E Surge O Samba – Possíveis E Prováveis “Origens” De Uma Epopéia Popular
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31º ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS, DE 22 A 26 DE OUTUBRO DE 2007, CAXAMBU, MG. ST 15 - ECONOMIA POLÍTICA DA CULTURA E SURGE O SAMBA – POSSÍVEIS E PROVÁVEIS “ORIGENS” DE UMA EPOPÉIA POPULAR DMITRI CERBONCINI FERNANDES1 1 Bacharel em Ciências Sociais pela FFLCH – USP, Doutorando do Departamento de Sociologia da FFLCH – USP e Bolsista FAPESP. E-mail: [email protected] I – DESDE QUE O SAMBA É SAMBA As décadas de 1910-30 marcaram o surgimento de diversas instituições e atores que deram força e molde a um domínio até então carente de expressão e reconhecimento legítimos no mundo artístico: o da música popular urbana (MPU2). Estas manifestações musicais eram majoritariamente criadas e reproduzidas por elementos destituídos de posses econômicas e culturais, em sua maioria jovens negros moradores de subúrbios, morros, favelas ou cortiços. Penetrando um pouco mais as peculiaridades dessas décadas, ao frisar os principais processos ocorridos nos períodos em que a formação institucional de um campo da música popular brasileira se fazia presente, a literatura acadêmica3 sublinha na década de vinte as lutas acirradas e os contatos diversos entre membros de distintas segmentações sociais. Estas lutas e contatos teriam assim contribuído para o início da legitimação do domínio das artes populares em instâncias de uma indústria cultural em expansão. Já a década de trinta seria o palco do assentamento de um veículo de comunicação de grande alcance popular (o rádio), do estabelecimento de indústrias fonográficas multinacionais e, na arena política, do câmbio das elites que até então governavam o país. Estas décadas, de fato, servem ao analista como um fértil período para a compreensão das futuras modificações e legitimações que vieram a ocorrer no gosto musical que predominava entre os distintos estratos da população. Em 1940, já era possível vislumbrar a sedimentação do primeiro período do processo de modificação da posição do “popular” no campo das artes do Brasil, que teve como resultado a legitimação do gênero musical popular mais conhecido ainda nos dias de hoje, o chamado “samba”. O processo de legitimação deste gênero e a decorrente autonomização do campo da MPU, nos termos de Bourdieu (cf. BOURDIEU, 1996: 101), que se deu ao longo da história, foi determinado sobremaneira pela ação de agentes geralmente ignorados pela literatura acadêmica, conforme tentarei demonstrar. O imenso processo de alquimia social realizado, uma conversão simbólica coletiva que teria contado com diversas forças e instituições, não poderia ter sido levado a cabo sem a importante contribuição do trabalho destes agentes presentes exclusivamente na cena 2 Este conceito é aproximativo e tem a pretensão de apenas realizar uma assemblage das diversas manifestações musicais executadas no período do final do século XIX e começo do século XX, sobretudo na cidade do Rio de Janeiro, capital de então e principal centro urbano do país. Após um longo processo de disputa simbólica, conforme tento demonstrar no decorrer do artigo, estas manifestações foram reduzidas ao termo genérico “samba”. 3 Penso sobretudo nestes trabalhos: CUNHA (2004); LOPES (1992); FROTA (2003); MORAES (1997 e 2000); VIANNA (2004); REIS (1999); FENERICK (2002); NAPOLITANO (2007) e WISNICK (1983). 1 cultural carioca. A imposição de uma estética musical popular (feito inédito) e que, quase que inacreditavelmente, tornar-se-ia, em muito pouco tempo - levando-se em consideração as disposições estéticas da elite de então - dominante, deve assim muito a estes personagens. A influência que diferentes espécies de trabalhos intelectuais exerceram para a formatação e a posterior legitimação do samba como “identidade nacional” entre diversas frações da sociedade fornece o mote principal da minha análise. II – O SAMBA PEDE PASSAGEM Além dos avanços técnicos na área musical que teriam marcado as décadas de 1920-30 no Brasil, forjando uma grande transformação dos padrões e gostos dominantes relativos à esfera musical, uma cultura musical popular no universo urbano moderno se estabelecia, tendo como principais veículos institucionais de difusão o rádio, o disco, o teatro de revistas e uma parcela da imprensa (jornais diários, periódicos matutinos e vespertinos, revistas especializadas etc). Conseqüentemente, o músico popular podia vislumbrar, já a partir deste período, uma possibilidade de profissionalização através das instâncias que surgiam, ainda que bem poucos obtivessem o êxito e a relativa independência econômica que daí pudessem provir (PEREIRA, 1967). Em 1930, contabilizavam-se exatas quatro estações de rádio na cidade do Rio de Janeiro. Já no final da mesma década, mais oito emissoras de rádio juntaram-se àquelas nesta cidade, e estas eram, dentre as instâncias citadas, os principais meios e locais de concentração do músico popular e de reprodução de sua música (cf. MORAES, 2000, p. 22). Este número de estações duplicaria até a década de cinqüenta, quase atingindo vinte estações. Sem dúvida, neste período, antes do advento da televisão no Brasil, o rádio era o principal veículo de comunicação, possuindo altíssimos índices de audiência, infiltrando-se no grosso da população urbana com seus programas de notícias, humorísticos e o seu veio principal a partir de meados de 1932, a música popular4. A indústria fonográfica beneficiar-se-ia muito deste veículo. Gravando 4 Em 1932, um decreto presidencial de Vargas permite a venda de quotas do tempo de transmissão das rádios para anúncios comerciais, modificando o caráter e a estrutura dos programas transmitidos até então. Passa-se a investir no arrebatamento de um maior número de público ouvinte, através de programas mais “ligeiros” e de feições populares. Aliás, quando do surgimento das transmissões radiofônicas no Brasil (1922-3), palestras, discursos políticos, músicas eruditas e outras atividades “culturais e educativas” representavam a finalidade deste então nobre instrumento de comunicação (CABRAL, 1996, pp. 6-15). Passado este período inicial, com a abertura de novas estações, estas não mais sociedades de mantenedores e amantes do rádio, mas sim estações “semiprofissionais” que visavam o lucro, houve uma modificação profunda nos caracteres dos programas veiculados. Assim, uma programação mais ágil e 2 majoritariamente músicas de teor popular5, as “gravadoras” terão um eficaz meio de divulgação de seus produtos através das rádios, que, em contrapartida, podiam ter seus tempos preenchidos com esta arte-média6 de fácil assimilação já conhecida do grande público, correspondente aos anseios e ao estado de penúria apresentados pelas camadas populares no manejo da cultura então legítima. Simbiose quase perfeita. O público das rádios passava a contar assim, a partir de 1932, com um enorme contingente de desprivilegiados de toda sorte (analfabetos, desempregados, empregadas domésticas, lumpens-proletários etc.), sendo a grande maioria excluída do sistema cultural legítimo. Este público detentor de disposições legitimamente inferiores era o espelho da maioria da população brasileira naquele período7. A existência de uma estrutura objetiva hierarquizante e hierarquizada, que marcava a distância entre as disposições estéticas de camadas distintas da população, permanecia vigente ainda em 1940 entre alguns jornalistas porta-vozes de parcela da elite8. Assim, podemos inferir que o público ouvinte das irradiações da época era constituído por uma maioria desprovida dos capitais culturais legítimos, diferentemente dos primórdios da irradiação no Brasil (1922), em que as já citadas sociedades educativas utilizavam as ondas sonoras para promoverem a música erudita e a “boa” educação popular. Estas camadas com feições populares reinará quase que absolutamente em todas as estações, aproximando-se do gosto médio da maioria da população urbana do período. 5 Pois, além de outros motivos, os meios de gravação eram extremamente precários e este gênero de música possuía menos dificuldades técnicas para se gravar, tendo em vista o número reduzido de instrumentos e vozes, ao contrário, por exemplo, de uma orquestra de música erudita. Além disso, pululavam compositores e cantores desse gênero nas grandes aglomerações urbanas, o que facilitava a escolha e o preenchimento de repertório. Estes cantores e compositores oriundos das baixas camadas sociais, diga-se de passagem, nada ou quase nada recebiam naquela época da gravadora pelos seus serviços prestados, muito menos pelos inexistentes “direitos autorais”. Ver Tinhorão (TINHORÃO, 1974). 6 A expressão “arte média” é tomada neste trabalho conforme a definição de Bourdieu (in: BOURDIEU, 2001, p. 136): “(...) a arte média, em sua forma típico-ideal destina-se a um público muitas vezes qualificado de “médio” (...) e mesmo quando não se dirige especificamente a uma categoria determinada de não-produtores está em condições de atingir um público socialmente heterogêneo, quer de maneira imediata, quer mediante uma certa defasagem temporal. É lícito falar de cultura média ou arte média para designar os produtos do sistema da indústria cultural pelo fato de que estas obras produzidas para seu público encontram-se inteiramente definidas por ele.” 7 Quando as rádios começaram a montar platéias abertas ao público em seus estúdios (cerca de 1935), a presença constante de mulheres pobres e negras acabou motivando um jornalista a escrever uma crônica em um jornal carioca na década de 1940. Esta crônica chamava a estas pejorativamente de “macacas de auditório”, por causa da cor e do modo “inadequado” pelo qual se portavam, longe do padrão blazé esperado pelo