A secura do sertão nos versos de João Cabral de Melo Neto

Antonio Secchin Um poeta alerta às armadilhas da palavra

E mais: José Castello Puro olhar em movimento >> Anselm Jappe: “O capitalismo é um parêntese na história da humanidade’’ Homero Araújo 310 >> Pietro Corsi: Ano IX Leitores tratados “a palo seco” 05.10.2009 “Para Darwin, estar vivo é ser diferente” ISSN 1981-8469 A secura do sertão nos versos de João Cabral de Melo Neto

No próximo dia 9 de outubro completam-se dez anos da morte de um dos maiores poe- tas brasileiros: João Cabral de Melo Neto. Para relembrar a importância deste escritor para a literatura nacional, a IHU On-Line desta semana contri- bui para a compreensão da obra e da vida do autor do clás- sico Morte e vida Severina.

Contribuem nesta edição o escritor e professor Anto- nio Secchin, da UFRJ, José Castello, biógrafo do poeta, Nylcéa Pedra, doutoranda da UFPR, Homero Araújo, profes- sor da UFRGS, Vera Haas, pro- fessora da e Maria do Carmo Campos, ex-professora da UFRGS.

Por sua vez o economista José Eli da Veiga, professor do Departamento de Economia da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universi- dade de São Paulo - FEA-USP -, fala sobre a Convenção de Copenhage e a pré-candidatura de Marina Silva à presidência do Brasil.

As entrevistas com Pietro Corsi, professor de História das Ciências na Universidade de Oxford, com Anselm Jappe, filósofo e ensaísta alemão, e com Moisés Waismann, professor da Universidade de Caxias do Sul – UCS, completam esta edição.

A próxima edição da IHU On-Line circulará no dia 19 de outubro.

A todas e todos uma boa leitura, uma ótima semana e um excelente feriado na próxima sema- na!

IHU On-Line é a revista semanal do Instituto Humanitas Unisinos – IHU – Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos. ISSN 1981-8769. Diretor da Revista IHU On-Line: Inácio Neutzling ([email protected]). Editora executiva: Graziela Wolfart MTB 13159 (grazielaw@unisi- nos.br). Redação: Márcia Junges MTB 9447 ([email protected]) e Patricia Fachin MTB 13062 ([email protected]). Revisão: Vanessa Alves ([email protected]). Colaboração: César Sanson, André Langer e Darli Sampaio, do Centro de Pesquisa e Apoio aos Traba- lhadores – CEPAT, de Curitiba-PR. Projeto gráfico: Bistrô de Design Ltda e Patricia Fachin. Atualização diária do sítio: Inácio Neutzling, Greyce Vargas ([email protected]) e Juliana Spitaliere. IHU On-Line pode ser acessada às segundas-feiras, no sítio www.unisinos. br/ihu. Sua versão impressa circula às terças-feiras, a partir das 8h, na Unisinos. Apoio: Comunidade dos Jesuítas - Residência Concei- ção. Instituto Humanitas Unisinos - Diretor: Prof. Dr. Inácio Neutzling. Gerente Administrativo: Jacinto Schneider ([email protected]). Endereço: Av. Unisinos, 950 – São Leopoldo, RS. CEP 93022-000 E-mail: [email protected]. Fone: 51 3591.1122 – ramal 4128. E-mail do IHU: [email protected] - ramal 4121. E x p e d i e n t e Leia nesta edição

PÁGINA 02 | Editorial

A. Tema de capa

» Entrevistas PÁGINA 06 | Antonio Carlos Secchin: Um poeta sempre alerta às armadilhas da palavra PÁGINA 09 | Nylcéa Pedra: O poeta da escassez, da antimusicalidade e da racionalidade PÁGINA 12 | José Castello: A poesia de Cabral: puro olhar em movimento PÁGINA 14 | Homero Araújo: Leitores tratados “a palo seco” PÁGINA 16 | Vera Haas: Uma originalidade que vem da especificidade PÁGINA 19 | Maria do Carmo Campos: A subjetividade de João Cabral: legado para a literatura contemporânea

B. Destaques da semana

» Brasil em Foco PÁGINA 22 | José Eli da Veiga: “Separar economia do meio ambiente é não entender nada’’ » Entrevista da Semana PÁGINA 25 | Pietro Corsi: “Para Darwin, estar vivo é ser diferente” » Coluna Cepos PÁGINA 28 | Luciano Correia dos Santos: Quando a TV quer fazer historiografia » Destaques On-Line PÁGINA 30 | Destaques On-Line

C. IHU em Revista

» Eventos » PÁGINA 33| Moisés Waismann: Relações de emprego são relações de poder PÁGINA 35| Anselm Jappe: “O capitalismo é um parêntese na história da humanidade” Perfil PÁGINA 39| Darli de Fátima Sampaio » Sala de Leitura » IHU Repórter PÁGINA 42| Monise Jacques

SÃO LEOPOLDO, 05 DE OUTUBRO DE 2009 | EDIÇÃO 310   SÃO LEOPOLDO, 05 DE OUTUBRO DE 2009 | EDIÇÃO 310 João Cabral de Mello Neto – uma biografia

oão Cabral de Mello Neto (9 de janeiro de 1920, Recife – 9 de outubro de 1999, Rio de Janeiro) foi um poeta e diplomata brasileiro. Sua obra poética, caracterizada pelo rigor estético, com poemas avessos a con- fessionalismos e marcados pelo uso de rimas toantes, inaugurou uma nova forma de fazer poesia no Brasil. Irmão do historiador Evaldo Ca- Jbral de Melo e primo do poeta Manuel Bandeira e do sociólogo Gilberto Freyre, João Cabral foi amigo do pintor Juan Miró e do poeta Joan Brossa. Membro da Academia Pernambucana de Letras e da Academia Brasileira de Letras, foi agraciado com vários prêmios literários.

Obra

Pedra do Sono (1942) Os Três Mal-Amados (1943) O Engenheiro (1945) Psicologia da Composição com a Fábula de Anfion e Antiode (1947) O Cão sem Plumas (1950) O Rio ou Relação da Viagem que Faz o Capibaribe de Sua Nascente à Cidade do Recife (1954) Dois Parlamentos (1960) Quaderna (1960) A Educação pela Pedra (1966) Morte e Vida Severina (1966) Museu de Tudo (1975) A Escola das Facas (1980) Auto do Frade (1984) Agrestes (1985) Crime na Calle Relator (1987) Primeiros Poemas (1990) Sevilha Andando (1990)

SÃO LEOPOLDO, 05 DE OUTUBRO DE 2009 | EDIÇÃO 310  Um poeta sempre alerta às armadilhas da palavra

Antonio Carlos Secchin define João Cabral de Melo Neto como cauteloso e descon- fiado das representações convencionais do real. Por isso, nos ensina a não acreditar fácil demais no que as palavras dizem, nem na própria palavra do poeta

Por Graziela Wolfart

que faz de João Cabral de Melo Neto um escritor tão atual? “Sua visão completamente reformuladora do conceito de lirismo em língua portuguesa”. A resposta foi dada pelo escritor e professor Antonio Carlos Secchin, membro da Academia Brasileira de Letras, que concedeu a entrevista que segue, com exclusividade, à IHU On-Line por telefone. Secchin considera Cabral, em relação à sua obra poética, “um criador, um desbravador deO um território muito pouco explorado”, ao referir-se à característica do “lirismo de subtração”, o que ele chama de “poesia do menos”. Na visão de Antonio Secchin, “os dez anos da morte de João Cabral, paradoxalmente, talvez nem lembrem o período que se passou, porque ele continua vivo”. E sobre a contribuição do poeta para a literatura brasileira, ele destaca que “não há como negar que essa virada da poesia brasileira em oposição à sua tradição lírica e confessional é devida à presença marcante de João Cabral”. Antonio Carlos Secchin é graduado em Português - Literaturas de língua portuguesa, e mestre e doutor em Letras (Letras Vernáculas) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, e pós-doutor pela Universidade Federal do Pará. É professor de Literatura Brasileira na Faculdade de Letras da UFRJ e autor de inúmeros livros, entre os quais destacamos João Cabral: a Poesia do Menos (São Paulo: Duas Cidades, 1987. 2.a ed. rev. ampliada. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999); e Guia dos Sebos (4.a ed. rev. e ampliada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/SABIN/FBN, 2003). Organizou, entre outros, Os Melhores Poemas de João Cabral de Melo Neto (São Paulo: Global, 1985. 9.a ed. 2003); Primeiros Poemas de João Cabral de Melo Neto (Rio de Janeiro: Faculdade de Letras da UFRJ, 1990); e Poesia Completa e Prosa, de João Cabral de Melo Neto (Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008). Confira a entrevista.

IHU On-Line - Passados dez anos da Nova Aguilar, que eu tive a honra de se tornarem “subcabrais”. Mas não há morte de João Cabral de Melo Neto, organizar, e vários volumes da editora como negar que essa virada da poesia onde reside a importância de relem- Alfaguara, publicando espaçadamen- brasileira em oposição à sua tradição brarmos seu legado à literatura bra- te o conjunto da obra de João Cabral. lírica e confessional é devida à pre- sileira? Isso demonstra que é sempre bom sença marcante de João Cabral. Antonio Carlos Secchin – Os dez anos fazer rememoração, mas que Cabral da morte de João Cabral, paradoxal- está acima dessas efemérides. IHU On-Line - O que o senhor enten- mente, talvez nem lembrem o perí- de pela “poesia do menos” em João odo que se passou, porque ele con- IHU On-Line – E por que o senhor Cabral de Melo Neto? tinua vivo. Há vários escritores que acha que ele continua tão atual? Antonio Carlos Secchin – Isso foi tra- necessitam dessas efemérides para Antonio Carlos Secchin – Pela sua balhado na minha tese, que se trans- que voltem à tona uma vez que cos- visão completamente reformuladora formou no livro João Cabral. A poe- tumam cair num limbo depois do fa- do conceito de lirismo em língua por- sia do menos. Defini essa poesia do lecimento. Eu tenho a impressão de tuguesa. Ele criou um caminho muito menos por uma espécie de lirismo de que Cabral é relembrado sempre. Ele próprio, muito pessoal, e, a partir da subtração: ao invés de inflar o poema continua um poeta muito vivo. A sua sua novidade, isso gerou efeitos em de confessionalismo ou de subjetivi- obra continua produzindo efeitos na vários outros poetas - e esses efeitos dade, ele deseja que o poema mostre literatura brasileira. E basta dizer que nem sempre são bons, a meu ver, por- um real externo. É claro que isso não antes desses dez anos já saíram obras que Cabral é tão pessoal que aqueles existe. No próprio ângulo de capturar completas dele, no ano passado, pela que querem segui-lo correm o risco de no real essa ou aquela paisagem já  SÃO LEOPOLDO, 05 DE OUTUBRO DE 2009 | EDIÇÃO 310 está o olhar e a mão do poeta. Mas IHU On-Line - Qual a importância da ele simula essa ausência do poeta “João Cabral ficou a questão geográfica na obra de João para que as coisas possam ter voz e Cabral? Onde entra aqui a questão não sejam apenas mediadas pela voz vida inteira tentando do regionalismo? subjetiva do próprio poeta. Antonio Carlos Secchin – A importân- descobrir quem era João cia é absoluta, porque ele é de tal IHU On-Line - E por que se trata de modo apegado ao sertão, a Pernam- uma poesia solitária? Cabral. Creio que não buco e ao Recife, que não se conside- Antonio Carlos Secchin – É solitária ra um poeta brasileiro, mas um poeta na medida em que não encontramos conseguiu. E ainda bem” nordestino ou pernambucano. Disse antecedentes dessa linhagem na po- também – e aí a gente não concorda, esia em língua portuguesa, nem no não temos uma poesia sentimental ou mas cita a ideia do poeta – que não Brasil, nem em Portugal. Ele é um amorosa na obra de João Cabral. Pre- possuía imaginação, apenas memó- criador, um desbravador de um terri- firo dizer que nós temos uma poesia ria. Como se pudesse haver a memó- tório muito pouco explorado. A maior erótica: o feminino é como um obje- ria sem imaginação. Mas isso é ape- analogia na literatura brasileira que to, plástico visualmente, e prazeroso nas para sublinhar a importância que se pode fazer com Cabral, aliás, feita para o poeta que vai descrevendo-o ele concedia ao elemento concreto, por ele mesmo, não se encontraria na sem qualquer envolvimento subjeti- histórico, geográfico, bem localiza- poesia, e sim na prosa: no texto de vo, apenas pela beleza que esse ob- do. Ele só podia escrever a partir de Vidas Secas, de Graciliano Ramos. jeto provoca na sua percepção. E é experiências que viveu. Como viveu muito sintomático disso o fato de que a infância em Pernambuco e tem na IHU On-Line - Como se dá o proces- essas personagens femininas, primei- marca de seu próprio corpo e de sua so de apropriação do real por João ro, não são nomeadas, e, segundo, sensibilidade essa imagem inapagá- Cabral? não aparecem em relação afetiva ou vel, ele passa grande parte de sua Antonio Carlos Secchin – Esse pro- mesmo amorosa com o poeta, apenas obra revisitando esses lugares da ori- cesso se dá através de uma visão sem- distanciadas, como se ele estivesse gem. pre desconfiada das representações diante de um quadro e o descrevesse convencionais do real. Se dá também prazerosamente. IHU On-Line - Que relações pode- através da desconfiança de que as pa- mos estabelecer entre João Cabral, lavras, muitas vezes, quando fingem IHU On-Line - Quem foi João Cabral Drummond e Manuel Bandeira? mostrar alguma coisa, a estão escon- de Melo Neto? O que marcou a vida Antonio Carlos Secchin – Entre João dendo. Então, a palavra pode ser um e morte cabralina? Cabral e Bandeira o fato de serem pri- embuste, uma maneira de valorizar o Antonio Carlos Secchin – Ninguém mos. E primos muito diferentes. Creio lugar comum, de anestesiar a percep- sabe quem se é. E a literatura é uma que João Cabral, apesar de nunca ção. E João Cabral, contrariamente a maneira de desesperadamente ou haver formalizado uma crítica direta isso, é sempre alerta às armadilhas pacificamente tentar encontrar uma a Manuel Bandeira, percebia, neste da palavra, para que nós não acredi- resposta para a pessoa tentar saber grande poeta também pernambucano, temos fácil demais no que elas dizem quem é. E ninguém é nada em defini- um tipo de produção completamente e para que não acreditemos nem na tivo; tudo é um processo. João Cabral contrária à que ele, Cabral, valoriza- própria palavra do poeta. Ele é sem- ficou a vida inteira tentando desco- va. Bandeira era a representação do pre cauteloso e desconfiado. brir quem era João Cabral. Creio que lirismo em nossa poesia. E não foi à não conseguiu. E ainda bem. toa que, quando João Cabral publicou, IHU On-Line - Como se caracteriza o em 1966, A educação pela pedra, ele feminino na obra de João Cabral? IHU On-Line - Por que Cabral nunca resolveu homenagear o primo, dedi- Antonio Carlos Secchin – É um femi- deixou de ser João? cando a ele este livro, mas com uma nino também inovador, porque nós Antonio Carlos Secchin – Porque ele dedicatória um pouco “envenenada”, que dizia: “A Manuel Bandeira, esta  Graciliano Ramos (1892-1953): escritor ala- tem uma poesia cerebral, metalin- goano, nascido em Quebrângulo. Autor de nu- guística e abstrata, mas também tem antilira pelos seus 80 anos”. E quanto merosas obras, várias delas adaptadas para o uma poesia popular e de comunica- cinema, como Vidas Secas e Memórias do cár-  Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho cere, em 1963 e 1983, respectivamente, por ção imediata. A partir disso, dessa (1886-1968): poeta, crítico literário e de arte, Nelson Pereira dos Santos. A obra Vidas Secas concepção que ele próprio reconhece professor de literatura e tradutor brasileiro. foi o objeto de estudo do Ciclo de Estudos so- ao falar das duas águas da sua poesia, Considera-se que Bandeira faça parte da ge- bre o Brasil, de 17-06-2004. Quem conduziu o ração de 22 da literatura moderna brasileira, debate foi a Profª MS Célia Dóris Becker, das é que me ocorreu essa possibilidade sendo seu poema Os Sapos o abre-alas da Se- Ciências da Comunicação da Unisinos. Confira de comentarmos que existe uma poe- mana de Arte Moderna de 1922. Juntamen- uma entrevista que a professora concedeu so- sia de Cabral e existe uma poesia do te com escritores como João Cabral de Melo bre o tema na 105ª edição da IHU On-Line, de Neto, , Gilberto Freyre e José Con- 14-06-2005, disponível para download no sítio João. dé, representa o que há de melhor na produ- do IHU, www.ihu.unisinos.br. (Nota da IHU On- ção literária do estado de Pernambuco. (Nota Line) da IHU On-Line) SÃO LEOPOLDO, 05 DE OUTUBRO DE 2009 | EDIÇÃO 310  a Drummond, foi a maior influência no “Agora o livro já não tem pedia um encontro com ele para discu- início de sua carreira. João Cabral de- tirmos aspectos da obra. dicou dois livros a Carlos Drummond. mais tanta função assim. Disse que aprendeu com ele a fugir IHU On-Line – Mudando de assunto, da melodia do verso tradicional. Mas Já cumpriu o seu papel pode falar um pouco sobre sua cole- depois essa influência foi muito- mo ção pessoal de livros? derada e creio que até pessoalmente numa fase pré-Internet” Antonio Carlos Secchin – De fato, te- os dois se separaram, em termos de nho uma biblioteca bastante boa, devo amizade. ter cerca de doze mil volumes. Tudo bral, até por ser diplomata, era muito começou pelo meu interesse em ler, IHU On-Line - Como era a Espanha seletivo na distribuição de elogios aos conhecer muito. Queria me aprofundar de João Cabral de Melo Neto? seus estudiosos, porque eram tão nu- em autores que não eram canônicos, Antonio Carlos Secchin – João Cabral merosos e ele supunha que se falasse que não eram consagrados pela his- construiu uma visão muito intensa mais de um ou de outro, um terceiro toriografia. Isso inevitavelmente me da Espanha. Não há dúvidas de que ou quarto poderia ficar melindrado. levou à caixa de edições que eram ra- a Espanha, principalmente, a região Então, ele tinha muita cautela nesse ras: com os poetas do século XIX, que da Andaluzia, e o Nordeste, sobretu- ato de tornar público o seu endosso de nunca eram reeditados. E nesse con- do Pernambuco, são as marcas geo- determinada leitura. Quanto a mim, tato com esses poetas e autores fora gráficas mais fortes da obra de João só posso ficar muito lisonjeado e agra- do cânone, se desenvolveu em mim um Cabral. Ele tem mais de cem poemas decido por essa acolhida de João Ca- apego ao objeto livro. Claro que o mais dedicados à Espanha. E não tem um bral que se traduziu em vários níveis. importante é o texto, o que está escri- verso sequer dedicado ao Rio de Ja- Não apenas na frase que ele disse, que to, mas o objeto não deixa também de neiro, onde também morou. Numa reconhecia meu trabalho como aquele revelar aspectos da cultura, por exem- entrevista concedida a mim, ele co- que tinha levado mais longe a análise plo, saber que tipo de papel se usava mentou que reencontrou um pouco da do seu projeto, mas também em ou- ou qual era a ortografia. Muitas edi- paisagem nordestina nos arredores de tros elementos, como ele ter me es- ções modernas suprimem informações Barcelona, portanto, a partir de uma colhido para ser o organizador de uma que você só encontra nas primeiras identidade. Mas depois eu estudei o série chamada “os melhores poemas” edições, como prefácio e comentários. assunto e observei que há a marca do que a Editora Global publica há muitos Notei que, para simplificar e gastar feminino na Espanha, enquanto que anos com sucesso, e aí eu tinha pouco menos papel, as edições modernas não Pernambuco é o masculino, é o áspe- mais de 30 anos e havia opções mui- são fiéis às edições antigas. ro, o agressivo. E o feminino não só to qualificadas para a indicação dele, na cidade acolhedora e maternal de e ele fez questão de que fosse eu o IHU On-Line – E essa sua ligação com Sevilha, mas também nas bailadoras organizador. Depois ele me confiou os os livros leva o senhor ao mundo dos do cante flamenco. Não é a toa que originais de seus poemas de juventu- sebos... essa vertente erótica de João Cabral de, que eu publiquei pela Faculdade Antonio Carlos Secchin – Também. tenha se desencadeado depois de sua de Letras da UFRJ, intitulado Primei- Escrevi um guia comentado dos sebos experiência na Espanha. ros poemas. E mais tarde, quando eu de quase todas as capitais do Brasil, disputei a titularidade da Faculdade porque conheço e compro muito em IHU On-Line - Para o senhor, o que de Letras com uma conferência sobre sebos, e achei que era um serviço representou o reconhecimento de a obra de João Cabral, ele também me quase que de utilidade pública trans- seu trabalho pelo próprio João Ca- honrou com sua presença. Ele que não mitir isso. Mas acredito que, devido bral? gostava de conferências, pois preferia à intensidade da proliferação desse Antonio Carlos Secchin – É uma enor- sempre ler que ouvir, lá esteve para mercado na Internet, através de sites me alegria, porque eu sei que João Ca- prestigiar este evento. Fora o fato de como a Estante Virtual, agora o livro haver me acolhido sempre que o soli-  Carlos Drummond de Andrade (1902-1987): já não teria mais tanta função assim. poeta brasileiro, nascido em Minas Gerais. citei. Quando ele publicava um livro, Já cumpriu o seu papel numa fase pré- Além de poesia, produziu livros infantis, con- eu sempre o lia com atenção e depois internet. tos e crônicas. (Nota da IHU On-Line)

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 SÃO LEOPOLDO, 05 DE OUTUBRO DE 2009 | EDIÇÃO 310 O poeta da escassez, da antimusicalidade e da racionalidade

Na visão de Nylcéa Pedra, João Cabral de Melo Neto encontra na literatura medie- val espanhola a forma para expressar a secura do seu sertão

Por Graziela Wolfart

o esboçar as principais características da obra de João Cabral de Melo Neto, a professora Nylcéa Pedra aponta o racionalismo e o concretismo como elementos constantes em seus versos. “O controle da palavra, da emoção, o uso da palavra como ‘coisa’ e não sentimento são as características que mais se evidenciam. Não podemos deixar de falar da sua anti- musicalidade, refletida no laborioso trabalho de construção dos versos, rompendo com as Arimas comumente utilizadas na língua portuguesa e fazendo uma escolha pela rima toante. E destaco ainda outra característica, derivada do seu exercício de crítico na poesia, que é discutir e apresentar o seu próprio fazer poético em seus poemas”. Na entrevista que segue, concedida especialmente à IHU On-Line por e-mail, Nylcéa afirma acreditar que “o grande legado deixado por João Cabral tenha sido sim escrever à sua maneira, conceber a sua forma poética, única, cabralina. Pode haver maior legado que esse?”. E considera importante lembrar que o poeta “sempre professou seu antimusica- lismo, sua aversão às rimas fáceis e melódicas. Encontrar uma estrutura rítmica, cortante, seca, foi como encontrar o sertão na poesia”. Nylcéa Thereza de Siqueira Pedra é licenciada em Língua Espanhola e mestre em Letras pela Uni- versidade Federal do Paraná e mestre em Língua e Literatura Hispânicas pelo Consejo Superior de Investigaciones Científicas, de Madrid/Espanha. Atualmente, é aluna do programa de Doutorado em Letras da Universidade Federal do Paraná. É professora de língua, literaturas em língua espanhola e suas metodologias em faculdades particulares em Curitiba. Confira a entrevista.

IHU On-Line - Quais os pontos cen- (vale lembrar que nesta época tinha touros e o flamenco. Mais do que uti- trais do tema escolhido pela senhora lido apenas “Morte e vida severina”). lizá-las unicamente como argumento para a sua tese de doutorado em an- E fiquei com isso na cabeça. Anos de- para os poemas, encontra nelas um damento “Um João caminha pela Es- pois, lendo a obra completa de João símile do seu fazer poético. Assim, “A panha: a reconstrução do espaço na Cabral constatei que, além de touros, palo seco”, “Estudios para uma baila- obra poética de João Cabral de Melo o poeta dedicava versos ao canto e dora andaluza” e “Alguns toureiros” Neto”? baile flamencos, aos toureiros, pinto- exemplificam a profunda identificação Nylcéa Pedra - Para responder a esta res, escritores e ao espaço espanhol. do poeta com as artes genuinamente pergunta acho interessante explicar A ideia central da tese surgiu desta espanholas. Neste “caminhar artísti- primeiro como conheci a relação de constatação, e defendo uma progres- co” João Cabral chega a seus dois últi- João Cabral de Melo Neto com a Espa- siva e consciente aproximação do po- mos livros (Sevilha Andando e Andando nha. Em uma aula de Teoria da Litera- eta à cultura e ao espaço espanhóis. É Sevilha) à Espanha que lhe calou mais tura, ainda na graduação, o professor interessante observar este movimento profundamente: a Sevilha trianeira Adalberto Müller levou certa manhã o nos versos. O primeiro olhar de João (cigana), das ruas estreitas que sabem poema “Lembrando a Manolete” e nos Cabral para a Espanha é o do intelec- acolher o homem, a uma Sevilha de chamava a atenção para a construção tual que encontra seus pares nas ar- bolso que a partir de então será sem- formal do poema. Os encavalgamentos tes ditas nobres como a pintura e a pre levada pelo poeta. entre os versos recriavam o movimen- escritura. Dessa época são os poemas to do capote do toureiro em cada uma “Homenagem a Picasso”, “Encontro IHU On-Line - Como se dá a recons- das passagens do touro. Aquilo me im- com um poeta”, “Medinaceli” e o im- trução do espaço na obra de João pressionou muito não apenas pelo tra- portantíssimo estudo crítico de Cabral Cabral? balho de construção dos versos, mas sobre a obra do pintor Joan Miró. Des- Nylcéa Pedra - Gosto de comparar esta pela habilidade do poeta em transitar taco um segundo encontro, o do poeta reconstrução ao movimento da lente por uma cultura que não era a sua com as artes populares, a corrida de de uma câmera fotográfica. Como disse SÃO LEOPOLDO, 05 DE OUTUBRO DE 2009 | EDIÇÃO 310  antes, João Cabral vai se aproximando que compongamos io e tú una prosa”. gradativa e conscientemente tanto da “Indiscutivelmente há Mas também podemos falar de outra cultura como do espaço espanhol. Nos secura, a das rimas, essas assonantes primeiros versos sobre a geografia es- marcas regionais na tão pouco usadas na poesia de língua panhola, “Campos de Tarragona”, para portuguesa e que serão adotadas por colocar um exemplo, o poeta está com poesia cabralina” João Cabral desde o seu encontro com a lente totalmente aberta e observa de a literatura medieval espanhola. Vale longe, sem tocar e sem deixar-se tocar verde, exuberante, feminina, com lembrar que o poeta sempre professou por aquela terra. Lentamente começa vida e recebe do poeta nada menos seu antimusicalismo, sua aversão às ri- a dar o zoom e encontramos um poe- que um reconhecimento em dois livros mas fáceis e melódicas. Encontrar uma ma como “Chuvas”, no qual, ainda a que já citei “Sevilha Andando e Andan- estrutura rítmica, cortante, seca, foi contragosto, se empapa com a chuva do Sevilha” e também a edição apre- como encontrar o sertão na poesia. galega. O grande zoom é feito então sentada em Sevilha, em 1992, para a em Sevilha. Tudo é percebido naquela comemoração dos 500 anos da chega- IHU On-Line - Em que sentido pode- cidade: ruas, praças, ruídos, cheiros e da de Colombo à América, “Poemas mos perceber as “gotas galegas” no movimentos. E tudo toca o poeta que Sevilhanos”. E então acho que posso fazer poético de João Cabral de Melo cria um símile bastante interessante: responder à pergunta sobre qual a im- Neto? Qual a influência na sua obra a cidade é a mulher e a mulher é a ci- portância da questão geográfica e do do período vivido na Espanha? dade, como sugerem os títulos Sevilha espaço na obra de João Cabral com os Nylcéa Pedra - Quando fui convidada andando e andando Sevilha. próprios versos do poeta. Refiro-me ao para dar uma conferência sobre a re- poema “Autocrítica” que diz “Só duas lação de João Cabral de Melo Neto e IHU On-Line - Qual a importância da coisas conseguiram/ (des)feri-lo até a a Galícia, de saída, acreditei que se- questão geográfica e do espaço na poesia:/ o Pernambuco de onde veio/ ria impossível estabelecer grandes re- obra de João Cabral? Quais as princi- e o aonde foi, a Andaluzia./ Um, o va- lações entre ambos, por isso, titulei a pais marcas dos retratos geográficos cinou do falar rico/ e deu-lhe a outra, fala “gotas galegas”, pequenas coisas cabralinos feitos desde o sertão até fêmea e viva,/ desafio demente: em galegas. De fato, o único poema onde Sevilha? verso/ dar a ver Sertão e Sevilha”. se lê explicitamente a presença da Ga- Nylcéa Pedra - Dia desses, Carlos Ma- lícia é em “Chuvas”, poema no qual chado, escritor curitibano, perguntou- IHU On-Line - O que caracteriza a aparece também uma referência a po- me se eu achava que João Cabral era passagem de João Cabral de Melo eta galega Rosalía de Castro. Descobri um poeta regionalista. Respondi que Neto do medieval espanhol à secura que, com Rosalía, João Cabral divide mais do que regionalista, João Cabral do sertão? semelhante preocupação social, espa- era, para mim, “espacialista”, já que Nylcéa Pedra - Não diria passagem, cializada nos versos. Rosalía escrevia não acredito que qualquer escritor mas encontro. João Cabral encontra em sua época sobre os homens gale- possa colecionar regionalismos. Expli- na literatura medieval espanhola a gos que precisavam emigrar pela falta co: indiscutivelmente há marcas re- forma para expressar a secura do seu de condição de vida na Galícia, eram gionais na poesia cabralina. Além dos sertão. Há o registro de uma entre- seus Severinos. Para isso, descrevia a poemas de vertente social - me refiro vista com o poeta na qual disse que sua terra. Vejo isso também em “Morte a “O rio”, “O cão sem plumas” e “Mor- não vale a pena escrever para o povo e vida Severina”. A saga de Severino é te e vida Severina” – nos quais o refe- sem a forma que ele usa. Mais tarde resultado da secura de sua terra. Mas o rente espacial – e regional – aparece afirmou ter encontrado esta forma na que mais me chamou a atenção neste explicitamente na imagem do Capiba- literatura medieval espanhola. E o que contato de João Cabral com a literatura ribe, no desejo do retirante de chegar chama a atenção de Cabral nos poemas galega foi o uso do modelo de romance ao Recife ou na secura do Sertão, há medievais espanhóis? A construção dos de tenção. Em entrevista concedida a outra série de poemas que contextu- versos. O legado deixado por Berceo Antonio Carlos Secchin, o poeta afirma aliza a presença de Pernambucano no uso da cuaderna vía (versos de qua- que “Morte e vida Severina” é uma ho- como o espaço referencial do poeta. torze sílabas, com rimas assonantes, menagem a todas as literaturas ibéri- Ideia que se reforça quando lemos as distribuídos em dois hemistíquios de cas, e que a conversa de Severino com primeiras entrevistas dadas por João sete sílabas) será a forma métrica tra- Seu José, antes de o menino nascer, Cabral ao chegar como diplomata na balhada por João Cabral em “O Rio” e obedecia ao modelo de tenção galega. Espanha. O poeta diz-se feliz por ter também nos seus dois outros poemas Há uma coerência muito grande nesta encontrado terra tão árida como o seu de vertente social, feitos para serem escolha. Na mesma entrevista, João Recife (referindo-se à meseta caste- lidos em voz alta. Esses versos longos, Cabral afirma que a literatura galego- lhana), e os primeiros poemas espa- com rimas assonantes, dão ao poema portuguesa não lhe despertava nenhu- ciais espanhóis de fato confirmam este um aspecto narrativo, de prosa. E en- ma atenção porque era extremamente reconhecimento. No entanto, aparece tão compreendemos a epígrafe de Ber-  Confira nesta edição uma entrevista exclu- Sevilha, oposto absoluto do Recife: ceo na abertura de “O rio”: “Quiero siva com Antonio Secchin. (Nota da IHU On- Line) 10 SÃO LEOPOLDO, 05 DE OUTUBRO DE 2009 | EDIÇÃO 310 musical. Dentre os modelos de romance que Vinícius é um poeta da inspiração cio de crítico na poesia, que é discutir da literatura galega medieval (me refi- e ele, Cabral, da transpiração – prefe- e apresentar o seu próprio fazer poé- ro especialmente às cantigas de amigo, ri trabalhar com dois temas. E a esco- tico em seus poemas. Há uma cartilha de escárnio e maldizer e aos romances lha da mulher e da cidade foi bastante cabralina em seus poemas, e um leitor de tenção) João Cabral escolhe a me- consciente. Três poetas, três mulheres, atento a encontra e a compartilha com nos musical e mais narrativa. Para os três espaços, mas com um elemento o poeta. Estas são as características que não sabem, o romance de tenção em comum: a intensidade. As mulheres mais gerais. Agora, com a minha tese se caracteriza pelo jogo de duas vozes, se inscrevem nos espaços que habitam pretendo demonstrar que o espaço – já uma contrariando o que a outra afirma- – seja Paris, Rio de Janeiro ou Sevilha não apenas entendido como a folha de ra anteriormente. É o mesmo exercício – e, por vezes, se metamorfoseiam nes- papel onde o poeta escreve os seus ver- dos repentistas nordestinos. Creio que tes espaços, e então são elas Paris, Rio sos – assume uma importância significa- o poema que melhor ilustra o uso desta e Sevilha. Verifica-se que a intensidade tiva na poesia de João Cabral. Defendo estrutura de tenção é o “O Motorneiro vivida no caminhar pelas cidades é in- a ideia de uma poesia espacial-geográ- do Caxangá”, nos movimentos de ida e versamente proporcional a do contato fica cabralina, seja a do Recife, seja a vinda do motorneiro, como na constru- com a mulher, e, para os três poetas, de Sevilha. E ainda há outra caracte- ção de duas vozes, é possível conhecer nesta relação entre o feminino e a ci- rística que me parece importantíssima, as diferentes faces do sertão. dade caberiam os versos cabralinos: a que me referi várias vezes ao longo “Se viver-te será curto, /.../ que viver- desta entrevista, que é a capacidade IHU On-Line - Como Cabral se rela- te seja intenso”. do poeta de contar “casos” em versos, cionava com a cultura galega? esse caráter narrativo à primeira vista Nylcéa Pedra - Não poderia dizer que tão oposto ao construtivismo dos poe- não se relaciona porque estaria negan- “A saga de Severino é mas. Respondendo a sua segunda per- do as colocações que fiz há pouco. No gunta. Sinceramente não acredito em entanto, posso dizer que esta relação resultado da secura de legados no sentido de “heranças” dei- é bastante pontual - no diálogo com xadas pelos poetas que serão utilizadas Rosalía de Castro, no uso da tenção sua terra” por seus seguidores. Acredito que o galega - e incomparável com a manti- grande legado deixado por João Cabral da com Sevilha. Pessoalmente, acredi- tenha sido sim escrever à sua maneira, to que o poema “Chuvas” responde o conceber a sua forma poética, única, motivo desta ausência. Galícia é abun- IHU On-Line - Quais as característi- cabralina. Pode haver maior legado dante, nas chuvas, na musicalidade da cas gerais da obra de João Cabral de que esse? língua, na expressão dos sentimentos, Melo Neto e qual o maior legado que nela, como diz um verso do poema “se ele deixa para a literatura brasileira IHU On-Line - Gostaria de acrescen- perde o tento” coisa inconcebível para e mundial? tar mais algum comentário sobre o o poeta da escassez, da antimusicali- Nylcéa Pedra - Essa pergunta é real- tema? dade e da racionalidade. mente complicada porque me esten- Nylcéa Pedra - Falar de João Cabral deria muito para poder respondê-la é para mim sempre motivo de alegria IHU On-Line - Que paralelos podem de maneira minimamente satisfatória, e apreensão, afinal, é uma respon- ser traçados entre João Cabral de mas vamos tentar. Primeiro as caracte- sabilidade tamanha falar de quem, Melo Neto e Vinícius de Moraes? Por rísticas gerais que assinalam todos os para mim, é um dos grandes – se não que a senhora considera que ambos grandes e bons estudos sobre o poeta o grande – nome da poesia brasileira. são “modernos à sua maneira”? e pelas quais conhecemos o fazer po- E encerro com uns versos do poeta, Nylcéa Pedra - Este estudo é bastan- ético de João Cabral de Melo Neto. O relembrando essa nossa “sina” de não te provocativo. Quis unir dois poetas racionalismo e o concretismo – e aqui ser sós, da necessidade do outro para sempre analisados como antagônicos e estou falando na escrita de versos com perenizar o que somos e, no caso de encontrar elementos que possibilitas- coisas concretas – são constantes em João Cabral, o que escreveu: “Tecen- sem uma aproximação entre eles. Fiz seus versos. O controle da palavra, da do a manhã: Um galo sozinho não tece isso através do legado deixado pelo pri- emoção, o uso da palavra como “coisa” uma manhã:/ ele precisará sempre de meiro poeta modernista, Charles Bau- e não sentimento são as características outros galos./ De um que apanhe este delaire. Mais do que discutir a forma que mais se evidenciam. Não podemos grito que ele/ e o lance a outro; de de construção dos versos – que coin- deixar de falar da sua antimusicalida- um outro galo/ que apanhe o grito que cidiria com a afirmação cabralina de de, refletida no laborioso trabalho de um galo antes/ e o lance a outro; e de construção dos versos, rompendo com outros galos/ que com muitos outros  Charles-Pierre Baudelaire (1821-1867) foi um poeta e teórico da arte francês. É consi- as rimas comumente utilizadas na lín- galos se cruzem/ os fios de sol de seus derado um dos precursores do Simbolismo, gua portuguesa e fazendo uma escolha gritos de galo,/ para que a manhã, embora tenha se relacionado com diversas pela rima toante. E destaco ainda outra desde uma teia tênue,/ se vá tecendo escolas artísticas. Sua obra teórica também influenciou profundamente as artes plásticas característica, derivada do seu exercí- entre todos os galos.” do século XIX. (Nota da IHU On-Line) SÃO LEOPOLDO, 05 DE OUTUBRO DE 2009 | EDIÇÃO 310 11 A poesia de Cabral: puro olhar em movimento

Conhecedor de João Cabral como poucos, José Castello lembra que o escritor tinha claro que viver é lutar, viver é movimentar. O poeta, de certa forma, é um tourei- ro, que gira e gira (escreve e escreve) para dominar a vida

Por Graziela Wolfart

oão Cabral foi um homem dividido. Mais de uma vez admitiu que vivia em estado de forte turbulência e desordem interiores, e que, para conter essa turbulência, pre- cisou criar a poesia seca, substantiva, áspera que todos conhecemos. Quando falo do homem sem alma, falo do ideal que Cabral criou para si mesmo. Ele desprezava o lirismo, a música e tudo o que lembrasse os sentimentos. Seu ideal (sua couraça, “Jsua proteção) foi a imagem do homem sem alma que construiu como poeta. Mas, sob essa capa, uma grande agitação fervia, e sua poesia, na verdade, é o resultado desse conflito”. É assim que José Cas- tello busca definir o escritor João Cabral de Melo Neto. Na entrevista que segue, concedida por e-mail para a IHU On-Line, Castello destaca que João Cabral “é um poeta que nega os princípios dominantes da poesia e a imagem dominante do poeta. Por isso também foi um gênio”. José Castello, nascido em 1951, no Rio de Janeiro, é um dos mais prolíficos críticos literários do Brasil hoje. Colabora regularmente com O Globo, Valor Econômico e Rascunho, entre outras publi- cações. Depois de 20 anos trabalhando com jornalismo literário, Castello escreveu o livro Inventário das sombras (Rio de Janeiro: Record, 1997), no qual conta os detalhes dos encontros que teve com escritores como , Ana Cristina Cesar, , Manoel de Barros e José Sa- ramago, com o jornalista João Rath e com o artista plástico Arthur Bispo do Rosário. É também autor de perfis e biografias, como : o poeta da paixão (São Paulo: Companhia das Letras, 1993); Pelé – Os dez corações do rei (Rio de Janeiro: Ediouro, 2004); e João Cabral de Melo Neto: o homem sem alma & Diário de tudo (2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006). Também é autor do romance Fantasma (Rio de Janeiro: Record, 2001), originalmente concebido como um volume sobre Curitiba, cidade onde Castello está atualmente radicado. Confira a entrevista.

IHU On-Line - João Cabral é um ho- IHU On-Line - Quem foi João Cabral derramamento, trabalham com versos mem sem alma ou um homem de de Melo Neto? Quais as principais ca- curtos, chegam ao osso das coisas. Ora, alma sufocada? racterísticas de sua personalidade? um homem que precisa se conter tan- José Castello - João Cabral foi um ho- O que mais marcou sua vida e morte to, se vigiar tanto, se reduzir tanto, é mem dividido. Mais de uma vez admi- severina? porque carrega dentro de si um grande tiu que vivia em estado de forte turbu- José Castello - Foi um homem discreto, derramamento. Se temos um mundo lência e desordem interiores, e que, tímido, seco. Na companhia dos amigos interior tranquilo, não precisamos de para conter essa turbulência, precisou mais chegados, porém, se abria, falava tantas defesas, de tantas armaduras. criar a poesia seca, substantiva, ás- muito, derramava-se. Foi um homem As defesas e armaduras são a prova da pera que todos conhecemos. Quando contraditório, como todos somos. A dife- agitação que carregava dentro de si. falo do homem sem alma, falo do ideal rença é que soube arrancar dessa ambi- que Cabral criou para si mesmo. Ele guidade uma poesia genial. IHU On-Line - O que o senhor guarda desprezava o lirismo, a música e tudo de mais significativo dos encontros o que lembrasse os sentimentos. Seu IHU On-Line - O que a trajetória pes- que teve com João Cabral? ideal (sua couraça, sua proteção) foi soal de João Cabral denuncia que José Castello - Justamente a manei- a imagem do homem sem alma que justificaria sua dificuldade em lidar ra como Cabral se vigiava, se continha. construiu como poeta. Mas, sob essa com os próprios sentimentos? Como A toda hora, me pedia para desligar o capa, uma grande agitação fervia, e isso aparece na sua obra? gravador, porque não queria gravar con- sua poesia, na verdade, é o resultado José Castello - Suas poesias são secas, fidências ou intimidades. Censurava- desse conflito. substantivas. Desprezam a retórica, o se com grande rigor. Era, porém, uma 12 SÃO LEOPOLDO, 05 DE OUTUBRO DE 2009 | EDIÇÃO 310 censura rica, ela o levava à “alma” das cânica, não é porque vivi tal coisa que coisas. Cabral dizia que o poeta é como devo obrigatoriamente escrever tal poe- um escultor, que corta, corta e corta a ma ou tal poesia. É essa também uma re- sua pedra, até que a escultura surja de lação contraditória, de choque, de luta. dentro dela. João tinha claro que viver é lutar, viver é movimentar. O poeta, de certa forma, IHU On-Line - Como a melancolia do é um toureiro, que gira e gira (escreve e

poeta se refletia em suas obras? escreve) para dominar a vida. José Castello - A melancolia de Cabral era difusa e discreta. Ele a escondia e IHU On-Line - Podemos estabelecer no

disfarçava. Se expressa na dor de ca- algum paralelo entre Clarice Lispec- beça crônica que o acometeu durante tor e João Cabral? toda a vida e que, na juventude, um José Castello - Cabral era pernambuca- tio, que era psiquiatra, chegou a tratar, no, Clarice viveu alguns anos de sua in- sem sucesso, com internamento e cho- fância em Pernambuco. É o único para- ques de insulina. Ela só aparece na obra lelo que vejo. Aliás, vejo outro: no meu de modo discreto. Aparece pelo avesso entender, são os dois maiores escritores onível p – na secura e avareza que tinha com as da literatura brasileira no século XX. br palavras. O João Cabral que conheci era São dois gênios. Dois escritores absolu- . um homem muito melancólico. Ele re- tamente singulares, cuja escrita não se dis clamava porque a melancolia, dizia, era confunde com a de ninguém. um mal do século XIX, e, no século XX, os médicos insistiam em tratá-lo como IHU On-Line - Pode explicar sua frase um deprimido. “Não sofro de depressão, “É negando a poesia que Cabral se está

sou melancólico”, insistia em me dizer, faz poeta”?

“mas os médicos não entendem isso”. A José Castello - Quando falo em “negar unisinos . melancolia, ao contrário da depressão, a poesia”, falo em negar a poesia domi- U não é uma doença, é uma marca do tem- nante, a imagem oficial e banal do po- u H h peramento e do mundo íntimo. eta. O poeta é visto em geral como um I i lírico – Cabral odiava o lirismo. Como um . IHU On-Line - Como João Cabral via homem que vive no mundo da lua – Ca- a morte? bral era um realista. Como um homem do José Castello - Cabral tinha medo da que trabalha com as subjetividades – o morte. Declarava-se ateu, mas, apesar objeto da poesia de Cabral é o mundo disso, afirmava que acreditava no infer- objetivo. Ele é um poeta que nega os www no. Tinha medo da morte porque tinha princípios dominantes da poesia e a ima- medo do inferno. E não se importava gem dominante do poeta. Por isso tam- com essa contradição – que, aliás, é pro- bém foi um gênio. fundamente humana. eventos

Leia mais... IHU On-Line - Como entender a ênfa- José Castello já concedeu outra entrevis- se de João Cabral no aspecto geográ- de ta à revista IHU On-Line. fico em suas obras?

* “Ninguém lê Clarice sem ser devastado pelo que endereço José Castello - É resultado de sua vida lê”. Entrevista publicada na IHU On-Line número de diplomata. Viveu em muitos países e 228, de 16-07-2007, disponível em http://www. continentes diferentes. Foi um andarilho ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_ tema_capa&Itemid=23&task=detalhe&id=558 compulsivo, conhecia intimamente os enda

países e cidades em que viveu. Tudo isso g  Clarice Lispector (1920-1977): escritora nasci- o converteu em uma espécie de poeta da na Ucrânia. De família judaica, emigrou para a andarilho, um poeta andante. Andava o Brasil quando tinha apenas dois meses de idade. Começou a escrever logo que aprendeu a ler, na

para escrever, escrevia para andar. Sua A cidade de Recife. Em 1944, publicou seu primei- poesia é puro olhar em movimento. ro romance, Perto do coração selvagem. Seu ro- mance mais famoso embora menos característico, IHU On-Line - Na sua visão, a obra quer temática quer estilisticamente, é A hora da estrela, o último publicado antes de sua morte. de João Cabral se sobrepõe à vida Sobre a autora, confira a edição 228 da IHU On- dele? Line, de 16-07-2007, intitulada Clarice Lispector. José Castello - Vida e obra estão sempre Uma pomba na busca eterna pelo ninho, disponí- vel no link http://www.ihuonline.unisinos.br//in- interligadas. Mas essa ligação não é me- dex.php?id_edicao=255 (Nota da IHU On-Line) SÃO LEOPOLDO, 05 DE OUTUBRO DE 2009 | EDIÇÃO 310 13 Leitores tratados “a palo seco”

Homero Araújo defende que a obra de João Cabral de Melo Neto, além de ser ar- gumentativa, racional, elegante e formalizada, produz impacto e desestabiliza o leitor. Neste sentido, é uma poesia que está sempre disposta à provocação

Por Graziela Wolfart

s traços mais evidentes da obra de João Cabral de Melo Neto na visão do professor Ho- mero Araújo são: “concisão na frase, argumentação (muitas vezes irônica e maliciosa), vocabulário tendendo ao concreto e à precisão”. Já a poesia “tem métrica e ritmo des- tacados, embora seja uma métrica diversa da que geralmente se usa em língua portu- guesa”. Araújo explica, na entrevista que concedeu, por e-mail, à IHU On-Line, que, na obraO de João Cabral “adota-se uma espécie de linguagem elevada e limpa de coloquialidade, talvez para melhor transmitir o raciocínio e alguma abstração; os quais se dedicam, no entanto, a objetos definidos”. E entende ainda que “João Cabral tratou de estabelecer uma dicção muito própria e reco- nhecível, e sua perspectiva sempre foi de poeta crítico, que pensa e enuncia problemas”. Homero José Vizeu Araújo possui graduação em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mestrado em Letras pela Universidade Federal Fluminense, doutorado em Letras pela Univer- sidade Federal do Rio Grande do Sul e pós-doutorado pela Sorbonne Nouvelle-Paris III. Atualmente, é professor no Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura Brasileira. Tem várias obras publicadas, entre as quais ci- tamos O Poema no Sistema - a peculiaridade do antilírico João Cabral na Literatura Brasileira (Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2002). Confira a entrevista.

IHU On-Line - Como entender a atua- de Lima, ou mesmo do Drummond dos Pessoa. Enfim, João Cabral tratou de lidade de João Cabral de Melo Neto? anos 1950, de Claro Enigma. Sem falar estabelecer uma dicção muito própria O que faz dele um clássico da litera- que a disposição cerebral do poeta bar- e reconhecível, e sua perspectiva sem- tura brasileira? ra o sentimentalismo ou a emoção, tão pre foi de poeta crítico, que pensa e Homero Araújo - João Cabral, ao que evidentes em Cecília Meirelles ou mes- enuncia problemas. Há poemas que se percebe, continua sendo lido, o que mo em vários momentos de Fernando parecem ensaios. Por exemplo, este é já um dado da sua atualidade. Por sobre Auden, outro poeta. outro lado, sua obra é usada na esco- de exposições de arte. (Nota da IHU On-Line) la, não muito, mas está lá. Esta é uma  Jorge de Lima (1893-1953): Médico e poeta, W.H. AUDEN definição de clássico, aquele autor de Lima nasceu em Alagoas. Estudou Medici- (1905-1973) que se lê em aula, na sala de aula, na na em Salvador, transferindo-se para o Rio de Janeiro, onde defendeu tese sobre os serviços classe. Seja como for, o andamento ar- de higiene na capital federal. Ainda estudante Se morre da morte que ela quer. gumentativo da poesia cabralina e seu de Medicina, publicou seu primeiro livro, XIV É ela que escolhe seu estilo, enunciado, mais ou menos linear, o Alexandrinos (1914). Após ter se formado, re- sem cogitar se a coisa que mata tornou a Maceió. Sem jamais ter abandonado a afasta de metáforas sugestivas e mis- Medicina, lecionou na Escola Normal Estadual rima com sua morte ou faz sentido. teriosas, como Murilo Mendes e Jorge da cidade, chegando a ser diretor. Ocupou ou- Mas ela certo te respeitava, tros cargos públicos estaduais, como Diretor- de muito ler reler teus livros,  Murilo Mendes (1901-1975): um dos mais im- Geral da Instrução Pública e Saúde e Deputa- portantes poetas brasileiros, nasceu em Juiz do, além de manter constante seu interesse pois matou-te com a guilhotina, de Fora, Minas Gerais. Publicou seu primeiro pelas artes plásticas. Em 1930, transfere-se, fuzil limpo, do ataque cardíaco. livro, Poemas, em 1930, ano em que também definitivamente, para o Rio de Janeiro, onde estreia o poeta Carlos Drummond de Andrade. clinica e leciona Literatura Brasileira, nas Uni- Recebeu, em 1972, o prêmio internacional de versidades do Brasil e do Distrito Federal. Em IHU On-Line - O que caracteriza a poesia Etna-Taormina. Nesse ano veio ao Brasil 1925 foi eleito vereador, ocupando, três anos  Fernando Pessoa (1888-1935): escritor por- pela última vez. Ao lado de seus livros, Murilo mais tarde, a presidência da Câmara, no Rio tuguês, considerado um dos maiores poetas de Mendes também publicou muito na imprensa, de Janeiro. Em 1945, entrou em contato com o língua portuguesa. (Nota da IHU On-Line) em especial artigos sobre artes plásticas, ten- Modernismo nacionalista e, em 1935, conver-  Wystan Hugh Auden (1907-1973) foi um poe- do ainda escrito muitos textos para catálogos teu-se ao Catolicismo. (Nota da IHU On-Line) ta e crítico inglês. ��������(Nota da IHU On-Line) 14 SÃO LEOPOLDO, 05 DE OUTUBRO DE 2009 | EDIÇÃO 310 linguagem de João Cabral em suas “A Manuel Bandeira esta antilira para explícito sobre seu método. obras? seus oitent’anos”. Na poesia de João Homero Araújo - Acho que críticos Cabral, retomar a linguagem prosaica e A palo seco como João Alexandre Barbosa e Be- próxima da fala, com sua música e rit- nedito Nunes já estabeleceram os tra- mos próprios, era uma tarefa que não (...) ços mais evidentes: concisão na frase, implicava uso de gíria ou coloquialida- argumentação (muitas vezes irônica e de, pelo menos não no sentido mais ób- A palo seco cantam maliciosa), vocabulário tendendo ao vio. E nisso ele está muito distante de a bigorna e o martelo, concreto e à precisão. A poesia tem Drummond, quem ele muito admirava. o ferro sobre a pedra, métrica e ritmo destacados, embora Em sua obra, adota-se uma espécie de o ferro contra o ferro; seja uma métrica diversa da que ge- linguagem elevada e limpa de coloquia- ralmente se usa em língua portuguesa. lidade, talvez para melhor transmitir o a palo seco canta raciocínio e alguma abstração; os quais aquele outro ferreiro: IHU On-Line – O que faz de João Ca- se dedicam, no entanto, a objetos defi- o pássaro araponga bral de Melo Neto um poeta antilíri- nidos. Exemplo? que inventa o próprio ferro. co? Quais suas peculiaridades nesse sentido, principalmente em relação A palavra seda A palo seco existem ao poema? situações e objetos: Homero Araújo - É o próprio João Ca- A atmosfera que te envolve Graciliano Ramos, bral que se define como antilírico na atinge tais atmosferas desenho de arquiteto, dedicatória de A educação pela pedra: que transforma muitas coisas que te concernem, ou cercam. as paredes caiadas,  João Alexandre Barbosa (1937-2006): crí- tico brasileiro e ex-professor da USP, é autor a elegância dos pregos, de obras como A metáfora crítica (São Pau- É como a coisas, palavras a cidade de Córdoba, lo: Perspectiva, 1974); A imitação da forma impossíveis de poema: o arame dos insetos. (São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1975); As ilusões da modernidade (São Paulo: Perspec- exemplo, a palavra ouro, tiva, 1986); Alguma crítica (São Paulo: Ateliê e até este poema, seda. Eis uns poucos exemplos Editorial, 2002); e Mistérios do dicionário (São de ser a palo seco, Paulo: Ateliê Editorial, 2004). (Nota da IHU On-Line) É certo que tua pessoa dos quais se retirar  Benedito José Viana da Costa Nunes (1929) não faz dormir, mas desperta; higiene ou conselho: é um filósofo e escritor brasileiro. Foi um dos nem é sedante, palavra fundadores da Faculdade de Filosofia do Pará, que depois foi incorporada à Universidade Fe- derivada da de seda. não o de aceitar o seco deral do Pará - UFPA. Ensinou literatura e fi- (...) por resignadamente, losofia em outras universidades do Brasil, da mas de empregar o seco França e dos Estados Unidos. Aposentou-se como professor titular de Filosofia pela UFPA, IHU On-Line - Que visão João Cabral porque é mais contundente. tendo recebido o título de Professor Emérito de Melo Neto tinha de seus leitores? em 1998. É autor de O drama da Linguagem, Em que sentido ele, os enfrenta ? Assim, o resultado aponta para uma uma leitura de Clarice Lispector; O tempo na narrativa; Introdução à Filosofia da Arte; O Homero Araújo - Para tentar respon- maneira que, para além de ser argu- dorso do tigre (ensaios literários e filosóficos); der de forma simples uma questão mentativa, racional, elegante e for- João Cabral de Melo Neto (Coleção Poetas complexa, é possível dizer que Cabral malizada, deve produzir impacto, de- Modernos do Brasil); Oswald Canibal (Coleção Elos); Passagem para o poético; A filosofia con- trata seus leitores “a palo seco”, nos sestabilizar o leitor. Neste sentido, é temporânea; No tempo do niilismo e outros termos do poema famoso. Enfim, o po- uma poesia que está sempre disposta ensaios e Crivo de Papel (ensaios literários e eta não deixa de ser razoavelmente à provocação. filosóficos). (Nota da IHU On-Line)

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SÃO LEOPOLDO, 05 DE OUTUBRO DE 2009 | EDIÇÃO 310 15 Uma originalidade que vem da especificidade

Para Vera Haas, Cabral toca a História, a Literatura e a paisagem do Brasil

Por Graziela Wolfart

grande contribuição de João Cabral de Melo Neto para a literatura brasileira, segundo a professora da Unisinos, Vera Haas, é de que, no texto dramático do escritor, há o uso mais intenso de recursos de retomada de palavras e de sentidos. Outra contribuição importan- te, continua a professora, na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, “pode ser a escritura do Brasil, não por meio de narrativas, como vinha ocorrendo nos últimos anos, Amas de textos dramáticos em que a tônica não é somar, acrescer características, mas tirar, diminuir, limpar dos excessos para cruzar sentidos aparentemente inconciliáveis”. Com essa poética, explica, “João Cabral responde criticamente ao aviltamento humano e à busca brasileira por uma identidade mediada pela natureza exuberante e pelo palavreado vivo e fácil tomado à oralidade”. Vera Haas possui graduação em Comunicação Social pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos, onde, atualmente, é professora, e em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. Também na UFRGS, realizou o mestrado em Letras e sua dissertação intitula-se O Autor Implícito: um colecionador. Confira a entrevista.

IHU On-Line - Qual a originalidade de que dialogam com sua estética, senão os gêneros literários caros ao autor, a João Cabral? Qual sua especificidade parcialmente, como é o caso de Arnaldo lírica e o drama. Ou seja, Cabral diz o dentro da literatura brasileira que Antunes, cuja poesia tem como uma das Brasil fugindo às narrativas. Aliás, con- justifica sua permanência? vertentes a poética cabralina. vém lembrarmos que Cabral preferirá a Vera Haas - Bem, diria que a originali- forma do auto não para reproduzir o tom dade cabralina advém de sua especifici- IHU On-Line - Que leitura do Brasil é das vozes regionais, mas para desnudar dade. Primeiramente, percebemos que feita por João Cabral? as formas de dizer o mundo. Quanto à João Cabral produz um texto literário Vera Haas - A leitura do Brasil que encon- representação do país por meio de per- que, de um lado, busca romper com a tramos em Cabral dependerá muito da sonagens e/ou vozes, se tomarmos como tradição lírica literária brasileira (e, efe- obra que focalizarmos, afinal, todo escri- exemplo um de seus textos mais conhe- tivamente, inova!) porque ele desmonta tor tem uma trajetória. Considerando a cidos, Vida e morte Severina ou auto de os recursos usuais de nossa lírica e des- forma, os primeiros livros de João Cabral Natal pernambucano, encontramos uma loca rimas, assonâncias e aliterações do (Pedra do sono ou Os três mal-amados, representação do retirante nordestino, centro (conceitual e formal) do poema por exemplo) apresentam um diálogo figura de um povo desvalido, sem nada lírico, lugar ocupado pela evidência das com a tradição brasileira. Particularmen- seu que não o próprio corpo, ao qual construções da imagem poética. E o tom te, as obras revisam recursos técnicos e caberá, apenas, em morte, uma cova que o escritor ensaia é o tom seco, sem metáforas que, apesar dos movimentos rasa no latifúndio da seca. Nesse texto fluidez: o tom da poesia deve permitir estéticos passados, ainda se apresenta- dramático, tanto a forma auto quanto o a composição de imagens como a seca vam como fórmulas residuais intocadas, protagonista representam um país que e o rio, a moça e o trem, a mulher e apresentando a estagnação da herança abandona seu povo, um país de paisa- a casa, o mar, o canavial, a bailarina, o literária. Formalmente, isso equivale a gens secas e povo mendicante. Ao final edifício... Desse movimento de composi- uma visão lúcida do cenário das letras no do texto, surpreende-nos uma esperança ção do escritor, provém o segundo passo: país e a uma consciência da atitude cria- diversa daquela a que nos acostumamos uma poesia que se desnuda, evidencian- dora e ousada do poeta brasileiro, uma como filhos de um país de matas e na- do o que a crítica convencionou chamar vez que João Cabral pensa não apenas a tureza abundante. Como percebeu An- a máquina do poema (penso aqui em poesia brasileira, mas a lírica do ponto tonio Secchin ao estudar a “poética do um texto de , A educa- de vista universal, como mostra seu en- menos” cabralina, a esperança reside no ção pela pedra). Nesse sentido, João saio Joan Miró, obra prima de teoria da menos, na pequena e esquálida vida de Cabral talvez inove de tal maneira que arte e da literatura. As obras literárias  Confira nesta edição uma entrevista exclu- siva com Antonio Secchin. (Nota da IHU On- ainda não encontramos muitos autores acima destacadas demonstram, ainda, Line) 16 SÃO LEOPOLDO, 05 DE OUTUBRO DE 2009 | EDIÇÃO 310 um Severino que nasce apesar de tudo te, de Nossa Senhora do Carmo. Cabral Vera Haas - Bem, diria que, certa- o que não tem, e que cresce apesar das subverte o tema de origem dos autos ao mente, esses versos não exprimem as perdas já preditas em seu nascimento. colocar em foco não um homem que se palavras de Frei Caneca. Força revolu- Já em um texto formalmente mais ou- santifica, mas um frade que, excomun- cionária, sim, mas distinta da empre- sado, como O auto do frade ou poema gado, ganha a beatitude e a lenda. Com endida por Caneca. Frei Caneca e João para vozes, o escritor utiliza recursos essa representação, o escritor realça o Cabral são homens de seu tempo, sé- que vão da representação da “conta- homem e suas ideias, as dicotomias en- culos os distanciam. João Cabral tem ção” de histórias à projeção de filmes. tre os intelectuais esclarecidos e o povo uma visão crítica, mas arejada, do Desse modo, apesar do caráter datado ao qual se dirigiam. Brasil. Ele não retoma temas históri- dos eventos do auto, consegue colocar cos repisados. Ao contrário, desloca a em cena uma nação em que progres- IHU On-Line - De que maneira João centralidade de Tiradentes para a nos- so tecnológico, consciência intelectual Cabral unia, em sua obra, a arte da sa Independência, colocando no lugar e iluminista e práticas alicerçadas em poesia, a história e a questão social? de centro outro andor, o excomungado expressões do saber popular convivem. Vera Haas - Bem, o modo pelo qual Caneca, filho de tanoeiro. Essa é a figu- Mas trata-se de uma convivência em que Cabral pratica essa união deve-se aos ra histórica que escolhe para repensar essas perspectivas de mundo não se har- recursos que utiliza para a composição a História brasileira e, em particular, monizam, antes, convivem como vozes do poema. Como mencionei acima, o a História do povo e dos intelectuais fundamentalmente diferentes entre si, desnudamento da máquina do poema que buscavam uma República para a de modo que interagem apenas indireta- permite que, pari passu, o autor (ou, nação. Essa é a contribuição do diplo- mente. Possivelmente, esse seja um dos mata, escritor e homem de esquerda. motivos pelos quais Cabral utiliza os três Talvez outro aspecto da força reflexiva gêneros literários para a composição do e crítica de Cabral sejam algumas das seu Poema para Vozes. O texto represen- “Cabral preferirá a fontes com as quais ele dialoga para ta um Brasil que, no curso de sua Histó- compor esse texto. O escritor utiliza ria, não conseguiu reunir essas vozes tão forma do auto não para trechos de cartas de Caneca a uma de dissonantes. suas afilhadas. Nesses excertos, o fra- reproduzir o tom das de descreve o calabouço, a escuridão IHU On-Line - Como a senhora anali- e os ossos ali espalhados. Os eventos sa a representação de Frei Caneca na vozes regionais, mas para que envolveram a tentativa de enfor- poesia “Auto do Frade”, de João Ca- camento do frade carmelita, por outro bral de Melo Neto? desnudar as formas de lado, remetem a narrativas constantes Vera Haas - Quando escrevi minha dis- em livros de História. E as metáforas sertação, O autor implicado: um cole- dizer o mundo” cabralinas para a relação da forca com cionador, analisei as gentes e o frade, o condenado dialogam particularmen- personagens que ocupam boa parte do te com expressões utilizadas para re- auto. Frei Caneca existe nessa inter-re- ainda, o auto implicado) possa eviden- latar a ida do condenado até a forca, lação porque o Auto do frade é um tex- ciar a sobreposição de campos de sen- presentes na coleção Grandes perso- to dramático. Caneca é a voz racional, tido. Podemos retomar as metáforas nagens da nossa História, publicação lúcida como o sol do Recife, ou seja, que compõem o perfil de Frei Caneca da editora Abril Cultural na década clara demais para as gentes (aliás, cla- do Amor Divino: claridade dos ossos, de 1970. Trata-se de um escritor que ridade dos ossos, do Iluminismo e do sol do Iluminismo e do sol nordestino. Ou reflete sobre a escrita de sua História nordestino, na perspectiva do escritor). ainda, as palavras claras como a geo- e sobre as escolhas de sua Literatura. Embora almeje a civil geometria, sabe metria, as palavras de bêbado porque A palavra como força coloca-se como que não a conquistou e não a verá. Frei palavras do coração. Com imagens que o elemento que aproxima a força do Caneca é um homem brasileiro que, em- remetem a elementos concretos ou a escritor e do frade, filhos de Pernam- bebido pela paisagem escaldante e clara ideias, ao interseccionar os campos de buco. e pelo povo que apadrinhou, usufrui in- sentido que as palavras evocam, João tensamente de sua consciência e de tudo Cabral demonstra a sagacidade e a IHU On-Line - Qual a principal contri- o que o cerca nessa caminhada à forca. intelectualidade do frei e, ao mesmo buição de João Cabral em relação ao Segundo os espectadores, bêbado, Ca- tempo, suas parciais cegueira e surdez. teatro poético brasileiro? neca está pleno de lucidez, de tal modo, Cabral toca a História, a literatura e a Vera Haas - No texto dramático cabra- que não consegue alcançar a lógica do paisagem do Brasil. lino, há o uso mais intenso de recursos povo que o acompanha (numa oposição à de retomada de palavras e de sentidos. História). Ainda pela poética do menos, IHU On-Line - Em que medida os ver- Essa é sua grande contribuição. Claro, o frei faz-se homem para ser glorifica- sos de “Auto do Frade” exprimem a podemos aliar a isso a ênfase a uma lí- do pelo povo. A excomunhão o aproxima força política e revolucionária das pa- rica que, permeando o texto dramático, da gente comum e, na visão dessa gen- lavras de Frei Caneca? traz à tona os recursos da lírica moder-

SÃO LEOPOLDO, 05 DE OUTUBRO DE 2009 | EDIÇÃO 310 17 na na visão de Adorno e Habermas. Mas João Guimarães Rosa e João Cabral de isso pode ser aplicado a toda a obra de João Melo Neto? Cabral de Melo Neto. Outra contribuição im- Vera Haas - Em que pese ter sido essa a pes- portante pode ser a escritura do Brasil, não quisa de minha dissertação, farei aqui uma por meio de narrativas, como vinha ocorren- aproximação grosso modo pelo espaço que do nos últimos anos, mas de textos dramá- temos. Analisei Contos gauchescos, Primei- ticos em que a tônica não é somar, acrescer ras estórias e Auto do frade ou Poema para características, mas tirar, diminuir, limpar vozes. Os três escritores de nome João, o dos excessos para cruzar sentidos aparen- sul-rio-grandense, o mineiro e o pernambu- temente inconciliáveis. Com essa poética, cano, aproveitam a “contação” de histórias João Cabral responde criticamente ao avil- e, particularmente, a atitude dos contado- tamento humano e à busca brasileira por res como recursos para a representação de uma identidade mediada pela natureza exu- homens desvalidos e brasileiros. Mas cada U berante e pelo palavreado vivo e fácil toma- um desses grandes escritores fará isso de br H do à oralidade. modo diferente, daí o ineditismo que cada . I

um alcançou em sua produção literária e o IHU On-Line - Como a questão da morte encantamento que nos oferecem até hoje.

aparece na obra de João Cabral de Melo do

Neto? Vera Haas - Na obra do escritor, a morte aparece ligada aos problemas sociais. Ora Leia mais... relaciona-se à miséria, ora a eventos políti- unisinos

Vera Haas já concedeu outra entrevista à re- . cos e revolucionários. Por vezes, ainda utili- vista IHU On-Line. u zando o recurso da intersecção de sentidos, * “Cinema como arte que incita ao questionamento”: ações h Cabral cruza a morte e a festa em que todos Quanto vale ou é por quilo?. Entrevista publicada c na IHU On-Line número 225, de 25-06-2007, dispo- i comem juntos e se reúnem, cruzando aspec- nível em http://www.ihuonline.unisinos.br/index. . tos culturais e pobreza. Outras vezes, a mor- php?option=com_eventos&Itemid=26&task=evento&i te pode ser equiparada ao sono, ou ainda à d=107&id_edicao=251 ubli

escuridão, à surdez, ou a uma incapacidade p de escuta, à certa perda dos sentidos, como ocorre no Auto do frade. literatura brasileira e latino-americana. O oitavo www

número dos Cadernos IHU Ideias é intitulado Si- mões Lopes Neto e a Invenção do Gaúcho, de auto- IHU On-Line - Que aproximações pode- ria da Profª Drª Márcia Lopes Duarte, professora do mos fazer entre João Simões Lopes Neto, Centro de Ciências da Comunicação da Unisinos. A publicação tem como base a apresentação da pro-  Theodor Wiesengrund Adorno (1903-1969): soci- fessora no IHU Ideias de 4 de setembro de 2003. É sítio

ólogo, filósofo, musicólogo e compositor, definiu o possível conferir sobre o autor uma entrevista con- outras

perfil do pensamento alemão das últimas décadas. cedida por Márcia na IHU On-Line número 73, de 1º o

Adorno ficou conhecido no mundo intelectual, em de setembro de 2003. Entre as principais obras do

todos os países, em especial pelo seu clássico Dialé- escritor, destacamos Cancioneiro Guasca (1910), as

tica do Iluminismo, escrito junto com Max Horkhei- Contos Gauchescos (1912), Lendas do Sul (1913), mer, primeiro diretor do Instituto de Pesquisa So- Casos do Romualdo e o primeiro volume de Terra cial, que deu origem ao movimento de ideias em Gaúcha, estes dois últimos surgidos muito tempo filosofia e sociologia que conhecemos hoje como após sua morte, em 1950. (Nota da IHU On-Line)

Escola de Frankfurt. (Nota da IHU On-Line)  João Guimarães Rosa (1908-1967): escritor, mé- eça  Jürgen Habermas (1929): filósofo alemão, prin- dico e diplomata brasileiro. Como escritor, criou cipal estudioso da segunda geração da Escola de uma técnica de linguagem narrativa e descritiva h

Frankfurt. Herdando as discussões da Escola de pessoal. Sempre considerou as fontes vivas do fa- essando Frankfurt, Habermas aponta a ação comunicativa lar erudito ou sertanejo, mas, sem reproduzi-las on como superação da razão iluminista transformada num realismo documental, reutilizou suas estrutu- c

num novo mito que encobre a dominação burguesa ras e vocábulos, estilizando-os e reinventando-os a (razão instrumental). Para ele, o logos deve cons- num discurso musical e eficaz de grande beleza C truir-se pela troca de idéias, opiniões e informa- plástica. Sua obra parte do regionalismo mineiro ções entre os sujeitos históricos estabelecendo o para o universalismo, oscilando entre o realismo diálogo. Seus estudos se voltam para o conheci- épico e o mágico, integrando o natural, o místico, mento e a ética. Confira no site do IHU, www.ihu. o fantástico e o infantil. Entre suas obras, citamos: unisinos.br, nas Notícias do dia, o debate entre Sagarana, Corpo de baile, Grande sertão: veredas, Habermas e Joseph Ratzinger, o Papa Bento XVI. considerada uma das principais obras da literatu- Habermas, filósofo ateu, invoca uma nova aliança ra brasileira, Primeiras estórias (1962), Tutaméia entre fé e razão, mas de maneira diversa como (1967). A edição 178 da IHU On-Line, de 02-05- Bento XVI propôs na conferência que realizou em 2006, dedicou ao autor a matéria de capa, sob o 12-09-2006 na Universidade de Regensburg. (Nota título “Sertão é do tamanho do mundo”. 50 anos da IHU On-Line) da obra de João Guimarães Rosa. De 25 de abril a  João Simões Lopes Neto (1865-1916): escritor 25-05-2006 o IHU promoveu o Seminário Guimarães gaúcho. A ele a revista IHU On-Line dedicou a edi- Rosa: 50 anos de Grande Sertão: Veredas. (Nota da ção 73, chamada João Simões Lopes Neto: força da IHU On-Line) 18 SÃO LEOPOLDO, 05 DE OUTUBRO DE 2009 | EDIÇÃO 310 A subjetividade de João Cabral: legado para a literatura contemporânea

Ao contrário das sedutoras imagens veiculadas em relação à paisagem dos trópicos e ao turismo atual, a brasilidade expressa por Cabral representa aspectos da his- tória, da cultura e da geografia do país, calcados basicamente na região nordeste como lugar de contundente problemática social, afirma Maria do CarmoAlves de Campos

Por Graziela Wolfart

lguns leitores consideram antilíricos os poemas de Cabral. Já o poeta pernambu- cano confessa que a descoberta da poesia de Drummond foi chave de abertura para o seu próprio projeto de obra. As obras de Carlos Drummond de Andrade e de João Cabral de Melo Neto abrem, cada uma a seu modo, novas possibilidades para a poesia brasileira”. A análise é da professora Maria do Carmo Alves de Cam- “Apos, na entrevista que segue, concedida, por e-mail, para a IHU On-Line. Ela defende que, na obra de João Cabral, “a relação com os espaços é bastante singular, sendo que, em poemas fundamentais, o espaço (rio, caatinga, sertão, mar) não se constitui como paisagem, mas personifica–se a si mesmo, como lugar e natureza”. Por outro lado, continua, “algumas cidades (Recife e Sevilha) também são radicais na obra, sendo objeto e foco de poemas e de livros (Sevilha Andando e Andando Sevilha). É difícil imaginar a obra cabralina sem Recife (ou Pernambuco)”. Doutora em Letras pela Universidade de São Paulo, Maria do Carmo Alves de Campos foi professora de Literatura Brasileira da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professora, ensaísta e poeta, é organizadora do livro João Cabral em perspectiva (Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1995); e autora de, entre outros, matinas & bagatelas: poemas (São Paulo: Ateliê, 2002); O olhar do caminho: San- tiago de Compostela, (poesia e fotografia, em parceria com Mauro Paranhos) (Porto Alegre: Mercado Aberto, 2002). Possui dezenas de trabalhos publicados no Brasil e no exterior, incluindo diversos en- saios sobre poesia brasileira, particularmente, Drummond e João Cabral de Melo Neto. Nos últimos anos, tem se dedicado a escrever poesia e a trabalhos em que a poesia entra ao lado de outras artes. Desenvolve paralelamente um projeto de oficinas de leitura criativa. Confira a entrevista.

IHU On-Line - Como se dá a relação mais para fora de limites mais estrei- ou investir na reinvenção da memória entre lirismo e antilirismo a partir tos, condicionantes, de alguma forma, e do olhar. Tanto o “eu todo retorcido” das obras de Drummond e João Ca- do seu fazer. O contato com novas de Drummond quanto a subjetividade bral de Melo Neto? linguagens artísticas e não-artísticas, quase velada de João Cabral são lega- Maria do Carmo Campos - Alguns lei- a ampliação do campo das subjetivi- dos igualmente positivos para a litera- tores consideram antilíricos os poemas dades, a sensibilidade para as novas e tura contemporânea. de Cabral. Já o poeta pernambucano complexas formas do viver moderno e confessa que a descoberta da poesia de contemporâneo e, ainda, as especifi- IHU On-Line - A cidade para Drum- Drummond foi chave de abertura para cidades históricas da experiência bra- mond tem a mesma importância que o seu próprio projeto de obra. As obras sileira são fatores que trazem interro- o sertão tem para João Cabral? de Carlos Drummond de Andrade e de gações desestabilizadoras do lugar do Maria do Carmo Campos - A cida- João Cabral de Melo Neto abrem, cada sujeito e da sua própria voz. Mais ou de tem alta frequência na poesia de uma a seu modo, novas possibilidades menos aproximadas da música, as po- Drummond, desde o pequeno berço para a poesia brasileira. No Brasil, no éticas de Drummond e de Cabral am- itabirano até um conjunto de imagens mínimo a partir das primeiras décadas pliam-se para modos de representação recorrentes e inventivas que caracte- do século XX, a poesia escapa cada vez que podem inovar formas da tradição rizam o poeta com um pendor à vida

SÃO LEOPOLDO, 05 DE OUTUBRO DE 2009 | EDIÇÃO 310 19 urbana e ao cosmopolitismo. Habitan- “A poesia cabralina abre jetos. Por outro, frequenta e valoriza te dos extremos, Drummond não per- poéticas de vários períodos históricos, de a roça de vista, mas tem na mira o caminhos à literatura e a exemplo de Berceo, Quevedo e Rafa- sentimento e a voltagem de um gran- el Alberti, sem desconsiderar os fran- de mundo. È esse mundo que se desti- à poesia brasileira em ceses e o pano de fundo grego, raiz de la entre fatos históricos, personagens ser da Fábula de Anfion. do porte de Quixote e Chaplin, e gran- muitas direções: des cidades, como Paris, Stalingrado, IHU On-Line - Qual o principal legado Berlim, Belo Horizonte e Rio de Janei- ampliação temática, deixado por João Cabral para a lite- ro. No caso de João Cabral, a relação ratura brasileira? com os espaços é bastante singular, desprendimento do Maria do Carmo Campos - A poesia ca- sendo que, em poemas fundamentais, bralina abre caminhos à literatura e à o espaço (rio, caatinga, sertão, mar) confessionalismo e da poesia brasileira em muitas direções: não se constitui como paisagem, mas ampliação temática, desprendimen- personifica–se a si mesmo, como lugar reverberação to do confessionalismo e da reverbe- e natureza. Por outro lado, algumas ração sentimental de baixa sutileza, cidades (Recife e Sevilha) também são sentimental de baixa pesquisa de formas, possibilidade de radicais na obra, sendo objeto e foco tratamentos mais sóbrios no tocante de poemas e de livros (Sevilha Andan- sutileza, pesquisa de à dicção poética, além da abordagem do e Andando Sevilha). É difícil ima- diferenciada do recurso da ironia. ginar a obra cabralina sem Recife (ou formas, possibilidade de Pernambuco). IHU On-Line - Como a brasilidade se tratamentos mais sóbrios expressa na obra de João Cabral? IHU On-Line - Quais as principais Maria do Carmo Campos - Ao contrá- marcas dos personagens literários de no tocante à dicção rio das sedutoras imagens veiculadas João Cabral de Melo Neto? em relação à paisagem dos trópicos e Maria do Carmo Campos - Se pensar- poética, além da ao turismo atual, a brasilidade expres- mos nas figuras de Severino de Morte sa por Cabral representa aspectos da e vida severina, de Frei Caneca de abordagem diferenciada história, da cultura e da geografia do Auto do Frade, da bailadora andaluza país, calcados basicamente na região do livro Quaderna, do toureiro Manolo do recurso da ironia” nordeste como lugar de contundente Otero, podemos dizer que a diversida- problemática social. de é marca das personagens de João Cabral. Muitas vezes encobertas pelo IHU On-Line - Como João Cabral é anonimato, são ao mesmo tempo in- IHU On-Line - É possível perceber in- visto no exterior? Qual a repercussão ventadas e inspiradas nos níveis mais fluências da poesia europeia na obra de suas obras e que imagem do Brasil profundos do real. Para além da ima- de João Cabral, em função de sua es- ele leva para fora do país? gem mítica de Anfion, aparecem indi- tada na Espanha? Maria do Carmo Campos - Tendo vi- vidualidades fortes, constitutivas de Maria do Carmo Campos - A relação vido em vários países da Europa, da uma obra poética nitidamente enrai- literária de João Cabral com a Europa América e da África, João Cabral já zada do ponto de vista histórico, telú- dá-se em largos horizontes, conside- se fazia conhecido a partir de 1947, rico e cultural. rando os contatos não só com escrito- quando passou a viver em Barcelona e res, mas também com artistas (Joan frequentou o meio artístico e literário, IHU On-Line - Em que sentido a obra Miró) nos períodos em que exerceu convivendo com Joan Miró, Joan Bros- poética de João Cabral pode ser ins- atividades diplomáticas em Barcelona, sa e tantos outros. Em 1965, o auto- piração para a poesia contemporânea Londres, Sevilha, Marselha, Madri, Ge- de-natal pernambucano “Morte e vida brasileira? nebra, Berna, Dacar, Quito, Honduras severina”, musicado pelo jovem Chi- Maria do Carmo Campos - Do ponto de e Porto. Atento às diferenças, afina co Buarque de Holanda, é encenado e vista de “inspiração”, o convívio assí- sua têmpera pela experiência e pela premiado na Europa. Além das tradu- duo com a obra cabralina possibilita leitura, o que o conduz a resultados ções para diferentes idiomas, a obra aos leitores da língua portuguesa ra- como o convívio na obra do lastro da recebeu vários prêmios e distinções ras lições. Entre elas, a da linguagem tradição com as conquistas do século. internacionais, entre eles, o Prêmio poética como um campo verbal não- Por um lado, o poeta dá tratamento Camões. A imagem do Brasil traduzida trivial, apto a magnetizar a palavra e a motivos relacionados às novas arqui- pela obra não é a mesma comumente transcender os limites da comunicação teturas de um mundo em acelerada transmitida pela mídia e pela publici- básica. transformação e incorpora traços da dade turística. tecnologia e da multiplicação de ob-

20 SÃO LEOPOLDO, 05 DE OUTUBRO DE 2009 | EDIÇÃO 310 SÃO LEOPOLDO, 05 DE OUTUBRO DE 2009 | EDIÇÃO 310 21 Brasil em Foco

“Separar economia do meio ambiente é não entender nada’’

José Eli da Veiga defende que o Brasil tem que ser competitivo, mas, ao mesmo tempo, com sustentabilidade ambiental. E que essa equação é econômica

Por Graziela Wolfart

o refletir sobre a Convenção das Partes sobre o Clima de Copenhague que se aproxima, sobre o debate em torno da emissão de gases tóxicos e sobre as relações políticas entre os países desenvolvidos e emergentes em torno do tema, o professor José Eli da Veiga concedeu a instigante entrevista que segue à IHU On-Line, por telefone. Ele acredita que, “como a crise financeira acabou se tornando uma crise econômica, que já começa a Aser superada, tivemos um saldo benéfico, porque essas recessões todas contiveram as emissões”. No entanto, continua, “não é assim que queremos conter as emissões, não é a custa de desemprego e de aumento da pobreza”. Eli da Veiga afirma que podemos ter certeza de mais uma coisa: “haverá outra crise tão grave como essa e não vai demorar muito”. O professor da USP considera que o Brasil pode- ria ter aproveitado melhor a situação favorável que teve diante da crise econômica “se tivéssemos hoje um sistema de ciência e tecnologia na rota do que precisa ser feito. Nós estaríamos aproveitando isso justamente para nos tornarmos em pouco tempo mais competitivos na linha da sustentabilidade, que é o elemento decisivo neste século”. E dispara: “as elites brasileiras, em geral, estão absoluta- mente cegas. Elas estão fazendo a mesma coisa que fizeram no século XIX com a questão fundiária, e no século XX com a educação”. Eli da Veiga também fala sobre o que significa para o Brasil a pré- candidatura de Marina Silva à presidência, considerando que ela, além de encarnar o que é o futuro em função do ecodesenvolvimento, é, ainda, do ponto de vista pragmático, uma grande solução para o Brasil no impasse político e institucional em função das alianças com o Congresso. José Eli da Veiga é professor do Departamento de Economia da Faculdade de Economia, Adminis- tração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA-USP), onde coordena o Núcleo de Economia Socioambiental (NESA). Além de artigos em periódicos científicos nacionais e estrangeiros, e diversos capítulos de obras coletivas, publicou 13 livros, entre os quais: A Emergência Socioambiental (São Paulo: Ed. Senac, 2007); Meio Ambiente & Desenvolvimento (São Paulo: Ed. Senac, 2006); e Desen- volvimento Sustentável - O desafio do século XXI(Rio de Janeiro: Garamond, 2005). É colaborador da coluna de opinião do jornal Valor Econômico. Sua página pessoal na Internet é http://www.zeeli.pro. br. Confira a entrevista.

IHU On-Line - Pensando em Cope- o problema não é esse; é saber se ele será efetivo, porque o Protocolo de nhague, quais as expectativas que Kyoto foi um desastre. Pode até ser Assessment Report em Sundsvall, Suécia (agos- podemos ter em relação ao encon- to de 1990) e que culminou com a Convenção- que Copenhague seja um pouco me- tro? Quais as novidades que ele pode Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança lhor, mas continue sendo um desas- trazer em relação ao Protocolo de Climática (CQNUMC, ou UNFCCC em inglês) tre. Há esse risco. As coisas evoluíram na ECO-92 no Rio de Janeiro, Brasil (junho de Kyoto, por exemplo? 1992). Também reforça seções da CQNUMC. positivamente, sobretudo, depois da José Eli da Veiga – Com certeza será Constitui-se no protocolo de um tratado inter- eleição de Barack Obama. Mas não só melhor que o Protocolo de Kyoto. Mas nacional com compromissos mais rígidos para por causa de mudanças na China, que a redução da emissão dos gases que agravam  Protocolo de Kyoto: consequência de uma o efeito estufa, considerados, de acordo com estão diretamente relacionadas com série de eventos iniciada com a Toronto Confe- a maioria das investigações científicas, como a questão Obama, ou por causa das rence on the Changing Atmosphere, no Canadá causa antropogênicas do aquecimento global. eleições na Austrália e no Japão. Há (outubro de 1988), seguida pelo IPCC’s First (Nota da IHU On-Line) 22 SÃO LEOPOLDO, 05 DE OUTUBRO DE 2009 | EDIÇÃO 310 uma série de fatos novos, sobretudo que fique clara a situação dos Estados caso eles tomem decisões ambiciosas neste último ano, que são muito pro- Unidos (se vai ter lei, se não vai ter, lá, acelera o processo. Mas se não to- missores. Todavia, não houve tempo qual será) e para que os países do se- marem essas decisões e, mesmo que ainda, justamente porque esses fatos gundo mundo, os emergentes (Brasil, seja um fracasso, a transição ao baixo são muito recentes, para que a grande Índia, China etc.) tenham tido tempo carbono vai continuar e, nesse caso, questão, que é ainda a resistência dos para continuar nessa evolução, que é mantendo a divisão do mundo atual, países emergentes, se resolva. Os paí- muito recente. em vez de ser uma oportunidade para ses emergentes, inclusive o Brasil, ain- uma mudança. Essa mudança seria a da estão em uma situação um pouco IHU On-Line – Qual a importância da seguinte: os países desenvolvidos, que dúbia em relação a isso. Diferente do Convenção de Copenhague, em sua detêm maior capacidade científica e movimento um pouco mais consisten- opinião? tecnológica, deveriam fazer acordos te dos países desenvolvidos. Eu prefiro José Eli da Veiga – A importância que de cooperação, principalmente com falar em primeiro, segundo e terceiro eu dou para Copenhague não é tão os países emergentes. Isso quer dizer mundo. Os países emergentes são em grande. A transição ao baixo carbo- que não haveria mais transferência de número maior do que se imagina e já no está em curso faz tempo e inde- tecnologia, mas as tecnologias seriam constituem o segundo mundo em re- pende de Copenhague. Os países que buscadas em conjunto, em acordos lação ao primeiro mundo desenvolvido mais rapidamente perceberam que bilaterais de cooperação, e alguns já e, depois, em relação a centenas de em vez de um problema, uma restri- estão ocorrendo, por exemplo, os Es- países que quase não emitem gases tó- ção, isso é uma grande oportunidade tados Unidos e a China já fizeram. Isso xicos e que serão as principais vítimas para uma nova etapa do capitalismo, me faz relativizar a importância da do aquecimento, que são o terceiro já estão há muito tempo investindo Conferência de Copenhague. E um fra- mundo. No primeiro mundo, a evolu- casso em Copenhague será muito pior ção foi muito positiva. Por exemplo, para nós, do Brasil, do que será para no caso dos Estados Unidos, que é cha- “Nessa questão do eles, para quem no fundo não muda ve, a lei ainda não foi votada no Se- muito. Na verdade, o que está ocor- nado. E está uma discussão sobre se clima especificamente, rendo é uma tremenda corrida pelas ela será votada antes de Copenhague. tecnologias, que poderão levar à supe- Isso muda tudo. O grau de liderança infelizmente, o ração da era fóssil. E outra vez serão que os Estados Unidos podem ou não os mesmos países que fizeram a revo- ter, mesmo com uma lei que eles vão presidente está lução industrial que vão levar a melhor aprovar e que não é muito ambiciosa nessa. E os países emergentes agiram em termos de metas, muda comple- parecendo uma biruta de uma forma totalmente errada até tamente se tiverem aprovado ou não agora, perdendo a oportunidade de a lei. Depois, se o segundo mundo, os de aeroporto. Cada mudar esse jogo. países emergentes, continuarem reti- centes, manifestando uma tendência declaração que ele IHU On-Line – Como o senhor vê a um pouco melhor agora, mas parecida situação específica do Brasil neste com a que tiveram na época de Kyoto, faz dá numa direção” cenário? todos os países desenvolvidos que já José Eli da Veiga – Está mudando posi- estão na rota – por exemplo, toda a em ciência, tecnologia e inovação. As- tivamente. O chanceler Celso Amorim Europa, o Japão, a Austrália etc. – ne- sim, eles possuindo essas tecnologias deu uma entrevista recentemente que cessariamente terão que apelar para que poderão ser a solução, terão as mostra uma mudança bem grande. a ideia do que será chamado de pro- oportunidades de negócio. Isso está Eles começaram a acordar um pouco. tecionismo. Terão que criar uma série ocorrendo e vai continuar ocorrendo, Até escrevi um artigo recentemente de barreiras à importação de produtos seja qual for o resultado de Copenha- em que pergunto “será que a ficha de países que não estão tomando as gue. E os países emergentes, como o está caindo?”. devidas cautelas em relação ao clima. Brasil, que ficaram nessa linha obtu- Isso vai gerar conflitos. O ideal seria sa de resistência, não investindo em IHU On-Line – Mas e a visão do presi- que, em Copenhague, eles fossem ciência e tecnologia com prioridade, dente Lula, que sinaliza muitas ve- bem claros em dizer o seguinte: houve não terão essas tecnologias e continu- zes um favorecimento do desenvol- um acordo sobre tais e tais questões, arão tendo que discutir essa questão vimento econômico em detrimento então vamos fechar sobre isso, porque de como vão comprar tecnologia dos da questão ambiental? é muito chato anunciar um fracasso. outros através da tal transferência José Eli da Veiga – Nessa questão do Mas isso ainda será pouco. É preciso de tecnologia. Existe um movimento clima especificamente, infelizmente, que mantenham abertas as negocia- subjetivo, que são esses acordos in- o presidente está parecendo uma biru- ções para, antes de 2012, sair uma ternacionais e, particularmente, esse ta de aeroporto. Cada declaração que espécie de Copenhague em linha, ou da convenção em Copenhague. E isso ele faz dá numa direção; depende de Copenhague II. Daí dará tempo para é muito importante pelo seguinte: quem foi o último que falou com ele,

SÃO LEOPOLDO, 05 DE OUTUBRO DE 2009 | EDIÇÃO 310 23 se foi o Carlos Minc, o Celso Amorim ou rar muito. Toda a questão é de apro- grande no governo. E já começou a se foi um desses trogloditas do Ministé- veitar o período entre as duas crises mudar também a perspectiva dos can- rio de Minas e Energia ou da Petrobrás. para estabelecer essas instituições. E didatos ditos mais competitivos. Ago- No governo, todos os setores que são a única lição que podemos tirar é que ra, os chamados programas de Dilma muito ligados aos negócios com fós- nós teríamos aproveitado muito mais e Serra terão que dar uma prioridade seis puxam para trás. Mas tem alguns a situação que foi relativamente fa- muito maior para essa questão do que setores que tentam ir para a frente. vorável para o Brasil - porque não tí- davam. Isso já são ganhos contabiliza- Um dos que deveriam tentar ir junto nhamos a tal bolha imobiliária, porque dos. O que está por vir vai depender para a frente é o Ministério de Ciên- os procedimentos de regulamentação muito. É muito difícil fazer uma pre- cia e Tecnologia, mas infelizmente, é dos bancos aqui eram um pouco mais visão de como será o decorrer dessa o contrário, ele está fazendo o jogo rígidos do que em outros países e, com campanha. Mas a pré-candidatura dela dos fósseis. Então, junta o Ministério isso, o choque foi menor, embora te- trouxe de cara duas coisas importan- de Ciência e Tecnologia e o Ministério nha tido um baque grande -, se tivés- tíssimas: primeiro, oxigenou o debate de Minas e Energia, sua empresa de semos hoje um sistema de ciência e que estava parecendo trocar seis por planejamento energético, mais a Pe- tecnologia na rota do que precisa ser meia dúzia. No fundo, a diferença trobrás, e puxam o Lula para cá. Daí feito. Nós estaríamos aproveitando programática entre o tucanato e os tem o Ministério do Meio Ambiente e, isso justamente para nos tornarmos petistas é muito pequena; é a ques- agora, também o Itamaraty, que, de em pouco tempo mais competitivos tão da ênfase no papel do Estado. E repente, sacou que estava errado, e na linha da sustentabilidade, que é o o grande problema é que ambos são está mudando muito, jogando o presi- elemento decisivo neste século. Nesse prisioneiros, são chantageados pelas dente para a frente. E como ele ainda sentido, não é um problema nem de oligarquias que souberam se organizar não tem uma convicção, cada declara- para chantagear o Lula do mesmo jeito ção que ele faz vai para um lado. “As pessoas que que fizeram com Fernando Henrique. A perspectiva para o Brasil teria que IHU On-Line - Que relações podemos continuam a separar ser de romper com esse esquema de estabelecer entre a crise financeira uma hora ganha um, outra hora ganha mundial e a redução na emissão de economia e meio outro, mas estão sempre presos a Sar- gases tóxicos na atmosfera? neys, a Renans e a outros até piores. O José Eli da Veiga – Você usou a ex- ambiente não rompimento disso seria, por exemplo, pressão crise financeira. Na verdade, algum governo que pudesse aproximar a questão da crise financeira, em si, entenderam nada” o PT do PSDB numa coalizão. E acho afetaria principalmente porque iam que a única possibilidade que existe é faltar recursos para, por exemplo, al- da Marina. Além de ela encarnar o que guns investimentos favoráveis a uma falar do governo, que é só uma parte é o futuro em função do ecodesen- transição ao baixo carbono, que es- disso. As elites brasileiras, em geral, volvimento, ela é ainda, do ponto de tariam mais ou menos planejados, e estão absolutamente cegas. Elas estão vista pragmático, uma grande solução se inviabilizaram por razões de falta fazendo a mesma coisa que fizeram no para o Brasil no seguinte impasse po- de recursos, inclusive de redução de século XIX com a questão fundiária, e lítico e institucional: seja que ganhe o crédito. O que houve de principal é no século XX com a educação. Não há Lula ou que ganhem os tucanos com os que, como a crise financeira acabou foco no Brasil em relação à ciência, à “demos” lá, os governos serão outra se tornando uma crise econômica, que tecnologia e à inovação. E isso é um vez a mesma repetição do que foi o já começa a ser superada, tivemos um atraso. O Brasil não será um país de- Fernando Henrique e o Lula no senti- saldo benéfico, porque essas recessões senvolvido neste século se continuar do de que são prisioneiros de ter que todas contiveram as emissões. Mas não nessa perspectiva. fazer aliança no Congresso com tudo o é assim que queremos conter as emis- que há de mais atrasado no país. sões, não é à custa de desemprego e IHU On-Line – O que representa para de aumento da pobreza. Então, como, o Brasil a possibilidade da candidatu- IHU On-Line – Além da questão eco- no fundo, aparentemente, a superação ra de Marina Silva à presidência do lógica, que novidades Marina Silva dessa crise está sendo mais rápida do país? O que isso significa do ponto de poderia trazer ao Brasil do ponto de que previam, agora a discussão está vista político e social? vista da economia? no mesmo plano que estava antes. José Eli da Veiga – Já significou muita José Eli da Veiga – Não dá mais para É importante ressaltar que nenhum coisa, porque mudou tudo. Primeiro, fazer essa separação. As pessoas que economista pode achar que usa uma porque, em muitos pontos do gover- continuam a separar economia e meio ciência que o permite fazer qualquer no, o Ministério do Meio Ambiente – no ambiente não entenderam nada. Há tipo de previsão. Mas de uma coisa po- caso, o Carlos Minc – estava imagi- duas questões no mundo hoje em ter- demos ter certeza: haverá outra crise nando que já tinha perdido e passou mos de décadas e em termos de sécu- tão grave como essa e não vai demo- a ganhar. Deu-se uma reversão muito lo XXI e, ou o Brasil se insere nisso ou

24 SÃO LEOPOLDO, 05 DE OUTUBRO DE 2009 | EDIÇÃO 310 está perdido. Essas duas questões são: o aquecimento global e a ressurreição da China. O Brasil tem que ser com- petitivo, mas, ao mesmo tempo, com sustentabilidade ambiental. Essa equa- ção é econômica. É disso que os can- didatos com cabeça mais “cepalina”, como é o caso do Serra e da Dilma, não Entrevista da Semana conseguem entender. Eles estão atra- sados. Então a novidade é essa. Esse negócio de dizer que a Marina terá só pauta ambiental é besteirol, porque o que estamos querendo é discutir na prática o que significa uma expressão que já tem 30 anos: desenvolvimento “Para Darwin, estar vivo sustentável. Eu prefiro ecodesenvol- vimento. Mas eles não têm resposta para o que é desenvolvimento susten- é ser diferente” tável. E se alguns assessores deles até tiverem, quando eles usarem isso na campanha será artificial, porque não Na visão de Pietro Corsi o darwinismo é a forma científica partirá de convicção pessoal. de olharmos a natureza

Por Graziela Wolfart | Tradução Lucas Schlupp

o último dia 10 de setembro, logo após proferir a conferência Leia mais... Histórias não contadas: a questão das espécies antes de Darwin, Um “novo’’ PIB? Entrevista com José Eli dentro da programação do X Simpósio Internacional IHU: Ecos da Veiga, disponível para download em http:// www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_not de Darwin, o professor e historiador Pietro Corsi, da Universi- icias&Itemid=18&task=detalhe&id=22315 dade de Oxford, Inglaterra, concedeu a entrevista que segue, “É uma candidatura para valer, não para marcar Npessoalmente, à IHU On-Line. Nela, ele repercute aspectos do tema que posição’’, aposta José Eli da Veiga, disponível tratou no evento e afirma: “Darwin acreditava que a caridade cristã era um para download em http://www.ihu.unisinos.br/ index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task produto da evolução”, além de declarar também que não acredita que haja =detalhe&id=24863 qualquer relação entre ciência e fé. “Darwin nunca disse que descendemos dos macacos. Nunca! Ele disse que humanos e macacos têm um ancestral Para exorcizar o Protocolo de Kyoto. Artigo de José Eli da Veiga, disponível para down- comum. O que é uma coisa completamente diferente. No entanto, a maioria load em http://www.ihu.unisinos.br/index. dos racialistas da Europa, na época, acreditava que os negros descendiam php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detal he&id=18721 dos macacos e os brancos eram um aperfeiçoamento. Darwin não acreditava nisso”, esclarece Corsi. O Crescimento não resolve todos os males do Brasil, afirma José Eli da Veiga, disponível para Professor Catedrático de História das Ciências na Universidade de Oxford, download em http://www.ihu.unisinos.br/index. Pietro Corsi é um dos maiores especialistas mundiais da história da Ciência php?option=com_noticias&Itemid=18&task=deta lhe&id=2743 e Tecnologia do século XVIII e, particularmente, do período pré-Darwin. En- tre dezenas de trabalhos acadêmicos, foi inovador na utilização da Internet Será que a ficha começa a cair? , disponível para como ferramenta de difusão dos documentos e legados históricos, tendo sido download em http://www.ihu.unisinos.br/index. php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detal o autor e responsável científico pelos sites oficiais de biólogos eminentes he&id=25360 desta época, mormente de Buffon (http://www.buffon.cnrs.fr/) ou de La- Foco estratégico para o desenvolvimento, dispo- marck (http://www.lamarck.cnrs.fr/). Entre outros, é autor de Information nível para download em http://www.ihu.unisi- Sources in the History of Science and Medicine (London: Butterworth Scien- nos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid= 18&task=detalhe&id=26154 tific, 1983); Science And Religion: Baden Powell And The Anglican Debate, 1800-1860 (Cambridge: Cambridge University Press, 2008). Está no prelo, a Brasil pode perder o bonde do carbono, disponí- vel para download em http://www.ihu.unisinos. ser lançada em 2010, a obra Evolution before Darwin. Confira a entrevista. br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&t ask=detalhe&id=22971

SÃO LEOPOLDO, 05 DE OUTUBRO DE 2009 | EDIÇÃO 310 25 IHU On-Line - Por que a teoria darwinis- desenvolveram cérebros justamente acreditavam que se você exercitar um ta ainda se encontra em construção? porque são tão frágeis que um mosqui- órgão, este se modificaria para uma ou- Pietro Corsi - O que chamamos de te- to poderia matar um homem. Então, a tra forma. Mas todos acreditavam nisso. oria darwinista é hoje, e sempre foi, ideia de que a humanidade era a coroa- A diferença é que, para Darwin, a sele- uma série de teorias muito complexas. ção da criação foi certamente difundida, ção natural é que determinava qual for- O darwinismo seria a forma científica de mas também muito questionada. Quase ma é transmitida para a próxima gera- olharmos a natureza. E ser cientifico é todo mundo concordava na Europa, no ção. Para Lamarck não. estar sempre aberto para novos avanços, século XIX, que as pessoas negras eram novas mudanças. Este aspecto de “estar inferiores, que não eram seres humanos. IHU On-Line - Pensando na evolução em construção” vale para tudo o que é Darwin, ao contrário, acreditava que os histórica, como a sociedade hoje re- científico. Até na astronomia, na astrofí- negros eram seres humanos. Então, o pa- cebe a teoria da evolução? Qual a no- sica, a própria teoria do Big Bang mudou pel central da humanidade na criação já vidade do nosso tempo em relação à muito nos últimos vinte anos. Por exem- havia sido contestado por colonialistas e teoria da evolução? plo, um elemento muito importante do racialistas, não por Darwin. Darwin tinha Pietro Corsi - Isso é algo difícil de di- darwinismo, do qual as pessoas concor- uma percepção muito aguçada para a be- zer. Hoje há muitos debates sobre a dam, é que os organismos apresentam nevolência. Ele disse que podemos ver a evolução, mas muito poucos de cunho variações, e estas variações são a base benevolência desenvolvendo-se até nos científico. As pessoas debatem sobre a para o desenvolvimento de novas formas cães. Darwin acreditava que a caridade evolução para aprovar ou desaprovar a de vida. Então, não é apenas o ambien- cristã era um produto da evolução. E que ciência, para dizer que Darwin estava te que muda os indivíduos, que forma os a Inglaterra tornou-se um grande impé- errado, ou que não é compatível com o organismos, mas os organismos reagem rio porque o cristianismo provocou uma cristianismo, por exemplo. Ou, há pes- ao ambiente, graças ao fato de que são seleção e aumentou a coesão grupal. Da- soas na área da economia que acreditam diferentes uns dos outros. Portanto, a rwin nunca disse que descendemos dos em alguns embates darwinianos na eco- diferença é o que importa. Essa ideia é macacos. Nunca! Ele disse que humanos nomia. Mas, muitas vezes, esses debates contrária ao que se acreditou por sécu- e macacos têm um ancestral comum. O têm pouco a ver com Darwin. Eles têm a los: de que a vida é estável, de que há que é uma coisa completamente dife- ver com darwinismo. O que é diferente. pequenas variedades na natureza. Mas rente. Agora, a maioria dos racialistas da O darwinismo tem sido em países dife- há espécies dentro de espécies, e que Europa, na época, acreditava que os ne- rentes, e às vezes no mesmo país, coisas sempre permanecerão espécies. Darwin gros descendiam dos macacos e os bran- diferentes. Há darwinistas de esquerda, compreendeu isso e disse que as espé- cos eram um aperfeiçoamento. Darwin de direita, em todo lugar. Então, a ver- cies são uma criação da nossa mente, e o não acreditava nisso. dadeira chave para se entender o debate que temos na natureza são apenas indi- social sobre o darwinismo é a política. víduos. Claro que ele não foi o primeiro IHU On-Line - Em sua opinião, quem a dizer isso. Mas certamente ele insistiu mais influenciou Darwin? Como as IHU On-Line - Quais os desafios histó- em dizer que estar vivo é ser diferente. ideias de Lamarck aparecem na obra ricos da relação entre fé e ciência? Mesmo as crianças com o mesmo pai e dele? Pietro Corsi - Veja, eu não acredito mãe apresentam diferenças muito pe- Pietro Corsi - Havia diversas teorias so- que haja qualquer relação entre ciên- quenas. Mas nenhum individuo é igual a bre o que hoje chamamos de evolução. cia e fé. Pois a ciência não existe e a outro. Hoje, os geneticistas dizem que Mas, na Europa do século XIX, antes de fé também não existe, no sentido de até gêmeos não são iguais. Então, a vida Darwin, havia diversas pessoas defen- que a fé e a ciência são interpretadas é essencialmente diversificada. dendo uma forma ou outra de evolução. de diferentes formas. Eles trabalharam a embriologia, a distri- IHU On-Line - Quais as maiores con- buição geográfica com base em fósseis, IHU On-Line - E teologia? sequências históricas do fato de que em domesticação. Então, muitas pessoas Pietro Corsi – E a teologia, claro! A������ teo- Darwin destronou o ser humano do acreditavam que as espécies pudessem logia é a história do debate. Eu estudei centro do mundo? mudar ao ponto de criar novas espécies. um pouco da história da teologia, que é Pietro Corsi - Não foi Darwin quem “des- Lamarck era um deles. E Darwin não gos- naturalista. No que se refere à relação tronou” o homem do centro da criação. tava de Lamarck. Então, não acho que entre evolução e fé, no meu país, na In- Isso foi uma ideia apresentada por di- se pode dizer que havia uma influência glaterra, havia pessoas que acreditavam versos filósofos e até teólogos, mas cer- de Lamarck sobre Darwin. Claro que Da- que, se você tivesse fé, deveria ser um tamente foram os naturalistas, desde a rwin acreditava que se pudesse adquirir evolucionista. E pessoas que diziam que segunda metade do século XVIII, que fi- características, mas não acreditava que se você tivesse fé, não poderia ser um zeram piada da humanidade e que acre- isso fosse Lamarck. Por quê? Por que evolucionista. Portanto, depende do que ditavam serem os melhores. No início do todos acreditavam nisso. Então, alguns você pensa. Mas vários bons teólogos século XIX, tivemos muitos naturalistas historiadores dizem que há elementos eram evolucionistas. E havia cristãos, e que disseram que os humanos eram os de Lamarck em Darwin. Não, as teorias convictos, até entre os católicos, como mais fracos. Diziam que os humanos eram independentes. Lamarck e Darwin dominicanos franceses, que acredita-

26 SÃO LEOPOLDO, 05 DE OUTUBRO DE 2009 | EDIÇÃO 310 vam que o darwinismo ou a evolução poderiam ser aceitos pelos católicos. Enquanto isso, havia católicos que di- ziam: jamais! Então, não acho que haja qualquer debate entre ciência e fé. Há debates entre determinadas pessoas in- terpretando a religião de uma forma, e outras pessoas interpretando a ciência. O desenvolvimento Existem pessoas dogmáticas na ciência, assim como existem pessoas dogmáti- cas na teologia. A verdadeira pergunta econômico na é: quem diz o quê por quais motivos? Isso é o que deve ser perguntado. Pois, senão, acaba naquilo que Kant disse: “à noite todas as vacas são pretas”, ou visão de Joseph seja, tudo fica igual.

IHU On-Line - Porque a teoria da Schumpeter evolução se transformou em uma necessidade filosófica? Pietro Corsi – Há um autor que estudei, o fundador dos escoteiros, Baden-Powell, que acreditava que a ideia de Deus de- veria ser modernizada. Tradicionalmen- te, as pessoas acreditavam que Deus fa- zia tudo com suas próprias mãos. E ele disse que isso não era assim. Ele acredi- tava que Deus criou leis universais. Que Ciclo de Estudos em há um projeto grandioso na natureza que foi dado por Deus. Então, defendia que o fato de não termos uma teoria das EAD – Repensando os espécies é um problema. Baden-Powell dizia: no dia em que tivermos uma teo- ria das espécies, entenderemos que até clássicos da economia mesmo a vida é organizada por leis. E continuava: “em minha opinião, a teoria da evolução é agora uma necessidade fi- losófica. Precisamos dela para dizer que até mesmo no tocante à vida consegui- mos ver que Deus criou leis universais que produziram até mesmo a humanida- de. O universo tem um sentido moral. Então eles podiam conciliar evolução e religião bastante bem”. Outras pessoas não concordaram e disseram que Baden- Powell era um ateu. Mais uma vez, te- Informações no mos aí o debate. sítio do IHU Leia mais...

Pietro Corsi já concedeu outra entrevista à IHU On-Line. O material está disponível na www.ihu.unisinos.br página eletrônica do IHU. * O universo não foi criado para nós. Publicada na Edição 306 da Revista IHU On-Line, de 31-08- 2009, disponível para download em http://www.ihuonline.unisinos.br/index. php?option=com_tema_capa&Itemid=23&task=d etalhe&id=1774

SÃO LEOPOLDO, 05 DE OUTUBRO DE 2009 | EDIÇÃO 310 27 Quando a TV quer fazer historiografia

Por Luciano Correia dos Santos*

Na marcha sobre os demais campos existentes, dentre elas a televisão. sociais, o campo midiático já não se (Por mais curioso que pareça, a tele- contenta com o papel tradicional do visão brasileira atual, uma jovem de jornalismo no relato do cotidiano. De 56 anos, embora não exiba sinais de uns tempos pra cá, também faz parte uma fadiga técnica, tecnológica ou de suas ambições o macrorrelato das existencial (seus conteúdos, funções operações e tramas que constitui o e papéis etc.), pode estar encerrando que o campo científico define como mais uma de suas grandes etapas. a História. De tanto referenciar-se A priori – a construção é do autor como encarregada de contar o pre- – pode-se fracionar o desenvolvimen- sente pela via consensualmente acei- to da TV em várias fases, mas são visí- ta do jornalismo, a mídia parece deci- veis, aos olhos de quem se aventurar dida a assumir um protagonismo neste pela sua história, três momentos im- que, até então, era espaço específico portantes nesta trajetória. A primei- de pesquisadores e historiadores. ra, que vai de sua implantação, em 18 Uma das razões que coloca a mídia de setembro de 1950, até a invenção no centro do que Maria Cristina Mata do videoteipe, é marcada pelas trans- chama de a nova Ágora eletrônica é missões ao vivo e pelo experimenta- a convergência em torno dos produ- lismo que resultou num surto criativo tos audiovisuais, em cujo centro a na busca de formatos próprios. Uma televisão encontra-se instalada e de- segunda poderia ser apontada a partir sempenhando seu papel hegemônico. do extraordinário impacto que repre- A própria convergência é uma das in- sentou na sua linguagem e nos modos terrogações que a história futura da de produção o advento do VT. Uma comunicação nos impõe, pelo impac- terceira fase poderia ser localizada to que representou a revolução das a partir dos processos digitais que re- novas tecnologias nos últimos anos e volucionaram a captura (gravação) e por tudo que este processo dinâmico processamento (edição) das imagens. deve consolidar no horizonte imedia- Agora, com a TV digital, uma nova to do amanhã. A TV Digital, às vés- e igualmente impactante etapa colo- peras de chegar aos lares, obriga um cará a televisão em trilhos ainda inson- reposicionamento de “antigas” mídias dáveis, embora muito do que promete esta nova era televisiva já está chegan-  MATA, Maria Cristina. “Entre plaza y la pla- tea. In: SCHMUCLER, Héctor e MATA, Maria do ao mercado. A razão de historiar a Cristina (orgs.) Política y comunicación.Cór- convergência midiática é para reafirmar doba, Catálogos, 1992, p.63-65.

* Jornalista, professor da Universidade Federal de Sergipe, doutorando em Ciências da Comunicação na Unisinos (RS) e membro do grupo de pesquisa CEPOS. 28 SÃO LEOPOLDO, 05 DE OUTUBRO DE 2009 | EDIÇÃO 310 o papel central da TV num processo de “Ao lado da notícia programas de ensino à distância – a crescente ocupação de espaços que só função essencial da TV, hoje o prin- deve reforçar as tendências atualmente (relato do cotidiano, cipal produto da indústria cultural, verificadas, dentre elas, a que abriu este é agitar a esfera pública e promover artigo, a de colocar-se cada vez mais na forma de inserção a venda de mercadorias baseada no função de contar a história. fetiche exercido pela publicidade. No Brasil, este propósito – ex- social), da publicidade Assim, ao lado da notícia (relato do presso ou não – de assumir um lugar cotidiano, forma de inserção social), na história, se possível “ajudando” e do entretenimento, da publicidade e do entretenimento, a escrevê-la, tem sido unicamente a TV se propõe agora a fazer o relato da Rede Globo. Para o bem ou mal, a TV se propõe agora da história. E fazendo-o ao seu modo: é esta emissora – e nenhuma outra – espetacularizando-a, inserindo-a no que tem assumido posições de frente, a fazer o relato da seu show cotidiano. A exemplo da mesmo que muitas vezes contrarian- educação à distância, que ela cum- do a lógica dos fatos e até mesmo fe- história” pre sem contraindicação, não haveria rindo a verdade. Mesmo quando força obstáculos ao registro da história, não suas convicções para tentar fazê-las fosse ele feito sem considerar as leis comuns à enorme audiência, é ela, da historiografia, mas obedecendo a fora do Brasil, difundido o modo bra- contada pelo novo meio encarrega- lógica do espetáculo. sileiro de fazer televisão, ou aqui, do dos relatos históricos? Num país No caso da Rede Globo, ninguém com suas novelas tão pasteurizadas como o Brasil, de fraca tradição le- parece levantar-se contra sua fabulo- quanto queridas da população, quem trada e de farta penetração televi- sa (sic) máquina de fazer ficção tele- tem produzido um caldo cultural tele- siva, imagina-se qual será a versão visiva, não só pelo seu direito de livre visivo digno de análise. prevalecente dos fatos, portanto, da expressão, mas, e principalmente, Conhecedora das falhas do siste- história definitiva. O problema não pela competência com que traba- ma de registro eletrônico e das pos- decorre só de possíveis manipula- lha produtos hoje exportados para o síveis manipulações que ele permite, ções, mas de insuficiência também, mundo inteiro. Porém, com o poderio estaria a Globo se aproveitando das afinal, a Globo (e não só ela, mas to- que assumiu na vanguarda da socieda- brechas não preenchidas por uma dos os canais) não tem responsabili- de brasileira, ditando modos, usos e política de arquivamento eletrônico dade com a memória pública. Então, costumes, removendo velhos e impri- para refazer seu caminho na histó- como resolver perdas que o sistema mindo novos valores, espera-se dela, ria? Mais questões: numa era em que eletrônico a toda hora registra (ne- agora que se preocupa também com a memória é mediada pela TV, em nhum sistema é infalível)? Confiar na história e historiografia, a tolerância que os fatos não midiáticos parecem memória humana? Estaríamos então que é uma das marcas do país onde a simplesmente não existir, como fica de volta às tradições orais. Globo nasceu e cresceu. o próprio desenrolar das tramas da Não obstante, os múltiplos usos história fora do foco midiático? E da televisão – pesquisadores sempre exploram o caráter educativo nos  Ver Cultura de massa e níveis de cultura. como ficará a própria história sendo ECO, Humberto. Ed. Perspectiva

SÃO LEOPOLDO, 05 DE OUTUBRO DE 2009 | EDIÇÃO 310 29 Destaques On-Line

Essa editoria veicula entrevistas que foram destaques nas Notícias do Dia do sítio do IHU. Apresentamos um resumo delas, que podem ser conferidas, na íntegra, na data correspondente.

Entrevistas especiais feitas pela IHU On-Line e disponí- “Alguns falam que a transposição dará segurança hídrica às veis nas Notícias do Dia do sítio do IHU (www.ihu.unisi- águas do nordeste. Mas nós perguntamos: aumentar a ofer- nos.br) de 29-09-2009 a 03-10-2009. ta hídrica para quem? Para fazer o quê? A que custo? Qual o desenvolvimento que está por trás da transposição?”, indagou “Se o governo tivesse coragem política, ele reestati- o representante da Comissão Pastoral da Terra na Bahia. zaria 100% da Petrobras”. Entrevista com Ildo Sauer, ex-diretor da Petrobras Um país em luta. Confira nas Notícias do Dia de 29-09-2009 Entrevista com a equipe do Honduras en Lucha “Hoje, 77% das reservas mundiais de petróleo estão na mão Confira nas Notícias do Dia de 02-10-2009 de empresas estatais, só 7% do petróleo está na mão das “Já existem vozes que começam a propor soluções do tipo chamadas grandes petroleiras, das chamadas sete irmãs, político-militar de ordem internacional, e isso deixa poucas que, no século passado, partilharam o mundo, fizeram opções aos golpistas”. Esse é o relato de um grupo de re- guerra, promoveram a miséria, derrubaram governos em sistência que luta para levar informações sobre Honduras nome dos lucros do petróleo”, aponta o especialista em para sua população dentro e fora do país. Energia e ex-diretor da Petrobras. Ficha limpa: “O principal aspecto são as condenações “Belo Monte foi proposto por megalômanos e tram- reiteradas por desvio de verbas” biqueiros há mais de 20 anos”. Entrevista com Marlon Reis, juiz Entrevista com Oswaldo Sevá, engenheiro mecânico Confira nas Notícias do Dia de 03-10-2009 Confira nas Notícias do Dia de 30-09-2009 O projeto Ficha Limpa, que está sob a análise da Câma- As audiências que estão sendo realizadas para discutir a ra dos Deputados, visa melhorar o perfil dos candidatos a obra de Belo Monte não pesarão no licenciamento, afirma o cargos eletivos do país. Se aprovada, vira lei e, com isso, especialista. “Trata-se de um álibi”. Segundo ele, “O pro- barra as possíveis candidaturas que tenham delitos graves jeto é completamente absurdo”. ou renunciaram para escapar de punições. O juiz Marlon Reis disse que acredita que o projeto vai ser aprovado, mas Quem olha o Rio São Francisco? receia que, durante as análises dos deputados e senadores, Entrevista com Rubens Siqueira, representante da sejam fixados critérios ou padrões que não representem um Comissão Pastoral da Terra (CPT) ganho efetivo para garantir a qualidade e honestidade do Confira nas Notícias do Dia de 01-10-2009 processo eleitoral.

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30 SÃO LEOPOLDO, 05 DE OUTUBRO DE 2009 | EDIÇÃO 310 SÃO LEOPOLDO, 05 DE OUTUBRO DE 2009 | EDIÇÃO 310 31 Agenda da Semana

Confira os eventos dessa semana, realizados pelo IHU. A programação completa dos eventos pode ser conferida no sítio do IHU (www.ihu.unisinos.br).

Dia 05-10-2009 Evento: Ciclo de Estudos em EAD – Repensando os clássicos da economia Texto de referência de Achyles Barcelos da Costa. Cadernos IHU Ideias número 47, 2006. O desen- volvimento econômico na visão de Joseph Schumpeter. O material está disponível em http://www. ihu.unisinos.br/uploads/publicacoes/edicoes/1158329722.22pdf.pdf. Dia 05-10-2009 EAD – Espaço de Espiritualidade I – Abrir os olhos Dia 07-10-2009 IHU em Movimento – Direito em debate Debatedor: Prof. Dr. Domingos Sávio Dresch da Silveira – Procurador da República Regional e professor da UFRGS Censurar não é controlar: mídia, direito e democracia Dia 07-10-2009 Fórum sobre indicadores socioeconômicos e políticas públicas: realidades e possibilidades para o Vale dos Sinos – Módulo II Profa. Dra. Marilene Maia – Unisinos Indicadores socioeconômicos e as políticas públicas: realidades e possibilidades

Participe dos eventos do IHU

A programação completa está disponível no endereço eletrônico www.ihu.unisinos.br

32 SÃO LEOPOLDO, 05 DE OUTUBRO DE 2009 | EDIÇÃO 310 Relações de emprego são relações de poder

Moisés Waismann aponta as mudanças ocorridas no mundo do trabalho após crise financeira internacional

Por Patricia Fachin

s consequências da crise financeira internacional foram sentidas em vários setores da economia mundial e, em especial, no mundo do trabalho. Além de acentuar a precarização, a turbulência também mudou o perfil dos trabalhadores contratados, informou Moisés Waismann, pesquisador do Departamento de Economia e membro do Observatório do Trabalho da Universidade de Caxias do Sul – UCS, em entrevista concedida, por e-mail, à IHU On-Line. Waismann participou de um Aestudo que analisou os impactos da crise internacional no setor da indústria de transformação em Caxias do Sul, tema de sua palestra no IHU Ideias do dia 8-10-2009. Entre as mudanças observadas, ele acentua que, ao contrário de outras crises, “esta afetou aqueles que ganham mais, os que têm um salário maior (...), principalmente homens e pessoas com mais escolarização”. O professor reiterou ainda que surgiram novas relações de trabalho caracterizadas pelos trabalhadores terceirizados, autônomos e pequenos empresários. Na opinião dele, estas novas relações “podem mascarar a precarização do trabalho”. Na entrevista que se- gue, Waismann também acentuou que “o mundo do trabalho está sempre num tencionamento quanto à de- gradação das relações trabalhistas”. O IHU Ideias desta quinta-feira abordará o tema a partir das 17h30min, na sala 1G119, junto ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU. Moisés Waismann concluiu o mestrado em Agronegócios pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS e atualmente é docente da Universidade de Caxias do Sul – UCS. Ele atua na área de Economia com ênfase em Economia dos Recursos Naturais. Confira a entrevista.

IHU On-Line - Que alterações a crise fi- uma queda; em março de 2009, o nú- masculina pela feminina. Ao que tudo nanceira gerou no mundo do trabalho, mero de trabalhadores admitidos foi indica, as trabalhadoras apresentam especialmente no setor da indústria de 1.972, um decréscimo de 1.789 (-48%) mais escolaridade, o que não significa transformação em Caxias do Sul? em relação a setembro de 2008. Es- que recebam melhores remunerações. Moisés Waismann - A crise de setem- tes dois movimentos (desligamento e a Outra observação importante que bro de 2008 afetou todo o mundo. A admissão), combinados, resultaram na pode estar associada aos efeitos da Organização Internacional do trabalho criação de novos postos de trabalho: crise foi a redução do salário médio - OIT estima que 50 milhões de pessoas em setembro de 2008 havia 703 novos dos trabalhadores. Enquanto, no mês perderam o emprego por conta da cri- postos de trabalho, dos quais, em mar- de setembro de 2008, o salário aproxi- se, e que aumentará em 220 milhões o ço, foram fechados 2.126. mado do trabalhador desligado era de número de pobres, aqueles que vivem 2,23 salários mínimos, em março des- com menos que US$ 2,00/dia, em todo IHU On-Line - Além das mudanças te ano, passou para 2,39. Assim, houve o mundo. Então o que está acontecen- quantitativas, quais foram as mu- uma tendência a desligar trabalhado- do é um problema muito sério e que danças qualitativas em relação ao res com salários maiores. diz respeito a todos. emprego? Qual é o perfil dos novos Sobre os trabalhadores desligados por Na indústria da transformação, em postos de trabalho? faixa etária, observa-se a tendência de Caxias do Sul, ocorreram dois movimen- Moisés Waismann - A crise também desligamento com mais idade, possivel- tos (desligamento e admissão) que com- influiu na qualidade dos postos de tra- mente aqueles que possuem uma renda binados concorrem para a criação/fe- balho, ou seja, no perfil do trabalha- maior, seja por tempo de serviço e/ou chamento de novos postos de trabalho. dor contratado. Sobre o ensino formal, qualificação. Por outro lado, os que têm Ocorreu um aumento no número de verificou-se que os novos contratados até 17 anos, possivelmente contratados trabalhadores desligados. Em março tendem a apresentar mais escolariza- como aprendizes, obtiveram um incre- de 2009, o número de trabalhadores ção. Outro fator observado é em rela- mento positivo nas admissões. Verifica- desligados foi de 4.098, o que repre- ção à criação de novos postos: os ho- se, de forma geral, que há nitidamente senta um acréscimo de 1.040 (34%) mens perderam mais vagas do que as uma preferência por trabalhadores com em relação a setembro de 2008. Sobre mulheres. Verifica-se, assim, uma ten- até 30 anos, os trabalhadores nessa faixa a admissão de trabalhadores, houve dência à substituição da mão-de-obra etária foram os únicos a ter saldo posi-

SÃO LEOPOLDO, 05 DE OUTUBRO DE 2009 | EDIÇÃO 310 33 tivo na variação de postos de trabalho pelo emprego” e ainda abrir mão de veitaram este tempo para tornar os seus e, com relação à renda auferida, são seu salário para poder se manter no produtos mais competitivos? Se as res- os que se encontram entre as faixas de trabalho, como aconteceu recente- postas forem positivas, penso que temos menor a médio rendimento. Outro fato mente no Estado? a possibilidade de sairmos mais fortes des- que evidencia essa tendência refere-se Moisés Waismann - Sobre a primeira ta crise. Se isso não ocorreu, teremos que à criação de novos postos de trabalho, parte da pergunta: O mundo do trabalho repensar a organização do nosso mercado voltados mais para os trabalhadores que está sempre num tencionamento quanto de produção de bens e serviços. Como recebem até 1,0 salário mínimo. Desse à degradação das relações trabalhistas, podemos ter uma organização industrial modo, uma das conclusões da pesquisa e, desde os anos 1990, esta disputa está que vive somente com subsídios do gover- é que um dos efeitos negativos da crise mais acirrada. A sociedade neoliberal no? Teremos que esperar um pouco mais para o mercado de trabalho de Caxias acredita que os diretos dos trabalha- para ter clareza sobre o próximo período. do Sul foi a diminuição dos salários, en- dores são um entrave ao progresso. Na Muitas são as previsões, mas cautela se quanto em setembro de 2008, o salário América Latina, somente cinco países faz necessária. médio era 2,02, em março de 2009, foi têm um sistema de seguro-desemprego. de 1,8, o que representou uma variação Começam a aparecer as condições de IHU On-Line - Nesse contexto, que negativa de 20%. trabalho dos chineses, dos indianos, dos cenário o senhor vislumbra no que se A crise não afetou somente a cria- trabalhadores norte-americanos e dos refere à empregabilidade e ao mundo ção de novos postos, mas também con- brasileiros. Isso é bom porque recoloca do trabalho? Que perfil de profissional tribuiu para a mudança das caracterís- a centralidade do trabalho frente a uma e estrutura serão mais comuns? Quais ticas dos novos postos de trabalho. De supervalorização do mercado financeiro. serão os desafios nesse sentido? setembro de 2008 para março de 2009, Neste período, observa-se o surgimento Moisés Waismann - Os desafios estão o mercado de trabalho mostrou as se- de novas relações de trabalho, os traba- postos, e agora que o discurso único do guintes alterações: os trabalhadores lhadores terceirizados, os autônomos, os neoliberalismo não dá conta de explicar passam a ser mais escolarizados, mais micros e pequenos empresários e, mais a realidade, podemos sentar e discutir jovens, com menores remunerações recentemente, a empresa individual. Em possibilidades. É necessário reafirmar a e com uma tendência ao aumento da alguns casos, estas novas relações podem centralidade do trabalho na nossa socie- mão-de-obra feminina. mascarar a precarização do trabalho. So- dade e desvincular trabalho de renda. bre a segunda parte: é bom deixar claro Há mais de 30 anos, a produção de bens IHU On-Line - Que impactos a crise que as relações de emprego são relações e serviços cresce com redução de pos- internacional gerou no quadro de de poder e estão colocadas na mão de tos de trabalho. Não tem trabalho para empregos do mercado brasileiro? É quem demanda trabalho. O trabalha- todos. Devemos criar outras formas: re- possível estimar que classe social foi dor fica num dilema perverso: trabalhar dução da jornada de trabalho sem a re- mais atingida pelo desemprego a par- e abrir mão dos seus direitos e de sua dução do salário possibilitaria a criação tir dessa turbulência? saúde ou ter os seus diretos e saúde e de mais postos de trabalho; pensar em Moisés Waismann - O Brasil vinha mês não ter trabalho. Precisamos de dinheiro postos de trabalho verdes, que levem após mês, desde 2006, num crescimen- para sobreviver nas cidades, onde vamos em conta o limite da Natureza; valorizar to sustentado na criação de novos pos- conseguir se não for trabalhando? e remunerar o trabalho de cuidadores tos de trabalho. O consumo crescendo, de crianças e idosos; promover o aces- as empresas produzindo. Em outubro do IHU On-Line - Com a crise financeira, so qualificado e remunerado à educação mesmo ano, o emprego começa a cair, e as indústrias brasileiras, em especial continuada. São muitas as possibilida- em dezembro (2006) atinge o seu pior de- as automobilísticas, ganharam bas- des. Penso que pode ser o momento da sempenho; foram fechados mais de 650 tante apoio do Estado. Podemos di- sociedade discutir um futuro comum. mil postos de trabalho só neste mês. Ao zer assim que a economia brasileira contrário de outras crises, esta afetou se manteve estável. No próximo ano, IHU On-Line - É possível, pós-crise, aqueles que ganham mais, os que têm um a intervenção do Estado tende a di- pensar em uma alternativa que de- salário maior, os níveis gerenciais e técni- minuir. Nesse sentido, que perspecti- fenda o emprego e maior distribui- cos, principalmente homens e outros fun- vas o senhor vislumbra para a econo- ção de renda? cionários com mais escolarização. O caso mia nacional? Como ela irá se manter Moisés Waismann - É possível e necessá- da demissão dos técnicos da Embraer é sem a intervenção do Estado? rio. Devemos pensar em como distribuir um exemplo deste movimento. Moisés Waismann - Penso ser esta uma a renda que é gerada por cada vez menos grande oportunidade para ver como as empregos e empresas. É importante dis- IHU On-Line - O que um momento empresas vão reagir. O governo brasileiro cutir o papel social das organizações ao de crise como o vivenciado pela tur- fez um grande esforço de renuncia fiscal invés de colocá-las na mão do governo. bulência internacional revela sobre para poder manter uma certa estabilida- A sociedade está organizada desta for- a precariedade do trabalho? Na sua de na economia. Os trabalhadores deram ma porque historicamente se fez assim. avaliação, o trabalhador é “desvalo- a sua cota com a redução da jornada de Chegou a hora de pensar se esta forma rizado”, uma vez que precisa “lutar trabalho, com redução de salário. E as responde as nossas necessidades atuais, empresas, o que fizeram? Será que apro- e de garantir mais bem-estar. 34 SÃO LEOPOLDO, 05 DE OUTUBRO DE 2009 | EDIÇÃO 310 “O capitalismo é um parêntese na história da humanidade”

Para o filósofo alemão Anselm Jappe, o capitalismo é um parêntese na história da hu- manidade, e não um destino inexorável. Já estamos observando seu colapso, garante. Teoria da multidão, de Hardt e Negri, é marxismo ortodoxo com “verniz pop”, além de impostura intelectual

Por Márcia Junges | Tradução Vanise Dreschn

capitalismo não é uma “realização necessária de toda a história”, mas apenas um “parên- tese” nela. A ideia é do ensaísta alemão Anselm Jappe, que, em entrevista exclusiva, con- cedida pessoalmente à IHU On-Line, afirmou haver uma ontologização do capitalismo tanto por parte do pensamento burguês quanto por parte da dita esquerda. Esse valor “não tem um estatuto ontológico verdadeiro, mas pretende tê-lo”, como se o capitalismo fosse uma Ometafísica realizada. Segundo ele, inclusive os críticos do capitalismo não o fazem verdadeiramente, pois “se limitam a criticar o liberalismo, propondo como alternativa um capitalismo mais mitigado”. Jappe assegura que já observamos sinais de colapso desse sistema, e a crise econômico-financeira mundial é um deles: “O capitalismo vai terminar, e já estamos observando esse fim. Não é algo que irá acontecer de um dia para o outro, mas os sinais de esgotamento são visíveis”. Isso só vem a confirmar “o que a crítica do valor já havia dito há 20 anos”, acentua. Jappe dá detalhes sobre a crítica que faz, junto com Robert Kurz, à teoria de multidão de Michael Hardt e Toni Negri. Em sua opinião, eles não pensam uma saída do capitalismo, e inclusive entendem o valor como algo positivo. O “negrismo”, dispara, é um marxismo tradicional com verniz pop, e uma “impostura inte- lectual”. Entretanto, a teoria faz sucesso porque tece “lisonjas a toda essa nova camada que trabalha no campo da informática”. Outro equívoco, assinala, é a equiparação errônea que esses autores fazem entre o conceito de trabalho abstrato e trabalho imaterial. Momentos antes de proferir a conferência Crise, Crítica Radical e Emancipação Humana, proferida no IHU Ideias de 01-10-2009, Jappe conversou com a IHU On-Line. O grupo Crítica Radical, de Fortaleza, apoiou o evento. Filósofo e ensaísta nascido na Alemanha, realizou seus estudos na Itália e França, onde vive atualmente. Além de inúmeros artigos já publicados na revista alemã Krisis, é autor de Guy Debord (Petrópolis: Vozes, 1999) e As Aventuras da Mercadoria (Lisboa: Antígona, 2006). Leciona na Academia de Belas-Artes de Frosinone (Latium, Itália). Após a cisão interna do Grupo Krisis, posicionou-se ao lado dos autores que fundaram a revista Exit!, cujos principais integrantes são Robert Kurz, Roswtiha Scholz e Claus Peter Ortlieb. Participa do Grupo Crítica Radical e da Revista “EXIT – Crítica do Capitalismo para o Século XXI – com Marx para além de Marx”. Confira a entrevista.

IHU On-Line - Por que afirma que o a humanidade e a evolução avançam mesmo enquadramento do valor, do capitalismo é apenas um parêntese para algo melhor, e que o capitalismo dinheiro, da democracia e do Estado. na história humana? seria uma espécie de apogeu da hu- Não é apenas o pensamento burguês, Anselm Jappe – Trata-se de uma for- manidade, uma forma de sociedade e mas boa parte também do pensamen- mulação polêmica, porque o capita- de economia que vai permanecer para to que se proclama ser de esquerda, lismo existe há, no mínimo, 200 anos sempre. Muitas vezes, as apologias do que se converteu a essa ontologização nos países desenvolvidos como Ingla- capitalismo são feitas apresentando do capitalismo, incapaz de imaginar terra. Há antecedentes do capitalismo a democracia como uma forma final- algo diferente. na época da Renascença, remontando mente encontrada para o convívio dos Com todas as mudanças propostas, ao século XIV. Disse que o capitalismo seres humanos. Assistimos, então, a pensam, mesmo assim, se permanece- é um parêntese na história para fazer uma espécie de ontologização do ca- rá numa lógica capitalista ou se não uma objeção à apologia atual que o pitalismo. Isso consiste em dizer que volta a se cair na barbárie e no caos. vê como uma realização necessária de pode haver diferentes modelos de Muitos daqueles que criticam o capita- toda a história. Critico a ideia de que capitalismo, mas ele se mantém no lismo hoje (como os altermundialistas SÃO LEOPOLDO, 05 DE OUTUBRO DE 2009 | EDIÇÃO 310 35 e associações como a ATTAC e todas “Esse é o marxismo encontrar uma espécie de felicidade. aquelas pessoas que se encontram na Isso seria muito bom, mas não é o que cúpula do Fórum Social de Porto Ale- mais tradicional que acontece. O capitalismo vai terminar, gre) não o criticam verdadeiramente, e já estamos observando esse fim. Não porque se limitam a criticar o libera- temos, pintado com é algo que irá acontecer de um dia lismo, propondo, como alternativa, para o outro, mas os sinais de esgota- um capitalismo mais mitigado. outras cores ou com mento são visíveis. Em oposição a essa eternização do capitalismo é que falo de um parên- outro verniz, um IHU On-Line - Quais são os principais tese, dizendo que esse sistema foi o impactos da crise econômico-finan- rompimento absoluto com todas as so- verniz mais pop” ceira atual no capitalismo, na polí- ciedades pré-capitalistas. O capitalis- tica, no trabalho? Esse sistema está mo não é apenas uma sociedade entre ameaçado com tal cenário mundial? outras, constitui-se a fratura mais fun- e Karl Polanyi que mostraram o cará- Anselm Jappe – De fato, a crise do ano damental da história da humanidade, ter radicalmente diferente das socie- passado confirmou o que a crítica do principalmente porque introduziu um dades antes do capitalismo. Não estou valor já havia dito há 20 anos. É claro dinamismo e uma orientação que es- falando apenas em sociedade etnoló- que a crise financeira não é a causa da tavam ausentes nas sociedades prece- gica, como Polanyi demonstrou que, crise do capitalismo, mas, bem pelo dentes, que eram mais estáticas. no século XVII, havia lógicas sociais contrário, a financeirização foi apenas bem diferentes, ou como Thompson uma maneira do capitalismo continuar O capitalismo não é um destino demonstrou em sua obra clássica, A vivendo, principalmente, através do inevitável formação da classe trabalhadora na endividamento contínuo. A crise finan- Inglaterra (Rio de Janeiro: Paz e Ter- ceira não era, simplesmente, devida A partir disso, uma das principais ra, volumes I, II e III). à cupidez dos bancos ou especulação características do capitalismo é a re- Tudo isso permite demonstrar os di- que roubava dos trabalhadores, mas sistência ao fato de que a atividade ferentes pontos de vista, não somente se deu, essencialmente, a emergên- social se entenda como trabalho, e o marxistas, de que o traço fundamental cia da verdadeira realidade de hoje, trabalho como valor, e o valor como do capitalismo não é algo natural do ou seja, o esgotamento do valor, a sua dinheiro. Então, tudo isso não é natu- ser humano, mas pertence apenas a saturação. Graças ao desenvolvimento ral, histórico e eterno. Tudo isso veio uma fase determinada da história hu- tecnológico, se usa cada vez menos a ao mundo com o capitalismo. Aliás, mana. Deste ponto de vista, podemos força de trabalho para a produção de essa não é uma afirmação de Marx, dizer que o capitalismo é apenas uma mercadorias. E menos força de traba- somente. Há estudos de Marcel Mauss fase da humanidade, e assim como lho significa, também, menos valor e mais dificuldade para acumular capital  Karl Heinrich Marx (1818-1883): filósofo, veio ao mundo, pode, também, desa- cientista social, economista, historiador e re- parecer. É claro que não quero dizer na produção do real. É por isso que o volucionário alemão, um dos pensadores que que o capitalismo seja um simples “in- capital vai se refugiar na especulação exerceram maior influência sobre o pensamen- para ficar no capital fictício. to social e sobre os destinos da humanidade no cidente” depois do qual se podem mu- século XX. Marx foi estudado no Ciclo de Estu- dar muitas coisas. Essa expressão mos- dos Repensando os Clássicos da Economia. A tra, simplesmente, que o capitalismo Retorno da financeirização edição número 41 dos Cadernos IHU Ideias, de autoria de Leda Maria Paulani tem como título não é, necessariamente, um destino A (anti)filosofia de Karl , Marx disponível em inevitável. Com a crise, há uma espécie de http://www.unisinos.br/ihu/uploads/publi- E quando falo em parêntese, não retorno na financeirização. Essa finan- cacoes/edicoes/1158330314.12pdf.pdf. Tam- ceirização é uma remissão da crise, e bém sobre o autor, confira a edição número significa que havia uma espécie de so- 278 da IHU On-Line, de 20-10-2008, intitulada ciedade feliz, e o capitalismo chegou não a sua causa. Ao contrário, é um A financeirização do mundo e sua crise. Uma como uma “erupção do mal”, e que modo de esconder e ocultar essa crise. leitura a partir de Marx, disponível para do- Muitas empresas ou estados que já de- wnload em http://www.unisinos.br/ihuon- esse parêntese vai se fechar para re- line/uploads/edicoes/1224527244.6963pdf. pelo Prof. Dr. Paulo Henrique Martins (UFPE), veriam ter decretado falência há mui- pdf. (Nota da IHU On-Line) na programação do evento Alternativas para to tempo, simplesmente continuam  Marcel Mauss: refletiu sobre a arbitrarieda- outra economia, em 10-10-2006. (Nota da IHU existindo, acrescentando, a cada ano, de cultural de nossos comportamentos mais On-Line) casuais, definindo o corpo como o primeiro  Karl Polanyi (1886-1964): economista aus- mais um zero a seus números. e mais natural objeto técnico e, ao mesmo tríaco. Sua obra principal é A Grande Trans- Com a verdadeira crise que come- tempo, meio técnico do homem. Sobre Mar- formação - as origens de nossa época (Rio de ça a emergir em plena luz do dia, há cel Mauss, pode-se ler a entrevista de Alain Janeiro: Campus, 2000), escrita nos Estados Caillé publicada na IHU On-Line, n.º 96, de Unidos de 1940 a 1943. Sobre o economista um grande aumento do desemprego na 12 de abril de 2004, a propósito da publica- a IHU On-Line 147, de 27-06-2005, dedicou Europa. Agora se diz que ela passou, e ção do livro História Argumentada da Filosofia o tema de capa A grande transformação. As que a economia está sendo retomada. Moral e Política, disponível para download em origens da nossa época. Os 60 anos da obra http://www.ihuonline.unisinos.br/uploads/ clássica de Karl Polanyi, disponível para do- Contudo, fora alguns ciclos que con- edicoes/1158260072.35pdf.pdf. O pensamen- wnload em http://www.ihuonline.unisinos. tinuam possíveis, há uma “retomada” to de Mauss é tema da palestra A economia br/uploads/edicoes/1158343848.01pdf.pdf. pelo fato de que são queimadas reser- do dom e a visão de Marcel Mauss, realizada (Nota da IHU On-Line) 36 SÃO LEOPOLDO, 05 DE OUTUBRO DE 2009 | EDIÇÃO 310 vas de um modo nunca visto antes. “Evita-se a crise, IHU On-Line - Você e Kurz contes- Para compreender isso, devemos tam a teoria do Império e Multidão, prestar atenção em determinados fa- simplesmente, de Hardt e Negri. Quais são os prin- tos precisos. Na França, pela primeira do primeiro departamento de sociologia de vez desde a Segunda Guerra Mundial, oferecendo cada vez uma universidade européia e, em 1896, o fun- o patrimônio acumulado dos franceses dador de um dos primeiros jornais dedicados à ciência social, intitulado L’Année Sociologi- diminuiu de forma significativa. Até mais crédito. No final que. (Nota da IHU On-Line) mesmo as classes médias, que podiam  Robert Kurz: sociólogo e ensaísta alemão, cobrir suas despesas, começam a ven- co-fundador e redator da revista teórica Kri- das contas, é sis - Beiträge zur Kritik der Warengesellschaft der seus bens imobiliários não apenas (Krisis - Contribuições para a Critica da Socie- para investir, mas para saldar compro- o mesmo que dade da Mercadoria). A área dos seus trabalhos missos. Cada família está endividada abrange a teoria da crise e da modernização, a análise crítica do sistema mundial capitalis- em, pelo menos, 15 mil euros. Pratica- acontece com quem ta, a critica do Iluminismo e a relação entre mente toda a Itália tem de trabalhar cultura e economia. É autor de O Colapso da quase que gratuitamente para poder Modernização (Rio de Janeiro: Paz e Terra, bebeu e acorda de 1993) e Os Últimos Combates (Petrópolis: Vo- reembolsar essa dívida. zes, 1998). A IHU On-Line entrevistou Kurz Nos EUA, a situação é ainda mais ex- ressaca, e soluciona o na 98ª edição, de 26-04-2004, sob o título A trema. Quando falamos em bancos e que globalização deve se adaptar às necessidades das pessoas, e não o contrário, disponível para o governo intervenha, permanecemos, problema bebendo download em http://www.ihuonline.unisinos. ainda, numa esfera larga das finanças. br/uploads/edicoes/1158260659.15pdf.pdf. Entretanto, o que pode acontecer é uma Dele publicamos, ainda, um artigo intitulado ainda mais” O declínio da classe média, originalmente vei- reação em cadeia, porque sabemos que culado na Folha de S. Paulo, em 19 de setem- todas as dívidas irão criar uma espécie bro de 2004 e outro artigo na edição 26, de de corrente. Há um verdadeiro risco de 15 de julho de 2002, disponível para download alizada. A modernidade gosta muito de em http://www.ihuonline.unisinos.br/uploa- que todas essas correntes se rompam e se apresentar como uma espécie de se- ds/edicoes/1161372042.91pdf.pdf. Na edição haja um grande pânico. 161, de 24-10-2005, Kurz concedeu a entrevista cularização, pensa ser muito superior às Até aqui, as instituições consegui- Novas relações sociais não podem ser criadas religiões antigas. A religião foi abando- por novas tecnologias, disponível para down- ram evitar esse pânico. Muitas vezes, nada, e, em seu lugar, se adotou a “me- load em http://www.ihuonline.unisinos.br/ elas se vangloriam em ter aprendido a uploads/edicoes/1158347724.5pdf.pdf. Confi- tafísica do real” ou, ainda, a “metafísica lição com o que houve em 1929 e que ra, ainda, as entrevistas O trabalho abstrato realizada”. Marx chamou a mercadoria se derrete como substância do sistema, publi- agora sabem administrar a crise, mas, de ser sensível e suprassensível. A mer- cada na edição 188 de 10-07-2006, disponível na verdade, não há nenhuma solução para download em http://www.ihuonline.uni- cadoria, o seu fetichismo, é uma forma estrutural, nenhum novo modelo de sinos.br/uploads/edicoes/1158344143.77pdf. de religião, não no sentido banal, de se pdf, e O vexame da economia da bolha finan- acumulação e nenhuma indústria que dar importância demais à mercadoria, ceira é também o vexame da esquerda pós- utilize de forma maciça a força de tra- moderna, publicada na edição 278 da IHU On- mas no sentido que as mercadorias e balho. Evita-se a crise, simplesmente, Line, de 21-10-2008, disponível para download seus movimentos, o que chamamos de em http://www.ihuonline.unisinos.br/index. oferecendo cada vez mais crédito. No mercado, podem ter estabelecido uma php?option=com_tema_capa&Itemid=23&task final das contas, é o mesmo que acon- =detalhe&id=1376. (Nota da IHU On-Line) dominação impessoal em nossas socie- tece com quem bebeu e acorda de res-  Michael Hardt (1960): téorico literário ame- dades, porque esquecemos que fomos ricano e filósofo político radicado na Universi- saca, e soluciona o problema bebendo nós que criamos essas mercadorias e dade de Duke. Com Antonio Negri escreveu os ainda mais. Isso pode funcionar por livros internacionalmente famosos Império (5ª suas leis. Foi por isso que Marx falou do um período imediato, mas não pode ed. Rio de Janeiro: Record, 2003) e Multidão. fetichismo da mercadoria já a partir de Guerra e democracia na era do império (Rio ser uma solução a longo prazo. 1842, e tomou esse termo já na Crítica de Janeiro/São Paulo: Record, 2005). (Nota da IHU On-Line) à religião. Ele se referia aos modernos, IHU On-Line - O valor alcançou uma  Antonio Negri (1933): filósofo político e mo- que se achavam tão modernos, e que, ral italiano. Durante a adolescência foi mili- ontologização em nossa sociedade? na verdade, não são muito diferentes tante da Juventude Italiana de Ação Católica, Em caso positivo, como podemos fa- como Umberto Eco e outros intelectuais italia- daquilo que chamamos de selvagens. Há lar em fim da metafísica se o valor nos. Em 2000 publica o livro-manifesto Impé- a projeção de um poder coletivo sobre rio (5ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2003), com atingiu esse status ontológico? um ser que é considerado como sendo Michael Hardt. Atualmente, após a suspensão Anselm Jappe – O valor não tem um de todas as acusações contra ele, definitiva- independente desse poder humano. Por estatuto ontológico verdadeiro, mas mente liberado, ele vive entre Paris e Veneza, isso que podemos estabelecer uma re- escreve para revistas e jornais do mundo intei- pretende tê-lo. Pretende-se que toda lação entre a teoria do fetichismo de ro e publicou Multidão. Guerra e democracia estrutura tenha um valor que possa ser na era do império (Rio de Janeiro/São Paulo: Marx com a teoria antropológica do fe- trocado no mercado, mas, na verdade, Record, 2005), também com Michael Hardt. tichismo como encontramos em Émile Sobre essa obra, publicamos um artigo de Mar- essa é uma ilusão coletiva. Ultimamen- Durkheim. co Bascetta na 125ª edição da IHU On-Line, de te, existem análises do capitalismo não 29-11-2004. O livro é uma espécie de continui- apenas como um sistema econômico,  David Émile Durkheim (1858-1917): conhe- dade da obra anterior da dupla, Império. Ele cido como um dos fundadores da Sociologia foi apresentado na primeira edição do even- mas como uma espécie de metafísica re- moderna. Foi também, em 1895, o fundador to Abrindo o Livro, promovido pelo IHU, em SÃO LEOPOLDO, 05 DE OUTUBRO DE 2009 | EDIÇÃO 310 37 cipais aspectos dessa crítica? Anselm Jappe – A teoria da multidão, de Hardt e Negri nada mais é do que uma versão pós-moderna do marxismo mais tradicional, baseada na ideia de que a força de trabalho enquanto tal já está fora da relação capitalista, e que o ca- pitalismo não é senão uma espécie de Confira as publicações do apropriação do que os operários criam. Na verdade, enquanto portadores de um nstituto umanitas nisinos metabolismo com a natureza, como diz I H U - IHU Marx. Para o marxismo tradicional, foram os operários industriais que garantiram esse metabolismo. Negri simplesmen- te substituiu o operário industrial pelo operário imaterial, ou “informático”, ou aquele que trabalha na cultura. Na ver- dade, ele e Hardt não conseguem nem mesmo pensar uma saída do capitalismo. Pelo contrário. Falam de autovaloriza- ção da multidão. Inclusive entendem o valor como um valor positivo. Eles que- rem simplesmente liberar a produção em relação a essa espécie de parasitismo de uma classe que não trabalha e controla os meios de produção. Esse é o marxismo mais tradicional que temos, pintado com outras cores ou com outro verniz, um verniz mais pop. Negri e Hardt utilizam o conceito de tra- balho abstrato mas não entendem abso- lutamente nada desse conceito em Marx, considerando-o que é igual ao trabalho imaterial. Então, todo o “negrismo” pode ser qualificado como uma impostu- ra intelectual. Mas tem sucesso porque lisonjeia a toda essa nova camada que trabalha no campo da informática, por exemplo. Há relações totalmente acríti- cas com o conteúdo da vida capitalista. Eles dão um tom positivo a tudo que tem a ver com a “cultura capitalista”, com as formas de sujeito, da dissolução dos antigos vínculos.

abril de 2003. Em 2003 esteve na América do Sul (Brasil e Argentina) em sua primeira viagem internacional após décadas entre o cárcere e o exílio. (Nota da IHU On-Line) Elas estão disponíveis na página eletrônica Leia mais... “Grundrisse” de Marx. Um outro para- www ihu unisinos br digma teórico para os desafios contemporâne- . . . os, publicada nas Notícias do Dia 19-06-2006, disponível para download em http://www.ihu. unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Ite mid=18&task=detalhe&id=3115

38 SÃO LEOPOLDO, 05 DE OUTUBRO DE 2009 | EDIÇÃO 310 Perfil

Darli de Fátima Sampaio

Por Graziela Wolfart | Fotos Arquivo Pessoal

paranaense Darli de Fátima Sampaio, integrante do Centro de Pes- quisa e Apoio ao Trabalhador (Cepat), com sede em Curitiba, é quem conta a sua trajetória de vida nesta semana. Darli tem um grande trabalho com as camadas populares da sociedade. Durante a entrevista, concedida, por telefone, à revista IHU On-Line, duas marcasA fortes são perceptíveis em sua personalidade: religiosidade e mili- tância. Foram anos dedicados aos movimentos sociais e ao Partido do Tra- balhador (PT). Seu conceito de fé, hoje diferente do aprendido na infância, nos faz refletir, pois Darli nos coloca diante de uma definição que ruma para o caminho do individualismo e outra que se alicerça no socialismo. Confira, a seguir, a história de vida desta mulher.

Foi na Lapa, cidade localizada a estivesse a serviço do outro. Minha bra que a primeira escola fazia parte aproximadamente 50 km de Curiti- mãe ajudava vizinhos que estavam da congregação apóstolas do Sagrado ba, que Darli nasceu. Ela conta que passando necessidades, e meu pai Coração de Jesus, “a qual eu escolhi o município foi fundado por gaúchos, emprestava um pouco de dinheiro para entrar mais tarde, na minha tra- e é por isso que a cultura é muito para as pessoas que não tinham. Mas jetória de vida”. Depois de concluir ligada ao Rio Grande do Sul. “Sou fi- não era uma fé que se comprometia os estudos do Ensino Médio, Darli in- lha de agricultores. Meus pais traba- com uma transformação de uma rea- terrompeu sua formação e foi para a lhavam na roça, mas, como eu tive lidade de vida. Era uma fé estendida militância. Mais tarde fez graduação poliomielite, eles acharam melhor às pessoas mais próximas e também em Filosofia na PUC, pós em sociologia mudar para a cidade, já que na roça uma fé imediata”. política e mestrado em sociologia do o meu futuro estaria comprometi- trabalho. do”. Darli é a filha mais velha de ou- Hoje, a fé que Darli tinha, ampliou- tros três irmãos. Um falecido, por se para uma fé que está comprometi- “A militância foi o meu maior refe- conta de problemas cardíacos e que da com os necessitados sim, mas que rencial na vida”. Antes de entrar no também viveu o drama do alcoolis- exige uma transformação do social, convento, Darli participava de um mo. “Pergunto-me se dei a ele toda um resgate da dignidade de qualquer grupo de jovens muito envolvidos a atenção de que necessitava.” pessoa, estando próxima ou não. Esta com as causas populares, que fazia mudança é resultado da sua larga uma leitura crítica do mundo, das A religiosidade é o principal valor atuação na militância. “Passei a ter coisas ao seu redor. Os interesses do que a família cultivou em Darli. mais compaixão. E a perceber que as grupo se voltavam para melhorias “Minha mãe é uma mulher de mui- pessoas são colocadas em situações para o bairro e os organismos públi- ta fé, que sempre superou as difi- diferenciadas, desiguais e injustas. O cos que poderiam beneficiar a po- culdades a partir desse referencial. referencial de fé também te ajuda a pulação. “Deste grupo, passei para Rezávamos juntos, íamos à missa, superar as dificuldades. Você se torna a Associação de Moradores. De lá, fizemos primeira comunhão e cris- resiliente, forte para enfrentar os im- para a Pastoral Operária. Da pasto- ma”. Com o passar do tempo e com pactos da vida”. ral, fundamos os núcleos do PT na outras experiências pelas quais Darli região. Comecei a militar por volta passou, sua fé sofreu modificações. A trajetória estudantil de Darli foi de 1979 e sempre tentei não desvin- “Meus pais nunca foram militantes, marcada por períodos de estudos em cular-me da comunidade.” mas sempre cultivaram uma fé que colégios de padres e freiras. Ela lem-

SÃO LEOPOLDO, 05 DE OUTUBRO DE 2009 | EDIÇÃO 310 39 Outras instituições como o Centro na vida. “É uma sociedade que não Comunitário de Manutenção (Ceco- “Há certo descrédito. está dando certo do ponto de vista ma), que trabalhava a questão da da dignidade e do resgate da pessoa alimentação popular para baratear A política cada vez mais humana. E nós temos que ter alguma os alimentos, também fizeram parte coisa a ver com tudo isso!” da vida de Darli. “Depois do Cecoma, passou a ser uma coisa fui liberada da Pastoral Operária da Sonho Arquidiocese para ajudar nas refle- errada, que não vale xões de base. Trabalhei muitos anos Quando o assunto é o grande so- como dirigente do PT, e alguns cargos a pena investir” nho de vida, Darli vacila. Acha que de direção, como secretária-geral da sonhos são mutáveis e se pergun- secretaria de movimentos populares ta: “O que mais eu posso querer? e nucleação. Do Partido, fui para a dera que sua concepção de família Do ponto de vista material, sou coordenação do Centro de Formação não passa apenas por uma formação uma ‘incluída’. Do ponto de vista Urbano-Rural Irmão Araújo (Cefuria), de um núcleo. “É claro que é mui- afetivo, meus recebimentos são uma entidade que sempre esteve na to importante ter os pais e irmãos enormes. Não estou interessada na nossa caminhada, mas estava quase por perto, mas hoje estou inserida decantada felicidade, que também fechando as portas”. no que considero uma família maior, acontece na vida, assim como o que é a da militância”. seu contrário. Meu sonho, se é que Após três anos neste Centro, Darli pode ser definido assim, está em foi convidada a trabalhar na Pasto- Aprendizado ter a coragem de viver bem a vida, ral Operária Nacional, o que a fez se e em tudo o que ela me reservar. mudar para o Rio de Janeiro. “Vol- Analisando sua trajetória até aqui, Na forma mais focada, sonho que a tando para o Paraná, voltei também Darli avalia que a vida é uma tro- nossa Escola de Gênero, Trabalho para o Cefuria e para a coordenação. ca. “Cada um tem um referencial e Sustentabilidade dê certo. E que Depois de sete anos, recebi o convite de vida, que vai marcando a gente. possa fazer alguma diferença na para trabalhar no Centro de Pesquisa Minha trajetória junto com as pes- vida das pessoas”. e Apoio aos Trabalhadores (Cepat), soas faz parte de um aprendizado”. onde estou há cerca de cinco anos Darli destaca que mesmo quem não Política brasileira e, no momento, me dedico à Escola passou por uma instituição acadê- de Gênero, Trabalho e Sustentabili- mica tem conhecimentos impressio- Para Darli, a política vive um mo- dade, que está concluindo agora seu nantes. “Estas pessoas têm um te- mento muito complexo, no qual não segundo ano de funcionamento, ten- souro pessoal que faz parte da sua há mais vinculação com o campo so- do formado e transformado a vida de leitura do mundo, do ouvir, ver e cial. “Há certo descrédito. A políti- aproximadamente 100 pessoas”. Dar- sentir esse mundo nas experiências ca cada vez mais passou a ser vista li não é casada, nem tem filhos, uma vividas”. Para Darli, pessoas que tra- como uma coisa errada, que não vale condição que no caso das mulheres, balham nas comunidades, com seto- a pena investir. É sempre uma apos- por um lado, facilita a participação, res marginalizados e discriminados ta, mas não é a única que devemos a galgar cargos de direção. Porém, na sociedade, têm consciência que fazer. A política é importante, mas de outro lado, sobrecarrega de res- trabalham com gente muito maltra- tem que se transformar, porque está ponsabilidades e cobranças. Consi- tada, machucadas, desconsideradas voltada a benefícios particulares”.

40 SÃO LEOPOLDO, 05 DE OUTUBRO DE 2009 | EDIÇÃO 310 Sala de Leitura

>> MIGNOLO, Walter. La Idea de América sua afeição por cães, bem como um conquistador de Latina. La herida colonial y La opción mulheres jovens”. decolonial (Barcelona: Gedisa, 2007) Gisele Rodrigues da Silva Ferrasso, funcionária do “Em La Idea de América Latina, Mignolo analisa a Laboratório de Editoração Eletrônica (LEE) da Unidade de história dos silêncios produzidos no processo de Ciências da Comunicação da Unisinos invenção da América Latina, pelos relatos do início do século XVI, que desconsideram toda a história anterior >> BAHIA, Melissa Santos. Responsabilidade dos povos dessas terras. Esses silêncios continuaram a social e diversidade nas organizações: ser (re)produzidos durante os 500 anos seguintes, nos contratando pessoas com deficiência (Rio quais vigorou o modelo de humanidade ideal do homem de Janeiro: Qualitymark Editora, 2006) branco, cristão e europeu. Quanto a esse aspecto, o autor é enfático: a ideia de América e América Latina “Estou lendo o livro Responsabilidade se constituiu por meio da classificação racial do Social e Diversidade nas Organizações: mundo, em que o critério eram os ideais ocidentais Contratando Pessoas com Deficiência. Nele, a autora aborda cristãos (MIGNOLO, p. 43). Tecendo argumentos em a inclusão de pessoas com deficiência (PCD) no mercado de torno dessa questão, o livro se propõe a contribuir para trabalho. Ela sugere que o principal impedimento da inclusão a ousada tarefa de reescrever a história da América natural de PCD nas organizações é a falta de informação Latina com bases em outra lógica, em e conhecimento que estas pessoas têm dos direitos à outra linguagem e em outro marco de convivência não-segregada e também a falta de acesso aos pensamento”. recursos disponíveis aos demais cidadãos. A tônica da obra é a necessidade de aprendermos a ter respeito à diversidade Ana Galarraga, colaboradora do Programa Teologia em todos os ambientes (sociais e profissionais). A partir deste Pública, do IHU momento, a inclusão acontecerá naturalmente”.

Miriam Ferragini Müller, funcionária do setor de Serviços >> LAMBERT, Angela. A história perdida de Sociais da Unisinos Eva Braun (São Paulo: Globo, 2007)

“A autora tenta resgatar com documentos históricos a vida da mulher que viveu ao lado de Hitler até seus >> O que você está lendo? Com- últimos momentos. Quem foi, como viveu no período partilhe uma dica de leitura com da guerra. Nos faz repensar a verdade de cada um, o a IHU On-Line. Professores e fun- quanto Eva viveu em um mundo fora da realidade ou cionários da universidadade po- de como agiríamos se tivéssemos vivido na Alemanha dem escrever para nesse período. O livro retrata os personagens sem [email protected] romantismos, e mostra, também, Hitler como homem,

SÃO LEOPOLDO, 05 DE OUTUBRO DE 2009 | EDIÇÃO 310 41 IHU Repórter

Monise Jacques

Por Márcia Junges | Foto Arquivo Pessoal

laboratorista de apoio ao ensino da Agência Experimental de Co- municação (Agexcom), Monise Jacques, serve como inspiração para todos aqueles que acreditam na vida e na capacidade de superação do ser humano. Com perda auditiva severa desde seu nascimento, ela só recebeu o diagnóstico de deficiência auditiva Aaos 4 anos. Até então, lia os lábios e falava com alguma dificuldade, fato que alertou seus pais a investigar a fundo o caso. Com apoio familiar, Monise desenvolveu uma autoconfiança inabalável: “Não sou vítima de nada. Sou feliz e realizada”. Aos 22 anos, estuda Enfermagem na Unisinos e curte ao máximo a vida dentro e fora do campus. Conheça mais sobre nossa colega na entrevista a seguir.

Origens – Nasci e cresci em São Le- surdez, essa doença foi, provavelmen- que o fato de eu falar tão errado não opoldo. Continuo morando com meus te, a causa dessa perda severa de au- era um problema, se comparado com o pais, Clóvis e Leda. Tenho um irmão dição. O diagnóstico foi feito quando jeito que meu irmão falava, por exem- que é um ano e sete meses mais velho eu tinha quatro anos. Até então, meus plo. Segundo o médico, cada filho era do que eu, o Maurício. Tive uma infân- pais desconheciam que eu não ouvia. diferente do outro. E a minha surdez cia boa, tranquila. Brinquei muito. Eu “enganei-os” até esse momento, continuava sem ser descoberta. pois aprendi sozinha a ler lábios. Até Estudos – Fiz o Ensino Fundamental hoje, usando aparelhos auditivos, con- Primeiros sons – Coloquei o aparelho no Sinodal, e o Ensino Médio no Con- tinuo a ler os lábios. O que eu não en- auditivo após uma grande mobilização córdia. Depois me formei técnica em tendo pela audição, compreendo por na escola, para angariar fundos para Informática. Sempre tive uma base essa técnica. sua compra. Após algum tempo, passei importante da minha família. Meus Na infância, como eu e meu irmão a usar o segundo aparelho, na outra ore- pais me apoiam até hoje. A ideia de éramos muito próximos, prestava bas- lha. Até então, eu nunca havia ouvido cursar informática surgiu de conversas tante atenção quando ele conversava, um som. Tudo era novidade, e me es- com eles, pois, através dessa qualifi- aos movimentos da sua boca. Tudo o pantava. Como o aparelho não pode ser cação, pensamos que eu conseguiria que ele falava, eu compreendia. E molhado, todas as vezes que entrava no um emprego. E deu certo. Atualmen- assim funcionava quando as outras mar, precisava tirá-lo. Porém, num dia te, faço graduação em Enfermagem pessoas falavam comigo. Quando eu nublado em que meu pai, meu irmão e na Unisinos. Comecei com Fisioterapia estava de frente para elas, não havia eu decidimos não entrar na água, fui me na Feevale, mas tão logo me tornei problema algum. Mas quando eu não aproximando do mar usando o aparelho. funcionária da Unisinos, transferi o via seu rosto, a história mudava. Além Fiquei apavorada, e comecei a chorar de curso para cá. Interessa-me a questão disso, como eu falava muito errado, medo daquele “barulhão” do mar. do cuidado com as pessoas, o que me minha mãe começou a desconfiar que O fato de usar aparelhos auditivos ge- atraiu para a Enfermagem. Estou apro- algo não ia bem. Minhas tias também rou um questionamento no princípio. Eu ximadamente no quarto semestre. a alertaram para a possibilidade de não entendia porque eu tinha que usar, que eu não ouvisse direito. Mas ela e meu irmão, não. Eu vivia perguntan- Deficiência auditiva – Nasci pre- desconversava, achava que eu apenas do isso. Meus pais explicavam, com toda matura, de 7 meses. Contraí infecção não estava prestando atenção. Até os calma, o que havia acontecido, e diziam hospitalar e tive um princípio de me- quatro anos, consultei vários fonoau- que eu também ouvia como meu Mano, ningite. De acordo com o otorrinola- diólogos e nenhum pediu uma audio- mas que havia acontecido um problemi- ringologista que diagnosticou minha metria. Até mesmo meu pediatra dizia nha no meu nascimento.

42 SÃO LEOPOLDO, 05 DE OUTUBRO DE 2009 | EDIÇÃO 310 >> Monise com a família. Na foto ao lado, com os colegas de trabalho

Preconceito - Quando criança, é a parte de informática. Também aparecer um político com esse obje- certa vez, cheguei chorando em casa cuido das questões burocráticas re- tivo, para fazer o bem aos outros. porque na escola me chamaram de lativas aos nossos estagiários, junto surda. Minha mãe, mesmo com o co- ao Unisinos Carreiras, além de outros Sonhos – Tenho algumas ambi- ração doendo, respondeu: “Mas você aspectos administrativos. Há muitas ções, mas nada fora do comum. Pre- é mesmo surda, minha filha. Não há possibilidades de trabalho para pes- tendo me formar em Enfermagem e problema algum nisso. Olhe quantas soas com deficiência auditiva, como ser bem sucedida nesta profissão. coisas boas você faz, e veja como intérpretes em repartições públicas, Continuar construindo minha vida você é bonita”. Isso me deu auto- e na própria área da saúde, pois, é com o que adquiri até hoje, buscan- confiança. Passei por outras situa- raro que haja profissionais em um do sempre novos desafios, sem dei- ções desagradáveis, como ao fazer hospital que compreendam a lingua- xar de fazer o que gosto, como, por o teste físico para carteira de mo- gem dos surdos. Conheço somente o exemplo, viajar e conhecer novos torista, e com uma professora que nível 1 da LIBRAS, que é a forma de lugares. Só peço sempre que tenha berrou comigo porque eu não ouvi comunicação dos surdos. Mas preciso saúde o suficiente para ir atrás dos o que ela me disse. Mas isso é tão aprender mais sobre isso. É que nun- meus sonhos, pois, quando realiza- pequeno! Teve, ainda, o caso de um ca tive muito contato com pessoas mos um, tratamos logo de sonhar aluno que atendi aqui na Agexcom e que tinham essa deficiência. novamente. Isso é muito importan- que pensou que eu fosse estrangeira, te: nunca parar de sonhar. porque falo de uma forma um pouco Horas livres – Gosto de basque- diferente. Expliquei-lhe minha de- te, mas faz tempo que não pratico. Unisinos – Iniciei aqui em no- ficiência e ele ficou envergonhado, Estou meio sedentária agora. Adoro vembro de 2007, logo após saber mas eu realmente não fiquei mago- cinema, ir a festas, sair com meus que a universidade admitia pessoas ada. As pessoas não conhecem quase amigos, estar com minha família, com deficiência física. Em função nada sobre esse assunto, e eu faço com meu namorado. Ficar em casa, da minha qualificação em informá- questão de falar sobre ele para des- dar uma voltinha no shopping e via- tica, pensei que esse diferencial se- mistificá-lo. Na sala de aula, sento- jar são outros passatempos. ria importante na hora do processo me bem à frente para acompanhar seletivo. Deixei meu curriculum no tudo que o professor está dizendo. Fé e política – Creio em Deus, setor de Departamento Pessoal e, No curso de Enfermagem, preciso de mas não costumo ir à igreja com após dois meses, fui chamada. Algo algumas adaptações, como no uso do frequência. Quanto à política, eu que me impressionou muito foi o estetoscópio. Para isso, tenho o apoio gostaria que tudo fosse melhor. Na fato de, logo após minha contrata- dos meus professores. Para usar o te- época das eleições, os candidatos ção, ser chamada pelo setor de Ser- lefone convencional, preciso ativar o prometem tudo e depois não cum- viço Social. Eles queriam saber se viva-voz. No celular, normalmente, prem. É decepcionante. Mesmo as- eu precisava de algo especial para consigo ouvir bem. Na maioria das sim, continuo votando e com espe- minhas tarefas em função da defici- vezes, as pessoas não sabem que te- rança. Anular o voto não é uma boa ência auditiva. Embora eu respon- nho essa deficiência, porque quando opção. Precisamos nos manifestar. desse que não precisava de nada solto o cabelo, não dá para ver nada. Já tive várias decepções políticas, diferente, essa consideração me E não me sinto alvo de preconceito. mas não desisto. Assim como faço fez sentir bem. Outra coisa que me Não assumi o papel de vítima. Sou um curso na área da saúde para marcou muito foi ter sido funcioná- uma pessoa muito feliz e realizada. ajudar as pessoas, penso que pode ria homenageada, por duas vezes,  LIBRAS: Língua Brasileira de Sinais. Ao em formaturas dos cursos de Comu- Trabalho – Sou laboratorista de contrário do que se costuma afirmar, essa nicação Social. Sinto-me integrada apoio ao ensino da Agência Experi- não é uma linguagem dos surdos-mudos, e valorizada dentro do ambiente do pois o uso do termo “surdo-mudo” é in- mental de Comunicação (Agexcom). correto. O surdo não fala, pois ele não campus. Acho importante a preocu- Uma das minhas responsabilidades ouve, mas emite sons. Assim, ele não é pação ambiental da Universidade. mudo. (Nota da entrevistada) Destaques

Possibilidades e limites das nanotecnologias

A obra Uma Sociedade Pós Humana? Possibilidades e Limites das Nanotecnologias (São Leopoldo: Editora Unisinos, 2009) resulta de um simpósio organizado pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU que reuniu pesquisadores e pesquisadoras de áreas múltiplas, como física, química, biologia, medicina, sociologia, antropologia, filosofia e teologia, proporcionando um debate transdisciplinar sobre os impactoas das na- notecnologias na sociedade humana e no Planeta.

Assim, os textos que compõem este livro são o fruto de um processo que debateu as implicações das na- notecnologias sobre o futuro da espécie humana e do Planeta, mapeando os possíveis impactos sociais, econômicos, antropológicos, ecológicos e religiosos decorrentes das novas tecnologias.

O livro é organizado por Inácio Neutzling e Paulo Fernando Carneiro de Andrade e está à venda na Livraria Cultural da Unisinos por R$ 25,00.

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