Igualdade De Gênero
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CAPÍTULO 9 IGUALDADE DE GÊNERO 1 APRESENTAÇÃO Realizar o acompanhamento das políticas públicas que impactaram a desigualdade de gênero e a vida das mulheres nos últimos dois anos é uma tarefa desafiante. Isto porque o contexto social e político tem se mostrado fortemente desfavorável para os avanços neste campo, tanto em razão do recrudescimento das ideias conservadoras na esfera pública ao longo do período aqui analisado – cuja gestação foi apontada em edições anteriores deste periódico – quanto porque as descontinuidades e reestruturações institucionais no âmbito do governo federal também foram aprofundadas nos anos de 2017 e 2018. Não obstante, em uma tentativa de dar sentido a estas mudanças e realizar um balanço do governo Temer no campo das políticas para as mulheres, este capítulo busca sintetizar as políticas setoriais que conversam mais diretamente com a pauta e explora, não só as ausências, mas o que tomou o seu lugar, em termos de novas agendas, temas e ações do breve governo. Tal como vem sendo realizado desde a edição anterior deste periódico, a seção de acompanhamento de políticas dá espaço a uma análise sobre os projetos de lei (PLs) relacionados à temática de gênero em tramitação no Congresso Nacional, locus para o qual se transferiram as maiores disputas em torno do tema neste período. Ademais, apresenta uma análise da conjuntura política do período, cobrindo não apenas o processo eleitoral de 2018 e suas complexidades e desafios para o debate acerca de representatividade, gênero e feminismos, mas também movimentos que surgiram de forma espontânea na sociedade, como o Escola Sem Partido e o #elenão. Antes, porém, este texto lança uma breve reflexão sobre os impactos das medidas de austeridade fiscal adotadas durante a gestão Dilma e aprofundadas no governo Temer e seus possíveis reflexos sobre as políticas de gênero e/ou voltadas para as mulheres. É este contexto mais amplo que irá determinar, em boa medida, as possibilidades de ação do Estado no campo em análise nos próximos anos. Espera-se, desta forma, dar continuidade ao importante registro que este periódico realiza ao acompanhar as políticas públicas há quase vinte anos. 318 Políticas Sociais: acompanhamento e análise | BPS | n. 26 | 2019 2 GÊNERO EM TEMPOS DE AUSTERIDADE Um primeiro parâmetro da ação estatal a ser considerado para o período de 2015 em diante, e que tem profundo impacto sobre as relações de gênero, é a vigência da austeridade fiscal. Muito além da política fiscal anterior, de gestão do deficit primário com vistas a manter, sob relativo controle, os indicadores da dívida pública e da inflação, a novidade trazida após o impeachment de 2016 foi a rápida tramitação e aprovação da Emenda Constitucional (EC) no 95, de 15 de dezembro de 2016, que opera o congelamento do valor real dos gastos públicos primários por vinte anos, do exercício financeiro de 2018 até o de 2037. Esta emenda constitui um marco na direção das políticas de austeridade, adotadas por diversos países como suposto remédio aos efeitos deletérios, sobre as contas estatais, da crise financeira global de 2008 e consequente recessão mundial. As regras fiscais tornaram-se comuns em países europeus, a fim de se conferir maior regularidade à gestão fiscal, impondo limites legais à ação estatal no campo social.1 Dessa forma, a austeridade elege o equilíbrio das contas públicas – e, no caso brasileiro, da conta de gastos primários – como prioridade, em detrimento do objetivo do pleno emprego e da estabilidade do produto interno bruto (PIB).2 Vieira (2016, p. 6) defende que as medidas de austeridade estão sempre “relacionadas à adoção de políticas que exigem grandes sacrifícios da população, seja porque aumentam a carga tributária seja pela implementação de políticas que restringem a oferta de bens e serviços públicos, em razão de cortes de despesas”. Nesse sentido, a profunda alteração da legislação trabalhista promovida pela aprovação da chamada Reforma Trabalhista, em vigor desde novembro de 2017 (Lei no 13.467, de 13 de julho de 2017), e da Lei da Terceirização, em vigor desde março de 2017 (Lei no 13.429, de 31 de março de 2017), ainda que possam não ser consideradas políticas de austeridade stricto sensu, constitui-se também em medidas que impõem uma série de sacrifícios à força de trabalho do país, produzindo efeitos complementares à EC no 95/2016, que, ao cortar gastos em políticas sociais, gera aumento do desemprego e empobrecimento da população. As alterações provocadas por tais medidas foram amplas, pois tocaram em mais de cem artigos e parágrafos da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e subverteram sua lógica essencial, que se assentava na presunção de assimetria entre o demandante de trabalho – 1. Sobre este assunto, ver Vieira (2016), que apresenta os resultados de revisões sistemáticas sobre os impactos da austeridade fiscal sobre a saúde de populações em diferentes países ao redor de todo o mundo. 2. Para além desta premissa, pouco explícita nos discursos oficiais, a regra fiscal brasileira é substancialmente mais impiedosa que as regras vigentes em outros países, pois: i) elege apenas o gasto primário como meta, e ainda o faz em termos absolutos, e não relativos ao produto interno bruto (PIB); ii) tem limites e sanções anuais e não de médio e longo prazo; e iii) não possui cláusulas de escape para acomodar eventuais crises financeiras e desastres naturais ou demográficos; entre outros aspectos. O chamado novo regime fiscal não inclui o congelamento da conta de juros nem tampouco impossibilita empréstimos de salvamento do sistema financeiro. Assim, na falta de cláusulas de escape para momentos de depressão econômica ou crises financeiras, será a população a arcar com todo o seu custo, pois o Estado não poderá realizar políticas anticíclicas como fez diante da crise de 2008-2009. Ademais, o congelamento do orçamento real significa que o Estado não poderá realizar o mandamento constitucional de expansão do sistema de saúde, educação e proteção social de qualidade para todos os cidadãos que deles necessitam, nem à medida que a renda e, consequentemente, as receitas tributárias se elevarem acima da inflação. Isto aponta para um modelo de maior provimento privado desses serviços e produtos. Ver, a esse respeito: Pires (2016), Vieira e Benevides (2016), Paiva et al. (2016), Fórum 21 et al. (2016). Para apresentações elucidativas em vídeo, ver audiência pública de 5 de julho de 2018 da Comissão de Direitos Humanos do Senado sobre alternativas à austeridade, disponível em: <https://bit.ly/35c9rTf>. Igualdade de Gênero 319 empregador em posição de maior poder de barganha – e ofertante de trabalho – trabalhador em posição de menor poder de barganha (Carvalho, 2017). Em resumo, essas legislações lograram: • reduzir o poder do direito do trabalho para atuar em prol da dignidade das relações de trabalho, uma vez que se instituiu a prevalência do “negociado” sobre o “legislado”; • reduzir a estrutura e o financiamento sindical; • alterar e multiplicar os vínculos trabalhistas, em especial inaugurando o trabalho intermitente, ou zero hora, permitindo a ampliação do uso da jornada por tempo parcial e a realização do trabalho exclusivo e contínuo pelos “autônomos”;3 • permitir a terceirização irrestrita; • permitir a flexibilização das jornadas de trabalho; • permitir a flexibilização das remunerações, que agora podem ser menores que 1 salário mínimo (respeitado o salário mínimo/hora); e • retirar os encargos trabalhistas e previdenciários que incidiam sobre o pagamento de diárias, ajudas de custo, prêmios ou abonos. Já é rica a literatura internacional que investiga o impacto das políticas de austeridade sobre homens e mulheres em outros países. Existem diversos mecanismos de transmissão pelos quais as políticas de austeridade podem impactar as relações de gênero, tendo como pano de fundo o entendimento de que a austeridade é um fenômeno de mais largo prazo do que simples ajustes fiscais ou crises econômicas cíclicas. Trata-se de um novo modo de governo. Em cada país, a depender da estrutura estatal prévia, da extensão e do tipo de políticas de austeridade adotadas, bem como do grau e tipo de divisão sexual do trabalho vigente, estes mecanismos de transmissão terão mais ou menos importância. Com base em Périvier (2018), Karamessini (2014) e Rubery (2014), podemos sumarizar as políticas de austeridade e os mecanismos de transmissão que podem impactar as relações de gênero no Brasil nos tópicos seguintes. 3. O trabalhador autônomo é aquele que trabalha por conta própria, sem vínculo com o empregador, sem relação de subordinação ou habitualidade, sem salário ou remuneração fixa, sendo responsável pelos riscos de sua atividade laboral, sejam eles os riscos físicos ou os riscos de não conseguir trabalho ou renda suficiente. A contratação de um trabalhador autônomo é, portanto, claramente vantajosa para o contratante, não apenas pela inexistência de vínculo jurídico com o trabalhador, mas também pela redução expressiva dos encargos trabalhistas e previdenciários a serem pagos caso o trabalhador fosse contratado por meio da CLT. Até a promulgação da reforma trabalhista, era vedada a “relação de emprego disfarçada”, que ocorre “quando o(a) trabalhador(a) exerce uma atividade regular, subordinada para outrem e não é contratado(a) como assalariado(a), mas como pessoa jurídica, autônomo(a), estagiário, cooperativado etc. Ou seja, no exercício da função estão presentes as características de emprego (pessoalidade, subordinação, remuneração regular), mas a forma de contratação é outra para não pagar os encargos trabalhistas e previdenciários nem os direitos de que tem carteira de trabalho assinada” (Krein e Castro, 2015, p. 15). A reforma trabalhista, ao alterar a CLT, incluindo o art. 442-B, porém, passa a permitir a contratação de autônomo de forma exclusiva, sem que isso implique que este trabalhador passe a ter a qualidade (e os direitos) de empregado tal como previsto no art. 3o da CLT. Assim, torna-se possível contratar um autônomo de forma contínua e exclusiva – ou seja, que irá trabalhar apenas para um contratante, com relação de habitualidade e subordinação – sem que isso implique a existência de um vínculo e nos direitos trabalhistas devidos a um empregado celetista.