• HUMANIDADES

MOVIMENTO CULTURAL Desafios musicais

Tese esmiúça a história da composição atonal brasileira

DÉBORA CRIVELLARO

e a música erudita contempo- ma edição. Com a ausência do evento, a Comunicação e Semiótica da Pontifícia rânea brasileira tivesse uma Música Nova ficou confinada em algu- Universidade Católica de São Paulo capital, ela seria Santos, no li- mas poucas universidades públicas. Já a (PUC-SP), com orientação da profes- toral de São Paulo. Era lá que obra de Gilberto Mendes corre o mun- sora Maria de Lourdes Sekeff, da Uni- acontecia, todos os anos, des- do: peças suas já foram tocadas até na versidade Estadual Paulista (Unesp) e Sde 1962, o Festival de Música Nova, Polinésia. Para não deixar que a história apoio da FAPESP. com a presença de artistas nacionais e desses encontros culturais, estrangeiros. É também na cidade lito- que marcaram época, seja es- rânea que está o embaixador desse quecida, o pesquisador Anto- movimento, o compositor Gilberto nio Eduardo escreveu a tese Mendes, de 80 anos. O festival foi inter- de doutorado Os Des-cami- rompido no ano passado, justamente nhos do Festival de Música quando comemoraria sua quadragési- Nova, pelo Departamento de

PESQUISA FAPESP 87 • MAIO DE 2003 • 91 o título Música Nova faz juz ao técnica dodecafônica (o sistema de que é apresentado por seus seguido- composição atonal, criado pelo com- res. Quem vai a uma apresentação es- positor austríaco Arnold Schõnberg). último festival perando apreciar a boa e velha música O objetivo era bem claro e ousado: o clássica convencional fica, no mínimo, romper com o passadismo de Villa- ocorreu em 200l. surpreso. Um dos pilares do movimen- Lobos e . O grupo Logo no seu 400 to foi romper com o tonalismo (a di- formado também foi estimulado - e nâmica da tensão e o repouso, ou uma inspirado - pelo que de mais inovador aniversário, em 2002, tônica e uma dominante), própria da se produzia em outros braços da cul- ele foi cancelado por música ocidental e bastante familiar tura nacional: o teatro dos grupos Ofi- aos nossos ouvidos. A mudança ocor- cina, Arena e Opinião, o Cinema Novo falta de dinheiro reu para negar tudo isso, romper com e o Cinema Marginal, a literatura e a as estruturas vigentes, bem ao gosto poesia concreta. Os concretistas, in- dos anos 60. Os compositores incor- clusive, participavam dos festivais. Dé- poraram outros elementos, como os cio Pignatari era figura constante no gestuais dos artistas. Para dar um palco do teatro santista. meira delas vai de 1962 a 1967, quan- exemplo, a peça 1'45, do compositor do o evento começou a tomar forma, norte-americano Iohn Cage, ocorria Inconformismo - A proposta de rup- divulgando seus principais composi- da seguinte forma: o artista não tocava tura estética também tinha sua face tores. Nesse período, as peças eram absolutamente nada e a música pro- política. A posição era a de resistência apresentadas pela Orquestra de Câma- duzida, de acordo com o compositor, à ditadura militar. O instrumento usa- ra de São Paulo. seria a dos sons originados na platéia. do para expressar o inconformismo A segunda fase vai de 1968 a 1972, Havia também o teatro musical, era a própria música produzida, ela momento em que há uma aproxima- exemplificado por Ópera Aberta ou mesma uma alternativa ao status quo. ção com os compositores ibero-ameri- Ashmatour, ambas de Gilberto Men- Um exemplo disso foi a peça Música canos. Obras dos espanhóis Luis de des. Antonio Eduardo explica que um para os 7 Dias, apresentada por Willy Pablo e Ramón Barce, dos uruguaios dos objetivos do movimento era inco- Correa de Oliveira e Gilberto Mendes. como Conrado Silva, e do português modar mesmo: "Eles queriam provo- A proposta era a de que os músicos fi- Jorge Peixinho foram muito tocadas. car a sensação de estranhamento esté- cassem em Jejum, para ver o que acon- A terceira fase vai de 1972 a 1980.A tico, instigar a reflexão". tecia na hora da apresentação. Resul- neue musik (movimento alemão cujo tado: a fome e a fraqueza produziram nome inspirou o brasileiro) esgota-se objetivo da tese de dou- manifestações contrárias do regime. e os artistas entram num momento de torado foi mostrar que Gilberto Mendes contou ao pesquisa- profunda discussão dessa linguagem. o festival foi o grande dor que censores assistiam às apresen- Os compositores questionam os cami- painel de divulgação tações, à espera de um mínimo deslize, nhos da música nova e expressam a re- dos caminhos da músi- que permitisse a suspensão do pro- sistência à ditadura militar. As obras Oca contemporânea brasileira e uma grama. A partir de 1969, até 1983, a tornam-se mais do que nunca engaja- escola virtual de composição, que in- cidade de Santos passou a ter um das e há uma aproximação maior com seriu o Brasil na contemporaneidade interventor militar. Curiosamente, o público, principalmente durante o musical. "Por isso o título é des-cami- foi justamente nesse período em que momento da abertura política. nhos", explica. "O prefixo 'des' é para se deram as mais polêmicas edições do Na quarta fase da história do movi- enfatizar a pluralidade de estilos que Festival de Música Nova. mento, que compreende de 1990 a havia lá."Antonio Eduardo afirma que Antonio Eduardo divide a história 2001, o festival aproxima-se da música as apresentações de Santos foram a dos festivais em quatro fases. A pri- belga. Segundo o pesquisador, há uma grande fonte fomentadora do erudito identificação tão grande com a lingua- nacional. O recorte de tempo estuda- o PROJETO gem musical que o intercâmbio promo- do pelo pesquisador, de 1962 a 1980, ve a publicação por uma editora belga, é segundo ele o período de maior efer- Os Des-caminhos do Festival a Alain Van Kerckhoven Êditeur, da vescência do movimento, quando o de Música Nova obra para piano de Gilberto Mendes. experimentalismo estava em verdadei- ra ebulição. MODALIDADE Origem do movimento - Toda essa his- Os idealizadores brasileiros, Willy Bolsa de doutorado tória começou com um convite da en- Correa de Oliveira, Damiano Cozzela, ORIENTADORA tão Comissão de Cultura de Santos Rogério Duprat e o próprio Gilberto MARIA DE LOURDES SEKEFF - para Gilberto Mendes, em 1962. Em- Mendes, retomaram a linha evolutiva Universidade Estadual Paulista polgados com a apresentação da Or- traçada pelo Música Viva, na década (Unesp) questra de Câmara de São Paulo du- de 40, que era liderado pelo alemão rante a 5a Bienal de Artes de São BOLSISTA naturalizado brasileiro Hans- Joachim Antonio Eduardo - Pontifícia Paulo no ano anterior, os organi- Koellreutter, teórico, compositor e Universidade Católica de São Paulo zadores pediram ao compositor que flautista que familiarizou o país com a organizasse a primeira Semana de

92 • MAIO DE 2003 • PESQUISA FAPESP 87 o e Música Contemporânea de Santos. lie Holliday). O universo sonoro da- profundamente com os anseios dos e Iniciava-se aí a história dos festivais quele período estápresente em sua com- concretistas. "Eles patrocinaram este- de Música Nova, que, no começo, não posição. "Isso fez com que sua obra ticamente a Música Nova", diz Anto- tinham local definido e se davam em tivesse, ao mesmo tempo, uma dimen- nio Eduardo. e- auditórios de escolas de música e na são singular e universal", comenta An- Mal comparando, os festivais de sede do Madrigal Ars Viva.A partir dos tonio Eduardo. Tocado em todos os Música Nova funcionavam como os anos 70, a Secretaria de Cultura e Tu- continentes, Gilberto Mendes mante- desfiles de alta-costura. Dificilmente rismo instituiu que eles aconteceriam ve-se em Santos, onde mora até hoje, vemos pessoas nas ruas trajando as o no Auditório do Teatro Municipal, no Boqueirão, fazendo da cidade lito- roupas exibidas nas passarelas, mas as então em construção. E, desde 1984, rânea seu ponto de partida e de chega- criações são fontes de inspiração para Santos deixou de ser a única cidade a da. E onde manteve uma vida dupla: a feitura de outros trajes. Assim é, a abrigar o festival. As apresentação construiu uma sólida carreira de eco- também, o som desses compositores a ocorriam também em São Paulo, nomiário, como bancário da Caixa baseados em Santos. Um exemplo é a Campinas e Ribeirão Preto, prática Econômica Federal. obra para piano de Gilberto Mendes, mantida até 2000. conta o pesquisador, bem mais palatá- O compositor Gilberto Mendes madas peças mais co- vel. "É a dialética entre o tonal e o ato- tornou-se sinônimo do movimento. nhecidas de Mendes é o nal", explica. Esse santista começou tarde os estudos em Ré Menor ou A estética musical apresentada nos musicais. Entrou para o Conservató- Beba Coca-Cola, criada festivais sempre esteve afinada com o rio Musical de Santos somente aos 18 a partir de um poema que é feito no meio urbano, ou seja, anos, mas esteve longe de construir U aos produtos de consumo rápido vei- de Décio Pignatari. O compositor uma carreira acadêmica (apesar de ter sempre se manteve intimamente liga- culados por meio da comunicação de sido professor da Universidade de São do à poesia concreta. Ele acreditava massa - caso dos jingles. O Tropicalis- Paulo), tendo desenvolvido uma lin- que ela se propunha a buscar uma mo, também dos anos 60, de um certo guagem muito própria. Mendes foi nova postura entre o comunicador da modo está interligado ao movimento, muito influenciado pelo som norte- palavra e o receptor. O objetivo seria a pois concretistas como Décio Pignata- o americano produzido em 1930 e 1940. metalinguagem entre o som e a pala- ri foram fonte de inspiração tanto 1- A música do cinema, as big bands, o vra, produzindo uma nova comunica- para e e jazz de Duke Ellington, Dizzie Gilles- ção entre o artista e a platéia. O movi- quanto para a nova música erudita e pie e Ted Wilson (o arranjador de Bil- mento nascido em Santos identifica-se contemporânea. •

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