Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Educação e Humanidades Faculdade de Comunicação Social

Rafael Nacif de Toledo Piza

Marcas limítrofes, imagens do invisível: representações da marginalidade em Almodóvar

Rio de Janeiro 2008

Rafael Nacif de Toledo Piza

Marcas limítrofes, imagens do invisível: representações da marginalidade em Almodóvar

Dissertação apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós- Graduação Comunicação Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Linha de Pesquisa: Cultura de Massa, Cidade e Representações.

Orientador: Prof o. Dr o. Ricardo Ferreira Freitas

Rio de Janeiro 2008

CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ / REDE SIRIUS / BIBLIOTECA CEH/A

P 695 Piza, Rafael Nacif de Toledo. Marcas limítrofes, imagens do invisível : representações da marginalidade em Almodóvar / Rafael Nacif de Toledo Piza. - 2008. 131 f.

Orientador: Ricardo Ferreira Freitas. Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Faculdade de Comunicação Social.

1. Almodóvar, Pedro, 1949- - Teses. 2. Cinema – Espanha - Teses. 3. Marginalidade Social – Teses. 4.Contracultura – Teses I. Freitas, Ricardo Ferreira. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Faculdade de Comunicação Social. III. Título.

CDU 791.43(460)

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta dissertação.

______Assinatura Data

Rafael Nacif de Toledo Piza

Marcas limítrofes, imagens do invisível: representações da marginalidade em Almodóvar

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós- Graduação Comunicação Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Aprovada em: 30 de junho de 2008.

Banca examinadora:

______Prof o. Dr o.Ricardo Ferreira Freitas (Orientador) Faculdade de Comunicação Social da UERJ

______Prof o. Dr o. João Luís de Araújo Maia Faculdade de Comunicação Social da UERJ

______Prof o. Dr o. Denilson Lopes Universidade Federal do Rio de Janeiro

Rio de Janeiro 2008

AGRADECIMENTOS

Agradeço com humildade e intenso reconhecimento:

A minha avó materna, Luísa da Cunha Nacif (in memorian), professora de Artes, cuja perseverança na vida a fez inesquecível exemplo de fé, mesmo depois de seu falecimento; A meus pais, meus heróis míticos privados, incansáveis em constante luta como eternos Hércules diante de infindáveis 12 tarefas; Em especial, a minha irmã Renata, cuja paixão pelo teatro e pelas artes conectou-nos desde nossas adolescências quando nos apresentávamos nos festivais de poesia da escola. Eu não existiria sem você e sem a chave que você me deu para as portas da fantasia na arte e do entendimento de seu potencial transformador na vida; Aos padrinhos Sílvia e Luís Fernando, pelo apoio incondicional; Às irmãs Rosana e Raquel, contrapontos fundamentais nesse jogo de contrastes que a vida apresenta tantas vezes; Ao Prof. Dr. Ricardo Ferreira Freitas, meus eternos admiração, respeito e profundo afeto; Ao Prof. Dr. Ronaldo Reis (UFF), o primeiro mestre de trabalhos acadêmicos, cuja simples anotação num trabalho me fez iniciar este caminho; Ao Prof. Dr. Leonardo Caravana Guelman (UFF), guia nos primeiros passos da pesquisa de iniciação científica no âmbito do curso de graduação em Produção Cultural; Aos colegas da turma de mestrado: Cláudia Sendra, Jaqueline Deolindo, Juliana Krapp, Lian Tai, Luiz Gustavo Xavier, Márcio Albuquerque, Vicente Magno e aos ocasionais colegas de outras turmas e instituições com quem tive oportunidade de cursar as disciplinas do Mestrado: vocês foram ótimos companheiros, sempre; A todos os professores do corpo docente do PPGC/FCS/UERJ, em especial: a ao Prof. Dr. João Luís de Araújo Maia; ao Prof. Dr. Erick Felinto; à Prof . Dra. Denise a da Costa; ao Prof. Dr. Márcio Gonçalves; à Prof. Dr . Alessandra Aldé;

Ao Prof. Dr. João Luiz Vieira, cuja disciplina ‘Cinema e Literatura’, no âmbito da Pós-graduação em Comunicação da UFF, me instigou a aprofundar vários aspectos deste trabalho. À amiga: Virgínia Barcellos e, com destaque pelo apoio acadêmico, Fábio Magalhães. Ao meu chefe entre dez/2004-dez/2007 no Departamento Cultural da Sub- Reitoria de Extensão e Cultura da UERJ: Prof. Dr. Amandio Miguel dos Santos, sob cuja permissão foi possível ausentar-me inúmeras vezes do cotidiano de trabalho para finalizar este curso; Ao colega de trabalho, filósofo e professor, Guilherme Augusto Rezende Lemos, cujas provocações levaram-me a definir melhor meu objeto de pesquisa e a traçar um rumo mais definido para esta dissertação. Aos amigos Luiz Fernando Viotti-Fernandes, pela cópia do DVD espanhol do filme “Pepi, Luci e Bom” e a Luiz Otávio Ortigão, pelos conselhos sensatos na maioria das ocasiões; A todos que, de certa forma, colaboraram. Mesmo quando vocês disseram não ou me fizeram dizer não, com regozijo ou dor, fizeram-me continuar caminhando.

A imagem é aquilo de que estou excluído... não estou na cena: a imagem não tem enigma.

Roland Barthes

RESUMO

PIZA, Rafael Nacif de Toledo. Marcas limítrofes, imagens do invisível: representações da marginalidade em Almodóvar. 2008. 131f. Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Faculdade de Comunicação Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.

Esta dissertação apresenta uma análise das representações da marginalidade na obra cinematográfica de Pedro Almodóvar, com base na Sociologia do Desvio de Goffman, Becker e Elias, atualizada pela teoria de covering de Yoshino. A intenção do trabalho é problematizar a produção audiovisual do início da carreira do diretor manchego, de forma a comprovar que os filmes “Pepi, Luci e Bom e outras garotas de montão” (1980), “Labirinto de Paixões” (1982), “Maus hábitos” (1983) e “O que eu fiz para merecer isto?” (1984) documentam seu engajamento na dinâmica contracultural desenvolvida na Espanha da época. Almodóvar representa a marginalidade em seus filmes do período, configurando o que alguns críticos denominam como “estética do mau gosto”, de tal forma que as obras produzidas registram a luta pela liberdade democrática após anos de regime ditatorial. Pensar na cinematografia de Almodóvar a partir do ponto de vista da sociologia do desvio é refletir sobre as políticas de visibilidade de identidades culturais minoritárias. O trabalho do diretor apresenta menos inovações formais, pois parte de estruturas narrativas clássicas, mesmo quando mistura os gêneros; mas inova quando revela a marginalidade, cotidianiza-a, potencializando o processo de sua assimilação.

Palavras-chave: Cinema espanhol. Pedro Almodóvar. Marginalidade. Contracultura.

ABSTRACT

This research presents an analysis of the portrayal of deviance in Pedro Almodóvar’s early movies, based upon the Sociology of Deviance by Goffman, Becker and Elias, reviewed through Yoshino’s covering theory. The purpose of the work is to review the movies produced by Almodóvar in the early 80’s, in order to prove that features like “Pepi, Luci, Bom and other girls on the heap” (1980), “Labyrinth of Passion” (1982), “Bad habits” (1983) and “What have I done to deserve this?” (1984) register his commitment in the countercultural dynamics developed in Spain at the time. Almodóvar portrays deviants in his movies of the period, configuring what some critics name “aesthetics of bad taste”, in such a way that the films produced register the fight for democratic freedom after years of dictatorship. To think about Almodóvar’s cinematography from the point of view of the sociology of deviance is to reflect about the visibility of cultural minorities identities. The work of the director presents less formal innovations, as he uses classical narrative structures, even when mixing genres; but innovates when reveals deviance, from a day-by-day perspective, empowering the process of its assimilation.

Keywords: Spanish cinema. Pedro Almodóvar. Deviance. Counterculture.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO: O MARGINAL, A ROSA, A(S) TELA(S) ...... 11

1. COMUNICAÇÃO, CINEMA E REPRESENTAÇÕES SOCIAIS ...... 15

2. METODOLOGIA ...... 27

2.1. Pontos de vista na análise audiovisual ...... 27

3. DISCUSSÕES SOBRE MARGINALIDADE ...... 39

3.1. Goffman e o estigma ...... 39

3.2. Becker e os outsiders ...... 45

3.3. Elias: estabelecidos e outsiders ...... 52

3.4. Yoshino e a teoria de covering ...... 55

POP, PUNK, CAMP E A COSMÉTICA DA MARGINALIDADE NOS 4. 58 ANOS 80 ......

4.1. “Pepi, Luci, Bom e outras garotas de montão” (1980) ...... 71

4.2. “Labirinto de Paixões” (1982) ...... 82

4.3. “Maus hábitos” (1983) ...... 92

4.4. “O que eu fiz para merecer isto?” (1984) ...... 108

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ...... 118

6. REFERÊNCIAS ...... 124

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INTRODUÇÃO: O MARGINAL, A ROSA, A(S) TELA(S)

I belong to the world of sin, of degeneracy.1 Pedro Almodóvar

Comecemos com um exemplo roto, esfarrapado, ao modo do cão sobre quem o jumento de ‘Os saltimbancos’, de Chico Buarque, tropeça no início da trama infantil de perfume marxista tão encenada nas escolas brasileiras durante a década de 80. Em ‘A rosa púrpura do Cairo’, Woody Allen representa o mundo do cinema como o espaço do mágico. A tela do cinema dentro da tela física da sala onde assistimos ao filme do diretor americano é permeável: a protagonista entra no filme. De certa maneira, Allen parece representar o processo pelo qual todo espectador de cinema passa ao entrar numa sala de exibição para assistir a uma película: ele ganha ali um espaço para imbuir-se de uma outra vida, ou de outras vidas que não são as dele. Diz-se que as artes, em geral, propiciam este momento. Certos estilos de arte estimularão os espectadores a contentarem-se com o entretenimento e a verem reproduzidos no período do lazer o mesmo processo desenvolvido durante o período de trabalho. Outros estilos de arte despertarão no espectador reflexões críticas e farão com que ele busque melhorar suas condições de vida e emancipação. Esta é uma discussão infinita: qual a função da arte? Muitos teóricos debruçaram-se sobre ela ao longo dos anos sem terem apresentado uma resposta satisfatória. Vivemos, de fato, um momento em que grande parte da produção teórica da área de humanas, em especial das artes e da comunicação, parece mergulhar numa tautologia hermética, como vêm fazendo muitos artistas contemporâneos no campo das Artes Visuais, cujas obras perderam alguns laços de comunicação com o público não iniciado, daí sua rejeição pela massa educada prioritariamente pela televisão e pelos jornais. O leitor neste ponto deve estar assoberbado: ‘quais os pontos de contato entre estes argumentos?’; ‘qual a autoridade deste autor, qual sua procedência acadêmica, qual o relevo de sua produção intelectual e sua vivência profissional para que ele emita juízos tão definitivos e aparentemente tão abrangentes e

1 Eu pertenço ao mundo do pecado, da degenerescência. (Almodóvar em entrevista a STRAUSS, 2006, p. 3 – tradução nossa)

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radicais?’. Não é sem alerta que um egresso de um curso de pós-graduação stricto sensu recorre a tal expediente. Há um orientador, que também é editor e muitas vezes pai e padrasto. Há os amigos que lêem o manuscrito antes de sua defesa diante de uma banca de notáveis. Bem, dos e-mails que mantenho em meu programa de recebimento e envio de mensagens eletrônicas, um em especial, emitido de Paris pelo meu orientador recomendava, em certo ponto do processo de redação: “há que escolher que ‘Rafael’ vai redigir este texto. Há muitos dele fragmentados ao longo do trabalho. Escolha um e unifique as partes, dando-lhes uma uniformidade que só você poderá desenvolver.” Foi como um desígnio divino, que ecoou das pétreas cátedras da Universidade Paris V – Sorbonne. Prof. Ricardo Freitas cursava seu pós-doutorado em Comunicação sob orientação de Michel Maffesoli, um dos mais importantes sociólogos do século XX. Como poderia eu me sentir diante desta missão? Como a protagonista de ‘A rosa púrpura do Cairo’, interpretada pela esqüálida Mia Farrow, como o jumento que tropeça sobre o cão sarnento em “Os saltimbancos”, eu saltei para dentro da tela e me dissolvi como antiácido em copo d’água depois de uma noite de ressaca no tema que segue: representações da marginalidade em Almodóvar. Desde o começo, desde a entrevista para o mestrado, mantive-me fiel como cão mesmo ao tema inicialmente escolhido e não foi por moda, nem por acento vanguardista. Foi muito mais por um certo tipo de idealismo que me faz crer que a arte, ou a comunicação por meio dela, seja capaz de transformar o mundo: não que esta seja sua função, nem sua finalidade, mas uma potencialidade inesgotável e inalienável diante das pressões cotidianas para que sejamos adeptos do “bom gosto”, do “bom senso” e dos “bons modos”2. Mas isso tudo, esse preâmbulo confuso, esquizofrênico, não parece nada científico ou acadêmico? Que assim o seja. O corpo do trabalho, espero eu, apresenta as devidas justificativas científicas, molda-se aos princípios da universidade e respeita as metodologias. De qualquer maneira, não poderia deixar de incluir-me na plêiade de marginais que povoam as imagens de Almodóvar: na minha cabeça delirante, ao assistir seus filmes iniciais diversas vezes com o intuito de alcançar um conteúdo relevante para análise de como ele representa essa ‘categoria’ ou ‘tipo’ de personagem. Nestes dois anos e meio, a marginalidade em mim escapou pela sudorese abafada de um

2 Como canta Adriana Calcanhotto em “Senhas”, composição do álbum homônimo de 1992. A cantora fará referência às “cores de Almodóvar” ao gravar no mesmo CD a canção “Esquadros”.

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corpo oculto. A marginalidade, depois dos estudos e das leituras, eu aprendi a ver e a viver de quem olha de dentro, não mais de fora. De quem sangra na tela da vida aquilo que é impossível de ser representado de outra maneira. Os limites da tela de cinema misturaram-se aos limites da vida em sociedade e aos limites da produção de conhecimento: formou-se um relevo que marca uma trajetória do invisível. O não- visto na tela, o não-visto na vida é o que se pretende revelar, modestamente, por meio da análise dos quatro filmes iniciais da carreira do diretor manchego. O ponto, em resumo, é que Almodóvar dá voz aos marginais, confere-lhes protagonismo em seus filmes. Desta feita, como personagens inseridos no sistema cinematográfico de produção simbólica, eles podem enunciar a si mesmos, partindo de uma determinada estetização da marginalidade, Almodóvar deixa que os sem tela invadam, como a personagem de Mia Farrow faz em ‘A rosa púrpura do Cairo’, a tela do cinema, como que de alguma maneira, sabendo que estes fantasmas de luz vão voltar ao mundo físico e recontaminar a vida material de si mesmos. A tela de Almodóvar, propositalmente, é fora de esquadro, porque sua vivência como artista e como produtor de símbolos partiu deste ponto de vista. Almodóvar filma o espaço fora da tela ou traz para dentro da tela de cinema o espaço da vida que antes vivia fora dela. Assim ele, mesmo sem querer, devolve ao mundo a potência de marginalidade da contracultura madrilenha dos anos 70, filha da contracultura de outros tempos, alimentando um processo de reinvenção constante da sociedade. A tela molecular que separa espectador de imagem no cinema é infiltrada pela liqüefação dos papéis sociais na contemporaneidade. Almodóvar representa, com especial atenção, a questão da marginalidade e gera conseqüências sócio- políticas. No presente trabalho, faremos o seguinte percurso: de início, falaremos um pouco sobre as origens da arte cinematográfica e delimitaremos alguns conceitos fundamentais do campo com base em autores como Aumont, Metz, Canevacci e Jameson. Neste ponto, o objetivo será categorizar adequadamente esta pesquisa como um produto da área da Comunicação Social. Em seguida, fundamentaremos a discussão acerca do conceito de marginalidade do ponto de vista dos sociólogos Goffman, Becker, Elias e Yoshino e debateremos, comparativamente, as visões dos referidos autores com o intuito de sintetizar uma espécie de ‘modelo’ de marginalidade que, mesmo contemporaneamente, possa servir como base para a análise da sua representação nos filmes de Almodóvar. Apresentaremos, logo após,

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a metodologia de análise fílmica inspirada em Francis Vanoye e Anne Goliot-Lété. A análise de cada filme será feita posteriormente e indicaremos, finalmente, pistas para pesquisadores que desejem explorar o tema com mais tempo ou outros enfoques possíveis.

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1. COMUNICAÇÃO, CINEMA E REPRESENTAÇÕES SOCIAIS

O visual é essencialmente pornográfico, isto é, sua finalidade é a fascinação irracional, o arrebatamento; nessa ótica, pensar seus atributos transforma-se em algo complementar se não houver disposição de trair o objeto; os filmes mais austeros, por sua vez, extraem por força sua energia da tentativa de reprimir os próprios excessos (em vez de tirá-la do esforço mais ingrato de disciplinar o espectador). Assim, filmes pornográficos são apenas a potencialização de uma característica comum a todos os filmes, que nos convidam a contemplar o mundo como se fosse um corpo nu. 3 Fredric Jameson

Uma observação aproximada das teorias da comunicação nos revela: o turbilhão de novas tecnologias reforça a posição do cinema (não importando em que mídia o filme seja veiculado) como maior expressão industrial da arte. Jameson pronuncia-se sobre o assunto: [...] “o cinema nunca esteve mais vivo do que está globalmente, onde, no novo sistema mundial, uma grande quantidade de vozes locais encontraram expressão técnica extremamente sofisticada.” (JAMESON, 1995, p. 6) Trata-se de um tipo de manifestação artística e de comunicação com eco gutural junto ao público massivo, principalmente na era do multiculturalismo. Os filmes movimentam um mercado internacional bilionário, sustentado pelo star system que ainda dita as regras do jogo. Ao contrário do que aconteceu durante a maior parte do século XX, quando as filmografias nacionais pouco circularam internacionalmente em função do domínio absoluto de Hollywood e da não- constituição da atividade cinematográfica como indústria em grande parte do mundo, hoje, as salas de cinema já apresentam opções mais variadas para segmentos de público interessados numa visão mais cosmopolita desta expressão de arte e comunicação. No Brasil, elas estão segmentadas em função da programação que apresentam aos espectadores obras das mais variadas origens, consagrando o estilo diverso do cenário cinematográfico cult em paralelo ao cinema de mercado. A respeito da interface mercado e cinema, Canevacci comenta:

[...] deduz-se que também para o cinema — máximo produtor de ideologias mercantilizadas do século XX — vale a regra segunda a qual não pode ser explicado nem no interior do sistema “cinema” (do cinema ao cinema, através do qual se chegaria a nada menos do que o imaginário coletivo), nem como

3 JAMESON, 1995, p. 1.

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desmascaramento inteiramente “politizado” das ignomínias executadas em favor do sistema dos partidos (da política ao cinema), nem como recorrente hipervalorização da “crítica da economia política”, que se ilude em poder explicar o cinema através do simples desmascaramento das escolhas seletivas do investimento pelo sistema de produção fílmica, como qualquer outra atividade produtiva (da economia ao cinema). (CANEVACCI, 1990, p. 22)

O sociólogo italiano demonstra seu posicionamento frente ao debate que desenvolveremos a seguir: o cinema nos desperta politicamente ou nos aliena? Canevacci aponta para uma trilha em que corremos ambos os riscos, mesmo se formos freqüentadores de um ambiente estimulante criticamente. A partir do entendimento de Dwight Macdonald4 sobre a estratificação da cultura em erudita, de massa e popular, nos colocamos diante de um dilema: por um lado, sendo o cinema uma indústria, sua categorização neste caso tenderia a reproduzir os ditames da cultura de massa assim como da cultura popular (isto é, a noção de senso comum de que seus produtores, em função da necessidade de auferir lucro, subordinam as intenções artísticas do diretor às vicissitudes da média de espectadores internacionais); por outro lado, vendo o cinema como arte, nossa perspectiva se alinharia ao estrato erudito da cultura (isto é, o cinema como arte é aquele em que o diretor desfruta de liberdade estética e pode, se assim o desejar, confrontar os valores de mercado). No último caso, fica patente a importância da política de autor proposta por Bazin na Cahiers du Cinema, em que o diretor de um filme deveria ser visto como artista, como um escritor de imagens cuja independência se inspirava no estatuto da literatura moderna. Este processo gerou o que se conhece, atualmente, como cinema independente. Almodóvar surge no cenário da produção cinematográfica alternativa, não necessariamente anti-hegemônica, impulsionado pelo processo de globalização dos fluxos imagéticos da pós-modernidade. Sobre a posição de Bazin em relação ao cinema de autor (o “cinema erudito” ou “cinema além-do-mercado”) no caso específico do neo-realismo italiano, Aumont critica:

O entusiasmo de Bazin por essa “nova” forma de cinema leva-o a um certo exagero, quando exclama, a propósito de Ladrões de bicicleta, de Vittorio de Sica (1948): “Não há mais atores, não há mais história, não há mais encenação, isto é, finalmente, na ilusão estética perfeita da realidade, não há mais cinema.” (AUMONT, 1995, p. 140)

4 MACDONALD, Dwight. Against the American Grain: Essays on the Effects of Mass Culture. Nova Iorque, Da Capo Press, 1983.

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No decorrer do século XX, em função da radicalidade das mudanças ocorridas durante este período histórico, as posições da academia sobre os meios de expressão da arte e suas articulações com a cultura como um todo, tenderam a reproduzir a polaridade ideológica vinculada às lutas políticas travadas no campo do poder, sofrendo mutações constantes e extremas. A respeito da estratificação da cultura, Jameson explica:

[...] o tema familiar do elitismo defende a prioridade da cultura de massa com base unicamente na quantidade de pessoas a ela expostas; a busca da alta cultura, ou cultura hermética, é então estigmatizada como um passatempo típico do status de um reduzido grupo de intelectuais. [...] Essa postura é tão invertida na teoria da cultura elaborada pela Escola de Frankfurt; de forma apropriada para essa antítese exata da posição populista, a obra de Adorno e Horkheimer, Marcuse e outros é intensamente teórica e fornece uma metodologia de trabalho para a análise atenta precisamente desses produtos da indústria cultural que ela estigmatiza e que a vertente militante exalta. (JAMESON, 1995, p. 10)

Quando os irmãos Lumière inventaram o cinema, vivia-se um período de fim de século, marcado pelo surgimento vertiginoso de inovações tecnológicas e da intensificação da industrialização. Era necessário expandir os mercados consumidores. As novas soluções científicas e tecnológicas demandavam novos comportamentos e atitudes. A circulação das mercadorias se apropriou rapidamente destes novos dispositivos. Em “O cinema e a invenção da vida moderna”, vários autores discorrem sobre o desenvolvimento das estratégias de comunicação na modernidade, partindo das necessidades comerciais como precursoras da propaganda, importante influência para o cinema desde o seu surgimento no final do século XIX. Ismail Xavier comenta a respeito do livro: “O lema aqui é “historicizar”.” (CHARNEY e SCHWARTZ (org.), 2004, p. 11). O que se procurará fazer nesta dissertação é, de certa maneira e guardadas as devidas proporções, isto: procurar um modelo de sujeito marginal representado em Almodóvar que não ignora sua intencionalidade, levando em conta as restrições da produção cinematográfica e da indústria cultural e apoiando-nos num arcabouço teórico da Sociologia do Desvio. Em Almodóvar, o óbvio se torna insuportavelmente ululante. A lente do diretor volta-se para o marginal, o excluído, o imoral, o anormal e produz na platéia uma empatia, um sentimento de compaixão talvez, mas nunca pena. Almodóvar não é algoz ou réu, muito menos passivo, ele é cúmplice. A ação que se desenvolve na

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widescreen dita o compasso da vida e da morte entremeada por loucas paixões e desejos avassaladores. Charney e Schwartz listam seis elementos que caracterizam o cinema como a arte inspiradora da modernidade:

[...] se mostram centrais para a história cultural da modernidade e para a sua relação com o cinema: o surgimento de uma cultura urbana metropolitana que levou a novas formas de entretenimento e atividades de lazer; a centralidade correspondente do corpo como o local de visão, atenção e estimulação; o reconhecimento de um público, multidão ou audiência de massa que subordinou a resposta individual à coletividade; o impulso para definir, fixar e representar instantes isolados em face das distrações e sensações da modernidade, um anseio que perpassou o impressionismo e a fotografia e chegou até o cinema; a indistinção cada vez maior da linha entre a realidade e suas representações; e o salto havido na cultura comercial e nos desejos do consumidor que estimulou e produziu novas formas de diversão. (CHARNEY e SCHWARTZ (org.), 2004, p. 19).

Kracauer observou que a cultura de massa, típica da modernidade, proporcionou ao público espectador uma forma de compreender suas condições de vida, e, desta forma, assumir a possibilidade de auto-reflexão (no mínimo) ou, mais ainda, de consciência emancipatória. Mas, isto, entre as décadas de 20 e 30, assim como Benjamin (CHARNEY e SCHWARTZ (org.), 2004, p. 20). Como poderíamos ratificar que Almodóvar estimula essa capacidade de auto-reflexão e emancipação pela representação da marginalidade em seus filmes no início dos anos 80, na Espanha da transição? Ou, de outra maneira, poderíamos pensar que sua integração paulatina ao circuito internacional de filmes cult ou independentes representa a perda do potencial crítico de sua produção cinematográfica? Para Przyblyski, “à medida que a fotografia começou a captar o real, o “real” tornou-se inconcebível e inimaginável sem a presença verificadora da fotografia”. (CHARNEY e SCHWARTZ (org.), 2004, p. 24) O diretor espanhol fotografa o que, durante anos de subdesenvolvimento industrial cinematográfico e censura ditatorial, ficou invisível, reprimido, contido, represado. Almodóvar verifica no sentido de Przyblyski, a contracultura madrilenha como o início de um movimento de mudanças profundas na sociedade espanhola e na sociedade ocidental como um todo. Rappaport demonstra que “os fenômenos sociais da modernidade somente podem ser entendidos por meio das representações que os construíram.” (CHARNEY e SCHWARTZ (org.), 2004, p. 26). Da mesma maneira, para compreender a marginalidade é fundamental estudar suas formas de representação. Sobre esse assunto, Aumont comenta:

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A representação social — Trata-se aqui de um objetivo de dimensão quase antropológica, em que o cinema é concebido como o veículo das representações que uma sociedade dá de si mesma. De fato, é na medida em que o cinema tem capacidade para reproduzir sistemas de representação ou articulação sociais que foi possível dizer que ele substituía as grandes narrativas míticas. A tipologia de um personagem ou de uma série de personagens pode ser considerada representativa não apenas de um período do cinema como também de um período da sociedade. (AUMONT, 1995, p. 98)

Em “A estética do filme”, Aumont compara duas vertentes teóricas no campo do cinema que se opõem e se relacionam ao debate proposto neste capítulo sobre as interfaces entre comunicação, cinema e representações sociais. André Bazin desenvolveu a noção de um “cinema da transparência”. Para ele, como na realidade nenhum acontecimento tem sentido por si só (o que ele chama de “ambigüidade imanente do real”), o cinema deve se ajustar a esta limitação, deixando entrever no âmbito das representações na tela esta dualidade, tendo em vista que, para Bazin, o cinema deve reproduzir o real. Em síntese, a idéia de transparência no cinema para Bazin é que “a função essencial do filme é mostrar os eventos representados e não deixar ver a si mesmo como filme.” (AUMONT, 1995, pp. 72-74). Por outro lado, há o ideário de Eisenstein, para quem, afirma Aumont:

[...] no limite, o real não tem qualquer interesse fora do sentido que se lhe atribui, da leitura que se faz dele; a partir de então, o cinema é concebido como um instrumento (entre outros) dessa leitura: o filme não tem como tarefa reproduzir o “real” sem intervir sobre ele, mas, ao contrário, deve refletir esse real, atribuindo a ele, ao mesmo tempo, um certo juízo ideológico (mantendo um discurso ideológico). (AUMONT, 1995, p. 79)

O autor conclui, razoavelmente, que a postura denuncista sobre a indústria do cinema como manipuladora de consciências e alienante é útil para valorizar a criatividade artesanal do autor, o responsável pelo chamado cinema independente. Ele defende, no entanto, que a crítica posta desta maneira, apresenta uma visão romântica do diretor de cinema e do processo de produção de um filme. Para Almodóvar, “what I like in cinema is the artifice, the representation of reality.”5 (STRAUSS, 2006, p. 116) Ao observarmos mais atentamente, podemos fazer um paralelo entre essas visões do cinema e os debates ideológicos no campo das ciências humanas que opuseram marxistas ou apocalípticos, partidários da Teoria Crítica da Escola de

5 O que eu gosto no cinema é o artifício, a representação da realidade. (tradução nossa)

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Frankfurt, aos intelectuais chamados “integrados”, aqueles que defenderam os benefícios do desenvolvimento da comunicação de massa na segunda metade do século XX. No período em que foram produzidos os filmes a serem analisados nesta dissertação, entre 1980 e 1984, este debate era acalorado e colocava em lados diametralmente opostos, ao modo moderno, intelectuais e pesquisadores da área de comunicação. Neste período histórico, não podemos subestimar as influências da Guerra Fria na produção cinematográfica mundial e cabe valorizar a importância e a ousadia de Pedro Almodóvar ao produzir filmes que contestavam, mesmo que, na aparência, de forma superficial, os estilos de vida hegemônicos. Nesta dissertação, faremos uma revisão da Sociologia do Desvio de Goffman, Becker e Elias. Os três autores compõem um quadro teórico que servirá como âncora para definirmos a que espécies de marginalidade vamos nos referir quando estudarmos suas representações na obra do cineasta espanhol. Originárias da década de 60, essas teorias sociológicas esboçaram os princípios clássicos que delineiam a estrutura das relações de poder na sociedade, identificando como se dá o processo de exclusão social ou marginalização. Recorreremos, então, a Yoshino para atualizar o debate do desvio. É importante ressaltar que aqui não se pretende apresentar uma perspectiva psicológica da marginalidade, tampouco a sua variante jurídica. Será dada ênfase à marginalidade como fator de resistência cultural, com um recorte especial para a década de 80, quando foram produzidos os filmes que pretendemos analisar. O conhecimento básico do processo produtivo cinematográfico pode nos dar uma noção inicial de como se opera o impacto da visibilidade de outsiders na obra do diretor espanhol. Três agentes compõem o ciclo do cinema: (a) produtores, (b) distribuidores e (c) exibidores. Os (a) produtores são os agentes responsáveis pelo planejamento administrativo-financeiro de um empreendimento cinematográfico e, freqüentemente, intencionam obter, numa economia de mercado, retorno igual a, pelo menos, o valor dispendido na produção. Muitas vezes, outras motivações fazem com que produtores realizem certos projetos. Fora a razão econométrica, pretensamente imperativa hoje e descrita acima, já houve em certa fase e, supomos, ainda existe, a necessidade de criação de mecanismos de controle dos governos sobre suas populações. O cinema, como forma de expressão artística, não escapa a este tipo de utilitarismo. Trata-se da propaganda.

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No pós-guerra, durante a segunda metade do século XX, tanto os EUA quanto a ex-URSS se utilizaram deste recurso para disseminar mundialmente seus campos de influência político-econômica. Assim, foi produzida uma série de filmes que usaram como tema a questão da espionagem e da guerra fria. Um filme em especial parece estranhamente visionário: Wargames, de David Lightman (fonte: www.imdb.com). Nele, um jovem Matthew Broderick [que, posteriormente viria a estrelar Ferie’s Buller Day Out (fonte: www.imdb.com), espécie de ode ao “malandro americano” (?)6, um tipo de marginal], aparece interferindo no conflito bélico entre EUA e Rússia a partir de um microcomputador (não muito diferente do que temos hoje) instalado em sua residência. Alguma semelhança com vírus, hackers, crackers, bugs do milênio e congêneres? Há uma espécie de ciberativismo em voga que poderia muito bem ter sido um pouco algo previsto neste filme, lembrando que a internet foi projetada inicialmente em âmbito militar, nos EUA, com o objetivo de fomentar a troca de conhecimento entre instituições universitárias com alta capacidade de produção científica. Nos anos 80, quando foram produzidos os filmes que serão analisados nesta dissertação, a Guerra Fria atingiu seu auge. Mas o que isso tem a ver com Almodóvar? Simples: se podemos observar na produção cinematográfica norte- americana a clara imposição de um padrão cultural, com conseqüências políticas e ideológicas, o que esperar do movimento contrário, quando a cinematografia minoritária retrata a sociedade sob um outro ponto de vista, diametralmente oposto ou complementar? Como veremos adiante na dinâmica de assimilação dos discursos marginais ou minoritários ou outsiders ao mainstream na teoria de covering de Yoshino7, Almodóvar revelou, no início dos anos 80, toda uma produção cultural de resistência aos cânones da sociedade espanhola, que também pode ser extrapolada para outras sociedades ocidentais. Pensar na cinematografia de Almodóvar a partir do ponto de vista da sociologia do desvio é pensar numa política da visibilidade de identidades culturais minoritárias. O trabalho do diretor apresenta menos inovações formais, pois segue estruturas narrativas clássicas, mesmo quando mistura os gêneros; mas inova quando revela a marginalidade, cotidianiza-a, potencializando o processo de sua assimilação. Cabe destacar ainda as limitações que o governo franquista impôs à produção cinematográfica espanhola durante o

6 Se é que existe esse conceito nos EUA, o conceito de “malandro”. 7 Yoshino, Kenji. “Covering – the hidden assault on our civil rights”. Nova Iorque: Random House, 2007.

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período ditatorial. Os cineastas foram não só censurados, como sua arte foi utilizada para forjar uma certa identidade nacional com base em estereótipos vinculados ao exotismo da cultura espanhola em relação aos outros países europeus. Os filmes espanhóis produzidos nessa época eram adaptações literárias de grandes romances e narrativas em torno dos símbolos da cultura nacional: o flamenco e a tourada, por exemplo. É evidente que a ditadura na Espanha e as conseqüências sócioculturais dela na produção artística e cinematográfica mais especificamente têm uma relação com o contexto político internacional pós-segunda guerra. Em meados do século XX, vários países foram vítimas da instalação de regimes ditatoriais que impediram a livre expressão da opinião pública. No Brasil, esse período começou em 1964, com a queda de Jango e a posterior radicalização do regime, alguns anos depois, com a aprovação do Ato Institucional Número 5. Se conjecturarmos que esses regimes resultaram de uma conspiração internacional arquitetada por uma elite político- econômica vinculada às multinacionais indica ingenuidade, ignorância e maniqueísmo, também não podemos deixar de observar as conexões entre essas ditaduras que não foram simplesmente coincidências ocasionais proporcionadas pela história mundial. Ao contrário da polarização existente na década de 50, quando o cinema americano vendia a nação EUA assim como o cinema russo vendia a nação Rússia, hoje, há uma internacionalização de modos de ser, o que Maffesoli identifica, positivamente, como a unidade básica das tribos urbanas8. Evidentemente, existe uma intencionalidade na produção de determinados filmes em detrimento de outros. Percebemos, então, a que tipo de produção estamos assistindo e a que critérios devemos recorrer para avaliá-la. Apocalíptica ou integrada? Nacional ou internacional? Local ou global? Muitos intelectuais contemporâneos apontam na direção construtiva dos processos de internacionalização dos fluxos de informação. Coincidentemente, é neste mesmo momento que vemos guerrilhas urbanas, em especial no Brasil, sufocarem as classes médias trabalhadoras a ponto de disseminarem um pânico generalizado. Em “Culturas extremas - mutações juvenis nos corpos das metrópoles”, Massimo Canevacci fala de culturas intermináveis, de jovens intermináveis, mas em nenhum momento refere-se ao fim da política. Existiria mesmo hoje um cinema não-político, não-ideológico? O cinema produzido por

8 MAFFESOLI, Michel. O tempo das tribos – o declínio do individualismo nas sociedades de massa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.

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Almodóvar, segundo ele mesmo, não ignora a necessidade de circulação por um mercado de distribuição internacional. Mesmo assim, ele perde seu caráter político? A Madri de início dos anos 80 representada por Almodóvar nos parece um campo de batalha pela sobrevivência, pela construção de novos modos de ser e viver. Quanto mais íntimos ficamos de seus personagens, mais surpresos ficamos com as suas estratégias para realizar suas paixões, seus desejos. O diretor espanhol que iniciou a carreira como um enfant terrible, parece hoje integrado ao circuito cult. Suas produções rendem milhões de dólares e os atores que aparecem em seus filmes são logo catapultados ao estrelato internacional e convidados a participarem de produções em Hollywood. Sobre as relações entre cinema e ideologia, Canevacci defende a seguinte posição em “Antropologia do cinema”:

Nos planos da especulação tanto metafísica quanto racionalista, houve sempre a obsessão de um controle forçosamente universal das camadas sociais às classes dominantes, em cada oportunidade, assim como dos indivíduos singulares. Esse é o problema da ideologia, cuja essência mais íntima é freqüentemente mal-entendida: ou seja, a ideologia é geralmente considerada como uma consciência “falsa”, entendendo-se com isso uma concepção do mundo errada, equivocada e, portanto, “irreal”, sem nenhuma relação de verdade com a concreticidade do mundo. Ao contrário, o que havia de falso na ideologia — e ainda há — é a pretensão de universalidade, que tenta representar puras visões do mundo de toda a humanidade como algo socialmente realizado. Essa pretensão de absoluto, que de resto teve mais sucesso do que se pensa, pôde conquistar seu objetivo somente mediante a arte de esconder a sua intrínseca natureza de classe, ou melhor, de parte. A ideologia é uma particularidade facciosa que tem a ambição de desenvolver uma hegemonia universal, a fim de exercer uma função de controle no terreno da cultura e de poder em face da totalidade das pessoas às quais se dirige, sem nenhuma exceção. Aliás, ela é obrigada a isso, na medida em que alcança uma plena satisfação, adequada ao seu conceito e à sua utilidade, somente quando realiza esse movimento dialético total e, ao mesmo tempo, quando o esconde com o máximo cuidado. (CANEVACCI , 1990, pp. 7-8)

O “cinema da transparência” de Bazin não seria um exemplo útil neste caso? Retomando a visão de Canevacci de que a simples descrição do processo produtivo do cinema não é suficiente para explicá-lo, ainda assim refazer este percurso neste capítulo nos ajuda a localizar o leitor diante do desafio de Almodóvar. Os agentes que aparecem em seguida são os (b) distribuidores. Eles representam os intermediários que escoam o produto pelos canais de distribuição (as salas de cinema). No caso, com o advento do cinema digital, essa função parece estar seriamente comprometida ou num processo drástico de transformação, dependente da implantação das novas tecnologias.

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Em “Cinema Paradiso”9, o roteirista e diretor do filme demonstra, por meio do personagem do projecionista idoso, parte das transformações na tecnologia do cinema. A narrativa é metalingüística, porque fala sobre filmes por meio de um filme. Os distribuidores representados na película italiana transportavam as cópias de bicicleta entre as cidades do interior da Itália. Na ponta do processo cinematográfico, estão os (c) exibidores. São as organizações sociais, públicas ou privadas, cuja finalidade é exibir o produto final. É a ponta do negócio, onde o produto é vendido, é o ponto de venda do produto. Uma sala de exibição, além de um ponto de venda de um filme, também pode ser um ponto de venda de uma ideologia ou de um projeto político. Uma sala de exibição pode ser um espaço de reflexão sobre a cultura, a partir da projeção de imagens da marginalidade como um modo contemporâneo de evidenciar subversões. Em Almodóvar, a marginalidade é sempre sublinhada, enfatizada, destacada. O desvio é ponto de partida para suas histórias. Ele não é tão reconhecido por experimentações formais, quanto por suas inovações nos conteúdos dos filmes. Almodóvar não pode ser classificado como um vanguardista propriamente dito e, como veremos adiante, ele parte de um ambiente cravado de questões políticas e ideológicas para registrar o florescer de uma nova Espanha, livre dos horrores de um regime autoritário e ansiosa com a incerteza de seu futuro. Em “A construção do objeto de pesquisa em representações sociais”, Celso Pereira de Sá aponta:

O objeto de pesquisa, conquanto construído basicamente a partir do fenômeno de representação social a ser estudado, não constitui uma réplica do fenômeno, mas uma aproximação ditada pelas possibilidades e limitações da prática da pesquisa científica. De fato, além de delimitar os aspectos do fenômeno que podem ou que valem a pena ser pesquisados, o objeto de pesquisa os incorpora em uma versão condicionada pela perspectiva teórico-conceitual assumida. O fenômeno assim transformado é submetido ainda a considerações quanto à viabilidade metodológica e à disponibilidade ou desenvolvimento de técnicas adequadas ao seu estudo. O objeto de pesquisa assim construído irá portanto orientar a proposição de perguntas ao domínio empírico, a organização dos dados que essas perguntas irão gerar e a transformação final destes dados em resultados da pesquisa. (SÁ, 1998, pp. 14- 15.).

O cinema será utilizado como meio de comunicação e representação neste trabalho. Isto é: ele será um veículo para o estudo de uma outra questão que são as representações da marginalidade em Almodóvar. Conforme especifica a

9 “Cinema Paradiso” (Itália, 1988). Direção e Roteiro: Giuseppe Tornatore.

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descrição da linha de pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da UERJ, o objetivo dos estudos da linha “Cultura de Massa, Cidade e Representações Sociais” é investigar representações sociais contemporâneas em sua interface com a comunicação e a cultura de massa. As “representações sociais” são compreendidas como conjuntos de idéias, significados e valores socialmente compartilhados. É o que buscaremos fazer na análise dos filmes do início dos anos 80 de Almodóvar. Podemos finalizar esta discussão reproduzindo a importante distinção elaborada por Gilbert Cohen-Séat e citada por Christian Metz em “Linguagem e cinema”: o fato cinematográfico difere do fato fílmico. Metz a resume da seguinte forma:

[...] o filme é apenas uma pequena parte do cinema, pois este apresenta um vasto conjunto de fatos, alguns dos quais intervêm antes do filme (infra-estrutura econômica da produção, estúdios, financiamento bancário ou de outro tipo, legislações nacionais, sociologia dos meios de decisão, estado tecnológico dos aparelhos e emulsões, biografia dos cineastas, etc.), outro, depois do filme (influência social, política e ideológica do filme sobre os diferentes públicos, patterns de comportamento ou de sentimento induzidos pela visão dos filmes, reações dos espectadores, enquetes de audiência, mitologia dos “astros”, etc.), outros, enfim, durante o filme mas ao lado e fora dele: ritual social de sessão de cinema (menos pesado que no teatro clássico, mas que extrai dessa própria sobriedade seu status no cotidiano sócio-cultural), equipamento das salas, modalidades técnicas do trabalho do operador de projeção, papel do lanterninha (isto é, sua função em diversos mecanismos econômicos ou simbólicos, que sua inutilidade prática não engendraria), etc. (METZ, 1980, p. 11)

Portanto, parece-nos evidente que estudar as representações da marginalidade em Almodóvar é uma contribuição intimamente vinculada ao campo da Comunicação Social, uma vez que o cinema é uma mídia de massa, aliás, uma das mais importantes. Seria uma pretensão, neste pequeno capítulo, propor a resolução das questões apresentadas. Ao contrário, o que se pretendeu fazer foi levantar o debate sobre a categorização do filme como produto de arte ou como produto meramente mercadológico, recorrendo a consagrados autores das áreas de comunicação, antropologia e cinema. A visão mais ponderada sobre o assunto é a de Aumont. O autor não nega a preponderância da mercadoria no processo produtivo do cinema e as suas conseqüências ideológicas, alinhando-se, de certa maneira, ao pensamento de Eisenstein. Parece-nos, ao mesmo tempo, que o “cinema da transparência” de Bazin é visto por Aumont como uma teoria menos dialética e muito comprometida com a legitimação de uma certa visão romântica do diretor. Canevacci não ignora o problema da ideologia no cinema. Ele evidencia, no

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entanto, que, mesmo quando intelectuais e pesquisadores se unem em tom denuncista contra a industrialização do filme, eles estão reproduzindo uma visão parcial do processo. Jameson propõe com razão:

[...] devemos repensar a oposição alta cultura/cultura de massa de modo que a ênfase valorativa a que ela tradicionalmente deu origem — e que, entretanto, o sistema binário de valores utiliza (a cultura de massa é popular e portanto mais autêntica que a alta cultura; a alta cultura é autônoma e daí totalmente incomparável a uma cultura de massa degradada), tendendo a funcionar em algum domínio intemporal do juízo estético absoluto — seja substituída por uma abordagem genuinamente histórica e dialética desses fenômenos. (JAMESON, 1995, p. 14)

A chave do problema então é historicizar e relativizar a abordagem das representações da marginalidade nos filmes de Almodóvar. Ao analisar a visão de Jameson sobre a oposição cultura erudita X cultura de massa, Prof. Ricardo Ferreira Freitas, da UERJ, explica:

[...] não se pode mais idealizar uma separação radical entre "cultura de elite" e "cultura de massa" como bem notam diversos pensadores contemporâneos, dos quais destacamos o pensamento de Fredric Jameson quando estuda as relações entre o cinema e a pós-modernidade. Para o sociólogo americano, um importante crítico marxista de cultura dos EUA, é preciso repensar a oposição "cultura de elite/cultura de massa", já que toda produção social pode ser entendida como cultura, sobretudo quando esse processo acontece essencialmente por meio de conjuntos de redes de imagens. Tal abordagem pede que vejamos "culturas de massa" e "de elite" como um fenômeno dialético, sobretudo se pensarmos a pós- modernidade como a mais completa tradução do capitalismo já vista, dada a ilusão de se viver qualquer situação via consumo. Nesse contexto, Jameson defende que quase todos os valores urbanos são mediados pela cultura de massa, inclusive as representações políticas e ideológicas. Assim, as obras de cultura de massa deveriam oferecer uma semente genuína de conteúdo como recompensa ao público sempre prestes a ser tão manipulado (Jameson, 1992, p. 9/14) (FREITAS, 2005, pp. 125-137)

Parece-nos que a produção cinematográfica de Almodóvar se inscreve, então, neste âmbito, inicialmente, assumindo contornos mais críticos e, conforme se incorpora ao mercado internacional, ao longo do anos 80 e 90, tem seu caráter contestatório reduzido, culminando com a conquista do Oscar de melhor filme estrangeiro para “Tudo sobre minha mãe” em 2000. A seguir, vamos estabelecer a metodologia a ser utilizada no trabalho.

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2. METODOLOGIA

[...] o texto fílmico é “impossível de se encontrar” no sentido de que não é citável.10 Francis Vanoye

A metodologia do estudo inspirou-se nas discussões teóricas que colocaram em campos opostos o cinema da transparência de Bazin ao cinema assumidamente ideológico de Eisenstein, conforme discussão feita por Aumont em “A estética do filme”, bem como nas contribuições de Jameson, Canevacci e Metz. Buscamos suturar as noções de ponto de vista para Diana Rose, Aumont, Branigan, Browne e, sobretudo Vanoye e Goliot-Lété às noções de marginalidade de Goffman, Becker, Elias e Yoshino. Por fim, optamos por uma análise de conteúdo não totalmente comprometida com uma estrutura específica, evitando a análise fílmica em sua tradição semiológica, mas originada do estudo desses autores, tendo como âncora sempre o conceito das representações sociais e a historicização sugerida por Ismail Xavier em “O cinema e a invenção da modernidade”. Dois métodos então serão fundamentais: a contextualização histórica da produção dos filmes analisados e a revisão bibliográfica de autores que previamente estudaram tais obras. Procuramos estudar a marginalidade representada pelos protagonistas dos filmes.

2.1 Pontos de vista na análise audiovisual

No capítulo 14 de “Pesquisa qualitativa com texto imagem e som”, intitulado “Análise de imagens em movimento”, Diana Rose apresenta uma metodologia para análise de imagens audiovisuais cuja utilidade será fundamental para a realização desta pesquisa. Logo no início do texto, a autora recorre a um trabalho por ela realizado como exemplo para demonstrar o uso das técnicas de análise em foco. Rose investigou as representações da loucura na televisão britânica, especialmente em dois canais, a BBC e o ITV. O exemplo abordado pela autora inclui um subgrupo social pertencente à classe de “marginais”, cuja representação é objeto desta dissertação. Inicialmente, a autora destaca a complexidade do meio audiovisual,

10 VANOYE, 1994, p. 10.

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descrevendo-o como um “amálgama [...] de sentidos, imagens, técnicas, composição de cenas, seqüência de cenas e muito mais.” (ROSE in BAUER (org.), 2002, p. 343). Aqui, cabe um questionamento: até que ponto um diretor cinematográfico intencionalmente trama um filme? O cinema é essencialmente uma obra coletiva. Há uma enorme margem de imponderabilidade na concepção e execução de uma obra cinematográfica. Diz-se que o teatro é a arte por excelência do imponderável, daí o fascínio de Artaud e a sua teoria do duplo11. Somente num ambiente milimetricamente controlado poder-se-ia obter um resultado muito próximo ao imaginado originalmente; talvez um cinema-tubo-de-ensaio, ou um laboratório-filme, ou vice-versa, respeitando-se a coerência lógica de correspondência entre recipiente e receptáculo. Talvez seja por isso, por essa qualidade de visão-vertigem cinematográfica da vida/mundo que os orçamentos das produções hollywoodianas sejam, quase sempre, estourados. O Cinema Novo no Brasil saiu da vida e entrou para a história com o slogan “uma idéia na cabeça e uma câmera na mão”. De alguma forma, os processos totalitários (capitalista e comunista) do séc. XX parecem ter estimulado esse espírito “um quê de” anárquico, mobilizando as artes a partir de fins do séc. XIX. O dadaísmo quis romper com a linguagem em 1910. A body-art quer romper com o corpo hoje. Primogênito da fotografia, o cinema, meio subproduto, leve 2-pague 1, muito encantamento e espanto, reconfigurou milhares de anos de representação do mundo. Eadweard Muybridge (1830-1904), já em 1887, onze anos antes dos Lumière, antecipou em Animal Locomotion os efeitos do cinema na percepção do homem e nas suas visões de mundo. Curiosamente, Muybridge, ele mesmo, assassinou o amante de sua esposa durante o desenvolvimento de seu trabalho fotográfico dedicado ao registro do movimento. Marginal? Rose continua. Há um trajeto a ser percorrido que ela denomina translado, isto é, a decomposição da linguagem cinematográfica em narrativa e a sua posterior análise, onde não se pode deixar de observar o que também não está presente. “Nunca haverá uma análise que capte uma verdade única do texto.” (ROSE in BAUER (org.), 2002, p. 344), afirma. A pesquisadora aconselha então que se deixe o mais explícito possível os vários modos de translação e simplificação, para que

11 Em “O teatro e seu duplo”, Artaud propôs o teatro da crueldade, no qual não haveria separação entre atores e platéia.

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eles também sejam objeto de análise do leitor. Assim, com o método explícito, ele também pode ser debatido. Ao descrever como selecionou os programas a serem analisados na televisão britânica, Rose cita como critério para escolha dos canais a serem gravados a popularidade. Em analogia, se queremos provar que Almodóvar utiliza recursos da cinematografia hegemônica para subvertê-la ao enquadrar a marginalidade como algo da ordem do cotidiano, trivializando-a, permitindo ao público uma identificação com a personagem marginal, gerando empatia, rompendo estereótipos e paradigmas, a escolha pelos filmes iniciais de sua carreira justifica-se em função de que, àquele tempo, as influências mercadológicas sobre sua produção eram menores, visto que a circulação de seus filmes era restritíssima. É nestes filmes, quando ele ainda não fazia tantas concessões ao mercado internacional, segundo seus críticos mais saudosistas, que encontraremos o maior potencial político e subversivo da representação positiva da marginalidade. Rose ainda fala sobre a necessidade de se partir de um determinado universo bem conhecido para realizar um recorte, portanto, mesmo com o critério já definido, não foi tarefa muito difícil, senão demorada, assistir todos os longa-metragens produzidos pelo diretor até hoje. “Se a linguagem é, porém, um sistema, então os signos pertencentes a um contexto, quando presentes em um outro contexto completamente diferente, irão ainda carregar consigo algum peso do sentido original.” Neste ponto, a pesquisadora destaca a importância da fundamentação de escolhas teóricas e escolhas éticas12(ROSE in BAUER (org.), 2002, p. 348) Ao dissertar sobre o processo de transcrição, Rose aponta como procedimento inicial a definição da unidade básica de análise que, no caso do trabalho usado como exemplo no texto, foi uma tomada feita pela câmera de filmagem. Ela explica essa escolha pelo fato de que sendo o cinema essencialmente visual, nada mais adequado do que uma unidade visual para servir como base de análise. Em seu estudo, Diana Rose propôs que, na televisão britânica, a doença mental era estigmatizada e excluída. A hipótese do estudo avançou no sentido de demonstrar que as pessoas mentalmente perturbadas são fotografadas de maneira diferente daquelas que não são diagnosticadas do mesmo modo. Segundo uma expectativa orientada pelo senso comum, ou pelos cânones hegemônicos do

12 Talvez jovens pesquisadores tendam a confundir os códigos da ética da estética, o que faz com que eles lancem mão dos aconselhamentos cínicos de Umberto Eco sem o devido espírito crítico.

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cinema, “as disposições de ânimo e a expressão de desconformidade podem também ser representadas através da iluminação e da música, e através de outros efeitos.” (ROSE in BAUER (org.), 2002, p. 349) Na presente dissertação, pretende- se demonstrar que Almodóvar utiliza recursos de linguagem tipicamente pós- modernos, como o pastiche, a paródia e a metalinguagem13, para subverter os cânones do cinema hegemônico, utilizando esses mesmos recursos de iluminação, música e outros efeitos, para reposicionar a marginalidade no cotidiano e conferir-lhe um caráter essencialmente humano. Assim, o diretor gera empatia da personagem marginal com o público e o leva à catarse, ou à purgação de sua própria marginalidade, mas não como recurso pedagógico-repressivo, como na Grécia Antiga de Aristóteles, e sim com claros intuitos libertários e políticos14. Em “Antropologia do cinema”, Canevacci fala sobre a catarse aristotélica:

Segundo Aristóteles, a tragédia tinha uma função catártica para os espectadores: purificava as paixões enquanto as apresentava. Mas isso era ideologia já naquela época, na medida em que escondia a verdade sobre sua origem dionisíaca. Na embriaguez ritual, o indivíduo — que se liga à natureza de cuja identidade se está separando com atroz sofrimento, e que, precisamente nesse processo, constitui-se como sujeito — ignora o papel de espectador, na medida em que conhece e pratica apenas o de ator, em seu significado mais pleno de participante direto, em primeira pessoa, não na representação, mas na infração de todas as regras. O que, naquela fase pré-histórica, significa reunificação mistérica do homem com o animal e a natureza (sendo ambos manifestações do deus) pode se tornar hoje projeto de libertação do mal-estar civilizatório: numa fase em que as infrações só são admitidas enquanto representadas, superado (no sentido de demodé e não de aufgehoben) o dilema entre progresso e regresso, todos os demais desvios da norma são punidos pela certeza do direito. (CANEVACCI , 1990, pp. 145-6)

A preocupação com o espectador não será tema do trabalho em questão, uma vez que não utilizaremos um estudo de recepção para avaliar o impacto dos filmes iniciais de Almodóvar em determinado segmento de público. No entanto, referirmo-nos ao aspecto da função da tragédia na Grécia Antiga conforme estudada por Aristóteles, pode nos dar pistas sobre as potencialidades políticas das representações de marginais em Almodóvar. Benedikt, ao analisar “Fale com Ela”, em artigo publicado na revista Alceu, cita:

13 Muitos filmes de Almodóvar usam sets de filmagem de filmes fictícios ou bastidores de produções teatrais como cenário (ex. “Ata-me”, “Tudo sobre minha mãe”). Pastiches e paródias também são recursos constantes como no caso de “Tudo sobre minha mãe”, com a encenação de “Um bonde chamado desejo” e em “Fale com ela”, quando Benigno, ao acariciar Alicia em coma descreve um filme que teria assistido na Cinemateca, enquanto Almodóvar nos faz ver o que Benigno descreve. 14 Almodóvar integrou a movida madrilenha, movimento cultural de resistência à ditadura espanhola nos anos 70.

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Originalmente, a idéia de espectador estético pode ser encontrada na Grécia Antiga, remontando a Aristóteles (384-322 a.C.) e sua concepção de que o espetáculo trágico mobilizava nos espectadores, duas emoções básicas, o medo e a piedade. Ao assistir as imitações da ação humana dramatizadas no palco, o espectador não apenas se deixa afetar em sua sensibilidade, mas, estabelece laços de identificação com os atores que encenam suas paixões livremente. Para Aristóteles, o espectador, ao se deixar afetar e comover com o drama encenado, libera suas emoções, colocando-as para fora e encontrando a purificação e alívio (catharsis). (BENEDIKT, 2005, p. 49)

Diana Rose faz uma colocação importante sobre seu estudo: ela utilizou o método de contrastes, ou seja, investigou se um dado grupo social e uma dada situação são representados diferentemente da maneira como são representadas pessoas “comuns” que apareciam na televisão na mesma hora. À primeira vista, buscar personagens comuns na obra de Almodóvar pode ser um desafio e tanto se quisermos utilizar o mesmo método da pesquisadora. Após demonstrar exemplos de estrutura referencial de codificação de cenas, a autora comenta:

Moscovici criou o conceito de ancoragem. Um objeto social novo, e não familiar, se tornará mais familiar à medida que assimilado a um outro que já o seja. Meu parecer é que a loucura ou não é assimilada de modo algum, e permanece excluída, ou é assimilada a outros objetos que nunca se tornam realmente familiares, tais como pessoas com deficiências na aprendizagem, pessoas com deficiências físicas, pessoas ou coisas que se relacionam com algo monstruoso. (ROSE in BAUER (org.), 2002, p. 354)

Em certo ponto, Rose nos fez considerar a possibilidade de Almodóvar fazer parte de um grupo de cineastas contemporâneos que criou uma estética/cosmética da marginalidade (em referência à expressão utilizada pelos críticos do trabalho do fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado), mas esta é uma questão a ser desenvolvida mais adiante. Reproduzimos abaixo o quadro15 com o passo-a-passo da análise de textos audiovisuais:

1. Escolher um referencial teórico e aplicá-lo ao objeto empírico; 2. Selecionar um referencial de amostragem — com base no tempo e no conteúdo; 3. Selecionar um meio de identificar o objeto empírico no referencial de amostragem; 4. Construir regras para a transcrição do conjunto das informações — visuais e verbais; 5. Desenvolver um referencial de codificação baseado na análise teórica e na leitura preliminar do conjunto de dados: que inclua regras para a análise, tanto do material visual, como do verbal; que contenha a possibilidade de desconfirmar a teoria; que inclua a análise da estrutura narrativa e do contexto, bem como das categorias semânticas; 6. Aplicar o referencial de codificação aos dados, transcritos em uma forma condizente com a translação numérica; 7. Construir tabelas de freqüências para as unidades de análise, visuais e verbais; 8. Aplicar estatísticas simples quando apropriadas; 9. Selecionar citações ilustrativas que complementem a análise numérica.

15 ROSE in BAUER (org.), 2002, p. 362.

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Outra linha de análise fílmica a ser avaliada é a descrita por Edward Branigan em “O plano-ponto de vista”16. O PPV é um plano em que a câmera assume uma subjetividade de modo a nos mostrar o que se vê por meio dela. Trata-se de uma subdivisão do contracampo de olhar, técnica de continuidade para ligar espaços a serem articulados no filme. Ele é composto por seis elementos divididos em dois planos:

PLANO A ENTRE OS PLANO B PLANOS A E B Ponto/Olhar PLANOS A E B Ponto/Objeto Elemento 1: ponto Elemento 3: Elemento 4: a Elemento 6: - estabelecimento Transição - partir do ponto - a personagem - o de um ponto no continuidade câmera se espaço/tempo dos espaço temporal ou posiciona no elementos de 1 a simultaneidade ponto, ou muito 5 são justificados, perto dele, no ou indicados, pela espaço definido presença e pelo elemento 1 percepção normal Elemento 2: olhar - Elemento 5: de um sujeito. estabelecimento objeto - o objeto de um objeto do elemento 2 é (geralmente fora- revelado de-campo) pelo olhar a partir do ponto (BRANIGAN in RAMOS, 2005, p. 252)

Branigan explica que “um personagem, por exemplo, pode afetar uma estrutura PPV movendo-se em direção à câmera e assumindo sua posição no espaço. Naturalmente, qualquer que seja o instrumento de transição utilizado, ele deve implicar continuidade temporal ou simultaneidade.” (BRANIGAN in RAMOS, 2005, p. 262)

16 RAMOS, Fernão Pessoa (org.). Teoria contemporânea do cinema vol. II. São Paulo: Editora SENAC, 2005, pp. 251-275.

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Neste ponto, é importante nos referirmos à noção de raccord conforme definida por Aumont. Em “A estética do filme”, o autor revela que a pretensa homogeneidade entre um corte e outro é resultado do trabalho desenvolvido pelo cinema clássico e conhecido como raccord. É a técnica de montagem por meio da qual a mudança de plano é “apagada”. Há diversos tipos de raccord: o raccord sobre um olhar, quando um plano mostra o personagem olhando algo e o plano seguinte mostra o objeto desse olhar, por exemplo; o raccord de movimento, quando a ação, em determinada velocidade e em certa direção, é repetida no plano seguinte; o raccord em gesto, quando um personagem aponta para um lugar e o plano seguinte o mostra, etc. (AUMONT, 1995, p. 77) O uso do raccord indica um recurso que se aproxima muito da idéia de “cinema de transparência”, defendida por Bazin. Em 1981, ao escrever sobre o ponto de vista no cinema, Jacques Aumont lista quatro significados possíveis para a expressão:

1. lugar a partir do qual se olha no filme, é o lugar da câmera; 2. é a vista, considerada a partir de um ponto de vista ou enquadramento que relaciona a superfície e a ilusão de profundidade; 3. é o ponto de vista narrativo; 4. é a atitude mental que comunica o juízo do narrador sobre o que é representado no filme. (AUMONT in GEADA, 1983, p.127)

Um filme é parte da sociedade onde ele é produzido. É uma espécie de testemunho de um momento daquela sociedade. Nele, encontramos pistas de seus valores, dogmas, normas, moral, costumes, hábitos, necessidades. A metodologia de análise filmica apresentada por Nick Browne em “O espectador-no-texto: a retórica de No tempo das diligências” baseia-se numa interpretação semiótica dos textos fílmicos. Inspirados, em parte, por Browne, Bakhtin e Metz, seguiremos, com maior fidelidade, em nosso trabalho a metodologia sintetizada a partir do livro “Ensaio sobre a análise fílmica” de Francis Vanoye e Anne Goliot-Lété. Para eles, “analisar um filme ou um fragmento é” [...] “decompô-lo em seus elementos constitutivos. É despedaçar, descosturar, desunir, extrair, separar, destacar e denominar materiais que não se percebem isoladamente “a olho nu”” [...] (VANOYE, 1994, p. 15)

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Os autores constroem um quadro comparativo que esclarece a função do analista em oposição à postura do espectador normal de cinema em relação ao filme: ESPECTADOR NORMAL ANALISTA Passivo, ou melhor, menos ativo do Ativo, conscientemente ativo, ativo de que o analista, ou mais exatamente maneira racional, estruturada. ainda, ativo de maneira instintiva, irracional. Percebe, vê e ouve o filme, sem Olha, ouve, observa, examina desígnio particular. tecnicamente o filme, espreita, procura indícios. Está submetido ao filme, deixa-se Submete o filme a seus instrumentos guiar por ele. de análise, a suas hipóteses. Processo de identificação. Processo de distanciamento. Para ele, o filme pertence ao universo Para ele, o filme pertence ao campo do lazer. da reflexão, da produção intelectual. (VANOYE, 1994, p. 18) Eles também sistematizam quadros17 para explicitar os componentes fundamentais do filme. QUADRO 1 OS COMPONENTES DO PLANO Definição Porção do filme impressionada pela câmera entre o início e o final de uma tomada; num filme acabado, o plano é limitado pelas colagens que o ligam ao plano anterior e ao seguinte.

Componentes do plano a) A duração (do “instantâneo fotográfico” ao plano que esgota a capacidade total de carga do filme na câmera). b) Ângulo de filmagem (tomada frontal/tomada lateral, plongée/contreplongée etc.). c) Fixo ou em movimento (câmera fixa/câmera em movimento: travelling,

17 VANOYE, 1994, pp. 37-9.

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panorâmica, movimento com a grua, câmera na mão etc; objetiva fixa/zoom: movimento ótico). O plano seqüência, fixo ou em movimento, realiza a conjunção de um único plano e de uma unidade narrativa (de lugar ou de ação).

d) Escala (lugar da câmera com relação ao objeto filmado): plano geral ou de grande conjunto; plano de conjunto; plano de meio conjunto; plano médio (homem em pé); plano americano (acima do joelho); plano próximo (cintura, busto); primeiríssimo plano (rosto); plano de detalhe (insert, pormenor). e) Enquadramento: inclui o lugar da câmera, a objetiva escolhida, o ângulo de tomadas, a organização do espaço e dos objetos filmados no campo. f) Profundidade de campo: de acordo com a objetiva escolhida, a iluminação, a disposição dos objetos no campo, o lugar da câmera, a parte de campo nítida visível, será mais ou menos importante. g) Situação do plano na montagem, no conjunto do filme: Onde? Em que momento? Entre o quê e o quê? Etc. h) Definição da imagem: cor/preto e branco, “grão” da fotografia, iluminação, composição plástica etc. Sobre o plano, “Voici”, de Pascal Bonitzer, in Cahiers du cinéma, n. 73-275, 1977.

QUADRO 2 SEQÜÊNCIAS E PERFIS SEQÜENCIAIS 1. Seqüência Definição: conjunto de planos que constituem uma unidade narrativa definida de acordo com a unidade de lugar ou de ação. O plano-seqüência corresponde à realização de uma seqüência num único plano. Alguns grandes tipos de seqüências: — Parâmetros fílmicos (segundo Christian Metz) • a cena ou seqüência em tempo real: a duração da projeção iguala a duração ficcional;

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• a seqüência “comum”: comporta elipses temporais mais ou menos importantes; sucessão cronológica; • a seqüência alternada: mostra alternadamente duas (ou mais do que duas) ações simultâneas; • a seqüência “em paralelo”: mostra alternadamente duas (ou mais do que duas) ordens de coisas (ações, objetos, paisagens, atividades etc.), sem elo cronológico marcado, para estabelecer, por exemplo, uma comparação; • a seqüência “por episódios”: uma evolução que cobre um período de tempo importante é mostrada em alguns planos característicos separados por elipses; • a seqüência “em colchetes”: montagem de muitos planos que mostram uma mesma ordem de acontecimento (a guerra, por exemplo). — Parâmetros de roteiro: permitem distinguir as seqüências: • em externa/em interna; • de dia/de noite; • visuais/dialogadas; • de ação, de movimento, de tensão/inação, imobilidade, distensão; • íntimas/coletivas, públicas; • com um personagem / com dois personagens/ de grupo; etc. 2. Perfis seqüenciais Dependem das seguintes variáveis: • número e duração das seqüências = permitem opor filmes (ou partes de filme) muito “decupadas” a outras pouco decupadas (comparar Hitchcock e Angelopoulos, por exemplo); • encadeamento das seqüências: rápida/lenta; corte seco / corte demarcado (escurecimentos, encadeamento musical ou sonoro etc.); cronologicamente marcada; acronológica; logicamente motivada / não claramente motivada; contínua / descontínua; • ritmo inter e intra-seqüencial: rápido / lento; seco / suave; contínuo / descontínuo etc.

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Sobre a questão do ponto de vista, Vanoye e Lété listam:

• “Ponto de vista no sentido estritamente visual: De onde se vê aquilo que se vê? De onde é tomada a imagem? Onde está situada a câmera? • Ponto de vista no sentido narrativo: Quem conta a história? Do ponto de vista de quem a história é contada? Esse ponto de vista é detectável ou não? [...] • Ponto de vista no sentido ideológico: Qual é o ponto de vista (a opinião, o “olhar”) do filme (do autor) sobre os personagens, a história contada? Como se manifesta?” (VANOYE, 1994, p. 51)

Michel Marie desenvolveu a seguinte metodologia de análise fílmica muito utilizada por outros pesquisadores:

1. “Numeração do plano, duração em segundos ou número de fotogramas. 2. Elementos visuais representados. 3. Escala dos planos, incidência angular, profundidade de campo, objetiva utilizada. 4. Movimentos i. no campo, dos atores ou outros; ii. da câmera. 5. Raccords ou passagens de um plano a outro: olhares, movimentos, cortes, fusões ou escurecimentos, outros efeitos. 6. Trilha sonora: diálogos, ruídos, música; escala sonora; intensidade; transições sonoras, encavalamentos, continuidade/ruptura sonora. 7. Relações sons/imagens: sons in/off/fora de campo; sons diegéticos ou extradiegéticos, sincronismo ou assincronismo entre imagens e sons.” (VANOYE, 1994, pp. 69-70)

Todos estes aspectos serão levados em conta em nossa análise, mas nenhum deles será usado de forma absoluta. Optamos por trabalhar com uma análise fílmica menos atada às especificidades técnicas do cinema, certamente influenciada por elas e informada por intertextualidades. Consideramos, entretanto, excessivos os procedimentos de pormenorização das imagens a serem analisadas,

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pelo menos no que diz respeito à utilidade desses detalhamentos para a comprovação da hipótese levantada na dissertação. A de que Almodóvar representa personagens marginais usando técnicas do cinema narrativo clássico. A subversão, portanto, potencial de seus filmes iniciais está contida no conteúdo das narrativas e não nas estratégias técnicas que ele utiliza para representar estes personagens.

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3. DISCUSSÕES SOBRE MARGINALIDADE

Nos subcapítulos a seguir, vamos apresentar as visões de Goffman, Becker, Elias e Yoshino sobre a questão da marginalidade. Faremos uma análise comparativa entre as teorias apresentadas por cada um dos autores e definiremos o perfil de marginal que será analisado nos filmes de Pedro Almodóvar no capitulo 4.

3.1 Goffman e o estigma

Em “Stigma – notes on the management of spoiled identity”, Erving Goffman estuda a situação do indivíduo desprovido de total aceitação social. É precisamente essa aceitação que os personagens de Almodóvar, freqüentemente, desprezam. A palavra estigma surgiu na Grécia da Antigüidade e nomeava sinais corporais que expunham algo ruim sobre o status de quem os tinha. Todas as sociedades estabelecem meios de hierarquizar as pessoas. O termo estigma é usado por Goffman para se referir a um atributo que é profundamente desabonador, mas que, no entanto, deve ser analisado, do ponto de vista sociológico, como uma série de relações. Alguém que seria facilmente acolhido em determinado grupo social pode apresentar um aspecto físico, um comportamento ou pode ser adepto de determinadas crenças ou práticas cujo destaque no grupo faz com que aqueles que se aproximariam dele, se afastem, bloqueando o impacto que seus outros atributos menos óbvios ou visíveis poderiam ter diante da coletividade (GOFFMAN, 1963, pp. 2-5). A principal dificuldade de pessoas estigmatizadas é a aceitação, nomeada pela Sociologia contemporânea como inclusão. Quando a falha de alguém é perceptível durante o contato social, ela sentirá que sua presença é indesejável. Os personagens de Almodóvar parecem não se sentir vitimizados pelos estigmas que carregam. Eles os potencializam como armas contraculturais. A pessoa estigmatizada, diz Goffman, vacila entre covardia e coragem, o que torna a comunicação interpessoal desgastante. (GOFFMAN, 1963, pp.16-18) Quando estigmatizados interagem com pessoas tidas como “normais”, estes poderão lidar com o estigma de uma melhor maneira se o estigmatizado se parecer com um dos tipos de pessoas presentes no encontro. O autor observa que a tendência é que os normais ajam como se o estigmatizado não estivesse presente

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no ambiente caso ele não se adapte ao perfil dos demais. A pessoa portadora do estigma é ignorada, ela se torna transparente. O autor observa que existe uma diferença entre a identidade virtual e a identidade real de cada sujeito. Essa discrepância, quando conhecida, pode destruir a identidade social do indivíduo. Os marginais de Almodóvar não se importam com a destruição de suas identidades sociais, contanto que eles obtenham o que desejam ardentemente, seja recuperar um amor do passado, seja esconder uma vida dupla. (GOFFMAN, 1963, p. 19) Ao falar sobre a carreira moral de estigmatizados, Goffman distingue quatro situações possíveis: a) a do estigma natural que se socializa enquanto se aprende e incorpora os padrões contra os quais ele não se adequa; b) aquela em que a família ou vizinhança se constituem como bolhas protetoras; c) uma terceira seria a de quem se torna estigmatizado em idade mais madura, ou descobre tardiamente que sempre foi menosprezado; d) e, em último caso, há a situação daqueles que são inicialmente socializados numa comunidade externa, mas que depois deverão aprender uma nova forma de se comportar. Neste ponto, Goffman já caracteriza quatro origens distintas para o estigma. Estas categorias serão úteis na análise que faremos dos filmes iniciais de Almodóvar. Em muitos casos onde a estigmatização do indivíduo está relacionada com sua admissão à cadeia, ao sanatório, ou ao orfanato, muito do que ele aprende sobre seu estigma será transmitido durante o contato com aqueles que se tornarão seus colegas. Surgirão ciclos de filiação por meio dos quais ele aproveitará oportunidades para participar no grupo ou irá rejeitá-las após tê-las aceito. A maneira como o estigmatizado lida com as informalidades e as formalidades do grupo se torna central no seu processo de socialização. O estigma é então algo que se define nas relações sociais, no curso delas. Um indivíduo isolado não pode ser estigmatizado nunca, porque ele não vive em sociedade. O eremita nunca vai ser objeto de estigma. Apenas aquele que participa da vida social pode sofrer estigmatização, porque ela se desenvolve por contraste diante da aplicação bem sucedida da norma pelos outros membros do grupo. (GOFFMAN, 1963, p. 38) Goffman explica que quando existe uma discrepância entre a imagem social real de um indivíduo e sua imagem virtual, é possível que os “normais” tenham

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conhecimento disso antes de ter contato com ele, ou que seja evidente quando o contato acontecer. Administrar as informações desabonadoras reveladas sobre o self é o foco do estudo do autor. (GOFFMAN, 1963, p. 41-2). Os marginais de Almodóvar recorrem a esse expediente. No filme de 1980, Pepi não revela a Luci sobre o fato de que seu marido a teria estuprado no momento em que a encontra na rua e a pede para lhe dar aulas de tricô. A vítima de estupro, quando torna pública essa informação, costuma ser estigmatizada ou como vítima, ou, segundo os ideais mais machistas, como um tipo de mulher que possa ter provocado a situação. O filme “Acusados”, com Jodie Foster, retrata muito bem esta realidade. No caso do filme de Almodóvar, em cuja obra o tema da violação do corpo feminino é recorrente, Pepi oferece sua genitália ao policial em troca do silêncio sobre o cultivo caseiro de mudas de maconha. Ela, entretanto, esperava que ele fosse apenas fazer sexo oral e não tirar sua virgindade. Em “Labirinto de Paixões”, Riza precisa ocultar sua identidade como príncipe para viver as aventuras sexuais e culturais na Madri do início dos anos 80. Em “Maus hábitos”, a Madre Superiora é viciada em heroína. Obviamente, a mantenedora do convento não sabe nada sobre isso, tampouco sabe a Madre responsável pela paróquia. Sua presença na festa no fim do filme nos revela, no entanto, suspeitas sobre a idoneidade da Madre Superiora do Convento das Redentoras Humilhadas. Em “O que eu fiz para merecer isto?”, Gloria não revela à família a razão pela qual prostituiu um dos filhos para um dentista pedófilo: o desejo de comprar uma escova alisadora de cabelo. A informação, assim como o signo por meio do qual ela é veiculada, é reflexiva, isto é, é transmitida pela própria pessoa com expressões corporais na presença daqueles que a observam. Aos signos que comunicam informações sociais constantemente Goffman denomina “símbolos”. A informação social comunicada por um símbolo pode estabelecer prestígio ou honra: são os símbolos de status. Símbolos de prestígio opõem-se aos símbolos de estigma, como por exemplo: as cicatrizes nos pulsos de um suicida; as marcas nas veias de viciados em drogas; os pulsos algemados de presos; olhos de mulheres com hematomas. Em certas circunstâncias, a identidade social daqueles com quem um indivíduo está pode ser usada como fonte de informação de que ele é o que os outros que o acompanham são. A sabedoria popular diria: “Diga-me com quem andas que te direi quem és”. Goffman discute a questão da visibilidade do estigma, ou seja, como ele é adaptado para comunicar que o indivíduo o possui. A visibilidade é um fator crucial. Há alguns

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estigmas que são tão facilmente escondidos que não aparecem nas relações do indivíduo com estranhos e conhecidos, tendo seu efeito apenas com os íntimos — frigidez, impotência e esterilidade, por exemplo. (GOFFMAN, 1963, pp. 45-54) A identidade pessoal relaciona-se à suposição de que um indivíduo pode ser diferenciado de todos os outros por meio de uma única ficha contínua de fatos sociais. Goffman afirma que a identidade pessoal desempenha um papel estruturado, rotineiro e padronizado na organização social exatamente por causa de sua qualidade única. O autor demonstra que enquanto a linha biográfica de um indivíduo permanecer nas mentes de seus íntimos ou nos arquivos de pessoal de uma organização, ele é uma entidade que pode ser reconstruída. Ele é ancorado como objeto para biografia (GOFFMAN, 1963, pp. 57-62). A pessoa cujo estigma é reconhecido pode ou não saber deste reconhecimento; por outro lado, os “normais” podem saber (ou não) que o estigmatizado sabe (ou não) da difusão de informações desabonadoras que o estigmatizam. Enquanto acreditar que não se sabe nada que o inferiorize, ele nunca poderá ter certeza. Goffman explica ainda que se o indivíduo estigmatizado sabe que os “normais” têm conhecimento de sua inferioridade, ele deve, de certa maneira, perceber isto nas relações que estabelecer. A visibilidade do estigma é fundamental para a concretização do processo de marginalização. Goffman coloca que enquanto as ruas das grandes cidades oferecem situações anônimas para aqueles que se comportam bem, essa “anonimidade” é biográfica; não existe completa anonimidade em relação à identidade social. A imagem pública de um indivíduo que está disponível para aqueles que não o conhecem pessoalmente, será necessariamente diferente da imagem que ele projeta por meio de relações diretas com aqueles que o conhecem pessoalmente. Goffman acredita que os contatos diários da vida cotidiana devem constituir algum tipo de estrutura ligando o indivíduo a uma biografia. Entre o segredo completo e a informação completa, parece que os problemas enfrentados pelas pessoas no esforço para não serem estigmatizadas são também vividos por grande parte das pessoas consideradas “normais”. Falhar em aderir ao código é tornar-se alguém auto-iludido, “fora da linha”; ser bem sucedido é ser tanto real quanto valoroso, as qualidades espirituais que se combinam para produzir autenticidade. A natureza de um indivíduo é gerada pela natureza de nossas afiliações a grupos. (GOFFMAN, 1963, p. 66-74)

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Para Goffman, o indivíduo estigmatizado deve atuar de maneira a não dar a entender que sua carga lhe pesa nem que carregá-la o faz diferente dos outros. Ele é aconselhado a ser recíproco naturalmente com a aceitação de si mesmo e de nós, uma aceitação que os “normais” não lhe deram antes de qualquer coisa (GOFFMAN, 1963, p. 122). Aqui, surge uma questão política importantíssima: o estigmatizado aprende sua inferioridade porque incorpora em sua identidade pessoal valores relacionados ao grupo que cria as normas de inserção social. De fato, não há um grupo, mas diversos grupos, diversas tribos, como define Maffesoli, e a filiação do indivíduo a essas tribos é que determinará seu nível de inserção social, seu status ou seu estigma. Todos usamos o ponto de vista de um determinado grupo. A situação especial dos estigmatizados é que a sociedade lhe incorpora como membro de um grupo maior, o que significa que ele é um ser humano normal, mas que ele também é diferente graças a certo aspecto, e seria inútil negar sua diferença. A alteridade é criada em sociedade, porque antes que uma diferença possa ser destacada como tal ela deverá ser conceituada coletivamente (GOFFMAN, 1963, p. 123). Nas sociedades contemporâneas, embora o tabu quanto a determinados assuntos e comportamentos tenha diminuído, o estigma de drogadictos, alcoólatras, doentes mentais, homossexuais, travestis, transgêneros, criminosos e vagabundos, por exemplo, permanece muito destacado. Almodóvar se aproveita dos estigmas associados a estes grupos para denunciar ironicamente a hipocrisia da sociedade espanhola e a decadência das instituições, ao mesmo tempo em que, segundo autores como D’Lugo e Cañizal, ambiciona propor uma nova família, reconstruída a partir dos destroços da atomização social contemporânea. Goffman defende a importância de observarmos com mais atenção os indívíduos considerados “normais”. Preocuparmo-nos com as normas sociais é fundamental, mas os desvios banais do cotidiano são bem mais reveladores. Normal e estigmatizado são parte de um mesmo complexo, mas não são simplesmente complementares. Existem paralelos e similaridades entre suas funções sociais. Eles são parte um do outro; a vulnerabilidade de um pode se tornar a fraqueza do outro, dependendo da circunstância. (GOFFMAN, 1963, p. 127-135) Não podemos simplesmente separar estigmatizados e normais como duas pilhas de papel. O normal e o estigmatizado não são indivíduos, mas sim perspectivas, ou pontos de vista. Aqui, é interessante voltarmos a pensar nas definições de ponto de vista trabalhadas no capítulo 2. Branigan, Aumont, Vanoye e

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Lété referem-se à questão do ponto de vista no cinema como um elemento fundamental para a análise fílmica. Podemos, a partir daqui, suturar a noção de ponto de vista dos teóricos do cinema à noção de ponto de vista de Goffman e dos sociólogos que apresentaremos a seguir. Aquele que é estigmatizado segundo um ponto de vista demonstra todos os preconceitos normais usados contra aqueles que são estigmatizados sob outro ponto de vista. Para o sociólogo, a estigmatização daqueles com uma história moral ruim claramente pode funcionar como meio de controle social; a estigmatização daqueles em certos grupos raciais, religiosos ou étnicos aparentemente funcionou como meio de remover estas minorias de espaços competitivos (GOFFMAN, 1963, p. 139). Goffman argumenta que podemos nos referir a qualquer membro individual que não adere às normas como um desviante, e a sua peculiaridade como um desvio. Ele não considera que os desviantes tenham o suficiente em comum para garantir uma análise coletiva em especial. Prostitutas, viciados em drogas, delinqüentes, criminosos, músicos, boêmios, ciganos, artistas, jogadores, homossexuais, pobres, entre outros (dependendo da sociedade que se está analisando) estão inclusos nesse grupo. Em geral, eles são considerados como sujeitos que praticam a negação coletiva da ordem social. É comum que desviantes sintam não serem meramente iguais, mas melhores do que os normais, e que suas vidas sejam melhores que as dos outros. (GOFFMAN, 1963, p. 145) Considerando então a colocação de Goffman de que o estigma é uma questão de ponto de vista, podemos afirmar que sendo o ponto de vista de Almodóvar contracultural, especialmente na produção dos anos 80, a representação da marginalidade, ou a visibilidade que ele confere a vários grupos estigmatizados, revela uma perspectiva imbuída de não-conformidade típica do ambiente de abertura política. Neste sentido, a marginalidade que ele representa é uma resposta estética a uma realidade plural cuja representação no cinema espanhol foi completamente ignorada por anos, já que a maior parte das produções realizadas no país, dependentes de subsídios estatais, retratava peculiaridades folclóricas ou derivavam de adaptações literárias.

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3.2 Becker e os outsiders

Em “Outsiders – studies in the sociology of deviance”, Howard Becker, sociólogo norte-americano, estuda como se opera o processo de marginalização na sociedade. Inicialmente, ele afirma que todos os grupos sociais constroem regras e tendem a aplicá-las em determinadas circustâncias. Diz Becker:

As regras sociais definem as situações e os tipos de comportamento apropriados a estas, especificando certas ações como “corretas” e proibindo outras como “incorretas”. Quando uma regra é aplicada, a pessoa que supostamente a quebrou deverá ser vista como um tipo especial de pessoa, uma em quem não se pode confiar que viva sob as regras do grupo. Ela é vista como uma outsider. (BECKER, 1963, p. 1 – tradução nossa).

Becker explica-nos, no entanto, que a pessoa rotulada como outsider pode ter uma visão diferente do assunto. Ela pode não aceitar a regra sob a qual está sendo julgada e pode não ver aqueles que a julgam como competentes para fazê-lo. Surge, portanto, um segundo sentido do termo que seria: aquele que quebra as regras pode ver seus julgadores como outsiders. Aqui se pode observar a preocupação de Becker em visualizar no sistema de promoção social uma via de mão dupla. O outsider/marginal também tem uma ideologia que justifica o seu estilo de vida. Goffman trabalha com esta noção ao afirmar que os estigmatizados muitas vezes se percebem como pessoas mais livres e felizes que os “normais”. Almodóvar retrata muito bem em seus filmes essas ideologias, como veremos mais adiante no capítulo de análise de suas quatro obras iniciais. Em “Outsiders”, Becker quer clarificar o processo ocorrido entre as situações de quebra e afirmação das regras. Idealmente, se uma regra tem força de lei ou tradição ou é resultado de consenso, deverá ser função de um corpo especializado, como a polícia ou o comitê de ética de uma categoria profissional, aplicá-la. A aplicação das regras, por outro lado, deveria ser uma função coletiva, ou pelo menos, de todos aqueles pertencentes ao grupo que formulou as normas. Em seu trabalho de pesquisa, o sociólogo preocupa-se principalmente com as regras operacionais dos grupos, aquelas que são mantidas nas tentativas de aplicação. (BECKER, 1963, p. 2) Becker refere-se então ao senso comum, que faz com que pensemos em pessoas que cometem infrações de trânsito ou ficam bêbadas em uma festa como sendo não muito diferentes de nós, resultando num tratamento tolerante quanto a suas infrações. Goffman também trata deste aspecto em “Stigma”, ao destacar a

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importância de analisarmos os pequenos desvios do cotidiano como fontes de conhecimento sobre o funcionamento de determinada sociedade. Em geral, somos educados para observar um ladrão como diferente dos outros membros da sociedade e o punirmos severamente. Assassinato e estupro, por exemplo, transformam um indivíduo em verdadeiro outsider. Almodóvar começa sua carreira profissional no cinema representando dois desvios de imediato: o estupro e o vício em maconha na primeira cena de “Pepi, Luci, Bom e outras garotas de montão”. Assim como Goffman, Becker cita as ideologias de outsiders, que justificam seus comportamentos e recriminam aqueles que os excluem. (BECKER, 1963, p. 3) Em poucas palavras, o outsider é aquele que se desvia das regras do grupo. É facilmente observável que diferentes grupos julgam coisas diferentes como desviantes. Construir uma definição de desvio torna-se, portanto, o principal problema. A visão mais simples de desvio é a estatística, que define o desviante como alguém que varia muito amplamente da média. Segundo esta visão, canhotos e ruivos são desviantes, porque a maioria das pessoas é destra e morena. A visão estatística parece simplista e está muito distante da preocupação com a quebra das regras. (BECKER, 1963, p. 4) Outra visão comum de desvio é aquela que o categoriza como algo patológico, revelando a presença de uma doença. Há pessoas que associam o desvio às doenças mentais. Então, o comportamento de um homossexual ou de um drogadicto assim como a dificuldade de cicatrização em diabéticos podem ser vistos como sintomas. Para Becker, a doença mental se assemelha às doenças físicas apenas em termos metafóricos. Neste ponto, ele cita Szasz em seu estudo sobre doenças mentais que afirma, por exemplo, que a homossexualidade é doença porque a heterossexualidade é a norma social. (BECKER , 1963, pp. 5-6) DEFINIÇÕES PARA OUTSIDERS – Becker 1. indivíduo que não cumpre as regras de um determinado grupo 2. visão que o estigmatizado tem sobre o indivíduo que aplica as regras

VISÕES SOBRE OUTSIDERS CRÍTICAS DE BECKER 1. visão estatística SIMPLISTA 2. visão médica LIMITADORA 3. visão sociológica INSUFICIENTE

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Para Becker, alguns sociólogos partem da visão médica. A questão de que regras deverão ser aplicadas, que comportamento visto como desviante, e que pessoas rotuladas como desviantes deve também ser vista como política. Outra visão sociológica descrita pelo autor é mais relativista. Ela identifica o desvio como a falha em obedecer regras de um determinado grupo social. Becker conclui ser melhor usar uma definição que permita que lidemos com situações ambíguas e não ambíguas. (BECKER, 1963, p. 7-8) A visão sociológica define, portanto, o desvio como a infração de uma regra. Desta maneira, Becker argumenta, aqueles que quebraram a regra são vistos como uma categoria homogênea, porque cometeram o mesmo ato desviante. Para o autor, essa visão ignora o principal fato sobre o desvio: ele é criado pela sociedade (BECKER, 1963, p. 8). Isto é, os grupos sociais criam o desvio ao elaborar regras cuja infração constitui desvio, e ao aplicar aquelas regras às pessoas e rotulá-las como outsiders. Becker destaca que o desvio não é a qualidade do ato que a pessoa comete, mas a conseqüência da aplicação das regras e sanções ao desviante. O outsider, então, é aquele sobre quem o rótulo foi aplicado com sucesso18. A visão de Becker, neste ponto, se coaduna à visão de Goffman quando este último destaca ser o estigma uma questão de perspectiva. Para aplicar o rótulo com sucesso, para estigmatizar, é preciso não apenas conceituar as normas cuja infração constitui desvio, como também aplicá-las. Isto significa: tornar visível o estigma, publicizá-lo, difundí-lo, comunicá-lo socialmente. O outsider, para constituir-se como tal, deverá ter seu símbolo de inferioridade à mostra. O processo de comunicação, neste caso, é fundamental. Como afirma Goffman, se o grupo não tem conhecimento do estigma não poderá aplicar a regra de exclusão sobre o outsider e ele poderá facilmente participar das atividades do grupo, mesmo sabendo, em seu íntimo, que poderá ser descoberto a qualquer momento. Aqueles que estigmatizam o fazem partindo de um ponto de vista. Um determinado comportamento só é desviante quando as pessoas assim o rotulam. Becker questiona que a única coisa compartilhada por pessoas rotuladas como desviantes, muitas vezes, é a experiência da estigmatização (BECKER, 1963, p. 9-10). Entretanto, como explica Goffman, não se pode afirmar que haja uma homogeneidade além deste aspecto entre os marginais. Apesar de também constituírem-se em grupos, os desviantes

18 Grifo nosso.

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não podem ser homogeneizados pelo simples fato de terem infringido a mesma regra. Até porque, não é raro observar como desviantes pertencentes a um mesmo grupo circulam por outros grupos sociais considerados “normais” utilizando estratégias distintas e alcançando resultados completamente diversos. A rotulação de um ato como desviante depende de como as pessoas reagem a ele. O grau com que um ato será tratado como desviante depende também de quem comete o ato e de quem se sentiu prejudicado por ele. As regras tendem a ser mais aplicadas a certos grupos de pessoas do que a outras. Pessoas de bairros de classe média não chegam a ser punidas com o mesmo rigor que pessoas de áreas mais pobres, por exemplo. No Brasil, as situações que comprovam a visão de Becker neste ponto são muito contundentes. Não é difícil encontrar na mídia reportagens sobre a prisão de ladrões de galinhas, enquanto executivos praticantes de delitos não são punidos. Becker comprova que o desvio não é uma simples qualidade atribuída a determinados tipos de comportamento e ausente em outros. O autor nos mostra que o desvio é o produto de um processo relacionado às respostas de um grupo de pessoas a certo comportamento ou aspecto de um indivíduo. Para utilizarmos o termo desvio devemos nos referir a situações em que um grupo rotula um comportamento como desviante. Quando nos referirmos a comportamentos que quebram regras sem levar em conta as reações do grupo, Becker então alerta que o termo desvio não deve ser utilizado. Isto porque não se sabe se um determinado ato será considerado desviante até que a resposta coletiva tenha ocorrido. O desvio não é uma qualidade do comportamento, mas decorre da interação entre pessoas que cometem um ato e aquelas que reagem a ele (BECKER, 1963, p. 14 – grifo nosso). O termo outsiders é usado por Becker para referir-se àquelas pessoas que são julgadas por outras como desviantes e, portanto, deverão se posicionar fora do círculo de membros de um grupo. No entanto, há um segundo sentido: outsiders, do ponto de vista daquele que é rotulado como desviante, podem ser as pessoas que elaboram as regras quebradas por ele. A perspectiva das pessoas que se comportam de forma desviante tende a ser diferente da visão das pessoas que as condenam. Para Becker, apenas aqueles que detêm poder ecônomico e político conseguem forçar os outros a aceitarem suas regras. As diferenças na capacidade de elaborar regras e aplicá-las a outras pessoas são essencialmente diferenças de poder. Neste ponto, revela-se uma grande contribuição de Becker ao pensamento

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sobre a marginalidade. Ao retratar a marginalidade, Almodóvar confere poder aos estigmatizados, permitindo que eles enunciem suas ideologias e assim questionem os considerados “normais”. (BECKER, 1963, pp. 15-17) Neste ponto, o pensamento de Becker se alinha ao raciocínio desenvolvido por Elias. Ambos reconhecem a importância do poder e da política, portanto, no processo de marginalização. Para Becker, o desvio é criado pelas respostas de determinadas pessoas a alguns tipos de comportamentos. As regras utilizadas neste processo de rotulação não resultam de consenso; ao contrário, elas são objeto de conflito e desentendimento, parte do processo político da sociedade (BECKER, 1963, p. 18). Segundo o autor, o comportamento em conformidade é aquele que obedece a regra e que outros percebem como resultado do cumprimento da regra. No outro extremo, o comportamento desviante em seu estado puro é aquele que desobedece a regra e é percebido como o descumprimento da regra.

TIPOS DE COMPORTAMENTO DESVIANTE Comportamento Comportamento Obediente Desobediente Visto como desviante Falsamente acusado Puramente desviante Não visto como desviante Em conformidade Secretamente desviante (BECKER, 1963, p. 20 – tradução nossa)

Muitos homossexuais são capazes de manter seu desvio em segredo dos heterossexuais com os quais têm contato. Assim como usuários de drogas conseguem esconder seu vício daqueles que não são usuários e com os quais se relacionam. Cabe destacar que muitas pesquisas sobre desvio partem do ponto de vista de que ele é patológico. (BECKER, 1963, p. 21) Becker desenvolve um modelo seqüencial de vários tipos de comportamento desviante a partir da noção de carreira, como faz Goffman. Originalmente desenvolvida nos estudos de ocupações, o conceito se refere à seqüência de movimentos de uma posição para outra num sistema ocupacional feito por qualquer indivíduo que trabalhe neste sistema. (BECKER, 1963, p. 24) O autor explica que o primeiro passo em carreiras desviantes é cometer um ato de não-conformidade, um ato que quebre um determinado conjunto de regras. As teorias psicológicas localizam as motivações para atos desviantes nas

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experiências iniciais de um indivíduo que produzem necessidades inconscientes as quais devem ser satisfeitas se ele pretende manter seu equilíbrio. As teorias sociológicas buscam por forças socialmente estruturadas na sociedade, posições sociais que apresentam demandas conflitantes sobre as quais o indivíduo busca uma maneira ilegítima de resolver os problemas que sua posição apresenta (BECKER, 1963, pp. 25-26). Becker acredita ser provável que a maioria das pessoas experimenta impulsos desviantes com freqüência. Ele defende que, ao menos em termos de fantasia, as pessoas são mais desviantes do que aparentam. Ao invés de questionar porque os desviantes querem fazer coisas que são desaprovadas, é mais interessante perguntar porque pessoas convencionais não cedem aos impulsos desviantes que possuem. Becker explica que este processo está relacionado ao nível de comprometimento que um indivíduo “normal” assume progressivamente com instituições e comportamentos. Como Becker explica, o indivíduo descobre, como conseqüência de atos do passado ou da operação de várias rotinas institucionais, que ele deve aderir a certas linhas de comportamento, porque muitas outras atividades com as quais ele está envolvido serão afetadas negativamente se ele não o fizer. Portanto, a juventude de classe média não deve abandonar a escola porque seu futuro ocupacional depende de sua formação, por exemplo. (BECKER, 1963, p. 27) A ascensão social se dá a partir do estabelecimento de uma série de compromissos progressivos do indivíduo com normas e instituições convencionais. A pessoa “normal”, quando descobre um impulso desviante em si mesma, é capaz de avaliar esse impulso ao pensar nas conseqüências que sofreria por realizá-lo. O autor defende que a maioria das pessoas permanece sensível a códigos de conduta e deve lidar com esta sensibilidade para se envolver num ato desviante pela primeira vez. Becker afirma que o ponto mais importante é que o desvio de certas normas deve ocorrer não porque elas são rejeitadas, mas porque outras normas, consideradas de maior força ou que envolvam mais lealdade, têm prioridade. (BECKER, 1963, pp. 27-29) Em seu estudo, há maior interesse nas pessoas que sustentam um padrão de desvio por um longo período de tempo, que fazem do desvio um estilo de vida, que organizam suas identidades em torno de um padrão de comportamento desviante. Um dos mecanismos que leva de uma experimentação casual a um padrão mais

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sustentado de atividade desviante é o desenvolvimento de motivações e interesses desviantes. O vocabulário utilizado por desviantes revela que aqueles que o utilizam o adquiriram em interações com outros desviantes. O indivíduo aprende a participar de uma subcultura organizada em torno de uma atividade desviante específica (BECKER, 1963, pp. 30-31). Ser rotulado como desviante tem importantes conseqüências na participação social de um indivíduo e em sua auto-imagem. A conseqüência mais imediata é uma drástica mudança na sua identidade pública. Cometer um ato impróprio e ser flagrado o coloca em um novo status. Ele foi revelado como um tipo diferente de pessoa da qual deveria ser. Será rotulado como “bichinha”, “drogado”, “louco” ou “lunático” e tratado de acordo. Ser pego em um ato desviante expõe uma pessoa à tendência de ser vista como indesejável em outros aspectos (BECKER, 1963, pp. 32-33). Para Becker, por exemplo, ser um homossexual pode não afetar a capacidade de se trabalhar num escritório, mas ser reconhecido como homossexual em um escritório pode fazer com que seja impossível trabalhar lá. O homossexual que não consegue um trabalho respeitável pela decoberta de seu desvio deverá se ocupar em profissões não-convencionais em que esta realidade não faça diferença. O comportamento é a conseqüência da reação pública ao desvio mais do que a conseqüência de qualidades inerentes ao ato desviante. O ponto é que o tratamento dado a desviantes nega a eles os meios comuns de desempenhar as rotinas do cotidiano abertas para a maioria das pessoas. O passo final na carreira desviante é a movimentação num grupo desviante organizado. Membros de grupos desviantes organizados têm uma coisa em comum, afirma Becker: seu desvio. É o que lhes dá um mesmo destino. A racionalidade de grupos desviantes contém um repúdio às regras morais convencionais, às instituições convencionais, e a todo o mundo convencional. (BECKER, 1963, pp. 34-38)

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3.3 Elias: estabelecidos e outsiders

Os termos establishment e established são usados no inglês para nomear grupos ou indivíduos que ocupam posições de poder. Os chamados estabelecidos se autopercebem e são reconhecidos como modelo moral para os outros. Já os outsiders constituem um grupo heterogêneo de pessoas que se unem por laços sociais de menor intensidade. Como observa Neiburg, os outsiders existem no plural por não constituírem um determinado grupo social. O par estabelecidos-outsiders esclarece o funcionamento das relações de poder na sociedade. (ELIAS, 1994, p. 7) Elias iniciou a pesquisa para escrever “Estabelecidos e outsiders” motivado pelo elevado índice de delinqüência observado por moradores de um dos bairros da região ficticiamente chamada de Winston Parva. Com o passar dos anos, a área considerada mais nobre do local passou a ter os mesmos índices de delinqüência que o outro bairro estigmatizado. No entanto, a imagem que os bairros mais antigos tinham da região mais recente permanecia estigmatizada. O estudo do autor nos permite observar características de uma comunidade que podem ser consideradas fundamentais, como as relações de poder e status e as tensões que derivam delas. A pesquisa de Elias prova que a partir de uma perspectiva local ou comunitária pode-se estudar o desenvolvimento de um país (ELIAS, 1994, p. 15). O autor explica que, com freqüência, membros de grupos com maior poder representam a si mesmos como humanamente superiores. Em geral, grupos mais poderosos vêem-se como pessoas melhores, que compartilham de uma virtude específica. Em Winston Parva, o grupo estabelecido atribuía características humanas superiores a seus membros, excluindo do convívio não-profissional os membros do outro grupo. O controle desse processo se dava por meio de fofocas elogiosas e da ameaça de fofocas depreciativas. Elias acrescenta um elemento fundamental para o entendimento do processo de estigmatização: a fofoca. (ELIAS, 1994, p. 20) Nem Goffman, nem Becker utilizam o termo, embora se refiram ao processo de visiblidade pública da característica desabonadora. Na comunidade estudada por Elias, não havia diferenças de nacionalidade, ascendência étnica, raça, ocupação, renda e nível de educação. Ambos os bairros eram habitados por trabalhadores. Apenas um aspecto os distinguia: um grupo era composto por residentes antigos e o outro era formado por recém-chegados. O grau de organização dos envolvidos é que forneceu pistas sobre os diferenciais de poder.

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Teorias que atribuem superioridade de um grupo a outro em função de armas ou meios de produção podem ser consideradas, na visão de Elias, limitadoras. As famílias que se conheciam há duas ou três gerações apresentavam um alto grau de coesão (ELIAS, 1994, p. 22). Os estabelecidos atribuem ao conjunto do grupo outsider as piores características de sua pior parte. A possibilidade de um grupo lançar sobre o outro um rótulo de inferioridade humana e destacá-lo é resultado de uma sociodinâmica. A abordagem mais comum ao falar-se de estigmatização social é aquela que a configura como um desapreço acentuado por outras pessoas como indivíduos. Conceitua-se esse tipo de observação como preconceito. Elias chama atenção, no entanto, para a diferença entre a estigmatização grupal e o preconceito individual e afirma ser necessário relacioná-los. Neste ponto ele demonstra que para configurar a exclusão é necessário basear a análise da situação na interdependência dos grupos e não nas qualidades individuais das pessoas envolvidas.

A peça central dessa figuração é um equilíbrio instável de poder, com as tensões que lhe são inerentes. [...] Um grupo só pode estigmatizar o outro com eficácia quando está bem instalado em posições de poder das quais o grupo estigmatizado é excluído. (ELIAS, 1994, p. 23)

O estigma imposto pelo grupo mais poderoso tende a contaminar a auto- imagem do outro grupo, enfraquecendo-o e desarmando-o. Quando a capacidade de estigmatizar diminui ou se inverte, os antigos outsiders tendem a retaliar. Há uma complementaridade entre carisma grupal e desonra grupal. Os estabelecidos perpetuam o tabu contra um contato mais estreito com os outsiders, de geração para geração. Participar na superioridade de um grupo é uma recompensa por submeter- se às suas regras. Cada indivíduo deve pagar este preço seguindo padrões de controle dos afetos. Há uma associação entre a superioridade de forças e o mérito humano. Os outsiders são aqueles que não seguem as restrições. Eles são vistos como anômicos, fazendo com que o contato íntimo com eles seja desagradável. Ter contato com outsiders pode fazer com que o inserido tenha seu status rebaixado dentro do grupo. Elias argumenta que a estigmatização possui um efeito paralisante em grupos com menor poder. (ELIAS, 1994, p. 27) O efeito dos termos comumente usados para designar membros de grupos outsiders, como “crioulo”, “gringo”, “sapatão”, “veado”, “drogado” depende da consciência que usuário e destinatário tenham de que seu uso tem o aval de um

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grupo estabelecido. É possível com esses termos envergonhar o membro de um grupo outsider por ele ser anômico em relação às normas do grupo superior. Os outsiders são vistos como indignos de confiança, indisciplinados e desordeiros. (ELIAS, 1994, p. 27) Elias explica que os sintomas de inferioridade identificados pelos estabelecidos nos outsiders costumam ser gerados nos membros do grupo inferior pelas condições de sua posição e pela humilhação e opressão que sofrem. Para ele, estes sintomas são iguais no mundo inteiro. Um exemplo disso seria a pobreza. Os estabelecidos costumam ver os outsiders como não sendo limpos, no sentido literal e figurado. Em casos extremos, em que as diferenças de poder são muito grandes, os outsiders são vistos como sujos e quase inumanos. Para Elias, “dê-se ao grupo uma reputação ruim e é capaz que ele corresponda a essa expectativa.” As observações feitas em Winston Parva demonstraram que o mau comportamento de crianças e adolescentes da minoria desprezada do loteamento era uma vingança contra a rejeição sofrida por eles quando em contato com jovens da área respeitável. Elias defende que crescer como membro de um grupo outsider estigmatizado pode resultar em déficits educacionais e emocionais. E afirma ainda que a superioridade de poder confere vantagens aos grupos que o detém. Quando os grupos outsiders vivem no nível de subsistência, a sua receita prepondera sobre todas as outras necessidades. O estigma social atribuído aos outsiders transforma-se em algo natural ou ofertado por deuses. O grupo estabelecido não reconhece o estigma como uma construção da exclusão gerada pelas relações de poder na luta pela sobrevivência. (ELIAS, 1994, p. 30-33) Observou-se na pesquisa uma grande coesão do grupo “antigo”, cujos membros não quebraram o tabu de travar contato pessoal não profissional com membros do grupo novo. Quando os sentimentos e comportamento do membro de um grupo contrariam a opinião grupal, seu diferencial de poder diminui. A punição pelo desvio das normas de conduta do grupo, ou pela suspeita de desvio, é perda de poder e de status. Portanto, a auto-imagem de um indivíduo está ligada ao que os outros membros do grupo pensam dele. Somente a perda da sanidade mental provoca a ruptura da auto-regulação da conduta do indivíduo e de seus sentimentos e da opinião normativa interna do grupo. Elias afirma que a visão corrente hoje em dia de que alguém mentalmente sadio pode ser totalmente independente da opinião

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do grupo é tão enganosa quanto a que restringe a autonomia do indivíduo totalmente reduzindo-o a um autômato. (ELIAS, 1994, p. 40) Numa crítica a Freud, Elias argumenta que seu conceito de homem era de um indivíduo isolado. Freud não compreendeu que a imagem e o ideal da coletividade de um indivíduo fazem parte de sua auto-imagem tanto quanto a imagem e o ideal do eu desta mesma pessoa compõem o que ela se refere como “eu” (ELIAS, 1994, p. 42). Em períodos de alternância de poder, quando os estabelecidos tendem a se tornar outsiders e vice-versa, há uma dissonância entre a imagem do grupo e o processo de redistribuição do poder. Como cada grupo tende a manter-se fiel a suas normas, a dificuldade de ajuste à nova realidade faz com que o grupo perca poder de realização, capaz de comprovar seu valor humano a si mesmo e aos outros. Os estabelecidos repelem as ameaças à sua superioridade (notadamente em relação a sua coesão, à concentração de cargos oficiais e atividades de lazer) com contra-ataques que rejeitam e humilham o outro grupo. Elias cita a circulação de fofocas depreciativas e a auto-imagem maculada dos outsiders como exemplos deste processo de defesa. Neste ponto, o autor indaga como teria surgido no mundo a percepção de pessoas com outra cor de pele como pertencentes a um grupo diferente. Houve um longo processo de organização de grupos com características físicas diferentes em posições com muita diferença de poder. As castas indianas são um exemplo disso, assim como os burakumin no Japão. Elias considera provável que crianças criadas no chamado “beco dos ratos” de Winston Parva tenham constituído uma imagem comunitária distorcida e, portanto, tornado-se desviantes. Como vimos, Elias desenvolve mais que Goffman e Becker, uma teoria política da marginalidade, reconhecendo a capacidade de rotular com sucesso como prerrogativa de grupos que detêm poder.

3.4 Yoshino e a teoria de covering

Em “Covering”, Kenji Yoshino relaciona sua experiência como descendente de japoneses radicado nos EUA ao disfarce de identidade (que ele chama de covering) como um recurso comumente utilizado na sociedade norte-americana para que indivíduos considerados diferentes consigam algum nível de inserção social. Embora reconheçamos que a sóciodinâmica nos EUA possui peculiaridades relativas ao seu processo histórico, não podemos deixar de observar que lá também

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há disputas de grupos pela sobrevivência, o que significa lutas por poder e, portanto, o estabelecimento de regras que legitimam estes grupos, fazendo com que aqueles que não sigam as regras sejam estigmatizados como outsiders. A sociologia do desvio, então, tem reverberações hoje e não poderia deixar de ter nos anos 80, quando Almodóvar produziu os filmes que serão analisados com base nas teorias estudadas anteriormente. Embora existam autores que caracterizem a pós- modernidade em função de uma transitividade das identidades nos fluxos informacionais contemporâneos, não nos parece que essa transitividade tenha eliminado a necessidade de associação do homem em grupos, um aspecto universal, assim como a criação de regras que legitimam esses grupos e, portanto, a possibilidade de uma perspectiva contrária ao normativo caracterizar a marginalidade. O que é interessante observar na obra de Yoshino é que a conceituação do processo de covering (conceito cunhado por Goffman) revela um aspecto hipócrita da pretensa liberalização dos dogmas sociais: a necessidade de disfarçar, de encobrir um aspecto de um indivíduo (físico ou psicológico) para que ele tenha os mesmos direitos que os outros. Ou seja, a questão de Yoshino, que é advogado, é debater como a legislação civil americana não protege grupos minoritários ou outsiders de terem que camuflar suas identidades para alcançarem certa aceitação social. Os marginais em Almodóvar, que representam a redenção da sociedade espanhola em direção a uma nova realidade depois de anos de repressão política e cultural, são autenticamente outsiders com ideologias que justificam seus posicionamentos e não deixam de usar a estratégia de camuflagem para realizar seus desejos. Eles não estão em busca de aceitação social tanto quanto estão direcionados a satisfazer suas fantasias, mesmo que elas o levem a sua própria morte. A camuflagem analisada por Yoshino nos EUA de hoje prova que o conceito de desvio não é tão anacrônico como parece à primeira vista. Quer dizer, falar em marginalidade na década de 80 é perfeitamente plausível se considerarmos que ainda hoje, na nação considerada como paradigma civilizatório do Ocidente, a legislação não protege populações minoritárias de perda de espaços de poder em função de não assimilarem as normas do grupo dominante. O autor observa que a nova geração de americanos não discrimina um grupo, mas apenas a parte do grupo que não assimila as normas da maioria. Ele registra uma mudança: alguém não

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precisa mais ser branco, homem, heterossexual, protestante e sem deficiências para ser aceito, mas agir como se fosse branco, homem, heterossexual, protestante e não-deficiente. Em Almodóvar, esse escudo contra a exclusão social não existe. Seus personagens se lançam contra as normas sociais mais tradicionais com uma facilidade imensa e essa liberdade de ação os transforma em ídolos iconoclastas. Para Yoshino, o mainstream é um mito. Os pesquisadores queer consideram que não é normal ser completamente normal. Todos temos necessidade de auto- expressão e selves disfarçados. A necessidade de gays assimilarem normas heterossexuais, ou de mulheres assimilarem normas masculinas ou de minorias raciais assimilarem regras brancas porque um grupo é considerado inferior ao outro é uma razão ilegítima para o processo de camuflagem da identidade. Nos EUA, hoje, todos os outsiders são sistematicamente convidados a assimilarem as normas do mainstream de forma que a igualdade é ferida. Para Yoshino, estes grupos deveriam se unir contra o disfarce coercitivo, exigindo igualdade não baseada na conformidade com as normas hegemônicas. Em Almodóvar, não observamos a discussão sobre a necessidade de igualdade de direitos civis para outsiders. Aparentemente, ele não se preocupa com esse posicionamento político. Mas ao mostrar os outsiders, a sua cultura, ele evidencia a liberalização dos comportamentos na Espanha pós-Franco. Vimos então que a marginalidade é uma questão de perspectiva segundo Goffman, e que ela é resultado da luta por poder na sociedade, para Becker e Elias. Yoshino comprova que não só na década de 60, quando foram desenvolvidas as teorias do desvio, mas também na década de 80 e ainda hoje, faz sentido pensar em marginalidade, já que o autor identifica, ao estudar a assimilação de gays e negros à sociedade americana, o processo de camuflagem de suas identidades como condição para que eles sejam inseridos socialmente. Se não houvesse a imposição de determinadas normas e se os grupos que detêm o poder não se utilizassem das prerrogativas de rotular e estigmatizar com o objetivo de reforçar suas posições de superioridade, não seria necessário camuflar nada.

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4. Pop, punk, camp e a cosmética da marginalidade nos anos 80

Siempre bajo mi punto de vista, los primeros ochenta fueron años intrépidos en los que el tiempo daba mucho de sí. No sólo éramos más jóvenes y más delgados, sino que el desconocimiento hacía que nos lanzáramos a todo con alegría. No conocíamos el precio de las cosas, ni pensábamos en el mercado. No teníamos memoria e imitábamos todo lo que nos gustaba y disfrutábamos haciéndolo. No exístia el menor sentimiento de solidariedad, ni político, ni social, ni generacional, y cuanto más plagiábamos más auténticos éramos. Estábamos llenos de pretensión, pero la falta de perspectiva producía el efecto contrario. Las drogas sólo mostraban su parte lúdica y el sexo era algo higiénico. [...] ciertos círculos de Madrid eran idénticos a ciertos círculos de Nueva York. Círculos viciosos y sin salida, se entiende.19 Pedro Almodóvar

O desenvolvimento dos meios de comunicação durante o século XX forjou o que se conhece como cultura de massa. Sua existência está condicionada aos avanços tecnológicos introduzidos pela chamada 3ª revolução industrial, que aglutinou aos princípios mecânico e elétrico das duas primeiras, respectivamente, a sofisticação da eletrônica. Mecanismos que possibilitam a troca de informações, em tempo real, entre regiões tão distantes quanto permite a esfericidade terrestre, ou, com uma defasagem mínima, entre astronautas russos tripulantes de uma estação espacial e espectadores de uma premiação musical num teatro de Nova Iorque, passam a fazer parte do cotidiano do homem contemporâneo crescentemente. Massificar consiste em transmitir para o maior número de pessoas possível, através da mídia, uma determinada idéia que estimula o consumo de um produto, seja ele um brinquedo ou uma doutrina política, por exemplo. A origem dos princípios da massificação remonta ao discurso cristão do pecado, que pretendia introjetar nos fiéis de fé católica a antecipação da culpa em relação a comportamentos que não interessavam à cúpula do poder eclesiástico, pois subvertiam (e ainda o fazem) a “ordem” que melhor lhes convinha. E não só à techné está subordinada esse processo de deturpação agenciada, mas também é evidente que esse é um instrumento que está intimamente ligado aos valores da economia capitalista: o objetivo é o lucro, portanto quanto mais publicidade melhor.

19 Sempre sob meu ponto de vista, os primeiros anos da década de 80 foram anos intrépidos em que aproveitávamos bastante o tempo. Não apenas éramos mais jovens e mais magros, mas também o desconhecimento fazia com que nos lançássemos sobre tudo com alegria. Não sabíamos o preço das coisas, nem pensávamos no mercado. Não tínhamos memória e imitávamos tudo o que gostávamos com prazer. Não existia o menor sentimento de solidariedade, nem política, nem social, nem geracional, e, quanto mais copiávamos, mais autênticos éramos. Estávamos cheios de pretensões, mas a falta de perspectivas produzia um efeito contrário. As drogas mostravam apenas sua parte lúdica e o sexo era algo higiênico. [...] certos círculos de Madri eram idênticos a certos círculos de Nova Iorque. Círculos viciosos e sem saída, se me entende. (ALMODÓVAR, 2007, pp. 7-8 – tradução nossa).

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No início dos anos sessenta, quando os americanos já haviam solidificado sua hegemonia com a explosão das bombas atômicas na segunda guerra mundial, surge, lá mesmo nos Estados Unidos, um grupo de artistas que se volta para a temática da sociedade de consumo, tomando de empréstimo elementos - símbolos e estereótipos - da comunicação de massa, típicos daquela sociedade. Fruto do retorno à figuração nas artes visuais, a Pop Art foi, de certa forma, antecipada pelos objets trouvés e ready made de Marcel Duchamp no início do século XX. Ao aceitar, como artista, processos industriais de produção em massa, Duchamp quis pôr em questão o conceito de obra de arte e abalar o pensamento convencional. Tendo como antecedentes imediatos a Pop Art inglesa e o Novo Realismo francês, a Pop Art surgida em Nova Iorque na década de sessenta é um movimento legitimamente americano. Segundo o artista pop Robert Indiana, a nova figuração

emerge do enfado com a supersaturação do Expressionismo abstrato, que, pela lógica de sua própria estética, é o fim da arte, o pináculo grandioso de um longo processo piramidal; os jovens artistas asfixiados pela atmosfera rarefeita (da arte abstrata) resolveram voltar-se para coisas menos exaltadas e menos refinadas, como, por exemplo, uma garrafa de Coca-Cola, um cone de sorvete, um hambúrguer ou um anúncio de supermercado, com a injunção COMA!. (MORAIS, s.d., p. 20)

Rauschenberg, Dime e Oldenburg com suas combine-paintings (pintura e objetos); Andy Warhol e suas serigrafias (a lata de sopa Campbell, Marilyn Monroe, Jacqueline Kennedy, Mao Tsé Tung); Lichtenstein e seu “pontilhismo” sui generis (que procura reproduzir os efeitos da imagem mecanicamente impressa); Indiana e a sinalização de estradas e slogans; Wesselmann e os “grandes nus americanos”; Rosenquist e a justaposição de imagens não proporcionais; Segal e os manequins de gesso; e Allan D’Arcangelo, que se volta para uma “cultura das estradas”, construíram esse mosaico que assimila a realidade massificada do cotidiano, conferindo-lhe o status de obra de arte (ou vice-versa). Douglas Davis, no ensaio “The decline and fall of Pop: reflections on media theory”, contido no livro “Artculture - essays on the post-modern”, defende:

The notion that a “print-culture” once existed and is now dying, to be replaced by a “visual culture”, with complete opposite values, linked in some manner to a pre-print, Catholic culture, is - in brief - absurd. The truth is, as always, far more difficult to state than that (which is why the truth is so often unpopular). […] Both of these cultures have always existed side by side - that is, the instinct to write and read, away from the world, in meditation; the instinct to draw, to see, to embrace the world, and to perceive through the senses. They are in fact within us, as eye, mind and senses are yoked to each other. [...] Instead of thinking of the television set or

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the slide or the computer as icons for a new culture, I propose that they be considered extensions of the mind, like language, bound by the same laws, capable of the same open-ended activity, and of the same blunders.20 (DAVIS, 1977, p. 58).

Davis nos ajuda a compreender melhor o impacto da emergência da arte pop no circuito das artes em geral. A incorporação dos ícones da comunicação de massa, antíteses da aura da obra de arte moderna, nos permite esclarecer uma das principais influências do trabalho cinematográfico de Almodóvar. Para Argan, em “Arte Moderna”:

A chamada morte da arte não é senão a decadência consumada de um conjunto de técnicas artesanais, que já não se coordena com o sistema industrial da produção - em muitos casos, da produção dos mesmos tipos de coisas que eram produzidas pela arte. É inquestionável, porém, que essa decadência criou um vazio cultural, por ora ainda não preenchido. Assim se explica porque a chamada morte da arte não acarretou o desaparecimento dos artistas e das instituições que se ocupam da difusão do conhecimento de suas atividades. É preciso tomar consciência do vazio deixado pela arte no contexto cultural, decidir a sorte da soma de valores, constituída pelo legado, ainda presente, das civilizações artísticas do passado; esse legado artístico ineliminável ainda é, pelo menos em termos quantitativos, o componente principal do ambiente material da existência, aquele que caracteriza as cidades. (ARGAN, 1993, 588).

Davis discorda de Argan no que diz respeito à visão fatalista de que o conceitualismo promovido pela Pop Art é um reflexo da limitação e não- funcionalidade do papel da arte num contexto cultural da sociedade de consumo. Enquanto Argan alega que não são os críticos que anunciam, mas que a própria arte vive seu fim, Davis preocupa-se em esclarecer a problemática sem radicalismos, através de uma proposta inteligente. Certamente, frases como “I want to be a machine” ou profecias sobre o crescimento do poder da mídia feitas por Andy Warhol são suficientemente polêmicas em relação ao próprio cenário Pop. E não é de se espantar que a maioria dos críticos de arte, mesmo alguns anos depois, ainda não tenham conseguido sintetizar a realidade pós-moderna e os novos conceitos de arte que a acompanharam.

20 A noção de que uma cultura-do-impresso existiu certa vez e está morrendo agora, e sendo substituída por uma cultura do visual, com valores completamente opostos, ligada de certa maneira a uma cultura Católica pré- impresso, é — em síntese — absurda. A verdade é, como sempre, muito mais difícil de se constatar do que isso (por isso ela é sempre tão impopular) […] Ambas as culturas sempre existiram lado a lado — isto é, o instinto de ler e escrever, longe do mundo, em meditação; o instinto de desenhar, de ver, de descobrir o mundo, e de percebê-lo pelos sentidos. Elas estão de fato dentro de nós, como olho, mente e sentidos estão ligados uns aos outros. [...] Ao invés de pensar na televisão ou no retroprojetor ou no computador como ícones para uma nova cultura, eu proponho que eles sejam considerados extensões da mente, como a linguagem, submetidos às mesmas leis, capazes das mesmas atividades com início e fim e dos mesmos equívocos. (tradução nossa)

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Corta. Do mundo das artes plásticas para a São Paulo dos anos 80. Em Cenas juvenis - punks e darks no espetáculo urbano, Helena Whendel Abramo registra e analisa o movimento jovem na capital paulista da época, quando apareceram diversos grupos, com estilos diferenciados, articulados através da música, das roupas, dos adereços, das formas de lazer. Os pioneiros foram os punks, depois surgiram os metaleiros, carecas, darks, rastafáris, rappers, e outros. Todos esses grupos chamaram a atenção pela agressividade real e simbólica de seus comportamentos, pelo pessimismo, pela elaboração da imagem, valorização do lazer e dos produtos culturais. Eles nasceram a partir do reconhecimento da juventude como classe social, que se deu após a segunda grande guerra, devido ao aumento do tempo livre do trabalhador, estimulado com a divulgação mundial das leis trabalhistas (ex.: diminuição da jornada de trabalho). Seus antecedentes podem ser reconhecidos nos chamados teddy boys (Teddy era o apelido do príncipe Edward, da Inglaterra), rapazes da classe operária londrina que, ao se vestirem, misturavam peças de diferentes ternos, e usavam gravatas mostrando os rostos de famosos atores de filmes de cowboy. Outros exemplos posteriores são os skinheads, os mods, rockers... O movimento punk surge, inicialmente, como uma mobilização musical contra o estrelismo do rock progressivo dos anos 70 (Pink Floyd, ...) que exigia uma grande infra-estrutura empresarial e financeira. Seu lema era: “Do it yourself!” (Faça você mesmo!). Essa proposta conquista a adesão de jovens de classes trabalhadoras dos subúrbios ingleses, envolvidos na crise de desemprego gerada pela política de privatização de Margareth Tatcher. Sentiam-se estagnados, exilados socialmente, sem dinheiro e sem emprego. Outro lema era: “No future!” (Sem futuro! - afirmação realista, demonstração de preocupação com a contemporaneidade.). Adotaram a ideologia anarquista. O movimento chegou a São Paulo através da música de bandas inglesas como Sex Pistols e The Clash, e da banda americana Ramones. Já os darks tinham uma preocupação mais incisiva de montar um espetáculo que chamasse a atenção para seus desencantos e para a aproximação do apocalipse. Esses jovens formavam uma tribo singular, com sinais de identidade, locais de encontro, um imaginário e um discurso peculiares. Não se atribuíram um nome, nem se afirmaram como um grupo. A aglutinação deu-se em torno da música e da formação de bandas: o tipo de som e a temática das letras compunham um

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estilo reconhecível, diferenciado dos outros, que ficou conhecido como rock paulista. A imprensa acabou por batizá-los de darks. Foram influenciados por bandas inglesas como The Cure, Joy Division e Siouxsie and the Banshees. Flashback. Para Denilson Lopes, o camp não pode ser considerado exclusivamente gay, mas de fato tornou-se, ao longo do século XX, um elemento definidor da identidade homossexual. O autor identifica o surgimento do termo no artigo “Notas sobre o camp” (1964), de Susan Sontag (LOPES, 2002, p. 89). São desta mesma época os livros estudados no capítulo sobre marginalidade nesta dissertação. D’ Lugo nos informa sobre a emergência de uma cultura ligada ao universo gay na Espanha e que ganhou o rótulo de cultura de la pluma:

Though the culturally specific cultura de la pluma (Spanish gay culture) is at the heart of the artistic sensibility informing Almodóvar’s films, ironically it was not until his sustained international successes in the early 1990s, when the features of Spanish camp begin to diminish in his work, that the question of his films as “gay cinema” became an issue with some commentators (Leavitt 40; Pally 32-34; Smith, Laws 165-68). […] Even my movies that are dominated by gay characters like Bad Education are not meant to have a homosexual sensibility… I make movies about strong passions. How a character jumps into a world to give sense to their life. I don’t like to classify movies in a sexual way. To me, it’s like saying, That’s a fat movie by Orson Welles. Or a brunette movie by Sofia Coppola. While it’s true that there is a gay culture that I draw from, this is only one influence on my films. I’m not a gay director who does gay movies for a gay audience. That would not interest me. (qtd. In Hirschberg 27) 21(D’LUGO, 2006, p. 6)

Em Calzada de Calatrava, La Mancha, Espanha, em 25 de setembro de 1949, nasce Pedro Almodóvar. Conforme registrado nos press releases distribuídos para promover seus filmes, até início dos anos 90, embora tenha nascido na época da Guerra Fria, do mambo, de Balenciaga, da Guerra na Coréia, da Revolução Húngara, da morte de Stálin, nenhum destes grandes fatos históricos parecia abalar o vilarejo onde o jovem manchego crescia. Almodóvar, cita o material publicitário, sentia-se um astronauta na corte do Rei Artur. (STRAUSS, 2006, p. xi)

21 Embora a “cultura de la pluma” (cultura gay espanhola) esteja no coração da sensibilidade artística que informa os filmes de Almodóvar, ironicamente, não foi até seu sucesso internacional contínuo no início dos anos 90, quando os elementos do camp espanhol começaram a diminuir em seus filmes, que a questão de sua obra como “cinema gay” tornou-se um tema de debates para alguns críticos. (Leavitt 40; Pally 32-34; Smith, Laws 165-68). […] Até meus filmes que são dominados por personagens gays como “Má Educação” não foram concebidos a partir de uma sensibilidade gay... Eu faço filmes sobre paixões fortes. Como um personagem salta num mundo para dar sentido à sua vida. Eu não gosto de classificar meus filmes de uma forma sexual. Para mim, seria como dizer, “aquele é um filme gordo de Orson Welles”. Ou “um filme moreno” de Sofia Coppola. Enquanto é verdade que há uma cultura gay da qual eu me alimento, esta é apenas uma das influências em meus filmes. Eu não sou um diretor gay que faz filmes gays para o público gay. Isto não me interessaria. (qtd. In Hirschberg 27) (D’LUGO, 2006, p. 6 – tradução nossa)

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Claramente inspiradas pelas cultura e contracultura norte-americanas, Madri e Barcelona tornaram-se, ainda durante o regime franquista, centros de uma produção cultural altamente criativa expressa não só em filmes, como também em histórias em quadrinhos, moda e um determinado estilo de vida muito semelhante àquele cultuado ao redor de Andy Warhol em Nova Iorque. Não é à toa que Almodóvar constumava ser apresentado em reuniões e jantares como o Warhol espanhol. (STRAUSS, 2006, p. 1) Assumidamente influenciado por cineastas tão diversos quanto John Waters, Pier Paolo Pasolini, Cecil B. De Mille, Frank Tashlin, Blake Edwards, Billy Wilder, Stanley Donen, Visconti, Antonioni, Otto Preminger, Lubitsch, Preston Surges, Mitchell Leisen, Bergman e Alfred Hitchcock, entre outros, Almodóvar construiu sua carreira informado por diversos gêneros cinematográficos: screwball comedies, thrillers, épicos, filmes do neo-realismo italiano e da nouvelle vague francesa, películas do expressionismo alemão, filmes noir e melodramas. A falta de uma qualificação profissional específica na área de cinema foi certamente compensada pelo ávido consumo de filmes das mais variadas procedências que Almodóvar teve a oportunidade de vivenciar em sua juventude, desde os dez anos de idade, quando conta ter começado a freqüentar o cinema em Cáceres, cidade onde estudava nos anos 60. Após assistir L’Avventura (1960), de Antonioni, ele disse a si mesmo “Este filme se dirige a mim.”. Bonjour Tristesse (1958), de Otto Preminger, também causou um forte impacto, assim como Cat on a hot tin roof (1958), de Richard Brooks. Aos 12 anos de idade, conta ele, se alguém o perguntasse, definiria-se como um niilista. (STRAUSS, 2006, pp. 2-3) Almodóvar também procurava se ocupar e esquecer a terrível solidão em que vivia lendo Lahos Zilahi, Mika Wattari, Morris West, Walter Scott e até Hermann Hesse e Françoise Sagan. Ao ler o romance que deu origem ao filme Bonjour tristesse, Almodóvar pensou: “Meu Deus, existem pessoas como eu! Não estou só!” (STRAUSS, 2006, p. 5) Ele conta: My childhood was neither sad nor happy, I already felt the disapproval as a child I would later feel as an adult. Although my elder didn’t know what they disapproved of, their judgement of me had been made. I don’t want it to sound dramatic but it was hard. Luckily, I wasn’t traumatized by it because I have a very positive personality. I also escaped into books and films and this gave me enormous pleasure. But I did feel rejected and despised. The strength I posses, I found it within myself.22 (STRAUSS, 2006, p. 8)

22 Minha infância não foi triste nem feliz, desde criança eu já sentia a reprovação que mais tarde vivenciaria como adulto. Embora meus pais não soubessem o que eles desaprovavam, o julgamento sobre mim já havia sido feito. Eu não quero que soe dramático, mas foi difícil. Com sorte, eu não me traumatizei porque tenho uma

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O depoimento acima evidencia o início de uma carreira outsider para Almodóvar. O cineasta aprendeu, desde criança, que havia algo de errado com ele pela forma como o tratavam. Nas relações sociais que estabeleceu, mesmo em sua família, lançaram-lhe olhares de reprovação. Almodóvar não fazia idéia do que reprovavam nele. Apenas sabia que isso o deixava extremamente isolado, ao ponto de ser hostilizado quando comentava sobre A fonte da donzela de Bergman, aos dez anos, com os amiguinhos da escola. (STRAUSS, 2006, p. 5) Almodóvar explica:

The first part of my carreer was highly influenced by the American underground, John Waters, Paul Morrisey, Russ Meyer, the Warhol factory and also English pop, Richard Lester and Who are you, Polly Magoo?, a wonderful film about fashion by William Klein. 23(STRAUSS, 2006, p. 44)

Como explica D’Lugo, a origem rural e humilde de Almodóvar fez dele um cineasta outsider diante da turma de diretores espanhóis que lhe são contemporâneos, conforme defendem María Antonia García de Léon e Teresa Maldenado. O background do diretor se relaciona com um ambiente de pobreza, subdesenvolvimento e migração em busca de melhores condições de vida. Seus colegas, em geral, provinham da classe média urbana espanhola e tiveram acesso a sólidas formações educacionais num cenário metropolitano. (D’LUGO, 2006, p. 12) O escritor Vicente Verdú classificou Almodóvar como membro de uma geração de espanhóis sem complexos. Segundo D’Lugo, “that earlier generation’s quest for artistic identity grew out of their awareness of Spain’s marginalization within Europe.”24 (D’LUGO, 2006, p. 13). Ironicamente, marginalizada na Europa, a Espanha havia sido, alguns séculos antes, a grande responsável pela descoberta da América e uma das maiores potências responsável pelas grandes navegações colonizadoras. D’Lugo revela, curiosamente, que a mãe de Almodóvar, Francisca Caballero, transformou-o em professor de literatura e escritor de cartas na vila onde moravam. A expectativa da família era que Almodóvar se tornasse padre. Portanto, foi

personalidade muito positiva. Eu também me refugiava nos livros e filmes e eles me deram enorme prazer. Mas eu me senti rejeitado e desprezado. A força que tenho, eu tirei de dentro de mim mesmo. (tradução nossa) 23 A primeira parte de minha carreira foi altamente influenciada pelo underground americano, John Waters, Paul Morrisey, Russ Meyer, a ‘Factory’ de Warhol e o movimento pop inglês, Richard Lester e Who are you, Polly Magoo?, um maravilhoso filme sobre moda feito por William Klein. (tradução nossa) 24 A busca daquela geração inicial por uma identidade artística emergiu da noção de que a Espanha estava marginalizada no continente europeu.

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encaminhado ao Colegio de los Salesianos em Cáceres aos oito anos de idade. (D’LUGO, 2006, p. 13) Em 1967, aos 17 anos, mudou-se para Madri contra a vontade da família. “I came to Madrid, and then, just as I arrived, there were, socially and literally speaking, two great explosions: one was the last cry of the hippy movement, and the other was the boom of South American literature.”25 Em 1970, o governo espanhol decretou a conhecida ley de peligrosidad social (lei de marginalidade), dando à polícia o poder de prender pessoas que aparentassem ser homossexuais. Na mesma época, a Escola Nacional de Cinema foi fechada sob suspeita de abrigar atividades comunistas. (D’LUGO, 2006, p. 14-5) Enquanto trabalhava na companhia telefônica, Pedro Almodóvar conseguiu economizar dinheiro para comprar uma câmera de Super 8 e começou a produzir curtas-metragens no formato. Estes filmes chegaram a ser exibidos em festivais em Barcelona, o grande centro de atividade contracultural na Espanha da época. Lá, ele juntou-se a um grupo de artistas alternativos de vanguarda. Sua experiência com eles não foi bem sucedida porque Almodóvar insistia em ser fiel a estruturas narrativas em seus roteiros cinematográficos. Mais exibições foram realizadas em Madri e Barcelona até que produziu, tecnicamente, seu primeiro longa-metragem, Folle... Folle…Folleme… Tim, com duração de 90 minutos, mas ainda filmado em Super 8. Almodóvar conta:

Cuando iba a trabajar a un almacén de la telefónica, cerca del pueblo de Fuencarral, pesaba todos los días por la M-30. Siempre me impresionaban esas enormes colmenas que se alzan sobre la autopista. Esa impresión y una determinada emoción encontraron su soporte años más tarde en ¿Qué he hecho yo para merecer esto?. Pero Madrid no sólo era esa miseria, también descubrí una ciudad enloquecida que se divertía clandestinamente bajo la dictadura y se preparaba para cambiar a ritmo de vértigo en el momento en que esa pesadilla desapareciera. [...] Mi vida y mis películas están ligadas a Madrid como las dos caras de una moneda.26 (ALMODÓVAR, 2007, p. 136)

25 Eu vim para Madri, e então, quando cheguei, haviam, social e literalmente falando, duas grandes explosões: uma era o último grito do movimento hippy, e a outra o boom da literatura sul-americana. (tradução nossa) 26 Quando ia trabalhar na companhia telefônica, perto do povoado de Fuencarral, passava todos os dias pela M- 30. Sempre me impressionavam as enormes colméias que surgiam sobre a auto-estrada. Essa impressão e uma determinada emoção encontrarão expressão anos mais tarde em “O que eu fiz para merecer isto?”. Mas Madri não era apenas miséria, também descobri uma cidade enlouquecida que se divertia clandestinamente sob a ditadura e se preparava para mudar a um ritmo vertiginoso no momento em que ela desaparecesse. [...] Minha vida e meus filmes estão ligados a Madri como as duas faces de uma moeda. (tradução nossa)

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Almodóvar é herdeiro de uma história que começou no fim do século XIX, quando chegou à Espanha o cinematógrafo dos irmãos Lumière27. O primeiro filme espanhol foi Salida de misa de doce del Pilar de Zaragoza (1897), dirigido por Eduardo Jimeno. O primeiro filme ficcional foi feito por Fructuoso Gelabert (Riña en un café, 1897). Durante anos, os temas dos filmes espanhóis reduziram-se a representações da tradição literária, dos costumes folclóricos e de episódios históricos. Nos anos 30, Buñuel abriu o estúdio Filmófono, numa tentativa de implantar uma indústria cinematográfica espanhola, no entanto, o problema da concorrência com o produto norte-americano impediu que a Espanha criasse uma indústria de cinema como aconteceu com a maioria dos países durante o século XX. Em 1947, é criado o Instituto de Investigações e Experiências Cinematográficas que se transformou depois na Escola Oficial de Cinematografia. Muitos diretores formaram-se nela e depois, transformaram-se em professores, como Berlanga, Bardem, Saura, Miró, Erice entre outros. Outra linha de diretores importantes surgiu da Escola de Barcelona, que se caracterizou por sua proposta de estruturas narrativas abertas e inovadoras. Entre os que ainda atuam hoje, estão Gonzalo Suárez e Vicente Aranda. Junto com o movimento contracultural da década de 80, principalmente em Madri e Barcelona, surgiu um cinema provocador, com apelo comercial reduzido, a princípio, mas que, posteriormente, demonstrou grande potencial. Nesta corrente, destacaram-se Pedro Almodóvar e, numa linha mais convencional, Fernando Colomo. Em Barcelona, entre as figuras mais notórias encontramos Bigas Luna com “Bilbao” (1978), “Las edades de Lulú” (1990) e “Jamón, jamón” (1992). Entre os diretores da nova geração, destacam-se: Juanma Bajo Ulloa (Alas de mariposa, 1991, La madre muerta, 1993, e Airbag, 1997), Alex de la Iglesia (Acción mutante, 1992, El día de la bestia, 1995, e La comunidad, 2000), Julio Medem (Vacas, 1992, La ardilla roja, 1993, e Los amantes de círculo polar, 1998) e Alejandro Amenábar (Tesis, 1996, e Los otros, 2000).

Really, my story is almost a low-level melodrama.” Pedro Almodóvar explains [...] I mean, a boy who comes from a village just trying to survive and all these kinds of things that happen only in the movies. It’s an impossible story, but it happened like that. It’s a surprise that I’m making movies, because in my case it was almost

27 “Cine español” (2006). Enciclopedia Microsoft Encarta Online 2005. Consultado em 15/05/2006, 11h00. http://mx.encarta.msn.com/encyclopedia_761586869/Cine_espa%C3%B1ol.html “Spain” (2006). Encyclopædia Britannica. Consultado em 15/05/2006, 11h30 de Encyclopædia Britannica Premium Service http://www.britannica.com/eb/article-70325

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impossible to dream of that. I was not born in the right place in the right family in the right town in the right language or in the right moment to make movies. But I did, so it´s like dreaming of being a bullfighter when you’re born in Japan or England… I wanted to be a storyteller. I just wanted to tell stories with images in movement, Super 8, 35 mm, whatever. And I started doing it when I could. Before making features, I made ten years of Super 8 movies just with one small camera. For me, that was to be a director, not to go and be nominated for an Oscar in Hollywood. (Noh 124-25) 28(D’LUGO, 2006, p. 2)

É relevante voltarmos um pouco mais no tempo para compreender como surgiu e se desenvolveu essa Espanha autoritária contra a qual a cinematografia almodovariana investe com tanta libido. Nos primeiros anos do século XX, a Espanha não ficou imune ao surgimento do movimento proletário, dos partidos de esquerda e das centrais sindicais, responsáveis por ações grevistas e revolucionárias. A Monarquia espanhola, entretanto, não encontrou respaldo junto à população para realizar as reformas necessárias ao enfrentamento da crise econômica. O governo parlamentar foi dissolvido. Instalou-se uma crise constitucional no país, agravada por movimentos separatistas de bascos e catalães e pela guerra para manter o Marrocos colonizado. Em 1923, o Rei Afonso XIII, com apoio da burguesia, dos latifundiários, da Igreja e do exército, promoveu a instalação de uma ditadura militar chefiada pelo general Miguel Primo de Rivera. O regime espanhol inspirou-se no modelo fascista italiano. A Depressão de 1929 não foi controlada pelo general que sucumbiu à pressão popular e foi demitido. Eleições gerais foram convocadas em 1931. A vitória de socialistas, comunistas, empresários, separatistas e anarquistas fez com o que o Rei abdicasse do trono e proclamasse a República. Não havendo acordo entre os membros da coalização, o governo não se estabilizou adequadamente. As forças de direita fundaram um partido nacional- socialista em 1931, a Falange. Os esquerdistas organizaram-se na Frente Popular que venceu as eleições de 1936 com a proposta de realizar uma reforma agrária. (PAZZINATO, 1994, pp. 259-260) Militares conservadores resistiram às mudanças e organizaram a União Militar Espanhola (UME). Com o assassinato do líder conservador Calvo Soleto em julho de

28 “Realmente, minha história é quase um melodrama de baixo-nível”, explica Pedro Almodóvar [...] “Quero dizer, um rapaz que vem de uma cidade apenas tentando sobreviver e todas estas coisas que acontecem apenas nos filmes. É uma história impossível, mas aconteceu assim. É uma surpresa que eu esteja fazendo filmes, porque no meu caso, era quase impossível sonhar com isso. Eu não nasci no lugar certo, na família certa, na cidade certa, falando a língua certa ou no momento certo para fazer cinema. Mas eu fiz, então é como se sonhasse em ser um toreador e tivesse nascido no Japão ou na Inglaterra... Eu queria ser um contador de histórias. Eu só queria contar histórias com imagens em movimento, Super 8, 35 mm, não importava. E eu comecei a fazê-lo quando pude. Antes disso, fiz dez anos de filmes em Super 8 com uma pequena câmera. Para mim, isto era ser um diretor, e não ser nomeado para um Oscar em Hollywood. (tradução nossa)

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1936, as tropas chefiadas pelo general Franco, sediadas no Marrocos, se rebelaram e invadiram a Espanha pelo estreito de Gibraltar, dando início à Guerra Civil. Itália e Alemanha ajudaram Franco a esmagar os republicanos e, com a tomada de Madri em 1939, implantou-se a ditadura que só teria fim em 1975. Governada por mais de 30 anos pelo fascista Francisco Franco, a Espanha só começou o processo de distensão política em 1969, quando o general indicou como seu sucessor o príncipe Juan Carlos de Bourbon, após ter restaurado a monarquia constitucional. Somente com a morte de Franco, em 20 de novembro de 1975, o rei foi coroado e deu início a amplas reformas. Em 1977, foram realizadas Eleições Gerais, levando Adolfo Suárez, da União Centro Democrática, ao poder como primeiro-ministro. Suárez promoveu o desenvolvimento econômico e enfrentou o terrorismo separatista de catalães e bascos. Em 1982, Felipe Gonzaléz, do Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE) elegeu-se primeiro-ministro e conseguiu incluir a Espanha no Mercado Comum Europeu em 1986. (PAZZINATO, 1994, pp. 260-261; 300-301) Pedro Almodóvar começou sua carreira lançando o curta-metragem “Film político”, em 1974. O diretor, um dos mais criativos e polêmicos da atualidade, apresenta aos espectadores uma obra baseada na representação dos desvios humanos. A quase totalidade de seus personagens apresenta algum traço comportamental desviante, dentro do conceito da Sociologia do Desvio, importante segmento desta área de conhecimento, cujos principais autores de referência são Becker, Goffman e Elias29. Este aspecto atravessa toda a filmografia do diretor e constitui realmente um tema de seu interesse: ele o enfatiza. Temas fortes, tabus sociais como o incesto, a bissexualidade, a pedofilia e os distúrbios mentais compõem, ao lado de outros tópicos mais comuns nos meios de comunicação, como homossexualidade, violência e uso de drogas, um retrato crítico da sociedade espanhola, que ao representar com maestria um contexto bem localizado, se universaliza.

29 BECKER, Howard. Outsiders – studies in the sociology of deviance. Nova Iorque: The Free Press, 1963. GOFFMAN, Erwin. Stigma – notes on the management of spoiled identity. Nova Iorque: Simon & Schuster Inc., 1963. ELIAS, Norbert, SCOTSON, John L. Os estabelecidos e os outsiders. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000.

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Segundo D’Lugo:

Almodóvar’s first two commercial features have often been characterized as chronicles of Madrid’s youth culture in the years immediately following Franco’s death and the beginning of the political transition to democracy (Mazierska and Rascaroli 30-31). […] As author-in-the-text, he metaphorically embodies new cultural identities emerging from previously marginalized groups. […] (his) youthful characters seek to identifiy with international youth culture. […] these early films depict a utopian, asocial Madrid, highly inflected by the filmmaker’s personal style and yet “realistically symptomatic of present problems and lifestyles” (31).30 (D’LUGO, 2006, p. 16-7)

Entre fins dos anos 70 e início da década de 80, Madri presenciou o surgimento de um movimento contracultural juvenil chamado “La movida madrileña”. Tratava-se de uma reação ao Movimiento franquista. O título também pode ter sido criado a partir de uma referência ao uso de drogas: fazer uma movida, segundo Javier Escudero (citado por D’Lugo), significava comprar drogas. O rompimento com as tradições culturais da Espanha totalitária de Franco envolveu os artistas no que D’Lugo explica ser o pasotismo, espécie de estilo pautado pela indiferença, letargia e despolitização. Almodóvar explica:

There existed a very independent playfulness. You did things because it was fun to do them. In a certain respect, frivolity became a political position in order to pose a way of life that absolutely rejected boredom. The apoliticism of those years was a very healthy response to all the disastrous political activity that had achieved nothing. (qtd. In Gallero 219). 31(D’LUGO, 2006, p. 18)

A transição de regimes autoritários para a democracia, em geral, é precedida por uma espécie de produção cultural que anuncia os anseios de liberdade de expressão. Essa produção pode ser categorizada como contracultura e, de maneira alguma, fica restrita aos movimentos artísticos ligados à esquerda pós-68. Ken Goffman e Dan Joy nos mostram que o conceito de contracultura aplica-se a diversos períodos históricos distintos, desde a Grécia Antiga até os dias atuais:

30 Os primieros dois filmes comerciais de Almodóvar foram freqüentemente caracterizados como crônicas da cultura jovem da Madri nos anos imediatamente após a morte de Franco e o começo da transição política para a democracia (Mazierska and Rascaroli 30-31). […] Como autor-no-texto, ele metaforicamente incorpora novas identidades culturais que emergem de grupos previamente marginalizados. […] (seus) personagens jovens buscam se identificar com a cultura juvenil internacional. […] estes filmes iniciais retratam uma Madri utópica, asocial, altamente personalizada pelo estilo do diretor, mas ainda assim representando estilos de vida e problemas da época. (tradução nossa) 31 Existia uma diversão independente. Você fazia coisas porque era divertido fazê-las. De certa maneira, a frivolidade tornou-se uma posição política de forma a impor um estilo de vida que rejeitava o tédio com veemência. A alienação daqueles anos foi uma resposta muito saudável a toda a desastrosa atividade política que não conquistou nada. (tradução nossa)

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A contracultura é “ruptura” por definição, mas também é uma espécie de tradição. É a tradição de romper com a tradição, ou de atravessar as tradições do presente de modo a abrir uma janela para aquela dimensão mais profunda da possibilidade humana que é a fonte perene do verdadeiramente novo — e verdadeiramente grandioso — na expressão e no esforço humano. Dessa forma, a contracultura pode ser uma tradição que ataca e dá início a quase todas as outras tradições. (SIRIUS, 2007, p. 13).

Em “Contracultura através dos tempos – do mito de Prometeu à cultura digital”, Ken Goffman e Dan Joy nos apresentam, em retrospecto historiográfico, uma série de manifestações culturais que, em suas épocas, representaram modelos de rompimento com a cultura hegemônica, caracterizando-se, portanto, como expressões de contracultura. Goffman e Joy argumentam, entretanto, que esta visão que opõe a produção contracultural à cultura hegemônica é simplista e questionável. Eles, então, listam aspectos que definem a contracultura:

1. as contraculturas afirmam a precedência da individualidade acima de convenções sociais e restrições governamentais; 2. as contraculturas desafiam o autoritarismo de forma óbvia, mas também sutilmente; 3. as contraculturas defendem mudanças individuais e sociais. (SIRIUS, 2007, p. 50)

A característica principal de um indivíduo contracultural é seu compromisso com a mutabilidade: os autores identificam nesse agente um processo fluido que admite constante transformação na identidade pessoal, nos interesses e objetivos. Pessoas contraculturais realizam o que Nietzsche chamou de “transposição dos valores” — a filosofia de vida que depende de permanente transformação de valores, percepções e crenças, como um objetivo em si. (SIRIUS, 2007, p. 53) Pedro Almodóvar migra da Espanha rural para uma das mais importantes metrópoles do mundo, Madri, e é lá, em plena década de 70, quando o regime político autoritário de mais de 30 anos no país começa e ceder espaço à ordem democrática, que ele se junta a outros artistas. Inspirados por ícones da comunicação de massa, freqüentemente citados em seus filmes, no movimento punk inglês e na Pop Art capitaneada por Warhol em Nova Iorque, Almodóvar reconfigura a cinematografia espanhola documentando a ansiedade da juventude madrilenha por novos estilos de vida que os permitam ser mais autênticos e livres. Informado

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por Hollywood e pelo cinema de autor europeu, combinando camp, kitsch e a cultura de la pluma, o diretor de cinema parte de uma realidade estigmatizada como marginal.

Comentando o clima que pairava sobre a Espanha em 15 de junho de 1977, quando da realização das primeiras eleições gerais no pais, após longuíssima ditadura, o historiador e cineclubista Marti i Rom destacou que, dado o grau de “agitação e conscientização” generalizada, a sensação que se tinha era de que, finalmente, a política e a cultura haviam abandonado as catacumbas, saindo das “cloacas (e prisões) às quais o franquismo as havia confinado” para “inundar o espaço público” (MARTI i ROM, 1983: 141). Independente do fato de que essas eleições dariam vitória, com 34% dos votos, aos “herdeiros” de Franco, disfarçados agora sob o manto da UCD (Unión de Centro Democrático), a Espanha se fazia festa. Franco estava morto e seu famigerado regime definhava a olhos vistos. Neste mesmo período, Almodóvar trabalhava sobre o roteiro daquele que seria seu primeiro filme comercial, Pepi, Luci, Bom y Otras Chicas del Montón (1980). (SILVA in CAÑIZAL (org.), 1996, p. 54)

Tendo levantado as informações de contexto sobre a produção de Almodóvar, em especial de sua biografia e do desenvolvimento do cinema na Espanha, podemos agora nos dedicar a analisar as representações da marginalidade em seus filmes.

4.1 Pepi, Luci, Bom e outras garotas de montão (Pepi, Luci, Bom y otras chicas del montón, 1980)

4.1.1 Dados gerais32:

Produção: Fígaro Films Direção e Roteiro: Pedro Almodóvar Fotografia: Paco Femenia Edição: José Salcedo Cenografia: James Contreras Figurino: Manuela Camacho Canções: - "Muy cerca de ti" Música e Letra de Antonio Guijarro e Augusto Algueró hijo Interpretada por Olvido Gara

32 LE BERRE, 1995, pp. 10-11. Fonte dos dados: www.imdb.com

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- "Estaba escrito" Composta por Domingo e Moreu Interpretada por Monna Bell

- "Murciana" Interpretada por Olvido Gara

- "Tu loca juventud” Interpretada por Maleni Castro Produção Executiva: Félix Rotaeta Formato: 16 mm, cor. Duração: 82 min. Data de Lançamento: 27 de outubro de 1980 Distribuição: Alenda S.A. Elenco: Carmen Maura (Pepi), Félix Rotaeta (Policial e seu irmão gêmeo), Olvido Gara (Bom as Alaska), Eva Siva (Luci ou Luciana), Concha Grégori (Charito, a vizinha de Luci), Kiti Manver (Modelo e cantora), (protgonista do anúncio sobre flatulência), Julieta Serrano (mulher vestida como Scarlet O'Hara), Cristina Sánchez Pascual (mulher barbuda), José Luis Aguirre, Carlos Tristancho, Eusebio Lázaro, Fabio McNamara (Roxy), Assumpta Serna (Assumpta Rodes), Blanca Sánchez, Pastora Delgado, Carlos Lapuente, Ricardo Franco, James Contreras, Ceesepe, Ángela Fifa, Diego Álvarez (filho de Scarlet O’Hara), Pedro Miralles, Agustín Almodóvar, Enrique Naya, Juan Carrero, Tote Trenas, Fernando Hilbeck, Pedro Almodóvar (Mestre de Cerimônias), Javier Pérez Grueso. Créditos complementares: Produção: Pepón Coromina, Pastora Delgado, Paco Poch, Ester Rambal; Maquiagem: Juan Farsac; Gerente de Produção: Paco Poch; Assistente de Direção: Miguel Ángel Pérez Campos; Som: Miguel Ángel Polo (chefe), Antonio Bloch (assistente), José Maria Bloch (assistente); Assistente de câmera: Chus Rambal; Fotógrafo de still: Federico Ribes; Assistente de Câmera: Javier Serrano; Operador de câmera: Tote Trenas; Assistentes de Edição: Rosa Ortiz, Juan Ignacio San Mateo, Cristina Velasco; Transportes: James Contreras; Assistentes de produção: Pancho Alted, Juan Guerra, Carlos Lapuente, Armando Villar; Designer de título: Ceesepe; Supervisora de Roteiro: Eugenia Cuesta.

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4.1.2 Translado

Um travelling parte da janela da protagonista, mostrando pés de maconha plantados em vasos caseiros e expostos ao sol na sacada de um apartamento. Pepi (Carmem Maura) folheia um álbum de figurinhas adesivas do filme Superman. Um homem (Félix Rotaeta) toca a campainha e bate fortemente na porta. Pepi abre e ele se identifica como policial. Ao ameaçá-la pelo cultivo de mudas de maconha, Pepi resolve oferecer sua genitália para que ele se satisfaça oralmente. O policial aceita o convite e acaba tirando a virgindade de Pepi. Ela grita. Surge um letreiro: “Pepi está sedenta de vingança!”. A vítima de estupro sai à caça do policial e descobre onde ele mora. Vai em busca dos amigos, membros de uma banda de punk rock e lhes convoca para que se vinguem por ela. Os artistas da banda, caracterizados como chulapos, trovadores típicos em óbvia paródia a uma tradição cultural madrilenha, dublam uma canção dramática enquanto se aproximam do policial estuprador. Eles o cercam e batem nele com muita violência sob os olhos pervertidos de Pepi, que se excita com a cena. Após abandonarem o policial agredido na rua, todos voltam ao apartamento de Pepi e recolhem as mudas de maconha. No apartamento do policial o vemos lendo um jornal intitulado “El Imparcial”. Ele comenta: “Com tanta democracia em nosso país, não sei onde vamos chegar.” Descobrimos, na realidade, que a vítima dos amigos de Pepi foi o irmão gêmeo do policial, cheio de hematomas e todo enfaixado sentado à mesa onde faz uma refeição com a família. Pepi espreita seu real estuprador. É interrompida pela briga de uma cantora com seu agente no meio da rua. Luci (Eva Siva) está voltando do mercado para casa. Pepi se apresenta e pede a Luci que lhe dê aulas de tricô. Neste momento, entra a música de “Psicose”, de Hitchcock, enquanto um letreiro anuncia a primeira aula. Pepi flerta com Luci, que confessa a ela ter casado com um policial porque gosta de ser maltratada. Ela reclama no entanto, que ele não a maltrata o suficiente. Bom (Olvido Gara) chega ao apartamento de Pepi durante a aula de tricô e Luci fica fascinada. Pepi sugere então que Bom urine sobre Luci e ela o faz. Luci demonstra um imenso prazer com a urina de Bom que cai sobre seu rosto e corpo. Elas voltam à aula como se nada tivesse acontecido minutos depois. Luci segue para casa

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completamente molhada pela urina de Bom. O marido percebe algo errado e a questiona. Ela segue direto para a cozinha para preparar o almoço. Há uma festa com muitos jovens. Pela primeira vez, vemos o andrógino Fanny McNamara (parceiro de Almodóvar, a época, na banda de punk rock Almodóvar e McNamara). Uma seqüência mostra a discussão de uma mulher barbada histérica e estridente com seu marido num apartamento com vista para a festa. Pepi, Luci e Bom estão presentes ao evento. Bom e Luci se beijam e alguém as fotografa. Pepi compra a foto e diz que vai usá-la para chantagear o policial estuprador, marido de Luci. Almodóvar, o mestre de cerimônias do evento, anuncia as “Ereções Gerais”, concurso em que quem tiver o maior e mais belo pênis poderá fazer o que quiser com quem quiser na festa. O próprio Almodóvar mede os candidatos. Todos aplaudem enquanto Pepi grita as medidas. O marido da mulher barbada assiste à festa e eles acabam transando depois que ela se barbeou. O vencedor pede que Luci faça sexo oral com ele. Bom incentiva Luci, que o atende. Pepi está escrevendo um roteiro intitulado “Pepi, Luci y Bom”. O pai dela liga e a comunica que não enviará mais dinheiro para sua subsistência em Madri. Pepi joga tarô e esbarra num anúncio de trabalho com criação publicitária. Seduzida pela oferta, ela resolve se candidatar à vaga. Comerciais de produtos bizarros “interrompem” a narrativa. Os anúncios pretendem comercializar um produto anti- flatulência que evite constrangimentos à mulher durante um encontro sexual e o outro promete ser ao mesmo tempo calcinha e consolo. Percebemos, depois, que tratam-se de comerciais criados por Pepi em seu novo emprego. Ela os apresenta aos amigos numa sessão exclusiva na agência. Pepi, Luci e Bom passeiam por Madri. Luci confronta o marido sobre o estupro de Pepi e diz que está pagando a dívida dele com a moça ao se sujeitar a Bom e a dar aulas de tricô. Eles discutem e ela decide partir. O marido policial tenta denunciar a ex-esposa com base numa lei do regime franquista que obrigava a mulher a morrer ao lado do marido. Desesperado, o policial invade o apartamento de Pepi para tentar incriminá-la. Vemos na parede um grande poster da mulher maravilha. Depois de sua frustrada tentativa, em casa, vendo TV, o marido se delicia com uma revista pornográfica. A vizinha de Luci bate à porta e pergunta por ela. O marido de Luci finge ser o irmão gêmeo e a estupra.

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Vemos o Bonitomi Group numa apresentação introduzida por Fanny McNamara em trajes sumários. Esta é a banda em que Bom é vocalista. Enquanto a banda toca, vemos uma pessoa na platéia vomitando. Luci abraça Bom enquanto ela canta olhando para ela. Pepi dá instruções sobre uma fotonovela. Travelling sobre uma coleção de posters de mulheres nuas. A sombra mostra alguém treinando boxe, provavelmente um homem. Quando o plano se abre, vemos que trata-se de Bom que treina com um saco de areia. Ela maltrata e humilha Luci. Pepi oferece cocaína a Bom, que cheira uma carreira e oferece outra a Luci que, pela primeira vez, experimenta a droga. Luci imita Pepi e Bom desastradamente. Ela chega com uma bandeja e a equilibra enquanto lê um storyboard do filme de Pepi, “Pepi, Luci y Bom”. As três se dirigem à boate Flamencoroll. Uma mulher aparece na porta do clube vestida de Scarlet O’Hara. Luci sai, e vai ao estacionamento sozinha. Ela vê a mulher batendo no filho com seu grande chapéu. O ex-marido de Luci a espreita. Quando ela menos espera, ele a interpela e fala sobre a multa que ela terá que pagar por tê-lo abandonado. Luci não resiste aos apelos sádicos do marido, eles lutam e, excitados, transam sobre uma montanha de lixo no meio da rua enquanto ele a espanca. Pepi e Bom estão no ringue de treino de boxe. Elas seguem para casa. Na cozinha, Pepi prepara uma refeição. Bom fala de sua paixão por Pepi e flerta com ela. As duas se beijam. Almodóvar dá um close up na comida. Pepi e Bom comentam que estão há dez dias sem notícias de Luci. Por telegrama, ela avisa que está hospitalizada. Fanny McNamara, que recebe a correspondência do carteiro, se insinua histericamente para ele, que resiste às suas investidas. Luci está sob os cuidados do marido, o policial estuprador, e de sua vizinha, que também foi estuprada por ele. O marido ameaça batê-la novamente e Luci demonstra excitação. Pepi e Bom chegam ao hospital e aconselham Luci a expulsar o marido do quarto. Luci resiste e diz que merece alguém pior que Bom e que este alguém é seu marido — “Ele me odeia e não me perdoa pelo que fiz nos últimos meses.” — exclama ela. Pepi e Bom se despedem com raiva. Pepi convida Bom para morar com ela e sugere que ela mude de repertório e passe a cantar boleros, já que a moda punk está terminando.

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4.1.3 Observações críticas

O primeiro longa-metragem de Almodóvar surgiu a partir do incentivo de Carmem Maura e de seus amigos para que ele transformasse a história de “Ereções Gerais” num roteiro para um filme de longa-metragem a ser rodado em 16 mm pela primeira vez em sua carreira. Até então, ele só havia produzido filmes em Super 8. Almodóvar, na época, fazia um papel na encenação de “As mãos sujas”, de Jean- Paul Sartre em Madri ao lado de Carmem Maura. (STRAUSS, 2006, p. 11) Seu filme menos elaborado técnica e visualmente, “Pepi, Luci, Bom...” acaba incorporando a quantidade de imperfeições que apresenta como um estilo ligado ao grupo da movida madrileña. As principais inspirações para Almodóvar neste filme, segundo o próprio, foram os primeiros lançamentos de Paul Morrisey e Pink Flamingos do norte-americano John Waters. (STRAUSS, 2006, p. 13) Almodóvar comenta sobre o filme com Strauss:

Actually, Pepi explains this in the film: when you want to shoot a kind of documentary about people you know and present them as characters, the very nature of the project implies a certain manipulation of your friends, of their true personalities. Pepi tells Luci that her natural presence isn’t enough to bring out her truth on screen. She must play herself, not just be herself. She tells her cinema rain is fake because real rain doesn’t register on screen. This is exactly what interests me in cinema: cinema speaks of reality, of things which are true, but must become a representation of reality in order to be recognizable. There’s a very important difference between me and Morrisey or Warhol. They simply stuck their camera in front of the ‘characters’ and captured everything that happened. It’s very powerful cinema, but I’m not patient enough to wait for something to happen in front of my camera.33 (STRAUSS, 2006, p. 14)

Para D’Lugo, a narrativa descontínua do primeiro filme de Almodóvar representa a tensão política do processo de transição democrática. O diretor espanhol investia contra o cinema de autor da Espanha dos anos 70, reduzindo a memória do regime franquista a situações altamente paródicas como o episódio das “Ereções Gerais”. (D’LUGO, 2006, p. 24)

33 Na verdade, Pepi explica isto no filme: quando você quer filmar um tipo de documentário sobre pessoas que você conhece e apresentá-las como personagens, a natureza do projeto implica uma manipulação de seus amigos, de suas verdadeiras personalidades. Pepi conta a Luci que sua presença natural não é suficiente para que a verdade surja na tela. Ela precisa atuar, não apenas ser ela mesma. Ela afirma que a chuva em seu cinema é falsa porque a chuva real não fica registrada na tela. Isto é exatamente o que me interessa no cinema: o cinema fala da realidade, de coisas que são verdadeiras, mas deve se tornar uma representação da realidade de forma a ser reconhecível. Existe uma diferença importante entre mim e Morrisey ou Warhol. Eles simplesmente colocavam a câmera diante dos ‘personagens’ e capturavam tudo o que acontecia. É um tipo de cinema poderoso, mas eu não sou paciente o suficiente para esperar que algo aconteça na frente de minha câmera. (tradução nossa)

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Acevedo-Muñoz reconhece no primeiro filme de Almodóvar todas as referências que fundamentarão seu trabalho futuro. A inspiração mais óbvia é a cultura jovem britânica dos anos 60 e 70, em especial o movimento punk. O filme revela os interesses da nova juventude madrilenha em moda, música, drogas e álcool. (ACEVEDO-MUÑOZ, 2007, p. 8) Para o autor, desde os créditos de abertura que são desenhados a mão, Almodóvar representa uma espécie de estética do mau gosto. Diz ele: “Almodóvar’s characters and dramatic situations are introduced as caricatures: exaggerating features, narrative plausibility and emphasizing marginality.”34 (ACEVEDO-MUÑOZ, 2007, p. 9 – grifo nosso) O policial estuprador, segundo o autor, representa o risco de um retorno ao período ditatorial. Ele se ressente da liberdade alcançada pelos espanhóis a partir do coroamento do Rei Juan Carlos. O personagem é um criminoso, estuprador, fascista, misógino e sádico. (ACEVEDO-MUÑOZ, 2007, p. 12) Muñoz destaca: Almodóvar’s presents us with a cast of characters who represent opposing political extremes on the one hand, a caricature of Spain’s recent past under Franco and on the other hand, an exaggerated portrait of what ‘freedom’ and ‘so much democracy’ meant for his generation, whose members grew up dramatically repressed yet were to attain all sorts of personal and public freedoms.” […] “Part of Almodóvar’s strategy is to take the ‘underground’ characters of his earlier career as a magazine illustrator and columnist (such as Bom’s world of musicians, southern immigrants and loud music) and transfer them from the margins to the centre, placing them ‘over ground’. The world of Pepi, Luci, Bom and Other Girls On the Heap emphasizes the potentially traumatic transition from an authoritarian regime to democracy, and from marginality to centrality, presenting us with one of Almodóvar’s most consistent themes and one that ultimately has emerged at the most recurring of his authorial arch: the reconstitution of ‘the family’. 35(ACEVEDO-MUÑOZ, 2007, p. 14)

Pepi, Luci, Bom y otras Chicas del Montón é visto por Eduardo Peñuela Cañizal como uma película que se inspira no movimento pop, apresentando um roteiro corrosivo e ironicamente amoral. Para o autor, o impacto deste filme na cinematografia espanhola pode ser comparado ao que Les Demoiselles d’Avignon, de Picasso, causou em seu tempo na pintura. Pedro Almodóvar é um autodidata. Em

34 Os personagens e situações dramáticas de Almodóvar são apresentados como caricaturas: aspectos exagerados, plausibilidade narrativa e ênfase na marginalidade. (tradução nossa) 35 Almodóvar apresenta um elenco de personagens que representa extremos políticos opostos, por um lado, uma caricatura do passado recente da Espanha sob o domínio de Franco e, por outro lado, um retrato exagerado do que a liberdade e tanta democracia significaram para sua geração, cujos membros cresceram dramaticamente reprimidos embora tenham conquistado pôsteriormente todo tipo de liberdade pessoal e pública […] Parte da estratégia de Almodóvar é usar os personagens underground do início de sua carreira como ilustrador de revistas e colunista (como o mundo dos músicos de Bom, imigrantes do Sul e música alta) e transferí-los das margens para o centro, posicionando-os na superfície ou ‘over ground’. O mundo de Pepi, Luci, Bom y otras chicas del montón enfatiza a transição potencialmente traumática de um regime autoritário para a democracia, e da marginalidade para a centralidade, apresentando-nos um dos temas mais consistentes do direitor e que emerge como o mais autoral deles: a reconstituição da família. (tradução nossa)

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seu primeiro longa, Cañizal identifica “marcas de um momento cultural abertamente comprometido com a dinâmica das reformulações sem que isso signifique, contudo, uma ruptura radical com a tradição.” (Cañizal, 1996, p. 14). Em 1980, García de León e Maldonado, citadas por Cañizal, observavam que a produção cinematográfica espanhola encontrava-se num processo de degradação e estava marcada pela “espanholada”, um subgênero em que os diretores exploravam estereótipos criados por franceses sobre o exotismo da cultura e das paisagens da Andaluzia. A participação do cinema neste período na transformação da sociedade espanhola não foi tão importante quanto a de outros meios de comunicação como os jornais e a televisão. (Cañizal, 1996, pp. 14-5). Conforme conceituado por Christian Metz, o fato cinematográfico se diferencia do fato fílmico. O primeiro constitui o que é o cinema antes da realização do filme, isto é, suas condições de produção, legislação e tecnologias. Já o segundo trata-se do texto resultante do processo de produção, que, ao ser lançado, vai se relacionar com outros textos. Conforme constata Peñizal, as condições para a produção cinematográfica na Espanha continuam sendo insuficientes ainda hoje. (Cañizal, 1996, p. 16). O autor vê, no primeiro longa de Almodóvar, uma vinculação com a tradição do cinema espanhol. Ele identifica, no filme, a construção de um relato distante do falocentrismo, que caracteriza grande parte da produção audiovisual contemporânea, ditando o gosto de milhões de pessoas. Cañizal vê na filmografia do diretor espanhol a construção de uma poética da família e a não filiação a um único gênero cinematográfico. (Cañizal, 1996, p. 18). Para ele, Almodóvar se utiliza da auto-referencialidade no tratamento que dá à poética da família. Cañizal demonstra que o diretor se destaca em relação a outros realizadores do cinema espanhol de início dos anos 80, cujas abordagens do tema família ficaram datadas. Um outro aspecto importante a ser destacado é o uso de Madri como ponto de referência do filme, quando, por exemplo, Almodóvar retrata indivíduos estereotipados que circulam pela cidade. (Cañizal, 1996, p. 32).

Mais importante, contudo, do que essa contagiante alegria, sempre, no final das contas, algo que pode ser simulado pelo desempenho dos atores, são as reminiscências que ficaram no enunciado do filme de uma enunciação construída sob a égide do gozo. (CAÑIZAL, 1996, p. 32)

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O autor interpreta que em “Pepi, Luci, Bom e outras garotas de montão”, Almodóvar investe contra a verossimilhança ao fragmentar a continuidade, inserindo elementos que não criticam nem os fatos históricos nem a realidade cotidiana.

4.1.4 Representações da marginalidade em “Pepi, Luci, Bom...”

Ao observarmos, com mais atenção, as protagonistas do filme, podemos destacar algumas de suas características em relação à visão de marginalidade trabalhada por Goffman, Becker, Elias e Yoshino. Neste primeiro longa-metragem, Almodóvar posiciona, no centro da narrativa, três mulheres, cada uma delas simbolizando uma concepção de feminilidade possível no início da década de 80 na Espanha da transição. Ao dar voz a estas mulheres, o diretor já opera um deslocamento no discurso hegemônico do cinema espanhol do período. Poucos anos antes, as esposas eram obrigadas a obedecer a uma legislação que as categorizava como espécie de “posse” de seus maridos. As três personagens experimentam, ao longo da narrativa do filme, um processo de libertação análogo ao ocorrido na Espanha. Pepi livra-se do jugo do pai, o macho provedor, com o qual temos contato apenas numa breve cena em que ele a informa, por telefone, que está cortando sua mesada. Ironicamente, ela vai buscar um emprego numa agência publicitária. Almodóvar aqui tece um comentário sarcástico sobre a sociedade de consumo e o regime neoliberal e sua promessa de liberdade. Pepi precisa, ainda assim, se submeter a uma ordem de produção que não é mais a da cozinha, da lavanderia, da faxina em casa, tampouco do entretenimento sexual burocrático com um possível marido. Nesta ordem de produção, Pepi vende itens que indicam para as novas mulheres da Espanha: agora vocês estão livres da ditadura do General Franco, do autoritarismo dos irmãos castradores, da religião que lhes impinge o sufocamento do desejo sexual e a sua restrição apenas para fins reprodutivos; agora, vocês estão livres para exercerem suas liberdades na metrópole. Mas, ainda assim, suas libidos são controladas para reproduzir o processo de produção e consumo de mercadorias e a inequívoca submissão de qualquer força criativa a este processo: para ter acesso a esta pretensa liberdade, vocês terão que se integrar a um processo produtivo, sem muitos questionamentos. No conjunto de filmes que D’Lugo reúne sob a alcunha de exemplares da “estética do mau gosto”, Almodóvar lança aos espectadores a sua interpretação do que representa o processo de

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democratização na Espanha. A cena que melhor representa este momento é a seqüência do estupro que inicia o filme (ele utilizará cenas de violação em diversos longas, como “Matador”, “Kika”, “De salto alto” entre outros). A sociedade de consumo e as facilidades das novas tecnologias de informação e comunicação penetram a alma feminina e liberam nas protagonistas o desejo de realizarem tudo aquilo que não puderam fazer enquanto tiveram que se submeter ao jugo patriarcal. A ordem do pai é substituída agora pela ordem do capital. As novas mulheres estão dispostas a pagar o preço, ou pelo menos tentar se adequar a nova realidade. Almodóvar nos mostrará, mais tarde, em “O que eu fiz para merecer isto?”, o preço pago por esta liberdade conquistada a duras penas. O policial, que, teoricamente, deveria zelar pela integridade física e moral de Pepi, em negociação com ela, se corrompe, e aceita seus favores sexuais em troca de não levá-la para a delegacia. Ela cultiva mudas de maconha em casa. Segundo a ordem jurídica e os valores da família burguesa patriarcal capitalista branca masculina ocidental, Pepi é uma marginal, uma outsider. Mas não só por isso: ela é uma outsider também porque mora sozinha numa grande cidade que vive um contexto de liberação (aparente) de costumes. A vingança de Pepi contra o policial fascistoíde é a vingança de todos aqueles que durante anos de regime ditatorial na Espanha tiveram suas liberdades de expressão subsumidas em nome de uma ordem que privilegiou um certo estilo de vida e de racionalidade, mas que não resultou no desenvolvimento econômico prometido. À época da transição, a Espanha, certa vez, ponta de lança no processo de expansão político-econômica da Europa, era vista por outras nações do continente como um país exótico e atrasado econômica e culturalmente. Ao retratar Pepi como publicitária, Almodóvar parodia a incorporação da criatividade artística pelo sistema da sociedade do espetáculo, a sociedade de consumo em que a primazia da imagem, do valor de troca sobre o valor de uso, determina a inserção social do sujeito. Luci é a mulher alienada, dona-de-casa submissa ao marido, masoquista: ela diz a Pepi e Bom que se casou com um policial porque imaginou que ele a trataria mal intensamente, no entanto, como não vinha realizando seu desejo, ela resolve atender aos apelos das duas e se junta a elas numa espécie de triângulo amoroso lésbico. Uma das cenas que melhor denotam o “mau gosto” na representação da marginalidade neste filme é aquela em que Luci se regozija com jatos de urina jorrados por Bom sobre ela no apartamento de Pepi, enquanto esta tentava aprender

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pontos de tricô. Almodóvar aponta, claramente, para uma mudança radical na figuração do desejo feminino no cinema. O mais interessante é que Luci retorna para casa após a aula completamente suja de urina, tem uma breve discussão doméstica com o marido e dirige-se para a cozinha como se nada tivesse acontecido. Luci, a mulher tradicional espanhola, passa por um breve período de aprendizado de novos comportamentos e atitudes: ela vai desenvolver o que Goffman e Becker chamam de carreira marginal. Sua relação com Bom, no entanto, não se mostra suficientemente perversa, e ela volta para o marido estuprador no fim do filme, deixando Bom livre para relacionar-se com Pepi. Talvez Almodóvar tenha representado aqui a possibilidade de um retrocesso na conquista das liberdades democráticas. Bom é uma adolescente, vocalista de uma banda punk, lésbica convicta. Das três personagens, ela é a que melhor representa a nova juventude espanhola em busca de uma identidade que se relacione, ao mesmo tempo, com um conjunto de códigos ético-estéticos internacionais e com a autenticidade do futuro democrático. Bom é a personagem mais representativa da transitividade de gênero sobre a qual Almodóvar trabalhará em obras futuras. Em oposição à polaridade homem X mulher, feminino X masculino, Almodóvar nos apresenta uma personagem que transita por ambos os códigos de comportamento sem culpas. Bom é lésbica, hedonista, dominadora e fashion. De certa maneira, a sua autenticidade está referenciada na negação absoluta dos valores do passado e na valorização extrema do presente. Bom parece não se preocupar muito com o futuro. Na cena final, quando ela aceita o convite de Pepi para morar com ela, surge no filme o tema da reconstituição da família tão bem desenvolvido pelos críticos citados anteriormente. Mas uma nova família, uma família cuja configuração aponta para uma sociedade ainda por vir e sobre a qual Almodóvar prefere não fazer previsões.

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4.2 Labirinto de Paixões (Laberinto de Pasiones, 1982)

4.2.1 Dados gerais36:

Produção: Alphaville S.A. Direção: Pedro Almodóvar Roteiro: Pedro Almodóvar e Terry Lennox Fotografia: Ángel Luiz Fernández Edição: Miguel Fernández, Pablo Pérez Minguez, José Salcedo Cenografia: Virginia Rubio Figurino: Alfredo Caral, Marina Rodríguez. Trilha sonora: Bernardo Bonezzi e Fabio McNamara

Canções:

- “Suck It to Me” Composta por Pedro Almodóvar, Fabio McNamara (cred. como Fabio de Miguel) e Bernardo Bonezzi Interpretada por Pedro Almodóvar e Fabio McNamara

- “Gran ganga” Composta por Pedro Almodóvar e Bernardo Bonezzi Interpretada por Pedro Almodóvar e Fabio McNamara

Produção Executiva: Pedro Almodóvar Formato: 35 mm, cor. Duração: 100 min. Data de Lançamento: 29 de setembro de 1982 Distribuição: Musidora Fil Cinemussy S.L. Elenco: Cecilia Roth (Sexilia e irmã gêmea), Imanol Arias (Riza Niro), Helga Liné (Toraya), Marta Fernández Muro (Queti), Fernando Vivanco (Médico), Ofelia Angélica (Susana), Ángel Alcázar (Eusébio), Concha Grégori (Angústias), Cristina

36 LE BERRE, 1995, pp. 10-11. Fonte dos dados: www.imdb.com

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Sánche Pascual (namorada de Eusébio), Fabio McNamara (Fabio, como Fany McNamara), (Sadec), Luis Ciges (Dono da lavanderia), Agustín Almodóvar (Hassan), María Elena Flores (Remedios), Ana Trigo (Nana), Poch (Gonzalo), Javier Pérez Grueso (Santi), Santiago Auserón (Ángel), Paco Pérez Brián (Manuel Ángel), José Carlos Quirós (Ali), Eva Siva (Azafata), Charly Bravo (Homem), Zulema Katz (Paciente), Marcela Amaya (Empregada Cubana), Jesús Cracio (Jaime Roca), Mercedes Juste (Ana), Lupe Barrado (Arrumadeira), Javier Ulacia (Garçom), Teresa Tomás (Mãe de Angustias), Socorro Siva (Assistente do Estúdio de Gravação), María del Carmen Castro (Menina do Teste), Eva Carrero (Sexilia, criança), Helena Ramos (Vendedora), Pedro Almodóvar (como ele mesmo), Costus, Carlos García Berlanga, Ouka Lele, Pablo Pérez Mínguez, Guillermo Pérez Villalta.

Créditos complementares: Design de Produção: Pedro Almodóvar e Andrés Santana; Maquiagem: Beatriz Álvarez e Fernando Pérez Sobrino; Gerentes de Produção: José Luis Arroyo, Félix Rodríguez e Andrés Santana; Assistente de Direção: Miguel Ángel Pérez Campos; Som: Luis Castro, Armin Fausten, Enrique Molinero, Martin Müller e Jesús Peña; Efeitos especiais: Sixto Rincón; Assistente de Câmera: Miguel Fernández e Antonio Fernández Santamaría; Operador de Câmera: Salvador Gómez Calle; Técnico de Luz: Carlos Miguel; Fotógrafo de Still: Pablo Pérez Mínguez; Eletricista: Fulgencio Rodríguez; Técnico de Luz: Miguel Ángel Rodríguez; Assistentes de Edição: Rosa Ortiz e Cristina Velasco; Música: Ana Pegamoide, Eduardo Pegamoide e Nacho Pegamoide; Transportes: Ángel Megino; Administração: Julio Liz e Luis José Rivera.

4.2.2 Translado

A seqüência de abertura mostra um grande flea market em Madri, chamado Rastro. Uma panorâmica aérea registra a multidão no fluxo urbano. Sexilia (Cecilia Roth, curiosamente ganhou um nome de personagem similiar a seu nome real), a protagonista do filme, passeia como uma flanêuse pelo mercado. Todos usam roupas típicas dos anos 80. Jaquetas de couro cintadas com ombros largos e estruturados. Óculos escuros. Corta para uma sugestiva cena de um varal de óculos

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escuros com lentes espelhadas. Nestas lentes, vemos o reflexo de um homem experimentando diversos modelos. Podemos considerar essa cena uma metáfora da importância de diferentes pontos de vista em Almodóvar. Close ups de Sexilia com expressão de desejo são intercalados com tomadas de quadris masculinos com calças justas. O corpo do homem surge como objeto de desejo sexual de maneira explícita. A tradicional visão masculina do corpo da mulher é transportada para o olhar de Sexilia. A visão do homem pela visão da mulher. Visão frontal e traseira. Sob o letreiro que anuncia o título do filme, vemos o protagonista, aquele homem que vimos refletido nas lentes dos óculos no flea market. O olhar do homem se confunde com o olhar da mulher. Desejo de homem e desejo de mulher são equiparados por meio do olhar. Permanece a inserção de takes de quadris masculinos. Provavelmente, o homem é gay. Ele senta num café e lê jornal. Interessa-se pela notícia de reprodução assexuada de aves. Mas o que mais lhe chama atenção é a manchete sobre o refúgio do Imperador de Tirã na ilha de Contadora. Seria Tirã um reino sátira do reino tirânico de Franco? E a Ilha Contadora poderia ser uma referência paródica à evasão de divisas praticada por governantes autoritários com freqüência? Dois punks numa mesa próxima conversam sobre tédio. A moça lembra muito o visual de Cyndi Lauper. O homem lê outra notícia sobre Patty Diphusa numa revista de celebridades. A foto de Patty é de Fanny McNamara travestido, o mesmo ator que interpreta um dos punks da mesa ao lado. Fanny cheira esmalte entusiasmadamente e exclama: “Que overdose!” Sua amiga o imita. Cada um bebe dois drinks ao mesmo tempo com canudinhos. Fanny repete: “Que overdose!” Ele vê o homem e pede um batom à amiga, que prontamente o atende. Escreve um bilhete e pede ao garçom que o entregue ao homem que lê o jornal. Ele corresponde às investidas de Fanny, que se aproxima avisando: “Alô, alô para todas!” Os dois saem para um encontro sexual casual. Sexilia está rodeada por três homens. Ela quer fazer uma festa com música, álcool, drogas, vídeos pornográficos e os convida. Vemos o que parece ser uma cena doméstica. Uma mulher passa roupa. Ela diz: “Além dos homens, o que mais me excita é o jogo. Apostar em qualquer coisa.”. Descobrimos, surpreendentemente, que trata-se da psicóloga de Sexilia e que ela está na sessão de terapia. Sexilia comenta que foi para cama com oito ou dez homens. A mulher exclama: “Você é

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ninfomaníaca!”. A psicóloga a recrimina e a explica sobre o Complexo de Electra, fazendo uma referência à psicanálise freudiana. Ela acaba confessando que quer “comer” o pai de Sexilia e liga para ele. Ela o convida para sair e ele se recusa veementemente. O pai de Sexilia é Dr. De La Peña, bioginecologista e pai da inseminação artificial. A psicóloga parece tão viciada quanto Sexilia: em homens, apostas e comida. Num coquetel, Susana Dias, a psicóloga de Sexilia encontra Dr. De La Peña e se apresenta como psicanalista lacaniana. Ele comenta que Sexilia tem fotofobia e só sai do quarto depois das 17h. Almodóvar recorre a três ou quatro flashbacks nos primeiros dez minutos do filme. Vemos o Imperador de Tirã de costas, como uma típica figura patriarcal. Dr. De La Peña comenta com a princesa que ele queria ter muitos filhos, que meia nação tivesse seu sangue. Daí a origem de suas pesquisas para a inseminação. Na sala de espera do consultório vemos duas mulheres conversando: “Filhos não trazem felicidade. Desista da inseminação artificial. Se é estéril, permaneça assim.” A mãe afirma que se arrepende de ter tido a filha para uma mulher que aguarda a consulta. A filha aparenta ser mais equilibrada que a mãe. Ela calmamente lê um livro. Dr. De La Peña pergunta o que ela lê. A mulher revela sua frustração: fez a inseminação artificial para satisfazer o ex-marido. Quando chegou em casa, ele as havia abandonado. Um homem passa roupa numa lavanderia (há uma relação desta cena com a da Dr. Susana). Ele é usuário de Vitopens, remédio que proporciona ereção por tempo prolongado. Sexilia chega e entrega um saco de roupas. Interrompendo a balconista que recortava notícias no jornal. Sexilia veste um extravagante casaco de peles vermelho. A atendente confere as peças no saco e Sexilia sai, indiferente. A balconista, imediatamente cheira as roupas dela com desejo. Ela põe o vestido de Sexilia sobre seu corpo e faz uma pose sexy diante de um espelho (como Eve Harrington com o vestido de Margo Channing em “A malvada”). A balconista da lavanderia aparece cozinhando uma refeição. Ela se chama Queti (Marta Fernández Muro) e é filha do dono da lavanderia. Ela serve chá ao pai após seu banho. Coloca o tranqüilizante veterinário na bebida. O pai pede à filha que passe um creme em suas costas. Ele a leva ao quarto e, numa espécie de prelúdio à “Ata-me”, amarra a filha à cama. Na tomada vemos os braços estendidos

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de Queti e seus seios enquanto sobre ela vemos o crucifixo. O pai diz: “Você gosta assim. Você é uma pervertida.” O filho do imperador de Tirã está exilado em Madri e aproveita a flanêrie para fazer “pegação”. Entra em cena, pela primeira vez, então, o jovem Antonio Banderas no papel de um imigrante árabe gay. A seqüência alterna o foco na pegação dos dois e no telefonema da princesa ao rei sobre sua fertilidade. No muro atrás deles, vê-se uma pixação: MOD. Nenhum dos dois personagens homossexuais nesta cena aparentam homossexualidade. No quarto da personagem de Antonio Banderas vêem-se pôsters de Julio Iglesias e de nus masculinos. Há um espelho que registra o verso da cena em quadro. Sadec (Banderas) despe Riza (Arias). A cena é explicitamente homoafetiva, com beijo. Riza está usando o banheiro depois da transa. Ao lado do espelho, vemos uma foto de Sadec travestido com uma espécie de burca. Riza comenta sobre o assunto e se retira ao descobrir que Sadec é de Tirã. Há um pôster de Bruce Lee também. Descobrimos que Sadec e aqueles que moram com ele no apartamento são todos terroristas de Tirã. Eles querem matar Riza. Sadec possui um olfato especial, como um superpoder. Numa sessão de fotos, vemos Fanny se deleitando ao ser imaginariamente ferido com uma furadeira real. Almodóvar dirige a fotonovela com entusiasmo. Abre o plano. Vemos Riza. Almodóvar repete o subtexto para a foto como se falasse de si mesmo como diretor do filme: “Um sádico está me destroçando e preciso esperar que ele acabe comigo.” Intervalo da produção da fotonovela. Fanny dirige-se a Riza e diz que seu figurino tem o nome de “Soft queen killerman” (algo como “Suave bicha assassina”). Estamos num show musical. Almodóvar sobe ao palco com McNamara e eles cantam “Suck it to me”. A letra enumera uma série de drogas: cocaína, heroína, maconha, efedrina etc. Riza está no camarim de “Eles”, a atração principal da noite que deveria se apresentar depois de Almodóvar e McNamara e da banda de Sexilia. Ela joga uma casca de banana e o vocalista de “Eles” tropeça e cai. Riza é promovido à vocalista. Vemos um display de filme fotográfico Kodak no camarim (merchandising?). Após a apresentação, a banda fecha contrato com a gravadora Sonovox. Em close, alguém prepara espessas carreiras de cocaína. Sexilia está fazendo sexo com dois homens. Ela dá uma desculpa e vai embora. Pega o metrô. Usa uma capa vermelha (chapeuzinho?). Sexilia chega ao

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apartamento de Riza. Ele revela sua verdadeira identidade para ela. Sexilia diz que ele deve manter sua identidade em segredo para os outros. Depois de encontrar o amor, ela não caminha mais pela cidade. Usa um táxi e flagra Queti passeando com uma roupa sua que havia deixado na lavanderia. Sexilia sai do táxi e vai tirar satisfações com Queti. As duas acabam entrando no táxi. Sexilia resolve dar uma carona a Queti. — Gosta de música? — pergunta Sexilia. — É a única coisa que me faz esquecer de mim mesma. — responde Queti. Ela então conta a Sex sobre os abusos incestuosos do pai. Queti faz terapia com Sex. No fim das contas ela comenta: — Mas a gente acaba se acostumando a tudo. Sexilia consulta um amigo especialista em química e ele receita um antídoto contra o Vitopens para evitar que Queti continue a ser estuprada pelo pai. Em mais uma cena de roupa passada, uma esbelta e bonita passadeira entrega camisas a Dr. De La Peña. Queti entra no quarto de Sexilia e observa a decoração: as paredes são cobertas com cenas de orgias gregas. Ficamos sabendo que a mãe de Sexilia morreu faz tempo. Em “Labirinto”, é o pai que está presente. As amigas da banda de Sex chegam e são apresentadas a Queti: Angustias e Nana. Elas começam a ter uma conversa típica de mulheres sobre segredos de beleza. Nana tira da bolsa um chiclete. Queti pede de hortelã ou menta. Ela diz: “Tenho elétrico e de borracha.” e puxa um consolo enorme. Todas riem. Um dos membros de “Eles” alerta Riza sobre a ninfomania de Sexilia. O visual de Riza lembra o de Sid Vicious. Sadec fareja o homem com quem transou na capa de revista e descobre que ele é Riza Niro. Sexi ajuda Queti a fugir do pai. Como está apaixonada, ela resolve não transar com Riza. Eles conversam sobre sexo. A princesa veste-se androginamente e pergunta à camareira “Eu sou bela?”, que a responde, “Como nas revistas.” Toraya vai a um ponto de pegação gay procurar Riza. Ela vê o underground gay de Madri. A esposa do tintureiro volta para ele. Ela se chama Remedios. Em “Labirinto de Paixões”, o homem é vítima do abandono das mulheres. A psicanalista consegue por poucos minutos a atenção de Dr. De La Peña. Ela diz, como um homem diria a uma mulher: “Quero transar com você.”. Dr. De La Peña confessa que nunca se interessou por sexo, que há algo sujo e repugnante na união de dois corpos.

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A princesa Toraya se insinua para Riza no hotel e o leva para cama. Sexilia os flagra e descobre que Toraya tirou a virgindade de Riza (não acontece em geral o contrário, os homens tiram a virgindade das mulheres?). Durante o show, a luz do holofote provoca um flashback em Sexilia. No quarto do hotel, o reflexo da luz do espelho de estojo de pó de arroz da princesa faz Sexi relembrar seu trauma de infância. Ela se desilude com a traição de Riza. Foge em busca de sua terapeuta. Sexilia lembra-se de ter conhecido Riza na infância e ter sido censurada por Toraya, que os flagrou. Toraya abusou de Riza quando ele era criança. “Não me rejeite como seu pai!”, exclamava ela. Sexilia foi rejeitada por Riza na infância e pelo pai que disse estar ocupado. Ao ver um grupo de cinco meninos, resolve entregar-se a eles. Riza rejeita Toraya, finalmente, e acaba flagrando Sexilia sendo despida pelos garotos atrás de uma moita na praia. Um dos meninos se levanta e se retira com Riza da cena, como se fosse se divertir sexualmente com ele também, em separado. Descobrimos que Sexilia tem uma irmã gêmea. A vítima do abuso, na verdade, foi sua irmã e não ela. Há uma ligação paranormal entre as duas. Surge, pela primeira vez, o figurino que fez a fama de Jean-Paul Gaultier com Madonna — os seios que perfuram a roupa ensangüentada. Riza é descoberto pelos terroristas e foge para o aeroporto. A recepcionista defeca antes de chegar ao banheiro. Riza confessa que até conhecer Sexilia só gostava de homens. A recepcionista histérica no aeroporto é a mãe desnaturada da “menina de proveta”. A princesa Toraya é seqüestrada no lugar de Riza. Dr. de La Peña aparece na cama com a irmã gêmea de Sexilia e diz: “— Como poderia falar de sexo se não sabia o que era?” Em referência à famosa frase de Mae West, a recepcionista fala: — Como amiga sou fantástica, mas como inimiga sou muito melhor. Ouvimos gemidos de prazer enquanto o avião aparece em decolagem rumo à Ilha Contadora.

4.2.3 Observações críticas

Em entrevista a Strauss, Almodóvar reconhece “Labirinto de paixões” como uma produção claramente inspirada nas screwball comedies. Ele cita como uma referência importante o filme Easy Living dirigido por Mitchell Leisen nos anos 30. (STRAUSS, 2006, p. 22)

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A história está centrada nas dificuldades de um casal para desenvolver seu relacionamento, no caso, Sexilia e Riza. Almodóvar aponta que estas dificuldades se originam do fato de ambos terem o mesmo tipo de comportamento sexual. Neste caso, poderíamos nos questionar, se ao fazer isso, ao retratar uma relação em cujos papéis sexuais desempenhados por homem e mulher são idênticos em termos de performatividade, não estaria Almodóvar defendendo que homens e mulheres devem ter comportamentos diferentes, uma vez que ao retratar a identidade das formas de lidar com o sexo de Sexi e Riza ele o faz por meio da dificuldade que eles tem a partir disso. Não seria mais contemporâneo ou pretensamente ‘feminista’ defender a idéia de que ao comportarem-se similarmente, homem e mulher se realizam e não se frustram? Almodóvar reconhece, em entrevista a Strauss, que o tema foi inspirado no remake de Cat People com Natassia Kinski e Malcolm McDowell, dirigido por Paul Shrader. (STRAUSS, 2006, p. 23). Ele retoma a questão mais tarde em Matador. O filme foi produzido no ápice da movida madrileña, entre 1977 e 1983. Como afirma D’Lugo, na época de seu lançamento, “Labirinto de Paixões” foi duramente criticado pela imprensa especializada na Espanha. Para os críticos de cinema espanhóis, Almodóvar já demonstrava estar fazendo concessões ao circuito comercial e suas provocações não surtiram o mesmo efeito que o obtido no projeto anterior. O fato levou Almodóvar a defender publicamente o filme, recorrendo ao argumento que se tratava de uma comédia com inspiração na produção cômica de Billy Wilder. (D’LUGO, 2006, p. 26) Chama a atenção em “Labirinto”, o uso intensivo de referências ao universo da psicanálise. A estrutura do roteiro está toda baseada no Complexo de Édipo, e o diretor espanhol recorre a flashbacks para explicar os traumas de Sexi e Riza. Se, por um lado, ele zomba do profissional de psicanálise que aparece como um ser humano tão suscetível a vícios e obsessões quanto quaisquer outros, por outro, a estrutura da história confere credibilidade a esse discurso psicanálitico e já demonstra a importância de Hitchcock para a análise crítica de sua produção como um todo. (D’LUGO, 2006, p. 27) No fim das contas, os ‘distúrbios’ sexuais de Sexi e Riza são corrigidos. Não seria esse um final conservador, apesar de todas as provocações que Almodóvar faz durante o filme para chocar o espectador? D’Lugo, enfim, atesta que:

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In this way, the film underscores the rejection of patriarchal desire as one of the mechanisms propelling the plot, while at the same time mocking all forms of psychoanalytic solutions to the questions of desire. […] Alberto Mira locates the conceptual center of the film in its gay camp project, which, among other things, poses a parodic attitude toward all scientific discourses, specially those related to sexuality. (Sodoma, 558). Thus, the centrality of gay and cross-dressing characters (Imanol Arias and Antonio Banderas, in their film debuts, and Fanny MacNamara) challenges social authority embodied in science and patriarchal figures like the misogynist gynecologist. […] Madrid becomes the ubiquitous protagonist of the film, embodying the rejection of figures of patriarchal authority. This affirmation of Madrid displacing Paris or New York as a cultural model must be read within the logic of the contemporary culture of the decade of Transition. Rejecting the grey city of Francoism and the Europeanism of the cinema of quality, Almodóvar’s Madrid introduces us to a street culture that glorifies the youth and drug scene so identified with La movida. 37(D’LUGO, 2006, p. 27-8)

Muñoz interpreta “Labirinto” como uma crônica da Madri onde eclodiu a movida, o movimento de vanguarda com acentos pop e punk ocorrido durante o período de transição para a democracia. Para o autor, a caricatura da psicanálise é um aspecto fundamental para o entendimento deste filme em particular, em concordância com D’Lugo. (ACEVEDO-MUÑOZ, 2007, pp. 26-27) Os temas de maior destaque na produção são: crise de identidade, trauma sexual, incesto e abuso patriarcal. O filme não exclui, entretanto, comentários políticos quando a personagem Queti fala que qualquer um com o tempo, se acostuma a tudo. Muñoz identifica essa fala como uma referência ao regime franquista. Ao contrário do que o próprio Almodóvar comenta em entrevistas a Strauss, Franco está presente em seus filmes iniciais. As “Ereções Gerais”, fragmento que deu origem a “Pepi...”, são uma paródia ao processo político espanhol. Parece-nos que o próprio diretor subestima a potencialidade ideológica de sua produção.

4.2.4 Representações da marginalidade em “Labirinto de Paixões”

Neste filme, Almodóvar representa a equivalência das libidos masculina e feminina, por meio das personagens Sexilia e Riza, ao mesmo tempo em que

37 Desta maneira, o filme retrata a rejeição do desejo patriarcal como um dos mecanismos que motiva a trama, enquanto ao mesmo tempo stiriza todas as formas de soluções psicanalíticas para as questões do desejo. […] Alberto Mira localiza o centro conceiitual do filme em seu projeto gay camp, que, entre outras coisas, coloca uma posição paródica sobre todos os discursos científicos, especialmente àqueles relacionados à sexualidade. (Sodoma, 558). Portanto, a centralidade de personagens gays e travestidos (Imanol Arias e Antonio Banderas, em suas estréias no cinema, além de Fanny MacNamara) desafiam a autoridade social representada pela ciência e por figuras patriarcais como o ginecologista misógino. […] Madri torna-se a protagonista do filme, incorporando a rejeição de figuras de autoridade patriarcal. Esta afirmação de Madri como uma metrópole que desbanca Paris ou Nova Iorque como modelo cultural deve ser interpretada a partir da lógica da cultura contemporânea da década da transição. Rejeitando a cidade cinzenta do franquismo e o cinema de qualidade européia, a Madri de Almodóvar apresenta-nos uma cultura urbana que glorifica a juventude e a cena das drogas tão identificada com La movida. (tradução nossa)

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parodia o discurso psicanalítico criado para explicar o comportamento sexual de homens e mulheres com base nas categorias de gênero tradicionais. A figura de linguagem cinematográfica mais utilizada pelo autor no filme é o flashback, que serve para mostrar as origens dos traumas dos personagens principais. Em vários pontos da narrativa, ele faz uso deste recurso para localizar no passado do personagem um evento que tenha dado origem a um determinado desvio: para Sexilia, a fotofobia e a ninfomania relacionadas com a rejeição que sofreu na infância de Riza e do pai; para Riza, a homossexualidade resultante do trauma de ter visto Sexilia entregar-se a vários meninos na praia na infância como uma espécie de vingança contra ela; para Dr. De La Peña, a aversão ao sexo por ter se sentido atraído pela filha. Almodóvar parodia também o regime político espanhol ao representar o imperador de Tirã como o financiador da pesquisa que deu origem ao método de inseminação artificial. Nesta seqüência, Dr. De La Peña narra que o imperador tinha o desejo que grande parte da nação fosse de descendentes dele, numa clara referência paródica ao discurso totalitário. Após a morte de Franco, em 1975, foi restituída a monarquia na Espanha e o rei Juan Carlos liderou o processo de transição política. Sexilia é a mulher protagonista de seu próprio desejo sexual. Em lugar de ser representada como objeto de desejo, estratégia tradicional do cinema narrativo clássico, a protagonista feminina, nesse caso, exerce sua liberdade por meio do uso indiscriminado de substâncias psicoativas e da liberdade sexual. Sexilia é vocalista numa banda punk, como Bom, no primeiro filme. É a banana que ela joga, por inveja, sob os pés do vocalista da banda “Eles”, que permite a Riza, sua paixão de infância, assumir o posto de cantor da banda e manter seu disfarce (cover) em Madri. Todos os jornais falam sobre a presença do príncipe de Tirã na cidade. O pai de Sexilia, um dos maiores cientistas do mundo e inventor de uma revolucionária técnica de inseminação artificial, preocupa-se com sua ninfomania e resolve pedir a ela que faça terapia. A representação paródica que Almodóvar faz da terapeuta nos indica que ele não acredita completamente na psicanálise, ou pelo menos, que ele não crê que aquilo que a psicanálise categoriza como desvio seja efetivamente anormal. Pelo menos, nem sempre. A psicanalista, personagem que deveria estar preocupada em solucionar os traumas de Sexilia, aproxima-se dela com o único intuito de seduzir seu pai, Dr. De La Peña e satisfazer sua própria ninfomania. Mais do que quaisquer outros

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personagens na trama do filme, ela é a mais desviante, desafiando os limites da ética profissional de um psicanalista. Ela tem compulsão por comida, sexo e jogo. É curioso como Almodóvar se utiliza desse personagem para retratar a hipocrisia do discurso psicanalítico. Ele aponta, no entanto, uma esperança: o afeto. É o amor que ressurge em Riza e Sexilia que vai curá-los de seus traumas do passado e permitir que eles possam ser felizes num outro lugar. Em “Labirinto de Paixões”, mais uma vez, a inversão dos gêneros sexuais, ou a representação da transitividade de gêneros, permitirá a Almodóvar demonstrar uma representação não usual do que no cinema narrativo clássico é representado como desvio. O ápice da subversão, nesse caso, é a seqüência em que a irmã gêmea de Sexilia transa com o pai e ambos resolvem seus traumas a partir daquela relação. O incesto é o tabu original das sociedades ocidentais.

4.3 Maus Hábitos (, 1983)

4.3.1 Dados gerais:38

Produção: Tesauro S.A. Direção e Roteiro: Pedro Almodóvar Fotografia: Ángel Luiz Fernández Edição: José Salcedo Cenografia: Román Arango, Pin Morales Figurino: Francis Montesinos, Teresa Nieto, (as Teresa Nieto Morán), Peris Trilha sonora: Cam España

Canções:

- “Suck It to Me” Composta por Pedro Almodóvar, Fabio McNamara (cred. como Fabio de Miguel) e Bernardo Bonezzi Interpretada por Pedro Almodóvar e Fabio McNamara

38 LE BERRE, 1995, pp. 10-11. Fonte dos dados: www.imdb.com

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- “Dime” Composta por Morris Albert

- “Salí porque salí” Composta por J. Curiel Alonso Interpretada por Cheo Feliciano

- “Encadenados” Composta por Carlos Arturo Bris Interpretada por Lucho Gatica

Produção Executiva: Luis Calvo Formato: 35 mm, cor. Duração: 114 min. Data de Lançamento: 1983 Distribuição: Alta Films Elenco: Cristina Sánchez Pascual (Yolanda Bel), Will More (Jorge), Laura Cepeda (Lina), Miguel Zúñiga (Madero), Julieta Serrano (Madre Superiora Julia), Marisa Paredes (Irmã Esterco), Mary Carrillo (Marquesa), Carmen Maura (Irmã Perdida), Lina Canalejas (Irmã Víbora), Manuel Zarzo (Cura), Chus Lampreave (Irmã Rata de Beco), Marisa Tejada (Lola), Eva Siva (Antonia), Cecilia Roth (Merche), Rubén Tobías (Policial), Concha Grégori (Sofía), Pedro Almodóvar (Passageiro de Ônibus); Ángel Sánchez Harguindey, (Jornalista), Mariela Serrano (Espe), Berta Riaza (Madre Geral), Luisa Gavasa (Freira), Alicia Altabella (Freira), Carmen Giralt (Freira), Carmen Luján (Freira), Lola Mateo (Irmã A), Casimira Encinas (Irmã B), Alicia González (Irmã X), Carmen Santonja (Irmã Y) Flavia Zarzo (Noviça), Miguel Molina (Tarzã), Luciano Berriatúa, Monse Guillamón, Ricardo del Amo, Agustín Almodóvar (Carteiro), May Paredes, Cecilia Paredes, Mavi Margarida, Tesa Harranz, Elena Nieves García, Lucia Bosé, Jorge Megino, Marta Maier, Jaime Cortezo, Loreto Briales, Carlos García Berlanga, Laura Moreno, Beatriz Álvarez, Tadeo Villalba hijo, Jorge Giner, Tessa Arranz, Maite Guillamón.

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Créditos complementares: Design de Produção: Román Arango e Pin Morales; Gerentes de Produção: Luis Briales, Antonio López, Tadeo Villalba; Assistentes de Direção: José María De Cossío e Terry Lennox; Direção de Arte (Cenários): Antonio López/ Proprietário: Jesús Mateos; Figurinos: Miguel Ordoñez, Peris, Carmen Velasco; Som: Armin Fausten, Eduardo Fernández, Antonio Illán , Martin Müller; Efeitos especiais: Pablo Núñez; Assistentes de Câmera: Enrique Bello (grip) , Josep M. Civit, Macusa Cores, Santiago Gordo, Pérez Valero, Andrés Vallés (steadicam); Eletricistas: Francisco Durán, Rafael García, Carlos Miguel; Técnico de Luz: Carlos Miguel; Fotógrafo de Still: Anna Muller; Assistentes de Edição: Rosa Ortiz, Blanca del Rey; Música: Miguel Morales, Sol Pinas; Transportes: Ángel Megino; Jardineiro: Alonso; Tapeçarias: Francisco Ardura; Administrador: José Astiárraga; Supervisor de script: Yuyi Beringola; Designer de Títulos: Pablo Núñez.

4.3.2 Translado

Uma panorâmica áerea estática de Madri em exposição superacelerada (como em Koianisqatsi) mostra o amanhecer da cidade. A protagonista caminha pela rua. Almodóvar começa um plano filmando uma janela onde se vê uma festa num apartamento. O namorado da protagonista é viciado em heroína e aguardava o retorno da namorada com a droga. Eles discutem e ela ameaça abandoná-lo dizendo que ele tem cara de louco. Pega o diário dele e pergunta se escreveu novamente sobre ela. A mulher se dirige ao banheiro depois de levar outro fora do namorado. Ela se olha num espelho que tem três faces e repete para si mesma: “Largue ele.” Ouve um estrondo. Corre para a sala e encontra o namorado morto por overdose. Apressa-se em abandonar o local e leva o diário dele. Corta. Vemos uma pianista atrás de uma cortina. A silhueta da pianista lembra uma referência a Hitchcock. Yolanda (Cristina Sánchez Pascual) está em seu camarim e resolve contar o que aconteceu a sua colega de trabalho. Almodóvar usa muitas cenas de camarim, repetidamente. Vemos em “Pepi, Luci, Bom...” os bastidores do mundo da música por meio dos ensaios da banda Bonitomi. Em “Labirinto de Paixões”, vemos o camarim da banda “Eles”. O mundo do entretenimento é um tema recorrente para o diretor espanhol. Almodóvar sempre registra os bastidores do showbizz.

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A polícia chega e interpela Yolanda, sem saber que é ela a quem procuram. A cantora se aproveita da situação e os despista. Vemos na sua fuga o nome da danceteria onde trabalha: Rojo Moline (ou Moulin Rouge, uma referência ao mais famoso cabaré francês de fins do século XIX, onde Lautrec produziu obras primas do impressionismo em conjunto com outros artistas e intelectuais boêmios do fin de siécle em Paris). Yolanda caminha pela cidade, como uma flanêuse. Ela anda repetidamente de ônibus como fará, anos mais tarde, o protagonista de “Carne Trêmula”. Amanhece e a vemos sentada num café. Ela folheia o jornal. No espelho, ao fundo, vemos um gari limpando a rua com um jato d’água. Talvez uma dica da cena de Tina em “Lei do Desejo”. Yolanda tira o diário da bolsa e encontra o cartão do convento das “Redentoras Humilhadas”. Em flashback, recurso muito usado em sua produção anterior, “Labirinto de Paixões”, vemos freiras entrando no camarim de Yolanda. Elas falam de sua admiração por ela e pedem um autógrafo. A cultura da celebridade aparece registrada aqui. Algo importante para a estética pop de Warhol, inspiração evidente de Almodóvar. Yolanda pega uma foto com o namorado, recorta o rosto dele e a autografa. Vemos na parede um grande pôster de Mick Jaegger. Yolanda fica encantada com a bolsa usada por uma das freiras. A Madre a oferece como um presente e entrega a ela um cartão com as seguintes inscrições: “Comunidad Redentoras Humilladas – vend a mi, yo soy vuestro refugio – Pez Volador, S – Madrid”. Corta para uma foto de três freiras. A que está no meio tem um beijo de batom vermelho sobre sua imagem. Uma voz em off comenta: “Tudo culpa do pai.”. A freira limpa a marca de beijo do porta-retrato. Trata-se da marquesa, mantendora do convento. Ela comenta que, depois de viúva, se libertou. A personagem tem uma maquiagem e caracterização clownescas. Ironicamente, diz estar fazendo aulas de estética (talvez Kika, a esteticista do filme de 1991, pudesse ser uma professora melhor). Vemos aqui uma referência à figura da consultora de estética, um trabalho considerado tipicamente feminino, em especial nos países em que se criaram as empresas de coméstica com vendas consignadas porta-a-porta (impossível não remeter à personagem de “Edwards mãos de tesoura”, de Tim Burton, consultora da Avon). A figura da Marquesa, nesta cena, parece retratar, parodicamente, os financiadores das produções de Almodóvar como “palhaços”. A Marquesa está no convento para avisar à Madre Superiora que vai interromper o compromisso financeiro firmado por seu falecido marido com a instituição. Vemos,

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ao fundo, um altar com cores fluorescentes, como uma espécie de apropriação pop de um altar católico. A Marquesa argumenta que, mesmo sendo milionária, quer viver e precisa do dinheiro para outras finalidades. Corta para cena de freira arrumando padre cinéfilo com trajes eclesiásticos. Ele recomenda que ela assista “My fair lady”. O altar é multicolorido. O padre fuma e comenta: “Cecil Beaton ganhou o Oscar de melhor figurino pelo filme”. Corta de novo para a conversa da Marquesa com a Madre Superiora. A Marquesa se retira e comenta: “O mais importante para a mulher é seu aspecto”, criticando a Madre por parecer cansada. Ironicamente, ela parece uma palhaça. A Marquesa entrega um presente a uma das freiras enquanto sai do convento: uma caixa de detergente biodegradável. O padre põe de lado o que parece ser um cigarro de maconha, pega a hóstia e o vinho e continua a missa. As freiras entoam um canto litúrgico quando Yolanda entra pela porta principal da Igreja lançando um facho de luz em direção ao interior do prédio. O mundo está prestes a invadir o claustro. A Madre recebe calorosamente a cantora e a leva a seu quarto, ricamente decorado, a suíte de honra do convento. Ao tirar seu sobretudo, Yolanda revela aos olhos da Madre e do espectador do filme seu vestido justo de lantejoulas vermelhas com longas luvas. A Madre vai contar às outras freiras que elas têm uma nova hóspede e que, tendo a quem redimir, poderão manter sua luta contra o pecado. A Madre comenta: “Logo este convento estará repleto novamente de drogadictos, prostitutas e assassinas como na boa época.” Vemos uma freira que cuida de vários animais, uma clara referência a São Francisco de Assis. A Madre Superiora, ironica e loucamente, oferece heroína à Yolanda para tranqüilizá-la. Ela hesita, pois sabe que a droga a colocou na situação de fugitiva da polícia, mas a Madre ainda não sabe disso. Vemos explicitamente a heroína sendo preparada para consumo pela Madre. Ela injeta a droga. Yolanda não resiste e junta-se a ela. A Madre lhe mostra uma agulha nova. Yolanda lê o diário do namorado falecido. A voz dele em off afirma: “Preciso me vingar antes que me abandone.” Ela mesmo acrescenta: “Yolanda suicidou-me.” Ao olhar pela janela de seu quarto, a cantora supreende uma das freiras com o tigre, no que parece ser uma referência à zoofilia. Vemos a freira escritora recebendo o contrabando literário de sua irmã que vem visitá-la periodicamente no convento. São revistas de celebridades e romances

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água-com-açúcar. Ela comenta com a irmã sobre seu bloqueio criativo. Enquanto isso, um oficial de justiça/cobrador recolhe móveis e bens do convento para horror da Madre. A irmã tenta convencer a freira escritora que nada mudou no mundo exterior desde que ela se enclausurou no convento, insistindo que ela deve permanecer lá. Yolanda pinta para passar o tempo. Parece que ela retrata a cena do tigre com a freira. Virgínia surge na história como a filha da Marquesa pelo comentário da Irmã Rata de Beco com a cantora. Ela conta: “Virgínia fugia do pai. Foi para a África e lá os canibais a comeram.” A Irmã Rata de Beco prova um vestido de Yolanda secretamente como faz Queti com relação às roupas de Sexi em “Labirinto de Paixões”, em referência clara à cena de Eve Harrington em “A malvada”. Yolanda acende um cigarro de maconha. A freira oferece à Yolanda um livro: “Largue-me, canalha”, título de literatura sensacionalista escrito por ela sob o pseudônimo Concha Torres. A Madre recebe uma traficante que a propõe entrar para o negócio como “mula”39. Ela avisa da situação de Yolanda, informando à Madre que seu namorado foi encontrado morto devido ao uso de heroína misturada com estricnina. No verso da crítica sobre o livro da freira escritora, Yolanda encontra a referência à morte de seu namorado. Voltamos a ver a Madre com a traficante. Ela pede ácidos para a Irmã Esterco. Esta comenta seu passado como assassina com Yolanda. “Sou uma assassina e não mereço a menor consideração”. Neste momento, a Irmã Esterco revela um dado de sua biografia que a estigmatiza, ela se descamufla (uncovers). Corta para sala de jantar do convento. Vemos ao fundo um grande quadro da Santa Ceia. A Madre Superiora explica a Yolanda o porquê de cada um dos nomes das outras freiras. Ela comenta que os nomes “estrombólicos” devem-se à necessidade de redenção e humilhação: Irmã Esterco, Irmã Rata de Beco, Irmã Perdida e Irmã Víbora. Ela diz: “— O homem só se salvará quando entender que é o ser mais desprezível da criação.” Irmã Esterco aparece “viajando” com o ácido após comer uma fatia de torta. A Madre e Yolanda vomitam, provavelmente porque a torta estava “batizada” com LSD. Corta para o tigre que ruge no jardim.

39 Expressão idiomática que define a pessoa que transporta grandes quantidades de drogas em viagens internacionais.

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Vemos as freiras em praça pública vendendo tortas, pimentões e flores artesanais para levantar recursos para o convento. Um circense cospe fogo para inveja de Irmã Esterco que, prontamente, enfia um arame pela bochecha sem esboçar qualquer expressão de dor. A Igreja, e as religiões em geral, no mundo da cultura de massa, precisam competir com as outras opções de ocupação do tempo livre de trabalho e necessitam renovar seus apelos junto ao público. Este local é o Rastro, flea market de Madri que abre o filme anterior de Almodóvar. Yolanda passeia pelo convento com roupa andrógina. Ela entra no quarto da Madre Superiora que ouve a canção “Encadenados” interpretada por Lucho Gatica. Yolanda dubla a canção para a Madre que acompanha com fascínio. A letra da música é a seguinte:

Encadenados40 Lucho Gatica Composição: Carlos Arturo Briz - 1958

Tal vez sería mejor que no volvieras quizas fuera mejor que me olvidaras, es empezar a atormentarnos a querernos para odiarnos sin principio ni final.

Nos hemos hecho tanto tanto daño que amor entre nosotros es martirio; jamás quiso llegar el desengaño ni el olvido ni el delirio, seguiremos siempre igual.

Cariño como el nuestro es un castigo que se lleva en el alma hasta la muerte mi suerte necesita de tu suerte y tú me necesitas mucho más.

Por eso no habra nunca despedida ni paz alguna habra de consolarnos y el paso del dolor ha de encontrarnos de rodillas en la vida frente a frente y nada más.

40 http://letras.terra.com.br/lucho-gatica/689614 consultada em 18.05.08, às 23h23.

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Vemos, ao fundo, atrás da Madre Superiora, uma foto de Marilyn Monroe, um crucifixo, uma foto do Papa João Paulo II, Cristo, flores artesanais, Marlene Dietrich e outras imagens que compõem um painel kitsch. A Madre comenta: “A música fala, diz a verdade da vida.” Ela acrescenta melancolicamente: “Há uma grande beleza na deterioração física. Quando pequena, sonhava em ter olheiras”. Almodóvar, aqui, sem querer, antecipa um problema contemporâneo no mundo das imagens que é a glamourização do vício em drogas por meio da estética heroin chic / and then. Modelos como Kate Moss, flagrada recentemente por tablóides consumindo cocaína em companhia do namorado, também uma celebridade viciada, são representantes desse estilo cada vez mais comum e com conseqüências ambígüas para o público consumidor. A Madre pega um coala de pelúcia e tira do fundo do brinquedo sacolés de cocaína e a prepara para consumo enquanto fala de sua infância. Almodóvar faz um travelling sobre os pôsteres na parede enquanto a Madre fala das grandes pecadoras do século: Brigitte Bardot entre outras. Ela diz: “Graças a elas, Deus continua morrendo e ressucitando a cada dia.” Há um tom devocional em relação ao star system. Na cultura pop, os santos são os astros. Yolanda e a Madre cheiram pó com naturalidade. Ela avisa que as outras freiras não sabem sobre seu vício em drogas. A Madre se camufla (covers). Yolanda lê o diário de seu namorado: “Há uma parte de mim que te necessita e outra que te odeia.” O homem só aparece fantasmaticamente (cobrador, voz off do namorado, foto do filho de Virgínia na África, o cantor de Encadenados), a não ser pelo padre e pelos policiais. A cantora recebe flores e um cartão da Madre Superiora com total indiferença. Irmã Esterco bisbilhota a conversa de Yolanda com Irmã Rata de Beco e descobre que Yolanda tem lido livros de Concha Torres fornecidos pela freira escritora. Irmã Rata de Beco lê em voz alta na capela do convento um texto provocante sobre o pecado do beijo enquanto Almodóvar faz um travelling lateral da esquerda para a direita, flagrando a denúncia de Irmã Esterco sobre Irmã Rata para a Madre Superiora. Irmã Perdida aparece tocando bongô enquanto alimenta o tigre. Ao fundo, Rata ara a horta do convento. Irmã Víbora e o Padre mostram à Yolanda uma coleção de trajes sazonais para as imagens dos santos do convento. Yolanda fica maravilhada. Irmã Rata se farta com as sobras da alimentação do tigre quando é

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flagrada por Irmã Esterco que a vê “lisergicamente”. Irmã Esterco questiona Irmã Rata sobre o que ela está comendo. A freira escritora disfarça, dizendo se tratar de espinafre. Irmã Esterco quebra uma garrafa e anda sobre os cacos de vidro no chão, forçando os pés contra eles. Irmã Rata é flagrada pela Madre Superiora escrevendo um diário. A Madre descobre sob o colchão de Rata os seguintes exemplares: “Não sou um sonho”, “Perdida na cidade”, “A chamada da carne” e “As secretárias também choram”, todos romances escritos por Concha Torres. Rata confessa, mais tarde, no escritório da Madre, que ela é Concha Torres (podemos nos remeter neste caso, ao personagem de “A flor do meu segredo”, uma escritora de sucessos que produz romances açucarados com um pseudônimo). Rata confronta Yolanda e deduz ter sido Esterco a responsável pela denúncia. Yolanda flagra a Madre pronta para queimar os livros. A Madre confessa à Yolanda que sabe porque ela está fugindo. Yolanda repete o que acabara de ler no diário de seu ex-namorado, como uma atriz faz com um script de um filme: “Você é um instrumento que estou utilizando. Por isso, às vezes eu a odeio”. De fato, Yolanda lia o script do filme. A Madre ora na capela. A “missa” é interrompida. Merche (Cecilia Roth) busca refúgio. Ela flerta com a Madre com o objetivo de persuadí-la a acolhê-la. Fade out: preto. Fade in: Madre deitada na cama de uma cela do convento com Merche. Entendemos que as duas mantiveram relações sexuais. O sino da porta do convento desperta ambas e Yolanda. A polícia interpela a Madre sobre Mercedes Cora ou Merche (Cecilia Roth). A Madre tenta despistá-los. Yolanda, sem saber que não é o alvo da busca naquele momento, entra em desespero e rasga o diário do ex- namorado, tentando destruir provas que a pudessem incriminar. Merche tenta fugir correndo e perde os sapatos. Os policiais a seguram. A Madre intercede e, repetindo uma cena bíblica, ajoelha-se e calça os sapatos de salto altíssimo em Merche. Yolanda quer um novo começo. Almodóvar filma a conversa pelo lado de fora do prédio, captando as molduras das janelas, como fez Hitchcock em “Rear Window”. A tomada de fora do prédio evidencia o enclausuramento das personagens e a artificialidade do cenário. É o enquadramento das personagens no prédio dentro do enquadramento da tela do cinema limitando o espaço fílmico. A síndrome de abstinência deixa Yolanda alucinada. Ela tem pesadelos com o tigre. A Madre está ajoelhada diante do altar do convento há dias sem se alimentar. Irmã Esterco leva-lhe comida e intervém, pedindo que ela coma. A cena tem um

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apelo teatral muito forte. A câmera assume o ponto de vista do Cristo crucificado no altar. Para reanimar o convento e a Madre Superiora, as freiras resolvem dar uma festa em homenagem ao Santo da Madre e convidam Yolanda para cantar, enquanto ela trabalha na horta do convento cultivando seus híbridos. Yolanda está retomando sua carreira como bióloga. Ela se formou em Biologia antes de começar a cantar na noite. Almodóvar curiosamente remete ao mundo dos avanços científicos vertiginosos do século XX também neste filme, como fez em “Labirinto de Paixões” com a questão dos bebês de proveta. A Madre delira ao rezar o terço. Esterco fala da festa e entrega a ela uma correspondência vinda da África. De dentro do envelope, a Madre retira uma foto de um bonito rapaz vestido como uma espécie de Tarzã, acompanhado de uma macaca. Há também um colar com um pingente que tem a foto de Virgínia. Irmã Esterco fala sobre montar um circo de freiras e insinua que poderia atuar como dominatrix. Repentinamente, a Madre resolve comer. A Irmã Rata de Beco ganha autorização para viajar para a África. A Madre Superiora resolve visitar a Marquesa. Na mansão ostentadora da Marquesa, a Madre é recebida por um mordomo que mais parece um modelo de publicidade. A Marquesa reaparece com seu figurino e maquiagem clownescos. A Madre Julia chantageia a Marquesa dizendo ter novas informações sobre a estada de sua filha Virgínia na África. Julia tenta vender a correspondência à Marquesa por 100.000 pesetas. A Marquesa se nega a pagar pela informação. Julia vai então ao encontro da traficante em desespero e aceita a proposta de levar drogas à Tailândia. Lola, a traficante, lhe oferece maconha. A Madre Superiora diz: “Não gosto de drogas brandas.” A princípio, ela só pede um empréstimo, um adiantamento. A irmã da freira Rata de Beco a chama a personagem pelo nome da atriz, Chus. A freira escritora descobre que sua irmã estava ficando rica e famosa com seus livros ao assumir a identidade de Concha Torres. A sobrinha revela tudo à tia enquanto sua irmã dá uma entrevista a um jornalista. Rata examina as estantes e encontra clássicos da literatura espanhola e mundial, todos os volumes são capas ocas sem os conteúdos. Almodóvar faz uma tomada da fachada externa do convento. A Marquesa chega à festa e confronta Madre Julia. Ao ver Yolanda se arrumando para a

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apresentação, a Marquesa resolve tentar obter as informações de Virgínia por meio dela. Sem que Julia perceba, a Marquesa se apresenta à Yolanda e conta: “— Descobrimos que Virgínia entrou para o convento porque seu noivo se suicidou ao saber da probição do casamento pelo futuro sogro.” A Marquesa oferece seus préstimos de esteticista à Yolanda e a maquia. Vemos um close up do olho de Yolanda. A Marquesa aplica sombra cobre em suas pálpebras. Yolanda se compadece da Marquesa e vai ao escritório de Madre Julia roubar a correspondência para evitar que a Marquesa denuncie a Madre Julia à Madre Geral. Yolanda rouba o adiantamento que Julia pegou com Lola, a traficante. Madre Julia a surpreende. Yolanda consegue disfarçar sua presença em seu quarto. A Madre Geral só não flagra Yolanda e Julia cheirando cocaína juntas porque Irmã Esterco bate na porta e as avisa. Madre Julia pergunta à Madre Geral se ela está gostando da festa e a conduz pelo palco todo ornamentado com flores falsas e ráfia azul. Importante notar que o visagismo de Yolanda será retomado no visagismo da protagonista de “Carne Trêmula” anos mais tarde. Yolanda entrega a carta de Virgínia à Irmã Rata pedindo que esta a entregue à Marquesa. Descobrimos que a foto é do filho de Virgínia, neto da Marquesa. Ela fugia com um caçador mas foi comida por canibais. O bebê foi recolhido por macacos e criado por eles. Começa o espetáculo da noite. Depois da introdução de Irmã Rata, destacando a homenagem à Madre Julia, Yolanda entra no palco usando um dos vestidos feitos por Irmã Vìbora e pelo Padre para um dos santos do convento. Ela dubla histrionicamente a canção ”Otra vez”. Ao final da apresentação, todos aplaudem. Yolanda recusou-se a usar o vestido presenteado pela madre. Madre Julia, como Madalena com Cristo na bíblia, enxuga o rosto de Yolanda. Almodóvar parodia a cena do santo sudário. Neste caso, a divindade é uma cantora. A Madre Geral pergunta por Madre Julia. Ela a comunica sobre o fim da Ordem das Redentoras Humilhadas. Irmã Víbora, ao se confessar, declara seu amor ao padre. Irmã Perdida se despede aos prantos e entrega o tigre ao casal recém- formado, dizendo-lhes que retornará a Albacete como determinou a Madre Geral. Aqui o tema da migração e do retorno ao interior aparece novamente. Irmã Esterco deita-se numa cama cravada de pregos. A Madre Superiora procura por Yolanda. Seu quarto está trancado. Ao descobrir que ela teria ido embora com a Marquesa, a Madre grita de horror e abraça Irmã Esterco. Mais uma vez ela foi abandonada.

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Travelling para trás. Vemos Esterco abraçar Madre Julia ao som de “Encadenados”. Almodóvar enquadra a cena como uma versão lésbica da Pietá ao mostrar-nos a imagem do lado de fora do prédio, com a modura da janela, contida pela moldura da tela do filme.

4.3.3 Observações críticas

À primeira vista, as referências mais evidentes contidas em “Maus Hábitos” apontam para influências de cineastas como Pasolini e Buñuel que trataram o tema “religião” com alto potencial crítico. O próprio Almodóvar não considera o filme anti- clerical. Em entrevista à Strauss ele comenta:

I’m not a practicing Catholic, but I know that the vocation of the nuns in my film is entirely Christian; they simply follow the words of Christ apostolate. To save man, Christ became man and experienced man’s weakness. In the same way, in order to save lost girls, the nuns must be close to them, to the point that one of them actually becomes a delinquent and is thereby capable of speaking to these girls as an equal.41 (STRAUSS, 2006, p. 32)

O filme é essencialmente feminino. Até mesmo o padre é afeminado em seus interesses estéticos, embora no fim percebamos que ele está apaixonado e deseja Irmã Víbora. Excetuando-se a presença fantasmática do ex-namorado de Yolanda por meio de sua voz em off nas cenas em que ela lê seu diário, da foto do neto da Marquesa e filho de Virgínia que se tornou uma espécie de Tarzã, das referências ao falecido marido da Marquesa — o general (importante relação com o franquismo aqui) —, o homem é representado apenas incidentalmente pelos policiais que perseguem Merche e na cena de arresto de bens sacros pelo oficial de justiça. Almodóvar nos esclarece, entretanto que o tigre é uma presença masculina: […] “The tiger is a metaphor; he couldn’t be stopped from growing, like the personalities of the nuns which grow wild and uncontrolled.”42 (STRAUSS, 2006, p. 40) Para D’Lugo, Almodóvar realiza com “Maus Hábitos” seu primeiro melodrama com base na experiência da nova mulher espanhola que enfrenta a transição para a

41 Não sou um Católico praticante, mas eu sei que a vocação das freiras em meu filme é totalmente cristã; elas simplesmente seguem as palavras do apostolado de Cristo. Para salvar o homem, Cristo se tornou homem e experimentou as fraquezas humanas. Da mesma maneira, para salvar mulheres perdidas, as freiras devem estar próximas delas, ao ponto em que uma delas de fato se torna uma delinqüente e é, portanto, capaz de falar para essas garotas de igual para igual. (tradução nossa)

42 O tigre é uma metáfora, ele não pôde ser impedido de crescer, como as personalidades das freiras que se desenvolvem de forma selvagem e descontrolada. (tradução nossa)

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democracia lutando pela sobrevivência e se auto-descobrindo na cidade enquanto o país enfrenta uma grave crise econômica e sócio-cultural provocada por migrações internas. Defende o autor:

[…] the crucial relation of melodrama to the narratives of migration is often ignored. His first two melodramatic heroines, the Mother Superior of Dark Habits and Gloria in What Have I Done to Deserve This? embody the clash between Spain’s traditionalism and cultural modernization. 43(D’LUGO, 2006, p. 30)

Para o crítico e pesquisador, Almodóvar representa a cidade de Madri como espaço de liberação da tirania sexual e dos códigos sociais do patriarcado, em vez de fonte de destruição da família. (D’LUGO, 2006, p. 31) Trata-se de um ponto polêmico. Como afirmam Acevedo-Muñoz e Cañizal, Almodóvar passa a representar a partir deste filme, além da ansiedade da sociedade espanhola pelas conseqüências positivas da ordem democrática, uma certa nostalgia pelo interior do país, fazendo uma clara referência a suas raízes rurais e ao processo migratório intenso que ocorreu no período de transição. O potencial retorno à Albacete parece ser uma solução razoável para a zoófila Irmã Perdida, que acompanha o exército de noviças e freiras seguidoras da Madre Geral. A cena final mostra o grupo de freiras se retirando do convento das Redentoras Humilhadas como uma infantaria fascista. Inclusive a expressão corporal do conjunto e o som de marcha enfatizam essa interpretação. Se Almodóvar julga a cidade esse espaço de liberação, porque neste período classificado por Acevedo-Muñoz como o da fase da “estética do mau gosto”, o diretor representa nas duas obras mais tardias, “Maus hábitos” e “O que eu fiz para merecer isto?”, a nostalgia da província, uma província que ele mesmo descreveu como um espaço onde começou sua carreira outsider pelos olhares que lançaram sobre ele? D’Lugo esclarece ainda sobre o filme:

As Kathleen Vernon argues, intertextual citations of American melodrama provide “a vehicle for articulating his distance from the themes and style of a recent Spanish film tradition obsessed with the country’s past (“Melodrama” 59). As he develops a style that opposes Spanish art cinema’s predilection for high culture literary adaptations, even in rural dramas (such as Ricardo Franco’s Pascual Duarte [1975], or Mario Camus’s Los santos inocentes [1983], he flaunts the popular, low-culture potential of melodrama as a form of address to a broader Spanish audience.” […] “Almodóvar’s “intertextual and international network of references [that serve] to question the role of film itself, not only in reflecting the ideologies and values of the society in which

43 […] a relação crucial do melodrama com as narrativas de migração é freqüentemente ignorada. Suas duas primeiras heroínas melodramáticas, a Madre Superiora de ‘Maus Hábitos’ e Glória de ‘O que eu fiz para merecer isto?’ representam o conflito entre o tradicionalismo da Espanha e sua modernização cultural. (tradução nossa)

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and for which it is created, but also film’s complicity in perpetuating those societal structures” (“Melodrama” 60).44 (D’LUGO, 2006, p. 31-2)

O longa-metragem foi excluído da competição oficial do Festival de Veneza, mesmo tendo recebido elogios da imprensa italiana. Almodóvar começa então a ganhar notoriedade como bad boy. (D’LUGO, 2006, p. 37) O ponto de vista de Acevedo-Muñoz sobre “Maus Hábitos” enfatiza a representação que o diretor espanhol faz no filme de sua experiência com a Igreja Católica, tema ao qual ele retornou em “Má Educação” mais recentemente. É neste filme que o crítico identifica as primeiras tentativas de Almodóvar em misturar gêneros: a comédia e o melodrama, recurso aperfeiçoado nas produções posteriores e que se tornará uma marca muito particular de sua produção cinematográfica, inserindo-a num contexto mais amplo de manifestações artísticas que relacionam a história de seus meios de expressão com a reapropriação de referências intertextuais, dando origem a uma nova obra completamenete distinta. O autor também identifica na mobilidade da câmera e nos efeitos de luz referências ao trabalho do fotógrafo Michael Chapman no filme Raging Bull (1980) de Martin Scorcese. (ACEVEDO-MUÑOZ, 2007, pp. 36-37). Ele argumenta:

The contrast is very telling as in Dark Habits Almodóvar places his principal characters in a moral quagmire between devotion, religion and the pleasures of the lay world, very much suggesting Spain’s own situation in the transition to democracy and moral freedom.” […] “In fact in Dark Habits, Almodóvar seems to ask the question and offer an answer: what has not changed in Spain in 1983? Just like in 1975 after the death of Franco, Dark Habits begins with a dead Fascist patriarch leaving the country in deep cultural, religious and political isolation, and in economic and moral disarray. Almodóvar suggests that Sister Rat, who under the nom de plume ‘Concha Torres’ is the author of Get out of Here Bastard, and Yolanda the torch-singer (who used to be a botany teacher) are trying to re-invent themselves, remaking their own identities as they go along. 45 (ACEVEDO-MUÑOZ, 2007, pp. 37- 40)

44 Como defende Kathleen Vernon, citações intertextuais de melodramas norte-americanos fornecem um veículo para articular sua distância dos temas e estilo de uma tradição recente do cinema espanhol obcecada com o passado do país (“Melodrama” 59). Conforme desenvolve um estilo que se opõe à predileção do cinema de arte espanhol por adaptações literárias de alta cultura, inclusive em dramas rurais (como em Pascual Duarte [1975], de Ricardo Franco ou Los santos inocentes [1983] de Mario Camus) ele exibe o potencial do melodrama popular de baixa-cultura como forma de atingir um público mais amplo no país. […] A rede de referências internacionais e intertextuais de Almodóvar que servem para questionar o papel do cinema, não apenas ao refletir ideologias e valores da sociedade em que e para a qual é produzido, mas também a cumplicidade dos filmes na manutenção dessas estruturas sociais. (“Melodrama” 60) (tradução nossa). 45 O contraste é evidente uma vez que em ‘Maus hábitos’, Almodóvar posiciona suas protagonistas num dilema moral entre devoção, religião e os prazeres do mundo externo, sugerindo a situação da Espanha na transição para a democracia e a liberdade moral. […] De fato, em ‘Maus hábitos’, Almodóvar parece perguntar e responder: o que não mudou na Espanha desde 1983? Assim como em 1975, depois da morte de Franco, ‘Maus hábitos’ começa com a morte de patriarca fascista abandonando o país num profundo isolamento cultural, religioso e político e em descontrole econômico e moral. Almodóvar sugere que a Irmã Rata de Beco, que sob o pseudônimo de ‘Concha Torres’ é autora de ‘Saia daqui bastardo’, e Yolanda (a cantora que costumava ser professora de botânica) estão tentando se re-inventar, recompondo suas identidades enquanto continuam a viver. (tradução nossa)

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Para Muñoz, a Irmã Rata de Beco, ao contrário das outras freiras, é a única que admite suas crises moral e de identidade. No contexto em que o filme foi produzido, em 1982-83, quando a Espanha ainda se adaptava ao processo de democratização e liberalização de costumes, nada mais pungente que retratar uma escritora em crise com sua produção literária, ameaçada de censura e de ter sua obra queimada pela Madre Superiora, como aconteceu durante os regimes totalitários na Europa, em especial nos nacionais-socialistas. Almodóvar explicita o julgamento de valor da elite intelectual sobre as produções de massa, um debate em voga na época sobre o qual falamos no capitulo 1. Ao colocar Yolanda como a personagem que impede que os livros sejam queimados pois de qualquer maneira são livros, ele se posiciona diante do debate de tal forma a justificar a sua filiação ao movimento pop, de incorporação dos símbolos da comunicação de massa a uma produção artística cuja finalidade estética é mais valorizada pela elite cultural. Almodóvar, de certa forma, debocha desta elite e de seus critérios ao inserir no filme este posicionamento. Muñoz explica:

The moment shows how under the wraps of cultural pretence lie only deception and ‘rubbish’. Almodóvar suggests that the up-and-coming approval of all sorts of ‘popular’ art, rubbish in the eyes of the cultural establishment, is substituting for the country’s literary history and cultural heritage. 46(ACEVEDO-MUÑOZ, 2007, p. 46)

4.3.4 Representações da marginalidade em “Maus hábitos”

Yolanda e Madre Júlia são as duas protagonistas do filme. A primeira representa uma espécie de “alma perdida”. Ela é viciada em drogas, abandonou a carreira científica como botânica para se tornar cantora de cabaré e se viu envolvida na morte do namorado, envenenado com heroína adulterada. Sua carreira marginal está num ponto extremo, pois está sendo procurada pela polícia. Ela busca refúgio no convento das “Redentoras Humilhadas”, chefiado pela Madre Júlia, lésbica, viciada em drogas e inspirada por grandes ícones da comunicação de massa. Madre Júlia, por sua vez, recorrentemente se apaixona pelas mulheres que abriga no convento e se relaciona sexualmente com elas.

46 O momento mostra como sob a armadilha da pretensão cultural encontramos apenas decepção e ‘bobagens’. Almodóvar sugere que a aprovação vindoura de todo tipo de arte popular, ‘bobagem’ aos olhos do establishment cultural, substituiu a história literária do país e seu legado cultural. (tradução nossa)

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Mais uma vez, o desejo feminino está no centro da narrativa. Um grupo de mulheres, todas em claustro, acompanhadas apenas por um padre que consome maconha, desenha modelos para santos e reza missas, nos apresenta um conjunto de vícios considerados os mais pecaminosos, tendo como referência a mitologia católica, em especial num grupo de religiosas: Irmã Víbora é uma fashion designer para santos, remetendo ao consumerismo; Irmã Perdida é zoófila; Irmã Rata de Beco é escritora de subliteratura açucarada para mulheres; Irmã Esterco é masoquista e alcoviteira; Madre Júlia é homossexual e viciada em drogas. Ao retratar autoridades eclesiásticas cujas vidas e reputação deveriam ser impolutas aos olhos da sociedade como um todo, Almodóvar humaniza os vícios dos quais elas padecem e, subversivamente, horizontaliza a relação dessas autoridades com as mulheres que são acolhidas por elas. Aliás, ele demonstra serem as pecadoras as grandes fontes de inspiração para estas autoridades. Em certo ponto do filme, Madre Júlia comenta com Yolanda sobre a importância do comportamento sexual libertário de grandes atrizes do cinema internacional como o responsável pela contínua necessidade de existência da instituição eclesiástica. A continuidade do pecado e sua representação nas mídias de massa reforçam o poder da instituição que determina o que é pecado ou não. Os críticos do filme apontam que Almodóvar teria se inspirado em obras de Buñuel e Pasolini para criar “Maus hábitos”. Alguns vêem a obra como um manifesto anti-católico. Fica evidente, na cena final, em que a Madre Superiora comunica à Madre Júlia o fim da ordem das Redentoras Humilhadas, o paralelo que o diretor espanhol faz da autoridade religiosa e suas freiras com o General Franco e seu exército. Na saída do convento, o conjunto de freiras marcha firmemente como fazem grupos militares. Em “Maus Hábitos”, Almodóvar começa a trabalhar, em sua obra, uma visão sobre o isolamento e suas conseqüências. Este é um filme de claustro, do registro de cenários interiores, escuros, labirínticos. Assim como em “O que eu fiz para merecer isto?”, o diretor espanhol registra a dinâmica de relações sociais no espaço da intimidade. Ao contrário do que fez antes em “Pepi, Luci e Bom” e em “Labirinto de Paixões”, quando representou a vida dos marginais perambulando pela metrópole.

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4.4 O que eu fiz para merecer isto? (1984)

4.4.1 Dados gerais:47

Produção: Tesauro S.A., Kaktus Producciones Cinematográficas Direção: Pedro Almodóvar Roteiro: Pedro Almodóvar e Roald Dahl Fotografia: Ángel Luiz Fernández Edição: José Salcedo Cenografia: Román Arango Figurino: Cecilia Roth Trilha sonora: Bernardo Bonezzi

Canções:

- “La bien pagá” Composta por Ramón Perelló e Juan Mostazo Interpretada por Miguel de Molina

- “Nur nicht aus liebe weinen” Composta por Theo MacKeben, Hans Fritz Becmann e Wizner Boheme Interpretada por Zarah Leander

Produção Executiva: Hervé Hachuel Formato: 35 mm, cor. Duração: 101 min. Data de Lançamento: 25 de outubro de 1984 Distribuição: Diario El País S.L. Elenco: Carmen Maura (Gloria); Luis Hostalot (Polo); Ryo Hiruma (Professor Kendo); Ángel de Andrés López (Antonio); Gonzalo Suárez (Lucas Villalba); Verónica Forqué (Cristal); Juan Martínez (Toni); Chus Lampreave (Avó); Kiti Manver (Juani); Sonia Anabela Holimann (Vanessa); Cecilia Roth (Atriz do anúncio); Diego

47 LE BERRE, 1995, pp. 10-11. Fonte dos dados: www.imdb.com

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Caretti (Ator do anúncio); José Manuel Bello (Amigo do bairro); Pedro Almodóvar (Play-Back 'La bien pagá'); Fabio McNamara (Play-Back 'La bien pagá'); Miguel Ángel Herranz (Miguel); Beni (Menino do circo); Carmen Giralt (Porteira); Amparo Soler Leal (Patricia); Emilio Gutiérrez Caba (Pedro); Agustín Almodóvar (Carteiro); El Churri (Traficante); Francisca Caballero (Cliente do dentista); Javier Gurruchaga (Dentista); Jaime Chávarri (Cliente Exibicionista); Esteban Aspiazu (Cliente Bar); Katia Loritz (Ingrid Muller); María del Carmen Rives (Farmacêutica 1); Jesús Cracio (Agente 1); Luciano Berriatúa (Agente 2); Pilar Ortega (Farmacêutica 2); Carlos Miguel (Padre Vanessa).

Créditos complementares: Design de Produção: Román Arango e Pin Morales; Maquiagem: Ramón de Diego; Cabelereira: Mercedes Gómez; Gerentes de Produção: Luis Briales, Jaime Cortezo, Tadeo Villalba; Assistente de Produção: Ana Alonso; Assistentes de Direção: José María Bello, José María de Cossío, Terry Lennox; Direção de Arte (Cenários): Ramón Moya; Antonio López/ Proprietário: Juan de la Flor – Assitentes: Federico del Cerro, Tadeo Villalba hijo; Som: Mario Gómez, Antonio Illán, Bernardo Menz, Enrique Molinero; Efeitos especiais: Carlo di Malti, José María López Saéz, Francisco Prósper; Efeitos Visuais: Santiago Gómez; Dublê: Esteban Aspiazu; Assistentes de Câmera: Enrique Bello (grip) , Macusa Cores, Rafael García Martos, José Luiz Marínez, Arturo Pérez, Ernesto Pérez, Enrique Robles; Eletricistas: Rafael Castro, Miguel Angél Rodríguez, Valero; Figurino: Juan Carlos García, Carmen Velasco; Fotógrafo de Still: Antonio de Benito; Assistentes de Edição: Rosa Ortiz, Cristina Velasco; Música: Luís Cobos, Zarah Leander, Ramón Perelló; Transportes: Ángel Megino; Consultor para animais: Esteban Aspiazu; Assistentes de contabilidade: Pablo Ballester; Supervisor de script: Yuyi Beringola; Administração: Marcelino Carla, José Laragón, Marta Maier; Designer de títulos: Santiago Gómez; Secretária da produção: Carmen Hernández; Administrador: Angel Izquierdo; Assistente de produção: Marta Malles; Gerentes de locação: Juan Ollero, Alfonso Tesoro; Contador: Víctor Vega.

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4.4.2 Translado

O filme começa com um travelling panorâmico sobre uma praça onde uma equipe de cinema grava um filme. Esta cena remete à seqüência de abertura de “Le Mepris” de Godard. Passa pela equipe a protagonista, Gloria (Carmen Maura), que entra num prédio. Corta para cenas de treinamento de luta marcial alternados com letreiros com os nomes dos atores. A faxineira da academia é convidada para transar no chuveiro com um dos lutadores. Almodóvar repete planos de “Psicose”, de Hitchcock. O lutador é impotente e a relação não é consumada. Completamente encharcada, ao som de uma canção em alemão, ela simula uma luta com o bastão oriental usado no treino pelos lutadores da academia. Corta para cena de um taxista Antonio (Ángel de Andrés López) que ouve a mesma música e conversa com seu passageiro. O motorista fala de seu talento para falsificar caligrafias. Aqui podemos notar a referência à questão do autor, da relação cópia X original. Segue uma seqüência de cenas domésticas: a personagem cozinha, lava as roupas, cuida da casa. O filho pede ajuda à avó (Chus Lampreave) para fazer o dever de casa sobre literatura. Ele precisa responder a questões relacionadas à comparação entre romantismo e realismo. O pai da família, o taxista, chega do trabalho e senta-se diante da TV depois de dar ordens à mulher. Ela serve o jantar. Descobrimos que o filho é traficante. O marido pede bebidas: cerveja, vinho etc. A esposa responde que não há nada na dispensa. Ele pede dinheiro à mãe, que, sovina, se recusa a ajudar. Corta para comercial na televisão, como acontece em “Pepi, Luci, Bom...”. O homem tenta servir café para a mulher na cama pela manhã mas acaba derramando o líqüído quente sobre ela, deformando terrivelmente seu rosto. O pai tenta ensinar o filho a copiar sua caligrafia. A esposa pede dinheiro ao marido. Eles transam. Ela parece não estar muito interessada em sexo com ele. Corta para exibição de ópera na televisão. Almodóvar dubla com Fanny McNamara, interpretando um príncipe que tenta seduzir o travestido Fabio. A avó cantarola diante da TV. Enquanto marido e mulher transam no quarto, a avó dita uma carta ao neto traficante. Ele vomita no colo dela. Entra a vizinha prostituta, Cristal (Veronica Forqué) que pede um tronco emprestado à Glória. O mais novo reclama da falta de comida em casa. A avó tricota no sofá da sala. O menino veste uma camisa do Kiss. Cristal veste-se de noiva. Glória cheira

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algum tipo de substância alucinógena. O filho mais novo brinca com uma luminária com imagens seriadas. Ele reclama com a mãe que está todo se coçando. Vemos três membros da família usando o mesmo banheiro simultaneamente. Ao tentar pegar dinheiro com o marido, Glória descobre em sua carteira uma foto de Ingrid Muller, a cantora alemã de quem ele fora amante anos antes. Vemos Glória passear pelas ruas e olhar vitrines. O ponto de vista da câmera é o ponto de vista dos objetos de consumo. Glória é vista pelas mercadorias. Toni e a avó encontram um lagarto na rua. A avó sugere que eles levem o lagarto para casa. Glória chega com as compras. O filho está preparando um coquetel de drogas. Ele rapidamente esconde tudo. Glória toma um susto com o lagarto verde. A avó quebra um copo de água. Glória leva Miguel, o filho caçula, ao dentista. Ele o assedia assintosamente diante da mãe e propõe a ela que o deixe morar com ele. Ela “aluga” o filho ao dentista pedófilo e com o dinheiro, compra a escova alisadora de cabelos elétrica de seus sonhos. Cristal convida Glória para assistir o striptease de um cliente exibicionista que conta vantagem sobre o tamanho de seu membro. O passageiro conversa com o taxista e diz que está escrevendo as memórias de Hitler. Ele diz que os dois podem ganhar muito dinheiro se o taxista falsificar a caligrafia do ex-ditador alemão. Glória é a faxineira do passageiro. Sua esposa, ao visitar o taxista para propor o negócio da falsificação não se contém e rouba o relógio de Glória. Ela é cleptomaníaca. O patrão de Glória vai em busca dela para devolver-lhe o relógio. O marido de Glória lhe pede que ela não se envolva com Cristal. Ele diz: “— Existem coisas mais importantes que o dinheiro. A decência, por exemplo.”. Na cena do jantar, como em “Le Mepris” de Godard, a câmera oscila entre plano aproximado do marido e plano aproximado da esposa. Descobrimos que o professor é alcóolatra e bebe conhaque desesperadamente como se fosse água. Sua esposa rouba uma cigarrilha e um relógio. O lutador da academia procura o médico para tentar tratar de sua impotência. Lucas vai ao encontro de Ingrid Muller para tentar convencê-la do plano. Ele interrompe sua tentativa de suicídio com uma overdose de pípulas. A cantora concorda com o plano e liga para seu ex-amante. Glória ouve o telefonema e discute com o marido.

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Vemos a avó (Chus Lampreave) e Toni (Juan Martínez) assistindo a “Esplendor y la herba”. Almodóvar usará outras cenas de salas de cinema em obras posteriores, como “Lei do Desejo”, “Matador” entre outros. Glória tenta comprar remédios sem receita na farmácia. A balconista se recusa e a chama de viciada. Ela caminha angustiada até chegar em casa. Antonio está fazendo a barba. Seu figurino é idêntico ao de Stanley Kowalski, personagem da peça teatral de Tennessee Williams interpretado por Marlon Brando na versão para o cinema de “A Streetcar Named Desire”. Almodóvar retomará esta referência em “Tudo sobre minha mãe”. Glória discute com Antonio, ela se recusa a passar a camisa para que ele saia e acaba golpeando-o com o tronco devolvido por Cristal. O “Kowalski” de Almodóvar vai à lona. Na história de Tennessee Williams, Kowalski recebe mal a cunhada em sua casa humilde. Descobre que ela se prostituiu para manter o nível econômico depois do falecimento do pai na cidade onde vivia e que, supostamente, teria perdido todo o patrimônio da família. Ele a estupra, frustra suas ilusões de casamento ao revelar seu passado para seu noivo, que nada sabia, e convence sua esposa a mandá-la para o hospício. A personagem Blanche Dubois, vivida pela atriz Vivien Leigh, intérprete da não menos importante referência Scarlet O’Hara de “E o vento levou...”, é vingada por Almodóvar em “O que eu fiz para merecer isto?”. Glória/Blanche mata o homem que abusa dela. Há uma menina no prédio que é constantemente vítima do abuso da mãe. Ela tem poderes sobrenaturais e, quando confrontada, quebra objetos telepaticamente. Almodóvar reconhece a inspiração em “Carrie, a estranha” para esta personagem. A menina pede a Glória para ser adotada por ela. Cristal e Glória encontram Antonio morto na cozinha. A polícia investiga o assassinato e interroga Glória. Ela flerta com o policial, o lutador impotente que tentou penetrá-la no início do filme. Enquanto isso, para seu desespero, o lagarto verde passeia pela casa com uma mancha de sangue nas costas. Neste momento, a câmera assume o ponto de vista do lagarto correndo rasteiramente pela casa. O policial mata o animal e o joga pela janela para alívio de Glória. A avó e Toni encontram o bicho morto na rua. O policial interroga Cristal. Glória continua sua tentativa de obter remédios sem receita. A avó quer voltar ao povoado. Toni conta a mãe que vai embora com a avó para o interior. Glória resolve trocar o papel de parede da cozinha. Vanessa, a menina com poderes telepáticos, faz o serviço magicamente. O policial descobre heroína no quarto de Cristal.

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Vemos Glória na academia novamente treinando com o bastão como no início do filme. Ela confessa o assassinato ao inspetor. Ele não acredita nela. Toni entrega algum dinheiro à mãe. Eles se despedem. A mãe de Almodóvar aparece nesta seqüência. Glória sente-se só e abandonada: ela chora. A câmera nos mostra o olhar de Glória para o apartamento vazio onde agora só ela vive. Ela se dirige à sacada e imagina sua queda. Miguel, o filho ‘alugado’ ao dentista, aparece na rua. Ele sobe e diz que vai voltar a morar com ela. Esta é a única cena diurna do filme. Vemos o conjunto do apartamento pela primeira e única vez no fim da história.

4.4.3 Observações críticas

“O que eu fiz para merecer isto?” é um filme sobre as injustiças da vida doméstica para a mulher, explica Almodóvar em entrevista sobre a história (STRAUSS, 2006, p. 43). As referências intertextuais que encontramos no filme ajudam a esclarecer isso e são apontadas por Almodóvar como roubos de fato e não homenagens. Segundo ele mesmo, a incorporação que fez de Godard, Hitchcock e Williams ao roteiro enriquecem a sua obra e tornam-se parte indissocíavel dela. (STRAUSS, 2006, p. 45) Almodóvar, pela primeira vez, faz um filme de crítica à sociedade do consumo. Ele alcança este objetivo reificando Glória na seqüência em que vemos o olhar da câmera, suturado ao olhar do espectador, o nosso olhar, ao ponto de vista dos objetos de consumo que ela admira nas vitrines. Esta foi a maneira que o diretor espanhol encontrou para expressar o nível de solidão e abandono da protagonista. Ela se relaciona com produtos, mercadorias, utensílios e equipamentos domésticos. Ele afirma: “They’re the sole witnesses to her pain, her solitude and her anxieties. […] I’m very interested by this aspect of advertising: the value it gives to objects and the way it turns them into characters.”48 (STRAUSS, 2006, p. 47) Nesta mesma entrevista, o diretor reconhece que seus filmes são produtos e que respeita as leis do mercado, inclusive usando estratégias de publicidade e promoção. Ele também admite, no entanto, que se sente contraditório ao fazê-lo, o

48 Eles são as únicas testemunhas de sua dor, de sua solidão e de suas ansiedades. […] Eu tenho muito interesse neste aspecto da publicidade: o valor que ela confere a objetos e a forma como ela os torna personagens.

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que nos remete à discussão no capítulo 1 sobre o cinema de autor e cultura erudita X cultura de massa. (STRAUSS, 2006, p. 48) Para D’Lugo, em “O que eu fiz para merecer isto?”, Almodóvar aprofunda os temas da migração e o melodrama com o qual ele começou a trabalhar no filme anterior. Para o autor, as referências intertextuais só confirmam esta hipótese. Por exemplo, quando a avó e Toni, o filho mais velho de Glória, vão ao cinema assistir o melodrama “Splendor in the grass” (1960) de Elia Kazan. Segundo o próprio diretor, quando seus personagens vão ao cinema eles assistem não a sua vida, mas ao seu destino. Ele também usa este recurso em “Matador”, posteriormente. Uma das inspirações para o roteiro de “O que eu fiz…” foi o filme “Surcos”, de Nieves Conde. (D’LUGO, 2006, p. 37-8). Alguns dados importantes reforçam a interpretação de D’Lugo sobre o tema da migração neste filme. O bloco de apartamentos filmado localiza-se no ápice da auto-estrada M-30, um caminho percorrido muitas vezes pelo próprio Almodóvar, como citado anteriormente neste trabalho, quando ele trabalhava na companhia telefônica logo depois que chegou a Madri. A biografia de Antonio, marido de Glória, também aponta nesta direção, segundo a interpretação de D’Lugo. (D’LUGO, 2006, p. 40). O crítico explica:

As in Néstor García Canclini’s notion of “hybrid cultures”, characters are continually entering and leaving modernity, returning to the pueblo to retrieve nostalgic mementos. 332-33). […] “Almodóvar describes it, however, as akin to the cityscape of Ridley Scott’s futuristic Blade Runner. (D’Lugo 133). 49(D’LUGO, 2006, p. 41)

Outro tema de destaque no filme é o da frustração sexual. Nota-se isto na cena de sexo inicial da protagonista com o policial impotente, na relação burocrática de Glória com o marido Antonio e quando ela serve como voyeuse a um cliente da vizinha Cristal. (D’LUGO, 2006, p. 42) Este filme se tornou o primeiro sucesso internacional sólido de Almodóvar. Foi distribuído na Itália, convidado a participar do Festival de Montreal em 1985 e recebeu críticas elogiosas do New York Times e do Village Voice quando estreou nos Estados Unidos. (D’LUGO, 2006, p. 44) Para Muñoz, “O que eu fiz para merecer isto?” é o filme mais introspectivo do diretor espanhol. Ele o reconhece como a primeira obra-prima de Almodóvar, pois

49 Como na noção de culturas híbridas de Néstor García Canclini, os personagens estão sempre entrando e abandonando a modernidade, retornando ao pueblo para rememorar momentos nostálgicos. (332-33). […] Almodóvar descreve [a silhueta de Madri representada em “O que eu fiz para merecer isto?”] como uma espécie de reprodução do horizonte de arranha céus futuristas de Blade Runner, de Ridley Scott. (tradução nossa)

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ele consegue integrar comédia e melodrama ao retratar a luta da classe trabalhadora por um espaço na sociedade, enfrentando as dificuldades econômicas entremeadas por frustrações sexuais e crises de identidade. O autor reconhece que a crise de identidade, no caso, é retomada a partir do perfil da Irmã Rata de Beco de “Maus Hábitos”. O tema também está presente em seu filme anterior, “Labirinto de Paixões”. Almodóvar vai reintroduzí-lo, posteriormente, em “De salto alto” e “A flor do meu segredo”. (ACEVEDO-MUÑOZ, 2007, pp. 49-50) No filme, o diretor comenta o resultado da luta democrática na Espanha: a Madri governada pelo Partido Socialista enfrenta crises econômicas e sociais. O casal, Glória e Antonio, vive num pequeno apartamento, claustrofóbico e escuro, com dois filhos e a sogra. Não há dinheiro para todas as despesas necessárias. Ambos trabalham duro e se refugiam em fantasias regadas a drogas e álcool. (ACEVEDO-MUÑOZ, 2007, p. 51) A família tradicional representada por Almodóvar em “O que eu fiz para mercer isto?” está destruída, fragmentada, oprimida, despedaçada. Seus membros buscam reconfigurar seus papéis na família e na sociedade. E este é um processo traumático. O passado vinculado a presença de uma figura patriarcal e autoritária, explica Muñoz, parece ser a única coisa que os membros desta unidade familiar compartilham de fato. (ACEVEDO-MUÑOZ, 2007, p. 52) Sobre a recomendação de Antônio para que Glória evite contato com a prostituta Cristal, porque se trata de uma questão de decência, explica o autor:

Antonio’s reasoning sounds anachronistic, hypocritical and potentially Fascist in 1980s’ Spain, screaming that ‘decency’ is more important than money while he remains faithful in spirit to his former Nazi girlfriend. Of course, Antonio retains the mentality of the Franco era, when men had legal rights over their wives’ affairs and property, rights removed soon after Franco’s death in 1975. Antonio’s anachronistic machismo, like the policeman’s in Pepi, Luci, Bom, while no longer legal, was still clearly a reality for many working-class Spanish women in the mid-1980s.50 (ACEVEDO-MUÑOZ, 2007, pp. 56-7)

Muñoz comenta sobre a ironia do final da trama. O homem que ocupa o lugar do pai falecido ao lado da mãe é seu filho mais novo, prostituído e homossexual.

50 O raciocínio de Antonio parece anacrônico, hipócrita e potencialmente fascista na Espanha dos anos 80, gritando que decência é mais importante que dinheiro enquanto permanece fiel em espírito a sua ex-namorada nazista. Claro, Antonio, mantém a mentalidade da era de Franco, quando os homens tinham poderes legais sobre suas esposas, legislação alterada logo depois de sua morte em 1975. O machismo anacrônico de Antonio, como o do policial em Pepi, Luci, Bom, enquanto não tinha mais amparo legal ainda era uma realidade concreta para muitas mulheres da classe trabalhadora espanhola na metade dos anos 80. (tradução nossa)

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Assim como Cañizal, Muñoz identifica aqui a tentativa de Almodóvar de representar uma reconfiguração da família na Espanha da transição democrática.

4.4.4 Representações da marginalidade em “O que eu fiz para merecer isto?”

Encerrando a fase de filmes que Acevedo-Muñoz chama de exemplares baseados numa “estética do mau gosto”, Almodóvar narra, nesta obra, a trajetória emocional da nova mulher espanhola. Glória (interpretada por Carmem Maura, a mesma atriz que fez Pepi, aquela que é estuprada logo na cena inicial do primeiro filme de Almodóvar), é uma dona de casa frustrada sexual e afetivamente. Ela luta pela sobrevivência na nova Espanha de contornos democráticos com intenso trabalho e sofrimento. Em nenhuma outra obra do diretor espanhol, nos parece, vemos uma narrativa cuja trajetória é tão comprometida com o realismo e com uma visão de certa maneira pessimista do futuro. O marginal aqui é o indivíduo. As cenas em que Almodóvar filma Glória do ponto de vista dos utensílios domésticos demonstram isso. As mercadorias vêem Glória. Logo na seqüência inicial do filme, Almodóvar (como Godard fez em Le Mepris) mostra uma filmagem dentro do filme. Ele o fará diversas vezes ao longo da carreira. Esta é uma estratégia clara e deliberada para evidenciar ao espectador que aquilo que está sendo narrado na tela é completamente artificial. Ele então, não, corrobora com o cinema da transparência de Bazin. Ao contrário, ele provoca o espectador a conscientizar-se de sua posição diante do filme, tentando aqui, mais que nas obras anteriores, fazer o que Kracauer chama de auto-reflexão, promovendo no espectador uma espécie de consciência emancipatória, como comentamos no início do trabalho. Glória precisa de comprimidos para enfrentar o cotidiano. Ela vive num apartamento muito pequeno com outros quatro membros da família: seu marido, que só pensa na ex-amante alemã; a sogra sovina, que se recusa a compartilhar com os outros membros da família inclusive comida; e seus dois filhos, menores de idade e ambos envolvidos com desvios: um deles é traficante de drogas e o outro é homossexual e se prostitui. Com “O que eu fiz para merecer isto?”, na primeira metade da década de 80, Almodóvar, de forma madura, parece retratar a cilada das liberdades democráticas ofertadas pela sociedade de consumo na Espanha pós- franco. O sujeito é livre enquanto ele for capaz de consumir, mesmo que ele seja

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marginal, e até mesmo este será incluído na sociedade de consumo como uma engrenagem do processo de produção de mercadorias. De maneira sensível e com um denso humor negro, o diretor espanhol fotografa os desdobramentos da nova realidade sóciopolítica no país. A família tradicional está destruída, ela já não existe como antigamente. Almodóvar busca uma forma de reconstruir essa família desesperadamente. Glória aceita todos os tipos de trabalho: ela é faxineira, mas também assiste a um strip-tease exibicionista do cliente de sua vizinha, que é prostituta; ela aluga o filho para um dentista pedófilo e com o dinheiro compra uma escova modeladora de cabelos. Não há saída para ela: a única cena iluminada do filme, ao final, é quando ela se aproxima da sacada do apartamento completamente vazio. Ela matou o marido. A sogra e um dos filhos voltaram para o interior do país, sem esperanças de terem uma vida melhor na cidade. No último minuto, antes que ela se mate, seu filho homossexual retorna para casa e lhe diz que ficará com ela. Mais uma vez o tema da reconstrução da família aparece, mas uma família distinta em que a figura do patriarca não poderia ser mais diferente do que se pode imaginar.

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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

[…] my films aren’t moral enough for them to be concerned with the forbidden or perhaps they are so moral they forbid me to speak of the forbidden. Whatever the case, what’s forbidden according to conventional morality I don’t consider forbidden.51 Pedro Almodóvar

Robert Stam, citado por Silva, destaca que “o carnaval é o locus privilegiado da inversão, onde os marginalizados apropriam-se do centro simbólico, numa espécie de explosão de alteridade.” (STAM, 1992: 14) (SILVA in CAÑIZAL (org.), 1996, p. 57 – grifo nosso). Como vimos no decorrer deste trabalho, os quatro filmes iniciais de Almodóvar, nos anos 80, representam contribuições fundamentais para compreendermos como o cinema espanhol se apropriou da figura do marginal para criar um discurso de legitimidade da contracultura madrilenha. Assumindo, como Goffman, Becker e Elias, que a marginalidade não é uma qualidade do indivíduo, mas uma construção social desenvolvida no decorrer do processo de socialização, e que depende daqueles que determinam as normas a partir das quais o outro é julgado, podemos concluir que Almodóvar retrata em “Pepi, Luci e Bom...”, “Labirinto de Paixões”, “Maus Hábitos” e “O que eu fiz para merecer isto?” a marginalidade que vivenciou no período de resistência cultural na Espanha de Franco. Nos dois primeiros filmes, observamos uma espécie de celebração das liberdades democráticas conquistadas pelo povo espanhol. Os protagonistas nos mostram isto: Pepi, Luci e Bom; Sexilia e Riza são personagens que representam a transitividade do processo político na Espanha da época. Em ambos os filmes, vemos as ruas do país povoadas por pessoas que ciculam livremente, independente de raça, gênero, orientação sexual etc. Já em “Maus hábitos” e “O que eu fiz para merecer isto?”, a partir de temas distintos, o diretor espanhol desenha um panorama da reconfiguração íntima da aceitação social. Personagens como Yolanda e a Madre Julia, no filme de 1983, e Gloria, no filme de 1984, representam a crise em que se lançou a sociedade espanhola depois do período de transição, quando exageros e descalabros retratados nas obras anteriores mostraram suas conseqüências. O policial afirma em

51 […] meus filmes não são morais o suficiente para se preocuparem com o proibido ou talvez eles sejam tão morais que me proíbem de falar do proibido. Em qualquer dos dois casos, o que é proibido de acordo com a moral convencional eu não considero proibido. (STRAUSS, 2006, pp. 49-50 – tradução nossa)

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“Pepi, Luci e Bom...”: com tanta liberdade, com tanta democracia, onde esse país vai parar. Acevedo-Muñoz defende:

In his films of the 1980s (Pepi, Luci, Bom, Labyrinth of Passion, Dark Habits [1983], Matador [1986]), Almodóvar revised and reinvented the Francoist and Republican- era images of a nation of toreadors, flamenco dancers and Catholicism, revealing and deconstructing its ideological function of cultural homogenization. Films like The (1987) and What Have I Done to Deserve This? (1984) present the theme of rebellion against parental figures and patriarchal order, violating the image of the overwhelming, powerful, all-knowing and yet benevolent father figure celebrated for decades in Spanish cinema. 52(ACEVEDO-MUÑOZ, 2007, p. 2)

Almodóvar, ao mesmo tempo em que representa a ruptura com a figura patriarcal nos filmes do início da década de 80, demonstra, nos dois longas mais recentes, de 83 e 84, a nostalgia por um núcleo familiar que a sociedade de consumo não foi capaz de restituir. No lugar da figura do pai como referência para um posicionamento social, a sociedade de consumo não consegue prover valores e princípios com a estabilidade necessária para que os novos atores sociais da Espanha democrática construam um país mais justo e igualitário. Sobre as críticas que o diretor espanhol sofreu no início da carreira na Espanha, D’Lugo comenta:

The persistent failure of most Spanish commentators to appreciate the eccentricity of Almodóvar’s storytelling strategies is, in essence, a refusal to see in his films the unique phenomenon of a popular cinematic storyteller whose style is a composite of various strains that is also, ironically, highly original. In their directness, Almodóvar’s films seem antithetical to the patterns of Spanish film production that had been lionized since the early 1970s as auteur cinema and the national cinema. 53(D’LUGO, 2006, p. 9)

As representações da marginalidade em Almodóvar são, assim como os marginais, multifacetadas. Apesar da resistência em admitir a influência do regime franquista em sua produção inicial, chegando a afirmar em entrevista a Strauss que Franco lhe causava tanto horror que teria optado por não fazer alusões a ele e seu regime em seus filmes, não podemos deixar de notar a grande influência da

52 Em seus filmes dos anos 80, (“Pepi, Luci, Bom”, “Labirinto de Paixões”, “Maus hábitos”, “Matador”), Almodóvar reviu e reinventou as imagens nacionais da era republicana de Franco com seus toreadores, bailarinos de flamenco e imagética católica, revelando e desconstruindo sua função ideológica de homogeneização. Filmes como “A lei do desejo”e “O que eu fiz para merecer isto?” apresentam um tema de rebeldia contra figuras paternas e a ordem patriarcal, violando a imagem da figura dominadora, absoluta, toda- poderosa e onisciente do pai, celebrada por décadas no cinema espanhol. 53 O persistente fracasso da maioria dos críticos espanhóis em reconhecer a excentricidade das estratégias narrativas de Almodóvar é, essencialmente, a recusa em observar que em seus filmes o fenômeno único de um contador de histórias no cinema com alcance popular cujo estilo é composto por vários gêneros é, ironicamente, altamente original. Em sua objetividade, os filmes de Almodóvar parecem antíteses dos padrões das produções espanholas que se solidificaram desde o inicio dos anos 70 como obras de autores do cinema nacional.

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repressão sobre as obras que ele realizou no início da década de 80. A simples constatação de que o roteiro de seu primeiro longa surgiu da história em quadrinhos chamada “Ereções gerais”, parodiando o processo eleitoral ocorrido depois do falecimento do general, e da recondução da monarquia parlamentarista no país, é um exemplo claro disso. Silva comenta:

(Almodóvar produz) “(u)m cinema que, nas palavras do espanhol Antonio Holguín, traz à tona “um mundo próximo a nós, um mundo que conhecemos, com o qual temos afinidades”, o que fez do diretor “um retratista da sociedade onde vivemos”, a qual ele apresenta “como algo próximo a nós, sem medos, de forma inteira, através de uma representação antimarginal, que faz com que o mais inverossímel resulte em algo crível.” (HOLGUÍN, 1994: 13) (SILVA in CAÑIZAL (org.), 1996, p. 58)

Mais do que estabelecer um modelo de marginalidade, no capítulo 3, acreditamos ter explicitado a dinâmica de exclusão social. Ela depende das seguintes condições: a) os diferentes grupos sociais estabelecem regras de inclusão e exclusão social; b) ao terem conhecimento sobre a infração de uma regra por um de seus membros, o grupo poderá estigmatizá-lo ou não.

O processo de estigmatização é proporcional à visibilidade alcançada pelo estigma do indivíduo que descumpriu a regra do grupo. No caso dos protagonistas dos filmes de Almodóvar do início da década de 80, observamos que eles se relacionam de forma contracultural com as referências da tradição espanhola, identificada, naquele período histórico, com o passado de restrições às liberdades individuais. Nada mais natural que desenvolver uma estratégia narrativa de negação desses valores que impediram o desenvolvimento de certos comportamentos e estilos de vida. Não é de forma ingênua, no entanto, que Almodóvar retrata a transição democrática no país. A marginalidade, como potência de crítica às regras do grupo estabelecido, está representada, nos dois primeiros filmes (“Pepi, Luci, Bom”..., ”Labirinto de Paixões”), na homossexualidade de Pepi e Bom, na valorização de ícones da cultura de massa, na paródia às estratégias de publicidade, no hedonismo niilista, na ocupação do tempo livre com uso de substâncias psicoativas e com produtos culturais que claramente se opõem aos valores da cultura erudita, folclórica e moderna, típicos da Europa Ocidental. A ironia e o sarcasmo que alimentam Almodóvar em suas duas primeiras incursões comerciais

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ao mundo do cinema, são substituídas por um certo tipo de consciência crítica do passado em filmes cujos roteiros, de forma mais madura, vão revelar a falência do processo civilizatório que deposita sobre a técnica e o consumo a realização do ser humano. Em “Maus hábitos”, a marginalidade das freiras é potencializada pela equiparação entre instituição religiosa, não mais capaz de dar conta das necessidades metafísicas do novo sujeito urbano na Espanha democrática, e grupos estigmatizados pela cultura tradicional espanhola em conluio com o regime repressor de Franco. A sociedade de consumo absorve as mitologias, as representações, os símbolos e o imaginário e os reinterpreta para reproduzir o processo de produção como único modo de existência possível. Em “O que eu fiz para merecer isto?”, Glória, a mãe subempregada, frustrada social e economicamente com os benefícios da democracia, precisa se manter entorpecida para continuar viva. Ela é a representação mais exata e realista que Almodóvar faz do sujeito marginal que busca se reconfigurar diante de uma infinita crise de identidade nos mais diversos campos: social, econômico, cultural, sexual, religioso. No processo de análise fílmica desenvolvido na dissertação, buscamos, mais que nos ater aos procedimentos das metodologias tradicionais, produzir revisões críticas que estivessem informadas pelas teorias de cinema e comunicação de massa, mas que não se restringissem pura e simplesmente a elas. Esperamos ter apresentado um panorama das figurações da marginalidade em Almodóvar, pelo menos nas produções do início de sua carreira. As representações que o diretor manchego faz de personagens marginais, que são desprovidos de total aceitação social, posicionam de uma maneira muito particular e, ao mesmo tempo universal, a crise do sujeito diante da avalanche de estímulos simbólicos na metrópole pós- industrial. Uma grande vantagem no estudo das representações em Almodóvar é a continuidade de sua produção, que se manteve ininterrupta nos últimos 30 anos. O desenho de sua obra como um todo aponta para uma trajetória de representações da marginalidade. Ele retoma, em filmes recentes, tramas pouco desenvolvidas em obras anteriores e costuma repetir certas estratégias narrativas configurando um estilo particular de contar histórias. Almodóvar ainda se considera um legítimo representante da cultura marginal:

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I am still a figure of the underground, I’m an independent film-maker, my films may not be as underground as they once were, I now have money, but they’re still not mainstream. So in the States I’m in a rather difficult position, stuck in a sort of no man’s land. 54 (STRAUSS, 2006, p. 119)

Muito além de discutir se o cinema de Almodóvar pode ser categorizado como cinema de arte, de autor ou se, atualmente, ele se alinha mais ao entretenimento, neste trabalho, nossa principal preocupação foi revelar o ponto de vista que deu origem a sua produção cinematográfica, relacionando-o ao contexto histórico vivenciado pela Espanha da época. Usando recursos típicos da pós-modernidade, como o pastiche, a paródia e a metalinguagem, o diretor espanhol tece uma rede de significados sobre a sociedade espanhola do período de transição, permitindo que pensemos em possíveis paralelos com representações estéticas de fases análogas na história de outras sociedades. A mistura de gêneros identificada em seus trabalhos, por exemplo, é, de certa forma, uma representação de novos arranjos de negociações simbólicas e sociais contemporâneas. A personagem de Mia Farrow em “A rosa púrpura do Cairo” sabe o que é o mundo do cinema, que aquele imaginário se esvanecerá como a fumaça elegante (mas não menos venenosa) baforada por damas cobertas de pelerines nos salões das elites ociosas de um mundo onde a industrialização proporcionou, certa vez, excedentes de conforto. Almodóvar representa os marginais do ponto de vista de quem está ao lado deles, não necessariamente para julgá-los como maus ou bons, mas para explicar como se tornaram o que são hoje. E os filmes que analisamos neste trabalho, envolvem estes marginais com estas peles finas, oferecem-lhes as champagnes que lhes foram negadas e os tragos em charutos cubanos dos galãs do cinema clássico. A idealização poderosíssima que este cinema construiu é reapropriada por Almodóvar e, reprocessada com símbolos típicos da cultura de massa, ressurge na tela regurgitada, em jatos de urina, em vômito de escárnio, em beijos cuja voluptuosidade e baba devolvem ao espectador os desejos que lhe foram seqüestrados. Depois que o facho de luz encorpado atravessa a sala de exibição como um grande órgão deflorador, o olhar do espectador dos filmes de Almodóvar já está cortado pela lâmina inequívoca de seu cinema. A vida cotidiana é iluminada pelas obscuridades de seus personagens que, incessantemente, constituirão

54 Eu ainda sou uma figura do underground, sou um diretor independente, meus filmes podem não ser tão underground quanto foram, pois agora tenho dinheiro, mas eles ainda não são mainstream. Então nos Estados Unidos estou numa posição difícil, preso numa espécie de terra de ninguém. (tradução nossa)

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matéria de crítica da vida e, se possível, de sua reinvenção. As representações da marginalidade em Almodóvar injetam gozo para reiluminar a realidade do dia-a-dia. Aqueles que não queremos ver, os invisíveis, os marginais, ganham luz na tela de Almodóvar. E as marcas que nós mesmos temos, cicatrizes, falhas, culpas, triunfos ou medalhas, sob um facho de luz amplo e irrestrito, revelam nossas próprias invisibilidades em sua obra cinematográfica. A rosa púrpura do Cairo acorda do sonho, levanta, e sai de casa para mais um dia árduo de trabalho.

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