UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ARTES

IRANI DA CRUZ CIPPICIANI

THERU-K-KOOTHU: UM OLHAR SOBRE AS CULTURAS TEATRAIS POPULARES DO SUL DA ÍNDIA

THERU-K-KOOTHU: A LOOK AT THE FOLK THEATRE CULTURES OF SOUTH

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IRANI DA CRUZ CIPPICIANI

THERU-K-KOOTHU: UM OLHAR SOBRE AS CULTURAS TEATRAIS POPULARES DO SUL DA ÍNDIA

THERU-K-KOOTHU: A LOOK AT THE FOLK THEATRE CULTURES OF SOUTH INDIA

Tese apresentada ao Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Doutora em Artes da Cena, na área de Teatro, Dança e Performance.

Thesis presented to the Institute of Arts of the University of Campinas in partial fulfillment of the requeriments for the degree of Doctor in Scene Artes: Theatre, Dance and Performance.

ORIENTADOR: Prof. Dr. Cassiano Sydow Quilici

Este trabalho corresponde à versão final da tese defendida pela aluna Irani da Cruz Cippiciani, e orientada pelo Prof. Dr. Cassiano Sydow Quilici.

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FAPESP e CAPES, processo nº 2016/10719-0, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo.

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COMISSÃO EXAMINADORA DA DEFESA DE DOUTORADO

IRANI DA CRUZ CIPPICIANI

ORIENTADOR: PROF. DR. CASSIANO SYDOW QUILICI

MEMBROS:

1. PROF. DR. CASSIANO SYDOW QUILICI

2. PROF(A). DR(A). MARÍLIA VIEIRA SOARES

3. PROF(A). DR(A). MARIANA BARUCO MACHADO ANDRAUS

4. PROF(A). DR(A). JOANA PINTO WILDHAGEN

5. PROF(A). DR(A). ANA PAULA IBAÑEZ

Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas.

A ata de defesa com as respectivas assinaturas dos membros da comissão examinadora encontra-se no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertação/Tese e na Secretaria do Programa da Unidade.

DATA DA DEFESA: 31.01.2020

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DEDICATÓRIA

À rica cultura tradicional da Índia, clássica e folclórica, que me ofereceu um caminho.

A Amman por me abrir os olhos para uma Índia até então ignorada.

Aos muitos companheiros de jornada, de hoje e de ontem.

Ouçam, ouçam todos: a concha começa a soar. O mundo está em constante mudança E é preciso aprender a mudar com ele.

Canção folclórica de Tamil Nadu Versão adaptada por Na Muthuswamy Fundador do Koothu-P-Pattarai

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AGRADECIMENTOS

À FAPESP e CAPES, processo nº 2016/10719-0, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001 Cassiano Sydow Quilici, pela orientação serena Mr. Na. Muthuswamy (in memoriam), pelo primeiro contato com o Theru-K-Koothu Edilson Castanheira Dra. Mariana Baruco Machado Andraus – Instituto de Artes, Unicamp Dr. Matteo Bonfitto – Instituto de Artes, Unicamp Dra. Marília Vieira Soares – Instituto de Artes Unicamp Dr. Eduardo Okamoto - Instituto de Artes, Unicamp Dra. Verônica Fabrini - Instituto de Artes, Unicamp Dra. Joana P. Wildhagen – UFAL Dra. Ana Paula Ibañez Dr. K. R. Rajaravivarma – Department of Performing Arts, Pondicherry University Dr. A. Chellaperumal – Department of Anthropology, Pondicherry University Dr. V. Arumugham - Department of Performing Arts, Pondicherry University Durai Elumalai e Suresh Venda – Sri Thantoniamman Therukkothu Nadaga Sabha, Akkur village Hanne M. De Bruin e P. Rajagopal – Kattaikkuttu Sangam, Pujarasantankal Village Sambandan e Palani Murugan – Purisai Duraisamy Kannapa Thambiram Parambarai Theru Koothu Manran Thanjavur-K-Koothu Group - Aarsuthippattu Village V. Parthiban – KSR College of Education Koothu-P-Pattarai – theatre company, Rustom Bharucha

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RESUMO

Esta tese é voltada ao estudo de uma forma popular de teatro de rua da Índia: o Theru-k-koothu, tendo como objeto de pesquisa o estudo da cultura teatral que o caracteriza, buscando compreender o fenômeno teatral nos aspectos cultural, social e histórico e suas imbricações na vida comunitária. A pesquisa parte da observação desta forma teatral, de origem rural e popular, tendo como eixo norteador seu evidente envolvimento com toda a cultura ritual local. Avança, então, para a compreensão e análise de sua estrutura de organização e funcionamento como a forma dramática mais importante do estado de Tamil Nadu e se encerra apontando a influência e reverberação do Theru-K-Koothu na cena teatral contemporânea, dentro do estado e no exterior. Deste modo, pretende-se oferecer um primeiro contato com esta forma de teatro folclórico da Índia, estudo inédito no Brasil e em Língua Portuguesa, abarcando aspectos antropológicos e avançando em direção aos aspectos cênicos que se sedimentam, não apenas no campo teatral, mas em todo o espectro da vida comunitária, num processo complexo, orgânico e fluído entre vida e arte.

PALAVRAS-CHAVE: Índia, Cultura Folclórica, Oriente, Teatro Ritual, Interculturalismo.

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ABSTRACT

This thesis is dedicated to the study of a popular form of theater of India: Theru-k-koothu, having as object of research the study of theatrical culture that characterizes it, seeking to understand the theatrical phenomenon in cultural, social and historical aspects and their impact in common life. The research is based on the observation of this theatrical form, of rural and folk origin, having as guiding axis its evident involvement with all the local ritual culture. It then advances to the understanding and analysis of its structure of organization and functioning as the most important dramatic form of the state of Tamil Nadu and ends by pointing out its influence and reverberation of Theru-K-Koothu in the contemporary theatrical scene, within the state and abroad. The research intends to offer a first contact with this form of Indian folk theater in , study unheard in Portuguese language, covering anthropological aspects and advancing toward the sedimentation of its dramatic aspects, not only in the theatrical field, but in the entire spectrum of community life in a complex, organic and fluid process between life and art.

KEY WORDS: India, Folk Culture, East, Ritual Theatre, Interculturalism.

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ÍNDICE DE FIGURAS

FIGURE 1 – PREPARANDO A MAQUIAGEM. INTÉRPRETE PARTHIBAN V. COMPANHIA DA THERUKOOTHU DA REGIÃO DE KONGU, TAMIL NADU...... 27 FIGURE 2 - CRONOLOGIA DO TEATRO INDIANO CLÁSSICO E FOLCLÓRICO...... 35 FIGURE 3 - MAPA DA ÍNDIA...... 38 FIGURE 4 - OS DIFERENTES GÊNEROS DRAMÁTICOS...... 44 FIGURE 5 - O TEATRO DE BONECOS DA IDADE MÉDIA NO OCIDENTE E O MANIPULADOR DE BONECOS CHINÊS. EM AMBAS AS TRADIÇÕES, VEMOS PREVALECER A IDEIA DO ‘HOMEM TEATRO’...... 46 FIGURE 6 - EXEMPLO CONTEMPORÂNEO DE POORVARANGA EM MONTAGEM DE RUA DA COMPANHIA KOOTHU-P-PATTARAI. COM: GURU SOMASUNDARA ENCENANDO GANESH E PRAKASH (IN MEMORIAM) A FRENTE...... 72 FIGURE 7 – FIGURINOS, ADEREÇOS E MAQUIAGEM DE UM ATOR KOOTHU...... 74 FIGURE 8 – EXEMPLO DE KOLAM FEITO EM FRENTE A UMA CASA NA CIDADE DE CHENNAI EM COMEMORAÇÃO AO PONGAL OU ANO NOVO NO ESTADO DE TAMIL NADU, COMEMORADO NO MÊS DE ABRIL...... 75 FIGURE 9 - EXEMPLO DE VASUDEVA NA CIDADE DE CHENNAI EM 2006. NA FOTO APAREÇO AO LADO DA ATRIZ RUDRA, DA COMPANHIA KOOTHU-P-PATARRAI E DO ARTISTA POPULAR QUE ENCARNA ...... 86 FIGURE 10 - MAQUIAGEM. INTÉRPRETE PARTHIBAN V. COMPANHIA DA THERUKOOTHU DA REGIÃO DE KONGU, TAMIL NADU...... 92 FIGURE 11 - VISTA DE TEMPLO NA ÁREA RURAL DE PONDICHERRY, TAMIL NADU, ÍNDIA...... 95 FIGURE 12 - SRI THANTONIAMMAN DO TEMPLO DE MESMO NOME, AKKUR VILLAGE...... 96 FIGURE 13 – EXEMPLO DE AMMAN OU DEUSA MÃE EM UM TEMPLO NA ÁREA RURAL DE PONDICHERRY/TAMIL NADU...... 97 FIGURE 14 - KOOTHU TITLR: TAPASU NO PADAVATTAMMAM KOIL KUMBABISHEGAM (CERIMÔNIA DA RENOVAÇÃO)...... 119 FIGURE 15 – MATÉRIA DE JORNAL DE 2008, SOBRE FESTIVAL REALIZADO NA VILA DE AKKUR...... 120 FIGURE 16 - APRESENTAÇÃO DO EPISÓDIO DO 'A MORTE DE KICHAKA' OU ‘KICHAKA VADHA’, COM A COMPANHIA SRI THANTONIAMMAN THERUKKOOTHU NADAGA SABHA, DA VILA DE AKKUR, COM DIREÇÃO DE D. ELUMALAI. AQUI OS ATORES ESTÃO REALIZANDO O VANDANAM/POORVARANGA, A ABERTURA DO ESPETÁCULO...... 121 FIGURE 17 – CENAS DO EPISÓDIO “O DESENROLAR DO SAREE DE DRAUPADI”, REALIZADO PELOS ATORES DA COMPANHIA KATAIKKUTTU SANGAM, NA SEDE DO GRUPO, EM 31/12/2018. NELE, VEMOS DRAUPADI SENDO HUMILHADA, PRIMEIRO POR , SENTADO AO FUNDO, DEPOIS POR DUCHASSANA, PUXANDO-A PELOS CABELOS. NA TERCEIRA FOTO, VEMOS O ÁPICE DO EPISÓDIO O SAREE SENDO DESENROLADO. CERTAMENTE, UM DOS EPISÓDIOS MAIS IMPORTANTES E EMOCIONAIS DO ESTILO, UMA VEZ QUE DRAUPADI REPRESENTA TODAS AS MULHERES DA VILA, A RAINHA ULTRAJADA DO MAHABHARATA E A DEUSA MÃE PROTETORA. A PECULIARIDADE, NESTE CASO, É QUE O PAPEL DE DRAUPADI ESTÁ SENDO REPRESENTADO POR UMA MULHER, A JOVEM ATRIZ S. TAMILARASI, E NÃO POR UM ATOR ESPECIALIZADO EM PAPÉIS FEMININOS...... 131 FIGURE 18 – KATTAI VESHAM, INTÉRPRETER PARTHIBAN V., COMPANHIA DA THERUKOOTHU DA REGIÃO DE KONGU, TAMIL NADU...... 137 FIGURE 19 - MAPA DA ÍNDIA COM ESTADO DE TAMIL NADU EM EVIDÊNCIA...... 138 FIGURE 20 - DISTRITOS DE VELLORE E TIRUVANNAMALAI, RESPECTIVAMENTE. ANTIGO DISTRITO NORTH ARCOT...... 139 FIGURE 21 - DISTRITOS DE CUDDALORE E VILLUPURAM, RESPECTIVAMENTE. ANTIGO DISTRITO SOUTH ARCOT...... 139 FIGURE 22 - DISTRITO DE KANCHIPURAM ONDE ESTÁ SEDIADO O KATTAIKKUTTU SANGAM...... 140 FIGURE 23 – AQUI SE PODE VER O KATTAI CAMANKAL COMPLETO, COM ADORNO PRINCIPAL DA CABEÇA, O PEITORAL E AS OMBREIRAS. ESTE TIPO DE ORNAMENTAÇÃO SÓ EXISTE NO THERU-K-KOOTHU, O QUE O DIFERE DE OUTRAS FORMAS DE KUTTU (DRAMA) DO ESTADO. PERSONAGEM: MAHAVEERAN KATTAI VESHAM, INTÉRPRETE: PARTHIBAN V., COMPANHIA DA THERUKOOTHU DA REGIÃO DE KONGU, ESTILO DO SUL, TAMIL NADU...... 147

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FIGURE 24 – NA PAREDE DA SEDE DA COMPANHIA DE PURISAI, SUA LINHAGEM ESTAMPADA. AO CENTRO, O MENINO VEERASAMY THAMBIRAN, FUNDADOR DA COMPANHIA, BISAVÔ DE PALANI MURUGAN. À DIREITA ESTÃO OS MEMBROS DA FAMÍLIA THAMBIRAN E À ESQUERDA, OS MÚSICOS – ADVINDOS DE OUTRAS CASTAS E FAMÍLIAS...... 153 FIGURE 25 - DIVULGAÇÃO DO EPISÓDIO "O DESENROLAR DO SAREE DE DRAUPADI" FEITO PELOS PARTICIPANTES DO WORKSHOP DE THERU-K-KOOTHU, CONDUZIDO PELA PURISAI, EM SUA SEDE, EM MARÇO/2019...... 163 FIGURE 26 – PALANI MURUGAN TRABALHANDO O TEXTO DE UM EPISÓDIO COM ASPIRANTES A INGRESSAR NA COMPANHIA DE PURISAI...... 164 FIGURE 27 – OS VATTIYARS (LÍDERES) DAS COMPANHIAS DE AKKUR E PURISAI, RESPECTIVAMENTE: D. ELUMALAI, REPRESENTANDO KRISHNA NO EPISÓDIO DO CASAMENTO DE ABHIMANIYU E KANNAPA SAMBANDAN, AO LADO DE PALANI MURUGAN, SEU SOBRINHO-GENRO E FUTURO SUCESSOR...... 166 FIGURE 28 – NA PRIMEIRA FOTO VEMOS UM KATTAI VESHAM, REPRESENTANDO O PERSONAGEM BHIMA, RECEBENDO AJUDA DO KATTIYAKARAN PARA COLOCAR SEU KATTAI DE CABEÇA. NA SEGUNDA FOTO, VEMOS O ATOR ESPECIALIZADO EM PAPÉIS FEMININOS, O PEN VESHAM, SE PREPARANDO PARA ENCARNAR DRAUPADI. COMPANHIA SRI THANTONIAMMAN THERUKKOOTHU NADAGA SABHA. NO VILAREJO DE AKKUR. FOTOS: EDILSON CASTANHEIRA...... 171 FIGURE 29 – NA PRIMEIRA FOTO VEMOS O KATTIYAKARAN EM CENA COM O KATTAI VESHAM, REPRESENTANDO O REI, PAI DE ABHIMANIYU. NA SEGUNDA FOTO, VEMOS UM TIRES VESHAM, REPRESENTANDO KRISHNA, UM PEN VESHAM, INTERPRETANDO SUNDARI, NOIVA DE ABHIMANIYU E O KATTIYAKARAN. COMPANHIA SRI THANTONIAMMAN THERUKKOOTHU NADAGA SABHA. NO VILAREJO DE AKKUR...... 171 FIGURE 30 – AQUI PODEMOS VER DOIS KATTAI VESHAMS E AS SIMILARIDADES E DIFERENÇAS NA ORNAMENTAÇÃO E MAQUIAGEM. O PRIMEIRO É DA COMPANHIA KATTAIKKUTU SANGAM, ESTILO PERUNKATTUR. O SEGUNDO É DA COMPANHIA COMPANHIA SRI THANTONIAMMAN THERUKKOOTHU NADAGA SABHA...... 172 FIGURE 31 – ENTRE OS KATTAI VESHAMS E PEN VESHAM, AO CENTRO, ESTÁ O KATTIYAKARAN, DA COMPANHIA KATTAIKKUTTU SNGAM, REPRESENTADO POR DURAISAMY, FILHO DE P. RAJAGOPAL, AO FINAL DO EPISÓDIO DRAUPADI VASTRAPAHARANAM...... 172 FIGURE 32 – NESTA FOTO VEMOS P. RAJAGOPAL, FUNDADOR DO KATTAIKKUTTU SANGAM LIDERANDO O CANTO JUNTO À ORQUESTRA FORMADA POR ALUNOS DA INSTITUIÇÃO. AQUI É POSSÍVEL VER O PETTI, A MUKAVINAI, A MRIDANGAM-DHOLAK E A TALAM NAS MÃOS DE UM DOS ALUNOS, EM PÉ, AO FUNDO. OS DEMAIS ALUNOS PARTICIPAM DO CORO, RESPONDENDO À CHAMADA DO VATTIYAR RAJAGOPAL...... 174 FIGURE 33 – IMAGEM DE UM GUARDIÃO QUE PROTEGE A ENTRADA DOS TEMPLOS OU A ENTRADA DO SANCTU SANCTORUM DE DETERMINADAS DIVINDADES REGIONAIS, MUITAS DELAS, AMMANS. APARECE COM MUITA FREQUÊNCIA NOS TEMPLOS DO SUL DA ÍNDIA, EM ESPECIAL, NOS TEMPLOS DAS ÁREAS RURAIS. ESTE É DE UM TEMPLO NA ZONA RURAL DA CIDADE DE PONDICHERRY E É NÍTIDA SUA SEMELHANÇA COM AS VESTIMENTAS DOS KATTAI VESHAMS DO THERU-K-KOOTHU E COM A POSE QUE ELES EXECUTAM QUANDO SE SENTAM NA PLATAFORMA ONDE FICAM OS MÚSICOS E O CORO...... 175 FIGURE 34 – NESTA FOTO, VÊ-SE A TRADICIONAL MÁSCARA DE NARASIMHA, NUMA VERSÃO MODERNA DO EPISÓDIO PRAHALADA CHARITRAM ENCENADO PELO KOOTHU-P-PATTARAI. CONCEPÇÃO: K. R. RAJARAVIVARMA. DIREÇÃO: N. MUTHUSWAMY...... 185 FIGURE 35 – VERSÃO MODERNA DO ÉPICO “PRAHALADRA CHARITRAM” ENCENADO PELO GRUPO KOOTHU- P-PATTARAI, NA SUA SEDE EM 2007, DURANTE REALIZAÇÃO DE INTERCÂMBIO CULTURAL JUNTO AO GRUPO CALDEIRÃO (BRASIL). ESTA É A CENA ÁPICE DO EPISÓDIO, QUANDO NARASIMHA MATA HIRANIYA KASIPPU, PAI DO MENINO PRAHALADA QUE APARECE DE JOELHOS. TRATA-SE DE UMA RELEITURA DA COMPANHIA DE UMA TRADICIONAL ENCENAÇÃO THERU-K-KOOTHU, ACRESCIDA DE ELEMENTOS TEATRAIS MODERNOS. A CONCEPÇÃO GERAL É DE K. R. RAJARAVIVARMA. A DIREÇÃO É DE NA. MUTHUSWAMY E OS ATORES SÃO VIDAARTH (NARASIMHA), HARIHARAN GANAPATHY (HIRANIYAN) E SOMASUNDARAM (PRAHALADA)...... 190 FIGURE 36 - ESTUDOS RÍTIMICOS DESENVOLVIDOS EM WORKSHOP COM O GURU DR. SHARAD PANDYA, DA PURVA SCHOOL OF BHARATANATYAM, NO ESPAÇO CALDEIRÃO, EM 23/11/2019...... 197 FIGURE 37 – SOBRE O APRENDER-FAZENDO-OBSERVANDO. AQUI VEMOS O ATOR QUE FAZ O KATTIYAKARAN, AJUDANDO O ATOR QUE FAZ O KATTAI VESHAM BHIMA COLOCAR SEU ORNAMENTO DE CABEÇA, O CIKAREK, SENDO OBSERVADO DE PERTO POR OUTRO JOVEM ATOR DA COMPANHIA...... 202

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FIGURE 38 – NOTA-SE, NESTA FOTO, QUE ABAIXO DO CELULAR ESTÁ O CADERNO DE ANOTAÇÕES UTILIZADO POR PALANI MURUGAN PARA CONDUZIR O PROCESSO DE TREINAMENTO-ENSAIO COM OS ASPIRANTES A ATORES DA COMPANHIA. E QUE UM OUTRO CADERNO, TAMBÉM BASTANTE ROBUSTO, APARECE NAS MÃOS DE UM SEGUNDO ATOR. FOTO: EDILSON CASTANHEIRA...... 203 FIGURE 39 – HANNE M. DE BRUIN E P. RAJAGOPAL, FUNDADORES E DIRETORES DO KATTAIKKUTTU SANGAM...... 204 FIGURE 40 – ATORES DA COMPANHIA SRI THANTONIAMMAN THERUKKOOTHU NADAGA SABHA SE PREPARANDO PARA APRESENTAÇÃO. VÊ-SE AS MAQUIAGENS E OS UTENSÍLIOS DISPOSTOS NO CHÃO E, NO LADO DIREITO DA FOTO, ALGUNS KATTAIS ENFEITADOS COM GUIRLANDAS. É COMUM QUE ANTES DE INICIAR O PROCESSO DE MAQUIAGEM, OS ARTISTAS ACENDAM UMA LAMPARINA, FAÇAM UMA PEQUENA ORAÇÃO OU CANTO ACOMPANHADO PELOS MÚSICOS, COMO FORMA DE RITUALIZAR O INÍCIO DA PREPARAÇÃO DOS ATORES, COMO SE PODE VER AQUI. O KATTAI, NESTE CASO, É ALÇADO A POSIÇÃO DE SÍMBOLO RITUAL, IMAGEM CONSAGRADA E REVERENCIADA, NO ALTAR IMPROVISADO...... 207 FIGURE 41 – NESTA FOTO, VEMOS O ATOR MAIS EXPERIENTE DA COMPANHIA, QUE IRÁ REPRESENTAR O PERSONAGEM BHIMA. A COLORAÇÃO BASE É UM VERDE-AZULADO. PODE-SE VER O MAL NA COR LARANJA, COM DETALHES EM PRETO (LINHAS) E PONTOS BRANCOS...... 208 FIGURE 42 – NESTA FOTO, O ATOR QUE INTERPRETA KICHAKA, UM DEMÔNIO, USA COMO COR BASE O LARANJA. SEU MAL TAMBÉM É DIFERENTE DOS DEMAIS, POIS NÃO É FEITO POR UMA LINHA CONTÍNUA OU PONTILHADA, MAS POR DOIS DESENHOS EM FORMA DE GOTA. AINDA É POSSÍVEL VER OUTROS ELEMENTOS COMO AQUELES QUE DEFINEM O DESENHO DA METADE INFERIOR DO ROSTO, E AQUELES QUE, JUNTO COM O MAL, DEFINEM O DESENHO DA METADE SUPERIOR DO ROSTO, FEITOS PARA VALORIZAR OS OLHOS...... 209 FIGURE 43 – NESTA FOTO VEMOS COM CLAREZA TANTO O KIRUTA, QUANTO OS BIGODES POSTIÇOS E UMA SUTIL VALORIZAÇÃO DOS LÁBIOS. TAMBÉM SE PODE VER O TRADICIONAL NAMAM VAISHNAVA. ATORES: PALANI MURUGAN E OMID RAWENDAH. COMPANHIA: PURISAI NO THÉÂTRE DU SOLEIL...... 211 FIGURE 44– APRESENTAÇÃO DE BHARATANATYAM EM PERUMBAVOOR, KERALA, 2005...... 212 FIGURE 45 – NESTA FOTO, VEMOS AO LADO DO ATOR QUE SE MAQUIA COMO KICHAKA, O ATOR QUE FARÁ UMA PERSONAGEM FEMININA SECUNDÁRIA, COM UMA BASE ROSA-AMARELADA, LÁBIOS VERMELHOS, BOCHECHAS ROSEADAS, SOBRANCELHAS PINTADAS DE PRETO E UM BINDHI VERMELHO ENTRE AS SOBRANCELHAS. COMPANHIA DE AKKUR. FOTO: EDILSON CASTANHEIRA...... 212 FIGURE 46 – NESTA FOTO, VEMOS UM PEN VESHAM, PERSONAGEM FEMININO COMPLETAMENTE CARACTERIZADO. NOTA-SE A TENDÊNCIA AO NATURALISMO E AO USO DE POUCOS ORNAMENTOS, RESTANDO APENAS ALGUMAS POUCAS JOIAS E O CABELO POSTIÇO...... 213 FIGURE 47 – NESTA FOTO, VEMOS O ATOR QUE FARÁ O KATTIYAKARAN SE MAQUIANDO COM UMA BASE ROSA-ALARANJADA, UM BIGODE PINTADO DE BRANCO DE UM LADO E VERMELHO DO OUTRO (ASPECTO CLOWNESCO), COM SOBRANCELHAS VALORIZADAS E UM POSSÍVEL NAMAM SHIVAÍSTA NA TESTA. COMPANHIA DE AKKUR...... 213 FIGURE 48 – KATTIYAKARAN DA COMPANHIA SRI THANTONIAMMAN THERUKKOOTHU NADAGA SABHA EM APRESENTAÇÃO REALIZADA NA VÉSPERA DO NATAL, EM NEELANKARAI, CHENNAI, TAMIL NADU, 2018. FOTO: EDILSON CASTANHEIRA...... 214 FIGURE 49 – FORMATOS E ORNAMENTAÇÃO DOS KIRITAMS NAS COMPANHIAS AKKUR, KATTAIKKUTTU E PURISAI. OBSERVANDO AS TRÊS IMAGENS, NOTA-SE QUE ELES SÃO BEM SEMELHANTES, VARIANDO APENAS EM TAMANHO E USO DE CORES...... 217 FIGURE 50 – AQUI PODE SE VER OS CIKAREKS DAS COMPANHIAS PURISAI, AKKUR E KATTAIKKUTTU. AS DIFERENÇAS SÃO APENAS PONTUAIS. É UMA BOA OPORTUNIDADE PARA APRECIAR TAMBÉM OS PADRÕES DE MAQUIAGEM DE PERSONAGENS SIMILARES, NO CASO, DUCHASSANA. FOTOS: CEDIDA POR PALANI MURUGAN (PRIMEIRA), EDILSON CASTANHEIRA (AS DEMAIS)...... 218 FIGURE 51 – NESTAS FOTOS VÊ-SE UM OUTRO TIPO DE ORNAMENTO DE CABEÇA PARA OS TIRES VESHAMS, PERSONAGENS IMPORTANTES, MAS QUE NÃO SÃO GUERREIROS EM SUA NATUREZA. O PRIMEIRO É BRIHANALA, UM PERSONAGEM TRANSEXUAL. NA VERDADE, ELE É ARJUNA QUE ASSUME A IDENTIDADE DE BRIHANALA PARA NÃO SER DESCOBERTO DURANTE O ÚLTIMO ANO DE EXÍLIO DOS PANDAVAS. O SEGUNDO PERSONAGEM É O DEUS KRISHNA, FIGURA IMPORTANTE NA DRAMATURGIA DO ESTILO. COMPANHIA: SRI THANTONIAMMAN THERUKKOOTHU NADAGA SABHA...... 219 FIGURE 52 – NESTA FOTO, VEMOS UM KATTAI VESHAM COMPLETO: KIRITAM, POOJA KIRTTI, MARPU TUNI E KAJAI. PODE SE VER TAMBÉM O LENÇO E PARTE DA ESPADA NA OUTRA MÃO. COMPANHIA: KATTAIKKUTTU SANGAM...... 221

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FIGURE 53 – AQUI PODE-SE VER O FIGURINO “EM AÇÃO”, DURANTE A EXECUÇÃO DE MOVIMENTOS VIGOROSOS E, TAMBÉM, A ESPADA RELUZENTE. OS PERSONAGENS SÃO DRAUPADI E DUCHASSANA, NO EPISÓDIO DO DESENROLAR DO SAREE. A ORQUESTRA ESTÁ AO FUNDO. COMPANHIA: KATTAIKKUTTU SANGAM...... 221 FIGURE 54 - O THERU-K-KOOTHU E A CENA CONTEMPORÂNEA. INTÉRPRETE PARTHIBAN V. COMPANHIA DA THERUKOOTHU DA REGIÃO DE KONGU, TAMIL NADU...... 222 FIGURE 55 - NAS TRÊS FOTOS ACIMA, VÊ-SE OS ESTUDANTES DO KATTAIKKUTTU SANGAM EM CENA, APRESENTANDO UM ESPETÁCULO CONTEMPORÂNEO, QUE DIALOGA COM A ESTÉTICA E OS PERSONAGENS DO KATTAIKKUTTU...... 246 FIGURE 56 – PLACA QUE FICAVA NA SEDE DA COMPANHIA, QUANDO A VISITEI PELA PRIMEIRA VEZ, EM 2005, E VISTA INTERNA DO TEATRO - SEM JANELAS OU PORTAS - UMA IMAGEM QUE, PARA MIM, DEFINE A UTOPIA DO COLETIVO...... 260 FIGURE 57 – GRUPO CALDEIRÃO E KPP EM CENA / 2007. O PEQUENO RETÁBULO DE DOM CRISTÓVÃO – KPP E GRUPO CALDEIRÃO/2007. DISPONÍVEL EM: ACESSO EM 01/09/2019 ÀS 11H31. .. 262 FIGURE 58 – MINHA PRIMEIRA EXPERIÊNCIA COM O KPP, EXCURSIONANDO COM UM SOLO PELO ESTADO DE TAMIL NADU...... 264 FIGURE 59 – ENTRADA DA SEDE ATUAL DA COMPANHIA EM VIRUGAMBAKKAM...... 266 FIGURE 60 – FOTO EM HOMENAGEM A N. MUTHUSWAMY, FUNDADOR DO KPP, FALECIDO EM 2018. ESTA FOTO ESTÁ NA SEDE DA COMPANHIA, QUE ERA TAMBÉM A RESIDÊNCIA DE MUTHUSWAMY...... 267 FIGURE 61 – ARTE FEITA PELO KOOTHU-P-PATTARAI PARA DIVULGAR NOSSAS APRESENTAÇÕES NA SEDE DA COMPANHIA. BRAZIL PUYAL ENCERRAMENTO / GRUPO CALDEIRÃO E KPP, EM 2007. DISPONÍVEL EM: . ACESSO EM 01/09/2019 ÀS 15H00...... 268 FIGURE 62 – NA. MUTHUSWAMY E EDILSON CASTANHEIRA / 2007...... 270 FIGURE 63 – MATERIAL PROMOCIONAL DO ESPETÁCULO “A CHAMBRE EM INDE” DA COMPANHIA THÉÂTRE DU SOLEIL...... 281

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ÍNDICE DE TABELAS

TABELA 1 - PEQUENO RELICÁRIO ...... 39 TABELA 2 – O TEATRO DA NARRAÇÃO: ASPECTOS ESSENCIAIS...... 61 TABELA 3 – SIMILARIDADES ENTRE A ESTRUTURA DO RITUAL E A ESTRUTURA DRAMÁTICA POPULAR...... 63 TABELA 4 – ELEMENTOS CENTRAIS PARA A COMPREENSÃO DAS FORMAS NARRATIVAS RITUAIS E DOS DRAMAS RITUAIS...... 77 TABELA 5 - PANORAMA RESUMIDO DO TEATRO DO ENTRETENIMENTO...... 91 TABELA 6 – CALENDÁRIO DAS PRINCIPAIS FESTIVIDADES DA ÁREA RURAL DO ESTADO DE TAMIL NADU, QUANDO APRESENTAÇÕES DE THERU-K-KOOTHU PODEM ACONTECER...... 99 TABELA 7 - OBSERVANDO A TABELA, NOTA-SE QUE, DO DIA UM AO DIA CINCO, ACONTECEM OS RITUAIS INICIAIS E AS RECITAÇÕES DE HISTÓRIAS, TÃO SOMENTE. ENTRETANTO, DURANTE TODOS OS DIAS DO FESTIVAL, ACONTECERÃO DIFERENTES RITUAIS COMANDADOS PELOS KAPPUKKARANS...... 132 TABELA 8 – ESTRUTURA BÁSICA DO FESTIVAL DE DRAUPADI AMMAN...... 133 TABELA 9 - CENSO POPULACIONAL DOS DISTRITOS DO NORTE DE TAMIL NADU, ONDE ESTÃO SITUADAS AS COMPANHIAS MAIS REPRESENTATIVAS DO THERU KOOTHU...... 142 TABELA 10 – GENEALOGIA DA FAMÍLIA DE THERU-K-KOOTHU, ESTILO DO NORTE, PURISAI. A PESQUISADORA ENTROU EM CONTATO APENAS COM A PURISAI DURAISAMY KANNAPA THAMBIRAM THERU KOOTHU MANRAM...... 152 TABELA 11 - – GENEALOGIA DA FAMÍLIA DE THERU-K-KOOTHU, ESTILO DO NORTE, DA VILA DE AKKUR. . 156 TABELA 12 – PANKU SYSTEM A DEFINIR OS TIPOS DE PERSONAGENS DA PERFORMANCE DO THERU-K- KOOTHU E, TAMBÉM, A HIERARQUIA INTERNA DAS COMPANHIAS...... 170 TABELA 13 – PANCH JATIS PROVENIENTES DO SISTEMA MUSICAL CARNÁTICO, PRÓPRIO DO SUL DA ÍNDIA. ESTE SISTEMA SERVE DE BASE TANTO PARA A CULTURA CLÁSSICA QUANTO PARA A CULTURA FOLCLÓRICA...... 197

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...... 16 CAPÍTULO 1 - O TEATRO POPULAR DA ÍNDIA: PEQUENO RELICÁRIO ...... 27 1.1 PRA COMEÇO DE CONVERSA ...... 27 1.2 BREVE, BREVÍSSIMA HISTÓRIA SOBRE O SURGIMENTO DO TEATRO NA ÍNDIA ...... 32 1.3 CHEGANDO CADA VEZ MAIS PERTO ...... 35 1.4 UM PEQUENO ACHADO: UM RELICÁRIO TEATRAL ...... 39 1.5 TEATRO FOLCLÓRICO DA ÍNDIA: ÓPERA POPULAR (TEATRO, DANÇA E MÚSICA) ...... 40 1.6 TEATRO DA NARRAÇÃO ...... 46 1.7 TEATRO DO RITUAL ...... 62 1.8 TEATRO DO ENTRETENIMENTO ...... 77 1.8.1 VIDUSHAKA, O CÔMICO E SUTRADHARA, O ÉPICO...... 78 1.8.2 O TEATRO POPULAR E A CULTURA DO ENTRETENIMENTO ...... 82 CAPÍTULO 2 – O THERU-K-KOOTHU E O FESTIVAL DE DRAUPADI AMMAN ...... 92 2.1 A CULTURA TRADICIONAL DO ESTADO DE TAMIL NADU ...... 92 2.2 O CULTO ÀS AMMANS ...... 94 2.2.1 O FESTIVAL DE DRAUPADI AMMAN: REVIVENDO O MITO DE DRAUPADI - DA REALIDADE PARA A REALIDADE DO MITO ...... 98 2.2.2. - ESTRUTURA DO FESTIVAL DE DRAUPADI AMMAN REALIZADO EM ECCHUR .. 132 CAPÍTULO 3 – THERU-K-KOOTHU E O LEGADO DOS HERÓIS DO MAHABHARATA ...... 137 3.1 PANORAMA GERAL DO THERU-K-KOOTHU NO ESTADO DE TAMIL NADU E ÁREA DELIMITADA PELA PESQUISA ...... 137 3.2 O PROBLEMA DO NOME ...... 142 3.3 SISTEMA DE CASTAS ...... 148 3.4 AS LINHAGENS ARTÍSTICAS DE THERU-K-KOOTHU PESQUISADAS ...... 151 3.5 ADENTRANDO O KOTTAKAI DO THERU-K-KOOTHU ...... 158 3.5.1 CONTEXTO HISTÓRICO ...... 158 3.5.2 ORGANIZAÇÃO DAS COMPANHIAS E DA PERFORMANCE THERU-K-KOOTHU ... 161 3.5.3 KATHA, KUTTU E AVESAM: HISTÓRIA, ENCENAÇÃO, POSSESSÃO ...... 177 3.5.4 TRADIÇÃO LITERÁRIA, TRANSMISSÃO DE SABERES E TÉCNICAS PERFORMATIVAS ...... 185 3.5.5 MAQUIAGEM, FIGURINOS E ADEREÇOS ...... 204 CAPÍTULO 4 – THERU-K-KOOTHU NA ENCRUZILHADA: SER OU NÃO SER? ...... 222 4.1 UMA ENCRUZILHADA DE TRÊS PONTAS: FOLCLÓRICO, EXPERIMENTAL E INTERCULTURAL ...... 222 4.2 O EMBATE ENTRE O FLEXÍVEL E O RÍGIDO: FOCLÓRICO E CLÁSSICO ...... 226 4.3 O THERU-K-KOOTHU E O “DESENCANTAMENTO DO MUNDO” ...... 232 4.3.1 AS CIDADES DESENCANTADAS E AS PISTAS QUE NOS REMETEM AO “NOVO ENCANTAMENTO” DO MUNDO ...... 238 4.4 KATTAIKKUTTU SANGAM: A TRADIÇÃO MIRANDO NO FUTURO ...... 244 4.4.1 APRESENTAÇÃO DO SANGAM E DO GURUKULAM ...... 244 4.4.2 UM OLHAR FEMININO E FEMINISTA PARA A TRADIÇÃO ...... 247 4.4.3 DISCUSSÃO POLÍTICO-SOCIAL ATRAVÉS DE UM TEATRO RITUAL? ...... 255 4.5 KOOTHU-P-PATTARAI: UMA UTOPIA TEATRAL ...... 257 4.5.1 UMA FESTA INDO-BRASILEIRA (BRAZIL PUYAL): TAGA TOM DIM TA DIMI TAGA - DONA DA CASA SEU TERREIRO ALUMIÔ! ...... 267 4.6 INTERCULTURALISMO: VENTOS DO NORTE, VENTOS DO SUL ...... 270

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4.6.1 – A ROOM IN INDIA OR IN FRANCE? ...... 279 CONSIDERAÇÕES FINAIS – OS NOVOS VENTOS DO SUL E O SOPRO DA CANTIGA ...... 286 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...... 295 MATERIAL ÁUDIO VISUAL ...... 298 BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR...... 298 WEBSITES ...... 300 ANEXOS ...... 303 ANEXO I – ENTREVISTA CONCEDIDA POR HANNE DE BRUIN EM 04/07/19 ...... 303 ANEXO II – ENTREVISTA CONCEDIDA POR RUSTOM BHARUCHA EM 05/07/2019 ...... 304 ANEXO III – ENTREVISTA CONCEDIDA POR K. R. RAJARAVIVARMA EM 07/07/19 ...... 307 ANEXO IV –PROGRAMAS DE ESPETÁCULO E MATÉRIAS DE JORNAL DO KOOTHU-P- PATTARAI ...... 312 ANEXO V - LINKS DE ACESSO PARA OS DOCUMENTÁRIOS “THERU-K-KOOTHU: RAÍZES E ROTAS I E II” ...... 339 ANEXO VI – PARECER DO COMITÊ DE ÉTICA NA PESQUISA ...... 340 ANEXO VII – DECLARAÇÃO DE DIREITOS AUTORAIS ...... 345

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INTRODUÇÃO1

Minha história com a Índia começou no final do século XX quando, numa viagem à Grécia com o querido professor e amigo Cyro Del Nero, tive a oportunidade de conhecer a cultura grega por uma ótica fundamentalmente teatral, ritual e - só hoje compreendo - iniciatória. Depois de 20 dias de viagem, reunidos em Monenvassia, uma pequena ilha com ares de fortaleza medieval na região da Lacônia, fomos indagados – eu e meus companheiros de viagem, todos jovens artistas – sobre quais rumos gostaríamos de tomar em nossas vidas dali para frente. Eu tinha 19 anos nesta época e não sabia ao certo o que responder diante de um homem que era uma referência para todos nós e que nos apresentava, generosa e afetivamente, a Grécia e tudo o que ela simboliza para nós, artistas da cena, como só mesmo um grande iniciador de pessoas poderia fazer. Lembro-me apenas de ter dito: “Acho que quero ir para o oriente”. Depois de anos, ainda me lembro deste momento como um divisor de águas, apontando o caminho de toda uma vida. Chegando ao Brasil, coincidentemente, vi uma apresentação de uma bailarina de dança clássica indiana chamada Madhavi Mudgal e fiquei profundamente impactada por sua capacidade de contar histórias com toda e cada parte de seu corpo, principalmente por meio dos gestos de mão e das expressões faciais, sem saber que, a partir daquele encontro, nascia meu projeto de mestrado. Para uma atriz em começo de carreira me pareceu que havia encontrado ali alguma coisa que valia a pena conhecer melhor, estudar, não para tornar-me dançarina, mas para me tornar uma atriz melhor. Então, meu companheiro de vida e de palco, Edilson Castanheira, me falou sobre uma professora recém-chegada da Índia que estava começando a dar aulas e, quem sabe, eu pudesse ir até ela para conhecer mais sobre o assunto e estudar dança. Dessa forma, cheguei à Natyalaya School of Classical Dances, dirigida, no Brasil, por Patrícia Romano, e lá fiquei por oito anos estudando Bharatanatyam e, posteriormente, Kuchipudi e Mohiniyattam, todas elas, formas

1 Processo nº 2016/10719-0, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas nesse material são de responsalibidade do autor e não necessariamente refletem a visão da FAPESP.

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de dança clássica da Índia. Neste percurso intenso e prazeroso, posso dizer que praticamente “esqueci” qual era a motivação inicial que havia me levado até aquele encontro e mergulhei de cabeça num universo que se apresentava para mim como muito mais rico, multifacetado e complexo do que eu podia imaginar. De fato, sem ter planejado, tornei-me dançarina, e este acontecimento deu novo rumo e significado à minha vida pessoal e profissional. Eu poderia ter mergulhado de vez nesta aventura de assumir-me como dançarina e abandonar o teatro, não fosse a voz – às vezes desconfortável, mas sempre necessária, de meu companheiro a me dizer: “Mas o que você quer com a dança indiana?”, “Qual o significado de fazer dança indiana no Brasil?”, ou colocações mais provocativas como: “Lembre-se que você não é indiana”, “Você é uma atriz ocidental que faz dança indiana”. Graças às suas provocações e um sentimento de que suas colocações eram pertinentes, consegui manter-me alerta o suficiente para não sucumbir às tentações de – esquecendo quem sou e onde estou – tentar ser exatamente aquilo que não era. Comecei, então, a colocar em prática tudo que tinha aprendido com a dança indiana nos processos de criação do Grupo Caldeirão2, primeiro como treinamento a dar suporte aos atores e, posteriormente, como elemento estético ocupando a cena. Desde então, fui inúmeras vezes à Índia, estudei com diferentes mestres, conheci muitos artistas das tradições clássicas e populares, do teatro e da dança, produzi espetáculos, dei muitas aulas e cursos pelo Brasil, fundei minha própria escola e centro de pesquisa, o Núcleo Prema (2007), berço de tudo quanto pude produzir e pensar sobre a cultura indiana em relação à cultura teatral ocidental, ao teatro e a dança que eu gostaria de fazer aqui no Brasil, e também à forma como gostaria que a dança indiana fosse vista e compreendida por brasileiros. Finalmente, percebi que havia me tornado atriz e dançarina. De tudo isso, nasceram dois frutos muito significativos: o espetáculo “Orè Yèyé O, Oxum Tarangam”3 (2013) e a dissertação de mestrado, defendida em 2015, no Instituto

2 Grupo Caldeirão: Companhia teatral paulista, fundada em 1988, por Edilson Castanheira e Maria da Betania Dias Galas, com a qual trabalho desde 1996. Juntos, fundamos o Espaço Caldeirão em 2004, local de produção alquímica do teatro, da dança e da vida. O Núcleo Prema é sediado no Espaço Caldeirão, desde 2007. 3 O espetáculo e o documentário que conta sobre seu processo de criação podem ser vistos no Youtube através do link: https://www.youtube.com/watch?v=MPTqQtwbwQs

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de Artes da Unicamp, intitulada: “Abhinaya: a construção de um corpo narrativo. O elemento expressivo do teatro e da dança na Índia”. E, então, veio um sentimento de esgotamento... uma sensação de que era hora de dar um novo sentido à trajetória. A Índia clássica tinha me apresentado um caminho e eu era grata por todos os frutos colhidos nessas andanças, mas havia o desejo de conhecer uma outra Índia, aquela que eu vislumbrava nos rituais de difícil compreensão, nos diagramas e imagens nas portas dos templos e das casas, nas canções e brincadeiras populares, na confusão das ruas onde cada esquina é um templo, no corpo das crianças com seus colares e amuletos protetivos, no kumkum vermelho no cabelo das mulheres, nas festividades, nas celebrações familiares ou públicas, nas inúmeras superstições e crendices, no modo de vida dos vilarejos que conheci, onde uma outra lógica de vida opera, tudo aquilo que a cultura clássica absorveu e tratou de suavizar ou mesmo camuflar. Nasceu, então, o desejo de conhecer esta outra faceta da Índia, sua contraparte popular ou folclórica e compreender melhor como tudo isso podia dar um novo rumo ao meu trabalho como artista e pesquisadora da cultura indiana no Brasil. Havia também um desejo sincero de “voltar para o teatro”. Explico: toda minha pesquisa de mestrado se debruçou sobre a técnica expressiva do Abhinaya4 que, embora também se aplique ao teatro, é mais claramente afeita à dança. De 1999 a 2015, quando defendi meu mestrado, foram anos dedicados a este assunto. De repente, nasceu em mim o desejo de abandonar esta zona de conforto e me lançar num mundo desconhecido. Lembrei da frase: “Você é uma atriz que dança” e concluí: “É a hora de mergulhar no abismo”. Sim, um abismo. Devo confessar que eu pouco sabia sobre o que era o Theru-K-Koothu5 e muito menos sobre o terreno espinhoso do interculturalismo em que estava me metendo, quando comecei esta jornada. Minha escolha foi afetiva, motivada por

4 Abhinaya é a técnica expressiva do teatro e da dança indiana que se vale dos gestos de mão codifica, das expressões faciais e da movimentação corporal estilizada. 5 Theru-K-Koothu (TKK): teatro ritual do estado de Tamil Nadu, surgiu entre 200 a.C. e 200 d.C. Tradicionalmente narra episódios do Mahabharata, épico hindu. Seu objetivo é, mais do que entreter, educar as populações rurais iletradas, apresentando conteúdos históricos e religiosos. Theru quer dizer espaço aberto e Koothu dança ou teatro, o que remete à ideia de um teatro feito a céu aberto.

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uma experiência marcante que tive numa das minhas viagens à Índia, junto ao grupo Koothu-P-Pattarai6. Outro desses momentos fundantes que transformam toda uma vida. Tudo começou assim: em 2005 fui selecionada pela UNESCO/Aschberg Bursaries Programme for Artists para um Intercâmbio Cultural junto ao Koothu- P-Pattarai. O grupo era dirigido por Na. Muthswamy7, escritor e diretor teatral responsável por uma retomada do Theru-K-Koothu nos anos 1970, quando a cultura popular e seus artistas estavam em franca decadência, sem nenhum respaldo governamental e gozando de má reputação. Naquela ocasião, recebi treinamento em Theru-K-Koothu, Devarattam8, Silambam9 e Thudumbu10; todas formas populares de teatro, dança, arte marcial e música, respectivamente, de Tamil Nadu. Depois de anos estudando dança clássica indiana, este foi meu primeiro mergulho na cultura popular indiana. Desse modo, descobri que havia todo um mundo novo de possibilidades expressivas ainda pouco aprofundadas por mim e, até mesmo, pelos artistas teatrais contemporâneos locais. De fato,

6 Koothu-P-Pattarai (KPP): é um grupo de teatro Tamil, fundando em 1977. Possui, em seu currículo, mais de 60 produções em vários gêneros, trabalhando com temas diversos, sempre no idioma Tamil. Sua linguagem mescla elementos da dança, do teatro popular, do teatro de bonecos e das artes marciais. O KPP é reconhecido como um dos cinco centros de treinamento selecionados em todo mundo, pela UNESCO, para participar de seu programa de bolsas. O KPP também colabora com a revitalização e documentação da tradição KOOTHU e oferece suporte contínuo aos artesões tradicionais e a grupos de teatro por todo o estado. Para saber mais, acesse no site http://www.koothu-p-pattarai.org/index.html 7 Na. Muthuswamy: Fundador e dramaturgo do grupo Koothu-P-Pattarai, Na Muthuswamy, falecido em 2018, é reconhecido como um pioneiro do teatro experimental em Tamil Nadu. Em 1969, sua produção intitulada “Time after time” foi considerada a primeira peça “moderna” na história do teatro Tamil. Após oito anos de intenso estudo sobre o Theru-K-Koothu, o tradicional teatro de rua de Tamil Nadu, Muthuswamy criou o grupo de teatro KPP, em 1977. Sua façanha contribuiu para uma revalorização das formas de teatro tradicionais e para a criação de uma nova estética teatral. 8 Devarattam: dança tradicional preservada pelos descendentes da dinastia de Veerapandiya Kattabomman, em Kodangipatti, no distrito de Madurai, Tamil Nadu. Conhecida como “a dança dos deuses”, tem um significado social e ritualístico especial para sua comunidade. Seus moradores acreditam ser os descendentes diretos dos “Devas” ou deuses e, por isso, a dança leva esse nome: DEVA – deuses e ATTAM – Dança. 9 Silambam: Arte marcial própria do estado de Tamil Nadu que muito se assemelha ao Kalaripayatt, originário do estado de Kerala. Os movimentos mais marcantes são aqueles realizados com longas varas de bambu, mas outras armas também são utilizadas. Existem diferentes linhagens de Silambam e não se sabe, ao certo, quando esta forma de arte marcial surgiu. 10 Thudumbu: Forma de música popular realizada por tambores de diferentes tamanhos e timbres, produzindo uma sonoridade cadenciada e potente. Tradicionalmente, é executada nas vilas apenas por homens. É complementada por danças simples, coreografadas e executadas em roda.

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eles também, muitas vezes, são estrangeiros dentro de sua própria cultura, resultado de anos e anos de achatamento cultural, desconhecimento ou preconceito em relação às manifestações populares e suas próprias tradições11. Daí a importância do trabalho de resistência desenvolvido pelo Koothu-P- Pattarai e a razão pela qual preciso falar dele nessa pesquisa. Esta foi a primeira vez que entrei em contato com o Theru-K-Koothu, e preciso agradecer a Na. Muthuswamy por me propiciar este primeiro encontro sem tentar me convencer de que ali havia algo importante para ser visto. E eu não vi... não “logo de cara”. Precisei de alguns anos para entender o valor daquele encontro, e só hoje posso dimensionar sua generosidade em entender minha limitação e incapacidade em abandonar a “pseudo-superioridade- transcedental” das tradições clássicas a que eu estava completamente familiarizada, em favor do, aparentemente, grotesco “high pitch” do Theru-K- Koothu, com sua estética masculinizada nada sutil. A desconstrução de estereótipos tão arraigados sempre vem acompanhada de alguma recusa, que demanda um tempo de vivência e assimilação, até que a realidade possa ser vista sem os filtros de nossas preferências pessoais, fora da caixa de nossos extratos culturais, sociais e econômicos. Motivada por esse incômodo, já no desenrolar do projeto de pesquisa, realizei um levantamento das pesquisas acadêmicas em andamento ou já realizadas no Brasil, que tratavam das artes cênicas indianas e notei que praticamente a totalidade delas se debruçava sobre a cultura clássica da Índia: diferentes danças dramáticas (Bharatanatyam, Odissi, Chauv etc.); formas teatrais clássicas (Kathakali, Kudiyattam etc.); Teoria Estética (Natyasastra, Abhinaya Darpana, etc.), inclusive meu próprio mestrado (vejam só que ironia). Concluí, desta breve pesquisa, que muito pouco se sabe, se fala e se produz no meio acadêmico e artístico sobre a cultura folclórica da Índia, que considero, à luz de tudo quanto sei hoje, muito mais profícua que a própria cultura clássica. Isso ocorre, em parte, porque se trata de um desafio hercúleo, já que as formas dramáticas populares (teatro e dança) excedem muito, em

11 Refiro aqui, especialmente, ao período que corresponde a colonização britânica e seu legado de degradação da cultura tradicional da Índia.

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número, as formas clássicas: enquanto temos apenas oito formas de danças dramáticas consideradas clássicas na Índia, temos mais de 2.000 formas dramáticas de origem popular. E em parte, porque sempre há um grande preconceito com as manifestações de origem popular, consideradas, erroneamente, como decadentes, sempre à beira do precipício da extinção, gozando de má reputação como resposta à sua falta de sistematização e registro escrito e, portanto, menos interessantes como objeto de estudo. Por este motivo (mas não que eu o soubesse desde o início), creio que esta pesquisa seja de grande relevância no âmbito artístico-acadêmico, dado seu caráter inovador e o valor potencial que esta informação pode agregar às reflexões teórico-práticas no campo das artes cênicas brasileiras. Não há, por aqui, nenhuma pesquisa realizada sobre o Theru-K-Koothu ou mesmo sobre outras formas teatrais populares da Índia, inaugurando todo um novo campo de pesquisa sobre o teatro indiano para aqueles que virão depois de mim, ainda bastante desconhecido e instigante, resvalando na difícil e complexa discussão das experiências interculturais, tão pertinentes e necessárias de serem travadas no Ocidente como um todo. Esta tese expressa claramente meu desejo de pesquisadora em dar visibilidade a outras tradições dramáticas indianas, historicamente negligenciadas, renegadas ou usurpadas. Expressa um desejo sincero de me colocar de outra forma, talvez mais ética, frente a esta cultura com a qual trabalho há tantos anos, me permitindo caminhar por terrenos menos sólidos, de estar mais vulnerável, de simplesmente não saber por onde a transformação começa e, ainda assim, não me furtar dela. Expressa meu desejo latente de celebrar os inícios, os mestres da Grécia, do Brasil e da Índia, de celebrar o teatro... ah, o teatro, essa arte tão decadente e tão necessária. Deixarei essas reflexões mais pessoais para as conclusões do trabalho que assim se estrutura: No primeiro capítulo, apresento – de modo panorâmico – o universo da cultura teatral popular da Índia. Este capítulo tem a importante função de contextualizar o Theru-K-Koothu dentro da grande diversidade de manifestações teatrais populares existentes, para que seja possível compreender como este estilo dialoga com o todo, não apenas no âmbito das manifestações teatrais

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populares, mas da cultura teatral de forma geral. Para torná-lo mais rico, apresento duas abordagens distintas da cultura popular teatral da Índia: a primeira, representada pelo historiador indiano Varadpande (1992); e a segunda, pelos pesquisadores ocidentais Richmond, Swann e Zarrilli (1990). Tal contraponto enriquece esta discussão porque nos faz perceber como a leitura do pesquisador ocidental sobre a cultura da Índia, muitas vezes, é bem distinta daquela que o pesquisador nativo faz de sua própria cultura. Isso ajuda a lembrar que é sempre bom pisar com cautela num terreno onde seremos sempre estrangeiros e/ou “descendentes de colonizadores”. Ciente desta condição, procuro enriquecer o capítulo com algumas fotos e informações que refletem minhas percepções, como artista-pesquisadora ocidental, sobre a cultura teatral popular da Índia. No segundo capítulo, a lente, que antes estava aberta sobre o teatro folclórico da Índia, começa a se fechar sobre o Theru-K-Koothu em sua íntima relação com os Paratams, festivais religiosos do estado de Tamil Nadu, relacionados ao Mahabharata, em especial o Festival de Draupadi Amman, que ocorre tradicionalmente nas áreas rurais do estado, procurando compreender como as apresentações de Theru-K-Koothu, encenando diversos episódios do Mahabharata e culminando com a cena da morte de Duryodhana, se relaciona com o culto das divindades femininas primitivas conhecidas como Ammans ou Grande Mães; inserindo-se no cotidiano da vida comunitária em seus aspectos materiais e imateriais. Este capítulo cumpre a importante missão de apresentar o Theru-K-Koothu em seu contexto original, de modo a compreendê-lo como um teatro ritual, popular, feito a céu aberto. No terceiro capítulo, a lente que se projetava sobre o Theru-K-Koothu em seu aspecto ritual se afunila um pouco mais para esmiuçar a estrutura organizacional e performativa do estilo, a partir de informações recolhidas junto a duas importantes companhias: a Purisai Duraisamy Kannappa Thambiran Parambarai Therukkoothu Manran e Sri Thanthoniamman Therukkoothu Nadaga Sabha. Este capítulo coloca em evidência o Theru-K-Koothu como gênero performativo, apresentando sua estrutura de funcionamento e organização mais características: materiais textuais, treinamento, hierarquia, maquiagens,

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figurinos, tipos de personagens etc. Seu objetivo é oferecer um contato inicial com a performance Theru-K-Koothu, desmistificando a ideia bastante arraigada (e incorreta), tanto na academia quanto no meio artístico ocidental, de que as formas teatrais populares indianas são, esteticamente, menos elaboradas do que suas irmãs clássicas, por contarem com uma estrutura cênica menos sistematizada e codificada. A segunda pesquisa de campo desenvolvida entre final de 2018 e começo de 2019, com suporte da BEPE/FAPESP, foi fundamental para a escrita deste capítulo e para a correção de muitos equívocos relacionados à natureza e finalidade do Theru-K-Koothu, passando pela correção da grafia dos principais jargões do estilo, até a desmistificação de uma suposta inferioridade estética e do declínio do estilo nas regiões onde ele ocorre. O Theru-K-Koothu segue pulsando e fazendo pulsar vida nos vilarejos de Tamil Nadu, o que não significa que não enfrente problemas e dificuldades, em especial aqueles decorrentes do êxodo rural, do empobrecimento paulatino das suas populações e do avanço da cultura de massa, principalmente a televisão e o cinema. Um mergulho dessa profundidade não poderia se dar contando exclusivamente com o material bibliográfico disponível, mas, principalmente, por meio do contato direto com os artistas, estudiosos e pesquisadores locais nas diversas fases da pesquisa: Therukkoothu12, Kattaikkuttu Sangam13, Koothu-P- Pattarai, Pondicherry University14, Sri Thantoniammam Therukoothu Nadaga Sabha15 e Purisai Duraisamy Kannappa Thambiram Parambarai Theru Koothu Manran16, Professor Dr. K. R. Rajaravivarma17 e Professor A. Chellaperumal

12 Therukkoothu: associação informal dirigida por Suraa Suresh (Founder) e Bala Tilak (Chief co-ordinator), responsável por articular apresentações e encontros entre diferentes companhias Koothus de Tamil Nadu, com página no Facebook. 13 Kattaikkuttu Sangam: http://www.kattaikkuttu.org/ 14 Pondicherry University – Department of Performing Arts: http://www.pondiuni.edu.in/department/department-performing-arts 15 Sri Thantoniammam Therukkoothu Nadaga Shaba: Akkur Village, Distrito de Kanchipuram, North Arcot, dirigida por Elumalai e fundada em 1984. 16 Purisai Duraisamy Kannappa Thambiram Parambarai Theru Koothu Manran: Purisai Village, Distrito de Thiruvannamalai, North Arcot, dirigida por Sambandan, com uma linhagem que remonta há, pelo menos, 3 gerações ou, aproximadamente, 150 anos de existência. 17 Professor Dr. K. R. Rajaravivarma: Professor Assistente do Departamento de Artes Cênicas da Pondicherry University. Orientador, no exterior, deste projeto de pesquisa.

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(2001)18, estes dois últimos a quem agradeço e preciso dizer que devo muito pelo apoio generoso em elucidar dúvidas, oferecer materiais complementares e dividir comigo a intimidade de suas tradições, aquilo que não está escrito em nenhum livro e que se sustenta unicamente sobre seus corpos e sobre os corpos daqueles que vieram antes deles, os segredos do green room. O segundo e o terceiro capítulos cumprem, portanto, a função de permitir a visualização do amplo espectro de ação do Theru-K-Koothu dentro de suas comunidades, não apenas como forma ritual e artística, mas também como meio de expressão e manutenção dos valores sociais, religiosos, educacionais e éticos que são a base das sociedades rurais do sul da Índia. No quarto capítulo, a tradição será confrontada com o tempo presente e os choques, contradições e dilemas em que ela se vê imersa para conseguir sobreviver. Primeiro, apresento a problemática, ainda atual, que envolve as culturas clássica e folclórica da Índia, com evidente supremacia da primeira sobre a segunda e seus desdobramentos sobre o Theru-K-Koothu, que apontam um certo “desencantamento”, mas também a possibilidade de subverter essa lógica e produzir vestígios de “reencantamento”. Apresento, então, o primeiro desses vestígios: a experiência artístico- pedagógica única do Kattaikkuttu Sangam, organização social fundada pelo ator Theru-K- Koothu, P. Rajagopal, e a pesquisadora holandesa, Hanne M. De Bruin (1999), dedicada à preservação desta forma de arte em sua totalidade e à formação de jovens atores desde a mais tenra idade, em regime de internato ou Gurukulam. Lanço, então, um olhar acerca da influência do Theru-K-Koothu sobre a produção teatral contemporânea de Tamil Nadu, partindo da trajetória do mais importante grupo do estado, o Koothu-P-Pattarai, um segundo vestígio de luminescência. Para tanto, parto de minhas próprias experiências com a companhia e seus artistas, seus relatos, depoimentos e entrevistas; dos materiais cedidos: fotos, vídeos, programas; e de informações mais atuais colhidas na segunda pesquisa de campo.

18 Professor Dr. A. Chellaperumal: chefe do Departamento de Antropologia da Pondicherry University, pesquisador dos aspectos antropológicos do Theru-K-Koothu, em especial, a importância dos laços de parentesco na formação das linhagens.

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Fechando o capítulo, analiso criticamente a participação da companhia Purisai Duraisamy Kannappa Thambiram Parambarai Theru Koothu Manran no processo de produção do espetáculo “Chambre em Inde” ou “A room in India” (2016), pelo Thèâtre du Soleil, a partir de informações recolhidas com o artista- colaborador Palani Murugan, que participou do espetáculo, e a partir de conversas com a pesquisadora-colaboradora Hanne M. de Bruin e o renomado escritor indiano Rustom Bharucha (1993), resvalando no controverso e sempre delicado campo dos experimentos interculturais. Sem querer, tal descoberta, inesperada e não prevista inicialmente, acerta em cheio o centro da própria pesquisa e os últimos vinte anos de trabalho da pesquisadora. O mundo está mesmo em constante mudança e é preciso aprender a mudar com ele. Este capítulo, que observa o salto do Theru-K-Koothu direto no olho do furacão da pós-modernidade, urbana, tecnológica e globalizada, tem como principal objetivo problematizar o estado atual do estilo e de seus praticantes em relação à realidade que ora se apresenta, as dificuldades e desafios encontrados, os desdobramentos, riscos, contradições, ganhos e apontamentos. Não há, portanto, como não pontuar o estado atual de fragilidade dessa tradição, decorrente do agressivo processo de enfraquecimento das culturas teatrais populares de toda a Índia, lançando seus artistas a uma “zona liminar e marginal” (Caballero, 2016) e produzindo uma espécie de “desencantamento” (Weber, 2015) que pode ser lido, ao mesmo tempo, como uma sentença de morte ou um convite à transformação (Fischer-Litche, 2008). Nas considerações finais, analiso os ganhos obtidos pela pesquisa, seus desdobramentos, descobertas, perdas, limitações, acertos e desacertos por uma ótica mais pessoal e afetiva. Aproveito, também, para falar, com mais liberdade na escrita, das experiências vividas durante todo o processo da pesquisa, em especial, das viagens de campo e sobre aqueles desarranjos capazes de produzir novos e mais belos arranjos, ainda que às custas de alguma dor, de deixar de lado as velhas roupas, as velhas ideias e conceitos, para caminhar nu em busca daquela qualidade de presença e verdade que só o teatro é capaz de produzir. Através do Theru-K-Koothu, empreendi uma viagem que me levou de volta ao teatro, como eu tanto ansiava, e com ele, a profunda reflexão de meu

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próprio fazer artístico que, há mais de 20 anos, traça uma rota poética e imaginária entre Brasil, a terra do pau encarnado, e Índia, a terra mítica de Bharata. Aqui começa a soar uma cantiga... uma cantiga moura19. É um espetáculo que começa a se gestar. É a pesquisa buscando a oxigenação do palco e reconstruindo a experiência afetiva e artística da pesquisadora. Evoé! Sabhash!20

19 Cantiga Moura – Arabi Gita (uma contra-fábula indobrasileira) é a mais nova produção do Núcleo Prema, unindo a cultura indiana e a cultura brasileira. 20 Sabhash: significa ‘Bravo!’ em Tamil.

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CAPÍTULO 1 - O TEATRO POPULAR DA ÍNDIA: PEQUENO RELICÁRIO

Figure 1 – Preparando a maquiagem. Intérprete Parthiban V. Companhia da Therukoothu da região de Kongu, Tamil Nadu. Foto: Cedida por Parthiban V.

1.1 PRA COMEÇO DE CONVERSA

Este capítulo se incumbe de lançar uma lente de aumento sobre a cultura teatral popular da Índia num percurso panorâmico, visitando algumas das formas teatrais folclóricas mais emblemáticas espalhadas por todo o território nacional, o que inclui também o Theru-K-Koothu, centro vital desta pesquisa, de modo a explicitar o contexto em que esta tradição se insere e com a qual dialoga permanentemente. A opção por partir de uma visão panorâmica até atingir aspectos mais regionalizados da cultura teatral popular se dá por duas razões: a constatação da falta de conhecimento sobre o assunto, em termos de pesquisa no Brasil, tornando necessário um mergulho neste universo tão específico para que dele se possa extrair algum saber ou reflexão em cruzamento com nossas próprias reflexões sobre diferentes “práticas cênicas” (Caballero, 2016), surgidas no cenário pós Segunda Guerra Mundial, no Ocidente:

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[...] a denominação “práticas cênicas” tenta quebrar a sistematização tradicional e procura expressar o conjunto de modalidades cênicas – incluindo as não sistematizadas pela taxonomia teatral – como as performances, intervenções, ações cidadãs e rituais. (CABALLERO, 2016, p. 16).

A segunda razão é pela necessidade de se compreender quais os elementos constitutivos recorrentes que aparecem num grande número de manifestações e que acabam por configurar uma certa “estética do teatro popular indiano”, com a qual se possa conversar artisticamente, estabelecer paralelos, distanciamentos, cruzamentos transculturais que ampliem nosso olhar e entendimento sobre as tais “práticas cênicas” em termos mais globais. Deste modo, não se trata de criar um compêndio de manifestações teatrais explicitando minuciosamente o aspecto particular de cada uma delas, o que já foi feito por outros historiadores, como, por exemplo, Varadpande (1992), que muito contribuiu para a escrita deste capítulo, mas em encontrar os elementos comuns que as agregam e, a partir deles, entrar em contato com algumas formas teatrais populares específicas, nas quais tais elementos comuns possam ser identificáveis, reconhecíveis. Para tanto, tomo, como material de estudo obras de historiadores indianos e artistas-pesquisadores ocidentais das artes da cena. Essa dupla investida cria duas camadas diferentes de entendimento do fenômeno teatral indiano: uma macroscópica, de caráter histórico-reflexivo, que nos apresente o teatro popular da Índia dentro das engrenagens da História, e outra, microscópica, voltada à reflexão do fenômeno teatral a partir de suas próprias práticas, do olhar daqueles que estão imersos nelas: o artista e seu público. Espera-se que, ao final deste capítulo, o leitor tenha criado, em seu plano mental, uma imagem mais vívida do rico e dinâmico universo teatral popular da Índia e esteja curioso para aprofundar-se no universo único do Theru-K-Koothu, um grande expoente deste gênero cultural. Creio que seja válido começar esta conversa tratando de afinar alguns conceitos, elucidando termos usados com frequência e que sempre geram muita confusão e discordâncias, como “clássico”, “folclórico”; “erudito”, ‘popular’; “tradição” e “tradicional”. Na Índia, a cultura teatral divide-se em dois grandes grupos de onde derivam outras categorias: as formas reconhecidas como

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clássicas e que descendem do teatro Sânscrito, em conexão direta com o Natyasastra de Bharatamuni (1986)21; e aquelas, reconhecidas como folclóricas, que nascem no seio das comunidades rurais e que respondem às necessidades de uma certa dinâmica da vida social e espiritual, muito específicas de uma região, de um vilarejo ou um povoado. É certo que, no curso da História da Índia, o teatro dito “folclórico” e o teatro dito “clássico” convergiram e, mesmo, alimentaram-se mutuamente. Ainda hoje, no entanto, há divergências entre os estudiosos sobre qual teria surgido primeiro, e o mais aceito pela maioria deles é que o teatro sânscrito e o folclórico tenham sido contemporâneos, ressaltando-se que, ao declínio do teatro sânscrito, corresponde o período de ouro do teatro folclórico (séc. XV/XVI). Embora no Brasil e no Ocidente o uso da palavra “folclórico” tenha ganhado uma conotação pejorativa, na Índia este valor depreciativo imputado à palavra não parece aplicável. De fato, Rustom Bharucha, durante entrevista concedida em Janeiro de 2019, foi categórico em afirmar que essa palavra já era empregada pelos historiadores, pesquisadores e artistas tradicionais da Índia, muito antes de receber tal conotação pejorativa no Ocidente e que é exatamente pelo uso dessa palavra que os artistas tradicionais indianos se definem e categorizam. Dizer “teatro folclórico”, na Índia, é absolutamente natural e pertinente, e por essa razão, a palavra será sempre utilizada nesta pesquisa também. Do mesmo modo, a categorização entre “erudito” e “popular” merece algumas considerações quando se examina a cultura indiana. A cultura clássica relaciona-se diretamente com um extrato social mais elevado, letrado e culto, que vê na arte uma manifestação de uma experiência com o Belo e a Verdade, como nos apresenta o filósofo Coomaraswamy:

Assim como o Amor é a realidade vivenciada pelo Amante, e a Verdade é a realidade vivenciada pelo Filósofo, a Beleza é a realidade vivenciada pelo Artista: e todas elas são fases do Absoluto22 (COOMARASWAMY, 1985, p. 36, tradução livre).

21 O Natyasastra, tratado da arte dramática hindu, escrito em sânscrito, é um dos mais antigos textos sobre a “ciência da representação e do gesto” na história da humanidade, cujo conteúdo apresenta informações relevantes à compreensão do surgimento e o propósito da arte teatral. Acredita-se que tenha sido escrito entre os séculos II a.C e II d. C. 22 No original: “Precisely as Love is reality experienced by the Lover, and Truth is reality as experienced by the Philosopher, so Beauty is reality as experienced by the Artist: and these are phases of Absolute” (COOMARASWAMY, 1985, p. 36).

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Este ideal acaba por gerar uma certa “estetização” da vida que resulta em altos graus de sistematização e sofisticação artística, destinados, primordialmente, a um grupo seleto de iniciados em seus códigos e regras, o que, numa sociedade altamente estratificada como a indiana, significa atender aos anseios estéticos das altas castas. A cultura popular, por sua vez, relaciona- se com as camadas mais baixas da sociedade indiana, geralmente iletrada, onde a arte tem uma relação mais direta, dinâmica e orgânica com os anseios da vida comunitária em seus aspectos espirituais, sociais e cotidianos. O discurso ético, nesses casos, antecede o discurso estético, se voltarmos à origem da palavra grega Ethos, compreendida como um certo conjunto de valores, hábitos, ideias e crenças que ajudam a organizar a vida em coletividade. O teatro, neste contexto, pode assumir diferentes usos, dos mais pragmáticos aos mais espiritualizados, para além dos ideais clássicos de Verdade, Virtude e Beleza, de Bharatamuni. Isso não significa dizer que as formas populares não possuem graus de sistematização consideráveis e que não sejam também sofisticadas em termos estéticos. Ao contrário, observando-se mais de perto essas manifestações, em especial os dramas populares, veremos o cuidado que dedicam a todos os elementos de linguagem que compõem a cena, funcionando como uma verdadeira ópera popular onde teatro, dança e música formam um todo indivisível. Trata-se apenas de modos distintos de sistematizar e produzir beleza para extratos diferenciados de uma sociedade complexa como a indiana. Na cultura erudita e letrada, o saber escrito e expresso pelos grandes tratados de artes, dos quais o Natyasastra é apenas um exemplo, organiza e sistematiza os meios e modos de produção artística: tudo que está em acordo com essas diretrizes receberá, portanto, o crivo de clássico. Ao passo que na cultura popular, essencialmente oral, o conhecimento se sedimenta sobre o saber específico de cada linhagem, clã ou família teatral, de quem essas formas de arte dependem exclusivamente para se regular e continuar a existir. Apesar disso, não é sempre fácil para uma cultura milenar como a indiana definir com clareza os limites entre clássico ou folclórico, erudito e popular, dado que a cultura é um organismo dinâmico em constante processo de troca e

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assimilação. A Sangeet Natak Akademi, instituição governamental dedicada à preservação da cultura tradicional da Índia, fundada em 1952, tem realizado esforços significativos no sentido de delinear, com mais clareza, as especificidades desses dois universos que coexistem, dando visibilidade, valorizando e catalogando centenas de manifestações culturais no campo da dança, do teatro e da música, e contribuindo para sua difusão dentro e fora da Índia e sua preservação no curso da História. No entanto, esta pesquisa não se destina a aprofundar esta discussão. Ela é relevante apenas na medida em que nos ajuda a estabelecer o terreno fértil onde pisaremos daqui para frente, de modo que o uso das palavras “folclórico” e “popular” seja compreendido da maneira como aqui foram apresentadas, não aprofundando, portanto, discussões mais complexas como, por exemplo, o uso pejorativo que hoje se faz da palavra “folclórico” ou certo juízo de valor e importância entre o que chamarei de “clássico” e de “folclórico”. Mais interessante será centrar esforços em desbravar a cultura teatral popular da Índia, um universo ainda muito maior e mais diversificado do que o da cultura teatral clássica, para o qual, nota-se, o Ocidente e seus artistas ainda não olharam com a devida atenção. Dessa forma, utilizo nessa pesquisa as palavras folclórico e popular como sinônimos, variando entre uma e outra sem, com isso, adentrar no mérito da sutil diferença de significados que envolve essas duas definições. Quando me referir ao clássico, estarei tratando exclusivamente das formas derivadas do teatro sânscrito, sem relação direta com o teatro clássico ocidental. Do mesmo modo, os termos “tradição” e “tradicional” serão utilizados para me referir aos diferentes gêneros de performance tradicional da Índia, algo que “implica movimento”, flexibilidade e adaptabilidade aos tempos e condições de vida, de acordo com definição apresentada por Richmond, Swann e Zarrilli no livro “Indian Theatre. Traditions of Performance” (1990):

Do mesmo modo, uma antiga tradição performativa não é necessariamente ossificada. Ao contrário, o que frequentemente diferencia uma tradição de outra, ou um grupo de tradições similares de um grupo de tradições distintamente diferentes, é o grau de mudança que é permitido dentro dos limites da tradição e quanto o peso da autoridade pode ser flexível em adaptar-se às mudanças

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socioeconômicas ou artísticas. (RICHMOND, SWANN e ZARRILLI, 1990, p. 4)23.

E segue: Em outras palavras, uma tradição performativa é aquele corpo de conhecimento, incluindo técnicas de performance, textos e princípios estéticos ou regras ou suposições, que constituem e definem o que é um gênero em particular e é simultaneamente o processo de passar o conhecimento de uma geração para outra. (RICHMOND, SWANN e ZARRILLI, 1990, p. 4)24.

Tendo esclarecido o uso dessas importantes terminologias, que aparecerão muitas vezes ao longo deste texto, podemos passar ao próximo passo que é o de apresentar, de modo breve, uma cronologia do teatro na Índia.

1.2 BREVE, BREVÍSSIMA HISTÓRIA SOBRE O SURGIMENTO DO TEATRO NA ÍNDIA

Embora seja muito difícil precisar historicamente o surgimento do teatro na Índia, é certo que as primeiras evidências históricas apareceram entre 200 – 100 d.C. Neste período, já havia na Índia uma tradição suficientemente arraigada de dança e música, o que nos permite crer que o drama também fizesse parte deste conjunto, como ainda hoje se observa nas tradições performáticas da Índia, de contornos operísticos. Nesta época, também já existia uma rica tradição literária a dar suporte ao surgimento do teatro: histórias mitológicas, lendas, contos históricos e semi-históricos, e as próprias peças do teatro sânscrito encontradas neste período demonstram grande sofisticação estilística. Considerando todos esses aspectos, é possível conceber, portanto, que o teatro na Índia tenha surgido por volta do século II a.C.

23 No original: Even so, an “ancient” performance tradition is not necessarily ossified. To the contrary, what often differentiates one tradition from another, or a group of similar traditions from a group of distinctly different traditions, is the degree of change that is allowable within the limits of the tradition and the extent to which the weight of authority can be flexible in adapting to socio- economic or artistic change. (RICHMOND, SWANN e ZARRILLI, 1990, p. 4). 24 No original: In the other words, a performance tradition is that body of knowledge, including techniques of performance, texts and aesthetic principles or rules or assumptions, which constitutes and defines what the particular genre is and it is simultaneously the process of handing the knowledge on from one generation to another. (RICHMOND, SWANN e ZARRILLI, 1990, p. 4).

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Se considerarmos correta a afirmação de que o teatro clássico e folclórico da Índia remontam à civilização do Vale do Indu, pelo que se observa nos templos das cidades de Mohenjodaro e Harappa, onde estão esculpidas diversas imagens de bailarinas e músicos, também encontraremos uma relação direta entre os primórdios do teatro e a vida religiosa da sociedade hindu, com seus festivais e rituais, outra característica fundante das artes performáticas na Índia. Neste sentido, o drama remontaria ao Período Védico (2.000 – 1.500 a.C.), cujos registros podem sem encontrados, por exemplo, em forma de desenhos rupestres dos povos aborígenes nativos. Já no período ariano (1.500 – 1000 a.C.), em suas sucessivas invasões, aparecem os primeiros hinos laudatórios extraídos do Rig Veda e, com eles, as formas nascentes do texto em prosa, ainda como parte intrínseca do ritual, sem finalidade estética. Entre 1.000 – 100 a.C. são escritos os principais textos épicos da Índia, o Mahabharata e o Ramayana, com menções diretas à figura dos Natakas ou atores, sugerindo que a arte teatral já era familiar aos hindus desde tempos longínquos. Também encontramos registros destas manifestações no texto Arthashastra (321 – 300 a.C) de Chanakya, compêndio voltado originalmente para administração e economia, e na literatura Budista posterior. Outra evidência bastante concreta é encontrada no texto Mahabhasya, de Patãnjali (140 a.C.) que descreve as seguintes ações associadas à arte dramática: (1) pantomima sem palavras, (2) uso de figuras para ilustrar histórias – Pad Tradition, (3) contação de histórias (homens), (4) danças femininas. Trata- se, portanto, de uma tradição antiga e profundamente entrelaçada à própria história da Índia, como nos diz Varadpande, citando outro conterrâneo em seu “Dictionary of Indian Theatre”:

Os indianos têm se destacado particularmente entre as nações como amantes da dança e da música desde que Dionísio e suas assistentes, as bacantes, fizeram seu cortejo festivo através dos reinos da Índia. Ele lhes ensinou a dança satírica ou, como dizem os gregos, o Cordax. (VARADPANDE, 2007, p. 89).25

25 No original: ‘Indians have been particularly distinguished among the nations as lovers of dance and song and ever since Dionysus and his attendant Bacchanals made their festive progress through the realms of India. He taught them the satiric dance or, as the Greeks call it, Cordax’. (VARADPANDE, 2007, p. 89).

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Segue figura extraída do livro ‘Indian Theatre. Traditions of Performance’, de Richmond, Swann e Zarrilli (1990), que apresenta a cronologia de surgimento e declínio dos teatros sânscrito e folclórico na Índia em relação ao surgimento do teatro Ocidental e do extremo Oriente. Vale ressaltar que, para Varadpande (1992) e muitos historiados indianos, há indícios de existência do teatro folclórico desde a civilização do Indu (2.300 – 1750 a.C), e que ao século XV corresponderia, tão somente, o período áureo dessas manifestações e não o seu surgimento. De toda forma, a cronologia proposta por esses autores nos ajuda a visualizar uma linha do tempo da História do Teatro na Índia em relação à História do Teatro Ocidental. Por este motivo, considero sua inclusão nesta pesquisa como uma ferramenta pedagógica à qual poderemos recorrer sempre que necessário para melhor compreender, em termos históricos, a trajetória do teatro na Índia.

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Figure 2 - Cronologia do Teatro Indiano Clássico e Folclórico. Fonte: (Richmond, Swann e Zarrilli, 1990, p. 14-15)

1.3 CHEGANDO CADA VEZ MAIS PERTO

Passo agora a estudar a cultura teatral popular da Índia a partir de alguns elementos constitutivos que se repetem e que nos ajudam a visualizar uma certa ideia de formato, compreendido como “[...] um conjunto de conselhos bem testados”, segundo Barba (1995, p. 8), e os usos que são feitos desses

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conselhos em diferentes manifestações espalhadas pelo país. Deste modo, focando nos aspectos estruturais comuns, pretende-se elucidar como as formas teatrais populares operam, a seu modo, com elementos como a codificação, a sistematização e o estabelecimento de dinâmicas teatrais na/para a cena, e o intérprete e sua relação com a coletividade a que se destinam. Aproximando formas dramáticas por afinidade e parentesco, e dividindo- as segundo seus propósitos, torna-se mais fácil criar um panorama das artes dramáticas populares da Índia, onde o Theru-K-Koothu se insere e com as quais divide a mesma origem ancestral. Iniciamos, assim, uma viagem do macrocosmo em direção ao microcosmo, colocando uma lente de aumento sobre os elementos de linguagem que as diferentes formas de drama popular compartilham, abrindo caminho para as especificidades do Theru-K-Koothu, teatro ritual feito a céu aberto, do estado de Tamil Nadu, no sul da Índia, que serão apresentadas nos capítulos que se seguem. Para tanto, apresento, abaixo, uma tabela que nos guiará neste processo. Nela estão contidos, de modo esquemático e resumido, todos os elementos estruturais e de linguagem de uso recorrente que pude constatar analisando obras de diferentes autores como Varadpande; Richmond, Swann e Zarrilli; Raghavan e Santhi26, que tratam tanto do teatro folclórico quanto do teatro sânscrito e das formas clássicas que dele derivam, e que serviram de suporte para a escrita deste capítulo. Os tópicos da tabela serão desenvolvidos em separado, apresentando alguns exemplos de formas teatrais populares que nos ajudem a elucidá-los. Assim, obtêm-se um duplo ganho: cria-se um painel bastante preciso e detalhado da estrutura destas manifestações em termos nacionais e, ao mesmo tempo, conhece-se algumas delas de modo mais particularizado, o que, acredito, será uma atividade muito prazerosa para aqueles que amam a arte teatral. Não será de se espantar se o leitor encontrar algumas similaridades entre a cultura teatral popular da Índia e outras tradições teatrais espalhadas pelo

26 A saber: RICHMOND, SWANN, ZARRILLI (1990); VARADPANDE (1992 e 2007); RAGHAVAN (1993); SANTHI (1994).

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mundo, criando um certo sentido de irmandade entre tradições culturais que, sabidamente, não tiveram um contato direto significativo, como escrevi no artigo “O Problema da Transmissão do Conhecimento no Oriente-Ocidente” (2013) para a Revista Conceição/Conception:

Segundo o filósofo Karl Jaspers (2011) houve um período da história humana, que vai de 800 a 200 a.C, conhecido como Era Axial. Trata- se do período onde se colocaram ‘as grandes questões filosóficas e espirituais por nós ainda respiradas’ (JASPERS, p. 27), em lugares como Índia, Irã, China, Palestina e Grécia. Este período foi marcado por um profundo paralelismo entre culturas que praticamente não tinham contato direto entre si, movidas por uma necessidade comum de transcender a vida material e entender a complexidade da existência, diante do terror da morte e da tomada de consciência de um sentido maior para a vida, além da experiência mundana. Este momento histórico foi responsável pelo surgimento de importantes postulados éticos, morais e espirituais que, de algum modo, continuam a reverberar em nossas sociedades, tanto no Oriente quanto no Ocidente (CIPPICIANI, 2013, p. 43).

Essa colocação nos ajuda a compreender também um certo cenário mítico-simbólico de onde essas tradições performáticas afloram, acessando conteúdos do que se poderia chamar de uma certa “consciência universal da espécie humana”, cujos registros correm em nossas veias desde tempos imemoriais e que atendem a necessidades muito específicas do gênero humano de entender-se, explicar-se, compreender e explicar o mundo à sua volta, descobrir o sentido último da existência. O teatro folclórico da Índia é um exemplo contundente desta afirmação, em consonância com outras formas teatrais, clássicas e populares, espalhadas pelo mundo. Sigo agora detalhando cada um dos aspectos apresentados na Tabela 1, relacionando determinadas características comuns às tradições teatrais populares a determinadas formas teatrais, de modo que se possa conhecer um pouco deste universo tão rico com alguma profundidade. Para que esta viagem se complete a contento, apresento antes um mapa da Índia, também extraído do livro “Indian Theatre. Traditions of Performance” (1990), de Richmond, Swann e Zarrilli, a que possamos recorrer para que, ao citar uma determinada forma dramática e seu local de nascimento, seja possível visualizá-la em termos geográficos e, assim, compreender como as formas teatrais tradicionais conversam entre si, seja pela proximidade regional e seus deslocamentos

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culturais, seja pelo substrato da cultura hindu que a grande maioria transpassa e alinhava.

Figure 3 - Mapa da Índia. Fonte: Richmond, Swann e Zarrilli, 1990, p. xi.

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1.4 UM PEQUENO ACHADO: UM RELICÁRIO TEATRAL

Tabela 1 - Pequeno Relicário TEATRO FOLCLÓRICO DA ÍNDIA: Ópera Popular (teatro, dança e música)

Categorias: religioso, profano Gêneros Dramáticos: clássico, folclórico, ritual, devocional, moderno TEATRO DA NARRAÇÃO: o TEATRO DO RITUAL: culto aos deuses, TEATRO DO desenvolvimento da narrativa, demônios, ancestrais, seres e elementos da ENTRETENIMENTO: humor, com ou sem a presença de um natureza, espíritos benignos e malignos, animais, sátira, erotismo, teatro de texto escrito, centraliza os minerais e vegetais sagrados etc. revista, vaudeville, crítica demais elementos da encenação social

Temáticas Dramaturgias religiosas, Presença de Rangapooja: Poorvaranga: Uttaranga: Vidhushaka: Sutradhara: mitológicas, texto escrito e limpeza do abertura encerramento o cômico o épico históricas e improvisado. espaço cerimonial cerimonial semi- Texto em verso, históricas, prosa, prosa e contos e verso, com lendas locais, monólogos, romances, diálogos, histórias de recitações, Encantações, Transes, Possessões heróis. pergunta e Os grandes resposta, épicos e os discurso. mitos de origem

TEATRO DOS HOMENS TEATRO DOS OBJETOS: máscaras, sombras, bonecos e tecido. Monodramas/Pandavani: formas Drama popular: formas Podendo ser um monodrama ou um drama dramáticas mais simples, dramáticas mais elaboradas popular. descendentes da tradição dos onde diferentes atores antigos contadores de histórias. assumem diferentes papéis. CARACTERIZAÇÃO MÚSICA E CENOGRAFIA, OBJETOS E ESPAÇO CÊNICO: OUTROS DOS PERSONAGENS: DANÇA: ADEREÇOS: cortinas, dentro do templo ou ASPECTOS: algumas formas presença de cicloramas, tendas e postes, em suas Uso de dramáticas, em especial orquestra ou de palcos desmontáveis, green imediações, na rua a gestos de as mais próximas do one pelo menos um room, ponte entre camarim e céu aberto ou em mão men show, não utilizam músico em todas palco. espaço teatral codificados; nenhum tipo de as formas Algumas formas utilizam objetos improvisado (arena Uso de caracterização. Quanto teatrais de cena e adereços, outras se e semi-arena), palco expressões mais rebuscada vai se populares. sustentam apenas na figura do convencional. faciais; tornando a encenação, Presença do narrador e do texto. codificadas mais comum o uso de coro. Uso extra figurinos, maquiagens e Uso de guizos cotidiano do adereços corporais. nos pés (ator- corpo. bailarino- instrumentista)

Fonte: Criado pela pesquisadora a partir da leitura de Varadpande, 1992.

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1.5 TEATRO FOLCLÓRICO DA ÍNDIA: Ópera Popular (teatro, dança e música)

Em todas as tradições performativas discutidas neste livro, exceto talvez a do teatro moderno, há uma convergência ou síntese de música, dança e drama. Como em outras formas tradicionais de performance asiática, as artes são um conjunto de habilidades praticadas por uma equipe de artistas que, através da criação de padrões verbais, vocais, auditivos, espaciais e visuais, criam uma performance total (RICHMOND, SWANN e ZARRILLI, 1990, p. 5)27.

O fenômeno teatral na Índia assume contornos tão diversos e específicos que, muitas vezes, temos dificuldade em enquadrá-lo nos gêneros dramáticos conhecidos no ocidente. A necessidade ocidental de separar, hermeticamente, o que seja dança e o que seja teatro, por exemplo, é o sintoma mais evidente desta neurose, desta tendência em compartimentar de tal forma os saberes até que deles se extinga toda e qualquer pulsão de vida, restando apenas uma carcaça fria e rígida, que se possa dissecar e, em última análise, controlar, uma vez que a arte não opera fora dos jogos de poderes que atuam sobre os demais campos da sociedade. No entanto, esta separação soa absolutamente estapafúrdia para um artista da cena indiano, em que dança e teatro são representados pela mesma palavra sânscrita, Natya, e dividem saberes, funções e espaços simbólicos desde tempos imemoriais. Do mesmo modo, a distinção entre ator e bailarino pode soar forçosa neste contexto em que “tudo funciona em conjunto”, no qual ambas as habilidades são solicitadas do intérprete: que saiba dançar ou usar poeticamente seu corpo para produzir imagens, símbolos e sentimentos (Nritta -

27 No original: In all the performance traditions discussed in this book, except perhaps that of modern theatre, there is a convergence or synthesis of music, dance and drama. As in other traditional forms of Asian performance, the arts are a composite set of skills practiced by a team of artists who, through the creation verbal, vocal, aural, spatial and visual patterns create a total performance (RICHMOND, SWANN e ZARRILLI, 1990, p. 5).

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Nrittya28) e que seja capaz de representar, assumir um personagem, contar uma história (Natya29). 30 Os gêneros tradicionais de performance indiana combinam todos os três tipos de movimento. A variação na forma ocorre não pela exclusão de um tipo de movimento, mas pelo grau ou proporção que cada tipo particular de movimento é utilizado em cada performance. (RICHMOND, SWANN e ZARRILLI, 1990, p. 5)31

O teatro na Índia é a junção, em diferentes níveis, do teatro, da dança e da música, e é justamente esta diferença de níveis que aproxima ou afasta as formas dramáticas entre si, ou mesmo as aproxima ou afasta daquilo que comumente chamamos de teatro e dança em termos ocidentais. Sim, existem algumas formas que, por suas características, pendem para o drama, ou seja, a ação, sempre conduzida por um fio narrativo, enquanto outras pendem para a expressão de sentimentos e imagens através do movimento corporal, evidenciando uma certa tendência ao lirismo e à poesia em detrimento da narrativa. Afirmar que o teatro na Índia funciona como uma ópera popular não é nivelá-lo e dizer que todas as formas são, portanto, iguais, mas compreender

28 Nritta e Nritya: termos que se referem a dança pura e dança expressiva, respectivamente, de onde surgirá a distinção entre os gêneros dança-drama e dança abstrata dentro da tradição clássica da Índia, conforme podemos ver no Natyasastra e que também se aplicará às formas teatrais populares. 29 Natya: termo utilizado para referir-se ao gênero em que a ação dramática, conduzida pela narrativa de uma história, tem predominância sobre os demais elementos da encenação. 30 Daí resulta o esforço de muitos artistas-pequisadores contemporâneos em rever essas terminologias, criando novos paradigmas para dar conta desta questão tão complexa, como Grotowski, Eugênio Barba e Phillip Zarrilli, citando nomes que claramente influenciam esta pesquisa, para dar exemplos recentes de artistas interessados em ir além desta rígida estratificação de gêneros que, se nada nos ajuda a pensar as formas teatrais da Índia, tão pouco se ajustam às concepções pós-modernas do teatro no Ocidente. Desse desajuste e do desejo de encontrar respostas mais satisfatórias ao cenário atual, surgem novas terminologias como “artes da cena”, “ator-bailarino”, “dança-teatro”, “teatro-físico”, “tradições performativas”, “teatralidades”, “hibridismo”, “campo expandido” entre tantos termos cunhados ou emprestados do Oriente para dar conta de expressar justamente algumas especificidades da arte teatral em que tais diferenciações não sejam possíveis ou tão óbvias, jogando lenha na discussão contemporânea sobre as funções e os limites da arte teatral nas sociedades pós-industriais, chegando a contextos “liminares”, como o define Caballero (2016, p. 15): “[...] não representam nem partem necessariamente de um texto dramático prévio, mas têm- se configurado como escrituras cênicas e performances experimentais, associadas a processos de pesquisa, nas bordas do teatral”. 31 No original: Traditional Indian performance genres combine all three types of movement. Variation in form comes about not through the exclusion of one type of movement but through the degree or proportion of performance that is devoted to a particular type of movement (RICHMOND, SWANN e ZARRILLI, 1990, p. 5).

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que da associação dessas três formas artísticas teatro, dança e música um universo imenso de possibilidades estéticas pode aflorar:

Durante o curso de sua evolução, o estilo performativo de narrar, cantar ou encenar a história, mito, lenda, poesia épica ou hino laudatório aos heróis tomou várias formas interessantes, com diferentes graus de dramatização (VARADPANDE, 1992, p. 88)32.

Este tipo de performance também exige um tipo específico de artista, capaz de transitar entre diferentes linguagens com propriedade e certo grau de profundidade e domínio estilístico. É preciso saber usar o corpo plasticamente no espaço, mas também entender de ritmo, de música e canto, dominar o uso das palavras, representar personagens, criar diferentes caracterizações, por fim, ter algum conhecimento de mitologia, filosofia e religião que ofereça suporte estrutural às performances. Isso se aplica tanto à cultura clássica quanto à popular, em que encontramos artistas especialistas nesta multiplicidade de saberes, irmanados na categoria Natya. As formas teatrais populares podem ser agrupadas em duas categorias principais: religiosas ou profanas. As religiosas se originaram, principalmente, do movimento devocional Bhakthi (séc. XIV - XVII), agregando elementos de tradições devocionais anteriores, como nos diz Varadpande:

Na história do teatro da Índia, os séculos XV e XVI são muito importantes. Foi durante esse período que novas formas dramáticas emergiram na cena. O Movimento Bhakti agiu como um poderoso agente catalítico [...] (VARADPANDE, 1992, p. 312)33.

As profanas nasceram com a função exclusiva de promover entretenimento para as pessoas, no entanto, ambas podem e, não raro, costumam funcionar muito bem em conjunto. Muitas formas rituais carregam em seu bojo elementos de entretenimento, e tantas outras manifestações populares

32 No original: During the course of its evolution the performative style of narrating, singing or enacting the story, myth, legend, epic poetry or hero-lauds took various interesting forms with varying degrees of dramatization (VARADPANDE, 1992, p. 88). 33 No original: In the theatre history of India the 15th and 16th centuries are very important. It was during this period that many new dramatic forms emerged on scene. The Bhakti Movement acted as a powerful catalytic agent[...] (VARADPANDE, 1992, p. 312).

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seculares incluem, em suas performances, elementos do ritual já absorvidos e transformados em elementos cênicos, em linguagem. Ainda segundo Varadpande, “[...] o teatro folclórico nasce do povo, para o povo e é por ele preservado e transmitido” (1992, p. 3) através de arranjos sempre muito próprios e engenhosos, ainda que guardem certas similaridades estruturais entre si. Pode assumir muitas formas e funções sociais, partindo do ritual, passando pelo puro entretenimento, até chegar à profunda crítica social. Por qualquer viés que se olhe, é essencialmente narrativo, carregado de mensagens sociais, religiosas ou morais. É parte fundamental da cultura tradicional da Índia, na qual está imerso a incontáveis gerações, preservados pela memória dos mais velhos e pela transmissão oral dos saberes. No bojo das formas performativas tradicionais incluiem-se: teatro, mágica, acrobacia, artes marciais, dança, música, canto e qualquer outra técnica performativa que se mostre útil aos propósitos da encenação. Não está, portanto, confinado aos palcos, mas a toda uma localidade (vila, região, distrito etc.), imbricado na vida e nos modos de vida das comunidades onde nasce e para as quais produz. Essas manifestações populares assumem diversos formatos como, por exemplo, rituais tradicionais, performances de artistas populares ou monodramas, contação de histórias, bonecos, sombras etc., dos quais trataremos mais adiante, e é da junção dessas possibilidades que, gradativamente, vão surgindo as formas mais estruturadas de drama popular por toda a Índia, que agregam muitos artistas e acabam por criar diferentes estilos de teatro popular, do qual o Theru-K-Koothu é apenas um exemplo regional. Apenas para efeito de estudo e compreensão das diferentes facetas que o teatro popular assumiu por toda a Índia, sigo, neste capítulo, apresentando algumas manifestações populares agrupadas em três categorias distintas, segundo sua natureza e propósito, partindo de elementos de linguagem recorrentes: Teatro da Narração, Teatro do Ritual e Teatro de Entretenimento. Esta é a divisão proposta por M. L. Varadpande (1992), no livro “History of Indian Theatre. Loga Ranga: Panorama of Indian Folk Theatre”, e adotada neste trabalho apenas para facilitar a leitura e a compreensão das diferentes

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formas dramáticas apresentadas, dado seu grande número e riqueza de detalhes. Na realidade, todas as formas dramáticas populares da Índia são, em essência, narrativas; o que vamos conhecer são as soluções estéticas encontradas em diferentes manifestações teatrais que vão desde a simples recitação da história com texto memorizado e/ou improvisado até os dramas populares mais estruturados que se valem de textos escritos, e tudo que há de possibilidades entre estes dois extremos. Do mesmo modo, ritual e entretenimento, em muitos momentos, caminham juntos no teatro folclórico da Índia. Entre a forma dramática ritual mais pura e o puro entretenimento, há uma gama enorme de manifestações teatrais e a fronteira entre ambos é generosamente elástica, tornando um exercício interessante perceber os diferentes formatos cênicos e opções estéticas que surgem deste encontro entre profano e sagrado. No livro ‘Indian Theatre. Traditions of Performance’ (1990), os autores apresentam um esquema em forma de esferas para explicar os diferentes gêneros teatrais da Índia e suas intersecções, e como os diferentes gêneros acabam por exerce influências recíprocas uns sobre os outros:

Figure 4 - Os diferentes gêneros dramáticos. Fonte: Richmond, Swann, Zarrilli, 1990, p.10.

Nota-se, observando a figura acima, que os autores consideram o gênero clássico ou como aquele para onde convergem todos os demais gêneros dramáticos, ou como aquele que a todos alimenta; em ambos os casos, sua posição é obviamente central, como a representação visual escolhida claramente evidencia. Não posso deixar de observar que tal opção acaba por,

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talvez inconscientemente, reforçar um certo estigma de superioridade da cultura clássica sobre a cultura popular na Índia, o que é, sem dúvida, um dos motivos pelos quais, no ocidente, sabe-se tanto sobre o Kathakali, por exemplo, e muito pouco sobre o Theru-K-Koothu. Cito este exemplo, aparentemente inocente, apenas para demonstrar como a cultura popular é sistematicamente desconsiderada, diminuída em relação à sua irmã rica, tão profundamente acessada e esmiuçada por artistas e pesquisadores do mundo todo, relegando a uma zona de sombra cultural e artística centenas de formas dramáticas também de grande riqueza. Esta pesquisa se dedica a contribuir para uma melhor compreensão deste tipo de pensamento, de modo que a beleza singular das formas teatrais populares também possa ser conhecida e apreciada, não em relação às formas clássicas, mas em relação à sua própria natureza, finalidade e princípios. O teatro indiano – excetuando-se as variantes modernas-contemporâneas - é, majoritariamente, narrativo, seja ele clássico ou popular, ritualístico, devocional ou de entretenimento (considerando todas as incontáveis hibridações possíveis). Todos descendem de formas narrativas elementares, diferindo basicamente em termos técnicos pelo número de recursos que colocam à disposição do intérprete, sendo igualmente efetivos em seus contextos sociais. O teatro sânscrito, por exemplo, com sua rigorosa sistematização, e o teatro popular, cuja essência consiste justamente na flexibilidade de formas, atendem prontamente às necessidades dos públicos a que se destinam: o primeiro, às elites, representadas pelas castas mais altas e eruditas; o segundo, às populações iletradas da Índia, basicamente de origem rural e pertencentes às castas mais baixas, e que têm como alicerce a extensa e profícua tradição narrativa da Índia. Exatamente por constatar esta importância é que começo este estudo pelo Teatro da Narração, entendido como o gênero que perpassa e alinhava todas as formas teatrais folclóricas da Índia em diferentes gradações, pedra fundamental da cultura popular, cujas fundações são o profícuo manancial literário hindu, elaborado e reelaborado pela tradição oral ao longo do tempo e

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levado adiante pela figura ancestral e mitológica de Manu, o primeiro homem e, portanto, o primeiro contador de história.

1.6 TEATRO DA NARRAÇÃO

Neste tópico trato, especificamente, das tradições dramáticas imersas na tradição oral, associadas ou não a aspectos rituais e divididas, grosso modo, em dois gêneros específicos: Épicas (grandes narrativas memorizadas e recitadas, como, por exemplo, o Mahabharata, transformado em baladas e poemas- canção, presente na tradição dos contadores de história de toda a Índia) e Dramáticas (como os monodramas, em que o narrador assume diferentes papéis e cria diálogos improvisados, associados a extensos trechos de recitação, no melhor estilo “homem teatro da idade média” ou como o “manipulador de marionetes chinês”):

Figure 5 - O teatro de bonecos da Idade Média no Ocidente e o Manipulador de Bonecos Chinês. Em ambas as tradições, vemos prevalecer a ideia do ‘Homem Teatro’. Fonte: Cedida do Arquivo Pessoal Profº Drº Cyro Del Nero (in memoriam), não sendo possível identificar a fonte de onde as imagens foram retiradas.

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Tanto em um gênero como em outro, parte-se do mesmo manancial literário, mítico, religioso, histórico e semi-histórico que remonta ao Rig Veda, com seus hinos em forma de diálogo, ele próprio considerado como uma forma primitiva de drama. Essas formas, conhecidas também como narrativas dramatizadas ou poemas narrativos, ficam no meio termo entre o teatro e a recitação, se valendo de poucos, ou mesmo nenhum, recursos cênicos adicionais, além da presença física do contador-narrador com seu leque de habilidades e talentos construídos por anos de observação, experimentação e improvisação. Este tipo de poesia narrativa aparece nos Vedas, na narração de eventos históricos e semi- históricos, lendas, mitos, fábulas, contos de heroísmo e amor, sendo transmitidas em forma de baladas que eram, originalmente, cantadas e depois, cantadas e encenadas, passadas de geração a geração pelos mais velhos, depositários deste saber ancestral. Aquele que dominava tal saber era o Aitihasik, e chegou-se mesmo a falar na existência de um Itihasa Veda, ou conjunto de histórias ancestrais da Índia, mitos de origem, nunca encontrado. Possivelmente, tal livro nunca tenha existido, senão no plano do desejo de tentar reunir, em apenas uma grande obra, este tesouro da cultura popular da Índia, como forma de registrá-la e preservá-la para a humanidade. No entanto, dadas as dimensões do território indiano, o grande número de línguas existentes, de tribos aborígenes e povos estrangeiros que vieram em sucessivas ondas de invasões, seria mesmo praticamente impossível levar a cabo tal empreitada. Ademais, podemos pensar também que registrar essas narrativas através da escrita poderia representar uma redução de sua potência original, onde a improvisação e a singularidade de cada contador- narrador não poderia ser abarcada. Como registrar a forma única como cada contador, em cantos remotos da Índia, dava conta de narrar uma mesma e tão conhecida história? O que restaria seria um texto frio, genérico, que certamente não daria conta da manifestação original, ainda que o projeto de reuní-los fosse, de fato, muito sedutor. Quanto à temática, ela geralmente é proveniente dos épicos Mahabharata e Ramayana, dos puranas traduzidos para as línguas regionais, de contos

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históricos e semi-históricos, de contos tradicionais de amor e heroísmo, histórias de heróis locais etc. É curioso perceber como, nas formas teatrais rurais, a mitologia e os contos estão tão impregnados pela vida cotidiana que fazem com que a ficção seja assumida como um fato. Os personagens, muitas vezes, deixam de ser figuras fictícias para se tornarem “pessoas de carne e osso”, entidades humanas encarnadas (avatares), que moram num vilarejo próximo ou distante, “conhecido de um conhecido de um vizinho meu”, como bem nos aponta o autor:

A Mitologia ainda faz parte da cultura viva da Índia, particularmente da Índia rural. Divindades do panteão indiano estão profundamente enraizadas no dia-a-dia das pessoas e devido à sua íntima relação, são mais uma realidade do que uma ficção para eles. O teatro folclórico indiano é essencialmente de caráter mitológico, tomando emprestados temas e convenções livremente em seu repertório. Personagens de épicos, Puranas, livros religiosos aparecem como uma realidade viva no palco do teatro folclórico. A convenção de adorar Ganapati, o removedor de obstáculos, no começo de todo trabalho é tido como auspicioso vem diretamente das escrituras para o teatro. Porque, de acordo com o próprio Natyashastra, o drama em si é uma cerimônia religiosa, um Yajna (VARADPANDE, 1992, p. 7)34.

Há um grande número de narrativas dramatizadas extraídas dos puranas, literatura importantíssima para a tradição védica, compondo um corpo narrativo extremamente complexo e heterogêneo, o que faz com que me debruce sobre eles com mais profundidade. Acredita-se que os puranas pertençam à classe dos livros para serem memorizados (smirtis), escritos por homens santos e sábios, acerca de assuntos de ordem filosófica, espiritual, ética e moral. A palavra purana quer dizer “(...) aquilo que pertence à tradição, a história antiga, ao passado mítico e/ou histórico” (Varadpande, 1992, p. 7). Os puranas ficaram conhecidos na tradição védica como os “vedas do povo”, concentrando um manancial riquíssimo de histórias de grande valor, escritas de tal modo que a

34 No original: Mythology is still a part of the living culture of India, particularly of rural India. Deities of the Indian pantheon are deeply rooted in the day-to-day life of the people and due to their close association, they are more a fact then a fiction to them Indian folk theatre is essentially mythological in character, borrowing themes and conventions liberally from its repertory. Characters from epics, Puranas, religious books appear as a living reality on the stage of folk theatre. The convention of worshipping Ganapati, the remover of obstacles, in the beginning of every auspicious work comes straight from the scriptures to the theatre. Because, according to the Natyashastra, drama itself is a religious ceremony, a Yajna (VARADPANDE, 1992, p.7).

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parcela mais simples da população pudesse compreendê-las e delas tirar algum proveito existencial. Tal literatura, tendo sido absorvida pelos contadores de histórias tradicionais, foi se espalhando por toda a Índia, criando diferentes versões regionalizadas de uma mesma história, sempre conectada a suas origens. O Mahabharata, por exemplo, reconhecido épico hindu, é considerado um tipo de purana e, também, de itihasa (mito de origem). Igualmente um katha (história) e akhyana (modo tradicional de se relatar um evento), através das gathas (baladas, poemas-canção ditos em verso). Aquele que domina este repertório é o gathin ou gatuvid, figura recorrente nas literaturas hinduísta, budista e jainista. Os itihasas, puranas, gathas eram narrados à maneira tradicional de se contar histórias na cultura popular (akhyanas) em ocasiões importantes, como eventos sociais (casamentos, celebrações, nascimentos, mortes) e religiosos (festivais, rituais). Contar uma história, nestas ocasiões, era considerado uma forma bastante refinada e auspiciosa de oferenda (pooja) e os sacerdotes brâmanes empenhavam-se muito em memorizá-las e estudá-las tanto quanto os próprios Vedas. Para se dar conta deste universo de histórias, era necessário conhecer algumas regras gramaticais, em especial a etimologia, o estudo de composição das palavras (vedanga), ter conhecimento significativo sobre a ciência e a filosofia (vidyas), sobre diálogos teológicos importantes (vakovakyam), como por exemplo, a célebre conversa entre Arjuna e Krishna, no Bhagavat Gita. Um contador tradicional, dentro desta perspectiva, é o depositário genuíno de um extenso e complexo saber ancestral, que abrange diversos campos do conhecimento humano, colaborando para a disseminação de aspectos filosóficos, éticos e morais da filosofia hindu entre as camadas menos favorecidas da população, geralmente iletradas. Um bom exemplo de narrativa dramatizada dentro do ritual é a cerimônia Yajana, o sacrifício do cavalo, tradicional ritual védico no qual dois sacerdotes de comunidades distintas travam uma batalha poética contando, em praça aberta, diferentes histórias tradicionais, de modo muito similar ao que fazem hoje os rappers, poetas e MC´s nos slams de poesia falada, ainda que não haja – no

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representante moderno – um valor religioso (mas sim, um valor ritual renovado). No entanto, o sentido de disputa, domínio da linguagem falada e repertório literário é o mesmo. Há ainda, em comum, o fato de que ambos surgem em contextos marginais e liminares, caracterizando-se como fenômenos culturais e sociais nas “[...] bordas do teatral” (Caballero, 2016, p. 16). Embora não seja meu intuito aprofundar essa discussão nesse momento, não deixa de ser interessante pontuar tal similaridade entre manifestações culturais que se dão em contextos culturais, sociais e históricos tão diversos. Voltando à cerimônia do cavalo, os dois atores-combatentes, conhecidos como sutas, cantavam, dançavam e recitavam até que a disputa ritual chegasse a termo. Os Sutas representavam as castas de artistas populares especializados em repentes e batalhas literárias dramatizadas. Eram os nascidos de mãe Brahmana (casta dos sacerdotes) e pai Kshatriya (casta dos guerreiros/militares), de onde descende a casta dos Chakyars de Kerala, criadores do Kudiyattam, forma tradicional do teatro clássico indiano. Posteriormente, na evolução do teatro popular, o Suta se tornará o sutradhara, narrador-diretor de cena em cena, enquanto a ação dramática será realizada pelo Shailusha, ou ator-dançarino. Diversas formas de teatro popular da Índia se estruturam neste binômio Sutradhara–Shailusha, sendo o Shailusha, muitas vezes, o contraponto cômico, a figura épica do Sutradhara. Esta nomenclatura irá se modificar de região a região, mas o sentido e a função permanecerão praticamente idênticas em todas elas. Na tradição do Theru-K-Koothu, por exemplo, eles se chamarão sutradhara e vidushaka e, posteriormente, se fundirão numa figura única, o kattiyakaran, de que tratarei posteriormente. Os Sutas são, portanto, o elo material e simbólico entre a profícua tradição narrativa da Índia e os primórdios de suas dramatizações. Embora estejamos tratando de uma cultura sedimentada sobre a oralidade, é importante pontuar que a literatura escrita não era ignorada. Ao contrário, o vasto material literário hindu era memorizado pelos artistas para depois ser transformado em performance cênica, com diferentes graus de dramatização. O próprio Patanjali, em seu tratado de gramática, Mahabhashya,

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escrito em 2 a.C., descreve que há três técnicas performativas para ilustrar uma história: (1) recitação simples; (2) recitação com dramatização simples e (3) drama, propriamente dito. No primeiro, o contador recita o texto em verso; no segundo, além da recitação, há a possibilidade de se utilizar alguns artifícios, como, por exemplo, uso de ilustrações, bonecos, ou ainda, pintar o rosto dos atores com diferentes cores, formando dois grupos diferentes para narrar a história etc.; no terceiro, as possibilidades explodem para formas mais complexas de dramatização, como vemos no Theru-K-Koothu, de Tamil Nadu, ou no Kuchipudi, de Andhra Pradesh, em que todos os elementos performativos são colocados a serviço da encenação (divisão de papéis, diálogos, recitações, canto, dança, música, uso de figurino, maquiagem, adereços e cenografia). Quando pensamos o teatro popular da Índia, estamos falando, ainda e basicamente, dessas três possibilidades de construção cênica, sendo utilizadas em diferentes arranjos locais, bem ao gosto de suas comunidades, numa gama extremamente generosa de manifestações teatrais populares espalhadas por todo o país. Para que se tome como exemplo, há três formas possíveis de recitação do Mahabharata, um dos textos mais importantes para a cultura teatral popular: (1) recitar apenas o texto; (2) recitar o texto com algum acompanhamento musical, e (3) recitar o texto com auxílio do canto, da dança e da música. Originalmente, tudo era feito por apenas um único artista, numa técnica tradicional conhecida como pandavani ou monodrama. Com o passar do tempo, formas mais elaboradas de drama foram surgindo, com a divisão de papéis, o surgimento do coro, a configuração da orquestra de músicos e a utilização de elementos cênicos como cenografia, figurinos, adereços e maquiagem. Podemos pensar o teatro popular da Índia como um grande espectro que vai dessas formas narrativas mais simples ao drama estruturado, com a divisão de papéis, texto escrito ou improvisado (memorizado) e o uso mais ou menos sofisticado do Aharyabhinaya (elementos complementares da ação dramática, como maquiagem, figurinos, cenografia etc.). Para que se compreenda este percurso, citarei algumas formas dramáticas narrativas que nos permitam criar um panorama desta tradição

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milenar de contar histórias. Com este propósito, começo pelo Pandavani, originário no estado de Madhya Pradesh, na região central da Índia. Esta manifestação surge na tribo Chhatisgarh e se dedica a narrar episódios da vida dos Pandavas (Mahabharata), com o duplo objetivo de entreter e instruir, binômio observável nas mais diversas tradições teatrais populares da Índia, imbuídas - além do valor estético intrínseco - de um valor ético, filosófico, moral e pedagógico muito importante para as comunidades rurais e tribos aborígenes, geralmente iletradas ou com baixo nível de instrução formal. Sua estrutura é bastante simples: o narrador corifeu carrega consigo um címbalo e uma tambura, instrumentos musicais tradicionais, que usa não apenas para extrair alguma sonoridade, mas como adereço cênico transformável segundo sua própria imaginação e necessidade dramática. A tambura pode virar uma espada ou uma maça, por exemplo. O címbalo pode ser uma lamparina e assim por diante, num jogo lúdico, improvisado e bastante descontraído. Ele é acompanhado por dois músicos que tocam um instrumento percussivo (tabla) e um melódico (harmonium) e que funcionam também como coreutas. De modo geral, a narrativa é feita em verso, mas o narrador pode se valer da prosa, caso deseje valorizar alguma passagem em especial da história. Veja: https://www.youtube.com/watch?v=FkazCSWeq9E Nesses casos, ele pode estabelecer um diálogo como os músicos- coreutas, que responderão em uníssono com um “sim” ou “não”, às perguntas feitas pelo narrador. A encenação comumente é intercalada por números musicais, para enriquecer, incrementar ainda mais a narrativa. O narrador assume ainda diferentes papéis, usa diferentes vozes para dar vida aos personagens, trejeitos corporais. Uma gestualidade bem simples, coerente com as necessidades da cena, sem muita elaboração ou estilização. Sua movimentação corporal é natural, espontânea, sem nenhum tipo de movimento préestabelecido ou o tradicional uso dos gunghuros (guizos) nos tornozelos, que aparecem em muitas formas populares e clássicas de teatro, dança e dança dramática. Este formato cênico bem simples é o que passarei a chamar, daqui em diante, de monodrama ou célula teatral primária, que se aplica a muitas formas teatrais tradicionais com pequenas variações, acréscimos e

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regionalizações. Dessa forma, quando essas expressões forem utilizadas, será possível compreender, com clareza, o que elas abarcam como formato teatral. O Oja-Pali, de Assam, por exemplo, que se estabelece no século XVII, se vale desta célula teatral primária e lhe acrescenta alguns outros elementos como números de dança e música bem desenvolvidos, uso de uma linguagem gestual mais elaborada e codificada oriunda do hastabheda (gestual de mãos codificado, proveniente da tradição clássica35), além de um grande número de personagens a ser representados. Sua origem remonta ao culto de Manasa, a Deusa Serpente, cuja história está escrita no “Asamese Padma Purana”, literatura e temática regional, em forma de verso, ao contrário do Pandavani, por exemplo, cujas histórias remontam ao épico Mahabharata. Oja é o narrador e Pali seus assistentes músicos-coreutas. Sob a direção do Oja, todos cantam e dançam, e cabe também a ele assumir os diferentes personagens da narrativa, nos mesmos termos do narrador-corifeu do Pandavani. Neste monodrama específico, há um uso mais acentuado da dança e da música para enriquecer determinadas passagens da narrativa, ilustrá-la, torná-la mais atrativa como encenação, incluindo números de dança feminina. Veja: https://www.youtube.com/watch?v=x3ejAq6jOGE A descrição que Varadpande faz da figura do Oja exemplifica, com clareza, a sua relação com a figura do Suta e, posteriormente, do Sutradhara, e nos dá uma dimensão concreta de sua importância e da gama de ações que ele congrega nas diferentes tradições populares:

O ator protagonista representava o drama assumindo diferentes papéis alternadamente, ao mesmo tempo dando todo o contexto e informações relevantes, ligando as cenas através de sua narrativa e liderando seus companheiros e músicos. Era uma performance grandiosa (VARADPANDE, 1992, p. 91)36.

É importante relembrar, segundo apresentado na Figura 4 sobre os diferentes gêneros dramáticos e suas interrelações, que o gênero

35 Coomaraswamy, A. The mirror of gesture: being the Abhinaya Darpana. New Delhi: Munshiram Manoharlal Publishers, 1970. 36 No Original: The single actor was presenting the drama assuming different roles alternately, at the same time giving all relevant background and information, linking the scenes by his narrative and leading his associates and musicians. It was a great performance (VARADPANDE, 1992, p. 91).

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folclórico/popular está intrinsicamente ligado aos gêneros ritual/devocional dentro da cultura hindu. Muitas manifestações dramáticas populares ocorrem dentro de festivais religiosos, ligadas ao culto ou à mitologia de uma divindade específica, de um homem santo ou mesmo de um ancestral, espíritos da natureza etc. É o caso, por exemplo, do Tal-Maddale de Karnataka, que surge por volta de 1.556 d.C, considerado o predecessor do Yakshagana, estilo teatral popular que representa, para o estado de Karnataka, o mesmo que o Theru Koothu para o estado de Tamil Nadu. Ambos são exemplos do que convencionei chamar de drama popular completo, com uso de todos os elementos de linguagem que caracterizam este tipo de manifestação popular. A estrutura cênica corresponde à da célula teatral primária: há um narrador chefe ou bhagavata e seus assistentes, os Arthadharis, cuja função é “explicar” os versos do bhagavata. Inicialmente, o narrador e seus assistentes entoavam orações para diferentes divindades dentro dos templos. Com o passar do tempo, introduziu-se a narração dos épicos, dos puranas e de histórias oriundas da mitologia hindu. Trata-se de uma recitação em verso ainda bastante simples, sem vestimenta, maquiagem ou uso de movimentação corporal elaborada. Toda a narrativa é feita sentada, conduzida em verso pelo narrador. Os arthadharis ora assumirão os personagens da história se valendo de pequenos diálogos improvisados, ora funcionarão como coro, respondendo em uníssono às perguntas do narrador. Há o uso de instrumentos musicais simples como o címbalo (Tal) e um tipo de tambor local (maddale), que dão nome do estilo. Veja: https://www.youtube.com/watch?v=eZaMt07RsTM Estreitando ainda mais os laços entre popular e devocional/ritual há o Gondhal, de Maharashtra, que, valendo-se da mesma estrutura cênica apresentada, investe fortemente na junção entre narrativa e ritual, valendo-se de histórias mitológicas, contos tradicionais e tribais, hinos laudatórios de heróis etc. O Gondhal é uma forma que evoluiu do culto aos Bhutas (espíritos da natureza, ancestrais, demônios, divindades tribais etc.), preservando uma certa áurea mítico-ritual, que os conecta à Deusa Parvati “[...] the conscious substance of

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universe” (Varadpande, p. 83)37, e antes mesmo dela, á divindade tribal Mata, sincretizada posteriormente na figura de Parvati. Veja: https://www.youtube.com/watch?v=ZmIUaU9LynA. Nesta manifestação específica há, além da recitação de histórias, os momentos de transe e possessão do narrador-chefe, o Naik, culminando no oráculo ou o momento quando o narrador-chefe, tomado por uma divindade ou um espírito, faz profecias e distribui bênçãos entre os presentes, como o autor bem exemplifica:

Esta informação nos leva a uma conclusão simples de que o Gondhal era inicialmente uma dança tribal realizada em homenagem ao espírito da deusa. Os artistas deviam cantar as canções que descreviam a história da deusa numa performance frenética. A performance devia terminar com um drama de possessão e oráculos, como pode ser visto nas performances para os espíritos do litoral de Karnataka (VARADPANDE, 1992, p. 94)38.

Nos moldes da mesma estrutura descrita, há o Burra Katha39, de Andhra Pradesh. O próprio nome do estilo nos remete à tradição de contar histórias em versos musicados, que é a base de todo monodrama indiano. burra é um tipo de instrumento musical percussivo e katha quer dizer história. Neste estilo, agrega- se, à célula teatral primária, alguns elementos do ritual como o poorvaranga e o uttaranga (orações iniciais e finais), a conclusão da narrativa com um ensinamento moral bem explícito, uso de maquiagens, figurinos, além da inclusão de temas sociais e políticos. Assista à cena inicial do filme Vanaja, na qual aparece uma apresentação de Burra Katha: https://www.youtube.com/watch?v=Xcg174lywN0 Há o Keertana, que se espalhou por toda a Índia e faz a conexão mais evidente entre a cultura popular e os rituais devocionais, principalmente dentro da tradição Vaishnava, através do culto ao deus Vishnu e seus avatares, em

37 Tradução livre: "A substância consciente do universo" (Varadpande, 1992, p. 83). 38 No original: This information leads us to a simple conclusion that Gondhal was initially a tribal dance performed in honor of a ghost goddess. The performers might have been singing the songs depicting the story of the goddess in their frenzied performance. The performance may have been concluded by a drama of possession and oracles, as seen in the ghost performances of coastal Karnataka (VARADPANDE, 1992, p. 94). 39 Para conhecer um pouquinho deste estilo, mas, sobretudo, para compreender o que é a vida no meio rural da Índia, com seus rituais, costumes, tradições e formas de arte, recomendo que se assista o filme telugu VANAJA (2006), dirigido por Rajnesh Domalpalli, sobre uma história que constituiu sua dissertação de mestrado em Belas Artes na Universidade de Columbia, disponível no Youtube.

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especial Krishna, o deus flautista. Keertana quer dizer “louvar, exaltar, através do canto e da música”, uma tradição que remonta ao Rig Veda e que alcança não apenas a cultura popular, mas também a cultura clássica. Veja uma das muitas formas de Keertana: https://www.youtube.com/watch?v=GXjcHICmWN8. Já o Powada, de Maharashtra, tem como diferencial o fato de priorizar histórias de grandes heróis marathis, optando por narrativas semi-históricas, em que fatos da vida de determinado herói se misturam a fatos ficcionais, se valendo da mesma célula teatral primária. Veja: https://www.youtube.com/watch?v=eEnPcawGI5M. Existe ainda uma qualidade de monodrama que ocupa uma existência liminar entre a célula teatral primária e o drama teatral completo, com a divisão de papéis e personagens, uso explícito de teatro, movimentação corporal, canto, dança, música, além de elementos como maquiagem, adereços, figurinos etc. Dentre eles, podemos destacar o Villu Pattu, de Tamil Nadu, que, além do narrador-chefe, conta com um coro de sete ou oito pessoas que auxiliam no desenvolvimento da narrativa, respondendo às perguntas feitas pelo narrador, em encenações que podem durar horas. A narrativa se desenvolve com os artistas sentados e há um uso rudimentar dos gestos de mão e expressões faciais codificados. Outro aspecto interessante com relação a esta forma teatral, é o aparecimento de temas sociais e políticos que são “discutidos” em cena entre o narrador-chefe e o coro de forma quase maiêutica, num sistema de pergunta e resposta bastante interessante e único. Veja: https://www.youtube.com/watch?v=FkjmZ9meROg. Outras formas teatrais que anunciam o estabelecimento do drama popular pleno são o Daskathia e Chhaiti Ghoda, de Odissa, em que tanto o narrador como seus colaboradores usam guizos nos pés, assumem personagens, desenvolvem diálogos, monólogos, recitação em verso, anedotas, estabelecendo um jogo teatral dinâmico e pulsante. No Chhaiti Ghoda, por exemplo, os atores encenam a lenda do cavalo que o deus Rama deu ao pescador que o auxiliou a atravessar o rio no período do exílio e vemos claramente a distribuição de personagens nas figuras do Rauta (narrador-chefe, homem), Rautani (assistente, mulher) e o ator que interpretará o cavalo

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dançarino vestido em sua burrinha. Daskathia: https://www.youtube.com/watch?v=zu-0BIOAvP0. Finalmente, vemos o Kuttu, que dará origem ao estilo clássico conhecido como Kudiyattam, de Kerala. Nele, já se nota alguns elementos característicos do Kudiyattam: o uso acentuado das expressões faciais, em especial do movimento dos olhos (netrabhinaya), o desenvolvimento de outros aspectos expressivos próprios da tradição clássica, como o uso de gestual de mãos codificado, movimentação corporal extracotidiana, maquiagem ricamente elaborada e com significado muito preciso, uso de figurinos e adornos também pensados em relação à natureza exterior e interior dos personagens. As narrativas também se tornam mais desenvolvidas, estreitando laços com toda a dramaturgia do teatro sânscrito. Veja um pouco do Kudiyattam: https://www.youtube.com/watch?v=sHGfu-wdVfw. Passo agora a apresentar algumas formas teatrais populares que, partindo da célula teatral primária, acrescentam alguns elementos cênicos para incrementar suas narrativas, conferindo-lhes um ganho significativo em termos estéticos e estruturais, como o uso de figuras pintadas em tecido, bonecos de diferentes naturezas e teatro de sombras, por exemplo. Essas formas dramáticas estabelecem um elo bastante evidente entre as tradições narrativas sobre as quais vimos discorrendo e a tradição do teatro de animação, levando a célula teatral primária a outro estágio evolutivo que acabará por nos revelar toda a grandeza do drama popular hindu em toda sua profusão de formas e possibilidades estéticas. Portanto, traçar este percurso evolutivo é uma forma de compreender como as formas dramáticas mais complexas, como o Theru-K- Koothu, se estruturaram e ganharam o formato que hoje conhecemos. Não se trata apenas de fazer um compêndio de formas teatrais populares indianas, mas de elucidar este processo evolutivo para poder compreender melhor determinados aspectos do Theru-K-Koothu que estão intimamente ligados a este processo artístico-histórico evolutivo. Começaremos pela tradição dos Picture Showmen, ou artistas que narram histórias com auxílio de figuras pintadas em tecido. Ele é descrito como o andarilho, artista mambembe, o menestrel que assume grande importância

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especialmente na tradição Jainista. Existem registros desta modalidade de monodrama animado desde o século 4 a.C., mas será Patanjali a primeira pessoa a citá-los diretamente em seu tratado Mahabhasya, no século 2 a.C. Não podemos deixar de ressaltar sua importância para compreensão da História do teatro na Índia, dado que sua existência marcou de modo bastante profundo não apenas o teatro popular, mas também o teatro sânscrito, toda a tradição teatral clássica que dele descende, com irradiações que chegam até mesmo ao teatro moderno. Também é interessante notar, num país onde o cinema é uma paixão nacional, que a Pad Tradition seja a versão rudimentar e primitiva da arte cinematográfica. A tradição mais conhecida dentro deste grande universo de formas dramáticas narrativas, que chamarei daqui em diante de monodrama animado, é a Pad (tecido) Tradition, que surge no estado do Rajastão e recebe o nome de Chitra Katha - o primeiro quer dizer tecido e o segundo, história. As histórias são narradas por um dueto, geralmente um casal. O homem se encarrega de levar adiante a história enquanto a mulher, sua esposa, vai desenrolando um tecido pintado, como um pergaminho, com imagens que ilustram a narrativa, acrescentando-lhe um impacto visual evidente. A mulher pode também explicar as figuras através de canto, dança e algum tipo de atuação bem simplória. Tal tradição não é vista apenas como mero entretenimento, ela assume também uma função ritual como bem nos lembra Varadpande: “[...] Pad for the people is a kind of mobile temple and Bhopa (narrator) its priest” (Varadpande, p. 117)40. Sua função ritual é atrair boa fortuna, saúde, prosperidade. Outra forma teatral um pouco mais desenvolvida que sua irmã do Rajastão aparece em Maharashtra, numa casta de artistas nômades, ciganos. O narrador usa um instrumento de corda, uma ekatara, para acompanhar a recitação narrativa (kathi), unindo o uso do Pad/chitra (tecido) ao uso do thakar (bonecos e teatro de sombras). A temática vem dos épicos, dos Puranas e de lendas locais. A equipe também é sensivelmente maior. Temos o narrador-chefe, um assistente, com quem costuma travar pequenos diálogos improvisados, e uma

40 Tradução livre: “[...] Pad para o povo é uma espécie de templo móvel e Bhopa (narrador) seu sacerdote” (Varadpande, 1992, p. 117).

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pequena orquestra de três músicos. Apesar disso, não há grande dramatização. Tudo é feito no chão, sentados, enquanto vão tocando, mostrando as figuras, os bonecos e, eventualmente, assumindo personagens nos momentos nos quais um rústico diálogo se estabelece. Em Bengal e Bihar, veremos a incidência do Patua, cujo diferencial a estrutura apresentada é apenas temático. Mais ligado às origens tribais às pinturas no tecido, mostradas verticalmente e de modo lento, descrevem os Yamapatras ou os mundos inferiores e os diferentes sofrimentos que se experimenta em cada um deles, de acordo com a falta cometida. Nesses mesmos locais, há também uma tradição bastante consistente de pintar trechos destas histórias nos muros das casas, de modo a receber proteção e bênçãos das divindades primitivas regionais, além da pintura de antepassados desencarnados que, em outra dimensão, aguardam os cuidados de seus familiares através de oferendas e orações. Acredita-se que esta tradição remonte as pinturas rupestres aborígenes:

Provavelmente, o propósito de numerosas pinturas rupestres executadas pelos aborígenes pré-históricos foi para registrar de forma visual a história de sua tribo, a história de seu corajoso povo, habilidoso na caça, sacrificando suas vidas pela comunidade, até se tornaram espíritos. (VARADPANDE, 1992, p. 120)41

O Garoda, de Gujarat, apresenta como diferencial a possibilidade de contar histórias de modo simultâneo, criando enredos mais elaborados, com histórias secundárias, que se interlaçam através das imagens nos tecidos expostas tanto na horizontal, como na vertical. Outro tipo de monodrama animado que também aparece com frequência nas formas teatrais populares é aquele que se vale do uso de bonecos de manipulação direta e indireta, dando suporte ao desenvolvimento da narrativa. Os mais conhecidos são, sem dúvida, a tradição dos bonequeiros do Rajastão e de Kerala, influenciando também o teatro clássico. Eles normalmente são utilizados de duas formas: 1) quando a história tem valor secundário e o foco é

41 No original: Probably the purpose of numerous cave paitings executed by the pre-historic aboriginals was to record in visual form the history of their tribe, the history of their brave people who were skilled in animal hunt, who sacrificed their lives for the community and became spirits. (Varadpande, 1992, p. 120)

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saborear a maestria do manipulador, em que se enquadra a tradição do Rajastão; 2) quando os bonecos são utilizados para ilustrar uma história, podendo ser de luva, vareta, fio, sombras, como vemos em Kerala e Odissa. Em Kerala, vemos duas tradições bastante fortes: a primeira recebe o nome de Pava Kuthu, se valendo do mesmo repertório narrativo do Kathakali, cujo foco é mais ilustrativo. O segundo é o Thol Pava Kuthu, ou tradição de teatro de sombras, cuja essência permanece mais associada a aspectos ritualísticos, acontecendo principalmente dentro de templos em festividades religiosas. Nestas ocasiões, as apresentações podem durar de sete a vinte e um dias, com a introdução de novas narrativas a cada noite. A luz que dá vida à encenação é a mesma luz do pooja (altar), a lamparina cerimonial (kuthu matham) acesa nos rituais introdutórios (poorvaranga). Veja Thol Pava Kuthu: https://www.youtube.com/watch?v=NrL0G8U_VxE. O que vimos até aqui nos dá uma clara percepção da importância da palavra, escrita ou falada, para todas as formas teatrais descritas, seja ela em prosa, verso, narrativa-descritiva, recitada, cantada ou com a incidência de diálogos mais ou menos desenvolvidos, que acabarão por contribuir para o surgimento das formas dramáticas populares mais complexas, como o Theru-K- Koothu, o Yakshagana e o Kudiyattam, por exemplo. É interessante constatar também que grande parte da literatura hindu que conhecemos: os épicos, a mitologia, os contos, lendas e romances populares foram primeiro estruturados pela tradição oral e só posteriormente registrado no papel, e que, mesmo após seu registro, foi ainda através das tradições teatrais populares, do monodrama ao drama propriamente dito, que eles continuaram a ser disseminados entre as massas. Ou seja, a oralidade continua a ser, na Índia, um veículo extremamente potente e importante para a disseminação dos valores culturais, espirituais, éticos e morais que são o esteio da sociedade hindu. Daí a importância de se reconhecer este Teatro da Narração, como foi apresentado, não apenas como fundamental para o florescimento e sedimentação da arte teatral na Índia, mas também como potente instrumento pedagógico, em especial entre as camadas mais baixas da estratificada sociedade hindu com seu rígido sistema de castas.

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Ainda hoje, com exceção da variante do teatro moderno, o teatro da Índia é, essencialmente, uma experiência narrativa-sensorial-poética que, explorando diferentes arranjos dramatúrgicos, encontra formas bastante singulares de contar histórias: da narrativa mais tradicional, que parte da recitação, até esboços simples de diálogo, jogos de pergunta e resposta entre o corifeu e o coro, às narrativas não lineares, que se apresentam em duas categorias diferentes: 1) fragmentadas: quando apenas parte de uma história é contada partindo do pressuposto de que quem a assiste, conhece a totalidade da trama; 2) simultâneas: quando várias histórias ou partes delas, são agrupadas gerando uma terceira narrativa. Todos estes recursos podem ser vistos não apenas na cultura popular, mas também na cultura clássica, em especial nas danças dramáticas que se valem com muita frequência dos recursos narrativos de fragmentação e simultaneidade. Encerro este breve estudo sobre o Teatro da Narração apresentando uma tabela que contempla as informações mais importantes apresentadas, facilitando sua visualização e posterior relação com os demais assuntos desenvolvidos neste capítulo.

Tabela 2 – O Teatro da Narração: aspectos essenciais. NARRATIVAS ORAIS: RELIGIOSAS OU SECULARES

Temática: Mahabharata, Ramayana, Puranas, contos de amor e de heroísmo, lendas, mitos, fábulas, parlendas, anedotas, contos históricos e semi-históricos, hinos laudatórios.

Narrativas Épicas Narrativas Dramáticas

Recitação com dramatização simples que convencionei chamar de CÉLULA TEATRAL PRIMÁRIA, sendo de dois tipos Recitação simples, em verso, com básicos: MONODRAMA e MONODRAMA acompanhamento musical. Geralmente um ANIMADO. narrador-chefe, acompanhado de uma orquestra de músicos ou de apenas um músico. Presente, • Presença de Narrador-chefe e principalmente, em festividades religiosas, assistente(s) que assume o fio da podendo durar vários dias ou noites. Tais narrativa e os personagens, narrativas, quase sempre, antecedem as respectivamente. Em algumas formas, grandes encenações noturnas, quando o teatro pode ser um casal. propriamente dito se estabelece, funcionando • Presença de orquestra/coro ou pelo como uma preparação ou aquecimento para a menos 1 instrumento musical a experiência/imersão dramática. acompanhar a narrativa. • Uso de nenhum ou poucos objetos de cena (bonecos, teatro de sombras, Pad Tradition).

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• Uso de pouco ou nenhum elemento cenográfico, adereços, maquiagem, figurinos. • Uso de pouca atuação: gestual, facial, corporal. Muitas narrativas são feitas na posição sentada.

Tipos de narrativa: linear e não linear (fragmentada, simultânea): verso, prosa, recitação, canto, diálogos, monólogos, pergunta e resposta etc. Fonte: Criado pela pesquisadora a partir da leitura de Varadpande, 1992. 1.7 TEATRO DO RITUAL

É certo afirmar que nas sociedades primitivas o ritual aparece como o primeiro tipo de drama, ou ainda, que o drama, propriamente dito, tenha evoluído diretamente do ritual. Esta afirmativa se faz ainda mais contundente quando consideramos as formas teatrais populares de todo o mundo, cujos elos com os aspectos religiosos, rituais e certa dinâmica da vida espiritual das comunidades onde se originam nunca foram, de fato, rompidos. Ao contrário: há, entre eles, um permanente diálogo que faz com que interajam de modo dinâmico e pulsante, garantindo, deste modo, sua longevidade e eficácia social. Para se compreender as formas de teatro folclórico da Índia é imprescindível que se fale de religião e, no seio desta, mais especificamente dos rituais que lhe dão corpo. Só assim poderá se compreender o intrincado arranjo cênico destas inúmeras manifestações que, ora pendendo para o drama, ora para o ritual, desenvolveram um engenhoso esquema dramático para lhes dar vida e significado. No entanto, no bojo da cultura popular indiana, algumas destas manifestações permitiram-se afrouxar os estreitos laços que as uniam à religião e caminharam em direção ao puro entretenimento, enquanto outras, por sua vez, permaneceram mais próximas às suas origens ritualísticas ou, pelo menos, devocionais, criando um panorama muito diversificado que vai de formas dramáticas de forte teor religioso, como o culto dos Bhutas (xamanismo), passando pelo Ras Leela (devocional) até o Tamasha, ancestral remoto de nosso Teatro de Revista. Mais do que apresentar um compêndio de formas dramáticas desta natureza, interessa enumerar os aspectos rituais que foram incorporados ao

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teatro popular como um todo e que se confundem a tal ponto com sua própria estrutura dramática que ritual e cena não podem ser considerados como entes separados. A este espectro de encenações, darei o nome de Narrativas Rituais, para aquelas que permaneceram atadas ao ritual; e Dramas Rituais, para aquelas que, absorvendo aspectos do ritual, tornaram-se independentes dele. Em ambos os casos, sua temática é mítico-religiosa, tendo como ponto de partida, os épicos Mahabharata e Ramayana, livros sagrados como os Puranas e os Vedantas, além da produção poética de homens santos e escritores de diferentes períodos históricos. Muitas formas dramáticas populares floresceram entre os séculos XIV e XVII, durante a ascensão do movimento Bhakti, que projetava um novo olhar sobre os dogmas hinduístas vigentes à época, dando mais importância a devoção na construção de uma relação com o divino do que aos intrincados rituais bramânicos, restrito às elites religiosas e tão distantes das populações mais pobres da Índia. Este movimento foi capaz de trazer nova pulsão de vida ao hinduísmo, tornando-o mais acessível às massas e às formas dramáticas que dele floresceram, tornaram-se, também, um grande instrumento de difusão da religião. Grosso modo, constata-se que as formas dramáticas populares, quase que majoritariamente, evoluíram a partir do ritual. Há, em toda tradição teatral popular da Índia, um pano de fundo ritualístico que se manifesta através de execução de ações rituais mais ou menos evidentes, ou seja, os aspectos rituais podem sofrer adaptações, estilizações, segundo a estética e o propósito de cada forma dramática, mas continuam a existir indissociáveis dos outros elementos cênicos. Apresento a estrutura padrão das formas rituais, segundo Varadpande (1992, p. 33), que também se aplicam à encenação:

Tabela 3 – Similaridades entre a estrutura do ritual e a estrutura dramática popular. Unidade Verbal Mantras, Canções, Diálogos, Discursos, Recitações Unidade Literária Mitos, temas históricos, semi-históricos, lendas e contos Ação Imitação de várias ações, gestos simbólicos, movimentos corporais, mudras (gestos de mão codificados), dança, transe

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Acessórios Externos Máscaras, maquiagem, vestimentas, música, bonecos, objetos rituais, drogas Performers Sacerdotes, Organizadores do Festival e Comunidade em geral Teatro/ Audiência e Fatores Ficção assumida como fato Psicológicos Fonte: Criado pela pesquisadora a partir da leitura de Varadpande, 1992.

Observando a tabela acima, fica mais fácil compreender como operam as narrativas rituais, em termos estruturais, e como os dramas rituais evoluíram a partir desta estrutura comum. É através do amplo uso e manuseio desta sustentação básica que, ao longo do tempo, algumas formas dramáticas foram se dissociando do ritual em si para assumir sua independência artística e estética. Um ritual consiste na observação de certos procedimentos e regras pré- estabelecidas com uma função mágico-religiosa, cujo objetivo central é obter certos resultados benfazejos a partir da execução muito precisa de determinadas ações. Mito e rito, portanto, caminham juntos para a constituição do ritual. Do mesmo modo, as formas narrativas rituais se encarregam de colocar em cena certos aspectos ou partes de um mito específico, se valendo de procedimentos pré-estabelecidos, estilizados e muito precisos, cuja função é idêntica a do próprio ritual mágico-religioso: agradar as divindades para obter um resultado benfazejo. O Mudiyettu, de Kerala, é um bom exemplo disso. Esta forma dramática popular está associada ao culto da deusa Kali. A apresentação de abertura do festival em louvor à deusa ocorre entre os meses de novembro e dezembro, no Templo Kalambukavu Kali, no distrito de Ernakulam e, posteriormente, se estende para outros templos dedicados à divindade. Sua estrutura é idêntica à de um ritual: primeiramente são feitas as oferendas, orações e recitações e, depois, a encenação do mito, no caso específico, o mito de Bhadrakali em toda sua pompa e circunstância. O ritual se divide em duas etapas: a primeira segue todos os protocolos religiosos de adoração da divindade e a segunda é

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encenação do mito de Kali42, ou o Mudiyettu em si. Veja: https://www.youtube.com/watch?v=FEWXi2SHodk. Inicialmente, desenha-se uma mandala gigantesca no interior do templo representando a ferocidade de Bhadrakali, sua imagem remete às tradicionais Ammans (deusas mães), com os olhos arregalados, dentes pontiagudos, língua à mostra e seios protuberantes, a nos intimidar com seu poder e força destruidora. Durante até 41 dias, muitas oferendas e rituais elaborados serão realizados no templo, cânticos serão entoados em louvor à deusa. Acredita-se que seu espírito more na árvore do templo e, por esta razão, uma lamparina é acesa aos pés desta árvore e mantida ali durante todo o ritual. Em determinado momento, a lamparina é levada em procissão ao local onde a grande mandala foi desenhada e seu espírito se funde ao desenho que é, finalmente, destruído e tem seus restos distribuídos entre os devotos como prasada, um tipo de relíquia espiritual que emana direto da divindade. Este é o momento em que o Mudiyettu começa. O estilo evoluiu de mera recitação cantada do mito de Bhadrakali para uma dramatização elaborada que não se dissocia em momento algum das engrenagens do ritual, mas se vale de elementos do drama como a divisões de papéis, uso de diálogos, figurinos, maquiagens e adereços corporais rebuscados, para encenar a vitória das forças do bem contra as forças do mal, que reverbera profundamente na psiquê dos indivíduos desta comunidade agrária de Kerala. O Mudiyettu bem exemplifica porque, na Índia, a encenação teatral, muitas vezes, é elevada ao status de ritual, assumindo grande importância na vida espiritual das comunidades onde nasce. O teatro é, por assim dizer, mais uma forma de agradar os deuses e obter deles as graças esperadas, assumindo, em alguns momentos históricos específicos, uma importância ainda maior. Outro

42 O demônio Darika tornou-se muito poderoso, graças as benesses de Brahma, não podendo ser derrotado por nenhum homem, deus ou demônio. Caso ele sofresse qualquer ferimento e sangrasse em batalha, milhares de Darikas nasceriam de suas gotas de sangue. Ciente de seu imenso poder, ele conquista os três mundos: terra, céus e infernos. Shiva, então, é chamado a interceder e de seu terceiro olho emerge Bhadrakali que, com a ajuda crucial de Vetali, vai bebendo as gotas de sangue derramadas antes que toquem o solo, mata Darika e reestabelece a ordem (Varadpande, 1992, p. 35). O mesmo tema reaparece no conto tradicional de Tamil Nadu, “Prahalada Charitram”, sobre o demônio Hyrania Kachippu, que, desta vez, será detido pelo quarto avatar de Vishnu, chamado Narasimha, ser zoomórfico, metade homem e metade leão.

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exemplo que reforça esta afirmação pode ser encontrado nas escrituras Vaishnavas, do período áureo do movimento Bhakti, que descrevem a encenação dramática como a forma mais elevada de adoração à Krishna (divindade mais importante para esta corrente religiosa). Isso explica claramente porque existem, ainda hoje, tantas formas dramáticas populares dedicadas exclusivamente à encenação de histórias desta divindade, como o Krishna Leela, Krishna Keertana, Radha Madhava, entre tantas outras, que são instrumentos poderosos de difusão e sedimentação de valores morais e espirituais desta corrente religiosa específica. Veja: https://www.youtube.com/watch?v=icpguUNAWFI. O movimento Bhakti não apenas alterou de modo sensível alguns aspectos centrais do hinduísmo, especialmente os que diziam respeito às formas de relação com o divino (modos de adoração, dentre eles, rituais mais simples e compreensíveis), como também contribuiu para a consolidação de um número significativo de formas dramáticas populares cujo propósito era, muitas vezes, substituir rituais tradicionais de execução muito intrincada e pouco acessíveis às massas, por uma estrutura mais simples, de grande apelo e impacto visual, capaz de comunicar a mensagem moral, educacional ou espiritual implícita no ritual tradicional a pessoas de todas as castas. Algo não muito distante do que nos diz Bharatamuni, em seu Natyasastra, quando enumera as funções da arte da representação na cultura clássica:

Após a Idade do Ouro e a Idade da Prata, veio a Idade do Cobre, quando os seres humanos se tornaram vítimas da luxúria e da mesquinharia, engajados em rituais grotescos, oprimidos pelo ciúme e pela desilusão, experimentando igualmente a felicidade e a miséria. Nesse tempo, todas as deidades estabelecidas solicitaram ao grande Deus Brahma a criação de um passatempo que fosse ao mesmo tempo visível, audível e acessível a todo tipo de audiência. Uma forma de entretenimento que pudesse educar e civilizar as classes mais baixas, pois, ao serem excluídas de todo conhecimento e sabedoria, tornavam- se violentas e agressivas. Neste tempo, a sabedoria dos Vedas43 não era acessível a todas as castas, especialmente as mais baixas.

43 Os Vedas são as quatro escrituras sagradas hindus. Nelas estão descritos os complexos e elaborados rituais védicos, centrados na adoração dos elementos naturais e personificados na figura de deuses, tais quais: Indra (Deus dos Céus), Vaiyu (Deus das Águas), Varuna (Deus dos Ventos) e Agni (Deus do Fogo). Nos quatro Vedas: Rig, Yajur, Sama e Atharva, estão contidos todos os conhecimentos filosóficos e espirituais que conduzem ao processo de autorrealização (ZIMMER, 1986).

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Brahma concordou com o pedido e, a partir de informações recolhidas dos quatro Vedas (Rig, Atharva, Sama e Yajur), criou um quinto Veda ao qual chamou Natyaveda. Brahma disse: – Esse Veda deverá conduzir aos princípios da Verdade e da Virtude, da Prosperidade e do Sucesso. Deverá conter princípios didáticos e servir de guia para as atividades humanas e suas futuras gerações, demonstrando as várias modalidades teatrais e artesanais. Do Rigveda extrairei o discurso; do Samaveda a música; do Yajurveda a ciência do gesto e da atuação (Abhinaya); e do Atharvaveda, os sentimentos (Rasas) (CIPPICIANI, 2016, p. 25).

Antes de esmiuçar os elementos rituais que foram absorvidos nas encenações populares, de modo a compreender como se estabelece esta relação entre ritual e cena na cultura popular, apresento a tradição dos Bhutas (ancestrais, elementos da natureza, demônios, fantasmas, espíritos benignos e malignos etc.), que agem na esfera terrena e no destino dos homens. Muitas formas teatrais populares descendem desta tradição ou, pelo menos, se valem de alguns de seus elementos na sua constituição básica. Os Bhutas são uma chave de leitura importante para se falar desta Índia animista, pré-ariana que ainda encontra forte reverberação na cultura popular, como um sino que retumba permanentemente no espaço e se expande em formas circulares concêntricas, latência de tempos imemoriais sempre revisitados pelo imaginário popular.

Veja este documentário sobre os Bhutas: https://www.youtube.com/watch?v=3D6jXjJ-XQc

Os Bhutas são os mantenedores da ordem nas sociedades primitivas do sul da Índia, vigiam e punem os homens para que eles aprendam qual a conduta correta na vida em sociedade, colocando cada indivíduo em seu lugar dentro desta rigorosa e pouco maleável engrenagem social. Sua função primordial é garantir o equilíbrio das forças sociais, dos jogos de poder e dominação implicados, através da ação sobrenatural, protegendo e beneficiando aqueles que agem de acordo com as regras estabelecidas e punindo, com severidade e certa crueldade, aqueles que ousam quebrar tais regras. O culto aos Bhutas acontece sempre a céu aberto, numa plataforma construída embaixo de uma árvore, geralmente ocupando posição central dentro

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da vila, como um verdadeiro centro irradiador de forças, local de onde é possível vigiar toda a comunidade. Este local recebe o nome de Butha Sthana, ou lugar de assentamento do Bhuta. Ele pode ser representado por uma pedra, uma máscara, um ídolo de madeira pintado com tintas naturais, objetos de metal etc. Há, inclusive, um ritual específico para seu assentamento neste local, o pranapratisthapana, que consiste em “soprar” o ar para dentro da imagem do Bhuta para que ela ganhe vida. Quando a imagem, por qualquer razão, tiver que ser removida ou trocada, a mesma cerimônia será repetida para que a vida seja tirada da imagem antiga e colocada no novo ídolo. O objetivo desta cerimônia é dar vida ao ídolo, lhe conferindo um poder sobrenatural que nasce da respiração, o sopro divino, mistério inexplicável da vida. As Ammans, divindades protetoras femininas, tão importantes para a compreensão do Theru-K-Koothu, são uma categoria de Bhutas. Drama e ritual fundem-se no culto aos Bhutas, ainda que o objetivo da encenação dramática seja puramente ritual. Cada Bhuta possui padrões de maquiagem específicos que podem ser, basicamente, de três tipos: nobre, feroz ou gentil, além de uma canção específica que conta sua história, seus feitos, seus poderes, que tipo de punições ele pode infligir. É desse modo que conhecemos sua natureza e o adoramos. Estas canções são um dos primeiros poemas narrativos de que se tem conhecimento na cultura pré-ariana e recebem o nome de Paddana Songs. Sendo entoadas por um tempo muito prolongado, enquanto o ator-sacerdote faz sua maquiagem e se prepara para entrar em cena, as Paddana Songs, tem também um efeito sobre a mente do ator-sacerdote, podendo conduzir a estados sutis de possessão ou transe, necessários para a personificação do espírito que será cultuado. Quando este primeiro ator-sacerdote entrar em cena, ou seja, ao pé da árvore onde está a imagem do Bhuta, no centro da vila, ele já estará num estado alterado de consciência, mas não necessariamente inconsciente. Ele, então, colocará seus guizos, pedirá permissão às divindades e aos presentes, e começará a executar uma dança frenética com o objetivo de encarnar definitivamente o espírito do Bhuta, num estado completo de possessão. Um segundo ator-sacerdote entrará no palco e ambos realizarão uma dança

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cerimonial que se assemelha a um duelo, cujo objetivo é canalizar a energia bruta do Bhuta para que ela não se torne destrutiva, mas benfazeja e amigável. Este segundo ator-sacerdote oferecerá um pote com água à imagem do Bhuta para apaziguá-lo e canalizar sua energia e boa vontade para as demandas daquele vilarejo específico. Ao final do ritual, o Bhuta pacificado fará suas profecias e distribuirá suas bênçãos como um verdadeiro oráculo. Retomar esta tradição é importante para que se compreenda a íntima relação que há entre drama e ritual na Índia, verificando como partes inteiras de determinadas cerimônias foram, posteriormente, inseridas na ação dramática tanto na cultura clássica, quanto na popular. Três formas rituais foram absorvidas pelo teatro popular de modo a tornarem-se quase que exigências cênicas: o rangapooja, culto ao espaço teatral que é feito por ações como limpar, incensar, entoar mantras, oferecer alimentos aos espíritos e aos guardiões das quatro direções etc.; o Poorvaranga, culto à divindade que deverá favorecer e abençoar a encenação, geralmente Ganesh, cuja influência se sedimenta no cenário teatral no século XII e permanece até a atualidade; e o Uttaranga, que funciona como uma saudação final. O Rangapooja ou ação de preparar o espaço para o ritual/encenação aparece, normalmente, embutido dentro do próprio Poorvaranga. Sua função primordial é sacralizar o lugar da ação ritual e/ou dramática, criando um local delimitado e energeticamente protegido, um espaço mágico onde “deuses e demônios possam vir bailar”, parafraseando Zarrilli (2000), ideia que tem provocado muitos artistas da cena contemporânea, gerando ações de cuidado ritualizadas em relação ao espaço de trabalho, como local onde a qualidade de energia é sutilmente diferenciado daquela da vida cotidiana, precisando, portanto, ser cuidada e preservada desta influência externa que pode ser considerada desestabilizadora, promovendo um certo equilíbrio de forças considerado necessário à criação. Tais ações vão desde coisas simples como entrar descalço, trocar de roupa antes de adentrar o espaço de treino, incensar o local, colocar uma música no ambiente, até propostas mais complexas que envolvem todo o coletivo na limpeza das impurezas materiais (algo como uma faxina acrescida de certas práticas ascéticas, como o exercício do silêncio

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durante a execução das atividades, por exemplo) e das imateriais (através de cantos, meditações, práticas diversas de energização do espaço que podem ser oriundas de técnicas tradicionais como o Feng Shui chinês, o Vastu Shastra indiano, a Yoga ou mesmo práticas inventadas e acordadas pelo coletivo como um ritual interno, restrito aos seus participantes). Em todos os casos, o que se espera é fazer do espaço de treino ou apresentação um lugar ritualizado onde opere uma lógica diferente daquela que rege a vida mundana. Um mundo de forças e formas anímicas, de energias condensadas que se manifestam em qualidades de presença sutilmente intensificadas, colocando o homem outra vez em conexão direta com as forças primevas que movimentam o universo, com o objetivo de findar toda dualidade entre dentro e fora, micro e macro, mente e corpo, algo que possamos associar ao conceito de treinamento psicofísico, conforme apresentado por Zarrili no livro “Psychophysical Acting. An intercultural approach after Stanislavski” (2009). No Núcleo Prema, núcleo de dança que dirijo desde 2007, algumas práticas que se relacionam tanto ao rangapooja quanto ao poorvaranga se tornaram tão interiorizadas que passaram a fazer parte de nossa rotina de trabalho: retirar sapatos para adentrar o espaço, incensá-lo, oferecer flores, vela ou água para as imagens das divindades em datas comemorativas específicas, ou práticas com efeito psíquico mais profundo, como entoar slokams (hinos laudatórios) introdutórios, realizar o pedido de permissão de que falarei mais adiante, ou algumas práticas corporais preparatórias que conduzem a um estado adequado à prática da dança, física e mentalmente. O Poorvaranga, ou cerimônia invocatória, foi absorvido pela quase totalidade das formas de dança clássica indiana, pelo teatro clássico e popular, inclusive em muitas formas populares teatrais de entretenimento, sem nenhuma fundamentação religiosa. Mesmo nelas, muitas vezes, a invocação à divindade é feita como forma de proteção para os artistas e a audiência. Geralmente, é feito em louvor ao deus Ganesh, divindade pré-ariana associada aos ritos de fertilidade (sua presa simboliza o arado). Só mais tarde, nos Puranas, é que esta divindade assumirá sua forma atual e tão profundamente incrustrada no imaginário popular indiano com corpo humano e cabeça de elefante:

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O culto de Ganesh, Ganapathya, começou a se espalhar no século VI e tornou-se bastante poderoso no final do século X. Estabeleceu a importância de Ganesh e as pessoas começaram a adorá-lo no início de cada trabalho auspicioso. Em sua capacidade como removedor de obstáculos, ele é associado ao teatro e orações são oferecidas a ele pela conclusão bem-sucedida da performance (VARADPANDE, 1992, p. 5)44.

No universo da cultura popular, Ganesh pode ser reverenciado de três formas: através de orações feitas pelos atores e músicos; através da entrada de uma imagem do deus no palco; ou ainda, através da entrada de um ator utilizando uma máscara com a face de Ganesh para realizar uma dança cerimonial. Qualquer pessoa que assista a uma encenação popular, em qualquer região da Índia, imediatamente reconhecerá uma destas fórmulas sendo colocadas em prática. Apresento abaixo foto tirada em 2005, quando estive na Índia como bolsista da UNESCO - Ascheberg Programme, realizando uma residência artística junto ao grupo Koothu-P-Pattarai. Na foto, aparecem dois atores ensaiando uma street play que tratava de uma temática atual (no caso, um surto de cólera pós tsunami), se valendo de algumas estruturas populares de encenação advindas do Theru-K-Koothu. O ator com a cabeça coberta pelo tecido verde faz as vezes de Ganesh, segurando sua tromba com a mão esquerda e abençoando a audiência com a mão direita. Propositalmente, a companhia se vale desta estratégia para unir códigos da tradição a uma estética de rua mais contemporânea. Mesmo neste caso, numa experiência estética mais radical e, claramente, provocativa, o poorvaranga pode ser reconhecido. Nesta encenação, Ganesh foi convocado para chamar atenção das populações praianas afetadas pelo tsunami de 2004 para os cuidados com a higiene na alimentação e no uso e trato das fossas coletivas. Mesmo um ano após a tragédia, a situação nas comunidades de pescadores de Nagapatinan, área profundamente devastada pelo tsunami, continuava precária e a companhia foi

44 No original: The cult of Ganesh, Ganapathya, started spreading in the 6th century A.D. and became quite powerful by the end of the 10th century. It estabilished the importance of Ganesha and people started worshipping him at the beginning of every auspicious work. In his capacity as the remover of obstacles, he is associated with the theatre and prayers are offered to him for the successful completion of the performance (VARADPANDE, 1992, p. 5).

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contratada pelo governo local para realizar apresentações de rua nesta e em outras localidades afetadas.

Figure 6 - Exemplo contemporâneo de Poorvaranga em montagem de rua da companhia Koothu-p-pattarai. Com: Guru Somasundara encenando Ganesh e Prakash (in memoriam) a frente. Fonte: Arquivo Pessoal

O Uttaranga funciona como o fechamento do ritual/encenação. É uma forma de saudação e agradecimento às forças divinas, em que a mesma divindade consagrada no poorvaranga ou outra divindade importante é reverenciada. Ele encerra o ciclo ritual de sacralização do espaço, invocação das forças superiores que precedem o ritual/encenação em si, devolvendo os indivíduos à esfera da vida cotidiana e a sua condição meramente humana e mortal. Se lembrarmos a história do surgimento do teatro, descrita no Natyasastra de Bharatamuni, veremos a necessidade de saudar o espaço, os quatro corners e os espíritos (Bhutas) que lá habitam (rangapooja); reverenciar as divindades que habitam cada espaço específico e demarcado da área de atuação (poorvaranga) e, ao final, saudar as divindades, os espíritos e a audiência para que a prosperidade construída por aquele momento inunde suas vidas abundantemente (uttaranga), tudo isso funcionando, de certa forma, como prólogo e epílogo nas diversas formas de dança-teatro clássicas:

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Bharatanatyam, Kuchipudi, Mohiniyattam, Odissi, Kathak, Kathakali, Manipuri, Satriya. É certo que cada um destes estilos o fará de modo diferenciado, ainda que os aspectos estruturais sejam idênticos. Outros aspectos que nascem no ritual e são absorvidos pelo teatro e a dança são o pedido de permissão quando o ator-bailarino, através de uma sequência de movimentos codificada dentro de cada tradição ou estilo específico, pede consentimento aos deuses, ao mestre e à audiência para realizar sua performance, ritualizando-a. O pedido de permissão é como um verdadeiro mantra corporal que, repetido exaustivamente ao longo de anos e anos de prática, ritualiza a relação do artista com sua forma de arte, funcionando como um instrumento concreto de conexão entre o artista e sua linhagem, sua família teatral ancestral, conectando passado e presente no compromisso ético de levar adiante sua forma de arte. Temos também o profícuo uso de maquiagens com padrões de cores e designs elaborados e com significados específicos, uso de máscaras, figurinos suntuosos que dizem muito sobre cada personagem, adereços de cabeça, corpo, guizos nos pés etc. Elementos que aparecem nos dramas rituais e vão, gradativamente, ao longo do tempo, sendo absorvidos por diferentes tradições teatrais da Índia, clássicas ou populares como bem exemplifica as fotos abaixo, com o ator Palani Murugan, do estilo Theru-K-Koothu. A maquiagem elaborada, os adornos de cabeça (kattais), os figurinos, guizos, são claramente releituras desta estética ritual, reelaborada e readequada para as necessidades da cena Theru-K-Koothu:

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Figure 7 – Figurinos, adereços e maquiagem de um ator Koothu. Fonte: Cedido por Palani Murugan da Purisai Duraisamy Kannappa Thambiran Parambarai Theru Koothu Manram.

Os diagramas sagrados que aparecem no culto aos Bhutas também podem ser vistos nas portas das casas como símbolos auspiciosos e de proteção, conhecidos como kolams. Eles aparecem com frequência nas portas das casas, dos templos, dos estabelecimentos e são feitos de farinha de arroz colorida. Os Kolams protegem, embelezam, trazem boa fortuna, remetendo claramente ao culto dos espíritos que protegem as casas, as famílias, os antigos vilarejos rurais. Ainda hoje, mesmo nas grandes cidades como Chennai, esta tradição não se perde.

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Figure 8 – Exemplo de Kolam feito em frente a uma casa na cidade de Chennai em comemoração ao Pongal ou ano novo no estado de Tamil Nadu, comemorado no mês de abril. Fonte: Arquivo Pessoal

Há também o uso da cortina cerimonial para aparição dos personagens, que remonta a formas primitivas de ritual quando, tomado pela energia de determinado espírito, o ator-sacerdote fazia sua primeira aparição para a audiência. Os presentes podiam ver parte de seus adornos de cabeça, ouvir seus guizos tilintando, os sons guturais, os gritos, relances do traje cerimonial que dava uma dimensão sobre-humana ao ator-sacerdote já em estado de transe, tudo para criar a atmosfera perfeita para o primeiro contato entre o mundo humano e o sobrenatural. Esta mesma cortina aparece no Kathakali, no Yakshagana e no Theru-K-Koothu, só para que tenhamos a clara dimensão de sua importância tanto na cena quanto no ritual. Muitos dos elementos de cena que relacionamos a uma certa estética do teatro indiano têm origem nas formas rituais primitivas sendo, posteriormente, aprimoradas, reelaboradas de acordo com a estética específica de cada forma artística, em relação direta com a região onde floresce, a língua, as narrativas, as divindades locais etc. Essa afirmação é ainda mais forte no sul da Índia, onde aspectos da cultura dravidiana ainda estão muito presentes no dia a dia. Quem já visitou algum templo no sul da Índia já se deparou com a “árvore do templo”, reminiscência das árvores onde as imagens dos Bhutas são colocadas. É comum que essas árvores tenham imagens do Deus Serpente, um Bhuta relacionado ao culto da fertilidade e de Ganesh, considerado também a forma evoluída de um Bhuta, além de outras divindades menores. Acredita-se que templos mais antigos tenham sido erguidos a partir da árvore sagrada, enquanto templos modernos foram erguidos incluindo, em sua arquitetura, a

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presença da árvore no seu pátio interno. Nas áreas rurais, elas figuram tanto dentro dos templos, quanto nas próprias vilas, como um objeto sagrado a céu aberto. Muitas formas teatrais populares de origem rural procuram fixar seu espaço de encenação próximo ou nas imediações destas árvores, que podem estar no centro da vila ou em algum ponto estrategicamente importante dela. Basta se lembrar do exemplo dado sobre o ritual à Bhadrakali e a encenação do Mudiyettu, de Kerala, que tem início quando o espírito da divindade, que repousa na árvore sagrada, é levado para o templo e fundido à sua imagem ritual ricamente desenhada no chão. Tudo isto para dizer que o ritual cria pontes muito sólidas com a vida cotidiana e, também, por meio dela com a arte. Quase sempre a absorção de determinado aspecto do ritual na cena não se dá de pronto, como uma simples transferência de um saber ou um modo previamente elaborado, estruturado e codificado de dizer o que se sabe, mas através daquele conhecimento que ficou registrado nos corpos, nos imaginários de muitas gerações, que vão forjando uma certa visão de mundo e, com ela, uma certa estética que desagua numa profusão de formas artísticas. Sem dúvida, a forma dramática popular mais conhecida, dentre aquelas que possuem uma associação direta como o ritual, é o Teyyam, que dará contribuições valiosas para a formação do estilo clássico Kathakali, ambos originados de Kerala. Muitos estudiosos afirmam que a diferença entre os dois é bem simples: o Kathakali, deliberadamente, assumiu seu caráter teatral, ainda que preserve muitos aspectos ritualísticos na construção da cena, enquanto o Teyyam continua, ainda hoje, indissociável do ritual. Outros estilos também devem sua formação e consolidação de sua estrutura e estética a estas inúmeras formas populares de drama ritualizado, dentre eles, podemos citar o Kuchipudi Yakshagana, o Bhagavata Mela e o próprio Theru-K-Koothu.

Veja o documentário sobre o Teyyam: https://www.youtube.com/watch?v=Zrz6qw1eeL0

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O simbolismo presente nos padrões de maquiagem e no esquema de cores utilizados em muitas formas dramáticas populares remetem diretamente ao uso destes mesmos elementos nos rituais, nos dando a conhecer a natureza do personagem, suas características e modos de representação, assim como nos foi dado conhecer cada uma das divindades retratadas no ritual, seus poderes e a qualidade de sua energia. Tais artifícios, reelaborados na/para cena, nos fornecem informações importantes sobre a natureza dos personagens antes mesmo que qualquer palavra seja dita, funcionando em conjunto com outros elementos cênicos como figurinos, adereços e postura corporal conscientemente trabalhada para criar uma outra qualidade de presença física, abrindo espaço para uma apreensão cinestésica e não naturalista da cena. Tabela 4 – Elementos centrais para a compreensão das formas narrativas rituais e dos dramas rituais. TEATRO DO RITUAL

NARRATIVAS RITUAIS DRAMAS RITUAIS

São aquelas formas dramáticas que São aquelas formas que, partindo do ritual e permanecem associadas ao ritual pela absorção de aspectos dele, tornaram-se religioso, não existindo independente formas teatrais independentes: Katakhali, dele: Mudiyettu, Teatro dos Bhutas, Kuchipudi Yakshagana, Bhagavata Mela, Teyyam, Ras Leela etc. Theru-K-Koothu etc. Elementos comuns: Rangapooja, Poorvaranga, Uttaranga, temática mítica, pedido de permissão, uso de máscaras, objetos, vestimentas, adereços, bonecos, transe, trânsito entre dança imitativa e simbólica, recitação, canto, uso de diálogos, personificação de personagens. Fonte: Criado pela pesquisadora a partir da leitura de Varadpande, 1992.

1.8 TEATRO DO ENTRETENIMENTO

Antes de fechar este panorama do teatro folclórico da Índia, que começa no Teatro da Narração, passa pelo Teatro do Ritual e desemboca no Teatro do Entretenimento, considero importante fazer alguns esclarecimentos. Chamarei de formas de entretenimento aquelas que, ainda que associadas a eventos ou festividades religiosas, não cumprem ou atendem a uma função ritual específica. Quando associada a estes eventos, elas assumem exatamente sua contraparte, ou seja, são o aspecto profano destas grandes celebrações religiosas, algo similar à relação entre os mistérios e farsas da idade média na Europa.

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No entanto, os exemplos mais característicos deste nicho da cultura popular são exatamente aquelas formas teatrais que nasceram, exclusivamente, com a finalidade de entreter, sem nenhum vínculo religioso ou ritual, ainda que a temática religiosa apareça, abrindo espaço para o surgimento de uma estética e dramaturgia diferenciadas, sustentadas por dois pilares: o Vidushaka – personagem cômico e o Sutradhara – personagem épico, figuras que ganham um contorno mais definido no teatro do entretenimento, assumindo claramente o fio condutor da narrativa, algo como polo positivo e negativo, a balancear a dinâmica da encenação. Não é possível compreender profundamente a cultura teatral popular da Índia sem passar, necessariamente, pela compreensão destas duas figuras emblemáticas, que aparecem em todas as formas teatrais mais complexas, que convencionei chamar de Drama Popular, como contraponto à estrutura mais modesta dos Monodramas e dos Monodramas Animados (Tabela 1), apresentados no Teatro da Narração. É interessante pontuar também que, em alguns estilos, o entretenimento acabará por levar a uma aguda crítica social e reflexão sobre os valores éticos e morais que regem a sociedade hindu. Como sabemos, a comédia e a sátira sempre foram instrumentos potentes de atuação e transformação social. É sempre tênue a linha que separa a sátira grotesca da crítica mordaz e aguda, e os artistas populares da Índia nunca estiveram alheios a esta afirmação, ao contrário, o humor, em muitos momentos, foi usado conscientemente como ferramenta de atuação social. Embora pareça contraditório, muitas formas teatrais de puro entretenimento acabaram por produzir discursos políticos muito potentes e provocadores, em especial, no final do século XIX e início do século XX. Sobre isso, falaremos adiante, quando estes estilos teatrais forem apresentados.

1.8.1 VIDUSHAKA, O CÔMICO E SUTRADHARA, O ÉPICO

Alguns estudiosos acreditam que o teatro sânscrito descenda das formas populares, mas esta afirmação não é um consenso entre os historiadores,

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portanto, é mais correto afirmar que, historicamente, ambos tenham evoluído paralelamente, se alimentando e se influenciando mutuamente. Nos séculos XV e XVI, quando o teatro sânscrito entra em declínio, temos o apogeu do teatro popular e folclórico, feito em língua regional e com uma estética mais próxima das populações iletradas da Índia: abundante uso de dança, canto, música, presença de coro, diferentes personagens em cena e a presença fundante do Vidushaka, o cômico.

Há ampla evidência indicando uma comunicação ativa entre o Teatro Clássico Sânscrito e as formas teatrais regionais. De fato, o teatro clássico se desenvolveu a partir de formas populares de diversão. Alguns dos Rupakas, formas de dramas, mencionados por Bharata, têm a marca inconfundível do teatro folclórico (VARADPANDE, 1992, p. 10)45.

Há evidências da existência deste personagem, encarregado pelo humor e a comicidade na cena, desde rituais tribais mágico-religiosos primitivos. O termo Vidushaka, entretanto, aparecerá pela primeira vez no Natyashastra de Bharatamuni, escrito entre II a.C. e II d.C., e nas peças de Bhasa e Ashvagosha. Bharatamuni nos descreve o Vidushaka como um anão corcunda, com face grotesca e dentes protuberantes, a mesma imagem que se vê nos afrescos de Ajanta e Mohenjodaro. Sabe-se que nas formas dramáticas clássicas de todo mundo, humor e erotismo caminham juntos, e no teatro popular indiano, esta afirmação também se faz verdadeira. Shiva (Pramatha) é a deidade que representa o rasa hasya (sentimento cômico). Na Índia, assim como na Grécia, devia haver festivais em honra a esta divindade fálica, marcados também pela comicidade e erotismo, algo que, mais tarde, levaria a consolidação do personagem cômico Vidushaka como uma das presenças mais marcantes das formas dramáticas populares. A palavra Vidushaka quer dizer “abusador”. Sua figura é associada tanto à imagem de um brâmane, quanto à de um macaco. Tal associação remonta ao Rig Veda e aparece no hino Vrishakapi (10.7.2), em que o macaco de estimação de Indra apronta e atormenta Indrani, sua esposa. Se a base da arte teatral em

45 No original: There is ample evidence indicating lively communication between classical Sanskrit and regional folk theatrical traditions. In fact, classical theatre developed out of popular forms of amusement. Some of the Rupakas, forms of dramas, mentioned by Bharata bear unmistakable stamp of folk theatre. (VARADPANDE, 1992, p. 10)

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todo mundo é a imitação, o mimetismo - que é a imitação de pessoas e animais - é a base da arte da comédia e ambos sempre caminharam juntos na história mundial do teatro, como bem nos assinala Valente e Varadpande:

A epopeia e a tragédia, bem como a comédia e a poesia ditirâmbica e ainda a maior parte da música de flauta e de cítara são todas, vistas em conjunto, imitações (ARISTÓTELES apud VALENTE, 2008, p. 37 v. 15). Até mesmo Bharata concordou que uma audiência sorrindo ou gargalhando era um dos sinais do sucesso da peça. Com o passar do tempo, a tarefa de fazer as pessoas rirem pode ter sido confiada a um determinado ator da trupe, de quem pode ter desenvolvido o personagem do cômico ou Vidushaka (VARADPANDE, 1992, p. 9)46.

Como o teatro, em especial a comédia, sempre tiveram um grande potencial para desestabilizar as normas vigentes, era comum que os governadores locais não autorizassem a construção de teatros perto das vilas, fortalecendo a tradição das arenas a céu aberto e a cultura mambembe, características da cultura popular. Se os artistas ficassem muito próximos do povo, num espaço próprio e legitimado, seria impossível controlar a relação entre eles e as constantes críticas satíricas feitas pelos artistas aos governantes, o que acabaria por levar a ruptura da ordem social vigente. Não podemos deixar de notar, entre espanto e ironia, a atualidade desse comportamento no cenário brasileiro, por exemplo.

O vidushaka, como um "simplório cuja imbecilidade, real ou presumida, é utilizada para entretenimento", aparece no teatro folclórico com várias formas e nomes. Ele é muito querido pelo público das vilas. Ele é uma pessoa astuta, com vasta experiência e observação aguçada sob o manto da simplicidade. Durante toda a sua evolução, ele nunca perdeu contato com a vida contemporânea. Ele tem demonstrado uma tremenda capacidade de mudar com os tempos e permanecer eternamente renovado. Como sua contraparte no teatro clássico, ele não é limitado por um "roteiro escrito" ou "regras estabelecidas de comportamento e aparência" definidas pelos dramaturgos; ele é livre e flexível o suficiente para mudar, para se adaptar às sensibilidades cambiantes, para adquirir novos traços (VARADPANDE, 1992, p. 11)47.

46 No original: Even Bharata has agreed that an audience smiling or roaring with laughter in one of the signs of the success of the play. After the passage of time, the task of making the people laugh may have been entrusted to one particular actor in the troupe from whom may have developed the character of the jester or the Vidushaka (VARADPANDE, 1992, p. 9). 47 No original: The Vidushaka, as a ‘simpleton whose imbecility, real or assumed, is utilised for entertainment’, appears in folk theatre in various forms and names. He is very dear to village audiences. He is a shrewd person with wide experience and keen observation under the garb of simplicity. All through his evolution, he never lost contact with contemporary life. He has shown

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O Vidushaka é a chave para se entender as formas populares de teatro da Índia. Sua função primordial é aliviar as tensões do dia a dia através do riso, num processo de grande identificação com o povo. De fato, o Vidushaka é visto como alguém do povo por viver as mesmas dificuldades e mazelas, falar-se, vestir-se e comportar-se como um indivíduo da comunidade, em última análise, sua representação simbólica. Mesmo quando encena peças com temática mitológica e histórica, o Vidushaka consegue estabelecer um elo com o dia a dia das pessoas comuns, daquele vilarejo específico, tornando o processo de identificação muito profundo. Ele é, portanto, o elo entre passado e presente, entre a História e a mitologia da Índia e as demandas comezinhas da vida cotidiana. É, deste modo, um agente educacional porque transmite conhecimentos e saberes ancestrais a uma população essencialmente iletrada e, também, um agente social, porque estimula a reflexão crítica e a tomada de consciência política. Não raro, seu humor lascivo e cruel é utilizado como poderoso instrumento de reflexão social e política. Cinismo e humor são suas marcas registradas e através deles, ele dá voz aos anseios e esperanças de toda uma população esquecida e marginalizada. Entretanto, como contraponto ao Vidushaka, há ainda um outro personagem importantíssimo para a estruturação das formas de drama popular da Índia, o Sutradhara, que é - ao mesmo tempo - o chefe da companhia, o ator mais velho, o dramaturgo, diretor de cena, produtor etc. Sua função é conduzir a encenação de dentro da cena, falando diretamente ao público, como, por exemplo, introduzindo uma cena ou apresentando um novo personagem, ou falando diretamente aos atores, pedindo que digam este ou aquele texto, que cuidem da dicção, que interpretem com mais verve. Não raro, insatisfeito com a atuação de sua trupe, ele pode assumir o papel de algum ator mais “desleixado” ou mesmo interromper a encenação e desculpar-se publicamente com a assistência pelo mau desempenho de seus artistas. Em última instância, ele é o

tremendous capacity to change with the times and remain eternally fresh. Like his counterpart in classical theatre he is not bound by ‘written script’ or ‘set rules of behaviour and appearance’ laid down by the dramaturgists; he is free and flexible enough to change, to adapt to changing sensibilities, to acquire new traits (VARADPANDE, 1992, p. 11).

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narrador, o contador de histórias, aquele que conduz o fio da narrativa. Ele nasce como um recitador de histórias e contos tradicionais itinerante e evolui até assumir a função de dramaturgo, organizando estas mesmas histórias em forma de diálogos, cenas e atos. Acredita-se que o Suta, figura que cumpre função similar no teatro sânscrito, tenha surgido por influência direta da figura do Sutradhara, como nos aponta Varadpande:

Considerando a antiguidade da tradição de Suta, pode-se concluir que o teatro popular na Índia é bastante antigo e precede o teatro clássico Sânscrito. E não apenas isso, se o Suta é o Sutradhara da encenação clássica, pode-se afirmar com segurança que o teatro clássico em si evolui do teatro popular (VARADPANDE, 1992, p. 12)48.

Um exemplo clássico de tradição teatral, que evoluiu da narração de histórias pelo Sutradhara, até assumir uma forma dramática mais rebuscada é o Kathakali de Kerala. Conforme a tradição de contar histórias por um narrador foi se desdobrando na representação desta mesma história através dos personagens, o estilo foi se configurando e se estabelecendo como drama propriamente dito, mas o Suta continuou a existir e a exercer a função de condução da narrativa. Do mesmo modo, podemos mencionar o kathaka, cuja figura ainda sobrevive na forma moderna do Kathak. É relevante perceber que sua aparição é recorrente na literatura indiana antiga, com muitos nomes diferentes: Granthika, Vagjivana, Charana, Kathak, Prathama Vesha e Suta, todos eles aparecendo em diferentes regiões e formas dramáticas da Índia, e gozando da mesma reputação: pessoas que não deveriam ser convidadas para eventos cerimoniais importantes, revelando sua pouca aceitabilidade nos círculos sociais mais altos e reforçando sua imersão na cultura popular.

1.8.2 O TEATRO POPULAR E A CULTURA DO ENTRETENIMENTO

A beleza do teatro popular é a adoção de uma ampla gama de técnicas teatrais para entreter as pessoas. Mímica, procissões, acrobacias, shows de mágica, encenação de esquetes curtas e longas, em suma, toda forma de entretenimento concebível, costurado imaginativamente

48 No original: Considering the antiquity of the Suta tradition, one may conclude that folk theatre in Índia is quite old and precedes the classical Sankrit theatre. Not only that, if the Suta is the Sutradhara of classical stage, one may safely state that the classical theatre itself evolve out of folk theatre (VARADPANDE, 1992, p. 12).

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no rico tecido da arte performática. É uma forma predominante de divertimento, por sua natureza. A própria deusa ordena que os artistas se aproximem dela para entreter as pessoas e, por sua vez, ela também fica imensamente satisfeita, já que a performance é realizada em sua homenagem. O Teatro popular na Índia é um teatro total por si só. Está cheio de dança, canto e música. Ele é como um espelho para a sociedade, refletindo a cultura popular em sua totalidade. (VARADPANDE, 1992, p. 176)49

A Índia sempre foi reconhecida como uma terra rica em formas populares de entretenimento. Prova disso é que registros expressivos destas formas tradicionais de entretenimento podem ser encontradas até mesmo em textos antigos, cuja função não tem nenhuma relação direta com o desenvolvimento da cultura popular, como o Arthashastra, livro budista sobre administração no qual estão descritos diferentes tipos de entretenimentos populares (mágicos, acrobatas, atores, dançarinos, contadores, lutadores, imitadores, bardos, cantores, músicos etc.), todos eles, artistas itinerantes que se moviam de vilarejo em vilarejo, nos mercados e praças públicas, como ainda se pode ver nos dias hoje, tanto nas áreas rurais quanto nas urbanas, para onde muitos artistas migraram em busca de melhores condições de vida. Podemos dizer, portanto, que estamos tratando de uma certa cultura do entretenimento que se desenvolve em paralelo ao universo do teatro ritual. Ainda que compartilhem alguns elementos, seus propósitos são bem distintos, mas não necessariamente conflitantes, haja visto os inúmeros exemplos de formas rituais que se articulam justamente sobre o binômio sagrado-profano e na aparição sistemática do Vidhushaka na cena. Não é incomum que muitos rituais se valham do humor e da graça, para ridicularizar espíritos maus e práticas sociais inaceitáveis. O Mahavrata, por exemplo, é um tipo de cerimônia ritual de fertilidade que dramatiza o encontro entre um celibatário e uma prostituta. O Teatro da Narração e o Teatro do Entretenimento, por sua vez, também compartilham diversos aspectos estruturais comuns e, para ambos, o

49 No original: The beauty of the folk theatre is its adoption of wide range of theatrical techniques to entertain the people. Mimicry, processions, acrobatics, magic shows, enactment of short and long skits, in short every conceivable entertainment factor is weaved imaginatively into the rich fabric of their performing art. It is also despite being predominantly entertaining in nature. The goddess herself orders the artistes approaching her to entertain the people and in turn she is also immensely pleased since the performance is held in her honour. Folk theatre in India is a total theatre by itself. It is full of dancing, singing and music. It holds the mirror to the society reflecting the folk culture in its totality (VARADPANDE, 1992, p. 176).

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Vidhushaka e o Sutradhara são essenciais. Então onde estaria o diferencial? Vale lembrar que esta divisão em categorias serve apenas para nos permitir estudar mais a fundo diferentes aspectos da tradição teatral popular da Índia, em que ritual, narrativa e entretenimento caminham juntos em diferentes proporções, criando diferentes equilíbrios. Pensar as categorias é apenas uma forma de visualizar estes jogos de equilíbrios e desequilíbrios que vão moldando formas mais afeitas a um ou outro elemento deste tripé de formação. Para efeito de estudo, estou considerando que as formas de entretenimento são aquelas que pendem, mais claramente, para o humor, o grotesco, a sátira, podendo chegar à crítica social, estabelecendo uma relação mais clara com o dia a dia das pessoas, as demandas do tempo presente, do homem de hoje, enquanto o Teatro do Ritual, e grande parte do Teatro da Narração, ainda se mantém atado às grandes narrativas clássicas, aos épicos e aos livros sagrados. Dentro dessa perspectiva, temos alguns personagens marcantes que acabam por configurar toda uma estética do entretenimento, figurando como autênticos representantes da cultura popular da Índia. O primeiro deles são os Encantadores (Sapera ou Garudi), artistas que realizam performances acompanhados de animais: serpente, macaco, urso etc. Suas performances são bem rústicas e seu estilo de humor é bem popularesco. Costumam vestir os animais como humanos ou fazê-los encenar cenas de casamento, brigas etc. O Encantador mais bem-sucedido pode ter também um pequeno zoológico ambulante, vender tônicos para a juventude e virilidade, e usar uma série de efeitos dramáticos rústicos para enriquecer sua encenação. Veja: https://www.youtube.com/watch?v=ffepjtKsQ10. O segundo tipo são os Acrobatas (Nat) que aparecem na literatura védica como pessoas com extremas habilidades corporais: "[...] Seus shows incluem atos como se mover numa roda no topo de uma longa vara de bambu, andar em uma corda amarrada a dois mastros, levantar pesos, realizar atos de equilíbrio intrincado e às vezes até mesmo arco e flecha" (Varadpande, 1992, p. 135)50.

50 No original: “[…]Their shows include acts like moving like a wheel on the top of a long baboo staff, walking on a rope tied to two poles, lifting heavy weights, performing acts of intricate balancing and sometimes even archery” (Varadpande, 1992, p. 135).

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Talvez pareça estranho tratar desta classe de artistas populares e suas performances simplórias quando há tanto material para ser esmiuçado e decupado em formas dramáticas vistas como mais “sofisticadas”, como o Kathakali, o Teyyam e o Chauv, por exemplo, mas talvez seja interessante saber que todos estes estilos já consagrados absorveram, em seus treinamentos, técnicas acrobáticas oriundas exatamente desta tradição popular. Veja sobre a casta dos acrobatas indianos: https://www.youtube.com/watch?v=49eVEr4UCcQ. O terceiro tipo são os Imitadores (Bahurupi), mestres em imitar vozes, animais, trejeitos, proeminentes figuras públicas, com a habilidade de falar várias línguas, imitar vários sotaques, se valendo sempre do humor, da sátira e do escárnio. Acredita-se que esta tradição remonte a rituais primitivos em que a imitação exercia um papel importante de personificação de uma divindade ou força da natureza, que acabou por evoluir para o entretenimento, em especial no período medieval. Veja: https://www.youtube.com/watch?v=Bwo7P94Meig. O quarto tipo são os Cômicos (Bhands), figura popularesca que atua em festas de casamento, nascimentos, festejos populares importantes que, de modo vulgar, obsceno e politicamente incorreto, expõe as idiossincrasias e hipocrisias sociais com humor mordaz e língua afiada. Algo próximo daquilo que vemos no Stand up Comedy contemporâneo, com um tempero mais popular. Existem muitas classes de Bhands por toda a Índia, com diferentes nomes, mas gozando da mesma má reputação. Apesar disso, eles são figuras importantes para o sucesso de qualquer festividade popular, em especial nas áreas rurais. Além destes três tipos principais, existem alguns exemplos interessantes como o Vasudeva que dá conselhos religiosos cantando e dançando louvores a Krishna. Normalmente, ele se veste de Krishna, pinta-se de azul e sai pelos vilarejos e cidades contando suas histórias e dando suas bênçãos em troca de dinheiro. Veja: https://www.youtube.com/watch?v=PMePwueMdRg. Os Bauls, da zona rural do estado de Bengal, pregam o amor universal, através do canto, da dança e dos ensinamentos do sábio Chaitanya Prabhu, assim como os Kanphati do culto Nath que vão de vila em vila entretendo as

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populações em troca de algum dinheiro. Veja: https://www.youtube.com/watch?v=qM3hi7lqPEM.

Figure 9 - Exemplo de Vasudeva na cidade de Chennai em 2006. Na foto apareço ao lado da atriz Rudra, da companhia Koothu-P-Patarrai e do artista popular que encarna Krishna. Fonte: Arquivo Pessoal.

Todas essas figuras acabam por se amalgamar na personagem Vidushaka e, exatamente por isso, são tão importantes para melhor compreensão da cultura do entretenimento na Índia, como matriz de muitas formas dramáticas mais elaboradas, inclusive aquelas que assumem conotações sociais e políticas no curso de sua história e desenvolvimento. Durante o período da luta pela independência, no começo do século XX, o teatro dito de entretenimento tomou para si a responsabilidade de acordar a nação num profundo sentido de comprometimento social aliado à estética do entretenimento – o que significa dizer, através do uso do humor, da dança e da música - contribuindo para a aceleração dos processos de mudança social e política que culminariam na independência da nação do jugo britânico. O exemplo mais característico deste tipo de teatro, que assume conotações políticas partindo do entretenimento, é o Jatra ou Yatra de Bengal, mas será possível constatar que, em muitas outras formas teatrais descritas daqui para frente, haverá uma aproximação das causas sociais e de certo grau de ativismo político.

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Podemos nos perguntar porquê, justamente as formas de entretenimento, são aquelas nas quais as lutas da vida mundana encontram maior reverberação e não nas formas rituais ou devocionais, por exemplo. Creio que a resposta esteja justamente em sua configuração dramática mais aberta, que lhe permite ajustar-se, com mais facilidade, às demandas de cada tempo, aumentando seu poder de escuta, e em sua maior capacidade de comunicar-se com o homem comum, através do uso escancarado do humor, de um linguajar mais simples e direto, de uma estética cênica menos rígida e, por tanto, mais inclusiva e participativa. Isso não significa dizer que o Teatro do Entretenimento tenha perdido os vínculos com toda a tradição ritual e narrativa da Índia, o que seria uma inverdade, uma vez que os personagens épicos não deixaram de ser representados (ainda que por uma ótica mais jocosa ou claramente ideológica), nem tão pouco os elementos de cena destas tradições deixaram de ser utilizados, como o Porvaranga, por exemplo, mas não podemos desconsiderar o fato de que apenas neste nicho da produção teatral popular da Índia, encontramos as primeiras reverberações de um teatro de cunho mais social e político, que se legitima – ainda que isso pareça contraditório - justamente através do divertimento. Comecemos falando sobre o Swang, que quer dizer Ópera Popular de caráter semi dramático. Acredita-se que ele tenha surgido no século XVIII, na região do Punjabi, como o representante popular da Sangeetaka, um tipo de opereta teatral que nasceu nos templos e depois foi levada para as cortes. Neste tipo de teatro, vemos um ator assumindo diferentes papéis, com proeminência do canto e da dança sobre a atuação. De modo geral, não há uso de figurinos, adereços e maquiagens específicos, mas sim as roupas e objetos do dia a dia. É bastante comum, no Swang, a prática de homens representando papéis femininos, tradição que se espalha por toda a Índia, mas que é especialmente forte na região norte, onde o Swang aparece com outros nomes e pequenas variações estilísticas, como o Bhagat, Khyal, Sang e o Nautanki, seu maior representante moderno.

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Atualmente, o Nautanki é o maior representante do estilo Swang em toda região noroeste da Índia, emprestando novos elementos a encenação como o uso de cortina, discurso em prosa, mulheres encenando papéis femininos, uso de figurinos e maquiagens, proeminência do personagem cômico valorizando o grotesco e o vulgar, uso excessivo da música, em especial da percussão. Neste estilo, o drama propriamente dito aparece com a divisão clara de papéis, o aparecimento do narrador (Sutradhara) em cena, mas são os números musicais que levam o público ao delírio. No Nautanki podemos ver, com clareza, os sutis tensionamentos entre o desejo do mais puro entretenimento e o ativismo político, como bem nos apresenta Varadpande:

No curso de sua evolução, o Nautanki adquiriu muitas dimensões. Começou a desempenhar um papel significativo no movimento de libertação da Índia. (...) Peças denunciando os costumes e práticas sociais ultrapassadas também foram escritas e encenadas. (...) É muito interessante notar que o teatro de entretenimento tomou para si, muitas vezes, a tarefa do despertar político e da reforma social e o realizou com sucesso. Mas, às vezes, em seu entusiasmo excessivo para entreter, degenerou em obscenidade (VARADPANDE, 1992, p. 161).51.

De fato, há muito erotismo presente no Nautanki, em especial nos números de dança feminina que são seu carro chefe hoje. A tradição dramática do estilo, com muitos textos e canções célebres que remetem a este período de lutas sociais, quase que desapareceu do repertório das companhias na atualidade, dando maior ênfase aos números de canto e dança altamente erotizados e, segundo os rígidos padrões culturais indianos, vulgares e grosseiros. Tal erotização excessiva, acabou por enfraquecer o estilo, levando ao surgimento de uma nova corrente, o Nautanki Kala Kendra, de Lucknow, cuja proposta é reviver o passado glorioso do estilo, baseado em seu conteúdo musical. Veja: https://www.youtube.com/watch?v=OlVJTm1oZyQ.

51 No original: In the course of its evolution the Nautanki acquired many dimensions. It started playing a significant role in the freedom movement in India. (…) Plays denouncing the outdated social customs and practices were also written and staged. (…) It is very interesting to note that the theatre of entertainment had taken upon itself many times the task of political awakening and social reformation and accomplished it successfully. But, sometimes, in its over-enthusiasm to entertain, it degenerated into obscenity (VARADPANDE, 1992, p. 161).

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Outro representante do estilo Swang é o Khyal (jogo-jogar), do Rajastão, que surge no século XVIII. Sua estrutura de encenação é muito similar à do Nautanki, mas creio que seja interessante citá-lo porque, se no Nautanki vemos um distanciamento grande das formas dramáticas rituais, no Khyal, vemos o caminho inverso, uma apropriação de estruturas do teatro ritual na cena cômica. Toda encenação Khyal é aberta por um vandana, que é um tipo de rangapooja. Um ator ou um grupo de atores entram em cena e jogam água no chão para assentar a poeira. Trata-se de uma ação ritual que visa a purificação do local de encenação. Enquanto fazem este trabalho de limpeza ritual, vão cantando canções para entreter o público, tornando sua ação cenicamente interessante para a audiência. Nesta mesma linha, vemos o Bhavai (mãe do universo), que nasceu no Gujarat, no século XIV, como uma forma de entretenimento e um ritual à deusa Amba. É comum que uma bandeira seja hasteada no local da encenação, com a imagem da deusa, para abençoar a performance e todos os presentes. Exatamente por este caráter ritual e esta conexão com a deusa Amba, as trupes de Bhavai são comumente convidadas a representar nos vilarejos quando há alguma calamidade ou epidemia afligindo sua população. Apesar desta conexão, seu foco temático são as peças de cunho social regadas a humor. As peças Bhavai costumam criticar os modos pomposos e sem utilidade das altas castas, ridicularizando seus comportamentos afetados, criticando abertamente seus desmandos e dando protagonismo a personagens advindos de castas baixas, que assumem o clássico papel do herói. Temos também o Tamasha (show), de Maharashtra, que influenciará sobremaneira a estética do cinema musical marathi e que se firmará como estilo apenas no século XIX. Trata-se de uma opereta popular, com forte apelo erótico e ênfase nas histórias de amor, advindas das tradicionais canções amorosas do século XIV, as lavani. Inicialmente, o Tamasha era feito por meninos imberbes travestidos de mulheres, cantando canções românticas e executando danças muito sensuais. Tal prática, levada à exaustão, acabou sendo malvista pela sociedade e entrou em declínio, abrindo espaço para a configuração moderna do estilo em que, gradativamente, as mulheres (nachya) foram assumindo o

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lugar dos meninos. No Tamasha moderno, vemos um poeta-compositor (shahir), que funcionará como um sutradhara, as dançarinas e o cômico apresentando, basicamente, dois tipos de performance: um longo poema dramático, interpretado pelos atores através do canto/recitação e de diálogos improvisados; ou a representação de um texto fechado, com papéis e falas definidos, tudo isso intercalado por números de danças femininas de grande lascívia, em que há, até mesmo, a oferta de dinheiro para a melhor dançarina, canções de amor eróticas e provocativas (lavani), interlúdios eróticos com alguma passagem mitológica entre Krishna e as gopis (pastoras). Os diálogos entre as dançarinas e o cômico também são bastante vulgares, se valendo de frases de duplo sentido e obscenidades descaradas. Ainda assim, num ambiente improvável, vemos nascer o sentimento nacionalista e certo grau de engajamento social:

As performances modernas do Tamasha estão sendo usadas pelos artistas para a causa do despertar social e político. Grupos pertencentes a diferentes ideologias políticas ou movimentos reformadores sociais encontraram no Tamasha um meio conveniente de propagação de suas ideias (...) para incutir nos soldados um sentimento de orgulho nacional e inspirá-los a lutar pela causa nacional (VARADPANDE, 1992, p. 172)52.

Outro estilo bastante importante para se visualizar a cultura do entretenimento na Índia é o Yatra (procissão), que surge entre os séculos XV e XVI, na porção leste do país (Assam, Bengal e Odissa). O estilo nasce associado ao culto Vaishnava, em especial à figura de Krishna e às Deva Yatras, ou procissões tradicionais, em louvor dele. Sua temática central advém do Gita Govinda, de Jayadeva (sec. XII) e do Krishna Keertana, de Babu Chandidasa (sec. XV), e tem conexões com o teatro sânscrito numa formatação mais popular, se valendo da música, do canto, da dança e da encenação. Veja: https://www.youtube.com/watch?v=Fn0jlx5q9k0. Para manter-se vivo, o estilo também absorveu temáticas sociais e políticas no final do século XIX, contribuindo com os Swadeshi Yatras, ou

52 No original: The modern-day Tamasha performances are being used by the artists for the cause of social and political awakening. Groups belonging to different political ideologies or social reformative movements find Tamasha a convenient medium for propagation (….) to imbibe in the soldiers a sense of national pride and inspire them to fight for the national cause. (VARADPANDE, 1992, p. 172)

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movimentos de libertação da Índia da colonização britânica que, mais tarde, foram banidos. Até mesmo uma peça chamada “Lenin” foi encenada no início do século XX e temáticas em voga como o estabelecimento da República com o surgimento da figura de um presidente e um primeiro ministro, viraram temas de peças em que Shiva aparecia como o presidente e Narayana (Vishnu), como o primeiro ministro. O estilo recebeu ainda influências da tragédia shakespeariana. Originalmente uma encenação deveria sempre terminar em comédia, mas sob a influência da obra de Shakespeare, pela primeira vez, os espetáculos incluíram o elemento trágico para fechar o espetáculo. É certo que a adaptabilidade às mudanças de tempo e gosto são uma característica fundamental do Teatro do Entretenimento, e o Yatra é um belo exemplo disso. Feito originalmente por homens, o estilo passou a contar com mulheres e tornou-se a forma folclórica teatral mais popular de toda a Índia, no final do século XX. Por volta dos anos 90, existiam mais de 300 companhias só em Bengal, com mais de 20 mil artistas envolvidos, configurando um fenômeno contemporâneo que colapsava não apenas o teatro de rua contemporâneo, mas o próprio cinema. Infelizmente, nos dias de hoje, o Yatra sofre o mesmo processo de abandono e deterioração das demais formas populares de teatro, em detrimento da cultura de massa.

Tabela 5 - Panorama Resumido do Teatro do Entretenimento. TEATRO DO ENTRETENIMENTO: Vidhushaka e Sutradhara

Divertimento: comédia, Crítica social: engajamento político, vulgaridade, obscenidades, ativismo social, ironia, sarcasmo, erotismo etc. paródia, subversão das regras sociais e das estruturas dramáticas etc.

Tradição dos artistas populares: Operetas populares: Swang, encantadores, acrobatas, Nautanki, Khyal, Bhavai, Tamasha, imitadores e cômicos. Yatras etc.

Fonte: Criado pela pesquisadora a partir da leitura de Varadpande, 1992.

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CAPÍTULO 2 – O THERU-K-KOOTHU E O FESTIVAL DE DRAUPADI AMMAN

Figure 10 - Maquiagem. Intérprete Parthiban V. Companhia da Therukoothu da região de Kongu, Tamil Nadu. Foto: Cedida por Parthiban V.

2.1 A CULTURA TRADICIONAL DO ESTADO DE TAMIL NADU

Conforme exposto na introdução, esta pesquisa parte de uma visão panorâmica da cultura teatral folclórica indiana para então lançar luz sobre o exemplo único do Theru-K-Koothu. Neste capítulo, o estilo será apresentado em seu contexto original, ou seja, os grandes festivais religiosos do estado, em especial o Festival de Draupadi Amman53 e, também, em sua característica mais marcante: um teatro, por essência, ritual e comunitário. O estado de Tamil Nadu possui uma rica tradição de cultura popular que em nada pode ser colapsada por sua contraparte clássica, que deu origem a uma das formas mais conhecidas de dança indiana: o Bharatanatyam, reconhecido dentro e fora do país como uma das formas artísticas mais representativas dos valores expressos pelo Natyasastra e a tradição clássica. Basicamente, a cultura popular do estado pode ser dividida em dois grandes grupos: as manifestações verbais (canções, contos, baladas,

53 Ver HILTEBEITEL, 1988.

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provérbios, charadas, mitos, lendas etc.) e as não verbais (crendices, danças, dramas, medicina, festividades e celebrações religiosas, artesanato jogos, costumes, hábitos etc.)54. Todos estes aspectos da cultura popular se desdobram e multiplicam em hábitos e costumes cotidianos que, por sua vez, acabam por direcionar o modo de funcionamento dos rituais, dividindo-os em três grandes grupos, segundo sua função: (1) ritos relacionados aos dias e estações do ano solar, observáveis no profícuo calendário de festividades oficiais; (2) ritos relacionados a celebrações e castas específicas como casamentos, nascimentos, funerais e (3) ritos de aversão e precaução, relacionados às superstições e crendices populares. Todos estes hábitos sociais são fundamentais para se compreender a dinâmica própria dos vilarejos de Tamil Nadu porque representam a saúde, a força da vida comunitária, a sedimentação das experiências destas comunidades específicas, de geração a geração, profundamente dependentes da manutenção do sistema de castas a definir as obrigações, deveres e direitos de cada indivíduo dentro de sua coletividade, ainda que sua existência tenha sido considerada ilegal após a independência, sua influência nunca deixou de ser sentida no âmago da vida cotidiana e nas relações sociais, como bem nos diz Shanti:

Um costume pode ser peculiar a uma única família ou pode ser comum a um grupo de famílias, o elo comum de união pode estar em uma localidade particular, numa tribo, numa casta ou credo (CHATTARJEE, 1974, Vol. II apud SHANTI, 1994, p. 240)55.

Os ritos agrários na Índia seguem uma estrutura muito particular que lhes confere independência do hinduísmo. Em primeiro lugar, porque os rituais não precisam ser realizados por um sacerdote brâmane, mas pelo líder espiritual da vila, muitas vezes, o indivíduo mais idoso - receptáculo vivo da história daquela comunidade, através de quem as divindades se manifestam fisicamente, proferindo seus oráculos e suas exigências em troca de proteção e prosperidade. Por sua origem tribal, nem sempre as divindades agrárias possuem representação iconográfica, elas não necessitam de templos ou altares porque

54 Ver Shanti, 1994, p.12. 55 No original: A custom may be either peculiar to a single family or it may be common to a group of families, the common bond of union being residence in a particular locality or unity of tribe or caste or unit creed (CHATTARJEE, 1974, Vol.II apud SHANTI, 1994, p. 240).

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a vila, como um todo, é compreendida como seu templo, sua morada. Por sua origem animista, seu culto extrapola os dogmas expressos pelo bramanismo, implicando no sacrifício animal, no transe, na possessão e nos oráculos, tudo aquilo que o hinduísmo clássico tratou de absorver e suavizar. As divindades regionais não são maniqueístas e podem tanto infringir sofrimento, quanto acalento para aqueles que as procuram, a depender de sua satisfação ou insatisfação. Daí a importância de observar a forma correta de execução de cada aspecto do ritual, evitando que o mal se abata sobre a vila em decorrência da ira da divindade. Todas as festividades, todas as celebrações e rituais populares relacionam-se, portanto, diretamente ao ciclo da vida humana e suas demandas e, por mais simples que sejam, possuem também uma fundamentação religiosa, o que os torna, por dedução lógica, tão sagrados quanto a própria religião. O Festival de Draupadi Amman, reduto de onde emerge a tradição do Theru-K-Koothu, deve ser lido e compreendido através desta chave, emprestando a encenação um valor ritual56.

2.2 O CULTO ÀS AMMANS

As Ammans, ou grandes mães, são divindades que povoam o imaginário de toda área rural do estado de Tamil Nadu, associadas aos rituais xamânicos, à feitiçaria, aos ritos de nascimentos, casamentos, solstícios e equinócios que regulam as diferentes estações do ano e a vida das pessoas num universo essencialmente agrário, assumindo, muitas vezes, importância maior para a vida comunitária e o dia a dia das pessoas, do que as divindades do extenso panteão hindu, em templos rudimentares, cuja arquitetura, nem de longe, remonta aos templos grandiosos e imponentes do sul da Índia, como nos mostra a figura abaixo:

56 Sobre isso recomendo a leitura de SEIZER, 2005.

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Figure 11 - Vista de templo na área rural de Pondicherry, Tamil Nadu, Índia. Foto: Edilson Castanheira.

O culto às divindades regionais é, sem dúvida, a mais antiga das religiões da Índia. Cada vila possui uma divindade ou espírito protetor, que remonta ao período de assentamento das tribos nômades e ao estabelecimento das primeiras comunidades agrárias, com clara influência da cultura tribal que o antecede. Vale lembrar que em Tamil Nadu, assim como em outros estados indianos, ainda existem tribos nômades remanescentes deste período. Entretanto, dentro de uma única vila, existem as divindades dos clãs familiares, as divindades de cada casta (relacionada ao papel social e a função econômica que cada indivíduo cumpre nessa micro sociedade) e, por fim, as divindades pessoais, de modo que todas elas se articulem em uma rede de celebrações e festividades de caráter comunal, fundamentais para a dinâmica e a sobrevivência social e espiritual destas comunidades. Em verdade, nas vilas remotas do estado, as divindades locais são, em sua maioria, femininas, ao contrário do panteão hindu tradicional, em que as masculinas prevalecem, subordinadas à trindade Brahma, Vishnu e Shiva. Isso se deve ao fato de que elas estão mais diretamente associadas às necessidades e demandas da vida cotidiana como propiciar a chuva e o sol no tempo certo, a fartura da colheita, o nascimento saudável das crianças, as crias fartas dos rebanhos. Elas protegem contra o mau olhado, ensinam a sabedoria das ervas medicinais, curam os enfermos e são detentoras de uma sabedoria mágico- mística que permeia todo o imaginário popular rural e que, na vida prática, estão sob a responsabilidade das mulheres. O olhar religioso regional não está voltado

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para o macrouniverso, mas para a dinâmica da vida cotidiana, seu microuniverso. Elas são convocadas para proteger, abençoar, acodir os que padecem de doenças ou de todo tipo de aflição, os que desejam filhos ou uma vida mais próspera, mas também podem destruir, sendo, frequentemente, associadas à feitiçaria, à bruxaria, aos saberes esotéricos. Os mistérios da concepção, da gestação e do parto também estão entre seus domínios. Elas são, portanto, amadas e temidas, e suas imagens telúricas e terríficas não nos deixam esquecer o tamanho de seu poder e a importância em reverenciá-las. Segundo sua natureza, as Ammans podem ser de dois tipos: delicadas ou cruéis. As delicadas são aquelas cuja energia é mais sutil e, portanto, tanto seu aspecto exterior quanto seu culto tendem a ser mais amenos, como Kamachiamman, divindade do casamento e da fertilidade a qual as mulheres recorrem quando desejam filhos ou Thantoniamman, protetora da vila de Akkur:

Figure 12 - Sri Thantoniamman do templo de mesmo nome, Akkur Village. Foto: Edilson Castanheira.

As cruéis são aquelas cujo aspecto exterior inspira temor e cujo culto exige o sacrifício de animais, a presença do sangue, das vísceras, dos fluídos corporais, culminando no transe, na possessão, no oráculo. Mariyamman,

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representante do segundo tipo, é a deusa da varíola, da varicela, da catapora. Há também um festival importante, com três dias de duração, dedicados a essa divindade que inspira tanto medo quanto adoração. Ela é um exemplo vigoroso deste tipo de divindade regional, mas existem outras, muitas outras Ammans no imaginário rural do estado. Estas divindades, cujo culto permanece completamente paralelo à tradição bramânica, não estão assentadas em templos suntuosos de pedra e seu culto depende, basicamente, da existência de toda uma política de festividades sazonais, associadas aos ciclos agrários, nos quais elas podem ser verdadeiramente conhecidas e adoradas.

Figure 13 – Exemplo de Amman ou Deusa Mãe em um templo na área rural de Pondicherry/Tamil Nadu. Foto: Edilson Castanheira.

Geralmente, elas relacionam-se aos cultos dravidianos de prosperidade e fertilidade, associados às estações do ano, aos períodos de plantio e colheita, aos solstícios e equinócios, importante esfera da vida espiritual das comunidades agrárias. As Ammans são fundamentais para a compreensão do enredo do Theru-K-Koothu, que associa a figura de Draupadi a uma Amman, tornando-a, desse modo, uma divindade. Draupadi, figura feminina fundamental do épico Mahabharata é a personagem central de toda a narrativa Theru-K- Koothu, fundindo, num só corpo, elementos da cultura dravidiana primitiva e da cultura ariana posterior.

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Festival de Mariyamman: https://www.youtube.com/watch?v=VZ3RAzdn_bA Amman Kovil : https://www.youtube.com/watch?v=s1oGIk7isEw

2.2.1 O FESTIVAL DE DRAUPADI AMMAN: REVIVENDO O MITO DE DRAUPADI57 - DA REALIDADE PARA A REALIDADE DO MITO

Diante dos olhos atônitos dos Pandavas, liderados pelo carcomido Yudisthira, Duryodhana toma Draupadi para si. De nada adiantam suas polidas negativas, o pedido de socorro aos cinco bravos esposos de olhos baixos, imobilizados pela honra da palavra dada pelo irmão mais velho. Draupadi, assim como todo seu reino, foi perdida num jogo de dados viciados. Restam silêncio, espanto e indignação. Duryodhana ensaia um riso bestial, próprio dos trapaceiros e usurpadores, enquanto insinua que Draupadi deve abandonar seus esposos desonrados para tornar-se sua mulher. Ao que ela responde sem hesitação: ‘prefiro a morte a vergonha de ser sua esposa’. Duryodhana, atacado em sua honra por uma simples mulher, na frente de todo seu séquito, contra-ataca: lança nova investida sobre Draupadi e decide humilhá-la ainda mais. De modo grosseiro e desrespeitoso, começa a desenrolar o seu saree, na tentativa de deixá-la despida aos olhos de todos. Pouco importam as súplicas de Draupadi que tenta – inutilmente – esconder seu corpo dos olhos desejosos e invasores de Duryodhana. Krishna, observando a ação do estúpido monarca, pensa: ‘quanta insensatez caberá num homem insensato? É preciso dar lhe uma lição’. Mas o saree de Draupadi não desata, há sempre mais uma e outra volta, uma e outra volta a tornar risível e ridículo o esforço de Duryodhana. Será obra divina ou a lei do Dharma? Por fim, humilhado em seu desejo de humilhar e possuir o que não lhe pertence, Duryodhana cede. Draupadi, revestida de uma força que lhe salta os olhos e alcança sua boca, lança no ar seu vaticínio: ainda hei de lavar meus cabelos no sangue da tua coxa, maldito usurpador (Recriação livre dos episódios do Mahabharata conhecido como “o jogo de dados” e “o desenrolar do saree de Draupadi”).

O Theru-K-Koothu é um teatro ritual, cuja realização está ligada intimamente aos Paratams ou festivais religiosos de Tamil Nadu, em especial, o Festival de Draupadi Amman e seu ciclo de episódios do Mahabharata, mas não tão somente. Ele também ocorre em festivais de menor duração, como por exemplo, o da divindade Mariyamman, cujas celebrações duram três dias e cujo ápice ocorre, justamente, no segundo dia de festival, quando acontecem as encenações Theru-K-Koothu, ou ainda em celebrações específicas como nos rituais de passagem, cerimônias funerárias, casamentos, no Pongal (festa da fartura da colheita) que antecede a celebração do ano novo Tamil, outra festividade importante que também pode contar com encenações de Theru-K-

57 Draupadi é a personagem feminina mais importante do épico Mahabharata, esposa dos cinco irmãos Pandavas, representantes do Dharma na Terra.

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Koothu. Segue abaixo um breve calendário de celebrações e festividades do estado para que se entenda a relação de interdependência que há entre o ciclo de festividades agrárias e as jornadas de Theru-K-Koothu.

Tabela 6 – Calendário das Principais Festividades da área rural do estado de Tamil Nadu, quando apresentações de Theru-K-Koothu podem acontecer. MÊS FESTIVIDADE

TAI • Pongal (celebração da colheita que antecede ano novo Tamil); Metade de • Mailar (segundo Pongal, uma semana após o primeiro); Janeiro a • Amavacai (celebração da lua minguante do mês Tai); Metade de • Kiruttikai; Fevereiro • Pucam Purnami (celebração da lua cheia do mês Tai); • Kiramatevata (celebração de dinvindades femininas locais);

MACI • Amavacai; Metade de • Kiruttikai; Fevereiro a • Paurnami ou Holi (chegada da Primavera); Metade de • Shivaratri; Março

PANKUNI, CITTIRAI, VAIKACI e • Paratam Festivals (importantes festivais regionais, de longa ANI duração, como, por exemplo, o Festival de Draupadi Amman); Metade de Março a Metade de Julho

ATI, AVANI • Jattirai Kuttus (apresentações esporádicas aos domingos, terças, Metade de quintas e sextas em festividades para divindades femininas locais Julho a como Mariyamman, Thantoniammam etc.); Metade de Setembro

PURATTACI • Apresentações todos os sábados e domingos, em louvor ao Deus Metade de Vishnu, conhecido como Perumal; Setembro a Metade de Outubro

AIPPACI, • Baixa temporada, quando não há um calendário de festividades a MARKALI serem celebradas. Eventualmente, apresentações são feitas no Metade de Aiyappam Natakam, em louvor ao Deus Aiyappam e no Vaikunta Outubro a Ekataci, celebração que ocorre no mês Markali. Metade de Janeiro Fonte: DE BRUIN, 1999, p. 54.

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Observando a tabela, podemos concluir que o pico das festividades ocorre entre os meses de abril, maio e depois julho, agosto e setembro, quando ocorrem os principais Paratams (festivais), e a baixa temporada ocorre entre a metade de outubro a metade de janeiro. Neste período, as companhias se estruturam para a nova temporada, refazendo seu corpo artístico, reformando ou refazendo figurinos e adereços, reensaiando o repertório ou criando novos, buscando patrocinadores e possíveis espaços de trabalho. A origem do Festival de Draupadi Amman remonta ao século XIV na região de Gingee, distrito de Thanjavur, quando invasores estabeleceram, na região, uma área militarizada, favorecendo seu crescimento e gerando um grande fluxo de pessoas e, portanto, de interações sociais e culturais. Tudo indica que o festival também tenha uma ligação direta com o culto de Tirupataiyamman, divindade relacionada à natureza e à fertilidade, de um período histórico anterior. Durante a pesquisa, notei que inúmeras vezes Frasca (1990, p. 69) utiliza a palavra Tirupatai como sinônimo de Draupadi, dando a entender que houve uma fusão entre o culto primitivo da primeira, parte intrínseca do culto das Pattinis (divindades femininas), com o culto posterior da segunda, já no século XIV e com influência militar. O Theru-K-Koothu seria, portanto, o amálgama do culto às divindades femininas regionais, as Ammans, do culto Vaishnava, manifesto por meio da disseminação do épico Mahabharata (Frasca, 1990, p. 135), no qual Krishna (irmão de Draupadi) é a grande divindade, e da cultura militar que vigorava na região por volta do século XIV, com ênfase na figura do herói-guerreiro, amplamente corroborada pelos épicos, pelos puranas e toda sorte de histórias de heróis locais. Há registros de patronagem à recitação do Mahabharata, no sul da Índia, desde a dinastia dos Pallavas, que reinaram entre os séculos V e VIII d. C (Hiltebeitel, 1988, p. 14 apud De Bruin, 1999, p. 91). Segundo De Bruin: O culto e a identificação com os heróis através da representação dramática parecem muito antigos. Alguns estudiosos acreditam que ele seja pré-ariano e baseado nos cultos Dravidianos de adoração dos heróis. Neste caso, remetendo ao período Sangam, nos séculos I e II d.C (DE BRUIN, 1999, p. 91)58.

58 No original: The worship of and identification with heroes through dramatic representation seems to be very old, and is found throughout India. Some scholars believe it to be pre-Aryan

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Sua função primordial é ritual, operando em dois níveis: espiritual (proteção) e social (integração). A função primeira é preservar a castidade de sua divindade-mãe, Draupadi Amman ou Tirupataiyamman, contra o escárnio de seus algozes. Se ela se sentir respeitada e devidamente adorada, certamente a vida na vila, naquele ano, será muito produtiva e próspera. É para isso que todos trabalham e a razão pela qual o festival se repete ano após ano, para que as bênçãos da deusa recaiam sobre as vilas e seus moradores, para que o princípio vital da energia criativa do feminino não cesse de fluir no âmago de sua vida espiritual e material. Entretanto, o festival cumpre ainda uma segunda função, não menos importante, a de ensinar e garantir a manutenção do Dharma, a conduta correta na vida, para que os laços morais, sociais e éticos que unem as comunidades sejam relembrados e repactuados, garantindo uma convivência harmônica para o próximo ciclo anual e transmitindo, para as novas gerações, os valores comunitários tradicionais. Vejamos o que nos diz Richard Frasca, primeiro estrangeiro a pesquisar o Theru-K-Koothu, sobre o Festival de Draupadi Amman:

Além do mais, o próprio teatro “incorpora um processo ritual que transforma a narrativa em encenação, criando um tempo e espaço sagrados através dos quais os Tamils renovam e revivem sua mitologia e experimentam, simultaneamente, a communitas que permite a manutenção de sua complexa e rica sociedade, ainda que repleta de tensões camufladas (FRASCA, 1984, p. 350 apud DE BRUIN, 1999, p. 17)59.

Frasca (1990, p. XI), valendo-se de conceitos desenvolvidos por Turner no livro “From ritual to theatre” (1982), apresenta o Theru-K-Koothu da seguinte forma: a encenação ritualizada do épico remete à fase da “separação”, descrita por Turner, da realidade cotidiana da vila, instituindo um outro nível de realidade, a realidade do mito. Avança-se, então, para a produção de estados diversos de “liminaridade”, com o afrouxamento das fronteiras que separam a realidade

and to be based upon regional, Dravidian cults of hero worship. In that case it is often traced back to the Cankam period (first two centuries A.D.) (DE BRUIN, 1999, p. 91) 59 No original: Morerover, the theatre itself “embodies a ritual process that transforms narrative into enactment, creating sacred time and space in which Tamil villagers renew and relive their mythology, and simultaneously experience the communitas that allows their complex, rich, but tension-ridden society to continue. (FRASCA, 1984, p. 350 apud DE BRUIN, 1999, p. 17)

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factual da ficção, a transposição da vila e de seus membros para condições de existência e participação diferenciadas daquelas possíveis e permitidas no dia- a-dia ou com o acontecimento máximo das possessões (avesams), tanto no público quanto nos atores. Finalmente, quando o drama ritual chega ao fim, acontece a “reagregação” e os indivíduos podem retornar à vida cotidiana, repactuando seus antigos laços comunitários, garantindo as condições propícias para a manutenção de seus valores materiais e imateriais, uma verdadeira experiência de communitas, ou seja, a ruptura com as rígidas estruturas sociais da vila, pautada pelo sistema de castas, por uma anti-estrutura, temporária e flexível, que permite a criação de outros modos de interrelação entre os indivíduos, não hierarquizado. O processo de separação, segundo Frasca, tem início com o ritual de iniciação do Kappu, quando os cinco Kappukkarans são escolhidos e precisam romper seus laços mundanos com o coletivo: não podem comer determinadas comidas, passam a viver no templo durante todo o festival, não podem ter relações sexuais e usam um dhoti (saiote) cor de açafrão (cor do renunciante, na filosofia hindu). É nesse momento que a recitação de histórias aparece no festival, como uma meticulosa e lenta preparação para a segunda fase, o ápice do festival, o período liminar, quando as grandes encenações rituais e as jornadas de Theru-K-Koothu, acontecerão. As histórias vão abrindo um novo tempo- espaço: o sagrado, aproximando todos na vila, intensificando o contato social. Entretanto, são as encenações rituais, com suas dramatizações que ocupam toda vila e exigem a participação de todos, que tratam de estabelecer, de vez, o estado liminar daquela situação, com o estabelecimento gradual da ideia de communitas. É dessa forma que a vila vai passando por processos sucessivos de transformação e, com ela, seus moradores, até que a realidade do mito se sobreponha a toda e qualquer outra realidade, abrindo espaço para as manifestações do divino em forma de possessão, transe e oráculos. A divindade vem ter com os seus, ela lhes escutou e atendeu ao seu chamado. Um frenesi toma conta da vila, um turbilhão de emoções, de forças psíquicas operando sobre o coletivo, cujo ápice é a encenação ritual do Padu Kalam, a

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batalha final. Tal situação de tensão e anormalidade precisará decair num curto prazo ou a situação se tornará insustentável em termos sociais, a guerra precisa terminar para que a normalidade da vida, o retorno às estruturas, à segurança, ao ethos da vila possa, finalmente, se dar. O que marca o processo de reagregação é a encenação ritualizada do Tarumaraja Pattapisekam, encenação ritual que ocorre após o Padu Kalam, quando Yudhistira, representação do Dharma, é coroado rei novamente. A ordem volta a se estabelecer no mundo dos homens, o sistema de castas volta a funcionar, a vida retoma sua rotina. Draupadi foi vingada, a deusa mãe está satisfeita, os ensinamentos do Dharma foram repactuados, um novo ciclo agrário pode começar tão logo as monções caiam para abrandar a terra e os seres. Por tudo quanto foi apresentado até aqui, parece-me que as afirmações de Frasca são bastante pertinentes. A ideia de que a vila vai passando por sucessivas transformações: local de nascimento de Draupadi, local onde o épico se desenrola e, por fim, o campo de batalha de vão construindo as condições para esse desligamento da realidade factual, abrindo espaço para diversa situações liminares, que embaralham arte e vida ou que propiciam estados diferenciados de existência para seus indivíduos, como no caso das possessões e transes. Por fim, quando a guerra termina, com a apoteótica destruição do grande totem de Duryodhana, a vida pode ser finalmente retomada, reforçando os vínculos comunitários e o sentido de pertencimento. A performance Theru-K-Koothu durante o Festival de Draupadi Amman seria, portanto, um meio de manipular certas “forças mágicas e invisíveis” que governam o universo, controlando seu poder destrutivo e canalizando-o para benefício de toda comunidade. Frasca descreve esse fenômeno com muita beleza:

A performance terukkuttu continua durante a noite, às margens da realidade, até a sua conclusão no início da manhã seguinte. A encenação na escuridão da noite é uma das características da liminaridade e da communitas. A combinação da escuridão com as lâmpadas na frente do palco, as únicas fontes de luz, dão à maquiagem e área de atuação do terukkuttu uma aparência e aura sobrenatural. A escuridão em que o público está imerso durante a noite também os define como uma massa homogênea representativa de toda a aldeia. Além disso, ficar acordado durante a noite é uma inversão da realidade cotidiana em que as pessoas normalmente só ficam acordadas durante

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o dia. Finalmente, a noite em si é um dos mais claros símbolos de liminaridade disponíveis entre os fenômenos naturais recorrentes; é um momento de morte simbólica quando espíritos e forças malévolas estão à soltas (FRASCA, 1990, p. 181)60.

Hollander (2007) atualiza essa observação e acrescenta outros dois elementos bem pertinentes, além do contexto ritual central, para nos ajudar a pensar o Theru-K-Koothu em relação a seu meio e seu público. Segundo a autora, esta forma de teatro folclórico dependeria de um tripé básico para existir: (1) os já sabidos festivais religiosos, (2) a existência de um espaço público, de convívio coletivo e democrático, como somente um vilarejo poderia oferecer, (3) e a sua permanente condição de precariedade, impelindo-os de volta para o ritual e o desejo de satisfazer, através das festividades, as divindades da fertilidade e da prosperidade, suas Ammans. A maior parte destes festivais acontecem tradicionalmente no alto verão, quando está muito quente para trabalhar, e antes da chegada das monções, quando as chuvas se estendem por dias e noites a fio. Entretanto, devido às profundas mudanças climáticas que atingem todo o planeta, estes ciclos naturais não seguem mais padrões regulares e sazonais, interferindo não apenas nas festividades, mas no próprio modo de vida destas populações. Ano após ano, agrava-se em todo o país, a situação dos agricultores, lançados à pobreza extrema. As tradicionais monções estão cada dia mais irregulares, mais curtas ou simplesmente não acontecem, as temperaturas no verão chegam a 50º C, o solo racha, não há água suficiente nem mesmo para o consumo e a agricultura familiar é duramente atingida. Os agricultores se tornam dependentes da ajuda do estado para sobreviver e todo o ciclo natural de vida destas comunidades é profundamente abalado, colocando sua existência e suas tradições numa perigosa condição de

60 No original: The terukkuttu performance continues through the night on the margins of reality until its conclusion early the next morning. Its performance in the depth of night is characteristic of liminality and communitas. The combination of darkness and the lamps at the front of the stage, the onlu sources of light, give the makeup and performing area of the terukkuttu an otherworldly appearance and aura. The darkness in which the audience is immersed through-out the night defines them as one homogeneous mass representative of the entire village. Moreover, sitting up throughout the night is a reversal of the reality in which people are normally up only during the day. Finally, the night itself is one of the clearest symbols of liminality available among natural recurring phenomena; it is a time of symbolic death when spirits and malevolent influences are unleashed. (FRASCA, 1990, p. 181)

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vulnerabilidade, o que, claro, inclui o Theru-K-Koothu. Atualmente, ¼ da população da Índia vive abaixo da linha de pobreza nas áreas rurais da Índia. Hollander, no livro “Indian Folk Theatres. Theatres of the World” (2007), enfatiza que, em 15 anos dedicados ao estudo do Theru-K-Koothu, viu a condição de seus artistas degenerar muito em decorrência do abandono da agricultura familiar e das mudanças climáticas. É interessante perceber, apesar deste triste cenário, a possibilidade que o “não trabalhar” abre como espaço lúdico e de convívio social dentro destas comunidades. É um momento importante de ócio, de descanso da dura rotina da vida no campo, de buscar entretenimentos e espaços de socialização que não ocorrem no restante do ano, de repactuar seus laços, crenças e valores. Isso explica porque estes festivais incluem o teatro, a dança, a recitação de histórias e a música em seu bojo. Eles são, ao mesmo tempo e com o mesmo grau de importância, uma experiência ritual e social, de deleite e divertimento. Seu espaço é o espaço público e coletivo, normalmente a área em frente ao templo da vila, onde todos se encontram e estão em posição de igualdade. O espaço público, neste contexto, não é apenas um lugar de passagem, mas de encontro, parte orgânica da vida destas comunidades, a extensão de um modo de vida naturalmente coletivizado: é lá que as crianças brincam, que os mais velhos se sentam para conversar, que as pimentas secam ao sol, que os animais ficam durante o dia, que as mulheres se encontram etc. A rua é o ponto central de encontro de todas as famílias nas mais remotas comunidades e vilas agrárias da Índia. Nela, todas as relações são horizontais, não hierarquizadas, algo que se acentua durante as festividades. Compreendendo a importância do espaço público para estas populações é fácil entender porque o Theru-K-Koothu acontece, prioritariamente, nas imediações e não dentro dos templos, ainda que esteja em relação direta com ele. É dentro deste contexto que se realiza a centena de anos, durante sucessivas gerações, o Festival de Draupadi Amman, onde as apresentações de Theru-K-Koothu ocupam o lugar de acontecimento central da festividade, numa celebração ruidosa da vida que em nada remete às convenções teatrais ocidentais, com suas salas escuras e a presença silenciosa da audiência, algo

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inconcebível numa cultura teatral em que a interação é parte intrínseca do jogo dramático. Comumente envolve vários vilarejos e clãs familiares em sua organização, numa complexa distribuição de responsabilidades atribuídas segundo as divisões de castas e, idealmente, de frequência anual. Acredita-se que, quando o festival não acontece, a colheita é mais fraca naquele ano, os animais não dão boas crias, assim como as mulheres e toda a vida nas vilas se tornam mais áridas e menos prósperas. Reviver o mito de Draupadi é garantir a continuidade da própria vida material e simbólica destas comunidades, portanto. O festival compreende diferentes ações que vão dos rituais iniciais protetivos e produtivos à recitação de histórias e encenações de Theru-K- Koothu, divididas em duas modalidades: a primeira são aquelas que acontecem como parte intrínseca de uma dramatização ritual, envolvendo atores e comunidade, embaralhando arte e vida, e que serão chamadas de Encenações Rituais (como a morte de Duryodhana, representado por um grande totem, construído de barro e outros materiais naturais, que terá sua coxa direita estraçalhada e embebida em sangue pelas mãos de Bhima, a confirmar o poder da maldição lançada por Draupadi, num misto de transe e catarse coletivas entre intérpretes e espectadores, encerrando a participação do Theru-K-Koothu no evento). Essas encenações se conectam a toda uma tradição de dramatizações rituais, em formato processional, ligadas ao culto das divindades femininas, que é bastante comum nas regiões rurais de Tamil Nadu. Basicamente, são as encenações que ocorrem fora do espaço teatral convencional, ocupando diferentes espaços da vila, cujo caráter ritual é evidente. De Bruin (1999, p. 97 e 71) se refere a elas como “mobile performances” ou “off-stage performances” e Frasca (1990, p. 171) como “large-scale enactment”. As encenações rituais, assim como as procissões rituais das quais derivam, tem como função homenagear a divindade, apaziguá-la. Nessas procissões, os devotos realizam sacrifícios que podem ser a perfuração da pele, pisar em brasas, carregar um pote com brasa quente na cabeça, sacrificar animais etc. Desse modo, a encenação ritual de Theru-K-Koothu é uma espécie de sacrifício visual (De Bruin, 1999, p. 97) para aplacar a ira divina. As divindades femininas agrárias possuem um duplo espectro: são suaves e ferozes, benéficas

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e destrutivas e, por isso, é preciso sempre acalmá-las, contentá-las, para que não derramem sua ira sobre os humanos. Assim como nas procissões rituais, as encenações rituais do Theru-K-Koothu são fortemente imbuídas deste espírito. É comum que os devotos e os intérpretes se refiram a esses momentos como “cooling the overheated deity” (De Bruin, 1999, p. 97), algo como: “apaziguando a divindade irada”. Os intérpretes seriam, dessa forma, os mais habilitados a manipular, canalizar essa ira, essa energia quente e destrutiva, e transmutá-la em algo benéfico para seu grupo social. Não à toa, são as encenações rituais as que mais abrem espaço para os exemplos de possessão mais genuína por parte da audiência. A segunda modalidade de encenação é aquela que engloba a apresentação de longos episódios do Mahabharata, que serão chamadas de Jornadas de Theru-K-Koothu, como o famoso episódio do Desenrolar do Saree de Draupadi. Estas jornadas começam no final da noite e se estendem até o amanhecer. Elas também possuem um valor ritual, mas englobam outras demandas tanto estéticas quanto de entretenimento. Não podemos esquecer que os Paratams (festivais) acontecem no período pós-colheita, o único momento de ócio na dura jornada dos trabalhadores rurais, portanto, o entretenimento é um aspecto que precisa ser levado em conta nessas ocasiões, sem nenhum demérito à sua função ritual principal. Por fim, é preciso contextualizar as encenações rituais e as jornadas de Theru-K-Koothu dentro de um complexo conjunto de gêneros performativos das áreas rurais de Tamil Nadu que englobam diferentes tipos de Natakams (dramas populares), as danças e encenações das Kuttatijatis (Devadasis). Embora o Theru-K-Koothu seja considerado o maior representante do teatro folclórico de Tamil Nadu, ele não é o único e não é incomum que alguns atores de Theru-K- Koothu participem de outras companhias de Natakam com menor grau de estilização e mais próximos do universo cinematográfico indiano. Originalmente, o Festival de Draupadi Amman deveria durar entre dezoito a vinte um dias, incluindo os rituais de abertura e fechamento, criando uma correlação clara com narrativa expressa no épico Mahabharata dos dezoito dias de guerra em Kurukshetra, mas a realidade econômica, infelizmente, se

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sobrepõe à realidade mítica, e hoje, os festivais não costumam durar mais do que dez dias, considerando todos os procedimentos, segundo pude constatar pelo material bibliográfico e com meus colaboradores, durante a pesquisa de campo. Em outros tempos, os primeiros nove dias seriam destinados à realização dos rituais que estabelecem a condição de “liminaridade” já bem exposta por Frasca e pela recitação de histórias, que vão abrindo um outro espaço imaginário e um outro tempo mítico. As encenações Theru-K-Koothu, aconteciam a partir da noite do décimo dia (Frasca, p. 170), em relação direta com o ápice do ritual, se estendendo até o penúltimo dia do festival, coincidentemente o décimo oitavo dia, deixando os últimos um ou dois dias para a finalização dos complexos rituais que se encarregam de fazer a passagem deste estado de “comunnitas” para a retomada da vida cotidiana. Essa estrutura permitiria a realização de, aproximadamente, nove encenações rituais e oito jornadas de Theru-K-Koothu, durante um festival com 20 dias de realização. Hoje, o que se vê, é uma condensação dessa complexa e rica estrutura para apenas 10 dias. Isso faz com que os rituais, as recitações de histórias com acompanhamento musical (piracankams) e as encenações, que antes aconteciam com certo espaço entre si, mais afeito ao tempo do ritual, precisem ocorrer num mesmo dia, criando uma estrutura compacta, mais ou menos definida da seguinte forma: um ou dois dias apenas para o estabelecimento dos rituais iniciais, as recitações de histórias começam dois ou três dias antes da chegada das companhias de Theru-K-Koothu e costumam acontecer no começo da manhã e/ou final de tarde e, finalmente, temos aproximadamente cinco ou seis dias de encenações Theru-K-Koothu, que acontecem no período noturno, virando a madrugada. Dessa forma, é possível preservar um bom número de episódios completos e de encenações rituais mais importantes, mas em quantidade obviamente inferior àquela que seria desejável. Se não houver dinheiro suficiente, a participação Theru-K-Koothu no festival pode ser mais reduzida ainda, dando prioridade para as recitações de história. Ou seja, não é possível fornecer um número exato de dias de duração de cada atividade dentro desse cronograma básico de 10 dias, ou mesmo contabilizar o número exato de

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episódios encenados durante um festival, porque essa estruturação é sempre flexível e conectada exclusivamente aos interesses da comunidade (rituais, histórias e episódios de predileção) e sua capacidade financeira de realizar o festival. A única atividade que atravessa todos os dias de duração do festival são os rituais. Segue, a partir de agora, a descrição de um festival ocorrido no vilarejo de Ecchur, Distrito de Tiruvannamalai, norte de Tamil Nadu, nos anos de 1990, conforme apresentado no documentário “Kelai Draupadai”, de Ananthachari, Sashikanth, produzido no ano 2000. A opção pela descrição detalhada deste evento, em particular, se deve pelo fato dele ter sido um festival ainda “à moda antiga”, com 21 generosos dias de duração, com muitos episódios encenados, recitações de histórias e rituais que nos permitem uma apreciação cuidadosa da tradição do Theru-K-Koothu e suas imbricações na vida comunitária. Infelizmente, não tive a oportunidade de participar de um festival, como o de Draupadi Amman, durante minhas viagens à Índia, o que, certamente, configura uma perda para esta pesquisa e mais ainda para a pesquisadora. Nas diferentes ocasiões em que assisti apresentações de Theru-K-Koothu, elas aconteceram descoladas de seu contexto ritual original. Foi necessário, portanto, fazer uma escolha delicada: não apresentar detalhadamente o funcionamento de um festival e o modo como o Theru-K-Koothu se insere nele, ou fazê-lo partindo de materiais de segunda mão disponíveis: vídeos, fotos, entrevistas e bibliografia. Dada a importância deste festival em particular e da necessidade de se compreender o contexto ritual em que o Theru-K-Koothu se insere, para melhor conhecê-lo, optei por lançar mão deste artifício, garantindo que essa informação tão necessária constasse no corpo da pesquisa. Para que o festival aconteça é necessário que os mais jovens das vilas do distrito procurem o conselho dos anciãos e solicitem sua realização. O conselho, então, decidirá sobre as condições dos vilarejos em realizar o festival, o que envolve não só as condições econômicas, mas também determinadas condições astrológicas favoráveis. Eles serão responsáveis por angariar e recolher o dinheiro necessário para a realização do festival entre todas as castas que formam a comunidade local, não havendo qualquer distinção entre quem doou

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mais ou menos. Durante a festividade, que é um grande evento social, religioso, político e familiar, tudo será gratuito e acessível a todos, igualmente. Tradicionalmente, o festival deve acontecer no mês de maio (cittirai) e sua produção deve ter início em janeiro. Os anciãos decidem, a partir dos recursos disponíveis, quantos dias o festival terá e quais os contadores de histórias e trupe de Theru-K-Koothu serão contratados. Primeiro chegarão os contadores de histórias, que definirão o dia “mais auspicioso” para o início do festival. No dia escolhido, a “Bandeira da Verdade” (Mei Koti), cor de açafrão – a cor do renunciante - será hasteada, de modo ritualizado, logo cedo num mastro erguido no centro da vila que sediará o festival, marcando sua abertura. O próximo passo será escolher cinco homens proeminentes da comunidade para amarrar, em seus pulsos, o cordão sagrado, Kappu, que quer dizer “[...] proteção para aqueles que permanecem muito próximo à deusa” (Frasca, 1990, p. 136). Eles serão os Kappukkarans, sacerdotes responsáveis por todas as atividades que ocorrem durante o festival, permanecendo todo tempo disponíveis no Templo de Draupadi Amman, cumprindo todos os preceitos rituais de purificação, funcionando como mediadores entre a divindade e a coletividade. Nada será feito sem que a deusa aprove e o manifeste através de seus porta-vozes. Eles conduzirão também todas as atividades rituais como, por exemplo, a coleta da primeira água do dia para o pooja, oferenda matinal, a purificação da imagem da divindade. Simbolicamente, os cinco escolhidos, representam os cinco irmãos Pandavas, os cinco Kauravas, os cinco generais dos exércitos em Kurukshetra (campo de batalha), as cinco castas mais comumente encontradas nas vilas de Tamil Nadu. Durante todos os dias do festival, eles conduzirão os contadores de histórias até o templo para contar e recitar as histórias do Mahabharata para que Draupadi Amman, nascida do fogo, irmã de Krishna, representação da energia feminina ou Shakti, as escute novamente (Kelai Draupadai). É dito que o festival deve acontecer todo ano para que Draupadi possa ouvir/reviver, uma vez mais, as histórias do Mahabharata (2001), que narra a luta fratricida dos primos Pandavas e Kauravas e nos ensina o caminho do Dharma, a conduta correta no

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mundo. Ela é, portanto, sua principal personagem e, também, sua maior espectadora. Para se entender a importância de Draupadi para o Theru-K-Koothu basta constatar que existem quatro narrativas diferentes do exílio dos Pandavas que servem de material dramatúrgico para os artistas: o Ramayana, o episódio do exílio dos Pandavas do Mahabharata, A história de Nala e Damayanti, e a história do exílio do rei Harichandra, em três delas Draupadi é citada. Os artistas de Theru-K-Koothu utilizam uma versão regional do Mahabharata em que Draupadi é a heroína, ela é apresentada como irmã do deus Rama, a reencarnação de Nalayiani (filha de Nala e Damayanti). É pelos olhos dela que conhecemos as agruras do exílio dos Pandavas e, posteriormente, de seu retorno triunfante. O objetivo central das recitações e encenações durante o festival é, portanto, encontrar formas de contar estas histórias para Draupadi, dando grande importância tanto à história em si quanto ao modo de contá-la. Os Kauravas, liderados por Duryodhana, representam as forças da mesquinhez, inveja, orgulho e engano. Os Pandavas representam as forças da honra, valor, virtude e justiça – o caminho do guerreiro, a força do Dharma. Conta a mitologia, que tal festival descende do sacrifício à serpente realizado pelo rei Jayamejaya para eliminar a lei do Karma deste mundo. Seu pai, o antigo monarca, havia sido morto por uma serpente (elo simbólico entre causa e efeito). Entretanto, durante o ritual, o sacerdote brâmane adormece e Jayamejaya fica furioso. Dormindo, o sacerdote sonha que um tigre está prestes a pegá-lo. Quando o rei, irritado, o acorda, ele acha que é o tigre que o ataca, e num estado de confusão mental entre sonho e realidade, pula nas chamas da fogueira ritual. O rei é acusado de braminicídio e a única forma de purificar seu karma é escutando as histórias do Mahabharata do início ao fim. Sua encenação tem duplo significado: é a celebração do épico sânscrito e a reminiscência do sofrimento de seus ancestrais, dos homens e mulheres daquele estado que lutaram, sofreram e morreram em busca da iluminação. A estrutura do festival de Ecchur é bem definida: (1) De manhã: rituais mais complexos e restritos, executados pelos cinco Kappukkarans; (2) De tarde: recitação de histórias ou realização das encenações rituais por diferentes

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espaços da vila, com participação dos atores Theru-K-Koothu e de populares; (3) De noite: jornadas do épico Mahabharata pelos atores Theru-K-Koothu. Os contadores de histórias se encarregarão de recitar os principais episódios com acompanhamento musical, ao modo dos antigos contadores de história da Índia, Swang, como apresentado no capítulo anterior. Não se trata de uma encenação, mas da narração, em verso, do épico, acompanhada por um instrumento melódico, quase sempre um harmonium. A cada dia, o contador relembra o que foi narrado no dia anterior e introduz o novo episódio, que pode ser intercalado com comentários ou mesmo relacionado a alguma demanda da comunidade. As recitações vão preparando a audiência para as apresentações de Theru-K-Koothu, criando um clima favorável ao seu desenvolvimento. Durante várias noites até o penúltimo dia de festival, a trupe contratada encenará os episódios do Mahabharata selecionados pelos moradores, com grande fervor e entrega, contando com a participação ativa da comunidade. As jornadas de Theru-K-Koothu acontecem num espaço devidamente definido, consagrado e preparado para essa finalidade, geralmente na frente do templo, entretanto, as encenações rituais podem acontecer por toda a vila, em diferentes espaços, como veremos mais adiante. No primeiro dia de encenação Theru-K-Koothu no festival61, delimita- se uma arena próxima ao templo ou outro espaço conveniente para receber as apresentações. Os músicos são os primeiros a se colocar, enquanto um pooja (oferenda) para Ganesh, o deus removedor de obstáculos, é feito através da música e do canto (Vandanam). Entra em cena, então, o Kattiyakaran, condutor da encenação, para apresentar a história que será encenada e os méritos obtidos em escutá-la. A primeira história a ser recitada, no dia de participação dos artistas Theru-K-Koothu, é o episódio do Mahabharata em que Duryodhana finge que vai dividir suas terras com seus primos, os Pandavas e é ela que abre espaço para a primeira encenação ritual. Ele os manda para um palácio coberto de cera altamente inflamável e orienta seus homens a trancar todas as portas e atear

61 A descrição que segue do Festival de Draupadi Amman é a que está registrada no documentário ‘Kelai Draupadai’, de ANANTHACHARI, Sashikanth, 2000.

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fogo quando todos estiverem dormindo. Bhima é alertado deste fato e consegue salvar sua mãe, sua esposa e seus irmãos. Os Pandavas são, por esta traição, lançados ao primeiro exílio. O exílio, no épico e para o público do festival, é a metáfora da condição do homem em busca da liberação (moksha), simbolizando a introspecção necessária para nos colocar em contato com nossos demônios interiores, dominá-los para, então, poder retornar ao convívio social em outro nível de consciência. Ao término da primeira narrativa, segue-se a realização da primeira encenação ritual com a participação de atores e da comunidade, simbolizando a vitória dos Pandavas sobre Duryodhana e a partida para o exílio. Os cinco homens escolhidos pela vila e responsáveis por mediar o festival, constroem uma palhoça no centro da vila e colocam, dentro dela, seis bonecos representando os soldados mandados por Duryodhana para eliminar seus primos. Os mediadores, então, ateiam fogo à palhoça diante do olhar atento de toda a vila, enquanto um boneco, representando Bhima, responsável pelo salvamento dos Pandavas, circunda a palhoça em chamas. Essa primeira encenação marca o processo inicial de transformação da vila, que começa migrar do plano da realidade para o plano da ficção. No dia seguinte, logo cedo, temos a encenação ritual que evoca a morte do demônio Bakasura. Nesta passagem, já no exílio, os Pandavas são hospedados por uma pobre senhora que mora numa vila aterrorizada por um demônio que exige carne humana em forma de sacrifício. Naquele ano, seu filho será o sacrificado e ela, desesperada, pede ajuda aos seus hóspedes. Bhima decide tomar o lugar do jovem rapaz e acaba por matar Bakasura e salvar o vilarejo. Simbolicamente, este episódio do Mahabharata traz uma dupla invocação: representa a proteção de Bhima para o vilarejo onde o festival acontece e, simultaneamente, transporta toda a vila para uma condição superiormente mais elevada, transformando-a no vilarejo de Gingee, lugar de nascimento de Draupadi para matar o demônio Vachakram, progenitor de Bakasura, Este episódio será encenado por toda a vila, junto com dois atores que interpretarão Bhima e Bakasura, como uma grande encenação ritual. Bhima será

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o representante da vila para lutar contra o demônio. Para tanto, o ator que encarna o personagem vai de casa em casa recolhendo mantimentos que serão oferecidos a Bakasura, seguido por músicos e uma horda de curiosos. Toda a vila lhe dá comida e o abençoa, revivendo o mito original numa peregrinação que dura muitas horas a fio. O ator que encarna Bakasura, por sua vez, vai caminhando pelas ruas da vila fazendo algazarra, gritando e convocando todos para a grande batalha. Quando a noite cai, Bhima surge numa carroça- carruagem, carregando, nas mãos, uma arma de luta, com a multidão a segui- lo, entre gritos e palavras de apoio. Eles se encontram na entrada do templo de Draupadi Amman onde o demônio será, finalmente, morto. Esta narrativa ritual é particularmente interessante porque alça de vez a vila à condição de lugar mitológico, situado num outro tempo-espaço diferente daquele proposto pela realidade cotidiana, no qual uma outra organização das relações passa a operar. A partir desse momento, o Mahabharata ganha vida no centro de uma pequena aldeia do sul da Índia. No próximo dia, acontece outra encenação ritual muito importante para o festival: o casamento de Draupadi com Arjuna. Toda a vila é parte desta grande encenação, se dividindo em dois grupos: os familiares da noiva e os familiares do noivo. Cada casta específica fica responsável pelos preparativos de uma encenação ritual. Esta divisão, por castas, permite que cada uma delas dê sua contribuição para realização do festival, sendo um instrumento importante de afirmação de suas identidades como membros da vila, garantindo sua visibilidade dentro do amplo espectro de castas que formam o coletivo. Nesta ocasião, em especial, acende-se o fogo sacrificial, os participantes ativos na encenação ritual colocam seus colares sagrados cruzando o peito. Flores e leite são oferecidos aos noivos e depois segue-se a troca de presentes entre as duas famílias, simbolizando o dote da noiva à família do noivo. Ao final desta dramatização ritual, a imagens de Draupadi e Arjuna serão enfeitadas com guirlandas e carregadas, num andor, por toda vila, seguidas de música, num espírito de grande alegria e contentamento. Draupadi agora é a noiva da vila e a vila é transportada à posição de Panchala, um dos dezesseis reinos da Índia antiga, local onde se passa o Mahabharata, ou, simplesmente, Munurmangalam,

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lugar sagrado onde o épico se desenrola. Este é o acontecimento que abre espaço para que o teatro ocupe, daqui para frente, espaço central na festividade com o início das jornadas. É curioso notar que sempre uma encenação de casamento antecede o início das jornadas de Theru-K-Koothu durante o festival. O casamento é uma das instituições mais importantes na organização da vida nas sociedades primitivas, através dele se estabelecem os laços comunitários, os vínculos de parentesco, as possibilidades de troca e ascensão social. Não é à toa, portanto, que esse evento seja celebrado como um ritual durante festival, através do casamento simbólico da deusa mãe e do herói guerreiro do Mahabharata. Segue-se o episódio que narra a origem da humilhação de Duryodhana. Durante o dia ele será narrado pelos contadores de história e à noite, encenado pela trupe de atores. Apesar de ter tentado matar os primos de várias formas, Duryodhana não teve sucesso. Lançados ao exílio numa terra inóspita, através de seu trabalho, os Pandavas fazem dela um lugar fértil e próspero, que recebe o nome de Indraprastha. Krishna aconselha Yudisthira, o mais velho dos Pandavas, a declarar-se rei de Indraprastha numa cerimônia conhecida como Rajasuiya Yagam. Pela tradição, os Kauravas devem ser convidados e comparecem. Duryodhana é tomado de inveja pela prosperidade dos primos. Enquanto caminha pelo Palácio das Ilusões, “[...] onde nada é o que parece ser” (Ananthachari, 2000, audiovisual), ele tropeça e cai. Duryodhana se levanta rapidamente e olha para todos os lados para saber se alguém notou sua queda. Para seu desgosto, Draupadi está numa das janelas do palácio e ri de sua humilhação, dizendo: “[...] Pensei que só o pai tivesse nascido cego, mas agora percebo que seu filho também nasceu” (Ananthachari, 2000, audiovisual). Duryodhana fica furioso e promete que vai criar uma situação para humilhá-la publicamente na frente de toda a corte. Ele sabe que Draupadi é o ponto fraco dos irmãos Pandavas, e que atingi-la é a forma mais segura de atingi-los. No próximo dia, segue-se, então, o famoso episódio do jogo de dados viciados. Duryodhana sabe da fraqueza de Yudisthira pelos dados e o convida para uma partida. Shakuni, tio de ambos, pede ajuda aos espíritos malignos para ajudar Duryodhana a vencer. Os dados são feitos com os ossos do pulso do pai

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de Shakuni, e por suas qualidades mágica, virarão somente os números segundo a vontade de seu dono. Como todos sabemos, Yudisthira perde tudo, inclusive sua esposa Draupadi. Os Pandavas são obrigados a partir para o segundo e mais longo exílio, de 12 anos, acrescido de mais um ano sem serem reconhecidos por ninguém, sob pena de recomeçar a contagem novamente. Há uma relação dúbia entre os narradores de histórias e os atores. Por um lado, eles atuam em conjunto, já que as recitações de história preparam o público para a grande encenação noturna. Por outro lado, há certa competitividade. Dado o amplo grau de improvisação de ambos, é comum que eles troquem farpas nas entrelinhas das narrativas. Um contador pode, por exemplo, questionar os artistas por, nos dias de hoje, usarem adereços de cabeça e ombros, conhecidos como Kattais, feitos de papel cartão e não mais de madeira, com joias entalhadas, como antigamente. Nesta mesma noite, durante a encenação de um episódio importante, Yudisthira pode se levantar, antes de lançar os dados, e falar que, graças ao papel cartão, agora os artistas podem viajar pelo mundo inteiro e então, lançar os dados. A boa e velha disputa entre os artistas populares, diretamente do mito para a realidade. De fato, ainda que as trupes de Theru-K-Koothu envolvam mais artistas e tenham uma participação mais intensa no festival, a maior remuneração é dada aos recitadores de histórias, provenientes de castas mais altas e versados na cultura clássica. No dia seguinte, teremos então o importante episódio do desenrolar do saree de Draupadi. Ela será arrastada até o palácio de Duryodhana por Duchassana. Antes de realizar esta cena, o ator que interpreta Duchassana diz: “(...) Mãe, não é nossa intenção humilhá-la ou abusar de você. Somos apenas pobres atores representando sua história. Por favor, nos perdoe” (Ananthachari, 2000, audiovisual). Este é um dia particularmente tenso para a comunidade. Tanto durante a recitação quanto durante a encenação, a plateia fica claramente comovida com a situação de Draupadi. Há episódios de pessoas em transe, profundamente emocionadas, porque, embora a história seja amplamente conhecida, não deixa de suscitar comoção, dor e pesar na audiência, que revive a humilhação de Draupadi como se fosse sua. O festival assume também a

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função de expurgo, purificação e sublimação dos sofrimentos e dores da vida real. Krishna protege a honra de Draupadi dando-lhe um saree que nunca acaba. Na vila, todos os moradores doam uma quantia para comprar vários sarees amarelo e vermelho, as cores de Shakti, energia feminina, que serão utilizados pelos atores para performance da eletrizante cena do desenrolar do saree de Draupadi.

Pakatai Tuyil e Draupadi Vastrapraharanam : https://www.youtube.com/watch?v=Xf8NzSdWYQg https://www.youtube.com/watch?v=eSrXOGAbSXI https://www.youtube.com/watch?v=71Ua8ye26Q8

No próximo dia, os contadores de história reforçam a falta de caráter de Duryodhana narrando a história de Purur, o filho que se sacrificou pelo próprio pai, tornando-se exemplo de amor filial. Duryodhana é exatamente o extremo oposto de Purur e esta narrativa tem forte fundamento moralizante: ensina como um filho deve portar-se diante de seu pai e dos seus. Deste dia em diante, todos pressentem os ventos da guerra começando a soprar na vila e no mito. As monções estão chegando na vila e o mito Duryodhana consulta um astrólogo para saber quando fazer os sacrifícios humanos que lhe garantirão a vitória na batalha que se anuncia. Os Pandavas percebem que a guerra é inevitável e na vila é hora de realizar o Arjuna Tapasu, drama ritual que precede e prepara a grande batalha final. Mito e realidade fundem-se, simbioticamente, num crescente que só terá fim quando Duryodhana for finalmente derrotado. A vila está prestes a transformar-se novamente de Munurmangalam (lugar auspicioso de reencarnação de Draupadi), de Panchala (reino da antiga Índia onde se desenrola o épico), para Kurukshetra, o campo de batalha. Começam os preparativos para o Arjuna Tapasu. Arjuna Tapasu: https://www.youtube.com/watch?v=heGudR7KcrI https://www.youtube.com/watch?v=KHltkbppfMI

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Este ritual começa com os homens da vila cortando uma palmeira e a colocando na frente do templo, toda adornada em branco e vermelho. Como em todo festival, uma casta específica custeará este ritual, conferindo importância e visibilidade aos seus membros. No mito, Arjuna percebe que a guerra se aproxima e decide ir ao monte Kailasa para realizar o Pashupatra Yantra, meditação de Shiva, que lhe concederá poderes mágicos para a batalha. Depois de passar por muitos perigos e provações na subida ao monte, Shiva, que o observava escondido, coloca à sua frente um arco mágico. Como todos sabem, Arjuna é um arqueiro e deseja obter aquele arco para lutar na guerra. Entretanto, Shiva aparece acompanhado de sua consorte Parvati, disfarçados como dois caçadores da tribo Nari Kurava, de Tamil Nadu. Os dois lutam pelo arco e o caçador/Shiva diz que ficará com ele quem acertar um javali no ponto mais letal. Os dois retesam o arco: Shiva acerta as nádegas do animal e Arjuna o focinho. Shiva então concede a Arjuna o direito de ficar com o arco, antes de o casal revelar-se em sua forma divina para abençoá-lo. A disputa entre os dois é muito bem-humorada, com Shiva falando impropérios a respeito dos ancestrais de Arjuna, numa clara demonstração de que o sagrado não exclui o profano. Shiva fala que Kunti, mãe dos Pandavas, dormiu com vários homens, que Draupadi deita-se com cinco homens diferentes, dentre outras provocações libidinosas, que fazem o público corar e rir, até que o ator que representa Arjuna receba o arco mágico e reverencie Shiva, recitando textos da literatura clássica Tâmil, os Teyvarams.

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Figure 14 - Koothu Titlr: Arjuna Tapasu no Padavattammam Koil Kumbabishegam (cerimônia da renovação). Fonte: Página Facebook Therukkoothu / https://www.facebook.com/therukkoothu.therukkoothu

A palmeira colocada no centro da vila tem quase 5 metros de altura e é a representação do monte Kailasa. Enquanto sobe, o ator que representa Arjuna vai cantando para Shiva. Lá do alto, ele joga flores e frutos para os que estão embaixo, como uma prasada, oferenda ritual. É dito que, se uma mulher sem filhos, pegar uma destas oferendas, ela conceberá um filho naquele ano. As mulheres da vila vestem um saree amarelo e, ansiosas, esperam pelas flores/sêmen que caem. Elas não querem apenas um filho, elas querem um filho de Arjuna. Por ser o ritual mais importante do festival, sua organização é muito elaborada e detalhada. Os membros da vila escolherão, entre os atores, quem encenará Arjuna neste ritual, mesmo que não seja o ator que o representa nas jornadas noturnas. Milhares de pessoas vem de vilarejos vizinhos, das cidades distantes para participar deste ritual, e a casta responsável por sua realização deve prover comida para todos quando ele se encerrar. O festival permite que, mesmo aqueles que foram viver fora da vila, durante as celebrações, possam renovar seus laços e vínculos com a comunidade, atuando ativamente em sua organização, participando ativamente de cada ritual, contação, encenação, durante todos os dias de duração do evento. No Festival de Draupadi Amman, o público é ator, não mero espectador.

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Figure 15 – Matéria de jornal de 2008, sobre festival realizado na vila de Akkur. Foto cedida por: Suresh Venda.

Segue-se, então, o episódio do exílio, quando os Pandavas são obrigados a passar doze anos escondidos e mais um ano, disfarçados, em algum dos reinos de Bharata, sob pena de, sendo descobertos, ter que recomeçar a peregrinação. No último ano, preocupado, Duryodhana começa a procurar pelos primos nos reinos vizinhos e suspeita que eles possam estar no reino de Virata onde, soube-se, o demônio Kichaka havia sido morto por um herói desconhecido. Pela descrição da forma como o demônio havia sido aniquilado, Duryodhana suspeita que esse herói não fosse outro senão Bhima. Este foi exatamente o episódio que pude assistir na vila de Akkur, sob o olhar atento da deusa mãe Thantoni, protetora do vilarejo:

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Figure 16 - Apresentação do episódio do Mahabharata 'A morte de Kichaka' ou ‘Kichaka Vadha’, com a companhia Sri Thantoniamman Therukkoothu Nadaga Sabha, da vila de Akkur, com direção de D. Elumalai. Aqui os atores estão realizando o Vandanam/Poorvaranga, a abertura do espetáculo. Foto: Edilson Castanheira.

Vejamos como Varadpande descreve este episódio:

Apesar de suas conotações ritualísticas, associação com festivais de templos, cerimônias religiosas e conteúdo mitológico, o Terukkuttu é um típico exemplo de teatro folclórico, com seu aspecto rústico e vigor. A atuação é gritada e melodramática, atingindo seu ápice na atuação de personagens como Duryodhana. Os atores usam guizos em seus pés e executam danças vigorosas. Estas danças que aparecem particularmente nas sequências de combate são espetaculares e ferozes. Os guerreiros saltam uns sobre as gargantas dos outros, chocalham o sabre e gritam gritos de guerra. Uma seqüência da luta como esta ocorre na encenação do episódio Kichaka Vadha em que o poderoso Bhima mata Kichaka para resgatar Draupadi. Os trajes são vistosos e deslumbrantes e a maquiagem colorida. Muitas cores são usadas para pintar o rosto de modo a mostrar a audiência as características interiores das personagens. Um ator pode tornar evidente o caráter de sua personagem através da maquiagem. Na maioria dos teatros folclóricos indianos a ação física desempenha papel central, com seqüências de movimento repletas de atividade e velocidade (VARADPANDE, 1992, p. 43)62.

62 No original: Despite its ritualistic overtones, association with temple festivals and religious ceremonies and mythological content, Terukkuttu is a popular folk theatre with all its rustic coarseness and vigor. The acting is loud and melodramatic, and reaches its crescendo in the performance of characters like Duryodhana. The characters wear ankle-bells on their feet and perform vigorous dance. These dances are particularly spectacular and ferocious in the fighting sequences. The warriors jump at each other´s throats, rattle the sabre and shout war cries. One such fight sequence occurs in Kichaka Vadha in which powerful Bhima kills Kichaka for troubling Draupadi. The costumes are gaudy and dazzling and the make-up colorful. Many colors are used to paint the face to bring out his inner characters to the audience. One can make out the nature

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Segundo a narrativa, apesar de inúmeras tentativas, Duryodhana não consegue encontrar os Pandavas em Virata e arma um plano para fazer com que eles se revelem. Ele sequestra todo o rebanho do reino na certeza de que, frente a essa iniquidade, os Pandavas sejam forçados a se revelar e lutar. Enquanto isso, na vila, a imagem de Draupadi é carregada para os campos onde ficam os rebanhos e toda a população segue a procissão para, neste novo espaço cênico, ouvir as histórias narradas e recitadas do exílio e assistir à encenação Theru-K-Koothu sobre o cerco ao rebanho do Rei Virata. Segue-se, então, a encenação ritual de libertação dos rebanhos por Krishna, organizado e custeado pela casta dos Dalits, que serão responsáveis por conduzir o gado são e salvo até Krishna, obtendo suas bênçãos para toda a vila. Três atores participarão deste ritual que encena a batalha e o retorno do rebanho: um deles será o jovem príncipe Uttarakumara, filho do rei Virata; o segundo será Krishna e o terceiro será Arjuna, disfarçado de Brihannala (transgênero). Conforme o festival avança e aproxima-se a eminência da batalha final, mais difusa torna-se a fronteira que separa atores e público. Desde a realização do ritual-encenação Arjuna Tapasu, a participação popular tornou-se parte indissociável tanto da encenação quanto do ritual. Findo o episódio do cerco ao gado, incluindo todos os rituais, encenações e narrativas, o festival atinge um novo patamar simbólico: a declaração da guerra entre os Kauravas e os Pandavas, transformando a vila no campo de Kurukshetra. Esta nova etapa tem início com a encenação ritual do episódio de Aruvan e o sacrifício humano para garantir a vitória na guerra. Nenhum dos Pandavas pode ser sacrificado, então, Aruvan, filho de Arjuna, se prontifica a ser sacrificado com duas condições: que ele possa assistir toda a batalha e que não morra solteiro. Começa, então, um ritual que pode durar horas de preparação, de Aruvan, para o rito sacrificial. Inicialmente, as imagens de Kali e da cabeça de Aruvan, produzidas por artistas locais, são levadas para o centro da vila, onde serão preparadas para o

of the character from his make-up. In a majority of Indian folk theatre forms physical action is pronounced and sequences are full of activity and speed (VARADPANDE, 1992, p. 43).

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intrincado e longo ritual que se seguirá. Aruvan tem sua face coberta por um tecido, enquanto alguns homens vão lhe construindo um corpo feito de barro, palha e troncos, criando um grande totem. Depois de pronto, ele será vestido, enfeitado e adornado com um arco e flecha, quando poderá, finalmente, ter seu rosto descoberto e um pooja (oferenda) lhe será oferecido. O sacerdote da vila, geralmente o homem mais velho, se encarregará então de fazer os 32 sinais da perfeição com kumkum vermelho, no corpo de Aruvan. Estes são os sinais simbólicos da estirpe e do valor do herói-bode, aquele que será sacrificado para o bem da coletividade. Interessante notar que, a vestimenta de um ator de Theru- K-Koothu esconde 32 nós, numa referência clara a este episódio, evidenciando o caráter heroico que seus praticantes assumem num jogo claro de identificação. Começa agora os preparativos para atender ao segundo pedido de Aruvan: não morrer solteiro. Krishna, na forma da encantadora apsara Mohini, será sua consorte. O casamento se realizará uma noite antes do grande sacrifício, e como recompensa por sua coragem, Krishna concederá a Aruvan um dom: sua cabeça decapitada poderá assistir a batalha final entre os Pandavas e os Kauravas no centro do campo de Kurukshetra, atendendo seu primeiro pedido. A pequena imagem adornada de Kali, a deusa que tudo devora e transforma, representação clara do poder longínquo e ancestral das Ammans, é colocada no chão, bem de frente para o totem gigante de Aruvan. O fogo sacrificial é aceso e as oferendas à divindade são feitas. Este ritual é conduzido pelos homens mais velhos da vila, e o mais velho dentre eles acabará por “se transformar” em Aruvan. O escolhido será levado até a imagem da deusa Kali, carregando em suas mãos um pote de água que representa sua essência, sua atma (alma individual). O pote de barro será quebrado aos pés da divindade e o escolhido, em estado de transe, será conduzido ao interior do templo de Draupadi Amman para se recuperar. A última grande metamorfose antes do fim do festival está completa: a vila tornou-se, oficialmente, o campo de batalha de Kurukshetra. A guerra pode começar.

Aruvan Kabali: https://www.youtube.com/watch?v=ob5cJovUZic

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https://www.youtube.com/watch?v=7MXWjs84gwo

Vemos então o Moksha, a encenação ritual da tragédia de Karna, irmão bastardo dos Pandavas. Seu destino é morrer pelas mãos de seu irmão, Arjuna, lutando para defender o trono de seu primo, Duryodhana. A grande tragédia e ironia deste episódio reside no fato de que Karna era o primogênito de Kunti e, portanto, todo o reino e todas as riquezas lhe pertenciam por direito de nascimento. Se ele se juntasse aos seus irmãos e reivindicasse seus direitos, os Pandavas venceriam o confronto sem a necessidade de uma guerra, pois Duryodhana nunca lutaria contra Karna e toda a mortandade seria evitada. No entanto, quando a verdade sobre Karna é finalmente revelada, já é tarde demais para retroceder. A sina do herói trágico é, mesmo após a grande revelação que o libertaria, ser incapaz de fugir ao seu destino. Este episódio é o pico trágico do festival, afetando toda a vila de modo muito particular, muito emocional. Karna é, de fato, o mais valoroso de todos os Pandavas e sua morte, pelas mãos do próprio irmão, faz com que a brutalidade da guerra seja sentida no coração de toda vila. Antes de sua morte, os atores encenarão o episódio de Ponnamala, sua esposa. Mulher de uma casta baixa, que pede desculpas ao herói por sua origem humilde, sabendo agora quem ele é de fato, o abençoa para ir à guerra realizar seu dharma de guerreiro. Este episódio não se encontra na versão clássica do Mahabharata, apenas na versão Tamil, que serve de base para os artistas de Theru-K-Koothu. Por este motivo, o episódio é encenado, mas não narrado, haja visto que os narradores seguem a versão clássica do épico. O Karna Moksham marca o ápice da curva ascendente do festival, quando todos já estão física e emocionalmente exaustos e as monções começam a dar os primeiros sinais, assinalando o início da curva descendente do festival. O ápice da encenação acontece quando Krishna concede a Karna a liberação do samsara, o ciclo de nascimento, morte e renascimento que prende a alma individual ao mundo material. Liberto desta amarra cujo único resultado é o sofrimento, Karna pode unir-se, finalmente, a paramatma, a alma universal.

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Karna Moksha: https://www.youtube.com/watch?v=gwyXSZ9IhTE https://www.youtube.com/watch?v=sL-mO6xfJqc https://www.youtube.com/watch?v=h5BDgvpGIY4

Nesta próxima noite, os atores encenarão a morte de dois importantes generais do exército de Duryodhana: Salya e Sakuni. Apesar de narrar a morte de dois generais, trata-se de um episódio repleto de comicidade, como forma de compensar o estresse emocional, a comoção geral, causados pelo Karna Moksham. Enquanto o público se compraz da desgraça de Duryodhana, um totem de quase 5 metros é preparado para a encenação da batalha final entre Bhima e Duryodhana. Aliás, os atores que encenarão esses personagens começam a batalha ainda nesta noite, logo após o término da encenação do episódio de Salya e Sakuni. Ela se estenderá por toda a madrugada e só terá fim na manhã seguinte, quando começa o Padu Kalam, a batalha final. O ator que representa Bhima diz claramente à Duryodhana que irá matá-lo, referindo-se ao totem que está sendo construído, deixando evidente o processo de identificação e fusão entre o ator que representa Duryodhana e o totem. A linguagem do Theru-K-Koothu não é ilusionista e aceita com naturalidade a ideia de que um mesmo personagem possa ter duas representações em cena: um ator e um totem, ao mesmo tempo. As ameaças, os xingamentos e enfrentamentos vão até o raiar do dia. Mal o dia amanhece, Bhima e Duryodhana, exaustos por lutar durante toda a noite pelas ruas do vilarejo, informam ao público que a batalha final se dará no dia seguinte, no campo de Kurukshetra, onde, a esta altura, o totem já aguarda a encenação final, monumental e apoteótica. Há uma aceleração do tempo e dos eventos que perfazem o festival daqui até seu término. A espiral não pode mais ser detida até que toda a narrativa épica tenha atingido seu ápice. A vila é Kurukshetra, não há mais retorno para o mundo factual, a ficção tomou o espaço da realidade, e até que o festival acabe e a vila retorne a sua condição original, a lógica que opera agora é a teatral. Romperam- se todos os limites entre realidade e arte, criando um espaço único, não claramente definido ou definível, quase como uma dimensão paralela, em que os eventos, reais ou fictícios, tem o mesmo peso e valor na dinâmica social.

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No penúltimo dia do festival, a imagem de Draupadi Amman será levada para o campo de Kurukshetra, junto com a cabeça decepada de Aruvan. Uma vez mais, Draupadi será testemunha ocular da luta fratricida entre os Pandavas e os Kauravas. O drama ritual começa com a encenação, pelos populares e por alguns atores, do episódio em que Duryodhana tenta trazer de volta à vida seus cinco generais mortos. Krishna percebe o que está por acontecer e intercede em favor dos Pandavas. Se os generais voltassem à vida, Bhima não poderia matá- los e a balança da guerra se desequilibraria. Se valendo de mágica, ele impede que os generais ressuscitem. Ritualisticamente, os generais serão representados por cinco homens, deitados dentro de cinco buracos e cobertos por cinco peças de tecido laranja. Os generais, ao tentar sair de suas covas, serão impedidos pelas mulheres da vila que, batendo neles com maços de folha, representarão a intervenção mágica de Krishna. Bhima, finalmente, confrontará Duryodhana, numa batalha que começa pelas ruas da vila e chega até seu epicentro, onde o grande totem e uma multidão os aguardam. A luta tem várias etapas e estágios preparatórios: lutam separados por uma corda, correm em torno do totem, se confrontam, gritam e se enfrentam inúmeras vezes. Durante todo esse processo, os atores vão retirando seus Kattais ou adornos de cabeça, ombros e peitoral, até que reste apenas o corpo e a presença do ator, que está física e emocionalmente esgotado. Trata-se de um processo longo e detalhado de levar os atores à extrema exaustão física e mental, despindo-os de todo tipo de controle e representação, para que, ao final, eles sejam a personificação completa de Bhima e Duryodhana, num profundo estado de transe e entrega (Avesam). É o ator que representa Krishna quem fala para Bhima qual o ponto fraco de Duryodhana: sua coxa. No jogo cênico da luta, entre idas e vindas incontáveis, certo momento (que imagino seja muito preciso) o ator que faz Duryodhana se deita sobre o totem, exausto e entregue. O ator que representa Bhima, em transe, acerta a coxa do totem, de onde jorra um líquido vermelho e cai também, exausto. Ambos serão carregados pela multidão em delírio para fora da cena, talvez para dentro do Templo de Draupadi Amman.

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A imagem de Draupadi Amman é colocada sobre o totem e o ator que representa Draupadi aparece para realizar a tão esperada cena de lavar os cabelos no sangue de Duryodhana. Agora é a hora do delírio, da catarse coletiva. A multidão avança sobre o totem para destruí-lo, retirando pedaços que serão guardados com objeto de poder e proteção, contando, inclusive com cenas de possessão entre os devotos de Draupadi Amman. Encerrando a narrativa épica do Mahabharata, depois de 20 dias de festival, a personagem Morte entra, em cena, cantando e dançando, anunciando a brevidade da existência e rindo da nossa frágil condição humana. A Morte não chega lúgubre e pesada, vem, antes, celebrando energicamente a vida, como se nos dissesse: “a vida é o que importa, a morte é só um detalhe”.

Padu Kalam: https://www.youtube.com/watch?v=--wrn6sQsyM https://www.youtube.com/watch?v=I27X7D7kHII

As encenações rituais e jornadas noturnas acontecem sempre num crescente, respeitando a sequência de fatos descrita no Mahabharata, até a cena da batalha final, como bem nos narra Varadpande:

A performance Terukkutu durante o desenrolar do Festival Draupadi Amman avança para fora de sua área de atuação. Assim, o drama se desenrola em dois níveis. Por exemplo, após a última apresentação os atores que desempenham os papéis de Duryodhana e Bhima deixam a área reservada para a atuação e vão para um lugar na aldeia onde uma enorme efígie de Duryodhana feita de lama foi erguida. Os atores realizam, em seguida, a cena de luta em frente da efígie, em cuja coxa um pote com uma substância vermelha foi habilmente escondido. Após a queda de Duryodhana, o ator que representa Bhima salta sobre a efígie e atinge sua coxa com sua clava. Os aldeões reúnem-se para recolher qualquer parte da efígie que eles possam colocar em suas mãos sobre e levar como um souvenir sagrado (VARADPANDE, 1992, p.40)63.

63 No original: The Terukkutu performance during the course of Draupadi Amman festival moves out of the acting arena. Thus, the drama is unfolded at two levels. For instance, after the last performance is over two actors playing the roles of Duryodhana and Bhima move out of the acting arena to a place in the village where a huge effigy of Duryodhana made of mud is erected. The actors then enact the fight scene in front of the effigy in whose thigh a pot with red substance is cleverly concealed. After the fall of Duryodhana the actor in the battle, Bhima jumps at the effigy and hits at its thigh with his mace. The villagers assembled rush forward and collect any part of the effigy they can lay their hands on and keel them as a sacred souvenir (VARADPANDE, 1992, p.40).

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Acredita-se que, neste momento, os atores estejam em estado de possessão ou Avesam. É exatamente este estado liminar de consciência que confere ao Theru-K-Koothu seu caráter ritualístico mais proeminente. Os atores, neste momento, se tornam os próprios heróis míticos do Mahabharata ou as representações vivas dos ídolos estáticos dos templos. Por outro lado, o público que participa ativamente da encenação da batalha final, é remetido à condição simbólica de soldados do exército vitorioso e transportados através da ficção para a realidade do mito. Por tudo isso, o Theru-K-Koothu é um bom exemplo de como o ritual evolui para o teatro e de como o teatro torna-se parte intrínseca dos rituais tradicionais:

A performance do Terukkuttu faz parte de rituais de celebração como o Kula Devatai Puja (cerimônia ritual oferecida a divindade familiar), Katu Kuttu (cerimônia de colocação de brinco nas crianças), Hari Servai (cerimônia feita após o retorno de Yatra ou da visita a importantes templs Vaishnava) e também o ritual chamado Titi ou Karumati Pujai, que é realizado no oitavo ou décimo dia após a morte de um membro da família (VARADPANDE, 1992, p. 41)64.

O último dia do festival é utilizado apenas para fins ritualísticos, com procedimentos reservados aos sacerdotes e aos cinco sevitas escolhidos no início das celebrações, para garantir as benesses da divindade sobre a vila ou vilas envolvidas na organização do festival. Os cinco escolhidos poderão, finalmente, retirar o Kappu, cordão sagrado, e retomar suas vidas cotidianas, liberados da função ritual que exerceram desde o início da aventura. A tensão arrefece e as monções chegam. É findo o festival. O Festival de Draupadi Amman cumpre, grosso modo, duas funções principais: celebra o épico Mahabharata e as vitórias dos habitantes locais contra as adversidades, disseminando um discurso ético que visa preservar a memória coletiva dos povos desta região, não como um lamento ou uma tragédia, mas como uma forma de resiliência do povo em tempos e situações extremamente difíceis. Embora sua temática seja a guerra, o festival celebra a não-violência,

64 No original: Terukkuttu performance forms part of a ritual celebrations as Kula Devatai Puja (ritual workship offered to Family deity), Katu Kuttu (ear-piercing ceremony of a child), Hari Servai (a ceremony done after the return from the Yatra or visit to important Vaishnava temples) and also the ritual called Titi or Karumati Pujai which is performed on the eight or tenth day after the death of an aged member of the family (VARADPANDE, 1992, p. 41).

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tomando Draupadi como personagem central e mártir, solidarizando-se com as vítimas das injustiças, das grandes violências e atrocidades que acompanham os períodos de conflito. A questão filosófica subliminar é a confrontação de princípios rígidos a princípios flexíveis na organização da sociedade, visando o bem comum. O rígido é definido pela guerra, pela honra, pela posição social e o desejo de poder; e o flexível, pela adaptabilidade que promove a paz e o bem geral. Interessante notar como essa oposição rigidez-flexibilidade aparecerá, ao longo desta pesquisa, diversas vezes relacionada a diferentes aspectos: dramaturgia, personagens, processo de treinamento, maquiagens e vestimentas e, por fim, na complexa relação entre clássico e folclórico. Parece que essa questão, de cunho mais filosófico e conceitual dentro do ritual, ganha contornos muito concretos dentro da tradição performativa, dando forma para ideias e conceitos filosóficos muito complexos e sutis que, de outra forma, talvez não se tornassem acessíveis aos participantes do festival. Em última análise, o Festival de Draupadi Amman é um dispositivo dramático-ritual muito eficiente que permite às comunidades rurais de Tamil Nadu reviver, ano após anos, o drama ontológico da existência num patamar simbólico, transcendente e coletivo no qual arte e vida fabricam um tecido único e inseparável. Findo o festival, os heróis do Mahabharata retomam seu status de mito e os trabalhadores rurais podem, mais uma vez, retomar a dura rotina da vida no campo por mais um ano, na certeza de que, tendo cumprido suas obrigações rituais, serão fartamente recompensados pela divindade.

Trecho de canção que compõe o episódio Draupadi Vastrapraharanam, segundo manuscrito da companhia Perunkattur Ponnucami Nataka Manram:

Duchassana: Puxando e rasgando a seda vai saindo - qual é o mistério por trás dela que faz com que minhas mãos puxem e caiam cansadas, qual é o mistério por trás dela? Draupadi: Você está dormindo sob as folhas da árvore banyan, O Krishna, Meu irmão? Refúgio! Refúgio! Salve-me, Krishna, Meu irmão!

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Duchassana: Cor após cor o saree se desenrola e meus braços que puxam a roupa de Draupadi caem exaustos. Que mistério ela realmente possui!65 (DE BRUIN, 1999, p. 134)

65 No original: Duchassana: Pulling and tearing the silk comes off - what is the mystery behind her that my hands which pull fall down tired, what is the mystery behind her? Draupadi: Are you sleeping on the banyan leaf O Krishna, my Brother? Refuge! Refuge! Save me, Krishna, my Brother! Duchassana: Color after color the sari comes out and my arms which pull Draupadi´s garment fall down exhausted. What mystery she indeed holds! (DE BRUIN, 1999, p. 134)

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Figure 17 – Cenas do episódio “O Desenrolar do Saree de Draupadi”, realizado pelos atores da companhia Kataikkuttu Sangam, na sede do grupo, em 31/12/2018. Nele, vemos Draupadi sendo humilhada, primeiro por Duryodhana, sentado ao fundo, depois por Duchassana, puxando-a pelos cabelos. Na terceira foto, vemos o ápice do episódio o saree sendo desenrolado. Certamente, um dos episódios mais importantes e emocionais do estilo, uma vez que Draupadi representa todas as mulheres da vila, a rainha ultrajada do Mahabharata e a Deusa Mãe protetora. A peculiaridade, neste caso, é que o papel de Draupadi está sendo representado por uma mulher, a jovem atriz S. Tamilarasi, e não por um ator especializado em papéis femininos. Fonte: Edilson Castanheira.

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2.2.2. - ESTRUTURA DO FESTIVAL DE DRAUPADI AMMAN REALIZADO EM ECCHUR

Tabela 7 - Observando a tabela, nota-se que, do dia um ao dia cinco, acontecem os rituais iniciais e as recitações de histórias, tão somente. Entretanto, durante todos os dias do festival, acontecerão diferentes rituais comandados pelos kappukkarans. DIA RECITAÇÃO DE ENCENAÇÕES JORNADAS HISTÓRIAS RITUAIS NOTURNAS 6 Fogo na palhoça e da partida para o exílio 7 A partida para o exílio – fogo na palhoça 8 Confronto Bhima e Bakasura O Casamento O Casamento 9 Draupadi e Arjuna Draupadi e Arjuna A humilhação de A humilhação de 10 Duryodhana Duryodhana 11 O jogo de dados e a partida para o exílio 12 O desenrolar do saree de Draupadi 13 Purur e seu filho

14 Visita de Duryodhana ao astrólogo – Arjuna Tapasu preparação para guerra 15 A morte de Kichaka 16 O cerco ao rebanho 17 O sacrifício e casamento de Aruvan 18 A morte de Karna e o lamento de Ponnamalla 19 A morte dos generais Kauravas 20 Padukalam

21 Fechamento ritual

Fonte: Criado pela pesquisadora a partir das obras: FRASCA, 1990. Fechando o capítulo, apresento informações adicionais sobre as variações de formato do festival, com relação ao festival ocorrido em Ecchur,

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encontradas no textos de Richard Frasca (1990), Hanne M. de Bruin (1999), Julia Hollander (2007), e de informações recolhidas pela própria pesquisadora, durante pesquisa de campo (2018-19), traçando uma linha do tempo de quase 30 anos de observações da dinâmica de organização e funcionamento do Theru- K-Koothu em relação à cultura ritual do estado de Tamil Nadu. Começo pela exposição da estrutura atual do Festival de Draupadi Amman, segundo me foi apresentado por meu colaborador da companhia de Akkur, Suresh Venda, com 10 dias de duração. Eles diferem pouco dos episódios apresentados na vila de Ecchur e, também, dos que foram registrados por Richard Frasca em seu livro (1990, p. 170). Tal fato, revela uma característica interessante do festival: os episódios, assim como a duração do festival podem variar de ano a ano, de vilarejo a vilarejo, de acordo com o interesse dos moradores e suas condições financeiras, mas percebe-se que alguns deles são mais importantes e nunca podem ficar de fora, seja pelo seu apelo emocional, seja pela importância ritual que carregam. Certamente, ao longo do capítulo e pela exaustiva repetição de seus nomes, esses episódios mais relevantes já se fixaram nas mentes dos leitores: o Casamento de Draupadi, o Jogo de dados viciado, o desenrolar do saree de Draupadi, a morte de Kichaka, a morte de Abhimaniyu, o Karna Moskha, o Padu Kalam e o Arjuna Tapasu, apenas para refrescar-lhes a memória.

Tabela 8 – Estrutura Básica do Festival de Draupadi Amman.

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Dia 1 – Episódio do Arco de Arjuna Dia 2 – Episódio do casamento de Arjuna com Draupadi Dia 3 – Episódio do sacrifício do cavalo (Raja Suya Yagam) Dia 4 – Episódio do desenrolar do saree de Draupadi (Draupadi Vasthrabaranam) Dia 5 – Episódio do sacrifício de Arjuna (Arjuna´s Tapasu) Dia 6 - Episódio da morte do demômio Kichaka (Kichaka Vadha) Dia 7 – Episódio da mensagem de Krishna para Duryodhana (Krishna Todum) Dia 8 – Episódio da revelação da origem de Karna (Karna Moksha) Dia 9 – Episódio de chamamento da batalha entre Bhima e Duryodhana Entre o 9º e 10º Dias – Episódio do sacrifício de Aruvan Episódio dos 9 grãos (Draupadi Kuravanchi)* Outros episódios secundários Dia 10 – Episódio da morte de Duryodhana (Padu kalam) Fonte: Criado pela pesquisadora a partir das obras: FRASCA, 1990 e De BRUIN, 1999.

Draupadi Kuravanchi: https://www.youtube.com/watch?v=2TlXgEGycxo

Este episódio não consta na versão clássica do Mahabharata, apenas em sua versão regional. Ele é encenado porque sua significação é importante para aqueles que moram nas áreas rurais do estado e remete ao gênero literário Tamil de mesmo nome, podendo se adequar facilmente à estrutura básica da encenação de Theru-K-Koothu. O Episódio narra a história de um casal da tribo nômade Kuravar, ciganos engajados na leitura de sorte, Kuravan Singan (homem) e Kuratti Singi (mulher), que perambulam pelas vilas para predizer o futuro das moças casadoiras. No episódio de Theru-K-Koothu, conhecido como Arjuna Tapasu, Shiva e Parvati aparecem para Arjuna disfarçados como Kuravars, reforçando a importância da cultura nômade e tribal no imaginário dos vilarejos de Tamil Nadu e para o próprio Theru-K-Koothu. O episódio Draupadi Kuravanchi narra o ritual do Navadhanyam (plantio dos 9 grãos queimados), simbolizando o princípio do renascimento e da imortalidade. Apesar do que me disse o colaborador da companhia de Akkur, Frasca (1990, p. 64) relata ter presenciado festivais com apenas nove dias de duração, estabelecendo, ainda, algum tipo de relação com os dezoito dias originais (tentando preservar uma espécie de conexão mítica com o que o número dezoito

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representa no Mahabharata), entretanto, meus informantes insistiram em afirmar que o formato atual mínimo é mesmo o de dez dias, o que me leva a crer que essa relação quase mágica com o número dezoito tenha mesmo se perdido no tempo. De todo modo, isso só vem a reforçar a ideia de que a duração do festival, hoje, dependa mais da questão orçamentária, do que dos procedimentos rituais, que sempre podem ser ajustados a realidade e suas limitações. Frasca (1990, p, 141) apresenta um outro relato do festival, dividindo-o em duas metades com nove dias cada: do primeiro ao nono dia, aconteceriam os principais rituais e encenações ritualizadas feitas pelos atores Theru-K- Koothu em diferentes espaços da vila, não se tratando das encenação convencionais, mas de dramatizações rituais de fatos importantes para o desenrolar do festival, contando com a participação direta da comunidade, o que vimos exaustivamente na descrição do festival da vila de Ecchur, no episódio da luta entre Bhima e Bakasura, por exemplo. Do décimo dia até o décimo oitavo dia, aconteceriam os rituais de manhã, as recitações à tarde e, os episódios completos de Theru-K-Koothu, no final da noite, adentrando a madrugada. O que ele apresenta em seu livro está mais próximo do relato ocorrido em Ecchur, também durante os anos de 1990, mas distante do que pude presenciar e das informações que pude recolher sobre o festival no ano de 2019. Nos primeiros nove dias do Paratam, predominam elementos estruturantes. Os únicos eventos são as procissões da manhã e da noite, os pujas e apisekams diários e as piracankams diárias. A partir do décimo dia, porém, a dialética das celebrações se torna evidente. Cada episódio e consequentemente cada dia de Paratam mostra um movimento de piracankam para kuttu e dele para as encenações em grande escala pela vila (FRASCA, 1990, p. 173)66.

Há, portanto, um intervalo grande, de quase trinta anos, entre os registros de Frasca e De Bruin, o registro do festival de Ecchur e a consequente produção do documentário, os escritos de Hollander e a coleta de dados desta pesquisa. Nota-se hoje que, embora Hanne De Bruin insista em afirmar que esta tradição está mais viva do que nunca nos vilarejos ao norte de Tamil Nadu, houve um

66 No original: For the first nine days of the Paratam, elements of structure predominate. The only events are morning and evening processions, the daily pujas and apisekams, and the daily piracankams. Fron day ten on, however, the dialetic of the celebrations become evident. Each episode and consequently each day of Paratam shows a movement from piracankam to kuttu to large-escale enactment (FRASCA, 1990, p. 173).

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considerável enfraquecimento de sua estrutura de sustentação, expressa na significativa redução do Festival de Draupadi Amman, que tem como principal empecilho a limitação financeira, o êxodo rural e o avanço da cultura de massa e urbana, em especial o cinema local, legitimando novos padrões de comportamento que se opõe diametralmente a todo universo cultural tradicional, ao ethos, dos vilarejos do sul da Índia. O que nos leva a pensar em outra concepção de liminaridade, mais contemporânea, como aquela proposta por Cabalero67 em seu livro “Cenários Liminares.Teatralidade, Performance e Política” (2016): condição de marginalidade, de precariedade e de vulnerabilidade, a exigir novas estratégias de organização e funcionamento dos artistas Theru-K-Koothu, de modo a garantir sua existência na contemporaneidade, com suas limitações, imposições e novas demandas. Sobre isso, essa condição de instabilidade, choque e estratégias possíveis, falarei com mais cuidado no capítulo quatro. Antes de prosseguir com a leitura, recomendo que se assista o curta- metragem Karna Motcham, de Murali Manohar (2017), que aponta, com delicadeza e emoção, este espaço liminar, visto como precariedade e potência no Theru-K-Koothu, de que trataremos mais adiante. Um convite a refletir sobre a incomoda, mas pertinente, indagação: ainda há espaço na sociedade tamil moderna para esta forma de arte ritual e para a cultura tradicional que a engendra? Veja: https://www.youtube.com/watch?v=m2hnQCz_jnI

67 CABALLERO, I. D. Cenários Liminares. Teatralidades, Performance e Política. Uberlândia: EDUFU, 2016.

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CAPÍTULO 3 – THERU-K-KOOTHU E O LEGADO DOS HERÓIS DO MAHABHARATA

Figure 18 – Kattai Vesham, Intérpreter Parthiban V., Companhia da Therukoothu da região de Kongu, Tamil Nadu. Foto: cedida por Parthiban V.

Eles representam os guerreiros sobre-humanos - divinos ou demoníacos -, que são os principais agentes da batalha mitológica em torno da qual é construído grande parte do repertório do Kattaikkuttu. Parece apropriado, portanto, caracterizar o Kattaikkuttu como um "teatro heróico" (DE BRUIN, 1999, p. 89)68.

3.1 PANORAMA GERAL DO THERU-K-KOOTHU NO ESTADO DE TAMIL NADU E ÁREA DELIMITADA PELA PESQUISA

O estado de Tamil Nadu está situado ao sul da Índia. É vizinho do estado de Kerala, na porção ocidental e da ilha de , antigo território indiano e tâmil, na porção oriental. As águas do estado se abrem para a Baía de Bengal, no oceano Índico e para o oriente distante, como a Malásia, Bali, Cingapura,

68 No original: They represent the superhuman - divine or demoniac - warriors, who are the main agents in the mythological battle around which much of the kattaikkuttu repertoire is built. It seems appropriate, therefore, to characterize Kattaikkuttu as a "heroic theatre (DE BRUIN, 1999, p. 89).

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Japão e toda a Oceania. A língua oficial do estado é o tâmil, o que não impede a existência simultânea de muitos dialetos tribais e variações linguísticas regionais, principalmente nas áreas rurais do estado. O inglês, adotado como língua oficial adicional associada do país em 1965, ao lado do hindi, é falado, principalmente, nos centros urbanos de Tamil Nadu, mas não espere ouvir esta língua nos vilarejos remotos do estado. Sua população estimada, em 2017, chega a quase 80 milhões de pessoas, num território de 130.100 km². Tamil Nadu é o berço de uma cultura milenar, que remonta ao período dravídico (3.500 – 1.700 a.C), anterior à invasão ariana, que avançou pelo norte do país em direção ao sul. É também sede de importantes dinastias e impérios, como a Dinastia Chola, entre os séculos IX e XII, conferindo um valor cultural inestimável para o país por preservar características e traços culturais singulares, que contribuíram sensivelmente para o reestabelecimento da identidade nacional pós independência, em 1947. Sua capital, atual Chennai, antiga Madras, foi um importante porto no período colonial e ainda hoje é o terceiro maior porto do país.

Figure 19 - Mapa da Índia com estado de Tamil Nadu em evidência. Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Tamil_Nadu

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O estado possui, atualmente, 32 distritos69, divididos em quatro grandes grupos: Norte, Sul, Centro e Oeste. Embora possamos encontrar companhias de Theru-K-Koothu em outros distritos do estado, sua presença é mais notável nos distritos de North Arcot e South Arcot, na região norte do estado. Atualmente, estes dois distritos foram desmembrados em quatro novos distritos: Tiruvannamalai e Vellore (North Arcot) em 1989 e Cuddalore e Villupuram (South Arcot) em 1993:

Figure 20 - Distritos de Vellore e Tiruvannamalai, respectivamente. Antigo Distrito North Arcot. Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Tamil_Nadu

Figure 21 - Distritos de Cuddalore e Villupuram, respectivamente. Antigo Distrito South Arcot. Fonte: Disponível em . Acesso em 11/12/2018, às 20h32

69 Dísponível em : . Acesso em 11/12/2018, às 20h32

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Também podemos encontrar importantes linhagens de Theru-K-Koothu no distrito de Kanchipuram, como a Perunkattur Ponnucami Nataka Manram, do vilarejo de Perunkattur, o Kattaikkuttu Sangam, do vilarejo de Pujarasantankal, vinculado à companhia de Perunkattur Ponnucami Nataka Manram e à companhia Sri Thantoniammam Therukkoothu Nadaga Sabha, do vilarejo de Akkur:

Figure 22 - Distrito de Kanchipuram onde está sediado o Kattaikkuttu Sangam. Fonte: Disponível em: < https://pt.wikipedia.org/wiki/Tamil_Nadu>. Acesso em 11/12/2018, às 20h32

Existem ainda outras variações do estilo ao sul do estado, como aquelas que se pode apreciar no distrito de Thanjavur (Gingee, Salem, Coimbatore, Dharmapuri). Um bom exemplo é o Thanjavur-K-Koothu70 que, partindo do mesmo manancial literário do Theru-K-Koothu, possui uma performance muito peculiar, que o diferencia e o torna único enquanto estilo. O Thanjavur-K-Koothu é realizado de maneira ritual apenas uma vez ao ano: na primeira noite de lua cheia após a chegada do ano novo Tamil, em 14 de abril, por não-atores advindos da própria comunidade. Todos os personagens são representados por dois atores (para que todos na vila tenham a oportunidade de participar), as vestimentas, ornamentos e maquiagem são mais modestas e a movimentação

70 Um pouco deste estilo poderá ser visto no material audiovisual complementar cedido pela companhia de Thanjavur-K-Koothu, da vila de Aarsuthippattu, distrito de Thanjavur. Nesta tradição, as apresentações ocorrem uma única vez ao ano. Para que todos da vila possam participar desse importante evento local, a comunidade encontrou um arranjo performativo muito particular: todos os personagens são duplicados, criando um efeito cênico bastante interessante.

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também é mais estática. Trata-se de uma variante do estilo, de caráter não profissional, já que o Theru-K-Koothu pode ser visto como forma teatral amadora, semiprofissional e profissional em todo o estado de Tamil Nadu. Segundo De Bruin (1999, pg. 15), o Theru-K-Koothu também pode ser visto no distrito de Pondicherry, com fortes vínculos com as companhias de Theru-K-Koothu do distrito de Thanjavur; ao sul do estado de Andhra Pradesh, na fronteira norte do estado de Tamil Nadu, estando, portanto, mais próximo do estilo do norte; e no Sri Lanka, na Malásia e em Cingapura, com algumas variações estilísticas, levado pelos tamilians que para lá migraram. Nenhum destes estilos será objeto de estudo desta pesquisa, mas figuram como exemplos da multiplicidade de formas que o Theru-K-Koothu assume por todo estado de Tamil Nadu, seu estado vizinho, chegando até outros países próximos do Oriente. Isto posto, podemos dizer que o Theru-K-Koothu possui dois estilos principais (Panis), com diferenças estilísticas que vão das mais sutis às mais acentuadas, conhecidos como ESTILO DO NORTE ou VATAPANKU (Distritos de Vellore, Tiruvannamalai, Cuddalore, Villupuram e Kanchipuram) e ESTILO DO SUL ou TENPANKU (Distrito de Thanjavur e no território independente de Pondicherry. De Bruin (1999, p. 36) contabilizou, durante sua pesquisa de campo para produção de seu livro, nos anos de 1980-90, cerca de 40 companhias profissionais do Estilo do Norte e outras 40 do Estilo do Sul. Todas as que foram observadas durante a pesquisa de campo deste trabalho fazem parte do estilo do norte e são companhias profissionais, em diferentes estágios de organização. Por essa razão, esta pesquisa não se incumbirá de levantar as diferenças estilísticas entre o Vatapanku e o Tenpanku. É importante pontuar, entretanto, que as diferenças são significativas em termos de performance cênica, figurinos, maquiagens, entonação e timbre vocal, mas que são mínimas em termos de repertório textual, proveniente dos episódios do Mahabharata (Frasca, 1999, p. 51).

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Tabela 9 - Censo populacional dos distritos do norte de Tamil Nadu, onde estão situadas as companhias mais representativas do Theru Koothu. DISTRITO ÁREA POPULAÇÃO DENSIDADE Km² Censo de 2011 DEMOGRÁFICA Censo 2011 – Km² Cuddalore 3, 678 2.605,914 709 Tiruvannamalai 6, 191 2.464,875 398 Vellore 6,077 3.936,331 648 Villupuram 7,217 3.458,873 479 Kanchipuram 4,393 3.998,252 910 27, 556 16. 464,125 Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Tamil_Nadu. Acesso em 11/12/2018, às 20h32

O recorte desta pesquisa absorve, portanto, três linhagens distintas da tradição do Theru-K-Koothu: a representada pela Purisai Duraisamy Kannappa Thambiran Parambarai Theru Koothu Manran, da vila de Purisai, distrito de Tiruvannamalai, com aproximadamente 150 anos de existência; a companhia Sri Thantoniamman Therukkoothu Nadaga Sabha, da vila de Akkur, distrito de Tiruvannamalai, com 35 anos de existência e a instituição artístico-educacional não governamental Kattaikkuttu Sangam, da vila de Punjarasantankal, distrito de Kanchipuram, com 29 anos de existência, ligada à companhia Perunkattur Ponnucami Nataka Manran, da vila de Perunkattur, com aproximadamente 100 anos de existência. Todas as companhias e a instituição observadas estão a cerca de 100-150km de distância da capital do estado, Chennai, e pertencem a região administrativa de Cheyyar Taluk.

3.2 O PROBLEMA DO NOME

O Theru-K-Koothu é o representante mais ilustre de uma vasta gama de estilos de teatro folclóricos de Tamil Nadu, no sul da Índia. Theru quer dizer espaço aberto, rua e Koothu dança ou teatro, divertimento, situação melodramática, segundo o dicionário de Inglês-Tâmil, configurando um estilo de teatro popular feito a céu aberto. Etimologicamente, a palavra Koothu é encontrada na literatura tradicional (Sangam) de Tamil Nadu, desde o século I d.C., descende da raiz Kuvu (calling out, summoning scream), significando “[...]

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encenações rituais envolvendo possessão sagrada e transe” (Hollander, p. 159)71. Entretanto, tais definições não equacionam todas as controvérsias e problemáticas que envolvem o nome do estilo, suas variantes de grafia e o modo como é, comumente, classificado pelo Ocidente, como ‘teatro de rua’. O nome Theru-K-Koothu é aceito por uma vasta gama de artistas do estilo, por tradicionais patronos, estudiosos, apreciadores e pelo próprio governo indiano. Há muitas variantes gráficas para o nome e o leitor já deve ter observado que utilizo algumas delas segundo me foram apresentadas pelos próprios artistas das companhias ou segundo aparecem nos materiais bibliográficos consultados, optando pela grafia Theru-K-Koothu, apontada pelo Professor Dr. K. R. Rajaravivarma, da Pondicherry University, como a grafia ideal, considerando o léxico Tamil, quando escrevo a partir de minhas próprias observações. No entanto, não é incomum que o Theru-K-Koothu seja chamado pelos moradores dos vilarejos de Koothu ou Kuttu, ainda que essa denominação seja pouco utilizada pelos próprios artistas. Kuttu ou Koothu, serve para designar toda forma de drama popular (natakam), não iluminando a natureza única do estilo. A palavra Theru tornaria explícito seu caráter de teatro ritual feito a céu aberto. Entretanto, segundo Frasca (1990, p. 12), o termo Kuttu só existe na língua Tamil e está associado às artes da cena há milênios, como relevante valor ritual no período Sangam, entre os séculos 1 e 3 d.C. A palavra Kuttar, referia-se a classe de artistas da cena engajados na realização de performances rituais durante este período, criando uma situação plausível que nos permitiria usar a palavra Kuttu/Koothu para referir-se ao Theru-K-Koothu. No início desta pesquisa, eu, muitas vezes, me referi a esta forma teatral e a seus artistas como Koothus: a cena Koothu, os atores Koothus etc. Durante a pesquisa de campo, percebi que eles não usam a palavra nos mesmos contextos em que eu a empregava. Eu nunca fui corrigida, porque creio que o uso não seja incorreto, como as informações bibliográficas recolhidas comprovam, mas certamente não é corrente entre os artistas. Por isso, optei por

71 No original: “[...] ritual enactments involving sacred possession and trance” (HOLLANDER, 2007, p. 159 apud FRASCA, 2003, p. 31).

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usar sempre o termo completo: Theru-K-Koothu ou Kattaikkuttu, quando me refiro a qualquer aspecto da tradição, do ritual, passando pela estética, até os detalhes da performance. A leitura pode ficar, por isso, um pouco mais repetitiva e difícil, mas estará, certamente, mais de acordo com o modo como esta forma teatral e os artistas do estilo se nomeiam. Erroneamente também, os termos foram traduzidos para o inglês como street play. Mais uma vez, a definição que desagrada profundamente tanto os artistas quanto os estudiosos do estilo. A pesquisadora A. Mangai (De Bruin, p. 12) questiona a necessidade de traduzir o termo para o inglês quando outras formas teatrais clássicas, como o Kathakali, por exemplo, não precisam ter seus nomes traduzidos para serem legitimados como forma teatral. Em sua avaliação, essa postura deflagra o preconceito que formas teatrais populares sofrem, no Ocidente e na própria Índia, em relação a suas irmãs clássicas que não carecem de “traduções” para terem seus nomes aceitos e utilizados. O maior problema nesta definição é associar o estilo ao conceito de teatro de rua, como compreendido na Índia: teatro processional e/ou teatro com viés político-social. O Theru-K-Koothu não é um teatro processional e muito menos um teatro político, mas sim um teatro ritual, feito em espaços abertos, sempre em relação a um templo, uma divindade e uma festividade. De Bruin complementa com ironia:

Consequentemente, isso dá margem a muita confusão desnecessária, porque a tradição teatral discutida neste livro parece, em sua presente forma e em seu conjunto social, uma candidata improvável a um teatro social e de protesto (DE BRUIN, 1999, p. 12)72.

No início de minhas pesquisas, induzida por essa tradução, utilizei muitas vezes a expressão “teatro de rua” para definir a natureza do Theru-K-Koothu. Somente durante a segunda pesquisa de campo fui advertida, mais de uma vez pelo meu supervisor, por De Bruin e por Palani Murugan, para o fato de que essa terminologia não era adequada e fui aconselhada a não utilizá-la mais. O Theru-

72 No original: Consequently, it may give rise to unnecessary confusion, because the theatre tradition discussed in this book seems in its present form and social setting an unlikely candidate for a theatre of social protest (DE BRUIN, 1999, p.12).

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K-Koothu deveria ser entendido como: Theru-K-Koothu, teatro ritual e folclórico das regiões rurais de Tamil Nadu. De Bruin (1999, p. 26) aprofunda a relação do Theru-K-Koothu com o ritual. Segundo ela, o Theru-K-Koothu seria mais “sacral” do que ritual. Isso porque a definição de ritual, segundo Heesterman (1985, p. 9), estaria ligado à ideia de ações pré-definidas, estilizadas, codificadas, conectadas ao mundo intramundano, enquanto que a definição de sacral se relacionaria com a ideia de algo caótico, violento, atado à realidade mundana, mais próxima do universo do Theru-K-Koothu, e seu enredo de guerra, honra, heroísmo e mortandade. Mais espinhosa ainda é a mudança do nome Theru-K-Koothu para Kattaikkuttu, cunhado pela indologista e profunda estudiosa do estilo, Hanne M. de Bruin e por seu esposo, o ator P. Rajagopal, Vattiyar (mestre) da companhia Perunkattur Ponnucami Nataka Manram, utilizado para nomear sua instituição não-governamental artístico-educacional, o Kattaikuttu Sangam. O termo, hoje, é aceito e utilizado por algumas companhias do distrito de Kanchipuram, ligadas à linhagem da Perunkattur e vinculadas à Associação Tamil Nadu Kattaikkuttu Kalai Valarcci Munnerra Cankam (Association for the growth and development of the art of Kattaikkuttu in Tamil Nadu), criada em 1990, por P. Rajagopal e Hanne M. De Bruin. Em sua defesa, os envolvidos afirmam que o nome já era utilizado há muitos anos pelos membros da Perunkattur. O avô e o pai de Rajagopal são, respectivamente, a primeira e segunda gerações de Vattiyars (mestres) da companhia Perunkattur, e Rajagopal lembra-se de, em sua infância, ouvir o termo Kattaikkuttu sendo usado por eles e por outras companhias da região, e que a opção pelo uso do termo Theru-K-Koothu foi resultado da interferência governamental e da elite intelectual urbana do estado, nos anos de 1950, numa tentativa de dar algum status, a esta tradição, segundo os padrões desta elite cultural e normatizá-la usando parâmetros da cultura clássica. O Theru-K-Koothu, mesmo em seu estado de origem, não é muito valorizado pelas classes média e alta dos centros urbanos e nem pela intelectualidade local. A justificativa seria sua falta de codificação e treino sistematizado, como nas formas clássicas, o que me parece altamente

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questionável, figurando mais como um preconceito de classe do que como uma justificativa que faça jus à realidade. As formas teatrais calcadas pela oralidade são, muitas vezes, e erroneamente, consideradas menos refinadas e rebuscadas, o que leva a uma falta de reconhecimento do valor do estilo e de seus artistas, com duras consequências para eles, especialmente econômicas. Talvez, a resposta para isso esteja fora do campo artístico, mas no campo social- político e suas lutas de classe, uma vez que seus artistas e público são provenientes das castas mais baixas, pertencendo aos extratos mais pobres da população. Segundo apresentado em seu livro, De Bruin (1999) argumenta que o termo Kattai faz mais jus à natureza do estilo, porque evidencia justamente aquilo que o distingue de outras formas de Kuttu ou Drama. Kattai Camankal são os adereços de madeira que os personagens principais do estilo, os Kattai Veshams, usam na cabeça, nos ombros e no peitoral, e que são encontrados apenas no Kattaikuttu/Theru-K-Koothu. Entretanto, isso não é um consenso entre artistas e estudiosos, uma vez que a palavra Kattai quer dizer “pedaço de madeira”, “registro” ou, ainda, “defeito”, “imperfeição” e “baixo”. Tais conotações negativas seriam o maior impeditivo para a ampla utilização da nomenclatura Kattaikkuttu, mesmo que, nos vilarejos ao norte de Tamil Nadu, a palavra Kattai seja utilizada frequentemente para designar os ornamentos tradicionais do estilo. A discussão parece longe de se esgotar. Como pesquisadora, opto pelo uso do termo nacionalmente reconhecido e utilizado, embora concorde com a ideia de que o termo Kattai seria mais elucidativo, seguindo a lógica da pesquisadora, professora e diretora teatral A. Mangai: “[...] Porque o termo Terukkuttu deveria ser traduzido para o inglês, quando o nome de outras formas teatrais como, Kathakali ou Yakshagana são usados em inglês? [...]” (De Bruin, p. 12)73. Entretanto, esta questão foge do escopo da pesquisa e me parece que caiba mais aos seus fazedores do que a nós, pesquisadores estrangeiros, tentar encontrar uma solução para este dilema.

73 No original: […] Why should the term Terukkuttu be translated into English, while the names of other theatres, such as Kathakali or Yakshagana, are used in English in their untraslated form? (DE BRUIN, p. 12, 1999).

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Figure 23 – Aqui se pode ver o Kattai Camankal completo, com adorno principal da cabeça, o peitoral e as ombreiras. Este tipo de ornamentação só existe no Theru-K-Koothu, o que o difere de outras formas de Kuttu (drama) do estado. Personagem: Mahaveeran Kattai Vesham, Intérprete: Parthiban V., Companhia da Therukoothu da região de Kongu, estilo do sul, Tamil Nadu. Foto: Cedida por Parthiban V.

Outro ponto importante, com relação à nomenclatura, é o conceito utilizado para dar nome às companhias. Uma companhia deve indicar, em seu nome, a qual vila pertence (Purisai, Akkur, Perunkattur); o nome de seu Vattiyar (líder) fundador (Kannappa Thambiram, Elumalai, Ponnucami, respectivamente), e depois pode usar palavras como teatral (natakam) ou associação (manram). Os nomes são sempre muito longos, a pronúncia é penosa para nós, estrangeiros, e a grafia correta, um verdadeiro mistério, mas descobri, durante a incursão no campo, que as companhias podem ser simplesmente chamadas pelo nome de sua vila. Ou seja, podemos chamar as companhias e a instituição que participaram desta pesquisa direta e indiretamente, apenas de Purisai (Purisai Duraisamy Kannapa Thambiram Parambarai Theru Koothu Manram), Akkur (Sri Thantoniamman Therukkoothu Nadaga Sabha), Perunkattur Ponnucami Nataka Manran) e Kattaikkuttu (Kattaikkuttu Sangam). Esta simplificação será adotada pela pesquisadora para evitar o excesso de repetição dos nomes, facilitar a leitura e a fluência deste texto.

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3.3 SISTEMA DE CASTAS

Toda vida, no ambiente rural de Tamil Nadu, é regida e organizada pelo sistema de castas, a definir as obrigações, deveres e direitos de cada indivíduo dentro de sua coletividade, em diferentes níveis de atuação que englobam a vida prática, mas também a vida espiritual de toda uma comunidade. É o sistema de castas que organiza as relações de trabalho, as relações pessoais, os vínculos matrimoniais, as obrigações rituais e, por lógica, também o Theru-K-Koothu. Como foi apresentado no capítulo anterior, cada casta assume uma função na organização do Festival de Draupadi Amman, o que inclui ações concretas a serem executadas durante o festival (conter o gado, comprar os sarees de Draupadi, serem os parentes da noiva e do noivo no episódio do casamento de Arjuna e Draupadi etc). De fato, cada casta aguarda ansiosamente a realização destes eventos para poder exercer sua função pública e ritual, mostrando-se presente e ativa na manutenção da vida comunitária, material e simbólica. Os atores de Theru-K-Koothu também pertencem a castas específicas e tornar-se ator significa, neste contexto, extrapolar as obrigações de sua casta, quanto a natureza do seu trabalho prático, implicando numa elevação de seu status em seu grupo social (sempre a depender do sucesso e visibilidade de sua companhia e sua capacidade de tornar célebre o nome de sua vila). Na região de Cheyyar Taluk (entidade de administração local que agrega vilarejos de um mesmo distrito, neste caso com sede administrativa na vila de Cheyyar), da qual fazem parte os vilarejos e companhias estudadas, duas castas são, tradicionalmente, envolvidas na dramatização e musicalização dos rituais durante as festividades, por hereditariedade: os Vannars (lavadores) e os Pantarams/Thambirans (guirlandas de flores para rituais, hinos para divindades femininas). Uma terceira casta, a dos Vanniyars (sacerdotes), também pode ter esse direito. De Bruin meciona que encontrou esta mesma disposição de castas entre companhias de Theru-K-Koothu tanto do estilo do norte quanto do estilo do sul; eventualmente sendo complementada por membros da casta Paraiyar, subdivisão dos Harijans, composta por ex-intocáveis, tornados servos:

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Vannars (lavadores) são uma casta de serviço finamente dispersa e disposta na base da hierarquia de castas, tendo em conta o fato de lidarem com “impurezas”. Os membros desta casta são economicamente e ritualmente ligados aos seus patronos. Como minoria, falta-lhes uma forte organização interna e apoio político. Os lavadores são especialistas rituais, cujos serviços são indispensáveis não apenas em importantes eventos do ciclo de vida, como o nascimento de uma criança, a primeira menstruação de uma menina e ritos fúnebres, mas também em festivais para divindades femininas locais. (...) Dentre eles, os Pantarams, ao contrário das outras três castas, não aparentam estar diretamente envolvidos no manuseio de “impurezas” (DE BRUIN, 1999, p. 61)74.

Outras castas também assumem, por direito, certas funções rituais que as ligam a prática do Theru-K-Koothu. Por exemplo, especialistas em instrumentos de sopro, como o natasvaram e o mukavinai, este segundo – uma flauta pequena e estridente - presente em toda encenação de Theru-K-Koothu, pertencem à casta dos Navitans (barbeiros). A percussão é a especialidade dos Paraiyars (ex- intocáveis/servos). O canto de hinos é uma especialidade dos Pantarams (sacerdotes), o harmonium, instrumento melódico, fica a cargo da casta Velalar Mutaliyar. Tradicionalmente, os grandes escritores do estilo pertencem às castas Palli (pequenos proprietários), Natars (agricultores) e Vannars (lavadores). O que há em comum entre todas elas, é o fato de pertencerem ao substrato mais baixo do sistema de castas da Índia, o que viemos a conhecer como Sudras, ou classe dos intocáveis. Esse fato precisa ser mencionado tão somente para que se compreenda por quem e para quem o Theru-K-Koothu é feito, completamente apartado da cultura Bramânica dominante. Um artista de Theru-K-Koothu, portanto, está complemente inserido dentro deste sistema que, ao mesmo tempo, legitima e sustenta sua existência. O Theru-K-Koothu reflete o orgulho de pertencer a um grupo social (as castas mais baixas do extrato hindu), a uma vila ou conjunto de vilas (tradicionalmente, os mais pobres), que podem se orgulhar de ter uma forma teatral feita por e para

74 No original: Vannars (Washermen) are a thinly dispersed service caste classified at the bottom of the caste hierarchy in view of the fact that they handle impurity. Members of this caste are economically and ritually tied to their patrons. As a minority community they lack a strong internal organization and political backing. Washermen are ritual specialists whose services are indispensable not only at important life-cycle events, such as the birth of a child, a girl´s first menstruation and funeral rites, but also at festivals for local goddesses. (…) Of these, the Pantarams, unlike the other three castes, apper not be directly involved in handling “impurity” (DE BRUIN, 1999, p. 61)

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si, segundo determina a tradição. Portanto, complementando o que disse o Professor Chellaperumal em entrevista concedida à pesquisadora (Pondicherry, 2019), concluo que não é apenas o culto de Draupadi e as demais festividades sazonais que sustentam o Theru-K-Koothu, mas também o sistema de castas, através do Mamul, definindo quem, por obrigação e direito, pode representá-lo em nome e em benefício de suas comunidades. Desse modo, através de um intrincado sistema de direitos e obrigações hereditárias (Mamul), se organizam todas as interações econômicas, políticas, sociais e religiosas entre as castas dominantes (donos das terras), os artesãos, as castas de serviços e outros grupos minoritários do ambiente rural. O estudo profundo do sistema de castas extrapola o objeto desta pesquisa, portanto, para aqueles que desejarem compreender melhor o complexo funcionamento deste sistema na formação da companhia de Perunkattur, e por dedução, de outras companhias do estilo e na vida cotidiana dos vilarejos rurais de Tamil Nadu, recomendo a leitura do capítulo 2 “Castes connected with Kattaikkuttu”, do livro “Kattaikkuttu – The flexibility of a South Indian Tradition” (De Bruin, 1999). Quanto à companhia de Purisai, a informação passada é que, antigamente, os atores pertenciam todos à casta dos Thambiran/Pantarams e que hoje não há mais nenhuma restrição com relação a castas para fazer parte da companhia, apenas as mulheres continuam não sendo aceitas como membros. É interessante notar como, através do nome da companhia, é possível obter as principais informações sobre sua constituição: nome da vila, do Vatiyar (líder fundador) e da casta dominante, seguidos pela palavra Theru Koothu e Manran (associação/grupo): Purisai Duraisamy Kannapa Thambiram Parambarai Theru Koothu Manran. Quanto à companhia de Akkur, não consegui nenhuma informação a respeito. Esse assunto, por mais que se faça presente em cada ato da vida cotidiana no ambiente rural, é sempre muito difícil de abordar. Perguntar à qual casta pertence um artista de Theru-K-Koothu ou qualquer outra pessoa, pode ser visto como algo muito rude, porque os obriga a se auto declarar como alguém que pertence a uma condição social inferior, em relação a outros extratos sociais

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mais elevados, resvalando em ressentimentos de classe muito antigos e arraigados. O que fica claro, sem dúvida, é a indissolúvel tessitura que liga o sistema de castas, o Mamul, ao Theru-K-Koothu, inserindo a forma teatral no âmago da vida cotidiana, sujeito a suas regras e hierarquias, assim como qualquer outra atividade mundana que ocorre na comunidade. Tal constatação, corrobora, em parte, à hipótese levantada no projeto inicial de pesquisa que indaga se os modos e meios de organização dos artistas de Theru-K-Koothu, em sua íntima relação com a vida comunitária, seriam fatores que garantiriam sua sobrevivência na atualidade. Essa é uma compreensão que vai se construindo em camadas. A primeira, solidamente expressa pelo sistema de castas e pelo Mamul (sistema de obrigações e direitos). A segunda, pela observação e compreensão dos aspectos internos de organização das companhias, sua hierarquia e regras de sucessão e participação, o que pode ser visto através de sua genealogia, a configurar novas e antigas linhagens artísticas, engajadas em legitimar e levar adiante a arte ritual e dramática do Theru-K-Koothu. Se o sistema de castas e o Mamul organizam o Theru-K-Koothu “por fora”, em sua relação como a comunidade, as linhagens artísticas, com sua hierarquia e regras de sucessão, organizam o estilo “por dentro”, garantindo a longevidade das linhagens e a “pureza” dos estilos.

3.4 AS LINHAGENS ARTÍSTICAS DE THERU-K-KOOTHU PESQUISADAS

Sigamos, agora, para uma breve exposição da genealogia das companhias estudadas: Purisai e Akkur, para que o leitor possa conhecê-las mais intimamente. Por tratar-se de uma tradição popular e oral, não há material bibliográfico disponível que consiga precisar a origem de cada linhagem de Theru-K-Koothu a fornecer-nos uma genealogia completa e elucidativa, seja do estilo do norte ou do sul. Através dos artistas-informantes e do que pontua De Bruin (1999) em seu livro, é possível chegar a duas ou três gerações anteriores. O que haveria antes disso, não é possível precisar, infelizmente.

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A genealogia da companhia de Purisai foi construída a partir de uma linhagem de membros (homens) de uma mesma família, com duração aproximada de 150 anos, reforçando a importância dos vínculos de parentesco, além do sistema de castas, como forma de garantir a continuidade e “pureza” do estilo, criado por Veerasamy Thambiram. Em 1979, a família se dividiu em duas companhias, dirigidas por dois primos. Apesar de tomar conhecimento desse fato durante a pesquisa de campo, esta pesquisa não abarcará a produção da companhia Purisai Kalaimamani Natesa Thambiram Therukkuthu Nataka Manram, dirigida por Subramaniya Thambiram.

GENEALOGIA DA FAMÍLIA THERU-K-KOOTHU THAMBIRAN, ESTILO DO NORTE - PURISAI (150 ANOS) Conheça mais sobre o grupo na página: https://www.facebook.com/purisai.kannappathambiran

Tabela 10 – Genealogia da Família de Theru-K-Koothu, estilo do norte, Purisai. A pesquisadora entrou em contato apenas com a Purisai Duraisamy Kannapa Thambiram Theru Koothu Manram. VEERASAMY THAMBIRAM (1ª geração - avô) (fundador do estilo Purisai)

PURISAI KANNAPA THAMBIRAM NATESA THAMBIRAM (2ª geração - filho) (2ª geração - filho)

SAMBANDAN THAMBIRAM SUBRAMANIYA THAMBIRAM (3ª geração - neto) (3ª geração - neto)

1979 - Purisai Duraisamy Kannapa Thambiram Parambarai Theru Koothu Manram

O ator Palani Murugan, artista-informante desta 1979 - Purisai Kalaimamani pesquisa, pertence a esta linhagem e está sendo Natesa Thambiram preparado para ser Therukkuthu Nataka Manram seu próximo Vattiyar, líder. Por ter se casado com sua prima, ele ganhou este direito, já que Sambandan não possui filhos homens. (4ª geração – primo e genro)

Fonte: Palani Murugan. Sendo uma das linhagens mais antigas e respeitadas do estilo, é possível relacioná-la a outras tradições importantes do estado de Tamil Nadu, como a tradição das Devadasis, dançarinas dos templos, e ao estilo de dança

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Bharatanatyam. O que nos permite compreender o Theru-K-Koothu como parte de um corpo tradicional muito mais robusto, composto por diferentes formas de drama popular (Natakams), pela tradição Devadasi e a dança Dasi attam que, posteriormente, contribuiu para a formação do estilo de dança clássica indiana, Bharatanatyam, ainda que haja muita controvérsia sobre o processo de apropriação desta tradição popular, por membros da elite urbana do estado. O fato é que Veerasamy Thambiran conhecia o Bharatanatyam, e não apenas o ensinava para as devadasis da região, como introduziu alguns dos seus movimentos do estilo no Theru-K-Koothu. Vejamos o que nos diz De Bruin sobre isso, a partir das considerações de Frasca a respeito:

Kannapa-t-Tampirar diz que, embora haja um elemento de Bharata Natyam no Kattaikkuttu, ele não sabe quando apareceu pela primeira vez (Swaminatahn, 1992, p. 38). Com base na correspondência técnica dos movimentos de dança do Kattaikkuttu e do Bharata Natyam, Frasca chega à conclusão de que existe uma estreita relação entre os dois estilos no campo dos movimentos de dança (Frasca, 1990, 192). No entanto, ele afirma que tanto os Pantaram quanto as Devadasis, negam quaisquer laços genealógicos com a comunidade Devadasi (FRASCA, 1990, 192 apud DE BRUIN, 1999, p. 102)75.

Figure 24 – Na parede da sede da companhia de Purisai, sua linhagem estampada. Ao centro, o menino Veerasamy Thambiran, fundador da companhia, bisavô de Palani Murugan. À direita estão os membros da família Thambiran e à esquerda, os músicos – advindos de outras castas e famílias. Foto: Edilson Castanheira.

75 No original: Kannapa-t-Tampirar says that although there is an element of Bharata Natyam in Kattaikkuttu, he does not know when it first appeared. On the basis of technical correspondence in the dance movements of Kattaikkuttu and Bharata Natyam, Frasca comes to conclusion that there exists a close relationship between the two styles in the area of dance (Frasca, 1990, p. 192). Nevertheless, he states that Pantarams, like the Devadasis, denied any geological ties with the Devadasi community (Frasca, 1990, p. 192 apud DE BRUIN, 1999, p. 102).

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Ainda segundo Frasca, Eles eram uma trupe de referência, através da qual alguns literatos das áreas urbanas e patrocinadores do governo legitimavam seu interesse pelas artes das áreas rurais sem realmente ter ido até lá (FRASCA, 1990, p. XII)76.

A fala de Frasca corrobora certo incomodo observável durante a pesquisa de campo com relação ao status da companhia de Purisai em detrimento de outras companhias. Num mercado tão competitivo e precário, tal privilégio soa como injustiça. Alguns chegam a afirmar que, do ponto de vista estético, esta não seria nem mesmo a companhia mais apurada. É uma conversa delicada que, mais do que nos informar sobre o grau de maestria de cada companhia, nos permite conhecer o grau de precariedade e falta de suporte em que os artistas populares indianos estão imersos. Infelizmente, essa não é uma situação localizada. Frasca escreveu isso em 1990 e, em quase vinte anos, a situação não parece ter mudado muito. A companhia de Purisai continua sendo a maior referência do estilo dentro e fora da Índia. Não é à toa, portanto, que justamente essa companhia tenha sido selecionada por Ariane Mnouchkine para trabalhar no Thèâtre du Soleil, na montagem do espetáculo “A room in India” (2016), ou que ela figure nesta pesquisa, e em todas as outras, sobre o assunto a que tive acesso. Não posso, com isso, desmerecer o apuro técnico de seus artistas, o que seria uma leviandade. Palani Murugan é um ator excepcional, com uma técnica muito apurada e que – para meu espanto – tornou-se ator de Theru-K- Koothu tardiamente, apesar de fazer parte de uma das linhagens mais tradicionais do estilo. Foi impossível não rir quando ele me disse que seu mestre, Sambandan, lhe confessou que não imaginava que ele pudesse ser um ator de Theru-K-Koothu porque ele cantava muito mal e tinha uma voz muito fraca para um teatro feito à céu aberto e sem microfonagem. Num futuro não muito distante, Palani sucederá Sambandan na direção da sua linhagem. Em conversa com o Professor A. Chellaperumal, do Departamento de Antropologia, da Pondicherry University, lembro de sua insistência para que eu

76 No original: They were a token troupe through which some urban-based literati and government sponsors legitimized their interest in the village arts without actually going to the villages (FRASCA, 1990, p. XII).

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fosse a Gingee, sua vila natal, para conhecer a companhia de Theru-K-Koothu de lá, estilo do sul, praticamente ignorada pelos patronos e pesquisadores estrangeiros. Segundo ele, seria muito importante dar visibilidade a estes outros grupos e artistas algo que, infelizmente, meu cronograma e as condições da pesquisa não me permitiram fazer. Creio que haja uma dívida nossa, pesquisadores, para com as muitas outras companhias profissionais de Theru- K-Koothu do estado, em especial, as do estilo do sul, tão pouco estudado e muito menos reconhecido do que seu irmão do norte. Quando me dei conta deste desequilíbrio já não havia tempo hábil de viajar à Gingee, mas assumi com o Professor Chellaperumal o compromisso de fazê-lo em outra oportunidade. Quanto à genealogia da companhia de Akkur, seu atual Vattiyar, D. Elumalai é também seu fundador, ou seja, ele representa a primeira geração da companhia, fundada em 1984. Enquanto seu filho, Suresh Venda, artista- colaborador desta pesquisa, pertence à segunda geração. Embora Suresh possa atuar como ator e esteja preparado para isso, sua função atual, na companhia, é a de produtor. É ele quem organiza a agenda de atividades do grupo, faz o papel de relações-públicas e tenta conseguir apoio financeiro para seu funcionamento em termos mais profissionais, cavando espaços de apresentação e divulgação. Das três companhias com quem tive contato, claramente, esta é a que mais tem dificuldades para colocar-se no mercado como companhia profissional, competindo com companhias já reconhecidas e consagradas como as de Purisai, Perunkattur/Kattaikkuttu. A estratégia encontrada pelo grupo, para se afirmar, é uma abordagem, diga-se de passagem, bastante direta e nada constrangida para levantar fundos para o grupo junto a possíveis patronos, apoiadores e pesquisadores brasileiros.

GENEALOGIA DA FAMÍLIA THERU-K-KOOTHU DE AKKUR, ESTILO DO NORTE (ainda sem um nome específico) – 35 ANOS

Conheça mais sobre o grupo na página: https://www.facebook.com/sri.therukoothu

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Tabela 11 - – Genealogia da Família de Theru-K-Koothu, estilo do norte, da vila de Akkur. D. Elumalai (Vattiyar – 1ª geração) Possui vínculos de parentesco com membros do clã Purisai. Segundo Palani Murugan, sua tia/sogra é prima de Elumalai e o próprio Elumalai atuou na Purisai antes de fundar sua companhia. 1984 - Sri Thantoniamman Therukkoothu Nadaga Sabha

Apesar da relação próxima da companhia Purisai, o estilo não é o mesmo. Trata-se de um estilo em formação com influências tanto da Purisai, quanto da Perunkattur, se enquadrando no estilo do norte, mas que ainda não possui uma nomenclatura própria que o identifique e diferencie das outras companhias. Apesar disso, o estilo já apresenta algumas inovações, como foi pontuado pela atriz do Koothu-P-Pattarai, Kaalai Rani, com relação a movimentação mais solta do personagem Kattiyakaran (cômico, narrador), nos números de dança. Suresh Venda (filho – 2ª geração) Sucessor de Elumalai (?) Fonte: Suresh Venda e Palani Murugan.

O Kattaikkuttu Sangam está no meio-termo entre ser uma instituição artístico-educacional e uma companhia profissional, não sendo claro que rumos tomará a médio prazo e por isso não exporei aqui expor sua genealogia. Neste caso, seria melhor apresentar a genealogia da companhia de Perunkattur, o que não parece ser necessário, haja visto que De Bruin a apresenta brilhantemente no segundo capítulo de seu livro, “Castes connected with Kattaikkuttu”, do livro “Kattaikkuttu – The flexibility of a South Indian Tradition” (De Bruin, 1999), e essa não é uma das companhias observadas diretamente por esta pesquisa.

Mas por que é tão importante compreender o modo de gestão e organização interna das companhias?

Entendo ser importante apresentar o modo de gestão e organização interna das companhias porque é desse modo, através da configuração de linhagens artísticas e do que elas estabelecem como critério de participação, sucessão e funcionamento, que podemos traçar uma espécie de história para esta tradição, saber quem criou o quê, qual inovação foi feita em qual geração, que movimento de dança é característico dessa ou daquela linhagem, quem o fez pela primeira vez etc. Só desta forma podemos saber, por exemplo, que foi

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Veerasamy Thambiran quem incluiu passos de Bharatanatyam na técnica do estilo Purisai. É uma forma de dar legitimidade a essas tradições populares calcadas na oralidade, dizer que elas possuem uma história, estão ligadas a determinadas pessoas, castas, a um contexto social, religioso, cultural; dizer que suas técnicas performativas também vieram de algum lugar, de alguém, foram construídas, aprimoradas, conscientemente, ao longo do tempo e não são obra do acaso ou da espontaneidade do gênio popular. É uma forma importante de cavar espaços simbólicos e imateriais de existência, mas também espaços políticos e econômicos, que lhes permitam brigar por mais respaldo financeiro local e nacional, suporte institucional e governamental, direito à uma existência plena não medida pela régua da cultura clássica indiana. Para existir, é preciso, antes de tudo, resistir criando memória. Uma linhagem de Theru-K-Koothu alimenta a memória coletiva (afetiva) de toda uma comunidade (uma vila, um conjunto de vilas, um distrito inteiro) que lhes oferece em resposta, apreço, uma finalidade no coletivo e suporte financeiro, fechando, assim, o ciclo que legitima e perpetua a tradição, respondendo, satisfatoriamente, a primeira parte da pergunta levantada na hipótese inicial desta pesquisa sobre os fatores externos e internos que garantem sua sobrevivência na atualidade: o ciclo de festividades religiosas associadas ao Mahabharata (Paratams), cujo exemplo apresentado foi o Festival de Draupadi Amman, o sistema de castas, o mamul, e as linhagens artísticas. Por tudo quanto foi dito, é bastante plausível supor que a fragilização dessa estrutura delicada no contemporâneo tenha efeitos prejudiciais à existência do Theru-K-Koothu. Como? Quais? Deixarei estas reflexões e inquietações, um tantoperturbadoras, para o próximo capítulo, que problematiza justamente as complexas relações desta tradição com o tempo presente e suas novas demandas, assumindo contorno políticos evidentes. O encanto é um equilíbrio sutil entre forças invisíveis que operam em harmonia. Todo deslocamento, por menor que seja, altera o jogo de forças e pode produzir desencanto ou novas possibilidades de encantamento no campo do imaginário, mas também na vida prática, com implicações econômicas, sociais e políticas.

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O assunto fica em suspenso, por enquanto. Agora é hora de conhecer o Theru- K-Koothu por dentro. Adentremos o Kottakai (green room).

3.5 ADENTRANDO O KOTTAKAI DO THERU-K-KOOTHU

3.5.1 CONTEXTO HISTÓRICO

O Theru-K-Koothu que conhecemos hoje é uma forma composta que encontra raízes nos dramas rituais processionais (kuttus), em outras formas de drama popular (natakams), e na tradição dos antigos contadores de histórias engajados em narrar episódios do Mahabharata. Segundo De Bruin (1999, p. 116), os textos utilizados para a encenação Theru-K-Koothu são baseados no Mahabharata, de Vyasa (500 a.C. – 400 d.C.), na versão tamil Villiputtur Paratam (1.400 d.C.), no Nallappillai (século 18) e no Centanar (período incerto). De fato, a versão tamil parece ocupar um lugar de destaque nessa lista, porque permite a inclusão de passagens, personagens e situações que remetem à história factual do estado ou ao imaginário coletivo, com seus bravos heróis e guerreiros míticos como, por exemplo, Mahaveeran, presente, até os dias de hoje, numa encenação ritualizada de possessão e transe ou, como nos episódios de Poonamala ou Draupadi Kuravanchi, que não existem na versão original do épico, mas são muito tradicionais no repertório do estilo.

Mahaveeran: : https://www.youtube.com/watch?v=8Qh-uKOkuBU https://www.youtube.com/watch?v=DOp6xhc2OLM

Historicamente, acredita-se que o Theru-K-Koothu, como conhecemos hoje, não tenha mais do que três séculos de existência. É uma forma teatral narrativa que nasce no ambiente rural, que se vale de diferentes recursos cênicos (recitação, diálogo, música, figurinos, maquiagem, adereços, diferentes personagens) para dar conta dos seus objetivos, partindo de uma origem ritual, associada principalmente ao Festival de Draupadi Amman e a encenação do mito de Draupadi, divindade feminina cultuada nos vilarejos rurais de Tamil

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Nadu, mas não somente. Ele também tem conexões com todo o reservatório oral que povoa o imaginário regional e sustenta as performances (pequena tradição); toda a cultura indiana (a grande tradição, representada pelo Hinduísmo) e a estrutura sânscrita dos épicos:

Há uma relação multidimensional entre as formas tradicionais de teatro popular e a sociedade e suas instituições, incluindo a religião. Neste contexto, vamos examinar o exemplo do Terukkuttu – teatro de rua de Tamil Nadu - que é ao mesmo tempo um entretenimento, um ritual, um meio de instrução social, instrumento de preservação dos mitos épicos e também uma importante parte de um festival sócio religioso (VARADPANDE, 1992, p.39)77.

Há vestígios importantes desta tradição na dinastia Pallava, do sul da Índia, entre 275 – 897 d. C., numa linha do tempo, para frente e para trás, de, aproximadamente, 1.300 anos. Alguns estudiosos acreditam que o épico tâmil Shilappadhikaram, escrito no século II d.C., seja uma forma de dramatização primitiva, uma protoforma do Theru-K-Koothu atual. As histórias deste épico, ainda hoje, são representadas pelos artistas Theru-K-Koothus e há outras similaridades: a estrutura de abertura e fechamento da encenação é idêntica, os atores atuam em verso intercalado com prosa, e uma personagem feminina tem importância central em ambos. Seu estilo pode ser definido como algo entre o sagrado e o grotesco, entre o comunitário e o operístico, sendo essencialmente declamatório, marcado por diálogos rápidos e estridentes, gesticulação exagerada e certa aspereza corporal. Sua natureza é a extroversão, a virilidade heroica, a comicidade grotesca que, em certos momentos, nos remete à Comédia Dell´Arte, com muita improvisação nos diálogos, intercalados por passagens cantadas com acompanhamento musical. Nele, não há espaço para convenções do teatro de palco como, por exemplo, a quarta parede, certa predisposição à ilusão cênica, a linearidade da narrativa etc. Como tal e opondo-se à tradição clássica, ele é produto de uma cultura oral, não possui codificação ou regras fixas. Sua única

77 No original: Multi-dimensional relationship exists between the traditional folk theatre forms with society and its institutions including religion. In this context let us examine the example of Tamil Nadu´s street theatre – Terukkuttu - which is at once an entertainment, a ritual, a medium of social instruction, preserver the epical myths and also a part of the socio-religious festival (VARADPANDE, 1992, p.39).

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regra é aquela que rege toda a cultura popular: “fazer funcionar”. Se funciona, serve. Tradicionalmente, o Theru-K-Koothu é um ambiente teatral habitado essencialmente por homens. Mulheres não são admitidas nas trupes e, como em muitas outras formas teatrais da Índia e do Oriente, há uma tradição refinada de homens especializados em representar papéis femininos, comandados pelo Sutradhara – uma espécie de narrador, menestrel, diretor de cena em cena, e pelo Vidushaka – personagem cômico que faz contraponto ao Sutradhara, pontuando passagens dramáticas com comentários jocosos, grotescos e, não raro, mordazes e críticos ao status quo. No Theru-K-Koothu, no entanto, esses dois personagens da cultura popular e folclórica da Índia se fundam em apenas um: o Kattiyakaran. Pode soar contraditório, portanto, que sua origem esteja associada ao Festival de Draupadi Amman, uma divindade feminina ligada aos ritos agrários de fertilidade, colheita e plantio, próprios da cultura dravidiana, anterior ao período védico, fundida, simbolicamente, à personagem Draupadi, do épico Mahabharata. Frasca nos oferece uma pista das razões deste protagonismo feminino quando diz: Essas mulheres, como o bardo panar e o sacerdote velan, também são chamadas de mutuvay, indicando o acesso essencial ao divino que acreditavam possuir. É por consequência disso que as mulheres têm um lugar importante neste ritual (FRASCA, 1990, p. 19)78.

O que nos remete tanto ao status feminino no período dravidiano, evidente na iconografia dos templos das áreas rurais com suas imponentes ou amáveis Ammans, quanto àspróprias Devadasis, as dançarinas dedicadas aos templos, cujo período áureo se deu entre os séculos VI e XIII d.C. Embora o Theru-K- Koothu seja uma tradição dramática masculina, parece-me que um saber de um tempo muito anterior está incrustrado em sua essência, um saber que, se não chega a atingir os pilares do estilo, de certo, o extravasa em sua encenação ritual.

78 No original: These women, like the bardic panar and the velan priest, are also referred to as mutuvay, indicating the essential access to the divine they believe to possess. It is of consequence that women have an important place in this ritual (FRASCA, 1990, p. 19).

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3.5.2 ORGANIZAÇÃO DAS COMPANHIAS E DA PERFORMANCE THERU- K-KOOTHU

As companhias que figuram nesta pesquisa pertencem todas ao Estilo do Norte (Vatapanku), que se divide em três linhagens principais:

1) Purisai 2) Perunkattur 3) Cattuperi Rakavan79

A regra para definir a qual linhagem pertence uma companhia é simples: se um ator transita entre mais de uma companhia, essas companhias são consideradas de uma mesma linhagem. Ou seja, se Elumalai, Vattiyar (líder) da companhia de Akkur, atuou junto à de Purisai, isso quer dizer que sua companhia pode ser relacionada ao estilo de Purisai. Do mesmo modo, o Kattaikkuttu Sangam se conecta ao estilo de Perunkattur. Não tive oportunidade de conhecer as da linhagem Cattuperi Rakavan, de modo a dimensionar as diferenças e similaridades que existem entre elas. Entretanto, considerando as diferenças estilísticas que há entre a linhagem Perunkattur e Purisai, e todas as rivalidades que acompanham essas diferenças (que demarcam territórios e graus de importância e reconhecimento)80, creio que elas devem ser significativas o suficiente para justificar pertencer a este seleto grupo de apenas três linhagens, que acabam por reunir, em seu guarda-chuva, mais de 40 companhias profissionais do estilo do norte. O corpo artístico das companhias é sempre muito instável e muda de temporada a temporada. As mudanças têm os motivos mais diversos: atritos entre os artistas, possibilidade de melhores ganhos ou papéis em outras

79 Ver: DE BRUIN, 1999, p. 40 80 Em seu livro, De Bruin ressalta que a companhia de Purisai possui patronos e apoiadores, inclusive governamental, desde 1955, enquanto outras companhias – até mais apuradas esteticamente, em seu entender – não teriam o mesmo privilégio. Sua fala deixa entrever o grau de competitividade entre as companhias de Theru-K-Koothu em sua luta pela sobrevivência.

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companhias, fundar sua própria companhia, ir para cidade em busca de outro tipo de trabalho, casamento etc. O certo é que se acentua, cada vez mais, a competição entre as companhias consideradas de ponta que, operando na mesma região, disputam, entre si, um espaço de mercado sabidamente cada dia mais precário, porém constante, devido às demandas do calendário de festividades que atravessam todo ano. Suresh Venda, da companhia de Akkur, colaborador desta pesquisa, me apresentou o seguinte cenário: dos 365 dias do ano, em apenas 100 dias há trabalho para os artistas da companhia. Nos outros 265 dias, os artistas precisam encontrar outros trabalhos temporários dentro ou fora da vila. Essa situação torna difícil a profissionalização do grupo e, também, reduz sua capacidade de competir em igualdade com companhias mais estáveis, reconhecidamente profissionais, como a Purisai. Suresh demonstra apreensão com o futuro de sua companhia, pois com os baixos salários pagos aos artistas, muitos não querem seguir a carreira de ator, e diz: “com nossa arte, nosso estilo de vida”. Falta infraestrutura, apoio financeiro, mas também o simples reconhecimento do valor da tradição pelo governo e pelas classes mais abastadas que costumam servir de patronos. Muito embora a companhia de Purisai seja considerada a mais agraciada por apoio institucional e financeiro, sua situação atual também não é das mais confortáveis. O grupo possui uma sede-escola na vila de Purisai onde realiza cursos, ensaios e treinamentos permanentes. Entretanto, ao término de sua experiência no Théâtre du Soleil, a companhia se desintegrou, restando apenas Sambandan, o atual Vatiyar, e Palani Murugan, seu sobrinho-genro e futuro sucessor. A desintegração se deu por desentendimentos internos, dando a entender problemas com relação à divisão de dinheiro e à hierarquia dentro da companhia. Alguns atores teriam ido para outros grupos, e outros, para cidade em busca de trabalho, essa foi a informação passada por Palani Murugan, sem dar mais detalhes. Quando visitei a vila de Purisai, vi Palani trabalhando, com alguns aspirantes a ator, cenas de um episódio que eles iriam apresentar em breve num evento de ocasião, enquanto Sambandan assistia o ensaio e ia corrigindo as

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entonações, o ritmo das falas quando algo não ia bem. Eles estavam se preparando para, logo após minha partida da Índia (infelizmente), um grande workshop de imersão, numa tentativa de aproximar jovens atores interessados em fazer parte da companhia, restabelecendo assim seu corpo artístico.

Figure 25 - Divulgação do episódio "O desenrolar do saree de Draupadi" feito pelos participantes do workshop de Theru-K-Koothu, conduzido pela Purisai, em sua sede, em março/2019. Fonte: página do Facebook de Palani Murugan.

Embora Palani tenha me dito, terminantemente, que não há mais restrição de castas em sua companhia, ele também reiterou que somente um membro do clã Thambiran pode se tornar Vattiyar, de modo que a sucessão continua sendo, exclusivamente, por laços de parentela, como manda a tradição, entre membros homens. Ouvindo suas palavras, me ocorreu que a flexibilização de castas se deva, primeiro, por uma necessidade prática de refazer o corpo artístico da companhia e, segundo, pela demanda da própria sociedade indiana em deixar para trás a dívida social que o sistema de castas lhes impôs. Entretanto, no final das contas, isso tem menos a ver com um desejo de transformação da tradição e da sociedade hindu, que continua a ser estratificada e segmentária, e mais com uma necessidade objetiva da companhia em conseguir pessoas interessadas em tornar-se ator de Theru-K-Koothu, algo cada vez mais raro. O mesmo pode ser dito quanto à absorção de mulheres nos workshops (na figura

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acima, uma mulher estrangeira): me parece mais uma estratégia de sobrevivência e não uma real abertura para sua presença dentro da tradição. Esse assunto continua a ser um tabu.

Figure 26 – Palani Murugan trabalhando o texto de um episódio com aspirantes a ingressar na companhia de Purisai. Foto: Edilson Castanheira.

Toda companhia de Theru-K-Koothu é liderada por um Vattiyar. Ele é o líder por direito hereditário, o mestre, o diretor artístico, o administrador das finanças e das oportunidades de trabalho. Cabe a ele decidir o grau de participação de cada ator e suas possibilidades de ascensão no grupo. O Vattiyar é a versão popular do Guru clássico e goza da mesma reputação e importância no meio rural, mas não na sociedade Tamil como um todo. Infelizmente, um Guru de Bharatanatyam, por exemplo, é muito mais reconhecido do que um Vattiyar de Theru-K-Koothu. Essa comparação, aparentemente banal, entre o grau de reconhecimento do Bharatanatyam e do Theru-K-Koothu, ambos genuinamente Tamilians, reacende a fogueira que alimenta as tensões entre a cultura clássica e a cultura popular, segundo eu mesma pude vivenciar. Quando desembarquei na Índia para minha segunda pesquisa de campo, com visto de pesquisadora, a oficial da imigração me perguntou: “o que você veio estudar?”, ao que respondi “Theru-K- Koothu”. Ela sorriu, constrangida, e me disse que não sabia do que se tratava. Chamou, então, mais dois colegas e pediu para que eu repetisse qual era meu objeto de estudo. Os dois também não tinham ideia do que era o Theru-K- Koothu. Foi preciso que eu, também constrangida com minha posição de

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estrangeira, lhes explicasse. O fato parece banal, mas em muitas ocasiões anteriores entrei na Índia como estudante de Bharatanatyam e nunca precisei explicar do que se tratava. Parece que, de tempos em tempos, voltamos a esbarrar na diferença de status entre o clássico e o folclórico na sociedade indiana, entre a cultura letrada e iletrada, entre a alta e baixa culturas e os extratos mais altos e mais baixos da sociedade, respectivamente. Isso me leva a crer que tal desequilíbrio de forças não possa ser revertido apenas com boa vontade em eliminar o sistema de castas ou torná-lo, por força de lei, ilegal, mas depende de ações políticas e econômicas concretas de reparação, que beneficiem aqueles que foram mais prejudicados e negligenciados por essa engrenagem social – o que não acontece de modo substancial. Quando Suresh me fala das dificuldades da companhia de Akkur para sobreviver, quando De Bruin me fala da possibilidade de fechar o Kattaikkuttu por falta de verbas, quando Palani me fala de sua preocupação em encontrar novos atores quando há poucos interessados no ofício de ator, mesmo na mais renomada companhia do estilo, o que grita, em todos os exemplos, é o abandono e a precarização das condições de vida de um grande contingente populacional do estado, os habitantes das áreas rurais, aqueles que sempre ocuparam as posições mais vulneráveis no extrato social. Às vezes, uma pretensa mudança na direção dos ventos não muda a direção dos eventos, infelizmente.

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Figure 27 – Os Vattiyars (líderes) das companhias de Akkur e Purisai, respectivamente: D. Elumalai, representando Krishna no episódio do casamento de Abhimaniyu e Kannapa Sambandan, ao lado de Palani Murugan, seu sobrinho-genro e futuro sucessor. Foto: Edilson Castanheira, Palani Murugan - respectivamente.

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Toda companhia de Theru-K-Koothu é organizada de modo hierárquico. Em algumas companhias, o Vattiyar é o dono de todos os figurinos, adereços e instrumentos. Em outras, cada artista traz seu próprio material. Isso ajuda a definir o sistema de remuneração de cada um deles, que também leva em consideração o tempo de companhia, sua experiência e o tipo de papéis que representa: principais ou secundários. Tradicionalmente, os músicos são os mais bem pagos, uma vez que toda a encenação depende diretamente de sua atuação. A forma de contratação dos atores e músicos é feita através de um acordo verbal (Tampulam) a cada nova temporada. O tipo de participação e a remuneração são acordados no fim da temporada anterior e selados com a troca de folhas comestíveis de betel. Há sempre muitos conflitos por conta de dinheiro nas companhias, o que ajuda a explicar a grande flutuação de seus corpos artísticos e as constantes brigas e intrigas internas e externas. Segundo sua condição econômica, grau de maestria e tempo de existência, as companhias se dividem entre profissionais, semiprofissionais e amadoras. Segundo De Bruin (1999, p. 48) é considerado profissional aquele que tem no teatro seu principal modo de subsistência, mas não é incomum que, durante a baixa-estação, eles tenham outros trabalhos secundários. Entretanto, este não é o único critério apontado por De Bruin. Ela pontua que, para ser considerado profissional, é preciso ter um domínio elevado da técnica do estilo, ter memorizado – se não todo – grande parte do repertório oral do estilo, sendo capaz de utilizá-lo com criatividade e flexibilidade. Por último, pontua que são considerados artistas profissionais aqueles que tem preocupações estéticas com relação à sua forma de arte, mesmo que não saibam formulá-las nos termos de uma teoria estética. Segundo Frasca (1990, p. 23), as companhias podem se dividir entre profissionais, semiprofissionais e amadoras. As companhias profissionais seriam aquelas cujos artistas são descendentes diretos de renomadas linhagens de Theru-K-Koothu, com um Vattiyar muito experiente. As semiprofissionais seriam aquelas nas quais os artistas possuem outras fontes de sobrevivência, além do teatro (embora eu tenha constatado que isso acontece mesmo entre as

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companhias mais estabelecidas e profissionais); eles teriam sido treinados ou teriam atuado em companhias profissionais e admitiriam pessoas de castas variadas, além daquelas tradicionalmente associadas ao Theru-K-Koothu. Claramente, a companhia de Akkur pode ser considerada semiprofissional, em relação à companhia de Purisai. Entretanto, é interessante notar que, atualmente, a companhia de Akkur tem obtido mais espaço de atuação que a renomada Purisai, que sofreu um desmonte recente em seu corpo artístico. Já as companhias amadoras são aquelas que praticam o Theru-K-Koothu como forma devocional, exclusivamente para fins rituais, sem nenhum retorno financeiro, dentro dos limites de suas próprias vilas, como, por exemplo, o Thanjavur-K-Koothu, do distrito de Thanjavur, estilo do sul. As companhias profissionais e semiprofissionais contam com a seguinte estratificação das funções, segundo sua atuação na companhia (Panku System), e levando em consideração suas habilidades técnicas, o domínio do repertório, a versatilidade e o grau de hierarquia na companhia. O Panku cumpre uma dupla função: organiza a hierarquia entre os artistas e a própria performance, definindo quem faz o que, quanto cada um poderá receber pela função que exerce, quanto cada artista pode almejar ser dentro daquele coletivo. Basicamente as funções são definidas segundo aquilo que cada um pode fazer em cena. Primeiro temos o Vattiyar, que é o mestre, o professor, o diretor artístico e administrativo, o líder da companhia; no escalão seguinte temos os atores mais experientes e versáteis da companhia, aquele que executam os papéis mais importantes, conhecidos como Periyar Veshams. Segue-se então, os artistas que interpretam os papéis secundários, de menor importância, mas essenciais para a manutenção do repertório da companhia, são os Chinna Veshams. Toda trupe conta com um grupo de jovens aspirantes, a partir dos 6 anos de idade, que acompanham os artistas profissionais durante as apresentações e ensaios. Eles recebem treinamento, aprendem no melhor estilo “olhar e fazer”, de modo não muito sistematizado, mas extremamente eficiente. Com o tempo, eles serão integrados na companhia como Chinna Veshams, os mais talentosos poderão almejar a posição de Periyar Veshams e os mais histriônicos e comunicativos serão escolhidos para a função de Kattiyakaran, que é uma categoria à parte.

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Ele é o condutor da encenação, o cômico e o representante simbólico do espírito do homem rural e simples, em cena. Goza de muita liberdade em sua atuação, ao contrário dos personagens que usam os Kattais, cuja margem de improvisação é sempre mais limitada. Deve ser rápido, espontâneo e ter jogo de cintura para manter o público interessado pela encenação durante longas horas. Sua linguagem é burlesca, em prosa ou verso, meio non sense, cômica e cheia de aliterações. Ele usa uma grande variedade de dialetos, do “low” ao “high” Tamil, tudo para conseguir o efeito dramático desejado ou criar duplo sentido. Muitos estudiosos dizem que é a figura mais importante do estilo e que, por isso, deve ser feita por atores muito experientes. Ele pode tanto introduzir os personagens, quanto permitir que eles mesmos se apresentem ao público, revelando certo grau de improvisação do estilo na estrutura da encenação. O Kattiyakaran liga as cenas, explicita o contexto, guia a narrativa com humor afiado e crítica tenaz, relacionando o conteúdo dramático às problemáticas e demandas da vila, por exemplo. Ele possui grande liberdade dramática e, com seu humor exagerado e caricato, pode tratar de assuntos espinhosos e importantes para a comunidade, favorecendo certo tipo de identificação e aproximação entre artistas e audiência e, em muitos momentos, quebrando propositalmente cenas de grande dramaticidade, com comentários engraçados apenas para permitir que o público “respire outra vez” quando o espetáculo se torna muito denso e emocionalmente carregado. Ele é o coração e o cérebro do Theru-K-Koothu, participando de todas as cenas, conduzindo os atores, suas entradas e saídas, levando a peça ao grand finale, com sua eloquência. Quando tudo chega ao fim, apresenta ao público o assunto da peça que será encenada no próximo dia. Vejamos o que nos diz Varadpande sobre este importante personagem e sua importância dentro da estrutura dramática do Theru-K-Koothu:

A terceira forma de improvisar o diálogo, essencial para o Terukkuttu, é aquela que causa um efeito de alívio cômico. Como a maioria dos episódios apresentados possuem um tom bastante sóbrio, o humor é introduzido através do vacanam. Muito dessas improvisações tem relevância contemporânea e consistem em piadas ou trocadilhos

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relacionados ao cenário político e/ou social local ou mais amplo (FRASCA, 1990 apud VARADPANDE, 1992, p. 43)81.

Curiosamente, nas companhias que tive a oportunidade de acompanhar, o Kattiyakaran era feito por talentosos e jovens atores, contrariando as informações que encontrei em livros sobre o fato deste personagem ser feito, tradicionalmente, pelo ator mais experiente da companhia, quase sempre pelo seu Vattiyar. Quando questionei Palani Murugan sobre qual a razão dessa inversão, ele argumentou que as jornadas de Theru-K-Koothu duram horas seguidas, virando a madrugada, e que os Vattiyars em atuação hoje são, em sua maioria e nas companhias que eu conheci, homens acima dos 60 anos. Portanto, seria mais fácil para um ator mais jovem assumir essa responsabilidade tão importante dentro da performance do Theru-K-Koothu, do que para um ator com mais idade. Segue um pequeno quadro para ajudar a visualizar melhor a divisão das companhias em termos de hierarquia, mas, principalmente de divisão de papéis como regulador dessas hierarquias. Assim, podemos avançar para outros assuntos referentes à performance do Theru-K-Koothu.

Tabela 12 – Panku System a definir os tipos de personagens da performance do Theru-K- Koothu e, também, a hierarquia interna das companhias. PERSONAGEM DESIGNAÇÃO KATTAI VESHAMS ou São os personagens principais: heróis, deuses ou PERIYAR VESHAMS demônios que aparecem em cena utilizando o Kattai Camankal, os ornamentos característicos do estilo na cabeça, ombros e peitoral. PEN VESHAMS São os personagens femininos principais, como Draupadi e personagens atípicos, como por exemplo, um personagem tribal. Tradicionalmente, o ator que interpreta papéis femininos vem da casta Kuttatijati, proveniente da comunidade Devadasi, e é comum que agregue a seu nome a palavra Nayakkar. Atualmente, esta escolha leva em consideração os traços e trejeitos mais femininos dos atores, além da casta. TIRES VESHAMS ou Personagens importantes que não usam o Kattai CHINNA VESHAMS Camankal, mas uma túnica curta, como por exemplo, Krishna. TOLI VESHAMS Personagens femininas secundárias, como servas.

81 No original: A third way in which the improvised prose dialogue is very essential to Terukkuttu is comic relief. Since most of the episodes presented are in a rather serious tone, humor is introduced through the vacanam. Much of this has contemporary relevance and consists of jokes or puns relating to the local or more general political and/or social scene (FRASCA, 1990 apud VARADPANDE, 1992, p. 43).

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KATTIYAKARAM Narrador, cômico. OUTROS Sacerdotes, camponeses, crianças, animais etc. Fonte: FRASCA, 1990 e DE BRUIN, 1999.

Figure 28 – Na primeira foto vemos um Kattai Vesham, representando o personagem Bhima, recebendo ajuda do Kattiyakaran para colocar seu Kattai de cabeça. Na segunda foto, vemos o ator especializado em papéis femininos, o Pen Vesham, se preparando para encarnar Draupadi. Companhia Sri Thantoniamman Therukkoothu Nadaga Sabha. No vilarejo de Akkur. Fotos: Edilson Castanheira.

Figure 29 – Na primeira foto vemos o Kattiyakaran em cena com o Kattai Vesham, representando o rei, pai de Abhimaniyu. Na segunda foto, vemos um Tires Vesham, representando Krishna, um Pen Vesham, interpretando Sundari, noiva de Abhimaniyu e o Kattiyakaran. Companhia Sri Thantoniamman Therukkoothu Nadaga Sabha. No vilarejo de Akkur. Fotos: Edilson Castanheira.

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Figure 30 – Aqui podemos ver dois Kattai Veshams e as similaridades e diferenças na ornamentação e maquiagem. O primeiro é da companhia Kattaikkutu Sangam, estilo Perunkattur. O segundo é da companhia Companhia Sri Thantoniamman Therukkoothu Nadaga Sabha. Fotos: Edilson Castanheira.

Figure 31 – Entre os Kattai Veshams e Pen Vesham, ao centro, está o Kattiyakaran, da companhia Kattaikkuttu Sngam, representado por Duraisamy, filho de P. Rajagopal, ao final do episódio Draupadi Vastrapaharanam. Foto: Edilson Castanheira.

Além dos intérpretes, que variam entre 15 a 20, toda companhia conta com um melam, uma orquestra musical fixa, formada por dois grupos de instrumentos: dois melódicos e dois rítmicos. O melam do Theru-K-Koothu tem conexões com os melams das cerimônias rituais que ocorrem em profusão no ambiente rural, mas também com o melam clássico do Bharatanatyam. Ainda

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que os padrões de execução musical sejam diferentes em grau de complexidade e tônica, ambos se inserem no sistema de música Carnática, próprio do sul da Índia. Dentre os instrumentos melódicos, o mais importante é a mukavinai, tocada por um membro da casta Navitar. Esta pequena flauta possui um som poderoso e estridente que dá sustentação à entonação “high pitch” dos atores, característica do Theru-K-Koothu, feito ao ar livre e sem uso de microfones. Depois, temos o harmonium ou petti, como é chamado pelos artistas de Theru- K-Koothu, tocado por um músico da casta Velalar Mutaliyar. Este instrumento, introduzido há menos de cinquenta anos e de influência cristã, dá suporte melódico a mukavinai, com o benefício adicional de permitir ao músico, cantar junto aos demais membros da trupe. Os instrumentos rítmicos são a mridangam-dholak folclórica, que difere da mridangam clássica, tocada por um membro da casta Palli ou Vanniyar. É, sem dúvida, o instrumento que dá a tônica emocional da performance, e sua presença e modos de execução estão diretamente associados à propiciação de estados de possessão (avesams) em toda cultura folclórica do estado e no Theru-K- Koothu. Este é um instrumento composto, formado por duas mridangams, uma na posição vertical, que acaba sendo chamada de dholak, para marcar a diferença, com apenas uma face disponível; e outra na posição horizontal, com duas faces disponíveis. Na face direita da mridangam, que está na horizontal, é colocado uma pequena vareta de bambu que quando bate no couro, produz um estampido alto e staccato, muito característico da musicalidade do sul da Índia e fundamental para a tônica grandiloquente do Theru-K-Koothu. O último instrumento é a talam, um címbalo de metal que serve, justamente, para manter o ritmo entre todos os musicistas e cantores, podendo ser tocada por um dos atores que executam papéis secundários, pelo Vattiyar ou outro membro da companhia treinado para isso, não necessariamente um músico especialista. É presente em toda cultura musical indiana, do clássico ao folclórico, de norte a sul. Executando, por vezes, intrincados padrões rítmicos junto da mridangam, no estilo Bharatanatyam, mas tendo uma atuação mais comedida no Theru-K-Koothu.

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O Theru-K-Koothu não utiliza microfones e isso implica no uso de uma entonação vocal bastante alta. As falas são dadas em tom estridente, elas parecem gritadas, mas, na verdade, estão sempre de acordo com a tonalidade estabelecida pelo mukavinai (flauta), que varia de um Fá, Fá Maior (mais comuns) a um Sol e Sol Maior (consideradas bem altas para voz). Quando perguntei a De Bruin qual a diferença entre o estilo Perunkattur e Purisai, ela prontamente respondeu que uma das diferenças mais significativas é que no estilo Perunkattur, a tonalidade é mais alta que aquela utilizada pela Purisai. Entretanto, quando perguntei a Palani, ele negou essa diferença e disse que ela não se deve à tonalidade, mas ao modo de emissão vocal e de entonação de cada uma das companhias, que é mesmo diverso. Do que pude observar, não notei diferenças significativas, mas talvez meu ouvido ainda não esteja treinado o suficiente para perceber algo tão sutil que esbarra, também, no entendimento da língua, algo que infelizmente, está fora de meu alcance.

Figure 32 – Nesta foto vemos P. Rajagopal, fundador do Kattaikkuttu Sangam liderando o canto junto à orquestra formada por alunos da instituição. Aqui é possível ver o petti, a mukavinai, a mridangam-dholak e a talam nas mãos de um dos alunos, em pé, ao fundo. Os demais alunos participam do coro, respondendo à chamada do Vattiyar Rajagopal. Foto: Edilson Castanheira.

Como já foi dito muitas vezes, o Theru-K-Koothu é feito ao ar livre e seu espaço de realização é construído pelos patrocinadores da apresentação dentro da vila, contando com materiais e uma estrutura simples, mas muito funcional. Aos fundos, separado da área de atuação por um tecido ou algo similar, temos o Kottakai, o camarim. Bem à sua frente, sobre uma plataforma chamada de Mel

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(alto), temos o local onde ficará a orquestra e o coro. À sua frente, no nível do chão (kil), vê-se a arena onde os intérpretes atuarão, o sapai. O público senta- se nas duas laterais e na frente. Toda a movimentação dos atores é bastante frontal, com idas e vindas para frente e para trás incluindo, às vezes, movimentações laterais ou grandes círculos pelo espaço. Apenas quando há mais de um personagem em cena, os atores exploram a triangulação para abrir a cena e garantir uma maior visibilidade por parte do público. Em alguns momentos específicos, os atores que executam papéis centrais (Periyar/Kattai Veshams), sentam-se no mesmo plano da orquestra numa pose extática, quase como as estátuas que ficam nas entradas dos templos, os guardiões dos pórticos, com quem – aliás – tem uma íntima e simbólica conexão.

Figure 33 – Imagem de um guardião que protege a entrada dos templos ou a entrada do sanctu sanctorum de determinadas divindades regionais, muitas delas, Ammans. Aparece com muita frequência nos templos do sul da Índia, em especial, nos templos das áreas rurais. Este é de um templo na zona rural da cidade de Pondicherry e é nítida sua semelhança com as vestimentas dos Kattai Veshams do Theru-K-Koothu e com a pose que eles executam quando se sentam na plataforma onde ficam os músicos e o coro. Foto: Edilson Castanheira.

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Esta imagem é muito interessante porque além de estabelecer uma conexão clara entre o Theru-K-Koothu e a tradição religiosa que vigora nas áreas rurais, associando seus intérpretes aos guardiões dos pórticos dos templos, àqueles que transitam entre o espaço sagrado e profano, descendentes dos grandes heróis míticos do estado (como Mahaveeran, herói mítico do estado de Tamil Nadu); também os associa diretamente ao culto das Ammans, as divindades femininas em torno das quais giram o ciclo de festividades sazonais - os Paratams, criando outra explicação plausível para o fato de, numa tradição teatral masculina, cujo enredo central é guerra e mortandade, o personagem principal ser, justamente, uma mulher, uma princesa, uma divindade: Draupadi. A iluminação é aquela que estiver disponível. Antigamente, ela era feita com fogo, depois com gás e, atualmente, com energia elétrica na maioria das vilas. O dado mais relevante com relação à iluminação, é a importância que ela teve no desenvolvimento das maquiagens e costumes do estilo, o que veremos mais adiante. A iluminação quente da chama da lamparina dava aos costumes e maquiagem um efeito mais interessante do que aquele propiciado pela iluminação fria utilizada hoje. Essa mudança de tipo de iluminação também acarretou mudanças no design e na coloração das maquiagens, dos figurinos e adereços. Cada apresentação de Theru-K-Koothu segue explicitamente os desejos de sua audiência, leia-se, seus patrocinadores, o que recebe o nome de Kiramattin Ishtam. São eles quem escolhem os episódios que serão encenados horas antes do início da performance (!), podendo até escolher qual ator deverá representar esse ou aquele papel, segundo sua reputação como intérprete. É papel do Vattiyar visitar a vila onde a performance ocorrerá para colher informações sobre seus moradores, peculiaridades que poderão ser utilizadas durante a performance em cenas improvisadas, garantindo a total satisfação de seus contratantes. Cabe às companhias se ajustar a essas demandas que, ao que parece, não causam nenhuma apreensão ou incômodo aos artistas. Ao contrário, esse procedimento está naturalmente inserido na organização interna dos grupos, que tem pré-levantado uma diversidade enorme de episódios que, com pequenos

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ajustes no calor da hora, podem ser apresentados. Do mesmo modo, o corpo artístico é flexível o suficiente para fazer ajustes nos personagens, mudanças de atores para atender o desejo de suas plateias, desde que o pedido respeite a hierarquia interna da companhia (Panku system), encurtar ou alongar determinadas partes do texto. Para mim, esse fato corrobora plenamente a hipótese defendida por De Bruin (1999) em seu livro sobre a flexibilidade ser a característica mais marcante do estilo. É fato inegável que, poucos de nós, intérpretes ocidentais, seríamos capazes de tais ajustes horas antes de entrar em cena, e que tal proeza só é possível porque o modo de preparação e treinamento dos artistas já inclui essa flexibilidade em seu bojo, com doses generosas de improvisação, rotatividade de papéis, maleabilidade no uso dos materiais textuais e uma série de micro ações e posturas de trabalho que criam toda uma mentalidade, toda um cultura móvel e adaptável.

3.5.3 KATHA, KUTTU E AVESAM: HISTÓRIA, ENCENAÇÃO, POSSESSÃO

É comum que os artistas de Theru-K-Koothu façam uma distinção entre a performance do estilo (Kuttu), envolvendo o uso de dança, drama, música, maquiagem etc., e os materiais textuais que compõem as performances (Katha, que significa história). As Kathas, que não podem ser confundidas com os Kattais (ornamentos), fazem parte de um repertório oral passado de geração a geração, memorizado, mas aberto o suficiente para absorver improvisações, ajustes e demandas “de última hora”. As histórias podem ser contadas de duas formas: de modo narrativo, em verso e prosa, ou cantado. Quando ela é narrativa, recebe o nome de Katai; e quando é cantada, recebe o nome de Pattu (canção). Frasca (1990, p. 5) pontua que o Theru-K-Koothu, como o conhecemos hoje, é uma evolução de formas primitivas de narrar os épicos conhecidas no estado de Tamil Nadu, sabida como Avinayam, que remete claramente ao termo sânscrito Abhinaya, a arte de contar histórias através dos gestos de mão codificados e das expressões faciais, descrito no Nataysastra. A evolução do Theru-K-Koothu partiria, portanto, do Katha: tradição de narrar os épicos em verso; passando pelo Pattu: tradição de recitar os épicos com algum suporte

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musical; até o Kuttu: tradição de encenação dos épicos com o uso de elementos cênicos. Como uma forma de Kuttu, performance dramática completa, o estilo possui algumas características marcantes: a primeira delas é o uso da cortina, convenção das mais importantes dentro da performance Theru-K-Koothu, utilizada para marcar a entrada e apresentação dos personagens principais. A entrada de um personagem é marcada por uma sequência de canto e dança pré- determinada, permitindo certo grau de improvisação por parte do intérprete, conhecido como Tirai Virutam. Ela é feita em duas etapas: na primeira o personagem, atrás da cortina, apresenta-se em terceira pessoa. Esta etapa se encerra com o cair da cortina e a primeira aparição do personagem, que é seguida de uma nova canção, ainda em terceira pessoa, conhecida como Piravesa Pattu. Na segunda etapa, que se segue à primeira, conhecida como Totarpu (continuação) o personagem estabelece um diálogo em canto ou em prosa com outro personagem que já esteja em cena, quase sempre o Kattiyakaran, o narrador-cômico. Neste segundo momento, o personagem apresenta-se na primeira pessoa. O uso variado da primeira e da terceira pessoa durante a narrativa é outra característica marcante do Theru-K-Koothu, que não é vista em outras formas dramáticas folclóricas, em que o uso da primeira pessoa predomina. A terceira pessoa aparece também em sequências de narração em prosa conhecidas como Pottu Vacanam, quando o personagem conversa com outro(s) personagem(s) referindo-se, a si mesmo, como “ele”, “o rei”, “o herói” etc. Seu corpus musical é formado por uma coletânea de canções populares, compostas em ragas, sistema de tonalidades próprios do Sul da Índia, e talas, padrões rítmicos folclóricos associados ao sistema musical Carnático. Os atores recitam e entoam as canções (Tharu), acompanhados pelo coro e pela orquestra, e depois improvisam diálogos (Vacanams) a partir do episódio do Mahabharata escolhido para ser encenado naquele dia. As sequências de Viruttams e Pattus (canções e recitações em terceira pessoa) vão se alternando com os Vacanams (diálogos em primeira pessoa) para garantir um equilíbrio entre canto, recitação e os diálogos propriamente ditos. A técnica de emissão vocal, em todos os casos,

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remete ao estilo tradicional de recitação de histórias do sul da Índia, como bem pontua Varadpande:

O discurso em prosa também é emitido usando "ritmos moderadamente exagerados em comparação ao rítmo normal da fala" ou de uma maneira cantada ou "quase cantada empregando um estilo de recitação que é típico do modo tradicional de contar histórias no sul da Índia" (VARADPANDE, 1992, p. 42)82.

Os elementos que estruturam a dramaturgia e performance Theru-K- Koothu, recebem o nome de Jatais:

1) Vandanam: invocação aos deuses, geralmente Ganesh, mas outra divindade local pode ser escolhida também. 2) Tirai Viruttam: entrada do Kattai Vesham apresentando-se através de uma canção em terceira pessoa (cortina etapa 1). 3) Piravesa Pattu: canções improvisadas feita após a queda da cortina, fechando a entrada do Kattai Vesham, também em terceira pessoa, com diferentes números de linhas, padrões rítmicos e melódicos (cortina etapa 2). 4) Totarpu: quando o personagem estabelece um diálogo na primeira pessoa com o Kattiyakaran. (Final da cortina) 5) Tharu: canções em versos de 4, 8 ou 16 linhas, com acompanhamento do coro. 6) Potu Vacanam: diálogos em que o personagem fala de si mesmo na terceira pessoa para os outros personagens. 7) Vacanam: diálogos em primeira pessoa 8) Mangalam: canção de agradecimento a uma divindade.

Embora eles estejam numerados, essa numeração não se refere a uma certa ordem dos acontecimentos, com exceção do Vandanam e do Mangalam que são, respectivamente, a abertura e o fechamento; os demais elementos vão

82 No original: The prose speech is also delivered using ‘moderately exaggerated rhythms of normal speech’ or in a sing-song manner or ‘almost chanted employing a style of prose recitation which is common in the traditional style of storytelling in South India’ (VARADPANDE, 1992, p. 42).

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aparecendo segundo a necessidade da própria narrativa, do episódio que está sendo encenado. É certo que os números 2, 3 e 4 aparecem juntos porque fazem parte do recurso cênico da cortina que, entretanto, pode ser utilizado mais de uma vez num mesmo episódio, marcando a entrada de outros Kattai Veshams, na preparação de cenas de batalha ou ainda na famosa cena do desenrolar do saree de Draupadi. É nesse contexto que a história é encenada, se valendo de estruturas dramatúrgicas fixas, como as apresentadas, intercaladas com diálogos mais ou menos improvisados e canções. As cenas que acontecem atrás da cortina ou logo após sua queda são as mais energéticas e vigorosas do estilo, com muitas piruetas, giros em torno do próprio eixo (Kirikkis) tão característicos do estilo, valorizando o caráter heroico e grandiloquente da performance Theru-K-Koothu. Segundo Frasca (1990, p. 10) não é incomum, portanto, que os casos de transe e possessão (Avesam), por parte de atores e audiência, ocorram nestes momentos de grande intensidade cênica. Frasca complementa:

Na discussão mais detalhada apresentada nesta seção, será visto que o fenômeno da entrada da cortina com sua voz narrativa em terceira pessoa é um movimento periódico para a esfera do pattu (recitação) e para fora novamente, quase como se a própria katha (história) estivesse exercendo uma força centrípeta para manter os vários modos de desempenho em uma relação contígua. As entradas da cortina, portanto, representam a "explosão" de pattu em kuttu (drama), uma descrição que é fenomenologicamente mais apropriada, se notarmos seu poderoso impacto performativo (...). As entradas, por consequência, são de longe as mais intensas e potentes sequências de qualquer kuttu (FRASCA, 1990, p. 62)83.

Os modos de desempenho de que Frasca fala são a Katha (história) e sua íntima relação com o Pattu (recitação) e o Kuttu (drama), o que aparece, com muita clareza, na estrutura narrativa das cenas de cortina. Seriam esses artifícios performativos também os responsáveis por, criando um efeito cênico potente, abrir caminho para o Avesam. Complementando a observação de Frasca,

83 No original: In the more detailed discussion presented in this section, it will be seen that the phenomenon of the curtain entrance with its third-person narrative voice is a periodic movement into the sphere of pattu and out again, almost as if the katha itself was exerting a centripetal force to keep the various performance modes in a contigous relationship. The curtain entrances, therefore, represent the "explosion" of pattu into kuttu, a description that is phenomenologically most apt if one notes their powerful performative impact (...). The entrances, as a result, are by far the most intense and potent squences of any kuttu (FRASCA, 1990, p. 62).

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acrescento, que o Avesam costuma ser mais frequente em alguns episódios específicos, de grande comoção, como o episódio de Karna, do saree de Draupadi, da batalha final entre Duryodhana e Bhima, e sempre associados à curva ascendente do próprio ritual. Desse modo, a meu ver, ele não estaria diretamente vinculado aos mecanismos de aparição dos personagens, mas ao contexto maior, ritualístico, em que a jornada de Theru-K-Koothu se insere. Entretanto é inegável que a possessão ou transe, Avesam, seja outro elemento marcante do estilo, remetendo às suas conexões com toda cultura ritual anterior, especialmente do período Sangam (300 a.C. – 300 d.C.), cuja religião tinha como elemento fundamental a possessão, “[...] a crença de que os indivíduos podiam ser possuídos por espíritos caprichosos”84 (Frasca, 1990, p. 14). Uma das cerimônias rituais mais importantes deste período era o Veriyattu, a dança do frenesi. O prefixo Veri quer dizer violento, possessão poderosa por um determinado espírito ou divindade, podendo ser benigna (Teyvam), quando associada a uma divindade, e maligna (Pey), quando associada a um demônio (Frasca,1999, p. 15). Tais danças podem ser claramente associadas ao culto dos Bhutas, descrito no capítulo um, dentro do tópico Teatro do Ritual. As possessões são, ainda hoje, muito frequentemente vistas nos rituais das áreas rurais da Índia, onde a religião está em algum ponto não claramente definível entre o hinduísmo posterior e as religiões tribais primitivas, entre a pequena e a grande tradição (Santhi, 1994, p. 349), variando de região a região e unindo elementos tanto de uma quanto da outra em seu culto e modos de adoração, uma espécie de religião “liminar”, fagocitando aquilo que melhor expressa seus anseios materiais e simbólicos. Dentro dessa perspectiva, elementos que o hinduísmo clássico abandonou ou suavizou como a possessão e o sacrifício animal, aparecem com frequência nas religiões regionais, que é muito mais afeita às demandas da vida mundana (ter boa colheita, ter chuva, nascimento de filhos saudáveis etc.), do que ao desejo metafísico de liberação da alma do ciclo de renascimentos (samsara), expressa pelo hinduísmo.

84 No original: [...] belief that individuals could become possessed by the capricious spirits (…) (FRASCA, 1990, p. 14).

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É dentro desse contexto maior que a performance Theru-K-Koothu, também ela parte dessa cultura ritual da pequena tradição, absorve o conceito de possessão ou transe. Durante uma encenação, a possessão pode acontecer tanto entre atores quanto na audiência, e é mais frequente em episódios de grande comoção, como o Karna Moksham, a revelação da origem de Karna, o episódio Draupadi Vastrapaharanam, o desenrolar do saree de Draupadi ou em cenas de batalha, como o Padukalam, episódio em que o totem gigantesco de Duryodhana é destroçado num frenesi que toma conta toda a vila, com inúmeros casos de possessão, entre atores e audiência. Uma verdadeira expurgação coletiva, acessando estados diferenciados de consciência, cujo propósito maior é purificar a vila e seus indivíduos e garantir um início próspero e benfazejo para o novo ciclo agrário, trazido pelas monções de final de maio. É a chuva caindo para acalmar a terra rachada, depois do alto verão e apaziguar os espíritos que regem a dinâmica da vida no ambiente rural. A possessão que ocorre numa performance de Theru-K-Koothu pode ser autêntica ou presumida, ambas consideradas válidas e aceitáveis no contexto do estilo. A autentica é mais frequente nas encenações rituais, consideradas pontos críticos do ritual por aglutinarem grandes quantidades de energia ou calor (heat), como na aparição de Mahaveeran, que envolve – inclusive – sacrifício animal, uso de fogo e outros elementos “canalizadores” de uma possessão autentica, que engloba desde a perda parcial à perda total da consciência, mas elas também podem ocorrer nas jornadas de Theru-K-Koothu, naqueles episódios de grande apelo emocional que, sabidamente, serão “enriquecidos” por experiências de possessão por parte dos intérpretes, mas, principalmente, por parte da audiência. Já na possessão presumida, os envolvidos não perdem a consciência de seus atos, mas agem “como se” estivessem tomados por uma energia, por uma entidade, uma divindade. Nesses casos, que envolvem tanto o público quanto os intérpretes, é comum que se movam de modo desordenado, que puxem os cabelos, arranquem as roupas, simulem desmaios, enquanto gritam o nome da entidade possessora, num misto de convocação e identificação. Esses indivíduos são amparados pelos seus pares e levados para dentro do templo

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onde podem se refazer da experiência extra cotidiana. De Bruin se refere a esse tipo de possessão como “professional possession” (1999, p. 130). Em ambos os casos, entretanto, a possessão cumpre a função de acalmar a divindade, extravasar a tensão, comumente chamada de “heat”, que precisa ser canalizada e manifesta, uma energia em estado bruto, em essência criativa e destrutiva. Não é à toa, portanto, que Draupadi Amman é, muitas vezes, representada pelo seu avatar Virapancali, uma divindade guerreira e destrutiva, que remete ao duplo espectro da deidade: divina e demoníaca. A possessão no Theru-K-Koothu é um instrumento de apaziguamento e controle dessas energias, com a garantia de que elas sejam canalizadas, afinal, para propósitos benéficos e construtivos no íntimo de cada indivíduo e no âmago de suas comunidades. A possessão é um momento de extrema exaustão e entrega, se autentica ou presumida, o que importa é o que ela simboliza e conjura, pelo que é ansiosamente aguardada. Entre os intérpretes, há dois tipos mais comuns de possessão profissional: as violentas e as extáticas. As violentas são aquelas que acontecem em encenações que narram batalhas, guerras, disputas, conflitos e são mais comumente vistas em personagens masculinos, os Kattai Veshams. O grau de violência, entretanto, irá depender não apenas do tipo de narrativa, mas da natureza íntima do personagem. Há uma grande diferença entre a possessão de Duchassana, a representação máxima da crueldade, e a de Karna, a representação do Dharma. A maquiagem e os ornamentos, no caso dos Kattai Veshams, são também considerados importantes catalizadores desse estado de possessão. Assim como a possessão de Draupadi, quando evoca Krishna para salvá- la no episódio do desenrolar do saree é uma possessão suave, quase um estado de transe, que remete claramente ao conceito hindu de bhakti (devoção). Entretanto, não podemos nos esquecer que esta mesma Draupadi será vista, ao final do festival, possuída, lavando seus cabelos no sangue da coxa de Duryodhana. É como se, gradativamente, a personagem do Mahabharata fosse se dissolvendo e a divindade agrária primitiva, com toda sua brutalidade, se revelasse. Talvez essa seja a demonstração mais bela e contundente do

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processo de aglutinação cultural que uniu, no universo performativo do Theru-K- Koothu, aspectos muito díspares da cultura tamil e pan-indiana: o culto primitivo das divindades femininas ao épico dos heróis do Mahabharata. De Bruin pontua, entretanto, que nas encenações condensadas, aquelas que ocorrem fora do ciclo de festividades, com duração reduzida, não se constroem as condições mínimas para o aflorar desses estados de transe e possessão:

Além disso, ele diz que o fenômeno não ocorre durante performances condensadas (embora possa ser "falseado" lá), que geralmente são encenadas fora de um contexto de performance ritual (SWAMINATHAN, 1992, p. 41 apud DE BRUIN, 1999, p. 139)85.

A música também cumpre um papel importante nesse processo, em especial a mridangam-dholak (percussão). Como em muitas outras culturas tradicionais, os instrumentos percussivos estão associados ao transe e à possessão, funcionando como facilitadores desse estado ou evocadores das energias que permitirão sua ocorrência, o que também pode ser visto no Theru- K-Koothu, sempre associado à tônica da própria encenação, ao contexto maior de um ritual ou festividade na qual se insere e a própria atuação dos intérpretes, os canais por onde a energia flui para toda a comunidade presente. O Avesam é, portanto, uma reminiscência do ritual, uma ferramenta performativa e o ponto alto de interação com o público. Vejamos o que nos fala a esse respeito Hollander:

O ponto alto do Therukoothu é sua propensão para o transe e a capacidade de transferi-lo para os membros do público, o que o torna mais valorizado e perpetua seu status. Para um membro da audiência, o ponto alto do envolvimento emocional é entrar em transe. Como por exemplo, o transe de membros do comitê em suas danças de rua como Pandavas, essa intensa perda de controle sinaliza a importância do evento - ele autentica o poder da história apresentada. O transe no contexto de Therukoothu é apropriadamente referido em Tamil como "Aavesam" ("Fúria") e é mais comum na encenação do violento "Desenrolar do saree de Draupadi" (HOLLANDER, 2007, p, 101) 86.

85 No original: Furthermore, he says that the phenomenon does not occur during condensed performances (though it may be "fake" there), which are usually staged outside a ritual performance context (SWAMINATHAN, 1992, p. 41 apud DE BRUIN, 1999, p. 139). 86 No original: Therukoothu star system, it is his proclivity towards trance and his ability to transfer it to members of the audience that is most valued and perpetuates his star status. For an audience member, the high point of emotional involvement is to go into trance. As with the committee

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Tive a oportunidade de vivenciar isso em 2007, quando assisti o espetáculo Prahalada Charitram87 com a companhia Koothu-P-Pattarai, numa versão moderna do episódio Theru-K-Koothu. O ator que interpretava Narasimha foi tirado de cena carregado, aos gritos, enquanto as luzes iam caindo sobre o corpo dilacerado de Hyrania e a música subia num final apoteótico. Sua máscara só foi retirada dentro do camarim, num processo ritual e ele não pode voltar para os agradecimentos. Durante muito tempo me perguntei se aquilo teria sido mesmo um caso de transe real ou apenas uma encenação esperada e consentida pelo coletivo. Somente agora, estudando a tradição Theru-K-Koothu, entendo que real ou presumido, a experiência do transe é fundamental para a obtenção do efeito psíquico e ritual que esta forma de arte almeja alcançar e, portanto, sua veracidade ou não, em termos psicológicos ou espirituais, é secundária. Há segredos em que a razão não cabe.

Figure 34 – Nesta foto, vê-se a tradicional máscara de Narasimha, numa versão moderna do episódio Prahalada Charitram encenado pelo Koothu-P-Pattarai. Concepção: K. R. Rajaravivarma. Direção: N. Muthuswamy. Foto: arquivo Grupo Caldeirão.

3.5.4 TRADIÇÃO LITERÁRIA, TRANSMISSÃO DE SABERES E TÉCNICAS PERFORMATIVAS

member´s trance in their street dances as Pandavas, this intense loss of control signals the importance of the event – it authenticates the power of the story presented. Trance in the Therukoothu context is aptly referred to in Tamil as ‘Aavesam’ (‘Fury’) and is most common in the staging of the violent ‘Disrobing of Draupadi’ (HOLLANDER, 2007, p, 101). 87 É possível ver trechos do espetáculo no material audiovisual complementar, cedido pelo Prof. Dr. K. R. Rajaravivarma, diretor da montagem no Koothu-P-Pattarai.

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Os Vattiyars são os grandes responsáveis pela transmissão de saberes e técnicas no estilo Theru-K-Koothu. São eles que dão instrução aos jovens atores; que treinam atuantes advindos de outras companhias para adequação do estilo próprio da companhia numa ampla gama de saberes envolvidos: canções, texto em prosa, música, dança, maquiagem, mas também os aspectos rituais inerentes à tradição. É ele quem garante que o material textual de cada episódio seja adequadamente memorizado e o estilo único de encenação de sua companhia seja preservado, através da execução correta de gestos, passos de dança, entonação vocal, maquiagem etc. Sua atuação, como mestre, se dá em várias camadas diferentes, inclusive como intérprete, servindo de exemplo para seus atores. Por se tratar de uma tradição não sistematizada, o processo de treinamento tem uma estrutura muito simples: aprender observando e fazendo. É sobre esses dois pilares, observar e fazer, que se sustenta toda a “técnica” de transmissão de conhecimento do estilo. Apesar disso, é possível dividi-la em dois grupos: o treinamento voltado para a transmissão do material textual (a memorização dos episódios) e o voltado para o desenvolvimento das técnicas performativas, ainda que eles ocorram concomitantemente. Originalmente, os textos eram registrados em folhas de palmeira e, segundo Frasca (1990, p. 38), apenas nos últimos cinquenta anos eles passaram a ser registrados em papel. Ao contrário de outras tradições rituais, cujos textos eram guardados nos templos, os textos base (os Kathas, histórias) do Theru-K- Koothu sempre ficaram em posse dos Vattiyars de suas linhagens, o que ajuda a explicar porque eles ainda existem, ao contrário dos Kathas de outras tradições, que foram depositados nos templos e pereceram por falta de cuidados adequados. Seja numa folha de palmeira ou numa folha sulfite, tais textos são como uma relíquia muito preciosa para suas linhagens, sendo muito bem guardados por seus líderes e tendo seu acesso restrito ao Vattiyar e a um ou dois atores mais importantes, geralmente ligados por laços de parentesco ao Vattiyar. Eles representam a seiva que mantém viva a tradição, a linhagem e precisam ser preservados de adulteração e cópia a todo custo.

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Por isso, originalmente, sua transmissão era feita de pai para filho. Quando um Vattiyar percebe que é chegado o momento de preparar um novo líder, não havendo a possibilidade de a transmissão ser feita para um filho, ela será feita para o membro mais próximo da linhagem de parentesco. Na Purisai, vemos o exemplo de Palani Murugan que, embora seja sobrinho-genro de Sambandan, está sendo preparado para assumir sua posição num futuro próximo. Isso porque Sambandan não teve filhos homens e Palani assume o direito duplamente qualificado de ocupar esse lugar, como sobrinho e genro. Entretanto, há ocasiões em que esses textos são passados para Vattiyars de outras companhias, como forma de expandir a influência de uma linhagem numa determinada região, ligando companhias menores ou recém-criadas a companhias mais estabelecidas, com o compromisso de se manterem fiéis ao “estilo Purisai”, por exemplo. Elas também podem ser vendidas por dinheiro, mas isso raramente ocorre (Frasca, 1990, p 39): mais comum é que um ator saia de uma companhia, vá para outra e acabe levando com ele (na memória ou em papel, com a facilidade moderna de se fazer cópias) todo aquele corpus literário. Como o fluxo de atores entre companhias acontece com muita frequência, o resultado é que este material textual é muito similar entre elas, tendo apenas mudanças pontuais que não modificam a trama central – sempre preservada. Tais pequenas mudanças, a introdução de uma canção, um diálogo ou uma cena improvisada, são uma forma de dar um toque pessoal do Vattiyar ao material adquirido, criar uma interpretação única, que os diferencie das demais companhias, chamando atenção para seu sub-estilo, dentro dos estilos do norte (Purisai, Perunkattur e Cattuperi Rakavan). Entre as companhias semiprofissionais e amadoras, é comum que se utilize as versões publicadas desses materiais, recolhidas no começo do século XX por B. Irattina Nayakar and Sons (Frasca, 1990, p 40), ou ainda trechos aprendidos com Vattiyars de companhias profissionais, cópias nem sempre autorizadas, uma vez que muitos desses atores receberam algum tipo de treinamento nessas companhias nos muitos workshops que elas realizam, como estratégia econômica de sobrevivência. Ou seja, esses workshops funcionam

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como disseminadores desses conteúdos e, também, das técnicas, mas nem sempre de forma tão controlável quanto se desejaria. Existem entre 200 a 300 episódios registrados em papel, sejam aqueles que estão em posse das companhias, sejam os publicados em larga escala, o que é um número impressionante para uma tradição majoritariamente oral em seus métodos de transmissão. Entretanto, cada Vattiyar domina algo entre 20 a 25 episódios completos, que recebem seu toque e ajustes pessoais, conforme as demandas de seu estilo. Vale lembrar que um único episódio precisa de uma noite inteira para ser apresentado, e que ter cerca de 20 a 25 deles memorizados, ainda que os textos estejam lá para consulta, envolvendo outros atores e músicos e tudo aquilo que compõe a performance, é uma atividade também bastante complexa e crucial para a sobrevivência do estilo. Segundo Frasca (1990, p, 57), os episódios podem ser divididos em quatro categorias: (1) Amman Kuttus (histórias relacionadas às divindades femininas), (2) Cantai Kuttus (histórias de batalhas), (3) Kalyanam Kuttus (histórias de casamentos) e (4) Moksha Kuttus (histórias de liberação espiritual). É comum que uma jornada de Theru-K-Koothu comece com Kalyanam Kuttus, evolua para Amman Kuttus e finalize com episódios de Cattai e Moksha Kuttus. Frasca (1990, p 62) pontua a importância simbólica do casamento e da guerra como eventos auspiciosos ou danosos para as vilas. Os casamentos marcam os vínculos e as conexões que garantem a manutenção da vida prática e dos valores de certos grupos sociais no ambiente rural, não é à toa, portanto, que haja tantos episódios de casamentos no Theru-K-Koothu, e um episódio tão emblemático quanto aquele no qual a castidade da heroína, no caso Draupadi, é afrontada. A ofensa justifica a guerra e a guerra leva à morte, mas também à liberação espiritual daquele que lutou “[...] de acordo com seu dharma”88, estabelecendo o padrão de conduta moral e ética que deve regular, também, o dia a dia. Frasca (1990, p. 64) complementa frisando que tanto o casamento quanto a guerra são formas de controle social, tanto na micro quanto na macroesfera, respectivamente, e por isso aparecem com tanta frequência no

88 O conceito de dharma, na cultura de Tamil Nadu, tem uma dupla acepção: é o dever moral do herói (Kshatriya, casta dos guerreiros) que luta para manter sua honra e a dos seus, e é, também, a sina, o destino ao qual somos impelidos e não devemos questionar.

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Theru-K-Koothu. Este também uma ferramenta social de controle, para além de suas dimensões rituais e de entretenimento. Apresento agora uma lista dos episódios mais encenados e conhecidos dentro do Repertório do Theru-K-Koothu. Seguindo as indicações de Frasca (1990), eles serão apresentados na seguinte ordem: episódios de casamento, episódios de divindades, episódios de liberação, episódios de guerra e outros que não se enquadram nessa categorização.

• Draupadi Kalyanam ou Tiraupatai Kalyanam (O Casamento de Draupadi/Tiraupatai) • Supattirai Kalyanam (O casamento de ) • Abhimanyu Sundari Thirukkalyanam • Alli Arjunan (O casamento de Arjuna e a rainha guerreira Alli) • Pancali Capatam (Os votos de Draupadi) • Rajasoya yakam (O sacrifício real) • Draupadi Vastrapaharanam (O desenrolar do saree de Draupadi) • Madupini Sandai (A retomada do rebanho) • Keechaga Samharam ou Kichaka Vadha (A morte de Kichaka) • Krishnam Titu (A missão de Krishna) • Arjuna Tapasu (O sacrifício de Arjuna) • Karna Moksham (A liberação do ciclo de encarnações) • Abhimaniyu Cantai (A derrota de Abhimaniyu) • Patinettam Por (A batalha do 18º dia) • Padu Kalam (A batalha final) • Draupadi Kuravanchi (Os nove grãos queimados) 89

Além destes, existem muitos outros episódios e cabe a cada vila- patrocinador selecionar aqueles que deseja que sejam encenados durante o festival, celebração ou evento auspicioso. Esta lista representa os que são mais requisitados, seja pela temática, seja pelo apelo emocional, seja por sua importância para o ritual. Embora, tradicionalmente, os episódios sejam extraídos do Mahabharata, há caso de alguns que são tirados do Bhagavatam que envolvem a figura de Krishna e que podem ser adicionados a uma jornada de Theru-K-Koothu, caso os patrocinadores assim desejem e possam arcar com

89 No original: The plays enacted are Draupadi Kalyanam (The marriage of Draupadi), Supattirai Kalyanam (The marriage of Subhadra), Alli Arjunan (The marriage of Arjuna and the Warrior Queen, Alli), Pancali Capatam (The vow of Draupadi), Arjun Tapam (Arjuna´s Tapas), Krishnan Titu (The mission of Krishna), Abhimanyu Cantai (The defeat of Abhimanyu), Karna Mokshyam (The defeat of Karna) and Patinettam Por (The battle of the eighteenth day) (VARADPANDE, 1992, p. 40).

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os custos adicionais. Eles não figuram no repertório principal, mas são amplamente conhecidos, como é o caso de Prahalada Carittiram, a história de Prahalada, que costuma ser encenado em celebrações e eventos menores e que tem um forte apelo emocional para o público, já que trata da história de um menino que é mandado a morte pelo próprio pai e salvo por Narayana (Vishnu, na forma Narasimha, metade homem e metade leão).

Figure 35 – Versão moderna do épico “Prahaladra Charitram” encenado pelo grupo Koothu-P-Pattarai, na sua sede em 2007, durante realização de Intercâmbio Cultural junto ao Grupo Caldeirão (Brasil). Esta é a cena ápice do episódio, quando Narasimha mata Hiraniya Kasippu, pai do menino Prahalada que aparece de joelhos. Trata-se de uma releitura da companhia de uma tradicional encenação Theru-K-Koothu, acrescida de elementos teatrais modernos. A concepção geral é de K. R. Rajaravivarma. A direção é de Na. Muthuswamy e os atores são Vidaarth (Narasimha), Hariharan Ganapathy (Hiraniyan) e Somasundaram (Prahalada). Foto: arquivo Grupo Caldeirão.

Com relação às técnicas performativas, portanto, elas se dividem em dois grupos: aquele que se encarrega da transmissão do corpus literário do estilo, o que inclui, além da memorização do texto-base de cada episódio, com sua melopeia e entonação específicas, a memorização de um vasto repertório de canções; e aquele que se dedica à transmissão dos movimentos característicos, posturas e passos de dança, que se contrapõe aos momentos de narração,

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quase como um interlúdio, abrindo um outro tempo-espaço no tempo-espaço da narrativa. Do ponto de vista da música que acompanha o Theru-K-Koothu, já foi dito de sua extrema importância para a performance: os músicos são os mais bem remunerados pelo Panku System; eles podem advir de outras castas, além daqueles ligadas, por direito, à prática do estilo. A música é de fundamental importância para o ritual, como “facilitadora” do Avesam (transe/possessão) e propiciadora de certo efeito emocional, de certa atmosfera adequada a cada momento da encenação. O sistema de música que prevalece no Theru-K- Koothu é o sistema carnático, próprio do sul da Índia, entretanto, sua utilização é absolutamente intuitiva: não passa por nenhum método sistematizado de estudo, como as formas clássicas de música e dança indianas que também se apoiam nesse sistema musical, sendo absorvido através da escuta, da livre percepção e da repetição. Seguindo a estrutura do sistema carnático, o estilo conta com ragas (sistemas tonais) específicos, capazes de propiciar determinados efeitos emocionais e dramáticos que melhor dialogam com a tônica épica do estilo. Segundo Frasca (1990, p. 81) são eles, por ordem de importância para o estilo: Natai, Mukari, Mohanam, Natanamakriya, Ketarakaula e Taniyasi. Talvez seja interessante pontuar que o sistema carnático conta com 72 ragas, com 7 swaras (notas musicais que formam uma escala), conhecida por S(a) R(e) G(a) M(a) P(a) D(a) N(i), aplicadas em escala ascendente e descendente. A depender de como os Swaras são dispostos, dos intervalos, da inclusão de sustenidos, bemóis etc., vão se configurando os diferentes tipos de raga, e cada um deles ou cada grupo de ragas próximos tem uma função, uma tônica emocional, podendo ser utilizados em contextos muito específicos que a cultura clássica tratou de detalhar e absorver, mas que na cultura popular tem uma leitura e uma utilização muito mais intuitiva e orgânica. O Natai90, por exemplo, é um raga de efeito heroico, grandiloquente e, por isso mesmo, muito importante para o Theru-K-Koothu, em especial nas cenas de confronto e batalha. Sua execução é associada ao rasa (sentimento) veera

90 Para saber mais sobre o uso dos Ragas no Theru-K-Koothu ver Frasca, 1990, p. 80-85.

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(heroísmo). Embora essa terminologia não seja utilizada pelos artistas populares, eles são plenamente cientes de sua existência e o que ela significa, mas ela não pode ser aplicada a uma performance Theru-K-Koothu da mesma forma como é aplicada nas performances clássicas, como, por exemplo, no Bharatanatyam. O Mukari é um raga de efeito melancólico, utilizado em cenas de grande pesar, dor e lamentação, também muito importantes para a performance melodramática do estilo. É, por exemplo, o raga utilizado por Draupadi no episódio do desenrolar do saree, quando Duchassana tenta desonrá-la em público, e está associado ao karuna rasa (sentimento de apatia, tristeza). O Natanamakriya é um raga que tem as mesmas características e é utilizado no mesmo contexto do Mukari raga, mas sua natureza sonora é mais sutil e delicada que o primeiro. O Mohanam é um dos ragas mais conhecidos e utilizados por muitas tradições folclóricas do Tamil Nadu e, também, muito importante na cultura clássica. Ele é associado a um certo sentimento de heroísmo e bons auspícios. Sua escala pentatônica aparece em várias culturas tribais primitivas da Índia, que nos remete a sua presença no sistema musical do sul da Índia que precedeu o carnático, o sistema pan. Ele é mais suave e delicado que o Natai raga e se aplica melhor a cenas com mais improvisação melódica. Dependendo de como é utilizado, pode evocar pesar e dor, o que também o associa ao Mukarai raga. Frasca salienta o modo intuitivo como essa tradição aparece delineada no Theru-K-Koothu e nos modos de transmissão do conhecimento entre seus artistas, essencialmente orais:

Em quase todos os casos em que os informantes foram solicitados a identificar as svaras exatas de ragas que estávamos discutindo, elas não puderam fazê-lo. No entanto, eles podiam cantar instantaneamente as distintas escalas ascendentes e descendentes dos ragas Mohanam, Pairavi, ou qualquer um dos outros terukkuttu ragas que eles eram proficientes. Além disso, eles também eram capazes de improvisar impressionantemente em cada um deles. Na falta de um treinamento clássico, sua habilidade consiste em reconhecer os sons ou a tônica emocional dos ragas, em vez de sua estrutura (FRASCA, 1990, p. 85)91.

91 No original: In almost all of the cases in which informants were asked to identify the exact svaras of ragas we are discussing, they were unable to. However, they could sing instantaneously

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Outro aspecto musical, característico do sistema carnático que é utilizado pelo Theru-K-Koothu, é o conceito de tala (métrica, ritmo). Ele é determinante numa performance do estilo e, assim como na cultura clássica, o sucesso de uma performance está diretamente associada à capacidade dos artistas em “manter a tala” ou “estar na tala”. No Theru-K-Koothu, ela é marcada por um címbalo metálico de som agudo e estridente, cujas evoluções rítmicas tem paralelo àquelas da tradição da música clássica, mas são executadas de modo mais simples e mais acelerado – a tônica da musicalidade da matriz folclórica do sul da Índia. Os padrões rítmicos são os mesmos do sistema clássico: Tisra (3 tempos), Adi (4 tempos), Roopakam (6 tempos), Misra (7 tempos), entre outros, cujo aprendizado se dá de modo não sistemático, pela escuta e reprodução dos padrões rítmicos e da técnica necessária para executá-los no címbalo. A estrutura performativa do Theru-K-Koothu segue, portanto, uma receita bem conhecida: é uma junção de elementos melódicos e rítmicos que conduzem toda a performance, exatamente como ocorre com as formas clássicas de teatro e dança. Nesse sentido, ele segue a mesma estrutura básica de um Kathakali, por exemplo, mas sem a minuciosa e rigorosa sistematização e codificação que caracterizam o estilo clássico. Do mesmo modo, o processo de treinamento é bastante diverso do que se vê na tradição clássica, por ser, ainda hoje, essencialmente oral e assistemático. Durante minha visita à Purisai, vi Palani treinando, com alguns atores, trechos de texto em prosa e passagens musicais, sob o olhar atento de Sambandan. Ali, o que se via, era um duplo processo de transmissão de saberes: de Sambandan para Palani, de Vattiyar para sucessor, e dele para os demais atores da companhia. Um exemplo bastante claro da informalidade que envolve todo o processo de aprendizagem, que nunca poderá ser confundido com falta de conhecimento ou de estratégias eficientes de transmissão.

the distinctive ascending and descending scales of Mohanam, Pairavi, or any of the other terukkuttu ragas they were proficient in. Moreover, they were also able to improvise impressively in them. Lacking a classical training, their expertise is in the sound or emotional mood of a raga rather than its structure (FRASCA, 1990, p. 85).

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Vi também os jovens alunos de P. Rajagopal, do Kattaikkuttu Sangam, aprendendo, em cena, as tradicionais canções que aparecem no repertório do estilo Perunkattur. Ele cantava, eles repetiam em coro, alguns alunos mais velhos tocavam instrumentos e o conjunto ia sendo aprimorado no próprio ato de fazer acontecer. Ao contrário do que parece ser a tônica em outras linhagens, pude perceber que no Kattaikkuttu há uma certa sistematização do processo de aprendizagem. Os alunos estudam canto, instrumentos, dança, texto dentro de uma grade de ensino anual que acaba por criar uma certa sistematização, níveis/séries de aprendizado não vinculadas à idade, mas ao grau de experiência, divisão de áreas (canto, dança, instrumentos, maquiagem), o que não se vê nas outras linhagens. Evidentemente, o Kattaikkuttu não é uma companhia tradicional, mas um espaço artístico-educacional, e essa sistematização é uma resposta bastante lógica a esse approach mais pedagógico. Ademais, não podemos esquecer que ele é dirigido por uma estrangeira, e que o modo como é organizado e administrado foge completamente à tradição. Talvez esse seja só mais um dos motivos que geram tanta desconfiança e desconforto com a proposta do Kattaikkuttu entre seus pares, pela maneira como ele “intervém” na tradição, de modo a chacoalhar rígidos paradigmas e conceitos. Com relação ao treinamento corporal, ele segue a mesma lógica do treinamento musical e textual. É mais intuitivo do que sistematizado e embora haja um corpo comum de passos (adavus) que pode ser transmitido, os intérpretes têm muito espaço para a improvisação, para criar um jeito muito pessoal de executar determinados passos, ou mesmo reinventá-los. Os números de dança no Theru-K-Koothu são aqueles que envolvem a entrada de um Kattai Vesham ou Pen Vesham (personagens principais masculinos e femininos), a preparação para uma cena de batalha ou duelo, o fechamento de um episódio e durante as intervenções do Kattiyakaran (narrador-cômico), sendo intercalados às cenas narrativas e aos números musicais para garantir uma dinâmica ligeira a performance, capaz de segurar a atenção do público por longos períodos. Segundo Frasca (1990, p. 92), há similaridades notáveis entre a técnica do estilo Theru-K-Koothu e a dança clássica Bharatanatyam. Para o autor,

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ambos utilizam duas posições básicas muito similares: o samapadam que corresponde à postura ereta com pernas estendidas e pés juntos ou levemente abertos; e o aramandi, como um demi-plié ainda mais acentuado nas tradições corporais do sul da Índia. Particularmente, creio que essa seja uma característica presente em muitas formas de dança da Índia, não sendo aplicável apenas ao Theru-K-Koothu ou o Bharatanatyam. A postura aramandi, por exemplo, aparece em afrescos e esculturas milenares de anos e fazem parte de um certo imaginário corporal que transpassa muitas épocas e tradições. Por isso, não creio que se possa afirmar com certeza que o uso de tais posturas seja uma apropriação, do Theru-K-Koothu, de aspectos da dança clássica Bharatanatyam, mas que ambos tenham bebido na mesma fonte primordial - a cultura tradicional do estado pré-ariana - e, a partir dela, tenham feito percursos artísticos e históricos bem diferentes. De fato, no Theru-K-Koothu, tais posturas aparecem, mas há uma certa frouxidão na manutenção da forma, ou seja, ela não é tão fundamental para uma performance Theru-K-Koothu quanto é para uma performance de Bharatanatyam. Isso aponta para outra característica importante do estilo: ele é mais improvisacional do que coreografado. Existem passos para personagens masculinos (an veshattin adavus), personagens femininos (pen adavus), passos que são próprios do Kattiyakaran, construídos sobre células rítmicas que se desenvolvem em velocidade ascendente e depois descendente, os sollukkuttus, como, por exemplo: TA TEI / TA TA DIKU TA DI TEI / DI DI TEI, também presentes em outras tradições clássicas e folclóricas (creio que seja um os elementos mais característicos das formas de dança da Índia). Entretanto, a forma como esses passos serão utilizados em cena é uma decisão do intérprete no calor do momento. Não há coreografias pré-estabelecidas e cabe ao ator utilizar o repertório de movimentos que dispõe, da melhor maneira possível, de modo a melhor personificar seu Vesham. O repertório de passos envolve movimentos para se deslocar circularmente pelo espaço, deslocar-se em linha, marcando as quatro direções, para frente ou para trás ou mesmo para permanecer em um ponto fixo – congregando todas as formas de deslocamento e posicionamento no palco, que

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são comumente utilizadas numa performance Theru-K-Koothu. São movimentos simples, se comparados ao intricando footwork da dança clássica. Temos, por exemplo, o DI DI TEI, passada rápida e rasteira, feita com as pernas estendidas, executada em 2 tempos, com uma marcação de contratempo. Primeiro bate-se o calcanhar do pé direito no chão a frente, depois bate-se o pé esquerdo inteiro atrás e, por fim, bate-se o pé direito inteiro fechando os pés, num movimento de deslocamento para frente. O ciclo se repete indefinidamente alternando as pernas que iniciam o movimento, permitindo assim o deslocamento rápido e miúdo. Ele é utilizado pelos Kattai Veshams quando entram em cena, durante ou ao final dos Viruttams (trechos de canto), quando se exprimem as condições perfeitas para o florescimento de sua dança improvisada, a partir de um repertório definido. Sem dúvida, o passo mais marcante do estilo é o Kirikki, giros sequenciais em torno do próprio eixo, enquanto o performer vai se deslocando em círculo pelo espaço, feito apenas por Kattai Veshams. Quanto mais rápido um ator é capaz de executá-lo, quanto maior o número de giros que consegue fazer e, também, quão hábil ele é para conter rapidamente os giros, parar e não cair ou perder o equilíbrio, definem seu grau de maestria. O Kirikki pode aparecer na cena da cortina e em cenas heroicas ou de batalha, geralmente termina com uma pose emblemática em pé com as pernas bem afastadas – para garantir o equilíbrio. A perna da frente é ligeiramente flexionada e a de trás bem estendida com o pé firmemente cravado no chão. O tronco fica bem rígido e as mãos se afastam da linha do corpo, criando uma postura majestosa. É comum que numa mão o Kattai Vesham leve um lenço vermelho, e na outra, uma espada de madeira pintada de dourado, remetendo ao seu status de herói do Mahabharata. Quando ele para nessa posição, arregala os olhos e – em alguns casos – coloca a língua para fora, o que se vê é uma figura sobrenatural oriunda de alguma outra dimensão paralela, irradiando uma aura de violência, mas também de beleza e encantamento. Não é por acaso, portanto, que muitas vezes o Kirikki é o portal para o transe e a possessão pelos intérpretes, e que a visão que suscita, a comoção que desperta no coração da plateia, também cria as condições ideais para que eles também se deixem levar pelo violento frenesi da possessão.

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Talvez seja essa mesma a sua maior função, remeter, novamente, a performance à sua origem ritual, ao contato com as forças sobrenaturais que se manifestam em torno e através da encenação, lhes dando visibilidade e passagem. Outro passo bastante comum é TATU METTU ADAVU, mesma nomenclatura utilizada pelo Bharatanatyam. Ele é composto de cinco células de movimentos, associadas as cinco talas básicas do sistema carnático, os Panch Jatis:

Figure 36 - Estudos rítimicos desenvolvidos em workshop com o guru Dr. Sharad Pandya, da Purva School of Bharatanatyam, no Espaço Caldeirão, em 23/11/2019. Foto: arquivo pessoal.

Tabela 13 – Panch Jatis provenientes do Sistema Musical Carnático, próprio do Sul da Índia. Este sistema serve de base tanto para a cultura clássica quanto para a cultura folclórica. PANCH JATIS SOLLUKKUTU (5 padrões rítmicos principais (Sílabas rítmicas) TISRA – 3 tempos TA KI TA CHATURASHRA – 4 tempos TA KA DI MI KHANDA – 5 tempos TA KA TA KI TA MISRA – 7 tempos TA KI TA // TA KA DI MI SANKGEERNA – 9 tempos TA KA DI MI// TA KA TA KI TA Fonte: CIPPICIANI, 2016, p. 79.

Recomendo que se assista esse vídeo do Kattaikkuttu Sangam onde se pode ver uma execução bastante refinada dos Kirikki (giros), movimentos de

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dança dos Kattai Veshams e Pen Veshams, além da movimentação do Kattiyakaram e de outros personagens secundários: https://www.youtube.com/watch?v=2TlXgEGycxo. Na dança, a sonoridade dos sollukkuttus remete ao número de batidas que devem ser executadas pelos pés, que podem envolver: batidas do pé inteiro, só do calcanhar ou só do metatarso, devendo ser executada na posição aramandi, com joelhos fletidos, quase sempre no lugar, mas permitindo pequenos deslocamentos em linha, se incluirmos pequenos pulinhos no movimento. É outra característica bastante marcante das danças indianas que aparece numa infinidade de formas clássicas ou folclóricas, de norte a sul do país. Mais uma vez, vemos que o Theru-K-Koothu, por sua natureza não sistematizada, improvisacional e calcada na oralidade, se baseia num repertório de movimentos já conhecido e o adequa às necessidades de seu estilo. O erro que não podemos mais cometer é o de acreditar que tenha sido o Bharatanatyam a influenciar o Theru-K-Koothu, reforçando outra vez mais, a superioridade do clássico sobre o folclórico. Antes, devemos nos remeter à sua origem comum, quando os artistas de Theru-K-Koothu e as Devadasis atuavam em conjunto, como partes integrantes das festividades e celebrações anuais que sempre aconteceram nas áreas rurais de Tamil Nadu. Cada tradição seguiu seu caminho, mas a fonte geradora é a mesma. Em conversa com a pesquisadora holandesa Hanne M. De Bruin, no Kattaikkuttu Sangam92, ela fez questão de reforçar esse vínculo entre as duas tradições: Devadasi e Theru-K-Koothu, insistindo que a dança Sadir attam (nome original do Bharatanatyam) e o Theru-K-Koothu, tinham o mesmo grau de importância no ciclo de festividades agrárias de Tamil Nadu. O que me parece bastante plausível, se considerarmos o Theru-K-Koothu, uma forma dramática narrativa-masculina e a Sadir attam, uma forma de dança narrativa-feminina, como aspectos complementares de uma mesma cultura religiosa: a da adoração das divindades agrárias, as Ammans, amplamente cultuadas através do canto, da dança, da música e do drama – partes intrínsecas da liturgia do ritual.

92 Conversa informal, ocorrida no dia 01/01/2019, durante visita de campo ao Kattaikkuttu Sangam.

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Por fim, temos também os passos executados pelas personagens femininas no Theru-K-Koothu. Eles são conhecidos como Pen Adavus e são mais simples que aqueles executados pelos personagens masculinos, normalmente são feitos em samapada, com as pernas estendidas ou semi- estendidas, permitindo um certo balanço do quadril para dar mais feminilidade aos movimentos. É bom lembrar que no Theru-K-Koothu, as personagens femininas também são representadas por homens e que se trata de uma especialização. O ator que interpreta um Pen Vesham não interpretará um Kattai Vesham, via de regra. Só assim ele poderá aprimorar as qualidades corporais e vocais necessárias para interpretar satisfatoriamente uma personagem feminina. Lembremos que no Theru-K-Koothu, Draupadi é a grande personagem feminina e representá-la é, ao mesmo tempo, uma honra e uma responsabilidade. Para finalizar esse tópico, creio que seja interessante pontuar o caráter improvisacional do estilo como sua maior qualidade. Trabalhando sobre um repertório simples e pequeno de movimentos, os artistas desenvolvem, ao longo do processo de aprendizagem (observar-imitar-observar-criar), a destreza necessária para organizá-los segundo as necessidades da cena, segundo seu nível de energia e destreza, deixando-os mais rápidos ou mais lentos, acrescentando mais passos num ciclo rítmico ou alterando sequências de realização de passos mais ou menos coreografados, como ocorre nas entradas dos Kattai Veshams, quando já se espera um tipo de evolução corporal com passos específicos. Ainda assim, cabe ao intérprete escolher como utilizá-los, transformando pensamento em ação quase que simultaneamente. O intervalo entre pensar e agir é diminuto e os atores parecem perfeitamente adaptados e confortáveis nessa situação, o que é uma habilidade invejável para qualquer artista da cena contemporâneo, e mais invejável ainda, se considerarmos que seu treino não é sistematizado e muito menos permanente. Talvez fosse o caso de revermos, no Ocidente, a ideia de que quanto mais eu treino, quanto mais técnicas desenvolvo, mais estou livre para criar, e introjetarmos uma nova ideia, um pouco mais modesta e funcional: quando treino apenas o que é essencial para minha arte, no estágio em que me encontro, fico livre de carregar no corpo o peso de tudo aquilo que não necessito. Essa deve ser uma sensação e tanto.

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Entretanto, as improvisações não se dão apenas no nível individual. Elas podem ocorrer entre atores em cena (e sim, às vezes há desencontros e é preciso fazer um ajuste aqui e outro ali – não é incomum que os intérpretes conversem em cena nesses casos), mas nada que a própria estrutura da encenação não possa absorver e nada que a audiência possa reprovar. Também é comum as improvisações entre os intérpretes e os músicos, encorajadas por gritos, interjeições, pedidos, expressões de alegria, tudo que a cultura popular soube preservar em profusão: a pulsão da vida. Interessante notar também que falar de treinamento no Theru-K-Koothu é falar de performance. Apenas muito recentemente o estilo absorveu a prática dos workshops, que nada mais são do que espaços para treinar atores de fora do estilo, interessados e apreciadores, em vias de receber algum dinheiro para a companhia. Tal prática, acabou por criar uma nova cultura do “treinamento corporal” apartado do treino da performance, ou seja, treinar para a apresentação de um episódio específico e não treinar apenas para desenvolver uma habilidade. Tradicionalmente, esse treino de habilidades não existia porque não tinha nenhuma função prática. Uma criança que nascesse numa vila, já estaria familiarizada suficientemente com as sonoridades e os movimentos mais simples do estilo, os rudimentos de sua estética e repertório, de modo que não havia necessidade de um treino específico para lhes incutir esse saber prévio. O treino era fazer. Entrar em cena, observar os atores mais velhos, copiá-los e, então, ir desenvolvendo as tais habilidades sem que se precisasse falar muito nelas. Essa realidade parece mudar, rapidamente, nos dias de hoje. Primeiro porque muitas pessoas, artistas locais e estrangeiros, desejam “receber treinamento em Theru-K-Koothu, e isso cria a necessidade de sistematizar esses conhecimentos de modo inteiramente não usual para poder transmiti-los, com eficácia e certa agilidade, àqueles que não nasceram no seio dessa tradição cultural, já que os workshops têm sempre uma data para começar e acabar e não se estendem por mais de um mês. Embora os workshops tragam o duplo benefício de alcançar um público “não iniciado”, geralmente, jovem e urbano, e de garantir a sobrevivência econômica das companhias e seus Vattiyars durante

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o período de baixa temporada, seu efeito colateral é criar um certo enrijecimento no processo de transmissão de saberes, contrário à própria natureza aberta e improvisacional do estilo, fazendo surgir uma espécie de Theru-K-Koothu soft, mais palatável ao gosto urbano-cosmopolita. Aceitam-se mulheres, ensinam-se alguns passos, o processo de feitura das maquiagens, ensaiam um episódio (geralmente aqueles de mais apelo e numa versão já reduzida), fazem uma apresentação de encerramento e pronto: surge mais um batch de jovens atores, apreciadores e curiosos com “formação” em Theru-K-Koothu, absolutamente descontextualizado de seu enredo original: o ritual e suas conexões com toda a rede de acontecimentos, festividades, celebrações que regem a vida comunitária no ambiente rural. Como se não bastasse, a necessidade de aproximar atores de fora das linhagens de parentesco e das castas associadas por direito à prática do estilo, de modo a garantir a existência de um corpo artístico mínimo e qualificado, tem obrigado as companhias a reinventarem o modo de transmissão dos saberes e seus treinamentos. O pressuposto de aprender-fazendo-observando parece não ser tão aplicável para um indivíduo que não cresceu naquele ambiente e não tem tanta familiaridade com a tradição. É preciso, então, sistematizar processos, codificar, registrar, criar um novo método que funcione, também, com os “não iniciados” ou, originalmente, “não pertencentes” àquela tradição cultural. Durante minha pesquisa de campo, tive a oportunidade de observar três exemplos bem diferentes com relação aos processos de transmissão de saberes. Na companhia de Akkur, quando perguntei ao seu Vattiyar quanto tempo durava o processo de formação de um ator, ele não soube me responder. Depois de conversarem brevemente em Tamil com outros membros da companhia que estavam ao seu lado, disse simplesmente: “Um ano”. Tive a sensação de se tratar de uma resposta pronta para corresponder à demanda do pesquisador, sem muita conexão com a realidade dos fatos. Não era, de todo modo, uma mentira. Apenas evidenciava o quanto, para o grau de organização profissional e o funcionamento interno da companhia, ainda muito próxima do aprender-observando-fazendo, essa pergunta parecia deslocada e sem sentido.

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Figure 37 – Sobre o aprender-fazendo-observando. Aqui vemos o ator que faz o Kattiyakaran, ajudando o ator que faz o Kattai Vesham Bhima colocar seu ornamento de cabeça, o Cikarek, sendo observado de perto por outro jovem ator da companhia. Foto: Edilson Castanheira.

Em visita à companhia de Purisai que, nota-se, possui sede própria, encontrei um Vattiyar (quase como um orientador), um assistente (futuro sucessor), um grupo de aspirantes a atores sentados em roda, memorizando as entonações, falas e canções de um determinado episódio, tomando como referência um caderno com anotações que estava nas mãos de seu professor, corrigido, eventualmente, por seu superior. O que se pode ver, neste caso, é uma companhia que já possui certo modo de organizar o processo de treinamento e ensaio de forma mais sistematizada, seguindo uma certa metodologia (um professor que ao mesmo tempo ensina e é ensinado), um grupo sentado em roda e não aprendendo-fazendo, mas decorando, memorizando para então fazer e, principalmente, a presença de um caderno com os conteúdos a servir de base para o processo de treinamento e transmissão.

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Figure 38 – Nota-se, nesta foto, que abaixo do celular está o caderno de anotações utilizado por Palani Murugan para conduzir o processo de treinamento-ensaio com os aspirantes a atores da companhia. E que um outro caderno, também bastante robusto, aparece nas mãos de um segundo ator. Foto: Edilson Castanheira.

Por fim, a visita ao Kattaikkuttu, que extrapola de vez os limites da tradição, com uma grade curricular, horário para aulas de canto, música, para aprender os passos de dança, as maquiagens, estudar e memorizar os textos, encenar os episódios etc. Tudo num espaço absolutamente equipado, amplo e repleto de facilidades não acessíveis à maior parte de seus alunos em suas vilas de origem, subsidiado por verbas locais e estrangeiras. Uma verdadeira instituição de ensino, com a missão de oferecer educação formal e preservar as tradições locais, tendo como carro chefe o Theru-K-Koothu. Aos que tiverem curiosidade, sugiro que visitem a página da instituição no Facebook, repleta de vídeos, fotos, matérias e entrevistas: https://www.facebook.com/kattaikkuttu.sangam.

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Figure 39 – Hanne M. De Bruin e P. Rajagopal, fundadores e diretores do Kattaikkuttu Sangam. Foto: Edilson Castanheira.

3.5.5 MAQUIAGEM, FIGURINOS E ADEREÇOS

Há conexões bastante claras entre a função das maquiagens nas formas teatrais populares e clássicas da Índia e as máscaras utilizadas em seus inúmeros rituais, assim como pode ser observado em outros lugares do mundo. Há quase um consenso entre artistas e antropólogos de que as maquiagens são, de fato, um tipo de máscara aplicada sobre a face e não apenas um artefato externo que se sobrepõe a ela, cujo propósito é intensificar ainda mais o processo de identificação com o “personagem-divindade” representado, ampliando os efeitos psíquicos e, por consequência, estéticos que perfazem o ritual e desembocam na cena. Um dos pesquisadores das formas folclóricas de dança e drama indiano que defende essa perspectiva é Jiwan Pani:

A maquiagem simbólica, também chamada de maquiagem "estilizada" ou "fantástica", faz parte de uma herança muito mais antiga e compartilha, com a venerável tradição das máscaras, uma abordagem supra-real (...) Aceitando as convenções da forma teatral, revela o aspecto abstrato e supra-realista da realidade retratando a experiência total, não fragmentada. Como na máscara, na maquiagem facial estilizada, o supra-consciente ou o subconsciente se manifestam (PANI, 1986, p. 38)93.

93 No original: Symbolic make-up, also called "stylized" or "fantastic" make-up, has a far more ancient heritage and shares with the venerable tradition of masks a supra-real approach (...) Accepting the conventions of the theatre form, it reveals the abstract an supra-realistic aspects

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As maquiagens utilizadas no estilo Theru-K-Koothu se incluem dentro dessa antiquíssima tradição ritual-performativa, da qual também fazem parte o Teyyam, o Koodiyattam, o Kathakali, o Cchau, o Yakshagana e tantas outras formas dramáticas do território indiano, mas, em especial, do sul da Índia, onde a presença da influência dravidiana e seus rituais primitivos de possessão e transe ainda permanece muito viva e presente, com raízes no período Sangam. Embora elas partilhem de aspectos e elementos comuns, especialmente conceituais, cada um dos estilos citados possui um entendimento e um uso diferenciado da maquiagem e seus complementos. O substrato comum é o mesmo a aplicação, entretanto, é sempre única e não pode ser padronizada. Ou seja, o que se vê no Kathakali não é o que se vê no Theru-K-Koothu ou no Yakshagana, por exemplo. Os padrões, designs, cores e seus significados podem divergir e apontam para a singularidade de cada um desses estilos e sua íntima relação com os contextos nos quais operam. Assim como no ritual, a maquiagem na performance, entendida como máscara facial, pede complementos: adereços, adornos e vestimentas. O efeito psíquico e estético que devem produzir só se completa nessa conjuntura: o surgimento de uma figura sobre-humana em cena que, mais do que caracterizar um personagem, funciona como um elo entre o mundo humano e sobrenatural ou divino, um portal entre realidades, tempos e dimensões que interagem simultaneamente e de modo muito eficiente, aproximando realidade e mito, como bem vimos na descrição do Festival de Draupadi Amman, no capítulo anterior. Desse modo, torna-se evidente que toda a concepção visual e plástica do estilo tem uma conexão profunda com o ritual, seja como estratégia de afirmação e pertencimento (este estilo de figurino, adereços e maquiagem é único dentre as muitas formas folclóricas dramáticas do estado), seja como seu disparador, induzindo o transe e a possessão, que são o centro das tradições rituais das áreas rurais de Tamil Nadu. Já foi explicitado o vínculo entre os atores de Theru- K-Koothu e a figura mitológica dos guardiões, guerreiros que protegem as entradas dos templos, em íntima conexão com as Ammans, divindades

of reality for portraying the total rather than fragmented experience. As in mask, so in stylized facial make-up, supra-conscious or the sub-conscious is made manifest (PANI, 1986, p. 38).

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femininas. Entretanto, essa conexão se estende sobre uma multiplicidade de outros aspectos, por exemplo, a relação com a tradição do Tirusti Patam ou olho maligno, que justifica a importância do olhar para a invocação do transe e da possessão e o motivo pelo qual toda a maquiagem facial do estilo é voltada, justamente, para a valorização da área dos olhos. No final, tudo nos leva de volta ao princípio, ao ritual. Na cultura tradicional de Tamil Nadu os olhos das máscaras, em especial, têm função central no processo de indução do transe, da incorporação. É por isso que se diz que olhar para os olhos de uma máscara ou imagem abre um portal para outros planos de existência e realidade “[...] na presença do sagrado” (Frasca, 1990, p. 130). Essa cerimônia de “olhar para os olhos da imagem ou abrir os olhos da imagem” recebe o nome de Kan Tirapu e é parte integrante de muitos rituais primitivos no sul da Índia. Seguindo esta mesma lógica, é comum que, em muitas formas dramáticas rituais como o Theru-K-Koothu, o Teyyam e o Kathakali, de Kerala e o Yakshagana, de Karnataka, ao final do processo de preparação, o ator mire longamente seus olhos no espelho, pois ali culmina o processo de identificação e “incorporação” da personagem, ali começa a manifestação do sagrado que, se bem sucedida, deverá reverberar na audiência, a partir do momento em que ele deixar o Kottakai, o camarim. No Theru-K-Koothu, como foi apresentado no capítulo anterior, vemos também a utilização de imagens rituais, como as de Aruvan e Kali no episódio do Sacrifício de Aruvan, cujo poder só passa a existir quando elas são descobertas, ou seja, têm “seus olhos abertos”. Há também, de modo mais raro, o uso de máscaras, em especial, a de Narasimha, encarnação de Vishnu, metade homem e metade leão, que aparece no famoso episódio Prahalada Charitram, cujo poder de suscitar o transe também reside no olhar. É comumente relatado, quase como uma lenda e sempre como um fato esperado, que os atores que interpretam Narasimha, ao final da cena que leva à morte brutal de Hyrania, precisam ser retirados de cena por dois assistentes para recuperar-se da intensidade da cena e “desincorporar” o personagem. Esse ator, reza a tradição, não pode voltar para agradecer ao público até que esteja refeito. A lógica disso é que o público não deve, justamente, ver seus olhos possuídos

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quando a encenação-ritual tiver chegado ao seu término, desencadeando levas de possessão num momento inoportuno. Com relação à sua estrutura, a maquiagem do Theru-K-Koothu pode ser dividida em duas etapas: a primeira consiste na feitura dos padrões faciais e a implementação da sua paleta de cores específica, e a segunda consiste na complementação da maquiagem pelos ornamentos de cabeça que são seu complemento mais imediato, mas não o único. As cores tradicionalmente utilizadas são o vermelho, o verde e rosa (e, eventualmente, o laranja como cor base), complementados pelo uso do branco e do preto para a feitura dos motivos que se sobrepõe à cor base. As cores são produzidas de modo absolutamente artesanal, a partir de pigmentos naturais macerados, misturados a óleo de coco e finalizados com talco para tirar o brilho e a oleosidade excessivos, prejudiciais aos efeitos estéticos e rituais que se espera produzir.

Figure 40 – Atores da companhia Sri Thantoniamman Therukkoothu Nadaga Sabha se preparando para apresentação. Vê-se as maquiagens e os utensílios dispostos no chão e, no lado direito da foto, alguns Kattais enfeitados com guirlandas. É comum que antes de iniciar o processo de maquiagem, os artistas acendam uma lamparina, façam uma pequena oração ou canto acompanhado pelos músicos, como forma de ritualizar o início da preparação dos atores, como se pode ver aqui. O Kattai, neste caso, é alçado a posição de símbolo ritual, imagem consagrada e reverenciada, no altar improvisado. Foto: Edilson Castanheira.

Toda pintura facial é composta de três etapas: (1) a pintura da face com a cor base, que representa, de modo bem evidente, a natureza benéfica, maligna ou neutra do personagem, (2) a definição da intensidade da coloração, cuja

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função é determinar, de forma mais singular, o grau de benignidade ou malignidade de cada personagem e (3) a aplicação dos padrões ou desenhos complementares que definem sua posição na hierarquia dos personagens: heróis, demônios, divindades, personagens femininas, Kattiyakaran, personagens secundárias. As três cores bases são: vermelho, verde e rosa, devendo ser aplicadas de modo homogêneo em todo o rosto, sem incluir as orelhas. O vermelho é utilizado para representar personagens de caráter maligno ou negativo, muito poderosos e influentes, como, por exemplo, Duryodhana (um vermelho mais claro) ou Duchassana (um vermelho bem intenso) ou para representar divindades poderosas como a Deusa Kali (vermelho muito escuro). O verde é utilizado para representar os personagens heroicos, guerreiros e valentes como Arjuna (verde claro) e Bhima (verde escuro). O rosa é utilizado para representar personagens que, por sua moralidade, não podem ser categorizados nem como benignos, nem como malignos. É o caso de Karna (um rosa intenso), Yudisthira e Sakuni, mas também das personagens femininas e do Kattiyakaran (que possui uma maquiagem exclusiva). Eventualmente, o preto aparece como cor base, como, por exemplo, no final do episódio Arjuna Tapasu, para representar a personagem Morte.

Figure 41 – Nesta foto, vemos o ator mais experiente da companhia, que irá representar o personagem Bhima. A coloração base é um verde- azulado. Pode-se ver o Mal na cor laranja, com detalhes em preto (linhas) e pontos brancos. Foto: Edilson Castanheira.

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Após a aplicação da cor base, começa a aplicação dos padrões e desenhos que individualizam a maquiagem dos personagens. O item mais importante e o primeiro a ser desenhado é o Mal (linha horizontal desenhada em preto com ondulação, podendo ser contínua ou não, a depender do personagem, traçada exatamente do dentro do nariz em direção às orelhas). O Mal divide o rosto em metade superior e inferior, simetricamente iguais, que são únicas para cada personagem, como uma digital. Ele é utilizado por personagens guerreiros ou demoníacos e parece simbolizar maturidade, poder e a propensão para a violência. Personagens mais jovens ou não tão poderosos e violentos, não utilizam o Mal em suas maquiagens, como por exemplo, Abhimaniyu, Arjuna, Nakula e Sahadeva. Ele aparece em Duryodhana, Duchassana, Bhima e em Kichaka, e é complementado por mais uma ou duas linhas que podem ser contínuas também ou pontilhadas, usando cores fortes e brilhantes para contrastar com a cor base e causar o efeito desejado de valorização dos olhos do intérprete, como pontua Frasca:

O Mal parece transmitir uma sensação de poder ao público, enfatizando e acentuando o efeito dos olhos de um intérprete (...). Ao acentuar o poder dos olhos, o Mal e os outros desenhos estruturais usados na face de um ator terukkuttu também aumentam e tornam mais específicas as características gerais que são transmitidas pela cor básica de um personagem (FRASCA, 1990, p. 116).

Figure 42 – Nesta foto, o ator que interpreta Kichaka, um demônio, usa como cor base o laranja. Seu Mal também é diferente dos demais, pois não é feito por uma linha contínua ou pontilhada, mas por dois desenhos em forma de gota. Ainda é possível ver outros elementos como aqueles que definem o desenho da metade inferior do rosto, e aqueles que, junto com o Mal, definem o desenho da metade superior do rosto, feitos para valorizar os olhos. Foto: Edilson Castanheira.

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Ainda sobre o Mal, Frasca (1990, p. 119) também pontua sua importância ritual para “[...] criar uma imagem vigorosa e muitas vezes psicologicamente desconcertante nas mentes do público e dos artistas, possivelmente ligada à possessão ritual [...]”.94 A violência que se concentra nos olhos do intérprete é a mesma que explode no transe e na possessão. Alguns personagens, além do Mal, possuem rosetas desenhadas acima ou abaixo dele, com uma função bastante peculiar. Demônios e personagens claramente malignos, não possuem rosetas, como Kichaka e Duchassana. Personagens com propensão à violência, como Bhima, mas que não são malignos possuem rosetas e personagens guerreiros, mas não tão violentos como Arjuna só possuem rosetas e não Mal. Segundo Frasca (1990, p. 117), isso evidenciaria o grau de humanização de cada personagem para o público. Como já foi dito anteriormente, o Mal divide o rosto em metade superior e inferior. Na metade inferior, a maquiagem pode ser complementada pelo Kiruta, utilizado por personagens guerreiros para simular uma barba e costeletas, os lábios podem ser destacados com vermelho e possuir presas, no caso de personagens demoníacos, como Hiraniya Kasippu, e longos bigodes postiços podem ser adicionados para demonstrar masculinidade e virilidade. Mais uma vez, vemos o emprego da mesma lógica de raciocínio, nota-se que personagens mais poderosos, maduros e violentos, usam bigodes e Kirutas mais avantajados em relação a personagens mais jovens e menos violentos. Já na metade superior, vemos outros detalhes cuja função é valorizar o Mal e chamar atenção, ainda mais, para os olhos do intérprete. Eles podem ser: pontos, triângulos, círculos, as tradicionais Namams ou desenhos no ponto entre as sobrancelhas enfatizando uma ligação com as duas principais correntes religiosas do hinduísmo: Shivaísta (3 listras horizontais) e Vaishnava (uma espécie de U ou V na vertical). As sobrancelhas e parte inferior dos olhos serão pintadas de preto de modo a criar um efeito exagerado que leva, naturalmente, nosso olhar para os olhos do intérprete.

94 No original: […] to create a forceful and often psychologically disconcerting image in minds of audience and performers alike, possibly linked to the ritual possession […] (FRASCA, 1990, p. 119).

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Figure 43 – Nesta foto vemos com clareza tanto o Kiruta, quanto os bigodes postiços e uma sutil valorização dos lábios. Também se pode ver o tradicional Namam Vaishnava. Atores: Palani Murugan e Omid Rawendah. Companhia: Purisai no Théâtre du Soleil. Foto: Gowri Sambandan.

Há ainda a classe de personagens femininos, cuja maquiagem é bem mais naturalista, feita por uma base rosa bem sutil. Antigamente, a maquiagem feminina era mais estilizada, assim como no Bharatanatyam, com uma base bem espessa, olhos muito bem pintados, pega-rapaz, e desenho de cabelo pintado na face como uma franjinha, sobrancelhas aumentadas, criando um efeito mais divinal, tudo exalando “feminilidade”, segundo a concepção indiana tradicional. Embora não seja uma maquiagem de Theru-K-Koothu, apresento uma foto minha tirada em 2005, durante minha primeira viagem à Índia, quando tive a oportunidade de me apresentar na celebração anual da Natyalaya School of Classical Dances, em Perumbavoor, Kerala, dirigida por Kalamandalam Sumathy. Nesta ocasião, fui maquiada por um profissional dentro de uma perspectiva de maquiagem tradicional, e o que se pode ver, é a construção de uma nova face, sobre a face da dançarina.

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Figure 44– Apresentação de Bharatanatyam em Perumbavoor, Kerala, 2005. Foto: arquivo pessoal.

Hoje, há uma preferência por algo mais realista e mais próximo da estética apresentada pela indústria cinematográfica indiana. Essa tendência a certo naturalismo também se reflete na maquiagem do personagem Kattiyakaran e de personagens secundários como sacerdotes, pastores, Sundaris (moças bonitas, serviçais) etc. Apenas as divindades femininas possuem uma maquiagem mais estilizada, próxima das maquiagens masculinas, com presas e motivos nas faces (pontos, linhas etc.), como é, por exemplo, o caso de Kali, cuja cor base é um vermelho-terroso, com longas presas brancas, olhos e sobrancelhas negras, e a face ornada de linhas e pontos brancos e pretos, coroados por sua tradicional cabeleira desgrenhada.

Figure 45 – Nesta foto, vemos ao lado do ator que se maquia como Kichaka, o ator que fará uma personagem feminina secundária, com uma base rosa-amarelada, lábios vermelhos, bochechas roseadas, sobrancelhas pintadas de preto e um bindhi vermelho entre as sobrancelhas. Companhia de Akkur. Foto: Edilson Castanheira.

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Figure 46 – Nesta foto, vemos um Pen Vesham, personagem feminino completamente caracterizado. Nota-se a tendência ao naturalismo e ao uso de poucos ornamentos, restando apenas algumas poucas joias e o cabelo postiço. Foto cedida por: Parthiban V. Companhia de Therukkoothu da região de Kongu.

Ainda com relação ao Kattiyakaran, nota-se que sua maquiagem não é nem feminina, nem masculina, nem realista, nem não-realista (Frasca, 1990, p. 123). Ela enfatiza seu caráter liminar e popular, como “aquele que pertence à vila”, um de nós, mas também aquele que é motivo de riso, tudo o que não queremos ser. Tudo muito bem amarrado com um figurino berrante, brilhante ou cheio de flores e padrões exagerados ou muito colorido, pelo uso de chapéus, bonés, óculos de sol. A essência dúbia do personagem expressa em sua maquiagem, vestimentas e ornamentos.

Figure 47 – Nesta foto, vemos o ator que fará o Kattiyakaran se maquiando com uma base rosa-alaranjada, um bigode pintado de branco de um lado e vermelho do outro (aspecto clownesco), com sobrancelhas valorizadas e um possível Namam Shivaísta na testa. Companhia de Akkur. Foto: Edilson Castanheira.

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Figure 48 – Kattiyakaran da companhia Sri Thantoniamman Therukkoothu Nadaga Sabha em apresentação realizada na véspera do Natal, em Neelankarai, Chennai, Tamil Nadu, 2018. Foto: Edilson Castanheira.

Outro aspecto importante com relação à caracterização dos personagens para o estilo, é o uso dos Kattais (ornamentos) originalmente feitos de madeira da árvore kalyana murunkai, reconhecida por sua leveza (De Bruin, 1999, p 87). Dentre eles, os mais importantes são aqueles colocados na cabeça, porque denotam o grau de importância do personagem, sua nobreza ou riqueza, ou posição social elevada. Existem dois tipos de ornamentos de cabeça principais: o Kiritam, como uma grande torre piramidal, lembrando a estrutura dos templos do sul da Índia; e o Cikarek, cujo formato se assemelha mais ao de uma coroa. De fato, o primeiro é utilizado para caracterizar reis, figuras poderosas, como Duryodhana, Bhima, Yudisthira, e o segundo para caracterizar príncipes, generais e toda classe de personagens importantes que estão abaixo dos primeiros, como por exemplo, Arjuna, Duchassana, Abhimaniyu. Há, ainda, um terceiro tipo de ornamento de cabeça cujo nome não consegui identificar durante a pesquisa de campo e também não encontrei referências em livros, que se assemelha a um chapéu eclesiástico e que é utilizado por personagens como Krishna e Brihanala (Arjuna, disfarçado de eunuco). O Kiritam é, via de regra, entalhado na madeira, adornado com enfeites coloridos e espelhados, como um mosaico. Como costuma ser bastante pesado,

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algumas companhias estão aderindo à prática de confeccionar Kiritams de fibra de vidro ou mesmo de papelão encorpado. Esse processo de “modernização” da tradição ainda é visto com muita desconfiança por parte de alguns artistas e estudiosos. Para muitos, essa mudança representa um risco de rompimento com a tradição que atribui, a uma casta específica de artesãos, a autoridade para criar esses ornamentos, lhes dando uma importância artística, mas também ritual. Quando um ornamento artesanal importante como um Kiritam fica pronto, há uma série de procedimentos rituais que devem ser executados para lhe “conceder poder”. Quando esses ornamentos deixam de ser feitos de forma inteiramente artesanal e ritual, ainda que haja ganhos do ponto de vista da praticidade e de custo, há uma perda considerável dos aspectos rituais que sustentam a tradição, quando, por exemplo, pensamos no ritual de “abertura de olhos” de um Kiritam (De Bruin, 1999, p. 87), um ornamento novo, tradicionalmente feito pelas companhias. Tal procedimento ritual fica bastante prejudicado quando o adorno não segue as regras tradicionais de confecção, o entalhe apropriado da madeira, a criação do design, o trabalho minucioso e único da colagem de espelhos, da escolha das cores exatas e da pintura. Questiona- se se, rompendo o modo tradicional de confecção e aderindo a materiais e técnicas mais modernas de feitura, a peça ainda carrega a mesma energia que aquela feita por um artesão especializado, não apenas em fazer ornamentos, mas em dar a eles um valor mágico, sagrado, condizente com seu uso na cena. Por outro lado, muitos admitem que a utilização de materiais mais leves permite, por exemplo, que as companhias possam viajar para outros países levando consigo muitos ornamentos, o que certamente ficaria mais complicado se eles fossem todos entalhados na madeira. Não posso deixar de pensar no peso da globalização e do interculturalismo nessa opção, do quanto a possibilidade de levar o Theru-K-Koothu para outros países (diga-se, para o Ocidente) se apresenta, ao mesmo tempo, como uma oportunidade e um problema. Oportunidade porque dá visibilidade ao estilo e a seus artistas fora de seu contexto original, lhes oferecendo em troca status e dinheiro; e problema

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porque, para se adequar a esta nova realidade, este novo perfil de público, a manutenção da tradição se torna um valor secundário. A pergunta que fica sem resposta é: o que viaja para outros países, em especial para o ocidente, é o Theru-K-Koothu, como teatro ritual, aquilo que meus colaboradores insistiram em frisar e como ele é apresentado nesta pesquisa, ou o Theru-K-Koothu como produto cultural para exportação, reforçando a mística de exotismo e orientalismo que ainda persegue as manifestações culturais indianas no ocidente? Teremos oportunidade de aprofundar essa discussão sobre interculturalismo e Theru-K-Koothu no próximo capítulo, mas, por hora, voltemos à apresentação dos ornamentos dentro da tradição. Observei pequenas variações de design e no uso de materiais entre os Kiritams da Purisai, Kattaikkuttu e Akkur, mas ouvi relatos e tive acesso a fotos e vídeos que mostram que essa diferença é mais acentuada entre o estilo do norte e o do sul. Como esta pesquisa não se propõe a fazer essa comparação, coloco essa informação a título de curiosidade. Quanto aos padrões e designs que aparecem no Kiritam, Frasca (1990, p. 124) reforça a ideia de que sejam oriundos da tradicional iconografia de Tamil Nadu e que façam parte de uma tradição extremamente desenvolvida e antiga, sobre a qual os estudiosos pouco se debruçaram até agora.

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Figure 49 – Formatos e ornamentação dos Kiritams nas companhias Akkur, Kattaikkuttu e Purisai. Observando as três imagens, nota-se que eles são bem semelhantes, variando apenas em tamanho e uso de cores. Fotos: Edilson Castanheira.

Já o Cikarek é como uma coroa feita de varas finas e maleáveis de madeira, presas por três arcos de tamanhos diferentes e enfeitadas, originalmente, com flores de jasmim e hoje com pompons coloridos. Toda sua estrutura é mais leve e delicada, contrastando com a robustez do Kiritam. Frasca (1990, p. 124) enfatiza que essa diferença tem uma implicação simbólica que remete aos princípios de rigidez (Kiritam) e flexibilidade (Cikarek), tão presentes na própria constituição ritual do estilo (se lembrarmos que ao final do Festival de Draupadi Amman, celebra-se a vitória do Dharma, a vitória do princípio flexível, sobre o rígido, como apresentado no capítulo anterior) e expressos de muitas formas diferentes, dentre elas, através da ornamentação de cabeça. O reflexo desse choque de opostos também reverbera na cena, onde o ator que usa o Kiritam precisa mover-se com mais controle, em função do peso do ornamento, com visível dificuldade para executar alguns movimentos de cabeça, em especial, olhar para baixo, sob o risco de deixar cair o Kiritam, o que implica numa certa rigidez do pescoço. O ator que usa do Cikarek, se por um lado tem a mobilidade do pescoço e da cabeça mais preservadas, por outro lado, conta com um ornamento mais frágil que não pode se chocar com outros objetos de cena como as espadas tão frequentes, ou mesmo a mão de outro ator durante um Kirikki (giro), por exemplo, numa cena de batalha.

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Figure 50 – Aqui pode se ver os Cikareks das companhias Purisai, Akkur e Kattaikkuttu. As diferenças são apenas pontuais. É uma boa oportunidade para apreciar também os padrões de maquiagem de personagens similares, no caso, Duchassana. Fotos: cedida por Palani Murugan (primeira), Edilson Castanheira (as demais).

Pude observar um terceiro tipo de ornamento de cabeça que é utilizado pelos Tires Veshams, personagens que cumprem um papel importante na dramaturgia Theru-K-Koothu, vindo logo abaixo dos Kattai Veshams na hierarquia dramática:

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Figure 51 – Nestas fotos vê-se um outro tipo de ornamento de cabeça para os Tires Veshams, personagens importantes, mas que não são guerreiros em sua natureza. O primeiro é Brihanala, um personagem transexual. Na verdade, ele é Arjuna que assume a identidade de Brihanala para não ser descoberto durante o último ano de exílio dos Pandavas. O segundo personagem é o deus Krishna, figura importante na dramaturgia do estilo. Companhia: Sri Thantoniamman Therukkoothu Nadaga Sabha. Fotos: Edilson Castanheira.

Além dos Kattais de cabeça, existem ainda os ornamentos que completam a vestimenta do estilo. São eles:

1) Pooja kirtti: ombreiras também feitas de madeira, utilizando o mesmo padrão de formas, cores e materiais do Kiritam ou Cikarek, ajustadas perfeitamente aos ombros dos atores, por um sistema de fitas de tecido que atravessam o peito e as costas.

2) Marpu tuni: peitoral cujo design segue os mesmos padrões dos demais ornamentos da metade superior do corpo. Ele é complementado por um cinturão e também por pulseiras. O Kiritam ou Cikarek, o Pooja Kirtti e o Marpu tuni, formam um conjunto que amplia visualmente a metade superior do ator, de acordo com seu caráter heroico, divino ou sobrenatural, a partir da tradicional iconografia de Tamil Nadu, relacionada ao período sangam.

3) Pavatai: saiote com forro engomado que é outra característica marcante da vestimenta do estilo do norte. O saiote principal fica alto, deixando visível um saiote inferior engomado e a calça que

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complementa a parte inferior do figurino. Creio que a elevação do saiote seja uma estratégia para favorecer a movimentação dos atores, giros (em especial os que apoiam os joelhos no chão), pulos e passos rápidos de dança que acompanham as evoluções de entrada dos Kattai Veshams e as cenas de batalha.

4) Kajai: guizos amarrados aos tornozelos, como é comum a muitas tradições performativas clássicas e populares da Índia.

Há ainda alguns adereços adicionais que aparecem nas mãos dos Kattai Veshams:

1) Espadas, geralmente na mão esquerda. 2) Lenço vermelho amarrado entre o dedo mínimo e anelar da mão esquerda.

A presença da espada é bastante compreensível, dado o fato de que o estilo representa personagens guerreiros, generais, deuses e demônios. Já a presença do lenço é um pouco mais difícil de precisar. Ele também aparece em danças folclóricas do estado de Tamil Nadu, como o Devarattam, por exemplo. E creio que sua função seja puramente estética, produzir um efeito visual, com o esvoaçar do lenço, durante a realização dos movimentos. Poeticamente, sou levada a pensar que seja um artifício para nos transmitir a ideia de leveza, num contexto visual extremamente agressivo em suas cores, formas e texturas. Ou, talvez, seja apenas outra forma de explicitar o ontológico confronto entre os princípios da rigidez e da flexibilidade que aparecem de muitas formas diferentes no estilo.

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Figure 52 – Nesta foto, vemos um Kattai Vesham completo: Kiritam, Pooja Kirtti, Marpu Tuni e Kajai. Pode se ver também o lenço e parte da espada na outra mão. Companhia: Kattaikkuttu Sangam. Foto: Edilson Castanheira.

Figure 53 – Aqui pode-se ver o figurino “em ação”, durante a execução de movimentos vigorosos e, também, a espada reluzente. Os personagens são Draupadi e Duchassana, no episódio do desenrolar do saree. A orquestra está ao fundo. Companhia: Kattaikkuttu Sangam. Foto: Edilson Castanheira.

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CAPÍTULO 4 – THERU-K-KOOTHU NA ENCRUZILHADA: SER OU NÃO SER?

Figure 54 - O Theru-K-Koothu e a cena contemporânea. Intérprete Parthiban V. Companhia da Therukoothu da região de Kongu, Tamil Nadu. Foto: Cedida por Parthiban V.

4.1 UMA ENCRUZILHADA DE TRÊS PONTAS: FOLCLÓRICO, EXPERIMENTAL E INTERCULTURAL

Este capítulo é o desenlace esperado de uma pesquisa que partiu de um ponto de vista macro, através da apresentação panorâmica do teatro folclórico indiano, para alcançar as sutilezas do micro, através da experiência singular de um estilo teatral, o Theru-K-Koothu. A lente da pesquisa foi, gradativamente, se fechando sobre aspectos relevantes dessa tradição: primeiro, os aspectos rituais e depois, os performativos que se colocam a serviço desse teatro ritual, para agora explodir na problematização de questões mais atuais que se multiplicam, desdobram e avançam em grande velocidade. Neste longo percurso, através do estudo meticuloso de um extenso material bibliográfico, mas, sobretudo, pelo contato direto com esses artistas, muitas inquietações, incômodos e perguntas ficaram no ar. É sobre esses assuntos, quase sempre difíceis de tratar, porque tocam em pontos nevrálgicos, muito sensíveis para a tradição, que desejo discutir neste capítulo. Não há, nessa

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escolha, nenhuma ilusão de superioridade intelectual, como se seus próprios agentes não fossem capazes de identificar esses pontos e falar sobre eles com propriedade, necessitando que uma estrangeira o faça. Não se trata disso, portanto, mas da necessidade de dividir inquietações para as quais não encontro respostas simples ou definitivas (talvez esse nem seja mesmo o meu papel), ou ainda para pontuar exemplos bem sucedidos, como luminosidades que precisam ser vistas, ditas e valorizadas, frestas de esperança no futuro dessa tradição cultural, mesmo num cenário local e global tão árido e hostil. O primeiro ponto que procuro discutir é justamente aquele que define os limites entre as categorias “clássico” e “folclórico” na Índia, apontando as tensões que suscitam e as ações que desencadeiam entre os artistas de Theru-K-Koothu, seja no intuito de denunciar os desequilíbrios institucionalizados, seja no intuito de melhor se adequar a essa realidade, em busca de outras “estratégias de sobrevivência”. Entretanto, essa questão é apenas um ponto de partida, que deflagra uma tensão antiga e já bastante esmiuçada que, mesmo não sendo uma novidade, nos dá um claro indicativo da problemática política-cultural mais ampla, sobre a qual outras tensões, mais atuais e talvez não tão evidentes, vão se somando e exigindo novos posicionamentos, novos modos de organização, produção e afirmação. O fato é que, para sobreviver e garantir seu espaço ao lado da cultura clássica, esses artistas têm avançado para os centros urbanos onde encontram uma realidade outra, um perfil de público e uma cultura muito diferente daquela que se vê nas áreas rurais do estado. O choque entre sistemas sociais tão distintos exige que modificações sejam feitas no seio da tradição. Algumas, bastante provocativas porque desafiam tabus muito arraigados como, por exemplo, as questões de casta e gênero, e que podem ser consideradas como avanços importantes. Outras escancaram a problemática da sobrevivência desses artistas fora de seu modelo original de organização, protegidos, ainda que de forma precária, pelo Panku System e pelo Mamul (a definir o papel de cada um na estrutura da companhia e, também, sua possibilidade de remuneração e ascensão artístico-social).

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A ruptura dessa base comum e conhecida de trabalho, os lança num novo cenário cultural, que envolve grandes e, até então, desconhecidos desafios, como, por exemplo, a questão da profissionalização, da alta competitividade nesse novo mercado de trabalho, dos ganhos e das perdas que o estilo vai sofrendo nesse processo de ajuste a uma nova demanda (urbana, cosmopolita e globalizada). Embora o cenário pareça caótico e claramente hostil a esses artistas e sua arte, há exemplos positivos que precisam ser valorizados, como experimentos bemsucedidos, ainda que imperfeitos e sempre na eminência de evaporar, pela falta de suporte governamental, financeiro ou pela dificuldade em atingir as massas, ficando restritos a alguns segmentos e grupos sociais específicos. Dentro dessa perspectiva, o primeiro exemplo muito significativo é o que vemos nas proposições artístico-pedagógicas do Kattaikkuttu Sangam que, embora esteja sediado na zona rural, é administrado por uma renomada pesquisadora holandesa, membro distinto de um seleto grupo: uma intelligentsia formada por intelectuais e pesquisadores ocidentais e orientais, dedicados aos “estudos asiáticos”, alocados nas melhores e mais importantes universidades da Europa e Estados Unidos. É preciso dizer isso dessa maneira para compreender os vínculos que o Kattaikkuttu Sangam, como instituição, cria com esse universo acadêmico-internacional, estabelecendo ações vanguardistas, visionárias e, claramente, políticas, capazes de produzir transformações profundas e tão necessárias em seu contexto social, mas também de gerar desavenças, expressas pela clara diferença de status, de alcance e de poder econômico, entre eles e seus pares rurais. Isso faz com que o Kattaikkuttu Sangam seja visto como algo apartado da tradição do Theru-K-Koothu, primeiro pela mudança, tida como arbitrária, do nome do estilo, e depois por ser dirigido por uma mulher estrangeira, que, na tentativa de modificar a realidade de crianças e jovens desfavorecidos, através da educação e da arte, vai empreendendo também mudanças profundas na cultura local e no estilo, menos em termos estéticos e mais em termos de modos de organização, produção e inovação de repertório. O Theru-K-Koothu, nesse contexto, é visto como um instrumento artístico-político-pedagógico poderoso a

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serviço de um projeto social muito maior e, certamente, admirável, a despeito das críticas que suscita. Não posso deixar de mencionar também outro exemplo admirável e vanguardista, orquestrado por um escritor e dramaturgo tamil, Natesh Muthuswamy, falecido em 2018 que, há 44 anos, fundou um dos mais importantes grupos teatrais do estado: o Koothu-P-Pattarai. Como romântico e visionário que era, Muthuswamy queria aproximar a cultura tradicional de seu estado das novas gerações, urbanites95 imersos na cultura de massa e com os olhos voltados para a cultura ocidental. A perspectiva utópica idealizada por ele de criar um “Teatro Tamil”, que evocasse suas ricas tradições sem perder de vista a necessidade de modernização, de um olhar para o futuro, fez com que ele fosse buscar no Theru-K-Koothu, visto por ele como expoente máximo da cultura teatral de Tamil Nadu, as ferramentas para produzir um teatro com o pé na tradição e os olhos na modernidade. Sua utopia é, ao mesmo tempo, um ato ufanista, uma declaração de amor ao teatro e um grande problema em termos de linguagem. Embora a intenção de aproximar a cultura tradicional do moderno (leia-se: toda escola teatral ocidental) seja nobre, os resultados nem sempre são os mais coerentes do ponto de vista estético, porque esbarram na falta de formação e informação sobre o que seria este “teatro ocidental” e quais as formas de produzir fricções criativas e potentes entre ele e o Theru-K-Koothu. Ou seja, nada de novo até aqui para nós, artistas ocidentais acostumados a buscar no Oriente “matéria prima” para nossas pesquisas e produções teatrais, não fosse a ironia de que, desta vez, a equação se apresenta na ordem inversa, mas as resultantes sejam passíveis dos mesmos questionamentos a que estamos sujeitos e já acostumados, em nossas experimentações interculturais. Sobre esse assunto, o interculturalismo, as problemáticas não cessam de se desdobrar. Me debruçar sobre esse tópico foi um dos momentos mais tensos e desconfortáveis dessa pesquisa porque me levou, inexoravelmente, às minhas próprias incursões interculturais e às dimensões que elas assumem para aqueles que, até então, não tinham voz para dizer o que achavam delas, de fato.

95 Urbanite: morador das grandes cidades ou apreciador do estilo de vida das grandes cidades.

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É um experimento doloroso, reconheço, mas muito necessário e recomendável se quisermos caminhar por esse terreno de “pegar emprestado o pilão do vizinho” para produzir nossa farinha. Como se reparte com o vizinho, então, o pão produzido com essa farinha? A discussão avança por um campo abertamente ético e político que, não sendo novo, continua insolucionável. Para tanto, tomo como exemplo a experiência da companhia Purisai Duraisamy Kannappa Thambiran Parambarai Theru Koothu Manran no Théâtre du Soleil, na produção do espetáculo “A room in India”, em 2016. A questão que se pretende elucidar é como todos esses aspectos impactam a tradição, seus artistas e todo o ethos, entendido como modo de vida, que sustenta o Theru-K-Koothu, oferecendo uma visão geral das suas condições de existência, no presente, para que esse percurso do macro para o micro nos leve, o mais próximo possível, do que é o Theru-K-Koothu hoje. As questões levantadas não possuem respostas fáceis ou simples; há toda uma sorte de possibilidades inesperadas entre esses diferentes atores sociais, como num jogo de dados em que as combinações imprevistas dos números podem levar a desfechos inesperados. De fato, não há um único desfecho, mas múltiplos. Em alguns, o Theru-K-Koothu ganha o reino de Indraprastra e em outros, evidentemente, ele parte para o exílio, junto com os Pandavas. Os dados de Yudisthira estão sendo lançados agora. Neste exato momento, as apostas ainda estão todas em aberto, mas, não nos esqueçamos: os dados são viciados e o princípio da igualdade é apenas ilusório. Esse capítulo pretende tratar exatamente dessa disparidade que se multiplica e desdobra em muitas realidades e conjecturas, uma verdadeira encruzilhada que aponta muitos caminhos e incertezas.

4.2 O EMBATE ENTRE O FLEXÍVEL E O RÍGIDO: FOCLÓRICO E CLÁSSICO

Talvez a única certeza na busca de uma base comum entre as tradições clássicas e folclóricas do teatro indiano seja a de elementos

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que atestam a resiliência do teatro folclórico. O teatro sânscrito não sobreviveu por muito tempo; talvez sua estética fosse rígida demais. Mas os teatros folclóricos foram capazes de usar, no espaço de milênios, qualquer coisa que considerem útil para eles. Como os criadores de teatro de todo o mundo, os artistas populares são bons em se apegar a coisas que funcionam, mas também sabem o quanto devem ser versáteis para sobreviver (HOLLANDER, 2007, p. 68)96.

Reforço o uso, daqui para frente, da palavra “folclórico” porque é este o termo utilizado na Índia para descrever suas manifestações populares, a despeito da forma pejorativa que ele assume no ocidente e, também, no Brasil. Esta é, portanto, uma escolha assumidamente política, que foi se tornando mais consciente e evidente à medida que a pesquisa avançava, com a clara intenção de legitimar a forma como esses artistas se autonomeiam, para além daquilo que está institucionalizado e tido como “mais adequado”. Portanto, a palavra “popular”, ainda que utilizada como sinônimo de “folclórico” até este momento, não será mais utilizada, marcando também, para mim, uma mudança de lente na pesquisa. Não porque passe a compreendê-las como coisas muito diferentes, mas porque seu uso mascara o problema da estigmatização da palavra “folclórico”, algo que precisa ser discutido edebatido em outros termos, pós- coloniais, se possível. A cultura folclórica da Índia precisa ser vista por seu valor intrínseco e não em comparação à sua contraparte clássica e da leitura que é feita no ocidente, ainda muito contaminado pelo orientalismo. Este é o primeiro passo que podemos dar no sentido de diminuir as distâncias criadas para separar aquilo que, na realidade, forma um todo orgânico, recíproco e dinâmico. Distâncias que servem apenas para ampliar desigualdades de status e, portanto, de oportunidades e de visibilidade no campo estético e político. Segundo Jacob Srampickal (1994), no livro “Voice to the voiceless: the power of people´s theatre in India”, existe cerca de 70 formas regionais de teatro, diferentes entre si, mas acredito que o autor tenha catalogado apenas as formas

96 No original: Perhaps the only certainty in a search for common ground between the Classical and folk traditions of Indian theatre is that elements that are proof of folk´s theatre resilience. Sanskrit theatre did not survive for long; perhaps its aesthetic was too rigid. But folk theatres have been able over the space of millenia to use whichever they need them. Like theatre-makers all over the world, folk performers are good at holding onto things that work, but they also know how versatile they must be to survive (HOLLANDER, 2007, p. 68).

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essencialmente teatrais, considerando exclusivamente aquelas cujo formato mais se assemelha à concepção ocidental de teatro e desconsiderando todas as outras formas hibridizadas que, sem dúvida, fariam este número exorbitar em muito, uma vez que a cultura teatral popular da Índia dificilmente poderá ser catalogada segundo nossa compreensão ocidental sobre o que seria teatro e o que seria dança. O teatro folclórico na Índia é um universo muito complexo e variado do ponto de vista estético e estrutural, partindo de células teatrais muito simples até formas dramáticas completas, como apresentado no primeiro capítulo. Mas o que une a todos, afinal, para que possamos chamá-los desta forma única? Uma relação horizontal entre artistas e público e uma profunda capacidade de adaptar-se às demandas de cada época. Talvez esta seja a definição mais apropriada para caracterizar a essência do teatro folclórico no mundo: sua horizontalidade, que favorece trocas, interações e coloca todos os envolvidos num patamar de igualdade e reciprocidade, além de sua adaptabilidade, manifesta de duas maneiras distintas e complementares: através de uma imensa mobilidade e uma profunda resiliência (Hollander, 2007). A pesquisadora Hanne M. De Bruin (1999) ressalta que a flexibilidade presente em diversos aspectos do estilo é a estratégia mais eficiente que possuem para garantir sua sobrevivência. Não à toa, o título de seu livro é “The Flexibility of a South Indian Theatre Tradition” (1999), a pontuar o que – em sua opinião – é a maior qualidade do Kattaikkuttu (Theru-K-Koothu), mas também de toda cultura folclórica da Índia. Observar esta qualidade é também uma forma de demarcar territórios e “dar nome aos bois”. Sabemos que o teatro sânscrito deixou de existir, ainda que tenha claramente influenciado todo o teatro clássico posterior, por sua extrema rigidez formal. A flexibilidade seria, portanto, uma virtude da cultura folclórica sobre a cultura clássica, quando há muitos exemplos do inverso sendo reafirmados constantemente pelo senso comum. Nesse contexto, a flexibilidade assume, também, um valor de resistência política. Ser flexível é sinônimo de encontrar estratégias bem-sucedidas de sobrevivência, devolvendo à respeitável cultura clássica da Índia, a seguinte pergunta: e vocês, como têm conseguido se adaptar para sobreviver aos novos tempos?

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Embora essas qualidades sejam, quase que por unanimidade, reconhecidas como os pilares do teatro folclórico, ainda há, por parte de alguns pesquisadores e artistas, tentativas de compará-lo ao teatro clássico como forma de conferir-lhe legitimidade. É como se a cultura folclórica não pudesse ser legitimada justamente por aquilo que é sua maior potência: sua flexibilidade, sua adaptabilidade, sua horizontalidade e resiliência. Esta, talvez, seja apenas uma estratégia para subjugá-lo a uma antiga “micropolítica de poder” (Foucault, 2014) bem expressa no sistema de castas, a definir quem pode o quê e quais espaços cada um pode ou não ocupar segundo esta mesma lógica de poder. No último capítulo do Natyasastra, Bharatamuni nos diz que os deuses preferem ser reverenciados pelo drama, mais do que por flores e sândalo, conferindo, à arte dramática, um valor ritual-religioso que é evidente no teatro sânscrito, mas também inerente à cultura folclórica, em que o drama ritual, que desabrocha nos grandes festivais religiosos e nas celebrações sociais, desempenha um papel decisivo para a vida espiritual e social das comunidades rurais, reafirmando sua identidade cultural. Ou seja, não há evidências históricas que possam comprovar a superioridade de um ou de outro, ou mesmo definir, com precisão, a extensão da influência mútua exercida. E há mesmo muitos elementos em comum entre os dois, para além de suas diferenças notórias: terminologias, metodologias, uso da cortina em cena (yavanika), dos personagens Sutradhara e Vidushaka, do poorvaranga, rangapooja, uttaranga, concepções estéticas de bhava e rasa, aspectos rituais, materiais dramatúrgicos etc. Entretanto, elas nunca foram colocadas em prática, nas formas teatrais folclóricas, do mesmo modo que aparecem nas formas clássicas. No clássico, a tônica é o rigor formal e a tendência a sistematização e codificação; no folclórico, à flexibilidade e àhorizontalidade nas relações. Mesmo concebendo esta paridade, ainda assim é muito presente no senso comum, dentro e fora da Índia, certa ideia de que o clássico é superior ao folclórico porque apresenta graus mais elevados de sofisticação estética. E assim, as tensões não deixam de se multiplicar e exigir malabarismos e ajustes permanentes por parte dos artistas populares, nunca o contrário. A cultura folclórica sempre precisa provar, a todo momento, o seu valor, a sua função,

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enquanto a cultura clássica já está legitimada ela simplesmente é e não precisa se justificar ou se adequar a parâmetros externos para existir. Em 2017, o Kattaikkutu Sangam criou um espetáculo unindo Theru-K- Koothu e música carnática, chamado “Karnatic Kattaikkuttu”. O sistema musical carnático é utilizado tanto pela cultura clássica quanto pela folclórica, e o espetáculo se propõe a falar sobre essa proximidade, numa tentativa de mostrar que muitos aspectos do que chamamos de clássico na cultura indiana também aparecem na cultura folclórica, colocando em questão, propositalmente, a pretensa superioridade do primeiro sobre o segundo:

A ideia por trás de tal colaboração, disse Krishna, era “demolir a demarcação clássico-popular. Esse vocabulário diminui o que chamamos de folclórico, reduzindo-o a uma forma exótica, étnica, a uma curiosidade menor. O Kattaikkuttu é uma forma de arte séria”, observou ele. “E não há nada de superioridade e de poder nas formas de arte intituladas como clássicas” (Entrevista concedida por T. M. Krishna para a revista digital Scroll.in em 27/01/2019) 97.

Oferecendo uma resposta efetiva a essa tentativa de dominação, muitas tradições folclóricas evitam uma aproximação demasiada com a cultura clássica, mantendo suas práticas livres das regras e definições por ela impostas deliberadamente. De fato, para a maioria dos atores e do público do teatro folclórico, que não conhece o Natyasastra, as indicações nele existentes são de pouca utilidade. Ainda assim, De Bruin pontua:

De acordo com a estudiosa de teatro Hanne M. de Bruin, a história do Kattaikkuttu tem pelo menos 200 anos. Entretanto, dado que tem muitos elementos reconhecíveis do texto sânscrito Natyashastra, como a afinação de instrumentos, a invocação musical, canções invocatórias para várias divindades, o elemento cômico, maquiagem e figurinos elaborados, pode-se inferir que suas origens remontem a um período mais antigo. Tais elementos aparecem em outras formas de teatro folclórico do sul da Índia, como Kathakali, Yakshagana e Koodiyattam, entre outros (Entrevista concedida por Hanne M. de Bruin para a revista digital Scroll.in em 27/01/2019). 98

97 No original: The idea behind such collaborations, Krishna said, was to “demolish the classical- folk demarcation. This vocabulary diminishes the so-called folk, reduces it to a lesser, exotic, ethnic piece of curiosity.” Kattaikkuttu “is a serious art form,” he noted. “And there is nothing high and mighty about those art forms titled as classical” (Entrevista concedida por T. M. Krishna para a revista digital Scroll.in em 27/01/2019). 98 No original: According to theatre scholar Hanne M de Bruin, the history of kattaikkuttu is at least 200 years old. But given that it has many recognisable elements from the Sanskrit text Natyashastra, such as the tuning of instruments, a musical invocation, invocatory songs to various deities, a comic element, elaborate makeup and costumes, one may infer that its origins go back

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No Theru-K-Koothu, a arte teatral é coisa das mais vivas, vista como um dispositivo que permite às populações pobres e sofridas das áreas rurais do estado uma forma genuína de entretenimento, para além de sua importância ritual já apresentada, um espaço onírico de prazer e divertimento, fazendo frente à dura vida no campo. Não há, portanto, nenhuma necessidade de engessar sua estrutura dramática, tornando-a convencional, formalizada e de difícil apreensão pelo público, em detrimento de sua estética calcada na oralidade e no improviso, falando diretamente àqueles a quem se destina. Os artistas de Theru-K-Koothu sabem disso há muitas gerações e toda sua estética está impregnada deste saber. Essa discussão serve apenas para pontuar o conflito permanente e não solucionável entre a cultura clássica e a cultura folclórica na Índia e suas consequências sobre o elemento mais vulnerável dessa equação. O Theru-K- Koothu transita nesse terreno instável: precisa fazer concessões importantes em busca de legitimidade e sobrevivência no contemporâneo, assim como outras formas dramáticas folclóricas. É um jogo quase sempre desigual, que reflete o peso do milenar sistema de castas no tempo presente. Mesmo quando parece que não se trata mais disso (quando discutimos as tensões entre clássico e folclórico), mesmo quando pensamos que o sistema de castas é assunto do passado (ele foi abolido após a independência da Índia, em 1947), lá está a divisão de classes a delimitar espaços, graus de importância e pertencimento, legitimando a concentração de poder nas mãos das classes mais altas e relegando os demais a posições secundárias na arte, na política, na economia etc. E onde tudo isso desemboca? Se as condições de existência são desiguais, elas levam também a condições desiguais de competição no campo profissional. Em seu contexto original, no campo, ainda que de forma precária, esees artistas estão protegidos pela cultura que os engloba: os festivais, festividades, celebrações que precisam do Theru-K-Koothu para continuar a further. Such elements are similarly conspicuous in other folk theatre forms of South India such Kathakali, Yakshagana and Koodiyattam, among others (Entrevista concedida por Hanne M. de Bruin para a revista digital Scroll.in em 27/01/2019).

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existir, ambos se alimentando e sustentando. Entretanto, nas cidades, essa fragilidade aumenta, junto com a competitividade e a necessidade de “profissionalização”, em termos muito distintos daqueles estabelecidos pelo Panku System. Na cidade, eles precisam se tornar “atores” versáteis, num ambiente onde suas habilidades artísticas, quase sempre, valem muito pouco. Seus saberes e sua cultura caem numa vala de invisibilidade e inferioridade, eclipsados pela cultura de massa, especialmente, a indústria cinematográfica e a televisão. O Theru-K-Koothu vira artigo exótico, que remete a uma vida bucólica, antiga, que as novas gerações, urbanas, veem com certa reserva e estranhamento. Mas o Theru-K-Koothu ainda é o maior representante teatral de Tamil Nadu! Então, cria-se todo um mercado alternativo de workshops de maquiagem, música, dança, os apreciadores endinheirados contratam os artistas para apresentações particulares, o que, ao mesmo tempo, lhes dá uma possibilidade de sobrevivência e vai criando um imaginário bastante estereotipado e esvaziado do estilo. Como não há uma tradição de treinamento de atores estabelecida, e as nossas parecem um tanto inadequadas para suas necessidades (ainda que muito desejáveis), o Theru-K-Koothu assume status de “método de formação de atores”, e assim, o termo “teatro folclórico” vai, tristemente, se aproximando do significado que damos a ele no Ocidente. O cenário parece caótico e abertamente contrário ao Theru-K-Koothu, mas será isso uma sentença? Os dados de Yudisthira ainda estão sendo lançados...

4.3 O THERU-K-KOOTHU E O “DESENCANTAMENTO DO MUNDO”

“Kattaikkutu não é capaz de sobreviver à competição com o popular cinema Tamil”, “a tradição certamente deve estar morta ou morrendo” e, “de qualquer maneira, é uma forma de teatro desatualizada, adequada apenas para públicos iletrados e deslocada em um ambiente moderno e em uma sociedade em rápida mutação”. Estas são algumas das opiniões expressas por pessoas urbanas de classe alta e média, que parecem completamente fora de contato com o ambiente rural onde estas formas de arte ocorrem. Na realidade, o teatro está muito vivo e, a julgar pelo crescente número de apresentações oferecidas por

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grupos profissionais, ganhando popularidade99 (DE BRUIN, 1999, p. 19).

O que acontece quando os mais jovens abandonam as vilas e vão para as cidades em busca de melhores condições de vida? Como manter viva uma tradição, quando seu centro é duramente atingido? Quem, afinal, se sentará ao lado de Draupadi para, mais uma vez, escutar a história dos grandes épicos? Assim como em outros lugares do mundo onde as culturas tradicionais estão ameaçadas pelo processo esmagador da globalização, o Theru-K-Koothu, embora não corra risco iminente de desaparecer (como pude constatar em minha pesquisa de campo), não está imune às investidas dos tempos, à competição desigual com a cultura de massa e aos agravantes econômicos que empurram, cada vez mais, as populações rurais para as cidades. Esta reflexão vem acompanhada de um desconforto: aquele que vivi na posição privilegiada de artista e pesquisadora ocidental quando em contato direto com os artistas de Theru-K-Koothu. Pude sentir, na pele, o peso de minha posição como agente afirmador de suas qualidades artísticas e ambições profissionais num novo cenário, cosmopolita, elitizado, culto e moderno, ao qual minha figura é diretamente associada e do qual esses indivíduos são, historicamente, excluídos pelo rígido sistema de castas e, hoje, pelo próprio sistema econômico. Uma posição desconfortável que reflete bem as tensões que regem o avanço dos artistas de Theru-K-Koothu rumo aos grandes centros urbanos do estado. Se, por um lado, isso lhes oferece uma possibilidade de ascensão econômica e social, por outro lado coloca a tradição numa posição potencialmente vulnerável e imprevisível. Que função cumprirão os heróis do Mahabharata, que reluzem em significação no Festival de Draupadi Amman, neste novo cenário? Para começar esta reflexão, gostaria de expor a forma como me aproprio do conceito weberiano de “desencantamento do mundo”, valendo-me de sua

99 No original: “Kattaikkutu has not been able to survive the competition with the popular Tamil film”, “the tradition certainly must be dead or dying” and “anyway it´s an outdated theatre form, fit only for uneducated village-audiences and out of place in a rapidly changing, modern society”. These are a few of the opinions vented by urban upper and middle-class people, who seem completely out of touch with the rural folk performing art forms. In reality, theatre is very much alive and, judging from the increasing number of performances offered to professional groups, gaining in popularity. (DE BRUIN, 1999, P. 19)

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concepção de que há dois mundos opostos: o primeiro, animista, associado à magia, repleto de forças desconhecidas a dirigir o destino dos homens, um mundo sobrenatural, não dual, onde todas as forças – criativas e destrutivas – operam em misteriosa harmonia, para além do entendimento humano. Este seria o mundo onde nasceu o Theru-K-Koothu e todas as formas dramáticas folclóricas da Índia e - me arrisco a dizer -, de todo o mundo. O segundo seria o mundo pós-moderno, onde esta visão cosmológica e holística da vida, ancorada na ideia da existência de uma força divina, encontra pouca reverberação no imaginário coletivo, sendo, muitas vezes, considerada inferior à visão de mundo determinada pela razão iluminista (não desconsiderando toda uma escola contemporânea de artistas, pesquisadores, terapeutas, cientistas etc. que dizem ser possível habitarmos uma espécie de “caminho do meio”, entre o mundo anímico-mágico e o mundo racional-tecnológico). Proveniente de uma cultura agrária, com fortes contornos animistas, comandado por xamãs, feiticeiras, por forças mágicas e misteriosas, espíritos bons e maus, a interferir no destino dos homens e imerso num mundo pré-ariano, ainda mais antigo àquele ordenado pela doutrina hinduísta, que lhe absorve valores e práticas, o Theru-K-Koothu é um exemplo bastante concreto desta concepção mítico-mágica da existência que permeia as civilizações primitivas em todo o globo e que se contrapõe a uma concepção ético-religiosa, com evidente tendência à racionalização e intelectualização de suas práticas. O Theru-K-Koothu nasce do ritual e dele tem se alimentado em toda sua trajetória. É produto de uma visão de mundo cosmogônica, a quem presta contas e se remete todo o tempo. O “desencantamento do mundo” seria, portanto, a fragilização do tecido social, cultural e espiritual que deu origem ao Theru-K-Koothu, colocando-o numa posição de vulnerabilidade no cenário pós-moderno, em que sua existência é, a todo momento, colocada em xeque, um terreno liminar e perigoso, mas potencialmente transformador, conforme trataremos de verificar mais adiante, quando adentrarmos o campo da performance e o avanço do Theru-K- Koothu para as grandes cidades, em busca de novos públicos e meios de sobrevivência. O desencanto seria o resultado natural da desmistificação das

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grandes narrativas espirituais e artísticas que lhe deu origem, deixando seus artistas e toda a rede de relações simbólicas, comunitárias e sociais que se estabeleciam, por e através dele, esvaziadas de sentido, descontextualizadas, desconfortavelmente fora do tempo, num país onde o cinema local é a grande paixão nacional, a definir não apenas novos comportamentos sociais, culturais, morais, mas também a estabelecer novas definições e funções para a arte, para além daquelas buriladas, arduamente, por milênios, pela cultura clássica e folclórica da Índia. Soma-se a este cenário questões mais práticas e relacionadas à vida cotidiana, como, por exemplo, as mudanças climáticas, que alteram a sazonalidade das chuvas, interferindo nos ciclos agrários e, por consequência, em todo o ciclo de festividades e rituais que os acompanham. Este simples fato torna-se mais um elemento na intrincada cadeia de eventos que levam à fragilização do Theru-K-Koothu, com decorrente fragilização do Festival de Draupadi Amman e de outros festivais importantes, fundamentais para a manutenção da cultura tradicional local ao longo de séculos. Não bastando este fator climático, há também a forte presença do agronegócio tomando espaço da milenar agricultura familiar, enchendo os campos de pesticidas e fertilizantes, produzindo sem intervalos e em quantidade infinitamente superior ao que os camponeses conseguem produzir de modo artesanal. O resultado é o empobrecimento dessas populações que, não sendo capazes de competir, começam a migrar massivamente para as grandes cidades em busca de subempregos e aumentando, exponencialmente, o número de suicídios entre trabalhadores rurais nas últimas décadas. Num país onde 70% da população depende, direta ou indiretamente, da produção agrícola para sobreviver, 11,2% dos suicídios registrados, cerca de 5.650, só em 2014, são de agricultores desesperados e endividados100. O empobrecimento que leva ao êxodo rural e aos altos índices de suicídio também leva as novas gerações para as grandes cidades em busca de melhores oportunidades de vida. Sem os jovens, a vida nas vilas torna-se menos produtiva e a transmissão da cultura tradicional entre as gerações, menos fluída e

100 Extraído do site: https://en.wikipedia.org/wiki/Farmers%27_suicides_in_India

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garantida. A longo prazo, a tendência natural deste afastamento, desta ruptura com as raízes, é que os jovens passem a ter pouco interesse na manutenção dos valores tradicionais, atingindo, em cheio, toda a tradição do Theru-K-Koothu e o Festival de Draupadi Amman. Nas cidades, assistindo aos filmes de Bollywood, usando calça jeans e falando um inglês cool, quem ainda se lembrará do sofrimento de Draupadi? Quem se sentará para escutar, ainda e uma vez mais, suas histórias de sofrimento e superação? O desencanto se estabelece como uma praga silenciosa que vai tomando a plantação vagarosamente, como a falta de chuva que torna a terra árida, como os atrativos da cidade grande e os chamativos slogans, em inglês, que celebram a pujança do capitalismo num país onde 21,9%101 da população vive abaixo da linha da pobreza. Sem as condições materiais mínimas, toda a vida simbólica, artística e espiritual das vilas fica profunda e irreversivelmente comprometida. Estudando sobre o vilarejo de Akkur, que tive a oportunidade de visitar para esta pesquisa, descobri que sua população atual é de aproximadamente 3.000 pessoas, enquanto a cidade de Chennai, capital do estado, chega aos mais de oito milhões de habitantes. A consequência desta catástrofe para o Theru-K-Koothu é evidente. Com o empobrecimento das populações rurais, não há como organizar o Festival de Draupadi Amman e outras celebrações que, tradicionalmente, contam com a participação dos artistas com a regularidade que seria desejável. Elas se tornam mais esparsas, rareiam ou, simplesmente, deixam de acontecer em muitos distritos. Todo o calendário tradicional dessas festividades, que criam e movimentam a dinâmica social, econômica e cultural das vilas, desaparece ou se fragiliza. O “desencantamento”, por esta ótica, seria também um subproduto da globalização e do próprio capitalismo, a agir duramente sobre os modos tradicionais de vida das comunidades rurais da Índia. Entretanto, nem tudo é escuridão e pesar. Durante a pesquisa de campo, fui surpreendida pelos meus colaboradores com a afirmação de que o Theru-K- Koothu está muito vivo e ativo nas áreas rurais do estado de Tamil Nadu. O

101 Extraído do site: https://pt.actualitix.com/pais/ind/india-populacao-abaixo-da-linha-de- pobreza.php

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Professor Dr. A. Chellaperumal, do Departamento de Antropologia, da Pondicherry University, foi categórico em afirmar que existem mais de 200 companhias (profissionais, semiprofissionais e amadoras) ativas em todo o estado. Hanne M. de Bruin, indóloga e fundadadora do Kattaikkuttu Sangam, também respondeu com ironia a recorrente afirmação, feita pelos intelectuais e artistas urbanos do estado, de que o “Theru-K-Koothu estaria à beira da extinção”. Para ela, esta tradição está mais viva do que nunca, à medida que sua relação com a vida comunitária e os festivais religiosos, continua sólida. Confirmando as palavras de De Bruin, Chellaperumal complementou que “[...] enquanto o culto a Draupadi Amman estiver vivo e pulsando em Tamil Nadu, o Theru-K-Koothu também estará.” (entrevista pessoal, janeiro/19). A partir de tudo que vi e ouvi durante a pesquisa de campo, concluo que o Theru-K-Koothu não está mesmo à beira da extinção, o que é uma boa notícia. Entretanto, dizer isso não contradiz a ideia de “desencantamento do mundo” que foi apresentada aqui. Uma coisa é não estar à beira da extinção, outra é escapar ileso às profundas mudanças que a Índia vem sofrendo nos últimos anos, com acentuado impacto sobre as populações rurais. Como produto desse ambiente, o Theru-K-Koothu está sujeito às dificuldades que se apresentam e considero especialmente problemático o avanço dos artistas para as cidades, na tentativa de se misturar a intelectualidade local e usufruir de suas benesses econômicas e políticas. A meu ver, trata-se de uma negociação sempre desigual entre a cultura rural tradicional e a cultura moderna urbana, em que a primeira precisa ceder, abrir mão de características fundantes, para tornar-se mais palatável e aceitável para as massas urbanas pouco familiarizadas com a estética rural e ruidosa do Theru-K-Koothu, com intensa participação popular, episódios de transe, possessão e catarse coletiva. Em última instância, tornar-se mais vendável, um produto como qualquer outro. E, neste ponto, é preciso questionar-se: o quanto isso está de acordo com a essência do estilo, definido por todos com quem tive a oportunidade de conversar como um teatro ritual? Onde, exatamente, o ritual se encaixa nessa equação, sem nenhuma pretensão em ser purista? Essa pergunta incômoda, para a qual não tenho uma resposta satisfatória, povoou

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minha mente em todas as oportunidades que tive de assistir uma apresentação de Theru-K-Koothu fora de seu contexto original, e me pergunto, para além da questão econômica, em que medida isso é mesmo bom para esses artistas e para sua tradição? Quanto é possível ceder e deformar, sem corromper-se? Apesar de tudo quanto foi dito, a ideia de “desencantamento do mundo” expressa no texto não reflete, a priori, uma visão pessimista sobre o futuro do Theru-K-Koothu. Sobretudo, ela expressa uma contradição latente no seio da tradição que precisa ser cuidada; sinaliza um risco, a necessidade de estar alerta aos perigos que os circundam, exigindo uma nova tomada de consciência e um novo posicionamento frente às demandas e desafios que se apresentam. É, portanto, uma oportunidade única de crescimento, transformação e fortalecimento, desde não se subestime os riscos evidentes, nem tampouco a potência da cultura tradicional em seu valor intrínseco. É preciso, portanto, assumir conscientemente o protagonismo dessa transformação, tomar as rédeas desse processo de negociação com os tempos - a princípio, não muito favorável aos artistas tradicionais - e encontrar novas formas de organizar-se e produzir, sem corromper-se. Encontrar novas estratégias que precisarão vir, necessariamente, da própria tradição e de seus fazedores, sob o risco de, delegando-se esta função a outros, vir a desaparecer por completo.

4.3.1 AS CIDADES DESENCANTADAS E AS PISTAS QUE NOS REMETEM AO “NOVO ENCANTAMENTO”102 DO MUNDO

Não é simplesmente a falta de interesse artístico que mantém as classes abastadas de Chennai longe dos festivais folclóricos. Pode haver receio de que a experiência do festival do Mahabharata venha a

102 Termo utilizado por Erika Fischer-Litche no livro “The transformative power of performance: a new Aesthetics” (2008) para se referir às estratégias performativas ou ferramentas “abertas”, que permitiriam criar outros tipos de materialidades cênicas, de fisicalidades através da presença compartilhada entre seus fazedores (atores e público), além de outros modos de relação e de recepção menos previsíveis e controláveis que, quebrando a lógica do institucionalizado ou propondo a relativização dos cânones definidos pelo institucional, levam a um novo olhar para o mundo interior e exterior, que é uma possibilidade de reencantamento não romantizada e potencialmente transformadora dos indivíduos, nos dias atuais.

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perturbar o delicado equilíbrio da sociedade civil (HOLLANDER, 2007, p. 80)103.

O Theru-K-Koothu já foi apresentado como produto deste mundo encantado original, bem como de seu desencantamento, ocupando, em ambos os extremos, um espaço fronteiriço, transicional, seja pela liminaridade presente nos binômios arte-ritual e arte-vida, seja pela fragilização do seu tecido social e cultural protetivo, relegando-o, também, a uma existência liminar, entendida aqui como precarizada e instável, no mundo pós-moderno, a exigir novas estratégias de sobrevivência que vão do estético ao político:

A arte e o ritual são gerados em zonas liminares onde processos de mutação, de crise e de importantes mudanças são dominantes (Turner, 1988, p. 58); por esse motivo a liminaridade é observada como “caos fecundo”, “armazém de possibilidades”, “processos de gestação” e “esforço por novas formas e estruturas” (Turner, 2002, p. 99 apud CABALLERO, 2016, p. 39).

Imerso na tradição pan-indiana engajada na produção do Belo, da Virtude e da Verdade através da experiência estética, há milênios, o Theru-K-Koothu também sofre com uma certa corrosão e enfraquecimento desta estrutura original na atualidade, ao requerer, de seus artistas, novas staging techniques (Fischer-Litche, 2008, p. 197), para garantir sua sobrevivência num novo cenário local, mas globalizado, paulatinamente afetado pela cultura ocidental e de massa, e pela própria precarização de sua condição social e econômica. Uma das estratégias mais notáveis tem sido a ida desses artistas e suas trupes para os grandes centros urbanos do estado em busca de garantir sua sobrevivência material e simbólica. O choque entre estes dois sistemas de valores tão distintos é evidente, mas, longe de corroborar uma visão pessimista, como situação de crise, limítrofe, ela é propulsora de novas soluções e possibilidades que, se em alguns aspectos implicam numa certa “desritualização” do estilo, por outro lado abrem novas perspectivas de difusão dele a uma população jovem, essencialmente urbana, que pouco conhece da tradição e que pode vivenciá-la

103 No original: It´s not simply a lack of artistic interest that keeps the upper classes of Chennai away from their folk festivals. There may well be a fear that the experience of Mahabharata festival will upset the delicate balance of civil society (HOLLANDER, 2007, p. 80).

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por uma nova ótica, não necessariamente inferior à original, mas sensivelmente diferente. Essa diferença merece ser observada com atenção e cuidado, especialmente quando o Theru-K-Koothu começa a ser visto e vendido como “produto exótico” para entreter plateias endinheiradas que veem nele a “cara” da cultura tradicional de Tamil Nadu, uma reminiscência de um “passado mítico idílico”, visto com saudosismo e sentimentalismo por uma geração que, não tendo nascido nesse ambiente, ainda se lembra dele, na figura de seus antepassados mais próximos. Uma saudade de algo que “parece importante por alguma razão que já não sabemos bem qual é”. Intuo que seja o chamado de seus ancestrais, na forma de traços preservados da vida das aldeias nos grandes centros urbanos, que transparecem nos mais pequenos e comezinhos atos cotidianos, muitas vezes executados de forma ritualmente desapercebida, mas não totalmente inconsciente. Entretanto, há também bons exemplos desse processo de aproximação entre rural e urbano, tradicional e moderno, representado por toda uma rede de apreciadores, conhecedores, mecenas, pesquisadores e artistas a estimular a vinda destes artistas tradicionais para as cidades, de forma a permitir que as novas gerações não se percam da cultura e dos valores tradicionais. Podemos citar, como exemplo, o próprio Koothu-P-Pattarai, o trabalho da diretora teatral, feminista e professora A. Mangai104, do professor Dr. V. Arumugham, fundador do Thalai-K-Kol105, entre muitos outros, engajados em promover um diálogo entre esta tradição e as demandas contemporâneas, seja na vida ou na cena, de modo crítico-ético. Esses profissionais procuram criar oportunidades de apresentação mais dignas e contextualizadas para os artistas, ajudam a promover workshops de técnica corporal, canto, dança, maquiagem, abraçando novos públicos que podem conhecer o Theru-K-Koothu por um viés mais próximo da realidade, mais contextualizado. Muitos deles fazem trabalhos artísticos se valendo de elementos estéticos do Theru-K-Koothu, o que abre um campo de

104 Sobre A. Mangal, veja o documentário: https://www.cultureunplugged.com/play/740/A-- MANGAI 105 Blog do Thalai-K-Kol: http://thalaikkol.blogspot.com/2012/04/activities-of-thalai-k-kol.html

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trabalho para esses artistas no “treinamento de atores”, na “assessoria” ao trabalho de criação, apenas para citar dois exemplos bem comuns. Observando todo esse cenário, fui levada, num primeiro impulso, a pensar em todas essas transformações como uma perda, atropelando e desfigurando a tradição. Entretanto, não seria isso uma visão simplista ou romantizada da questão? Uma certa nostalgia de uma beleza “pura”, “original”, “que não pode ser maculada”? Todas essas transformações não estariam cumprindo a função de criar uma ponte – necessária - entre o tradicional e o contemporâneo, acessível e inteligível para as novas gerações, garantindo a preservação de suas tradições e valores mais íntimos e preciosos? Não seria isso uma estratégia de aproximação e sobrevivência simbólica válida que não exclui, em si, vislumbres de encantamento, beleza e respeito às tradições? Vejamos o que nos diz Caballero:

Insisto nesta dimensão da liminaridade, fora da esfera estritamente sagrada, pelo potencial que representa para refletir as situações cênicas e políticas inseridas na vida social, propiciadoras de trânsitos efêmeros, mas de alguma maneira também transcendentes. (...) O retorno ao “real” faz um apelo ao entrecruzamento entre o social e o artístico, acentuando a implicação ética do artista (CABALLERO, 2016, p. 38 e 44).

No entanto, as perguntas incômodas persistem: mas os artistas de Theru- K-Koothu têm consciência dessa realidade ou simplesmente respondem a ela? Eles têm possibilidade real de escolha? A cidade acolhe ou engole esses artistas e sua tradição? Seguindo a ótica apresentada por Fischer-Litche de “uma coisa e outra” (2008, p. 204), sim, podemos dizer que as duas coisas são verdadeiras: as cidades abraçam esses artistas e lhes oferecem outras possibilidades, e sim, o embate com a cultura urbana afeta o corpus da tradição. A cidade oferece acolhimento, permite relações mais verticais e descoladas das obrigações entre clãs, linhagens e famílias do ambiente rural, mas exige contrapartidas que precisam ser, a todo tempo, negociadas em processos, nem sempre igualitários, mas sempre abertos, imprevisíveis, potencialmente transformadores por esta mesma condição. Não há como eliminar o risco inerente a esta migração, os processos contínuos de apropriação cultural que pressupõem engolir e deglutir o tempo todo, a desorganização de certa lógica comunitária e sua reorganização

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no espaço das cidades, a tal liminaridade de que vimos falando até aqui, com todo risco e potência implícitos. Nos resta saber em que medida os artistas de Theru-K-Koothu têm consciência deste risco, das novas possibilidades que se apresentam e o quanto estão instrumentalizados a negociar com esta outra realidade e suas demandas para garantir sua sobrevivência. Segue relato de campo que remete ao primeiro encontro106 com um artista Theru-K-Koothu que consigo me lembrar, muitos anos antes de decidir estudar a cultura folclórica da Índia, mas suficientemente marcante para justificar minha escolha e as inquietações que nasceram deste encontro:

O ano era 2007, caminhávamos pelo calçadão da praia central de Pondicherry, um dos points turísticos mais cults da Índia, conhecido como a melhor e mais barata cerveja do sul do país. Era uma noite fresca de inverno sul-indiano, com a brisa do mar soprando forte. Como de costume, uma multidão caminhava pela orla barulhenta: famílias que faziam piqueniques noturnos, pessoas nadando, casais velados de namorados, vendedores ambulantes e suas buzinas, matracas, apitos, quiromantes, pedintes, benzedeiras, turistas e crianças, muitas crianças, fazendo algazarra. Todos os barulhos somados quase a encobrir o barulho do mar. E então no meio do calçadão, embaixo de um poste de luz tênue, lá estava ele: um ator popular, talvez um ator Koothu, totalmente caracterizado, acompanhado de um único músico tocando um instrumento de corda a entoar, em Tamil, um texto-canção, quem sabe uma história, um lamento, um discurso, algum tipo de manifesto. Como saber? O impacto sobre nós foi imenso: primeiro porque éramos todos atores e a figura nos atraiu de pronto por pura identificação e sentimento de pertencimento, segundo pela construção exterior extremamente elaborada e chamativa (ornamentos, maquiagens, figurinos, postura corporal não-realista, uso não- natural da voz etc.), coisas que costumam atrair naturalmente o olhar aguçado de outros atores, em especial os ocidentais que, como nós, vão à Índia em busca de outras referências. No entanto, passado o encantamento inicial deste primeiro encontro fortuito, começamos a reparar em outras coisas mais intrigantes ainda. A primeira delas é que éramos os únicos a parar para escutá- lo, nós e outros estrangeiros mais barulhentos e interessados em tirar boas fotos da exótica figura, produto da “Incredible India”, slogan governamental do turismo na Índia. Os indianos mesmos passavam, paravam por breves instantes e seguiam em seu passeio noturno, indiferentes. Então começou a surgir um sentimento comum entre nós de certo desconforto, um outro tipo de identificação, menos solar e heroica, a nos remeter ao lado B da vida artística. Naquele instante, já não havia mais ocidente e oriente com seus séculos de tradições teatrais a nos separar, apenas atores a deglutir, com certa dificuldade, algumas verdades duras e inexoráveis da profissão, que os

106 Objetivamente, não posso afirmar que tenha sido a primeira experiência que tive com a cultura folclórica porque já havia visitado a Índia duas vezes antes, por longos períodos. Entretanto, foi uma experiência forte o bastante para que seus detalhes, após tantos anos, continuassem muito vivos em minha mente. Algo ali foi extremamente perturbador e provocador e, nesse sentido, iniciático. Um novo portal se abria naquele momento, mas eu ainda não sabia...

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passantes jamais desconfiariam. A imagem daquele ator encenando com furor para um público que o ignorava, em pleno passeio público, quase como uma divindade decaída e esquecida ou como a reminiscência de uma era longínqua que já não encontrava mais reverberação no novo contexto, produziu em nós um efeito devastador. A euforia deu lugar ao espanto, as perguntas deram lugar a um silêncio desgostoso. Sentimos que tínhamos o dever ético, dhármico, de ficar ali até que ele terminasse, pelo menos nós (os artistas), num certo sentimento classista, ingênuo e romântico. Como ele saberia? Por fim, quando ele encerrou sua atuação, virou as costas como se aquilo fosse a coisa mais natural do mundo, da representação mais refinada ao comportamento cotidiano mais banal, em segundos. Tomou um copo de água, enxugou o suor e saiu andando com seu parceiro depois de trocarem poucas e secas palavras. E nós? Ficamos lá, pasmos outra vez, como a rir de nosso sentimentalismo e de todas as suposições que tínhamos feito sobre o ator, a cena, o público, a fragilidade e complexidade de todas essas relações. Seria isso mesmo ou tínhamos perdido algo ali, que fugia ao nosso entendimento? Com que agudez ele soube falar tanto de nós mesmos sem que trocássemos uma palavra. O fato é que ele seguiu seu caminho, agora como um humano fantasiado a caminhar pela calçada e nós... permanecemos parados, sem palavras, debaixo daquele poste, a digerir todos os sentimentos, emoções, reflexões que aqueles não mais de dez minutos deixaram em nós. Esse foi meu primeiro contato absolutamente casual com a cultura folclórica e me espanta como, ainda hoje, a cena permanece vívida em minha mente e ainda me dói, ainda me intriga, ainda me faz rir. Vivi nesta singela experiência o furor do encantamento da descoberta, o desencanto de conhecer a solidão ontológica que habita o artista, o pasmo da transformação provocada pela reviravolta na trama e a promessa de um novo encantamento. Afinal, ainda éramos uma trupe de jovens atores excursionando pela primeira vez pela Índia, a noite estava linda, não havia nada mais com que se preocupar. Quem sabe não era hora de tomar aquela cerveja?

Mesmo num cenário de desencanto, há luminescências.... e preciso falar sobre duas delas, que aqueceram meu coração em diferentes tempos: mais recentemente, as experiências artístico-pedagógicas-políticas do Kattaikkuttu Sangam, e lá no início de tudo, onde essa pesquisa foi secretamente gestada à revelia de minhas intenções, a utopia teatral do Koothu-P-Pattarai (que ainda é um farol que me emociona e faz crer no teatro). Estes são, para mim, dois exemplos potentes de reecantamento do mundo onde o Theru-K-Koothu ocupa um lugar de destaque, mas também um lugar novo, para além daquele estabelecido pela tradição:

Quando as pessoas e as coisas aparecem como são, o mundo se torna encantado. Em sua essência, o encantamento compreende a autorreferência. É a libertação de todos os esforços para compreender

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e a revelação do "significado intrínseco" do homem e das coisas (FISCHER-LITCHE, 2008, p. 186)107.

4.4 KATTAIKKUTTU SANGAM: A TRADIÇÃO MIRANDO NO FUTURO

4.4.1 APRESENTAÇÃO DO SANGAM E DO GURUKULAM

A versão experimental do que seria o Kattaikkuttu Sangam surgiu nos anos de 1980, na vila de Perunkattur, sob a direção de P. Rajagopal, filho de Ponnucami, fundador e diretor da Perunkattur Ponnucami Nataka Manram. Rajagopal tinha o desejo de oferecer educação formal às crianças mais carentes e vulneráveis dos vilarejos próximos, de forma que elas pudessem receber, a um só tempo e num mesmo lugar, uma formação acadêmica de qualidade e uma formação artística que lhes permitisse valorizar suas tradições e levá-las adiante para novos públicos e contextos. Seu desejo vinha de um lugar muito sincero e sensível: ele próprio deixara a escola aos 10 anos para se tornar um ator de Theru-K-Koothu na companhia de seu pai. Assim, em 1990, já em companhia de sua esposa, a indologista holandesa Hanne M. de Bruin, eles fundaram uma organização não governamental em parceria com outros artistas de Theru-K-Koothu da região, a Kattaikoothu Kalai Valarchi Munnetra Sangam. Nascia, então, o Kattaikkuttu Sangam, como instituição artístico-pedagógica, no vilarejo de Punjarasantankal, distrito de Kanchipuram, não muito longe de Perunkattur. Foi também nessa ocasião que se oficializou a mudança do nome do estilo de Theru-K-Koothu para Kattaikkuttu, nome que passou a ser utilizado não apenas pelo Kattaikkuttu Sangam, mas por companhias parceiras que atuavam na mesma região. A principal missão do Kattaikkuttu Sangam é oferecer educação formal e artística para crianças e jovens, atuar em favor dos direitos dos trabalhadores rurais, em especial das mulheres, e promover o intercâmbio entre artistas locais

107 No original: When people and things appear as what they are the world becomes enchanted. At its core, enchatment comprises self-referentiality. It is the liberation from all endeavours to understand and the revelation of the "intrinsic meaning" of man and things (FISCHER-LITCHE, 2008, p. 186).

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e estrangeiros, dialogando com a produção artística contemporânea. Para tanto, trabalha em duas frentes: a primeira visa oferecer educação formal (grade 3 até 12) e todos os cuidados básicos, para 50 crianças e jovens, entre 6 e 18 anos, advindos de situações de extrema pobreza, violência e abandono. Essas crianças vivem dentro do Kattaikkuttu Sangam, em regime de internato, formado por um corpo de profissionais fixos e um corpo de profissionais voluntários, mantido por doações nacionais e internacionais (sempre flutuantes e temporárias) de pessoas físicas, empresas, instituições e do próprio governo da Índia e da Holanda. A segunda frente de trabalho oferece formação artística para os alunos, através do ensino do Kattaikkuttu (Theru-K-Koothu), mas também do teatro contemporâneo, de modo a responder às demandas culturais e econômicas que se colocam para essas novas gerações, com o intuito de que venham a se tornar atores profissionais capazes de levar adiante suas próprias tradições, mas também que tenham condições de competir nesse mercado de trabalho. Para tanto, eles recebem treinamento em canto, dança, atuação, instrumentos musicais e maquiagem, a partir da técnica do Kattaikkuttu (Theru-K-Koothu), estilo do norte, Perunkattur, produzindo espetáculos que fazem parte do repertório tradicional, mas também novas produções, a partir de outros repertórios e dramaturgias, valendo-se da estética do Kattaikkuttu (Theru-K- Koothu).

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Figure 55 - Nas três fotos acima, vê-se os estudantes do Kattaikkuttu Sangam em cena, apresentando um espetáculo contemporâneo, que dialoga com a estética e os personagens do Kattaikkuttu. Fotos: arquivo pessoal.

Essas atividades todas acontecem no Kattaikkuttu Gurukulam, inaugurado em 2002, no complexo do Kattaikkuttu Sangam. O Gurukulam se organiza a partir dos seguintes pilares: igualdade de gênero e de oportunidades, direitos e deveres iguais para todos, acesso aos saberes acadêmicos e artísticos sem restrições de gênero e casta. Sua proposta pedagógica é progressista, calcada na experiência sensorial e cognitiva, “aprender fazendo”. Os alunos envolvem-se não apenas nas atividades acadêmicas e artísticas, mas na própria manutenção sustentável do Sangam. Eles cultivam sua horta, seu pomar, cuidam da limpeza dos espaços comuns e do internato, lavam suas roupas, aprendem serviços artesanais, segundo suas faixas-etárias e habilidades:

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Desde a sua criação em 2002, o Kattaikkuttu Gurukulam realizou três estatísticas sobre o perfil dos jovens praticantes do Kattaikkuttu, bem treinados e altamente qualificados, 20% dos quais encontraram emprego em tempo integral no campo das artes do espetáculo; 60% foram para o ensino superior, enquanto 20% combinaram estudo superior com atuação artística em tempo parcial (Disponível em: Acesso em 12/08/2019 às 16h45)108.

Outra missão importante do Kattaikkuttu Sangam é ser sustentável, produzir pouco lixo, plantar sua própria comida, entre outras metas ambientais traçadas por seus gestores. É possível conhecer mais sobre a instituição em seu site e em seu perfil na rede social:

https://www.kattaikkuttu.org/ https://www.facebook.com/kattaikkuttu.sangam

4.4.2 UM OLHAR FEMININO E FEMINISTA PARA A TRADIÇÃO

Frente a tudo o que foi apresentado até aqui, parece claro que estamos tratando de uma instituição artística progressista e humanista, engajada em questões sociais e políticas contemporâneas e urgentes: valorizar a cultura e a identidade rural e regional, oferecer educação formal de qualidade, formando jovens empreendedores, associada a uma formação artística de excelência, desenvolver uma consciência e prática ambientais sustentáveis, combater desigualdades criadas tanto pelo sistema econômico e pelo sistema de castas quanto pela desigualdade de gênero. Por todas essas razões, o Kattaikkuttu

108 No original: Since its inception in 2002 the Kattaikkuttu Gurukulam has delivered three cohorts of well-educated, highly trained and skilled young Kattaikkuttu performers, 20% of whom have found full-time employment in the field of the performing arts; 60% have gone on to higher studies whilst 20% combine higher studies with part-time performances. (Disponível em: Acesso em 12/08/2019 às 16h45).

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Sangam é uma potência que irradia transformação, numa realidade marcada pela pobreza, pelo abandono, pela violência, pela opressão dos dogmas religiosos e dos rígidos cânones sociais. Neste tópico, trato especificamente de uma questão para a qual estamos todos mais sensíveis no mundo: a questão da discussão de gênero, como ela é tratada dentro da instituição e o quanto esta postura pode ser vista como transgressora numa sociedade machista e patriarcal como a indiana, em especial nas comunidades rurais, onde os casos de violência contra as mulheres é ainda maior do que os das áreas urbanas, mesmo sendo subnotificados, além da já institucionalizada desigualdade de oportunidades entre homens e mulheres na sociedade hindu. Dentre as muitas ações artístico-político-pedagógicas afirmativas que o Kattaikkuttu Sangam, através de seu Gurukulam, realiza, a principal delas é oferecer educação formal e artística para crianças e jovens carentes, provenientes das áreas rurais, independentemente de casta, posição social ou gênero. Essa atitude acerta em cheio dois pontos sensíveis da tradição: subverte a autoridade do sistema de castas e do papel da mulher nas sociedades rurais indianas, como propriedade da família (pai) e depois (da família) do marido. O que se vê, como resultado, é o empoderamento desses meninos e meninas, mediante a valorização de sua cultura e dos saberes tradicionais, visando inclui-los em um mundo de possibilidades dos quais estão, por sua condição social primeiro e depois pelo gênero, apartados. Entretanto, no caso das meninas, essa atitude é ainda muito mais profunda e transformadora. Quando elas são aceitas na instituição elas recebem educação formal, o que em si, já é um privilégio. Nas áreas rurais, por questões econômicas e práticas (as crianças precisam ajudar na lavoura), é comum que apenas um filho vá à escola e esse será o filho homem mais velho, via de regra. As meninas ficam em casa para ajudar no trabalho doméstico e casam-se mais cedo do que seria apropriado. A realidade do casamento infantil começa a mudar na Índia, é verdade, mas a lei no papel pode demorar ainda muito tempo para se tornar uma realidade nessas comunidades, assim como a abolição do

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sistema de castas em 1947 ainda não conseguiu extirpar sua influência sobre a sociedade hindu, em especial, a rural. Ou seja, poder ir à escola e morar nela, gratuitamente é a sorte grande que todo pai almeja para sua filha. Instruída, ela pode conseguir um casamento mais vantajoso no futuro (assim esperam), mas mal sabem que essas meninas não estão sendo preparadas para se casar, e sim para tomarem as rédeas de suas vidas, avançarem nos estudos, irem para a universidade, terem uma profissão e, quem sabe, se quiserem, se casar em um dia. Lentamente, começa a se construir, nas comunidades do entorno, um outro imaginário possível para as mulheres indianas, as novas gerações. O exemplo bem-sucedido do Kattaikkuttu Sangam vai burilando, lentamente, a rocha bruta e disforme que sustenta os preconceitos e as violências de gênero e de classe há centenas de anos. Abre-se um espaço novo, liminar, onde surge uma pergunta: e se? E se fosse possível receber a mesma educação que um homem? E se fosse possível receber a mesma educação que um homem que mora na cidade? E se fosse possível receber a mesma educação que um homem que mora na cidade e vem de uma casta superior? E esse “e se” é um precedente sem precedentes nessas comunidades. O trabalho feito ali não é apenas sobre a preservação de uma forma teatral local, sobre preservar a cultura e os valores regionais, é sobre dar dignidade, igualdade de condições e consciência social para crianças e jovens em situação de vulnerabilidade, em especial as mulheres. E essa sensibilidade não poderia vir de outra pessoa, senão de uma mulher como De Bruin. Ela é a contradição mais evidente e latente no seio dessa tradição: é uma mulher e pesquisadora estrangeira, numa posição de comando, num contexto em que as mulheres não ocupam esses espaços. Uma renomada indologista e estudiosa da performance teatral que, em 2002, abandonou uma carreira acadêmica de sucesso para se dedicar exclusivamente ao Kattaikkuttu Gurukulam. De Bruin é a viga mestra que sustenta as abordagens político-educacionais e artísticas da instituição, a pessoa que move outras pessoas a trabalhar pelo Gurukulam, criando uma rede internacional de apoio e cuidado, uma verdadeira máquina em forma de mulher, que vai criando as condições materiais de existência da instituição (sempre as

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duras penas), escancarando portas onde haviam frestas, criando oportunidades onde havia resignação e submissão.

Mas no gurukulam (internato) do Kattaikkuttu Sangam, fundado e dirigido por P. Rajagopal e de Bruin, desde 1990, em Kanchipuram, Tamil Nadu, as tradições artísticas estão sendo fomentadas sem os preconceitos de casta e gênero estabelecidos. “Acreditamos que teatro é educação: durante os anos de treinamento artístico no gurukulam, os alunos adquirem habilidades importantes - como (autoconfiança), capacidade de se apresentar em público, trabalho em equipe, resolução de problemas (e) empatia, (habilidades) que a educação formal, infelizmente, muitas vezes não consegue desenvolver”, disse de Bruin (Entrevista concedida por Hanne M. de Bruin para a revista digital Scroll.in em 27/01/2019)109.

Embora tudo pareça inspirador e maravilhoso, a realidade apresenta problemas. De Bruin é uma estrangeira, uma mulher, afinal. As condições que lhe dão certo poder e importância, por uma ótica, são as mesmas que lhe causam problemas, por outra. Embora domine o assunto profundamente, com mais de 30 anos de estudo da cultura tradicional de Tamil Nadu e do Kattaikkuttu, sendo fluente em Tamil escrito e falado, ela não atua diretamente na formação dos atores de Kattaikkuttu, o que fica à cargo de Rajagopal e seus assistentes. Apesar disso, ela é responsável por introduzir mudanças significativas no estilo, como, por exemplo, novos repertórios e proposições estéticas contemporâneas. Claramente, essa interferência gera muita discussão entre as companhias e artistas mais tradicionais, ainda que, de modo geral, as relações entre todos sejam muito “cordiais”. Isso não impede de, nas entrelinhas, se perceber o incômodo que tal interferência feminina e estrangeira provoca no cerne de uma tradição masculina e profundamente arraigada no sistema de castas e, através

109 No original: But at the Kattaikkuttu Sangam gurukulam founded and run by P Rajagopal and de Bruin since 1990 in Kanchipuram, Tamil Nadu, artistic traditions are being fostered without the incumbent caste and gender biases. “We believe that theatre is education: during their years of artistic training at the gurukulam, students acquire important skills – such as [self] confidence, the ability to present oneself in public, team work, problem solving [and] empathy, [skills] that formal education, unfortunately, often fails to deliver,” said de Bruin (Entrevista concedida por Hanne M. de Bruin para a revista digital Scroll.in em 27/01/2019). É possível ler na íntegra a matéria publicada pela revista digital Scroll.in, sobre o espetáculo “Karnatic Kattaikkuttu”, e as discussões que ele suscita sobre as tensões entre clássico-folclórico, casta e gênero, através do link: Karnatic Kattaikkuttu. Disponível em: < https://scroll.in/magazine/910539/carnatic-music-and-a- folk-theatre-form-come-together-to-push-the-stubborn-lines-of-caste-and-gender>. Acesso em 25/08/2019 às 14h00.

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dele, na formação de linhagens definidas e legitimadas por parentesco direto entre membros homens. De Bruin quebra todos esses paradigmas e provoca uma revolução (a meu ver muito benéfica e necessária) na tradição. Outra contradição evidente aparece quando a instituição passa a formar mulheres como artistas de Kattaikkuttu, o que esbarra na aceitação dessas artistas pelas companhias tradicionais. Onde elas trabalharão, afinal? Isso esbarra nas famílias que não querem que suas filhas sejam artistas (a má reputação dos artistas parece ser uma tônica mundial). Uma coisa é estudar e até ter uma carreira, outra coisa é ser artista e ver as possibilidades de conseguir um bom casamento se esvair entre os dedos, envergonhando sua família. Não, nem tudo é tão perfeito como parece. Quando estive no Kattaikkuttu Sangam conheci uma jovem e talentosa atriz que tinha se formado na instituição e continuado lá como assistente de Rajagopal na formação dos novos alunos. Ela atuava tanto em papéis feminino como masculinos, tinha recebido a mesma formação integral de qualquer artista homem de Kattaikkuttu. Trabalhava na instituição, tinha um salário, certa independência material, o respeito de seus pares e uma carreira promissora como atriz pela frente. Soube, após meu retorno ao Brasil, que ela tinha escolhido deixar a instituição para se casar. Uma coisa é criar uma comunidade ideal e viver dentro dela, outra (mais difícil) é inserir-se numa sociedade em que tais mudanças avançam em passos bem mais lentos e as contradições se multiplicam. Esse é, a meu ver, um dos pontos mais sensíveis e não consensual entre as diferentes linhagens de Theru-K-Koothu na atualidade: a inclusão de mulheres no estilo e, por consequência, a discussão das questões de gênero, especificamente na sociedade rural de Tamil Nadu. A partir das falas dos colaboradores das companhias de Purisai e Akkur, pude notar que esse assunto ainda é um grande tabu. As mulheres são admitidas apenas enquanto estudantes, participando dos workshops (pagos) oferecidos pelas companhias, normalmente no período da baixa estação, quando não há muitas oportunidades de apresentação. Ou seja, a admissão de mulheres é permitida apenas como estratégia de sobrevivência dessas companhias, e não como proposta concreta

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de abrir-lhes espaço enquanto artistas, e muito menos reflete uma preocupação em diminuir as diferenças de oportunidades entre homens e mulheres nas áreas rurais do estado. Não podemos nos esquecer, também, do constrangedor capítulo da ligação histórica das devadasis rurais (casta kuttati), às dançarinas rituais dos templos, na consolidação do estilo Bharatanatyam, nome moderno da Dasi attam, feita pelas devadasis. Quando o estilo se consolidou como forma clássica nos anos 1950, essa hereditariedade foi reivindicada, ainda que nenhum de seus membros pertencessem de fato a castas das devadasis. Muito pelo contrário, todos eram brâmanes, cultos e nascidos no meio urbano que, reivindicando para si a tradição devadasi, recriaram e remodelaram o Dasi attam, dando-lhe, inclusive, um novo nome: Bharatanatyam (Dança de Bharata, nome original da Índia), mais afeito ao gosto das altas castas, à elite intelectual e urbana do estado e seus arroubos nacionalistas (não podemos esquecer que a Índia se tornou independente em 1947). Parece que a associação com as Devadasis, casta de mulheres provenientes do escalão mais baixo da sociedade, emprestava certa legitimidade ao novo estilo e aos anseios da classe dominante, dada sua importância histórica nas sociedades do sul da Índia, mas a manutenção do nome Dasi attam não deve ter soado tão bem, talvez porque àquela época a imagem da dança e de suas praticantes estava profundamente deturpada e associada à prostituição. Seria mais viável, portanto, ligar-se ao poder invisível (e ideal) da tradição dessas dançarinas devotadas ao serviço templário, “emprestar-lhes” os movimentos e estrutura básica da dança, atribuindo-lhe novos elementos mais ao gosto urbano, desligando-se de seus aspectos mundanos e sexualizados, ou seja, o embaraçoso vínculo de suas dançarinas com as camadas mais baixas da sociedade, seu estado atual de decadência e abandono. Só recentemente assumiu-se publicamente que essa usurpação do status das Devadasis tirou, de suas reais descendentes, o protagonismo que lhes era de direito, exigindo uma reparação histórica que, aos poucos, mas não sem ressentimento e conflito, vai sendo feita. O que vemos neste exemplo é tanto a

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falta de paridade entre a cultura clássica e folclórica, quanto o total desprezo pela condição dessas mulheres na sociedade. Creio que este exemplo seja pertinente, ainda que o Bharatanatyam não faça parte do escopo desta pesquisa, porque ele exemplifica com muita clareza a brutalidade - quase sempre invisível e em muitas camadas - desse combate desigual entre dois sistemas culturais, por natureza, irmanados, com prejuízo sempre maior para as mulheres, evidenciando a importância histórica, social e política da discussão de gênero no seio de uma tradição masculina como o Theru-K-Koothu, como a proposta pelo Kattaikkuttu Sangam. Em conversa com De Bruin (31/12/2018), durante visita ao Kattaikkuttu Sangam, falamos longamente sobre a inserção de mulheres no estilo e as resistências encontradas por eles entre seus pares, entre os familiares, nas comunidades e entre as próprias meninas. Algumas respostas apenas confirmaram o que já havia intuído, como, por exemplo, certo desconforto de algumas companhias e artistas de Theru-K-Koothu com as propostas do Kattaikkuttu Sangam. Outras respostas revelaram inquietações mais sutis: a desconfiança das famílias com relação ao fato de suas filhas se tornarem atrizes, o medo de que isso inviabilize a vida dessas meninas nas vilas depois de sua saída da instituição, afinal, que espaço haveria para uma mulher educada e culta numa sociedade agrária? Isso não seria, tão somente, uma forma de anarquizar as estruturas? Desorganizar aquilo que, há milênios, “funciona bem” (certamente por uma ótica patriarcal)? Do ponto de vista das meninas, algumas questões também se colocam. Um alto grau de instrução pode tornar a menina “exigente” e dificultar o processo de aceitação de seus pretendentes. Ela pode acabar se tornando muito “independente”, difícil de controlar e confiante o suficiente para escolher seu próprio parceiro ou... não escolher nenhum e lembrando que o casamento é a base de toda organização social no meio rural. Não se casar não é uma opção, a princípio. Então, cria-se um impasse para essas meninas, cujos resultados, via de regra, levam a situações como a descrita acima: uma promissora atriz que abandona tudo para se casar, sucumbindo às pressões sociais e talvez ao desejo sincero de ter uma família, de amar alguém. Impasse que, obviamente, não se aplica aos meninos, que

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podem perfeitamente seguir sua carreira artística e encontrar um bom casamento, sem nenhum conflito, sem a necessidade de fazer nenhum sacrifício ou abandonar uma coisa por outra. Tudo isso serve apenas para nos mostrar como o trabalho feito pela instituição é uma luta entre Davi e Golias, um trabalho de formiguinha que vai desconstruindo, ou pelo menos colocando em questão estruturas sociais muito enrijecidas e aceitas sem questionamento, há centenas de anos. Uma fala de De Bruin, durante nosso encontro no Kattaikkuttu Sangam em 31/12/2018, sobre a questão de gênero me chamou especial atenção: “as meninas aqui representam papéis femininos e masculinos, em total igualdade com os meninos, mas não conseguimos fazer com que elas representem o papel de Kattiyakaran (o cômico lascivo)”. Uma coisa é receber educação formal, outra coisa é estudar uma forma teatral tradicional e até cometer uma ou outra transgressão controlada (afinal, essa é a condição para estar no Kattaikkuttu e poder usufruir das benesses oferecidas). Outra coisa é aparecer em público falando com total liberdade, encarando o público olho-no-olho, fazendo piadas, falando palavras de baixo calão ou duplo sentido. Não há ainda, no imaginário dessas meninas, dessa microssociedade rural, a possibilidade de que isso aconteça sem que as consequências para suas vidas posteriores sejam (segundo imaginam) desastrosas. Perguntei então a De Bruin, se isso seria, portanto, o último portal a ser cruzado na instituição. Ao que ela me respondeu: “se depender de nós, sim”. A mulher-máquina avança em busca de produzir a maior mudança possível: aquela que sustentará as outras, as mudanças práticas, as que entram porta adentro das casas, as que modificam as relações cotidianas, as que configuram novas realidades possíveis, num curto espaço de tempo: a mudança de todo um imaginário... “e se?”. E se essas meninas pudessem? Recentemente, recebi a notícia de que algumas estudantes da instituição tinham sido aceitas numa universidade no norte do país! Completamente ciente de sua missão e das dificuldades apresentadas, De Bruin faz aquilo que todos com quem conversei disseram ser incompatível com a natureza do Kattaikkuttu/Theru-K-Koothu: ter uma atuação político-social. O trabalho do Kattaikkuttu Sangam, por meio das

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ações político-artístico-pedagógicas que empreende, vai levando, também, a tradição para um novo lugar, nada estável ou plenamente compreendido e aceito, mas muito necessário.

4.4.3 DISCUSSÃO POLÍTICO-SOCIAL ATRAVÉS DE UM TEATRO RITUAL?

Durante a realização dessa pesquisa, li muitas vezes e ouvi tantas outras que o Theru-K-Koothu, por se comunicar com públicos muito diversos, de diferentes extratos sociais e políticos, não poderia, a priori, ser considerado um teatro com tendências político-sociais. Sua existência dependeria, prioritariamente, do apoio financeiro de seus patronos (provenientes de castas mais altas ou advindos da elite urbana) e dos moradores das vilas. Desse modo, não pareceria inteligente indispor-se com nenhum grupo social, esquivando-se de discussões sociais e políticas espinhosas. O recurso, nesses casos, seria aquele de recorrer ao humor para dar conta de adaptar as encenações à realidade de cada plateia, através da figura do Kattiyakaran, tratar com humor determinados problemas recorrentes da vila, satirizar os políticos (como instituição genérica e sem nome) que só aparecem na hora de pedir votos etc., sem implicar-se diretamente em discussões político-sociais muito profundas. Mais do que isso, seria algo improvável. Entretanto, durante a pesquisa de campo, constatei que essa possibilidade já ocorre através dos grupos de teatro modernos que se valem da estética do estilo para produzir espetáculos contemporâneos, desvinculados da tradição, quase sempre com teor político-social. Resta saber se esse tipo de abordagem ficará restrita às companhias modernas, desvinculadas do peso da tradição, ou se, em algum momento, ela chegará às companhias tradicionais de Theru-K-Koothu, levando o estilo a um outro estágio de existência. Se De Bruin (1999, p. 19) estava mesmo certa em afirmar que a grande virtude do estilo é sua flexibilidade, sustentada pelo tripé intérpretes, público e apoiadores, é possível supor que, com a mudança dos tempos (envolvendo uma proximidade maior com os centros urbanos e seus moradores e as demandas da sociedade contemporânea), o estilo caminhe para um certo engajamento social e político,

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como ela mesma se encarrega de fazer no Kattaikkuttu Sangam, sob uma outra ótica de caráter pedagógico. A própria De Bruin, no entanto, alerta:

A dependência do intérprete de uma intricada rede de patrocinadores e públicos pertencentes a diferentes setores da sociedade e a diferentes convicções políticas, portanto, parece ser uma das razões mais importantes pelas quais o Kattaikkuttu - apesar de seu potencial para isso - não se transformou em teatro de protesto social (DE BRUIN, 1999, p. 57) 110.

Na frase acima, sinto-me especialmente provocada pela afirmação de De Bruin, por ser ela mesma, agente de grandes transformações políticas e sociais no seio dessa tradição, ainda que elas não tenham alcançado a cena, de fato, no que tange à incorporação desses assuntos no repertório da companhia. Se isso ainda não aparece em cena, talvez seja apenas uma questão de tempo, de motivação e percepção da latência dessa possibilidade no que ela mesmo já faz, precisando apenas de um gesto inicial: escrever um texto, produzir novas peças de repertório, como aquelas que já são feitas com as crianças, tratando de questões ambientais, sanitárias, falando da importância da educação, da igualdade de gênero etc. Seria possível fazer algo semelhante com os atores profissionais? Tratar dessas mesmas temáticas por uma ótica adulta e não infantil? Ou esse tipo de iniciativa é aceitável apenas quando assume uma finalidade pedagógica? Haveria interesse, por parte de seus patronos e mantenedores, em apoiar esse tipo de proposta? E como reagiriam os públicos das vilas a esse novo repertório? O Kattaikkuttu/Theru-K-Koothu poderia existir fora do ritual, como um teatro secular, para além de “inocentes” experimentos artístico-pedagógicos, realizados com crianças? Creio que as resistências são, nesse momento, maiores que o desejo e a necessidade de empreender tal jornada, nas comunidades rurais onde o Theru- K-Koothu cumpre, com maestria, a função social que lhe cabe. Entretanto, nas cidades, esse potencial parece aflorar na produção de companhias modernas,

110 No original: The performer´s dependence upon an intricate network of sponsors and audiences belonging to different sections of society and to different political persuasions, therefore appears to be one of the most important reasons why Kattaikkuttu - despite its potential for this - has no turned into a theatre of social protest (DE BRUIN, 1999, p. 57).

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desligadas das obrigações rituais, de castas e dos modos de vida que organizam as sociedades rurais. Nesse outro cenário, surgem novos arranjos que abrem outro campo de trabalho para esses artistas, como já foi pontuado neste capítulo; novas possibilidades de investigação estética, ampliação de seu repertório e introdução de elementos que, na tradição, seriam dispensáveis ou mesmo desnecessários. E se fosse possível levar essa tradição para as novas gerações, nascidas nos centros urbanos e já em vias de perder esse vínculo com a própria cultura? E se fosse possível produzir um teatro moderno, ancorado nessas tradições? E se fosse possível produzir, a partir desse encontro, um teatro que desse conta de problematizar o sujeito-indiano-tamil do século XX? Assim nasceu, em 1977, uma utopia chamada Koothu-P-Pattarai.

4.5 KOOTHU-P-PATTARAI: UMA UTOPIA TEATRAL

O ano era 1975. Indira Gandhi acabara de suspender os direitos democráticos na Índia. Na cidade de Chennai, um reconhecido escritor assistia, pela primeira vez, uma apresentação de Theru-K-Koothu. Essa é uma história que já dura 44 anos. Tomado pelo que tinha visto, Na. Muthuswamy declarou que aquele era o “verdadeiro teatro de Tamil Nadu”, sendo fortemente ridicularizado pelos presentes que consideraram a apresentação “[...] uma aberração, uma criação estranha e intocável, cheia de superstições e vulgaridades provenientes da cultura pré-urbana” (Hollander, 2007, p. 166). A companhia que se apresentou naquela ocasião foi a Purisai Kalaimamani Natesa Thambiran Therukoothu Nataka Manram, dirigida, àquela época, por Kannappa Thambiran. E eram tempos difíceis para os artistas de Theru-K- Koothu, que lutavam para sobreviver frente ao avanço da cultura de massa, em especial o cinema (parece que a realidade não é tão distante da que vemos hoje, afinal). Levados por essa urgência, eles diversificaram seu repertório; não hesitaram em resumir, em pouco mais de uma hora, peças que duravam uma noite inteira; incluíram na cena elementos estranhos à estética do estilo, como

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canções de filmes famosos, fizeram espetáculos-demonstração para estrangeiros, pesquisadores e para a elite urbana em troca de dinheiro. A elite intelectual do estado, influenciada pelo teatro sânscrito e bramânico, bem expresso pelo Natyasastra, viam no Theru-K-Koothu uma forma menor de expressão artística, uma excentricidade. No campo político, nem os conservadores nem os progressistas reconheciam sua legitimidade. Os marxistas a viam como uma forma teatral feudal e consideravam Muthuswamy um revivalista. O movimento dravidiano (ateístas e anti-casta) não aceitava o Theru-K-Koothu porque ele se remetia à religião hindu e suas divindades. Foi apenas pela influência de intelectuais e políticos da época, que tornaram público o interesse pela cultura folclórica e tradicional no restante do mundo, que os olhares sobre o Theru-K-Koothu e, de certo modo, sobre toda a cultura folclórica da Índia, mudaram. O ano era 1977. Terminava a supressão dos direitos democráticos na Índia. Renascia o interesse pela cultura tradicional Tamil e Muthuswamy, finalmente, conseguia encontrar apoiadores para seu projeto/causa: fundar o Koothu-P- Pattarai e promover a verdadeira cultura Tamil. Os apoiadores eram artistas, intelectuais e ativistas do “Movimento de Nova Poesia”, do qual ele fazia parte. Mas a verdadeira contribuição viria de Purisai: Kannappa Thambiran. Juntos, eles projetaram um teatro para além do sistema de castas, sem influência do cinema e da cultura de massa, ligado aos ideais do “Movimento Nova Poesia”, visando criar um teatro moderno Tamil. Inicialmente, o grupo era formado por membros da família Thambiran, com algum treinamento e experiência em Theru- K-Koothu. Para se sustentar, trabalhavam nos correios enquanto iam desenvolvendo seus treinamentos, projetos e espetáculos. O ator mais célebre desta época foi Sambandan, filho de Kannappa Thambiram, e hoje, Vattiyar da companhia de Purisai, que foi para Chennai procurar trabalho e acabou seduzido pelo projeto de Muthuswamy. Decidiu voltar à sua vila e aprender a fundo a tradição com seu pai, preparando-se para assumir a função que exerce até hoje, dando continuidade à sua linhagem.

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Em 1980 o vento começou a soprar a favor. Muthuswamy escreveu vários artigos sobre o Theru-K-Koothu; cresceu o número de pesquisadores estrangeiros interessados nessa tradição, gerando uma demanda por artistas locais que pudessem criar uma ponte entre eles e os artistas tradicionais das vilas, demonstrar técnicas, falar sobre o estilo de modo mais elaborado e conscientemente organizado. A Sangeet Natak Akademy passou a oferecer suporte financeiro a artistas tradicionais, e a companhia de Kannappa Thambiran foi a primeira trupe de Theru-K-Koothu a se beneficiar desse suporte. O Koothu- P-Pattarai despontou, nesse cenário, como uma companhia teatral moderna, fortemente vinculada às tradições e às discussões políticas da época. Ainda em 1980, o Koothu-P-Pattarai (KPP) apresentou seu primeiro espetáculo solo: uma releitura feita por Sambandan, a partir da estética do Theru-K-Koothu, do tradicional episódio “O desenrolar do saree de Draupadi”, chamado “Panchali Sabdam” e apresentado na Sangeet Natak Akademy, em Nova Délhi. Em 1982, a companhia viajou com essa mesma peça por três estados, agora feita por um grupo de artistas se propondo a discutir a necessidade de se legislar pela causa feminista (empoderamento das mulheres na sociedade indiana) e nacionalista (Draupadi como metáfora da Índia violada pela colonização britânica).

Era década de 1980. Índia.

E um homem conseguiu reunir um grupo de atores do meio rural para realizar uma turnê de um espetáculo feminista e ultranacionalista: esse homem era Muthuswamy. Esse era o espírito que alimentava uma utopia teatral: o KPP, como carinhosamente é chamado e conhecido desde então.

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Figure 56 – Placa que ficava na sede da companhia, quando a visitei pela primeira vez, em 2005, e vista interna do teatro - sem janelas ou portas - uma imagem que, para mim, define a utopia do coletivo. Foto: arquivo pessoal.

Os anos de 1980 a 2000 marcaram um período de grande efervescência para a companhia, com a produção de muitos espetáculos de grande repercussão em toda a Índia. Alguns deles ficavam mais próximos da tradição, propondo releituras de importantes episódios de Theru-K-Koothu, numa concepção cênica moderna, dando enfoque a questões contemporâneas. Esses espetáculos eram apresentados tanto nas cidades como nos vilarejos, sempre com boa repercussão e com um viés político-social explícito. Um espetáculo, em especial, chamou minha atenção, revendo a produção da companhia durante a pesquisa de campo: “Rajasuya Yagam”, uma peça adaptada por Muthuswamy a partir de um episódio bastante conhecido do estilo, “O sacrifício do cavalo”, para ser apresentada durante o Festival de Draupadi Amman, cujo tema era o infanticídio, especialmente de meninas. Muthuswamy não apenas reescrevia a partir do repertório original, mas lhe acrescia uma discussão social complexa e de difícil trato na sociedade, sem medo de fazê-lo, inclusive dentro do festival mais importante para os artistas de Theru-K-Koothu e para as comunidades rurais do estado. Em parceria com uma instituição não governamental, Centre For Development, Research Training (CFDRT), muitas companhias tradicionais de Theru-K-Koothu passaram a produzir espetáculos introduzindo mensagens sociais relevantes, utilizando a estrutura cênica tradicional. Apesar de se colocar como parceiro desse projeto, Muthuswamy via esse novo uso com certa cautela:

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as ONGs utilizavam o Theru-K-Koothu apenas como veículo de propaganda (Agit-prop, como ele dizia) e os artistas aceitavam porque precisavam do dinheiro, mas não havia ali um projeto de pensar o teatro como linguagem, e isso o incomodava porque, ao seu projeto político, se unia claramente um projeto estético: criar o verdadeiro teatro Tamil. Alguns espetáculos foram escritos pelo próprio Muthuswamy, como “England”, feita em 1988, em que falava da necessidade da reconstrução de uma identidade nacional pós-Gandhi e dos problemas criados pela industrialização e modernização da Índia. Outros espetáculos foram criados a partir de textos clássicos ocidentais, como o espetáculo produzido em 1998 “Vellai Vattam”, versão adaptada do “Círculo de Giz Caucasiano” de B. Brecht. Neste espetáculo, todo feito em Tamil, o Kattiyakaran é a figura épica que cria o distanciamento brechtiano, reforçado pelo do uso de canções e músicas folclóricas a entremear os momentos de maior tensão dramática. Interessante pontuar que o projeto estético de criar o verdadeiro teatro Tamil implicava em fazer todos os espetáculos em língua Tamil. Muthuswamy não admitia a criação de espetáculos em língua inglesa (a língua do colonizador que vinha gradativamente tomando o lugar das línguas regionais no processo de escolarização), e até os dias de hoje, o KPP mantém esse firme propósito de usar apenas sua própria língua nas montagens. No final da década de 1980, contando com apoio da US Ford Foundation e produzindo a pleno vapor, o KPP passou a receber artistas estrangeiros como residentes, de onde surgiram novas parcerias que se estabeleceram em duas frentes: troca de treinamentos e produção de espetáculos. Muthuswamy nunca se considerou um diretor, mas um escritor. A vinda de diretores estrangeiros era, para ele, um duplo benefício: podiam dirigir espetáculos e, ao mesmo tempo, oferecer treinamento em “técnicas ocidentais de teatro” para seus atores. Através desses encontros, o KPP conheceu, não apenas os clássicos da dramaturgia ocidental, mas ouviram, pela primeira vez, nomes como Stanislavisk, Brecht, Meyerhold, Grotowski etc. Vieram pessoas de todas as partes do mundo interessadas em conhecer o trabalho da companhia, em contribuir com seu propósito de criar um teatro que unisse tradição e

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modernidade, oriente e ocidente. E nasceram tantas e tantas montagens: Woyzeck, Seis Personagens a procura de um autor, ambas dirigidas pelo diretor israelense Gil Aron, que até hoje mantém estreitos vínculos de trabalho com a companhia.

Seis personagens a procura de um autor – KPP e Gil Aron/2006: https://www.youtube.com/watch?v=0tZCLXe-lFg

Foi nesse contexto que, em 2007, o Grupo Caldeirão, companhia com a qual trabalho há mais de 20 anos, fundada e dirigida por Edilson Castanheira em 1988, foi à Índia para a realização de um intercâmbio cultural de dois meses com o KPP, que culminou na montagem bilingue do espetáculo “O pequeno retábulo de Dom Cristovão”, o primeiro contato com a obra de Garcia Lorca para a companhia Koothu-p-pattarai. Trato dessa experiência incrível um pouco mais adiante; por hora sigamos conhecendo um pouco mais da trajetória do KPP e de seu fundador.

Figure 57 – Grupo Caldeirão e KPP em cena / 2007. O pequeno retábulo de Dom Cristóvão – KPP e Grupo Caldeirão/2007. Disponível em: Acesso em 01/09/2019 às 11h31. Foto: Grupo Caldeirão.

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E assim, por quase três décadas, as produções foram nascendo e um novo coletivo teatral foi se formando. Os artistas tradicionais lentamente seguiram seus caminhos. Alguns, como Sambandan, voltaram para suas vilas e seguiram como artistas tradicionais, muitos desistiram da profissão e outros seguiram carreira como atores de cinema (para desgosto de Muthuswamy). O fato é que soprava-se aos quatro ventos que os diretores de cinema iam no KPP procurar astros para seus filmes, e uma leva de jovens aspirantes invadiam a sede da companhia todos os anos, movidos por esse ideal de fama e enriquecimento. O incômodo de Muthuswamy era evidente. O KPP migrava de uma companhia engajada em criar o verdadeiro teatro Tamil, para uma companhia que revelava astros de cinema, à revelia de sua vontade e sua força de contenção. Quando cheguei ao KPP, em 2005, pela primeira vez, como bolsista da UNESCO, essa cisão era evidente. A imagem da companhia já não era a mesma, sua respeitabilidade também já havia decaído, o apoio financeiro rareava (embora ainda hoje ela seja mantida por uma Trust). Uma parte do grupo, seu núcleo, comungava dos nobres propósitos de seu fundador e líder, e outra parte, claramente estava mais interessada em saber quando viriam os olheiros dos estúdios de cinema. E aparecia gente de todo tipo, das vilas mais remotas, que nunca tinham feito teatro na vida, querendo ser atores. A maioria era de homens, mas sempre havia uma ou duas mulheres, nas muitas vezes em que estive por lá. Muthuswamy era generoso e acolhia a todos. Enquanto estavam lá, lhes oferecia teto e comida, treinamento corporal em Theru-K- Koothu, Devarattam, Silambam, Thudumbu e outras formas de dança, teatro e artes marciais de Tamil Nadu. Ele também os fazia estudar Tamil, escrever e ler corretamente em sua língua mãe. Ia, como “água mole em pedra dura”, revelando para esses meninos e meninas, tão inexperientes e iludidos pelo sucesso da profissão de ator o que era, de fato, o fazer teatral.

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Figure 58 – Minha primeira experiência com o KPP, excursionando com um solo pelo estado de Tamil Nadu. Foto: arquivo pessoal.

Em paralelo, esses artistas iam produzindo espetáculos dirigidos ora por Muthuswamy, ora por algum “senior” do KPP, um ator mais experiente e de carreira bem-sucedida, ora por um diretor estrangeiro. Ao todo, são mais de 40 produções nesses 44 anos. Infelizmente, em 2008 um ciclone devastou a cidade de Chennai, inundando a sede da companhia e todo o material audiovisual se perdeu nessa ocasião, além de equipamentos, figurinos, objetos de cena etc. Aos poucos o grupo vai refazendo esse arquivo com a colaboração daqueles que por lá passaram nessas quatro décadas, oferecendo cópias de fotos, vídeos, matérias de jornal, mas, infelizmente, alguns registros mais antigos foram perdidos para sempre. O material a que tive acesso estava mal identificado e todo misturado, não sendo fácil identificar qual a montagem, o ano, a equipe, o que é uma pena para esta pesquisa e, mais ainda, para o próprio KPP. Fico feliz em dizer que tinha comigo materiais originais que me foram dados em 2005 e que pude devolver à companhia, graças a essa pesquisa, que me fez remexer em caixas e pastas há muito tempo abandonadas, em busca desse material que a memória jurava existir.

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Ainda hoje, a companhia tem como pilar a produção de espetáculos teatrais contemporâneos vinculados à cultura regional (o que inclui o Theru-K- Koothu, a língua Tamil e outras manifestações culturais locais), discutindo questões sociais e políticas, seja através de textos clássicos (de autores indianos ou estrangeiros), seja através de produções próprias. Não há mais artistas de Theru-K-Koothu na companhia, mas é comum que eles venham – assim como outros mestres – dar workshops para os atores, e que os atores os visitem em suas vilas, em especial, a companhia de Purisai, com quem o KPP mantém vínculos históricos. Mas voltando à minha história, eu era uma jovem atriz e dançarina de 27 anos quando cheguei ao KPP pela primeira vez. E foi preciso muitos anos para compreender a importância de um homem como Muthuswamy nesse contexto cultural e político tão diverso do meu, de sua imensa contribuição para o fortalecimento do Theru-K-Koothu no estado e na Índia, abrindo campo de trabalho para tantos e tantos artistas tradicionais, formando gerações de jovens atores que hoje brilham nos teatros e nas telas de cinema, atacando, de frente e sem medo, os principais tabus de sua sociedade. Nem sei dizer se soube aproveitar tudo que podia desses nossos encontros, porque as fichas vão me caindo aos poucos enquanto revisito sua história pessoal, do KPP e a minha própria história junto deles, revendo fotos e vídeos. Não sei se disse isso expressamente antes neste texto, mas foi meu encontro com Muthuswamy que me fez querer conhecer mais a fundo a cultura folclórica da Índia. Sem saber, ele me apresentou um caminho que recusei de início (por preconceito e falta de visão), e que apenas dez anos depois, desabrochou nos primórdios dessa pesquisa e tudo que ela aponta como sonho e desejo para o futuro. Muthuswamy faleceu em outubro de 2018, três meses antes que pudesse reencontrá-lo novamente. Nosso último encontro foi em 2016, quando voltei para a Índia, acompanhada de Edilson Castanheira, diretor do Grupo Caldeirão, nossa filha pequena e um bebê na barriga, e encontrei aquele homem forte e robusto, já acamado, a olhar-nos em silêncio. Hoje fantasio que nos perguntasse em segredo: “O que vamos montar juntos dessa vez?”. Conversamos pouco, lhe

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dei um pacote de café brasileiro – o que já era um acordo tácito entre nós toda a vez que ia a Índia. Já um pouco alheio, ele me perguntou algo em Tamil, ao que eu respondi em inglês. Ouvi pela última vez sua gargalhada sonora a me perguntar: “So, now you know Tamil?” Não me lembro qual foi a pergunta, só me lembro que este foi nosso último momento neste mundo.

Para saber mais sobre a companhia:

http://www.koothu-p-pattarai.org/

Figure 59 – Entrada da sede atual da companhia em Virugambakkam. Fonte: arquivo pessoal.

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Figure 60 – Foto em homenagem a N. Muthuswamy, fundador do KPP, falecido em 2018. Esta foto está na sede da companhia, que era também a residência de Muthuswamy. Foto: arquivo pessoal.

4.5.1 UMA FESTA INDO-BRASILEIRA (BRAZIL PUYAL): TAGA TOM DIM TA DIMI TAGA - DONA DA CASA SEU TERREIRO ALUMIÔ!

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Figure 61 – Arte feita pelo Koothu-P-Pattarai para divulgar nossas apresentações na sede da companhia. Brazil Puyal Encerramento / Grupo Caldeirão e KPP, em 2007. Disponível em: . Acesso em 01/09/2019 às 15h00. Foto: Edilson Castanheira.

O ano era 2007. Chegávamos em Chennai no início do verão. Era mês de março e o Grupo Caldeirão desembarcava na Índia, pela primeira vez, para um intercâmbio cultural com o KPP. A excitação era geral, lá e cá. Curiosidade e alegria mútuas, camuflando as mais de 32 horas de viagem. Chegamos em 10 de março. No dia 11, completei 29 anos. Começava o “Brazil Puyal”, a festa brasileira! Ao todo, foram 60 dias juntos, compartilhando histórias, treinamentos, na companhia uns dos outros, assistindo ensaios, ensaindo nossos repertórios, produzindo juntos. A língua era um empecilho e um motivo para nos aproximar. Eles queriam conhecer o português, nós queríamos falar o Tamil. Com eles, aprendemos Devarattam e Thudumbu. Ensinamos Bumba-Meu-Boi, Jongo, Cacuriá e Ciranda, além de treinamentos corporais e vocais que costumávamos fazer em nossa companhia. A ideia era que eles vivenciassem nosso modo de organização de trabalho e vice-versa, que mergulhássemos nas culturas uns dos outros, aproximando Brasil e Índia.

Bumba-meu-boi na Índia: https://www.youtube.com/watch?v=VRl4aJlbzc4 Nós apresentamos dois espetáculos preparados para aquela ocasião: “Contos e Cantos da Índia”, que estreou na Índia, e outro já antigo em nosso repertório, mas adaptado para a viagem, “Histórias que o mundo conta”, feito com quatro diferentes técnicas de teatro de animação. Juntos, produzimos o espetáculo bilingue “O pequeno retábulo de Dom Cristóvão”. Eles, remontaram uma versão moderna de “Prahalada Charitram”, advindo do repertório de Theru- K-Koothu:

Prahalada Charitram- KPP/2007: https://www.youtube.com/watch?v=UyvS11iYAaM

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Edilson Castanheira, diretor do Caldeirão, organizava a dinâmica de trabalho. N. Muthuswamy apenas observava, sentado em sua cadeira, o nosso trabalho. Às vezes, comentava algo, às vezes discutia com os atores em tamil, às vezes simplesmente gargalhava alto e dizia “well done”, saboreando seu café brasileiro. Nessa época, o KPP começava a se dissolver, mas ainda não sabíamos disso. Aquele era um momento de grande luminescência. O que viria depois já estava lá, mas ainda adormecido. No ano subsequente à nossa ida, os atores mais experientes do grupo, aqueles que formavam seu núcleo ao lado de Muthuswamy, deixaram a companhia. As competições internas, somadas à insistência de Muthuswamy em receber a todos, indistintamente, mesmo aqueles que pouco somavam aos seus ideais, desgostava os atores mais antigos. Além disso, não havia ali, para eles, espaço de crescimento profissional. Para continuar a crescer como artistas, era fundamental deixar o KPP. Muitos foram para a indústria cinematográfica e se tornaram atores de sucesso. As monções de 2008 terminaram o trabalho de dissolução. A inundação destruiu tudo. A sede precisou mudar de endereço e passou a funcionar na casa de Muthuswamy, onde está até hoje, em Viruggambakkam, subúrbio de Chennai. Entre 2009 e 2019, visitei a companhia em cinco ocasiões, na maioria das vezes, apenas para rever Muthuswamy (e levar o tão esperado café brasileiro) e alguns velhos companheiros que ainda permaneciam por lá. Somente nesta última viagem, quando Muthuswamy já havia falecido, Edilson Castanheira e eu nos organizamos para ministrar um workshop para os atores que estão tocando a companhia, dirigidos no Natesh Muthuswamy, filho de Muthuswamy. Havia tristeza no ar. Fazia apenas quatro meses que ele havia falecido. Sua presença ainda estava em tudo e em todos, inclusive em nós. Ainda que o Koothu-P-Pattarai continue a existir (e sabe-se lá por quanto tempo mais, pois, Natesh também está muito doente e não há, no momento, um substituto à altura de seu fundador), a morte de Muthuswamy encerra, de vez, uma certa utopia que os atores mais velhos se lembram bem e os mais novos apenas ouviram falar. O teatro está lá, os atores estão lá, mas a utopia morreu com um homem... ou mesmo antes dele... ela foi morrendo aos poucos, sufocada pelo avanço da

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indústria cinematográfica a roubar o imaginário de seus atores, pelo desinteresse pelo teatro como arte do homem refletindo o presente e as questões de seu tempo, pelo abandono da cultura Tamil em favor de uma cultura moderna, globalizada e de massa. Nós tivemos sorte. Eu tive sorte de ainda conhecer Muthuswamy e o Koothu-P-Pattarai antes que os ventos começassem a mudar de direção. Sua contribuição para a promoção do Theru-K-Koothu, no estado de Tamil Nadu e na Índia é inegável. Sua contribuição para essa pesquisa e para mim, como pesquisadora e artista, é ainda maior. Este capítulo é uma homenagem e um agradecimento para que seus sonhos não se percam na história. Quando penso em Muthuswamy, me lembro de um diálogo imaginário entre Platão e Brecht que Edilson Castanheira escreveu uma vez e assim me contou:

[...] Brecht: Mestre, o senhor quer dizer então que o homem deve sonhar com as utopias, mas precisa aprender a ser feliz na realidade. Mas então, se essas utopias, esses ideais são inatingíveis, por que devemos nos preocupar com eles? Platão: Porque são belos.

Figure 62 – Na. Muthuswamy e Edilson Castanheira / 2007. Foto: Grupo Caldeirão.

4.6 INTERCULTURALISMO: VENTOS DO NORTE, VENTOS DO SUL

Há, neste exato momento, duas forças a agir sobre a cultura da Índia: as influências deixadas pela colonização britânica (pós-colonialismo) e as influências produzidas, em tempo real, pela globalização (pós-modernidade).

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Não se pode mensurar o peso do projeto intercultural sobre a Índia sem levar em consideração essas duas grandes forças que atuam de modo a produzir choques, fricções, atritos, mas também espaços intersticiais, zonas liminares de encontro e desencontro, arranjo e desarranjo, em vias de viabilizar a existência de um terceiro espaço (Bhabha, 1998), que, não sendo nem uma coisa nem outra, permita trocas interculturais em termos mais éticos ou, num plano ideal e ainda utópico, a produção de novas epistemologias não pautadas pelo pensamento dominante do norte, mas advindo das periferias do mundo, em especial do eixo sul os países colonizados pela Europa. Mas será isso uma realidade possível? Acreditando que sim, como podemos construir essa nova realidade? Primeiro temos que constatar o óbvio. Como produto do capitalismo, desde suas origens com a “invenção do oriente pelo ocidente”111, como projeto de dominação material e simbólica, até o advento da globalização e todos os seus desdobramentos, o interculturalismo não foi estruturado para que o discurso das culturas doadoras fosse colocado no mesmo patamar de importância do discurso das culturas receptoras. Essa negociação, desde seus princípios com o multiculturalismo a balizar relações econômicas exploratórias, nunca partiu de uma igualdade de condições, oportunidades e escuta mútuas, muito menos pelo desejo de ser fidedigno às culturas matrizes. Sempre houve uma voz dominante a produzir narrativas sobre si mesma e sobre “os outros”, e essa voz ainda é a voz do hemisfério norte e aquilo que ele disse e diz sobre o restante do mundo. Portanto, nesse contexto, o interculturalismo já nasceu defeituoso e não tinha outra escolha senão: (1) mascarar a deformidade; (2) assumi-la para superá-la. De modo geral, constatamos que a primeira opção prevaleceu por muito tempo, mais do que seria desejável, diga-se de passagem, sem que provocasse alarde ou desconforto. Não que ela tenha sucumbido ou faça parte do passado, mas já encontra aberta resistência no campo dos estudos pós-coloniais e decoloniais, esses ventos quentes que sopram do Sul e que têm chacoalhado fortemente o campo da arte. O teatro intercultural, que nas décadas de 1970, 80

111 Ver a este respeito: Said, E. W. Orientalismo. O Oriente como invenção do Ocidente, 1978.

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e 90 era considerado admirável e avant-garde, hoje produz certo embaraço e, não raro, duras críticas. Não temos mais a inocência de nossos predecessores a nos salvaguardar. Entretanto, a cisão evidente permanece, e com ela, o problema ético e epistemológico. O discurso fala em alteridade, enaltece as diferenças e nossa pretensa “igualdade” a partir delas, mas a prática mostra uma realidade bem diferente: apropriação de saberes assumidamente descolados de seus contextos originais, apenas remetendo-se a eles como pontos de partida, quase nunca como interlocutores ativos e, menos ainda, como beneficiários solidários daquilo que ajudam a produzir. Cria-se, portanto, um circuito intercultural global, uma “diáspora privilegiada” (Bharucha, 1993, p. 5 apud Féral, 2015, p. 389), quase que exclusivamente, por um grupo: artistas ocidentais que vão ao oriente (e também à América Latina e África, numa relação óbvia com os processos coloniais) procurar matéria prima para suas produções, treinamentos, teorias estéticas e performativas, insights, genialidades teatrais, epifanias artísticas etc. Ao outro lado, cabe ceder e doar, incessantemente, seus saberes milenares (assim como já o fizeram em outros tempos e de outras formas claramente associadas ao modelo de exploração colonial), para que outros contem suas histórias de modo que elas sejam descontextualizadas, apartadas da História, até que não façam mais nenhum sentido àqueles para quem foram escritas, criando “novas estéticas e poéticas performativas”, “hibridismos”, “teatralidades” que, conscientemente ou não, contribuíram para reforçar, reafirmar uma certa ideia de oriente (inventada, sustentada e difundida), pelo olhar e pelo imaginário do norte, quase nunca pautada no “lugar de fala” da cultura matriz. Por outro lado, tornaram-se tão excessivas que fomentaram um contra-ataque, como insurgências vindas do Sul:

Não posso negar que essa tendência dominante de deshistoricizar a cultura indiana é a fonte do meu desconforto com a maioria das teorias interculturais do teatro indiano. Já é bastante ruim quando um texto como Shakuntala (a fonte de muitos mitos da graça, da sabedoria e do romance indianos) é descontextualizado de seu contexto estético e social, mas é pior quando uma performance tradicional é despojada de suas ligações com a vida das pessoas. Pessoas para quem é realizado. Nada poderia ser mais desrespeitoso ao teatro do que

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reduzir seu ato de celebração a um repositório de técnicas e teorias (BHARUCHA, 1993, p. 4)112.

O resultado, quase sempre díspar, é que na tentativa de promover um encontro, um espaço de diálogo e troca entre culturas, o que fica evidente é a inconteste afirmação da superioridade da cultura receptora sobre a cultura matriz. Isso porque não se pode ignorar que o interculturalismo tem implicações e consequências bem diferentes sobre artistas/tradições de países em desenvolvimento, como a Índia e o Brasil, e artistas de países ricos e tecnologicamente avançados. O ponto de partida não é simétrico e, portanto, seria um tanto ingênuo ou capcioso esperar que ele produzisse simetrias ao final. O assunto é espinhoso porque coloca em questão o trabalho de personalidades teatrais como Craig, Schechner, Grotowski, Brook, Barba, Mnouchkine, Zarrilli, entre tantas outras célebres personalidades para as artes cênicas ocidentais. Em seu livro “Theatre and the World. Performance and the Politics of Culture” (1993), Bharucha examina os experimentos interculturais desses encenadores, pesquisadores, teóricos modernos com a agudez necessária àquele que está do outro lado da mesa, a contrabalancear forças quase sempre inquestionáveis, expondo as razões pelas quais, a seu ver, o interculturalismo nada mais é do que “[...] uma continuação do colonialismo” (Bharucha, 1993, p. 14). Todos esses artistas foram em busca da “Índia clássica e suas tradições milenares”, sem prestar a devida atenção ao contexto sóciocultural de onde emergiram, de onde deriva a queixa, a meu ver justificada, de que tais métodos sejam colonialistas (Bharucha, 1993, p. 5) e não devam mais ser colocados em prática. O fato é que, ainda hoje, a Índia é vista como um país de tradições sagradas que podem ser acessadas por três vias: (1) do misticismo (nunca deixo de pensar no slogan turístico do país “Incredible India” como um reforço a este

112 No original: I cannot deny that this dominant tendency to dehistoricize Indian culture is the source of my discomfort with most intercultural theories of Indian theatre. It is bad enough when a text like Shakuntala (the source of many myths of Indian grace, wisdom, romance) is descontextualized from its aesthetic and social context, but it is worse when a traditional performance is stripped of its links to the lives of the people for whom it is performed. Nothing could be more disrespectful to theatre than to reduce its act of celebration to a repository of techniques and theories (BHARUCHA, 1993, p. 4).

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equívoco); (2) das suas narrativas mitológicas, religiosas e épicas como repositório de histórias originais a serem encenadas no ocidente (o exemplo de Shakuntala vem bem a calhar, mas não podemos nos esquecer do emblemático Mahabharata, de Peter Brook113); (3) da apropriação interminável de técnicas performativas, marciais, meditativas etc. a serviço dos artistas ocidentais e suas sempre inovadoras e inquietas teatralidades. Quase todas esbarram em um mesmo problema ético: a descontextualização, que acaba por levar à invisibilidade não da cultura matriz, necessariamente (porque é sempre interessante manter um certo estranhamento que remeta à originalidade da produção intercultural), mas de seus agentes e suas realidades, em última instância, um certo apagamento de suas próprias narrativas por outra construída por/para a cultura receptora. Não é simples, sendo ocidental e tendo esses artistas como precursores e mestres, reconhecer esse lugar de privilégio cultural, ainda que sejamos brasileiros e não exatamente europeus ou estadunidenses. O fato é que, culturalmente, sempre estivemos com os olhos voltados para a Europa, ignorando, por muito tempo, nossas próprias matrizes culturais como país sulamericano e nossa latinidade evidente. O resultado é que estamos identificados demais com as narrativas hegemônicas do norte e, como bons colonizados, ainda acreditamos que elas também são nossas, impregnando nosso pensamento e prática artística. Por isso o assunto é tão controverso. A primeira ação é negar, a segunda relativizar, a terceira enlutar e, só então, assumir um “talvez seja possível” e, finalmente, lançar nosso olhar para as relações sul-sul, os periféricos, subalternos, diaspóricos, num autêntico processo de despertar decolonial:

Trata-se, portanto, de dar voz a narrativas relatadas a partir de experiências históricas locais que possam romper com esses projetos globais e transpor o universalismo abstrato da epistemologia moderna, num projeto que Mignolo denomina de giro decolonial (LEDA, 2015, p. 122).

Precisamos procurar novos interlocutores se quisermos produzir novos discursos que façam frente àqueles que já estão legitimados e incorporados no

113 Ver: Pavis, 2015, p. 177.

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imaginário global como “a verdade sobre a civilização” nas ciências, nas artes, na política, na economia etc. O interessante sobre o assunto é que não se trata de encontrar uma resposta única, que sirva de baliza ética a guiar todos esses novos atravessamentos (ou encontrões), mas de descobrir arranjos únicos para situações únicas, olhando, a todo instante, onde se pisa e com quem sentamos à mesa para negociar: norte-sul ou sul-sul? Enquanto insistirmos na ideia de que “não é bem assim”, “tudo tem dois lados”, “não houve intenção”, estamos apenas jogando para baixo do tapete a necessidade de reparação histórica que é o pressuposto ético-político fundamental a movimentar e tensionar o campo intercultural no contemporâneo, sem o qual novas epistemologias não poderão germinar no campo do teatro intercultural. Isso não equivale a dizer que tais artistas, esse ou aquele, sejam mal-intencionados, “pessoas ignóbeis”. Precisamos abandonar nosso maniqueísmo judaico-cristão e enxergar a realidade de forma menos punitiva e mais pragmática. Não se trata de um julgamento moral, mas de um exame ético de como, historicamente, estabelecemos essas relações que abriram caminho para importantes experimentos interculturais no Ocidente, ao que elas se vinculam em termos econômicos, políticos, sociais e etc., para então encarar o dolorido processo de procurar outras respostas no campo das artes cênicas. Alguns pesquisadores interculturais, cientes dessa problemática, têm se dedicado a encontrar outros arranjos, mais satisfatórios e vinculados a suas próprias necessidades. Bharucha fala de intraculturalismo como um duplo complementar do interculturalismo, esse “[...] excesso de desejo pelo outro” (Bharucha, 1993, p. 43 apud Féral, 2015, p. 386). O intracultural se proporia a pensar relações de troca a partir de um olhar mais atento sobre o contexto interno, de modo que, a ideia de “humanidade global”, tão amplamente sustentada pelo discurso intercultural, cedesse espaço para uma antiga e já conhecida realidade: o “local”, valorizando as relações explicitamente éticas entre contexto e performance, como ponto de partida para a criação:

Deixe-me voltar para a palavra "intracultural". Eu não inventei essa palavra, mas digamos que eu investi nisso, porque é um termo que ressoa profundamente em mim. Houve um certo ponto no meu teatro, como escritor, quando eu disse, não posso continuar usando a palavra "intercultural" para o que estou abordando. Naquela época, eu estava

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lidando com as diferenças culturais internas que existem dentro dos limites de um determinado país. Significativamente, esse uso do “intracultural” surgiu através de um projeto de teatro “intercultural”, conceituado em torno de diferentes adaptações asiáticas de “Wunschkonzert”, de Franz Xaver Kroetz. Quando eu estava trabalhando neste projeto na Índia através de diferentes adaptações da peça em Kolkata, e Chennai, percebi que não era mais uma questão de adaptar um texto “alemão” para um contexto “indiano”. O contexto nacional era muito menos importante do que os diferentes contextos regionais e locais. Então, encontrei-me buscando outra palavra que pudesse explicar essas diferenças culturais internas, e a “intracultural” parecia apropriada (BHARUCHA, 2011, p. 7)114.

Sobre este assunto recomendo a leitura da entrevista concedida por Bharucha para esta pesquisa (ver Anexos). Outra pesquisadora, Erika Fischer-Litche, fala em “interweaving”, valorizando a ideia do “entrelaçamento” das culturas em suas múltiplas camadas: filosóficas, históricas, sociais e não apenas performativas, reforçando o compromisso de contextualizar apropriadamente estes entrelaçamentos:

Surge a questão de se o termo “intercultural”, como ideia de que somos todos iguais, significaria, em última instância, implicar que o Ocidente é superior e permanece superior; é o que parece envolver. (...) Para mim, o termo “intercultural” está fortemente ligado a todos esses problemas. Então, quando a oportunidade se abriu para a criação deste Centro, surgiu a pergunta “Que termo usaremos?”. Nós devemos nos limitar ao termo “intercultural” só porque todos sabem o que é? O que é muito melhor para fins institucionais? Ou aproveitaremos esta oportunidade para não usar o termo por mais tempo, mas para procurar outro? Foi assim que chegamos à palavra alemã Verflechtungen. Não há, é claro, como todos vocês que trabalham nesse campo sabem muito bem, uma tradução exata para tal palavra. Você poderia dizer que é uma espécie de "trança", mas isso soaria estranho em inglês. Então, para a versão em inglês, chegamos à metáfora da “tecelagem”, que por sua vez levou a chamar o Centro de “Interweaving Performance Cultures” ou, como às vezes colocamos, um

114 No original: Let me turn to the word “intracultural.” I didn’t invent this word, but let’s say that I’ve invested in it, because it is a deeply resonant term for me. There was a certain point in my theatre writing when I said, I can’t go on using the word “intercultural” for what I’m addressing. At that time I was dealing with the internal cultural differences that exist within the boundaries of a particular country. Significantly, this use of the “intracultural” came about through an “intercultural” theatre project conceptualized around different Asian adaptations of Franz Xaver Kroetz’s Wunschkonzert. When I was working on this project in India through different adaptations of the play in Kolkata, Mumbai and Chennai, I realized that it was no longer a question of adapting a “German” text into an “Indian” context. The national context was far less important than the different regional and local contexts. So I found myself searching for another word that could account for these internal cultural differences, and the “intracultural” seemed appropriate (BHARUCHA, 2011, p. 7).

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“Interweaving of cultures in performance”. Esses são os dois termos (FISCHER-LITCHE, 2011, p. 5)115.

Ao que Bharucha rebate com agudez116:

Agora, até que ponto as categorias “interweaving” e “interculturais” são mutuamente exclusivas? Esta é uma questão que me vem à mente. E podemos realmente dizer - se seguirmos a razão dada para a nomeação da instituição - que todos os problemas associados ao “interculturalismo” irão de alguma forma desaparecer com a introdução do termo “interweaving”? Quando você “entrelaça” uma cultura com outra, os problemas desaparecem? Problemas relacionados à distribuição de poder, estereótipos, etc. Obviamente, não. De certo modo, os problemas podem ser desviados ou circunscritos - essa é uma possibilidade. Mas eles também poderiam gerar novos problemas, que ainda não foram previstos. (BHARUCHA, 2011, p. 6)117

Em seu mais recente livro, “Intercultural Acting and Performer Training”118 (2019), Phillip Zarrilli organiza uma coletânea de ensaios sobre o assunto, partindo da necessidade de contemplar “múltiplas vozes” para pensar a questão do multi-, inter-, intra-, trans-culturalismo no século XXI, focando não em seus macroaspectos (as performances), mas em seus microaspectos (os treinamentos). Trata-se de outra voz importante a tentar estabelecer novos paradigmas para os experimentos culturais, num campo ainda mais problemático

115 No original: The question arises whether the term “intercultural”, whether this idea that we are all equals, was ultimately meant to imply that the West is superior, and remains superior; that it stays involved. (…) For me the term “intercultural” is strongly connected with all these problems. So when the opportunity opened for creating this Centre the question “What term do we use?” arose. Do we stick to “intercultural” just because everybody knows what it is, which is much better for institutional purposes? Or do we take this opportunity not to use the term any longer, but to look for another one? This is how we arrived at the German word Verflechtungen. There is, of course, as all of you who work in this field know only too well, no exact translation for such words. You could say that it is a kind of “braiding”, but this sounds awkward in English. So for the English version, then, we arrived at the metaphor of “weaving”, which in turn led to calling the Centre “interweaving performance cultures”, or, as we sometimes put it, an “interweaving of cultures in performance.” So those are the two terms (FISCHER-LITCHE, 2011, p. 5). 116 Veja o texto completo: “Dialogue: Erika Fischer-Litche and Rustom Bharucha”, Berlin, August 6, 2011 em “Textures – Online Plataforma for Interweaving Performance Cultures” at Freie Universität, Berlin, October, 2011. 117 No original: Now, to what extent are “interweaving” and “intercultural” mutually exclusive categories? This is one question that comes to mind. And can we really say – if we follow your raison d’être for the naming of the institution – that all the problems associated with “interculturalism” will somehow disappear with the introduction of “interweaving”? When you “interweave” one culture with another, do the problems disappear? Problems relating to the distribution of power, stereotyping, etc. Óbviously, they don’t. In a sense, the problems could be deflected, or circumscribed—that’s one possibility. But they could also engender new problems, which are as yet unanticipated (BHARUCHA, 2011, p. 6). 118 ZARRILLI, Phillip B, SASITHARAN, T., KAPUR, A. Intercultural Acting and Performer Training. London: Routledge, 2019.

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do que aquele que envolve as performances: o da aquisição e reformulação de técnicas performativas e/ou marciais, meditativas do oriente, visando à formulação de pedagogias e metodologias de trabalho para artistas da cena ocidental. Seu anseio por dar espaço a “novas vozes” (como se elas não estivessem lá o tempo todo), em especial a artistas e pesquisadores do oriente, me parece uma ação acertada, mas nós já vimos isso antes (tomando como exemplo Barba), e já sabemos que isso não é o bastante, se a prática continua impregnada de um olhar eurocentrista, visando à produção de um teatro eurocentrista, para um público eurocentrista, reforçando uma narrativa euro..... etc. Temos também a definição de transculturalismo adotada por Féral, em seu livro “Além dos limites. Teoria e Prática do Teatro” (2015), tomada de empréstimo do antropólogo cubano Fernando Ortiz (1881 – 1969), a evidenciar um “[...] ilimitado entusiasmo pela alteridade [...] um modo fácil de valorizar formas moribundas e de injetar-lhes sangue novo sem que as formas antigas fossem por isso recolocadas em questão ou a legitimidade de tais transferências seja colocada” (Féral, 2015, p. 386). E a autora prossegue: “[...] pode-se realmente dissociar a análise do interculturalismo artístico do interculturalismo político social (assumido ou submetido)?” (Féral, 2015, p. 385). De fato, o que se nota é que a multiplicidade de conceitos pouco altera a qualidade das práticas e o problema central persiste, mascarado num simulacro de alteridade:

Toda prática que toma de empréstimo, traduz ou adapta certos componentes de outras culturas sem historicizá-las ou contextualizá- las, contribui irrevogavelmente para essa homogeneização das práticas (e das culturas) em presença, assim como à sua indiferenciação. Longe, portanto, de trabalhar para o reconhecimento das diferenças a respeito do outro, um tal modo de funcionamento contribui, ao contrário, para nivelar a diferença e para levar o outro ao mesmo, reduzindo-o ao status de mercadoria (FÉRAL, 2015, p. 388)119.

Tomando como referência essas quatro vozes, o que fica evidente é a necessidade de pensar a questão de modo singular, sem pretensões de universalidade. Não haverá uma única palavra para substituir a palavra “interculturalismo” ou “teatro intercultural”, mesmo porque não se trata de cunhar

119 Féral, J. Além dos limites. Teoria do Teatro. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2015.

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novas nomenclaturas para nomear velhas práticas. Trata-se de estabelecer novas práticas, construídas sobre pressupostos éticos mais rigorosos, que carreguem, em seu bojo, sua própria conceituação, seu próprio instrumental e postulados. Mudar o conceito é apenas uma forma de mascarar a realidade, usando palavras, ideias poéticas e frases de efeito para camuflar “o velho e bom, mais do mesmo”. Embora o assunto seja muito provocativo e me interesse particularmente, não avançarei mais nesta discussão porque isso me desviaria muito do objetivo desta pesquisa, que não tratou diretamente do interculturalismo (embora ele a acompanhe como um duplo em muitos momentos e por isso sua presença seja justificada).

4.6.1 – A ROOM IN INDIA OR IN FRANCE?

A partir de agora falarei com um pouco mais de profundidade sobre um experimento intercultural muito recente, envolvendo o Thèâtre du Soleil e a companhia de Theru-K-Koothu, Purisai Duraisamy Kannappa Thambiran Parambarai Theru Koothu Manran, visando a produção do espetáculo “Um Chambre em Inde” ou “A room in India” (2016), retomando nosso fio da meada. Quando soube desse encontro, minha primeira reação foi de contentamento. Pensei que, pela primeira vez, uma renomada companhia de teatro ocidental olharia para a Índia para além dos limites da cultura clássica e de todos os estereótipos, jogos de dominação envolvidos nessa escolha e já bem explicitados. Tratava-se de uma oportunidade de ouro para mostrar uma outra face da Índia para o ocidente, aquela que eu também reconhecia como negligenciada mesmo dentro do país, por mim e tantos e tantos outros artistas estrangeiros. E eu conhecia a companhia, os artistas, sabia o que aquilo significava para eles dentro de suas realidades profissionais e pessoais. Foram três anos ao todo, considerando o período de seleção da equipe, treinamento, preparação do elenco, montagem e temporada. O espetáculo encerrou sua carreira oficialmente em 2018. O Soleil partiu para um novo projeto

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de montagem, mas... e os artistas de Theru-K-Koothu? O que aconteceu com eles? Se você sentiu um certo incômodo com essa pergunta é porque estamos no caminho certo! Comecemos do princípio. Ariane Mnouchkine foi à Índia para “escolher” os artistas de Theru-K-Koothu que “levaria” para a Cartoucherie de Vincennes. Ela se instalou em Pondicherry, antiga colônia francesa dentro da Índia, que ainda carrega traços dessa colonização na arquitetura, no nome das ruas e da própria cidade. Artistas de Theru-K-Koothu vieram de todo o estado para as seletivas. Tanto aqueles das companhias mais tradicionais e já estabelecidas quanto aqueles de companhias mais instáveis, em estágio de semiprofissionalização. O resultado parecia óbvio. Mnouchkine escolheu a tradição e a segurança: a companhia de Purisai com seus mais de 150 anos de história e competência técnica. Provavelmente, ela nunca soube como isso reacendeu antigas disputas por espaço e reconhecimento profissional, e criou outras novas entre os artistas locais. Já foi pontuado, nesta pesquisa, o fato de outras companhias considerarem que a Purisai sempre recebeu mais atenção governamental, estrangeira e da intelectualidade local do que qualquer outra companhia de Theru-K-Koothu. Então, o espetáculo estreou e pude ver algumas chamadas e cenas de divulgação. Qual não foi minha surpresa quando vi um ator, notadamente não indiano, travestido de Theru-K-Koothu, enquanto observava, no fundo do palco, os artistas da companhia de Purisai ocupando a posição de coro. Uma única imagem a dar conta de todo um enunciado. O problema estava todo ali, concretamente colocado, numa única cena que evidenciava uma escolha estética, um ponto de vista e de abordagem do Theru-K-Koothu bem definida (e exaustivamente conhecida: a classicização da cultura folclórica indiana para torná-la mais palatável às plateias ocidentais).

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Figure 63 – Material promocional do espetáculo “A Chambre em Inde” da companhia Théâtre du Soleil. Fonte: Théâtre du Soleil.

Quando perguntei a Palani Murugan, representante da Purisai, o que achava disso, ele me respondeu que não via problemas, argumentou (o que provavelmente ouviu e tomou como verdade), que era uma prática do Soleil não colocar os representantes das tradições incorporadas aos espetáculos como tal, assumindo que atores de diferentes filiações culturais pudessem experimentar o “lugar do outro”. Mas o que nos leva (artistas ocidentais) a tomar como algo positivo o exercício de experimentar o lugar do outro, enquanto seu representante legítimo é sutilmente invisibilizado? Duas coisas: a segurança do poder econômico a salvaguardar nossa conduta e o status profissional que a participação num projeto internacional desta natureza gera para os “escolhidos”, colocando-os na posição de aceitar as regras do jogo. Ressaltando que gentileza, hospitalidade, cordialidade e afeto, atenuam essa prática, mas não a qualificam. Vejamos o que nos diz Hanne De Bruin, em sua crítica sobre o espetáculo:

Eu ainda estou no processo de digerir a posição e o papel do Kuttu em Une chambre en Inde. O que exatamente motivou a idéia de reproduzir o autêntico Terukkuttu? Quando perguntei a Ariane, ela disse que, para ela, Terukkuttu é a mãe de todos os teatros, uma espécie de ur-theatre. Vendo o Terukkutu, ela ficou tão empolgada com seu poder e vitalidade que reacendeu sua ideia do que o teatro é e poderia ou deveria fazer. O Terukkuttu não questiona o papel do teatro no mundo. O Kuttu poderia ser - inquestionavelmente… considerado a solução para todos os outros teatros que estão mortos ou morrendo ...? As cenas de Kuttu eram bastante separadas e isoladas do todo do espetáculo, dramatizadas como sonhos ou visões de algo mais - interrompidas toda

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vez que o telefone tocava e o grupo Kuttu saía do palco levando todos os seus pertences consigo. Os artistas de Kuttu não pegavam o telefone para atender, nem tentavam silenciá-lo para que sua atuação continuasse. De certa forma, eles estavam (à margem) fora do discurso - exotizados? - embora isso possa não ter sido a intenção da diretora (DE BRUIN, 2017, p. 2)120.

Com relação à forma como o Theru-K-Koothu aparece dentro do espetáculo, cabe outra análise. A primeira, positiva, quando vemos o esforço dos artistas da companhia em interpretar as cenas inteiramente em Tamil. Quem, como eu, há anos viaja para o estado de Tamil Nadu e não domina a língua, sabe o esforço implícito nessa escolha que deve ser vista como um gesto empático e respeitoso com a cultura, o contexto, a história. A segunda é bem mais questionável. O Theru-K-Koothu aparece apenas quando o personagem principal, um diretor de teatro metido em um quarto numa cidade indiana, dorme e sonha, numa cena dentro da cena. Desse modo, o Theru-K-Koothu aparece sempre apartado da narrativa dominante, sendo apresentado como reminiscência de um teatro ideal, romantizado, colocado num pedestal como forma exótica e ritual, que desaparece quando a realidade chama. Nada mais orientalista para uma obra produzida no século XXI:

A produção continha trechos de duas peças famosas de Kuttu, Draupadi Tukil (O desenrolar do saree de Draupadi) e Karna Moksham (a Morte de Karna). Exceto por algumas músicas Kuttu, que podiam ser ouvidas durante toda a produção cantadas por outros, que não os “verdadeiros” artistas de Kuttu, para comentar a ação dramática mais ampla, os personagens Kuttu nunca falavam com nenhuma das outras personagens dramáticas fora de suas próprias cenas de Kuttu. (DE BRUIN, 2017, p. 2)121

120 No original: I am still in the process of digesting the position and role of Kuttu in Une chambre en Inde. What exactly motivated the idea of reproducing authentic Terukkuttu? When I asked Ariane, she said that for her Terukkuttu is the mother of all theatres, a kind of ur-theatre. Seeing it she was so carried away by its power and vitality that it rekindled her idea of what theatre is and could or should do. Terukkuttu does not question the role of theatre in the world. It just is or does — unquestioningly…. Kuttu as the solution to all other theatres that are dead or dying…? The Kuttu scenes were quite separate and isolated in the entire spectacle, dramatized as dreams or visions of something else — aborted every time when the phone rang and the Kuttu ensemble would hurry off the stage taking all their belongings with them. The Kuttu performers did not grab the phone to answer it, nor did they try silencing it for their performance to continue. In a way they were (left) outside the discourse — exoticized? — whereas this may not have been the intention of the director. (DE BRUIN, 2017, p. 2) em Kattaikkuttu and the World. Disponível em: . Acesso em 20/09/2019 às 10h50. 121 No original: The production carried excerpts of two famous Kuttu plays, Draupadi Tukil (Disrobing of Draupadi) and Karna Moksham (Karna’s Death). Except for a few selected Kuttu songs which could be heard throughout the production sung by other than “real” Kuttu performers

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E De Bruin prossegue, em sua análise, discorrendo sobre como tal encontro com uma grande companhia teatral internacional, uma renomada diretora, não contribuiu para que mudanças significativas ocorressem nas condições de existência, sobrevivência e resistência desses artistas em seus contextos, enquanto o Soleil seguia como grande expoente do teatro mundial. Parece que esse assunto não diz respeito à companhia, não se relaciona com o espetáculo e o que ele enuncia, parece que as implicações éticas se restringem ao que acontece no toma lá dá cá da produção do espetáculo na França, com data de início e término, sem nenhuma responsabilidade sobre o que disso se desdobra em suas realidades na Índia:

O uso de Terukkuttu em outro contexto cultural precisa ser historicizado tomando como pano de fundo outras produções incluindo, é claro, o Mahabharata de Peter Brook. Além do debate acadêmico sobre a legitimidade de tais apropriações, fico intrigada com a questão sobre o que Terukkuttu, como um idioma “orientalista”, sinaliza no caso específico de Une chambre en Inde. A produção carrega uma mensagem de que Terukkuttu está mais vivo, mais poderoso que os próprios teatros patrocinados da Europa? Isso é provavelmente verdade, pelo menos para as aldeias tâmeis no norte de Tamil Nadu, mas isso não torna o Terukkuttu mais valorizado pela burocracia indiana e pelo establishment das artes urbanas. E, consequentemente, não muda realmente o seu estatuto de expressão cultural do meio rural ignorante, analfabeto e desprezado até…. quando? (DE BRUIN, 2017, p. 3)122.

Sobre isso, preciso dizer que a companhia de Purisai se esfacelou. Os atores deixaram a companhia após o término da experiência no Thèâtre du Soleil, por motivos que não me foram informados. Quando cheguei na Índia, a companhia estava com seu repertório todo desarticulado e se restringia a Sambandan, o Vattiyar e Palani, seu genro, sucessor e primeiro ator. A proposta

to comment on the wider dramatic action, the Kuttu personae never spoke to any of the other dramatic personae outside their own Kuttu scenes. (DE BRUIN, 2017, p. 2) 122 No original: The use of Terukkuttu in another cultural context needs to be historicized against the backdrop of other productions which have done so including, of course, Peter Brook’s Mahabharata. In addition to the academic debate about the propriety of such appropriation(s), I am intrigued by the question what Terukkuttu, as an “orientalist” idiom, signals in the particular instance of Une chambre en Inde. Does the production carry a message that Terukkuttu is more alive, more powerful than Europe’s own sponsored theatres? That is probably true, at least for Tamil villages in the North of Tamil Nadu, but this does not make Terukkuttu more appreciated by the Indian bureaucracy and the urban arts establishment. And consequently, it does not really change its status as a cultural expression of the rural uneducated and illiterate, held in contempt until…. What? (DE BRUIN, 2017, p. 3).

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era retomar o trabalho de formação de novos atores para recompor o corpo artístico da companhia através de workshops, num processo que se anuncia longo e trabalhoso. Afinal, a qualidade técnica de um artista não se faz do dia para noite, e recompor uma companhia inteira não é uma tarefa fácil. Depois de três anos voltados, exclusivamente, para o projeto do Soleil, resta o seguinte saldo para Purisai: uma companhia, com mais de 150 anos, completamente desarticulada e uma boa poupança para os tempos de vacas magras que se anunciam. Para ser justa com a companhia, preciso dizer que não assisti ao espetáculo. Vi trechos e imagens pela internet, conversei com os artistas de Theru-K-Koothu, com críticos que assistiram e escreveram sobre ele e que puderam dividir comigo suas opiniões. O ponto aqui não é estigmatizar esse ou aquele artista, mas evidenciar o quanto o teatro intercultural ainda é marcado pela “[...] força da grana que ergue e destrói coisas belas”123 e por concepções estéticas que, muitas vezes, não conseguem ultrapassar a barreira imposta por séculos de eurocentrismo e que, apesar disso, continuam a ser aplaudidas e incentivadas por essa “[...] diáspora privilegiada, a intelligentsia global, os exilados esclarecidos” (Bharucha, 1993, p. 5 apud Feral, 2015, p. 389). Sem reconhecer o desequilíbrio desse arranjo intercultural, nunca poderemos dimensionar corretamente e com a devida responsabilidade, os desafios que se apresentam para os artistas e teóricos do campo dos estudos das performances interculturais, neste século. O interculturalismo, nesse novo cenário, não é apenas uma aposta. É uma necessidade. Com as sucessivas ondas imigratórias que temos visto, o globo começa a se redesenhar e com ele, nossas relações. O estrangeiro não vive mais a léguas e léguas daqui, agora ele é nosso vizinho (muitas vezes indesejado):

[...] o que nos leva a sugerir uma nova nomenclatura: o outro como o indesejável, aquele com quem se pode conviver apenas nos limites de nossas distâncias materiais e imateriais. É como se os países desenvolvidos, aqueles que, historicamente, mais se beneficiaram das práticas interculturais, dissessem: “temos interesse por vossas culturas, mas não por vocês”. (CIPPICIANI, 2019, p. 176)

123 Trecho da música “SAMPA” de Caetano Veloso.

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Sua cultura não é mais algo que está lá para alimentar nosso imaginário, ela está aqui, imersa em nosso cotidiano. Estamos em perpétuo estado de negociação e troca, ora com graça, ora aos esbarrões. É preciso apostar que seremos capazes de refinar nossas práticas, nossas percepções para, de fato, enxergar e sermos enxergados com mais clareza e empatia. O intercultural, no século XXI, não é apenas um pressuposto da arte, mas da vida, de nossa sobrevivência como espécie e, por consequência, do próprio planeta. Quanto à experiência da companhia de Purisai no Soleil, me solidarizo com as palavras de De Bruin:

Eu fico pensando se Un Chambre en Inde poderia ser considerado um momento crucial para o futuro do Kuttu. O momento em que o Terukkuttu seria apresentado fora de seu próprio contexto - um fora que o liberta da opressão e desprezo da moralidade da classe média indiana – onde ele possa ser respeitado e reconhecido, abraçado por uma famosa diretora teatral e uma companhia internacional, formada por talentosos e bem treinados atores. Será essa a condição que “imprimirá” o Terukkuttu como uma forma (teatral) respeitável, apresentado para o mundo artístico estrangeiro, de modo a definir que teatro é esse, o que ele significa e o que deve ser, para sempre? (DE BRUIN, 2017, p. 3).

A pergunta que De Bruin lança, ela mesma responde: “(...) E, consequentemente, não muda realmente o seu estatuto de expressão cultural do meio rural ignorante, analfabeto e desprezado até…. quando?” (DE BRUIN, 2017, p. 3).

Para ler a crítica completa de Hanne de Bruin: KATTAIKKUTTU AND THE WORLD

http://www.textures-platform.com/?p=4745

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CONSIDERAÇÕES FINAIS – OS NOVOS VENTOS DO SUL E O SOPRO DA CANTIGA

Toda pesquisa é um percurso que envolve riscos e, também, descobertas, reviravoltas, dúvidas, abandonos, decepções, tensões, epifanias e novos arranjos que se fazem da colagem de todos esses momentos, num ciclo quase perpétuo de questionamentos, reflexões e um esforço desmedido para colocar tudo isso em algumas tantas páginas que façam sentido. Por essa razão, em algum momento, é preciso saber dizer “basta”, circunscrever o assunto e dizer sem apego, mas com zelo, “está feito, eu te deixo ir”. Esse é o meu momento. Essa pesquisa nasceu do desejo de aprofundar meus laços com a cultura indiana, partindo de referenciais não clássicos, procurando adentrar o complexo universo da cultura folclórica indiana, em especial do estado de Tamil Nadu. Parti de alguns pressupostos reconhecíveis como artista ocidental (treinamento psicofísico, ruptura da dicotomia corpo-mente, cena expandida, performances híbridas etc.), coisas que pudessem relacionar esses saberes à minha prática como artista da cena ou de qualquer outro artista do campo. Aos poucos e não sem certo espanto, fui percebendo que esse ponto de partida apresentava alguns desvios éticos, contradições entre aquilo que se elaborava como discurso e prática intercultural e o que, de fato, havia para ser visto e elaborado pela pesquisa, e essa constatação reestruturou todo o trajeto, realinhou a pesquisa, me levando a um novo lugar de percepção e entendimento dessa relação entre minhas inquietações e desejos como artista e a cultura indiana com entidade autônoma. Meu primeiro grande choque foi perceber como minha prática, enquanto artista-pesquisadora, ainda estava profundamente impregnada por um olhar classicizante sobre a cultura folclórica da Índia. O quanto eu ainda olhava para esse universo como um “campo de possibilidades” que pudesse alimentar minhas práticas interculturais de treinamento para atores-dançarinos e meu anseio por novas estéticas para a cena, mirando na produção de espetáculos interculturais. Aqueles que elenquei como interlocutores em meu projeto de pesquisa eram todos artistas da cena renomados, engajados na produção

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intercultural: Grotowski, Barba, Zarrilli, para citar alguns. Eu me sentia segura na companhia deles, certa de que eram a melhor referência possível para a jornada que eu começava a empreender. Entretanto, conforme entrava em contato com o Theru-K-Koothu, um mundo novo se abriu para mim, e nesse novo cenário, essas referências todas foram colocadas em xeque, logo de início. Percebi que não seria possível seguir a partir delas: era necessário encontrar outros interlocutores. Mas onde eles estariam? Nasceu, então, uma ideia. À princípio, tímida e não muito certa de si, porque ainda carecia de entendimento e desses novos interlocutores que eu não sabia onde procurar. Uma ideia insegura porque se sustentava sobre um desconforto, um incomodo que, àquele tempo, eu reconhecia, mas não identificava. Era o incomodo latente da subalternidade. Essa ideia que criava raízes e martelava minha cabeça tornou-se uma ideia fixa e obsessiva, que agora se pronunciava aos gritos, com aquele tipo de convicção de quem chegou num lugar do pensamento em que já não é mais possível retroceder: “o Theru- K-Koothu não está a serviço da cena teatral ocidental e, por isso, deve ser apresentado aos artistas, pesquisadores e leitores brasileiros como aquilo que é, e não como aquilo que se pode pensar ou fazer a partir dele no ocidente”, pensei. Ouvindo assim, de supetão, a ideia pode parecer radical, mas não é. De fato, ela é bem razoável e até meio óbvia. Conforme fui encontrando os tais “novos interlocutores”: Bhabha, Bharucha, Féral, Varadpande, De Bruin e toda uma vasta rede de artistas de Theru-K-Koothu, ela foi se revelando para mim como a única forma possível de desenvolver uma pesquisa intercultural, partindo da observação de uma forma teatral ritual, dentro de pressupostos éticos aceitáveis para o século XXI. Então, assistindo ao documentário “Kelai Draupadai”124 eu tive a certeza: “Escutemos Draupadi”! Escutemos a voz da tradição como o canto límpido das águas. Decidi, então, assumir essa posição como pesquisadora: dar ouvidos à tradição, procurando não filtrá-la pelos interesses imediatos do campo de saber pelo qual transito (porque tudo é passagem). O fato é que fiz uma opção clara

124 Kelai Draupadai, documentário de Sashikanth Ananthachari, 2000.

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por dar voz a uma tradição sem procurar justificar tal escolha a partir de questionamentos da cena teatral ocidental contemporânea. Minha escolha pode ser considerada política, se avaliarmos esta opção à luz do momento que estamos vivendo, em que urge levantar a voz em defesa das culturas, dos povos tradicionais e dos modos de vida que engendram. Desse modo, procuro valorizar a ideia de que o Theru-K-Koothu existe por si e, como toda forma de cultura tradicional, não pode ser compreendido fora do contexto de onde emerge. Minha opção, de forma alguma, nega ou recusa a importância dessas trocas culturais, desses cruzamentos e atravessamentos que levam as culturas a transitar pelo globo desde sempre e muito antes dos processos violentos da colonização. Não se trata de uma radicalidade contra tais trocas, um desejo ingênuo de pureza que não pode ser maculada, mas um chamado para que atentemos às questões políticas, sociais e éticas que atravessam a produção teatral intercultural entre ocidente e oriente, neste novo século. É urgente encontrar formas de garantir o maior equilíbrio possível de forças entre a cultura matriz (no caso a indiana) e as culturas receptoras (no caso, o ocidente). Sem esse pressuposto, não creio que qualquer ação intercultural no campo teatral possa se sustentar sem ser alvo de muitas e justificadas críticas. Esse é o argumento central a sustentar minha opção. Esse é o contexto maior no qual se situa esta pesquisa, que poderia ser entendida quase como um trabalho etnográfico, não fosse o capítulo quatro, em que procuro explicitar o jogo de tensões e contradições que fazem movimentar essa tradição: o embate com a cultura clássica, o avanço para as cidades, a disparidade de forças entre a cultura de massa e as culturas tradicionais e todas as latências sociais e políticas que os artistas enfrentam: discussão de gênero e casta, feminismo, machismo, afirmação de uma identidade regional e nacional, estratégias de sobrevivência, conflitos internos etc. Todas essas questões evidenciam o tecido vivo de que é feito o Theru-K-Koothu, que não pode ser lido como uma história acabada, enrijecido por dogmas, mas um corpo tradicional em constante processo de ajuste, mutação e metamorfose, para o bem e para o mal. Por tudo isso, não nos esqueçamos: os dados de Yudisthira ainda estão sendo lançados... A partida é um jogo perpétuo que não cessa de recomeçar.

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Eu me sentei para observar os dados, certa de que podia aprender a dançar com eles, sem me importar com o que estava em jogo no tabuleiro, afinal, aquela não era minha narrativa (luta). Quando dei por mim, tinha tomado partido, estava do lado daqueles que seriam exilados, os diaspóricos Pandavas. Sentia a indignação e a raiva daqueles que perdem tudo numa grande trapaça, uma trapaça globalizante. Eu me via, talvez pela primeira vez, com tanta intensidade, como subalterna, periférica, membro de um vasto e subjugado grupo que habita as bordas do mundo capitalista e com ele brinca de jogar dados viciados. Finalmente, me assumi latino-americana, filha de imigrantes, mestiça, caipira, brasileira com “nome de índio”. Foi preciso uma longa jornada até os vilarejos mais remotos de Tamil Nadu para compreender os violentos e retesados laços coloniais que aproximam Brasil e Índia, que me atravessam e dão contorno, ainda que nossos processos de colonização não sejam idênticos ou simultâneos. Foi apenas quando me reconheci nesse lugar precário e liminar, que comecei a entender como nossas diferenças históricas, culturais, políticas e sociais, enxergadas por essa lente opressiva comum, poderiam ajudar a construir outras possibilidades de encontro, troca e negociação também no campo artístico, no palco, na cena, no corpo do intérprete. Essa é a grande “sacada”, mas que, infelizmente, não encerra o problema intercultural. Ela não dá conta de responder à pergunta que todos que transitam nesse campo fazem insistentemente: como encaminhar pesquisas cênicas interculturais à luz dessa nova realidade global? Essa pesquisa não consegue responder a essa pergunta, mas se alinha aos discursos produzidos tanto no campo dos estudos pós-coloniais (no caso da Índia) quanto dos estudos decoloniais (no caso da América Latina) torna evidente a necessidade de que ela seja posta na mesa sem reservas, para que no exercício dessa reflexão, outras respostas (sempre transitórias e temporais) emerjam, na teoria e na prática. Como resposta transitória e presa aos limites de uma pesquisa acadêmica, minha opção foi abrir a escuta e dar passagem à tradição. Entretanto, não posso alimentar a ilusão de que essa escuta não tenha sido filtrada pela imensa distância cultural que me separa do Theru-K-Koothu. Creio

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que aspectos importantes possam ter se perdido nesse processo, simplesmente porque não dispunha das chaves que me permitiriam uma leitura mais adequada deles. Alguns, posso mensurar. Outros, não alcanço porque são invisíveis para mim. Para tanto, seria necessária uma imersão de anos, muitos mais do que essa pesquisa - generosamente - me permitiu. Uma tradição precisa de uma vida para ser compreendida, ainda mais quando é de outro povo, como é o caso. Assim, é preciso apontar algumas fragilidades da pesquisa, como por exemplo, os aspectos discursivos do Theru-K-Koothu. Aqueles que reconheço como, os mais negligenciados pela pesquisa, porque o desconhecimento da língua se tornou uma barreira intransponível, a partir de um certo ponto. Não pude avançar na compreensão da dramaturgia Theru-K-Koothu e nem na compreensão mais profunda da relação entre texto e performance, mas sei, por outro lado, isso já foi feito por De Bruin (1999), cuja obra recomendo àqueles que desejem se aprofundar no assunto. Também sinto não ter tido condições de vivenciar um Paratam (festival) completo. Tenho certeza que a presença física, o ver com os próprios olhos e sentir na própria pele, emprestaria outra beleza e traria outra possibilidade de escrita para o capítulo dois que é um apanhado da experiência de vários “outros”. Fica como uma promessa de reencontro, qualquer dia desses, a qualquer hora, afinal, essa pesquisa não encerra minha história de profundo amor com a cultura da Índia. Pelo contrário, aprofunda esses laços em renovadas bases, mas não deixa de ser uma pena! Se em algum momento a leitura do texto foi dificultada pelo excesso de terminologias estrangeiras peço desculpas pelo inconveniente, mas quantas oportunidades há - em língua portuguesa - de conhecer mais sobre a cultura teatral folclórica indiana? E sobre o Theru-K-Koothu, como forma performativa, especificamente? Espero que os links e as fotos tenham colaborado no processo de criar espaços lúdicos de aproximação com esses conteúdos, tornando a leitura mais prazerosa. Acredito que o material audiovisual complementar também tenha cumprido a função de aguçar o imaginário e dar corpo a toda essa gama de informações textuais, com muitas palavras e termos em língua estrangeira.

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Portanto, sem o suporte de meus colaboradores, advindos do cinema experimental, Carlos Frederico e Diego Arvate, esse material nunca teria chegado a configurar um todo que pudesse conversar com o texto ou revelar justamente aquilo que o texto não alcança. Nosso insight para produção desse modesto documentário veio das cartas de tarô de Chris Chiergo: “Roots Routes”125 e isso, sinergicamente, dialogou muito com a proposta da escrita! As raízes se mostraram mesmo as melhores rotas. Quando comecei esta pesquisa, desejava sair do universo da cultura clássica indiana (depois de quase 20 anos), arejar minhas práticas e saberes, queria conhecer uma “outra Índia” que, diga-se de passagem, sempre esteve lá para mim. Queria voltar ao teatro, depois de muitos anos construindo um nome, uma carreira como dançarina. E eu tive tudo isso... E não há como não reconhecer o quanto isso é um privilégio em tempos tão dramáticos. Mas então a pesquisa chegou ao fim... e agora é preciso abrir um espaço interno para fazer um balanço mais pessoal, como artista, dos rastros que ela deixou em mim e também daquilo que aponta. Do desafio da escuta afiada, das dores do reconhecimento de nossa precariedade irmanada, vai nascendo uma cantiga, que é como um mosaico de sonoridades e palavras e ritmos e cores e cheiros e formas que vêm da Península Ibérica, mas também das vozes abafadas da África, das Américas e depois, do encontro com a mítica terra de Bharata (nome original da Índia). É uma “Cantiga Moura”. Uma nova tentativa de encontro entre a cultura brasileira e a indiana, que nasce como continuidade do processo de pesquisa “Padam: a procura de um corpo narrativo”, iniciado em 2009. Este projeto almeja a construção de uma trilogia cênica, a partir de narrativas provenientes de nosso tripé de formação (europeu, africano e ameríndio), em diálogo com a estética das danças clássicas indianas e aspectos mais amplos da cultura hindu e foi de fundamental importância para o desenvolvimento de minha pesquisa de mestrado. A primeira montagem, feita em 2013, foi o espetáculo “Oré Yéyè, Oxum Tarangam”, um encontro entre a dança indiana Kuchipudi e a mitologia

125 Tradução: Raízes Rotas. Tarô (m)other, de Chris Chiergo. Disponível em : .

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afro-brasileira, em especial do Orixá Oxum. “Cantiga Moura” é, portanto, o segundo espetáculo da trilogia, baseado no conto de cavalaria da península ibérica “A princesa Fátima”, sobre o qual me debruço desde 2016. Essa breve apresentação serve apenas para atestar minha condição e me situar dentro do olho do furacão: sou uma artista intercultural. As dificuldades na produção de encontros interculturais potentes na/para cena, os desvios éticos que problematizo, não são aqueles que “os outros” padecem ou cometem. São as minhas questões-chave! São o meu próprio problema. Como aproximar a dança(teatro) indiana (em suas múltiplas facetas) do público brasileiro? Essa é a pergunta que me faço por dez anos e que, obviamente, não tem uma resposta simples ou definitiva. São achados, apostas, intuições que vão movimentando os desejos, sempre tensionados pelas questões éticas, quase nunca matemáticas ou geométricas. Por isso, não tenho como me desviar dessas questões, seja na escrita, seja na sala de aula/ensaio, seja na produção de espetáculos. Falar sobre o Theru-K-Koothu, voltar “às raízes para encontrar as rotas”, as melhores rotas, segundo as capacidades que disponho nesse momento, foi um imenso privilégio. O Theru-K-Koothu não é minha raiz, é verdade, mas a gente aprende muito sobre o que se é com a profunda observação daquilo que não se é. E ainda que haja diferenças significativas entre nós, há também pontos de encontro, como o fato de, no cenário pós-moderno, habitarmos o mesmo espaço-tempo de insurgências e possibilidades: o Eixo Sul. E porque não poderíamos conceber que desse encontro sul-sul, possam emergir, no campo das artes da cena, novas narrativas a fazer frente às narrativas hegemônicas do Eixo Norte, redimensionando a produção teatral intercultural? Acredito que podemos e devemos e essa cantiga, que começa a soprar na sala de ensaio, vem impregnada desses novos pressupostos éticos (mas não das respostas), de novas percepções estéticas mais sutis e ainda não de todo compreendidas, que precisam do vazio da sala para ganharem corpo, contorno e clareza, balizadas por vintes anos de experiência profissional, num trânsito permanente e apaixonado entre Brasil e Índia, porque não só de boas intenções- conceitos se produz um bom teatro. É preciso também estruturar linguagem num

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processo ainda mais complexo que o da escrita. É preciso testar essas ideias no corpo e, só então, saber onde cada conceito reverbera e vira poética. Abramos os ouvidos, escutemos esse poema-canção que vem de longe e, quem sabe, ele possa nos tocar em algum lugar reconhecível, em alguma reminiscência adormecida... Porque tudo é passagem e atravessamento, um fluxo contínuo de embaralhamentos e distinções que vão, aos poucos, desvelando as camadas duras da (in)diferença, os véus que separam as realidades distintas, em busca de humanidades não idênticas, mas complementares. Escutemos. A experiência humana é como uma onda sonora que ecoa pelos quatro cantos do mundo e quando chega em seus confins, retorna:

Era uma vez um tempo Em que as princesas eram como um brocado Um regalo de renda, um lencinho bordado Guardado num baú todo mofado

Era uma vez um tempo De cavaleiros de capa e espada Armadura bem cintada Penacho e gibão Que se respirassem fundo Lhes doía o coração

Um tempo em que todo mundo tinha um lado Era azul ou encarnado E quem não se achava por bem Pela espada era achado

Era um tempo de luta Do ruim contra o pior Uns diziam que era em nome de deus Mas tenho pra mim que era por coisa menor

Os homens tem sede de terra De nome, de fama e de guerra E basta a gente ter sossego, Uma alegria de passarinho E lá vem a Dona Morte e grita: - Tenho fome e sede de vida!

Era uma vez um tempo.... Ou ainda é?

Bem, sigamos! Desenrolemos o conto porque só se vive um dia de cada vez!

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Essa é uma dessas historietas de amor entre uma princesa mourisca e dois cavaleiros: um mouro e outro cristão, trazidas para nós de além- mar nas caravelas de Cabral. Mas não se enganem: há sempre muitas histórias não contadas nas entrelinhas da história conhecida. Na terra encarnada do pau brasil essas histórias se espalharam como veias por onde já corria o sangue indígena e depois o sangue negro e renasceram em forma de maracatus, reisados, pastoris, congadas, bois, folias de reis, caboclinhos, nau catarinetas e tantas, tantas outras brincadeiras de lamento, saudade e resistência.

Era uma vez um tempo...mas o teatro é arte que só acontece no presente, nunca no passado ainda que dele se alimente. E assim, nasce esta fábula indobrasileira revisitada, a celebrar nossas raízes, mas também os novos laços que se constroem em novos tempos, com outros povos e culturas.

Que o público aqui presente, neste tempo presente, possa apreciar nossa historieta com olhos e corações abertos para perceber a delicadeza dos encontros que se sucederão, ora como um sopro ibérico que revolve nossas raízes em muitos ‘Ais’, ora como um navegante que no caminho para as Índias, se perdeu e aportou em Vera Cruz. Foi quando nos encontramos pela primeira vez, por engano, resultado do mau tempo e do desvario das bússolas. Um rodopio náutico traçando para sempre uma rota imaginária entre a Terra do Pau Brasil e a Terra de Bharata, por onde navega essa fábula revisitada. (PRÓLOGO DO ESPETÁCULO CANTIGA MOURA, texto: Irani Cippiciani)

Processo de Criação Musical – Cantiga Moura (Índia/2016): https://www.youtube.com/watch?v=4x5h6536Xy8

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WEBSITES

Ore Yeye O, Oxum Tarangam - https://www.youtube.com/watch?v=MPTqQtwbwQs Koothu-P-Pattarai – http://www.koothu-p-pattarai.org/index.html Kattaikkuttu Sangam – http ://www.kattaikkuttu.org/ Pondicherry University – http://www.pondiuni.edu.in/department/department- performing-arts Pandavani – https://www.youtube.com/watch?v=FkazCSWeq9E Oja-Pali – https://www.youtube.com/watch?v=x3ejAq6jOGE Tal-Mandalle – https://www.youtube.com/watch?v=eZaMt07RsTM Gondhal – https://www.youtube.com/watch?v=ZmIUaU9LynA Burra Katha – https://www.youtube.com/watch?v=Xcg174lywN0 Keertana – https://www.youtube.com/watch?v=GXjcHICmWN8 Powada – https://www.youtube.com/watch?v=eEnPcawGI5M Villu Pattu – https://www.youtube.com/watch?v=FkjmZ9meROg Daskathia – https://www.youtube.com/watch?v=zu-0BIOAvP0 Kudiyattam - https://www.youtube.com/watch?v=sHGfu-wdVfw Thol Pava Kuthu - https://www.youtube.com/watch?v=NrL0G8U_VxE Mudiyettu – https://www.youtube.com/watch?v=FEWXi2Shodk Krishna Leela, Krishna Keertana, Radha Madhava – https://www.youtube.com/watch?v=icpguUNAWFI Bhutas – https://www.youtube.com/watch?v=3D6jXjJ-XQc Teyyam - https://www.youtube.com/watch?v=Zrz6qw1eeL0 Encantadores – https://www.youtube.com/watch?v=ffepjtKsQ10 Acrobatas – https://www.youtube.com/watch?v=49eVEr4UccQ Imitadores – https://www.youtube.com/watch?v=Bwo7P94Meig Vasudevas – https://www.youtube.com/watch?v=PmePwueMdRg Bauls – https ://www.youtube.com/watch ?v=qM3hi7lqPEM Nautanki – https ://www.youtube.com/watch ?v=OlVJTm1oZyQ Yatra – https://www.youtube.com/watch?v=Fn0jlx5q9k0

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Festival de Mariyamman - https ://www.youtube.com/watch ?v=VZ3Razdn_bA Amman Kovil - https ://www.youtube.com/watch ?v=s1oGIk7isEw Pakatai Tuyil e Draupadi Vastrapraharanam – https ://www.youtube.com/watch ?v=Xf8NzSdWYQg https ://www.youtube.com/watch ?v=eSrXOGAbSXI https ://www.youtube.com/watch ?v=71Ua8ye26Q8 Arjuna Tapasu - https://www.youtube.com/watch?v=heGudR7KcrI https://www.youtube.com/watch?v=KhltkbppfMI Facebook Therukoothu – https://www.facebook.com/therukkoothu.therukkoothu Aruvan Kabali - https://www.youtube.com/watch?v=ob5cJovUZic https://www.youtube.com/watch?v=7MXWjs84gwo Karna Moksha - https://www.youtube.com/watch?v=gwyXSZ9IhTE https://www.youtube.com/watch?v=sL-mO6xfJqc https://www.youtube.com/watch?v=h5BDgvpGIY4 Padu Kalam - https://www.youtube.com/watch?v=--wrn6sQsyM https://www.youtube.com/watch?v=I27X7D7kHII Draupadi Kuravanchi – https ://www.youtube.com/watch ?v=2TlXgEGycxo Karna Motcham - https://www.youtube.com/watch?v=m2hnQCz_jnI Wikipedia – https://em.wikipedia.org/wiki/List_of_districts_in_Tamil_Nadu https://pt.wikipedia.org/wiki/Tamil_Nadu Purisai - https://www.facebook.com/purisai.kannappathambiran Akkur – https://www.facebook.com/sri.therukoothu Mahaveeran - https://www.youtube.com/watch?v=8Qh-uKOkuBU https://www.youtube.com/watch?v=Dop6xhc2OLM Passos de Dança - https://www.youtube.com/watch?v=2TlXgEGycxo. Facebook Kattaikkuttu Sangam – https ://www.facebook.com/kattaikkuttu.sangam Facebook Thanthoniamman Company – https://www.facebook.com/sri.therukoothu

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Dados sobre suicídio no campo – https://em.wikipedia.org/wiki/Farmers%27_suicides_in_India https://pt.actualitix.com/pais/ind/india-populacao-abaixo-da-linha-de- pobreza.php Mangal - https ://www.cultureunplugged.com/play/740/A–MANGAI Blog do Thalai-K-Kol: http://thalaikkol.blogspot.com/2012/04/activities-of- thalai-k-kol.html Kattaikkuttu – https://www.kattaikkuttu.org/gurukulam-residential-training Scroll.in magazine – https://scroll.in/magazine/910539/carnatic-music-and-a- folk-theatre-form-come-together-to-push-the-stubborn-lines-of-caste-and- gender Seis personagens a procura de um autor/KPP – https://www.youtube.com/watch?v=0tZCLXe-lFg O pequeno retábulo de Dom Cristóvão – KPP e Grupo Caldeirão/2007 - https://www.youtube.com/watch?v=rQyzJvcRbs0 Brazil Puyal Encerramento / Grupo Caldeirão e KPP em 2007 - https://www.youtube.com/watch?v=2mUMwsWW0-s Bumba-meu-boi na Índia - https://www.youtube.com/watch?v=VRl4aJlbzc4 Prahalada Charitram- KPP/2007 - https://www.youtube.com/watch?v=UyvS11iYAaM Kattaikkuttu and the World - http://www.textures-platform.com/?p=4745

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ANEXOS

ANEXO I – ENTREVISTA CONCEDIDA POR HANNE DE BRUIN EM 04/07/19

1) In your book you note that, although there is a tendency for this, Kattaikkuttu would hardly be a political theatre. However, observing the work of Kattaikkuttu Sangam/Gurukulam, I realize that what is being done in the institution is a strong political action through education and art. Even if the political issue does not appear on the scene (yet) it reverberates in the community through the actions you promote. Is Kattaikkuttu Sangam the forerunner of a significant change in the corpus of Theru-K- Koothu/Kattaikkuttu tradition? Do you think, one day, it could appear on the stage as well?

My book is based on materials and data that predate the establishment of the Kattaikkuttu Sangam (in 1990) and the Kattaikkuttu Gurukulam (2002). I hope and think that these two interventions have changed Kattaikkuttu’s scenario. I think that the introduction of girls and women into the theatre is one of the biggest political statements that can be made by a traditional actor (Rajagopal) – not all of his colleagues have been appreciative of this genered action and finding our way through the (politicised) web of local performers and Chennai-based patrons of Kattaikkuttu/Terukkuttu certainly has not always been easy. I agree with you that some of our productions are definitely political (theatre always is political) – though often not in a “direct attack” manner. However, I do not think that our (i.e. Rajagopal’s and my) artistic work can be equated entirely with the Kattaikkuttu Sangam and requires separate consideration.

2) Could you give me an estimate of how many children or young people have been or are being served by Kattaikkuttu Sangam/Gurukulam since its foundation? It would be possible to determine how many of these young people remain, some way, bound to Kattaikkuttu tradition after leaving the institution?

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As on date more than 150 students have graduated from the Kattaikkuttu Gurukulam. Though this figure might not seem very impressive (at least to some of our donors), these young people have been at the school for periods varying from 2 to 10 years. The actual calculation could be done, perhaps, on the number of school years.... Prior to the Kattaikkuttu Gurukulam we ran an evening theatre and music school programme for 10 years. As part of this programme children in 6 different villages had the opportunity to participate in kuttu theatre and music training for 3 to 6 months during the year. Actors based in these villages, all of them members of the Sangam, provided the training. Some of the graduates have worked for us or still work with us. However, the impact of the Gurukulam on the lives of our alumni is something that would require a separate study. Though we hope and think the impact is there – it has not always been in the way we envisaged. The most important thing is, I think, that Rajagopal has trained a next generation of Kattaikkuttu performers and that, therefore, the knowledge, skills and repertoire of the tradition will continue to be available to rural audiences and others who are interested in the theatre.

ANEXO II – ENTREVISTA CONCEDIDA POR RUSTOM BHARUCHA EM 05/07/2019

1) What are the most significant differences between an intercultural approach and an intracultural approach?

I’m assuming that you mean an ‘approach’ to dance and other performance practices. There could be approaches at other levels as well. In my earlier understanding of these terms, which were never presented as definitions but as working propositions (see intro to The Politics of Cultural Practice), I held the view that the intercultural connotes ‘the in-between’, what lies between ‘cultures.’ Needless to say, the word ‘culture’ is a complex category, but I don’t see how it can be deleted or replaced with something else. To an extent, this reading of culture is linked to the ‘nation’ (although that is not the only reading of culture available; culture can also be regarded as ‘process’). This implicit

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linkage with the nation creates unavoidable tensions because the greatest enemy of interculturalism could be nationalism, that which prevents peoples, ideas, movements, energies from crossing borders. That is why I never subscribed to any utopian reading of interculturalism even in my earlier writings because I knew only too well that all intercultural practice is mediated by the mechanisms of the nation-state. If I wish to pursue an intercultural project with artists in Burkina Faso, for instance, I need to get a visa to get there. So, my reading of the intercultural was not post-national for the simple reason that I knew that that the nation-state was virulently alive, as it is today. We have to fight it in order to do intercultural work but we can’t pretend that it doesn’t exist. The intracultural came about through my theatrical practice when I attempted to adapt Kroetz’s ‘Request Concert’ within the contexts of three Indian cities – Calcutta, Bombay and Chennai. In the last city, the text was danced by Chandralekha in an avant-garde, minimalist abstraction of Kroetz’s text. While I was working on these productions, it became fairly 305bvious to me that I was not at all interested in figuring out what happens to a “German” text in an “Indian” context. Rather, I became interested in questioning: what is the ‘Indian context’? Given the regionalism, the multiplicity of languages and cultural expressions, the psychophysical traditions across the country, it became only too clear to me that we were dealing with internal cultural differences operating within the larger framework of the nation-state, but, more precisely, within the imagined homogeneities of specific regions and localities. It is these internal cultural differences that are often neglected or erased in readings of ‘culture’. This is a problem. For instance, when you are working on Terukkuttu, you know only too well that the Northern and Southern styles are different. But why are they are different? What are the social, political, geographical, economic, agricultural reasons that could possibly account for these differences? So, in a nutshell, I think that the intracultural has a more ‘micro’ approach to understanding the interaction, negotiation and interpretation of cultures, while the intercultural continues to be framed by national, transnational, and global considerations. In any complex reading of any cultural practice, the inter- and the intra- would not been seen as oppositional, but as complementary forces of

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interrelating energies. For theoretical purposes, however, it does become necessary to identify distinct categories of thought if only to blur or intersect them at a later stage.

2) Is interculturalism still a possible bet? Please, explain your point of view.

Not just a possible bet, but perhaps the only way to survive. However, you need to be clear that when we are dealing with interculturalism in such a wide existential and futurist register, that we’re not talking about Peter Brook and Ariane Mnouchkine. We can’t allow our thinking to be stuck in moribund practices of the 1970s. We have to think of new ways of creating cultural policy that can genuinely engage with diversity, difference, social exclusion and destitution. In today’s world in Europe, where the refugee crisis lies at the centre of most political tensions and conflicts, it is only through the sensitization of interculturalism that one can hope for some sanity. In essence, this means turning to the principle of ‘hospitality’, of opening your doors to strangers. This cannot be easily assumed because there are far too many right-wing politicians who would like to shut the door in the faces of refugees and asylum seekers. Very recently, I have been deeply inspired and stirred by the nexus between interculturality an decoloniality, which has been put forward by decolonial thinkers like Catherine Walsh and Walter Mignolo. For them, interculturality is directly related to Indigenous cultural and political movements, as in Bolivia and Ecuador, which have had a meaningful impact on the plurinationality of the constitutions of these states. Even if these movements may have faced setbacks, I think they open up primary concepts of the intercultural in relation to their ecological understanding of culture through affinities to Nature (Pacha Mama) and new forms of pedagogy through the creation of ‘pluriversities’ rather than ‘universities’. I would suggest that you read the last part of my essay ‘Hauntings of the Intercultural: Enigmas and Lessons on the Borders of Failure’ (in ‘The Politics of Interweaving Performance Cultures’) where I deal more specifically with the lessons to be learned from Indigenous cultural practice in the Australian context.

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3) Considering our historical condition of colonized countries, it would be possible to think of “another quality of intercultural exchanges” between countries like Brazil and India or not?

Following the example of Walter Mignolo, I would say that we need to re- open the moment of decolonization, and realize that official decolonizations and declarations of ‘independence’ do not necessarily mean that we have entered a ‘decolonial’ state. This is one of Mignolo’s major discrimination. A decolonial state of mind would necessitate a ‘de-linking’ from the hegemonic narratives of modernity and development. We need to become aware of the ‘dark side of modernity’, as Mignolo puts it, which necessitates a deeper confrontation of the ongoing realities of racism, slavery, and capitalism. Only through a sustained dialogues on these matters, which tend to get erased in postcolonial discourse, can we arrive at another quality of intercultural exchange. Before the exchange can materialize, we need to prepare the ground by confronting home-truths and realize that our histories are different, yet connected, and it would help that we forge South-South exchanges instead of perpetuating our over-dependence on discursive and epistemological structures from the North.

ANEXO III – ENTREVISTA CONCEDIDA POR K. R. RAJARAVIVARMA EM 07/07/19126

1) In the Time of KPP When I Was An Actor, Trainer and Rehearsal Director

When I entered in KPP in 1992 January KPP was suffering by not having any funds to run the organization. Na. Muthuswamy (NM) wanted to support actors with a monthly salary. He said that some of the actors stopped coming regularly because of not getting a salary in time. “I spoke to Ramakrishnan (One

126 Dr. K. R. RAJARAVIVARMA, Assistant Professor (Sr.), Department of Performing Arts, Pondicherry University, Puducherry -605 014, INDIA. O professor K. R. Rajaravivarma foi meu supervisor durante realização do Programa de Estágio Docente na Pondicherry University, entre dezembro/18 a fevereiro/19, com suporte da FAPESP.

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of the trustees of KPP) and he said that we would manage”. That time 1992-1994 KPP tried to do two programmes monthly for getting the salary of actors. At the time we were about 10 actors and 2 Actresses. One was, “Thana Therinchukkanum” (known by yourself) about Industrial pollution and “Andorra” (German play translated in Tamil). There was a criticism in the theatre circle “why KPP is always doing foreign plays and is there no play in Tamil?”. But, they did not know that we need a fund to continue our daily training and also our monthly salary. At the time of KPP in 1992 also had finished their first funding from Ford Foundation and looking for the second grant. Na. Muthuswamy is the soul of KPP having a lot of vision and activities towards actors and KPP. Mr. M. Pasupathy was our leader actor in KPP at that time. He was fully involved with KPP actors’ activities such as assisting N.M. in play productions and planning training activities and also appeared to us like the next successor of N.M. Three more plays happened to meet the organization expenses including the major thing of actors’ monthly salaries. Those were: 1. “Thai-Chei-Nalam” (Welfare of Mother and Child) sponsored by Chennai city corporation 2. “Caligula”, sponsored and directed by Mr. Praveen (Magic Lantern Theatre Group, Chennai) and 3. “Thalai” (Head) written and directed by N.M. from Ramayana. The economic situation of KPP was poor and some of us were put among the other Indian groups which were funded by the Ford Foundation. We were traveling to Kerala, Calcutta, Manipur and Jammu for exchanging programs and learned their way of training and their regional martial arts and dance forms. In KPP Individual actor’s skill, creativity and also personality were focused on the training process. N.M. had his concept “skills to creativity and continuous learning” and “a great play´s performance is possible only through skilled actors”. Muthusamy often says “an actor should develop him/herself like a Therukuthu artist because of their improvisation and individual skills and also the flexibility to adopt various roles in the art form”. So, we had a regular and systematic training activity from Morning 9 am to Evening at 6 pm like : Yoga/Taichi Chuan /Theatre Exercises: 9-11am –tea break–Play reading/Rehearsals: 11.30-1 pm –Lunch Break --

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Improvisation/Meeting experts of various field/ new play production works: 2.15 – 3.45 pm ---Tea break----Gymnastic /Acrobatics/silambam (stick fight) : 4.15 - 5.30pm – Relaxation exercises/ NM Feedback or Reflections on training and on individuals : 5.30 – 6 pm . It was to me like a traditional Gurukulam {residential training system under the GURU (A visionary teacher)} and most of us in that period 1992 --- 1998 vigorously involved and developed ourselves like Pandavas in Mahabharata. When we about to meet the second grant from Ford Foundation 1994 we were put in the task of “why do WE (KPP) need grant second time? And justify the use of the first grant!”. We performed our task through a play performance called “Savaal” (Challenge) and got appreciation by all 13 groups and the director of Ford Foundation grant sanction committee and also got the maximum fund amount and successfully ran the organization without any economic crisis till 1998. At that time, we were in ECR, Chennai at Kottivakkam in a two-story building and able to do our routines of training and play productions. In those time one of the important play production, performances, and all India tour was based on Dr. Avanthi Meduri’s Ph.D. Thesis on Devadasis (Temple Dancers) titled “God has changed his name” and then we went to Singapore to perform two plays ; NM’s “England “ and Shakespeare´s “Macbeth” in Singapore Theatre festival 1998. Then KPP was having pressure to find out economical sources to run the organization further. Few senior actors left or forced to get out in the process of building KPP in a complete organization set-up and self-sustaining. In the crucial situations and most of the time, the Ministry of Human Resource Development and Sangeeth Natak Academi of India supported through salary grant to the organization and this partially fulfilled the organization needs in particularly actors’ salaries. But to run KPP in a complete organization set-up and self-sustaining the money was not enough and we, actors, tried to find out money both individually and group. I was engaged in corporate theatre workshops, acting course, children theatre project at Deenabandu village, etc., and the group found work in PENTA MEDIA – 3D Animation movie “PANDAVAS the Five Heroes”, Title song Choreography in TV Serials and able to meet the expenses of KPP in the year 2000 & 2001.

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Again, few senior actors left to have the film chances as actors for their training on an everyday basis was absent and few instructors of Silambam (stick fight), Devarattam (community dance), Gymnastics were stopped. But the theatre experts like Nelia Veksal (Germany), Ruth Ayal, Gil Alon (), Vincent Rouche (France) training encouraged and a new team of actors entered in KPP have happened. So, I decided to leave the KPP because of a few reasons: 1. The regular training process was lacking in which learning new skills was not possible. 2. Some important senior actors moved away from the group and KPP decided to move near to NM house place. 3. I got married and having one child and also an offer of teaching Job (Temporary) at Hyderabad Central University and I also was qualified for Ph.D. (During my KPP times N.M. encouraged me to do) at that time. So, I moved but to say goodbye I put my Solo Theatre performance “An Actor’s Chaos” at Alliance Francoise, Chennai in 2004 and also completed the given assignment of the First Batch “Film Acting Course” as I was the designer and director of the course under the guidance of N.M. I can say my times (January 1992 – June 2004) in KPP was the Golden period of the history of the KPP. 2) Na. Muthuswamy for me

There is a proverb in Tamil how a young learner/student should hierarchically look at things in one’s life “Matha (Mother), Pitha (Father), Guru (Teacher), Theivam (God)”. For me Na. Muthuswamy (NM) was a symbol of all four together in the time of my life in KPP (1992Jan. -20014 June). He was my inspiration and symbol of a complete personality. If I was not there with him in my life then I could be a selfish, motiveless, ordinary human being with not ready to face challenges, loss of identity, less growth and, perhaps not achieved what I am today. He guided me to acquire skills in Martial Arts: Kalaripayattu, Thang- Ta, Tai-Chi-Chuan & Silambam; Folk Dances like Devarattam, Thudumbattam, Folk Theatre like Therukuthu and Yoga, Vipassana Meditation and many more theatre techniques, etc. His guidance from the visionary people like J. Krishnamurthy, Gurujeb, Zen Philosophy, and also his visions was made me think and do things in a greater level of understanding in day to day life. He never complained about anybody and not even discouraged any actor on any occasion

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and also not allowed the negative energy emerged from him. He tolerates and ignores things that produce negative energies. He was living in an enlightened level of being. He is my ultimate GURU, a complete teacher. My role model.

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ANEXO IV –PROGRAMAS DE ESPETÁCULO E MATÉRIAS DE JORNAL DO KOOTHU-P-PATTARAI

Apresento, abaixo, um pouco da história do grupo Koothu-p-pattarai que, depois dessa longa jornada, provavelmente, já deve soar familiar. O material não será apresentado em ordem cronológica ou seguido de explicações, porque isso demandaria todo um trabalho de pesquisa que extrapola meu objeto de estudo. Ainda assim, considero interessante a possibilidade de poder “passar os olhos”, curiosamente, sobre esse material, de forma despretensiosa, como forma de dar alguma materialidade ao nome Koothu-p-pattarai e sua produção artística.

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ANEXO V - LINKS DE ACESSO PARA OS DOCUMENTÁRIOS “THERU-K- KOOTHU: RAÍZES E ROTAS I E II”

THERU-K-KOOTHU: RAÍZES E ROTAS I https://www.youtube.com/watch?v=s- CM682YjiA&list=UUaKAqvZzp1Rm7Narde9YOUg

THERU-K-KOOTHU: RAÍZES E ROTAS II

https://youtu.be/lQFG424rUzc

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ANEXO VI – PARECER DO COMITÊ DE ÉTICA NA PESQUISA

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ANEXO VII – DECLARAÇÃO DE DIREITOS AUTORAIS