22 VEREDAS Revista da Associação Internacional de Lusitanistas

Associação Internacional de Lusitanistas A AIL ― Associação Internacional de Lusitanistas tem por finalidade o fomento dos estudos de língua, literatura e cultura dos países de língua portuguesa. Organiza con- gressos trienais dos sócios e participantes interessados, bem como copatrocina eventos científicos em escala local. Publica a revista Veredas e colabora com instituições nacio- nais e internacionais vinculadas à lusofonia. A sua sede localiza-se na Faculdade de Le- tras da Universidade de Coimbra, em Portugal, e seus órgãos diretivos são a Assem- bleia Geral dos sócios, um Conselho Diretivo um Conselho Assessor e um Conselho Fiscal, com mandato de três anos. O seu património é formado pelas quotas dos asso- ciados e subsídios, doações e patrocínios de entidades nacionais ou estrangeiras, pú- blicas, privadas ou cooperativas. Podem ser membros da AIL docentes universitários, pesquisadores e estudiosos aceites pelo Conselho Diretivo e cuja admissão seja ratifi- cada pela Assembleia Geral. Conselho Diretivo Presidência: Roberto Vecchi, Universidade de Bolonha [email protected] 1ª Vice-Presidência: Cláudia Pazos-Alonso, Universidade de Oxford [email protected] 2ª Vice-Presidência: Elias J. Feijó Torres, Univ. de Santiago de Compostela [email protected] Secretaria Geral: Vincenzo Russo, Universidade de Milão [email protected] Coordenação da Comissão Científica: Raquel Bello Vázquez, Centro Universitário Rit- ter dos Reis, [email protected] Coordenação da Comissão Editorial: Regina Zilberman, Univ. Federal de Rio Grande do Sul, [email protected] Responsável pela Área de Comunicação: Roberto Samartim, Universidade da Corunha, [email protected] Presidência do Conselho Assessor: Ettore Finazzi-Agrò (Universidade de Roma «La Sa- pienza») [email protected] Presidências Honorárias: Cleonice Berardinelli, UFRJ e PUCRJ; Helder Macedo, King's College London.

Conselho Assessor Benjamin Abdala Junior (Universidade de São Paulo), Carlos Ascenso André (Instituto Politécnico de Macau), Manuel Brito-Semedo (Universidade de Cabo Verde), Manuel Ferro (Universidade de Coimbra), Natalia Czopek (Universidade Jaguelónica de Cracó- via), Roger Friedlein (Ruhr-Universität Bochum). Conselho Fiscal Carmen Villarino Pardo (Univ. de Santiago de Compostela), Helena Rebelo (Universi- dade da Madeira), Isabel Pires de Lima (Universidade do Porto).

Associe-se pela homepage da AIL: www.lusitanistasail.org Informações pelo e-mail: secretaria@lusitanistasail. org Veredas Revista de publicação semestral Volume 22 ― 2º semestre de 2014

Diretora: Raquel Bello Vázquez (Centro Universitário Ritter dos Reis, Brasil) Conselho Redatorial: Cândido Oliveira Martins (Universidade Católica Portuguesa, Portugal) Maria Aldina Bessa Ferreira Rodrigues Marques (Universidade do Minho, Portugal) Teresa Pinheiro (Technische Universität Chemnitz, Alemanha) Conselho Científico: Andrés Pociña López (Universidade de Extremadura, Espanha), Anna Maria Kalewska (Universidade de Varsóvia, Polónia), Antonio Augusto Nery (Universidade Federal do Paraná, Brasil), Axel Schönberger (Universidade de Bremen, Alemanha), Benjamin Abdala Junior (Universidade de São Paulo, Brasil), Carlos Ascenso André (Instituto Politécnico de Macau, Macau), Carmen Villarino Pardo (Universidade de Santiago de Compostela, Galiza), Clara Rowland (Universidade de Lisboa, Portugal), Cláudia Pazos-Alonso (Universidade de Oxford, Reino Unido), Cristina Robalo Cordeiro (Universidade de Coimbra, Portugal), Elias J. Feijó Torres (Universidade de Santiago de Compostela, Galiza), Ettore Finazzi-Agrò (Universidade de Roma «La Sapienza», Itália), Helder Macedo (King's College London, Reino Unido), Helena Rebelo (Universidade da Madeira, Portugal), Isabel Pires de Lima (Universidade do Porto, Portugal), Juracy Assman Saraiva (Universidade Feevale, Brasil), Laura Cavalcante Padilha (Universidade Federal Fluminense, Brasil), Manuel Brito-Semedo (Universidade de Cabo Verde, Cabo Verde), Manuel Ferro (Universidade de Coimbra, Portugal), Maria Luísa Malato Borralho (Universidade do Porto, Portugal), Natalia Czopek (Universidade Jaguelónica de Cracóvia, Polónia), Onésimo Teotónio de Almeida (Universidade de Brown, Estados Unidos), Pál Ferenc (Universidade ELTE, Hungria), Petar Petrov (Universidade do Algarve, Portugal), Regina Zilberman (Universidade Federal de Rio Grande do Sul, Brasil), Rejane Pivetta de Oliveira (Centro Universitário Ritter dos Reis, Brasil), Roberto Samartim (Universidade da Corunha, Galiza), Roberto Vecchi (Universidade de Bolonha, Itália), Roger Friedlein (Ruhr- Universität Bochum, Alemanha), Sebastião Tavares Pinho (Universidade de Coimbra, Portugal), Sérgio Nazar David (Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil), Teresa Cristina Cerdeira da Silva (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil), Thomas Earle (Universidade de Oxford, Reino Unido), Ulisses Infante (Universidade Estadual Paulista, Brasil), Vera Lucia de Oliveira (Università degli Studi di Perugia, Itália), Vincenzo Russo (Universidade de Milão, Itália).

Redação: VEREDAS: Revista da Associação Internacional de Lusitanistas Endereço eletrónico: veredas@lusitanistasail. org Desenho da Capa: Campus na nube, Santiago de Compostela, Galiza ISSN 0874-5102

AS ATIvIdAdES dA ASSoCIAção INTERNACIoNAL dE LUSITANISTAS Têm o APoIo REgULAR do INSTITUTo CAmõES SUMÁRIO

AURoRA GedRA LILIAN LoPoNdo Esfinge Gorda: via crucis de deciframento e de dor...... 5 FábIo MáRIo dA SILvA Os «estados melancólicos» na poesia da Marquesa de Alorna...... 17 LUCIA RottAvA ANtôNIo MáRCIo dA SILvA Da Tela ao Papel: a Retextualização como Recurso na Aquisição da Escrita em Português como Língua Adicional...... 25 MAíRA CoNtRUCCI JAmeL Garrett e o resgate do Teatro Português...... 39 MARCeLo PACheCo SoAReS Como apalpar o impalpável?! Leitura intertextual do conto kafkiano «A Pousada», de Agustina Bessa-Luís...... 49 ULISSeS INFANte Mário de Andrade e Murilo Mendes: leituras, releituras, contraleituras...... 61 HeLeNA RebeLo Recensão: Estudos de Corpora. Da Teoria à Prática...... 73 VEREDAS 22 (Santiago de Compostela, 2014), p. 39-48

Garrett e o Resgate do Teatro Português: Uma Leitura de um Auto de

MAÍRA CONTRUCCI JAMEL Universidade Federal do Rio de Janeiro (Brasil)

Resumo: Em seu ensaio intitulado “Da literatura como interpretação de Portugal”, Eduardo Lourenço afirma que a motiva- ção de toda a grande literatura do século XIX é a relação do escritor com a pátria. Assim, o ensaísta dá destaque para o fato da literatura portuguesa desse século estar diretamente relacionada com a questão da nação, do que significava “ser português”. Mas, se há um escritor português dessa época cuja obra está intrinsecamente ligada a sua vida político-pessoal esse escritor é Almeida Garrett. Não só seus escritos, mas também sua atividade social colaboraram com a tentativa de reestruturação da vida portuguesa do século XIX. Dentre as atividades desempe- nhadas por Garrett que contribuíram para o desenvolvimento da cultura em Portugal, pode-se destacar seu empe- nho em revigorar o teatro português, marcado pela encenação da peça Um auto de Gil Vicente , em 1838. Este tra- balho pretende analisar essa peça colocando-a na perspectiva do projeto de resgate do teatro português pretendido por Garrett. Levando em consideração o caráter didático que Garrett deixa transparecer em muitas de suas obras, por vezes incluindo notas explicativas a fim de conduzir o leitor a um entendimento mais amplo de seus escritos, tentaremos perceber o papel do teatro como possível elemento fundador da cultura de uma socieda- de. Além disso, será feita uma análise mais específica da peça, buscando entender a reflexão ideológica que ela apresenta.

Palavras-Chave: Gil Vicente; Garret;, Teatro Português; Literatura Portuguesa; Século XIX.

Abstract: In an essay entitled “Da literatura como interpretação de Portugal”, Eduardo Lourenço said that the motivation of all the great literature of the nineteenth century is the relation of the writer with his homeland. Thus, the essayist highlight the fact that of the XIX century is directly related to the idea of nation, to what mean “to be Portuguese”. If there is a Portuguese writer of that era whose work is intrinsically linked to his politi- cal and personal life, that writer is Almeida Garrett. Not only his writings but also his social activity collaborated with the attempted restructuring of Portugal in the nineteenth century. Among the activities carried out by Gar- rett to contributed to the development of culture in Portugal, it can be highlight his commitment to reinvigorate the Portuguese theater, marked by the staging of the play Um auto de Gil Vicente in 1838. This essay aims to ex- amine this play by placing it in the perspective of the Garrett's desired of reinvigorate the Portuguese theater. Taking into account the didactic share that Garrett reveals in many of his works, sometimes including explana- tory notes to lead the reader to a fuller understanding of his writings, we will try to understand the role of theater as a possible founding element of a culture society. In addition, we will present a more specific analysis of the play, seeking to understand the ideological reflection that it presents. 40 MAíRA CoNtRUCCI JAmeL

Keywords: Gil Vicente; Garrett; Portuguese Theater; Portuguese Literature; 19th Century.

Data de receção: 10/12/2013 Data de aceitação: 19/02/2015

Doces lembranças da passada glória, que me tirou Fortuna roubadora, deixai-me repousar em paz uã hora, que comigo ganhais pouca vitória. Impressa tenho na alma larga história deste passado bem que nunca fora; ou fora, e não passara; mas já agora em mim não pode haver mais que a memória. Vivo em lembranças, mouro de esquecido, de quem sempre devera ser lembrado, se lhe lembrara estado tão contente. Oh! quem tornar pudera a ser nascido! Soubera-me lograr do bem passado, se conhecer soubera o mal presente. Camões

Garrett em seu tempo histórico Poucos autores viveram tão intimamente as questões políticas de seu tempo como Almeida Garrett. Questionamentos e reflexões sociais constantes, mesmo quando já desiludido com as cau- sas pelas quais lutou em sua juventude, marcam de forma peculiar a obra desse célebre escritor português. O século XIX foi um período muito atribulado na história de Portugal e Almeida Gar- rett foi, sobretudo, um escritor marcado pelo seu tempo histórico. Sua influência na história de Portugal é verificada para além da literatura, tendo contribuído muito significativamente no âmbito ideológico e também político. Por isso, Garrett é considerado por diversos críticos literários como uma das figuras fundadoras do patrimônio cultural portu- guês, o que se verifica nas palavras de Ofélia Paiva Monteiro: “O homem, o cidadão e o artista es- tão assim profundamente amalgamados no curto, mas intenso itinerário existencial de Garrett, cu- jas obras marcaram o nosso imaginário e a nossa autognose colectiva” (p. 203). A vida de Garrett foi desde muito cedo influenciada por importantes acontecimentos políticos, como quando teve de se mudar, ainda criança, devido à invasão francesa de Napoleão Bonaparte. Contudo, foi somente quando ingressou como estudante de direito na Universidade de Coimbra que começou a se engajar na vida política de seu país e a ganhar visibilidade pública, tendo parti- cipado em 1820 de um movimento de jovens universitários liberais em favor da Revolução Liberal que tomava corpo no Portugal de então. Foi em seu tempo de universitário que começou a desenvolver seus escritos. Desde cedo se mostrou um escritor notável e destemido, tendo publicado em 1821, O Retrato de Vênus, poema que lhe rendeu um processo jurídico por ter sido considerado como atentatório à moral, mas aca- bou sendo perdoado. Sua concepção acerca da arte de escrever era fundada em um aspecto prag- mático, sobretudo na ideia de que a literatura não podia desvincular-se de exercer um papel ativo GARRett e o ReSgAte do TeAtRo PoRtUgUêS 41 sobre a sociedade. Garrett era, portanto, um escritor engajado e suas obras teatrais no período universitário eram extremamente militantes. A defesa dos ideais liberais floresceu ainda na sua juventude e permaneceu durante a vida adulta enquanto lutava pela sua implementação a fim de construir uma sociedade mais justa. Po- rém, a primeira metade do século XIX trouxe ainda longas e turbulentas lutas político-sociais. Em um cenário de guerra civil que apresentava ambição por cargos e riquezas, por parte dos liberais, e indenizações, por parte dos absolutistas, Garrett sentiu de forma dura a diferença entre a socieda- de que tinha sonhado e a que se concretizava pouco a pouco. Como consequência de sua participação ativa nas questões políticas de seu tempo, Garrett pas- sou, ao longo de sua vida, por diversas experiências de “exílio”. A distância de sua terra, apesar de tê-lo afastado da efervescência dos acontecimentos, nunca o fez esquecer as questões que envolvi- am seu país. Além disso, o contato com outras culturas contribuiu para o seu desenvolvimento ar- tístico. Foi justamente após ter passado um longo período na Inglaterra e ter contato com textos românticos que Garrett publica, na França, o texto fundador do romantismo português, o poema Camões , em 1825. A orientação romântica fez com que a literatura de Garrett ocupasse um espaço de destaque na cultura portuguesa. A influência de outras literaturas lhe suscitou a vontade de produzir em Por- tugal uma arte nacional e inovadora, que não negasse as boas influências, mas se libertasse dos moldes dos cânones consagrados internacionalmente. Foi essa também a sua intenção ao empe- nhar-se em um projeto de reestruturação do teatro português. A verve dramática de Garrett perpassa praticamente toda a sua obra, estando presente inclusi- ve “em alguns poemas em que o aparato cênico é largamente utilizado”. (GARRett, 1988, p. 23). A tendência teatral de sua escrita é ressaltada pelo próprio autor no prefácio de Átala , quando diz: Todos nós temos os nossos preconceitos, as nossas manias, e em consequência vemos todas as coisas por elas, e as olhamos, e estimamos pelo lado por que as lisonjeiam mais. Tudo referimos a um ponto, tudo quiséramos que viesse a ele, que é o foco, o centro da nossa paixão dominante. O meu foi sempre o do teatro: qualquer acção por pouco trágica, qualquer facto, por pouco ridículo que fosse, me suscita- ram sempre a idéia duma tragédia, ou duma comédia. (GARRett, 1969) Não é gratuito, portanto, que tenha produzido muitas peças. Ainda na juventude escreveu Ca- tão e Mérope , mas, é quando regressa definitivamente a Portugal que publica as peças de maior destaque como O Alfageme de Santarém e Frei Luís de Sousa . Essa última é considerada por muitos uma das melhores produções do teatro romântico português. Em 1836, após má sucedida experiência diplomática, Garrett volta a Lisboa e é convidado a tra- balhar na campanha de reformulação da educação nacional. Dessa forma, colaborou com a criação de órgãos de fomento à cultura, com especial destaque para o teatro. Em 1937, é nomeado Inspe- tor-Geral dos Teatros e funda o Conservatório de Arte Dramática com a intenção de formar um repertório nacional, discutir obras teatrais e fomentar o aparecimento de novos atores e dramatur- gos. Da recém encetada proposta de reestruturar o teatro nacional, Garrett publica em 1938 a peça Um Auto de Gil Vicente , através da qual recupera uma figura fundadora do teatro português e a re- define como símbolo impulsionador para reerguer as artes dramáticas portuguesas. 42 MAíRA CoNtRUCCI JAmeL

O teatro e seu papel na sociedade À época de Garrett, o teatro português era inexpressivo, com apresentações reconhecidamente fracas. Teófilo Braga em seu texto Dois Monumentos , no qual destaca a importância do trabalho de Garrett nas artes cênicas portuguesas, atribuindo especial valor às peças Um Auto de Gil Vicente e Frei Luis de Sousa, descreve a decadência do teatro português de então. Afirma que os atores, “cu- riosos” ou profissionais sem escola, encenavam “dramalhões e comédias de cordel” e acrescenta que “a literatura dramática consistia em traduções irresponsáveis de charros dramas ultrarromân- ticos franceses”. Também destaca que “Garrett teve a alta compreensão de que a obra dramática é a que mais directamente actua no espírito e domina a multidão” (BRAgA, 1966, p. 1068). Acerca desse último comentário de Teófilo podemos entender que, além de ver o teatro como uma forma de expressão estética de sua arte, Almeida Garrett também atribuía a ele um papel im- portante na construção do ideário da sociedade. Em um período de tentativa de reorganização da vida nacional, Garrett atribui à arte dramática um valor extremamente importante como verifica- se em Memória ao Conservatório sobre Frei Luis de Sousa : O drama é a expressão literária mais verdadeira do estado da sociedade: a sociedade de hoje ainda se não sabe o que é: o drama ainda se não sabe o que é: a literatura actual é a palavra, é o verbo, ainda balbuciante, de uma sociedade indefinida, e contudo já influi sobre ela; é, como disse, a sua ex- pressão, mas reflecte a modificar os pensamentos que a produziram. (BRAgA, 1966, p. 1082) Dessa forma, estabelece-se a ligação direta entre uma literatura “ainda balbuciante” e uma “so- ciedade indefinida”. Ao mesmo tempo em que o drama influencia a sociedade, ele, originalmente, surge dela. Assim podemos pensar que o drama desenvolvido no palco é derivado do cotidiano da sociedade, mas em um processo complementar, esse mesmo drama ganha nova perspectivada pela reabsorção do seu discurso dentro da sociedade. A importância da arte na vida social sempre foi motivo para muitos estudos. Mais do que um meio de expressão pessoal, a arte possibilita a união de indivíduos, a circulação de ideias, a troca de experiências e o crescimento cultural de um povo como um todo. Uma das funções da arte mais notável é a de agregação, por isso ela sempre foi um elemento estruturante das sociedades. Mais especificamente, a arte dramática possuía uma função social explícita desde sua origem na Grécia Antiga. O Théatron, termo grego para “lugar da onde se vê”, reunia multidões para o ri- tual das apresentações teatrais, que, para os gregos, não era um ato apenas para espectadores pas- sivos, uma vez que o público se envolvia, tornando-se participante. A pólis via nos festivais de tea- tro um instrumento de intensa propaganda política, parte disso se deve ao fato de os autores serem financiados pelo Estado. O estudioso Arnold Hauser afirma que em nenhuma outra forma de arte são apreciados direta ou indiretamente os conflitos internos da estrutura social de Atenas como na tragédia. Porém, enquanto os aspectos que envolvem a apresentação às massas eram de- mocráticos, o conteúdo das peças, com a perspectiva trágico-heróica da vida, era aristocrático: “A tragédia grega era, stricto sensu , 'teatro político'” (HAUSeR, 1998, p. 87). Por sua vez, a comédia, devido a seu caráter satírico acentuado, também não escapava de possuir uma forte conotação política. O teatro que não recebia qualquer influência do Estado era o chamado Mimo. As apresen- tações decorrentes desse tipo não sofriam qualquer carga ou influência tendenciosa do poder, per- mitido a encenação a partir da experiência imediata que o contato com a platéia provia. GARRett e o ReSgAte do TeAtRo PoRtUgUêS 43

O caráter pedagógico está presente nas atividades teatrais de todos os tempos. No século XvI, por exemplo, foi desenvolvido nos colégios um tipo de teatro didático, com o drama escolar huma- nístico. Por isso, podemos pensar que a intenção de Garrett em reerguer a produção teatral nacio- nal tinha clara finalidade cultural e que sua base sustentatória era o caráter pedagógico que possi- bilitaria a sociedade a se articular de forma crítica. A intenção era resgatar um ambiente de consciência artística, formando uma sociedade que discute e impulsiona a vida cultural, de for - ma a inovar sem suprimir a identidade portuguesa. A historiografia teatral mostra que a capacidade das artes cênicas, assim como das artes em ge- ral, de influenciar o pensamento dos indivíduos sempre foi utilizada pelos meios de propagação ideológica e política de uma sociedade. Bem como apresentações consideradas subversivas foram fortemente reprimidas, como, por exemplo, pela Inquisição do Santo Ofício ou pela censura das di- taduras da modernidade. Em Portugal, o teatro possui um célebre fundador, Gil Vicente no século XvI. Sabe-se que viveu na corte de D. Manuel e produziu diversas peças. Porém, seus trabalhos dramáticos não foram su- ficientes para suscitar nos novos autores do país uma verve teatral criativa. O século XvII propici- ou um largo desenvolvimento do teatro europeu com a Commedia Dell’Arte, mas Portugal não conseguiu firmar as bases de seu teatro nacional. Finda a Dinastia de Avis, o teatro espanhol se di- fundiu pelo solo português e muitos dos autores que surgiram foram tão influenciados que acaba- ram por escrever suas peças em castelhano. Até o surgimento de Almeida Garrett no século XIX não houve um dramaturgo de grande expressividade na cultura portuguesa. O princípio abaixo descrito por Margot Berthold em seu livro A História Mundial do Teatro, já havia, no século XIX, sido percebido por Garrett, o que justifica a atribuição de um valor de desta- que às artes teatrais: O teatro pulsa da vida e sempre foi vulnerável às enfermidades da vida. Mas não há razão para se preocupar(...) Enquanto o teatro for comentado, combatido- e as mentes críticas têm feito isso sem- pre-, guardará seu significado. (...) um teatro que movimenta a mente é uma membrana sensível, pro- pensa à febre, um organismo vivo. E é assim que ele deve ser. (XII) Dessa forma, a restauração de um teatro nacional se fazia necessária por ser uma arte que pul- sa da vida e retorna a ela, transformando-a. Por esse motivo, mais do que se limitar a condição de dramaturgo, Garrett desejou incentivar fortemente todo o processo que cerca a apresentação tea- tral. Fomentou o surgimento de novos atores e autores, dirigiu algumas peças e, por vezes, até atu- ava, o que o aproximava de Gil Vicente, visto que o dramaturgo do século XvI também desempe- nhava essas atividades.

Um auto de Gil Vicente: o resgate do teatro pelo teatro Como já dito anteriormente, é com Um Auto de Gil Vicente que Garrett inicia o projeto de recu- peração do teatro nacional português. Portanto, tendo em vista sua proposta inicial, não é gratuito que o autor opte por trazer à cena o mais importante dramaturgo português até então. A peça foi encenada em 1838, mas sua publicação data de 1841. Nela, Garrett faz um longo pre - fácio discutindo a questão do teatro em Portugal, chegando a afirmar que nunca houve realmente teatro nacional no país, ainda que Gil Vicente tivesse lançado as raízes para sua propagação. Ao se indagar sobre a justificativa deste fato, Garrett diz: 44 MAíRA CoNtRUCCI JAmeL

O teatro é um grande meio de civilização, mas não prospera onde a não há. Não têm procura os seus produtos enquanto o gosto não forma hábitos e com eles a necessidade. (...) Depois de criado o gosto público, o gosto público sustenta o teatro, é o que sucedeu em França e em Espanha; é o que teria su- cedido em Portugal, se o misticismo belicoso de el-rei D. Sebastião, que não tratava senão de brigar e rezar, – logo a dominação estrangeira que nos absorveu, não tivessem cortado à nascença a planta que ainda precisava muito abrigo e muito amparo. (GARRett, 1966, p. 1320) Com essas palavras, Garrett aponta os motivos responsáveis para o não desenvolvimento de um teatro nacional, dentre os quais destaca D. Sebastião e seu governo que não deu valor devido às artes. Vemos também o porquê julgava tão importante implementar um costume social entorno da atividade teatral, mas tinha consciência das dificuldades que seu projeto enfrentaria. Muitos críticos consideram que Um Auto de Gil Vicente possui pouco valor estético, pois os personagens e os conflitos seriam extremamente simplistas. Em História da Literatura Portuguesa, Antonio José Saraiva e Óscar Lopes afirmam que “as personagens e seus problemas não passam de motivos decorativos deste espetáculo todo exterior.” E as críticas endurecem quando acrescentam que “O débil conflito, o amor choroso e sentimental de um poeta por uma princesa, não ganha re- levo, e os protagonistas oferecem uma psicologia elementar e monocórdia” (SARAIvA; LoPeS, 2001, p. 702). No entanto, o foco deste trabalho está na reflexão ideológica que Garrett pretendeu propa- gar com Um Auto de Gil Vicente . Sem entrar no mérito do valor artístico em si, a peça apresenta por meio de seu conteúdo uma busca de afirmação de elementos fundamentais da cultura portu - guesa. É isso o que buscaremos entender analisando o desenvolvimento do corpo textual da peça. Para tal, nos apoiaremos nas palavras do próprio Garrett: O drama de Gil Vicente que tomei por título não é um episódio, é o assunto mesmo do meu drama: é o ponto em que se enlaça e do qual se desenlaça depois a acção; por consequência a minha fábula, o meu enredo ficou, até certo ponto, obrigado. Mas eu não quis só fazer um drama, sim um drama de ou- tro drama, e ressuscitar Gil Vicente a ver se ressuscitava o teatro. (GARRett apud RebeLLo, 1980, p. 42). O resgate do teatro português era, portanto, a base da construção de Um Auto de Gil Vicente e Garrett busca esse objetivo explorando as relações entre personagens e artistas históricos. A esco- lha por nomes como Bernardim Ribeiro e Gil Vicente, mais do que trabalhar a dicotomia entre po- esia e drama, estabelece uma relação com obras fundadoras da cultura portuguesa, buscando con- comitantemente “ser moderno e inovar dentro de uma tradição” (BARbAS, 1994,p. 106). Portanto, a realização de Um Auto de Gil Vicente se dá como um processo de exorcismo e fundação, como res- salta Helena Barbas no livro Almeida Garrett, o Trovador Moderno . Sobre esse aspecto dialético, a autora ainda afirma: Garrett propõe-se a fazer um drama de outro drama , uma acção de outra acção , que é duplamente te- atral e poética. O texto de Gil Vicente é o ponto em que se enlaça e depois desenlaça a acção, acção que é seu próprio texto. Há pois uma criação de laços, o estabelecer de um vínculo que depois se des- faz. O autor põe do seu lado todos os processos que lhe permitem preparar e apresentar Um Auto de Gil Vicente como o drama - a acção- fundador(a) (da poesia) e do teatro português (1994, p. 86) A peça de Garrett se passa na corte de D. Manuel, em torno da encenação da peça de Gil Vicen- te, Cortes de Júpiter , representada em homenagem à partida da infanta Beatriz que deixava Portu- gal devido a seu casamento com o Duque de Sabóia. Dessa forma, é usado um recurso muito inte - ressante que consiste em encenar a representação de uma peça dentro de outra peça. Mas essa GARRett e o ReSgAte do TeAtRo PoRtUgUêS 45 escolha não serve para Garrett apenas como pano de fundo, a encenação de Cortes de Jupiter den- tro de Um Auto de Gil Vicente é um momento importante da história e também mais uma forma de se remeter especificamente ao tema do teatro. Da mesma forma, podemos lembrar como a apre- sentação teatral que ocorre dentro de Hamlet é fundamental para o desenrolar da trama. O drama histórico foi largamente utilizado por Garrett no desenvolvimento de suas peças. Além da peça em questão, O Alfageme de Santarém e Frei Luis de Sousa também se desenvolvem a partir de bases históricas. Um Auto de Gil Vicente se aproveita de um fato histórico real da história portuguesa, mas também se baseia em uma lenda do imaginário cultural português sobre o supos- to amor da infanta e de Bernardim Ribeiro. Assim, podemos entender que Garrett não está preo- cupado com a veracidade dos fatos que aborda. Prova disso está na nota explicativa ao final da peça em que Bernardim Ribeiro mata-se ao cair no mar, o autor diz: “Aqui atirei com ele ao mar porque me era preciso; e o público disse que era bem atirado. É o que me importa. Se foi ou não a Sabóia depois, (...) se andou doido pela serra de , também não me atrevo a certificar” (GAR- Rett, 1966, p. 1384). O recurso de notas explicativas é muito utilizado por Garrett para tecer co- mentários acerca de seus textos. Isso reflete o caráter didático do autor, que, além de dividir sua obra com o leitor, queria assegurar que sua intenção fosse compreendida e incitar uma reflexão crítica. Mais do que reviver a figura de Gil Vicente, Garrett evoca a época do reinado de D. Manuel, o rei Venturoso, que investiu em progresso e deu asas aos descobrimentos. No entanto, o que é mais destacado da corte de D. Manuel é o valor atribuído às artes, como podemos ver na fala de Berna - dim Ribeiro ao descrever o rei: “um príncipe que sabe a valia das artes, que cultiva as letras” (GAR- Rett, 1966, p. 1360). Figuras como Bernardim e Garcia de Resende compõem a gama de personagens da peça, crian- do um universo voltado para a cultura. A importância cultural da época é ressaltada durante numa conversa entre o Conde de Vila Nova e Garcia de Resende em que este último afirma: O felice reinado do senhor Dom Manuel é o tempo da colheita; seu primo gastou a vida a semear. Va- mos, senhor conde, que a ambos devemos muito- Isto é achaque de velhos estar sempre com o passa- do. Não sei se fazem melhor. os moços que se esquecem dele. (GARRett, 1966, p. 1370). Há ainda uma sutil crítica na fala do trovador em relação à pouca atenção dada pelos jovens ao passado, ideia que reafirma a intenção de Garrett de buscar no passado artístico uma diretriz para o presente. Com essa fala, notamos que a crítica extrapola os limites temporais da peça e se refere também ao século XIX. Outro grande destaque que Garrett dá é para a postura do rei D. Manuel perante a Inquisição, que só se instalou oficialmente no país em 1536 no reinado de D. João III. A ausência do tribunal do Santo Ofício contribui bastante para a evolução das artes portuguesas. Sua extinção data já do século XIX, em 1822, quando da juventude de Garrett. Esse tema é tratado no diálogo entre Chatel, membro da comitiva do Duque de Sabóia, e Pêro Sáfio. Enquanto os dois conversavam sobre os serviços prestados por D. Manuel à defesa da Cristandade, Chatel mostra não entender o porquê de o rei não ter admitido ainda o Tribunal da Inquisição. “É o Tribunal que queima gente?” per- gunta Pêro, ao que Chatel responde: “Os hereges, e os Judeus, meu amigo: não é a gente”. Nesse momento, a reflexão que Garrett tenta passar ultrapassa o campo cultural para atingir de forma mais ampla o âmbito social. 46 MAíRA CoNtRUCCI JAmeL

Há momentos em que é clara a tentativa do autor de contrapor a arte portuguesa à dos outros países da Europa. Na mesma cena citada anteriormente, Chatel e Perô Sáfio travam comparações entre o teatro italiano e o português. Chatel afirma: Verdadeiramente não se imagina em Itália, nem na França, como os Portugueses estão adiantados nas artes. O vosso Gil Vicente é um prodígio; prodígio natural- e também pouco cultivado. Se ele co- nhecesse os clássicos; se como o nosso Ariosto, soubesse imitar Terêncio e Aristófanes; se aprendesse as regras de arte. (GARRett, 1966, p. 1347) A essa altura lhe interrompe Pêro Sáfio, dizendo: “Havia de ser um sensaborão insulso e insípi- do segundo a arte; havia de marear seu engenho natural” (GARRett, 1966, p. 1347). A afirmação de que o teatro português não aceitava moldes põe em oposição clara o teatro nacional fundador de Gil Vicente e o teatro praticado à época de Garrett. No século XIX, a inovação do teatro e a quebra dos fortes vínculos de atrelamento com as artes estrangeiras era também uma questão de reafir - mação da independência nacional. Além da presença de figuras fundadoras da cultura portuguesa, a peça é permeada por referên- cias de obras importantes da literatura. A famosa obra de Bernardim é chamada o tempo todo por meio de seu nome original, Saudades . No entanto, na nota explicativa do próprio Garrett, quando da cena em que a infanta D. Beatriz faz uma reflexão sobre o livro, é usada a alcunha de Menina e Moça . A escolha de Garrett pela utilização do título original traz consigo um simbolismo interes- sante, pois nos faz refletir sobre o significado da palavra “saudade” e o tempo glorioso das artes re- presentado na peça. Mais uma vez, Garrett deixa transparecer seu didatismo ao afirmar que tem consciência do anacronismo que representa a infanta ter o livro de Bernardim em mãos se ele nem tinha sido escrito ainda. Porém, Garrett reafirma sua licença poética dizendo que é muito valioso colocar em seu drama as palavras de Bernardim Ribeiro. Além desta obra, há também referências ao Cancioneiro Geral de Garcia de Resende e a outras peças de Gil Vicente. Em seu livro, O Essencial sobre Almeida Garrett, Ofélia Paiva Monteiro afirma que uma das in- tenções de Garrett em Um Auto de Gil Vicente era tocar pedagogicamente os espectadores através de duas estórias de amor infeliz de personagens pertencentes à nobreza e ao povo. Ela se refere ao amor impossível entre Bernardim Ribeiro e D. Beatriz, que se casou devido a uma imposição de sua condição nobre, e o amor não correspondido de Paula Vicente, representante do povo, pelo au- tor de Menina e Moça. De todos os personagens da narrativa, o que tem a personalidade mais tra- balhada por Garrett é Paula Vicente. Através de sua fala podemos perceber indícios de sua condi- ção humilde e, ao mesmo tempo, da grandeza de suas virtudes. Apesar de amar Bernardim, nunca deixa de ser leal à infanta, mesmo quando os pedidos de Beatriz lhe causam sofrimento. No entan- to, Paula Vicente demonstra reconhecer o seu próprio valor como demonstra ao responder a sur- presa de Bernardim Ribeiro por ela não estar interpretando em Cortes de Júpiter o papel da Lua: “Não me contento de luz emprestada, senhor cavaleiro.” E Bernardim responde: “Porque da pró- pria sabeis quanto brilha” (GARRett, 1966, p. 1361). Ainda assim, mesmo sabendo de suas qualida- des, Paula reconhece que sua condição social não lhe permite almejar nada além da vida que possui. Em uma fala sua, antes de começar o ensaio da peça de seu pai, é destacada sua consciên- cia sobre isso: E aqui está a minha vida! O que eu sou, o que eu valho, o para que me querem – uma comediante! (...) E deu-me Deus alma para compreender a vida! Sente-me o coração, concebe-me o espírito quan - GARRett e o ReSgAte do TeAtRo PoRtUgUêS 47

to podia, quanto devia ser alta e sublime a minha missão na Terra – e pobre, e sujeita, e humilde, e mulher sobretudo. (GARRett, 1966, p. 1355) É interessante notar nessa fala de Paula que, além de maldizer sua condição social, seu ressen- timento é aprofundado pela sua sabedoria em compreender que poderia ser mais importante do que é, se não fosse “pobre”, “humilde” e “mulher”. Não é sem intenção que, mesmo em uma peça em que são exaltados os nomes de nobres como D. Manuel e do cavaleiro Bernardim Ribeiro, a qualidade de um membro do povo seja elevada. Garrett pretendia uma reformulação nos hábitos da sociedade e o povo era parte basilar desta, por isso, não é surpreende sua valorização. Se torna fácil de entender essa ideia ao lembrarmos que o mesmo autor anos mais tarde, em Viagens na Minha Terra, vai reafirmar a importância político- social do “povo povo”. Mais um contraste entre a nobreza e o povo pode ser verificado em uma fala de Paula que transporta a essência do teatro para além dos limites da apresentação formal: “Tudo é representar e fingir nessa vida de corte. Que fosse para os grandes em quem é natureza, não lhes custa. Mas para os pequenos também. é suplício” (GARRett, 1966, p. 1354). Assim, entendemos que a refle- xão ideológica que a peça busca transmitir abarca não só questões culturais, mas também toca o questionamento de relações sociais estabelecidas. Dessa forma, Um Auto de Gil Vicente ocupa um lugar de destaque na literatura dramática por- tuguesa. A peça resgata aspectos culturais e sociais da corte de D. Manuel para serem repensados pelo público do século XIX. A relevância dada à cultura permeia o drama de simbolismo e referên- cias, as quais ganham mais expressividade de acordo com a forma de absorção do público. Um Auto de Gil Vicente não termina em si, como também não o fazem as grandes expressões artísticas, mas planta nos espectadores portugueses o interesse por resgatar uma tradição cultural há tempos deixada de lado. Faz-se necessário ainda, ressaltar que o resgate das raízes do teatro português não tinha o in- tuito de adquirir um caráter saudosista. Para Garrett, o tempo era entendido como passagem, ele flui independente da vontade do homem. Portanto, nas obras garretianas, o tempo assume a con- figuração de algo que passa e modifica as coisas de tal forma que elas nunca mais poderão voltar a ser o que eram. Vemos isso em Viagens na Minha Terra e também em Frei Luis de Sousa . Dessa forma, a trama construída em Um Auto de Gil Vicente reflete uma tentativa de transfor- mação, resgatando textos antigos sob uma ótica moderna e se consolidando através de uma pro- cesso de metamorfose, como ressalta Helena Barbas: Metamorfose vertical, na tentativa de dar vida ao que está morto - empresa suprema da magia. Gar - rett pretende, por um regresso às origens do teatro, desencadear sua permanência e continuidade, pelo juntar dos seres e da sobras, no ressuscitar sobre a cena de autores e actores mortos. Metamorfo- se horizontal, na passagem dos seres/personagens de uns a outros, numa multiplicação de identidades, modos de ser, formas ou máscaras. (1994, p. 105) Assim sendo, a busca no passado por bases para resgatar o teatro português não tinha a inten- ção de revivê-lo, mas sim, servia como instrumento, que ao estabelecer aspectos de identidade na- cional, inovaria as artes dramáticas do século XIX. Deste modo, o passado funciona como elemento incentivador para mudar o presente, e, assim, torná-lo frutífero. 48 MAíRA CoNtRUCCI JAmeL

Considerações Finais Finda esta leitura de Um Auto de Gil Vicente , percebemos que a obra possui mais do que a im- portância de ser o marco inicial do projeto de Almeida Garrett de renovar o teatro nacional portu- guês. A peça não só incitou a sociedade portuguesa a desenvolver hábitos de frequentar o teatro e pensar as artes cênicas, mas o conteúdo de seu drama leva o espectador a mais do que uma forma de se entreter, a refletir sobre os elementos culturais de seu povo. Na mesma linha do que tinha defendido em seu célebre poema Camões , de 1825, Garrett exalta principalmente a essencialidade da arte através dos feitos dos escritores. “Pode mais do que a es- pada, a voz e a pena” (GARRett, 1966, p. 354) diz Camões no Canto Iv do poema e essa ideia é en- contrada novamente defendida em sua tentativa de mudar a sociedade através da cultura. O que reitera mais uma vez sua concepção de que a arte possuía, sobretudo, uma importante função política. No poema, ao ser perguntado por D. Sebastião se os feitos de Camões igualaram os do Gama ou o de Albuquerque, D. Aleixo responde: “Fez mais do que eles; / que os tornou imortais (...) / A fama das letras não perece.” (GARRett, 1966, p. 370). Na peça, Garrett exalta um rei em função do valor que este atribui à arte, e muito mais elevados são os escritores, Gil Vicente e Bernardim Ri- beiro. O autor tenta influenciar a sociedade com uma arte fundamentalmente original e nacional, para tal escolhendo a dramaturgia como meio. Talvez a singularidade da arte teatral resida na efe- meridade de sua encenação, que torna cada representação única e irresgatável. Além desse fato, observa-se na dramaturgia um compartilhar de emoções entre dramaturgo, atores e plateia, que possibilita a essa arte um dinamismo bastante fecundo. Não é de se espantar, portanto, a esco- lha de Garrett pelo teatro para interagir de forma singular e profunda com os portugueses.

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