Sérgio Augusto E Foram Todos Para Paris.Pdf
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o filme Meia-Noite em Paris, de Woody Allen, um escritor americano de passagem pela N capital francesa em 2010 é súbita e misteriosamente arrastado no tempo até os anos 1920, caindo numa soirée animada por Ernest Hemingway, F. Scott Fitzgerald, Pablo Picasso e outras figuras fáceis do charmoso círculo de amizades de Gertrude Stein, na margem esquerda do Sena. Não diria que essa seja uma fantasia de todos os artistas e intelectuais que conheço, pessoalmente ou só de vista e leitura, mas não me surpreenderia se ao menos dois terços deles escolhessem a fervilhante Paris dos anos 1920-1930 como o destino de sua primeira viagem numa máquina do tempo. Voilà: apesar da justa fama desfrutada pela Atenas de Péricles, pela Viena da virada do século XIX para o século XX, pela Berlim dos anos 1930 e pela Nova York dos anos 1950, a Paris de Hemingway & cia–mais conhecida como a Paris da Geração Perdida – talvez vença qualquer concorrência, sem desdouro da Paris do imediato pós-guerra, também formidável (muito jazz, existencialismo, caves esfumaçadas, cinemas de arte), e com uma vantagem nada negligenciável sobre as anteriores: já haviam inventado a penicilina e ela podia ser comprada na farmácia da esquina. “Foram verões e mais verões de diversão e ócio”, registrou Fitzgerald, referindo-se a seus anos dourados na França. “A gente levava uma vida meio tola e sem sentido, mas sinto falta dela até hoje”, confessou o crítico cultural Harold Stearns, pouco antes de morrer, em 1943. Outro expatriado, o compositor Virgil Thomson, embasbacou-se: “Até os guardas respeitavam a gente.” Samuel Putnam, um dos primeiros a documentar em livro as melhores lembranças daquele tempo, sintetizou o rabicho em quatro palavras: “Paris foi a nossa amante.” Atraídos pelo generoso câmbio (1 dólar=25 francos) desequilibrado pela Primeira Guerra Mundial, e pela efervescência cultural incrementada pelo cubismo, o dadaísmo e o surrealismo, alguns dos cérebros mais privilegiados da América foram viver a grande aventura parisiense convencidos de que era mais fácil, e sobremodo mais chique, ser duro na capital francesa do que em casa. E a bebida, além de livremente vendida e consumida (a Lei Seca nos Estados Unidos durou de 1919 a 1933), era farta e deixava no chinelo a rústica birita que os americanos destilavam clandestinamente na banheira ou no fundo do quintal. Quem foi não se arrependeu, au contraire; e ainda ajudou a consolidar a mística, plasmada pelo romance O sol também se levanta (The sun also rises) e, quatro décadas mais tarde, pelas reminiscências parisienses de Hemingway, Paris é uma festa (A moveable feast), publicadas postumamente e continuamente realimentadas por outros romances, relatos autobiográficos, poemas, peças teatrais e filmes ambientados naquele período, como The moderns, ou dele saudosos, como a recente comédia de Woody Allen. “Minha geração não foi a primeira nem será a última a cultuar Paris como a capital mundial da modernidade, da criatividade sem compromissos e das relações sem preconceitos.” Não foi Woody Allen quem disse isso, mas outro cineasta, oito anos mais moço, Alan Rudolph, que batalhou durante mais de uma década para recriar na tela o clima da Paris dos anos 1920. Infelizmente, The moderns, filmado em 1987, captou mais as afetações do que o verdadeiro espírito da “moveable feast”. Meu chamego por Paris não brotou em horta literária (Flaubert, Proust e Camus vieram bem depois), mas no pomar cinematográfico do há muito extinto circuito dos cines Metro no Rio, assistindo ao musical Sinfonia de Paris (An american in Paris), de Vincente Minnelli, com músicas de Gershwin. Em 1952, ainda pirralho, tive um coup de foudre pelo personagem de Gene Kelly, um ex-combatente americano chamado Jerry Mulligan que no fim da Segunda Guerra decide virar pintor e permanecer para sempre em Paris, vendendo seus quadros acadêmicos em Montmartre. O filme é uma ode sinfônica à cidade e sua gente, às artes que inspirou e aos americanos que por ela se deixaram enfeitiçar, entre os quais o próprio Gene Kelly, parisiense de coração. Nem a descoberta, anos mais tarde, de que o filme fora quase todo rodado em estúdio diminuiu meu entusiasmo, até porque os cenários recriados nos palcos da MGM, em Hollywood, são uma imitação perfeita dos quartiers parisienses. Perdi a conta de quantos livros já comprei sobre o período e também sobre a romaria americana do século XIX (Benjamin Franklin, Thomas Jefferson, Fenimore Cooper, Henry James etc.), parcialmente relacionados no final deste volume. Não li todos, é claro, apenas os essenciais e mais deleitáveis, mas até nos mais rasos encontrei dicas preciosas sobre uma Paris que só existe hoje na lembrança, notadamente na memória das ruas, dos prédios, hotéis, livrarias, quiosques, bares, cafés, bistrôs e jardins onde os mais notáveis expatriés deixaram suas marcas. No outono europeu de 1989, concluída uma incursão por paragens ligadas a Kafka (Praga) e Claudio Magris (Budapeste-Viena, subindo de barco o Danúbio), cismei de percorrer e fotografar os mais notórios espaços habitados ou frequentados e afamados pela Geração Perdida para uma edição especial do suplemento de Turismo da Folha de S. Paulo. Seria a minha modesta homenagem ao bicentenário da Revolução Francesa, celebrado naquele ano. Levantei endereços, montei mapas e itinerários, e saí em busca de um tempo perdido, com minha inseparável Canon analógica e um caderno de notas (não, não era um Moleskine). Só no boulevard Saint-Germain enquadrei num único dia uns vinte “santuários”. Minha última foto, fechando a flanância pela Rive Droite, foi diante do nº 14 da rue Tilsitt, em cujo último andar Zelda e Scott Fitzgerald inauguraram, em 1925, sua interminável noite de loucuras parisienses. Nunca uma reportagem me deu tanto prazer – antes, durante e depois de sua execução. nº 14 da rue de Tilsitt. A reportagem, uma curtição descaradamente nostálgica que, com o título geral de “A Geração Perdida ainda está em Paris”, esparramou-se pelas 16 páginas do Turismo da Folha de 18 de janeiro de 1990, tornou-se um roteiro de viagem cultivé para aqueles que não vão à capital francesa só para comer, beber, fazer compras e subir na torre Eiffel. Sei de leitores e amigos que o seguiram à risca, não se importando com o incômodo de parar no meio da rua ou sentar-se no banco de uma praça para checar alguma informação no próprio jornal. No livro de viagens Terramarear: Peripécias de dois turistas culturais (Cia. das Letras, 2011), de Ruy Castro e Heloisa Seixas, há uma foto de Ruy a consultar o seu exemplar da Folha na calçada do hotel Crystal, ao lado do Café de Flore. É a única prova documental do sucesso do roteiro que possuo. “Faça um livro”, sugeriu-me alguém que perdera o seu exemplar e já tentara em vão adquirir outro. Resisti à tentadora ideia o quanto pude, um pouco por pudor (julgava o material insuficiente para ganhar uma lombada, por mais estreita que fosse) e também por preguiça de recuperar meus kodachromes, nunca digitalizados e dos quais restou apenas meia dúzia nos arquivos da Folha. Quando o único sobrevivente dos três exemplares do suplemento que por duas décadas mantive guardados voltou de seu último empréstimo, avaliei-lhe as rugas e cicatrizes, e afinal resignei-me à evidência de que meu excêntrico tour carecia de um suporte menos fugaz, volátil e perecível, vale dizer, de um abrigo mais seguro e, acima de tudo, mais acessível, que de preferência coubesse no bolso do casaco de viagem. Ei-lo. Tentei ao máximo conservar o texto original, mas acréscimos e reparos tiveram de ser feitos para corrigir cochilos tipográficos, corriqueiros em qualquer jornal diário, mais ainda naquela época, e atualizar determinadas informações, para que você, conduzido por este guia, não se depare com uma farmácia onde há 20 anos havia uma lanchonete, igualmente desprovida de pedigree histórico, a usurpar o espaço de algum endereço outrora mitológico. Dois agradecimentos se fazem necessários. À Folha de S. Paulo, que não opôs qualquer obstáculo à realização deste livro, e à sua maior incentivadora, a jornalista Maria Lucia Rangel, que em 1991 percorreu as duas margens do Sena com o caderno de turismo da Folha debaixo do braço. “Embora tivesse acontecido na França, foi tudo, de certo modo, uma experiência americana.” GERALD MURPHY uando tudo de fato começou? Q Para Samuel Putnam, a invasão de Paris pelos americanos só teve início com a chegada à Rive Gauche, entre 1917 e 1918, de dois intelectuais que haviam servido como motoristas de ambulância nas frentes de batalha da recém-finda Grande Guerra: o escritor John Dos Passos e o poeta E.E. Cummings, que assinava e.e. cummings e teria enorme influência sobre os concretistas brasileiros. Hemingway, que também participara do conflito transportando feridos para lá e para cá, chegou em 1921, no mesmo ano em que os compositores Aaron Copland e Virgil Thomson, que se revelariam os mais longevos da turma (morreram nonagenários), foram tomar aulas com a legendária professora de música Nadia Boulanger. E a moda pegou. George Wickes, criterioso inventariante da Belle Époque, discorda. Para ele, tudo teria começado não depois que os canhões do Kaiser foram silenciados para sempre, mas em 1903, ano em que o crítico de arte Leo Stein trocou São Francisco, na Califórnia, por um apartamento- estúdio no nº 27 da rue de Fleurus, e começou a pintar. E, ato contínuo, comprou seu primeiro Cézanne. Leo era o irmão mais próximo de Gertrude Stein, então com 29 anos e recém-formada em psicologia pelo Radcliffe College, onde fora aluna do influente filósofo e psicólogo William James, irmão do escritor Henry James. Em setembro daquele ano, Gertrude mudou-se para o apartamento parisiense do irmão. Antes de a década terminar, ela já tinha enriquecido suas paredes com quadros de Renoir, Cézanne, Gauguin, Picasso e Matisse; servido de modelo para os dois últimos; conhecido Alice B.