GAVEA­" -BROWN

A BIlingual Journal of Portuguese­ American Letters and Studies

Revista Bilingue de Letras e Estudos "ols.){II-){J1{ Luso­ -Americanos Jan. 1991 Dec.1993 CO-DlRECTORESIEDITORS Onesimo Teot6nio Almeida, Brown University George Monteiro, Brown University

EDITOR EXECUTIVOIMANAGING EDITOR Alice R. Clemente, Brown University

CONSELHO CONSULTIVOIADVISORY BOARD Francisco Cota Fagundes, Univ. Mass., Amherst Manuel da Costa Fontes, Kent State University Jose Martins Garcia, Universidade dos A~ores Gerald Moser, Penn. State University Mario J. B. Raposo, Universidade de Lisboa Leonor Simas-Almeida, Brown University Nelson H. Vieira, Brown University Frederick Williams, Univ. Caiif., Santa Barbara

Gdvea-Brown is published annually by Gavea-Brown Publi­ cations, sponsored by the Department of Portuguese and Brazilian Stud­ ies, Brown University. Manuscripts on Portuguese-American letters and/or studies are welcome, as well as original creative writing. All submissions should be accompanied by a self-addressed stamped envelope to:

Editor, Gdvea-Brown Department of Portuguese and Brazilian Studies Box 0, Brown University Providence, RI. 02912

Cover by Rogerio Silva GAVEA-BROWN"

Revista Bilingue de Letras e Estudos Luso-Americanos A Bilingual Journal ofPortuguese-American Letters and Studies

"ols. JlII-JlI1V Jan. 1991-Dec.1993

suMARIOI CONTENTS

ArtigoslEssays

Baleias, botes & baleeiros lan~ados nas linhas do texto ...... 5 Urbano Bettencourt J. Rodrigues Migueis: 0 homem e 0 drculo ...... 17 Domingos de Oliveira Dias o choque cultural na L(USA)liilldia atraves da sua literatura ...... 43 John Pires The Portuguese Immigrant Experience Through Its Autobiographers ...... 68 Jose l. Suarez

DocumentoslDocuments

J. C. Luiz - urn escritor luso-hawaiiano ...... 77 Edgar C. Knowlton, Jr. Eugenio de Andrade in America ...... 86 Alexis Levitin Carta aberta aDoutora Ana de Brito ...... 100 J.M.S. SimOes-Pereira o meu avo e a saudade ...... 104 Barbosa Tavares. Joseph Vieira (1907-1989) ...... 106 Nelson H. Vieira

PoesiaiPoetry

Dreams and Sighs (after Nellie Wong) ...... 109 Charlotte Simoes Churchill Faja Wine ...... 110 Art Coelho Vinho da Faja ...... 114 Jose F. Costa When I See ...... 118 Cynthia Rego Lelos Quando voltar ailha ...... 119 Teresinha Sales Homage to Carlos Paredes ...... 120 Charles Wayne Santos Folhas do outono ...... 121 Barbosa Tavares Daydreaming ...... 122 Raquel Torres

Fict;aolFiction

Uma rosa perfumada ...... 123 Arthur Brakel The Gardens of Hades ...... 133 Raquel Torres The Haunted Window: A Nineteenth-Century American Story with an Azorean Twist ...... 137 George Monteiro

Recensoes CriticaslBook Reviews

Olga Gon~a1ves, Contar de Subversao .•...... 152 Alice R. Clemente Mario Neves, Jose Rodrigues Migueis: Vida e Obra ...... 155 Vamberto Freitas Joao Teixeira de Medeiros, Dha em Terra...... 158 Eduardo Bettencourt Pinto ARTIGOSIESSAYS

Baleias, botes & baleeiros lam;ados nas linhas do texto

Urbano Bettencourt

Ja se sabe: ao Moby Dick, de Herman Melville, costuma ir buscar-se a mais credenciada carta de recomenda~ao dos baleeiros a~orianos (pelo menos em termos intemacionais); af urn capitulo dedicado a descri~ao da tripula~ao do "Pequod" traz este fragmento lapidar: "urn nao pequeno numero de baleeiros provem dos A~ores, onde os navios de Nantucket fazem frequentemente escala para aumentar as suas equipagens com os robustos camponeses dessas ilhas rochosas"1 Nao sera caso para abordar aqui detalhadamente 0 contexto proximo em que se insere 0 fragmento em questao, isto e, 0 de uma divag~ao sobre urn modelo de estrutura~ao social em que, mediante uma metaforiz~ao de camcter anatomico cujas implic~oes sao obvias, se abribui ao Americano 0 estatuto de "cerebro" e ao Outro 0 de "musculo" - possivelmente, esse mesmo contexto exigiria, por sua vez, uma integra~ao no ambito mais complexo do universo significativo e simb6lico do livro de Melville. Mas essa ideia de for~a fisica, que 0 adjectivo "robustos" prolonga e veicula, podendo aparecer como uma consequencia da luta contra a natureza inospita das ilhas ("rochosas") e da necessidade de domina-las, ajudara talvez a explicar, em parte, aquilo que, logo adiante e ja como aprecia~ao generalizada, afmna 0 narrador: "nao se sabe porque, mas e dos ilheus que saem os melhores baleeiros"2. 6 URBANO BETIENCOlJRT

Talvez devessemos perguntar-nos se esta perplexidade quanta areconhecida aptidao dos ilheus nao resultara, afinal, das limita~oes de que enferma esse esquema dualista; mas isso nao poria em causa a validade global do texto de Melville nem a sua importancia como documento para a compreensao do incremento da balea~ao a~oriana na sua fase mais pujante e da sua intima liga~ao aamericana: antes de a ca~a abaleia se tornar uma actividade industrial radicada nos A~ores, as baleeiras dos Estados Unidos tinham sido urn recurso para a mao­ de-obra a~oriana e, principalmente, 0 veiculo privilegiado para se atingir o territ6rio do Novo Mundo, em fuga ao recrutamento e afome - e desse modo sao inseparaveis dos rumos que a ernigra~ao a~riana tomou no seculo passado, com reflexos na pr6pria linguagem, em que a palavra baleeiro se tornou equivalente a emigrante. o impacto produzido na vida a~oriana pela ca~a abaleia, mais forte numas ilhas do que noutras, as suas incidencias no tecido social e a sua importancia econ6rnica vao de par com os seus reflexos em deterrninadas manifesta~oes da cultura popular, dando origem a uma forma particular de artesanato, e nao deixam tambem de repercutir-se no interior da literatura, da a~oriana em particular, embora the nao perten~am em exc1usivo tais dorninios tematicos. Na verdade, a narrativa e lfrica tern chamado a si a baleia e a balea~ao como materia de tratamento literano, apesar de a especificidade de cada urn desses modos implicar a preferencia por urn ou outro destes t6picos: e possivel notar como a lirica tern privilegiado a baleia em si, num discurso revelador e produtor de conex6es simb6licas e mesmo rniticas, enquanto na narrati va a aten~ao reeai principalmente sobre a actividade baleeira, com 0 seu universo de implica~oes e contingencias. Sensiveis a esta tematica foram ja os elementos do chamado "nuc1eo da Horta", grupo de autores que, no final do seculo passado e princfpios do presente, se constituem 0 motor e, simultaneamente, 0 sinal de uma dinarnica cultural que, muito ligada airnprensa, aquela cidade conhece por essa epoca (com destaque, no caso presente, para os nomes de Rodriguo Guerra, Florencio Terra, Nunes da Rosa, Marcelino Lima e Ernesto Rebelo). Rodrigo Guerra3 e tambem Nunes da Rosa4, por entre uma tematica que vai do mar aemigraqiio e aterra5, trouxeram para as suas narrativas as diversas vertentes da balea~ao e deixaram-nos paginas em que tanto se deteeta a nostalgia sentida pelos homens embarcados BALElAS, Bo-rES & BAlEEIROS LAN(;ADOS ~AS LINHAS DO 1EXTO 7

clandestinamente e a contas com a solidao da vida a bordo, como se assiste ao desenrolar de historias em que a aventura, 0 drama e a destrui~ao, ffsica e moral, se cruzam na vida das personagens, alterando­ lhes os rumos do destino. De Emesto Rebelo e a breve narrativa There... she blows6 em que, apesar do titulo, a tematica especificamente baleeira surge integrada num contexte mais vasto e como uma deriva lateral ocasionada por factores fortuitos surgidos no decorrer da propria narra~ao; mesmo assim, 0 que ai fica e 0 relata do "ti~ Roque", personagem transformada em narrador, que evoca a sua experiencia de cinco anos de "labuta~ao no mar", no navio "Providence". Se a sua fala nos surge contaminada por expressoes e termos ingleses, isso deve-se apenas ao facto de 0 mundo baleeiro ter sido inicialmente apreendido e identificado atraves dessa l:fngua - alias, a terminologia tecnica especifica da balea~ao deixou, como era de esperar, marcas bern visiveis na escrita a~oriana, mesmo que, em muitos casos, com uma fonia ja "transladada" e convertida ao sistema grafico do portugues. o recurso a uma voz "de experiencia feita" e tomada narradora do "vivi do" , deixando ao autor textual 0 papel de mero depositario de uma narrativa que the e exterior, caracteriza a curta historia de Florencio Terra, "Tal como se ouviu", incluida em A Pesca da Baleia7, volume colectivo que rertne ainda textos de Marcelino Lima, do terceirense J oao Ilheu e do caboverdeano Eugenio Tavares. No conjunto, os quatro textos comp5em urn quadro em que perpassam as vicissitudes da ca~a abaleia, as suas tecnicas e condicionalismos, passando-se da expectativa e da euforia aos momentos de angustia e mesmo de morte, e permitem ainda uma aproxima~ao entre os arquipelagos dos A~ores e Cabo Verde, nao somente ao nivel de uma pratica, mas sobretudo na forte presen~a do "feiti~o de balear" (expressao que da titulo ahistoria de Joao Ilh6u, mas cuja realidade mais profunda e 0 sentimento que anima e acaba por matar a personagem central do conto de Eugenio Tavares). Publicado inicialmente em 1903, no Album Arsoriano, 0 atras referido texto de Marcelino Lima, "A Ca~a da Baleia", eapenas urn esbo~o muito rudimentar da desenvolta narrativa que, exactamente com 0 mesmo titulo, ele incluira em Por causa dum Ramalhete 8: a ac~ao e localizada Hna pequenina vila de Sao Roque", em Novembro de 1900, e desde 0 rebentar dos foguetes ate ao disparo da bombelance sobre a baleia, os acontecimentos sucedem-se num crescendo de intensidade 8 lJRBANO BETIENCOURT

que vai atingir 0 seu ponto terminal no naufnlgio colectivo e na morte dos dois baleeiros que, tornados de panico, se afundam avista da canoa que os vinha salvar. Encaixada na historia principal, uma outra e narrada: aquela em que Mestre Vitorino, antigo baleeiro com "arrecadas de ouro" nas orelhas, relata a sua vida de rapaz "empurrado" pelo pai para urn navio americana e que se fez homem pelos "cantos do mundo", com uma curta paragem numa "estoa" de New Bedford. Ainda aqui, tamMm, a existencia de urn narrador interposto faz passar, no seu discurso, quer uma experiencia individual, quer urn saber especffico sobre a actividade baleeira; e essa condit;ao de quem "vira muito, muito experimentara" proporciona-Ihe 0 estatuto de respeitabilidade e estima de que desfruta junto dos outros habitantes e a que nao serao ainda alheios alguns trat;os ffsicos, que van da "cabeleira embranquecida" ate aos sinais deixados na face, "queimada pelos rocios do mar sob intermimiveis calmarias de meses emeses, sulcando as solidoes do oceano"9. Essa aura de prestigio e de admirat;ao que envolve 0 baleeiro concretiza-se igualmente e intensifica-se em Ti' Amaro de Mirateca, a personagem de Mau Tempo no Canal que, no dizer de outTO companheiro, "por essa costa abaixo mete um respeito a todos"l0 e em quem Nemesio tipifica qualidades como a coragem, a abnegat;ao e um forte sentido de honra e de liberdade, por ele atribuidos ao picoense em gerall1. Em carta de 19 de Janeiro de 1944, escrevia Nemesio: "saiu­ me, no 114 ou 1/5 final, um romance de baleeiros do Pico - 0 ti Amaro de Mirateca, 0 Espadinha e outros de orelhafurada"12. Efectivamente, situando 0 fulcro da act;ao central de Mau Tempo no Canal em tres ilhas do Grupo Central, Vitorino Nemesio nao escapou ao "feitit;o" e a carga historic a e mitica da baleat;ao, que entra no romance sob divers os moldes e a diferentes nfveis de funcionalidade. 0 Capitulo XXVIII, "Oceano Glacial Arctico", traz-nos, atraves da fala de Ti' Amaro, nao so a sua historia de vagabundo maritimo embarcado a salta ainda "com tabaco no imbigo" e que cruza os mares atras das baleias, chegando mesmo a ir ao bacalhau a"Grolanda", mas tamMm dados de outra natureza, sobre 0 estabelecimento da baleat;ao no Faial e no Pico. E preciso ter ainda em conta que, no jogo de interesses e de conflitos internos de Mau Tempo no Canal, 0 arresto das canoas de Diogo Dulmo eum dos meios de que Januano Garcia se serve para fechar 0 cerco BALEIAS, BOTES & BALEEIROS LAN~ADOS NAS LINHAS DO TEXTO 9

aquele e sobre ele exercer a sua vingan<;:a pessoal e de "casta"; por outro lado, a atrac<;:ao de Andre Barreto ao cIa dos Dulmos faz-se a sombra de uma manobra fmanceira tendente a recupera<;:ao das arrna<;:oes baleeiras destes 6ltimos. Finalmente, e atnls de uma baleia, tao implacavel como 0 destino ou tao cega como a serpente do seu anel, que Margarida atravessa 0 canal Pico-S. Jorge, definitivamente atirada para os bra<;:os de Andre Barreto. Se ha quem afmne que a narra<;:ao da persegui<;:ao a baleia em Mau Tempo no Canal nao esta isenta de algumas "fifias"13 de caracter teenico, tambem e facil de concordar que elas acabam por ser relegadas a urn plano muito secundario pela intensidade dramatic a que vai envolvendo Margarida Dulmo e pela dinfunica de uma linguagem que tao bern da conta quer da "loucura" colectiva desencadeada pelo rebentamento do "bombao", quer da vertigem e do impulso irracional que se apoderam dos homens lan<;:ados no encal<;:o das baleias. Raul Brandao, que visitou os A<;:ores em 1924 por urn periodo de quase tres meses, deixou-nos as suas impressoes de viagem no belissimo livro As [lhas Desconhecidas, onde urn capitulo e dedicado a "pesca da baleia". 0 olhar de Brandao sobre os A<;:ores e fundamentalmente 0 olhar de espanto de quem observa urn mundo originario, genesiaco e de imediato 0 subjectiviza em termos de fantasmagorias e de "figuras estranhas"; isso, porem, nao 0 impede de ser "ate hoje 0 escritor portugues que melbor soube ver os A<;:ores", na opiniao abalizada e insuspeita de Pedro da Silveira14. Ora 0 certo e que ja 0 pr6prio Brandao se apercebera de que, para la das meras razoes econ6micas, outras for<;:as e mecanismos profundos motivaram 0 fascfnio pela ca<;:a abaleia: "Todos ganham. ( ... ) Mas ha principalmente a necessidade de matar, de lutar (numa vida que e mais mon6tona do que em qualquer outra parte - duas vezes mon6tona pelo mar que os circunda e pelos montes que os entaipam), de vencer as contrariedades e os perigos sentimento com raizes no mais profundo da alma humana"lS. E 0 epis6dio por ele relatado (0 do padre que fica no meio da rua com 0 "latim engasgado" e urn morto no caixao, porque todos os acompanhantes debandaram ao ouvir 0 sinal de baleia avista) e paradigmiitico dessa resposta instintiva, primitiva a uma espeeie de apelo ancestral e remoto. Avolta de meados do presente secul0, vinham a publico no Faial tres obras de Manuel Greaves, a integrar no conjunto de uma 10 URBANO BEITENCOURT

tematica baleeira que, no entanto, adquire no interior delas diferentes niveis de importfulcia e de espa90. Greaves apresenta-se como 0 "re­ lator" de historias recebidas de outrem, 0 que, alias, transparece dos proprios titulos1 6; trata-se, na maior parte dos casos, de breves notas, mais descritivas ou mais narrativas, apontamentos sobre acontecimentos historicos, referencias de caracter etnografico. E ate mesmo um livro como Aventuras de Baleeiros17, cujo proposito narrativo e nitidamente maior do que nos anteriores, se apresenta como a transposi9ao de uma historia ouvida, neste caso a aventura de Jose Rodrigues, abaleia. Do embarque c1andestino e da vida a bordo da baleeira Yampa ate achegada e apermanencia em terras da America, com a ca9a abaleia pelo meio, urn naufragio e posterior "vida de Robinson" - de tudo isso se compoe este relata de peripecias, algumas delas ao jeito de fait divers de pendor exotico. 0 autor afmna, alias, e alaia de aviso, que, embora assente em bases de verdade, a historia "vai amaciada por ligeira fantasia, e acrescida duns casos amargem"; talvez sejam mesmo esses "casos a margem", aliados a uma insipiencia oficial, que levam a certa desarticula9ao interior da narrativa. De resto, e no conjunto, a validade das tres obras residira fundamentalmente no facto de 0 autor ter registado por escrito alguns episodios e elementos referentes aca9a a baleia e avida no mar, que de outro modo se perderiam na vertigem do tempo; na verdade, a escrita de Greaves nao via, normalmente, alem do descritivismo e do relata fortemente referencializado18, 0 que, nao sendo crime nem defeito, apenas obriga a que a situemos no plano de uma perspectiva documental em que os elementos historicos, etnograticos e sociais constituirao os parrunetros mais pertinentes para uma avalia9ao correcta. Por essa mesma altura, iniciava Dias de Melo uma obra literana que, pela pluralidade de perspectivas e de modos de aproxima9ao, constitui hoje a mais completa e a mais complexa abordagem da balea9ao picoense, muito particularmente da que se reporta aCalheta de Nesquim. Tendo com~ado pela poesia19, Dias de Melo inflectiria depois para a prosa, com um livro de "cronicas romanceadas"20 em que a vertente informativa, documental, era ja atravessada por urn pendor narrativo que se cumpriria plenamente em Pedras Negras21 e em Mar pela Proa22. Conhecendo de perto a actividade baleeira e olhando-a (sentindo-a) como coisa sua, Dias de Melo (ele proprio baleeiro BALEIAS, BOTES & BALEEIROS LAl"l't;ADOS NAS UNHAS DOTEX1D 11

esporadicamente) fez de grande parte da sua escrita urn paine I dessa mesma actividade, enquadrada numa rede mais vasta de relar;oes de trabalho e sociais nem sempre padficas. 0 c1ima de harmonia e de entendimento entre baleeiros e armadores observavel emMau Tempo no Canal cedeu lugar, na ficr;ao de Dias de Melo, a urn mundo antagonico em que os interesses dos grandes nao coincidem necessariamente com os dos pequenos e sao estes que, em ocasioes de conflito aberto, acabam submetidos aforr;a, mas nao arazao, daqueles que, possuindo os meios de produr;3.0, isto e, as baleeiras, tern ainda pelo seu lado 0 poder estabelecido e os seus "argumentos" repressivos tal como acontece no final de Pedras Negras. Contra isso, a solur;ao, para os baleeiros, passa pela posse de canoas proprias, o que de certa forma esta na base dos acontecimentos de Mar pela Proa, onde os adversarios, porem, ja nao sao os armadores, mas a tUria do mar que leva consigo botes e homens. Mesmo que 0 segundo destes livros venha marc ado por urn ritmo de linguagem que acompanha 0 dramatismo do "desastre do Canal", presenciado em terra por gentes impotentes para prestar aos naufragos 0 menor amu1io, Pedras Negras continua a impor-se pela globalidade do mundo representado e no interior do qual se movirnenta Francisco Marroco, personagem tragica que urn dia desafiou a llha, abalando numa ba1eeira com os olhos postos nas "calif6rnias perdidas de abundfulcia"23, e, uma vez regressado, acaba, afinal, esmagado por essa mesma llha, ap6s 0 fugaz intervalo de uma felicidade ilusoria. Dias de Melo, porem, nao esgota 0 assunto nessas obras; em Vida Vivida em Terras de Baleeiros24 articula a evoca\=ao com a documenta\=ao e a pesquisa e fornece-nos elementos valiosos para 0 historial da balea\=ao no Pico entre 1876 e 1983, isto e, no perfodo que vai da funda\=ao da primeira arma\=ao baleeira ate afase de reconhecido declinio e desaparecirnento da actividade. E e indispensavel referir ainda a recolha por ele feita, na ilha do Pico, de relatos orais depois reunidos nessa obra impressionante, a myel etnografico, social e humano, que e Na Memoria das Gentes25 , cujo Livro I e particularmente rico quanto a informar;iio vivida sobre a actividade baleeira. Num outro momento, que e 0 de uma distanciar;iio nao apenas temporal, se situa 0 tratamento que esta tematica recebe em Jose Mar­ tins Garcia, Alamo Oliveira e Manuel Ferreira Duarte. 12 URBANO BETTENCOURT

De todos, 0 livro mais recente eo de Manuel Duarte26 que num dos seus contos reconstr6i toda a movimenta~ao provocada pela ca~a a baleia, tra~ando um quadro mais geral do mundo dos baleeiros, afinal a parte que menos lucrava com uma actividade para que contribufa com a for~a dos bra~os e da vontade, mesmo com 0 risco da propria vida. Narrativa escorreita esta, de um autor imigrante hi vtirios anos nos Estados Unidos, e que nenhuma nostalgia desfoca ou perverte, embora a "piscadela de olhos" eco16gica af (a) par~a algo deslocada, sobretudo se pensarmos que, no caso dos A~ores, as raziJes ecologistas nunca conseguiram apagar a sua aparencia de desraziJes pouco transparentes. Jose Martins Garcia27 deu a um seu conto 0 titulo de "Os Baleeiros", mas fe-Io num sentido, ja atras referido, em que a palavra designa os imigrantes que tinham utilizado os navios baleeiros para chegarem as terras do Novo Mundo. Efectivamente, no conto em questao, e apesar do titulo, 0 "foco" narrativo projecta-se fundamentalmente sobre as reac~Oes dos parentes perante a chegada dos dois baleeiros, "ap6s meio seculo de ausencia". Nem nostalgia, nem herofsmo - apenas um registo burlesco em que a avidez da passarada familiar em rela~ao aos "grandes baus dos baleeiros" mal disfar~a a penuria de um tempo que s6 as roupas da America conseguiam atenuar. Algo diferente se passa com 0 conto "Nao 15 pra me gabar", de Alamo Oliveira28: a ca~a 11 baleia pertence definitivamente a mem6ria, que pode preservar-se, por exemplo, num qualquer Museu da Vila, alvo possivel de roubo por parte de uma "baleia medlnica". A efabula~ao e o imaginario situam-se nitidamente numa fase de p6s-balea~ao e nem lhes falta sequer um leve toque de Spielberg. Se bem repararmos, aperceber-nos-emos de que todos os ficcionistas ate aqui referidos provem, geograficamente, de ilhas do Grupo Central do Arquipelago e sera escusado debru~armo-nos aqui sobre as razoes de tal fen6meno. No entanto, tambem 0 escritor micaelense Manuel Ferreira tratou 0 tema da balea~1io numa extensa narrativa que da 0 titulo a um dos seus livros29. Partindo do Morro como ponto privilegiado de observa~ao, Manuel Ferreira refaz 0 ciclo que come~a no Vigia, mestre Jose Caguinchas, e a ele retorna, finalmente, depois da luta desigual entre 0 homem e 0 monstro e ja com este a ser derretido nos caldeiros. A ac~ao aqui elocalizada na BALEIAS, BOTES & BALEEIROS LAN~ADOS NAS LlNHAS DO lEXTO 13

costa norte de S. Miguel, mas a perspectiva sobre a actividade e mais vasta do que is so e 0 quadro social e identico ao que encontramos em Dias de Melo e em Manuel F. Duarte: a "arraia-miuda", por urn lado, e, pelo outro, "os galfarros da Companhia" (Manuel Duarte chama-Ihes os "galifoes"). Fora do dorninio da narrativa ficcional, urn valioso livro de Nuno Alvares30 traz-nos a evocayao do que foi a baleayao na Ilha de S. Jorge no perfodo de 1930 a 1945. Filho de urn armador, Nuno Alvares comeyou a ir abaleia por volta dos oito anos e do "vfcio" que daf nasceu eborn testemunho 0 seu livro: urn pormenorizado conhecimento teenico da materia e urn rico acervo de experiencias, nalguns casos praticamente unicas, tomam a leitura particularmente atraente, sobretudo porque uma linguagem sugestiva consegue contrabalanyar a eventual secura da descri\iao tecnica e hist6rica com a vivacidade e a limpidez postas na evocayao de acontecimentos e pessoas. Ja atras se falou de Raul Brandao na sua qualidade de escritor que regista as impressoes deixadas pela sua visita aos A\iores. Brandao e apenas urn dos muitos que, em termos nacionais e intemacionais por ca passaram e disso deixaram prova escrita, e seria impensavel neste momenta dar conta de tudo 0 que, a esse myel, sobre a balea\iao ayoriana esHi registado31 . Com isto presente, e assumindo 0 risco e as consequencias da parcialidade, referirei as indicayoes deixadas por Hip6lito Rapos032 sobre baleeiros da Graciosa. 0 autor, que motivos polfticos "despacharam" para uma residencia foryada nesta ilha, aproveitou essa permanencia para, como diz, ir "juntando folhas escritas nos vagares foryados de uns meses de saudades" e com is so alimentar "a Husao de nao perder 0 tempo". Num capftulo intitulado "Lidas do Leme e do Arado", Hip6lito Raposo tra\ia-nos 0 perfil de alguns baleeiros graciosenses (mestre Vital, 0 trancador Casimiro) e deixa-nos ainda breves apontamentos de natureza factual e tecnica. E a passagem pelas Lages do Pico, a bordo do Lima, proporciona-lhe igualmente algumas anotayoes quanto adegradante situa\iao dos baleeiros nesta ilha. Tambem resultado de uma viagem (mas voluntana) aos A90res eo livro Mulher de Porto Pim, de Ant6nio Tabucchi33. 0 escritor italiano depara-se com a balea9ao ja na sua fase de dec1fnio e lanya sobre "homens e bichos" urn olhar transfigurador que abarca uns e outros como habitantes de urn mesmo mundo em extinyao. E certo que 0 caracter comp6sito do livro (em que ficyao, mapas, disposi\iOes legais e 14 URBk~OBETTENCOURT

transcri~oes de textos recnicos se justapoem e combinam) sera capaz de provocar alguma estranheza e mesmo a parte especificamente informativa podera nao trazer nada de novo a leitores com 0 minimo de a-vontade no assunto; mas epreciso nao esquecer que publico 0 livro visava prioritariamente. De resto, a balea~ao enquanto jeitiro e sobretudo paixiio merecia bem uma narrativa como a que da 0 titulo a obra de Tabucchi, do mesmo modo que 0 espantoso "Post Scriptum" constitui um dos grandes textos sobre 0 crepusculo dessa mesma paixao: nostalgia, lamento, dissolu~ao. Chegado a este ponto, reconhe~o que seria a altura de voltar de novo ao ponto de partida e refazer 0 percurso, ja 000 em termos de levantamento, mas, antes, com 0 prop6sito de questionamento: que tipo humane constr6i esta escrita da balea~ao nas suas distintas manifesta~oes? qual 0 retrato, os retratos que do baleeiro nos ficam? que rela~oes entre a ilha e 0 mundo a balea~ao permitiu estabelecer? quais as mem6rias, os mitos que da ca~a a baleia nos ficaram e sediment am agora no nosso imaginario? A resposta a esta e a outras perguntas levar-nos-ia a um campo mais produtivo de trabalho, talvez mesmo mais sedutor e benefico. 0 repto aqui fica lan~ado como apelo final de um texto que, hesitando sempre entre a mera listagem e a interpreta~ao, acaba por deixar expostas as suas lacunas num e noutro flanco. BAlEIAS, BOTES & BALEEIROS LAN<;:ADOS NAS LINHAS DO TEXTO 15

NOTAS

1 Hennan Melville, Moby Dick -A baleia branca, Mem Martins, Publica~6es Europa­ America, sId, Vol. I, p. 140. 2 Idem, ibidem, p. 14l. 3 Rodrigo Guerra, A Americana, Col. Gaivota, nO 8, Angra do Herofsmo, Secretaria Regional da Educa~ao e Cultura, 1980. 4 Nunes da Rosa, Gente das ilhas, 2" edi~ao, Angra do Herofsmo, Instituto A~oriano de Cultura, 1978 (I" ed. 1925). 5 Utilizo aqui a tipologia apresentada por Joao de Melo, Antologia Panoramica do Conto A~oriano, Lisboa, Vega, 1978, p. 30; fa~o-o, porem, com urn sentido menos restritivo. 6 Ernesto Rebelo, There ... she blows... !..., Lajes do Pico, Publica~6es do Museu dos Baleeiros, 1982. 7 A Pesca da Baleia - 4 Contos Baleeiros - A~ores Cabo Verde, Lajes do Pico, Publica~6es do Museu dos Baleeiros, 1983. Tanto este livro como 0 anterior contem informa~ao valiosa nos prefacios de Joao Afonso e Pedro da Silveira, respectivamente. 8 Marcelino Lima, Por Causa dum Ramalhete, Lisboa, Parceria Ant6nio Maria Pereira (Depositaria), 1933, pp. 49 a 109. 9 Idem, ibidem, p. 63. 10 Vitorino Nemesio, Mau Tempo no Canal, 8" edi~ao, Venda Nova, Bertrand Editora, 1988, p. 274 (I" ed. 1944). 11 Jose Martins Garcia, "Vitorino Nemesio - aluz do Verbo, Lisboa, Vega, [1989], p. 143. 12 Carta transcrita por David Mourao-Ferreira in "Novos elementos sobre a genese de Mau Tempo no Canal," CoI6quio-Letras, n° 102. Mar~o-AbriI1988, p. 14. 13 0 tenno e do pr6prio Nemesio, embora referido a aspectos topograticos do Pico; veja-se 0 mesmo artigo de David Mourao-Ferreira, CoI6quio-Letras, n° 102, p. 13. 14 Pedro da Silveira, Antologia de Poesia A~oriana, Lisboa, Sa da Costa, 1977, p. 346. 15 Raul Brandao, As Ilhas Desconhecidas, Lisboa, Perspectivas & Realidades, sId, p. 114 (1" ed. 1927). 16 Manuel Greaves, Hist6rias que me contaram (A~oreanas), Horta, Ed. do Autor, 1948; Outras Hist6rias que ouvi, (Obra p6stuma), Horta, Ed. da fanulia do autor, 1958. 17 Manuel Greaves, Aventuras de Baleeiros, Horta, Ed. do Autor, 1950. 18 Acentuado mesmo pela profusao de fotos que ilustram a narrativa. 19 Dias de Melo, Toadas do Mar e da Terra, , Ed. do Autor, 1954. 20 Dias de Melo, Mar Rubro, 1" ed., Lisboa, Ed. Orion, 1958 (2" ed. 1980). 21 Dias de Melo, Pedras Negras, 1" ed., Lisboa, Portugalia Editora, 1964 (2" ed. 1985). 22 Dias de Melo, Mar pela Proa, I" ed., Lisboa, Prelo Editora, 1976 (2" 1987). 23 Verso emblematico de Pedro da Silveira, A Ilha eo Mundo, Lisboa, Centro Bibliogratico, 1953, p. 17. 24 Dias de Melo, Vida Vivida em Terras de Baleeiros, Angra do Herofsmo, Ed. da Direc~ao Regional de Orienta~ao Pedag6gica, SREC, 1983. 25 Dias de Melo, Na Mem6ria das Gentes, Angra do Herofsmo, Ed. da Direc~ao 16 URBANO BETTENCOURT

Regional de Orientat;ao Pedagogic a, SREC; LiVIO 1(3 vols) 1985, LiVIO II (2 vols) e Livro Ill, 1991. 26 Manuel Ferreira Duarte, A Banda Nova e Outras Hist6rias, Lisboa, Edit;oes Salamandra, 1991. 27 Jose Martins Garcia, Morrer Devagar, Lisboa, Editora Arcadia, 1979. 28 Alamo Oliveira, Contos com Desconto, Angra do Herofsmo, Instituto At;oriano de Cultura, 1991. 29 Manuel Ferreira, aMorro e 0 Gigante, I" ed. Col. Gaivota, n° 14. Angra do Herofsmo, SREC, 1981 (2" ed. 1990). 30 Nuno Alvares, Mem6rias de um Baleeiro, Calheta (S. Jorge), Edi\tao da Camara Municipal,1985. 31 Ja 0 presente texto se encontrava em fase de acabamento, quando veio a publico na Revista INSULANA (vol. XLVI, de MCMXC) um artigo do investigador picoense Ermelindo Avila sabre "Tematica Baleeira na Literatura Ali0riana", para 0 qual remeto os leitores interessados em alargar 0 funbito da perspectiva (restritiva) em que me coloquei. 32 Hip6lito Raposo, Descobrindo [lhas Descobertas, Lisboa, Edi\tOes Gama, 1942. 33 Ant6nio Tabucchi, Mulher de Porto Pim, Lisboa, Difel, [1985], Trad. de Maria Emilia Marques Mano. (A ediliao italiana ede 1983). J. Rodrigues Migueis: 0 homem e 0 circulo

Domingos de Oliveira Dias

"Proust, que niio disse pouco, queixou-se de que Balzac 'disait tout'. Haverd quem 0 diga? Dizemos 0 que podemos. "

Nota Introdutoria Transcrevo esta frase do posfacio de Rodrigues Migueis a 0 Pao nlio cai do ceu para dela me servir como muleta capaz de me auxiliar 0 passo manquejante nesta incursao pelo estudo - embora de uma parte apenas - da obra de Migueis. Justamente a vertente que para aqui interessa (seja ela cognominada de diaspora, emigra~ao ou eX1llo), deu ja lugar a urn razoavel debate. Para aMm de teses de investiga~ao e de alguns estudos avulsos, e de mencionar 0 I Simp6sio sobre 0 autor, que teve Iugar em Providence, na Universidade de Brown (Estados Unidos), do qual resultaram duas publica~Oes: urn mlmero especial (vols. ill-IV) da revista Gavea-Brown1eo livro Jose Rodrigues Migueis; Lisbon in Manhattan (que constituira a principal fonte de documenta~ao da primeira parte deste trabalho).

Domingos de Oliveria Dias, natural de Pedregais, Minho, , foi Leitor do Instituto de Cultura e Lfngua Portuguesa na Brown University de 1984 a 1988. Com urn Mestrado da Universidade do Minho, Braga, preparava 0 seu doutoramento em Literatura Comparada na Universidade de Rhode Island quando teve de interromper os seus estudos por motivo de doenqa. Submetido a vdrlas intervenqoes cirnrgicas, acabou infelizmente porfalecer em F evereiro de 1990. 18 DOMINGOS DE OLIVEIRA DIAS

Daf que seja legftimo recear colisoes numa area onde as sensibilidades costumam revelar-se tao propensas para a polemic a, uma vez que 0 vazio da distancia cria um eco amplo e ressonante. Vamos hi entao a lSS0.

1) Urn jogo de claro/escuro

Jose Rogrigues-Migueis-escritor-portugues (falecido aos 79 anos de idade) e apontado por muita gente como um exemplo destacado do artista exilado, emigrado, ou expatriado, consoante a perspectiva de abordagem e 0 gosto subjectivo de cada um. Ora, parece-me nao constituir hoje novidade para ninguem que Migueis foi um pouco de tudo isso certamente, sem ter sido exclusivamente uma coisa ou outra, ou nao tivesse ele vivido continuamente rasgado entre a patria onde nasceu e os paises onde se acolheu durante a maior parte da sua vida: primeiro na Belgica e mais tarde nos Estados Unidos, pais que oficialmente elegeria como segunda patria, a tal ponto que acabaria por se naturalizar cidadao americano. Ora, se mais nao houvesse, este facto permitiria por si so equacionar frontalmente 0 sentido da presen<;a de Migueis no mundo, com evidente rea1ce para os Estados Unidos. Como agudamente apontou Eduardo Louren<;o, Migueis ora se intitulava exilado ora preferia ver-se como expatriado, distinguindo o citado crftico as duas situa<;oes do seguinte modo:

Ausente, 0 exilado esta essencialmente na terra que deixou. Nesse sentido ninguem tem mais patria que aquele que a perdeu e a vive como perdida. Ediffcil que um expatriado nao se sinta tambem, a seu modo, um exilado. Mas enquanto apenas expatriado e um homem que largou amarras, que assume a ausencia e se assimila aos poucos a uma nova patria. Ea historia natural de todos os emigrantes do mundo. Dos nossos, em particular. 2

Ora, 0 caso de Migueis parece-me exemplarmente ilustrativo da condi<;ao de dividido que nunca pOde (ou quis) superar: amou a 1. RODRIGUES MIGuEIS: 0 HOMEM E 0 dRCULO 19

Belgica e os Estados Unidos se calhar tanto como Portugal. Possivelmente poderia viver ern Portugal sem ter tido necessidade imperio sa de ernigrar - e contudo partiu. Provavelrnente poderia ter regress ado ao seu pais para nele se fixar definitivamente - porem preferiu continuar na America. E se ecerto que as rawes de caracter politico ajudariam a sacudi-Io definitivamente de Portugal, seria err6neo atribuir-se-lhes aresponsabilidade unica: a polftica teria sido infiuente, mas nao radicalmente determinante. Para aIem do desajustamento a urn modelo polftico que nao the servia (dai 0 irreprimivel protesto do homem e do artista), haveni que inventariar outros rnotivos despoletadores dessa situayao inc6rnoda, geradora, no minimo, de ambiguidade. Que talvez a voz do pr6prio autor ajude a clarificar, para 0 que recorrerei a uma entrevista que Migueis concedeu ja nos ultimos meses da sua vida - e de que me perrnito transcrever uma parte:

Apesar de licenciado, com distin(j!ao, em Direito, e de ter regressado da B61gica corn licenciatura em Pedagogia, tambem corn altas classifica(j!oes, nao encontrei condi(j!oes para trabalhar ern Portugal. Naturalrnente fui-rne refugiando cada vez mais naquilo que era afinal a rninha principal voca(j!ao - a literatura. [... J Mas a situa(j!ao cornplicou-se mais. Entretanto, eu tinha casado (ern 1932) corn uma colega de origem russa. A sua adapta(j!ao a Portugal foi muito dificil e 0 nosso casamento desfez-se. Foi entiio que se concretizou a possibilidade de vir ate aos Estados Unidos, onde tinha dois ou tres arnigos, entre eles a rninha actual rnulher. Era urn visitante cheio de curiosidade pelo Novo Mundo, e animado pelo espirito ernigrante que procura a aC(j!ao ern novos horizontes. Ap6s varias dificuldades, ern 1936, legalizei a rninha situa(j!ao de ernigrante. Em 1940 casei-rne.3

Migueis parece ter-se rnovido sernpre urn tanto desajeitadarnente (rnesmo em arnbientes de liberdade, irnpossivellhe seria movimentar-se avontade dentro do espartilho de uma ditadura 20 DOMlNGOS DE OUVEIRA DlAS

restritiva e homogeneizadora). Recorrendo a urn terrno tao caro ao grande poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade, Rodrigues­ Migueis haveria de ser toda a vida uma especie de gauche, isto e, quase sempre urn inadaptado - e sempre urn inconforrnado. Mas, regressando novamente a perspicaz interpreta<;ao de Eduardo Louren<;o, talvez que afinal Rodrigues-Migueis tenha tao s6 incarnado urn papel duplo de perseguidolperseguidor. Vejamos:

o seu perseguidor foi sempre outro, esse Outro que havia nele mesmo e cuja apari<;ao nao passara desapercebida aos leitores deA Ptiscoa Feliz. 4

A estarrnos de acordo corn a asser<;ao acirna teremos que investir nos dorninios de interpreta<;ao psicologica, ern busca da dilucida<;ao dos dois homens que simultaneamente coabitaram ern Migueis. Ele e 0 escritor? Sim e nao, ele mesmo vacHa, como se ve:

Queria eu dizer, apenas, que os nossos deveres (e as restri<;oes que de fora as circunstancias nos impoem), crescentes, abafam as preocupa<;oes artisticas. Corn efeito, escrever e apenas uma das mil maneiras de ser homem, de exprirnir-se homem. Se a literatura tinha sido sempre a minha preocupa<;ao dominante, a vida, 0 desejo de viver, de conviver e agir, de ser parte de om todo, nom mundo ja transbordante de literatura, mas gemendo ainda ao peso de horrores humanos, - levararn ern mim, por vezes, a melhor. Daf, ter a literatura passado, comigo, a urn plano oculto. [,.,J Ainda nao soou para nos a hora de por 0 homem de acordo corn 0 escritor, as ideias e a experiencia nova ern unissono na obra.5

Resolver-se-ia a dicotomia dentro destes limites apenas? Ou teremos que ir rnais longe buscar a solu<;ao? Parece indubitavel que sim, Rodrigues Migueis nao era 0 prototipo do homem capaz de se deixar encaixar pacificarnente dentro da prirneira matriz interpretativa, a sua personalidade (morrnente enquanto autor empfrico6 de urn texto estetico dotado de maior ou menor carga autobiognffica) nao se J. RODRIGUES "MIGuEIS: 0 HOMEM E 0 ciRCULO 21

ajustava ao esquema do linearmente previsivel, preferindo jogar com o leitor, amaneira de Jose Regio, urn infindaveljogo da cabra cega. Seria nele prevalente 0 homem pol{tico, 0 individuo que sente que tern de actuar dinarnicamente na comunidade imigrante a que, ainda que perifericamente, acaba por pertencer, como nos poderao dar conta textos como a Cosme de Riba-Douro e A lnauguraqiio, por exemplo? Senao como interpretar 0 olhar de benevolente compreensao e simpatia em que 0 narrador agasalha alguns dos imigrantes com quem contacta? Claro que 0 narrador euma mera instancia textual, que s6 abusivamente poderfamos interpretar como voz do autor real e empfrico (que pode sancionar ou nao as posi~oes do narrador textual), mas a irreprimivel tendencia de Rodrigues Migueis para a projec~ao autobiografica quase nos concede aval para reduzirmos a uma as duas instfulcias referidas. 0 que e, alias, corroborado por ele mesmo quando nos diz:

Estas novelas estao longe, no conjunto, de reflectir a minha personalidade, as minhas ideias, a minha incontavel experiencia destes anos. [... JSem embargo, vai nelas muito de mim. Sao sinceras, nao escrevi para agradar. E, donde quer que me venham reproches, nao posso, negando-as, renegar-me a mim mesmo.7

Estarao isolados os tra~os distintivos deste retrato enigmatico? Certamente que nao, ja que Migueis, para alem de ter sido 0 que at£(ls fica dito, foi simultaneamente muito mais que isso, aquilo que eu denominaria urn prisioneiro da liberdade. Sim, talvez que 0 homem que Migueis qriisesse habitar nao fosse senao a expressao da transposi~ao de urn ser subrnetido (pel as pressoes sociais de toda a indole) para a forma superior de urn ser liberto e despeado, desprezando o facil para nao sufocar a crisaIida a esvoa~ar liberdade e quebra de amarras, de que nos da conta a voz torturada do vagabundo de A Esquina-do-Vento, voz que implacavelmente nos adverte contra a tirania subjugadora daquilo que julgamos serem as conquistas superiores da nossa liberdade:

-Em todo 0 homern existe a imensidade e a pequenez ... a pequenez e isto, a terra, a casa, a cama fofa, a rnulher 22 DOMINGOS DE OLIVEIRA DIAS

quente, honlrios e deveres, 0 filho com que tu sonhas. Eo dinheiro, a posse das coisas. Os homens julgarn-se donos delas, mas sao prisioneiros: das coisas, do arnor, dos habitos. So e pobre quem quer ter mais, possuir, ser rico... 0 mundo e todo meu, se 0 desejo como imensidade, sem termos nem fronteiras.8

Ora, quem vivera liberto de temores e nao condicionado par fronteiras? Migueis reitera essa impossibilidade, bastando deitar mao a alguns dos livros que escreveu no estrangeiro (denomina9ao que prefrro ade exilio ou emigra9aO) e que intencionalmente revelarn marcas iniludivelmente autobiograficas: bern distintamente a assombrosa narrativa Um Homem Sorri aMorte-Com Meia Cara, urn exercfcio espantoso de analise sobre a precaridade da vida e 0 caracter misterioso e cabalistico da morte; menos, ainda que mesmo assim bastante, Gente da Terceira Classe, Comercio com 0 lnimigo, Leah e Outras HistOrias.

2) Intervir sim, mas devagar

Pronto, ca chegarnos. Era inevitavel falar-se da Produ900 de Migueis que, explfcita ou implicitarnente, aborda a tematica do estrangeiro, quer pelo volume que a mesma ocupa na sua bibliografia, quer ainda (e como seria de todo inevitavel) pelo tempo que fora de Portugal viveu. Esta faceta de Migueis possibilitou urn ja razoavel debate, de que resultararn alguns notaveis trabalhos, muitos dos quais se encontrarn reunidos nas duas publica90es resultantes do I Simposio sobre Rodrigues Migueis ja atras referidas e para as quais remeto os leitores interessados - havendo ainda que referir estudos avulsos, evidentemente. Uma das grandes preocupa90es dos estudiosos de Migueis assenta na tentativa de determina9ao da nacionalidade da escrita do autor de Leah, predominando a posi9ao dos que, embora reconh~arn (ate por ser impossivel negar) a importancia e peso do estrangeiro na escrita de Migueis, lhe contrapoem a marca registada de portugalidade, expressa nas referencias constantes ao torrao natal, com especial destaque para a memoria de urna Lisboa de que soube ser urn dos pintores verbais mais fieis; para esses, Migueis, mais ou menos estrangeirado, nao deixou nunca de ser urn escritor cern por cento J. RODRIGUES MIGuEIS: 0 HOMEM E 0 ciRCULO 23

portugues, a viver episodicamente uma aventura de emigrado, exilado ou expatriado.9 Esta posi~ao resulta mais ou menos pacifica, sendo como e inegavel que Migueis, pesaroso e magoado que estivesse com o regime politico salazarista, jamais se desvinculou da sua patria de nascimento. A voz do sangue, por um lado, aliada asua propensao para actuar politicamente empurraram-no para actividades onde 0 espirito de militancia e a consciencia cfvico-politica se deram maos. Ainda antes de ter obtido 0 direito de pennanecer nos Estados Unidos, em 1935, ajudou a fundar 0 Clube Operano Portugues, em Nova Iorque envolvendo-se depois numa frenetic a actividade politica: primeiro a favor dos espanh6is republicanos, depois envolvido com 0 Comite para auxiliar os refugiados politicos da Alemanha. Por razoes geograficas, sentimentais e politicas, era-Ihe impossivel ficar indiferente ao terrivel cataclismo espanhol; dai que a fratricida guerra civillhe tenha despertado uma solidariedade comovida e militante. Assim, 0 conto 0 Acidente e publicado (sob 0 titulo Casa de Ricos) com 0 objectivo de auxiliar os combatentes republicanos espanh6is. Posto a circular ao pre~o de 20 centavos, 0 produto da sua venda era recolhido pelo GrupoAntifascista Portugues de Nova Iorque, sendo 0 mesmo posterionnente canalizado para os combatentes da democracia. Ainda sob 0 pseud6nimo de Joseph Pombo (um dos muitos de que se serviu), eis Migueis a auxiliar em pessoa a causa dos democratas, proferindo um violento ataque a Franco e a Salazar, em verboso discurso-diatribe proferido no Madison Square Garden, no dia 10 de Julho de 1937.10 (Paralelamente ia publicando em alguns jornais veementes ataques ao fascismo e aos seus ide610gos, ora sob 0 pseud6nimo de J. Maria de Soure, ora como Reporter X.II) Escrito em ingles, 0 discurso atras referido invectivava violentamente Salazar por transfonnar Portugal numa base de apoio do fascismo internacional, possibilitando uma agressao inqualificavel contra a paz e a democracia, tanto mais grave quanta e certo que a ditadura salazarista agia contra a vontade do povo portugues, como amplamente demonstrava 0 elevado mlmero de voluntarios que combatiam ao lado dos revolucionarios. Numa retumbante conc1usao, de cunho vincadamente apelativo, Migueis ansiosamente prognosticava a liberta~ao do povo portugues do duplo jogo da ditadura fascista e do imperialismo estrangeiro - para celebrar, em fraterna alian~a com 0 povo espanhol, a vit6ria comum da liberdade iberica. (Liberta~ao que 24 DOMINGOS DE OLIVEIRA DIAS

demoraria longos anos de escuridao e desespero, mas que brilharia ainda a tempo de gratificar a perseverante esperans;a do escritor). Nesta vontade fervorosa de intervens;ao (que aos olhos dos mais tendenciosos mais nao sera que uma suspeita actividade panfletaria), gastou Rodrigues Migueis 0 primeiro deposito de combustivel ideologico transportado da Europa, essa misteriosa mistura de sonho e vontade de agir que the dao arrimo na insegurans;a. 0 amadurecimento etico e psicologico conduzi-Io-iam a urna nova etapa de intervens;ao na comunidade portuguesa, em particular, e na sociedade universal, em geral. Mais a vontade, ao que parece, no papel de escritor que no de militante e activista, Rodrigues Migueis coloca-se numa posis;ao algo judicativa, escrevendo imlmeros textos em que revela a agudeza de uma analise penetrante do mundo em que se inseria, furtando-se, pois, ao fatfdico alheamento tao tfpico entre os intelectuais. Visao agora mais moderada, talvez mais temperada pelos golpes da vida (mas tambem por is so mais humanizada, como nos da testemunho iniludivel a narrativa Urn Homem Sorri aMorte-Com Meia Cara), enfim, urn pouco mais distanciada, mas inequivocamente sincera e comovida, alem de eticamente mais refinada - consequencia do afastamento que preconizava como condis;ao para bern se entender 0 significado de uma cultura12. Se esse esfors;o the permitiu isolar as caracteristicas psicologicas que nos constrangem (enquanto povo) sem miopia e com a objectividade possivel, nao e menos certo que the haveria de provocar dissabores decepcionantes, como ele mesmo amargamente reconhece:

De novo levado pela paixao politic a (de que me julgara divorciado) e 0 meu amor a Portugal e a Democracia, cometi 0 erro de me devotar demasiado aos problemas dos imigrantes e de me apaixonar pela gente portuguesa [ ...] Foi urn erro na medida em que vim a verificar que, em troca de minha dedicas;ao total, conheci a ingratidao e 0 abandono [...] 0 escritor em mim parecia ter morrido as maos do sectario! Mas, urn dia, como que renasceu das cinzas, acreditando que a funs;ao do escritor e a de realizar-se fazendo obras e que a essencia da sua 1. RODRIGUES MIGuEIS: 0 HOMEM E 0 dRCULO 25

voca~ao e exprimir-se - exprimindo os dramas dos outros,13

Ora, este refinamento cultural (no sentido de matura~ao ideol6gica e liteniria) vai-o distanciando de descabidos arrebiques verbais, moldando-Ihe uma sobriedade estilistica que pujantemente se manifesta aos 40 anos. Num lucido balan~o aos saltos e sobressaltos de que foi testemunha um homem nascido e educado num periodo de convuls5es sociais e politic as devastadoras, eis-nos testemunhas do cadinho onde se fervem as paixoes e os sonhos, num percurso psicologico doloroso a que 0 discurso retrospectivo empresta uma cava sonoridade. Disso nos da conta 0 tom da carta que escreveu ao brasileiro Danton Coelho e que, em algumas das suas frases mais profundamente analiticas, nos desnuda os escaninhos da alma deste homem torturado, a debater-se entre 0 chispar fulgurante das ilus5es juvenis e 0 melancolico po~o de urna realidade obtusa e dolorosa. "0 escritor portugues de hoje, que viveu quarenta anos, pode­ se dizer que viveu muito como homem, e pouco como escritor", assim come~a Migueis a sua carta a Danton Coelho. Passa, depois, a referir a sua infancia povoada de quadros de horror (os hesitantes passos da Primeira Republica, os estertores fulminantes da I Grande Guerra) diz ter visto "as inten~5es desfazerem-se em po", radiografando a seguir a "lucida loucura contagiosa do ambiente", e as leituras a deixarem "cicatrizes irreparaveis" (Dostoievsky), ou analises "subtilmente corrosivas" (Proust e Gide). Aponta, depois, a vertigem sedutora de doutrinas nublosas, acenando nirvanas misteriosos e apelos puramente demagogicos (Wenceslau de Morais, Camilo Pessanha, Pascoais, Sa­ Carneiro), "0 racionalismo reforrnista e radical" da Seara Nova, para nos delinear, mais do que objectivar, (manipulando 0 escritor um dialectico jogo de clarolescuro), uma plataforma de exacerbada tensao psicologica, onde 0 artista trava um combate estonteante com as pulsOes criadoras, numa catarse libertadora:

Ja entre as torrentes caudalosas e confusas, razao e realidade tentavam um esfor~o supremo para unir-se, encontravam novos pretextos para sobreviver: lutam, mergulham, sobrenadam, vencem - depressa, porem, o nosso mundo se engolfa num tortuoso canan 26 DOMlNGOS DE OUVElRA DIAS

subterraneo, onde a luz la de fora e proibida. E e nessa altura que 0 escritor ensaia 0 seu voo: na escuridao. 14

Que solidao? Redundante a pergunta, dir-se-a. Solidao define­ se por si mesma, tal como saudade e ausencia (ou entao nao M interpreta9ao capaz de the sugar 0 porno semantico), ensaiarmos explica90es e embrenharmo-nos fatalmente no labirinto das parafrases exaustas. Pois seja. E que, a meu ver, a solidao de que se queixava Migueis vaza-se numa sonoridade amplificante, considerada a inequivoca ambivalenica dos ecos que the devem ter martel ado a consciencia: a solidao comezinha que qualquer homem sente no meio dos outros; e a solidao mais subjectivizante daquele que se sente solitario por dentro de si mesmo - ilhota deslocada num arquipelago que nao e o seu. Porque, por muito que ele tenha amado a vastidao da America (e ja sabemos que sim), jamais deixou de se sentir aprisionado pela memoria de urn Portugal que amou ate araiz, como nos da testemunho o expresso desejo de ser sepultado em Portugal, transrnitido a sua esposa,15 Dai que 0 autor Jose Rodrigues Migueis tenha tido sempre em vista urn publico leitor localizado, referenciado, ou seja, urn destinatdno ideal irrernissivelmente portugues.16 Querera isto dizer que esta aspira9ao a urn entendimento cu.mplice com 0 seu leitor - perfeitamente legftima e compreensfvel ­ tera, de algum modo, lirnitado a dimensao e 0 impacto da sua obra, desfocando ou reduzindo drasticamente a sua perspectiva de analise? Ou seja, 0 facto de 0 autor ter escrito predorninantemente no estrangeiro - mas ter tido sempre em vista urn publico geograficamente deslocado da orbita da sua vivencia - tera, por isso, condicionado 0 alcance da sua mensagem estetica? Antes de tentar equacionar este delicado problema quero aqui reproduzir (porquanto indicia a necessidade do eco vibrante dos seus leitores) a ansiedade com que 0 autor de 0 Milagre Segundo Salome aguardava as reac90es do publico e da critic a a este seu extraordinario romance, 0 que atesta a ressonancia que 0 feed­ back do receptor/leitor exercia no seu processo de comunica9ao literana:

... porque e que ninguem diz nada? ... 0 que eque eles dizem do meu romance? .. Ninguem diz nada... Mas porque? Este romance levou-me trinta anos a escrever. 1. RODRIGUES MIGvEIS: 0 HOME.t\1 E 0 CiRCULO 27

Ea minha obra prima. Considero isto 0 meu melhor. Ninguem diz nada ... Mas porque?17

Volto atf/is, it quesUio da hipotetica restri~ao do alcance dos seus textos, (0 que implica trazer it li~a problemas de localiza~ao/ referencia~ao de Migueis), ja abordada no infcio deste trabalho. Agora como entao, entendo dever furtar-me it discussao de tal assunto: portugues, americano, luso-americano, exilado emigrante ou expatriado nao sao senao r6tulos mais ou menos circunstanciais, menos ou mais redutores)8 A escrita, seu objecto privilegiado de comunica~ao, quer com 0 mundo real com que se defrontou nas suas andan~as, quer com 0 imagiruirio e 0 simbOlico (Lacan) af esta inegavel, inequfvoca, irredutfvel. De modo que, invertendo a 6ptica da discussao, prefrro fazer 0 percurso as avessas e pegar num aspecto que, em vez de 0 catalogar (reduzindo-o, na minha opiniao) como urn escritor apenas e exclusivamente da diaspora, permite enquadrar 0 que da sua experiencia extravasou para Portugal, ou seja: 0 enriquecimento de que a literatura portuguesa beneficiou via Migueis, ja que ele tao bern soube assimilar aspectos significativos das culturas onde matou a etema fome de conhecimento, transpondo-os para a nossa cultura escorreitos e ilesos da subversao que uma acultur~ao radical fatalmente acarretaria Eclaro que neste aspecto podera parecer licito questionar, em termos formais, puristas, a frequencia de estrangeirismos e neologismos deles derivados, porem tal questao parece-me esteril, dado 0 seu fndice nem sequer ser tao elevado como is so - para alem de maioritariamente enquadrados em contextos de funcionalidade. E para quem viveu tantos anos no estrangeiro ... Mas regressemos de novo it questao da referencialidade espacio-tempo­ ral. Pareee-me que, ressalvado 0 rigor de que ciencias auxiliares do fen6meno litenirio (como a historiografia e a bibliografia, por exemplo) tern que se munir, for~osamente, a compartimenta~ao assente em barreiras puramente geografico/cronol6gicas afigura-se-me academica. 0 que, no caso do nosso aut or, significa negar a confluencia de vectores mdltiplos, que passam pela interpenetra~ao e impregna~ao subsequente. Permitam-me que antecipe algumas das minhas ddvidas aeerca da cataloga~ao da narrativa Um Homem Sorri aMorte: sera obra do exllio porque resultou de uma experiencia real da vida do autor enquanto residente nos Estados Unidos? Ou sera 28 DOMINGOS DE OLIVEIRA DIAS

portuguesa porque Migueis tambem evoca 0 seu pals (sobretudo a sua Lisboa querida) e, alem, do mais, a escreveu ern portugues? Qu ... sim, tudo isso estara certo; mas, afinal de contas, Migueis escreveu, num cenano americana, uma obra ern portugues, que equaciona sobretudo questOes relacionadas corn a vida e a morte ... e isso, mutatis mutandi, tanto e portugues como americano. E agora, Jose? Feito este esclarecimento, vai sendo tempo de tentar isolar urn ou outro aspecto resultante da sua exposi~ao a cosmovisoes, filosofias e mundos filo diferenciados, de que haveriam de resultar artefactos literanos altarnente enriquecedores do nosso legado literano. Porque ele de todas essas vivencias se impregnou, a todas pertenceu ... sem pertencer exclusivamente a nenhuma. Dai que the tenha sido possivel ser independente e objectivo, uma vez que tentou libertar-se do plasma da parcialidade que de outro modo se the teria agarrado ao espfrito como ganga excessivamente subjectivizante - logo geradora de visoes desfocadas da realidade. Qu seja Rodrigues Migueis conseguiu situar-se num campo de distanciamento optimo, donde a lente do seu olhar soube captar contrastes, divisar arestas, alinhar contomos. Distanciamento que nao significou indiferen~a, de modo nenhum, antes uma compreensao analitica sem 0 labeu da cumplicidade. Surpreendemos, pois, 0 distrafdo Migueis no seu recolhimento, territorio pessoal a que teve de recorrer por necessidade, fechando-se para poder produzir algo de consistente ern vez das rniriades de vaga-Iumes; talvez que se assim nao tivesse feito 0 seu poliedrico talento se consurnisse num fogo-fatuo efemero conforrne deixa entrever nurna carta a Jorge de Sena:

Foi por ter sabido recolher-me urn pouco, depois da rninha morte ern 1945, que eu consegui fazer algo do que desejava. 19

Marte premeditada, sem 0 camcter subito de uma sincope fulrninante. Corn efeito, Migueis reflectia amargamente sobre 0 branco muro de silencio que 0 comprirnia, conforrne ja atras foi notado.20 Dai que tenha planeado voluntaria e metodicamente 0 seu suiddio para dele emergir remo~ado, conforrne nos da conta na Nota do Autor a Onde a Noite se Acaba: J. RODRIGUES MIGuEIS: 0 HOMEM E 0 ciRCULO 29

Em 1940 dispunha-me a vir ocupar 0 meu obscuro posto na fila dos escritores portugueses contemporaneos: a agrava~ao das circunstancias mundiais e as dificuldades de comunica~ao impediram-me de p6r em pratica 0 intento, e amea~aram- me com a continua~ao de um silencio que, para os outros, equivalia a esterilidade.21

Ora, este livro - publicado quando ja haviam transcorrido 14 anos apos a publica~ao de Pdscoa Feliz, depois de ter andado aos baldoes para fugir as malhas da censura aliada durante a Segunda Guerra Mundial - contem textos que dao ja seguras indica~oes do futuro percurso (literano e ideologico) de Rodrigues Migueis: uma aten~ao nervosa ao mundo real, uma comovida capacidade de evoca~ao de um passo repassado de dramatismo, uma exposi~ao voluntana a espa~os radicalmente diferentes, 0 confronto de mentalidades necessariamente antagonicas. 0 autor assume-se desde ja na policrornia (tematica e espacio-temporal) de um ecletismo que, servido por uma linguagem agil e expressivll, vai propiciar uma experiencia arejadora na literatura portuguesa contemporanea. Com implica~oes obvias a nfvel estetico (resultantes da inclusao de vocabulos estranhos anorma lingufstica), a nfvel sociologico (dado 0 confronto de povos etnicamente diferenciados, bem como 0 registo de dicotornias dentro da mesma etnia), tambem a nivel ideologico (sobretudo pel a configura~ao etica das suas personagens, sendo de real~ar 0 papel dos narradores textuais). Porque, como autorizadamente sustenta Eduardo Louren~, tudo 0 que conta na obra de R.M. e intensa e obsessivamente autobiogrdjico.22 Ena procura das marcas (de algumas, apenas) daquilo que denorninarei como obsessao etica que procurarei centrar a exposi~iio que se segue. Advirto desde ja para 0 seu caracter digressivo e fragmentario, invocando a meu favor a ausencia de pretensoes exaustivas, abrangentes. Porque (como alguns dos estudiosos da sua obra demonstraram) e c1aramente impossfvel aprisionar este vagabundo literdrio sem 0 desfigurar drasticamente. Sobretudo quando sabemos que ele detestava rotulos catalog adores - e so munidos de uma isen~iio necessana poderemos captar os multifacetados aspectos 30 DOMINGOS DE OUVEIRA DIAS

fermentados em hUmus sociais tao diversificados. Assim, limitar­ me-ei a isolar urn que outro aspecto que julgar mais relevantemente demonstrativo do refinado fiItro cntico deste homem escondido, no dizer de Martins Garcia, por tras de uma mascara translucida.23

3) A palavra e a voz de urn homem magoado

Comecemos por Cinzas de incendio, por exemplo; neste texto lemos as aventuras e desventuras de urn pintor portugues, aureolado de alguns dos requisitos indispensdveis a uma certafauna portuguesa - e que Migueis impiedosarnente retrata: conquistador, pseudo­ . revolucionano e demissionano; como alias a sua partenarie de relance percebe:

E depois ... tu nao irias. Edemasiado para ti. Nem sequer imaginas. Eu sei! Nao insistas. E preciso pesar com serenidade.24

Era, pelos vistos. Porque ele fica mesmo, vencido pela hesitartao titubeante. Que mascara de entrega Ii arte - para justificar a vida:

Mas as suas forrtas de adaptartao ao sofrimento erarn maiores do que supunha; por outro lado 0 seu arnor avida e Iiarte era demasiado grande para the permitir abandonar-se ao desespero; maior talvez do que a coragem de afrontar perigos ignorados ... 25

a resto da noveleta perde-se nos meandros psicologicos da personagem, cujos sentimentos so parciaImente sao revel ados por urn narrador heterodiegetico, nao omnisciente; 0 suficiente, contudo, para que vejarnos que este quase acaba por absorver aquele nos momentos finais. De uma forma convencional, 0 que sera indicio de que 0 autor, certeirarnente sarcastico, de outras historias, ainda anda aprocura do molde cntico que the servira para magoadarnente dar forma a uma mentalidade portuguesa vista de fora ... mas por dentro, como era seu timbre. Beleza Orgulhosa, agora. Outro esparto, urn cenario 1. RODRIGUE..') MIGUEIS: 0 HOMEM E 0 CiRCULO 31

americana - outra perspectiva de focaliza<;ao, assente alias numa concep<;ao arrojada e original. Assim, come<;amos por ter um narrador homodiegetico, que nos da conta do poder devastador de urn tempo­ ral a as solar a costa leste dos Estados Unidos (e que, por razoes de c1areza, passarei a denominar por autor textuaf).26 No meio de desfiar apocalfptico das tragedias sem conta que 0 vendaval parece apostado em provocar, ha uma nota igualmente tragica, mas de uma outra natureza, bem perto do narrador - precisamente no predio onde o mesmo vive:

Nisto ou<;o uns brados de afli<;ao que se confundem com os uivos do vento e os estalos da chuva. [... ] des<;o assim mesmo em chinelos.27

Ai se Ihe depara 0 drama, envolvido e abafado por um pandemonio incnvel de gente que se atropela avolta de um cadaver (uma m09a escultural) e de um moribundo. E e aqui que se vem incrustar uma outra voz na sintagmatica textual (e a que chamarei narrador intruso para facilitar a distin9ao). Num tom narrativo intimista (oscilando entre 0 monologo interior indirecto e 0 discurso indirecto livre)28, 0 discurso divide-se entre estas duas vozes de urna forma subtil, ja que as marcas diferenciadoras ou nao existem ou sao intencionalmente difusas. 0 que conduz itcira<;ao de uma atmosfera dotada de densidade psicologica tendente a contextualiza9ao do absurdo. Por outro lado permite quebrar a linearidade do enunciado, gerando uma indetermina<;ao e ambiguidade so atenuadas pelo recurso a elementos defticos,29 disseminados pelo texto. Mais do que uma aliena9ao consciente do seu papel de mediador do discurso, esta como que subalternidade do autor tex­ tual em rela98.0 ao intruso serve, a meu ver, para evidenciar a postura de Migueis em rela98.0 a muitos aspectos da vida circundante, traduzida num certo distanciamento cntico que, mais que tudo, lhe possibilita narrar sUbjectivamente sem se deixar envolver apaixonadamente. Daf que contome 0 compromisso de ter que pronunciar-se em termos de adesao/rejei98.0. Todavia, nao obstante o esfor90, a mascara narrativa parece atrai90ar esta indiferen<;a simulada. Vejamos: 32 OOMINGOS DE OLIVEIRA DIAS

E os medicos nao preveniram a fanu1ia7 ...Podiam te-Ia salvo. [... J Gee, a gente esta noite vai mas e ao cinema, distrair-se urn migalho. A casa ficou cheia de crime.30

Talvez que este final algo deslocado e urn tanto dissonante tenha justificado que Oscar Lopes classificasse este conto como uma pequena obra-prima de clima patetico criminal.3! Patetico ou nao, este texto oferece-nos urn nitido exemplo de urn estilo nervoso, sem excessivos recortes de burilasrao formal 0 que explicara os louvores da critica a que 0 autor se refere.32 A colectanea atras referida esta longe de ser a tinica em que Migueis tenha insistido em privilegiar 0 aparente distanciamento ­ mera plataforma para manifestar a sua posisrao crftiea em relasrao a aspectos menos ortodoxos da vida, partieularmente a portuguesa. 0 livro de contos Leah e Outras Hist6rias cOITobora esse esforsro lucido, sendo alguns dos seus narradores homodiegeticos investidos de uma voz veiculadora de magoada surpresa e empenhados em urn eorajoso esforsro de catarse. Nesta categoria se ins ere 0 narrador autodiegetico de Leah, exemplo aeabado da ja atras referida mascara trans lucida, 33 mais reveladora que ocultadora de trasros autobiograticos. 0 recurso aanaZepse permite - pela demarcasrao que possibilita entre 0 tempo da hist6ria e do diseurs034 - enquadrar urn tom de auto-crftica; mas a barreira formal da distancia cronol6gica nao atenua, antes parece amplificar, uma perspectiva punitiva severa, como se ve logo na terceira pagina do conto:

Isto expliea como e que eu nunea consegui viver sozinho nem longe - duas coisas que desejava ardentemente. E tambem porque nunca fui feliz na companhia de ninguem, nem tomei felizes senao aqueles que, de mim, s6 conhecem as aparencias. Mas esta dialeetica da misantropia (ou timidez) nao sera demasiado especiosa para ti, Leah 7

Provavelmente ... mas nao s6 para Leah: sobretudo para ele, narrador­ personagem da sua ficsrao, em busca das explicasroes para 0 absurdo de uma situasrao que tera vivido (7) na Belgica. Mergulhado num J. RODRIGUES MIGuEIS: 0 HOMEM E 0 CIRCULO 33

clima morbidamente restritivo35 depara-se-lhe a oportunidade da transfonnas;ao qualitativa da vida, 0 salto para a pia purificadora da ganga existencial, nao fossem as peias da cobardia:

o teu sonho era alto de mais para 0 cobarde, ou simples de mais para 0 ambicioso.36

Dill que se tenha demitido da felicidade, em favor de trabalhos de gratificas;ao mais que duvidosa. Por isso 0 exilio se tornou mais amargo, e a solidao do narrador mais flagrante, mais nua. Enesta nudez interior que vern chispar a centelha de urn arrependimento tardio que, se nao redime, pelo menos ajuda a sublimar uma paixao que ten! ardido como palha e a que s6 0 tempo emprestaria a misteriosa aureola do amor. Fica a ecoar a nota de humanidade, ante a irreversibilidade de urn passado equivoco: E de que serve arrepender-me agora? Todo o arrependimento einutil. (p. 36) Ja nos contos "A Importfulcia da Risca do Cabelo" e "0 Na­ tal do Dr. Crosby" a perspectiva critica do narrador se altera. Embora nao desvinculado do texto (em ambos os casos 0 narrador e homodiegetico), ele surge-nos nitidamente demarcado da acs;ao desempenhada pelas personagens principais. Em "0 Natal do Dr. Crosby" e-lhe relativamente facil criar 0 distanciamento afectivo, afinal ele e tao s6 urn estrangeiro em Nova Iorque e nessa qualidade assiste ao desenrolar de urn conflito a que e totalmente alheio em termos de nacionalidade. Dill que possa, inclusivamente, deixar transparecer livremente a sua antipatia por urn americano mal educado, rude e agressivo; em suma, e-lhe faeil simpatizar com a violencia desesperada do pai que tenta recuperar 0 filho pervertido. Ja em "A Importancia da Risca do Cabelo" a situas;ao e mais delicada: lida agora com compatriotas a viverem, como eIe, no estangeiro (Belgica, novamente). Nao lhe e mais possfvel fechar-se ante urna atitude inqualificavel (de acordo com os seus padroos eticos) de que vern a ser testemunha: por isso lhe nao resta outra alternativa que nao seja manifestar-se de urn modo frontalmente oponente em relas;ao a urn comportamento dubio, subterraneo e hesitante ate apieguice. Comportamento que 0 nosso narrador, na sua qualidade de voz etica, nao pode sancionar, sob pena de ter de pactuar com a duplicidade em que 0 Mansinho (0 heroi do conto) mergulha, por manifesta falta de 34 DOMINGOS DE OLIVEIRA DIAS

caracter. A situa~ao resume-se em duas penadas: 0 nosso homem­ ocasionalmente a viver na Belgica - encontra-se comprometido com uma noiva em PortugaL Ate af tudo certo. 0 pior e que, de permeio, surge uma belguinha de dezassete anos a que ele nao sabe resistir. 0 resultado efacil de imaginar: ele da a cabeqada. Magoado com as duvidas que laceram 0 Mansinho (regressar com 0 pai a Portugal e casar com a prometida ou simplesmente ignorar 0 compromisso e assumir os ditames da honra) 0 narrador eleva a sua voz em tom categ6rico, irritado, reprovativo:

-0 meu amigo gosta da pequena a valer, nao? Adora­ a! Ora af tern. Alem disso emaior, emancipado e vacinado, licenciado em Filologia pela Universidade, esta longe da autoridade paterna, pode resolver por si. Para mais, segundo as regras da nossa moral, ou da consciencia, voc~ fez urna coisa que ... Enfim, partiu-lhe 0 dintaro. Quem parte paga.37

Obviamente nao the passa na garganta a filosofia burguesa acobertada por uma pretensa moral. Com 0 pai a canela para 0 recambiar para Portugal ap6s tao incompreenslvel demora (e aproveitar, ja agora, para Jazer 0 gosto ao dedo) , 0 n6 moral aperta-se: ou cede aos preconceitos burgueses esvaziados de moral ou se rende aos deveres de uma moral imanente (0 que 0 narrador implicitamente aprova ... e espera). Esperan~a ingl6ria, ja que 0 previslvel leva a melhor - 0 Mansinho ludibria vergonhosamente a belguinha e raspa-se sorrateiramente para a terrinha. 0 trivial em mentaIidades assim, como o narrador compreende, a dado passo:

Limitei-me a sorrir ante tanta candura. 0 Mansinho era urn admirador entusiastico do ~a. Mas, como tantos leitores do Mestre, dava-me as vezes a impressao de que s6 via nele a literatura, a arte, e era incapaz de se reconhecer nos retratos que ele pintou.38

Por isso nao the resta senao reflectir amargamente, num tom que materializa a sua posi~ao crftica em rela~ao a tal especime de portugues: J. RODRIGUES .MIGuEIS: 0 HO:MEM E 0 ciRCULO 35

Dai a pouco deixei-o na esta<;ao, e voltei devagar ao meu quarto, enjoado e vazio. Parecia-me que regressava dum mundo distante e abstracto.39

A frase final ecoa uma nota de magoado sarcasmo, traduzido na dicotomia existente entre 0 rigor e aprumo formal (correc<;ao e esmero no vestir) e 0 desmazelado desleixo (do ponto de vista do rigor etico ou moral) de tantos como 0 nosso her6i.

E foi entao, ao separar-me dele, que eu vide repente, em plena c1aridade lisboeta, a importfulcia do rigor na risca do cabelo.40

Vai sendo tempo de relembrar uma advertencia feita no inicio deste trabalho, e que se traduz nos multiplos salpicos que terao comprometido a necessaria estrutura<;ao deste modesto ensaio. E malgre tout, os textos mais insistentemente referidos centram-se na literatura estrange ira do nosso autor, 0 que pode contradizer os princfpios enunciados no inicio. Mas, recordo, nao e minhainten<;ao compartimentar 0 que quer que seja, antes mostrar como Migueis soube ser testemunha de urn mundo em que penetrou e se envolveu obviamente, mas de que nunca se deixou permeabilizar a ponto de permitir que se diluisse a marca (pecado?) original da sua condi9ao de portugues. E, sobretudo, evidenciar como esse enriquecimento pessoal nao se fossilizou num individualismo egofsta possivel (e se calhar no seu caso desculpavel), preferindo ele, em jeito de formiga, carrear as suas experiencias de fora para dentro. Entendamo-nos: do estrangeiro para Portugal. Prova dessa filosofia dao-nos quer os textos da fase da incipiente adapta9aO ao mundo americano, quer os da fase da maturidade plena. De Onde a Noite se Acaba ate 0 Milagre Segundo Salome, passando por Um Homem Sorri Ii Morte - Com Meia Cara. Sempre 0 mesmo protesto sincero ante a injusti9a (que os outros povos tambem tern), sempre a mesma amargura ante as contradi<;oes do pobre barro humano, tambem 0 sobressalto existencial (com a devida licen9a de VergI1io Ferreira) do homem confrontado com 0 absurdo da morte - e que 0 ultimo dos trabalhos referidos tao comovente e veementemente toea. Porque, embora 36 DOMlNGOS DE OLIVEIRA DIAS

correndo 0 risco da repeti~ao, e born relembrar que a vivencia no estrangeiro Ihe fomeceu urn caleidosc6pio riqufssimo, que 0 seu requintado laborat6rio intelectual refinaria criativamente. Eprecisamente com a I1ltima narrativa que desejo finalizar este trabalho porque, para alem de motivos de empatia que tern aver com razoes pessoais, en tendo tratar-se de urn documento humano e litenirio que se enquadra dentro dos parametros que balizaram este trabalho. Explicitando: 0 que da sua experiencia como ser humano soube incorporar criativamente no seu trabalho - e, consequentemente, na literatura portuguesa. Com a possivel vantagem de esta narrativa ter tido como pano de fundo urn hospital de Nova lorque 0 que imediatamente a inc1ui, de facto e de direito, no quadro das obras do exflio ou estrangeiro. Mas deixarei a especula~ao para os interessados neste aspecto, ja que a mim me seduzem muito mais outros tra~os distintivos. Como por exemplo a profunda humanidade que por esta obra perpassa, a busca da objectividade com que 0 narrador procura fixar a nudez subjectiva do autor real ou empfrico,41 ja que parece nao haver a menor duvida de se tratar de uma obra c1aramente autobiografica, pelo que seria absurdo nao conferir ao narrador 0 estatuto de reliable narrator42• Isto nao obstante a advertencia veiculada na Nota do Autor que precede a narrativa .

... nao e do autor que aqui se trata, essencialmente, mas sim do que, na sua experiencia pessoal, possa ser comum, comunicavel, 11tH ate, como exemplo e li~ao aos demais homens.43

Ora, como aponta 0 professor George Monteiro, este subterfUgio nao ocuIta, de modo nenhum, 0 caracter de narrativa autobiogrdfica desta obra44. Daf que a explica~ao a seguir aduzida para justificar a motiva~ao que 0 levou a objectivar reflexoes puramente subjectivas, remeta mais para 0 receio de que 0 pudessem catalogar criticamente. Existencialista? Psicologista? Subjectivista? Epergunta para a qual nao creio termos resposta pois, em concreto, apenas se sabe que ele abominava os r6tulos c1assificadores - artiffcio a que deitamos maos, quantas vezes, para justificarmos a nossa incapacidade ante aquilo que nao tern matriz linearmente indentificavel. Mas retomemos a nota J. RODRIGUES MIGuErS: 0 HOMEM E 0 ciRCULO 37

atras referida:

Estas nao sao confissoes de egotismo, nem de actos ou fragmentos secretos, nem sondagens do "eu odioso", mas urn caso humano narrado em primeira mao pela sua mais proxima testemunha, com a objectividade de urn romance, e pretexto para agitar certos problemas tao gerais como a inquieta~ao da doen~a e da morte, ou a atitude do individuo perante o sofrimento fisico e 0 destino pessoal.45

Aceite a explicaqao-justificaqao do narrador/autor deste texto (poetico, antes de mais nada, nao obstante 0 arrepiante do assunto), deixemo-nos conduzir por ele ate aantecAmara onde a vida estaciona ante 0 espectro terrivel e dramatico da morte, para nos darmos conta das oscila~oes animicas a que a terrivel doen~a (sobretudo porque grassando no espa~o sagrado e misterioso das zonas cerebrais) pode levar. 0 temer mais 0 medo da morte que a morte mesma - 0 horror da morte epior que a propria morte A6, 0 pavor da deforma~ao facial (terror compreensfvel ante a perene mutila~ao da imagem ffsica?), a angustia de poder converter-se inapelavelmente num deficiente fisico. Por isso nao opomos reservas ante uma confissao que, noutras circunstAncias, poderfamos avaliar como insincera ou puramente melodramatica:

Poi nesse instante, posso bern jura-Io, que transpus resolutamente a invisfvel fronteira que separa os vivos dos mortos. Encarei 0 negrume, e avancei para ele com amor e convic~ao. Os meus olhos secaram quase de repente. Senti-me sereno.47

Porque s6 investido desta pretensa serenidade epossivel encaixar, sem grandes estrebuchamentos, dentro do papel de cobaia que 0 seu caso especial indicia.

Eu nao existia, era urn feixe de sintomas.48

E prestar-se a disseca~oes e exposi~oes de todo 0 tipo, preparar-se 38 DOMINGOS DE OLIVEIRA DIAS

para domar a dor fisica e saltar para 0 terreno onde se peleja ferozmente com a morte, na tentativa de transpor a garganta que vorazmente atrai para 0 abismo. Auto-analisar-se e analisar os que 0 circundam, nomeadamente a inveja que cada doente grave sente ante a recuperayao dos outros, como se isso representasse uma dirninuiyao percentual das suas proprias hipoteses de sobrevivencia. Ou tao somente porque isso interrompe a cadeia de solidariedade que a desgraya atarraxa tenazmente, quebrando 0 vinculo tacito que une cada urn com todos os outros. E tambem a vigilancia que cada urn exerce sobre os gestos e atitudes que medicos ou enfermeiras dispensam aos camaradas de sofrimento, porquanto 0 chime de cada desprotegido Ie predilecyao e favoritismo onde apenas M uma simpatia inocente. Nnda 0 espirito de doayao e 0 brio profissional de quase todos os elementos do corpo c1fnico do hospital, apresentado de urn modo quase comovente e que, nao fosse a confian9a que este reliable narrator nos merece, quase poderiamos ser tentados a ler como uma tendenciosa manifesta9ao pro-americana. Tambem a alegria que e, na desgra9a, sentir-se 0 amor e carinho dos farniliares e arnigos, sobretudo quando se pertence ao mundo dos homens em transi9ao, como comovidamente afmna:

Que born eter arnigos, sentir, nas horas dificeis, que nao estamos s6s no redonde1.49

Finalmente, a emo9ao com que aprecia a atmosfera circundante, coada por urn filtro de subjectividade exacerbada que confere contomos fantasticos ao ambiente eleva 0 narrador a escutar-se dentro da legitirnidade do seu egofsmo:

Cada urn de n6s, h6spedes da Dona Morte, estava ali, suponho eu, entregue a sua luta, a uma decisao ja tomada, ou ao simples e elementar neg6cio de viver.50

Em jeito de balan90 permitam-me dizer que, a ter a fatalidade que eleger alguem para imolar, ainda bern que a vftima do sacriffcio foi urn homem dotado de uma capacidade de analise, compreensao e temura como Jose Rodrigues-Migueis. Porque lhe propiciou urn laborat6rio de experiencia humana fmpar - e porque nao resistiu a divulgar 0 seu testemunho (auxiliando, ao mesmo tempo, 0 trabalho 1. RODRIGUES MIGuErS: 0 HOMEM E 0 ClRCULO 39 de investiga~ao dos medicos, como 0 neurologista austriaco notou):

Que escritor, dispondo deste material de experiencia vivida, recusaria trata-Io com objectividade, pintando o cenano e os actores dum drama que diariamente se desenrola a nosso lado, mas ignorado ou esquecido, ou pudicamente velado pelos preconceitos?51

Conclusao

Vai sendo tempo de terminar esta digressao vagabunda pela obra de Migueis; sobretudo pela parte que, no meu entender, resultou de urna exposi~ao directa a urn mundo outro que nao 0 portugues e que ele soube incorporar criativamente no testemunho literano que nos legou. Seria pretensioso (e cansativo) aspirar a referir exaustivamente todos os textos abrangidos pelos limites de tais parametros. Daf que tenha seleccionado aqueles que a minha subjectividade elegeu como mais significativos - correndo todos os riscos inerentes a qualquer escolha. Oxala que, enferma e desajeitada como certamente sera, tenha contribufdo de algum modo para a divulga~ao de urn escritor visceralmente portugues, dividido entre espa~os geograficos avulsos mas radicalmente uno na sua portugalidade. Mas, talvez mais importante que isso, tambem urn homem do seu tempo e do seu universo, aquilo a que com propriedade se podera chamar urn autentico cidadao do mundo.52

NOTAS

1 Vol. ill-IV (1982-1983). 2 Eduardo Louren¥<>, "As Marcas do Exilio no Discurso de Rodrigues-Migueis." Jose Rodrigues Migueis lisbon in Manhattan. Onesimo T. Almeida (org.). Provi­ dence, R.I.: Gavea-Brown, 1984, pp. 37-45. 3 Carolina Matos. "Entrevista Com Rodrigues Migueis." Gdvea-Brown, vo1. I, n. 1 ~1980), p. 43. Migueis, Lisbon in Manhattan, p. 38. 5 Nota do Autor a Dnde a Noite se Acaba. Lisboa: Estddios Cor, Lda. 1968, p. 238. 6 Cf. Aguiar e Silva. Teoria da literatura. 5' ed. Coimbra: Liv. Almedina, 1983, pp. 220-231. 40 DOMINGOS DE OUVEIRA DIAS

7 Migueis. Kota do Autor. Onde p.239. 8 "A Esquina-do-Vento". Gente da Terceira Classe, 2' ed. Lisboa: Esttidios Cor. 1971, p. 115. 9 Considero-me escritor portugues. Niio vejo porque If que, mesmo vivendo no Equador ou no Polo Norte, niio pudesse continuar a ser portugues. A essencia do meu modo de seT, de pensar e de exprimir-me If portuguesa. Posso falar da minha existencia de portugues exilado mas esse facto niio enfraquece 0 meu portuguesismo. Para bem se vir a compreender 0 significado de uma cultura, a maneira como ela se representa e ecoa no mundo, Ifpreciso, porem estar longe dela. Posso, sim ser "estrangeirado" se considerarmos que a Cultura duma etnia se exprime sobretudo pela anti ou comra­ cultura. Isto levaria a uma longa dissertafiio. Em Portugal os "estrangeirados" figuram entre os nossos melhores valores. De certo modo niio consigo cindir 0 homem do escritor! Matos, p. 42 10 John A. Kerr, "On Some Political Writings of Migueis." Lisbon, pp. 77-87. 11 Id., pp. 77-87. 12 A vida obscura nos Estados Unidos permitiu-me recriar em livros a minha imagem de Portugal e dos portugueses: uma tentativa de panorama deste nosso seculo ~~rtugues. Matos, p. 45. Matos, p. 43-44. 14 Nota do Autor: Carta a Danton Coelho. Onde, p. 237. 15 Eu sabia, atraves, dos anos, que 0 meu marido queria voltar para Portugal, embora fosse necessario ser cremado. Quando ele faleceu, eu segui 0 seu desejo e, no momenta em que foi poss(vel, tomei um aviiio e Jui a Portugal. "Conversation with Camila Migueis" Gavea-Brawn Vois. III-IV (1982-83), p. 192. 16 Ver, a prop6sito da questiio do destinatario, a explicayao dada pel0 Prof. Aguiar e Silva (op. cit. pp. 220-231). 17 Conversation, p. 187. 18 Cf. Matos, p. 43. 19 Citado em Onesimo Teot6nio de Almeida. JL de 10 a 23 de Novembro de 1981. 20 Cf. Conversation, p. 187. 21 Op. cit, pp. 231-232. 22 Lourenyo, As Marcas, p. 38. 23 J.M. Garcia. "Gabriel: A Mascara Translticida de Migueis." Lisbon, pp. 89-104. 24 Migueis. Onde, p, 179. 25 Id., p. 180 26 De acordo com a terminologia proposta pelo Prof. Aguiar e Silva: "Pela nossa parte, preferimos as designafoes de autor empfrico e de autor textual, de modo aficar bem clara a ideia de que 0 primeiro possui existencia como ser biologico e jurfdico­ social e de que 0 segundo existe no ambito de um determinado texto literario, como uma entidade ficcional que tem a funfiio de enunciador do texto e que so e cognosdvel e caracterizavel pelos leitores desse mesmo texto." (Op. cit., p. 227) 27 Migueis. Onde, p. 222. 28 Aguiar e Silva, p. 231. 29 A presenfa expUcita do autor textual ou do narrador por ele criado manifesta­ se imediata e Jundamentalmente atraves dos elementos de{ticos dos enunciados, isto e, aqueles elementos lingu{sticos que identificam e localizam as pessoas, os objectos, os J. RODRIGUES MIGuEIS: 0 HOMEM E 0 CiRClJLO 41

eventos, os processos e as actividades a que sefaz referencia. (Id., p. 230). 30 Migueis, Onde., p. 227. 31 Oscar Lopes. Cinco Personalidades Literdrias. Porto: DivulgaSlao, sid, p. 73. 32 Escrevi-o de umfOlego, em 1938 ou 39, como reportagem de um drama autilntico, e contra 0 meu costume nunca 0 remodelei: por isso a "novidade" espontanea do seu estilo ou composif{ao me valeu alguns louvores. Migueis, Onde, p. 235 33 Garcia, pp. 89-104. 34 Cf. Carlos Reis, Introdu¥ao aLeitura de Uma Abelha na Chuva. Coimbra: Liv. Almedina. 1980. p. 35. 35 Migueis. Uah e Outras Hist6rias. 9a. ed. Lisboa: Ed. Estampa, 1983. p. 16. 36 Id., p. 35 37 Id., p.179. 38 Id., p. 186. 39 Id., p. 189. 40 Ibid. 41 Aguiar e Silva, pp. 224-25. 42 Wayne C. Booth. The Rhetoric ofFiction. Chicago: The University of Chicago Press, 1961. 43 Migueis. Nota do Autor. Um Homem Sorri aMorte-Com Meia Cara. Lisboa: Est6dios Cor, 1965. p. 10. 44 George Monteiro. "The Full Face of Narrative: Jose Rodrigues-Migueis's Um Homem Sorri aMorte-Com Meia Cara," trabalho lido pelo autor no Centro de Estudos Jorge de Sena, Universidade de Calif6rnia, Santa Barbara, donde transcrevo, com autoriza¥ao do autor: "Um Homem Sorri aMorte-Com Meia Cara is, arguably, the finest example of his ventures into what he (andlor his editors) have called 'narrativa autobiogrMica.'" 45 Migueis. Nota, Um Homem , p. 10 46 Id., p. 27. 47 Id.,p. 43 48 Ibid. 49 Id., p. 57 50 Id. p. 95 51 Id., p. 11 52 Urna observaSiao fmal emjeito de balans;o. 0 facto de ter utilizado prevalentemente as palavras etico/etica neste ensaio nao implica que, it revelia da vontade expressa de Migueis, fosse (ou seja) meu prop6sito rotula-l0 de "realista etico". Alguem 0 fez ja ­ dando Iugar ao irreprimivel protesto de Migueis. Por mim, teria preferido chamar-lhe sirnplesmente qualquer coisa como "migueisiano". Nao 0 fiz por duas razOes: a primeira porque a palavra (por estranha?) nlio me soa bem; a segunda porque, como e 6bvio, nao conseguiria libertar-se (nem a Migueis), da marca sacn1ega do abomimivel r6tulo, ou seja se me pennitem, fugia da ponda para me meter na prisao. Dado que 0 texto pode nao 0 ter revelado liquidamente, gostaria de deixar claro este ponto, para que se ressalve a peculiaridade de visao e postura de um homem marcado por uma personalidade impar. Ou seja, urn escritor mas sobretudo um homem - que soube transmitir de fora para dentro uma posiSiao independente: sem espartilhos ideol6gicos e liberta de classifica¥oes pouco flexiveis das escolas literarias. 42 DOMJNGOS DE OLIVEIRA DIAS

Bibliografia

I -Activa

(Obras de Jose Rodrigues Migueis consultadas especificamente para este trabalho) Comercio com 0 Inimigo. Porto: Editorial Inova, 1973. oEspelho Poliedrico, 2" ed. Lisboa: Esrudios Cor, 1983. Gente da Terceira Classe. Lisboa: Esrudios Cor, 197L Um Homem Sorri aMorte-Com Meia Cara, 2" ed. Lisboa: Esrudios Cor, 1965. Leah e Outras Hist6rias, 9" ed. Lisboa: Ed. Estampa, 1983. o Milagre Segundo Salome, 2" ed. Lisboa: Ed. Estampa, 1982. Nikalai! Nikalai!, 2" ed. Lisboa: Ed. Estampa, 1982. Onde a Noite se Acaba, 4" ed. Lisboa: Esrudios Cor, 1968. Pdscoa Feliz, 4' ed. Lisboa: Esrudios Cor, 1974. o Passageiro do Expresso. Lisboa: Esrudios Cor, 1960. Steerage and Ten Other Stories. Providence, R.I.: Gavea-Brown, 1983. (Translation by various hands; edited with a Foreword by George Monteiro).

II - Passiva

Almeida, Onesimo T. "Jose Rodrigues Migueis: Portugal em Manhattan" JL, Jomal de Letras, Artes e Ideias. 10 a 23 de Nov., 1981. Almeida, Onesimo T. (org.). Jose Rodrigues Migueis: Lisbon in Manhattan. Provi­ dence, R.I.: Gavea-Brown, 1984. Brites, Jose. "Jose Rodrigues Migueis - eXlllo e imigrayao." Peregrinal;iio, Revista de Artes e Letras de expressiio emigrante, 6-9 (1984-85). "Conversation with Carnila Migueis," condo by Maria de Sousa, Gdvea-Brown, III-IV (1982-83), pp. 183-194. Duarte, Maria Angelina. "Socio-Political Undercurrents in Four Works by Jose Rodrigues Migueis". Ph. D. Dissertation, The University of Minnesota, 1980. Kerr, Jr., John A. Migueis To the Seventh Decade. University, Mississippi: Romance Monographs, Inc. 1977. Lopes, Oscar. "0 Pessoal e 0 Social na Obra de Migueis." Cinco Personalidades Literarias. Porto: Divulgayao, sId, pp. 51-86. Matos, Carolina. "Entrevista com Jose Rodrigues Migueis". Gavea-Brown, 1-1 (1980), p.42-48. Monteiro, George. 'The Full Face of Narrative: Jose Rodrigues Migueis's Um Homem Som aMorte-Com Meia Cara." o choque cultural na L(USA)Uindia atraves da sua Iiteratura

John Pires

... E a cada terra onde chegavas eras tu que morrias na terra que deixavas ... ,

Manuel Alegre

A. memoria de Jose Lopes de Figueiredo (1968-1985 ) emigrante que voltou as margens do Dao

Nota Introductoria o autor do presente ensaio, Jolio Pires, faleceu em Dezembro de 1991. Deixara a nota abaixo como prefdcio ao seu texto. Aqui a registamos agora como testamento e testemunho:

Emigrado dos Fenais da Luz, Sao Miguel, Al(ores em 1963, aos doze anos tive de decidir 0 que devia ser: portugu8s, al(oriano, ou americano. Passei por muitos choques culturais, lingufsticos e ate de 44 JOHN PIRES

identidade. Pensava naquela dec ada turbulenta de 60 que 0 Presidente Theodore Roosevelt tinha razao quando dizia que nao existiam "hy­ phenatedAmericans", americanos com hifen, isto e, americanos com marcas da sua cultura de origem: franco-americanos, italo-americanos, greco-americanos ou luso-americanos. Aceitei que a America era 0 "melting pot" de que se falava nas aulas da professora Demitrius. Essa panela de vanos ingredientes faria uma nova ra~a - a americana.

Passei pela vergonha de ser imigrante. Os meus colegas de liceu eram irlandeses, judeus, e de outras origens, muitos de farm1ias ricas. Eram muito inteligentes e, sobretudo, falavam sem prontincia estrangeira. Sentia-me inferior a esses filhos do melting pot. Nas aulas de portugues, essa vergonha, e sentimento de inferioridade de que soma, faziam-me rebelar contra tudo que era portugues. A Miss Carvalho tentou mudar-me durante tres anos de aulas, tentou fazer-me ver que havia algo de valor na minha lingua materna. Tentou fazer-me ver que Portugal tinha produzido 0 seu Shakespeare, Luis de Camoes. Mas a minha obstina~ao fez-me resistir. No entanto, teve algum exito, pois aos poucos eu comecei de novo a ter orgulho nas coisas lusas. Em 1973, dez anos depois de ter abandonado Portugal, voltei, visitando Lisboa pela primeira vez. Aquela semana no continente portugues mostrou-me que Teddy Roosevelt nao tinha razao. Eu nao podia ser um "americano sem hifen". Reconheci que era luso­ americano, ou americano-luso, e que aMm destes r6tulos, possuia tambem 0 de a~oriano. A vida fmnou esta nova visao do que era eu. Nos dez anos em que ensinei portugues, ingles e estudos sociais num liceu em Rhode Island, E.U.A., os meus alunos, de vanas etnias, mas principalmente portugueses, ensinaram-me que a etnicidade e um valor positivo. AMrs. Demitrius, Miss Carvalho, Professores RobertArruda, do Bridgewater State College, Massachusetts, e Onesimo Almeida, da Brown University, e, sobretudo, aos meus alunos, aqui fica 0 meu obrigado. o CHOQUE CULTURAL NA L(USA)LA:NDIAAlRAvEs DASUA 45 LlTERATURA

L(usa)Iandia e L(usa)landeses*

Que Iugar eeste chamado L(USA)Iandia?

Para defini-lo, citemos 0 criador do termo, Onesimo Teot6nio Almeida:

A L(USA)landia nao e urn pais. Nao vern nos compendios de geografia. 0 que nao significa tratar­ se duma cria~ao imagimlria. Porque a L(USA)llindia existe. Como povo. Ou parte de urn povo. Ou, talvez melhor, parte de dois povos. De duas civi1iza~Oes. De duas maneiras de estar no mundo.

Como 0 termo indica, este povo esta dividido em duas culturas: a lusa e a norte-americana. Nao e de admirar que desta situa~ao resultem alguns choques culturais. N as paginas seguintes pretendemos mostrar alguns dos mais profundos. o primeiro choque cultural esta mesmo, como a cita~ao acima indica,no facto de 0 emigrante nao saber como identificar-se. E emigrantee imigrante ao mesmo tempo. Quer na America, quer em Portugal,

* No texto, "L(USA)landes" pode referir-se a Ungua e aos habitantes da L(USA)landia. "PortingJes" refere-se apenas alingua. Para evitar confusoes entre as duas formas da palavra, uso "emigrante" quase exclusivamente, exceptuando quandofor necessario usar "imigrante" por razoes de clareza. No final do presente trabalho inclui-se em apendice um glossario dos termos l( USA)landeses usados neste 46 JOHN PIRES

tern sempre urn destes adjectivos ligados asua cidadania. Antes de emigrar, os l(usa)landeses sabiam que eram portugueses; mesmo os a~orianos que protestam contra esse r6tulo etnico. Aqui, a identidade nao e tao clara. Sera ele portugues-americano ou americano­ portugues? Ate 0 govemo portugues poe em questao a defini~ao de muitos habitantes da L(USA)lfu1dia, que nao podem votar nas elei~s portuguesas se estao ausentes do pais ha mais de cinco anos. E destes, muitos tambem nao podem votar nas elei~oes dos E.U.A, por ainda nao estarem naturalizados. Mesmo para aqueles l(usa)landeses para quem 0 direito de voto nao tern grande importancia ( e infelizmente parecem ser a maioria), a questao de lealdades divididas causa sentimentos ambiguos:

Ai, Joao este verde este cinzento

estas paredes brancas estas torres d'igreja negras esta gente esta gente que somos e ja nao somos este constante partir esta terra donde vimos e a que s6 vimos este ser e nao ser estas despedidas meu Pai chorando

ai, Joao o doer o doer deste nosso escolher.2

Esta duvida de defini~ao etnica muitas vezes persegue os luso-americanos por vanas gera~oes. Nelson Vieira, professor de Estudos Portugueses e Brasileiros na Brown University, em Provi­ dence, nasceu nos Estados Unidos. E dele 0 seguinte poema que revela 0 dilema de muita gente na L(USA)Ifu1dia. Cito-o em ingles e OCHOQUECULTURALNAL(USA)LANDIAATRAvEsDASUA 47 LITERATURA por inteiro, seguido de uma explicacrao ligeira.

At the Portuguese Feast

Pushing my way through the jostling crowds Where Lusitanian ancestry strikes me in every face, I celebrate my annual sensation of pride and discomfort Knowing I shall never resolve the tug-of-war that is my fate. Surging through to soak: up the fond memories of a skinny little boy, Of a young adult not always filled with ethnic pride, I feel this older me emerge as I look down upon all those Portagees. How difficult to be both me and them, How simple to be just one, But that can never be with a vowel-ending name Though born American, assimilating is unending as forever. For purposes of consolation, though, This varied self I am is never one but many! -lam my pride, I am my shame, I am myself, Secretly realizing only parts and combinations are all I'll ever know.3

Vieira explica as emo~oes bipolares que urn emigrante, ou descendente de emigrante, sente. Usando 0 cenano de urna das in1i:meras festas portuguesas, este homem de letras fala do orgulho e desconforto que sente ao participar na festa. Euma luta interior que nao tern solu~ao. A festa faz-Ihe lembrar os tempos de crian~a, a ele, agora 0 adulto que nem sempre sente orgulho na sua etnicidade, nao se identifica com os "Portagees" (termo depreciativo para portugueses), mas ao mesmo tempo e urn desses Portagees. Edificil ser duas pessoas nurna s6. 0 processo de assimilacrao eperpetuo apesar de ter nascido americano. A sua Unica consola~ao e nao estar s6, mas ser urn de muitos para quem a sua identidade etnica oscila entre sentimentos de orgulho e de vergonha. 48 JOHN PIRES

Choque linguistico

Sem duvida, 0 desconhecimento da lingua inglesa ea causa do choque com mais impacto no dia a dia dos emigrantes portugueses nos Estados Unidos. Este problema faz-se geralmente sentir de imediato ao chegar 0 emigrante ao aeroporto de Boston ou Nova Iorque. E continuara ate 0 emigrante dominar 0 idioma do novo pais; sonho que muitos nunca chegam a realizar. Sao os adultos que tSm mais dificuldade em aprender 0 ingles. Emais diffcil para urn adulto aprender urn novo idioma do que para urn jovem. Os emigrantes adultos costumamjustificar 0 nao aprender ingles com 0 facto de as suas vidas estarem cheias de trabalho e de responsabilidades de farm1ia. Para os adultos, os objectivos de vida sao necessariamente diferentes dos dos filhos. E como conseguem fazer a sua vida num mundo que nao os entende? Dependem doutros, geralmente dos filhos, para serem os seus ouvidos e bocas. E assim sobrevivem, frequentemente a troco de se sujeitarem a situa~oes de subversao da autoridade e do estatuto paterno, que se esfor~am por manter. No seguinte dialogo entre urn policia de transito, urn portugues, e 0 seu filho, temos urn exemplo disso. 0 policia mandara parar 0 carro na auto-estrada e a passagem seguinte ede uma fase adiantada do dialogo entre eles.

Policia: Listen, man, don't kid me!... Portugues: 0 mai kid? ye... Orraite! Ele spika ingles. Eu you chama-Io que epara a gente se entender.... Diz a ele que eu nao estava a fazer reiss nenhum. Filho: My father says he was not racing.4 o Policia continua explicando ao motorista 0 que fez mal. 0 portugues fala portingles, compreendido pelo filho mas nao pelo polfcia, e continuam:

Policia: (Para 0 pequeno) What's the matter? Portugues: Merda 0 que? ve hi como eque falas ... A falar mal diante do pequeno!5 o CHOQUE CULTURAL NA L(USA)LANDIAATRAvEs DA SUA 49 LITERATURA

A cita9ao acima serve tambem como excelente exemplo do pidgin, ou falar da L(USA)Hindia. Euma lingua viva e usada quase exclusivamente pelos emigrantes nas comunidades portuguesas. Funciona sem problemas entre eles, mas causa-Ihes embara90s e complexos de inferioridade nas suas rela90es com 0 pais de acolhimento. Mesmo os falantes educados, que nao falam pidgin, podem sofrer deste mal. A pergunta, "Where are you from? You have such a (nice) pronounciation", revela a todo 0 mundo que a nossa diferen9a foi notada, e por sermos diferentes, pensamo-nos inferiores. Por mais delicadamente que a pergunta seja feita, 0 questionador esta, "putting us in our place"; isto e, a indicar-nos 0 nosso mvel na pirfunide social americana seja ele qual for. No caso dos luso-americanos, este myel nao e nada que lhes incremente a auto-confian9a; eles sao, na maior parte dos casos, falantes de pidgin, que levam consigo para a sua terra natal quando vao de ferias. Hmim, variante de Johnny, conversa com 0 seu cunhado Jose sobre 0 clima frfgido destas paragens e as prepara90es necessarias do carro para 0 inverno, nomeadamente o uso de pneus pr6prios para a neve ("snow tires"):

Jamm: A gente no inverno tern que por sinotaias no carro. Jose: 0 que? 0 que e isso de sinotaias? J8nim: (Apanhado de surpresa). Home, e... e... sinotaias ... e... ethlas de sin6!6

o que esurpreendente e a aparente ignorancia do emigrante, ao voltar aterra natal, do facto de a gfria que fala nao ser a lfngua que levara naquele primeiro voo transatlantico. 0 que nao e menos surpreendente e a ignorancia do portugues que nunca emigrou (muitas vezes nunca viajou alem-concelho ou ilha) que tr09a dele, apelidando­ ode "calafona". Continuando ainda, na mesma passagem acima citada, 0 nosso calafona Janim prolonga a conversa com 0 cunhado, sobre 0 mundo de muitos emigrantes, 0 mundo da tabrica:

J8nim: Eih! Jose, se a America fosse nas ilhas! ... Eu nao posso dizer que nao gosto daquilo, mas nao ha terra como a nossa. Aquilo e born para quem vai para 50 JOHN PIRES

la novo e que se acostuma depressa. 0 homem engatinha tres vezes na vida: quando e crian9a, quando vai para a tropa e quando casa. 0 imigrante engatinha quatro: e na lfnguaL .. Mas essa ... ele vai para a cova a engatinhar. Jose: Mas tu dizes ja muita coisa! Jimim: Eu era suposto falar ja muito melhor, mas um home esta sempre no meio de portugueses. Eu entendo-Ios todos. La na fabrica eu a que mexo naqueles mexins todos e ate as vezes os engenheiros nao sabem desengatar aquilo e eles chamam-me: 0 Janim, camane! ... Eu you e desenrasco aquilo tudo! 0 bossa nao fala portugues, mas a gente entende-se sempre ... Ye... No ... Shoa... Alpesteres ... Aquilo e sempre para diante.7

A cita9ao, para alem de indicar 0 problema lingufstico do emigrante, revela-nos tambem 0 orgulho, a proa, como diria 0 nosso emigrante micaelense, de ter conseguido algum sucesso na vida. Sucesso que nunca teria na terra natal. 0 que 0 Jose nao compreende, nem pode compreender eque, na L(USA)landia, palavras como "shoa", "estoa", "ye", "no", "bossa", e centenas doutras, fazem parte da giria de cada colonia portuguesa neste mundo luso-americano. Em termos lingufsticos esta gfria eum pidgin, um falar intermediario entre a lingua materna do emigrante e 0 ingles da cultura dominante. Cada pessoa procura da melhor maneira comunicar com os monolingues e a comunidade vai desenvolvendo um pidgin que resolve, pelo menos em parte, os problemas praticos.

Vma consequencia deste pidgin e que muitos dos l(usa)landeses nem sabem que 0 portugues que esmo a falar nao ecorrecto, como e obvio pelos desentendimentos acima mencionados. Outros sabem, como veremos na seguinte cita9ao, mas pouco podem fazer para combater este portingles. Muitos adultos sofrem com a impossibilidade de comunicarem com os filhos ou netos usando 0 portugues do seu ber90.

OU90 os meus filhos a falar ingles/entre eles. Nao os o CHOQUE CULTURAL NA L(USA)LA.NnIAATRAvEs DA SUA 51 LITERATURA

mais pequenos so/mas os maiores tambem e eonversando/eom os mais pequenos. Nao naseeram ca,/todos ereseeram tendo nos ouvidos/o portugues. Mas em ingles eonversam/nao apenas serao amerieanos: dissolveram-se/dissolvem-se num mar que nao edeles...8

Claro, os portugueses que nunea vieram ou viveram ea pensam que e por afecta~ao que isto aeontece. Mas Jorge de Sena, portugues que viveu no Brasil enos Estados Unidos muitos anos, e esereveu 0 poema "No~Oes de Lingufstiea", de que aeima citamos alguns versos, parece estar a responder a essas objee~oes na eontinua~ao do mesmo poema.

Venham falar-me dos misterios da poesia,/das tradi~oes de uma linguagem, de uma ra~a,/daquilo que se nao diz com menos que a experiencialde urn povo e de uma lingua. Bestas.lAs linguas que duram seeulos e mesmo sobrevivem/esquecidas noutras, morrem todos os dias/na gaguez daqueles que as herdaram:/e sao tao imortais que meia duzia de anosl as suprime da boca dissolvidalao peso de outra ra~a, outra eultura.rrao metaffsieas, tao intraduzfveis'/que se derretem assim, nao nos altos eeus,/mas na eaea quotidiana de outras.9

o peso da lingua dominante e tanto que mesmo os dispostos a eombate­ la se rendem vencidos. Os que nem pretendem eombate-Ia, a maioria emigrantes de pouea eduea~ao formal, ehegam ao ponto de nao saberem que lingua de facto falam. Isto expliea 0 eomportamento lingufstieo dos emigrantes ao regressarem asua terra. No Continente os afraneesados pedem uma biere na tabema, enquanto nos A~ores, 0 l(usa)landes pede urn ehate (de "shot"), isto e, urn eopinho de aguardente ou uisque. Ha os que querem exibir-se, mas muitos nem sabem que nao esrno a ser entendidos pelos vizinhos e eompanheiros de outros tempos, quando 0 seu mundo era a periferia da ilha, ou as montanhas que rodeavam as suas aldeias. Nilo sao apenas os adultos que passam por esta luta, os miudos 52 JOHNPlRES

tambem. Estes sao postos no campo de batalha linguIstic a no proprio mundo das crian9as, a escola. Eis urn exemplo:

No ar berravam maos procurando atrair a aten9ao dos professores e do condutor do autocarro mlmero urn prumero bus, como se the referia a Mrs. Travers (em tempos, Tavares) na boa vontade de se lembrar do lusalandes da vavo.

-No! No! Come on! Wait! Wait! Espera pelo teu vez, ja disse a ti. ... E preciso voces nao serem desorganizados como em Portugal. This is not Por­ tugal, kid. Behave! you .. .10

Outro exemplo dum emigrante numa escola que pretende ajuda-Ios:

Professora: Eu rugo ja muita vez que nao e assim. o dollar escreve eso com uma risca $. Nao e point aqui, e virola, e seven na America nao ser como 0 sete em Portugal. Nao tern 0 risca. 0 virola ta nos thousand 12,477... seven, seven, sem risca and then o point dos cents 12,477.50.0 coisa dos dolares vai no beginning. All right? Sit down. 11

Sera preciso que se entendam duas coisas para interpretar os exemplos citados em cima: primeiro, ha muitos professores que nao falam esta mistura nas suas aulas e nao perrnitem 0 seu uso pelos alunos. 0 autor deste trabalho procura ser urn exemplo deste ultimo tipo; segundo, muitos dos professores que assim procedem com os seus alunos recem-chegados sao descendentes de emigrantes ou sao de facto emigrantes que vieram para os Estados Unidos em crian9as, e os seus conhecimentos da lingua de Camoes sao francamente rudimentares; facto que nao deve ser interpretado como discrimina9ao ou desdem para com os emigrantes. Muitos deles foram colocados nas escolas em que havia crian9as emigrantes, logo no infcio da grande vaga de imigra9ao, por serem os linicos capazes de comunicarem (ainda que deficientemente) com as crian9as. Tambem nao quero ruzer que todos os profess ores que trabalham com emigrantes tenham OCHOQUECULTURALNAL(USA)L~'!DIAATRAv:EsDASUA 53 UTERATURA

grande simpatia por eles, ou pela comunidade lusa em geraL 13 conforme 0 indivlduo e as tradiyOes, problemas e normas do distrito escolar.

Choque climatico

o choque linguistico e apenas urn entre muitos. Urn outro que se faz sentir logo achegada e 0 ambiente fisico, climaterico e urbano. Para urn ayoriano que chega no meio do Inverno ao Aeroporto Logan em Boston com 0 seu mais belo fato de domingo, 0 ambiente climatico actua como uma faca a cortar 0 casaco, as calyas, as pr6prias pernas. 0 nariz e as orelhas parecem ameayar cair da face. Mas e a neve que, depois de aclimatado ao frio indescritivel, 0 surpreende. Se ca chega no meio de urn nevao, como foi 0 caso de quem escreve estas linhas, e que ainda se lembra desse dia como se fosse ontem, pode pensar que e farinha de trigo, ou talvez ayucar:

Houve quem ficasse muito admirado com a neve que ate parecia sugar..)2

Claro, este engano e descoberto quando 0 pobre vai agarrar urn punhado de as:ucar e cai de rabo no chao porque deslizou com aqueles sapatinhos de domingo, comprados novos para a viagem de metamorfose.

Choque do ambiente urbano

Alem do clima, outro choque visfvel e imediato sao os ediffcios das cidades da Nova Inglaterra. Miguel Torga no seu livro Portugal escreve que 0 minhoto e dalt6nico, porque 0 seu mundo e todo verde. 0 as:oriano nao e bern dalt6nico mas, no seu horizonte, predominam tres cores, 0 azul do mar e do ceu, 0 verde das terras e 0 branco das casas caiadas. Ora, este as:oriano, ou ate portugues do continente, saindo dum ambiente cheio de cores c1aras, chega aos Estados Unidos e tern 0 seguinte choque ao ver as casas:

Em Portugal, eram de todas as cores e aqui sao quase pretas e de madeira. 13 54 JOHNPlRES

Outro exemplo:

Ferry Street fica em Newark, ali a vinte minutos dos arranha-ceus de New York. Euma rua com certo ar de pobreza, escura e tristonha, C••• ) Nos passeios amontoam-se himalaias de sacos de lixo, amea<;:ando tombar sobre os transeuntes que vao passando sem grandes pressas.( ... ) Bm Newark vivem uns 60,000 portugueses, gente da Murtosa, do MIDho, da Madeira e dos A<;:ores. Concentram-se sobretudo num bairro chamado Ironbound, separado pela via ferrea da zona negra da cidade. Se descontarmos a presen<;:a de alguns espanh6is e cubanos que por ali abriram algumas lojas e restaurantes, Ferry Street euma rua portuguesa.14

No caso de Newark, New Jersey, Sommerville, Massachusetts e outros centros industriais em decadencia, 0 choque nao eapenas das casas escuras, edo lixo pelas ruas, da mistura de ra<;:as, dos costumes que ate sair da Murtosa ou de Ponta Delgada 0 emigrante nao sonhava existirem.

Actualmente, nas cidades onde predominam portugueses, estes estao a comprar essas casas velhas, negras e feias e a transforma-Ias com linhas modernas, com janelas novas e revestindo-as com "vinyl" ou aluminio de cores de areo-iris, cores claras e vivas, dando urn aspecto diferente a estas velhas cidades industriais.

Choque socio-cultural Trabalho/escola

Se a escola e 0 mundo de inicia<;:ao cultural para as crian<;:as, as fabricas sao-no para os adultos. Os emigrantes vindos quase exclusivamente de uma sociedade agraria, onde 0 horatio dependia mais do tempo e da esta<;:ao, nos B.U., encontram urn ambiente de "piece work". "Piece work" e uma modalidade segundo a qual se paga mais a quem mais produz. Isto resulta numa atmosfera opressiva de alta produ<;:ao em que os mais vagarosos sofrem insultos dos seus o CHOQUE CULTURAL NAL(USA)LANDIAA1RAvEs DASUA 55 LITERATURA colegas e dos "bosses", os patroes. Note-se a seguinte citas;ao:

Esse trabalho parece que emperra 6 Frank! Vamos la a andar com essa merda porque a companhia nao esm para perder dinheiro contigo, esms a ouvir-me? Se nao, olho da rna. Nos tempos de hoje nao falta aiquem queira trabalhar. 15

o emigrante em quase todos os casos e emigrante por razoes econ6micas. Portanto, sujeita-se as oscilas;oes de urna sociedade indus­ trial em que a mao-de-obra e apenas uma utilidade econ6mica nao muito diferente da materia prima. Ve-se obrigado a ser urn perpetuo aprendiz, mudando de emprego ou profissao conforme os altos e baixos da economia. Enfim, 0 reverso da medalha do capitalismo. Joaquim Azevedo Baiona, algarvio, proletano, poeta popular residente em Fall River, Massachusetts, escreve 0 seguinte:

Fiz barcos e muitos barquinhos Cortei cabelos aos montoes. Plantei arvores junto aos carninhos E ate trabalhei em caixoes. Fiz malas e tantas malinhas Pr6prias pra ir viajar, Trabalhei em vanas cozinhas E casas tive que lirnpar.

Agora trabalho na fabrica das luzes o que sera que mais vou aprender, Nesta nora composta de alcatruzes Ate ao dia em que irei morrer.16

Para muitos emigrantes, 0 emprego, 0 d61ar, sao tao irnportantes que eles sao capazes de destruir a vida dos filhos pelo que consideram 0 bem-estar econ6mico da familia. 0 resultado econ6mico e irnediato, mas aquela atitude gera muitas consequencias negativas. Na pes;a de teatro 0 Repartido, de Luis Miranda Correia, 0 Manuel questiona 0 pres;o pago pelos filhos do Ze por sairem da escola aos dezasseis anos. 56 JOHN PIRES

Manuel- Que eque eles tern? Ze -(silencio. Depois, calmo.) Que eque eles tern?! (Ir6nico.) Urn linda futuro a sua frente, nao hajam duvidas! (Pausa.) Olha, 0 Mario fez dezasseis anos ha tres meses e toca logo a deixar a escola. (Sorvendo um golo de cerveja.) Lindo futuro, sim senhores! (Encolhendo os ombros.) La anda numa fabric a para consolo do paL Manuel- E nao achas bern? Sempre sao mais uns d6lares por semana que entram em casa. Ze -(Irritado) Que eis so comparado com 0 futuro do rapaz? Voces s6 sabem ver d6lares a vossa frente! (Mutaqiio: aproximando-se de Manuel.) 0 que 0 Diogo nao sabe e que, como 0 filho trabalha das tres da tarde as onze da noite, a manha e parte da tarde passa-as com os amigos a fumar esse raio de drogas que andam pra-i....n

N a familia emigrante ha ainda mais adaptas;oes ao novo mundo: ha as novas definis;oes de ser mulher, mae e empregada. Na maioria dos casos a esposa era dona de casa e muitas sentiam-se confortaveis nesse papel. Aqui sao quase todas obrigadas a trabalhar para poderem viver em decente myel econ6mico. Casa sem dona, filhos sem maes, falta de acesso as infra-estruturas que podiam colmatar este estado de coisas (infantarios, clubes de ocupaS;ao de tempos livres, etc.) por causa do baixo myel econ6mico da familia, ou do marido que nao compreende a nova situas;ao - e 0 resultado eseparaS;ao, div6rcio, e infelizmente muitas vezes 0 desvio para a droga por parte dos filhos. Se a separaS;ao dos pais eja por si chocante, para a familia ha ainda outros choques. Os jovens sofrem pressoes sociais dos seus cole gas para fazerem 0 mesmo que a malta faz. Muitas vezes 0 resultado etragico. Os pais envergonhados porque nao se criaram assim, e os mhos ou filhas destruidos por acontecimentos que pensam que podiam controlar mas nao podem. Veja-se 0 dialago seguinte na pesta 0 Repartido:

Maria: (Angustiada. Sufocada. Llvida) Ai Jesus da o CHOQUE CULTURAL NA L(USA)LANDIAATRAvEs DASUA 57 LITERATURA

minha alma! (choro convulsivo. A medo.) Esta gravida... (pausa. Solugo.) AnossaAlice... estagravida! Diogo: (Olha a mulher ainda perplexo.) Gravida?! ... Maria: (Levantando-se. A medo) Ai Jesus, que vai ser de n6s?! Diogo: (Corre para Alice. Agarra-a pelo brago, acima do cotovelo, puxa-a para ele. Brutal.) Gravida?! (Repele-a bruscamente.) Mas que raio de mulher es tu? (fora de si) Sua puta! (Pausa.) Oh, meu Deus! Que vai ser de n6s?! Que vergonha (Avanga para Alice, irado.) Sua puta!. .. (Maria corre para 0 Diogo. Agarra-se a ele, sempre a chorar.) Maria: 6 homem, pelo arnor de Deus, nao the fa<;:as mal!...

o Diogo continua arnea<;:ando a filha enquanto a Maria tenta acalmar a situa<;:ao e evitar que 0 marido bata na filha. Numa tentativa de explicar ao pai que as coisas sao assim, a Alice diz:

Alice: Todas as minhas colegas hi na fabrica tem namorados ... Diogo: E esHio gravidas? Alice: (comegando a chorar.) 0 Filipe e eu go stamos muito um do outro. (Pausa.) Voces nao compreendem... Diogo. (Furioso.) Nao compreendem, 0 que? (ctnico. Imitando a ftlha.) 0 Filipe e eu gostarnos um do outro. (Avangando para a filha sempre com a mulher a segura-lo.) Eu mato esta cabra... Este estafermo que ja nao serve para nada... Esta puta... Eu mato-a.

E a seguir:

Diogo: (Violento) Qual calma, nem meia calma! (Tentando libertar-se da sua mulher. Aponta a Alice.) Que vai ser desta desavergonhada? (vai aftlha) Nao dizes nada, sua cadela? Alice: Cale-se que ja chateia! 58 JOHN PIRES

Diogo: (furioso) 0 que? a mandar-me calar, a mim?! Suacabra. Maria: (tentando aparta-los, gritando.) Ai minha rica filha!.... Ai, que ele mata-a.... Alice: ... You-me embora desta casa.18

Quantos Diogos M na L(USA)landia, escandalizados nao necessariamente por aquilo que aconteceu as filhas, mas por aquilo que os vizinhos vao dizer? Nem pensam nas consequencias para as filhas nem dos netos a nascer. Nao se aproximam uns dos outros de urn modo calmo para resolverem 0 problema. Somente gritam a sua vergonha, porque sabem que a acC;ao da Alice se reflecte na imagem dos pais. Os emigrantes podem estar num ambiente social completamente desconhecido. Podem viver lado a lado com chineses, negros, porto-riqenhos, colombianos, cubanos vietnamitas, ou outros. Neste "melting pot", ou salada rossa, que e a sociedade americana, e diffcil manter a moral da antiga terra. Os emigrantes veem-se obrigados a adaptar-se ao que os rodeia.

Choque sexual/moral

Onesimo T. Almeida, criador do termo L(USA)landia e observador da nossa (sapa)teia americana descreve uma cena em P. Town, abreviatura de Provincetown, Massachusetts. Urn imigrante recem-chegado, oriundo de Rabo de Peixe, Sao Miguel, continuando na sua carreira de pescador, nao gosta do que ve asua volta:

Erne, isto e tudo uma paneleirage! Eles s6 querem e homensP9

No entanto continua 0 seu neg6cio junto aos gays, que vao a P. Town aos milhares todos os verOes. Ele, como os antigos portugueses - existe uma co16nia portuguesa ali desde 0 seculo XIX quando a atracc;ao de Provincetown era a cac;a abaleia, - fizeram a sua paz com a comunidade gay que comec;ou a ir para P. Town na decada de 30. Jii nao acham chocantes as cenas de homens de brac;o dado com homens, mulheres o CHOQUE CULTURAL NA L(USA)LANDIAATRAvEs DA SUA 59 LITERATURA

com mulheres, e travestis a caminharem pela Commercial Street, ate a padaria portuguesa ou a caminho do baile travesti naA(tlantic) House. Nem todos os portugueses aqui na America aceitam porem esta confusao sexual. Urn pobre emigrante, saloio em Portugal, que troyava do "maricas" da , aqui as vezes ve-se na necessidade de engolir 0 que dizia e enfrentar 0 problema da homessexualidade na sua pr6pria casa. As frustrayoes resultantes dos choques sociais sao mais dificeis porque os emigrantes estao isolados da terra natal. 0 que 0 emigrante nao ve quando volta a Portugal apenas por duas semanas de ferias e que Portugal, com 0 resto do mundo ocidental, esta em transformayao muito mais nipida do que ele pode aceitar. Deita entao as culpas desta aparente imoralidade as ideias liberais da nova terra.

Portugal ja nao ePortugal

o emigrante apercebe-se da sua ignorancia quando volta a terra natal, com a visao buc6lica duma ilha, ou terra em paz, como era antes da sua viagem para alem mar. Ele ve que 0 ideal que tinha na mente ja nao existe e sofre a desilusao de nao poder voltar ao passado. Como escreveu Thomas Wolfe, "you can't go home again". 0 Portu­ gal que deixara ja desapareceu tambem. Quando volta de visita prolongada, ou de vez, e que 0 emigrante/imigrante reconhece que nao e completamente nem de Portugal, nem dos Estados Unidos. E nesse momenta que sente a magnitude da tragedia do seu ser e nao ser. Voltemos a escutar 0 dialogo entre Janim, em viagem de visita as ilhas, e 0 seu cunhado Jose:

Janim: ... 0 que me custa e criar os meus fIlhos numa terra desassossegada daquelas ... E sempre a ouvir falar de crimes e a ouvir-se a sirene da policia haheaheaheaa.. ... E aqueles guedelhas grandes?! .. . Da-me ca uma grande gana de agarrar uma tesoura ... E dois moram mesmo em cima de mim. 0 que vai ali para dentro nao vai na praya! ... Jose: Aqui tambem ha a moda do cabe10 grande! J3nim: Eh! Home, pela tua saude! Eo que aquele 60 JOHN PIRES

talaveja da. Euma pouca vergonha! Eu as vezes are mando os rapazes ir para 0 ya. Urn home are fica envergonhado!20

Dentro de casa a conversa entre as duas cunhadas pros segue no mesmorumo:

Joaninha: Ah! mulher! E aqueles namoros. Que poucas vergonhas! Credo!... Uma pessoa ate tern tanto medo que os filhos cres\!am. Eles tern 0 ranimune anos antes de casarem... Que Nosso Senhor me perdoe!... E verdade que nao podem namorar a janela porque as janelas nao se podem abrir. Tern dois vidros por causa do frio. E ao depois como e que havia de ser com 0 frio do Invemo? Entao vao para aqueles carros. Mas os carros tern ita de aqueeer. Eles nao precisam de se eneostar tanto ... Mas 0 que e que a gente ha-de fazer? Rosa: Ah, mulher, isto por aqui esta igual ou parecido. Este 25 de Abril trouxe eoisas nunea vis­ tas!21

Nem uma nem a outra esta satisfeita com a evolu\!ao social, mas reeonheeem em silencio que poueo podem fazer para suste-Ia. Uma atribui as culpas ao c1ima de Invemo daAmeriea, e a outra atribui-as ao 25 de Abril. Assim esta tudo bern e podem continuar as suas vidas felizes.

Para que sofrem?

Para que sofrer tantos ehoques? 0 emigrante ve-se obrigado a justificar a assimila\!ao do novo regime politico, linguistico e cul­ tural, se quer 0 sucesso material que foi a promessa da America. Ao chegar aos Estados Unidos, junta-se a uma das vanas colonias de portugueses na America do Norte. Assim, vai-se adaptando ao novo sistema, it nova moral, anova maneira de viver. Mas lentamente, porque a colonia em que vive continua as tradi\!oes da terra natal. Em cada colonia portuguesa ha os clubes recreativos, os o CHOQUE CULTURAL NAL(USA)LA.NDIAATRAvEs DA SUA 61 LITERATURA

bares onde se encontram os homens apos urn dia arduo no emprego. Ha os cafes onde se torna uma bica e bagaceira, como la se fazia. Os emigrantes juntam-se nas inumeras festas que se organizam para manter algo do ambiente que viveram em Portugal.22 Este fenomeno da-se com quase todos os emigrantes, mesmo os mais cinicos, aqueles que aparentemente estavam prontos a abandonar a manta do saudosismo do nosso povo. Quem em Portugal nunca ia ouvir urn fado, ou ver urn rancho folclorico, aqui vai cheio de alegria.

Quando em Portugal, 0 nosso sentido estetico teria de se .agarrar ao caldo verde, ao chouric;o e ao carrascao para atravessar duas horas de Amalia. Aqui, em San Diego onde a fomos ver e ouvir no 22 deste mBs, a.s raizes gritavam ate ensurdecer a razao e inundar a alma. Assim, descemos a este inferno de encarar 0 que nos e agora dor, a dor de termos sido. Como a sentimos aqui, Amalia foi a ausBncia - a nos sa condic;1io de portugueses em transito, este fado muito nosso. de tudo chorarmos, ate ao riso.23

Com as festas, as noites de fado, os jogos de futebol e os cafes onde se discute a politica portuguesa e a americana, 0 nosso povo celebra a sua lusitanidade em sessoes de saudade onde 0 cantar de "Coimbra" ou "Poi Deus" traz aos olhos lagrimas felizes.

Mas e sobretudo do lado de ca [America] da santa terrinha que 0 bicho [saudade] r6i como rato. Aqui, na Emigrac;ao, todas as intelectualizac;oes da frieza analitica se quebram para darem lugar ao caudal das forc;as sensoriais.24

Ecomo se fosse necessario sairmos de Portugal para sermos mais portugueses do que os portugueses (os que nunca emigraram). Jorge de Sena disse 0 seguinte numa entrevista concedida arevista 0 Tempo e 0 Modo, sobre a questao de se viver no estrangeiro:

Eu costumo dizer, por piada, que Portugal nao 62 JOHN PIRES

se salva enquanto todos os portugueses nao forem obrigados, por lei, a fazer urn estagio de alguns anos no estrangeiro, mas proibidos de encontrarem-se uns aos outros. Esta proibiyao e da maior importancia, para impedi-Ios de assarem colectivamente sardinhas, ou bacalhau com fervor nacionalista ou trocarem sofregamente as ultimas novidades do Chiado. Viverem nao nas colonias agarrados uns aos outros, mas no meio do estrangeiro, aprendendo a lingua e integrando-se nos costumes 0 suficiente para saberem que ninguem sabe da existencia deles - 0 que, com a sua injustiya, e uma tremenda verdade. De resto, a mais triste e maior liyao e descobrir-se que para de­ fender Portugal, e preciso saber dele muito mais do que os portugueses sabem, e que todos os portugueses, no estrangeiro passam pela vergonha cultural dos lusof1los saberem de Portugal, e com outra seriedade, muito mais do que eles.2S

Jorge de Sena sabia do que estava a falar. Viver no estrangeiro foi a sua situayao durante muitas decadas. Por suas proprias palavras ele se define no poema "Em Creta com 0 Minotauro":

Nascido em Portugal, de pais portugueses, e pai de brasileiros no Brasil, serei talvez norte-americano, quando la estiver. Coleccionarei nacionalidades como camisas se despem, se usam e se deitam fora, com todo 0 respeito necessario aroupa que se veste e que prestou serviyo. Eu sou eu mesmo a minha patria. A patria de que escrevo e a lingua em que por acaso de gerayoes nasci. E a do que fayo e de que vivo e esta.26

Se Jorge de Sena intelectualizou e justificou como pOde a sua prolongada ausencia da nossa Patria por ser poeta, intelectual, homem de letras, a vasta multidao de emigrantes portugueses, OCHOQUECULTURALNAL(USA)lANDJAPJRAvEsDASUA 63 LITERATURA

separados uns dos outros por milhares de quil6metros, justifica a sua ausencia asua maneira. Muitos abandonam 0 que 0 ber~o lhes deu e tomam-se mais americanos do que Ronald Reagan. Mas muitos outros resignam-se asua situa~ao lembrando que neste ter de emigrar ha uma tragectia portuguesa que poucos em Portugal reconhecem: 0 facto de, desde 0 seculo XV, manter Portugal 0 neg6cio de exportar os seus filhos. Numa entrevista concedida a Vamberto A. Freitas, Urbino San-payo reconhece esta tragedia:

Como somos, por tradi~ao; palavras e obras, uma etnia de ganhoes, a cultura escorrega quase sempre para 0 fundo da escala de valores. Fazendo parte desta etnia formada por pequenas ilhas, ca ando, no meu barco de solidoes, aprocura de terra firme. ( ... ) Vantajoso seria estudar as condi~oes que levariam o nosso velho Pais a diminuir a exporta~ao dos seus filhos que, pelas varias pemirias que carregam, se tornam as presas faceis dos mercadores da explora~ao humana, e que assim vao servindo de remendos aos furos dos baloes dos paises onde a maturidade industrial come~a a mostrar urn certo Cansa~o do elemento nacional da produ~ao. E alem do nosso caso aqui [America], repare-se na Europa, onde a Fran~a, a Alemanha, a Su:(~a, por exemplo, tentam acudir a essa quebra de produtividade transplantando da Espanha, da Itwa, da Grecia, de Portugal, etc. os ratinhos das zonas rurais para a promissao dos centros da industria.27

Portugal, ber~o de n6s todos os emigrados, e ainda para alguns a terra que nos atrai de ferias e aonde alguns voltam definitivamente. Mas, para a maioria, a cova sera longe das margens do Dao, do Tejo, do Douro, dos rochedos dos Fenais da Luz, dos calhaus de Sao Miguel, dos Biscoitos da Terceira. Assim, elonge da sua terra natal que muitos se despedem da ambigua situa~ao de emigrantes/irnigrantes. 64 JOHN PIRES

GLOSSARIO DE TERMOS L(USA)LANDESES

o emigrante da L(USA)Htndia nao encontrou s6 urn novo mundo, uma nova sociedade, uma nova maneira de ser, encontrou tambem situa~oes e objectos que ate ent1io nao conhecera ou nao usara. o choque lingufstico entre 0 portugu6s do ber~o e 0 ingles deste novo mundo resultou numa adapta~ao de terrnos ingleses a gramatica portuguesa - urn pidgin. Abaixo alistarn-se alguns exemplos de terrnos l(USA)landeses, corn a respectiva proveniencia e correspondencia em Portugues.

L(USA)LANDES INGLES PORTUGuES alpesteres upstairs nos andares superiores bossa boss chefe carnane come on vern/venha ca chate shot calice de aguardente (ou outra bebida alco6lica) darbada to bother incomodar, (chatear) estoa store loja, arrnazem ita heater sistema de aquecimento

Janirn Johnny Joao(zinho) mai my o meu mamim mommy maezinha

Manim Manny Manuel (Manelinho) o CHOQUE CULTURALNAL(USA)LANDIAATRAvEs DASUA 65 LITERATURA

mexim machine meiquina

naice nice jeitoso, bonito

orraite all right tudo bern, certo

spika(r) to speak falar

ranimune honeymoon lua-de-mel

reiss race corridas (de carro, por exemplo)

sinotaias snowtires pneus para a neve

sino snow neve taias tires pneus talaveja television televisao yei yard quintal/j ardim

NOTAS

1 Onesimo T. Almeida, Va Vida Quotidiana Na L(USA)lilndia, Coimbra. Atlfultida Editora. 1975, p. 7. 2 Ana Brito, "Lamento D'Emigrado," Gdvea-Brown, Vol. II, N° 2, Julho-Dez. 1981, p. 120. 3 Nelson H. Vieira, "At the Portuguese Feast", Gdvea-Brown, Vol. II., N° 1, Jan­ Junho, 1981 p. 53. 4 Onesimo T. Almeida, Ah Monim dum Corisco, Providence, R.I.: Gavea-Brown, 1978, pp. 139-140 5 Ibid. 6 Ibid., p. 28. 7 Ibid., pp. 24-25. 8 Jorge de Sena. "Noyoes de Linguistica", in Fausto Avendafio, (org.), Literatura de Expressiio Portuguesa nos Estados Unidos, Lisboa: Publicayoes Europa-America, 1982, p.27. 66 JOHN PIRES

9 Ibid., p. 27. 10 Onesimo T. Almeida, "7 De Outubro no Longe", (Sapa)TeiaAmericana, Lisboa: Vega, 1983, pp. 29-31. 11 Ah Monim dum Corisco, p. 44. 12. "A America vista por urn grupo de crian~as com 0 cora~ao na boca livre", Da Vida Quotidiana na L(USA)lllndia, p. 154. 13 Ibid. 14 Eduardo Mayone Dias, "Ferry Street A Rua Mais Portuguesa da America", Coisas da L(USA)lttndia, Lisboa: Instituto Portugues do Ensino 11 Distancia, 1981, p. 175. 15 Jose Brites, "Frankamente Francisco" lmigramantes, Lisboa: Cooperativa Edi­ torial dos Emigrantes, 1984, p. 69. 16 Literatura de Expressiio Portuguesa nos Estados Unidos, p. 74. 17 Luis de Miranda Correia. 0 Repartido, Providence, R.I.: Micor Publications, 1982, pp. 18-19, 18 Ibid. pp. 40-44. 19 "A Visao do Cego de P. Town", (Sapa) Teia Americana, p. 158. 20 Ah Monim dum Corisco, p. 25. 21 pp. 25-26. 22 Sao as "b6ias" a que se refere Onesimo Almeida: "Quando 0 irnigrante nada na angilstia e se the da b6ias de salva~ao com furos", Da Vida Quotidiana na L~USA)lllndia, pp. 188-189. 2 Urbino San-payo, "Amalia: Com que voz chorarei meu triste fado?," Plural Transitivo, Lisboa, Ler Ed., 1982, p. 79. 24 Ibid., p. 80. 25 Jorge de Sena, "Viver no Estrangeiro", Versos e Alguma Prosa de Jorge de Sena, Lisboa: Secretaria de Estado Da Cuitura, Arcadia e Moraes, 1979, p, 137. 26 Jorge de Sena, "Em Creta Com 0 Minotauro", Literatura de Expressiio Portuguesa nos Estados Unidos pp. 28-29. 27 "0 Emigrante e urn Pastor Com Plantas de Trapos" Plural Transitivo, op. cit., pp. 12-15.

Bihliografia

Almeida, Onesimo Teot6nio, Ah Monim dum Corisco. Providence, Rl.: Gavea-Brown, 1978 ___ , Da Vida Quotidiana na L(USA)lllndia. Coimbra: Atlantida Editora, 1975. ---,(Sapa)TeiaAmericana. Lisboa: Vega, Colec~aoChaodaPalavra, 1983. ____ , "Entrevista com Ana Brito", Gavea-Brown, Vol. II no.2 Jul-Dez., 1981, pp. 105-113. ___ ,"Low key Note ... Address to the Portuguese ofCalifornia", Gavea-Brown, Vol. II no. 1, Jan-Jun 1981, pp. 29-44. ---,L(USA)landia-A Decimallha, Angra do Heroismo: Direc~ao dos servi~os o CHOQUE CULTURAL NAL(USA)iJ.NDIAATRAvEs DASUA 67 UTERATURA

de Emigra;;:ao, 1987. ____ , "In Loco", The Sea Within, A Selection ofAzorean Poems, Onesimo Almeida, ed., Providence, R.I.: Gavea-Brown, 1983. Avendano, Fausto, (org.) Literatura de Expressiio Portuguesa Nos Estados Unidos, Lisboa: Europa-America, 1982. Baden, Nancy T., "Portuguese-American Literature: An Overview", Gdvea-Brown, Vol, I, no. 2 Issue Jul.-Dez., 1980. pp.29-42. ----,The Immigrant Voice in the Stories of Migueis, Gdvea-Brown, Vols. III­ IV, Jan 1982-Dez 1983, pp. 115-127. Braga, Thomas J., Portingales. Providence, R.I.: Gavea-Brown, 1981. Brites, Jose, Imigramar. Newark, N.J.: Pab Publications, Inc., 1981. ____, Imigramantes, (Contos), Baden: Cooperativa Editorial dos Emigrantes, 1984. ----,Poemas Sem Poesia, Bethlehem, Perm., 1975. Brito, Ana, "0 Larnento D'Emigrado" in "On the Tribulations of Arma Brito: In Words Deposited" por Vieira do Canto Maia, Gdvea-Brown, Vol. II, no.2, Jul-Dez., 1981, p. 120. Bulger, Laura, Paradise On Hold, (short stories), Toronto: Bramble House, Inc., 1987; Titulo original Vaivem, Lisboa: Vega, 1986. Correia, Luis de Miranda, 0 Reparti

Jose I. Suarez

After perusing every study made available to me, I came to the realization that Nancy Baden, Francis Rogers, and Donald Warrin have produced more detailed analyses ofLuso-American letters than I could possibly present here. Nancy Baden, in particular, has made two out­ standing studies which provide a good picture of who's who in Portu­ guese immigrant literature in the United States as well as who is seri­ ously studying the works ofthese artists. I am referring to "Portuguese­ American Literature: Does it Exist?" and "Portuguese-American Lit­ erature: An Overview." 1 Since 1980, the year of her later study, other literary works have come into print, e.g., OnesimoAlmeida's (Sapa)teia Americana and Julian Silva's The Gunnysack Castle; yet, with few exceptions, the ranks of contemporary authors included in those stud­ ies have remained virtually unchanged. It was the essay by Maria Angelina Duarte, "Portuguese Cul­ tural Presence in the U.S.: the Problems of Definition, " which sug­ gested a most appropriate topic for an approach to this study.2 In her essay, Duarte sets forth a series of factors which help elucidate why there has been such a scant literary output by Luso-Americans; she then proposes that the "high culture" bias which treats this literature as a manifestation of a substandard culture must be overcome and new definitions, categories, and approaches must be derived if we are to determine what, in fact, constitutes Luso-American letters. Among ar­ TIlE PORTUGCESE lMMIGRANTEXPERIENCE TIlROUGH ITS 69 AUTDBIOGRAPHERS

eas to be researched, she includes the following:

Another fruitful area of investigation is that of Luso­ American autobiographies, be they written in English or Portuguese. These must be studied not only as re­ flections of individual experiences but also as reflec­ tions of modes ofperception and adaptation. Published autobiographers are, de facto, spokespersons or role models for their communities. What images do they consciously or unconsciously project of and for the communities to which they belong? To what extent do they participate in and identify with community values?3

The object of this study is to examine three autobiographical works written by Portuguese immigrants in the United States in order to address these questions properly and, at the same time, to point out the authors' differences and similarities as perceived through their texts. The number three was not arbitrarily chosen; rather, three is the num­ ber of the only published Luso-American autobiographies or autobio­ graphical compositions available to me. Others of which I am aware but was unable to obtain are: Higi'nio Faria's Retalhos de uma Vida IncriveI, and Joao Vieira's Eu Falo porMim Mesmo. 4 The three books herein discussed are: Home is an Island by Alfred Lewis, The Open Door by Laurinda Andrade, and Never Backward by Lawrence Oliver.5 These works reveal that their authors shared much in com­ mon: all three were Azorean (Lewis from Flores, Andrade from Terceira, and Oliver from Pico); all were from the same generation (actually, the three were born within four years of each other); each came from very humble origins; they demonstrated the desire to emi­ grate to the United States at an early age; all made the journey to this country alone, leaving behind family and friends; all three, interest­ ingly enough, used only the English language in the composition of their stories; and last (but perhaps in what is the most striking similar­ ity), all professed to have faith in America because, as they saw it, it was the land of limitless freedoms and opportunities. Itmay be said that it was the desire to divulge this faith, along with the gratitude they felt for having been allowed to settle here, that 70 JOSE 1. suAREz

inspired them to write the story of their lives. In Home Is an Island, the only one of the three works whose action does not cover a lifespan, the proper noun "America" and its derived adjective "American" are men­ tioned nearly one hundred times. When we consider that the text cov­ ers only 308 pages of rather large print, this is indeed an astonishing number. As a matter offact, this obsession with the United States forms part of a structural dichotomy which lends significance to all events within the plot: on the one hand we have the fervent, almost fanatical Catholicism of Jose de Castro's mother, which induces her to see life as the constant battleground between the forces of Good and Evil, re­ sulting in her desire that her son enter the priesthood; on the other hand there is the progressive and pragmatic outlook of Jose's father (a prod­ uct of his sojourn in America) which has been imparted to the son and has made the boy eager to follow in his footsteps. Although lauding America plays a principal role in Andrade's The Open Door, it does at times share this honor with two other con­ cerns: throughout Part One, there are constant remarks regarding the subordinate status ofwomen in a male-dominated society, e.g., "School was not compulsory, and very few children attended school, especially girls" (p.35); and "As far as Laurinda's mind could grasp it then, all that masculine superiority was just a myth, a fairy tale" (p. 44). For the remainder of the book, though not entirely abandoning this concern, Andrade becomes almost obsessed with demonstrating that a strong religious conviction coupled with an unrelenting desire to persevere are the ingredients required for success in our society. Comments such as these abound: "But the spirit, tempered in faith and driven by the persistent sense of responsibility, dragged me... According to Daniel Webster, 'Failure is more frequently from want of energy than from want of capital.' With no intention of contradicting Mr. Webster, I would substitute his 'energy' for [sic] the more spiritual and all-en­ compassing word "faith" (p. 159). InNever Backward, as the title suggests, Lawrence Oliver does not reflect much upon his life on the islands. This is not out of shame for his birthplace, but because the aim of the book is to illustrate how he, a foreigner with very little education, was able to prosper through hard work, honesty, and a little business sense. However, as is often the case with this type of individual, Oliver chooses to relate every detail, no matter how unimportant, in respect to the amassing of his fortune. TIlE PORTUGUESE IMMIGRM'TEXPERlEl"lCE1HROUGH ITS 71 AUIDBIOGRAPHERS

Here is a typical example: "After I bought my 2,200 acre ranch at Descanso, in 1942, I not only transferred the small herd of English Devon cattle which I had kept at the Camp Kearney ranch, but I in­ creased my herd; and developed an interesting and successful hobby of cattle-raising" (p. 159). Yet, as Nancy Baden points out, it is "the sincerity of this hardworking man [which] shines through this somewhat simple, naive work."6 We indeed receive the impression that Oliver is not relating these facts in order to boast or to relish his success; rather, his step-by­ step account reflects an effort to guide and counsel any aspiring entre­ preneur, to provide himlher with a "business handbook." What, then, are the modes of perception and adaptation exhib­ ited by these works? Before answering this question, we must state that these writers belonged to a wave ofimmigrants which reached our shores in the early years of the present century. Generally speaking, these were individuals who abandoned their homelands for economic better­ ment. Their perception of the United States (or "America," as it is commonly called in the Old Country even today) was that of a land where material wealth was plentiful, where opportunity knocked at one's door, where, in short, "the sidewalks were paved with gold." This in­ genuous view was created by friends and relatives alike who, having returned from the United States (either permanently or temporarily), gave only positive and often exaggerated accounts of what they had experienced in the New World. Those who did not return likewise painted in their correspondence a rosy picture ofAmerica in an attempt to justify their move. Both Lawrence Oliver's father and Alfred Lewis's father had spent time in the United States; Laurinda Andrade had an uncle who lived in California. It is in Home Is an Island where several characters convey this utopian vision thus: "America is full of money" (p. 106); "You work all day in America. And it does you good. Makes you strong, and besides, you make lots of money" (pp. 210-11); "America is full of dollars" (p. 212); "Yes, a great place it is, America. Money. So much of it over there" (p. 282); "The boy will pay his indebtedness. The riches ofAmerica will do that" (p. 288). That wealth and the United States are virtually synonymous, as these excerpts demonstrate, was and is the prevalent impression among Portuguese who aspire to emi­ grate. 72 JOSE I. suAREz

However, once passage has been safely made to this side of the Atlantic, another reality confronts the newcomer, as Laurinda Andrade and Lawrence Oliver so candidly reveal in their respective works. Soon after taking up quarters in a boarding house, as many single immigrants are forced to do, Andrade perceives that Mamie, the housekeeper's daughter, is attracted by her friend and fellow boarder Manuel. Since the housekeeper wants this match, she is unable to conceal the mistrust felt towards our author, a worthy rival in her eyes. Andrade arrives at this realization once she understands her predicament: "So this too, was America-an America of decep­ tions, frustrations and disappointments" (p. 84). Upon receipt of her fIrst salary, Andrade is shocked by an amount which would not even cover the cost of her room and board. Then, while re-evaluating her situation, she understands how unreal­ istic her expectations had been: "My imaginary America had prom­ ised me all I would ever need to realize my precious dream of free­ dom and independence. I had neither anticipated nor conceived those naked facts of reality, in the building of my castle in the air" (p. 85). More or less in the same fashion is Lawrence Oliver awak­ ened to the American reality soon after his arrival, as his own words reveal: "It did not take me long to discover that America was a good deal different from what I had pictured [in] my mind. I soon learned that the streets were not paved with gold. Instead, I discovered that, in one instance at least, they were paved with big rocks" (p. 15). He is here alluding wryly to the principal chore of his first job: breaking up large rocks on a farm near New Bedford, Massachusetts. Because Alfred Lewis, as mentioned, excludes reference to his American experience in his novel, we must conjecture that he too, like the others, must have suffered disillusionment. Donald Warrin gives this pertinent biographical data of young Lewis's early days in the U.S.:

Desembarcou Alfred Lewis em Providence, Rhode Island no ana 1922, contando 19 anos de idade. Com 75 centavos americanos parte para a costa oeste e estabelece-se logo na cidade de Atwater, no vale de San Joaquin, estado da California. Ai,junto com a irmao mais velho, a rapaz TIlE PORTUGUESE IMMIGRAt'lT EXPERIENCE THROUGH ITS 73 AUTOBIOGRAPHERS

que entretinha ideias de ser doutor pela Universidade de Coimbra, aprende a colher batata doce nos campos da Calif6rnia. Do Vale, seguimo-Io ate a cidade de S. Francisco, onde consegue emprego como ajudante de cozinha num restaurante portugues.7

The Land is Here, one of several novels left unpublished by Lewis, gives testimony of his revealing encounter with the real, every­ day America. The novel is the continuation of Home Is an Island. It traces the life of Jose de Castro from his departure, through his settle­ ment in California, a bout with tuberculosis and procurement ofAmeri­ can citizenship, to his falling in love during the Great Depression.S With regard to adaptation, what do these works tell about their creators' ability to coexist and succeed in their new environment? Do these autobiographers make any attempt to forsake their ethnic origins in order to be "melted" in that proverbial "pot"? In answer to the fIrst question, there is no doubt that the two whose plots cover their Ameri­ can experience persistently demonstrate that, in spite of many trials and setbacks, they adapted to and adopted their new country. Both learned English (in Oliver's case, a more meritorious achievement for he was illiterate upon his arrival), they cultivated the friendship ofpeople with backgrounds unlike their own, both fully understood and accepted the standard criteria for upward mobility in a capitalist society, i.e., perseverance and aggressiveness, and both, though adversely affected by prejudice, did not wallow in self-pity and hatred. The inexplicable yet universal nature of prejudice and discrimination is perhaps best depicted by Laurlnda Andrade:

Right or wrong, prejudice and discrimination result­ ing in unfair treatment, with its consequentiallamen­ table reactions, have always existed. We see them creeping even into some family units, with an accompanying anxiety, through mystifying actions by the very individuals involved. No matter how [many] economical, political, psychological or sociological reasons we may succeed in listing and utilizing to ex­ plain the causes, the dilemma is ever present and the problems continue to grow from generation to genera­ 74 JOSE 1. suAREz

tion, always much too complex and too far reaching for our limited human solutions. Why did Cain kill his brother Abel? We may ask that question now, and always, to convince ourselves that there are reasons for everything that happens, but not always within the scope of our materialistic gauge of understand­ ing as some of them may well be beyond ourselves. (p.94)

None of these writers, on the other hand, ever disavows hisl her Portuguese cultural heritage. Much to the contrary. Their pages are filled with pride in all things Portuguese and convey that it was not disregard or contempt for the fatherland and its customs which caused them to abandon the islands, but the desire to reach their goals in a more propitious setting - had Portugal afforded opportunities similar to those found here, these individuals would not have emi­ grated. That the verb in Home Is an Island is in the present tense is a good indication of how Lewis, like many of his compatriots, still felt about his native land despite a long absence. In the words of one of his characters: "All countries are good. We can learn to live any­ where. Only the land of our birth we remember best, somehow" (p. 108). While on the subject, it is fitting to mention that all three authors set forth to the United States with a somewhat clear notion of what careers they wanted to pursue. Alfred Lewis, even as a child, professed a keen interest in the written word. LaurindaAndrade leaned toward pedagogy, as she demonstrated to her Azorean teacher. Lawrence Oliver's ambition was not as precise; however, when we hear statements such as "my main thought was to make something of myself, to get a good job and make some money, to accomplish some­ thing" (p. 18), we interpret this to mean, "I want to possess as much wealth as I possibly can." From my limited knowledge of Luso-American communi­ ties in this country, it appears that all three authors under discussion reflect the attitudes and values of quite a large part of these communi­ ties. Whether sharing memories of the land they left behind or de­ scribing experiences in their new country, the three always consid­ ered themselves Portuguese nationals and made no attempt to dis­ THE PORIUGUESE IMMlGRANT EXPERIENCE TIlROUGH ITS 75 AUTOBIOGRAPHERS

guise what they were. The change of name by the two males, ordi­ nary among immigrant groups of the period with non-Anglo-Saxon names, was prompted in all probability not by a desire to Ameri­ canize; it was the impression that, in an America filled with ani­ mosity toward all that was foreign, it might not be a good idea to call unnecessary attention to one's self. In Lawrence Oliver's case, for example, his name was Anglicized by a teacher in California who claimed that Oliveira was too long. He never again changed it to the original, alleging that "this is what Americans preferred" (p. 20). Saudades, the partly nostalgic, partly stoical Weltanschauung characteristic of all Lusitanian people, is a salient motif in Home Is an Island. Numerous are the "recollections of smell, sights, sounds, and customs of Flores ..." which exemplify the emotional aspect of this view.9 We are also able to witness its philosophical implications in this extract from a brief dialogue be­ tween Jose de Castro and Professor Silva:

"I have a little present for you; I hope you wi1llike it." Jose opened a little book. "The Lusiad!" he ex­ claimed. "Read a few passages everyday. Ponder its lessons well. Cultivate the nostalgia you will soon feel when you leave. That, in itself, will do you good." (p. 307)

Undoubtedly, these three immigrants echo the opinions of their communities. Had they not, their views would have been re­ butted by their neighbors in the Portuguese-language media, and we know this not to be the case. It must be recalled that neither Andrade nor Oliver was a professional writer nor did either purport to be. Oliver, in fact, dictated rather than wrote his memoirs. Lewis, though considered a writer by many, was not a cultured man, as his literary style reflects. By publishing their life stories, they were setting a positive example for their fellow immigrants. First ofall they let it be known that they had "made it" in that foreign and often hostile culture 76 JOSE 1. suAREz

surrounding them, and each gave his/her formula for achievement so that others might also succeed. Second (and intertwined with the first), they helped sustain the logic that those who write books are educated; those who are educated do well in life; consequently, education is an integral part of success. Finally, it must be said in all fairness that the reality confront­ ing present-day newcomers is not exactly that of these authors and, because of this, the attitudes and actions taken by the protagonists may seem a bit obsequious and self-abasing to some. Their lesson in hard work, self-reliance, perseverance, and tolerance nevertheless remains as exemplary today as it was then.

NOTAS

*This is a slightly revised copy of a talk given in the Portuguese Minority Literature Discussion Group of the vm Symposium on Spanish and Portuguese Bilingualism, November 17, 1984, at the University of Massachusetts, Amherst. 1 Nancy Baden, "Portuguese-American Literature: Does It Exist?" MELUS, 6, No.2 (Summer, 1979) and "Portuguese-American Literature: An Overview," Gavea-Brown, 1, No.2 (July-December 1980). 2 Maria Angelina Duarte, "Portuguese Cultural Presence in the U.S.: The Problems of Definition," Ideologies & Literatures, 4, No. 16 (May-June 1983). 3 Duarte, "Portuguese Cultural Presence," p. 80. 4 Donald Warrin makes reference to the autobiography of one Charles Peters but omits its title. See "A Literatura do hnigrante Portrugu6s na Calif6rnia," Horizontes U.S.A., No.8 (March-April 1977), pp. 36-37. 5 Alfred Lewis, Home Is an Island (New York: Random House, 1951); Laurinda C. Andrade, The Open Door (New Bedford: Reynolds De Walt, 1968); and Lawrence Oliver, Never Backward, ed. Rita Larkin Wolin (San Diego: L. Oliver, 1972). Though it is a novel and not an autobiography, Home Is an Island was chosen because it is based on its author's childhood experiences in Flores. Every quotation extracted from these editions will appear with its corresponding page number placed at the end. 6 Baden, "Portuguese-American Literature: An Overview," p. 32. 7 Donald Warrin, "Alfred Lewis - Romance e Poesia em Dois ldiomas," Arquipelago, No.3 (January 1981), p. 61. 8 For a complete commentary on Lewis' unpublished works see Warrin, "Alfred Lewis Romance e Poesia". 9 Baden, "Portuguese-American Literature: Does It Exist?," pp. 18-19. DOCUMENTOSIDOCUMENTS

J. C. Luiz - urn escritor luso-hawaiiano

Edgar C. Knowlton, Jr.

Nota Biogratica

Em 0 Luso do dia 23 de Dezembro de 1920, publicou-se urn conto intitulado "0Tio Gironimo Cavaqueija" com a indica~ao do autor: J. C. L. de Ninole, Hawaii. Nao e dificil identificar 0 nome: John (Joao) Carreira (ou Carreiro) Luiz, que era naquela altura 0 director da escola de Ninole. Oriundo da ilha de Sao Miguel, chegou as ilhas de Hawaii em 1895 a bordo do Braunfels, quando tinha mais ou menos seis ou oito anos de idade. Era um dos quatro filhos que vieram de Ponta Delgada com os pais, Jose Carreira Luiz (nascido em 1860) e Maria d'Arruda (nascida em 1866). Eprov!1vel que tenha nascido na Paja de Cirna, Sao Miguel.l Em 1912 obteve urn diploma da Escola Normal do Territ6rio de Hawaii. Em 1930 recebeu 0 titulo de Bacharel em Artes, atribufdo pelo Colorado State Teachers College. Prestou, durante largos anos, servi~os valiosos nas escolas de Hawaii tomando-se pela primeira vez director em 1915. Elma (Tranquada) Cabral teve 0 prazer de leccionar numa escola onde ele era director e afrrma que Joao Carreiro Luiz a apoiava muito nos seus esfor~os para inovar os metodos de instru~ao. Sua esposa, Minnie Victorino, nascida em 1894, filha de Manuel Victorino (nascido em 1867) e de Maria Isabel Victorino (nascida em 1872), os quais terao chegado as ilhas de Hawaii em 1880 78 EDGAR C. KNOWLTON, JR

e 1884 respectivamente, tamMm era professora. 0 marido foi 0 fundador e 0 primeiro presidente da Associa~ao de Professores Reformados (funciomirios do Estado)2.

Quando faleceu, aos 80 anos de idade, deixou tres irmas ­ Cozy Gomes, Lena Souza e Mary Victorino - alem da sua viuva e filhos.

Abaixo transcreve-se 0 conto: o Tio Gironimo Cavaqueija

"Bon dia, tia Claudina, passe muito bern; como vae andando e para aonde e a ida? Admiro-me de a ver no correio esta tarde." "0 1<'i, bon dia, ti~ Gironimo. Vou andando como Deus quer, mas estas malditas dares de rhumatism nao me querem largar. Vou agora a casa de minha comadre Estufana, aonde esta a nossa visinhan~a quaz toda dando uma charamba a. moda Americana, e aonde esta minha netinha Mariana. Vou agora buscar-Ia, e ao mesmo tempo entrei aqui para levar 0 FACH03 ao meu genro Tobias. Pois todos domingos ninguem the hade tirar 0 seu pape1 portugues." "Eu ca tenho aqui 0 LUSO e A SETTA.4 Mas os meus visinhos gostam de me ouvir ler os papeis para elles tamben saber as noticias portuguesas. Se eu me nao engano elles ande estar na charamba tamben, e parece-me que you la. com a tia Claudina. Hoje em dia tanto dan~a os novos como os velhos. Ha tempo do meu tempo quando eu era novo, aquilo era pular a rego cheio." A tia Estufana, quando viu 0 tio Gironimo com 0 LUSO e A SETTA na mao, e como ja. sabia 0 costume delle, disse logo aos visinhos que se preparacem para ouvir ler os papeis. Os velhos sahiram para 0 jardim, e s6 os novos, mo~os e mo~as, e que ficarem dan\!ando. o tio Gironimo limpou os oculos e pondo-Ios no nariz come~ou a ler o LUSO, e esquecidos ficaram as dan~as e bailaricos ate A SETTA estar tanbem prompta. "Olhe ca, ti~ Gironimo," disse 0 seu visinho Fonseca, "se tivessemos aqui 0 FACHO entance e que ficava a tabela completa." "0, agora me lembra," respondeu elle, "0 Crispino, vae pedir J. C. LUIZ-UM ESCRITDR LUSO-HAWAllANO 79 atia Cladina que te empreste a FACHO. Agora eque vamos rir urn pada~o de tempo." E outra vez limpando e montando os vidros no nariz, come~ou a dar entrada no a FACHO. as velhos davam gritada valha com as chala~as que 0 tio Gironimo lia. a tio Gironimo quaz que se finava. "Hum, h-u-mmm," tocia elle, "este diacho do FACHO traz cada uma que emesmo do rapo e 0 pe1o. a Pimentel, passa-me d'ahi urn f6sforo, ate me esqueceu de acender 0 cachimbo." A tia Estufana, a grande for~a de argurnentos e amea~as de concluir a dan~a de todo em todo, fez com que 0 novos deixassem armar uma chamarita portuguesa para os velhos. E virando-se para Alfredo, urn rapaz que ha poucos dias havia acabado urn courso no liceu, disse-lhe: "Vaem voces, rapazes e raparigas, agora chamar os velhos." Sahlram urn banda de rapazes e raparigas que bern depressa rodearem os velhos. Estava 0 tio Gironimo no meiu de uma interessante noticia quando Alfredo 0 interrumpeu: "Ora essa, isso e que se chama ser duas vezes meninos. Sera possivel de ahinda estarem interessados em noticias oite dias velhas?" a tio Gironimo, como nunca concordou com os novos com respeito aos papeis portugueses, immediatamente arrancou os oculos do nariz, e com sobrancelhas enrugadas disse-Ihe: "E como sabes tu, meu homensinho, que estas noticias sao oito dias velhas? Ja la leste na alguma papel inglez? Se a maior for~a d'estas noticias saem s6 nos papeis portugueses, quer que me digas ahonde eque as leste. Se tu tivesses brio em ser portugues, tamoom lias os papeis portugueses, e por este meio e so por elle, eque podes saber 0 que esta sucedendo entre nos n'estas ilhas. Mas tu e os outros meninos e meninas que estam aqui em roda nao se importem em saber ler portugues, nem tao pouco saber dos fazeres dos portugueses n'estas ilhas." "Diga-me ca, tio Gironimo," disse Alfredo, fechando 0 olho aos companheiros e companheiras que estavam na roda, "de que me serve saber ler portugues ou as noticias portuguesas se eu sou urn Americano e yOU viver da lingua ingleza e neja da lingua portuguesa? A lingua portuguesa nao me serve de beneficio nenhum. Tenho tudo que perciso para viver em Hawaii nos papeis inglezes." Mas outra vez 0 ti~ Gironimo pulou em cima elle: "Pois a Latina que aprendeste no liceu e que te vae servir de grande beneficio." 80 EDGAR C. KNOWLTON, JR.

"Hi, hi, hi," sorriu a menina Rosa, agarrada ao bras,:o de Alfredo, "0 tio Gironimo faz-me rir; nao eLatina, eLatin, hi, hi." "0 lata ou latinha," respondeu 0 tio Gironimo com voz um pouco alteada; "isto e 0 que eu quer dizer ea mesma cousa. Como eu nao posso intender, quer que me espliques como eque vaes ser menos Americano se leres os papeis portugueses? Senis menos Americano se no teu sangue-se nao tens, devias de ter-tiveres gosto de saber os fazeres dos teus irmaos Lusitanos n'este territorio? Como bem poucas noticias portuguesas sahem nos papeis inglezes, como eque as vaes saber se nao leres as noticias portuguesas nos papeis portugueses: 0 nosso povo n'estas ilhas nao esta sendo reconhecido como deve de ser, e pra este fim eperciso unir-nos politfcamente ou de qualquer outra maneira que for perciso. Como eque vaes unir 0 povo portugues se nao for por meio da imprensa portuguesa? Ese tu e outros nao supportar a imprensa portuguesa, como eque ella pode florescer? Quer te dizer agora mesmo, meu homemsinho que podes ser 0 melhor Americano na America, e ao mesmo tempo supportar a imprensa portuguesa e ler os papeis portugueses. 0 rapazinho, vae-te embora que tua mae te esta chamando." E Alfredo retirou-se de cabes;a baixa, pensativo e um pouco envergonhado. E os seus amigos e amigas, com azas arrastas, seguirem a porta encararam logo com brada. "Bomba no caneco," disse 0 tio Castello, "esta espiga fou bem afancada e parece-me que lhe vae servir de immenda." Quando a tia Cladina, sua neta Mariana, e a tia Estufana sahirem a porta encararem logo com 0 tio Gironimo gesticulando ferozmente com os bras,:os no ar. "0 la sim," disse a tia Estufana, "tio Gironimo esta queimando as orelhas ao Alfredo. Deixe dar, que elle merece umas orelhadas bem aferradas. Adeus tia Cladina; Adeus, Mariana; muito agradecido de terem vindo ca. Qualquer dia desta semana vou­ lhes fazer uma vesita. Na volta de casa, quando passarem pela porta de minha nora Felizbina, fasam 0 favor de lhe dar visitas minhas. Ella, coutadinha, tem andado queixosa estes dias. Se nao fosse isso ella tanbem tinha vindo ca." A tia Estufana, como donna da casa, sabiu f6ra e convidou os velhos para dar uma chamarita. Quando 0 tio Gironimo nao entrou com os outros, ella perguntou-lhe: "Entance 0 tio Gironimo fica atras; nao vem dar umas rodas com os outros"? "0 filha, nao druwa hoje," respondeu 0 velha, "ora ja vue wdando e eu teOOa que me chegar para castL Adeus; ate outra vez. Adeus, cavalheiros; se quiserem ouvjr 0 dedmo capitulo da hlstoria que vem no papel, venham a minha cusa domingo que vern!" E depois, virando-se para a tia CJadina que ja ia caminhando, chamou: "Espere urn momenta, tin Cladina. quer!he dar 0 fachinho, e tamben me YOU ernhora, Se nao leva 0 FACHO para casa 0 seu genro Tobias ecapaz de Ihe dar tarela." Duas semana depois, 0 ti~ Castello, chegando-se para a casu do tio Gironimo para ouvirnoticias portugu&as, dissc-!he uma noticia que 0 interessou bastante: "Quando passei pelo correia agora, via 0 Alfredocom urn papel na filla, mas nao me recordo agora qual d'elles era. E elleestava dizenda aos seus amigos que se assignassema algum papeJ portuguez, seja cUe qual ror. E so eu me nao engano, ja ouvi um boato que cUe ia oferecer uma assignatunt de 0 LUSO a sua Rosa para a festa de Natal. que esta agora bern peeto, Aquela rapada que elle levou aduas semanas passadas de certo que lhe cahiu no papo."

Vemos neste conto vmos detalhes dignos de nota: a diferens;a de ponto de vista entre mernbros de gera~s distintas; a necessidade se se apoiar a imprensa partuguesa; a falta de notfcias sahre os portugueses nos diarios escritos em inglts; a distribul\tao dos diarios portugueses uma vez por semana em vex de quotidianamente~ a leitura das noticias aos imigrados. que nao eram assinantes dos diarias talvez por razties econ6micas ou pOf incapacidade de ierem a sua propria lingua; a competencia de varios dianos em portugul!s, Acrescente..se que bojeem dia VenlOS, infelizmente. que mnites imigrados sao tambim vitimas de atitudes semelhantes as dos jovens deste canto em relasrlio as tradilJOes da p~tria dos seus antepassados. E nij,o M melhorcomentaria do que a proCendo pelo propria ti~ Gir6nimo: "[e possfvel sef 0] melhor Americana naAmerica, e ao mesrno tempo supportar a imprensa portuguesa e ler os papeis portugueses." Por OUtro lado, e da minha perspectiva, este conto contero uma boa lis;ao. apresentada com sinceridade, que pode ser dti1 ~ maioria dos politicos americanos da epoca actual, Em 0 Luso do din 14 de Dezembro de 1922 nas paginas 28 e 82 EDGARC.KNOWLTO~m.

32, apareceu um artigo pela mao do mesmo escritor e pedagogo, intitulado "0 Espirito de Magalhaes, por J. C. Luiz," que pas so a transcrever:

Seis seculos antes, quando 0 mundo no pensamento do povo, tinha menos limita<;a do que tem hoje em dia, existia na parte suI da Europa, como ainda existe, um paiz-Portugal. 0 mar Atlantico banhava um lado de essa bem situada terra. Nas beiras dos rios que meandravam de lado a lado do paiz brincava a mocidade dos tempos. Nos caes os rapazes chegavam­ se para ouvir os canticos e historias dos marinheiros que tomavam de navegar os mares. Ali tambem se ouvia os canticos alegres de suas maes que, com cora<;oes palpitantes, esperavam por seus maridos. Que alegria tinha aquella mocidade! Nada lhes dava tristeza senao, talvez, quando tardavam para cas a, urn grito de suas maes-nao aliado ao treblo de miisica-que lhes metia um tiro de constema<;ao pelo cora<;ao. Mas tudo nao era alegria. Por for<;a de circunstancias este povo, para manter a sua supremacia, tinha que ser navegador, con­ quistador. A esta chamada elle nao faltou. 0 mar que lavava as pedras da rocha convidava os filhos corajosos da terra que 0 navegasse em procura de riquezas novas. 0 inimigo tinha que ser mantido no paiz. Gente de pouco animo nunca podiam ter sobrevivido aquelles tempos de tribulas;ao. Ali se gerava homem de sangue vermelho, caracter fortissimo, e coras;ao cheio de coragem. Ao lado dos homens marchavam as maes que nao faltavam achamada de dar 0 ser a uma nas;ao de navegadores e conquistado­ res.

N'um vale rodeado de montanhas a uma familia nasceu um menino. A ele deram 0 nome de Ferdinando Magalhaes. Na sua tenra edade serviu elle na cClrte do rei. De certo que hayed de ter-se familiarisado muito com marinheiros e historias de terras estrangeiras, em vista do que fez quando elle chegou a ser homem. E assim d'este povo sahio Magalhaes-filho natural de Portugal. Magalhaes, que 0 mundo hoje honra e 0 tem como um dos primeiros heroes do universo! Magalhaes, homem corajoso, que de nada tinha C LUIZ-UM ESCRITOR LUSO-HAWAITA."IO iLl

medo, que namorava a corte! Na sua viagem em roda do mundo em navios de vela que hoje sao considerados incapazes de atravessar os mares largos, elle voluntariamente pede para navegar. Quando n6s sabemos da supersti~ao que havia n' aquelle tempo e que ninguem ate aquella data tinha navegado 0 mundo em roda, entao e que se pode dar 0 valor acoragem que era necessaria para fazer 0 que elle fez. Para onde ia Magalhiies? De certo nao para logar que tivesse sido conhecido por homem!

Mas Magalhiies, com os seus barquinhos rompeu pela primeira vez as mares montanheiras dos mares estrangeiros. Ate ali nunca tinham elles conhecido a quilha do navio. Plantado em cima do convez do seu barquinho Magalhaes olhava para a frente, para 0 fim do seu objectivo. 0 rebentar dos trovoes era como doce musica nos seus ouvidos. 0 soprar dos ventos nas cordas que produziam um som identico ao assobiar humano, alegrava seu cora~ao. A reflexao dos relampagos, cortando a grossa neve e furiosa tempestade, mostrava marinheiros, palidos, fazendo a sua paz com Deus. E assim Magalhiies navegou 0 mundo em roda; e fazendo isto, trouxe a Portugal a gloria e honra que hoje todo 0 mundo venera.

Ha annos passados sahiu de Portugal e das ilhas dos A~ores muitas familias que vieram erigir seus lares. De tempos a tempos mais povo tem entrado ate agora temos uma grande quanti dade de povo que tem rela~ao ao povo de Magalhaes. Mas onde esta 0 espirito de Magalhaes? Outras na~oes tem vindo, mas nao como 0 Portugues-nao, nunca. Nunca entrou para estas ilhas melhor ou tao bom material para produzir cidadaos Americanos como 0 Portuguez­ nao, nunca. Seja como trabalhador, quer que seja como cidadao, 0 Portuguez da 0 primeiro logar a ninguem-nao, nunca. Muito bem! Mas de tempos a tempos tem havido criticismos contra os da ra~a Portugueza. Mas porque? Sera talvez porque nao temos 0 espirito de Magalhaes? 0 espirito que 0 levou atraves dos mares desconhecidos pode muito bellamente levar-nos atraves dos criticismos que se ouve.

Ac~oes vallem muito mais do que 0 fallatorio. 0 que se faz tem muito mais valor do que se diz. Rapazes pelos cantos das mas 84 EDGAR C. KNOWLTON, JR

ate altas horas da no ute em bandos tocando guitarrinhas mal nascidas e cantando: "Mariana eu, e Mariana, olha," nunca deu em cousa boa, e nunca vae dar-na.o, nunca. Rapazinhos puchando pelo sacho quando elles deviam estar na escola tambem nao da 0 melhor resultado. Depois de chegarem a ser homens como eque se pode esperar que elles possam por-se ao lado de filhos de outras ra~as que se tern preparado propriamente? A ideia que muita gente tern que as raparigas nao e necessario educa-Ias porque aprendem a escrever bilhetes aos rapazes efraca-muito fraca. Os homens da nova gera~ao tern que ter mulheres que os possam acompanhar. Vae ser preciso mais sciencia para armar o lar domestico do futuro do que epreciso agora. Rapazes e raparigas devem de preparar-se agora para 0 que for preciso mais logo. A candeia que vae adiante eque ilumina 0 caminho, nao ea que vae atraz. Nao se pode viver agora como se vivia ha trinta e ha quarenta annos passados. Epreciso andar com os tempos. Criticismo esempre 0 resultado quando uma ilharga da balan~a nao pode balancear a outra.

A nos, pertence a honra e 0 dever de guiar a nova gerat;ao para respeitar a bandeira que representa a liberdade-a bandeiraAmericana. Sabe-se muito bern que ainda a injustit;a esta connosco, crueis cos­ tumes ainda tern-nos bern amarrados; mas olhemos para a frente--como Magalhaes-nao para baixo para a escuridao, e puxemos com animo para par-nos na constellat;ao das estrellas do mundo. Para ser urn born Americano e preciso ser urn born Portuguez. Para ser urn born Portuguez-Americano e preciso ser ambos.

Pois bern: Puxemos! Vamos! E nao nos esquet;amos de 0 ESPIRITO DE MAGALHAES.

Talvez sejam muito reconditas as informat;oes sobre 0 grande navegador, mas os pormenores que dizem respeito aos portugueses de Hawaii e os conselhos de J. C. Luiz sao de muito interesse para os que queiram estudar os sentimentos dos imigrados portugueses provenientes das ilhas, ao fim de umas quatro decadas de imigrat;ao. Quanto alinguagem, vemos no artigo sobre 0 "espirito de Magalhaes" vestfgios do portugues at;oriano que tornam tao cheio de sabor folc16rico 0 conto do ti~ Gironimo. C. LUJZ...UM ESCRITOR LUSO-HAWAIIANO 85

NOTAS

1 Para obter mais informac;ao sobre os pais e um dos seus in:niios, cf. J.F. Freitas, Portuguese-Hawaiian Memories, Honolulu: The Printshop Company, Limited, 1930 ~. 44. As datas baseadas nos censos de 1900 e 1910 sao discutiveis. Cf. Honolulu Advertiser, 27 de Maio, 1969, F2:6. 3 Nome de umjomal diano portugues publicado em Hilo, Hawaii. Por muitos anos 0 editor foi Antonio Oak (sendo Oak a traduC;ao do apelido Carvalho). 4 Outros dianos portugueses da mesma epoca. Eugenio de Audrade in America

Alexis Levitin

I

In Transit

JFK International Airport. New York City. All is calm. The waiting room is deserted, the floor clean, the benches empty. Peace oneartb! Eugenio's flight is due in half an hour. Pleased with myself for having arrived early. encouraged by an overall sense of order, I smile confidently. An hour later a flight from Egypt arrives. Strange faces, fezzes, silks stream by. I am interested. but nervous. Then a plane from Ireland comes in. Ruddy~faced tourists and spunky Hibernians begin to surge forward. The Egyptian and Irish passengers flow (lut together, I check my watch, fidget. check the TV Arrival screen. TAPis late. Now a plane from India disgorges its passengers. Dark faces. agile bodies, saris, children, families muddle forward. Suddenly three more planes arrive. all at once: one from Germany, one from HoI­ land. and, at last, TAP Flight #312 from Lisbon! Tall Germans begin to stride through the doors. Tall Dutchmen follow. By now I have E"vCt."IIIO DEANDRADE L"I AMFJUCA

been standing at the barrier for almost two hours. staring at the sea of faces - wiH 1 find Eugemo in the multitude? Uneasy, I begin to sweat But then, finally. far at the edge of the crowd of hewilde ring traveJers. like a bird lost in a gale - Eug6nio, looking desperately in aU directions at once, I shout his name, but my cry is lost in the chaos. I shout again, and this time he hears. He searches the faces outside the arrival corridor, trembling between hope and despair. Then be sees me and swims his way through the mass of humanity. I circle the barrier and we embrace, What relief! We have survived a small taste of hell, Welcome to America, Eugenio!

The Pacific Coast

We are driving dovro the Pacific Coast south of San Fran~ cisco, heading for our first reading. We are beginning ourfive-week tour at !he University of California at Santa Barbara because it was there that Jorge de Sena was chairman of the Department of Com­ parative Literature and itis in that lovely Spanish-flavored southern California tovm that he is buried. Passing through Steinbeck country near Monterey, we fmd a barn filled with ten thonsand used books. The big, outdoorsy owner. upon hearing that Eugenio is a poet, runs to his house and comes back with a broad smile, handing Eugenio xeroxed copies ofa poem he has written, accompanied by rus own Spanish transJation. The poem is sweet, life-affirming, and utterly banal. Eugenio thanks the man and in kind tones says that poetry demands "work, work. and more work.'" We spend the night in simple little cabins under enormous redwood trees. A cold mountain stream munnurs nearby. Before going to sleep, we dine at a comfortable inn with a ftreplace. The strange looking waitress must have been pretty in her youth. When told of Eugenio's vocation. her eyes widen. «I'm a poet, too," she exc1aims! "I love poetry! Do yon know John Ciardi?" she asks Eugenio. (Ciardi, recently dead, is a good American poet best known for his translation ofDante's Divine Comedy.) "His poetry saved my life. After that, I wrote him every day from the asylum." Eugenio beginslo wonder ifeveryone inAmericu is a poet. I give him a sickly smile. The next morning, we follow the narrow coastal road carved out of the steep mountainsides that drop straight down into the Pa~ cific. Banks of fog roll in, then disperse. Everything is dark green and grey. Mysterious, oriental We pass Henry Miller's house in the nilddleof utter wilderness, and I stop to take a photograph of Eugenio standing before the closed gates. For three hours we slowly wind down America's most spectacular highway, Forests ofredwoods and firs, a sea of deep swells, thickly carpeted with seaweed. Mist, then bright sun and sparkling air, The vastness of nature. AtSanta Barbara we give our first reading. a success despite the sound ofcarefree youths zipping by outside on their skateboards. Afterwards. we seek out Jorge de Sena's simple gravestone at the cemetery, Eugenio places a bouquet of carnations on the grave. We pause in silence. Then we leave.

Minneapolis

We are greeted at the airport by the American publisher of Memory ofAnother River, a big, hearty type looking like a lurnber~ jack or a trout fisherman. Almost his first words to me: ''Tell Eugenio that I already Io'led bis poetry and, now thatI've seen him, I love his face, as well!" The publisher squeezes us and our luggage into his small car, already filled with copies of Memory ofAnother River, and off we go. Eugenio is charmed by the roughhewn grace of his very American host and equally delighted. moment... later, to see that very American river, the Mississippi. for the first time. He is also amazed to note that Minneapolis, like much of the California he has just left behind, consists of an efficient maze of highways with mar­ velously curved off-ramps and on~ramps, miles and miles of neat one~story residences. and only a few skyscrapern in the business sec­ tor of the city, He finds America very organized, modern, efficient. clean. And everywhere he ha.... been, so far, neat wooden houses with cleanly trimmed lawns and well~cared-for flower gardens, with shiny cars parked in front, suggest anAmerica ofease and affluence. He is surprised and impressed, That evening, at the University of Minnesota, we encounter EUGf:I\'lO DE Ai'IDRADE IN AMERICA 89

what will prove to be the only small audience of our entire tour, but Eugenio immediately creates a pleasantly relaxed atmosphere by gath­ ering the listeners close around him, turning our poetry reading into a comfortable, intimate exchange. I am deeply grateful for his easy control: savoir jaire at its best! The following day we visit museums, stare at a brutally bril­ liant painting by Francis Bacon, stroll through a newly established sculpture garden graced with Moore, Calder, Giacometti works, gaze at the empty Guthrie Theatre, the fIrst regional theatre ever estab­ lished in America (Hamlet will be playing that night), lunch with our publisher, walk through the midst ofgleaming glass skyscrapers, and follow the labyrinth of glass-enclosed bridges and walkways hang­ ing above street level. a pedestrian system linking all the major of­ fice buildings in downtown Minneapolis so that in the long, cold winters no one need go outdoors. We then drive around some of the pleasant parks and lakes of the city, returning to the airport exactly twenty-four hours after our arrival. We have had a real taste of the Midwest.

New York

New York is a shock. Drugpushers line Eighth Avenue. Here and there a bum lies wrapped in a tom overcoat and newspapers. The night shadows seem heavy with threat. Eugenio is not comfortable. Neither am 1. At eleven in the morning. as we walk down Forty­ Sixth Street, a woman suddenly pulls down her pants, bends over, and pisses on the sidewalk. America, for the moment, is not so ap­ pealing. Later, at the Museum of Modern Art, we see the greatest Picasso and Cezannes in the world. We lunch with a Salvadorian poet who had pointed at Rousseau's painting ofa woman asleep on a couch in the jungle and said: ''That is how I found my sister in our living room, just like that, with a bullet through her head." On a death list in El Salvador, the young poet lives in exile in Europe. In the evening. we read to over one hundred people at Poets' House, as part ofthe annual meeting oftheAmerican Literary Trans­ lators Association. We share the stage with Anne Hebert, Canada's foremost French poet and a nominee for the Nobel Prize. Her trans­ lator, A. Poulin, like me, teaches for the State University of New 90 ALEXIS LEVIITIN

York. Eugenio's reading is especially successful and after he finishes "Poem to Mother" the audience bursts into spontaneous applause. An editor of the American Poetry Review, the leading publication of po­ etry in the United States, is so impressed that he asks if we can sched­ ule an extra reading in Philadelphia, the city where he lives. It turns out that we have room in our itinerary, and our visit to Philadelphia two weeks later becomes one of the happiest experiences of our five­ week tour. Meanwhile, the president of the American Literary Trans­ lators Association thanks me effusively for having brought Eugenio to America and assures me that our presentation was the high point of the entire three-day conference. We are exhilarated and relieved. During the remainder of our tour, we return several times to New York City. Eugenio finds it a bewildering mixture of the fme and the vulgar, the lovely and the disgusting. He sees a racial animosity in the faces of young black men that he has never seen anywhere before. He sees four of the greatest Vermeers in the world. He walks down streets filthy with garbage, then stands in the immaculate plaza of Lin­ coIn Center, under the towering Chagalls of the Metropolitan Opera House. He suffers interminable traffic jams wherever we drive, but luxuriates in the transplanted serenity of the Cloisters with its famous Unicorn Tapestries and its medieval stillness. He fears being accosted in Central Park, but loves the grey squirrels there that come to feed almost directly from his hand. In fact, wherever we go in the United States, he is astonished afresh by the energetic squirrels, always hop­ ping about, gathering nuts for winter. He feeds them, takes photos, talks to them. He even suggests that along with the stars and stripes, the squirrel should appear on the American flag.

New England

On the way to Providence, Rhode Island, we pass through the bright yellow, orange, and red foliage of fall. Eugenio is overwhelmed by the endless forests, even here in the Northeast, the most populated part of the country. A friend had told him that there were no trees in America and he is now finding that America is nothing but trees! In­ deed, as I drive my Portuguese guest from city to city, I myself be­ come freshly aware of how vast and essentially empty my country still is. It is truly full of trees. It is still a new land! EUGENIO DEANDRADE IN AMERICA 91

At Brown University, the Center for Portuguese and Brazil­ ian Studies handles all our arrangements impeccably. Our rooms are sumptuous restorations of the previous century, we dine in style at the Faculty Club, we read to a well-informed audience, mostly Por­ tuguese, Eugenio shocks a couple of little old ladies by resorting to some sharply pungent epithets when asked his opinion of Florbela Espanca, we engage in a lengthy and lively question-and-answer period with the appreciative audience, afterwards joining a group of graduate students for coffee and cakes. All in all, we have a marvel­ ous time. The next morning, quite early, Professor George Monteiro escorts his Portuguese guest to the rare books and manuscripts col­ lection. There, Eugenio holds in his hands the rarest American fruits: the original Leaves of Grass of his beloved poet-guide, Walt Whitman. For Eugenio this moment is precious-both literary and personal. Whisked off to New Bedford, Eugenio does a one-hour television interview with Professor Onesimo T. Almeida; we then visit the famous Whaling Museum (both Eugenio and I are great Melville enthusiasts), lunch on seafood at the water's edge, with Portuguese-named fishing boats swaying brightly outside our res­ taurant window. We then drive north to Boston, under a bright blue sky, passing through russet-colored forests. Our stopover in Boston allows us time to visit the Isabella Stewart Gardner Museum (another great Vermeer!), the Boston Mu­ seum of Fine Arts, and the New England Aquarium, with its pen­ guins, dolphins, and sharks. Eugenio also has the chance to renew his friendship with Alberto Lacerda, fellow poet and professor at Boston University. This reunion casts a very pleasant atmosphere over out entire stay. The reading at Harvard goes very well, the food at a local Portuguese restaurant is abundant and good, the company is cheerful. As we head further north on a bright brisk morning, we leave the brilliant colors of fall behind. The forests of New Hamp­ shire and Vermont are muted, grey and brown. Most of the trees are bare, given over to winter. Soon we will be in Canada, in Montreal. We are now at the halfway point of our journey. 92 ALEXIS LEVlTIlN

II

Montreal

We head north through naked forests, and Eugenio remarks that in a way the denuded trees are more beautiful than those with bright foliage, for they allow the geometry of the hills to show. Our highway follows the valley of the White River, passing small New England villages, each marked by the tall steeple of a white church; around each cluster several rows of white houses with green or blue trim, rows of maple or oak lining the streets. Surrounding the vil­ lages are fields ofcorn stubble or dark brown newly turned soil. And everywhere rolling hills covered with birch, poplar, or pine. As we cross Lake Champlain in a small ferryboat, we can see behind us the Green Mountains of Vermont and before us the larger Adirondacks of New York State. A flock of ducks paddle around the ferry dock and will remain there all winter, since the ferry company keeps a passage open through the ice, no matter how cold the winter. Except for this passage, the whole lake will freeze over. In the middle of the lake, the wind is fierce and waves break against the boat. In Montreal, Canada's liveliest city and certainly one of the most attractive cities in North America, our hosts are Clara Pires, who has faithfully read and criticized all my Eugenio de Andrade book manuscripts before publication, and her journalist husband, David Wimhurst. Eugenio will spend a delighted two days with his gracious Portuguese-speaking hosts, while I huddle in bed, trying to recover from a dreadful cold. Our reading that evening is not to the usual predominantly academic crowd, but rather to a large gathering of the local Portu­ guese emigrant community. This is only one of two such groups that we will read to, the fITst having been at the Cabrilho Cultural Club of San Jose, California. Luckily, Eugenio's voice is at full strength, for due to my extreme hoarseness, he has to do almost the whole progam alone. Warm applause is followed by marvelous hors d'oeuvres, but Eugenio gently regrets that most of the listeners are too shy to con­ verse with him. After the reading, however, a few ofus go to a most civilized tearoom where everyone appears deeply engaged in con­ EUGENIO DEANDRADE IN AMERICA 93

versation. We, too, sip, nibble, talk. A most pleasant interlude, an experience more European than American.

Between Montreal and New York

Two days later, we read at SUNY-Plattsburgh, the univer­ sity where I normally teach (this year I am on sabbatical leave, free from my usual acadmic duties). Despite an awkward conflict with Halloween (a traditional celebration in masks by youngsters every October 31st), we have a good audience, a good reading, and some excellent discussion afterwards. (One student sagely remarks on the impossibility of translating the delicately shaded assonances of Eugenio's poetry into English and he is absolutely right!) The following morning we awake to find ten centimeters of fresh snow on the ground. I buy rubber boots and we drive south to Albany, the state capital, passing through a winter landscape of snow-covered mountains. Eugenio receives a warm welcome in Albany, where our reading is sponsored by The Writers Institute, an organization that has brought to the United States many of the world's leading writ­ ers. We learn to our shock, however, that a reading by Nicaragua's famous poet Ernesto Cardenal, scheduled for three days before our own, has been cancelled because the U.S. State Department had refused to give him a visa. Everyone is outraged at this blatant political meddling, but nothing much can be done besides protest­ ing with angry letters to the newspapers. The dynamics of our bilingual presentation is more pro­ vocative and moving than it has been before. Eugenio whispers that if I continue to improve as I did today, I will soon reading like Eugenio de Andrade. In the lively discussion period after the read­ ing, Eugenio labels Dante and San Juan de la Cruz and Fernando Pessoa. To illustrate the essential untranslatableness of Portuguese at its best he slowly recites his favorite line from Pessanha: "conchas, pedrinhas, pedacinhos de osso." Discussing the relation between Portuguese and Spanish, he quotes another poet who said: "Portu­ guese is Spanish without the bones." The audience in Albany is probably the most sophisticated we have encountered, and Eugenio is especially pleased by the presence ofnoted French critic and poet 94

Claude Estaban. We spend another day in Albany, sightseeing and re­ laxing, while eating from an abundance of meals orchestrated by Pro­ fessor Brian Head of the Center fol' Brazilian and Portuguese Studies. Then we depart for Pittsfield, Massachusetts and the home ofour shared hero. Hennan Melville. From the "Windows ofArrowhead, ouc can see the nearby moun­ tain that looked to Melville, as he sat working on Moby Dick, like a great whale. One can also see empty cornfields surrounded by wooded hillsides. The old Melville residence is well-maintained. but the cura­ tor forgets to tum on the heat, so we shiver as we examine his furni~ !Ure, some letters, some old photographs, and one of his own books. It seems wanner outside, where we are joined by a cat as we take photo~ graphs ofeach other in front of Melville's porch. I am glad my foreign guest has brought me to a literary landmark that I had never visited before. After inspecting more Meivtlle memorabilia in a special col~ lection at the Pittsfield Library, we continue north through rolling hills toward Williamstown, where we visit an unexpected museum housing thirty-seven Renoirs in the middle of unpopulated hill country, then have a delicious clam chowder served by a young man from Brazil (our third Brazilian waiter on this trip). We then wind our way down to New York City. and are pleased to be arriving ahead ofschedule, unti1 a huge traffic jam neat the George Washington Bridge drags us back to the dreary reality of that monster-city,

New York Again

This time, our reading is at Barnard College, the women's branch of Columbia University. We are taking part.in the Sixth Inter~ national Conference on Translation, the only important translation con­ ference in America beside the ALTA meeting where we had read with Anne Hebert two weeks earlier. The participants at Barnard include William Faulkner's French translator, Michel Gresset, America's lead" ing translator ofcontempor-.u:y Greek poetry, Edmund Keeley. and the celebrated beat poet Allen Ginsberg, with his Italian, Gennan. and So­ viet translators. Our reading goes exceptionally well, and Professor Serge Gavronsky, the conference organizer. exclaims, as Eugenio fin­ ishes his last poem: "Fantastique! Fantastique! Et quelle voix!" I am EUGtNlO DEANDRADE IN A.\1ERICA 95

especially pleased that thls presentation has gone so well, for my mother is in the audience. Later we visit ber and her husband, the Russian emigre novelist V, S. Yanovsky, in their small apartment filled withEuropean paintings. The conversation is inFrench. Eugenio feels quite at ease, and ram happy to have brought these literary Europe­ ans together.

Philadelphia

We settle in at the home of myoId friend James Atkinson, translator-specialist in Machiavelli. Atkinson speaks impeccable French. so Eug6nio and I are especially relaxed, freed from the cum­ bersome artificiality of interpreted conversations. Since this is the election period. Eugenio is exposed to the disgruntled commentaries of a honsehold ofdisappointed liberals watching in impotence as the . Reagan regime transfers effortlessly on to Bush. Eugenio has been astonished, throughout his journey, at the absence of any signs of an election: almost no posters. biUboards.., stickers, loucispe,akers. cam· paigners on street corners, almost nothing. I, too, feel that the elec­ tion is going by largely unnoticed in my vast, complacent land. On Election Day itself, Eugenio and I wander around old Philadelphia, where the Declaration ofIndependence, signed in 1776. announced the birth ofthe United States. The old buildings are care­ fully restored and the open spaces of old squares and plU7JlS nearby give Philadelphia a sense of quiet dignity that a madhuuse lik.e New York: clearly lack,.;;. In a small park built uver the burial ground of Revolutionary War soldiers. Eugenio carries out lengthy flirtatiOl1.'i with grey squirrels of varying degrees of courage. A retired gentle­ man sitting on a bench surrounded by sparrows., pigeons, and squir­ rels attempts to coach Eugenio in the techniques of attracting these creatures as close as possible. Eugenio offers the squirrels a few peanuts and then we go off to our own lunch. The reading at Temple University is unlike all others. The room is packed with eager students of Portuguese., who have been studying Eugenio's poems in preparation for uur visit. Their profes­ sor, Antonio Boyd, has shown much initiative by integrating this spe­ cial event into his overall teaching plan, distribnting bilingual copies of the poems we will read, discussing them ahead of time with the 96 ALEXIS LEVITTIN

students, and encouraging them to formulate questions for Eugenio in Portuguese. Our reading is recorded on videotape, the audience is highly attentive, and everyone is impressed when a first-year student dares to ask a question in rudimentary Portuguese. Though we have had excellent audiences elsewhere, we are especially exhilarated at the energetic participation of these students and their professor. In the fading light of late afternoon, we visit the quiet and almost deserted zoo, wandering about in what seems almost a natural world, just the animals, the blue light, and us. As we leave, we look up to see, just above our heads, tree branches heavy with roosting peacocks. After stopping off at the offices of the American Poetry Review with the friendly editor who had arranged our visit to Phila­ delphia, we go on to a hearty Italian dinner, and return, well-satisfied, to Atkinson's house full of books, plants, pictures, and music.

Walt Whitman

At many of our readings, Eugenio has mentioned how impor­ tant the figure of Walt Whitman is to him. At Temple University he dedicates his reading to that great pioneer. But during our stay in the Philadelphia area, he is able to pay even greater respect to this semi­ nal spirit by visiting his sepulchre and his last home. The sepulchre, designed by Whitman himself, blends so sub­ tly into the side of a knoll that the first time we drive by without seeing it. Surrounded by trees, autumn leaves, and the earth rising behind it, the burial place seems an integral part of the natural scene. Inside are the graves of Whitman, his parents, and some brothers. Eugenio leaves a bouquet offlowers nestled in the iron grillwork sepa­ rating him from this man who seems like both father and brother to him. The next day, passing through abandoned slum dwellings of a sadly deteriorated Camden, we come to a quiet house with a modest plaque identifying it as Walt Whitman's last home. Eugenio looks at all the old photographs, the rocking chair, the bed in which the poet died, the original letters, the simple wooden outhouse standing alone in the backyard. He has his picture taken standing beside the death­ bed. Our guide, a stately, elegant, black woman, shows us every­ EUGENIO DEANDRADE IN AMERICA 97

thing and talks with great reverence of Whitman. When Eugenio asks for some postcards she is a bit indignant and says to me "Tell him this isn't a commercial place, this is like a religious shrine. He can't buy anything here." She goes on to say, with an intense gaze, that Whitman has determined the path ofher whole life, and she quotes a verse that sounds biblical: "If you listen, I shall guide you." We discover that this most unusual woman has served as guardian and guide at the Walt Whitman house for thirty years! It is her mission in life. As we leave, I realize that this pilgrimage and homage to Whitman is one of the major events of Eugenio's American visit.

Long/sland

Our last reading in the United States is at a branch of the State University ofNew York on Long Island, an island two hundred kilometers long that begins at New York City and extends out through endless suburbs to a world ofpotato fields, scrubby woods, sand dunes, vast empty beaches, and the fresh wind of the Atlantic. Our host, Charles Fishman, is a poet, and he and Eugenio, with no language in common, take to each other immediately. From beginning to end I am kept busy translating, especially at the fine Chinese restaurant, where my plate heaped with delicious food remains almost untouched as the two poets engage in animated conversation through me. They both eat well, while I salivate in vain and dream of writing a one-act farce called ''The Translator's Dinner." Later that night, our host reads aloud one of his own poems about the sea, the earth, and a mother figure. Eugenio, though he thinks he knows no English, understands almost the entire poem. Fishman is triumphant: "I knew you would understand!" he chuckles in glee. Early the next morning, we stroll along Jones Beach. The sun sparkles on the waves, the sand is smooth and fine, the beach deserted. Eugenio gathers shells from this side of the Atlantic, we breathe in the fresh salt air, trudge back through the dunes, and leave the ocean behind.

Niagara FaUs - Toronto

After an overcrowded Degas exhibit at the Metropolitan Mu­ 98 ALEXIS LEVITTIN

seum of Art, after various Chinese and Italian restaurants, after a visit to the Whitney Museum ofContemporary American Art, where Eugenio by chance bumps into fellow Portoense, the renowned architect Alvaro Siza, after meandering down the spiral ramp of the Guggenheim Mu­ seum, like a descent within a conch shell, after hot tea in a crowded SoHo eatery, after countless traffic jams in all parts of the city, we finally depart, on the last leg of our North American reading tour. New York looks spectacularly clean and grand, like a vision of the future, seen from the George Washington Bridge on this bright fall day, but Eugenio has experienced enough of it not to be deceived. He leaves with mixed feelings and some puzzlement, realizing that New York City is sui generis and refuses all classification. We drive all day through gentle farm country, paralleling the Erie Canal from Albany to Buffalo. Again we are confronted by the largely deserted vastness of this country. Skirting around Buffalo, we reach the rather shabby town of Niagara Falls, take rooms at a shabby motel, take a look at the nighttime falls, illuminated with colored lights, then eat huge steaks at an authentic American bar-restaurant, with American football blaring on the television. We are surrounded by tough-looking customers, there isn't a tourist in sight, and the inexpen­ sive beefsteak dinner is one of the best down-to-earth meals we have had throughout our tour. The next morning, Niagara Falls is much more impressive, especially the rushing rapids just above the actual falls. We walk along the edge of the tumbling water, cross little bridges, take pictures, go over to the Canadian side, get wet from the wind-blown spray, take more pictures, cast one last panoramic glance at this famous natural monument (vast, but about one-tenth the size of Iguayu in Brazil), and head for Toronto, our last stop. Harbourfront is the largest reading series in America. Writers from all over the world are drawn to take part: Manuel Puig, Ariel Dorfman, Lygia Fagundes Telles, Nelida Pifton, Ignacio de Loyola Brandao, Heberto Padilla, Guillermo Cabrera Infante, Margaret Drabble, Alain Robbe-Grillet, Hans Enzensburger, Amos Oz, Tomas Transtromer, Alberto Moravia, Umberto Eco, Fernando Arrabal, Edward Albee, M.S. Merwin, Vasko Popa, Yevgeny Yevtushenko. Previous Portuguese par­ ticipants are Antonio Lobo Antunes, Ernesto Castro, Agustina Bessa Luis, Lidia Jorge, and Jose Cardoso Pires. EUGENIO DEANDRADE IN AMERICA 99

Before the reading, we dine with the director, Greg Gatenby, the Canadian novelist Matt Cohen, and the American writer of more than fifty books, Emily Hahn. The reading, to a sophisticated audi­ ence, goes well, and we are told, afterwards, that our microphone sys­ tem, the best to be found, is the same one Ronald Reagan uses to ad­ dress the world! Exhausted, but happy that our tour is over, we walk back to our elegant hotel on the edge of Lake Ontario. Eugenio and I spent five weeks together. We flew across the continent and back, we drove about five thousand kilometers, we gave fourteen readings, visited eight major cities and numerous smaller ones, slept in grand hotels, small motels, rustic cabins, and in the houses and apartments of friends. We ate a lot ofChinese and Italian food, and we even ate one or two hamburgers. We had peaceful times and hectic times. Eugenio seemed both highly exigent and highly tolerant. I must have seemed an excruciating mixture of high-energy efficiency and agonizing casualness. But, all in all, we grew very accustomed to each other's ways. The long journey together united us, as we were pleased to see how well we survived together under the pressure of all sorts of conditions and minor emergencies. But most of all, I feel that we grew closer and closer through the repeated experience ofreading Eugenio's poetry aloud together. Although we spent five weeks in each other's company, I believe that in some way we were most close on the public stage, as we alternately read the poems we loved. A poet and his trans­ lator: two very different people, united by their love for language, for the sound of words, and for the life behind, within, and beyond the words. Amen. Carta aberta aDoutora Ana de Brito

J. M.S. Simoes-Pereira

Senhora doutora Ana de Brito:

A maioria daqueles que, como nos os dois, nasceram ha quatro decadas em Portugal, sabem que nao e preciso haver arranha-ceus para haver janelas de onde se ve 0 horizonte. Basta haver colinas; e a sua Lisboa, como a minha Coimbra, tern ambas colin as e nao tinham entao arranha-ceus. Ravia uma varanda na casa onde eu morava de onde todo 0 ano se via 0 por-do-sol e embora eu nunca ali tenha escrito poemas sentia, porvezes, 0 que os poetas sentirao. 0 que the vou contar, vivi­ o nessa varanda.

J. M. S. Simoes-Pereirafoi Professor na Faculdade de Ci€ncias da Universidade de Coimbra. Viveu nos Estados Unidos durante alguns anos, tendo leccionado numa universidade no estado de New York. Gavea-Brown organizara um numero especial sobre Anna Brito, heter6nimo da cientista Maria de Sousa (Vol. II, n° 2) eo Prof Simoes-Pereira enviou-nos esta carta-comentario que nos parece dever ser inclufda nas paginas da Gavea-Brown. 0 Professor Simoes Pereira regressou entretanto a Coimbra. CARTA ABERTAA DOUTORAANADEBRlTO 101

Tinha eu uns catorze anos e foi nurn entardecer na Primavera. Eum tempo do ano em que Mo, em Portugal, muitas andorinhas e aquela hora 0 seu voar e muito alegre, rapido, nervoso, quase louco. Nessa tarde, sem que elas a vissem, voando mais alto do que todas, serena, calma, batendo as asas so de vez em quando, surgiu uma ave de grande envergadura que se dirigia para 0 ocidente. Fiquei a olhar aquela ave solitaria, determinada no carninho a seguir, forte, imperturbavel, voando em direc~ao ao sol poente. Surpreendeu-me que ela nao pousasse; ate a ver como um ponto minusculo na distancia, prosseguiu segura, altiva, corajosa. Seria por ter visto uma ave assim que Richard Bach criou 0 Jonathan Livingston Seagull? Talvez. Richard Bach acreditou que em cada urn de nos habita urn Jonathan Livingston Seagull. Eu nao. Por isso, para mim, aquela ave invulgar tomou-se urn simbolo. Nao de todos nos, mas apenas de alguns. Apenas daqueles que entao, em Por­ tugal, embora frequentes vezes conversassem, nao passavam todas as noites a faze-Io. Apenas daqueles que, isoladamente, sem mesmo terem tido 0 estimulo de ver 0 estrangeiro, nurn mundo que os nao apoiava, sem estruturas, sem recompensas, sem equipas, sem a admira~ao da maioria ou de minorias, escolhiam urn destino para a sua vida e partiam em direc~ao a ele, inabahlveis. Um destino escolhido por serem sonhadores, por crerem que existe alguma coisa mais do que a mediocridade e que alcan~a-Io vale 0 pr~o do esfor~o e do sacrificio. De entre estes portugueses de quem falo, tenho, e tinha ja, visto vanos triunfar. Em tudo. Ate na nata~ao. Onde a imagem de urn Baptista Pereira, entrevistado depois de veneer a travessia do Canal da Mancha no seu ano, foi uma das maiores li~oes da minha infancia: apontava ao jomalista 0 local do Tejo onde se treinara e dizia-lhe com simplicidade "olhe, foi ali, sozinho, que passei muitas horas a nadar e a sonhar". Exemplo de um portugues vivendo em Portugal que, no desporto do seu afilhado, tinha talento e foi campeao. Caso unieo? Nao, ja nesse tempo os havia, homens e mulheres no desporto, no espectliculo, na matematica, na musica, na medicina... Gigantes. Porque se fizeram a si proprios, porque nao tiveram a seu lado, a faze-los crescer, a ajuda-los a veneer 0 desanimo, a educa-los na liberdade ou na disciplina, urn treinador, um promotor, um supervisor... Gigantes porque ousaram ombrear com aqueles que, tendo nascido 102 1. M. S. SIMOES-PEREIRA

noutros pafses, nao precisaram de se fazer, pois tiveram 0 apoio dedicado, permanente, muitas vezes quase exclusivo e privado, de treinadores, promotores, supervisores ... Gigantes que nos merecem, pelo menos, 0 respeito de nao ignorarmos que os houve. A imagem que cada urn de nos tern de Portugal e evidentemente subjectiva: a sua como a minha. E tambem e subjectiva a imagem que temos dos outros paises. Em todo 0 mundo porem ha coisas que mudam e coisas que permanecem porque tambem em todo 0 mundo as mensagens da verdade atravessam fronteiras, por mais cerradas que elas sejam, e encontram sempre quem esteja preparado para as receber. Eu compreendi quando ainda era muito jovem - e confesso sentir orgulho nisso - que depois da minha gera~ao viria .outra melhor que a minha. E compreendi tambem que cada gera~ao deve algo aquelas que a precederam. Hoje os jovens de Portugal que quiserem voar a grande altitude e para isso tiverem for~aja encontram (com uma facilidade que nos nao tivemos) quem os treine, promova, supervisione. Por isso a nova gera~ao portuguesa ja emais que urn punhado de herois isolados. Ainda estara viva em Portugal a tradi~ao dos "guerreiros que nao trabalham"? Eu penso que nao, felizmente. Ainda existini em Portugal 0 prazer de "passar uma noite na conversa"? Eu penso que sim, felizmente. Felizmente porque - para quem go star, claro! - conversar nao e so perder tempo, como 0 nao e jogar golfe, correr mini-maratonas, ver basebol ou ver televisao. Prazer portugues, prazeres americanos. Conversar espelha e e a capacidade porttiguesa de ser humano, coexiste com a tendencia para formar arnizades que nao nascem a for~a de artiffcios, que nao se nutrem no uso sem significado do primeiro nome ou do tu instantes depois de urn "how do you do" ou de urn "hi!", mas que tambem nao se destroem sem causa, nem, muito menos, se esquecem. Concordo que Portugal e ainda, em certas areas, que nao a Ciencia nem 0 Desporto, urn pais onde muitas pequenas aves se sentem felizes porque lhes e possivel ignorar a existencia das grandes; mas e tambem urn pais que tern sempre tido aguias solitanas, voando de olhos postos na distfulcia, sub indo mais alto para ver para alem do horizonte ... A vida deu-me 0 privi16gio de testemunhar que muitas de entre elas, nao obstante conhecerem bern CARTA ABERfA ADOU1DRAANA DE BRITO 103

aquilo a que chama a sua "solidaria solidao", gostam de conversar. Afinal conversar, tal como fazer poesia, tambem ecriar... Luso-americanamente seu, o men avo e a sandade

Barbosa Tavares

Dedieat6ria: Ao meu avo, e a Jose Saramago que me ensinou ser a in/aneia perdida 0 unieo mito.

A serra! ... Sempre que era anunciada em casa, eu tinha logo o pressentir de urn lugar id:f1ico, de pinheirais infindos e carreiros onde cresciam amoras a esmo, oferecendo-se ao viandante, de riachos que cantarolavam alegres e vi~osos, das aguas que lambiam pedras do tamanho de ovos descomunais em pequenas cachoeiras e encenavam uma cantata emoldurada pelas folhas de vinha e os milheirais que ladeavam as margens do rio, e 0 mundo recuava aos tempos em que 0 parafso era possivel. E havia as rolas com seu meloso arrulhar e gaios majestaticos de azul nas suas penas, e ninhos por tudo quanto fosse sobreiro ou carvalho, e 0 tempo era uma eternidade porque na aldeia 0 sol sempre fora 0 mandarim do tempo. o tempo media-se pelas colheitas, as unicas opera~oes de finan~a eram a venda do leite, urn vitelo uma vez ao ano e talvez uns eucaliptos capazes de render rolaria. Havia urn moinho, que era 0 lugar do meu encantamento. Talvez porque meu av8 ali me levava absorto na sua missao de arquipatriarca provedor. Munia-se dum alforje, pe~a arcaica de couro, enfarinhada, de enormes tamancos, que estralejavam cal~ada abaixo, antes de se chegar aos carreirinhos de cabra que nos conduziam ao moinho. La no fundo 0 gorgolejar das aguas infundia respeito, a ponte 105

que ligava as margens era uma trave de carvalho retorcida em pelo menos duas semi -curvas, a ranger sob 0 peso de duas criaturas. Viamos fendas tenebrosas, onde se espreitava 0 fragor das aguas a ribombar nas pedras, e ma9as apodricadas despenhadas de macieiras alcantiladas em silvedos que vogavam nos minusculos remansos de agua represada entre pedras. Majestosa era a polifonia do zunido, e da agua a espadanar no rodizio do moinho em espirais de salpicos sobre as ervas e cabecinhas de macela a escorrer 0 vi90 das aguas. Entrava-se naquele cubiculo e 0 taramelar da roda do moinho, a farinha a jorrar pelos cantos daquela rupestre roda eram os momentos daminha inebria9ao demiUdo. Era quase urn acto litllrgico a moedura do milho, e 0 meu avo, cheio 0 alforje, benzia-se num gesto simples e solene de gra9as, agarrava naquela ponta em forma de dedo e, duma unica assentada, carregava-o as costas repleto de gratidao. Ainda la existe 0 moinho idilico da infancia, as ma9as a vogarem na languidez da agua entre represas de magnificos ovos de pedra. Sao dois os elementos que nao poderei repor naquele cenano: o meu avo e a minha infancia. Ah!... e esquecia-me!... a ancestral ponte de carvalho, curvilinea, carcomida, que a esta hora repousa no fundo do rio embalada pelo etemo chilrear das aguas em catadupa, servindo de labirinto aos peixes. Por isso, quando invoco aquele moinho ea minha mortalidade que invoco na mais veracissima saudade-a saudade da infancia perdida. Joseph Vieira (1907-1989)

Nelson H. Vieira

My father, Joseph Vieira, was known as a good and quiet man who made no show of his good deeds and kindnesses. Instead, he went along in his reticent way, giving generously ofhimself to his family and friends, bestowing his love upon us through his heartful presence. Because he was not a man of fanfare and fancy, people had the impression that he was a silent man who held everything inside, rarely speaking or conveying his feelings and thoughts. But the good and quiet man who was a dedicated father to me and my sister really did speak volumes to us about caring, charity, and for­ giveness as well as how to approach life, work, and the invaluable pursuit of self-knowledge. My father demonstrated his love to us through his acts, deeds, gestures, pats on the back, hugs and kisses his gentle lovingness. His full and warm embrace with life spoke in ways that communicated his deepest thoughts and emotions. So I gradually came to see that he was not a quiet man but instead a great talker, a great communicator, an image that seemed to be in partial contradiction to his personality and reputation as a good and quiet man. How did this revelation come about and what does it mean? In trying to understand one's origins, one's roots, a natural tendency is to turn to the earliest images one can remember. And some of my earliest images and memories are of my father - doing what? - talking, telling stories, and writing letters. All forms of com­ munication that somehow do not suggest the image of the quiet man 107

he was known to be. As children at his feet or in his lap, we were continuously regaled with stories about his experiences as a mis­ chievous boy in Madeira; about his mysterious and harrowing jour­ ney to America at the age of thirteen without his family; his adven­ tures and misadventures as a young immigrant; his array ofjobs and travels during the difficult years of the Depression; his love of soc­ cer which led to his membership in the Club Sport Madeirense; his happy marriage to our mother Mary Vieira and his love for her fam­ ily; his faith and sense ofcommunity in the parish ofthe Immaculate Conception; his life in the shadows ofthe cotton mills ofNew Bedford which we, as older children, also remember sharing; his gardening, his wine-making, and the importance of always having a number of projects to sustain one in life. He also talked about his family of brothers and sisters, who were our aunts and uncles living with their children, our cousins, in exotic places such as Portugal, Brazil, and Venezuela; and ofcourse he spoke about his many activities with the Feast ofthe Blessed Sacrament, manifesting his unquestionable com­ mitment to its Association, the Clube Madeirense do S.S. Sacramento, which became a major interest in his life and gave to his good and "quiet" personality a means of expressing his identity in ways that were fulfIlling and meaningful to his own Portuguese origins. These origins in turn were instilled and reinforced in us repeatedly via his bilingual and bicultural way of being, via his stories, and via his regular letter writing (every two to three months) to his brothers and sisters, some of whom he had never met until later in life during an odyssey he and my mother happily made to those exotic lands after his own retirement. What always impressed me most as a child and adult about this extended family was how well my father knew them and how deeply he felt about them without even having met them. And how we grew up to know and love these family members through the voice and words of my father, the good and quiet man who knew how to make the spiritual and emotional aspects oflife speak to you. Even if they existed across the sea, beyond his own physical reach, they nevertheless lived steadfastly within the reaches ofhis own heart. What does this all mean? It means that my sister and I, along with our families, were graced with the presence ofa man who knew how to make himself known and how to express himself to his loved ones, regardless ofhis minimal education and supposedly quiet ways. 108

He manifested for us richer and more expressive meanings for such things as dedication, commitment, consideration, and love. He embod­ ied expression in its diverse, engaging, and life-affirming ways that taught us never to be silent with one another but to speak the volumes that are stacked within our hearts. And when his heart gave out, I knew that those volumes would go on being read and spoken within our own hearts. And for all that, we say with the deepest gratitude: Thank you, Dad; Muito Obrigado, Pai. POESIAIPOETRY

Dreams And Sighs (After Nellie Wong)

Charlotte Simoes Churchill

I planned a meal in a Portuguese restaurant a long time ago now, for friends, and I felt proud to order lingui¥a cooked over hot coals, fish chowder and kale soup. I ordered Portuguese sweet bread and flippers (fried dough) and for dessert, dreams and sighs. I was even happier to invite them to see Provincetown - the harbour, the pier, the fishermen and I told them how my grandfather was a whaler out of New Bedford They said "You look Swedish." 110

Faja Wine

Art Coelho

For Father Joe

What time does to the Pajas of Sao Jorge when the hortensias bless the rock terraces, with nature's island way giving back its morning footfalls- that we still need in our simple dreams of yesterday and survival, my people and their burro traffic beyond the scents of wolves, their milk cans making silver memories in the sunlight, across the ancient ledges that now hold different rows for the rectangle fields of fences in rock charms.

What distance the navigator made with his sails billowing across the uncharted sea swells of our individual fates now rests in the various-shaped lava stones that seal in the vines, green them up with new shoots like the smiles on village faces, still working in the wide intimacies of the faja earth.

What God once gave these crumbling roof-caved tiled houses, with huge cornerstones and archways still stirring the blood in our hearts. His works, our people working with the bounty of kale and horse beans and smells of 1ingui~a, the cry of the stuck pig, the stuffing of the entrails, meat curing in hanging links­ 111

there's music mixing notes ofrare old time in this new breeze that gathers up all our possessions for home again.

The grace of the uncontrolable changing greens in the waves of water from the Atlantic Ocean blending with the sheltered ringed-in lakes, and caverns that give back their secrets slowly, but holy every moment you breathe them in through a cousin's eyes.

And while strolling back the three-mile Grandpa Lainhas trail of Paja da Caldeira de Santo Cristo, his birthplace, every trace of the parish church bell ringing the mass celebrated once a year since the earthquake, since the brown-and-gray tile fell to the ground. Not a city. Not a town. A faja - tiny, flat, almost unmeasurable in its lovingness to avow as it lulls you back into solitude's longing. The entire village quiet then goes out to the heart of the soul.

I can sense my roots in the green-leaf fragrance of thick yam leaves. I come here to dance in the shadows of my grandfather's eyes, where they glanced last around the turn of the century -1905. The lake still has much magic now with its silky reeds, the church faith here hasn't lost its flre or grown stale from unbelief. When I walk in I take in the same distance he traveled, but he was more than herding goats up on these high cliffs. He was herding his dreams for America, trying to put all of them into one with a ticket on a steamer. He left me my faja legacy. I have more than an American brand stamped on my soul. There's another live chorus from an immigrant's distant voice reaching across his youth to mine. His truth mixing as it flnally made passage through Ellis Island's wide strange doors. Now it touches me here in a modem hotel lobby in Montana where flve years ago I set foot there in memories sealed by itchy feet to discover his hands in his garden.

I'm going back because I've never really left Paja of Sao Jorge. The beauty there hangs on a birth I can never escape. When the high sharp cliffs of the volcanic mountain dips and comes down fast and steep in my uncaged heart, when the view takes my breath to clouds over Pico 112

that roll away the mists for a much sweeter kiss than mere landscape­ of all I've lost from this place by not returning sooner, this entering longing's backtracking the depths in my epic infinitesimal faja soul.

FajaGrande Faja dos Vimes Faja dos Bodes FajadeAlem Faja de Sao Joao Faja da Penedia Faja das Pontas Faja dos Cubres Faja da Caldeira de Santo Cristo Faja Redonda Faja do Sanguinhal...

They all chant their names to me in four dozen place-mat memories, they all sing their different seasons rising up in me: the spring of immigration when whale ships took us quickly from out night-hidden tiny dory boats; the summer ofEllis Island's open arms when my grandparents said goodbye tears to Papas and Mamas never seeing them again, and their sorrow turning the next season to autumn, the new California births of dairy cows in the San Joaquin, delta valley farms and alfalfa green and working as creamery hand, driving truck and the Holy Ghost music band at the Portuguese celebrations when the chamarrita danced the old meaning of our lives in folk fabrics going back five centuries to faja ways.

And so the heart turns to the spirit and winter hooks its truth from this last season. The going-back season. The grandsons and great-grandsons with tears for their return. The mandolin memories sweeping them up over the old ovens fired, the Jilhozes being passed around, the fig lightning being belted, the crystal brew kicking like 113

a stubborn ass as it is swallowed, as its potency lasts, as the man on his lone terrace burro is going home with com dragging the smooth cobblestones from both sides from where he sits, with the faja sunset on his wide shoulders taking the same dusk light that the huge lichen-crusted boulders in his front yard takes, getting down from his burro, the essence of his life starting over again.

And loaded down with fresh figs, this lady taking our taxi with my permission granted, a ride to the top of the mountain, offering us the figs just picked, and azaleas flowing with the song and the magic of my recall: the brown-red baths, bagacina vermelha speaking and leading my boot heels to slow down, drink long these images, these pausing peaceful wanderings in the little remote region of my Azorean birth, with the sweetuess of the earth reaching its worth in every twisting vine, in every perpetual season that makes great faja wine. 114

Vinho da Faja

Jose F. Costa

AoPadreloe o haIito do tempo derrama-se sobre estas Fajas em teus socalcos benzidos de hortensias, ilha natureza donzela no sereno das manhas, alimento do meu sonho antigo, pao dos meus dias. Comigo trago a gente, 0 cheiro de animais distantes, as latas de leite, mem6rias andantes de sol prateadas, veredas sobre penhascos velhos, peda~os de campo onde mora 0 verde seduzido, em abra~o de pedra.

A distancia que percorreram as enfunadas velas por sobre as inchas do mar ignoto, destino nosso, vive agora na multitude da lava donde nascem a vinha e os rebentos noY~s, bern como 0 sorriso da aldeia fruto da gostosa intimidade com a terra da minha faja.

Sao dadivas de Deus estas casas de velho barro, visoes de vigas e arcos que meu cora~ao aquecem. E a gente. Ai, este aroma verde da couve, fava com cheirinho a lingui~a, 0 estertor do porco, os enchidos e as resteas de chouri~o a defumar... Ai, musica de urn tempo antigo e raro, brisa aroma que asinha me leva de regresso a casa. Mala aviada. 115

A perene verdura derramada nas ondas desse mar Atlantico adormecido nos teus pequeninos lagos, as cavernas inquietas por desvendar teus segredos, eis tudo 0 que mora nos olhos de quem nasceu ilh6u.

Reencontro 0 carreirinho antigo de vavo Lainhas da Faja da Caldeira de Santo Cristo, e meus passos seguem atras do sino que me chama para a missa promessa porque tremeu a terra e gemeram casas. Nem cidade. Nem vila. Uma faja. Ali me acolhe, cha, minuscula, mas quase sem limites no gesto que docemente me embala em saudosa quietude. Em sossego, a aldeia entra-me no fundo da alma.

A minha origem tern a fragrancia das folhas do inhame. E aqui venho bailar na sombra dos olhos de meu avo, pela ultima vez abertos ao mundo no virar do secu10.

Sao ainda de magia feitos 0 lago e seus juncos de seda. E, neste povo, nem minguou a fe ou arrefeceu a cren~a. Quando chego, trago a mesma distfulcia que vavo andou, no tempo guardador de cabras sobre estes penhascos, no cora~ao arrecadando sonhos de America. Guardou-os ate escrevl3-los no bilhete de passagem de urn vapor. Dele, por heran~a, recebi a alma da America temperada de faja. Da voz distante da sua juventude me chega 0 grito emigrante. Meu avo verdadeiro, sonho realizado, aconteceu quando, por fun, se transpuseram os port6es estranhos da Ellis Island. Aqui, tao perto de mim a sua imagem, neste hotel de Montana. Como hii cinco anos, quando meus pes doloridos eu passeava sobre urn jardim de mem6rias velhas, encontrei as suas maos acariciando meigas a terra do quintal.

Regresso porque nunca te deixei, Faja de Sao Jorge. Ficarei para sempre preso como fruto da tua beleza. Os teus penhascos desprendem-se da montanha vulcao, e correm liquidos e lestos neste cora~ao sequioso de ti. Quando as nuvens do Pico se afastam para te revelar, 116

ebrio te enla~o, num beijo doce de paisagem Mmido. E, do tanto que fui perdendo neste regresso adiado, resta-me, na alma de epico, 0 tra~o indelevel da faja.

Faja Grande Faja dos Vimes Faja dos Bodes FajadeAIem Faja de Sao Joao Faja da Penedia Faja da Pontas Faja dos Cubres Faja da Caldeira de Santo Cristo Faja Redonda Faja do Sanguinhal...

Sao cantigas de roda no terra~o da mem6ria, binos de todas as esta~oes que em mim ecoam: primavera da imigra~ao, em navios baleerros, de gente apressa vazada de bateis cor da noite; verao dos bra~os abertos da Ellis Island, higrimas chom de adeus de vavo, papa, mama, vav6, todos para sempre divididos em vida, e a dor tornada outono, esperan~a de nova cor e nome, Calif6rnia das manadas de San Joaquin, das herdades e da luzerna. As maos ficaram donas de lacticinios, camioes e festas. o Espfrito Santo e em portugues rezado, como chamarrita modinha pura da nossa alma saida, como ha tantos seculos, por nossos corpos dan~ada, com 0 tom igual ao da faja.

E 0 cora~ao apega-se aalma e 0 inverno tern sabor de ultima estancia. E0 tempo de voltar com lagrimas de regresso nos olhos dos netos e gera~oes de filhos seus. Revoam trinados de bandolim. Acendem-se mem6rias. Crepita 0 forno. As filhoses passam de mao em mao. Ha molhos de lenha de figueira. E 0 coke do baga~o, anossa! asno teimoso em vereda estreita, agora manso passa submisso, 117

o dono sentado ao meio dos manchos de milho, silhueta recortada no poente da faja. Sobre os seus ombros a tarde morre. Quando os pes tocam 0 chao, cansado, 0 sol tambem repousa. E, no princfpio e a vida outra vez.

E fica-me a recorda~ao doce, magia de azaleas iguaria de figos frescos, guloseima e temura da mulher que vai comigo ao topo da montanha. E falam-me os morcegos de ocre e a bagacina vermelha. Pedem-me para sofrear 0 pas so e sorver longamente esta beleza de paz colorida, visoes do meu ber~o de a~or, a do~ura da terra, a seiva nos bra~os retorcidos das videiras. Bebo 0 tempo que escorre gota a gota, saboroso vinho da faja.

Tradu~ao livre da "Paja-Wine" Original em Ingles de Art Coelho 118

When I See

Cynthia Rego Lelos

some Spaniard piercing a confused bull Or some Mexican ringing a chicken's skinny neck Or some Italian carving a baby lamb Then instantly I think of my Portuguese father Walking out across his back yard Sitting down on an aluminum lawn chair The webbing split in places His feet booted winter and summer His rifle perched on his white tee shirt stretched over his brandy-bloated belly That rifle ready to take flight and EXPLODE at first sight of any rabbit or pigeon (or on very spare days some especially annoying neighbor's cat) who dared to trespass on his one-eighth acre of back-woods His smile beatific His vision reaching reaching His pulse pounding perfectly to the rhythm of his conviction that he is truly King of this, his Domain Chief of this, his Territory Ruler of this, his Homeland: here right here in New Bedford, dead- centered in the middle of his Universe 119

Quando voltar ailha

Teresina Sales

Quando voltar ailha you de gargantilha de conchas e peIfumada de boninas. Cor do mar, o vestido de hortensias. Os cabelos prenderei com flos de luar, e numa onda de espuma desembarcarei de madrugada. De sandalias de areia envolta em mantilha de nevoeiro a chorar orvalhos de alegria. Sem cortinado de luto roxo meu cora<;ao bravo soltar-se-a no terreiro. You dan<;ar a chamamta e cantar a saudade quando voltar ailha. 120

Homage To Carlos Paredes

Charles Wayne Santos

Trying to know I can only feel

him press his pain to the hollow, weeping box

With misshapen, conical fmgers he dreams aloud the proud and fierce sadness that is Iberia

In the intervening silences I try in vain to record the virginal dissonances as babe to butterfly

The instrument breathes again, And once again he is one again with Portuguese wood and strings of Spanish steel

And once again

whining wires hold me captive barely breathing 121

Folhas do outono

Barbosa Tavares

Ceu pintalgado de nostalgia. No horizonte, uma clareira de azul celeste debruada a Hi. Toda a restante abObada transborda de cinzento. As arvores enamoradas deste flo de vento que chilreia nas folhas deixam-se despir, tiritantes embora. Ali, transidos de vento, sob os flos de sol transluzentes no amarelo-sangue do folhedo, os ramos enegrecidos emergem, tais brac;os suplicantes na sua desnudez. No chao, uma ab6bora barriguda jaz no seu amarelo torrado a testemunhar a outonal fecundidade e rec1ama ser colhida. Ha estacas abandonadas, despidas de feijoeiros, e os resquicios acobreados da folhagem dizem-nos que a terra modorrenta vai repousar do parto das colheitas e suavizam-nos a alma de nos­ talgia. A vida. Encenada em canticos de vento nas folhas, sucessao de misterios e 0 homem no seu cerne. Dos campos sabemos que reclamam uma pausa. Das floreiras, nem sempre rosas. Esta letargia, esta doc;ura nostalgica e ali urn amontoado de folhas esvaidas para nelas inquirirmos da nossa signiflcancia no outono da vida. As folhas nao caem em vao, evocam a brevidade de nossos dias. 0 outono das pinceladas de azul-ligua no ceu e 0 gemicar das arvores que despem a sua roupagem imploram de n6s urn olhar demorado sobre a brevidade de viver. Eem func;ao deste momento, do vento a cantar nas folhas, desta ainda fgnea luz de outono a alumiar a negrura dos ramos desnudos, que a alma se queda a interrogar-se sobre estas folhas caidas. Porque caem as folhas, pergunto-me? Para esculpir no tempo a brevidade de nossos dias penso. 122

Daydreaming

Raquel Torres

The whole day I sailed against the wind holding the ropes tight under the sun and the gusts of water Until a bell brought me to my class undecided about where I was going sure of where I should be In the clouded morning I heard seagulls squeal in the playground I smelled the country fields And I repeated my lesson with my hair dripping wet and the wheel steering in my uncertain hands without slacking my speed The vibrations of the season echoed in the empty corridors even before the crowd had gone At the end of the day I left behind the reflections on the desk tops pages of work till the next morning and a deep longing for a new summer. FICc;AO/FICTION

Uma rosa perfumada

Arthur BrakeI

-Posso falar com 0 senhor urn momento? disse meio aflita a nova leitora de frances ao chefe do departamento, quando este voltava satisfeito da aula de Comedia Renascentista. o jeito como lho pedira sugeria urgencia. 0 que seria? Que teria ela? Era novinha, pensava 0 chefe. Quando muito levava quatro ou cinco anos aos estudantes. Talvez the tivessem dado urn coice, pois 0 estudante americano dificilmente tolera a pedagogia europeia, pedagogia essa apoiada em Cretin! Imbecile! Dumkopj! Kwatch mit Sauce! E custa ao europeu adaptar-se ao sistema americano - de encorajar e ate mimar 0 estudante, mesmo quando erra, mesmo quando eburro. Atraente mesmo ela nao e, continuou a pensar 0 chefe de si para si. Nariz grande e adunco, pele clara demais, urn tantinho esticada ela. Essas cores aberrantes, os sueteres sufocantes de fofo. Muito pouco francesa, talvez. Mas, ainda assim.... -Espere urn momento. Volto ja. o chefe saiu da casa de banho ainda mais intrigado. 0 que teria a Suzette? Saudades da Franya nao podia ser. Era estudante de ingles. Estagiara na Inglaterra. Veio aos Estados Unidos encetar urn programa de doutorado em Literatura Americana. Viu a Suzette sentada na cadeira mais afastada da escrivaninha da secretana. Ainda achou de dizer: 124 ARI'HUR BRAKEL

-Mais urn momentinho, pode ser? Podia. Entrou no escrit6rio carregando 0 sorriso for~do e incamodo da jovem francesa e a ideia de que talvez houvesse algum recado urgente que precisasse atender. Nos envelopes que esperavam na escrivaninha reconheceu alguns remetentes, mas nada que parecesse urgente, nada que tivesse passado dias esperando. Nem a secretana 0 informou de que alguem, durante sua ausencia, the telefonara e exigia resposta imediata. De facto, durante a aula de Comedia, ninguem the telefonara. Acabou pedindo que a secretana mandasse entrar a madenwiselle. -Je suis vraiment desolee-conc1uiu a Suzette depois de se sentar e trocar amabilidades com 0 chefe, que do outro lado da escrivaninha the sorria bondoso, inc1inando para tras na cadeirona de Chefe do Departamento. 0 chefe perguntou: -0 que e que ha? -Estava isto na minha caixa de correio esta manha! Estendeu-lhe urn papel de memorandum. Tinha sido dobrado e inserido num envelope do departamento, que 0 chefe ainda via na mao tremula da mo~a. Pegou-o e pas os 6culos.

Prezada Senhorita Chasseguet, Neste pais usamos banhar-nos diariamente. Por favor, nao entre mais no meu escrit6rio ate adoptar esse nosso costume

Pamela Pyllar

Pamela Pyllar era uma das mulheres que 0 departamento empregara para ajudar com a dactilografia. Ravia dois anos que trabalhava assim e passara-os quase despercebida. Nunca ninguem lhe registrara uma queixa. Uma senhora ja, com uns trinta e tantos anos, meiga mae de varios filhos, conversavelmente inteligente, razoavelmente bonita, casada com um operano da Ford, mas em vias de div6rcio soubera 0 chefe ultimamente. -A Suzette ja teve urn problema desses antes?-arriscou. -Que ideia!-respondeu, tremendo, enrubescendo, e contorcendo a cara a ponto de chorar-pare~o suja? Que ideia essa! liMA ROSA PERFUMADA 125

Dizer que nao entre mais no escrit6rio de uma simples datil6grafa ate comer;ar a me banhar todos os dias. Ela e que precisa tomar banho! o chefe nao teve resposta imediata. Nao tinha nada de suja a mademoiselle Chasseguet. Sujeira 6bvia, vislvel, nao e problema de pessoas civilizadas. 0 que a Pamela teria dito sem dize-Io e que ma­ demoiselle cheirava mal. No entanto, 0 chefe nunca notara que a Suzette pungisse as narinas. Vieram a mem6ria alguns an6nimos europeus que se The sentaram ao lade nos cinemas de Paris. Certos cinemeiros ate chegaram a impedir-The a respirar;ao. Mudar, mas para onde? Tentou cheirar sem ser percebido. Nada. o seu olfato nunca fora urn prodfgio. Talvez estivesse longe demais. Como detectar urn mau-cheiro adistfulcia sem incomoda-Ia, sem desconcerta-Ia, sem parecer urn impertinente? Sorriu compadecido para a compungida mor;a ao outro lado da escrivaninha. -Sabe, estes americanos. Tern mania de asseio. Banham-se todos os dias. Ate muitos lavam 0 cabelo diariamente. Vive-se muito apertado aqui. As janelas nao abrem. 0 escrit6rio da senhora Pyllar nao passa de urn cubfculo. Ela nunca The disse nada em pessoa? -Nao. -Nunca houve nada entre voces? Alguma altercar;ao? 13 dona de casa, mae. Talvez queira ser tratada com alguma deferencia. Nao se pode ser abrupto com as datil6grafas. Sao muito sensfveis. -Nunca fui abrupta com ninguem. Veja bern. Vivi dois anos na Inglaterra e nunc a ninguem me disse coisa semelhante. Per;o satisfar;ao. Quer dizer, quero que me per;a des culpa. Se nao, you-me embora. Nao ha nenhuma razao para tolerar tal abuso da parte de uma simples ajudante de secretaria. Se ate sexta-feira nao receber nenhum pedido de desculpa, you-me embora. o chefe disse que The falaria. Garantiu que dentro de pouco viria a desculpa. Tudo se havia de armmar. Que nao se preocupasse, que nao se apoquentasse. 0 caso nao ia alem de urn pequeno mal­ entendido cultural. Levantou-se para acompanha-Ia ate aporta. Chegou ao lade dela. Dissimulou uma cheirada enquanto caminhavam. -Nao se preocupe, que tudo se ha-de resolver. Maldito olfato! Detectou urn perfume que, embora nao lhe 126 ARTHUR BRAKEL

agradasse, tambem nao 0 ofendeu, nem the permitiu entrecheirar qualquer fragrancia mais humana. 0 chefe ainda ponderou se, talvez, para narinas normais, 0 perfume da mademoiselle nao seria 0 equivalente odorifico do sueter aberrante que usava. De uma coisa estava certo: antes de agir era preciso investigar.

II

-Ora, Chefe, 0 que e isso?-disse 0 professor de cataUio piscando 0 olho-chamou-me para vir aqui falar em segredo a respeito da Miss Chasseguet, mas nao eporque ela cheire mal. 0 Franco 0 que quer eoutra coisa .... -Quer dizer que para 0 Joan ela nao e mal-cheirosa? -Qual, ebonita e ate ... -Notei alguma coisa sim, mas nao e nada que fira as sensibilidades-dec1arou urn circunspecto professor de frances-talvez uma das mulheres lhe deva recomendar urn sabonete, urn desodorante, urn sabao para a roupa .... -Cheira sim-admitiu a professora de literatura espanhola­ mas eu fico meio envergonhada com essas coisas. 13 dificil ser franca. Olhe que Unamuno tern urn conto a respeito de urn sujeito que chegou a abominar a humanidade porque se the esquivava. Afinal foi urn sujeito num comboio que the disse ... -Ela fede que nem gamba!-exclamou 0 professor de portugues-puxa vida! Tivemos urn caso parecido hi em Albany. Por sinal tambem professor de frances. Como cheirava 0 carat Ate pensaram recusar-Ihe urn lugar efectivo devido aos vapores­ dobravam esquinas, penetravam os outros escrit6rios. Depois contraiu matrimonio com uma professora jovem, mortalmente afligida de cancer. Minha Nossa Senhora!...

III

-Posso falar com a Pamela urn momento?-disse 0 chefe ao assomar no cubiculo que ocupava a dactil6grafa.-Pode ser no meu escritorio. A cara do chefe perturbou a dactilografa. Era urn homem bonito, mais velho do que ela uns doze anos. Tinha fama de UMAROSAPERFUMADA 127

mulberengo. Notara-o a olba-Ia de vez em quando. -Vouja. A cara do chefe surniu deixando urna presen<;a ausente a faiscar na cabe<;a da mae trabalhadora, precisada de urn homem. Aprumou­ se e dirigiu-se para 0 escrit6rio do chefe. Ao chegar a antecfunara do gabinete, encontrou a porta do chefe fechada. Trocou olbares ir6nicos com a secretaria, que lbe disse que a secretaria do decano acabara de telefonar. Pamela viu 0 botao vermelbo aceso no telefone da secretaria. 0 chefe esta a falar com outrem. -E urn vaivem que nunca mais acaba-disse a secretaria-nao sei 0 que hil. A Pamela debateu consigo mesma se devia voltar amaquina de escrever e acabar 0 artigo que 0 professor de catalao the encomendara ou se podia ficar ai atoa, esperando 0 fim do telefonema que talvez nunca mais acabasse. Essa gente passava 0 dia a palrar sem resolver nada. Que vida, dar urn par de aulas dia sim, dia nao. Quatro meses de ferias durante 0 Verao. Ler, assistir a conferencias, ir a congressos, muitas reunioes ... Resolveu ficar. Nao pensar em nada. Sentou ao lado da secretaria, que voltou a copiar uma carta. Finalmente 0 botao vermelho reassurniu a neutralidade clara e apagada. Logo 0 telefone zumbiu. Percebeu a voz do chefe a inquirir se a senhora Pyllar estava ai. Estava? Que a mandasse entrar. -Pode fechar a porta-disse 0 chefe levantando os olbos dos papeis que tinha a sua frente-sente-se, por favor. A dactil6grafa sentiu urn calafrio ao reconhecer 0 papel de memorandum que culrninava a pilba de papeis em cima do mata-borrao do chefe. Era isso 0 que 0 fIZera chama-Ia! Sentiu uma onda de vergonha correr-lbe 0 corpo. Come<;ou a fervilbar por dentro, a transpirar. 0 chefe tirou os 6culos. -A Pamela sabe porque the pedi que viesse ca falar cornigo? -Ha-de ter alguma coisa que ver com 0 bilhete que mandei aquela francesa. Estou a ve-Io af. -Pois e is so mesmo. Olhe que temos de ser meio delicados com esses europeus que vern aqui. Sao altaneiros, sobranceiros ... -Fedorentos-achou de acrescentar a dacti16grafa indignada. -lsso po de ser. Mas ainda assim, temos de ser bastante delicados. Nao se pode escrever urn bilbete assim. Eofensivo. 128 ARTHUR BRAKEL

-Mas 0 senhor veja bern. Todas as secretarlas estavam a rir dela. "Ai vern a doninha!" diziam algumas. 0 senhor nao cheirou? o chefe sorriu enigmatico. -Eu ate the fiz urn grande servi<;;o dizendo que era preciso tomar banho, nao ofender as pessoas. -Mas 0 problema nao e exactamente tomar ou nao tomar banho. -Mas se ela ... ? -Pode ser nervosismo. Ela estara nervosa por causa do emprego, das pressoes, do precisar enfrentar diariamente aulas cheias de pessoas. Os estudos dela. Pode ser sem querer que ela cheire mal, se e que ela cheira mal mesmo. -Nervosa dando aulas? -Nunca se sabe. 0 Gabriel, 0 professor de portugu~s, disse­ me a respeito de urn ex-colega dele, la em outra universidade, que cheirava mal. Aquele banhava-se todos os dias, mas mal entrava no departamento e desatava a transpirar. Nao havia desodorante que resolvesse a situa~ao. -A desodorante nao se resolve nada-disse a Pamela. -0 que?-disse 0 chefe. -Nada--disse a Pamela a rever pela quinquagesima vez a sua pr6pria situa~ao. Trinta e seis anos de idade. Tres filhos entre dez e quinze anos a criar. 0 marido em vias de divorciar-se quando se descobre urn tumor cerebral que 0 matara dentro de urn ano. 0 jeito e esperar. Ele ate desistiu do div6rcio para que os filhos herdassem 0 seguro, a pensao; para que a Pamela ficasse viuva em vez de divorciada. Seria 0 cancro que causava as desaven~as entre eles? Ela sempre queria pensar que nao, que eram incompatfveis por natureza, que estariam as voltas urn com 0 outro mesmo que 0 cancro nao estivesse ali a infiltrar­ se nos miolos do marido dando-lhe tonteiras e incnveis dores de cab~a. -Pode ser muito facil, tambem-seguiu 0 chefe-uma questao de lavar a roupa, banhar-se regularmente, tal como a Pamela recomendou, s6 que talvez pudesse ter-lhe aberto a quesHio mais delicadamente, de mulher a mulher, dizer-Ihe que talvez a roupa pre­ cise lavar-se. No entanto ela esta muito ofendida. -E 0 senhor quer que eu the pe~a desculpa? -A Pamela precisa pedir-Ihe des culpa. Talvez seja a pessoa mais adequada para dizer-lhe que precisa tratar do problema. Consultei UMAROSA PERFUMADA 129

vanas pessoas e parece-me que M urn problema, e que talvez haja solm;ao. Se nao, e agiientar, que cheirar mal sem remedio nilo deve ser nada facil para ela. Findou-se a sessilo, com a dactil6grafa resolvida a achar urn jeito de reconciliar-se com a mademoiselle e explicar-Ihe que nao era sujeira propriamente dita. Talvez uma simples visita alavandaria ... o ehefe assegurou-lhe que eonfiava nela e que esperava ver a quesmo solueionada, e, dentro em poueo, esquecida. Ble, entretanto, fora eonvidado a almo~ar com 0 decano.

N

A Suzette vinha de dar a aula das onze ate 0 meio-dia. Bntrou no eserit6rio que compartilhava com a leitora de portugues, uma brasileira alta, alourada, muito pouco latino-americana, nilo fosse a languidez. Bra tambem professora de ingles e viera doutorar-se nos Bstados Unidos. A brasileira nilo estava. Vinha s6 na parte da tarde e vivia a fuxicar hi em baixo com 0 professor de portugues. Deixou a porta semi-cerrada e olhou ao redor de si. Agradavel sim, esse escrit6rio: duas escrivaninhas, duas estantes eheias de livros herdados de ocupantes previos, dois cabides para os abrigos. Paredes brancas em bloco de cimento pintado. Urn cartaz de Ouro Preto, outro de Nice. As lampadas fluorescentes zumbiam. levemente atras do pllistico no tecto. Ajanela dava para a rna, mas nao abria. S6, solidilo, solitana e agora isso. Que aprendesse a tomar banhol Que mania dos amerieanosl Que descaro esse da daetil6grafa! Olhou para os tornozelos, as maos. Nada de sujeira. Resolveu ver se relia urn poueo para 0 seminano da tarde. v

Ao meio-dia 0 ehefe eneontrou-se na entrada do restaurante do University Club. Bsperava 0 decano, que tinha sempre uma mesa reservada para os almo~os oficiais. Via chegarem e circularem pessoas eonheeidas. Aparentou urn ar de privilegiado para os colegas ao dizer­ lhes que nilo podia almo~ar com e1es porque esperava 0 decano. Por dentro sentia-se ofendido com 0 atraso do comensal e incomodado pelo assunto que iam tratar no almo~o-descobrira-se a engenhosa 130 ARTHURBRAKEL

manobra que 0 chefe utilizava para custear as suas estadas na Europa. Cada Verlio levava urn grupo de estudantes para la. Os de castelhano iam estagiar em Salamanca, os de frances em Nice, os de alemlio em Hamburgo, mas todos iam de Nova Iorque para Madrid, que a Iberia facilitava viagens aos outros destinos. Saia bern barato 0 voo-de gra~a para ele e as vezes para a companheira, que ia quando a mulher resolvia passar 0 Verlio em casa. -Oh1, Francisco. Era 0 decano, que 0 surpreendera vindo por onde nito 0 esperava. 0 decano tambem 0 surpreendera quando 0 informara de que descobrira a irregularidade. Algum estudante tivera de desistir da viagem e pedira 0 dinheiro depositado de volta. 0 chefe explicou que so podiam devolver 0 dinheiro para Abril. Mas is so nao tinha sentido. Como que nao podia devolver os mil dolares de deposito? Foi queixar­ se ao tesoureiro, que tambem nao entendia e que telefonou para 0 chefe, que disse que a Iberia so abria mao do dinheiro para Abril. Numa cavila~ao de momento, 0 tesoureiro telefonou para a contabilidade da Iberia em Nova Iorque. -Mas qual?-disse com leve sotaque espanhol 0 contabilista­ so pedimos os depositos para Abril. 0 seu programa, cujo coordenador eo Professor Narudo, 0 Doutor Francisco Narudo, marcou 65lugares no voo que parte para Madrid a 23 de Junho do ano que vern. Tern ate dois meses antes dessa data para pagar as viagens, cancelar, aumentar, ou dirninuir os numeros . . . Nito, 0 prazo para pagar vai ate 23 de Abril. -Vamos almo~ar, Francisc~onvidou 0 decano meio severo. Meio ironico, pen sou 0 chefe. o decano em certas situa~oes gostava de anedotas engra~adas. Fossem outras as circunstancias, contar-Ihe-ia 0 caso da mademoi­ selle Suzette, a vergonha da professora de literatura espanhola, a discri~ao do de frances, a indiscri~ao do de catalao, a sensaboria do de portugues, 0 cheiro que em vao tentara captar. Mas nao, enquanto esperavam a gar~onete, limitou-se a falar de numeros de estudantes matriculados, dos novos professores contratados, da partida de futebol no sabado. A fim de dar certa aura de respeitabilidade academica a sua pessoa, falou tambem de uma bolsa que solicitara. Para 0 almo~o 0 chefe encomendou frango estufado; 0 decano pediu leitao ensopado. UMAROSA PERFUMADA 131

-Afinal de contas, Francisco, onde e que esta esse dinheiro que exigiram aos estudantes? Na Iberia nao esta. N a conta do programa ha oitocentos e tantos, eo resto? -Esta bern. Esm sao e salvo. Eso esperar ate Abril. -Porque? -Pois veja bern. Pedimos compromissos aos estudantes logo em Setembro. Urn deposito de mil d6lares, reembolsavel ate Abril. Isso nos deixa calcular as necessidades do programa: marcaC;ao de lugares, contratac;ao de professores temporarios, salas de aula, residencia ... Compromete tambem 0 estudante. Eraro urn estudante desistir depois de ter pago essa quantia. Einaudito ter urn que paga e quinze dias mais tarde desiste e rec1ama. -E ebizarro nao poder devolver-lhe 0 dinheiro ja, ja. -Poder, podia, so que ia prejudicar a conta. -Mas tera sessenta mil e tanto, confonne disse 0 contabilista. -Mais, setenta e dois mil, pois comprometeram-se setenta e dois estudantes. -E esse dinheiro todo? -Depositei-o numa conta a prazo fixo. Isto e, ficara com dois mil para os gastos eventuais do programa e depositara setenta mil dolares numa conta de seis meses que lhe garantia juros de quinze por cento anuais e cobrava urna multa, caso mexesse no dinheiro antes. Dar-lhe-ia urn lucrozinho suficiente para adquirir algumas antiguidades mais nas lojas de Veneza e Florenc;a depois da sessao escolastica. Dava tambem para 0 empacotamento, 0 aerofrete ...

VI

-Posso falar com a senhorita urn momento?-Era a voz da dactilografa, que viera ter ao escrit6rio da mademoiselle ao meio-dia e dez. -Pode-respondeu a frances a fechando The Great Gatsby na pagina que comec;a: "Don't do it today" -sente, por favor-disse, tentando simular 0 a-vontade do chefe quando a recebera no gabinete dele s6 que, nao podendo colocar a escrivaninha entre ela e a sua interlocutora, teve que virar a cadeira para encara-Ia. Tambem nao ficava bern uma mulher em saia inc1inar-se para tras na cadeira. 132 AIrrHUR BRAKEL

-Vim pedir-lhe perdao-disse a Pamela meio enrubescid - nao devia ter-lhe mandado esse bilhete. Eque ... pois ... nao devia, e pe~o perdilo. A contri~ao da senhora comoveu a professora, que sentiu que a sua reac~ao talvez ti vesse sido energica demais. Podia ter-lhe falado de mulher para mulher. -Mas alguma coisa a tera motivado a escreve-lo. -Pois ... . -0 que foi, entao? -E ... Da vergonha falar. -Va, 0 malja esta feito. Fiz-lhe alguma coisa? -Nao. Eque a senhora cheira mal. Desculpe dizer assim sem mais, mas e isso mesmo. Alguem tinha de dizer algo. Talvez banhando­ se, talvez urn desodorante, talvez lavando a roupa ... nao sei. Mas nao precisa ser wmbada por tras das costas ...

VII

-Pois e isso, Franco. Vamos arranjar-lhe os dez mil para a conta do programa. Voce devolve 0 dinheiro ao estudante. Quando veneer 0 certificado de deposito, devolve-nos 0 dinheiro. Os juros serao adicionados a verba dos estudantes economicamente desfavorecidos e ja esta. 0 Franco tambem pede demissao do programa para 0 ano que vern. Dito isso despediram-se frente ao University Club e 0 chefe rumou ao ediffcio das Lfnguas Modernas. Era uma linda tarde de Setembro, Hmpida e colorida, com urn cheirinho a folha morta no ar. As ultimas rosas despontavam no jardim. o chefe respirou aliviado. Desenrascara-se. A repreensao havia sido mole. Poderia ser pior, muito pior. E assim que os cavalheiros resolvem as quest5es. Urn almo~o. Umas palavras. Uma emenda. Continuo Chefe do Departamento, pensava, quando dobrou a esquina do canteiro e deu com a Miss Chasseguet. 0 chefe sorriu. -Posso falar com voce urn minutinho? -disse ele notando que 0 sueter da jovem assistente nao parecia tao aberrante aluz da tarde outonal. Ate casava bern com as folhas vermelhas e amarelas, com 0 azul do ceu, com os olhos dela que faiscavam. The Gardens of Hades

Raquel Torres

I turned my head to the window tom between two disparate feelings: longing and anger. Some white clouds rushed by reassuring promising me a safe landing. Momentarily distracted, I misplaced my vanishing haste, breathless, I slumped in my seat. Even ifI knew she was ill the sight of her absence disturbed all my chords. Only disso­ nant sounds lingered unsaid, almost unthought. Touchdown. I landed in the country of my origin a foreigner. I looked on uninterested as other passengers stood up and gathered their things amidst children's shrieks and a warning "Please remain seated until the plane halts completely." All of a sudden I wasn't in a hurry anymore. I wasn't in that plane either. I was running in Kennedy airport looking for the overseas arrivals. Mother was coming for Christmas. It was 1970 and I was living in Bridgeport, Connecticut. My brother saw her first. In those days Mother still meant something to him. He had a young, warm loving heart. He was her son, then. Single. He was my brother too. As we expected Mother came through the crowd beaming and carrying a large suitcase and several bags. Her captivating smile, her generous hugs, her motherly greetings. She looked great. She filled the hall with her happiness. As soon as she arrived the airport looked empty. She took all the empty space, muffled the voices of the hurried feet carrying luggage. She was small, though. She even looked smaller in her long grey coat and 134 RAQUEL WRRES

black boots. Dressed for winter, faced for a summer of the heart. That was Mother's ftrst visit to the States while we were studying there. Another time, another life from the shadows of my memory. I stood up almost unwillingly. The heart knew what I was going to meet next. My eyes and arms were still uncertain. More materialistic, they took me through customs, along a short narrow corridor to the sloped hall that gave to the street. With the character­ istic Portuguese street noises penetrating my senses, I looked at the glass door full of people staring in hoping to guide their arriving relatives or friends to their cars. Mother wasn't there. I couldn't see her face anywhere. Hands waved frantically everywhere. Unfamil­ iar. My oldest aunt, her eldest sister, had told me she'd bring her to meet me. I knew she was there somewhere in the crowd. Mother, she didn't know where she was. Then I saw my tall aunt's hand gesticulating to my right and next to her the small ftgure of an unrec­ ognizable woman. Mother. Shadow of what she'd been, she wasn't waving at me. She walked slowly, with difficulty, hurried by her sister, holding her handbag between her two hands. She stopped to look in my direction. Our eyes met for a moment, wet and shiny. I knew she remembered. We knew who we were and that we wanted to smile at each other. I ran to that fragile ftgure and hugged her. She didn't hug me back but her eyes spoke to me. I read love and an immense sadness. Mother was walking along a tunnel alone. She was afraid. Afraid of traveling either way. We arrived at Bridgeport almost three hours later. I didn't know the interstate roads very well and the traffic sped by unforgiv­ ing. My brother chatted with Mom. She couldn't decide what to do fIrst, whether to answer us or look out the window at the unusual landscape: roadways, cars, skyscrapers. Lisbon, she confessed, not even Paris could compare to New York, she admitted in disbelief. That night we all stayed up late. Mom was all wound up and her happy mood caught up with us. She never stopped praising our small apartment she found specially cozy. When we finally went to bed we carried with us the news, the jokes and the messages from the family. We still had classes for two more days. Mom accompanied me around the campus and even attended one of my classes. She wanted to breathe the space we lived in, absorb the cold winter air THE GARDENS OF HADES 135

that created the white snow. Yes, she loved the snow. She'd stay for hours by the window watching the snow flakes fallon the large oak tree in front ofour apartment. She could watch the snow fall forever, she said admiringly. Other times she cooked or cleaned as if she'd come to take care ofus as when we were small. One evening we were invited to a friend's house for supper. In her half forgotten English she told the hosts how much she was enjoying the meal. To me she added smiling, even ifshe didn't know what she was eating. A few days later I drove her to see Seaside Park and the beach while my brother was working. I invited her to McDonald's for a hamburger. She found fast food to be the perfect solution for her pre­ dicament. Instead ofleaving work at twelve, going shopping and cook­ ing for my father and herself, which took away all her lunch time, she'd much rather go for a ready-made meal. I laughed. She insisted. All the running she could save. True. Yet Mom hadn't realized she would never be able to convince Father. Keeping himself busy, Father made sure all around him were equally busy. So, Mother was busy by inheritance. Ifwork didn't come from Father it would land on her lap as some unfinished task from our maid. More economical maids couldn't do much. Eventually Father convinced her they were too expensive and nosy too. On top of it, unreliable. At first Mother re­ acted unreceptively to the idea. She claimed that at thirteen I was too young to take care of my eight-year-old brother. No argument moved my father. No more maids. No more paid spies. From now on it was only us. Mother had to fmd the time to expand her schedule. After arriving from the office at six, she cooked, sewed, washed dishes and fell asleep betweeen mending clothes and watching tv. It was early, about seven in the morning, when my aunt drove across the streets of Lisbon on the way to my house. I sat in the back with an arm around my mother's shoulder. How could she look smaller than me! I could still feel her arms around me when I was operated on-tonsils. The doctor's assistant passed a metal bowl with ice into my hands, indifferent to my pain, and told my mother to sit with me in the waiting room to make sure I didn't throw up. The screams had died moments before. My tears too had dried when the metal clamp held my mouth open and the doctor introduced his large fingers with long scissors into my throat, cut and pulled out things. Blood and 136 RAQUEL TORRES

unshouted screams hung all around me. I fixed my eyes on a dirt spot on the ceiling to distract the pain. Mouth full of blood, nose dripping, and that piercing pain-fixing memory. I was five years old. Small, fragile, unsuspecting. Mother protested but it was faster to walk home. To forget. I was led to a taxi. I refused, afraid to feel sick. As steady as my legs could take me we walked about one mile back home. Never forgot the smell, the anger, the hugs. That Christmas "Fiddler on the Roof' was playing on Broad­ way so we took Mom to the Big Apple. She stopped in front of all shopwindows, stared at every tall building, at the snow piling slowly on the sidewalks. The musical caught all her attention. When the stage rotated to show the inside of the house she was awed with the sophistication of the motion. For a few days she doodled "If I were a rich man" to be able to describe the show to Father. Although we'd been together in winter, it wasn't the cold Mother remembered. When I saw her leave at the end of our school break my soul knotted. I missed her. I missed the carefree, generous, happy person she could be. I missed her smile and her hugs too. The car stopped in front of my door. I got out and took my luggage out of the trunk. My mother's nurse had rushed to the door to help us. She insisted on carrying my luggage. I took the rest. My aunt followed us bringing my mother with her. She sat on a sofa and made a sign to the nurse. Then she turned to me with a smile: "Let's go. Your uncle and I want to take you out for your birthday." I hesi­ tated. I wasn't in the mood. I didn't think I had anything to celebrate. I bent to my mother and kissed her. She was somewhere else at that moment. I decided to accept the invitation even if with a heavy heart. Not for my uncle's or aunt's sake. For my mother. For all the good moments we shared together. In another time, another place. The Haunted Window: A Nineteenth-Century American Story With An Azorean Twist

George Monteiro

"The Haunted Window" introduces the Azorean woman and her distinctive garb, the capote, to American fiction. First published in the Atlantic Monthly in 1867, this story is the work of Thomas Wentworth Higginson (1822-1911). Today Higginson remains best known as the poet Emily Dickinson's "Preceptor" (as she called him) as well as one of her first editors, although in his time he was famous for his support of liberal causes, including those of abolition and women's rights, as well as his literary criticism and polite essays on a myriad of subjects. Higginson was also the author of two books of fiction. Malbone: An Oldport Romance, a novel, appeared in 1869, succeeded by Oldport Days, a collection of stories, in 1873, among which ap­ peared "The Haunted Window." The Oldport of the subtitle of the novel, the title for the story collection, and the setting for "The Haunted Window" is, ofcourse, Newport, Rhode Island, undoubtedly the most famous of American seaside resorts in Higginson's day. Higginson himself spent several seasons in Newport as a member ofthe summer colony. Whether or not he knew of the existence ofAzoreans in New­ port or if he merely introduced them in a fanciful way into his tale for the sake of the mystery that would naturally surround the Azorean woman and her capote is not answerable. What is known is that Higginson was perfectly familiar with the Azoreans from the island of Fayal and with their forms of dress. For he had spent six months on 138 GEORGE MONTEIRO

that island in 1855-1856, having travelled to Payal in the company of his invalid wife, who was in search of health in the more salubrious climate of the . The Azorean characters introduced into "The Haunted Win­ dow" are minor figures who nevertheless enable the small Gothic mys­ teries of Higginson's plot. Readers of the Atlantic, and later of Oldport Days, would have recognized in "The Haunted Window" a minor off­ shoot of early nineteenth-century romances like those ofAnn Radcliffe, in which ultimately great and puzzling mysteries are explained away, even if, in Higginson's tale, the haunting figure in the window of the old house turns out to be less a matter of Germany than of the even more exotically situated isle of Payal.

The Haunted Window

Thomas Wentworth Higginson

It was always a mystery to me where Severance got precisely his combination of qualities. His father was simply what is called a handsome man, with stately figure and curly black hair, not without a certain dignity of manner, but with a face so shallow that it did not even seem to ripple, and with a voice so prosy that, when he spoke of the sky, you wished there were no such thing. His mother was a fair, little, pallid creature, - wash-blond, as they say of lace, patient, meek, and always fatigued and fatiguing. But Severance, as I first knew him, was the soul of activity. He had dark eyes, that had a great deal of light in them, without corresponding depth; his hair was dark, straight, and very soft; his mouth expressed sweetness, without much strength; he THE HAUNIED WINDOW: ANINElEENTH-CENTURY AMERICAN STORY 139 WITH ANAZOREAN1WIST

talked well; and though he was apt to have a wandering look, as if his thoughts were laying a submarine cable to another continent, yet the young girls were always glad to have the semblance of conversation with him in this. To me he was in the last degree lovable. He had just enough of that subtle quality called genius, perhaps, to spoil fIrst his companions, and then himself. His words had weight with you, though you might know yourself wiser; and if you went to give him the most reasonable advice, you were suddenly seized with a slight paralysis of the tongue. Thus it was, at any rate, with me. We were cemented there­ fore by the fIrmest ties, - a nominal seniority on my part, and a sub­ stantial supremacy on his. We lodged one summer at an old house in that odd suburb of Oldport called "The Point." Itis a sort ofArtists' Quarter of the town, frequented by a class of summer visitors more addicted to sailing and sketching than to driving and bowing, persons who do not object to simple fare, and can live, as one of them said, on potatoes and Point. Here Severance and I made our summer home, basking in the deli­ cious sunshine of the lovely bay. The bare outlines around Oldport sometimes dismay the stranger, but soon fascinate. Nowhere does one feel bareness so little, because there is no sharpness of perspective; everything shimmers in the moist atmosphere; the islands are all glam­ our and mirage; and the undulating hills ofthe horizon seem each like the soft, arched back of some pet animal, and you long to caress them with your hand. At last your thoughts begin to swim also, and pass into vague fancies, which you also love to caress. Severance and I were constantly afloat, body and mind. He was a perfect sailor, and had that dreaminess in his nature which matches with nothing but the ripple of the waves. Still, I could not hide from myself that he was a changed man since that voyage in search ofhealth from which he had just returned. His mother talked in her humdrum way about heart dis­ ease; and his father, taking up the strain, bored us about organic le­ sions, till we almost wished he had a lesion himself. Severance ridi­ culed all this; but he grew more and more moody, and his eyes seemed to be laying more submarine cables than ever. When we were not on the water, we both liked to mouse about the queer streets and quaint old houses of that region, and to chat with the fIshermen and their grandmothers. There was one house, how­ ever, which was very attractive to me, perhaps because nobody lived 140 GEORGE MONIEIRO

in it, and which, for that or some other reason, he never would ap­ proach. It was a great square building of rough gray stone, looking like those somber houses which every one remembers in Montreal, but which are rare in ''the States." It had been built many years before by some millionaire from New Orleans, and was left unfinished, nobody knew why, till the garden was a wilderness of bloom, and the windows of ivy. Oldport is the only place in New England where either ivy or traditions will grow; there were, to be sure, no legends about this house that one could hear of, for the ghosts in those parts were feeble-minded and retrospective by reason of age, and perhaps scorned a mansion where nobody had ever lived; but the ivy clustered round the project­ ing windows as densely as if it had the sins of a dozen generations to hide. The house stood just above what were commonly called (from their slaty color) the Blue Rocks; it seemed the topmost pebble left by some tide that had receded, which perhaps it was. Nurses and chil­ dren thronged daily to these rocks, during the visitors' season, and the fishermen found there a favorite lounging-place; but nobody scaled the wall of the house save myself, and I went there very often. The gate was sometimes opened by Paul, the silent Bavarian gardener, who was master of the keys; and there were also certain great cats that were always sunning themselves on the steps, and seemed to have grown old and gray in waiting for mice that had never come. They looked as if they knew the past and the future. Ifthe owl is the bird of Minerva, the cat should be her beast; they have the same sleepy air of unfathom­ able wisdom. There was such a quiet and potent spell about the place that one could almost fancy these constant animals to be the trans­ formed bodies of human visitors who had stayed too long. Who knew that tales might be told by these tall, slender birches, clustering so closely by the somber walls? birches which were but whispering shrubs when the first gray stones were laid, and which now reared above the eaves their white stems and dark boughs, still whispering and waiting till a few more years should show them, across the roof, the topmost blossoms of other birches on the other side. Before the great western doorway spread the outer harbor, whither the coasting vessels came to drop anchor at any approach of storm. These silent visitors, which arrived at dusk and went at dawn, and from which no boat landed, seemed fitting guests before the por­ THE HAUN1ED WINDOW: ANINE1EENTH-CENTURYAMERICAN STORY 141 WITH AN AZOREANTWIST tals of the silent house. I was never tired of watching them from the piazza; but Severance always stayed outside the wall. It was a whim of his, he said; and once only I got out of him something about the resemblance ofthe house to some Portuguese mansion, - at Madeira, perhaps, or at Rio de Janeiro, but he did not say, - with which he had no pleasant associations. Yet he afterwards seemed to wish to deny this remark, or to confuse my impressions ofit, which naturally fixed it the better in my mind. I remember well the morning when he was at last coaxed into approaching the house. It was late in September, and a day ofperfect calm. As we looked from the broad piazza, there was a glassy smooth­ ness over all the bay, and the hills were coated with a film, or rather a mere varnish, inconceivably thin, ofhaze more delicate than any other climate in America can show. Over the water there were white gulls flying, lazy and low; schools ofyoung mackerel displayed their white sides above the surface; and it seemed as ifeven a butterfly might be seen for miles over that calm expanse. The bay was covered with mackerel-boats, and one man sculled indolently across the foreground a scarlet skiff. It was so still that every white sail-boat rested where its sail was ftrst spread; and though the tide was at half-ebb, the an­ chored boats swung idly different ways from their moorings. Yet there was a continuous ripple in the broad sail of some almost motionless schooner, and there was a constant melodious splash along the shore. From the mouth of the bay came up slowly the premonitory line of bluer water, and we knew that a breeze was near. Severance seemed to rise in spirits as we approached the house, and I noticed no sign of shrinking, except an occasional lowering of the voice. Seeing this, I ventured to joke him a little on his previous reluctance, and he replied in the same strain. I seated myself at the comer, and began sketching old Fort Louis, while he strolled along the piazza, looking in at the large, vacant windows. As he approached the farther end, I suddenly heard him give a little cry ofamazement or dismay, and, looking up, saw him leaning against the wall, with pale face and hands clenched. A minute sometimes appears a long while; and though I sprang to him instantly, yet I remember that it seemed as if, during that in­ stant, the whole face of things had changed. The breeze had come, the bay was rippled, the sail-boats careened to the wind, fishes and 142 GEORGE MONlF.JRO

birds were gone, and a dark gray cloud had come between us and the sun. Such sudden changes are not, however, uncommon after an inter­ val of calm; and my only conscious thought at the time was a wonder at the strange aspect of my companion. "What was that?" asked Severance in a bewildered tone. I looked about me, equally puzzled. "Not there," he said. "In the window." I looked in at the window, saw nothing, and said so. There was the great empty drawing-room, across which one could see the opposite window, and through this the eastern piazza and the garden beyond. Nothing more was there. With some persuasion, Severance was induced to look in. He admitted that he saw nothing peculiar; but he refused all explanation, and we went home. "Never let me go to that house again," he said abruptly, as we entered our own door. I pointed out to him the absurdity of thus yielding to a ner­ vous delusion, which was already in part conquered, and he finally promised to revisit the scene with me the next day. To clear all pos­ sible misgivings from my own mind, I got the key of the house from Paul, explored it thoroughly, and was satisfied that no improper visi­ tor had recently entered the drawing-room at least, as the windows were strongly bolted on the inside, and a large cobweb, heavy with dust, hung across the doorway. This did no great credit to Paul's stew­ ardship, but was, perhaps, a slight relief to me. Nor could I see a trace of anything uncanny outside the house. When Severance went with me, next day, the coast was equally clear, and I was glad to have cured him so easily. Unfortunately, it did not last. A few days after, there was a brilliant sunset, after a storm, with gorgeous yellow light slanting ev­ erywhere, and the sun looking at us between bars ofdark purple cloud, edged with gold where they touched the pale blue sky; all this fading at last into a great whirl of gray to the northward, with a cold purple ground. At the height of the show, I climbed the wall to my favorite piazza, and was surprised to find Severance already there. He sat facing the sunset, but with his head sunk between his hands. At my approach, he looked up, and rose to his feet. "Do not deceive me any more," he said, almost savagely, and pointed to the window. 1HEHAUNTED WINDOW: A NINETEENTH-CENTURYAMERICAN 143 STORY WITH AN AZOREANTWIST

I looked in, and must confess that, for a moment, I too was startled. There was a perceptible moment of time during which it seemed as if no possible philosophy could explain what appeared in sight. Not that any object showed itself within the great drawing-room, but I distincly saw - across the apartment, and through the opposite window - the dark figure of a man about my own size, who leaned against the long window, and gazed intently on me. Above him spread the yellow sunset light, around him the birch-boughs hung and the . ivy-tendrils swayed, while behind him there appeared a glimmering water-surface, across which slowly drifted the tall masts of a schoo­ ner. It looked strangely like a view I had seen of some foreign harbor, Amalfi, perhaps, - with a vine-clad balcony and a single human figure in the foreground. So real and startling was the sight that at first it was not easy to resolve the whole scene into its component parts. Yet it was simply such a confused mixture of real and reflected im­ ages as one often sees from the window of a railway carriage, where the mirrored interior seems to glide beside the train, with the natural landscape for a background. In this case, also, the frame and foliage of the picture were real, and all else was reflected; the sunlit bay be­ hind us was reproduced as in a camera, and the dark figure was but the full-length image of myself. It was easy to explain all this to Severance, but he shook his head. "So cool a philosopher as yourself," he said, "should remember that this image is not always visible. At our last visit, we looked for it in vain. When we first saw it, it appeared and disappeared within ten minutes. On your mechanical theory it should be otherwise." This staggered me for a moment. Then the ready solution oc­ curred, that the reflection depended on the strength and direction of the light; and I proved to him that, in our case, it had appeared and disappeared with the sunshine. He was silenced, but evidenly not con­ vinced; yet time and common-sense, it seemed, would take care of that. Soon after all this, I was called out of town for a week or two. If Severance would go with me, it would doubtless complete the cure, I thought; but this he obstinately declined. After my departure, my sister wrote, he seemed absolutely to haunt the empty house by the Blue Rocks. He undoubtedly went here to sketch, she thought. The house was in the charge of a real-estate agent, - a retired landscape­ 144 GEORGE MON1ElRO

painter, whose pictures did not sell so profitably as their originals; and her theory was, that this agent hoped to make our friend buy the place, and so allured him there under pretence of sketching. More­ over, she surmised, he was studying some effect of shadow, because unlike most men, he appeared in decent spirits only on cloudy days. It is always so easy to fit a man out with a set of ready-made motives! but I drew my own conclusions, and was not surprised to hear, soon after, that Severance was seriously ilL This brought me back at once, - sailing down from Provi­ dence in an open boat, I remember, one lovely moonlight night. Next day I saw Severance, who declared that he had suffered from nothing worse than a prolonged sick-headache. I soon got of out him all that had happened. He had seen the figure in the window every sunny day, he said. Of course he had, if he chose to look for it, and I could only smile, though it perhaps seemed unkind. But I stopped smiling when he went on to tell that, not satisfied with these observations, he had visited the house by moonlight also, and had then seen as he averred, a second figure standing beside the first. Of course, there was no defence against such a theory as this, except simply to laugh it down; but it made me very anxious, for it showed that he was growing thoroughly morbid. "Either it was pure fancy," I said, "or it was Paul the gardener." But here he was prepared for me. It seemed that, on seeing the two figures, Severance had at once left the piazza, and, with an instinct of common-sense that was surprising, had crossed the gar­ den, scaled the wall, and looked in at the window of Paul's little cot­ tage, where the man and his wife were quietly seated at supper, prob­ ably after a late fishing-trip. ''There was another reason," he said; but here he stopped, and would give no description of the second figure, which he had, however, seen twice again, always by moonlight. He consented to let me accompany him the following night. We accordingly went. It was a calm, clear night, and the moon lay brightly on the bay. The distant shores looked low and filmy; a naval vessel was in the harbor, and there was a ball on board, with music and fire-works; some fishermen were singing in their boats, late as was the hour. Severance was absorbed in his own gloomy rev­ eries; and when we had crossed the wall, the world seemed left out­ side, and the glamour of the place began to creep over me also. I TIlE HAUNTED WINDOW: ANINETEENTH-CENTURY AMERICAN 145 SlDRYWITHAN AZOREANTWIST

seemed to see my companion relapsing into some phantom realm, beyond power of withdrawal. I talked, sang, whistled; but it was all a rather hollow effort, and soon ceased. The great house looked gloomy and impenetrable, the moonlight appeared sick and sad, the birch-boughs rustled in a dreary way. We went up the steps in no jubilant mood. I crossed the piazza at once, looked in at the farthest win­ dow, and saw there my own image, though far more faintly than in the sunlight. Severance then joined me, and his reflected shape stood by mine. Something of the fIrst ghostly impression was renewed, I must confess, by this meeting of the two shadows; there was some­ thing rather awful in the way the bodiless things nodded and ges­ ticulated at each other in silence. Still, there was nothing more than this, as Severance was compelled to own; and I was trying to turn the whole affair into ridicule, when suddenly, without sound or warn­ ing, I saw - as distinctly as I perceive the words I now write - yet another fIgure stand at the window, gaze steadfastly at us for a mo­ ment, and then disappear. It was as I fancied, that of a woman, but was totally enveloped in a very full cloak, reaching to the ground, with a peculiarly cut hood, that stood erect and seemed half as long as the body of the garment. I had a vague recollection ofhaving seen some such costume in a picture. Of course, I dashed round the corner of the house, threaded the birch-trees, and stood on the eastern piazza. No one was there. Without losing an instant, I ran to the garden wall and climbed it, as Severance had done, to look into Paul's cottage. That worthy man was just getting into bed, in a state of complicated dishabille, his black-bearded head wrapped in an old scarlet handkerchief that made him look like a retired pirate in reduced circumstances. He being accounted for, I vainly traversed the shrubberies, returned to the western piazza, watched awhile uselessly, and went home with Sev­ erance, a good deal puzzled. By daylight the whole thing seemed different. That I had seen the fIgure there was no doubt. It was not a reflected image, for we had no companion. It was, then, human. After all, thought I, it is a commonplace thing enough, this masquerading in a cloak and hood. Someone has observed Severance's nocturnal visits, and is amusing himself at his expense. The peculiarity was, that the thing was so 146 GEORGE MONIEIRO

well done, and the figure had such an air of dignity, that somehow it was not so easy to make light of it in talking with him. I went into his room, next day. His sick-headache, or what­ ever it was, had come on again, and he was lying on his bed. Rutherford's strange old book on the Second Sight lay open before him. "Look there," he said; and I read the motto of a chapter: ­ "In sunlight one, In shadow none, In moonlight two, In thunder two, Then comes Death." I threw the book indignantly from me, and began to invent doggerel, parodying this precious incantation. But Severance did not seem to enjoy the joke, and it grows tiresome to enact one's own farce and do one's own applauding. For several days after he was laid up in earnest; but instead of getting any mental rest from this, he lay pouring over that prepos­ terous book, and it really seemed as if his brain were a little dis­ turbed. Meanwhile I watched the great house, day and night, sought for footsteps, and, by some odd fancy, took frequent observations of the gardener and his wife. Failing to get any clue, I waited one day for Paul's absence, and made a call upon the wife, under pretence of hunting up a missing handkerchief, - for she had been my laundress. I found the handsome, swarthy creature, with her six bronzed chil­ dren around her, training up the Madeira vine that made a bower of the whole side of her little, black, gambrel-roofed cottage. On learn­ ing my errand, she became full of sympathy, and was soon emptying her bureau-drawers in pursuit ofthe lost handkerchief. As she opened the lowest drawer, I saw within it something which sent all the blood to my face for a moment. It was a black cloth cloak, with a stiff hood two feet long, of precisely the pattern worn by the unaccountable visitor at the window. I turned almost fiercely upon her; but she looked so innocent as she stood there, caressing and dusting with her fingers what evidently was a pet garment, that it was really impossible to denounce her. "Is that a Bavarian cloak?" said I, trying to be cool and judi­ cial. Here broke in the eldest boy, named John, aged ten, a native THE HAUN1ED WINDOW: A NINETEEN1H-CENTURYAMERICAN 147 STORYWITH AN AZOREANTWJST

American, and a sailor already, whom I had twice fished up from a capsized punt. "Mother ain't a Bavarian," quoth the young salt. "Father's a Bavarian; mother's a Portegee. Portegees wear them hoods." "I am a Portuguese, sir, from Fayal," said the woman, pro­ longing with sweet intonation the soft name ofher birthplace. "This is my capote," she added, taking up with pride the uncouth costume, while the children gathered round, as if its vast folds came rarely into sight. "It has not been unfolded for a year," she said. As she spoke, she dropped it with a cry, and a little mouse sprang from the skirts, and whisked away into some corner. We found that the little animal had made its abode in the heavy woollen, ofwhich three or four thick­ nesses had been eaten through, and then matted together into the soft­ est of nests. This contained, moreover, a small family of mouselets, who certainly had not taken part in any midnight masquerade. The secret seemed more remote than ever, for I knew that there was no other Portuguese family in the town, and there was no confounding this peculiar local costume with any other. Returning to Severance's chamber, I said nothing of all this. He was, by an old coincidence, looking over a portfolio of Fayal Sketches made by himself during his late voyage. Among them were a dozen studies of just such capotes as I had seen, - some in profile, completely screening the wearer, others disclosing women's faces, old or young. He seemed to wish to put them away, however, when I came in. Really, the plot seemed to thicken; and it was a little provok­ ing to understand it no better, when all the materials seemed close to one's hands. A day or two later, I was summoned to Boston. Returning thence by the stage-coach, we drove from Tiverton, the whole length ofthe island, under one ofthose wild and wonderful skies which give, better than anything in nature, the effect of a field ofbattle. The heav­ ens were filled with ten thousand separate masses ofcloud, varying in shade from palest gray to iron-black, borne rapidly to and fro by up­ per and lower currents of opposing wind. They seemed to be charg­ ing, retreating, breaking, recombining, with puffs of what seemed smoke, and a few wan sunbeams sometimes striking through for fire. Wherever the eye turned, there appeared some flying fragment not 148 GEORGE MONTEIRO

seen before; and yet in an hour this noiseless Antietam grew still, and a settled leaden film overspread the sky, yielding only to some level lines of light where the sun went down. Perhaps our driver was look­ ing toward the sky more than to his own affairs, for, just as all this ended a wheel gave out, and we had to stop in Portsmouth for repairs. By the time we were again in motion, the changing wind had brought up a final thunderstorm, which broke upon us ere we reached our homes. It was rather an uncomlnon thing, so late in the season; for the lightning, like other brilliant visitors, usually appears in Oldport dur­ ing only a month or two of every year. The coach set me down at my own door, so soaked that I might have floated in. I peeped into Severance's room, however, on the way to my own. Strange to say, no one was there; yet some one had evi­ dently been lying on the bed, and on the pillow lay the old book on the Second Sight, open at the very page which had so bewitched him and vexed me. I glanced at it mechanically, and when I came to the mean­ ingless jumble, "In thunder two," a flash flooded the chamber, and a sudden fear struck into my mind. Who knew what insane experiment might have come into that boy's head? With sudden impulse, I went downstairs, and found the whole house empty, until a stupid old woman, coming in from the wood­ house with her apron full of turnips, told me that Severance had been missing since nightfall, after being for a week in bed, dangerously ill, and sometimes slightly delirious. The family had become alarmed and were out with lanterns, in search of him. It was safe to say that none of them had more reason to be alarmed than I. It was something, however, to know where to seek him. Meeting two neighboring fishermen, I took them with me. As we approached the well-known wall, the blast blew out our lights, and we could scarcely speak. The lightning had grown less frequent, yet sheets of flame seemed occasionally to break over the dark, square sides of the house, and to send a flickering flame along the ridge-pole and eaves, like a surf of light. A surf of water broke also behind us on the Blue Rocks, sounding as if it pursued our very footsteps; and one of the men whispered hoarsely to me, that a Nantucket brig had parted her cable, and was drifting in shore. As we entered the garden, lights gleamed in the shrubbery. To my surprise, it was Paul and his wife, with their two oldest children, 1HE HAUNTED WINDOW: ANINETEEN1H-CENTURYAMERICAN 149 STORYWITHANAZOREAN'IWIST these last being quite delighted with the stir, and showing so much illumination, in the lee of the house, that it was quite a Feast of Lan­ terns. They seemed a little surprised at meeting us, too; but we might as well have talked from Point Judith to Beaver Tail as to have at­ tempted conversation there. I walked around the building; but a flash of lightning showed nothing on the western piazza save a birch-tree, which lay across, blown down by the storm. I therefore went inside, with Paul's household, leaving the fishermen without. Never shall I forget that search. As we went from empty room to room, the thunder seemed rolling on the very roof, and the sharp flashes of lightning appeared to put out our lamps and then kindle them again. We traversed the upper regions, mounting by a ladder to the attic; then descended into the cellar and the wine-vault. The thor­ ough bareness ofthe house, the fact that no bright-eyed mice peeped at us from their holes, no uncouth insects glided on the walls, no flies buzzed in the unwonted lamplight, scarcely a spider slid down his damp and trailing web, - all this seemed to enhance the mystery The vacancy was more dreary than desertion: it was something old which had never been young. We found ourselves speaking in whispers; the children kept close to their parents; we seemed to be chasing some awful Silence from room to room; and the last apartment, the great drawing-room, we really seemed loath to enter. The less the rest of the house had to show, the more, it seemed, must be concentrated there. Even as we entered, a blast of air from a broken pane extin­ guished our last light, and it seemed to take many minutes to rekindle it. As it shone one more, a brilliant lightning-flash also swept through the window, and flickered and flickered, as if it would never have done. The eldest child suddently screamed, and pointed with her finger, first to one great window and then to its opposite. My eyes instinctively followed the successive directions; and the double glance gave me all that I came to seek, and more than all. Outside the western window lay Severance, his white face against the pane, his eyes gazing across and past us, - struck down doubtless by the fallen tree, which lay across the piazza, and hid him from external view. Opposite him, and seen through the eastern window, stood, statue-like, the hooded figure, but with the great capote thrown back, showing a sad, eager, girlish face, with dark eyes, and a good deal of 150 GEORGE MONTEIRO

black hair, - one of those faces of peasant beauty such as America never shows, - faces where ignorance is almost raised into refine­ ment by its childlike look. Contrasted with Severance's wild gaze, the countenance wore an expression of pitying forgiveness, almost of calm; yet it told of wasting sorrow and the wreck of a life. Gleaming lustrous beneath the lightning, it had a more mystic look when the long flash had ceased, and the single lantern burned beneath it, like an altar-lamp before a shrine. "Itis Aunt Emilia," exclaimed the little girl; and as she spoke, the father, turning angrily upon her, dashed the light to the ground, and groped his way out without a word of answer. I was too much alarmed about Severance to care for aught else, and quickly made my way to the western piazza, where I found him stunned by the fallen tree, -injured, I feared, internally, - still conscious, but unable to speak. With the aid of my two companions I got him home, and he was ill for several weeks before he died. During his illness he told me all he had to tell; and though Paul and his family disappeared next day, - perhaps going on board the Nantucket brig, which had nar­ rowly escaped shipwreck, I afterwards learned all the remaining facts from the only neighbor in whom they had placed confidence. Severance, while convalescing at a country-house in Fayal, had fallen passionately in love with a young peasant-girl, who had broken off her intended marriage for love of him, and had sunk into a half-imbe­ cile melancholy when deserted. She had afterwards come to this coun­ try, and joined her sister, Paul's wife. Paul had received her reluc­ tantly, and only on condition that her existence should be concealed. This was the easier, as it was one of her whims to go out only by night, when she had haunted the great house, which, she said, re­ minded her of her own island, so that she liked to wear thither the capote which had been the pride of her heart at home. On the few occasions when she had caught a glimpse ofSeverance, he had seemed to her, no doubt, as much a phantom as she seemed to him. On the night of the storm, they had both sought their favorite haunt, uncon­ scious of each other, and the friends of each had followed in alarm. I got traces of the family afterwards at Nantucket, and later at Narragansett, and had reason to think that Paul was employed, one summer, by a farmer on Conanicut; but I was always just too late for them; and the money which Severance left, as his only reparation for THE HAUNTED WINDOW: ANINBTEENTH-CENTURY AMERICAN 151 STORYWlTH AN AZOREAN TWIST poor Emilia, never was paid. The affair was hushed up, and very few, even among the neighbors, knew the tragedy that had passed by them with the storm. After Severance died, I had that temporary feeling of weak­ ened life which remains after the first friend or the first love passes, and the heart seems to lose its sense of infinity. His father came, and prosed, and measured the windows of the empty house, and calculated angles of reflection, and poured even death and despair into his cru­ cible of commonplace; the mother whined in her feebler way at home; while the only brother, a talkative medical student, tried to pooh-pooh it all, and sent me a letter demonstrating that Emilia was never in America, and that the whole was an hallucination. I cared nothing for his theory; it all seemed like a dream to me, and, as all the actors but myself are gone, it seems so still. The great house is yet unoccupied, and likely to remain so; and he who looks through its western window may still be startled by the weird image ofhimself. As I lingered round it, today, beneath the winter sunlight, the snow drifted pitilessly past its ivied window, and so hushed my footsteps that I scarce knew which was the phantom, myself or my reflection, and wondered if the medi­ cal student would not argue me out of existence next. This is the end of my story. IfI sought for a moral, it would be hard to attach one to a thing so slight. It could only be this, that shadow and substance are always ready to link themselves, in unexpected ways, against the diseased imagination; and that remorse can make the most transparent crystal into a mirror for its sin. RECENSOES CRlTICASIREVIEWS

Olga Gon~alves, Contar de Subversao. Lisboa: Editorial Caminho, 1990.

Here in the United States this spring of 1991 the work that is draw­ ing the attention offIlmgoers and readers alike is called Dances with Wolves. This is a story of the often-told clash between the American Indian and the white man. What makes this version so different is the fact that itis told from the point of view of the Indian, in his own words, often in his own language. The Indian is seen not "in translation," but as himself (to the extent that such is possible, of course, in a work of art and in a work of art created by a white man). The effect is one of humanizing him, of making him accessible to us as another person, not simply as an other. Essentially, that is what Olga Gonc,;alves has been doing with cer­ tain elements of Portuguese society over the last two decades or so. Taking people on the edge of society, making them the protagonists of her novels and fashioning them in their own language(s), she has validated their exist­ ence as human beings. She did this with the emigrating members of the European workforce in Floresta em Bremerhaven (1975) and Este Venio 0 Emigrante Iil-Bas (1978), with a criminally-inclined retomado in Rudolfo (1985), with a prostitute in Armandina e Luciano, 0 Traficante de Canarios (1988) and with an only slightly less marginal adolescent middle-class rebel in Mandei-lhe uma Boca (1977). Structurally, the originality of these works lies in their configuration as dialogues between these figures and a represen­ tative of the social mainstream, more often than not, a writer. At times, the author provides both sides of the dialogue; often and more originally, she records only the "other" side. Gon9alves' new book, Contar de Subversiio, is both different and similar. As always, the book reveals the author's fine powers of observation - psychological, visual, aural- and her mastery of the art ofstorytelling. Her preferred, though not exclusive, narrative mode is that of the oral storyteller 153

and that choice in tum detennines such features as loose narrative structure and the appropriation of spoken language to the medium of the written text. But there are differences, as well, as we shall see, one of them being the fact that the greater part of the work concerns the middle and upper-middle classes rather than the marginal figures she depicted in earlier works. It might be argued, though, that in their own ways, these "mainstream" figures are equally as marginal as their predecessors. In form, also, this book is a departure from the earlier work. The reader of this new book embarks on his encounter with the text conditioned by two signs. These are respectively a tantalizing and ambiguous title and an explicit genre marker that serves as the book's subtitle: Contar de Subversfio­ Romance. A novel about subversion? A novel subversively told? Subver­ sion continues to reign, first in the dictionary definition ofthe verb "subverter" that serves as epigraph, then in the book's initial italicized pages (a typo­ graphical ploy, this time, to catch the attention of the reader). Still under the illusion that he is about to read a novel, what he fmds is a challenge:

Eles perguntam: 0 que e? E eu respondo: Ea hist6ria de urn olhar. Eles perguntam: Sendo esse olhar 0 her6i: E eu respondo: Nao. Ele pr6prio busca 0 her6i, the deseja 0 contacto, 0 exige no quadro. Resito, mas adianto: E ao leitor cabera estabelecer conexoes e achar a trama da aventura romanesca em que existe a Subversao.

The metafictional discussion continues. Responding (perhaps) to the line of contemporary theory that questions the nature of texts, the very existence oftexts, the author challenges traditional fictional form and engages the reader unremittingly with her creation. The "novel," it turns out, is in reality a collection of short stores and the first subversion, a subversion of genre. The stories themselves, all twelve of them, deal with subversion in one way or another (and for that reason, perhaps, the whole can be construed as a novel with subversion as its protagonist). "Rupturas," the lead story, has as its protagonist a man who has returned to the solitude ofhis ancestral coun­ try estate, in open rebellion against his "privileged" life as an executive in his family's firm, to reclaim his lost humanity. The author juxtaposes the rem­ nants of his former life the mindless wife and adult children, the precious pedigreed dog, the pet turtle with the wealth of experiences in the new one - nature's ever-changing and revitalizing offerings, rugged hunting dogs, a 154

compatible neighbor, herself a refugee from the urban scene. Setting the absurd against the sublime, Gon<;alves exposes the vapidity of that former existence. The second story, "Dinner Party," contains many ofthe same ele­ ments vacuous middle-class life, significant and signifying domestic ani­ mals, etc. - but uses them to different artistic effect. The narrator, obvi­ ously an outsider, describes the scene in full detail - the valuable furnish­ ings, the elaborate and pretentious table setting, the refmed food and con­ versation, the unconventional ending of the party - to underscore the same absence of meaningful humanity. The place is not Portugal this time but an American South seemingly frozen in its elegant and ritualistic superficial­ ity. Different from the environment familiar to the narrator and yet similar, she seems to suggest as she repeats:

Tentar viver aquilo como nao sendo a nossa vida.

Como nao sendo a nossa vida.

The author continues to challenge conventional expectations and values. In"Our House," the "our," much to the consternation of the woman who accepts an invitation to visit, turns out to be a man and his male lover rather than a potential man and wife, and her own relationship with that man, something far different from what she had imagined. In "Clochard," the reader is given a critical tour of the Lisbon street scene; the "guide" in this story, so reminiscent of Cervantes's "Coloquio de los perros," a dog. For this reader, among the most absorbing stories are those that deal with women's subversive survival strategies. Insome cases, the women involved are clearly marginal. "Catarina amo-te" is a two-part story of a man's fascination with a mysterious recluse who simultaneously attracts and resists him. In "Renate," it is a revelation of the inner and outer voices of this mentally unstable woman as she attempts to communicate with an­ other, ostensibly sane, one. The more compelling ones (for this reader) are the stories of women who function competently within the establishment while all the while carrying on their own form of subversion. The relevant stories here are "Mozart," "Con-dol@ncias," and "Musingue." The latter is of interest for another reason as well, the depiction of a retomado in all his cultural and linguistic complexity. All in all, it can be said that Contos de Subversiio rewards the devotee of Olga Gon<;alves's fiction. In their limited scope, these little gems give ample samplings of what readers have come to admire in her work: her understanding of the human spectacle, her remarkable ear, her 155

humane and poetic vision, all of which make her an exceptional interpreter of life on a stage ofever expanding dimensions, Portugal, Angola, England, the United States the settings of her own life's experience.

Alice R. Clemente

Mario Neves, Jose Rodrigues Migueis: Vida e Obra. Lisboa: Editorial Caminho, 1990, pp. 248+22.

"Dir-se-ia que perdeu a Ungua materna, e ainda niio descobriu a madrasta. Olha-me com espanto: sera posslvel que eu, um senhor, va tambem para a Amereca?"

Jose Rodrigues Migueis, Gente da Terceira Classe.

Perpetuamente entre Nova Iorque e Lisboa, a vida de Migueis parece ter sido de irresoluveis angustias nacionais e intelectuais, uma vida cuja firmeza primeira, indispensavel, tera sido a da sua familia e a irreprfmivel vontade de criar uma obra literana de primeira classe e digna do tempo e da modernidade que foi 0 seu destino. Estabilidade e instabilidade, afastamento e aproximacrao, eis uma vida que, creio, simboliza e por vezes nos comunica eloquentemente 0 que e ser-se portugues a distilncia, a dor e 0 triunfo das andancras sem fim a que se tern sujeitado boa parte da humanidade durante todo este nosso seculo. Emigrante, expatriado ou exilado, tudo isso talvez, no seu particularfssimo caso, 0 facto e que a sua vida, em perpetua e criativa ebulicrao, tomou possivel e acreditavel uma obra de pulsacr6es enraizadas quer no solo patrio quer nas suas imediacr6es americanas, de universalidade autentica, froto natural de quem 156

conviveu quotidianamente com as mais variadas na90es. Desde a experi(~ncia imigrante nos Estados Unidos as mem6rias da condenada burguesia lisboeta, asensualidade de uma outra Europa, Jose Rodrigues Migueis ergue-se como implacavel desmistificador de mundos inaurenticos e como poeta de amenas nostalgias de beleza e bon dade. Tudo isto como introdu9lio a urn comentiirio sobre Jose Rodrigues Migueis: Vida e Obra, de Mano Neves, amigo do autor que 0 acompanhou nas suas 'andan9as, des de os tempos euf6ricos de Lisboa ate asua morte no ano de 1979 em Nova Iorque. De entre as suas multiplas originalidades esteve a oP9ao de emigrar para a America a meados da dec ada de 30, ap6s ter pass ado por Bruxelas como bolseiro do Govemo, onde completou urna segunda licenciatura desta vez em Ciencias Pedagogicas. Antes e durante os anos das gran des decisoes havia sido-e por muito tempo continuaria a ser-destacado Seareiro, juntamente com, entre outros, Antonio Sergio, Castelo Branco Chaves e Jaime Cortesao. "Vanas circunstancias [escreve Mano Neves no ultimo capitulo, onde fala na grande obsessao de Migueis, que era voltar a viver em Portu­ gal, apesar de ter falhado vanas tentativas de reintegra9ao no seu pais de origem] favoreceram a adapta9ao a vida americana, em que procurou integrar-se, embora nunca deixasse de sofrer a nostalgia da Patria e de alimentar 0 permanente desejo de voltar. Desgostado, por urn lado, do clima politico que ensombrou 0 Pais e tanto 0 afectou pessoalmente, chegando a ver interdito 0 seu nome de aparecer em publico, frustrado pela falta de condi90es propfcias para qualquer trabalho que agradasse, e, por outro, atrafdo pelo apelo de uma mulher que the anunciava ambiente mais convidativo, com perspectivas de liberdade e de amplas possibilidades para o exercfcio da sua actividade criativa, Nova Iorque constituia refUgio ideal para 0 expatriado." Migueis foi, efectivamente, urn imigrante portugues diferente de quantos com ele partilharam urn tempo de exflio e de (re)enraizamento (lembro-me a proposito que se naturalizou cidadao do seu pais adoptivo) nos Estados Unidos. E certo que urn dos seus mais destacados contemporiineos novo-mundistas foi Jorge de Sena, mas 0 autor de Saudades para Dona Genciana insistiu na condi9lio verdadeiramente rara de ser urn escritor portugues a tempo inteiro, vivendo numa das mais exuberantes cidades do mundo e evocando Lisboa, uma das (entao) mais pacatas. N unca aceitou convites para fazer conferencias em universidades americanas, 0 nicho natural da maior parte dos intelectuais portugueses na dilispora de hoje, Durante mais de dez anos foi redactor da sec9ao portuguesa da Readers Digest e colaborou na Time e na Life, Como apoio inabalavel, constante e afectivo, teve a sua mulher, Camila Pitta Campanella, tambem lisboeta, que 157

havia emigrado para a America aos 10 anos de idade, e que viria a conhecer Migueis numa visita asua cidade natal no periodo em que ele se desligava de um primeiro casamento falhado. Nesse vaivem interminavel do lisboeta tornado imigrante, Migueis foi desde logo atrafdo pela ac~ao nas ruas de Nova Iorque, onde se envolveu nas lutas anti-franquistas e na consciencializa~ao geral de outros, inclusive os seus compatriotas residentes naquela cidade americana e ate noutras comunidades da Nova Inglaterra. Colaborador dos mais prestigiados jornais e revistas intelectuais de Lisboa (durante toda a sua vida), nao rejeitou nunca oferecer os seus trabalhos aimprensa imigrante, particularmente ao extinto Didrio de Notfcias de New Bedford. Embora se tenha "cans ado" a certa altura da mesquinhez comunitaria daquelas bandas (0 que acontece a muitos, diga-se de passagem), a sua atitude foi sempre de respeito e camaradagem. Nao foi por acaso que em 1981 Onesimo Teotonio Almeida e os seus colegas organizaram na Brown University um grande simposio internacional sobre a sua obra, e George Monteiro, tamoom professor de literatura americana na mesma institui~ao, tem traduzido alguns dos seus livros. Acrescente-se ainda que se encarregaram ambos de levar 0 seu espolio literario para aquela U ni versidade. "De novo levado pela paixao polftica [diria Migueis a Carolina Matos numa entrevista publicada na revista Gdvea-BrownJ e 0 meu amor a Portugal e aDemocracia, cometi 0 erro de me devotar demasiado aos problemas dos imigrantes e de me apaixonar pela gente portuguesa, nao so de Massachu­ setts, Rhode Island, mas de New York e New Jersey. Quanto aGuerra Civil de Espanha, a minha tomada de posi~ao comprometeu-me e agravou a minha situa~ao em rela~ao a Portugal. Fui informado de que se la voltasse, seria preso apos por os pes no cais. Fora oficialmente acusado de lesar a Pdtria." Os ultimos anos de vida foram dedicados quase exclusivamente a sua obra, enquanto se via a brar;;os com vmas doenr;;as. Ja em tempos graves crises de saude 0 tinham levado abeira da morte e lhe haviam inspirado Um Homem Sorri aMorte-ComMeia Cam, que seria posteriormente traduzido pelo Professor Monteiro e publicado por uma editora americana, com 0 titulo deA Man Smiles at Death - With Halfa Face. Mas como creio poderinferir­ se da citar;;ao que usei como epigrafe, numa leitura devidamente desconstrufda e atendendo a sua ambiguidade de afastamento/aproximar;;ao, Gente da Terceim Classe sera, acima de tudo, uma manifestar;;ao de como 0 autor, logo na sua primeira e definitiva travessia atHintica em 1935, nunc a mais deixaria de se sentir parte da sua gente da diiispora sem nunca cortar os lar;;os (pelo contrmo, intensificou-os) com a terra patria. "Da nossa vida [escreveu ele em carta ao amigo Mmo Neves, datada de 1937, agora reproduzida em Jose Rodrigues Migueis: Vida e Ohm] 0 cos­ tume: trabalho, lutas, canseiras, assembleias, comissoes, 0 inferno". Nova 158

lorque, pois, ou a vida americana num dia normal. S6 que um hornem com a determinalf500 e disciplina de Migueis, com a vis500 alargada e livre de preconceitos, encontra precisamente ai 0 solo da sua fertilidade criativa. Desde a Escola do Para(so a 0 Milagre Segundo Salome, com tantos outros livros pelo meio, desse "inferno" nos veio 0 que Jose Gomes Ferreira classificou de "dezenas e dezenas de paginas inesqueciveis." Vamberto Freitas

Joao Teixeira de Medeiros, Ilha em Terra. Ponta Delgada: Eurosigno Publica~5es, 1992, 199 pp.

Recordo-me, M uns anos atras, da efusiva sensalfao que me despertou a leitura de um livro de poesia vindo dos Estados Unidos com 0 titulo Do Tempo e de Mim e da autoria de Jo5oO Teixeira de Medeiros.l 0 autor, desconhecido-septuagemirio na altura, nascido em 1901-era americano de nascimento e tinha ascendencia portuguesa. A surpresa nao se prendia apenas ao facto de se tratar dum primeiro livro saido em crepuscu­ lar e venerando horizonte etmo, mas recaia tambem no fulgor da sua inequivoca qualidade. 0 alvorOl(o nao ficava por ai, contudo. Com 0 progredir da leitura nao foi diffcil concluir que se tratava dum achado litermo, a merecer indiscutivel, legitima atenlfao da crftica. Quem era este americano que, escondido no Tempo, escrevia com garra solar e num lirismo por vezes comovedor, recolhido na palavra e na florescencia dos sentidos, e ai ficando, sem idade, cantando as emolfoes? Como era possivel uma tao evidente ligalf500 sens6ria com a Ilha, abrigada nas sombras e na mem6ria de acentuadas referencias alforianas e especificamente rnicaelenses, despoletadas no perfil e na sensibilidade do poeta? Como explicar tamanho virtuosismo? 0 seu percurso vivencia12 da­ nos uma resposta parcelar, ja que a instigalfao criativa e os afectos do poeta corroboram as rnisteriosas cintilalfoes da alma e os seus inalienaveis fulgores. o segundo titulo de Joao Teixeira de Medeiros, Ilha em Terra, vern espelhar nos nossos olhos 0 mesmo lirismo. Intensidades interiores, que nao se deixam sOlfobrar na siifara da vida, actuantes no deslumbramento e 159

na discordancia testemunham aquilo que 0 rodeia, amenizando instancias e melancolias. Iii nos noventa e tal, 1. T. M surpreende pela sua vitalidade criadora. Graciosamente rejeita 0 refmlho da velhice; reverdece a caminhada e as palavras, muitas mmorejando ainda aos dias ac;orianos, longfnquos, guardados na memoria com a temura e a venerac;ao do cristal mais precioso. Sao reminiscencias do passado, entrecortadas por pinceladas dum presente em que os anos pesam sobre os ombros cans ados, recusando embora 0 implacavel sequestro do destino. As suas quadras de amor, por outro lado, conceptualizam a beleza feminina no etereo myel do esplendor e da redenc;ao; germinam num estumo epicrftico, filtrado pela pureza do olbar que descobre a mulber que passa, intocavel na sua grac;a e luz, sublimada por urn fulgor musical. Ilha em Terra e urn volume extenso, tendo em conta a norma-cerca de 100 paginas, e ate menos-das publicac;oes de poesia. Esta di vidido em sete partes: sao quadras as primeiras seis; a llltirna, e a mais reduzida, sonetos, num total de doze. Os temas alcanc;am 0 trajecto etmo e vivencial do poeta: a infancia e a juventude, a terra que lbes esta implicitamente ligada, 0 amor­ mais idflico que sensual -, e a sua filosofica visao do mundo. E, como nao podia deixar de ser, os inevitaveis temas da velhice, que nao pranteiam a existencia nem caem no abismo da auto-corniserac;ao. Onesimo Teotonio Almeida assina 0 prefacio, ou melbor, "apresenta" o autor. Da conta de como veio a tomar contacto com a poesia de Joao T. Medeiros. Primeiro numa loja portuguesa; mais tarde num festival de cultura irnigrante onde se liam quadras suas. Esse encontro magico despoletou a curiosidade do professor da Brown, levando-o a conhecer 0 poeta pessoalmente e a descobrir a sua obra inedita. Acreditando no seu talento e no valor da sua poesia, Onesirno T. Almeida empenhou-se na sua divulgac;ao. Proficiente na oportunidade enos servic;os prestados, ha que the reconhecer os seus incansaveis, prestimosos esforc;os. Nao so por ter revelado urn homem cujo valor e evidente, resgatando-o das espessas teias do anonimato, como ainda pela nobre iniciativa de trazer ao seio da Literatura Portuguesa urn novo e enriquecedor membro. Uma das virtudes da poesia de J oao Teixeira de Medeiros, patenteada tanto em Do Tempo e de Mim como em Ilha em Terra, nao assenta apenas na estetica da imagem mas na aptidao de trazer as palavras as mais dens as e emotivas questoes da alma e da sensibilidade, revelando, simultaneamente, uma grande probidade de sentimentos. A palavra tern 0 ardor dum subito ritmo de ligua. FIui numa semantica sem obstmc;6es, penetra a sonancia das coisas, concede-Ihes respiraC;ao propria, deixa urn eco fascinante como 0 fervoroso mar ac;oriano. Sao quadras que se repartem no Tempo, longfnquas-de 1920 a 1990 -, fustigadas pelo vento nordestense e pelas incessantes estac;6es da sua 160

idade quase secular. Sendo 0 Nordeste a terra dos seus pais, e de hi., contudo, que se avolumam e desnudam os ciclos da sua vida. Ali estuda e cresce sob 0 sol e o esplendor das primaveras, ladeando as estradas, encostadas a paredes caiadas de fresco ou a porcelana das boninas, apertadas nas maos das raparigas, e deixando um rasto de susto e um refrulho a segredo ardente. Uma vida que se expressa sob as inclinadas sombras das criptomerias e a sonolencia do musgo, agarrando-se com desespero aos muros de pedra solta e ao agreste silencio das sebes; um romantico que derrama nos cabelos 0 triste perfume das conteiras, descobrindo, pouco a pouco a flor da paixao, do medo e da alegria que desabrocha entre palavras e a solidao das maos tremulas, algumas vezes agachado sob as maternais folhas dos inhames e delas bebendo, sofrego, 0 primeiro orvalho de Setembro. E nessa paisagem rUstica, duma beleza assustadora e irnortal, entre 0 trigo e a fosforescencia de vozes femininas, nos seus canticos altos e incendiados, que brotou como uma dlidiva a poesia de Joao Teixeira de Medeiros. A poesia ganha voz, tom e alcance nos enigmaticos trilhos da sensibilidade; obscuros e devastadores alguns, limpidos e latejantes OUtros. No caso de Joao Teixeira de Medeiros, a poesia rende-se a virtuosidade das forc,:as sensoriais que 0 tocam. Afloram numa torrente, sao momentos interiores, saliente-se, tangidos pelos rumores e tons duma mem6ria densamente povoada de signos. Assirn se explica 0 fen6meno da sua intensa ac,:orianidade: obediente as influencias das suas raizes, celebra-as em consonancia com a claridade e 0 ritmo do seu eco. Encontra-se ai, inc6lume ao empoar do Tempo, 0 epicentro do seu empirismo indefectivel. Essa circunstancia, alem de curiosa, e fundamental a percepc,:ao do universe do poeta. Joao Teixeira de Medeiros e americano mas escreve com os relevos psico16gicos, sensibilidades e referencias dum ilheu. Dessa perspectiva insular gerrninam, em catadupa, os deslumbramentos, dramas e peculiaridades que the sao inerentes. Enredado por essa circunstancia, nao resiste ao apelo interior: "Eu hei-de subir ao cirnolDas terras do teu lugar;! Deixar as quadras que rimo,fEm seu redor cantar." A America sendo 0 berc,:o e no entanto 0 estrangeiro. Privilegiando 0 Nordeste, onde pulsa a catarse da saudade, mais ressaltaessa evidencia. "Urn dia te hei-de contar,lQuando voltar a Pedreira,/Como se aprende a chorarlNesta nac,:ao estrangeira." Mas 0 regresso e conturbado pelas mudanc,:as ffsicas dos lugares, pelos ja diferentes habitos das gentes. A luz que 0 rodeia nao e referencial, mas uma especie de erosao que desgasta 0 feerico sentimento de retorno. 0 que 0 rodeia nao espelha 0 passado; 0 Tempo, na sua aparente fagulhac,:ao, encobriu nas suas sombras os valores quimericos de antigamente. "Foram-se os modos antigos,/O progresso os telminou:!Eiras nao ha, nao ha trigos,/Ja 161

tudo 0 tempo levou." A casa materna, votada ao abandono, mais acentua essa pungencia: "Entrou risonho e contente/No pobre lar que deixou;! Tudo estava tao diferente,lQue ele, dif'rente, chorou."I"No quintal crescera a erva,lNo jardim morrera a flor;lNao houve urn bern de reservalQue apagasse a sua dor." o dramatismo de J. T. M. nlio tern guarida nas teias dum superfluo agitar de poeiras sentimentalistas. Ocupa-se da sua exterioriza~ao, da as situa~5es intimas urn caracter universal e levanta do solo da indiferen~a a haste dum Outono preciirio onde defmham e refrondescem, a seu tempo, os mais elementares sentimentos humanos. Uma fala do cora~ao, em suma, que reverbera e levita como uma voz perto do mar. Eno olbar largo e centrador de imagens que 0 sentir se desenvolve: entre 0 caos da nostalgia ergue-se, imponderavel, tangido pela alva, 0 senti do, por vezes cruel e absurdo, da sua condi~ao humana. Ai se desenrolam os lumes das agita~5es interiores, as vicissitudes e uma serenidade posta a prova: "0 clamor da rnagoa que tenho em mim... " (pag. 78); "dor eterna de quem fica ... " (pag. 81); "(n)as duras pedras do chao ... " (pag.80). A sua vida, tocada pelos mesmos fen6menos que despojam 0 imigrante de certo sentido de perten~a, flutua na mesma brejeira circunstfincia. Esse paralelismo da-Ihe a capacidade de entender e testemunhar essa complexa situa~ao: "E num saco, a tiracolo,/Leva a terra que deixou;/Leva a seiva desse solo/Que hii poucos dias lavrou./Parte sem saber se chega,/Chega sem saber se esta;/Quando esta ja nao sossega,lNao sossega ca e la." Born observador do mundo e dos homens, analisa-os com a serenidade, por vezes magoada, de quem procura 0 balan~o entre a etica da sua moral crista e os confrangimentos advenientes das contradi~5es humanas. Porque 0 seu idealismo coabita as mesmas areas de remoinho existencial em que a sensibilidade, 0 sentido de justi~a e a imparcialidade comungam do mesmo sorvedouro de emo~5es. Num outro contexto, 1. T. M. e 0 eremita que deambula no mito americana e nele se insere com adventicia presen~a. A poesia-a sua poesia -, eo elo que adeja entre dois mundos, mlcleo da sua movimenta~ao lirica no encal~o do sonho perpassado de nostalgia, 0 estuante sortilegio que incendeia de luz e sombra a natureza do seu canto.

NOTAS

1 Do Tempo e de Mim saiu em 1982 nos Estados Unidos, publicado pela editora da Gavea-Brown, afecta 11 Brown University, e com 0 patrocinio do Ateneu Luso­ 162

Americano de Fall River. Mais tarde, em 1987, conheceu publicayao portuguesa, desta feita pela editora Peregrinayao, aumentada com quarenta poemas. 2 Joao Teixeira de Medeiros nasceu em Fall River, Massachusetts, e foi com a famt1ia para a Pedreira do Nordeste, S. Miguel, Ayores, com 9 anos de idade tendo Ili vivido entre 1910 e 1930, regressando depois aos Estados Unidos. Edwardo Bettencourt Pinto CONDI<;OES DE ASSJNATURAISUBSCRIPTION RATES

All subscriptions, including foreign subscriptions, pay­ able in u.s. dollar equivalents:

Individual $15.00 Libraries and Institutions $25.00

Portugal- 3.0000$00 OI6L9LZO t\