duas primeiras temporadas da série, e personagem recorrente, mas só faz uma aparição entre a 4ª e 12ª temporada no episódio The Celebration Experimentation (episódio 17, 9ª temporada). Para entendermos o pilar principal da série e as situações de maior interesse esse eixo de personagens é o suficiente.

229 John Ross Bowie (1971 – ) é um ator e comediante americano. 230 Sara Rebecca Abeles (1975 – ) é uma atriz americana. 165

4 – RECONFIGURAÇÃO NERD: do dork ao cool

Do or do not. There is no try - Yoda (The Empire Strikes Back)

Essas duas produções audiovisuais servirão de base para refletirmos como a cultura nerd se transformou; quais são os elementos representados pelas obras que contribuíram para a cristalização no imaginário da audiência uma imagem do nerd; e, por meio da análise comparativa entre os dois objetos, compreender como essa representação da cultura nerd se modificou e apresentou novos sentidos, elaborando novas significações e, hibridizando novos elementos e textos ao seu redor. A cultura tem esse perfil dinâmico, como já debatemos, e os elementos que constroem a cultura nerd estão, por consequência, sujeitos a essas reconfigurações. A representação do nerd não é mais a mesma nas duas produções, mesmo que alguns elementos se mantenham próximos, ou quase inalterados, outros vão se reconfigurar totalmente, o que resulta na maneira como os nerds, seus rituais e consumos são assimilados dentro do cotidiano da cultura de massa.

Os nerds começam a desempenhar papéis principais em filmes, séries de TV e na cultura pop de maneira geral. De The Big Bang Theory, o primeiro sitcom nerd, aos filmes de Kevin Smith, sempre recheados de referências à cultura pop, parece que os nerds começaram a se livrar dos estereótipos que os condenavam em filmes adolescentes da década de 80 (MATOS, 2011, p. 1).

Essa transformação na posição do nerd dentro da hierarquia social passa pela mudança da imagem exibida pela mídia de seus personagens e das situações pelas quais passam. A representação dessa figura, alterada com o passar dos anos para uma imagem mais palatável desde aqueles personagens que a representavam até os anos 1980, é um dos pontos fundamentais para entender essa mudança. A linguagem é a ferramenta pela qual expressamos nossas ideias e sensações, sobretudo por que transmite, por meio de um “sistema representacional”, signos, símbolos e textos para representar a outros indivíduos – por meio de textos sonoros, escritos ou imagens – o que desejamos expressar (HALL, 2016). Isso por que cultura também é compartilhar significados. Para que dois indivíduos partilhem uma cultura similar, é preciso que “atribuam sentidos” de forma semelhante. No caso da cultura nerd, a significação de seus elementos pode ser vista de forma diferente nos dois momentos propostos nessa análise. Os significados 166

atribuídos culturalmente para os personagens nerds e suas situações não são mais os mesmos, caracterizando uma cultura que não é rígida, mas fluída e em constante transformação. Podemos dizer que a partir um grupo mais restrito e fechado de participantes, a cultura nerd se alargou e conquistou um espaço mais evidente na cultura de massa, colaborando para o interesse de novos sujeitos, ligados a outras esferas culturais, para a participação de seus rituais, práticas e consumo. Esses novos participantes adicionam novos textos, traduzem outros (LOTMAN, 1996), criando novos significados para aqueles elementos. Segundo Lotman e Upenskii (1981) a existência da cultura pressupõe a construção de um conjunto de regras para tradução dos textos da cultura. Para os autores a cultura é mais do que o conjunto de textos: “é mais exato falar da cultura como um mecanismo que cria um conjunto de textos e dos textos como realização da cultura” (LOTMAN; UPENSKII, 1981, p. 46). Assim, os indivíduos dentro de uma cultura são os responsáveis por atribuir significados e sentidos a um objeto ou ação, ou seja, cada elemento é interpretado dentro do contexto em que ele é experienciado. Considerando esta perspectiva, o nerd de hoje já não é mais aquele apresentado e representado até a década de 1980 pela cultura de massa. A adição de novos participantes à cultura nerd, de novas significações para seus textos, resulta em mudanças de sua percepção no cotidiano. Há um fluxo entre a produção midiática, sua assimilação e ressignificação, concretizando-se em um efeito prático no dia-a-dia, já que “significados culturais organizam e regulam práticas sociais, influenciam nossa conduta e consequentemente geram efeitos reais e práticos” (HALL, 2016, p. 20). É esse processo que cria o sentido para nossa decodificação de um sistema de linguagem. Essas trocas se estabelecem por um sistema de representação: uma língua, uma forma comum de comunicar. É isso que significa a linguagem. Conseguimos entender certos significados pois nos comunicamos na mesma língua. A cultura nerd passou a gerar mais significados fora de sua esfera pois passou a ser reconhecida em outras esferas, a tradução de seus textos, e consequente significação, passou a gerar sentido extrapolando seus contornos. O sentido é construído no circuito da cultura e é transpassado por interações pessoais e socias, compartilhado e reelaborado na existência com o outro.

O sentido é também produzido em uma variedade de mídias; especialmente, nos dias de hoje, na moderna mídia de massa, nos sistemas de comunicação global, de tecnologia complexa, que fazem sentidos circularem entre diferentes culturas numa velocidade e escala até então desconhecida na história [...]. O sentido também é criado sempre que nos expressamos por meio de “objetos culturais”, os consumimos, delas fazemos uso ou nos apropriamos; isto é, quando nós 167

os integramos de diferentes maneiras nas práticas e rituais cotidianos e, assim, investimos tais objetos de valor e significado (HALL, 2016, p. 22).

É esse o processo que passamos a enxergar ao analisarmos a cultura nerd na atualidade, comparada às produções da década de 1980 (ou anteriores). A cultura nerd (seus personagens e ritos) passou a incorporar elementos que pertenciam a outras culturas, e, como consequência, influenciou também textos além daqueles no limite de sua esfera cultural. Alguns desses contágios são bastante perceptíveis no cotidiano da cultura midiática, outros são mais sutis. A comparação entre as duas obras indica alguns desses elementos como forma de perceber as transformações na cultura nerd, outros elementos não estão presentes na comparação, mas podem, mesmo assim, serem discutidos e avaliados como forma de perceber essas mudanças. Vale buscar na ideia de conveniência da cultura a possibilidade perceber que a cultura se tornou um recurso. A cultura de produção midiática, onde está a cultura nerd, deve ser entendida como uma indústria de produção cultural. Nessa perspectiva, podemos entendê-la como uma produtora de “realidades”, divulgando, por intermédio das mídias massivas ou digitais, um conjunto de bens simbólicos, baseados em recursos culturais, assumindo-se a proposta de George Yúdice (2004). “A cultura se tornou um recurso, à medida que é utilizada para finalidades diversas, como promoção econômica, política, ou desenvolvimento da cidadania” (ROCHA, 2014, p. 77). Para Yúdice, a cultura é utilizada para fortalecer o tecido social. A cultura como recurso é sua utilização para um fim específico. “A maior distribuição de bens simbólicos no comércio mundial (filmes, programas de televisão, música, turismo etc.) deram à esfera cultural um protagonismo maior do que em qualquer outro momento da história da modernidade” (YÚDICE, 2004, p. 26). E é sob esse protagonismo que a cultura nerd parece ter prosperado desde os filmes de 1980. A contemporaneidade pertence ao nerd: a moda, o cinema, a literatura parecem ter abraçado a esfera cultural (influenciados pelos seus textos), expressando o protagonismo dos personagens, ritos e práticas imbuídos neste sistema.

4.1 – This is a nerd

O pesquisador da cultura nerd Benjamin Woo (2012) faz uma ressalva para pensarmos a ideia de nerd, importante ao traçarmos o perfil dos participantes dessa cultura. A ideia de 168

representação é imperativa para essa análise, pois separa personagens e situações criadas para serem difundidos pelas mídias massivas dos elementos mais reais dessa cultura. Os signos e textos transmitidos pela televisão e cinema são assimilados no cotidiano e colaboram para a transformação da dinâmica social a um plano mais autêntico, auxiliando a modificar a percepção da realidade da população. Mesmo assim, o “nerd real” não pode ser equiparado aos personagens fictícios.

As representações de nerds na cultura popular têm apenas uma relação superficial com as culturas nerds reais. Uma realidade muito mais complexa está por trás dos estereótipos. Ao longo de minha pesquisa, fiquei profundamente impressionado com a vitalidade da cena da cultura nerd e com a profundidade do entusiasmo e comprometimento demonstrados em todos os níveis (WOO, 2012, p. 673)231.

Há, obviamente, uma intersecção entre os elementos audiovisuais divulgados pelos veículos de massa e o nerd cotidiano, mas definir exatamente o que é um nerd não parece ser uma tarefa fácil, mesmo analisando profundamente o assunto. Desde a primeira representação visual no livro do Dr. Seuss, apresentando a pequena criaturinha humanoide (Figura 1), passando pelos nerds da década de 1980 como Lewis e Gilbert e chegando em Leonard e Sheldon no século XXI, há uma enorme variedade de elementos que se ligam e outros que se repelem nessas suas figuras. Destarte, o nerd representa uma gama tão distinta e complexa de sujeitos e situações como qualquer outro grupo social, cujos participantes se aproximam em elementos que podem ser ressignificados em diferentes momentos ou lugares. Woo (2018), propõe um gráfico (figura 49) para tentar começar a desemaranhar esse nó. O autor aponta três características primárias: inteligência, obsessão e inaptidão social. O resultado da intersecção entres os elementos é o nerd. Não que o gráfico seja determinante para apontarmos uma definição exata do nerd. Em muitas situações essas denominações se confundem: geek ou nerd podem representar o mesmo sujeito; em outros casos, a inteligência ou inaptidão social sozinhas nomeiam um indivíduo como nerd.

231 Traduzido do original: “Representations of nerds in popular culture only have a superficial relationship to real nerd cultures. A much more complex reality lies behind the stereotypes. Throughout my research, I have been deeply impressed by the vitality of the nerd-culture scene and the depth of enthusiasm and commitment displayed at every level”. 169

Figura 49: A diferença entre geeks, nerds e dorks “explicada"

Fonte: WOOo, 2018, p. 30

O importante é perceber que as representações desses personagens estão ligadas, de alguma forma, aos elementos expostos neste diagrama de Venn232. Mesmo que no filme de 1984 – e nas representações do período ou anteriores – os nerds não resultassem, necessariamente, da intersecção de todos estes elementos, eles estavam sempre ligados, em maior ou menor grau, a alguns desses itens. A representação em uma mídia de massa não prima por abraçar a complexidade e diversidade de personalidades e situações existentes, mas, ao invés, reduz as distinções para arquétipos e estereótipos. Essa é uma questão pouco variável na representação audiovisual do nerd. Como características constitutivas desses personagens, a inteligência, a pouca ou nenhuma habilidade social e o interesse profundo em algum assunto (ou alguns assuntos) se tornaram marcas profundas da idiossincrasia nerd. É preciso ressaltar que esses padrões repetidos em produções como no cinema e na televisão são adquiridos na realidade e retroalimentam o comportamento social. A cultura da mídia cria um giro continuo desses elementos através do tempo por suas produções, que, com alguma alternância, repetem padrões criados que obtiverem algum sucesso. “Outra característica da cultura das mídias está no seu fator de mobilidade. Uma

232 Criado por John Venn (1834 - 1923) matemático e filósofo inglês. São nomeados Diagrama de Venn os diagramas usados para simbolizar graficamente propriedades, axiomas e problemas relativos conjuntos de ideias e suas intersecções. 170

mesma informação passa de mídia a mídia repetindo-se com algumas variações na aparência” (SANTAELLA, 1996, p. 35), como é possível perceber na análise das duas produções.

4.1.1 – A cultura nerd A cultura nerd congrega uma quantidade de textos, ritos, práticas e identidades que a estabelece como uma esfera cultural, cujos signos são decodificados pelos indivíduos dela participantes. A ascensão desses elementos na hierarquia da cultura midiática aumentou significativamente a dinâmica de contato e contágio da cultura nerd com outras esferas culturais, produzindo a troca de texto e de traduções. Novos participantes dessa cultura acessaram – e irão acessar – os signos produzidos e lhe conferiram novos significados. Os sujeitos são ativos nesse processo.

Temos que reconhecer que, na maioria das vezes, a relação entre o público e os textos populares é ativa e produtiva. O significado de um texto não é dado em um conjunto de códigos disponíveis independentemente, que podemos consultar por nossa própria conveniência. Um texto já não possui significado ou política próprios; nenhum texto é capaz de garantir quais serão seus efeitos. As pessoas estão constantemente lutando, não apenas para descobrir o que significa um texto, mas para fazer com que ele signifique algo que se conecta às suas próprias vidas, experiências, necessidades e desejos. O mesmo texto significará coisas diferentes para pessoas diferentes, dependendo de como é interpretado. E pessoas diferentes têm recursos interpretativos diferentes, assim como têm necessidades diferentes. Um texto só pode significar algo no contexto da experiência e situação de seu público específico (GROSSBERG, 2001, p. 52)233.

Entender como cultura nerd engloba todos os elementos atribuídos à cultura – dinamismo, criação e transformação dos textos, interpretação em contextos, contágio, ritos, práticas, consumos – foi apresentado como um objetivo inicial dessa pesquisa. Todo sistema cultural emerge de um conjunto complexo de trocas, contágios, ritos e práticas, portanto todo texto surge a partir do contato de um sistema com outro, criando novas esferas e modificando as existentes. É possível perceber na visão de Bhabha (2001, p. 67), que

233 Traduzido do original: We have to acknowledge that, for the most part, the relationship between the audience and popular texts is an active and productive one. The meaning of a text is not given in some independently available set of codes which we can consult at our own convenience. A text does not carry its own meaning or politics already inside of itself; no text is able to guarantee what its effects will be. People are constantly struggling, not merely to figure out what a text means, but to make it mean something that connects to their own lives, experiences, needs and desires. The same text will mean different things to different people, depending on how it is interpreted. And different people have different interpretive resources, just as they have different needs. A text can only mean something in the context of the experience and situation of its particular audience. 171

“as reivindicações hierárquicas de originalidade ou ‘pureza’ inerentes às culturas são insustentáveis, mesmo antes de recorrermos a instâncias históricas empíricas que demonstram seu hibridismo”. É esse hibridismo, ou tradução na visão de Lotman (1996), uma característica fundamental para entendermos essa esfera cultural na comparação entre suas representações nas duas obras propostas. A cultura nerd representada pelos personagens e situações nas duas produções está subordinada a esses princípios: nenhuma cultura é estática, não é pura e também não cria significados sempre da mesma forma e sob um único prisma de leitura. Esse pensamento encontra respaldo na ideia de “invenção das tradições”, de Eric Hobsbawm: “(...) às vezes, as novas tradições podiam ser prontamente enxertadas nas velhas; outras vezes, podiam ser inventadas com empréstimos fornecidos pelos depósitos bem supridos do ritual, simbolismo e princípios morais oficiais” (HOBSBAWM, 1984, p. 14). Embora os elementos nucleares da esfera da cultura nerd possam se manter mais rígidos e com menos possibilidades de contato – o que não significa dizer puros ou imutáveis – , seus elementos passam a ser reinterpretados em outras leituras e contextos, seus textos se ressignificam nas fronteiras e modificam toda a esfera da cultura. Essa dinâmica criadora e transformadora de sistemas está presente na cultura nerd. O reflexo disso são as representações nas produções da midiáticas, recebidas pela sua audiência.

O imaginário formado pelo público sobre o nerd é transformado, como a cultura, e cria uma nova memória. O novo caráter é aceito, contestado, debatido e algumas vezes rejeitado. Porém, há sempre uma ressignificação de conteúdos pré-existentes forçados por uma nova forma cultural (ROCHA, 2019, p. 13).

A cultura nerd é, entre outras coisas, o resultado desse “continuum semiótico” (LOTMAN, 1996), em que signos ganham constantemente novas codificações, e se transformam em novos textos da cultura, com o passar do tempo e das interações entre: “uma hibridação, ou tradução para criar essa estrutura, que e si mesma, ganha reorganização através do tempo” (ROCHA, 2019, p. 13). O nerd, sua cultura e seus ritos não têm posição estática, mas se reconfiguram e, por meio da hibridização, interpelam textos de outros sistemas culturais: “como o diálogo, a assimetria é um mecanismo da cultura que diz respeito a esta circulação de textos, ao traslado de um sistema de codificação a outro” (NUNES, 2014, p. 11). Assim, o entendimento que se tem sobre uma cultura pode ser completamente alterado, ganhando novos 172

elementos, perdendo outros e os transformando também; então, esse processo se repete outra vez, indefinidamente, a partir de novos contatos.

Ao entender a formação da cultura nerd, é possível perceber que ela existe baseada em uma variedade de sistemas culturais, que estabelecem um movimento paradoxal de concretizar a figura do sujeito definido como nerd, e, ao mesmo tempo, chocar as estruturas desse sistema com outros que o ajudam a construí-lo e defini-lo (ROCHA, 2019, p. 11).

A ideia de choque dá a precisa noção dessa dinâmica. É o contato que transforma a cultura. “Separadamente, nenhum deles realmente têm a capacidade de trabalhar. Eles só funcionam submersos em um contínuo semiótico, completamente ocupado por formações semióticas de vários tipos e que estão em diferentes níveis de organização” (LOTMAN, 1996, p. 11)234. É dessa forma que a cultura nerd se transformou, criou e admitiu novos elementos em sua esfera, em seu sistema cultural, transbordou seus textos para fora de si, criou novos significados de seus signos em outras esferas e sistemas.

4.2 – Do Lambda ao Bazinga!

A Fraternidade Tri Lambda da película A Vingança dos Nerds (1984) não foi a representação de um grupo nerd – como vimos anteriormente – dentro das produções culturais das mídias nos Estados Unidos. Contudo, o filme é um grande consolidador, dado o poder de criar representações no cinema sobre o que deveria ser um nerd, tanto na cultura pop e como no imaginário social. Esse perfil, que cresceu e se fixou em produções subsequentes na década seguinte, apresentava um estereótipo bem claro: “o nerd foi construído como um fracasso social e sexual desajeitado e conhecedor de matemática. Na maioria dos casos, os nerds são assumidos e mostrados como homens brancos” (QUAILL, 2011, p. 460). Duas décadas depois, o nerd continuava mantendo um perfil semelhante ao original, mas como fruto de seu tempo e sua cultura esse personagem ressignificou seus próprios textos e suas representações não permaneceram inalteradas. Em The Big Bang Theory, é possível perceber o movimento da personalidade nerd do Lambda para o Bazinga! O nerd do século XXI mantém característica harmônicas com sua condição de nerd, outras foram atualizadas por meio

234 Traduzido do espanhol: “Tomado por separado, ninguno de ellos tiene, en realidad, capacidad de trabajar. Sólo funcionan estando sumergidos en un continuum semiótico, completamente ocupado por formaciones semióticas de diversos tipos y que se hallan en diversos niveles de organización”. 173

do contato de textos da borda dessa esfera cultural, mesmo que os textos mais centrais permaneçam menos transformados. Essa lógica de contágio pode ser vista ao analisarmos as transformações desse sistema cultural. Um aspecto do nerd como elemento nuclear, cuja representação pode ter mudado, mas, mesmo assim, manteve suas características fundamentais, é relação com os estudos, a ciência e a tecnologia. O nerd, de maneira geral, é alguém inteligente, dedicado e comprometido com algum tipo de conhecimento que invariavelmente se liga ao ambiente acadêmico. Nas duas obras, corpus dessa análise, e em diversas outras representações o espaço representativo do nerd é a escola ou a universidade. Mesmo que sua posição na estrutura hierárquica se modifique com a atualização da posição do nerd dentro do estrato social. Se na década de 1980 eles são amplamente representados como calouros do Adams College; em The Big Bang Theory se apresentam como pesquisadores de grande sucesso, professores de cursos stricto senso e profissionais no auge de sua função. Não que outros cenários não sejam vistos na série ou filme, longe disso, mas a figura do nerd sempre está ligada ao lugar de estudo e pesquisa dedicada. A tecnologia é uma maneira de representar o foco de interesse e a obsessão em se destacar pelo intelecto é uma característica constante. Essa representação está também ligada ao contexto social – no tempo e no espaço – onde as obras foram concebidas. The Big Bang Theory emerge em um ambiente onde o nerd assumiu outro lugar no cotidiano. Isso porque os nerds (ou aquilo que se entendia como nerd no cotidiano) viveram a partir do meio da década de 1990 a ascensão que eles sonhavam por meio de seus interesses peculiares e dedicação à pesquisa. Como relatado no documentário The Triumph of the Nerds (1996) e no livro de Cringely (1992), os esforços para conseguir dominar as tecnologias ligadas à informática e comunicação resultaram na promoção dos nerds ao estrelato, como detentores intelectuais e financeiros da indústria digital. No fim do século passado e no início deste, Bill Gates podia ser facilmente comparado ao que representava John Rockefeller235 há mais de 100 anos (figura 50). Com uma grande diferença: ao invés de comandar a indústria com punhos de ferro e uma exposição exagerada de masculinidade, Bill Gates é um nerd. Lori Kendall (1999), ao analisar o fim do filme A Vingança dos Nerds, relaciona o termo “vingança” como a escalada daqueles jovens à lugares mais altos na hierarquia social por meio de sua capacidade cognitiva e interesse em tecnologia.

235 John Davison Rockefeller (1839 – 1937) foi um investidor e empresário norte-americano. Magnata do petróleo fundou a Standard Oil Company e a comandou agressivamente até sua aposentadoria oficial em 1897 174

A história diz que aqueles caras nerds que não conseguiam um encontro no colegial se tornaram milionários pelo próprio ato de manipulação tecnológica que os rotulara de nerds para começar. Como dinheiro confere status nos EUA, e os negócios e o sucesso monetário conferem masculinidade. Daí a "vingança" desse grupo anteriormente não hegemônico (KENDALL, 1999, p. 266)236.

Figura 50: “Geek Power”: capa da revista Wired com Bill Gates e Mark Zuckerberg. Edição de maio de 2010

Fonte: www.wired.com/2010/04/gates-zuckerberg (acesso em 02/2020)

Publicações como essa foram (e ainda são) frequentes nos noticiários nacionais e no mundo todo. A revista brasileira Época lançou em maio de 2013 uma reportagem intitulada “Como criar um nerd” (SPINACÉ, 2013). Entre as informações e discussões o texto informa a importância de preparar os filhos para o ambiente digital e suas potencialidades, em especial econômicas.

Controlar e reprimir o interesse dos filhos pelo universo digital pode prejudicar muito seu futuro num mundo em que a tecnologia é tão importante – e ainda há o risco de podar, no berço, um futuro talento para a computação (SPINACÉ, 2013).

236 Traduzido do original: “Those geeky guys who couldn’t get a date in high school, the story goes, became millionaires through the very act of technological manipulation which had labeled them nerds to begin with. Money confers status in the USA, and business and monetary success confer masculinity. Hence the ‘revenge’ of this previously non-hegemonic group”. 175

O jornalismo tem grande participação nas transformações culturais, pois codifica textos acessados por uma grande quantidade de receptores; além disso, esses textos têm um posicionamento superior numa hierarquia imaginada no consumo de produções midiáticas. O jornalismo ainda se sustenta – e é consumido assim – como verdade dos fatos.

As matérias jornalísticas cumprem, desta forma, uma função normativa, na medida em que colaboram para a difusão de um modelo de comportamento juvenil adequado às transformações sociais de larga escala, como a sedimentação da racionalidade econômica e política neoliberal que define a configuração contemporânea do capitalismo (FREIRE FILHO; LEMOS, 2008, p. 23).

Seja pelo cinema, shows televisivos ou pela grande imprensa, a lógica do nerd se alterou neste século. É possível afirmar que eles se imbuíram do pensamento mais clássico e profundo entre as características americanas projetadas para o mundo: o self-made man. O interesse obstinado e a inteligência transformaram a posição projetada do nerd, mesmo que alguns dos traços permaneçam incólume, no século XXI “the nerds are cool”. Em outro exemplo, a mídia contemporânea transforma o nerd em figura de destaque nas suas publicações. Na reportagem publicada pelo Portal UOL, o texto de abertura sustenta:

A cada dia que passa, aquilo o que costumávamos definir como “ser nerd” vai se tornando apenas “ser inteligente”. E ser inteligente é a coisa mais cool que existe atualmente. Foi-se o tempo em que gostar de ciência, manjar muito sobre tecnologia ou ser fissurado em sagas era motivo para sofrer bullying – e já foi tarde! (UOL CONTENT LAB, 2017).

Isso por que hoje os nerd parecem entranhados em muitas esferas da cultura midiática, suas habilidades são necessárias, suas criações consumidas e seu intelecto desejado. O primeiro entrevistado do texto jornalístico, Rafael Salles, doutorando em engenharia na USP, ressalta: “o nerd é, principalmente, o cara que entendeu que se dá bem estudando e, fazendo isso, está em contato com as coisas mais modernas do mundo, antecipação de tendências e tudo o que pode revolucionar nossas vidas daqui em diante” (SALLES apud UOL CONTENT LAB, 2017). É preciso destacar que autores como Hall (2003) e Gramsci (2001) salientavam o papel da comunicação de massa, como a imprensa, sendo mediadora das interações sociais um instrumento de criação de identidades, ideologia e de formação do imaginário social. As narrativas contemporâneas que apresentam esses personagens e histórias estão mais ligadas à proeminência dos nerds no imaginário social, devido ao crescimento da dependência 176

das tecnologias de comunicação e aos avanços em diversas áreas – como saúde, engenharia e computação – que há pouco tempo pareciam pertencer ao universo de ficção científica.

Um dos índices desse fenômeno foi a ascensão à condição de estrelas midiáticas e referências no mundo dos negócios de inovadores no campo das tecnologias digitais, como Bill Gates (Microsoft), Steve Jobs (Apple), Mark Zuckerberg (Facebook) e Larry Page e Sergey Brin (Google). Não só suas marcas, mas também suas trajetórias de vida tornaram-se icônicas na sociedade e atualizaram a imagem do jovem intelectualmente brilhante, dedicado ao conhecimento científico e tecnológico. Com eles no imaginário contemporâneo, o depreciativo conceito de nerd parece ter ganhado novas valorações e conotações. (ANAZ; CERETTA, 2014, p. 648)

O pesquisador Lucio Luiz (2011) analisou diversas tiras cômicas publicadas na internet no Brasil para refletir sobre a representação do nerd nelas. Em suas conclusões, o pesquisador atesta a mudança de percepção sobre os nerds. Há uma reorganização do olhar sobre esse tipo social “dentro de seu próprio nicho quanto com as pessoas que não fazem parte desse contexto cultural, mas que cada vez mais deixam de lado a rejeição que marcou o início dessa ‘classificação social’” (LUIZ, 2011, p. 13). Os objetos da cultura nerd assumiram lugar no topo da cultura das mídias e seus textos se disseminaram grandemente entre outras produções culturais. No Brasil, desde 2014 é realizada a versão brasileira da principal feira de produtos da cultura nerd do mundo: CCXP (Comic Com Experience), inspirada nas versões americanas, que por sua vez nasceram da Comic Con San Diego237, o evento no Brasil se tornou o maior do tipo no mundo238 em 2018 recebendo 262239 mil visitantes. Os dados de 2019 ampliaram esses números para 280 mil pessoas. Outro marco recente da escalada da cultura nerd e de seus participantes foi a criação no ano de 2006 do Dia do Orgulho Nerd,

comemorado anualmente no dia 25 de maio. A data, também conhecida como Dia do Orgulho Geek, teve origem no ano de 2006, na Espanha, e é uma iniciativa que advoga o direito de toda pessoa ser um nerd ou um geek. O dia de sua celebração foi escolhido em homenagem à estreia

237 Hoje, San Diego Comic-Con International, principal evento de cultura nerd e pop do mundo, realizado desde 1970 em San Diego na Califórnia 238 CCXP de SP bate recorde de público e se consolida como a maior do mundo, Revista Exame. https://exame.abril.com.br/negocios/ccxp-bate-recorde-de-publico-e-se-consolida-como-a-maior-do-mundo/ (Acessado em 10/02/2020) 239 Dados da CCXP encontrados no site oficial do evento em ccxp.com.br (acessado em 10/02/2020) 177

do primeiro filme da série “Star Wars”, em 1977, uma das obras mais reverenciadas dentro do universo nerd. Além disso, na mesma data também é comemorado o Dia da Toalha7, homenagem à obra “O Guia do Mochileiro das Galáxias”, escrita por Douglas Adams, outra referência cultural importante para o grupo (SILVA, 2016, p 38).

A série The Big Bang Theory é capaz representar essas transformações, mantendo uma ligação nuclear com a ideia de ser nerd criada e propagadas até os anos 1990, porém refletindo essa nova concepção atual da cultura nerd, seus personagens e práticas. “Embora ainda guarde características do estereótipo original, alguns sentidos de nerd foram ressignificados dando origem a uma cultura de autoafirmação, não sendo mais a condição de nerd uma infeliz consequência da inadequação social apenas” (SANTOS, 2014 p. 105). Uma das marcas fundamentais dos ritos nerds refletidos na sua representação em produções midiáticas é a relação do nerd com seus objetos de consumo e apreço. No filme A Vingança dos Nerds, logo em uma das cenas iniciais, Gilbert e Lewis aparecem carregando um grande baú (figura 51), desproporcional às necessidades de um estudante ingressando na faculdade (comparando as outras bagagens de estudantes). Logo ao chegarem no alojamento, os personagens abrem uma mala com um robô dentro para ser montado pelos dois estudantes.

Figura 51: A Vingança dos Nerds (7m01s)

Fonte: Revenge of the Nerds (1984)

Em TBBT essa relação é extrapolada, pelo formato da produção permitir um maior tempo para o desenvolvimento das histórias. Em uma infinidade de momentos, essa relação com seus produtos de admiração é representada na tela. Revistas em quadrinhos, bonecos de ação ou memorabilia de filmes e séries de tv são frequentemente mostrados como objetos de grande valor financeiro, econômico e até político, pois possuir um item desses de grande raridade representa uma elevação dentro desse grupo social. No episódio The Nerdvana 178

Annihilation Leonard, Sheldon, Raj e Haward dividem a compra da máquina do tempo usada como peça no fime The Time Machine240 (1960). A película, baseada na obra literária homônima do britânico H. G. Wells241, é considerada um clássico da ficção científica e produto de interesse no universo nerd (figura 52).

Figura 52: Os quatro nerds e a máquina do tempo

Fonte: The Big Bang Theory (The Nerdvana Annihilation, ep. 14, 1ª temp.)

No mesmo episódio, Leonard sente que esse tipo de consumo não vai aumentar as chances de iniciar um relacionamento romântico com sua vizinha Penny. Ele decide, então, se desfazer de todos os seus itens colecionáveis para tentar mudar seu estilo de vida. Ao contar a ideia aos amigos, Howard o interpela dizendo que o jovem físico tinha criado um “nerdvana” com sua coleção vasta de itens relacionados a filmes, desenhos e heróis. No fim do episódio, em um diálogo com Penny, a garota sugere a Leonard que não venda sua coleção afirmando: “você é um cara legal, e as coisas que você ama fazem de você quem você é” (The Nerdvana Annihilation, ep. 14, 1ª temp.). Essas são demonstrações de como os materiais de consumo são relevantes na formação da identidade nerd. A propriedade de bens para a cultura nerd supera a posse material e econômica e se transforma em culto. A relação da identidade nerd está intimamente ligada aos itens que possuem e ao valor atribuído pelo nerd e por outros participantes da cultura nerd àquele item.

A centralidade do consumo na cultura nerd se mostra como um valioso exemplo de sua importância na construção de identidade e estilos de vida na contemporaneidade. Tais práticas são capazes de gerar pertencimento, distinção, tensões e disputas e produzem sentido.

240 Filme americano dirigido e produzido por George Pal e distribuído pela Metro-Goldwyn-Mayer 241 Herbert George Wells (1866 - 1946) foi um escritor britânico e autor de classicos da literatura; considerado o pai da ficção científica 179

Mesmo que a cultura do consumo esteja presente, nos dias de hoje, em praticamente todas as esferas da vida, chama atenção o surgimento de uma cultura juvenil tão dedicada ao consumo em todas as suas etapas como prática cotidiana (SANTOS, 2014, p. 106).

Os objetos de interesse são significativos para dar forma material à uma cultura. Dentro dos ritos e práticas nerds esses materiais encontram lugar de destaque. Não que outras identidades ou sistemas culturais sejam completamente alheios a esses textos, mas, na cultura nerd, como representado nas duas peças, eles têm centralidade.

os objetos contribuem para a construção do mundo culturalmente constituído justamente porque registram de maneira vital e tangível um significado cultural que sem eles seria intangível. Com efeito, não é exagero dizer que os objetos têm uma função “performativa” [...] na medida em que dão ao significado cultural uma concretude que ele do contrário não teria para o indivíduo. O significado cultural que organize um mundo torna-se parte visível e demonstrável de tal mundo por meio dos bens (MCCRACKEN, 2007, p. 102).

São esses objetos que marcam a cultura nerd, seu espaço dentro dela, sua aproximação à cada espaço dentro dessa esfera, expõem certa hierarquia e ajudam a tornar visível a identidade nerd.

Os bens podem ser vistos como uma oportunidade de exprimir o esquema categórico estabelecido por uma cultura. Os bens constituem uma oportunidade de dar matéria a uma cultura. Como qualquer outra espécie de cultura material, os bens permitem que os indivíduos discriminem visualmente entre categorias culturalmente especificadas, codificando essas categorias sob a forma de um conjunto de distinções materiais. [...] Os bens ajudam a dar substância à ordem da cultura (MCCRACKEN, 2007, p. 102).

É preciso ressaltar que as transformações dessa cultura entre os anos 1980 e o século atual estão intimamente ligadas à uma expansão da lógica capitalista sobre esse público. É notório que os nerds valorizam os itens criados para se relacionar com sua cultura e estão dispostos a consumi-los. Isso dá ao mercado um novo e engajado nicho de consumidores. O público nerd cresceu

[…] e se tornou um nicho de mercado de grandes dimensões, convidativo a receber mais investidores. Mesmo reconhecendo isso, é importante ressaltar que ainda se trata de um nicho de mercado, ou seja, 180

ainda é um segmento de mercado restrito a um público bem definido, permitindo o direcionamento do trabalho a apenas esse público nerd (MONT’ALVÃO JÚNIOR, 2016, p. 14).

Obras literárias, produção de séries e filmes, histórias em quadrinhos, podcasts e outros produtos inundaram o mercado de produção cultural nas últimas duas décadas, com obras ligadas aos assuntos e temas advindos da cultura nerd. Com essas produções vieram as camisetas, bonecos de ação, jogos de tabuleiro e videogames, edições assinadas, eventos e uma enorme e variada possibilidade de aquisição de produtos. As empresas ligadas à venda e especialistas em mercado estimavam em 2018 que os consumidores nerds movimentariam R$ 138 bilhões no Brasil, com expectativa de crescimento desses valores para os anos seguintes242, além disso, afirmavam que o público nerd gasta 40% a mais do que a média nacional.

O papel dos exploradores do nicho cultural nerd é elaborar estratégias de publicidade e moda para garantir o crescimento do comércio dentro desse nicho. Estimulados por ações que se valem desses instrumentos, publicidade e moda, o nerd parte para os rituais de consumo dos produtos que carregam os significados do universo cultural nerd. (MONT’ALVÃO JÚNIOR, 2016, p. 68)

O mercado e a intensificação da lógica capitalista não podem ser ignorados nas transformações da cultura nerd. É preciso ter em mente as considerações de Yúdice (2004) ao perceber, na contemporaneidade, a cultura entendida como um recurso a ser distribuído seguindo a lógica do mercado, e, majoritariamente, sob a hegemonia industrial dos Estados Unidos.

4.2.1 – Nerds: entre o cinema e a televisão Para entender quais são os pontos em que a representação da cultura nerd se reconfigurou na comparação entre o filme de 1984 e a série recente, é possível destacar alguns elementos que se avultam nas narrativas e também nos signos não linguísticos das duas obras. Nelas é possível perceber – como era esperado – uma transformação da representação dessa figura nerd. O núcleo dos personagens e situações manteve traços semelhantes ao observarmos as duas produções propostas como corpus desta pesquisa. De maneira geral, o nerd continua sendo “culturalmente colocado em contraste com um indivíduo mais atlético, socialmente habilidoso, sexualmente consciente – o garoto descolado ou jock, que demonstra

242 Portal e-commerce Brasil (ecommercebrasil.com.br/noticias/publico-geek-gasta-40-a-mais-que-a-media- nacional-revela-pesquisa, acessado em 11/02/2020) 181

uma masculinidade heterossexual hegemônica” (QUAIL, 2011, p. 461)243. Essa é uma ideia bastante visível, dada a origem desse tipo social e sua história, sempre em contraste com um tipo de masculinidade dominante. Quail (2011) usou essa relação de disputa entre tipos de masculinidades representadas na produção de massa como uma das características mais marcantes da cultura nerd. A oposição entre o “Hip/Square” ou “Descolado/Quadrado” (tradução nossa) é uma característica marcante da existência dos personagens e situações nerds na televisão e cinema.

Obviamente, o papel da mídia na (re) produção de discursos culturais, e neste caso o discurso dos nerds e da nerdice, é integral. Ao olhar historicamente para os textos televisivos, podemos testemunhar a dialética “descolado / quadrado” e seu projeto político se desenrolar de duas maneiras principais: (1) a narrativa de pares ímpares da praça e sua amizade com um hipster e (2) a narrativa antagônica de um quadrado e seu concorrente descolado / legal: o atleta ou garoto popular (QUAIL, 2011, p. 462).244

Exemplos não faltam para essas representações. A série de televisão Star Trek (originalmente exibida entre 1966-69 na NBC dos EUA) já colocava em oposição os dois protagonistas da história: o alienígena oficial de ciências da espaçonave USS Entreprise e o comandante da nave Capitão Kirk; outros exemplos como na sitcom Happy Days (ABC, 1974- 84) e os amigos personagens Potsie (square) e Fonzie (hip); ou no cinema como na trilogia Back to the Future (1985-1990) cujo enredo apresentava o jovem atraente e descolado Martin McFly e seu amigo cientista Doc Brown. Existem muitos outros exemplos aos quais essa oposição foi explorada e essas representações cristalizaram nas produções midiáticas, como cinema e televisão, o confronto entre esses dois tipos. É preciso ressaltar que em outros poucos momentos a existência nerd esteve associada a uma masculinidade dominante em um mesmo representante, como no arqueólogo Indiana Jones e no super-herói Tony Stark. Os dois representam quase em mesma medida os traços nerds (cientistas com grande conhecimento em suas áreas de expertise), mas também um perfil de masculinidade exacerbada (aventureiros e galantes conquistadores). Nos dois casos, essa representação é bem marcada em suas aparições na tela. O doutor Indiana Jones troca o terno

243 Traduzido do original: “culturally placed in contrast with a more athletic, socially skilled, sexually aware individual - the cool kid or jock, who demonstrates a hegemonic heterosexual masculinity”. 244 Traduzido do original: “Of course, media’s role in the (re)production of cultural discourses, and in this case the discourse of nerds and nerdiness, is integral. When looking historically at television texts, we can witness the “hip/square” dialectic and its political project play out in two major ways: (1) the odd-couple narrative of the square and his or her friendship with a hipster and (2) the antagonistic narrative of a square and his or her hip/cool competitor: the jock or popular kid”. 182

com gravata borboleta, os óculos e o cabelo bem penteado para sair do ambiente universitário e se tornar um explorador com revolver e chicote em punhos em seus filmes; o gênio da engenharia e física Tony Stark deixa seu laboratório repleto de engenhocas construídas por ele para se vestir em uma armadura super tecnológica e salvar o mundo. Apesar disso, ainda é possível visualizar um confronto entre o perfil nerd e sua contraparte representado no mesmo personagem. Uma das características mais marcantes na série The Big Bang Theory é a ausência dos jocks como antagonista aos nerds. É claro que a leitura atual da cultura nerd coloca os personagens em disputa com eles mesmos, ao contrário de A Vingança dos Nerds. Os adversários mais presentes são pesquisadores em competição por destaque acadêmico, bolsas de pesquisa ou discussões por áreas do conhecimento e linhas diferentes. Na série, existem relatos dos personagens sobre o bullying no período de escola e até na faculdade, porém, na vida adulta, esse não parece ser mais um problema no cotidiano. O único retratado no seriado aparece no episódio The Speckerman Recurrence (ep. 11, 5ª temp.), em que Jimmy Speckerman245 aparece como um adulto fracassado procurando no antigo colega uma forma de solucionar problemas financeiros (Figura 53). É interessante notar que nessa reconfiguração dos personagens nerds, a presença do jock não é mais necessária para definir o nerd. Agora elas não encontram mais oposição nos seus antigos algozes, o atleta intimidador agora é retratado como alguém fracassado. Mesmo que no fim do episódio Leonard e Sheldon sejam perseguidos por Jimmy, há uma ideia de vitória na vida profissional e pessoal dos cientistas, que ainda não conseguem – e nem pretendem – igualar nos aspectos físicos, já que o mundo contemporâneo é o do intelecto, da tecnologia e da ciência naquela representação.

245 Interpretado por (1973 – ) 183

Figura 53: Leonard encontrando Jimmy em um bar

Fonte: The Big Bang Theory (The Speckerman Recurrence, ep. 11, 5ª temp.)

Outros personagens que se destacam pela compleição física são mostrados na série. É o caso de Kurt, ex-namorado de Penny antes dela se mudar para o prédio de Leonard e Sheldon; e também de Zack Johnson, um interesse amoroso da garota recorrente na série em momentos pelos quais ela não está se relacionando com Leonard. Kurt só aparece nas duas primeiras temporadas da série (no piloto e 6º episódio da 1ª temporada e retorna 14º da 2ª) e em todas as participações se impõe fisicamente sobre os cientistas. Em The Middle Earth Paradigm (ep. 06, 1ª temp.) em uma cena que Leonard disputa a atenção de Penny com o seu ex namorado (figura 54) o cientista impõe seu domínio ao satirizar a capacidade cognitiva de seu oponente: “Claro que todos nós somos animais, mas alguns de nós escalamos um pouco mais alto na árvore da evolução”; na sequência Sheldon comenta com o amigo: “se ele conseguir entender nós estaremos encrencados”. Obviamente, a única resposta de Kurt é dada fisicamente agredindo Leonard na festa. Outro exemplo de oposição física combatida com o intelecto está na presença de Zack. Apesar de nunca parecer agressivo, ele é descrito pelos personagens femininos e masculinos como um homem atraente. Zack é alto, de corpo forte e personalidade afável. Quando o grupo precisou de um membro que pudesse representar o Superman em uma competição de fantasias, todos decidiram que a resposta óbvia seria Zack (figura 55). “É a única pessoa que conhecemos com músculos de verdade”, afirmou Howard. Mas o rapaz tem mais uma característica: ele é estúpido. Em todas as suas participações (ele aparece em 11 episódios entre a 2ª e a última temporada) seus atributos de masculinidade são exaltados e sua falta de inteligência destacada.

184

Figura 54: Sheldon, Leonard e Kurt na festa de Halloween

Fonte: The Big Bang Theory (The Middle Earth Paradigm, ep. 06, 1ª temp.)

Figura 55: Personagens fantasiados de Liga da Justiça

Fonte: The Big Bang Theory (The Justice League Recombination, ep. 11, 4ª temp.)

Se analisarmos o filme – e outras produções até a década de 1990 – concluiríamos, como Quail (2011), que existe essa constante representação de antagonismo entre o nerd (fisicamente fraco e intelectualmente desenvolvido) com a masculinidade heterossexual hegemônica, representada pelos atletas e tipos fortões, habilidosos socialmente e com financeira invejável. Porém, essa representação assumiu nova configuração na atualidade, colocando o nerd em uma posição – intelectual e econômica – acima de seus adversários simbólicos. Outro aspecto interessante ao compararmos as duas produções é a própria definição de nerd. Se recordarmos o gráfico proposto por Woo (Figura 47), o nerd se situaria na intersecção entre: inteligência, obsessão e inaptidão social. Como o próprio autor argumenta, essa é uma demonstração visual e não definitiva do conceito de nerd. Em A Vingança dos Nerds, por exemplo, essa definição não é necessariamente respeitada. Analisando somente os personagens principais da fraternidade Tri-Lambda nem todos se encaixariam naquele perfil. Lewis e Gilbert com suas roupas fora do padrão para a idade, riso exagerado e barulhento, e interesse por 185

computação são personagens que se encaixam no perfil nerd; a Wormser também é possível atribuir as mesmas características, o garoto é muito mais jovem do que os colegas o que demonstra um alto grau de inteligência para ser alçado ao estudo na universidade, por essa razão está deslocado socialmente, passa muito tempo no videogame e tem como interesse engenharia aeronáutica; Pointdexter é um personagem pouco explorado, mas pode ser enquadrado no perfil nerd daquele período. O estudante toca violino – instrumento comumente associado à erudição – tem óculos enormes e espesso e demonstra desconforto em situações de convívio social. Por outro lado, Booger só tem como característica, dentro das três propostas por Woo, a inaptidão social. O jovem é grosseiro nos modos (é mostrado arrotando e colocando o dedo dentro do nariz constantemente), mas não é descrito como inteligente ou apegado profundamente à alguma área do conhecimento; assim como Lamar, que é gay, vaidoso e parece até descolado perto dos colegas. Na festa promovida para inaugurar a Fraternidade, é o único a anunciar que teria um parceiro para a noite; por fim, Takashi se inclui no grupo como um estrangeiro exótico, inocente e sem as habilidades necessárias para o convívio com os pares.

O filme apresenta seus dois principais protagonistas como nerds típicos estereotipados por excelência. No entanto, retrata seus compatriotas como um bando aleatório de perdedores desonestos com vários não- nerds, incluindo: um gay efeminado, um pateta amoral dado a exibições de fisicalidade nojenta e um imigrante japonês estereotipado. Eu entendo esse grupo principalmente o status de perdedor e pária do nerd, facilitando, no final do filme, a inclusão total do termo (KENDALL, 1999, p. 266).246

Mesmo assim, para a narrativa do filme, por meio dos diálogos e intepretações, todos são taxados como nerds. Naquela representação, nerd tinha menos relação com um tipo de consumo, uma capacidade de compreender textos e códigos de uma esfera cultural, e estava mais ligado a jovens marginalizados no sistema educacional, com pouca – ou nenhuma – capacidade de se defender fisicamente e fora de um intervalo de padrão aceito pelos outros estudantes para incluí-los nas atividades e rotinas estudantis comuns. O status nerd naquela representação era tão pejorativo, se assemelhando a um xingamento, uma marcação como pária daquela estrutura social, que o filme caminha para aceitação dos personagens como nerds. Ao pegar o microfone e fazer seu discurso em uma das

246 Traduzido do original: “The movie presents its two main protagonists as quintessential, stereo typical nerds. It portrays their compatriots, however, as a random bunch of ragtag losers with several non-nerds, including: an effeminate black gay man, an amoral slob given to displays of disgusting physicality, and a stereo typed Japanese immigrant. I read this group as mainly enhancing the loser and outcast status of the nerd and facilitating, at the end of the movie, the all-inclusiveness of the term”. 186

últimas cenas do filme, Gilbert acusa a equipe de futebol americano de ter destruído a sede da fraternidade Lambda, e lembra que eles nunca foram aceitos por “inteligentes e diferentes”, depois pronuncia: “eu sou um nerd! E sou bastante orgulhoso disso”. Na sequência, Lewis assume o microfone (Figura 56) para afirmar:

Sou um nerd, também. Acabei de descobrir isso hoje. Temos novidades para as pessoas bonitas. Existem muito mais pessoas como nós do que como vocês. Sei que há ex-alunos aqui hoje. Quando ingressaram no Adams, poderiam ter sido chamados de dork, ou geek. Qualquer um de vocês que se tenha sentido... sado, deixado de fora, apanhado, descartado, se acham que são um nerd ou não, por que não vêm e juntam-se a nós? (REVENGE OF THE NERDS, 1984)

Figura 56: A Vingança dos Nerds (1h23m55s)

Fonte: Revenge of the Nerds (1984)

É perceptível que os personagens em The Big Bang Theory vão buscar nos textos fornecidos pelos filmes da década de 1980, como A Vingança dos Nerds, muitos de seus traços, mesmo que alguns itens elementares da cultura nerd permaneçam bastante inalterados; por outro lado, o filme de 1984 apresenta personagens que não se identificam claramente com uma cultura, ao contrário, entendem que nerd está muito próximo da noção de excluído ou marginalizado. É só no fim da obra que uma estrutura de identidade parece se formar.

O final de Revenge of the Nerds incorpora nerds na masculinidade aprovada, desconsidera os afro-americanos da consideração e conclui com a fantasia de que a nova ordem mais afável e gentil dos nerds agora inclui tudo, exceto o topo anterior da pilha: o futebol da fraternidade jogadores e seu treinador (KENDALL, 1999, p. 271)247

247 Traduzido do original: “The ending of Revenge of the Nerds incorporates nerds into approved masculinity, dismisses African-American males from consideration, and concludes with the fantasy that the nerds’ kinder, 187

O final dessa história parece abrir um espaço para o nerd das décadas seguintes. Sua representação, como feita em The Big Bang Theory, assume uma postura mais orgulhosa, afinal, o mundo no fim dos anos 1990 e no atual século se apoiou nas criações e descobertas realizadas por eles, e a indústria da moda, de colecionáveis e de produção midiática se encarregaram de compartilhar seus signos. Entretanto, ainda é preciso entender as obras como representações retroalimentadas pela realidade cotidiana, mas não espelhos dela.

No entanto, devemos ter muito cuidado ao extrair inferências sobre a realidade social das representações da mídia. A mídia certamente expressa e age de acordo com a compreensão popular de todos os tipos de fenômenos, mas raramente o fazem da maneira direta, implícita nas metáforas da “janela do mundo” e do “espelho que reflete nossa cultura” (WOO, 2018, p.13)248

A proposta deste trabalho é pontuar como a figura do nerd, seus ritos e práticas, seus signos e textos foram transformados em suas representações na cultura de massa, tendo como corpus o filme e a série. Para aprofundarmos o olhar sobre essas transformações é possível destacar alguns elementos presentes nas duas produções e que se modificaram nessas representações da cultura nerd separadas por duas décadas.

4.2.1.1 – Nerds, gedgets e ciência Uma forma evidente de representar o nerd nas duas produções é sua ligação umbilical com tecnologia e a ciência. No filme da década de 1980, essa representação estava muito mais influenciada pelo advento recente dos computadores pessoais. Conhecer e controlar essas máquinas parecia uma tarefa intelectual e realizável por poucos indivíduos. A nova tecnologia delimitava um espaço que era confrontável ao nerd: uma máquina de uso individual, quase sempre isolado, que possibilitava acessar uma gama de recursos apartados do público geral. Sobre a visão criada pelos filmes da década de 1980, Lori Kendall (1999) argumenta que a representação atribuiu aos personagens nerds uma posição de limiar entre o mundo quase- humano das máquinas e aos seus usuários, que por sua vez, também não se encaixavam completamente em padrões sociais: “Se os computadores são parecidos, mas não totalmente

gentler new order now includes all except for the previous top of the heap: the fraternity football players and their coach”. 248 Traduzido do original: “However, we must be very careful about drawing inferences about social reality from media representations. Media certainly express and act upon popular undestanding of all sorts of phenomena, but they rarely do so in the straightfoward manner implied by the “window of the world” and “mirror reflecting our culture” metaphors”. 188

humanos, e, portanto, liminares, que status isso confere às pessoas que entendem e, pior ainda, gostam de computadores? A inquietação em relação à resposta a essa pergunta alimenta o atual estereótipo de nerd” (KENDALL, 1999, p. 263). Na representação dos nerds, os textos sempre transmitem signos ligados ao ambiente de desenvolvimento científico, tecnológico e acadêmico. Na grande maioria das vezes, acadêmico se refere somente às disciplinas ligadas a ciências naturais e exatas, deixando de lado às áreas humanas e sociais, como no episódio The Benefactor Factor (ep. 15, 4º temp) o qual Sheldon se vê forçado a participar de uma festa com ricos filantropos para arrecadar fundos destinados ao departamento de física. Amy usa o argumento de que sem a sua presença no evento, o dinheiro poderia acabar investidos em artes liberais: “milhões de dólares desperdiçados com poesia, teoria literária ou estudos de gênero”; e Sheldon exclama inconformado: “ah, as ciências humanas!”. Essa representação está de acordo com uma forma mais simples de se comunicar com o público e indicar elementos do mundo acadêmico e científico prontamente decodificados pela audiência. Essa composição dos personagens gera um entendimento mais rápido para representar a inteligência dos nerds, são textos que transitam mais facilmente, ainda mais se considerarmos o momento em que cada produção foi exibida. Em 1984, os primeiros avanços da computação para um público amplo; já no século XXI o acesso continuamente crescente às tecnologias da informação e comunicação.

O comportamento nerd do quarteto masculino, em geral, encontra maior afinidade com a audiência atualmente do que em qualquer período anterior. Desde a virada do milênio, aparatos tecnológicos sofisticados estão cada vez mais presentes em toda e qualquer atividade do dia a dia das pessoas em países desenvolvidos. Desta forma, o imaginário científico-tecnológico está em constante enriquecimento através de nossas vivências e interesses (ANAZ; CERETTA, 2014, p. 670).

Um indicativo constante dessa relação nerd/tecnologia presente nas duas obras pode ser verificado – entre outros itens – no uso de robôs como parte do cotidiano dos jovens. Em A Vingança dos Nerd Lewis possui um pequeno robô que auxilia em tarefas domésticas como servir os estudantes (Figura 57) ou na cena em que eles reformam a casa da fraternidade.

189

Figura 57: A Vingança dos Nerds (30m10s)

Fonte: Revenge of the Nerds (1984)

Em The Big Bang Theory em vários momentos da série robôs aparecem como resultado da pesquisa ou do trabalho dos personagens – especialmente Howard; Como no episódio The Robotic Manipulation, (ep. 1, 4ª temp.), em situações em que o braço mecânico e usado para servir comida (Figura 58) ou massagear o engenheiro, entre outros usos. Outro aspecto permanente nas duas obras é a capacidade dos nerds de dominarem a linguagem da computação em auxílio às pessoas próximas. No filme, na cena em que Gilbert conhece Judy, a garota está frustrada pela falta de habilidade para usar o computador. Na cena, o nerd aparece como monitor de estudos numa sala de informática da universidade e se oferece para auxiliá-la. Seu discurso ao introduzir a garota no universo da informática mitifica ainda mais o uso dos computadores: “trabalhar com um computador é ótimo. O que quero dizer é que, de um modo, parece divino, porque você tem o controle completo”. Essa percepção do nerd no imaginário coletivo não parece alterada em The Big Bang Theory. Os jovens – especialmente Leonard – são chamados ao auxílio de Penny (e outros personagens também) em várias ocasiões para solucionarem problemas relacionados ao mundo da informática. No episódio The Bat Jar Conjecture (ep. 13, 1ª temp.), a primeira cena mostra isso acontecendo quando o físico tem que resolver problemas no computador da jovem vizinha.

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Figura 58: Leonard e Howard sendo servidos por um braço robô

Fonte: The Big Bang Theory (The Robotic Manipulation, ep. 1, 4ª temp.)

Exemplos para comparar as duas produções não faltam, porém, o que é mais significante é perceber a relação central na representação do nerd com o desenvolvimento científico e a tecnologia. Esses signos constituem elementos simbólicos que operam no imaginário do seriado e do filme, “seus sentidos emergem como resultado da tensão do universo científico-metodológico com o cotidiano” (ANAZ; CERETTA, 2014, p. 670). Usando humor para consolidar essa representação, esse texto da cultura nerd parece nuclear, pouco modificado e auxilia na fixação de uma imagem nerd que pouco se alterou nesse quesito. A principal transformação está na decodificação desses textos, já que, na contemporaneidade, a capacidade de dominar e desenvolver tecnologias está ligada à uma ideia de sucesso financeiro e proeminência social.

Trabalhos realizados ao longo das últimas décadas, simbolizaram também o sucesso da cultura nerd, pois a evolução tecnológica promovida por suas empresas contribuiu significativamente não apenas para a evolução da humanidade, mas também para que o nerd fosse se desvencilhando daquele caráter pejorativo que há muito estava impregnado em seu cerne e ganhasse a notoriedade que tem hoje, apresentando-se como um vasto e atrativo mercado. (MONT’ALVÃO, 2016, p. 87)

Entretanto, não é como se todo o estereótipo negativo tivesse desaparecido. A relação com a máquina ainda parece criar uma categoria à parte de indivíduos nas relações de trabalho ou estudo. Mesmo que de fácil acesso – comparado aos anos 1980 – a tecnologia dos computadores não é totalmente dominada pela maior parte dos seus usuários. No imaginário coletivo, aquele que consegue estabelecer uma comunicação fácil e fluída com as tecnologias de informação carrega uma característica nerd. 191

O valor percebido dos computadores para empresas e indivíduos deu aos nerds um status cada vez mais positivo, mas ainda resta algum resíduo do estereótipo negativo. A negatividade contínua do estereótipo de nerd revela uma inquietação persistente com o uso e os usuários de computadores. Expor e explorar essa inquietação e considerar o significado do uso do computador tornam-se etapas importantes para considerar o relacionamento de "nerd" com computadores, capital, trabalho e entre si (KENDALL, 1999, p 260).249

Os signos relacionados à ciência e tecnologia com toda certeza formam textos que se conectam à cultura nerd. Esses textos parecem nucleares no sentido que pouco se reconfiguraram em sua representação na televisão ou cinema passadas duas décadas. Porém, não é possível dizer que não há nenhum contágio com outros sistemas culturais, principalmente aqueles ligados à imprensa e ao jornalismo, que costumam representar os nerds de hoje como vencedores na vida financeira e no desenvolvimento de tecnologias.

4.2.1.2 – Sexo e masculinidade Sem dúvidas, uma das representações mais evidentes do tipo nerd no filme de 1984 é o interesse sexual dos jovens. Logo em uma das primeiras cenas do filme, no carro, fazendo a viagem para o campus da universidade (Figura 59) Lewis faz uma conta de cabeça para ilustrar à Gilbert a diferença do ensino médio para a universidade: “Lembre-se, são 6.127 alunos no Adams. Cinquenta e oito porcento dos quais são garotas. E daí que são 7.107,32 seios”.

249 Traduzido do original: “The perceived value of computers for businesses and individuals has given nerds increasingly positive status, yet some residue of the negative stereotype remains. The continued negativity of the nerd stereotype reveals a persistent uneasiness with computer use and computer users. Exposing and exploring that uneasiness and considering the meaning of computer use become important steps for considering our ‘nerd’ relationships to computers, capital, work, and each other”.

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Figura 59: A Vingança dos Nerds (03m29s)

Fonte: Revenge of the Nerds (1984)

Kandall (1999) faz uma interessante contribuição para pensarmos a representação do nerd nos filmes desse período. Há um paradoxo na personalidade nerd projetada nesses personagens. Por um lado, são hipersexualizados e demonstram interesse continuo (e exagerado) na tentativa de se relacionar com mulheres, ao ponto de o filme retratar duas cenas que fogem ao limite do humor como entendemos hoje: como na cena em que os jovens invadem os dormitórios da sororidade, atacam as estudantes e instalam equipamentos de filmagem para assistirem às garotas nuas na televisão da fraternidade Lambda; e na cena onde Lewis se fantasia como Stan para fazer sexo com a namorada do jogador de futebol, enganando a cheerleader. Ao mesmo tempo, os nerds carecem de atributos masculinos estereotipados que constantemente são representados não cinema e na televisão. Eles não são atléticos ou esportistas, não possuem a aparência física masculina dominante, são baixos e fracos, ou quando tem uma altura acima da média são magros ou obesos. Em A Vingança dos Nerds, os jovens têm que usar a ciência para vencer em competições de demonstração física durante o festival de competição entre as fraternidades. Em uma corrida de triciclo em que os competidores deveriam consumir uma lata de cerveja a cada volta (no total de 20 voltas), o estudante Takeshi usa “triclorometaleno” para impedir os efeitos do álcool no organismo e resistir à prova toda; na competição de lançamento de dardo (esporte olímpico), o conhecimento de aerodinâmica de Wormser é um fator decisivo ao projetar um dardo que utiliza-se o lançamento “desmunhecado” de Lamar.

O estereótipo de nerd inclui aspectos de hipermasculinidade (intelecto, rejeição da aparencia, falta de habilidades sociais e relacionais 'femininas') e feminização (falta de habilidade esportiva, tamanho corporal pequeno, falta de relacionamento sexual com mulheres). O nerd é um entre muitos tipos de “masculinidades subordinadas”, 193

incluindo “covarde, molenga, nerd, frangote, maricas” etc. (KANDELL, 1999, p.264).250

Essa ideia projetada dos nerds em produções daquele período, com maior ou menor intensidade, criou no imaginário essa ideia sobre a “masculinidade nerd como uma combinação de hipermasculinidade e feminização, em essência uma masculinidade subordinada” (QUAIL, 2011, p. 463).251 Ao mesmo tempo, essa postura representava uma resposta violenta a posição inferior que os jovens ocupavam naquele momento.

“Masculinidade violenta”, como os nerds do cinema usam a violência sexual contra as mulheres e a violência física contra os atletas, seus rivais; como tal, não se trata apenas de uma masculinidade subordinada, mas de uma violenta erupção na tentativa de se tornar dominante, criando um relacionamento hesitante e instável entre construções dominantes e subordinadas (QUAIL, 2011, p. 463).252

Esses textos retornam à representação em The Big Bang Theory, presentes em certos pontos e ressignificados em muitos outros. É claro que na contemporaneidade as formas de representar o interesse masculino foram alteradas. Textos da cultura ligados às discussões de gênero e feminismo contagiaram outras esferas da cultura, mesmo que de maneira impositiva (com modificação de leis e regulamentação para forçar essa mudança), o que já alterou a representação do nerd nos ritos de interesse sexual. Entretanto, grande parte dos estereótipos da cultura nerd continuam sendo projetados no seriado em seus quatro representantes principais (Figura 60).

250 Traduzido do original: “the nerd stereotype includes aspects of both hypermasculinity (intellect, rejection of sartorial display, lack of ‘feminine’ social and relational skills) and feminization (lack of sports ability, small body size, lack of sexual relationships with women). The nerd is one among many types of ‘subordinated masculinit[ies]’, including ‘wimp, milksop, nerd, turkey, sissy’, etc”. 251 Traduzido do original: “nerd masculinity as a combination of hypermasculinity and feminization, in essence a subordinated masculinity”. 252 Traduzido do original: “’violent masculinity,’ as the filmic nerds use sexual violence against women as well as physical violence against the jocks, their rivals; As such, this is not simply a subordinated masculinity but one that is violently erupting in an attempt to become dominant, creating a tentative and shifting relationship between dominant and subordinate constructs. 194

Figura 60: Howard, Raj, Leonard e Sheldon

Fonte: The Big Bang Theory (Montagem)

Howard é o único dos quatro cientistas que mantém um caráter de sexualidade exacerbada como os jovens no filme de 1984. Ele é interpretado como um mulherengo, porém sem sucesso nas tentativas, além das piadas que fazem referência à masturbação e à busca por serviços de prostituição. Como Lewis, ele é judeu, de baixa estatura e compleição física pequena. Ele também faz insinuações a técnicas de pick-up artist253 nas primeiras temporadas; Raj é o que mais contem características femininas e, muitas vezes, se assume como metrossexual. Tem sensibilidade e com frequência participa de passeios só com as mulheres da série (girls nite). Durante as 6 primeiras temporadas ele tem mutismo seletivo e só consegue conversar com o gênero feminino se estiver bêbado. Mesmo assim procura sempre um relacionamento com garotas e é o personagem que teve o maior número de pares românticos no seriado; Leonard é o estereótipo do nerd tímido apaixonado pela menina bonita. De estatura baixa e tipo físico franzino, se parece intimidado na presença de mulheres; por fim, Sheldon é o menos interessado em qualquer tipo de relacionamento romântico. Até a quarta temporada não demonstrava nenhum interesse sexual por ninguém, mesmo sendo cortejado, como no episódio The Cooper-Nowitzki Theorem (ep. 6, 2ª temp.). Essa atitude só é alterada com a chegada de Amy, único par romântico do pesquisador. Os elementos ligados ao esporte também são signos revisitados na série. Em vários episódios há referências à falta de proximidade com atividades esportivas e à incapacidade de praticá-las, como em The Cornhusker Vortex (ep 6, 3ª temp.), quando Leonard tentar aprender

253 Movimento surgido na segunda metade dos anos 2000, cujo objetivo é ensinar técnicas de sedução para conquistar mulheres. Isso já existia muito antes da popularização da internet, mas os PUAs conquistaram espaço através de personalidades "controversas" e youtubers especializados em ensinar as "regras do jogo". O movimento foi rapidamente acusado de ser misógino e enfraqueceu relativamente nos últimos anos. Disponível em: tab.uol.com.br/noticias/redacao/2020/02/19/comunidades-misoginas-virtuais-estao-mais-toxicas-diz- pesquisa.htm (acessado em 16/02/2020). 195

sobre futebol americano para se enturmar com os amigos de Penny; e em The Rothman Disintegration (ep. 17, 5ª temp.), episódio no qual Kripke e Sheldon pleiteiam a sala de um professor recém-aposentado, escolhendo como forma de resolver a disputa algo que os dois são igualmente ruins: uma partida de basquete (Figura 61).

Figura 61: Sheldon e Kripke na disputa de basquete

Fonte: The Big Bang Theory (The Rothman Disintegration, ep. 17, 5ª temp.)

Em The Big Bang Theory, os estereótipos sexuais e de masculinidade nerd são revisitados, sob o espírito do tempo contemporâneo, mantendo características da sexualidade nerd representada nos filmes como A Vingança dos Nerd, porém, adequando às situações e às problemáticas do século XXI. É perceptível que a ideia de um nerd pouco à vontade diante de seu interesse romântico e pouco apto fisicamente para as disputas esportivas permanece como texto rígido da cultura nerd. Por outro lado, é importante salientar o quanto há de separação entre as duas obras na imagem projetada do nerd. É possível perceber uma mudança na ideia de masculinidade hegemônica proposta na primeira obra, para incluir outros estereótipos de masculinidade, antes inferiorizados. Essa reconfiguração “refere-se tanto às mudanças nas perspectivas econômicas e de emprego de homens brancos de classe média, quanto à crescente difusão de computadores nas atividades de trabalho e lazer” (KENDALL, 1999, p. 261)254.

254 Traduzido do original: “relates both to changes in economic and job prospects for middle-class white males, and to the growing pervasiveness of computers in work and leisure activities”. 196

4.2.1.3 – A representação feminina Entre os textos que revelam a cultura nerd dentro das representações audiovisuais que são o corpus dessa análise, é possível adiantar que nenhum tem uma ressignificação tão evidente quando o papel das mulheres nas duas obras. Em A Vingança dos Nerds só existem duas classificações femininas visíveis, a saber: As Pi Delta Pi, na maior parte visualizada na personagem Betty Childs; e as Omega Mu, sororidade da estudante Judy, par romântico de Gilbert (figura 62). As garotas representam uma oposição diametral, enquanto Betty é a líder de torcida, geralmente aparece nas cenas com saias e shorts curtos, tem a atenção dos rapazes considerados mais disputados; Judy é simples, se veste mais com saias longas, usa óculos e não se destaca pela aparência. Também não existe nenhum indicativo de inteligência ou conhecimento profundo, ou seja, ela não é uma nerd.

Figura 62: Judy, Betty e outra Pi Delta Pi

Fonte: Revenge of the Nerd (Montagem)

A caracterização das personagens reforça a ideia de que as Pis não se enquadram como parceiras românticas ideais para os nerds, e que essa função está mais próxima das Mus. Ao mesmo tempo, a narrativa revela um interesse sexual violento e possessivo dos jovens sobre as mulheres. “Eles também querem pesquisar e controlar as mulheres como objetos sexuais e usam sua própria habilidade especial – controle da tecnologia – para expressar esses desejos” (KENDALL, 1999, p. 269)255. As mulheres parecem ser um caminho para acessar uma masculinidade hegemônica que lhes foi negada, e as cheerleaders serviriam melhor de pavimentação para esse caminho: “Para demonstrar cumplicidade com a masculinidade

255 Traduzido do original: “They too want to survey and control women as sexual objects, and they use their own special strength – control of technology – to express these desires”. 197

hegemônica, os nerds devem primeiro demonstrar a expressão violenta de interesse sexual nas mulheres” (KENDALL, 1999, , p. 270)256. Na obra ambientada no século XXI, as representações femininas são mais diversas e também se transformam com o passar dos anos de exibição do show. Penny é uma das protagonistas da história e tem um papel que muda pouco no decorrer da trama: ela é apresentada como fisicamente atrativa e se torna o interesse de todos os nerds (com exceção de Sheldon). Na série, é revelado que ela foi cheerleader na escola e rainha do baile de formatura, estereótipo comum da garota desejada em filmes hollywoodianos. A primeira mulher cientista a ser apresentada na série é Leslie Winkle, com participação recorrente nas três temporadas iniciais, a qual a aparência física é representada de forma antagônica à Penny, mas com sua alta formação acadêmica e capacidade cognitiva. No diálogo onde elas se conhecem, Penny se surpreende ao descobrir que existem mulheres cientistas, Leslie responde: “Come for the breasts, stay for the brains” (The Hamburger Postulate, ep. 5, 1ª temp.), algo que pode ser entendido como: “Chega em mim por causa dos seios, mas fica por causa da inteligência”. Contudo, é a partir da 4ª temporada que as representações femininas se tornam mais complexas e diversificadas, separando os estereótipos simples do filme e até das primeiras temporadas do show. A entrada, como personagem fixos no elenco, da doutora em microbiologia Bernadette Rostenkowski e da doutora em neurociência Amy Farrah Fowler, inicia uma transformação na representação das mulheres no programa. Amy não se encaixa nos padrões de beleza vinculados às produções de televisão e cinema quanto à aparência, tipo físico e indumentária. Mas, Bernardette é simbolizada como mulher bonita e atraente. Mesmo que de baixa estatura, ela desperta o interesse em outros homens, em diversas situações (Figura 63). Para Heather McIntosh (2014), o mais relevante na interpretação das personagens é como elas quebram com ideias já estabelecidas em produções americanas da televisão e cinema, sobretudo as representações de mulheres profissionais da ciência – medicina, forense, química, biologia ou física. Em outras produções semelhantes, como também na representação de Leslie Winkle, mulheres cientistas não podiam atingir o pacote completo de vida profissional, romance e aparência. As personagens eram representadas, geralmente, como “heroína solitária, ou a mulher que exibe extrema competência em seu trabalho, mas ainda sofre com a falta de reconhecimento ou romance. No final, porém, uma cientista feminina só pode ter sucesso na

256 Traduzido do original: “to demonstrate complicity with hegemonic masculinity, the nerds must first demonstrate the violent expression of sexual interest in women”. 198

vida doméstica ou profissional, mas não ambas” (MCINTOSH, 2014, p. 197)257. Na série, há uma ruptura com essa imagem, que, além disso, também desafia a hegemonia masculina no campo científico, tirando das personagens o papel normalmente delegado às mulheres como donas de casa ou em trabalhos de subserviência (garçonete, recepcionista e outros). Até Penny que começa a série como garçonete e atriz fracassada, muda de carreira e passa a trabalhar como uma bem sucedida vendedora farmacêutica, ganhando um salário maior do que o marido e dirigindo seus projetos na empresa. Bernardette também é mais bem remunerada do que Howard, sendo pesquisadora de uma empresa farmacêutica e gestora das finanças da casa.

Figura 63: Bernardette e Amy

Fonte: The Big Bang Theory (The Focus Attenuation, ep. 5, 8ª temp.)

Outra diferença na representação é a igualdade exigida pelas mulheres cientistas na discussão de tópicos entre o grupo de amigos: “Como Bernadette e Amy trabalham como cientistas, ambas têm o potencial de contribuir para as discussões entre os amigos sobre seu próprio trabalho e compartilhar suas próprias observações com base em pesquisas científicas” (MCINTOSH, 2014, p. 197)258. Os papéis de gênero são discutidos nas relações. O casamento de Howard e Bernardette é um exemplo disso. Em The Shiny Trinket Maneuver Summary (ep. 12, 5ª temp.), os dois discutem sobre a possibilidade de terem filhos, pois Bernardette não se interessa em largar a carreira para ser mãe. No fim do episódio, ela propõe ao par que, se ela engravidar, Howard deverá largar o trabalho e cuidar das crianças, já que ganha menos. “Embora Howard tente

257 Traduzido do original: "lonely heroine, or the woman who exhibits extreme competence in her work yet still suffers from the lack of recognition or romance. In the end, though, a female scientist only can succeed at home life or work life, but not both." 258 Traduzido do original: “Because Bernadette and Amy work as scientists, they both have the potential to contribute to the discussions among the friends about their own work and to share their own observations based on scientific inquiry. These contributions significance”. 199

colocar Bernadette em papéis específicos de gênero como dona de casa e mãe, Bernadette frequentemente adota papéis mais tradicionalmente masculinos no relacionamento” (MCINTOSH, 2014, p. 199)259. Entretanto, a autora salienta que não há um empoderamento efetivo das mulheres cientistas na série, mesmo que de maneira geral elas afastem certos estereótipos prévios em produções similares. “A inteligência deles não é um recurso que define esses personagens por si mesmos, mas sim funciona como um meio de atrair e manter a atenção de seus homens” (MCINTOSH, 2014, p. 203), e conclui:

The Big Bang Theory é única, pois apresenta cientistas do sexo feminino e situa suas interações por meio da comédia. A teoria do The Big Bang Theory segue as expectativas estabelecidas em outros estudos de mulheres cientistas, em que nem Amy nem Bernadette reúnem papéis profissionais e de gênero ao lado de sua inteligência de maneira empoderada e progressiva. Em vez disso, esses três aspectos estabelecem as bases para seus relacionamentos com os outros homens no programa (MCINTOSH, 2014, p. 203)260.

Mesmo assim, a série estabelece uma nova relação com as mulheres colocadas ao redor da cultura nerd. É bom ressaltar que nenhuma das garotas em A Vingança dos Nerd ou The Big Bang Theory é nomeada como nerd. Mesmo as cientistas da série não participam dos rituais, práticas e consumo associados a essa cultura. Esses são textos ainda empregados aos participantes masculinos. Kendall (1999) salienta que o perfil nerd estabelecido no filme de 1984, por mais que a narrativa, no fim da obra, tente agregar diferentes tipos sociais, ainda vai estabelecer o padrão de nerd como: homem, branco, heterossexual e de classe média. Ao refletir sobre a participação feminina na cultura nerd a autora afirma:

Mulheres que se declaram nerds podem ter dificuldade em obter reconhecimento de seu status de nerd com relação a nerds do sexo masculino. Por exemplo, no documentário Triumph of the Nerds, o

259 Traduzido do original: “Though Howard attempts to place Bernadette within specific gender roles as homemaker and mother, Bernadette frequently adopts more traditionally masculine roles within the relationship” 260 Traduzido do original: “The Big Bang Theory is unique in that it features female scientists and situates their interactions within comedy. The Big Bang Theory follows the expectations set up within other studies of female scientists in that neither Amy nor Bernadette bring together professional and gender roles alongside their intelligence in empowered and progressive ways. Instead, these three aspects set the foundations for their relationships with the other men on the show”. 200

narrador afirma no início do filme que interessa à tecnologia da computação “é coisa de menino” (KENDALL, 1999, p. 278)261.

Assim, as garotas não participam diretamente da cultura nerd nas duas obras, ficando ao redor dela e tensionando outras formas de convivência com os nerds, especialmente em The Big Bang Theory. Nesse ponto é importante ressaltar que a cultura é campo de tensão, disputa e construção de novas representações, como as personagens dá série, são resultado de movimentos sociais que vem se avolumando contemporaneamente, rediscutindo o papel da mulher em várias situações – e também na cultura nerd.

Por ter surgido como uma identidade masculina, com um estereótipo midiático masculino, mas que ao mesmo tempo negava a masculinidade, é de se esperar que embates simbólicos, como o que acontece na luta das mulheres para serem reconhecidas como nerds, aconteçam, principalmente quando levamos em conta o momento da luta política feminista (COLICIGNO, 2017, p. 77)

A representação das mulheres no universo nerd tende a se alterar na mesma medida que em outros campos de disputa política, ideológica e simbólica. “As mulheres nerds estão lutando por respeito e representatividade e ganhando cada vez mais visibilidade nos meios nerds” (TRAVANCAS, 2018, p. 13). Entretanto, colocando o foco na análise das duas produções, é visível que a representação feminina e seu papel como mulheres próximas à cultura nerd têm signos muito diferentes. Seja pelo contato com os textos relacionados aos movimentos feministas, seja pela lógica produtiva capitalista que busca nelas potenciais consumidores, há uma grande transformação na sua forma de ser representada.

4.2.1.4 – Os símbolos da cultura nerd Uma das maneiras mais claras de se identificar um nerd hoje é sua forma de simbolizar a ligação com essa cultura. Camisetas, objetos colecionáveis, participação em eventos fazem parte dessa demonstração material de inserção na esfera da cultura nerd. Dentro desse sistema cultural, a obtenção e exibição de um objeto não estão vinculados somente à posse, mas ao pertencimento. Essa ideia se reforça quando analisamos a ideia de fandom, tão presente na cultura nerd.

261 Traduzido do original: “women who declare themselves nerds may find it difficult to gain recognition of their nerd status from male nerds. For instance, in the documentary Triumph of the Nerds, the narrator claims early in the film that interest in computer technology ‘is a boy thing’”. 201

O consumo gera um senso de identidade, de relação próxima com os elementos significantes daquela cultura. O consumo produz sentido:

Assim, na sociedade contemporânea, consumo é ao mesmo tempo um processo social que diz respeito a múltiplas formas de provisão e de bens e serviços e a diferentes formas de acesso a esses mesmos bens e serviços; um mecanismo social percebido pelas ciências sociais como produtor de sentido e de identicidades, independentemente da aquisição de um bem; uma estratégia utilizada no cotidiano pelos mais diferentes grupos sociais para definir diversas situações em termos diretos, estilo de vida e identidades; e uma categoria central na definição da sociedade contemporânea (BARBOSA, 2006, p. 26).

Não que esse seja o único fator para determinar o que significa ser nerd, e como é construída sua identidade cultural, mas o consumo é parte significativa de uma cultura, e na cultura nerd ele tem ainda mais força.

Que fique bem claro que não estou sugerindo que a identidade deriva de um produto ou serviço consumido, ou que, conforme dizem, as pessoas são aquilo que compram. É evidente que o que compramos diz algo sobre quem somos. [...] Mas é monitorando nossas reações a eles, observando do que gostamos e do que não gostamos, que começaremos a descobrir quem “realmente somos” (CAMPBELL, 2006, p. 52-53).

A ideia de Campbell é reforçada por García Canclini:

Em um sentido mais radical, o consumo se liga, de outro modo, com a insatisfação que o fluxo errático dos significados engendra. [...] Consumir é tornar mais inteligível um mundo onde o sólido se evapora. Por isso, além de serem úteis para a expansão do mercado e a reprodução da força de trabalho, para nos distinguirmos dos demais e nos comunicarmos com eles, [...] ”as mercadorias servem para pensar” (GARCÍA CANCLINI, 1996, p. 59).

É possível perceber que a representação do nerd em A Vingança dos Nerds perde um dos seus elementos mais importantes na narrativa do filme. Diferentemente do que é visto em The Big Bang Theory, não existem referências a jogos de RPG, quadrinhos, action figures, Star Wars ou Star Trekk. Para ser nerd naquele filme esses elementos parecem dispensáveis. Há sim, referências a videogame que estão presentes em duas cenas onde Wormser aparece jogando. O estudante também pode ser visto com um collant estampado pelo símbolo do Superman enquanto se exercita com Lamar (Figura 64). Não que esses elementos fossem secundários ou 202

ainda não estivessem dentro da esfera da cultura nerd. Ao contrário, esse já era um tipo de consumo bem estabelecido, mas que não é representado na obra. Esse é um elemento interessante, ainda mais se refletirmos sobre a dissertação de mestrado de Silva (2016) que aplicou mais de 600 formulários de pesquisa com o objetivo – entre outros – criar uma caracterização contemporânea de nerd. Segundo a pesquisadora, “as pessoas se classificam como nerds mais por consumir quadrinhos, filmes, séries etc., do que por ser inteligente ou estudioso” (SILVA, 2016, p. 148). E esse é um elemento central em The Big Bang Theory, já que em quase todos os momentos da série existem referências a produtos considerados pertencentes à cultura nerd. Todos os elementos deixados de fora pelo filme são permanentes na série.

Figura 64: A Vingança dos Nerds (29m52s)

Fonte: Revenge of the Nerds (1984)

O interessante é que esses são signos que parecem fundamentais hoje em dia para simbolizar a esfera da cultura nerd. “Como todo estilo de vida, o nerd busca se diferenciar pelo comportamento, códigos, experiências e objetos, e com isso também carrega ideais de classe, gênero e etnia, bem como valores e discursos da sociedade em que vive” (SANTOS, 2014, p. 54).

4.2.1.5 – Qual é a aparência de um nerd? Um dos itens mais marcantes quando pensamos sobre os participantes da cultura nerd é a sua aparência. Bem estabelecida nos filmes da década de 1980, o estereótipo nerd incluía uma aparência envelhecida nas roupas ou muito formal, óculos e adereços como os protetores de bolso que são usados por Lewis e Gilbert em A Vingança dos Nerds (Figura 65). Isso somado 203

à elementos construtivos dos personagens, como o andar desengonçado e a risada exagerada dos personagens.

Figura 65: Gilbert lowe e Lewis Skolnick

Fonte: http:// bit.ly/2ugU3I7 (acesso em 02/2020)

Essa é uma marca ainda presente no imaginário sobre a aparência dos participantes da cultura nerd. Na pesquisa realizada por Silva (2016), as respostas confirmam o quanto a aparência se relaciona com essa esfera da cultura. Grande parte dos jovens responderam aos questionários dizendo “ser categorizados como nerds por sua aparência, especialmente o uso de óculos, e justamente porque a associação entre certos produtos e gosto pelos estudos e nerds faz com que os outros os considerem como tais” (SILVA, 2016, p. 159). Na série de televisão, os personagens usam várias estratégias para marcar os traços que revelam sua ligação com a cultura nerd. Howard (Figura 66) é o melhor exemplo de uma caracterização que se liga diretamente com os personagens da década de 1980. Porém, mesmo assim, sua aparência é atualizada, juntamente com a postura corporal do personagem.

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Figura 66: Howard Wolowitz

Fonte: http://bit.ly/3bXafiD (acesso em 02/2020)

Mesmo tendo um estilo não usual de se vestir, com calças justas, camisa por dentro da calça e sempre uma fivela chamativa prendendo o cinto, a postura de Howard não é mais semelhante à de Gilbert e Lewis. Ele se apresenta em uma postura de desafio e não mais de timidez. Leonard é o único personagem a usar óculos, uma marca bastante significativa da aparência nerd até então. Fora isso, o físico se veste de maneira casual: jeans, camiseta e uma jaqueta de moletom quase sempre. Sheldon denota um estilo nerd mais atualizado, sempre se apresentando com camisetas que fazem referência a personagens de quadrinhos, cinema ou ilustrações ligadas à ciência e tecnologia. Essa é uma forma mais contemporânea de expressar a natureza nerd por meio códigos contidos nas roupas. “Nota-se uma sensível mudança, tanto na transformação do estereótipo nerd/geek em estilo de vida (roupas, aparência, cultura) como na sua crescente associação com o consumo e não mais exclusivamente com a inadequação social” (SANTOS, 2014, p. 11). Silva destaca que a aceitação dos participantes e consumidores dessa cultura como nerds (estabelecidos na cena final de A Vingança dos Nerds) criou um ambiente de empoderamento nerd, os sujeitos passaram a assumir orgulhosamente esses símbolos.

A partir do momento em que os membros deste grupo decidiram assumir-se como nerds, deram-se a possibilidade de escolher alguns estereótipos positivos para manter, como a falta de conformismo, a 205

competitividade e a busca por novidades, e abandonaram os traços negativos atribuídos aos nerds, como as personalidades introvertidas e antissociais (SILVA, 2016, p. 38).

Tanto é assim, que a cultura nerd passou a contaminar outras esfera culturais, gerando uma categoria que Nugent (2008) chamou de fake nerd, ou seja, aquelas pessoas que assumem uma aparência nerd, para refletirem imagem descolada (cool) ou sintonizada com os lançamentos da cultura pop, mas que não são participantes profundos dos rituais, práticas e consumos nerds, não partilham os mesmos afetos aos objetos da cultura.

Afirmar-se como nerd, hoje em dia, também é uma maneira de dizer que o indivíduo é descolado sem fazer esforço, pois se preocupa mais com seu conteúdo do que com sua aparência. O raciocínio inconsciente por trás desta associação é mostrar que o indivíduo está tão distante do perfil real dos nerds que pode se vestir e falar como eles e, mesmo assim, não pertencer ao grupo (SILVA, 2014, p. 39).

Assim, é possível visualizar o contágio dos textos e signos próprios da cultura nerd em outras esferas. A moda, como um sistema cultura que se conecta a uma infinidade de outros, abastecendo seus próprios textos e os ressignificando constantemente, assumiu também os elementos nerds, e a lógica de produção capitalista os transformou em mercadoria para qualquer consumidor. Como um sistema de retroalimentação, na mídia de massa – refletindo no cotidiano – aparecem novas caracterizações e imagens do tipo nerd.

4.3 – A cultura é nerd

A ideia de nerd se concretizou no cotidiano por meio da cultura da mídia, que propaga textos e signos oriundos daquele sistema cultural. As representações na cultura pop podem não estabelecer uma equivalência real de todos os elementos – identidades, ritos, práticas, afetos e consumos – que compõe a cultura nerd, porém, essas representações reforçam nos receptores uma imagem do que significa ser nerd, ou seja, uma cristalização de seus participantes e de como eles vivem sua cultura. É preciso lembrar, que segundo Kellner (2001) as produções divulgadas pelos meios de comunicação de massa fornecem os signos e símbolos, recursos para a consolidação de uma cultura, dentro da cultura das mídias. A mesma ideia tem respaldo nas discussões de Morin (2011) ao explicar o quão significante é a cultura de massa para dar forma em nossa sociabilidade. 206

Uma vez que a cultura significa “sentidos compartilhados” (HALL, 2016), é possível afirmar que a cultura nerd representa uma forma cultural, que compartilha seus significados por meio da comunicação de massa, espalhando seus textos, criando novos significados ao serem interpretados em outros sistemas, traduzindo-os (LÓTMAN, 1996). Existe uma linguagem própria na cultura nerd, entendida no seu sistema e traduzida em outras esferas. Seus signos e textos ajudam a gerar identidades, ritos, práticas, afetos e consumos, que são elementos necessários para a existência dentro de uma cultura. Além disso, cria representações dentro das produções midiáticas, elemento fundamental para a visualização massiva de uma cultura, afinal, a cultura das mídias tende a colocar em movimento as formas culturais (SANTAELLA, 1996). A cultura nerd existe nesse continuum semiótico (LÓTMAN, 1996), criando e transformando seus textos, aproximando-os de outras esferas e criando novos significados. Em outras palavras, se reconfigura com os contágios de outros sistemas culturais e em função do tempo. Ao observarmos a cultura nerd,

é possível perceber que ela se baseia em uma variedade de sistemas culturais e que, ao tensiona-la, estabelecem um movimento paradoxal de, por um lado, concretizar figura e identidade do sujeito definido como nerd, e, por outro, abalar as estruturas desse sistema com outros que ajudam a construí-lo e defini-lo (VARGAS; ROCHA, 2019, p. 38).

Suas transformações são inerentes ao seu caráter dinâmico de cultura percebido nos contatos, transformações e na ressignificação de seus textos. “Tomados separadamente, nenhum deles tem capacidade para trabalhar. Eles só trabalham submersos em um continuum semiótico, completamente ocupado por formações semióticas de vários tipos e que estão em vários níveis da organização” (LÓTMAN, 1996, p. 11)262. Como consequência, novos participantes se sentem capazes de ressignificar seus textos e utiliza-los em suas práticas de vida diárias, agrega-los a suas identidades, dar novos significados a eles. A cultura nerd gera pertencimento a seus participantes, movimento aglutinador em torno de seus textos e signos.

A pertença cria o mundo em que podemos existir, ela dá forma às nossas percepções e nos oferece os lugares onde podemos desenvolver nossas competências. Recorta no caos do reais formas percebidas, jogos de

262 Traduzido do espanhol: “Tomado por separado, ninguno de ellos tiene, en realidad, capacidad de trabajar. Sólo funcionan estando sumergidos en un continuum semiótico, completamente ocupado por formaciones semióticas de diversos tipos y que se hallan en diversos niveles de organización”. 207

papéis que nos ensinam a familiaridade, nosso primeiro tranquilizante cultura (CYRULNIK, 2007, p. 84).

É “esse sentimento de pertença, que estrutura a percepção do meio e as condutas a adotar nele, cria, ao mesmo tempo, o sentimento de continuidade interna e intergeracional” (CYRULNIK, 2007, p. 84). A televisão, o cinema ou outros formatos da produzida pelas mídias ampliam a capacidade de espalhamento desses textos, e de reforço desse sentimento de pertencimento. É importante enfatizar, contudo, que esses signos não são estáticos, suas representações se transformam em função das mudanças na cultura, e a representação do nerd é tão modificada quanto a cultura em que ela se apoia. O próprio conceito de cultura é apoiado na ideia de dinamicidade e transformação. Cultura significa dar sentido comum, compartilha-lo e entende-lo, sem que esse sentido seja estático, mas, ao contrário, esteja em constante transformação e disputa. Como supracitado, participar de uma cultura é ser capaz de dar significado aos seus textos, dar sentido a suas mensagens, partilhar sua linguagem, dentro de um sistema de representação. A cultura nerd não existe sozinha e não tem significados verdadeiros. Ela é entendida em um sistema complexo de signos e textos em constante transformação, mas, entendidos por um conjunto de indivíduos que participam dessa cultura, que decodificam seus códigos e dão sentido a eles. Assim, é possível perceber que a cultura nerd carrega em si a essência da dinâmica transformadora da cultura. A cultura nerd – criada em seus signos, rituais, representações e práticas, afetos e consumos – por meio da assimilação e contágio de elementos pertencentes à outros sistemas culturais, e a transformações sociais que a rodeia, contém todos os elementos que caracterizam uma cultura, e é representada na mídia de massa, por personagens e situações que reforçam e abalam, paradoxalmente, esse perfil nerd, distribuindo no imaginário uma ideia cristalizada da cultura nerd e transformando esses elementos em novas produções.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

All your questions can be answered, if that is what you want. But once you learn your answers, you can never unlearn them. ― Neil Gaiman, American Gods

Cada ser humano em sociedade é criador e consumidor de cultura. Nossa habilidade de aprender, reproduzir e criar signos e linguagens é o que nos torna animais únicos dentro da diversidade de vida complexa no planeta. A cultura é o resultado dessa capacidade de olhar além da materialidade e da nossa própria fisiologia e atribuir valor e significado para os elementos mais intangíveis do nosso cotidiano. Na contemporaneidade, a relação entre indivíduos se tornou ainda mais complexa, já que as sociedades modernas se tornaram sinônimo de mudança constante (HALL, 2006). E esse ritmo acelerado nas trocas e transformações modificou nossa própria percepção e definição de identidade. Resumir ou definir estaticamente o que é uma pessoa ou grupo se tornou uma tarefa ineficaz. Ninguém mais é algo o tempo todo e em qualquer situação. O que Hall (2006) chamou de identidade pós-moderna.

A identidade torna-se uma celebração móvel: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam [...]. O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos (HALL, 2006, p. 12-13).

O pensador jamaicano ainda estende esse pensamento afirmando que é uma fantasia assegurar que possamos assumir, na contemporaneidade, uma identidade única e imutável. Ao contrário, “à medida que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente” (HALL, 2006, p. 13). É dessa forma que entendemos a representação dos personagens nerds e sua cultura. Eles estão fixados em um momento histórico e são transportados para a realidade pelos processos da comunicação. O resultado disso é que uma grande quantidade de pessoas pode, em um dado tempo, ou um dado contexto, se identificar com aquela representação. Todos nós podemos assumir um caráter nerd em uma atividade ou momento; e podemos nos afastar completamente dele, em outros. 209

Os nerds são, portanto, um conjunto de características que se recriam cotidianamente, refletidos por sua capacidade de assimilar e transmitir signos diversos, no seu consumo, indumentária, vocabulário e uma infinidade de ritos e práticas. Porém, os meios de comunicação contribuem para que essas características se cristalizem. No cinema e na televisão, o nerd ganhou uma aparência estática e arquetípica, típica das linguagens das mídias, que se modificou com o passar do tempo e foi visto em janelas do tempo pelas produções da mídia. A preocupação sempre foi entender como a cultura é representada em obras de distribuição massiva, e como os elementos que marcam as transformações na cultura são mostrados. Este trabalho se propôs a estudar duas obras separadas quase três décadas no tempo. Duas produções americanas que apresentavam esse perfil estático da cultura nerd, seus personagens e situações. O objetivo foi investigar os aspectos que identificam a cultura nas duas produções e refletir como a representação da cultura nerd se transformou, e em quais elementos essas transformações poderiam ser visualizadas. Um dos elementos mais significativos nesta pesquisa foi traçar uma história da cultura nerd, de onde vieram seus personagens e suas representações na cultura de massa, pesquisa pouco existente em língua portuguesa. Outro foi traçar um perfil que caracterize o que significa ser nerd. Um trabalho árduo e, ouso dizer, pouco efetivo, já que a identificação de um grupo ou um indivíduo, como a própria cultura, não é estanque, sendo reprogramada a todo o momento. Além disso, suas representações na cultura midiática projetam uma imagem estanque e estereotipada da esfera cultural nerd. “Primeiramente, definir o que é nerd é uma tarefa bastante complexa, por ser uma definição que creio se aproxima mais de uma prática relacionada a mecanismos performáticos, ativados por seus sujeitos, do que por uma classificação identitária mais rígida” (SILVA, 2016, p. 130). Ainda assim, foi possível fazer um retrato do que significa ser nerd, mesmo que esse significado se estabeleça como categoria ambígua: ora sendo o resultado da intersecção inteligência, obsessão e inaptidão social, ora sendo entendida como reflexo de seus consumos e interesses. Entre outras coisas, ser nerd é se posicionar em enfrentamento ao ideal de masculinidade hegemônica que ainda persiste na contemporaneidade, demonstrar profundo interesse em produções da cultura pop, consumir itens considerados menos adultos, trocar modalidades de diversão dominantes pelo interesse menos comum em ciência, tecnologia ou história. Ademais, conhecer e/ou participar de um fandom; se vestir com código próprio, inundado de referências da cultura pop, ciências e tecnologia; frequentar certos espaços, como os ambientes ligados à pesquisa, estudo e aos lugares de consumo de seus itens de interesse 210

como em lojas de quadrinho e colecionáveis; adquirir certos conhecimentos e praticar certos rituais, como uma expressão ou saudação tirados de histórias da cultura pop (quadrinhos, cinema e televisão), jogar RPG, ou participar de grupos para discutir as obras de Tolkien e Douglas Adams . Mesmo assim, esses itens não abraçariam completamente a gama de possibilidades relativas à identidade nerd. Nenhum nerd incorpora todos esses itens em sua identidade e práticas, ao mesmo tempo, muitos deles são familiares a indivíduos fora da cultura nerd: “Se aprendemos algo com nossa pesquisa, é que ser nerd é mais que uma classificação: é um estado de espírito” (SILVA, 2016, p. 156). Mesmo por que, os limites da cultura nerd foram expandidos, seus signos alcançaram lugar dentro da grande cultura pop mundial – mainstream – criaram novas significações e foram traduzidos para novas linguagens. Essa é a potência da cultura pop.

Os meandros e as apropriações que sustentam o pop como o cerne da experiência moderna e sinônimo da cultura da mídia; e que faz com que as referências da cultura pop se expandam para além da sua matriz, ligada ao entretenimento, sustentando os desejos transnacionais de cosmopolitismo nos mais diferentes recônditos do planeta (SÁ; CARREIRO; FERRARAZ, 2015, p. 9).

O “triunfo dos nerds” ganha ainda mais velocidade e força numa sociedade hiper conectada e saturada de produções midiáticas. A cultura nerd se liga diretamente com o tipo de vida que levamos e o tipo de indivíduos que nos tornamos. Por isso, Woo (2018) classifica a cultura nerd como fenômeno sociocultural: “A cultura geek se tornou objeto de um significativo interesse público porque pode servir como ponto focal de uma série de tensões-chave na cultura contemporânea” (WOO, 2018, p. 195)263. As ideias descritas por Jenkins (1992; 2009) de “cultura participativa” e “convergência” encontram espaço de desenvolvimento dentro das práticas da cultura nerd, que têm se tornado cada vez mais comuns no cotidiano de outras culturas. Há nesse objeto uma variedade de tópicos e temas para serem entendidos e debatidos. As discussões acerca da cultura nerd, suas práticas e participantes não se encerram, ao contrário, se multiplicam a partir deste trabalho. Discussões sobre questões de gênero podem ser aprofundadas, já que me parecem um tema interessante e importante no debate sobre as práticas da cultura nerd.

263 Traduzido do original: “Geek culture has become a subject of significant public interest precisely because ir can be made to serve as focal point for a series of key tensions in contemporary culture”. 211

Discussões sobre raça e negritude também parecem encontrar nesse objeto solo fértil para novas pesquisas. Ao analisar o filme de 1985, Lori Kendall já reflete sobre a falta de representatividade na obra e seu afastamento com relação a discussões pertinentes aos movimentos sociais daquele período: “mas tão importante quanto seu tom condescendente em relação aos negros, Revenge of the Nerds também afasta especificamente as reivindicações dos afro-americanos por direitos civis” (KENDALL, 1999, p. 266)264. A série The Big Bang Theory também passa ao largo dessa discussão; são raros personagens negros nos 279 episódios. Essas oportunidades de pesquisa não irão cessar. A produção voltada para o público nerd não dá sinais de arrefecer; ao contrário, busca em novos participantes potenciais consumidores, que parecem dispostos a engordar as fileiras dos consumidores desses produtos na cultura pop. Em novembro de 2018, o mais ouvido podcast brasileiro, o Nerdcast, alcançou a marca de 1 bilhão de downloads em seus 13 anos de publicação; assim, se tornou o 3º podcast mundial a atingir tal marca265, produzindo conteúdo que se encaixa exatamente no perfil que descrevemos: quadrinhos, cinema, história e ciências. A cultura nerd assumiu um papel de destaque dentro das esferas culturais que orbitam a cultura midiática, ela se enquadra nos processos culturais contemporâneos, engaja seus participantes e, recentemente, passou a distribuir seus textos com enorme eficiência, sendo traduzindo para outros sistemas culturais. Sem dúvidas, a cultura nerd congrega todos os elementos de uma cultura, produz signos e textos ativos e se ressignifica no contato com outras esferas culturais. De forma dinâmica, se transforma, cria ritos e práticas, ajuda a gerar identidades e a construir a realidade.

264 Traduzido do original: "But as important as its general condescending tone towards blacks, Revenge of the Nerds also specifically displaces claims of African Americans for civil rights". 265Disponível em: encurtador.com.br/KOQS0 (acessado em 02/2020) 212

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