Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Ciências Sociais Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

Fábio Daniel da Silva Rios

Futebol, masculinidade e emoção: memórias apaixonadas de torcedores

Rio de Janeiro 2014

Fábio Daniel da Silva Rios

Futebol, masculinidade e emoção: memórias apaixonadas de torcedores

Dissertação apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Orientadora: Prof.a Dra. Maria Claudia Pereira Coelho

Rio de Janeiro 2014

CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ/REDE SIRIUS/CCSA

R586 Rios, Fábio Daniel da Silva. Futebol, masculinidade e emoção: memórias apaixonadas de torcedores / Fábio Daniel da Silva Rios. – 2014. 142 f.

Orientador: Maria Claudia Pereira Coelho. Dissertação (mestrado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Bibliografia.

1. Futebol – Torcedores – Teses. 2. Futebol – Aspectos sociais – Teses. 3. Masculinidade – Teses. I. Coelho, Maria Claudia. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título.

CDU 796.332:301

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta dissertação, desde que citada a fonte.

______Assinatura Data

Fábio Daniel da Silva Rios

Futebol, masculinidade e emoção: memórias apaixonadas de torcedores

Dissertação apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Aprovada em 13 de março de 2014. Banca Examinadora:

______Prof.ª Dra. Maria Claudia Pereira Coelho Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – UERJ

______Prof. Dr. Valter Sinder Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – UERJ

______Prof.ª Dra. Rosana da Câmara Teixeira Universidade Federal Fluminense

Rio de Janeiro 2014

AGRADECIMENTOS

Agradeço à Capes pelo financiamento que tornou possível a realização desta pesquisa. Agradeço aos entrevistados, que me emprestaram uma parte valiosa de seu tempo e de suas memórias para o desenvolvimento deste trabalho. Agradeço aos professores do PPCIS, que contribuíram para a minha formação, e aos funcionários do programa, pelo atendimento eficiente e prestativo. Agradeço à Maria Claudia, minha orientadora, por ter indicado, sempre com sabedoria e paciência, os melhores caminhos para o desenvolvimento deste trabalho. Agradeço aos amigos e colegas de curso, por terem contribuído com discussões, dicas e correções, surgidas não apenas nos eventos oficiais da academia, mas também nos momentos descontraídos e criativos de communitas. Agradeço à minha família e, em especial, aos meus pais, Fábio e Elizete, pelo apoio, carinho e compreensão imprescindíveis a esta jornada. Agradeço à Aline, minha namorada, por ouvir minhas divagações, apoiar minhas escolhas e estar sempre ao meu lado, nos momentos de alegria e angústia. Agradeço à Tia Célia, por permitir que eu fizesse de sua casa meu segundo lar e minha oficina de criação.

RESUMO

RIOS, Fábio Daniel da Silva. Futebol, masculinidade e emoção: memórias apaixonadas de torcedores. 2014. 142 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.

Esta pesquisa é dedicada ao estudo da relação entre masculinidade e emoção no contexto do futebol, através das memórias de torcedores. Para tanto, foram realizadas entrevistas qualitativas com torcedores dos principais clubes do Rio de Janeiro: Botafogo, Flamengo, Fluminense e Vasco. Desse modo, espera-se ter contribuído para a problematização da oposição estabelecida entre masculinidade e emoção na cultura ocidental. No Ocidente, as emoções são concebidas como um fenômeno tipicamente feminino, sendo excluídas do modelo hegemônico da masculinidade. A partir da oposição entre razão e emoção, as mulheres são concebidas como naturalmente emotivas e descontroladas, enquanto os homens são definidos como essencialmente racionais e contidos. No futebol, no entanto, encontramos um contexto em que esses valores são parcialmente subvertidos: no lugar da contenção emotiva, valoriza-se o excesso, o descontrole e a paixão dos torcedores por seus clubes. No futebol, masculinidade e emoção se combinam de modo coerente. As emoções vivenciadas através do futebol contribuem para a construção de identidades e subjetividades masculinas.

Palavras-chave: Futebol. Masculinidade. Emoção. Memória.

ABSTRACT

RIOS, Fábio Daniel da Silva. Football, masculinity and emotion: passionate memories of supporters. 2014. 142 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.

This research aims to investigate the relation between masculinity and emotion in the context of football, based on the memories of supporters, collected through qualitative interviews. By these means, the opposition between masculinity and emotion in Western culture is questioned. In this cultural system, emotions are conceived as feminine attributes, thus being excluded from the cultural constitution of hegemonic masculinity. The cultural opposition between reason and emotion leads to gender differences: women are conceived as naturally emotional and uncontrolled, while men are defined as essentially rational and moderate. In football, however, we find a context in which these values are partially subverted: instead of emotional restraint, it is the uncontrolled, excessive and passionate behavior that is pursued by the supporters. In football, masculinity and emotion combine in a coherent way. The emotions experienced in the context of football contribute to the construction of masculine identities and subjectivities.

Keywords: Football. Masculinity. Emotion. Memory.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...... 7 1 REVISÃO BIBLIOGRÁFICA E METODOLOGIA ...... 14 1.1 Sociologia do futebol ...... 14 1.1.1 A gênese do futebol como um esporte moderno ...... 14 1.1.2 O futebol no Brasil: uma questão de identidade ...... 18 1.1.3 O futebol como campo social específico...... 24 1.2 Antropologia das emoções ...... 30 1.2.1 O lugar das emoções nas ciências sociais ...... 30 1.2.2 A constituição da antropologia das emoções ...... 37 1.2.3 Emoção e esporte: algumas abordagens ...... 44 1.3 Gênero e masculinidade ...... 49 1.3.1 O gênero e a construção cultural de comportamentos ...... 49 1.3.2 Estudos sobre masculinidade ...... 55 1.4 Metodologia ...... 66 1.4.1 Entrevistas qualitativas com torcedores ...... 66 1.4.2 Memória e identidade ...... 72 2 ANÁLISE DAS ENTREVISTAS ...... 79 2.1 O futebol e a formação de vínculos afetivos masculinos ...... 79 2.2 O sentimento pelo clube ...... 93 2.3 Memórias marcantes ...... 114 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...... 130 REFERÊNCIAS ...... 137

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INTRODUÇÃO

O futebol é o esporte mais popular no Brasil e na maior parte do mundo. Trata-se de uma espécie de “paixão coletiva”, servindo de base para a construção de identidades nos mais diversos níveis: do local ao global, como afirma Giulianotti (2010). No Brasil, o futebol funciona como um dos principais símbolos em torno dos quais nossa identidade nacional é construída, ao lado de elementos como o samba e o carnaval (DAMATTA, 1982). Embora o futebol seja praticado e admirado em diversos lugares, participando da construção de nacionalidades em países como Argentina, Inglaterra e Itália, acreditamos manter uma relação especial com esse esporte. Ou seja, seríamos os responsáveis por praticar o estilo de jogo mais bonito e mais original, com mais arte, técnica e brilho do que qualquer outro povo. Ao mesmo tempo, seríamos os maiores conhecedores e os maiores apaixonados por esse esporte, encarando-o como uma espécie de religião. Por tudo isso, reivindicamos ser “o país do futebol”: essa é uma das formas pelas quais gostamos de nos representar para nós mesmos e para os outros – essa é uma das formas pelas quais procuramos nos diferenciar e nos singularizar diante das outras nações. Como afirma DaMatta (1982), a importância do futebol no Brasil vai além das “quatro linhas”, não se limitando àquilo que acontece estritamente no campo de jogo: os gols, os dribles, as vitórias e derrotas. Devido ao seu caráter fortemente coletivo e ritualístico, e em virtude de seu grande poder de mobilização e comoção, o futebol tem a capacidade de dramatizar alguns dos principais valores e dilemas da sociedade brasileira: daí sua relevância para as ciências sociais. Nesse sentido, o futebol funcionaria como uma espécie de “fato social total” (MAUSS, 1974), sintetizando e expressando as características básicas de nossa cultura: o “jeitinho brasileiro”, a miscigenação que está na base de nossa formação, conflitos de raça e de classe, o convívio da tradição e da modernidade como códigos sociais ambivalentes, etc. Para compreender a relevância simbólica desse esporte, basta observar a repercussão alcançada pelas atuações da seleção brasileira de futebol, principalmente nos períodos de Copa do Mundo. Nesses momentos fortemente ritualizados, não são apenas os times de futebol que se enfrentam, mas sim, as

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próprias nações representadas por eles (GUEDES, 1998). Como diz a célebre frase de Nélson Rodrigues, a seleção é “a pátria em calções e chuteiras”. Assim, quando ela vence, é como se todos os brasileiros tivessem vencido também, podendo orgulhar-se por constituir uma nação forte, moderna e desenvolvida. Porém, quando ela perde, é como se todos os brasileiros tivessem sido derrotados, devendo envergonhar-se pelos vícios que fazem do Brasil uma nação inferior e subdesenvolvida. A relevância do futebol no Brasil não se limita, no entanto, às atuações da seleção brasileira. Esse esporte se encontra na base de uma série de manifestações sociais de cunho eminentemente popular, constituindo uma importante fonte de lazer e sociabilidade, acessível às diversas camadas sociais (MURAD, 1996). Nos finais de semana, por exemplo, são comuns as “peladas” disputadas entre amigos, seja nos campinhos de várzea esburacados, nas precárias quadras públicas poliesportivas, nos campinhos alugados de grama sintética, ou mesmo na irregularidade do asfalto, com chinelos improvisados na função de balizas. Nos dias de jogos oficiais, também é comum que os homens se reúnam em bares, ou nas casas uns dos outros, para assistirem juntos às partidas, em encontros regados a cerveja, churrasco e outros aperitivos, colocando em prática um verdadeiro ritual de masculinidade. O futebol faz parte do cotidiano, e constitui um dos principais objetos de interação entre os homens no seu dia-a-dia, até mesmo entre desconhecidos. O silêncio que separa dois homens numa situação desconfortável em que eles se vêem obrigados a interagir pode ser facilmente superado recorrendo-se a algum assunto ligado ao campo futebolístico. Assim, os homens estão sempre debatendo algum lance polêmico ligado ao futebol em suas conversas informais, seja ele relativo aos jogos da última rodada de algum campeonato atual, seja ele relativo a algum título histórico, ou a algum grande clássico do passado, disputado há muito tempo. Segundo Bromberger (2001), a “discutibilidade” é uma das características fundamentais do futebol enquanto fenômeno social: os eventos estão sempre em aberto, ou melhor, em disputa, e é justamente isso o que faz desse esporte uma atividade tão atraente e absorvente. Apesar de ser considerado um símbolo da identidade nacional, pensada enquanto totalidade, o futebol é uma atividade majoritariamente masculina. Ou seja,

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ele está identificado com um segmento específico da sociedade, apresentando uma marca fundamental de gênero. Embora o interesse das mulheres por esse esporte venha aumentando nos últimos tempos, bem como sua participação nas mais diversas funções – torcedoras, jogadoras, dirigentes, jornalistas, juízas, etc. –, ele continua sendo praticado, admirado e “consumido” majoritariamente por homens. O futebol faz parte do processo de socialização masculina desde a primeira infância, quando o menino recebe de presente uma bola de futebol e herda – geralmente do pai – a paixão por um determinado clube. Através do futebol, os meninos são introduzidos numa ampla rede de relações e tradições masculinas, que incluem diversas formas de sociabilidade, interação e laços sociais. Em suma, o futebol participa de modo fundamental da constituição do modelo hegemônico de masculinidade no Brasil. Ao longo do ano, são os times de futebol que mobilizam as emoções dos homens, na condição de torcedores, durante a maior parte do tempo. Segundo Toledo (2000), o campo futebolístico é composto por três tipos de agentes: os profissionais (jogadores, dirigentes, etc.), os especialistas da imprensa esportiva, e os torcedores. Estes últimos podem ser considerados o “lócus da emoção” no mundo do futebol: eles devem agir de modo apaixonado, colocando o amor pelo “time do coração” em primeiro lugar. Apesar de as emoções participarem de modo importante das motivações de todos os agentes que compõem esse campo social, os torcedores são os únicos que podem e devem agir sempre de modo passional. De acordo com Damo (2002), a participação dos torcedores no campo futebolístico ocorre na forma de um “engajamento emocional”, que se encontra na base de sua “identidade clubística”. Assim, somente ao escolherem um “time do coração” para torcerem com amor e fidelidade, esse sistema cultural passa a fazer sentido para eles. Os torcedores são aqueles que vibram, xingam, choram de alegria e tristeza pelo “clube do coração”. Seu humor e suas emoções devem oscilar de acordo com o desempenho do time pelo qual torcem: a tristeza e a raiva, quando das derrotas; a alegria esfuziante, quando das vitórias. Como uma amostra disso, podemos pensar no comportamento dos torcedores nos estádios de futebol, nos dias de grandes jogos. Nessas ocasiões, um clima de festa e, ao mesmo tempo, de guerra, toma conta da cidade. Os torcedores se dirigem aos estádios em grupos, entre amigos, familiares e desconhecidos,

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ostentando as cores de seus times em camisas, bandeiras e outros adereços. Bombas, fogos de artifício, gritos de guerra: a atmosfera do jogo já pode ser sentida no caminho para o estádio, com a agitação dos torcedores no transporte público e nas ruas. Uma vez dentro do estádio, as torcidas se distribuem em seus respectivos territórios e reproduzem, nas arquibancadas, o clima de rivalidade que será travado pelos jogadores em campo. Entre manifestações de apoio ao “time do coração”, e de hostilidade ao time adversário, elas procuram fazer sentir sua influência no resultado da partida. Cria-se, então, um estado de “efervescência coletiva” (DURKHEIM, 1996), propício à vivência de diferentes emoções e sensações: nesse contexto extracotidiano, o exagero e o descontrole são valorizados como formas de expressão. Grande parte dessas manifestações coloca em prática a virilidade agressiva dos modelos mais tradicionais de masculinidade. Às vezes, parece que é simplesmente raiva o que os torcedores sentem na maior parte do tempo: do juiz “ladrão”, do técnico “burro”, do dirigente “safado”, ou do centroavante “mercenário”, que não demonstra amor pela camisa do time – todos eles “viados”, em última instância, pois essa é a pior forma de ofensa que pode existir num contexto onde prevalecem os padrões hegemônicos de masculinidade. No entanto, as arquibancadas também servem como um cenário para a manifestação coletiva de sentimentos como amor e paixão, cantados em voz em alta nos hinos e gritos de guerra, e estampado em letras garrafais nas faixas e bandeiras das torcidas. Podemos observar isso nos seguintes trechos selecionados de algumas das músicas cantadas pelas torcidas dos principais times do Rio de Janeiro:

E ninguém cala esse nosso amor! E é por isso que eu canto assim, é por ti Fogo! (Botafogo)

Tu és time de tradição... raça, amor e paixão! Oh, meu Mengo! Eu sempre te amarei! Onde estiver, estarei! Oh, meu Mengo! (Flamengo)

Fluminense, eterno amor! É por isso que eu canto e visto esse manto! Orgulho de ser tricolor! (Fluminense).

A cruz de malta é minha paixão! Vasco da Gama é o campeão do meu coração! (Vasco)

Portanto, o futebol está fortemente relacionado, a um só tempo, às noções de masculinidade e emoção. Isso pode parecer paradoxal, num primeiro momento, na

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medida em que as sociedades ocidentais definem os homens como sendo eminentemente racionais e auto-controlados, num esquema cultural que concebe a razão e a emoção como fenômenos diametralmente opostos. As emoções estariam associadas ao descontrole e à irracionalidade, constituindo-se como uma característica própria das mulheres (ABU-LUGHOD E LUTZ, 1990). Em minha pesquisa, parto da noção de que o futebol se apresenta como um contexto social privilegiado para a vivência de experiências emotivas por parte dos homens nas sociedades modernas. Nesse contexto extracotidiano, os homens podem experimentar e expressar diversas emoções, algumas mais facilmente conciliáveis com os padrões hegemônicos de masculinidade, tais como a raiva, a honra e a coragem – que podem ser entendidas como emoções propriamente “masculinas” –, e outras que remetem ao lirismo, à fragilidade e ao descontrole característicos da experiência feminina, tais como o amor, a paixão, a nostalgia e o choro de alegria ou de tristeza. Minha hipótese é de que a vivência dessas emoções torna-se não apenas legítima no contexto do futebol, como também contribui para a construção de identidades e subjetividades masculinas. Nesse sentido, podemos questionar o seguinte: como pode um contexto social eminentemente masculino, como o futebol, ser ao mesmo tempo tão fortemente marcado por um traço culturalmente associado à feminilidade, como as emoções? Mais ainda: como é possível que as emoções vivenciadas através do futebol contribuam para a constituição e reforço de identidades e subjetividades masculinas? De que modo isso acontece? Essas são algumas das perguntas que pretendo responder ao longo da minha pesquisa. Ao selecionar o futebol como meio privilegiado para a vivência masculina de sentimentos, não pretendo apontá-lo como o único contexto no qual esse tipo de experiência acontece, nem mesmo como o mais importante. No entanto, o futebol combina as noções de masculinidade e emoção de modo fundamental, tornando-se um meio propício para o desenvolvimento de uma abordagem antropológica sobre o tema. Também é preciso destacar que a vivência das emoções nesse contexto é influenciada por discursos sociais específicos, que orientam o modo como elas são experimentadas e expressas pelos indivíduos. A relação dos homens com o futebol é marcada por discursos românticos que destacam os sentimentos de amor e paixão, envolvendo noções de fidelidade e

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sacrifício. Como afirma Damo (2002), torcer para um time de futebol significa pertencer a uma determinada coletividade, compartilhando com essa “comunidade de sentimentos” uma série de valores e práticas. No conjunto de bens simbólicos compartilhados entre os torcedores de um clube, podemos destacar a importância das memórias para a constituição da chamada “identidade clubística”. Essa identidade, ao mesmo tempo em que insere os torcedores num grupo social, também é vivenciada de modo individualizado, como uma relação especial do torcedor para com seu time. As memórias dos grandes clássicos, dos títulos históricos, das vitórias e derrotas inesquecíveis costumam ser narradas pelos torcedores em primeira pessoa, de modo apaixonado e detalhado, tornando-se um exemplo importante da relação especial estabelecida pelos homens com o futebol. Em minha pesquisa, pretendo estudar essas memórias e relatos apaixonados de torcedores, utilizando como método a realização de entrevistas em profundidade, na tentativa de compreender a importância do futebol para a vivência de experiências emotivas masculinas nas sociedades modernas. Com a realização desta pesquisa, espero contribuir para o desenvolvimento de áreas como a antropologia das emoções e os estudos sobre gênero, na medida em que investigo a relação entre masculinidade e emoção num contexto social específico. Também espero contribuir para discussões concernentes à sociologia do futebol e ao campo de estudos sobre a memória, na medida em que assumo as memórias marcantes dos torcedores como a via de acesso principal para a análise dos discursos emotivos produzidos pelos entrevistados neste contexto social específico. Este trabalho se divide em duas seções: a primeira é composta por quatro capítulos e destina-se ao levantamento dos principais pressupostos teóricos que sustentam essa investigação. No primeiro capítulo, realizo uma revisão da literatura sociológica sobre o futebol, destacando a importância desse esporte como fenômeno cultural e como um campo social específico. No segundo capítulo, apresento o campo da antropologia das emoções, destacando a constituição da etnopsicologia ocidental e o conflito entre masculinidade e emoção que caracteriza essa formação cultural. No terceiro capítulo, realizo uma revisão bibliográfica sobre os estudos de gênero, destacando a construção social da masculinidade. No quarto

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capítulo, apresento minha proposta metodológica e realizo uma breve discussão sobre a relação entre memória e identidade. A segunda seção é composta por três capítulos e destina-se à análise das memórias coletadas através das entrevistas. Sendo assim, no primeiro capítulo desta seção, analiso a importância do futebol como uma tradição familiar e sua transmissão através de vínculos afetivos masculinos, com destaque para a relação entre pais e filhos. No segundo capítulo, analiso a importância da ligação afetiva dos torcedores com seus clubes e o predomínio dos sentimentos de amor e paixão para caracterizar essa relação. No terceiro capítulo, analiso a importância das memórias futebolísticas, que ajudam a organizar a experiência dos entrevistados para além do contexto do futebol.

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1 REVISÃO BIBLIOGRÁFICA E METODOLOGIA

1.1 Sociologia do futebol

1.1.1 A gênese do futebol como um esporte moderno

O futebol surgiu no século XIX, no Reino Unido, como uma adaptação moderna e burguesa de alguns “jogos de bola”, muito populares, praticados desde a antiguidade e a idade média. Esses jogos consistiam em diferentes tipos de atividades lúdicas, tendo em comum apenas o fato de serem praticados com o auxílio de algum objeto esférico, o qual podia, ainda, variar muito em termos de peso e tamanho. A gênese do futebol como um esporte moderno aparece em diversos trabalhos na literatura sociológica sobre o futebol (MURAD, 1996; DAMO, 2002; GIULLIANOTTI, 2010), tomando, quase sempre, o estudo pioneiro de Elias e Dunning (1992) como referência principal. De acordo com esse estudo, os “jogos de bola” medievais eram extremamente populares, desorganizados e violentos. Assim, não possuíam regras fixas, nem um padrão de jogo definido. O número de jogadores poderia variar muito a cada partida, assim como o próprio número de equipes envolvidas. Não havia um espaço próprio para a realização dos jogos, nem um tempo de duração previamente estabelecido. Também não havia o hábito de se manter um placar para registrar os pontos – ou gols – marcados e, assim, poder definir quem seriam os vencedores e os perdedores ao término de uma contenda. Como afirma Elias (1992), as sociedades pré-modernas não eram, ainda, “sociedades métricas”, ou seja, não haviam se preocupado em desenvolver formas racionais e precisas de mensuração. Isso só veio a ocorrer na modernidade, dando suporte às trocas comerciais capitalistas. Os “jogos de bola” tinham, também, um caráter fortemente coletivo, tradicional e ritualístico. Assim, eles geralmente eram praticados no âmbito de rituais e festividades mais abrangentes, tanto religiosas como pagãs. Elias (1992) destaca,

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por exemplo, a tradicional realização desses jogos durante a Terça-Feira Gorda, no carnaval, em ocasiões que poderiam envolver todos os habitantes de uma cidade, ou mesmo, colocar habitantes de cidades diferentes em confronto, numa espécie de guerra simbólica. Esses jogos tinham, portanto, um forte caráter agonístico, o que favorecia a construção e dramatização de identidades, valores e conflitos locais. No entanto, apesar de seu aspecto simbólico e ritualístico, os “jogos de bola” poderiam ser, de fato, muito violentos. Segundo Elias (1992), era comum que as partidas resultassem em, ou melhor, se desenvolvessem como confusões generalizadas, com ferimentos graves, por parte dos jogadores, fraturas, derramamento de sangue, brigas e, até mesmo, mortes. Pode-se dizer, portanto, que a violência fazia parte do jogo. Na verdade, os níveis de violência tolerados e estimulados pelas sociedades pré-modernas eram muito maiores do que aqueles que viriam a ser observados nas sociedades modernas. Assim, devido ao seu caráter agonístico e violento, os jogos foram considerados, por um longo tempo, pelas autoridades instituídas da época, como um fator de desordem e desagregação social. Nesse sentido, a Coroa Inglesa, a Igreja Católica e muitos intelectuais moralistas condenaram e perseguiram os “jogos de bola”, concebendo-os como ocasiões propícias ao desenvolvimento de excessos, vícios e paixões humanas. Pelo mesmo motivo, muitas outras práticas associadas à cultura popular foram, igualmente, perseguidas. Além disso, para a Coroa, os jogos consumiam, inutilmente, vidas e energias humanas que deveriam estar servindo ao fortalecimento de seus exércitos. No entanto, devido à grande popularidade dos jogos, as diversas tentativas de eliminá-los não lograram êxito. Segundo Elias (1992), era comum, inclusive, a participação de autoridades locais durante as partidas, como padres e funcionários da Coroa, o que demonstra a fragilidade do Estado e da Lei nas sociedades pré- modernas. Assim, com o tempo, uma nova estratégia foi adotada: ao invés de combatidos, os jogos passaram a ser assimilados e controlados pelas camadas dirigentes. Merece destaque, nesse sentido, a atuação dos colégios jesuítas. Os internatos católicos incorporaram, de modo pioneiro, diversos jogos populares em seu projeto pedagógico. Nesse sentido, eles foram reinterpretados e ressignificados, de modo a poderem atender aos objetivos moralistas, pretensamente mais elevados, das instituições religiosas de ensino. Assim, o caráter

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agonístico dos “jogos de bola”, por exemplo, antes condenado como um fator dissociativo, passou a ser visto como um estímulo ao “trabalho em equipe” por parte dos alunos. Além disso, a violência intrínseca a essas atividades permitiria que os alunos extravasassem, entre si, sua agressividade, preservando um comportamento sereno e submisso no contato com seus mestres. Nos internatos católicos, portanto, os jogos são assimilados para desempenhar um papel semelhante àquele que os esportes iriam assumir na modernidade, segundo a tese eliasiana, que os inscreve no âmbito do “processo civilizador”: garantir a expressão necessária da violência, de modo seguro, em contextos específicos e controlados (Elias, 1992). No entanto, é nas Public Schools inglesas, durante o século XIX, que os jogos populares assumirão um caráter mais organizado, dando origem aos esportes modernos: dentre eles, o futebol. Nessas grandes universidades, freqüentadas pelas camadas mais altas da sociedade, os “jogos de bola” também eram incentivados e faziam parte do currículo regular, tendo um importante papel na formação moral dos alunos. Assim, times eram formados para representar as universidades, e campeonatos eram organizados para colocá-las em disputa. Com o tempo, os jogos foram se distinguindo em diferentes modalidades, na medida em que adquiriam, gradativamente, regras fixas, padrões de jogo específicos, e uma forma mais centralizada de organização. Desse modo, surgiram os esportes modernos. O futebol moderno, por exemplo, surgiu a partir da fundação da Football Association em 1863 (GIULIANOTTI, 2010). Trata-se da mais antiga associação de futebol do mundo, sendo a entidade que controla o futebol na Inglaterra até os dias de hoje. Foi a FA quem formulou as regras oficiais do futebol, as quais permanecem quase inalteradas até os tempos atuais. Antes disso, o futebol não tinha regras fixas e universais. Os principais códigos utilizados, até então, provinham de três universidades diferentes: Cambridge, Sheffield e Rugby. Com a padronização do futebol em torno das regras unificadas pela FA, outros clubes se uniram, posteriormente, para a convencionalização do rúgbi, com a criação da Rugby Football Union (RFU) em 1871. Os esportes modernos originam-se, portanto, de um processo de padronização e normatização de diversos jogos populares praticados ao longo da Idade Média. Dos “jogos de bola”, por exemplo, surgiram, não só o futebol, mas

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também, o rúgbi, o críquete, o tênis, etc. Nesse processo, a violência característica dos jogos medievais foi combatida, e a tensão-excitação agradável, proporcionada por eles, passou a ser perseguida por outros meios, mais “civilizados”: com regras mais complicadas e sofisticadas, os objetivos dos esportes tornam-se mais difíceis de serem alcançados e, assim, eles continuam sendo importantes fontes de prazer e emoção (ELIAS, 1992). Ou seja, os esportes podem ser considerados como uma adaptação dos antigos jogos medievais ao ethos racionalista da modernidade e aos limiares mais sensíveis de violência tolerados pela nascente sociedade burguesa. É preciso destacar, nesse sentido, que as Public Schools eram instituições voltadas ao ensino das camadas mais altas da sociedade inglesa. Por conseguinte, os esportes modernos surgem como práticas elitistas, à diferença dos jogos populares que lhes deram origem. O surgimento dos esportes está relacionado, ainda, ao desenvolvimento de um novo tipo de lazer e sociabilidade, afinado com o modo de vida burguês, que passava a se tornar dominante (DAMO, 2002; MELO; 2012). Assim, eles eram praticados em clubes restritos, formados, exclusivamente, pelos membros da aristocracia e da alta burguesia. Desse modo, a formação de clubes e a prática esportiva constituíam-se como novas formas de distinção social, num momento em que as antigas formas de diferenciação da sociedade estamental vinham sendo superadas. Enquanto atividade elitista, os esportes deveriam ser praticados como fins em si mesmos, ou seja, como uma simples forma de lazer e diversão. Isso significa que não deveria haver qualquer tipo de ganho financeiro decorrente da prática esportiva. Desse modo, os esportes deveriam ser praticados de modo livre e espontâneo, pelo simples prazer associado a eles, bem como pelas benesses de ordem física, psíquica e moral que eles proporcionavam (DAMO, 2002; MELO, 2012). Daí surgiu um dos primeiros grandes conflitos que marcaram a constituição do campo esportivo: a oposição entre aqueles que defendiam a manutenção de um regime amador para os esportes, e aqueles que defendiam a implantação do profissionalismo (RODRIGUES, 2005). Com o avanço da industrialização e urbanização, os esportes passam a ser admirados e praticados, também, pelos operários das fábricas, muitas vezes com o incentivo de seus patrões, que enxergavam no esporte uma forma de controle social (GIULIANOTTI, 2010). Assim, no caso do futebol, vão surgindo times populares e ligas independentes, que tornam

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o esporte mais competitivo. Aos poucos, jogadores e times do proletariado passam a ser admitidos em disputas com os times da elite. No entanto, para se dedicarem plenamente aos esportes, os membros das camadas mais baixas precisavam receber algum tipo de remuneração, defendendo a implantação do profissionalismo. Depois de uma longa disputa, os partidários do profissionalismo saem vencedores, e a elite, defensora do amadorismo, migra para outros esportes, ou então, dirige-se aos quadros administrativos dos times de futebol. Ainda no século XIX, o futebol começou a se expandir para outros países, além do Reino Unido. Na Europa Continental e na América do Sul, o futebol viria a se tornar uma grande paixão coletiva (GIULIANOTTI, 2010). No entanto, num primeiro momento, ele se manteve como uma prática elitista e, em todos os casos, foram necessárias muitas disputas até que fosse democratizado e reapropriado pelos segmentos mais populares da sociedade.

1.1.2 O futebol no Brasil: uma questão de identidade

O futebol chegou ao Brasil trazido pelos filhos da elite do país, no fim do século XIX. Nessa época, era comum que os jovens das camadas mais altas da sociedade fossem estudar na Europa, e voltassem trazendo os valores, hábitos e idéias que compunham o modo de vida mais “civilizado” do Velho Continente. Assim ocorreu, também, no caso do futebol. Segundo as teorias mais difundidas, Charles Miller teria sido o grande precursor do futebol em terras brasileiras. Em 1894, retornando ao Brasil, após longos anos de estudos na Inglaterra, ele teria trazido, em suas bagagens, bolas de futebol, uma bomba de encher, uniformes, chuteiras e um livro de regras do esporte. Podemos considerar essa história como uma espécie de “mito de origem” do futebol brasileiro. Assim, Miller teria sido o responsável por organizar a primeira partida de futebol no Brasil, contribuindo, ainda, para a fundação de um clube – o São Paulo Athletic Club (1894) – e da primeira liga de futebol do país – a Liga Paulista de Futebol (1901).

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A atuação pioneira de Miller deu-se no estado de São Paulo. No Rio de Janeiro, o pioneirismo teria ficado a cargo de Oscar Cox, que trouxe o futebol para o estado em 1896, participando, ainda, da fundação do Fluminense Football Club, em 1904. Algumas teorias contestam o pioneirismo de Miller e Cox, afirmando que o futebol já era praticado, anteriormente, pelos alunos dos colégios jesuítas, ou então, teria se difundido sob a influência de marinheiros ingleses (TOLEDO, 2002). Outra tese defende, ainda, que o futebol brasileiro teve seu início no bairro de Bangu, na zona oeste da cidade do Rio de Janeiro, tendo como precursor o escocês Thomas Donohoe (DAMO, 2002). De todo modo, o futebol chega ao Brasil como uma prática elitista, como símbolo de modernidade, e como uma forma de distinção social. Assim como outros esportes, o futebol era praticado em clubes restritos, formados exclusivamente pelos membros da aristocracia do país. No caso do Brasil, temos ainda o agravante da questão racial. Dessa forma, a prática do futebol permaneceu vedada a negros, mulatos e brancos pobres por um longo tempo no país (MURAD, 1996). Num primeiro momento, o futebol brasileiro se desenvolveu sob o regime do amadorismo, que proibia ganhos financeiros por parte dos atletas. Isso impedia que os membros das classes mais baixas se dedicassem integralmente ao esporte, mantendo o futebol como uma prática exclusiva da elite. Jogadores negros e pobres eram perseguidos em campo, e os times que os admitissem em seus quadros eram retaliados pelos clubes brancos da elite (MURAD, 1996). Antes mesmo da implantação do profissionalismo, o futebol já era praticado, paralelamente, pelas classes populares, nas várzeas e nas fábricas. Sem poderem participar das competições oficiais, organizavam-se em times e ligas independentes. Na década de 1920, desenvolveu-se aquilo que se convencionou chamar “profissionalismo marrom”, regime no qual os atletas recebiam algum tipo de remuneração extraoficial para poderem participar das competições (TOLEDO, 2002). Com isso, a participação popular no futebol aumentou, e o regime amador começou a enfraquecer. Em 1923, por exemplo, o Vasco da Gama, com um time formado majoritariamente por negros e mulatos, financiado por ricos comerciantes portugueses, conquistou de maneira invicta o campeonato estadual, disputando contra os clubes brancos da elite. O clube foi expulso da liga oficial no ano seguinte,

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mas sua vitória reacendeu as discussões que levariam à implantação do profissionalismo. A popularização do futebol no Brasil só ocorreu com a sua efetiva democratização, na década de 1930, quando o regime profissional foi oficialmente adotado (1933). Rodrigues (2005) afirma que o conflito entre amadorismo e profissionalismo pode ser entendido como uma expressão da luta de classes no âmbito do campo esportivo. Nesse sentido, o amadorismo expressaria o ethos das camadas dominantes – uma pequena aristocracia branca que governava o país –, atuando como ideologia na disputa hegemônica contra as classes populares – uma multidão de negros, mulatos e brancos pobres –, que vislumbravam, na implantação do profissionalismo, a possibilidade de ascensão social. Apesar de ter sido “importado” para o Brasil por uma elite branca e europeizada, o futebol assumiu um estilo próprio ao ser apropriado pelos membros das camadas populares. O futebol praticado pela elite era estritamente baseado nos livros de regras e nos manuais de instrução, mantendo-se o mais próximo possível do modo como era originalmente praticado na Inglaterra (TOLEDO, 2002). Com as camadas populares, o futebol brasileiro incorporou novas técnicas corporais e novos valores coletivos, assumindo uma configuração específica. Para Gilberto Freyre (1947), a originalidade do futebol brasileiro está relacionada à influência da cultura negra. Com a participação de negros e mulatos, o futebol ganhou elementos como a ginga, a malandragem e o jogo de cintura, aproximando-se de práticas como o samba e a capoeira. Isso se expressa na valorização do drible, da espontaneidade e da criatividade individual, em lugar do futebol mais tático e coletivo praticado pelos europeus. No Brasil, o futebol se desenvolve como uma dança, como uma forma de arte: o jogador driblador deve ter a ginga e a malícia de um mestre-sala. Valorizam-se a plasticidade e a beleza das jogadas. A análise de Freyre sintetiza uma espécie de ideologia nacional, que encontra no futebol um suporte privilegiado para a construção e dramatização da identidade brasileira. Toledo (2002) destaca que, historicamente, as regras universais do futebol foram atualizadas em diversas formas de jogar, que correspondem a estilos e escolas específicas. Essas escolas originam-se de reinterpretações e reapropriações locais das regras universais do futebol. Elas são socialmente

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construídas e expressam importantes valores coletivos. Assim, podemos falar na existência de uma escola inglesa de futebol, ou de um estilo argentino, alemão, italiano, etc. No caso do Brasil, o estilo nacional se expressa na valorização do chamado “futebol-arte”. O “futebol-arte” se define em contraste ao “futebol-científico” ou “futebol-força” praticado em outros países, principalmente os europeus, sintetizando a noção de que os brasileiros praticariam o futebol com mais técnica e beleza do que qualquer outro povo (RODRIGUES, 2005; TOLEDO, 2000; HELAL, 1997). Assim, enquanto o estilo europeu seria baseado em esquemas táticos mais sofisticados, e num maior preparo físico, treinamento e disciplina dos jogadores, o futebol brasileiro seria mais espontâneo e criativo, baseado no talento natural e individual dos jogadores. No campeonato sul-americano de 1919, realizado no Brasil, temos uma primeira manifestação da relação entre futebol e nacionalidade (MALAIA, 2012). Porém, essa relação só se consolida na década de 1930, após o processo de democratização e popularização do esporte. Nesse contexto, o Brasil vivia sob a influência do movimento modernista, que buscava reconstruir a identidade nacional a partir de elementos da cultura popular. No plano político, o país era governado pela ditadura populista de Getúlio Vargas, que vislumbrava no futebol uma possibilidade de controle das massas. A relação entre futebol e nacionalidade foi, portanto, explorada politicamente, mas não se manteve limitada aos ideais disciplinadores do Estado Novo, nem deve ser entendida como uma invenção desse regime. Desde a década de 1930, portanto, o futebol se tornou um grande fenômeno de massa no Brasil, uma verdadeira “paixão popular”, e um símbolo privilegiado para a expressão de nossa identidade nacional. A participação e, principalmente, as vitórias do selecionado nacional em diversas copas do mundo contribuíram para consolidar essa relação entre futebol e brasilidade. Por um longo período, no entanto, o futebol permaneceu ausente das análises sociológicas no Brasil (MURAD, 1996; DAMATTA, 1982). Apesar de sua tamanha popularidade, o futebol não era considerado um objeto digno de análise pelas Ciências Sociais, pois não teria a mesma seriedade ou relevância de assuntos como o trabalho, a política ou a economia. Por ser uma forma de lazer e entretenimento, o

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futebol recebia o mesmo desprezo dedicado a outras atividades consideradas improdutivas, tais como a religião, a arte, o folclore, as telenovelas, etc. Nas poucas análises dedicadas a esses temas, eles eram tratados como instrumentos de mistificação e alienação das classes trabalhadoras, servindo aos interesses ideológicos das classes dominantes do país. Essas análises eram produzidas sob a influência da chamada “teoria crítica”, desenvolvida pelos intelectuais do marxismo ocidental, que viam a cultura de massas do século XX como uma forma de decadência cultural e alienação política. Nesse sentido, o futebol seria como o “ópio do povo”, servindo à política de “pão e circo” implantada pela ditadura classista que vigorava no país. Porém, na década de 1980, Roberto DaMatta produz um trabalho que começaria a mudar esse quadro. No livro Universo do futebol (1982), ele aponta para a viabilidade e a necessidade de se desenvolver uma abordagem sociológica específica sobre os esportes. Afinal, os esportes são, também, um fragmento importante da totalidade social: produzem comportamentos, mobilizam sentimentos coletivos e correspondem a uma maneira específica de relação com o mundo. O campo esportivo tem suas especificidades, mas mantém relações de interdependência com as demais áreas da sociedade. Em suma, o estudo sobre os esportes é imprescindível para o conhecimento da totalidade social. Além disso, o caráter ritualizado dos esportes permite que eles sejam tomados como pontos de sinédoque, permitindo acesso aos principais valores e conflitos de uma sociedade. DaMatta também destaca que, no Brasil, algumas atividades consideradas “secundárias” são de grande relevância para a construção de identidades sociais. Esse é o caso de diversas práticas ligadas à cultura popular, tais como a música, as festas populares, o samba, o carnaval e, por fim, o futebol. Nesse sentido, o futebol atua como um importante símbolo de identidade no Brasil. Isso significa que ele tem a capacidade de sintetizar e expressar os principais valores e dilemas da sociedade brasileira. O que se realiza, através do futebol, é uma representação idealizada do Brasil, pela qual nossas principais virtudes e defeitos são acentuados. No futebol, a sociedade brasileira “conta uma história de si mesma para si própria”, deixando-se revelar como “o país do futebol”. A relação entre futebol e identidade nacional torna-se mais evidente quando a seleção brasileira participa das Copas do Mundo. Nesses momentos rituais, a

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seleção transforma-se na “pátria em chuteiras”: o desempenho da seleção em campo torna-se uma metáfora para o desempenho de todo o país e dos brasileiros nos diversos setores da vida social (GUEDES, 1998). Assim, as derrotas da seleção têm a capacidade de se tornarem grandes tragédias nacionais, mostrando-se como provas de nosso fracasso e inaptidão como nação. Assim ocorreu, por exemplo, nas copas de 1950 e 1954, quando o fracasso da seleção foi atribuído às mazelas da miscigenação racial, elemento que se encontra na base de nossa formação social, e impediria o progresso do país em diversos outros setores. Por outro lado, as vitórias da seleção podem dar lugar a momentos de grande euforia coletiva e otimismo. Em 1958, quando a seleção nacional conquistou seu primeiro título em copas do mundo, a vitória foi tomada como uma prova de que o Brasil poderia ser uma nação “grande” e desenvolvida, deixando de lado, por um momento, o seu “complexo de vira-latas”. Em 1970, a seleção conquista o tri- campeonato mundial, com um time que entrou para a história, sendo considerado pela imprensa e pelos torcedores como um dos melhores de todos os tempos. Internamente, o país vivia um dos momentos mais violentos da ditadura militar, mas a vitória da seleção foi comemorada com muita festa nas ruas, sendo interpretada como um indício de que o Brasil era mesmo o “país do futuro”, e rumava em direção ao progresso. No futebol, encontramos, ainda, uma dramatização do “dilema brasileiro”, expressão com a qual DaMatta (1970) define o convívio de dois códigos culturais diferentes no Brasil: modernidade e tradição. Helal (1997) aborda essa relação a partir de uma análise sobre as representações da “crise do futebol brasileiro”, produzidas pela imprensa a partir da década de 1980. Nesse contexto, os insucessos da seleção brasileira nas copas de 1974, 1978 e 1982 abriram espaço para uma reavaliação sobre o estilo brasileiro de jogo e, desse modo, o “futebol-arte” passou a ser contestado por algumas correntes, que defendiam a implantação de um futebol mais tático e mais moderno. Além disso, a imprensa lamentava a grande queda de público nos campeonatos nacionais, a desorganização dos torneios, a crescente evasão de craques para o futebol estrangeiro, e o avanço do capital e do marketing sobre o futebol nacional. A condição do Brasil como “país do futebol” chegava mesmo a ser contestada, ou seja, vivia-se uma crise de identidade. A solução para esse quadro

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de crise seria a modernização do futebol brasileiro, erradicando o amadorismo dos dirigentes esportivos. No entanto, alguns fatores modernizantes também se apresentavam como uma ameaça às relações de identidade, mística e tradição que fazem do futebol o esporte mais popular do Brasil.

1.1.3 O futebol como campo social específico

Desde que DaMatta inaugurou uma nova matriz de abordagem sobre o futebol no Brasil, os estudos sociológicos sobre o tema têm se multiplicado e se diversificado. Grande parte dos trabalhos produzidos, desde então, abordam a relação entre futebol e identidade nacional, como vimos na seção anterior. Esses estudos ratificam, por um lado, a existência de um estilo próprio assumido pelo futebol brasileiro, procurando investigar sua gênese social. Por outro lado, eles buscam analisar, também, as diversas formas pelas quais o futebol se constituiu historicamente como uma tradição nacional, dando suporte a uma identidade coletiva compartilhada pelos brasileiros. No entanto, nos últimos anos, vêm surgindo trabalhos que procuram abordar o futebol como um campo social específico. Assim, o futebol torna-se relevante não só por suas propriedades simbólicas e ritualísticas, ou seja, não só por funcionar como uma metáfora para a totalidade social, mas também, pelos acontecimentos, relações e disputas que se desenvolvem em seu domínio próprio. Considerar o futebol como um campo social específico significa concebê-lo como uma totalidade, destacando sua autonomia em relação aos demais setores da sociedade. Assim, as relações de identidade, a atribuição de prestígio e status, e as formas de associação coletiva, por exemplo, apresentam algumas especificidades quando se desenvolvem no terreno do futebol. Isso não significa que o futebol seja completamente independente dos demais setores da sociedade. No entanto, podemos considerá-lo como um contexto social específico, no qual os valores, sentimentos e comportamentos se desenvolvem de um modo mais ou menos particular.

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Toledo (2000; 2002), por exemplo, caracteriza o campo futebolístico a partir da atuação de três categorias sociais específicas: profissionais, especialistas e torcedores. O autor define esses agentes de acordo com suas diferentes formas de atuação no mundo do futebol. Assim, a cada uma dessas categorias corresponde uma lógica específica de relação com o futebol. Segundo esse esquema, os profissionais seriam todos aqueles que interferem diretamente nas partidas, tais como jogadores, técnicos, dirigentes, etc. Os especialistas corresponderiam aos integrantes da mídia esportiva, incluindo narradores, comentaristas, repórteres, cronistas, etc. Eles são responsáveis por analisar e interpretar os jogos, mediando a relação dos torcedores com o espetáculo futebolístico. Por fim, os torcedores seriam todos aqueles que participam do mundo do futebol, principalmente, por suas emoções. Toledo afirma, então, que as representações sobre o futebol são construídas a partir da interação entre essas três categorias de agentes, e procura analisar como esse processo ocorre. Nos trabalhos sociológicos mais recentes, a importância do futebol tem sido explorada para além da relação estabelecida entre esse esporte e a construção da identidade nacional. Afinal, o futebol é um fenômeno social muito diversificado no Brasil, produzindo uma série de relações sociais, identidades locais, emoções e situações de sociabilidade. A importância do futebol não se resume às atuações da seleção brasileira, nem aos momentos rituais estabelecidos pelas copas do mundo. Em seu dia-a-dia, e ao longo do ano inteiro, os brasileiros assistem, praticam e falam sobre futebol em diversas ocasiões. Segundo Giulianotti (2010), a emergência da relação entre futebol e identidade nacional é uma característica própria da fase moderna desse esporte. Ou seja, nesse período, o futebol serviu como suporte para a construção de identidades nacionais, não só no Brasil, mas também na Argentina, na Itália, na Inglaterra, e em diversos outros países. Na pós-modernidade, contudo, o futebol se globaliza e as identidades nacionais entram em crise. A representatividade das seleções nacionais passa a ser seguidamente questionada pelos torcedores e pela imprensa. Surgem, então, novas formas de torcer e novas formas de se relacionar com o futebol. Na pós-modernidade, a crescente fragmentação, diversificação e aceleração dos processos sociais faz com que as antigas formas de identidade – nação, família, etc. – entrem em crise. As Ciências Sociais procuram, então, compreender as

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experiências fragmentárias dos sujeitos e as novas formas de associação que surgem nesse contexto. Nesse quadro de mudanças, observa-se um fortalecimento das identidades locais e transnacionais, o que se expressa na maior valorização das “identidades clubísticas” (GIULIANOTTI, 2010). No campo de estudos sobre o futebol, podemos observar um crescimento do número de trabalhos que procuram investigar a experiência dos torcedores. Seguindo essa tendência, entre os temas mais abordados pela sociologia do futebol estão as “torcidas organizadas”, em trabalhos que procuram investigar a relação desses grupos com o fenômeno da violência no futebol. Como exemplos de estudos sobre esse tema, podemos citar os trabalhos de Toledo (1996), Murad (2007; 2012), Monteiro (2003) e Teixeira (2003). De modo geral, esses autores defendem que a atuação das torcidas organizadas não pode ser reduzida aos distúrbios e episódios de violência que costumam ser associados a elas pela opinião pública, com destaque para as abordagens sensacionalistas da mídia. Essas torcidas devem ser entendidas, sobretudo, como formas de associação típicas do meio urbano, sendo formadas majoritariamente por jovens das classes populares. Nesse sentido, elas propiciam importantes ocasiões de lazer, sociabilidade e a construção de laços sociais e identidades aos jovens das periferias. Murad (2007; 2012) procura explicar a violência no futebol – e não do futebol – a partir de fatores exógenos a esse contexto, minimizando os efeitos da violência intrínseca à prática esportiva. Para ele, a violência no futebol seria causada por problemas estruturais da sociedade brasileira, ou seja, injustiças sociais, que estariam por trás da eclosão da violência em diversos outros contextos. Toledo (1996), por sua vez, considera a violência como um fator intrínseco, não só ao contexto do futebol, mas à vida social como um todo. Ele afirma que as primeiras torcidas organizadas surgiram na década de 1940, com o apoio da imprensa esportiva. Elas apresentavam, então, um aspecto carnavalizado, eram formadas por jovens de classe média, e tinham a missão de coordenar e disciplinar o comportamento dos torcedores nos estádios. A partir da década de 1980, no entanto, modifica-se o perfil dessas torcidas, que passam a ser compostas por jovens das classes populares. Baseado nas análises de Elias e Dunning (1992), Monteiro (2003) interpreta a violência no futebol como uma expressão do modelo de identidade masculina típico

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dessas camadas sociais. Toledo (1996), por sua vez, destaca o avanço da política neoliberal no Brasil, com a deterioração das opções de lazer nas periferias, e o surgimento de formas mais individualizadas de ação social. Isso significa uma menor capacidade de compreensão da alteridade humana, o que se expressa no “comportamento de risco” e nas tentativas de “eliminação do outro” que caracterizam a ação dos jovens nos confrontos entre torcidas organizadas. No livro Os perigos da paixão, Teixeira (2003) desenvolve um estudo sobre as “torcidas jovens”, denominação assumida por algumas das principais torcidas organizadas do Rio de Janeiro: Torcida Jovem do Botafogo (TJB), Torcida Jovem do Flamengo (TJF), Força Jovem do Vasco (FJV) e Torcida Young Flu (TYF). Esses grupos surgem na década de 1970, como um modelo alternativo às primeiras torcidas organizadas, criadas na década de 1940. Enquanto os membros das primeiras agremiações limitavam-se a apoiar seus times, as torcidas jovens procuram assumir uma postura mais crítica, participativa e, muitas vezes, mais agressiva, cobrando resultados dos jogadores, técnicos, dirigentes, etc. A reflexão de Teixeira surge da repercussão midiática alcançada pelo confronto envolvendo as torcidas uniformizadas do Palmeiras (Mancha Verde) e do São Paulo (Independente) na final da Supercopa de Juniores de 1995, episódio que resultou num grande número de feridos e na morte de um torcedor. Esse evento pode ser considerado um marco para a discussão sobre a questão da violência no futebol brasileiro: a partir de então, o tema ganhou destaque em diversos setores da sociedade, principalmente na imprensa, no âmbito das políticas públicas e no meio acadêmico. Para escapar às visões reducionistas da mídia, que responsabilizavam quase unilateralmente as torcidas organizadas pelo problema da violência no futebol, Teixeira desenvolve uma abordagem sócio-antropológica sobre o tema, procurando captar a visão dos próprios integrantes desses grupos sobre suas práticas e motivações. Num típico exercício de “observação do familiar”, ela realiza trabalho de campo junto aos torcedores, entrando em contato direto com seu universo. Não se trata aqui de negar inteiramente a relação das torcidas jovens com o fenômeno da violência, mas antes, de tentar compreender como se dá essa relação e como os próprios torcedores justificam suas ações. Teixeira conversa com líderes das torcidas, realiza entrevistas, visita suas sedes, participa de jogos, viagens e outros

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eventos, analisa materiais produzidos por eles, interpreta seus símbolos, bandeiras, camisas, etc. Ela procura compreender a forma de organização e atuação desses grupos, sua composição, hierarquia, e a dinâmica da relação entre seus membros. Nos depoimentos colhidos pela autora, os torcedores procuram negar a visão amplamente disseminada de que eles seriam os grandes responsáveis pela violência no futebol. Apesar de admitirem o envolvimento de membros das torcidas jovens em episódios de violência, eles afirmam que a adesão a esse tipo de prática não poderia ser generalizada. Muitas brigas isoladas, envolvendo torcedores comuns, acabavam sendo injustamente atribuídas à ação das torcidas organizadas, como uma forma de perseguição da mídia. Segundo eles, entre os “organizados”, haveria tanto pessoas do “bem”, que vão aos estádios apenas para torcer, como pessoas mal-intencionadas, que vão aos jogos à procura de brigas e confusões. A violência teria sempre existido no mundo do futebol, sendo um resultado normal do conflito, podendo irromper igualmente em qualquer setor da vida social. Em suma, a violência aparece como um tipo de prática e motivação possível entre os membros das torcidas jovens, mas como destaca a autora, a atuação desses grupos não poderia ser reduzida a isso. Deve-se destacar que, em momento algum, Teixeira desqualifica a condição de torcedores de seus pesquisados, rotulando-os como vândalos, delinqüentes ou criminosos. Pelo contrário, ela reconhece as torcidas jovens como uma importante fonte de laços sociais, pertencimento e identidade, indicando a paixão como um elemento fundamental para a relação mantida pelos torcedores com seus times. Segundo Teixeira, a paixão é vivida como um elemento desordenador nas sociedades modernas. No caso dos torcedores, isso fica claro quando eles declaram a necessidade de abandonar estudos, família, namoradas, e outros compromissos importantes, para poderem se dedicar intensamente às atividades organizadas pela torcida e à paixão que sentem pelo time de sua preferência. O torcedor é, portanto, um apaixonado, e esse sentimento ajuda a moldar sua identidade e organizar sua experiência no mundo: os acontecimentos e memórias vividos através do futebol são incorporados às biografias individuais. O vínculo dos torcedores com o futebol tem uma dimensão emocional importante, mas a paixão sentida por eles também carrega alguns perigos: dentre eles, o risco de que o excesso se transforme em violência.

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Para além dos episódios de violência e desordem, as torcidas organizadas são responsáveis, também, por grande parte da festa que caracteriza o espetáculo futebolístico nos estádios. No entanto, devemos destacar que existem diversas formas de torcer e de se relacionar com o futebol. Há, por exemplo, torcedores que vão aos estádios com frequência, concebendo essa assiduidade como uma expressão do amor que sentem por seu time. Existem outros, porém, que só vão aos estádios raramente, preferindo assistir aos jogos no conforto e segurança de suas casas. Nos dias de jogos, também é comum que grupos de torcedores se reúnam em barzinhos para assistirem juntos às partidas. Outros preferem assistir sozinhos aos jogos, num momento quase intimista, prestando atenção a cada detalhe da partida e a cada comentário veiculado pela transmissão esportiva. Machado (2000) considera o futebol brasileiro como uma espécie de totemismo moderno. De acordo com ele, o futebol estabelece um sistema alternativo de classificações culturais e relações sociais, dividindo e agrupando os indivíduos como torcedores de diferentes clubes de futebol. A relação entre esses clubes, e entre seus respectivos torcedores, é de rivalidade. Nesse sentido, enquanto a seleção brasileira tende a representar a nação como uma totalidade, na qual os brasileiros se encontrariam reunidos de modo harmônico e coeso, os times de futebol dramatizam o conflito de identidades particulares. As identidades produzidas dessa forma tendem a sobrepor-se a outras formas de identidade nos contextos em que são acionadas. Assim, um torcedor do Flamengo torcerá contra o Vasco sempre que seu arquirrival estiver em campo, ainda que ele esteja jogando contra um time de outro estado, ou mesmo, de outro país. Por outro lado, um torcedor poderá se aproximar e iniciar uma conversa com alguém desconhecido, ao perceber que eles torcem para o mesmo time. Nesse sentido, apesar de seu caráter simbólico e performático, as identidades clubísticas têm uma realidade própria, influindo de modo efetivo sobre a construção de relações sociais. Segundo Damo (2002), a participação dos torcedores no campo futebolístico se desenvolve como uma espécie de “engajamento emocional”. Isso significa que a relação dos torcedores com o futebol só adquire pleno sentido no campo das emoções. Como vimos, o campo futebolístico pode ser caracterizado pela atuação de três diferentes categorias de agentes: profissionais, especialistas e torcedores.

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Com o crescente processo de modernização do futebol, profissionais e especialistas precisam gerenciar suas emoções para poderem desempenhar suas funções. Assim, os jogadores devem ser “profissionais”, atuando com dedicação pelo time que paga seus salários, e os especialistas devem ser isentos e imparciais, analisando os jogos de modo objetivo, independentemente de suas preferências clubísticas. Nesse quadro, somente os torcedores podem, ou melhor, devem atuar de modo emotivo e apaixonado. O “engajamento emocional” dos torcedores baseia-se na escolha de um “time do coração”, o que geralmente ocorre na infância, sendo influenciada por amigos e parentes próximos. Essa escolha insere o torcedor num sistema mais amplo de rivalidades e afinidades que conferem sentido às suas experiências. Damo (2002) define os “times do coração” como “comunidades imaginadas de sentimentos”. Isso significa que os torcedores de um mesmo clube valorizam e partilham um determinado conjunto de valores, atitudes, memórias e emoções, que os particularizam e os diferenciam de seus rivais. Para uma melhor compreensão sobre a importância atribuída aos sentimentos no mundo do futebol, o próximo capítulo será dedicado à apresentação da antropologia das emoções, área de pesquisa que procura instituir esse fenômeno como um objeto de estudo das ciências sociais.

1.2 Antropologia das emoções

1.2.1 O lugar das emoções nas ciências sociais

A antropologia das emoções é uma área recente das Ciências Sociais. Em dois trabalhos de mapeamento da história e constituição deste campo, Coelho e Rezende (2010, 2011) mostram que, embora possamos identificar algumas discussões incipientes e secundárias sobre os afetos humanos desde os trabalhos de autores clássicos da Sociologia, essa importante dimensão da experiência social

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só se constituiu como um objeto específico, atrelado a um campo autônomo de pesquisa, em meados da década de 1980, nos Estados Unidos. Nestes dois esforços de mapeamento, as autoras partem da ideia de que, até então, as emoções teriam permanecido praticamente excluídas do campo de estudos da Sociologia e da Antropologia, por estarem associadas, no senso comum das sociedades ocidentais, a um só tempo e de modo paradoxal, aos planos do indivíduo e da natureza. Enquanto fenômenos de ordem natural, as emoções teriam um aspecto ontológico, sendo concebidas como algo vivenciado de modo semelhante por todos os seres humanos, em todas as épocas e lugares. Assim, os motivos que levariam as pessoas a sentirem raiva, medo, amor, ou tristeza, por exemplo, deveriam ser sempre os mesmos, a despeito do meio cultural no qual elas vivessem. A influência de fatores socioculturais seria exercida apenas sobre os padrões de expressão dos sentimentos. Nessa perspectiva, as emoções assumem, portanto, um caráter predominantemente essencialista e universalista. Além disso, ao serem localizadas no plano da natureza, as emoções passam a ser compreendidas como fatores biológicos ou fisiológicos, estando relacionadas ao funcionamento do corpo humano. Nesse sentido, elas passam a ser entendidas como meras reações fisiológicas, originando-se no corpo, ou então, produzindo algum tipo de efeito sobre ele. De todo modo, essa concepção faz com que as emoções sejam tomadas como um objeto próprio das Ciências Naturais, como a Biologia e a Neurologia, por exemplo. Por outro lado, ainda segundo as autoras, as emoções também são compreendidas como um fenômeno relacionado à experiência individual. Elas estariam localizadas no interior dos indivíduos, participando como um elemento fundamental da constituição de sua subjetividade. Nesse sentido, as emoções seriam responsáveis por conferir singularidade e autenticidade à experiência individual, atuando como uma espécie de marca pessoal. Elas seriam, portanto, o elemento mais genuíno da experiência dos indivíduos, correspondendo à sua “essência” ou “verdade interior”. Segundo essa perspectiva, a expressão das emoções pode ser falseada, mas os sentimentos vivenciados internamente pelos indivíduos, não. No entanto, por serem presumidamente singulares, acredita-se que as emoções só possam ser devidamente acessadas e compreendidas pelo próprio

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sujeito que as vivencia. Ou seja, ninguém poderia compreender as motivações de uma pessoa que age baseada em suas emoções, a não ser ela mesma. Na verdade, como as emoções também estão associadas à irracionalidade, nesse sistema cultural, pode-se dizer que nem mesmo o sujeito que as vivencia seria capaz de compreendê-las e exprimi-las com clareza, em alguns contextos. Por estarem ligadas à experiência individual, as emoções se constituíram como uma temática consagrada à área da Psicologia, sendo entendidas como uma dimensão profunda e misteriosa da experiência humana. Na cultura ocidental moderna, as emoções encontram-se, portanto, de acordo com a visão de Coelho e Rezende, relacionadas aos domínios do indivíduo e da natureza, o que dificultaria sua construção como objetos de análise por parte das Ciências Sociais. Isso significa que os princípios de senso comum que caracterizam as emoções como fenômenos individuais e naturais também se refletem na esfera do pensamento científico, tornando-as refratárias a análises de cunho sócio- antropológico. Por serem entendidas como fatores psicobiológicos, as emoções constituíram-se, historicamente, como objetos de estudo próprios das Ciências Naturais e da Psicologia. À luz destas considerações, Coelho e Rezende (2010, 2011) destacam que as Ciências Sociais se constituíram em contraste a essas áreas de conhecimento. No fim do século XIX e início do século XX, os autores que se dedicaram a delimitar um campo de estudos específico para a Sociologia e a Antropologia procuraram realizar essa tarefa, principalmente, através do estabelecimento de um contraste em relação às áreas das Ciências Naturais e da Psicologia. Elas foram tomadas, portanto, como o “outro disciplinar” das Ciências Sociais, num primeiro momento. Podemos identificar esse tipo de estratégia nas obras de Durkheim e Simmel, por exemplo. No livro As regras do método sociológico, Durkheim (1984) dedica-se a definir a Sociologia como um campo teórico autônomo, diferenciado da Biologia e da Psicologia. Ele apresenta, então, os “fatos sociais” como os objetos de análise que distinguiriam a Sociologia das demais áreas da ciência. Para Durkheim, os “fatos sociais” deveriam ser tratados como “coisas”, por apresentarem uma existência objetiva e autônoma, fora das consciências individuais. Nesse sentido, eles

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corresponderiam a fenômenos independentes e externos aos indivíduos, agindo de modo coercitivo sobre eles e impondo-se sobre sua vontade. Durkheim afirma, ainda, que a existência humana seria marcada por um dualismo fundamental. Segundo ele, o homem apresentaria dois tipos de consciência claramente distinguíveis: uma individual, que só poderia se manifestar nos momentos de isolamento subjetivo, e outra coletiva, composta pelos elementos recebidos de fora para dentro, como uma herança cultural. Em suma, podemos afirmar que a relação entre indivíduo e sociedade aparece bem demarcada na obra durkheimiana, assumindo quase a forma de uma oposição. Com isso, a experiência individual é excluída do escopo de análises da Sociologia, e o mesmo acontece com o plano das emoções. No entanto, conforme apontam Coelho e Rezende, esta relação de oposição fica nuançada em outros momentos da obra do autor. Alguns princípios do projeto sociológico apresentado originalmente por Durkheim não se reproduzem, com a mesma clareza, em um de seus textos analíticos mais importantes, devotado ao estudo do fenômeno religioso. No livro As formas elementares da vida religiosa, Durkheim (1996) aponta a origem social da religião, indicando-a como a fonte de diversas outras instituições sociais. Segundo ele, a religião corresponderia a um complexo conjunto de crenças e ritos, responsáveis, respectivamente, por ordenar a experiência dos indivíduos no mundo, e por incitar-lhes ações e sentimentos, conferindo materialidade e coesão à vida social. A religião está ligada à esfera extraordinária do sagrado, que se define em contraste ao mundo cotidiano e profano. Segundo Durkheim, essa dimensão sagrada emerge de um estado de “efervescência coletiva”, marcada pela superexcitação dos estados psíquicos individuais, no qual são renovados os valores, idéias e sentimentos que unem os integrantes de um grupo. Existem certos sentimentos que só se produzem durante o estado de efervescência, momento no qual as fronteiras entre indivíduo e sociedade se esmaecem, pois o indivíduo chega a perder a noção de sua própria integridade, unindo-se completamente à coletividade. Nesse sentido, o estudo de Durkheim sobre a religião nos leva à consideração do estado de “efervescência” como um momento fundamental, no qual importantes sentimentos coletivos são produzidos, contribuindo para a coesão social.

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Na obra de outro representante da escola sociológica francesa, podemos encontrar um movimento semelhante. Marcel Mauss procurou dar continuidade ao modelo de Sociologia fundado por Durkheim, apontando o caráter externo e coercitivo dos fenômenos sociais sobre os indivíduos. No texto “A expressão obrigatória dos sentimentos” (1980), ele investiga os ritos funerários dos povos aborígenes australianos, procurando mostrar como a expressão dos sentimentos de luto e tristeza teria um caráter obrigatório, sendo governada por regras sociais, que determinariam quando, por quem e para quem esses sentimentos deveriam ser exprimidos. As emoções não seriam, portanto, um fenômeno puramente psicológico ou fisiológico, apresentando uma importante dimensão social. Mauss afirma, no entanto, que a obrigatoriedade dos ritos não impediria que esses sentimentos fossem vivenciados de modo espontâneo pelos indivíduos. A expressão das emoções funcionaria, então, como uma linguagem, uma espécie de código social pelo qual os indivíduos poderiam – ou melhor, deveriam – comunicar aos outros, e para si mesmos, seus estados emocionais internos. Dinâmica semelhante pode ser encontrada, segundo Coelho e Rezende, na obra do sociólogo alemão Georg Simmel. Simmel também procurou delimitar uma área específica de atuação para as Ciências Sociais, sendo responsável pela fundação de uma nova matriz teórica: a sociologia interacionista. Ele nos apresenta seu projeto teórico no texto “O problema da sociologia” (1983). Para Simmel, a sociedade se constitui a partir das interações desenvolvidas entre os indivíduos. Todo tipo de interação poderia ser dividido, por meio da abstração científica, em dois elementos: forma e conteúdo. Porém, no plano empírico, esses elementos ocorrem de modo concomitante e não podem ser dissociados. Nesse esquema conceitual, os conteúdos correspondem aos diferentes motivos, interesses, e objetivos que levam os indivíduos a entrarem em relação uns com os outros. Eles podem ser de vários tipos: eróticos, políticos, econômicos, afetivos, etc. De modo geral, podem ser considerados fatores psicológicos, incluindo a esfera das emoções. Esses diversos conteúdos só adquirem realidade social, no entanto, quando assumem uma determinada forma. O sentimento de amor, por exemplo, pode se manifestar sob as formas do namoro ou do casamento, que por sua vez, pode ser monogâmico ou poligâmico. Por isso, Simmel elege as formas sociais como os verdadeiros objetos de análise da Sociologia, enquanto o estudo

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dos conteúdos deveria ficar a cargo de outras ciências, tais como a Psicologia. Desse modo, a experiência individual e o plano das emoções são excluídos, mais uma vez, da alçada das Ciências Sociais. No entanto, em alguns de seus textos analíticos, Simmel redireciona suas atenções para o exame de aspectos da vida individual e subjetiva. No texto “A metrópole e a vida mental” (1987), por exemplo, ele aponta a emergência de uma configuração psicológica específica nas sociedades modernas, o que poderia ser encontrado de modo resumido no estilo de vida desenvolvido nas grandes cidades. De acordo com ele, a vida na metrópole seria marcada pelo racionalismo, pela atitude blasé e pelo sentimento de reserva, mecanismos de defesa dos indivíduos em relação ao crescimento da cultura objetiva. Incapazes de responder aos diversos estímulos recebidos do meio externo, os indivíduos adotariam uma postura de indiferença e aversão à cultura objetiva, priorizando o intelecto, em detrimento de suas emoções. Por fim, todos esses fatores podem ser considerados corolários do desenvolvimento do sistema capitalista nas sociedades modernas, marcadas pela divisão do trabalho, pela produção em massa das indústrias, e pela implantação da economia monetária. Em outro texto, Simmel (1964) aponta a importância dos sentimentos de fidelidade e gratidão para a dinâmica da vida social. De acordo com ele, a fidelidade seria um sentimento “sociologicamente orientado”, promovendo a manutenção dos laços sociais, ao colocar-se no lugar dos motivos que deram origem a esses laços. Uma relação pode se iniciar, por exemplo, motivada pelos sentimentos de amor ou amizade, mas com o tempo, esses sentimentos se enfraquecem e são substituídos pela fidelidade, que garante a continuidade da associação. A gratidão, por sua vez, seria a “memória moral da humanidade”, encontrando-se na base das relações de reciprocidade que dão fundamento à vida social. Ao receberem algo, os indivíduos se sentem impelidos a retribuir, mesmo na ausência de coerções externas, pois agem imbuídos pelo sentimento de gratidão. Sendo assim, fidelidade e gratidão seriam sentimentos importantes para a vida coletiva, contribuindo para a construção e manutenção das relações sociais. Coelho e Rezende mencionam ainda mais um exemplo de abordagem sobre a temática das emoções, encontrado na antropologia cultural norte-americana, num momento em que as Ciências Sociais ainda se encontravam em fase de formação. A

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tradição culturalista da antropologia foi fundada por Franz Boas, no início do século XX. Sob sua influência, formaram-se importantes linhas de pesquisa, dentre as quais podemos destacar a escola Personalidade e Cultura. Nessa corrente, encontravam- se pesquisadores tais como Margareth Mead, Ruth Benedict e Gregory Bateson. Benedict desenvolveu o conceito de “configurações de cultura” para explicar como se daria o processo de integração e diferenciação de um sistema cultural particular. Malinowski (1976) já havia apontado o caráter singular de toda cultura, mas não teria conseguido definir o fator capaz de conferir unidade à totalidade cultural. Para Benedict (1970), toda cultura se organizaria em torno de um determinado princípio, o que resultaria numa configuração específica. As “configurações de cultura” atuariam de modo seletivo sobre os indivíduos, padronizando seus comportamentos, pensamentos e sentimentos. A padronização cultural ocorreria, portanto, no plano cognitivo, resultando na formação de um eidos, mas alcançaria também a esfera das emoções, o que resultaria, por sua vez, na formação de um ethos. Segundo Bateson (1958), é justamente essa padronização emotiva o que confere um “tom” particular e específico a uma dada cultura. Nesse sentido, um mesmo conjunto de ações poderia adquirir significados distintos, quando executado e interpretado a partir de diferentes padrões emotivos. Como vimos, as emoções foram excluídas do escopo de análises das Ciências Sociais, num primeiro momento, por estarem relacionadas aos planos do indivíduo e da natureza. No entanto, podemos perceber algumas tentativas de incorporação das emoções, e outros fatores subjetivos, às análises sócio- antropológicas, desde os trabalhos de autores clássicos da disciplina. Nesses trabalhos, as emoções aparecem de modo ambíguo, preservando, quase sempre, sua caracterização como estados individuais internos. Nesse sentido, as análises costumam se concentrar sobre os padrões sociais que influenciam a expressão das emoções, mas apontam, de todo modo, a existência de uma importante dimensão social e simbólica dos sentimentos (COELHO E REZENDE, 2010; 2011).

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1.2.2 A constituição da antropologia das emoções

Podemos relacionar o surgimento da antropologia das emoções ao longo processo de revisão e crítica que se instalou nas Ciências Sociais no período do pós-guerra, principalmente a partir da década de 1960 (ORTNER, 2007). Nesse momento, alguns valores fundamentais da cultura ocidental começaram a ser questionados, com destaque para as relações de poder e dominação estruturadas por eles, e sua influência sobre a construção do pensamento científico. Movimentos como o feminismo e os estudos de gênero, o pós-colonialismo, o pós-estruturalismo, o pós-modernismo e a teoria da prática contribuíram para a promoção de importantes transformações no campo das Ciências Sociais. Nesse sentido, os estudos sociais e culturais passaram a conferir um espaço maior ao plano micro-sociológico em suas análises, abordando fatores ligados ao cotidiano, ao âmbito das interações, e à vida subjetiva (KOURY, 2005; ORTNER, 2007). Autores como Giddens (1979) e Sahlins (1981), por exemplo, destacaram o poder de agência e reflexividade dos indivíduos, apontando o modo como os princípios da estrutura são atualizados em suas ações. Os indivíduos não reproduzem, simplesmente, os ditames da estrutura: eles dispõem de um relativo grau de liberdade, o que lhes permite fazer escolhas e planejar seus atos. Eles agem baseados em interesses, vontades, e motivações relativamente particulares, ligados à sua trajetória pessoal. De modo mais ou menos consciente, os atores sociais interpretam os diversos fenômenos da vida social, contribuindo para sua construção e transformação. Segundo Sherry Ortner (2007), movimentos como o pós-estruturalismo e a teoria da prática contribuíram para a incorporação de aspectos subjetivos ao conjunto de objetos relevantes para a teoria social. No entanto, as emoções permaneceram excluídas desse quadro teórico, prevalecendo uma concepção dos atores sociais como seres predominantemente racionais e calculistas. Uma abordagem propriamente antropológica sobre as emoções só iria surgir com o advento do projeto interpretativista de Clifford Geertz. Na avaliação de Ortner (2007), Geertz desenvolveu um modelo teórico no qual as emoções aparecem como um elemento fundamental para a constituição da teia de significados que compõe a

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cultura. Ou seja, as emoções estariam presentes no modo como os indivíduos e grupos organizam suas experiências e atribuem significados ao mundo social. Além disso, os sentimentos individuais seriam influenciados por formas socialmente construídas, ao mesmo tempo em que contribuiriam para o processo de construção dessas formas públicas e simbólicas (GEERTZ, 1973). A abordagem interpretativa pode ser encontrada nos trabalhos de Michelle Rosaldo (1984), uma das autoras que contribuíram para o processo de fundação da antropologia das emoções. Em sua obra, ela defende a necessidade de que se desenvolvesse uma investigação propriamente antropológica sobre o conceito de pessoa, a noção de self, e o fenômeno das emoções. De acordo com ela, apesar de serem concebidas, no senso comum ocidental, como fenômenos individuais e naturais, as emoções e outros aspectos associados à vida subjetiva também estariam sujeitos à influência de fatores socioculturais. Assim, o conceito de pessoa seria uma construção cultural, definindo as condições nas quais ocorre a aquisição de um sentido específico de self por parte dos indivíduos. As emoções, por sua vez, seriam formas de interpretação baseadas em significados culturais, num processo em que o corpo, o self e a identidade dos atores encontram-se implicados. Numa crítica ao paradigma racionalista, vigente nas sociedades ocidentais, Rosaldo define as emoções como “pensamentos incorporados”. Em sua visão, as emoções teriam sido sistematicamente preteridas pelo pensamento científico por serem concebidas como o avesso da razão e do pensamento. Nesse sentido, ela procura mostrar que a distância entre razão e emoção não seria tão grande, e tampouco haveria uma relação de oposição entre esses elementos. Para ela, as emoções seriam, também, formas de pensamento, distinguindo-se por serem marcadas por uma sensação de “envolvimento”. A antropologia das emoções só se constituiu como um campo autônomo de pesquisa na década de 1980, nos Estados Unidos. Nesse momento, surgiram publicações, como os trabalhos de Rosaldo (1984), que procuraram defender a viabilidade e relevância de um estudo específico sobre as emoções por parte das Ciências Sociais. Como marco de fundação da área, podemos citar, ainda, a publicação de alguns textos destinados ao mapeamento das principais abordagens desenvolvidas, até então, sobre a temática das emoções. Entre estes textos, Coelho e Rezende (2010, 2011) destacam dois, de autorias respectivas de Lutz e White

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(1986) e Abu-Lughod e Lutz (1990), cujos pontos principais exporemos em seguida de forma mais detida. Catherine Lutz e Geoffrey M. White (1986) fazem um levantamento das principais abordagens realizadas sobre o tema a partir da década de 1970. Eles apontam o crescimento do interesse pelo assunto nesse período, o que estaria relacionado ao surgimento do movimento interpretativista no cenário antropológico. No mapeamento realizado por eles, as abordagens são classificadas de acordo com seu caráter universalista ou relativista, diferenciando-se entre aquelas que se preocupariam com os aspectos universais e invariantes das emoções, e aquelas que estariam focadas sobre sua variabilidade histórico-cultural. Essa tensão estaria articulada, ainda, a outros quatro conflitos teóricos, que podem ser resumidos nos seguintes dualismos: positivismo/interpretativismo; materialismo/ idealismo; indivíduo/sociedade; racionalismo/romantismo. O positivismo corresponderia a uma abordagem de cunho universalista, concebendo as emoções como um fenômeno “pan-humano”. Esta seria a abordagem típica da Psicologia, que destaca a relação entre emoção e comportamento, apontando a primeira meramente como causa para o último. O interpretativismo, por sua vez, consistiria numa abordagem de caráter relativista, abandonando a concepção de que as emoções seriam “estados internos” e, por isso, refratários a abordagens sócio-antropológicas. Nessa perspectiva, as emoções são tomadas como um elemento fundamental para a construção dos significados culturais. Mais que isso, as próprias emoções passam a ser concebidas como construções culturais, destacando-se sua variação no tempo e no espaço. O materialismo concebe as emoções como fenômenos biológicos, que se expressariam através de manifestações fisiológicas. A cultura seria capaz de influenciar esses fenômenos, mas eles corresponderiam a realidades materiais, com as quais os indivíduos e grupos precisam lidar. Em contrapartida, o idealismo concebe as emoções como “julgamentos valorativos”, relacionado-as a aspectos mais amplos da estrutura social. O conflito entre o individual e o social, por sua vez, reflete-se nos estudos que apontam, de um lado, o indivíduo como o lócus da emoção, e de outro, a influência de padrões socioculturais sobre seu comportamento. Isso acarreta uma distinção entre as “emoções”, entendidas como

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estados individuais internos, e os “sentimentos”, entendidos como formas socialmente reguladas de expressão das emoções. Encontramos, ainda, a oposição entre racionalismo e romantismo. O primeiro se baseia na noção ocidental que define as emoções como o avesso da razão. Desse modo, elas seriam sinônimos da irracionalidade, estando associadas ao perigo, à desordem, ao descontrole e à animalidade. Na visão romântica, todavia, as emoções aparecem de modo positivo, sendo concebidas como um aspecto fundamental da condição humana, bem como signos de pureza, honestidade, originalidade e espontaneidade. Por fim, Lutz e White destacam a contribuição da etnografia para o estudo das emoções. A abordagem etnográfica teria promovido uma importante mudança de foco nesses estudos, que teriam abandonado as conjecturas sobre o caráter universal dos afetos humanos, para ocuparem-se do modo como as emoções assumem significados particulares, atribuídos por diferentes grupos sociais. Diante disso, haveria, inclusive, a necessidade de uma atitude autorreflexiva por parte dos antropólogos ocidentais, que deveriam levar em consideração a influência das concepções de sua “cultura nativa” sobre a elaboração de suas teorias. Os autores destacam, ainda, que o estudo das emoções também poderia contribuir para o desenvolvimento da etnografia, tornando os relatos de campo mais completos e mais complexos, além de incorporar as emoções do antropólogo no campo como um dado relevante do ponto de vista metodológico. Catherine Lutz participa, ainda, da elaboração de outro trabalho de mapeamento, mas, dessa vez, ao lado de Lila Abu-Lughod. No capítulo de introdução à coletânea Language and politics of emotion (1990), organizada por elas, as autoras propõem uma nova forma de abordagem sobre a temática das emoções, baseada no conceito foucaultiano de discurso: o contextualismo. Como base para sua argumentação, elas fazem um levantamento sobre os principais tipos de abordagem desenvolvidos até então, indicando três tendências principais seguidas pelos estudos: o essencialimo, o historicismo e o relativismo. O essencialismo seria a abordagem típica das Ciências Naturais e da Psicologia. Nesta perspectiva, encontraríamos uma reprodução do modo como as emoções são concebidas pelo senso comum ocidental ou, nos termos de Lutz (1988), pela “etnopsicologia euramericana”. O conceito de “etnopsicologia” refere-se

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ao modo particular como a noção de pessoa é definida em cada sociedade, englobando o fenômeno das emoções. No Ocidente, como vimos, as emoções são entendidas, por um lado, como estados individuais internos, subjetivos, que dizem respeito a uma essência ou verdade pessoal. Por outro lado, são tidas, também, como fenômenos de ordem natural, localizados no plano biológico, e associados à própria condição humana. Na perspectiva essencialista, portanto, as emoções são concebidas como processos psicobiológicos, que responderiam a fatores ambientais e culturais, mas teriam um caráter universal e invariável. O relativismo e o historicismo apresentam a noção de que as emoções seriam socialmente construídas, variando no tempo e no espaço. Para o relativismo, os diferentes grupos sociais vivenciam e concebem o fenômeno das emoções de modo particular, através de categorias culturais específicas. Desse modo, existem padrões culturais que condicionam os modos de sentir e expressar as emoções. Os estudos desenvolvidos sob essa perspectiva geralmente estão ligados à abordagem etnográfica e, nesse sentido, destacam a variação dos sentimentos no plano sincrônico, fazendo a comparação de conceitos emotivos locais, produzidos por diferentes sociedades. O historicismo, por sua vez, corrobora grande parte dos argumentos relativistas, mas destaca a variação das emoções no plano diacrônico, dedicando-se a investigar a evolução de determinados sentimentos ao longo do tempo. Isso costuma ser feito através de estudos que procuram reconstituir a genealogia de certas categorias emotivas, indicando as transformações pelas quais elas teriam passado no decorrer da história até alcançarem sua configuração atual. Por fim, Abu-Lughod e Lutz apresentam o contextualismo como um novo tipo de abordagem sobre as emoções. Baseadas no conceito foucaultiano de discurso, elas propõem um modelo de análise de caráter pragmático, no qual a dimensão micropolítica das emoções é enfatizada. Segundo Foucault (1980), os discursos não mantêm, com seus objetos, uma relação meramente referencial, mas sim, de formação. Ou seja, os discursos são responsáveis pela própria constituição dos objetos dos quais falam. Desse modo, as emoções não seriam como dados do mundo material, universais e invariáveis. Como vimos, elas variam no tempo e no espaço, mas não apenas no que concerne à comparação entre sociedades e grupos diferentes. Para o contextualismo, as emoções são constituídas discursivamente,

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num processo que envolve disputas, negociações e relações de poder. O objeto de análise da antropologia das emoções corresponderia, então, aos discursos emotivos ou discursos sobre emoções. Desse modo, o que deve ser considerado são os contextos específicos nos quais esses discursos são acionados, com destaque para os seus efeitos sobre as relações de poder e desigualdades sociais entre os atores. Para ilustrar a proposta contextualista, apresento o trabalho desenvolvido por Catherine Lutz, nessa mesma coletânea, sobre a relação entre gênero e emoção. Partindo de uma análise dos discursos que definem as emoções no Ocidente, Lutz (1990) destaca a relação fundamental que se estabelece entre emoção e feminilidade. Segundo ela, as qualidades que definem as emoções como uma categoria cultural, nesse contexto, são as mesmas que entram na definição da identidade feminina. Nesse sentido, Lutz afirma que “todo discurso sobre emoção é, também, ao menos implicitamente, um discurso sobre gênero” (1990, p. 67). Como vimos, no Ocidente, as emoções são representadas como fenômenos individuais e naturais. Além disso, elas seriam definidas a partir da oposição fundamental em relação a dois elementos: pensamento e alheamento, recebendo valorações diferentes em cada caso. Nas situações em que se contrapõem ao pensamento, as emoções recebem uma valoração negativa, sendo interpretadas como fontes de perigo, desordem, ou descontrole. Porém, ao se contraporem ao alheamento, as emoções recebem uma valoração positiva, pois passam a significar o engajamento pessoal nas relações com o outro, colocando-se no lugar da indiferença, que ameaça a continuidade dos laços sociais (LUTZ, 1988; 1990). Na etnopsicologia euroamericana, as emoções são definidas, ainda, a partir de outros dualismos, tais como: corpo/alma; emoção/expressão; e masculino/feminino. Ao serem relacionadas ao corpo, as emoções são equiparadas a sensações físicas, sendo concebidas como fatores biológicos ou fisiológicos. Quando relacionadas à noção de alma, contudo, elas passam a representar a verdade interior dos indivíduos, assumindo qualidades sagradas e metafísicas. Na verdade, as emoções corresponderiam justamente a esses estados internos, diferenciando-se das formas manipuláveis de expressão (LUTZ, 1988; 1990). Quanto à oposição entre o masculino e o feminino, encontramos a noção de que os homens seriam, naturalmente, mais racionais do que as mulheres, e estas, por sua vez, seriam, naturalmente, mais emotivas que os homens. Desse modo, os

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homens agiriam baseados na razão, seriam mais contidos, teriam uma capacidade maior de autocontrole e planejamento, e uma capacidade intelectual mais desenvolvida. Tudo isso os tornaria habilitados à ocupação das funções mais estratégicas e prestigiosas da organização social, incluindo os diversos cargos de comando. Em suma, o controle do domínio público pertenceria aos homens (LUTZ, 1988; 1990). As mulheres, por sua vez, padeceriam das mesmas ambigüidades com as quais as emoções são tratadas na cultura ocidental. Assim, por serem mais emotivas, elas estariam mais próximas da natureza, seriam mais instintivas e, ao mesmo tempo, mais intuitivas. Essas características as tornariam mais aptas a desempenhar papéis ligados ao cuidado do outro, a começar pela própria maternidade e pelas funções domésticas, como o cuidado da casa, dos filhos e do bem-estar do marido. Seguindo essa mesma lógica, outras funções assumidas pelas mulheres podem estar relacionadas a áreas profissionais como a enfermagem e o magistério, por exemplo. Ao mesmo tempo, a emotividade feminina pode ser interpretada como um sinal de irracionalidade, fraqueza e descontrole, o que se apresentaria como um obstáculo à ascensão das mulheres aos cargos mais importantes da estrutura social (LUTZ, 1988; 1990). As diferenças entre homens e mulheres aparecem de modo naturalizado na esfera do pensamento científico. Nesse sentido, a emotividade feminina poderia ser explicada pela atuação de hormônios específicos, como o estrogênio e a progesterona. Já a testosterona, o hormônio masculino, explicaria a maior agressividade dos homens, sua impulsividade sexual, sua pró-atividade e liderança em diversos setores e, por fim, estaria na base do sentimento de raiva, uma das poucas emoções prescritas para o comportamento masculino e vedadas às mulheres. Nas representações científicas, as mulheres também aparecem como mais suscetíveis ao descontrole, em virtude do desequilíbrio hormonal característico de momentos como a gravidez, a menstruação e a menopausa. Em suma, a associação discursiva entre feminilidade e emoção contribui para o reforço das relações de poder e dominação que marcam a formação das identidades de gênero nas sociedades ocidentais (LUTZ, 1988; 1990).

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1.2.3 Emoção e esporte: algumas abordagens

Podemos encontrar uma abordagem pioneira sobre a relação entre esporte e emoção na obra de Norbert Elias. Em parceria com Eric Dunning, Elias (1992) analisa o processo de formação dos esportes modernos, considerando-os sob a perspectiva de sua teoria sobre o “processo civilizador”. De acordo com ele, a formação do Estado Moderno seria caracterizada pela monopolização do uso legítimo da força por parte do Estado, o que levaria à exclusão da violência da esfera do cotidiano, assim como de outras formas mais intensas de comportamento, que seriam consideradas desordeiras. Isso implicaria, ainda, no desenvolvimento de uma atitude de autocontrole por parte dos indivíduos. Desse modo, os conflitos deveriam ser resolvidos de modo pacífico, através da argumentação, tal como pode ser observado nas discussões entre os membros do Parlamento Inglês. Junto a esse processo de “parlamentarização” dos costumes, observamos, também, um processo de “desportivização” da sociedade. Segundo Elias, o controle da violência teria afetado, também, as formas de excitação encontradas nas sociedades pré-modernas. Assim, a vida nas sociedades modernas teria se tornado mais segura, mas, ao mesmo tempo, menos emocionante. As pulsões vitais reprimidas, através do “processo civilizador”, continuariam existindo, e precisariam de novas formas de expressão. É nesse ponto que os esportes modernos adquirem sua importância. Eles surgem como “válvulas de escape” para essas pulsões vitais, permitindo a manifestação de comportamentos violentos e emoções intensas, dentro de certos parâmetros. Devido ao seu caráter ritualizado, os esportes modernos permitem que esses comportamentos se manifestem de modo regulado, impedindo que eles venham a irromper em outros momentos, abalando a normalidade da vida cotidiana. Além disso, os esportes modernos substituem, gradativamente, a violência por outras fontes de excitação, principalmente através da criação de regras e objetivos mais complexos, que tornam as competições mais emocionantes. A análise de Elias sobre os esportes aparece como preâmbulo no trabalho de Luiz Fernando Rojo (2011). Ele analisa a relação entre gênero e emoção no hipismo, a partir de uma abordagem contextualista, comparando a prática desse esporte em

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duas localidades: Rio de Janeiro e Montevidéu. Rojo escolhe o hipismo para a realização de sua pesquisa porque esse esporte teria a particularidade de ser a única modalidade olímpica que permitiria a participação de homens e mulheres nas mesmas competições, além de ser praticado com o auxílio de um animal (o cavalo, nesse caso). Desse modo, o hipismo seria marcado por um discurso igualitarista, no qual as diferenças entre os gêneros/sexos seriam minimizadas. A presença do cavalo contribuiria para esse igualitarismo, pois seria a lida com o animal o diferencial nas competições, e não a força física dos atletas. A análise de Rojo se concentra sobre duas modalidades de competição do hipismo: as provas de salto e as provas de adestramento. Apesar de não haver uma separação formal entre os sexos no hipismo, Rojo observa uma participação maior de homens nas provas de salto, ao passo que as mulheres apareceriam em maior número nas provas de adestramento. Essas diferenças são mencionadas nas falas dos entrevistados, e suas explicações nos levam a representações sobre a importância que o controle exercido pelos atletas, sobre suas emoções e sobre o cavalo, teria sobre seu desempenho. Por serem mais emotivas, sensíveis e intuitivas, as mulheres teriam maior facilidade para lidar com os cavalos, o que as tornaria mais credenciadas do que os homens para as provas de adestramento. No entanto, essa sensibilidade poderia fazer com que elas não conseguissem ser duras com os animais, quando necessário, tornando-se uma desvantagem em alguns momentos. As provas de salto, por outro lado, exigiriam maior controle das emoções por parte dos atletas, além do sentimento de coragem. Logo, os homens estariam mais aptos para a disputa de competições desse tipo. No entanto, o excesso de confiança dos homens poderia atrapalhá-los em algumas situações, enquanto o medo das mulheres poderia favorecê-las, por torná-las mais cautelosas e cuidadosas. Rojo afirma, ainda, que a grande presença de militares no hipismo uruguaio, tanto nas provas de salto, quanto nas provas de adestramento, faria com que a relação entre feminilidade e emoção fosse minimizada nas representações sobre o esporte encontradas nesse contexto. Por fim, ele conclui que, apesar das representações igualitaristas que predominam no hipismo, as diferenças entre os sexos são reintroduzidas, nesse esporte, através dos discursos emotivos. Esses discursos têm uma importante dimensão micropolítica e interferem na dinâmica das

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relações de poder entre os gêneros, ora produzindo e reforçando hierarquias, ora suscitando formas de resistência. Em outro trabalho, Verônica Rocha (2011) analisa os “sentidos da vida” segundo a perspectiva dos praticantes de base jump, um esporte caracterizado pelo salto em queda livre a partir de estruturas fixas. Esse esporte originou-se do paraquedismo, tornando-se uma modalidade específica no fim da década de 1970. O termo “base” é formado pelas iniciais de building, antenna, span e earth (edifício, antena, ponte e desfiladeiro), que correspondem a objetos que servem de plataforma para os saltos. O base jump está relacionado a situações de extremo risco, fazendo com que a própria vida dos esportistas seja colocada em jogo. Na prática desse esporte, existe o risco de que o paraquedas não abra, o que poderia provocar o choque do esportista contra o solo, ou então, contra a própria estrutura de salto, podendo, ainda, fazer como que ele se enrole em redes elétricas de alta tensão. Como os saltos são realizados de estruturas baixas, atingindo grandes velocidades, não há tempo suficiente para o acionamento de um paraquedas reserva, e o base jumper dispõe de poucos segundos para a resolução de qualquer tipo de problema. Sendo assim, a tensão entre a vida e a morte encontra-se presente, objetiva e subjetivamente, de modo marcante na experiência dos praticantes desse esporte. Os desafios enfrentados através do base jump fazem com que os indivíduos realizem uma série de reflexões, levando-os a produzir sentidos sobre a vida. Baseando-se em Douglas, Rocha critica a noção privatista, predominante na modernidade ocidental, que define o risco como uma responsabilidade individual, culminando num processo de culpabilização. Segundo Douglas (1992; 1996), as noções de risco seriam culturalmente construídas. O risco está relacionado a tudo aquilo que ameaça a coerência dos princípios de organização de um dado sistema cultural. Como cada sociedade tem sua própria forma de organização, a definição do que constituiria uma situação de risco ou perigo é variável, bem como as formas de lidar com essas circunstâncias. O estudo de Rocha se concentra sobre a categoria do “risco desejado”, que consistiria no risco tomado como um estilo de vida, sendo vivenciado através da prática de esportes radicais. Nas falas dos entrevistados, o risco é assumido como um elemento integrante da atividade esportiva, desencadeando o sentimento de medo. É necessário

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coragem para enfrentar os riscos e controlar o medo, superando limites e obstáculos para voar. As emoções associadas ao base jump estão ligadas às diferentes etapas do salto. A primeira etapa compreende o momento que antecede o salto, sendo marcada pelo sentimento de medo. A segunda etapa consiste na queda livre, que se inicia no momento em que o paraquedas é acionado, sendo marcada por uma intensa sensação de liberdade e prazer. A terceira etapa é realizada com o paraquedas aberto, caracterizando-se pela planagem. Quando os saltos são realizados de estruturas mais elevadas, a planagem possibilita o ato de contemplação da natureza. Na última etapa, que consiste no pouso, predominam o sentimento de alegria e a gratidão aos colegas, a Deus (ou aos deuses) e à natureza. Fora da situação de salto, os atores refletem sobre os sentidos de suas vidas. Eles afirmam que se sentem pessoas melhores, após cada salto, por se depararem com a proximidade da morte. Ou melhor, a sensação de ter vencido a morte transforma-se numa exaltação à vida. Nesse contexto, a morte é compreendida de duas formas diferentes: por um lado, existe a morte natural, que é aceita como uma realidade inescapável pelos atores, a qual eles não temem, mas também não desejam. Por outro lado, existe a “morte em vida”, que foi unanimemente rejeitada pelos entrevistados. Trata-se de uma forma simbólica de morte, fortemente associada ao sentimento de tédio e à falta de liberdade que caracterizam a vida cotidiana. Em oposição a isso, são enfatizadas as experiências mais intensas, proporcionadas pelos esportes radicais, que estariam relacionadas a um estilo de vida mais criativo, espontâneo e prazeroso, adotado pelos praticantes de atividades desse tipo. Rocha identifica, no comportamento de seus pesquisados, a valorização de uma sensibilidade que procura transcender a realidade da vida cotidiana, indo em direção a novas fontes de emoção e excitação. Nesse sentido, ela caracteriza a experiência dos base jumpers como uma manifestação do romantismo moderno, tal como definido por Colin Campbell (2001). Gustavo Bandeira (2012), por sua vez, desenvolve um trabalho sobre a relação entre futebol, masculinidade e emoção. Ele analisa como as emoções e, principalmente, o sentimento de amor, são representados e vivenciados pelos torcedores, participando da construção de masculinidades. Nesse sentido, ele adota

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como metodologia de pesquisa a realização de trabalho de campo, observando o comportamento dos torcedores do Grêmio e do Internacional em dias de jogos nos estádios. Partindo de uma abordagem contextualista, Bandeira define as emoções como práticas discursivas, envolvidas em relações de poder. Os estádios de futebol consistiriam em contextos sociais específicos, onde as emoções seriam representadas e vivenciadas de modo particular. Apesar de serem representados como lugares permissivos e desregrados, Bandeira destaca a existência de um conjunto de códigos sociais nos estádios, que orientam a experiência dos torcedores e regulam a expressão pública dos sentimentos. Além disso, um certo tipo de engajamento, entendido como uma forma específica de vinculação emocional, seria exigido dos torcedores. Segundo Bandeira, os estádios possibilitam determinadas práticas, mas inibem outras. Somente alguns sentimentos podem ser expressos, seguindo padrões morais e éticos definidos. Ele destaca que os estádios de futebol exercem uma espécie de pedagogia, ou seja, estão relacionados ao processo de socialização dos torcedores, que precisam aprender o que devem sentir a cada lance do jogo, e como devem reagir. Os torcedores precisam aprender, por exemplo, quando devem gritar, ou xingar, quando devem manter-se calados e resignados, ou ainda, quando devem explodir em raiva ou alegria. Assim, os torcedores vão sendo “produzidos” ao longo das diferentes partidas e situações de jogo. Na cultura ocidental moderna, o amor é discursivamente representado como um sentimento natural e universal. O amor seria como uma força incontrolável, desobediente às lógicas da razão, sendo tomado como condição fundamental para a conquista da felicidade. Nas representações dos torcedores, o amor romântico ocupa um espaço preponderante. Desse modo, a relação com o “clube do coração” seria vivenciada como um “encontro de almas”, proporcionando ao torcedor uma sensação de plenitude. O amor ao clube é caracterizado como um sentimento verdadeiro, intenso e eterno. A despeito da valorização do autocontrole, em outros contextos, os torcedores valorizam o exagero e o sofrimento como provas do amor que eles sentem por seus times. Sendo assim, o amor sentido pelos torcedores seria de um tipo específico. Trata-se de um amor em atuação: ele é cantado, narrado e sentido de forma

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coletiva. Os torcedores amam juntos, com seus amigos, familiares, e até ao lado de desconhecidos; eles amam o clube, os jogadores e a própria torcida; em todo caso, eles amam entre homens. Sendo assim, o futebol aparece como um contexto no qual as emoções participam de modo importante da construção de identidades masculinas. Isso contraria a lógica cultural hegemônica, segundo a qual as emoções seriam um atributo essencialmente feminino, devendo ser evitados pelos homens, sob pena de serem considerados efeminados. Bandeira destaca, no entanto, que os comportamentos de gênero correspondem a uma elaboração cultural, estando sujeitos, ainda, a variações em contextos sociais diferentes. Não são todos os sentimentos que podem ser vivenciados pelos homens, nos estádios, e essas emoções também não podem ser expressas de qualquer maneira. As performances masculinas devem ser entendidas, então, como práticas discursivas, que reintroduzem as emoções em seu comportamento, sem que sua identidade masculina seja abalada. Como vimos nesse capítulo, a relação entre gênero e emoção é um dos principais temas debatidos na área da antropologia das emoções. A associação cultural dos homens à racionalidade e das mulheres à emotividade nos leva à noção de que a construção da masculinidade se daria em oposição à vivência e expressão de afetos. No entanto, não é isso o que acontece no mundo do futebol. No capítulo seguinte, apresento a noção de que os comportamentos de gênero são socialmente construídos e, por conseguinte, variáveis, podendo haver diversas formas de “ser homem”.

1.3 Gênero e masculinidade

1.3.1 O gênero e a construção cultural de comportamentos

A noção de gênero é utilizada na antropologia para se referir às formas diferenciais de comportamento atribuídas a homens e mulheres nas diferentes culturas. Por meio desse conceito, destaca-se o fato de que essas formas de

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comportamento são socialmente construídas e, desse modo, são variáveis e arbitrárias, ao invés de serem determinadas por fatores objetivos, localizados no plano da natureza. Esse conceito surgiu entre as décadas de 1960 e 1970, com o fortalecimento do feminismo no âmbito dos movimentos sociais e no plano acadêmico. No entanto, a noção de que os comportamentos de homens e mulheres são socialmente construídos já aparece em trabalhos anteriores, como na obra clássica de Margareth Mead (1968), intitulada Sexo e Temperamento. Esse livro pode ser apontado como uma tentativa pioneira de problematização das identidades sexuais, a partir de uma perspectiva comparativa e transcultural. Nesse trabalho, Mead investiga três sociedades localizadas na região da Nova Guiné: os Arapesh, os Mundugumor e os Tchambuli. Segundo ela, a cultura seria responsável pela definição de tipos ideais de temperamento, modelando os indivíduos, de acordo com padrões variáveis de uma sociedade para a outra. Ao comparar os diferentes padrões de temperamento definidos por essas sociedades, Mead nos permite visualizar a construção social das noções de “masculino” e “feminino”. Segundo Mead, o tipo de temperamento definido como ideal pela sociedade Arapesh seria equivalente ao que é considerado como “naturalmente feminino” nas sociedades ocidentais. Já entre os Mundugumor, ocorreria o inverso, pois o tipo ideal de temperamento dessa sociedade corresponderia ao que é definido como “naturalmente masculino” no Ocidente. Entre os Tchambuli, por sua vez, podem ser observados dois tipos ideais de temperamento: um relativo aos homens, e outro, relativo às mulheres. No entanto, o que chama a atenção é o fato de que essas formas de temperamento são definidas exatamente como o reverso dos padrões ocidentais. Ou seja, o temperamento definido como ideal para os homens Tchambuli – passivo, receptivo – é o mesmo que se atribui às mulheres no Ocidente, e o temperamento ideal atribuído às mulheres Tchambuli – agressivo e dominante – é aquele que se espera dos homens ocidentais. Desse modo, Mead conclui:

[...] não temos mais bases para falar desses aspectos do comportamento como sendo determinados pelo sexo [...]. O material estudado sugere que podemos dizer que muitos, se não todos, os traços de personalidade que identificamos como masculino ou feminino são tão determinados pelo sexo quanto as vestimentas, maneiras ou o tipo de chapéu que uma sociedade a um determinado período designa para cada sexo (MEAD, 1968, p. 259- 260).

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Embora possa ser encontrada na obra de Margareth Mead, a discussão sobre a construção social dos comportamentos de gênero só seria retomada de modo mais efetivo a partir das décadas de 1960 e 1970, com a ascensão do movimento feminista. De modo geral, o feminismo denunciava um longo processo de opressão política e cultural das mulheres, que se encontravam historicamente submetidas à dominação masculina. As mulheres estariam sistematicamente alijadas das posições sociais mais importantes de poder e prestígio, que seriam monopolizadas pelos homens. Essa situação se refletia, também, no âmbito acadêmico e na produção do conhecimento científico, inclusive na área da Antropologia. Pesquisadoras feministas destacavam o male bias, a marca de gênero presente na disciplina, apontando o desprestígio das mulheres, seja como autoras, seja como “informantes” nos trabalhos etnográficos. Em suma, devido à sua condição geral de desprestígio, as mulheres eram desconsideradas como atores relevantes para a produção do conhecimento e para a compreensão da dinâmica da vida social (VALE DE ALMEIDA, 1995). Sendo assim, nesse período, surgiram muitos trabalhos sobre mulheres, produzidos por mulheres. Os estudos de gênero surgem, na verdade, como um sinônimo de estudos sobre a mulher. A noção de gênero foi elaborada, nesse momento, para designar a elaboração cultural das diferenças biológicas entre homens e mulheres, numa primeira tentativa de combate ao determinismo biológico (VALE DE ALMEIDA, 1995). Nas décadas de 1950 e 1960, os estudos de gênero foram fortemente influenciados pelo funcionalismo parsoniano (PARSONS, 1955). Nessa perspectiva, as diferenças entre homens e mulheres foram localizadas no âmbito da família, sendo formuladas em termos de papéis sexuais diversos: às mulheres caberiam os papéis “expressivos”, enquanto aos homens caberiam os papéis “instrumentais”. Na obra de Parsons, a família é concebida como uma instituição fundamental para o funcionamento regular da sociedade e para a manutenção da ordem, destacando-se sua função socializadora. Nesse sentido, os arranjos de gênero teriam como função primordial a garantia da reprodução social (HEILBORN, 1999).

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Embora tenha desafiado visões essencialistas da biologia e da psicologia, o funcionalismo de Parsons ainda fundamenta o gênero nas diferenças sexuais entre homens e mulheres. Seu trabalho foi duramente criticado por pesquisadoras feministas, que o acusaram de legitimar, tacitamente, a subordinação feminina, além de restringir a problemática das mulheres à instituição familiar (HEILBORN, 1999). A influência da teoria crítica marxista sobre o feminismo permitiu que as discussões sobre gênero alcançassem outras esferas, para além do âmbito da família. Nesse sentido, Rubin (1975) desenvolveu o conceito de “sistemas de sexo- gênero”. Ela sustenta a noção de que o gênero consistiria na elaboração cultural das diferenças sexuais entre homens e mulheres. Nesse movimento, o dimorfismo sexual seria transformado numa relação de desigualdade e opressão, sendo marcado pelo processo de domesticação da mulher. Para Rubin, os sistemas de sexo-gênero estariam articulados, ainda, a outros sistemas sociais, tais como as hierarquias de idade e status, as estruturas de prestígio, a ordenação cosmológica, etc. Enquanto princípio classificatório, o gênero atuaria, portanto, nas diversas instâncias da sociedade. Assim, os estudos de gênero permitiriam a visualização de como as desigualdades entre os sexos originam desigualdades estruturais, que organizam uma dada sociedade (HEILBORN, 1999; VALE DE ALMEIDA, 1995). Nos estudos influenciados pelo marxismo, encontramos a noção de assimetria sexual, apontando-se a condição de subordinação e opressão das mulheres. Rosaldo e Lamphere (1979), por exemplo, afirmam que as mulheres ocupariam sempre as áreas socialmente menos privilegiadas, em todas as culturas. Para elas, esse fenômeno seria universal, podendo ser explicado por um fator fisiológico: a capacidade feminina de dar à luz. Isso levaria a uma associação das mulheres à esfera da natureza, enquanto os homens estariam ligados ao plano da cultura. Ortner (1979) também aponta esse esquema de classificação como explicação para a subordinação das mulheres: assim como a natureza é englobada pela cultura, as mulheres seriam englobadas pelos homens. Rosaldo (1979), por sua vez, aponta a associação das mulheres ao plano doméstico, e dos homens ao plano público, como explicação para a subordinação feminina. De todo modo, ainda que procurem escapar do determinismo biológico, essas autoras acabam reforçando e justificando a condição de inferioridade das mulheres, ao apontá-la como algo universal (GONÇALVES, 2000; MOORE, 1997).

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No trabalho de Ortner e Whitehead (1981), as noções de gênero e sexualidade são concebidas como símbolos culturais. Nesse sentido, elas seriam investidas de significados específicos pelas diferentes sociedades. Para serem compreendidas, elas deveriam ser relacionadas aos outros símbolos e significados que compõem um dado sistema cultural, bem como aos contextos social, político e econômico que estariam na base de sua formação. As autoras partem da noção de que homens e mulheres teriam perspectivas distintas, e procuram investigar o lugar do englobado (as mulheres) e do englobante (os homens) em termos de ideologia, prestígio e poder. As diferenças de gênero são explicadas, mais uma vez, a partir de oposições binárias metafóricas, tais como natureza/cultura, público/privado e auto- interesse/bem social. Além disso, o parentesco e o casamento são apontados como os meios privilegiados para a produção e reprodução da ideologia de gênero e das estruturas de prestígio que separam homens e mulheres (GONÇALVES, 2000; VALE DE ALMEIDA, 1995). Ortner e Whitehead (1981) abandonam, no entanto, a concepção do gênero como uma elaboração cultural de diferenças biológicas. Elas apontam não só o gênero, mas também a sexualidade, como construções culturais, e procuram investigar as fontes, os processos e as conseqüências da construção e organização dessas categorias. De modo semelhante, Collier e Yanagisako (1987) defendem que as pesquisas sobre gênero deveriam questionar se as diferenças entre homens e mulheres estariam realmente fundadas na natureza, ou se elas seriam socialmente construídas. Segundo Yanagisako (1988), é preciso antes explicar, e não pressupor, as práticas através das quais um sistema de diferenças é produzido, de tal modo que pareça invariável. Essas autoras não negam por completo a diferença biológica, mas questionam a universalidade das noções de “masculino” e “feminino”. Assim, ao invés de confirmarem a produção de significados e diferenças culturais a partir de uma mesma diferença biológica, elas se perguntam por que algumas características são culturalmente reconhecidas e diferencialmente avaliadas, e outras não (GONÇALVES, 2000; VALE DE ALMEIDA, 1995). Segundo Thomas Laqueur (1990), a distinção entre os sexos masculino e feminino deve ser encarada como uma invenção social devidamente datada, podendo ser localizada historicamente no final do século XVIII. Isso não significa que as diferenças ente os corpos de homens e mulheres não eram percebidas e

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simbolizadas antes disso: o que aconteceu nesse período foi o surgimento de uma nova concepção sobre os sexos, que passaram a ser vistos como opostos e incomensuráveis. Essas novas concepções sobre gênero e sexualidade articulam-se à emergência de uma nova ordem social, associada ao ideário do liberalismo político. Segundo Laqueur, é o gênero que inventa o sexo: a partir do momento em que os seres humanos passaram a ser declarados como iguais, tornou-se necessário encontrar na natureza o fundamento para a elaboração da desigualdade. A diferença entre homens e mulheres tornou-se, então, inscrita nos corpos, e o sexo passou a ser percebido como a base dessa distinção. Strathern (1979) aponta o sexo como uma fonte de simbolismo e procura escapar do caráter universalista presente em termos como “dominação masculina”, o dualismo natureza/cultura, e a noção de “papéis sexuais”. De acordo com ela, as diferenças entre homens e mulheres teriam valor metafórico: um amplo conjunto de valores culturais se organizaria a partir da imagética das diferenças sexuais. Nesse sentido, Strathern investiga a marcação da diferença simbólica entre os sexos para além do campo específico dos estudos de gênero, articulando esse tema a questões mais amplas sobre a sociedade como um todo. A noção de gênero não estaria restrita, portanto, ao comportamento de homens e mulheres. É nesse sentido que as mulheres podem se dissociar de sua condição natural de “fêmeas”, assim como os homens se vêem obrigados a provar que são, efetivamente, “machos”. Em suma, qualquer pessoa pode se comportar de forma masculina ou feminina, a despeito de qual seja o seu sexo biológico (GONÇALVES, 2000; VALE DE ALMEIDA, 1995). Como Yanagisako (1987) já havia destacado, o sexo costuma ser entendido como um elemento nuclear da noção de gênero na sociedade americana, mas isso não quer dizer que o mesmo possa ser observado em outros contextos culturais. De modo semelhante, Strathern (1988) afirma que a identidade sexual individual é um assunto típico da cultura do Ocidente, onde a preocupação com a performance sexual, seja ela hétero ou homossexual – bem como a necessidade de escolher entre uma dessas opções – faz com que o comportamento erótico se torne uma importante fonte de auto-definição. Overing (1986) também percebe a problemática do gênero como uma questão eminentemente ocidental: sua transposição para outras sociedades resultaria na busca de universais que só fazem sentido no Ocidente. O gênero seria, pois, uma criação cultural do Ocidente, um problema que,

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assim como os conceitos de natureza, cultura, etc., não seria passível de generalização (GONÇALVES, 2000; VALE DE ALMEIDA, 1995). Atualmente, os estudos de gênero da antropologia questionam se o “sexo”, enquanto categoria de análise, apresentaria realmente algum tipo de auto-evidência. Com a recente disseminação dos chamados Gay and Lesbian Studies e da queer theory, a relação entre o plano corpóreo e a identidade de gênero foi colocada em discussão. Nesse sentido, o sexo biológico passa a ser desconstruído e desnaturalizado (HEILBORN, 1999).

1.3.2 Estudos sobre masculinidade

Como vimos, os estudos de gênero surgiram impulsionados pelo movimento feminista e, assim, por muito tempo, tiveram as mulheres como foco de análise. Nesse sentido, os homens permaneceram excluídos desse campo de estudos, ou melhor, foram retratados na figura do dominador, sintetizando a própria coerção operada pelos fatores sociais. Embora a noção ocidental de pessoa e de ator social tenha sempre sido definida em termos masculinos, as Ciências Sociais demoraram a desenvolver uma análise sobre os homens pautada na noção de gênero. De certo modo, a masculinidade permanecia inquestionada, não-problematizada, mesmo no âmbito acadêmico. Essa situação começa a mudar nos anos 1980, quando a epidemia da AIDS transforma o tema da homossexualidade numa questão de debate público, e traz à tona a problematização da masculinidade (VALE DE ALMEIDA, 1995; OLIVEIRA, 2004). Um dos precursores da análise sócio-antropológica da masculinidade foi Robert Connell. No texto “A organização social da masculinidade” (1995), ele afirma que todas as sociedades apresentam registros culturais de gênero, mas nem todas possuem um conceito próprio de masculinidade. Nas sociedades ocidentais, por exemplo, a masculinidade só surge como uma categoria cultural relevante a partir do século XVIII, quando as diferenças entre homens e mulheres passam a ser localizadas no plano do corpo e da sexualidade (LAQUEUR, 1990). Contemporaneamente, a masculinidade estaria relacionada ao plano da identidade

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individual. Além disso, o conceito também é inerentemente relacional: ou seja, a masculinidade só existe em contraste com a feminilidade. Connell faz um mapeamento e aponta quatro tipos principais de abordagem sobre a masculinidade: essencialismo; positivismo; definições normativas; e enfoques semióticos. O essencialismo seria típico das ciências naturais e da psicologia, ligando-se a uma definição universalista sobre a masculinidade, assentada em fatores naturais ou biológicos. Uma falha comum desse tipo de abordagem seria a arbitrariedade com que a essência da masculinidade tende a ser definida. O positivismo, por sua vez, define a masculinidade, simplesmente, como aquilo que os homens efetivamente são, ou seja, aquilo que eles são empiricamente. Essa abordagem está presente na psicologia e no descritivismo objetivista de alguns trabalhos etnográficos. Porém, deve-se destacar que não existe nenhuma descrição que prescinda totalmente de um ponto de vista. Assim, o positivismo corre o risco de basear suas análises nas próprias tipificações que deveriam estar sob investigação. Para as definições normativas, a masculinidade corresponde àquilo que os homens deveriam ser, ou seja, consiste num modelo ideal, ou num conjunto de regras supra-individuais que constrangem e orientam o comportamento dos homens. Isso pode ser encontrado na teoria parsoniana sobre “papéis sexuais” (PARSONS, 1955). Essa perspectiva admite, no entanto, que diferentes homens podem se aproximar em diferentes graus do padrão normativo de masculinidade. Nesse sentido, poucos homens se adequariam realmente ao paradigma da masculinidade, desenvolvendo aquele tipo de rudeza e independência performada por figuras midiáticas, como John Wayne, Sylvester Stallone ou Vin Diesel. Para Connell, existe aí um paradoxo: afinal, o que há de normativo numa regra que não é cumprida por ninguém? Os enfoques semióticos seguem a lógica da lingüística estrutural e definem a masculinidade como o avesso da feminilidade, a partir de um sistema de diferenças simbólicas. Nessa oposição, a masculinidade é apontada como o termo inadvertido e lugar da autoridade simbólica. Na medida em que o falo é tomado como a propriedade significativa, a feminilidade é simbolicamente definida pela carência. Esse tipo de abordagem tem sido muito efetivo na análise cultural – com destaque para o feminismo e o pós-estruturalismo –, pois escapa da arbitrariedade do essencialismo e dos paradoxos das definições positivistas e normativas. Nessa

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perspectiva, também emerge a noção de que a masculinidade só pode ser entendida quando inserida num conjunto maior de relações de gênero. Connell defende que, ao invés de tentar definir a masculinidade de modo objetivo (como um fator natural, um comportamento mediano ou uma norma), é preciso destacar os processos e relações por meio dos quais o comportamento de homens e mulheres se torna condicionado por padrões de gênero. Para ele, a masculinidade consistiria, ao mesmo tempo, numa determinada posição assumida em meio às relações de gênero, nas práticas pelas quais homens e mulheres se comprometem com essa posição, e nas conseqüências dessas práticas sobre a experiência corporal, a personalidade e a cultura. Connell aponta o gênero como uma forma de ordenamento da prática social. Segundo ele, nos processos de gênero, a vida cotidiana se organiza em torno do chamado “cenário reprodutivo”, que é definido pelas estruturas corporais e pelos processos de reprodução humana. Esse conceito não se refere a um conjunto fixo de determinantes biológicos, mas sim, a um processo histórico que envolve o corpo. Para Connell, o gênero é uma prática social que se refere constantemente aos corpos e a tudo aquilo que os corpos fazem, mas não pode ser tomado como uma prática social reduzida ao corpo. Em suma, a estruturação genérica da prática não tem nada a ver com a reprodução no plano biológico. A ligação com o cenário reprodutivo é eminentemente social. Na visão de Connell, masculinidade e feminilidade consistem em configurações de práticas de gênero. Segundo ele, o gênero é uma estrutura internamente complexa, onde várias lógicas diferentes encontram-se superpostas. Nesse sentido, qualquer masculinidade pode se localizar, por exemplo, em várias estruturas de relação, as quais podem estar seguindo diferentes trajetórias históricas. Sendo assim, a masculinidade, tal como a feminilidade, está sempre associada a contradições internas e rupturas históricas. Para além de diferenças sexuais, masculinidade e feminilidade indicam que os homens diferem entre si, assim como as mulheres também diferem entre elas mesmas. Para dar conta dessa complexidade, Connell propõe um modelo de definição e análise sobre o gênero baseado em três dimensões fundamentais: a) relações de poder, b) relações de produção e c) relações de cathexis. Sendo assim, o principal eixo de poder no sistema contemporâneo de gênero seria a subordinação geral das

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mulheres e a dominação dos homens, resultando no regime do patriarcado. Quanto às relações de produção, Connell destaca as conseqüências econômicas da divisão sexual/genérica do trabalho, que resultam na acumulação de um considerável dividendo pelos homens, devido à divisão desigual dos produtos do trabalho social. No que diz respeito à cathexis, entendida como a esfera das emoções e sensações corporais, Connell destaca as práticas que dão forma e atualizam o desejo sexual como um importante aspecto da ordem de gênero. Nessa perspectiva, o gênero é definido como uma forma de estruturar a prática social em geral, estando, por isso, relacionado a diversas outras estruturas sociais, tais como raça e classe. Desse modo, para compreender o gênero, é preciso ir além do campo específico das relações de gênero. Da mesma forma, temas como classe, raça ou desigualdade global não podem ser compreendidos sem que a estrutura de gênero seja levada em consideração. A atuação combinada de gênero, raça e classe nos leva ao reconhecimento da existência de múltiplas masculinidades. Porém, para evitar que isso resulte numa tipologia simplista – havendo um modelo típico de masculinidade para negros, e outro para brancos, um para a classe média, e outro para as classes populares –, torna-se necessário considerar as relações de gênero estabelecidas entre os próprios homens. A ênfase nas relações também impede que os diversos tipos de masculinidade sejam tomados meramente como estilos de vida alternativos, selecionados por uma lógica puramente individual. Connell aponta quatro tipos de relação entre grupos de homens: hegemonia, subordinação, cumplicidade e marginalização. De acordo com ele, em qualquer época, há sempre um modelo de masculinidade culturalmente valorizado, ocupando uma posição de hegemonia. A masculinidade hegemônica pode ser definida como a configuração genérica de prática que serve à legitimação do patriarcado, garantindo a posição dominante dos homens e a subordinação das mulheres. Não se trata, porém, de um modelo fixo: certo tipo de masculinidade pode ocupar a posição hegemônica num dado momento, mas essa posição está sempre em disputa, afinal, a hegemonia é uma relação historicamente mutável. Além disso, não há uma correspondência necessária entre os portadores mais visíveis da masculinidade hegemônica e os indivíduos que ocupam as posições sociais de maior poder e prestígio.

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A noção de hegemonia remete à dominação cultural na sociedade como um todo. Porém, há também relações de gênero específicas de dominação e subordinação entre grupos de homens. Na sociedade ocidental contemporânea, deve-se destacar a dominação dos homens heterossexuais e a subordinação dos homens homossexuais. Mais do que um estigma, essa condição de subordinação está ligada a um amplo conjunto de práticas, que resultam em formas efetivas de exclusão, violência, discriminação e opressão. As masculinidades homossexuais situam-se na escala mais baixa da hierarquia de gênero entre os homens. Na ideologia patriarcal, a homossexualidade se equipara à feminilidade, e pode ser apontada como a síntese de tudo aquilo que se encontra simbolicamente excluído da masculinidade hegemônica. Como vimos, a quantidade de homens que realizam integralmente os padrões hegemônicos de masculinidade é bastante reduzida. Assim, a relação de cumplicidade diz respeito às formas de masculinidade que permitem a um grande número de homens beneficiarem-se das vantagens propiciadas pelo regime patriarcal, sem, no entanto, terem de enfrentar os riscos e tensões associados à masculinidade hegemônica. Por fim, enquanto a hegemonia, a subordinação e a cumplicidade são relações internas à ordem de gênero, a marginalização é definida a partir da inter-relação do gênero com outras estruturas. As relações de raça, por exemplo, podem integrar a dinâmica entre masculinidades: num contexto de supremacia branca, as masculinidades negras representam o “outro” para a formação contrastiva da masculinidade hegemônica. Em suma, a marginalização costuma servir à legitimação do projeto de masculinidade do grupo dominante, mas também pode se desenvolver entre masculinidades subordinadas. Por fim, Connell identifica algumas tendências de crise no sistema de gênero das sociedades ocidentais, que precisam ser levadas em consideração para a compreensão das masculinidades contemporâneas. Para ele, as maiores evidências dessa situação podem ser identificadas no âmbito das relações de poder, onde se observa um gradativo declínio do poder patriarcal, em virtude das conquistas políticas e sociais do feminismo e do crescente reconhecimento de outros grupos historicamente subordinados, tais como gays, lésbicas, travestis, etc. Com a estabilização de novas formas de sexualidade e afetividade, ocorrem importantes mudanças também no âmbito das relações de cathexis. Já no plano das relações de

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produção, Connell destaca a maior participação das mulheres no mercado de trabalho desde o pós-guerra, muito embora os melhores cargos e salários continuem sendo destinados aos homens. Vale de Almeida também desenvolve uma importante abordagem antropológica sobre o tema da masculinidade no livro Senhores de Si (1995). Baseando-se em Connell (1987), ele afirma que a masculinidade é internamente constituída por assimetrias e hierarquias, com a formação de modelos hegemônicos e variantes subordinadas. Diante da diversidade de experiências e identidades masculinas, o autor procura compreender como a masculinidade hegemônica se reproduz enquanto modelo cultural ideal. Em sua pesquisa, Vale de Almeida investiga a formação de masculinidades entre os homens de Pardais, uma aldeia portuguesa situada na região do Alentejo. Nessa região, a maioria dos homens trabalha na extração de mármores, atividade que se encontra na base da economia local. De modo geral, os homens começam a se dedicar a essa atividade por volta dos 13 anos de idade, quando atingem a maturidade sexual e apresentam um corpo considerado forte o suficiente para o trabalho nas pedreiras. Eles começam como auxiliares e tornam-se cabouqueiros à altura do casamento. Com o tempo, a experiência acumulada pode levá-los a subir na hierarquia de trabalho, ocupando a função de encarregado. Mas a ascensão a esse cargo também está ligada a fatores exógenos ao âmbito do trabalho, tais como amizade, respeito, conduta moral, comportamento nas situações de sociabilidade, ou seja, elementos comuns à definição local de masculinidade. Segundo Vale de Almeida, nos momentos de sociabilidade, o trabalho era, ao lado da sexualidade, um dos temas mais recorrentes nas conversas entre os homens pesquisados por ele, constituindo-se como uma importante fonte de identidade. O “trabalho” é definido, localmente, pelo esforço corporal e pela ausência de propriedade dos meios de produção, elementos que também definem o pertencimento ao grupo social dos “pobres”, e integram, ainda, a idéia de “homem” comumente expressa nas conversas cotidianas. O corpo exposto e atuante do trabalhador constitui um dos aspectos da ideologia de gênero, opondo-se ao corpo oculto e misterioso das mulheres. A noção de trabalho inclui, de modo ambíguo, elementos como sacrifício e risco, que, apesar de indesejados, também aparecem

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como fonte de prestígio. Assim, em certas situações, ser trabalhador significa pobreza e submissão, mas em outras, significa respeito e masculinidade. A associação entre masculinidade e poder torna-se problemática quando a dinâmica entre as diversas masculinidades não é observada. Em Pardais, por exemplo, Vale de Almeida identifica divergências entre os modelos de masculinidade ligados a diferentes condições sócio-econômicas. Assim, enquanto os cabouqueiros valorizam o esforço corporal, associado ao trabalho, como capital de masculinidade, os patrões lançam mão do controle de recursos como símbolo de sua ascendência social. Além disso, os cabouqueiros constroem sua masculinidade a partir de narrativas de predação sexual, enquanto os homens cultos valorizam habilidades sedutoras e românticas. Contudo, ainda que sejam limitadas por condições estruturais, as masculinidades são discursivamente negociadas em situações específicas: assim, ao mesmo tempo em que os mais ricos operam uma “feminização simbólica” sobre os mais pobres, apontando sua condição de dependência e falta de autonomia, os cabouqueiros também procuram feminizar seus patrões, acusando-os de falta de virilidade e força física. Por ser internamente hierarquizador, o modelo hegemônico de masculinidade faz com que a ameaça da feminilidade e da homossexualidade esteja presente nas disputas entre os homens. Desse modo, nas situações de competição, os outros devem ser feminilizados, mas nas situações de solidariedade, sua masculinidade deve ser ressaltada e elogiada. Nesse conjunto de valores, a homossexualidade é equiparada à feminilidade, sendo marcada por uma série de sentidos estigmatizantes, tais como passividade, submissão e penetração das fronteiras do corpo. O dinheiro é tido como o símbolo do produto do trabalho, e está ligado à noção de independência. Nesse sentido, ele é exibido e ostentado em situações de sociabilidade, quando se deve convidar os amigos e arcar com suas despesas. Em Pardais, o espaço de lazer, por excelência, é o café, que pode ser considerado uma espécie de “casa dos homens”. Para um homem, o café tem mesmo um caráter obrigatório, na medida em que a domesticidade e a solidão são interpretadas como sinais de anti-sociabilidade, feminilidade e virilidade diminuída. No café, os homens devem fazer determinadas coisas, como beber, fumar, partilhar, conversar, competir, brincar e discutir. Essas atividades têm também um caráter coercitivo, e devem ser

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realizadas apenas na companhia de iguais sociais. A comensalidade desenvolvida nesse espaço exprime um ideal político de igualdade fundamental entre os homens. Nas interações mantidas no café, os homens avaliam os comportamentos uns dos outros, apresentados nos diversos contextos: no trabalho, na vida doméstica, e também nos momentos de lazer e sociabilidade. Essas avaliações se baseiam no modelo ideal de masculinidade, e são feitas a partir de atos vistos e narrados. Assim, o comportamento dos homens tende a performar as prescrições estabelecidas pelo padrão cultural local, reivindicando a posse dos atributos que garantem seu pertencimento ao modelo hegemônico de masculinidade. Porém, esse processo não está livre de contradições, que, ao serem apresentadas à discussão pública, podem gerar transformações no paradigma cultural. É assim que, em circunstâncias históricas ou contextuais específicas, alguns elementos típicos de masculinidades subordinadas ganham destaque. A construção de uma cultura da masculinidade é feita, em grande parte, a partir de conversas sobre sexo. Em Pardais, predomina a idéia de que os homens estariam “naturalmente” carregados de pulsão sexual, cabendo às mulheres legítimas controlá-los, enquanto as outras seriam “insaciáveis”. Vale de Almeida identifica, portanto, uma visão ambígua sobre as mulheres, que são representadas, ao mesmo tempo, como “mães” e “prostitutas”. Entre os homens de Pardais, o dom da palavra, ou seja, a capacidade de responder, jogar e brincar com as palavras, constitui um atributo fundamental da noção de pessoa, ou mais precisamente, da noção de pessoa masculina – na verdade, segundo o modelo hegemônico, a noção de pessoa é definida em termos de masculinidade. Em contraste com as conversas do café, onde as mulheres são tratadas como objeto, nas décimas – forma poética local, cultivada majoritariamente por homens – o sentimento amoroso e outros tipos de emoções, concebidas como tipicamente femininas (tais como perda, medo, saudade e abandono) são apropriadas pelos homens. Na cultura ocidental, as emoções e sua expressão são concebidas como fenômenos femininos, constituindo-se, negativamente, como o avesso da racionalidade masculina. Porém, assim como Abu-Lughod e Lutz (1990), Vale de Almeida concebe as emoções como práticas discursivas e, nesse sentido, destaca o uso retórico da poesia como uma forma de manifestação daquilo que o código social

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não permite que seja expresso na normalidade da vida cotidiana. Além disso, por serem recitadas entre homens pertencentes ao mesmo estrato social, os sentimentos performados nas décimas podem ser expressos sem serem interpretados como sinais de fraqueza, e assim, deixam de representar uma ameaça à construção de identidades masculinas. Na poesia contida nas décimas, são recorrentes as histórias que invocam a relação especial estabelecida entre mãe e filho. De modo geral, o laço mãe-filha continua existindo após o casamento da filha, constituindo-se como uma relação de apoio mútuo. Já o laço mãe-filho é mais complexo, pois o homem se vê obrigado a separar-se do mundo feminino, doméstico e maternal, no fim de sua infância, o que resulta em conflitos que o levam a criar uma imagem mistificada da mãe como mulher ideal. As poesias masculinas exprimem bem essa situação, abordando a tristeza dos homens pela perda do amor materno, bem como a impossibilidade de substituição dessa forma pura de sentimento, inclusive pelo amor conjugal. A expressão de sentimentos amorosos tem seu tempo no ciclo de vida de homens e mulheres: concentra-se na época do namoro e finaliza a partir do casamento. Esses sentimentos continuam sendo nutridos pelas mulheres através do consumo de novelas e da troca de informações sobre a vida amorosa da aldeia. Para os homens, no entanto, o assunto é “feminino” demais para ser comentado abertamente, permanecendo restrito ao âmbito da poesia. Nesse caso, prevalece a representação romântica do amor, em oposição ao estado de casado. Em Pardais, casar e constituir família são elementos centrais para a definição do estatuto de pessoa responsável. Contudo, a condição de casado é vista, pelos homens, com a mesma ambigüidade conferida à noção de trabalho: o casamento é fonte de honra e prestígio, mas representa um sacrifício da liberdade adolescente e o risco de desonra, em virtude da possibilidade de adultério feminino. Nesse sentido, podem ser encontradas tanto manifestações jocosas, irônicas e desiludidas sobre o casamento, como representações líricas do amor como um compromisso para a vida toda. Para finalizar, podemos citar o trabalho de Pedro Paulo de Oliveira (2004), que aborda a masculinidade como uma construção social e histórica. No livro A Construção Social da Masculinidade, ele destaca que a noção de masculinidade surgiu apenas no século XVIII, momento em que a diferenciação entre os sexos

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emergiu como uma característica fundamental da cultura ocidental (LAQUEUR, 1990). Baseando-se na obra de Bourdieu (1999), o autor define a masculinidade como um espaço simbólico de sentido estruturante. Assim, ela teria o poder de modelar as atitudes, comportamentos e emoções dos indivíduos. Nos termos de Oliveira, podemos dizer que a masculinidade tem “força de arregimentação social”, orientando a formulação de critérios para a avaliação moral de comportamentos. Assim, para ser socialmente reconhecido como “homem”, é preciso seguir o modelo de masculinidade compartilhado coletivamente. Oliveira destaca, ainda, que a masculinidade se encontra relacionada a outros lugares simbólicos estruturantes, influenciando-os e sendo influenciada por eles. O autor procura traçar a sociogênese da masculinidade durante a Idade Moderna, apontando as instituições que teriam sido fundamentais para o surgimento de suas características contemporâneas. Nesse sentido, ele destaca a formação dos Estados Nacionais, com seus exércitos, e a emergência de um modelo de masculinidade associado à figura do soldado, incluindo elementos como força física, disciplina e coragem. Esse modelo também está presente no contexto dos esportes, que mimetizam os valores do militarismo. A Idade Moderna também corresponde ao período de ascensão social da burguesia, com a emergência das figuras do empresário capitalista e do trabalhador: a esses atores sociais está associado outro modelo de masculinidade, pautado nas noções de racionalidade, empreendedorismo e responsabilidade. Segundo Oliveira, a masculinidade pode ser entendida como uma espécie de mitologia, na medida em que a sociedade moderna procurou se projetar sobre os mesmos elementos que definem, positivamente, essa categoria: razão, força, potência, etc. Deve-se destacar que o surgimento do ideal moderno de masculinidade se dá em diálogo com o padrão medieval sustentado pela nobreza, num processo que envolve mudanças, mas também, continuidades. Além disso, elementos como disciplina e coragem podem estar presentes em diferentes ideais masculinos, mas recebem qualificações distintas ao serem inseridos em cada uma dessas configurações. Outras instituições importantes para a formação do ideal moderno de masculinidade foram a Igreja, a Ciência e o Direito. A Igreja forneceu uma base metafísica para a separação entre os sexos, com a supremacia dos homens sobre

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as mulheres. Além disso, institui a heterossexualidade como norma de comportamento, condenando a homossexualidade como uma forma de pecado. A Igreja consagrou, ainda, o casamento e a família como os âmbitos legítimos para a vivência do amor e do sexo entre homens e mulheres. A Ciência, por sua vez, contribui com a produção de discursos médicos, pautados no ideal mens sana in corpore sano, que desqualificavam e estigmatizavam diversos grupos – como loucos, judeus, negros, homossexuais e, inclusive, as mulheres – por não se enquadrarem no ideal burguês de masculinidade. Vistos como inferiores e deficientes, eles foram tomados como os “outros” em oposição aos quais o modelo hegemônico de masculinidade se constitui. Por fim, o Direito foi responsável por legitimar a hegemonia do paradigma moderno de masculinidade, ao ratificar os preconceitos sociais sob a forma de leis que organizam a vida coletiva. Oliveira afirma que esse modelo de masculinidade começa a dar sinais de crise quando a modernidade entra em sua fase tardia. Esse período é marcado por grandes transformações, diluindo as instituições sociais que haviam servido como base para a construção do ideal moderno de masculinidade. Nesse sentido, ele destaca as incertezas e dificuldades enfrentadas por certos grupos de homens, que se sentem confusos diante da diversidade e indefinição dos códigos culturais de conduta. Esses homens, que pertencem principalmente às classes média e alta da sociedade, mostram-se insatisfeitos com o paradigma moderno de masculinidade, sentindo-se incapazes de seguir seus padrões de comportamento. No entanto, Oliveira critica o que ele chama de abordagens “vitimárias”, típicas da psicologia, que destacam as experiências de sofrimento dos homens diante das dificuldades impostas pelo exercício da masculinidade. Ele afirma que, apesar do atual cenário de mudanças, a masculinidade continua sendo um símbolo de poder e prestígio social, e assim, a “dominação masculina” continua sendo uma realidade. O sofrimento masculino deve ser encarado, então, como o ônus da posição superior ocupada pelos homens na hierarquia social. Além disso, Oliveira afirma que as transformações e sofrimentos ligados ao exercício da masculinidade não afetam da mesma forma os diferentes grupos sociais. Nas camadas médias e altas, esses fatores são sentidos com mais força e, por isso, ganham relevância nas abordagens da mídia. Porém, nas camadas

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populares, continuam vigorando formas mais tradicionais de ser “homem”, próximas ao paradigma moderno de masculinidade, o que pode ser interpretado como uma forma de reação à falta de poder enfrentada por esses indivíduos em outros setores da vida social.

1.4 Metodologia

1.4.1 Entrevistas qualitativas com torcedores

Em minha pesquisa, abordo a relação entre masculinidade e emoção no contexto do futebol, através dos discursos emotivos presentes nas memórias de torcedores. Para apreender esses discursos, optei pela realização de entrevistas qualitativas, semi-estruturadas e em profundidade, com torcedores dos principais clubes do Rio de Janeiro: Botafogo, Flamengo, Fluminense e Vasco. Diante da amplitude que o futebol alcança como fenômeno cultural no Brasil, esse recorte se mostrou significativo, delimitando o universo da pesquisa ao cenário do futebol carioca. A escolha desses clubes levou em consideração sua condição como times “grandes” ou “tradicionais”, o que indica sua participação na elite do futebol brasileiro e sua relevância para a formação de identidades de grupo que tendem a se reproduzir entre diferentes gerações de torcedores. Esses clubes possuem algumas das maiores torcidas do país, além de um grande número de títulos, foram protagonistas em momentos importantes da história do esporte no Brasil e apresentam grande peso político, econômico e simbólico no contexto do futebol nacional e, até mesmo, internacional. Pelo fato de serem “grandes”, o “engajamento emocional” de seus torcedores tende a ser mais intenso, dada a sua participação em jogos e competições de destaque e sua inserção em cadeias de rivalidade ativas com outras equipes. Essas rivalidades mobilizam as emoções de seus torcedores cotidianamente, produzindo alegrias, tristezas, frustrações, etc.

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A caracterização desses clubes como “tradicionais” aponta ainda para o cultivo de memórias comuns entre diferentes gerações de torcedores. Ao se apresentarem como tradicionais, esses clubes reivindicam uma condição de prestígio e grandeza assentada num passado de glórias. Como afirma Damo (2002), o compartilhamento de memórias, que reconstituem esse passado de modo sempre parcial e idealizado, é um dos instrumentos fundamentais para a constituição da “identidade clubística”. Os torcedores partilham lembranças dos grandes títulos, dos gols mais marcantes, dos grandes ídolos, das derrotas mais dolorosas e, assim, constroem um patrimônio coletivo de memórias. O aprendizado dessas memórias – ou seja, do passado do clube – desde a infância consiste numa etapa fundamental do processo de socialização de novos torcedores. Conhecer a história do “clube do coração” tem um caráter quase obrigatório para a formação do torcedor e para o seu reconhecimento na avaliação daqueles que participam desse meio. Essas memórias coletivas aos poucos se transformam também num elemento da relação afetiva mantida por cada torcedor com seu “clube do coração”. Além disso, cada torcedor passa a vivenciar novos “momentos marcantes” ao longo de sua trajetória, os quais podem ser incorporados à memória coletiva, mas sempre recebem a marca das impressões pessoais em seu registro subjetivo. Portanto, essas memórias futebolísticas têm um caráter coletivo, mas apresentam também uma dimensão individual e subjetiva. Na relação com seu “clube do coração”, os homens vivenciam experiências emotivas marcantes, que ficam registradas sob a forma de memórias cuja importância pode mesmo transcender o contexto do futebol, remontando a importantes laços familiares e de amizade, por exemplo. Assim como a história de um clube pode ser construída através de uma narrativa parcial e coerente, os torcedores também costumam elaborar suas trajetórias pessoais a partir das memórias relativas aos momentos mais marcantes vivenciados por eles na relação com o clube pelo qual torcem. São essas memórias, as quais podemos considerar eminentemente emotivas, que buscamos como uma via de acesso para a investigação das experiências emocionais vivenciadas pelos homens no contexto do futebol. Para captar essas memórias, optei pela realização de entrevistas qualitativas, semi-estruturadas e em profundidade, como foi dito acima. Esse método é

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caracterizado pela utilização de um roteiro flexível de perguntas, que contém apenas as questões fundamentais da pesquisa, como uma forma de orientar a interação do entrevistador com o entrevistado. A ordem das perguntas e sua formulação podem sofrer alterações, assim como também podem surgir novas perguntas ao longo das entrevistas. Uma das grandes vantagens da utilização dessa técnica é a possibilidade de desenvolver a pesquisa sob a forma de uma conversa informal com o entrevistado, o que se mostrou muito relevante numa pesquisa com torcedores de futebol, num contexto fortemente marcado pela jocosidade. Em minha pesquisa, procurei fazer com que os entrevistados discorressem em detalhes sobre as memórias mais marcantes vividas por eles no âmbito do futebol, elaborando suas trajetórias como torcedores. Não se pode negar o caráter contextual dessas memórias, na medida em que elas foram elaboradas no contexto reflexivo das entrevistas. De certo modo, toda entrevista se baseia num exercício de memória, pois o entrevistado é convidado a reconstituir e narrar eventos ocorridos num momento anterior ao da pesquisa, organizando os acontecimentos de modo significativo, através de uma narrativa que lhes confere um encadeamento coerente. No entanto, isso não torna mais “artificiais” as memórias colhidas por meio de entrevistas, na medida em que o caráter contextual está sempre presente em todo processo de reconstituição de lembranças. Para os propósitos dessa pesquisa, foi realizado um total de 10 entrevistas, respeitando-se o princípio metodológico da saturação. As entrevistas foram realizadas entre os meses de junho e novembro de 2013. As identidades dos entrevistados foram protegidas, com a utilização de nomes fictícios. Quanto à distribuição dos pesquisados pelo clube de sua preferência, foram entrevistados 3 torcedores do Flamengo, 3 torcedores do Fluminense, 2 torcedores do Botafogo e 2 torcedores do Vasco. Não houve qualquer preocupação em se alcançar uma distribuição de entrevistados por clube que fosse proporcional ao tamanho real de suas torcidas – daí o maior número de tricolores do que o de vascaínos entre os entrevistados, por exemplo. Os entrevistados foram selecionados a partir de indicações de terceiros, que incluíram inicialmente pessoas pertencentes à minha rede de contatos e, em seguida, indicações feitas pelos próprios entrevistados. O perfil desses entrevistados foi composto por homens a partir dos 18 anos de idade, que gostassem de futebol e

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torcessem por algum dos quatro clubes “grandes” do Rio de Janeiro – ou seja, que se mostrassem interessados pelo esporte em seu cotidiano e considerassem o envolvimento afetivo com seus clubes como algo relevante. Nesse processo de seleção, não foram levados em consideração aspectos como raça ou classe. A participação ou não em torcidas organizadas também não foi considerada como um fator fundamental para a inclusão ou exclusão dos torcedores no universo da pesquisa. Entre meus entrevistados, apenas uma pessoa declarou ter sido integrante de uma torcida organizada durante o período da adolescência, minimizando a importância dessa experiência no relato de suas memórias. Quanto ao perfil sócio-econômico dos entrevistados, podemos considerá-los majoritariamente como indivíduos de classe média, localizados entre as classes C e B, de acordo com os critérios de classificação do IBGE (renda familiar de R$ 9.700, no máximo). Dentre eles, encontramos diferentes ocupações: estudante, professor universitário, funcionário público, auxiliar administrativo, etc. A maioria possui formação escolar até o nível superior. Os torcedores selecionados para as entrevistas residiam ainda em diferentes bairros e regiões da cidade: Bangu, Barra da Tijuca, Méier, Engenho Novo, Vila Isabel, São Cristóvão, Jardim Botânico e Copacabana. Quanto às características etárias do grupo pesquisado, podemos destacar que metade dos entrevistados encontra-se numa faixa de idade entre 24 e 28 anos, e a outra metade encontra-se numa faixa compreendida entre 49 e 63 anos. Esse fator se mostrou relevante para a seleção dos entrevistados, tendo-se buscado certo equilíbrio entre esses dois grupos etários. A busca dessa proporcionalidade teve como objetivo abarcar diferentes gerações de torcedores, compreendendo experiências vivenciadas em diferentes momentos do futebol brasileiro e da história de cada clube, além de tornar possível o contato com diferentes experiências de socialização entre os torcedores mais jovens e os mais velhos. A pesquisa sobre emoções masculinas no contexto do futebol colocou-me em contato com um objeto familiar. Afinal, além de pertencer ao sexo/gênero masculino, gosto de futebol e costumo acompanhar o esporte em meu cotidiano. Mais que isso, torço por um clube específico, o Flamengo, e mantenho com ele uma importante ligação afetiva e de identidade. Minha experiência pessoal como torcedor deve ser tomada, portanto, como um dos motivos que me levaram à constituição do tema

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dessa pesquisa, que consistiu num exercício de observação do familiar, nos termos de Gilberto Velho (2008). As emoções proporcionadas pelo futebol apresentam-se, de fato, como o motivo principal de meu interesse pelo esporte, como ocorre a qualquer torcedor. No entanto, ao mesmo tempo, mantenho com o futebol uma atitude que pode ser qualificada como reflexiva e ambivalente. Em outras palavras, sempre me causaram certo estranhamento e curiosidade – como se faz necessário à construção do conhecimento antropológico – algumas contradições inerentes a esse esporte, como a relação tantas vezes discutida entre futebol e identidade nacional, a relação entre futebol e raça, ou ainda, a relação entre futebol e masculinidade, abordada nessa pesquisa. A investigação de uma questão familiar pode trazer algumas dificuldades e desvantagens para a construção do conhecimento científico, pois o pesquisador enfrenta o risco da hiper-imersão, ou seja, a possibilidade de que o envolvimento pessoal com seu objeto de pesquisa venha a comprometer a objetividade necessária para o desenvolvimento de seu estudo. Esse risco parece ainda mais acentuado no contexto do futebol, onde todas as ações seriam presumivelmente marcadas pela parcialidade e emotividade. Por outro lado, essa familiaridade também pode se constituir numa vantagem, contribuindo mesmo para o desenvolvimento da pesquisa. Conhecendo o objeto, o pesquisador pode estabelecer premissas e identificar questões relevantes para seu estudo, podendo ainda elaborar com mais facilidade as perguntas que serão realizadas aos seus entrevistados. Na presente pesquisa, minha experiência pessoal como torcedor serviu como base para a elaboração das questões iniciais do roteiro de perguntas utilizado nas entrevistas. Além disso, pude comparar as trajetórias de meus entrevistados com a minha trajetória pessoal, como uma forma de identificar recorrências ou novas questões que surgiam em seus relatos. Na interação com os entrevistados, estabeleceu-se o rapport necessário ao bom desenvolvimento da pesquisa. Em todos os casos, os entrevistados me identificaram, ao mesmo tempo, como pesquisador e como torcedor, dirigindo-se a mim de modo informal e jocoso em diversos momentos. No início das entrevistas, eles procuravam saber por qual time eu torcia, como se quisessem saber se me tinham como um aliado ou como um adversário, o que certamente influenciava que

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tipos de memórias eram relatados por eles, bem como o modo (provocativo ou “diplomático”) de contá-las. De minha parte, eu procurava deixá-los “à vontade” para falar mal do Flamengo, quando os entrevistados torciam por outros clubes, e procurava não interferir excessivamente em seus relatos, contando minhas próprias experiências, quando os entrevistados eram flamenguistas. Além disso, procurei fazer com que os entrevistados me fornecessem o maior nível de detalhes em suas memórias, sempre que possível, pois ao me reconhecerem como um torcedor, eles deixavam de desenvolver alguns de seus relatos, por terem a expectativa de que eu soubesse exatamente o evento (gol, título, etc.) ao qual eles estavam se referindo. De fato, devido ao seu caráter coletivo, muitas vezes esses eventos também faziam parte das minhas memórias, mas a mim interessava que eles narrassem suas impressões pessoais sobre esses acontecimentos. Abaixo, seguem as perguntas que compuseram o roteiro utilizado nas entrevistas. Essas perguntas abarcaram o processo de escolha do “clube do coração”, as lembranças da primeira ida ao estádio de futebol, as experiências marcantes de títulos e gols “inesquecíveis”, o comportamento dos torcedores durante os jogos, bem como discursos sobre a importância e o tipo de relação mantida com o clube.

Roteiro de perguntas: 1.Qual o seu time? Por quê? Desde quando? 2.Você recebeu a influência de alguém para torcer por esse time? 3.Você se lembra da primeira vez em que foi a um estádio de futebol? Conte como foi? 4.Você costuma acompanhar os jogos do seu time? Costuma ir aos estádios? 5.Como você costuma se comportar durante os jogos? Percebe alguma alteração em seu comportamento? 6.Você se considera um torcedor fanático? 7.O que você sente pelo seu time? 8.Você já chorou alguma vez pelo seu time, ou por algo ligado ao futebol? 9.Qual a sua memória mais marcante como torcedor? Você tem uma boa memória para futebol? E para outras coisas?

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Na seqüência, faço um breve resumo bibliográfico sobre a relação entre memória e identidade, baseando-me nas obras de Maurice Halbwachs e Michael Pollak, tendo em vista a importância dessa questão para a discussão central desenvolvida nessa pesquisa.

1.4.2 Memória e identidade

A memória surge como objeto de estudo das Ciências Sociais através da obra de Maurice Halbwachs. Inspirado na sociologia durkheimiana, este autor procura apontar a memória como uma construção social, contrariando a noção pela qual ela era concebida como uma faculdade que só poderia existir na medida em que estivesse ligada a um corpo ou a um cérebro individual. Ou seja, num movimento comum à Sociologia, Halbwachs procura apontar a dimensão social da memória, desconstruindo sua associação aos planos do indivíduo e da natureza. Em 1925, ele publica o livro Os quadros sociais da memória, que pode ser considerado um primeiro esforço de tratamento da memória como um produto das relações sociais. Mas sua obra mais conhecida e mais importante sobre o tema só seria publicada postumamente, em 1950, intitulando-se A memória coletiva (2011). Nessa obra, Halbwachs afirma que as memórias de um indivíduo são produzidas de acordo com a sua participação em diferentes grupos sociais, sendo constituídas e acionadas a partir da sua interação com os outros. De acordo com ele, as lembranças podem se organizar de duas maneiras: agrupando-se em torno de uma determinada pessoa, ou distribuindo-se dentro de uma dada sociedade. Desse modo, existiriam dois tipos de memórias: individuais e coletivas. Segundo Halbwachs, a memória individual – mais curta, porém mais densa – está contida na memória coletiva – mais ampla e mais superficial –, a primeira podendo ser entendida como um ponto de vista particular construído a partir da segunda. Enquanto a memória coletiva tende a ser mais estável, a memória individual é cambiante, mudando de acordo com o lugar ocupado pelos indivíduos nos diferentes grupos dos quais eles participam. Apesar do caráter coletivo da memória,

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Halbwachs afirma que é o indivíduo que lembra, reconhecendo a importância da “intuição sensível” nesse processo. Nesse sentido, o autor considera “impossível que duas pessoas que presenciaram um mesmo fato o reproduzam com traços idênticos quando o descrevem algum tempo depois” (p. 96). No entanto, o funcionamento da memória individual não é possível sem a utilização de instrumentos tomados de empréstimo do meio social, tais como as palavras e as idéias. Halbwachs destaca, ainda, que o espaço e o tempo são socialmente construídos, influenciando o processo de constituição e reprodução das memórias. Assim, as formas de medição e organização do tempo, a separação entre presente, passado e futuro, o estabelecimento de datas comemorativas, tudo isso é definido coletivamente, assim como os lugares que entram na composição dos quadros sociais que organizam as memórias. Em suma, Halbwachs defende que a memória é coletiva, e assim, é através das representações coletivas que os indivíduos percebem o passado. Ainda sobre a dimensão temporal, o autor aponta uma importante relação entre o passado e o presente no processo de constituição da memória:

A lembrança é em larga medida uma reconstrução do passado com a ajuda de dados emprestados do presente e, além disso, preparada por outras reconstruções feitas em épocas anteriores e de onde a imagem de outrora manifestou-se já bem alterada (p. 75-76).

O caráter coletivo da memória pode ser visualizado, ainda, no fato de que o indivíduo sempre recorre aos testemunhos de outros para complementar o que sabe, ou melhor, o que lembra sobre um determinado evento. Assim, a formação de lembranças é sempre um processo coletivo, mesmo no caso de eventos em que somente um indivíduo esteve envolvido. Na verdade, como destaca Halbwachs, “jamais estamos sós”, pois para que a sociedade faça sentir sua influência, não é preciso que outros estejam fisicamente presentes e materialmente distintos de nós. Deve-se destacar, no entanto, que para que possa haver a complementação entre a memória de um indivíduo e a memória de outros, é preciso que haja algum nível de concordância entre suas lembranças, ou seja, alguns pontos de contato entre elas, que permitam que a lembrança recordada por eles seja reconstituída sobre uma base comum.

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Em sua obra, Halbwachs procura diferenciar as noções de memória coletiva e memória histórica, ou simplesmente, as noções de memória e História. Para ele, a História consiste na compilação dos fatos que ocuparam maior lugar na memória dos homens. Ela deve ser entendida não como uma sucessão cronológica de eventos e datas, mas como tudo aquilo que faz com que um período se distinga dos demais. A memória coletiva, por sua vez, deve ser entendida como uma corrente de pensamento contínuo, que retém do passado aquilo que ainda está vivo ou é capaz de viver na consciência de um grupo. Assim, a memória não se apóia na História aprendida, mas na história vivida. Dito de outro modo, a memória é sempre vivida, enquanto a História é impessoal. Segundo Halbwachs, a História começa justamente onde a memória/tradição acaba, ou seja, quando já não há mais um grupo que dê suporte à lembrança de um passado, tornando necessário o seu registro escrito por meio de uma narrativa artificial. Na concepção de Halbwachs, a História se dedica a examinar os grupos de modo objetivo, abrangendo longos períodos em suas análises. Já a memória coletiva consiste numa visão interna do próprio grupo, abarcando um período equivalente à duração média de uma vida humana. Outra diferença fundamental entre memória e História se encontra no fato de que, enquanto a História é uma só – na visão de Halbwachs, que trata da História positivista do século XIX – e almeja à universalidade, as memórias coletivas são múltiplas: podem existir muitas delas, tantas quantos forem os grupos sociais. O autor destaca, ainda, que a narrativa da História é construída a partir das diferenças entre os períodos, enquanto a memória é constituída a partir das semelhanças entre eles. Como afirma Halbwachs, a memória coletiva é como um “painel de semelhanças”, contribuindo para o sentimento de identidade, coesão e continuidade de um grupo:

No momento em que examina seu passado, o grupo nota que continua o mesmo e toma consciência de sua identidade através do tempo. É o tempo decorrido, durante o qual nada o modificou profundamente, que ocupa o maior espaço em sua memória (p. 108).

Segundo Halbwachs, a memória coletiva é produzida sempre dentro de um contexto espacial. Para ele, não existe nenhum grupo, ou qualquer tipo de atividade coletiva que não mantenha algum tipo de relação com o espaço. Quando inseridos numa porção do espaço, os grupos tendem a moldá-lo de acordo com seus valores,

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ao mesmo tempo em que procuram adaptar sua imagem a ele. Nesse sentido, cada sociedade molda o espaço à sua maneira, de modo a construir um contexto fixo no qual possam depositar suas lembranças e sua identidade. Na visão de Halbwachs, os objetos materiais com os quais entramos em contato diariamente mudam pouco, oferecendo-nos uma imagem de permanência e estabilidade. Em suma, a fixidez do espaço assegura a construção da memória e da identidade de um grupo. Outra abordagem fundamental sobre a relação entre memória e identidade é desenvolvida pelo historiador Michael Pollak. No texto “Memória e identidade social” (1992), o autor aborda a relação entre esses termos a partir do campo emergente de pesquisas sobre histórias de vida, ou história oral. Retomando algumas noções pioneiras de Halbwachs, Pollak defende que, apesar de parecer um fenômeno estritamente individual e subjetivo, a memória deve ser entendida, sobretudo, como um fenômeno coletivo e social, ou seja, como um fenômeno construído coletivamente e submetido a flutuações, transformações e mudanças constantes. Nesse texto, Pollak procura apontar os elementos constitutivos da memória – individual ou coletiva –, destacando os acontecimentos, as pessoas e os lugares, conhecidos direta ou indiretamente pelas pessoas. De acordo com ele, as memórias seriam constituídas, primeiramente, pelas vivências pessoais, ou seja, pelos acontecimentos experimentados diretamente pelos indivíduos. Em seguida, elas seriam constituídas pelos acontecimentos vivenciados indiretamente, experimentados através do pertencimento dos indivíduos aos diversos grupos sociais. Essa segunda ordem de acontecimentos consiste em eventos dos quais um indivíduo pode não ter participado, mas que assumiram uma importância tão grande para a coletividade, que chegam a ser vivenciados como experiências pessoais. Nesse conjunto, podem ser incluídos diversos acontecimentos que nem chegaram a ocorrer na mesma época de vivência da pessoa ou do grupo que lembra, remontando a um passado remoto e objetivamente inacessível. Na análise de Pollak, outro elemento importante para a constituição da memória são as pessoas ou personagens. Nesse caso, também podemos falar de pessoas com as quais um indivíduo realmente se deparou no decorrer de sua vida e, por outro, de personagens que se tornaram intimamente conhecidas por ele, apesar de só terem se tornado acessíveis de modo indireto, ou “por tabela”, devido à importância assumida por elas no conjunto de memórias de um determinado grupo,

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como a família, ou a nação a que o sujeito pertence – ou ainda, o time de futebol pelo qual ele torce. De todo modo, essas pessoas e personagens também podem compreender figuras e personalidades localizadas num espaço-tempo completamente diferente daquele que seria próprio da pessoa ou do grupo que recorda: um bisavô que só se conhece através de fotografias amareladas e histórias fragmentárias contadas pelos familiares, ou ainda um presidente-herói, espécie de semi-lenda nacional, que só se conhece por meio dos livros de História. O terceiro elemento apontado por Pollak como constituinte da memória são os lugares. De acordo com ele, existem lugares que se tornam particularmente ligados a uma lembrança, que pode ser pessoal e independente do tempo cronológico. Como exemplo, ele cita um lugar de férias freqüentado durante a infância, que pode permanecer muito forte na memória de uma pessoa, independentemente da data real em que essa vivência tenha ocorrido. No âmbito da memória mais pública, também é comum que haja lugares de apoio para a memória, como é o caso dos diversos lugares coletivos de comemoração. Por fim, o autor destaca que lugares muito longínquos, situados fora do espaço-tempo da vida de uma pessoa, também podem se tornar importantes para a constituição da memória de um grupo e, conseqüentemente, para a formação de memórias individuais. Como exemplo, podemos citar a importância da Grécia Antiga para a constituição do imaginário mnemônico ocidental, e ainda, a centralidade das representações sobre a “Mãe África” para a formação de memórias e identidades de movimentos sociais negros em todo o mundo. Segundo Pollak, os acontecimentos, personagens e lugares que constituem uma memória podem estar empiricamente fundados em fatos concretos e precisos, mas podem também consistir em transferências e projeções de eventos diversos. Ou seja, o processo de constituição das memórias pode dar lugar a invenções, confusões e substituições de todo tipo. Nesse sentido, pode haver, por exemplo, a combinação de pessoas, lugares e acontecimentos que nunca estiveram realmente relacionados, mas que passam a fazer sentido na configuração específica estabelecida no plano da memória. De modo semelhante, a atribuição de datas aos acontecimentos também pode ser algo problemático. Em alguns casos, as datas relativas à vida privada e à vida pública podem ser subsumidas, ou então, devidamente separadas, podendo

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ainda não se mostrar relevantes, permanecendo completamente ausentes do processo de construção da memória. O autor destaca, ainda, que a fluidez da memória tende a prevalecer sobre a fixidez das datas públicas, ou seja, sobre a cronologia oficial e política, ainda que esta última esteja mais fortemente apoiada pela reconstrução historiográfica. Como podemos ver na abordagem de Pollak, a memória tem um caráter coletivo: ela é parcialmente herdada pelos indivíduos, não se limitando às experiências compreendidas no tempo de vida física de uma pessoa. Tal como Halbwachs, Pollak defende, ainda, que a memória é constituída através de um processo de seleção ou “enquadramento”: assim, nem tudo o que fez parte objetivamente do passado fica registrado nas memórias das pessoas e dos grupos. De acordo com ele, esse processo de seleção está condicionado às preocupações que movem os indivíduos e grupos no tempo presente. Nesse sentido, a memória tem um caráter circunstancial, passando por mudanças e flutuações em função do momento em que ela é acessada, articulada e expressa. As preocupações pessoais e políticas de um dado momento funcionam como um importante elemento de estruturação da memória, o que deixa claro o fato de que esse fenômeno consiste numa construção: mais precisamente, uma construção social. Segundo Pollak, os modos de construção da memória podem ser tanto conscientes como inconscientes, envolvendo processos de esquecimento, recalque e silêncio. Nesse sentido, tudo aquilo que fica gravado na memória, bem como tudo aquilo que é recalcado, excluído, esquecido ou silenciado, resulta de um verdadeiro trabalho de organização. Para o autor, além do trabalho de enquadramento que está na base de constituição da memória, existe também um tipo de trabalho que é realizado pela própria memória: cada vez que uma memória está relativamente constituída, ela efetua um trabalho de manutenção, contribuindo para a coerência, unidade, continuidade e organização das representações mnemônicas. Por fim, Pollak destaca a estreita relação existente entre os fenômenos da memória e da identidade. Segundo o autor, a memória deve ser compreendida como um elemento fundamental para a constituição do sentimento de identidade – tanto individual, como coletiva –, na medida em que ela também participa como um fator indispensável para a emergência do sentimento de continuidade e coerência de uma pessoa ou de uma coletividade. É importante destacar, no entanto, que as noções

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de memória e identidade não são concebidas de modo essencialista na abordagem de Pollak. Para ele, memória e identidade são valores disputados em conflitos sociais e intergrupais, principalmente nos confrontos que opõem grupos políticos diversos.

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2 ANÁLISE DAS ENTREVISTAS

2.1 O futebol e a formação de vínculos afetivos masculinos

Neste capítulo, examino os discursos produzidos pelos entrevistados sobre o processo de escolha do clube pelo qual torcem, questão inicial do roteiro elaborado para a pesquisa. Nesses discursos, destaca-se a representação do futebol como uma tradição familiar, a participação desse esporte na formação de importantes vínculos afetivos masculinos, o papel do “pai-torcedor” e a importância da transmissão de memórias para a socialização de novos torcedores. A escolha de um “clube do coração” é o que determina a transformação de um indivíduo em torcedor. Segundo Arlei Damo (2002), somente ao estabelecer laços afetivos e exclusivos com um clube específico, o indivíduo oficializa sua entrada no universo do futebol sob a condição de torcedor. Na perspectiva de DaMatta (1982), o caráter individual dessa escolha é um dos aspectos que fazem do futebol um contexto democrático na sociedade brasileira. No entanto, nem sempre essa escolha pode ser entendida como um processo movido estritamente por razões individuais. Na verdade, o mais comum é que se observe exatamente o oposto, pois a adesão às cores de um clube de futebol, no Brasil, segundo os padrões de associação que caracterizam esse esporte como uma esfera social específica, quase sempre é marcada pela influência coercitiva de familiares masculinos, com destaque para a figura paterna. Nesse contexto, o pai desempenha um papel importante e deve influenciar a escolha do clube para o qual seus filhos irão torcer, garantindo, assim, a continuidade de algo tipicamente vivido como uma tradição familiar. Em conformidade com essa tendência, alguns entrevistados apontaram a influência recebida de seus pais como um fator importante para a escolha de seus times. Isso pode ser encontrado no depoimento de Fernando, 28 anos, que torce pelo Flamengo:

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Eu lembro que, desde que eu era bem pequeno, assim, eu tinha tios, né, que não, não eram Flamengo, eram Botafogo, Vasco, num sei o que. Só que a gente sempre tende a seguir a, o que os nossos pais são. Minha, na verdade, minha mãe não liga muito, minha mãe diz que é Flamengo, mas, por ela, tanto faz, tanto fez. Meu pai não, meu pai é aquele flamenguista convicto, de sempre ter ido em estádio, pô, de falar do Zico, essas coisas todas. E... eu não lembro de ter escolhido, não, sacou? Mas eu lembro, a primeira lembrança que eu tenho, minha, de futebol, é... na verdade, a primeira lembrança que eu tenho minha de futebol é... é meu pai comemorando o título do Flamengo, acho que de 92, contra o Botafogo, em casa... que eu já tinha, eu devia ter o que? Uns seis, sete anos, aí eu comecei a entender por que que ele tava gritando, por que que ele xingava tanto, por que que ele comemorava. Aí eu fiz uma associação, né? Eu falei assim “pô, meu pai tá com essa roupa vermelha e preta, tem uns caras de vermelho e preto na televisão...”, eu lembro disso, assim, vagamente... comemorando, eu via gente nas varandas dos prédios, assim, de vermelho e preto, eu falei “porra, isso deve ser legal”. Aí eu aceitei aquilo de boa, assim, mas... essa é a primeira lembrança que eu tenho.

Ao recordar o momento inicial de sua trajetória como torcedor, o entrevistado destaca a influência exercida por seu pai na escolha do Flamengo como “clube do coração”. De acordo com ele, “a gente sempre tende a seguir o que os nossos pais são”. Sendo filho de um “flamenguista convicto”, Fernando diz, então, ter sido socializado como torcedor do clube desde os primeiros anos de vida. Algo semelhante pode ser identificado no exemplo de Roberto, 26 anos, que também torce pelo Flamengo. Na reconstituição de suas primeiras memórias futebolísticas, ele aponta, igualmente, a influência recebida de seu pai como um fator determinante para a sua formação como “rubro-negro”:

Eu, na verdade, eu acho que eu torço pro Flamengo pelo, pelo meu pai, né, cara? Assim, pela, pela, pela influência do pai mesmo, que tá sempre vendo jogo, e aí a gente acaba também se envolvendo. Eu acho que é por isso. Agora, desde quando eu torço pro Flamengo... eu acho que eu comecei a saber bem o que era futebol na, na Copa do Mundo de 94. Que eu tinha uns 6 anos mais ou menos, aí eu via a família reunida, vendo os jogos. Eu achei maneiro aquilo, e aí logo depois vem a minha primeira lembrança como flamenguista mesmo, que foi em 95, eu tinha 7 anos, o gol de barriga do Renato Gaúcho. [...] eu me lembro que o empate era do Flamengo, aí os caras fizeram 2 a 0. E o meu pai ficou escutando o jogo, e aí o jogador... num sei se foi o Romário ou o Fabinho, que empatou. Aí eu lembro do meu pai me levantando, assim e tal. Aí eu falei “pô, essa parada deve ser importante, né, porque meu pai tá, tá me levantando, tá comemorando”. Aí eu acho que ali é a minha primeira lembrança como flamenguista... 95, eu tinha 7 anos.

Nos depoimentos acima, a influência paterna não é representada como uma força exercida ativamente – ou seja, deliberada ou coercitivamente –, baseando-se, antes, na assimilação e reprodução de um comportamento tomado como modelo.

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Segundo Joël Candau (2011), a transmissão de valores e modos de conduta dentro de um grupo envolve mecanismos performáticos e intuitivos, que garantem sua reprodução de maneira tácita, principalmente quando as dimensões do corpo e das emoções acham-se envolvidas. Assim se constitui o que autor chama de protomemória, em sua terminologia própria – mas que também podemos denominar como o habitus do torcedor, conforme o esquema teórico elaborado por Bourdieu. Ambos os conceitos se referem à incorporação praticamente irrefletida de comportamentos, como ocorre com os jovens torcedores desde o período da infância. Desse modo, observando a alegria ou a tristeza, a raiva, os xingamentos e comemorações de seus pais, os jovens torcedores apreendem gradativamente a importância de cada lance e de cada jogo, aprendendo como se comportar em cada situação. Nesse sentido, Roberto comenta:

Eu lembro que eu era, que... eu fiquei triste assim, porque o meu pai ficou triste. Então, tipo, eu vi o meu pai triste, eu vi que aquilo ali era uma coisa importante. [...] mas eu ali comecei a gostar do futebol, comecei... porque meu pai é muito futeboleiro, né? Muito de, de ver futebol e tal, ele vê tudo, vê XV de Piracicaba e Diadema, se tiver passando. [...] Aí eu... aí eu via com ele, eu lembro de, de ficar vendo jogo do Vasco, ele torcendo contra. Assim, os jogos que passavam na Globo, e aí eu fui, eu fui me... eu fui me, começando a me identificar muito com futebol, comecei a acompanhar, mas como eu era muito pequeno, assim, também, eu não entendia muito dos, dos campeonatos, a diferença dos campeonatos, o que que era muito bem. Mas eu já gostava, mas eu sempre gostei de ver os jogos, assim. Principalmente com ele, e era legal a companhia.

Devido à influência recebida de seus pais, Fernando e Roberto começaram a se interessar por futebol e tornaram-se, ambos, torcedores do Flamengo. Para esses entrevistados, o futebol se apresenta como um elemento importante para a relação desenvolvida entre eles e seus pais. É em torno do futebol que se desenvolve a maior parte dos momentos de lazer e sociabilidade entre eles, o que inclui desde simples conversas cotidianas até a ida aos estádios. A ênfase sobre esse elemento pode ser observada no seguinte trecho da entrevista de Fernando:

É, com certeza, é a única hora que a gente senta pra ver televisão junto, é quando passa jogo. [...] E eu tô, ultimamente eu tenho feito curso, eu tava trabalhando. Pô, você chega de noite, sacou? Em casa, quarta- feira, por exemplo. Quando tem dia de jogo, pô, independente de ser Flamengo ou não, eu sento lá com o meu pai, a gente vê jogo. Domingo também, é de lei, a gente sempre senta domingo, quatro horas, pra ver

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jogo, de quem quer que seja, principalmente se for do Flamengo. [...]. Mas essa questão de relação com o meu pai, eu e meu pai a gente sempre teve uma relação muito boa, independente de futebol ou não, mas a gente, o que a gente mais conversa, realmente é sobre futebol. Quando a gente fica mais junto, é no futebol. Pô, sair, se eu for sair com o meu pai, a gente vai ou no cinema, ou passear com o cachorro, ou pro estádio, sacou? Coisas assim. Então, é, realmente, é uma... é uma, uma forma de convivência, sim, é importante.

Embora cultive uma boa relação com seu pai, Fernando destaca que o principal assunto das conversas mantidas entre eles é o futebol. A sociabilidade desenvolvida em torno desse esporte consiste numa importante “forma de convivência”, fornecendo-lhes os momentos em que eles podem ficar “mais junto”, nas palavras do entrevistado. Essa maior proximidade, tendo o futebol como mediador, também pode ser encontrada na relação estabelecida entre Roberto e seu pai, conforme indicado no seguinte trecho:

Com certeza, muito. Muito. O futebol e o Flamengo têm uma, uma, uma... uma... é muito importante, tem uma, tem um papel muito importante na minha relação com o meu pai... na relação que eu criei com o meu pai. Porque a gente, quando se fala, a gente fica às vezes, sei lá, semanas sem se falar e tal, ainda mais agora, né? Mas a gente sempre volta a falar da mesma coisa: vai falar do Flamengo, vai falar da seleção brasileira. [...] Mas, é... a gente sempre fala, sempre fala de como... a gente sempre fala de jogo, como é que tem jogado... isso é assunto certo da gente, certo, certo. E é o que a gente mais fala, entendeu? Então, o futebol e o Flamengo têm uma relação muito importante com o meu pai. Olha, eu posso dizer tranquilamente que 90% das vezes que eu saí com o meu pai foi pra ir ao Maracanã. Se a gente fosse sair pra fazer alguma coisa, essa alguma coisa era ir ao Maracanã. Tenho certeza disso. [...] Eu, quando tava na faculdade, ia muito com ele. A gente foi a muito jogo, e era um programa que a gente fazia muito. Porque, tirando isso, eu não fazia muito programa com o meu pai, não. Sempre era ligado ao futebol, sempre.

Segundo Simmel (1983), a sociabilidade é a forma pura e lúdica da interação. Neste contexto, o que importa é estar em relação com o outro, a despeito dos conteúdos que sejam abordados. Numa situação sociável, os conteúdos abordados devem ser apenas suficientemente agradáveis, de modo a poderem sustentar o desenvolvimento de uma interação. Embora pareçam excessivamente triviais, devido à ausência de gravidade de seus conteúdos, Simmel destaca a relevância desses momentos de sociabilidade para a manutenção e renovação de vínculos sociais, na medida em que eles fazem do simples “estar com o outro” o próprio objetivo de uma interação. Nos depoimentos de nossos entrevistados, é o futebol que desempenha esse papel de coesão, aparecendo como um conteúdo banal que

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possibilita o surgimento de situações sociáveis consideradas importantes para o desenvolvimento da relação entre pais e filhos. A importância do futebol para o desenvolvimento da relação pai-filho também pode ser encontrada no exemplo de Jaime, 60 anos. Embora tenha sofrido “muita pressão familiar”, inclusive de seu pai, para que se tornasse torcedor do Vasco – seguindo, assim, a tradição da família –, Jaime tornou-se um torcedor “fanático” pelo Fluminense:

[...] minha família toda coalhada de vascaínos, e eu, por acaso, sempre odiei o Vasco e passei a ser tricolor, assim, doente... num, num, nem sei explicar por que. Eu tive um flerte com o Flamengo quando eu tinha dois anos, porque nasci em 55, o Flamengo foi tricampeão, só se falava em Flamengo, Flamengo, Mengo, Mengo, Mengo, Mengo, eu, criança de dois anos, só falava Mengo, Mengo, Mengo, Mengo, Mengo pra desespero lá da minha família de vascaínos, ficava completamente atormentada com isso, né? Na verdade, acabei saindo por uma terceira via, que foi o Fluminense.

[...] Muita, muita pressão familiar. Quer dizer, não, não a ponto de... pressão, assim, pressão, assim, pressão... leve, mas... me levavam pra São Januário. Eu morava numa vila, onde só tinha vascaíno, ia todo mundo pra São Januário, aí eu ia pra São Januário junto... e abominava aquilo, eu tinha horrores. Então, eu não perdi. Depois, veio a época Eurico Miranda, consolidou o meu ódio, maior, porque... embora eu entenda que foi um belo dirigente para o Vasco, mas eu... não, não, não gosto não.

Devido à relação de fanatismo mantida com o Fluminense, o entrevistado passou por diversas situações de mal-estar e desmaios – em virtude da forte emoção sentida durante as partidas –, chegando a ter de ser levado ao hospital para ser socorrido algumas vezes. A preocupação gerada por esses episódios fez com seu pai “virasse a casaca”, deixando de ser vascaíno, para se tornar um torcedor do mesmo time de seu filho:

Meu pai teve, muitas vezes, que me socorrer e me levar ao hospital, achando que eu ia morrer disso, eles tinham horror da minha relação com o futebol, e meu pai acabou virando torcedor do Fluminense, embora fosse vascaíno, porque ele torcia pra eu não passar mal. E, com isso, ele acabou, ele habituou tanto a torcer, que agora, ele morreu em 2004, ele já, nesse últimos anos de vida, já com muito, muitos problemas de saúde, tal, ele via qualquer coisa que dissesse respeito ao Fluminense, bandeira, é... ganhou o campeonato, o hino, ele chorava como uma criança. E ele perguntava sempre, já não morava com ele, quando ia lá, ele perguntava “como é que tá o nosso time?”. É... virou o “nosso time”, e eu acho que é um caso, muito raro, de um filho que converte o pai ao seu clube, porque, em geral, o caminho é inverso, né? O filho, em geral, segue o clube do pai. Ele me tentou fazer vascaíno, levou-me várias vezes a São Januário, mas eu sempre dizia “Eu não gosto disso, eu não gosto desse time”.

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Como destaca o próprio entrevistado, seu caso representa uma exceção. Esse seria um exemplo “muito raro” em que o pai muda de time por influência do filho, e não o inverso, como seria culturalmente mais esperado. A relação pai-filho ocupa uma posição central no processo de transmissão de valores e tradições no contexto do futebol. Ao mesmo tempo, o futebol pode ser apontado como um dos contextos culturais em que a socialização de valores e comportamentos masculinos se realiza na relação entre pais e filhos. Para além da importância dessa relação, alguns entrevistados destacaram também a influência exercida por outros familiares na escolha de seus times, tais como tios e primos. Wagner, 54 anos, menciona a influência recebida de seus primos para justificar a escolha do Vasco como o clube de sua preferência:

Cara, é... depois da copa do mundo de 70, né, que eu comecei a me ligar mais em futebol. [...] Aí de 70 pra cá, depois da copa do mundo de 70... eu tinha um primo meu, que eles era vascaínos, então, aí começaram a me carregar... meus primos começaram a me levar, né? Pro jogo, no Maracanã... aí eu fui, fui assistir vários jogos do Vasco, gostei e aí até hoje eu torço pro Vasco. [...] Meus primos eram vascaínos... todos, cara! Eram 5 irmãos, os 5 eram vascaínos, entendeu? E eles vieram de Campos pra morar no, no, na Tijuca, nessa época eu morava na Tijuca... aí vieram, nós começamos, como era perto, então nós começamos, eles começaram a me arrastar pros jogos, aí foi que eu comecei a gostar de futebol, assim, com mais ênfase, né?

Gustavo, 24 anos, que também torce pelo Vasco, ressalta a influência exercida por seu tio e por seu primo mais velho, ambos torcedores “fanáticos” do clube:

[...] meu primo, meu tio... foram as principais influências, assim. Meu tio que mora em Arrozal, ele é vascaíno também, tal e... tem tudo o que você possa imaginar do Vasco na casa dele. Você entra na casa dele, tudo do Vasco, assim... [...] E... aí ele zoa também os outros times e tal, só anda com roupa do Vasco e tal... entendeu? Isso me... assim, tem uma influência... e meu primo também, meu primo que morava mais perto de mim, né? Primo mais velho, é... Também era vascaíno.

De todo modo, a escolha de um “clube do coração” aparece nos depoimentos dos entrevistados como a continuação de uma tradição familiar, que se sustenta a partir do estabelecimento de laços sociais masculinos. De acordo com Igor Machado (2000), a cultura do futebol se organiza segundo a lógica do totemismo no contexto social brasileiro – argumento que pode ser aplicado a outros contextos, na

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visão de Giulianotti (2010). Por um lado, isso significa que os próprios clubes e suas torcidas se desenvolvem sob a forma de grupos totêmicos, constituindo-se como clãs, e organizando-se em torno de determinados símbolos, valores, padrões de conduta e de sentimentos – na interpretação de Arlei Damo (2002), é isso o que faz com que os clubes e torcidas se transformem em “comunidades imaginadas de sentimentos”. Estendendo a análise de Machado, podemos afirmar que a lógica totêmica também pode ser observada no fato de que a paixão por um determinado clube tende a se reproduzir entre as diferentes gerações de uma mesma família – ou, mais precisamente, entre os componentes masculinos de uma mesma família, constituindo-se como uma herança que se transmite dentro de um sistema patrilinear. A representação do futebol como uma tradição familiar e masculina aparece claramente na entrevista de Leandro, 28 anos, que torce pelo Fluminense:

Cara, assim, na verdade eu não tenho nenhuma lembrança sem torcer pro Fluminense, porque são três gerações da minha família, né, torcendo pro Fluminense. Meu avô, começou com o meu avô, é... enfim, ele começou, ele... eu sou de Campos, né, sou do interior do Rio. Eu, eu acho que o motivo pelo qual ele escolheu o Fluminense foi porque ele era filho de italiano, e o Fluminense tinha as cores da Itália, então, primeiro momento. Mas, enfim, ele se identificou com a cultura do clube e tal, aí, enfim, os filhos dele todos são Fluminense. São quatro irmãos, meu... meu pai, e eu sou, enfim, desde sempre, cara, tipo, foto minha pequeno, tá até no perfil pra facebook, eu com a camisa do Fluminense com o meu avô, então... E... e eu, na verdade, normalmente você sempre tem um questionamento com relação a isso em algum momento. Mas comigo nem aconteceu, num sei se porque eu tive uma relação muito boa com o meu pai, né? Eu idolatrava o meu pai completamente, então, queria imitar ele, então, pra mim nunca foi nem uma questão. Apesar de eu ser, de eu fazer parte da pior geração de torcida do Fluminense.

A escolha do Fluminense como “clube do coração” consiste numa tradição entre os homens da família de Leandro, iniciada por seu avô e transmitida para as gerações seguintes. Por isso, ele afirma não guardar nenhuma recordação pessoal que seja anterior à sua formação como tricolor, na medida em que as origens dessa identidade remontam ao passado de seu grupo familiar. Leandro se considera, no entanto, um integrante da “pior geração de torcida do Fluminense”, pois no início de sua trajetória como torcedor, vivenciou a mais grave crise enfrentada pelo clube em sua história. Nesse período, o Fluminense chegou a disputar a terceira divisão do campeonato brasileiro, o que fez com que o entrevistado cogitasse a possibilidade de que seu time fosse “literalmente acabar”.

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Diante do péssimo desempenho do clube e das seguidas “humilhações” sofridas nessa época, Leandro chegou à conclusão de que o futebol teria ocupado um papel “secundário” no processo de escolha de seu time. Para ele, as razões que o levaram a se tornar um torcedor do Fluminense encontram-se para além do campo de jogo:

[...] mas na real, a minha relação, eu parei pra pensar que na minha relação com o Fluminense, o futebol era secundário. Porque se fosse o principal, eu não era Fluminense. O Fluminense era muito ruim. [...] Era muito ruim mesmo. Então, era mais um vínculo familiar e... e, na verdade, eu tinha um amigo de infância, lá de Campos, que foi um outro cara também que, assim, a gente estudou junto desde... eu não tenho lembrança, assim, antes de conhecer ele, porque a gente estudou junto desde muito pequeno no colégio. Maternal, primeiro período, enfim, não sei o nome, deve ser pré- escola aqui no Rio, mas era meio que isso, desde muito pequeno. E era nesse esquema, ele era tri... o pai dele era tricolor, meu pai era, o pai dele era muito tricolor. A gente estudava, na sala só tinha a gente de tricolor, então, a gente criou um vínculo muito, muito forte, e a gente é melhor, melhor amigo até hoje, assim. E a nossa relação, eu já tô com 28 anos, a gente é amigo há 26, sei lá, a vida inteira, e a relação é basicamente pautada em cima do Fluminense.

No depoimento de Leandro, a preferência pelo Fluminense é apontada como a base para o desenvolvimento de importantes vínculos familiares e de amizade. Como ele mesmo diz, em outro trecho da entrevista, “se dependesse do futebol, eu não seria tricolor”. Além de essa opção se constituir como uma tradição familiar, o melhor amigo de Leandro torce pelo mesmo clube, e a relação de longa data mantida entre eles é “basicamente pautada em cima do Fluminense”. O entrevistado também destaca a importância de seu time para o desenvolvimento de uma relação de maior proximidade com seu avô:

Enfim, mas uma coisa legal era a minha relação com o meu avô, né? Porque eu acabei me tornando muito próximo do meu avô só por causa do Fluminense, basicamente. E... porque eu era fanático pelo Fluminense e me inspirava no meu avô, que era um cara muito tricolor também. [...] Eu ia pra casa dele todo final de semana, ou sábado ou domingo, falar sobre o Fluminense o dia inteiro, basicamente. Então, a gente, basicamente, ele falava sobre, a gente falava sobre o time no momento e tal, como é que tava, o jogador que gosta, que não gosta... E aí, ele contava muita história dele, do Fluminense, de jogo que ele ia, as viagens que ele fazia de Campos, o jogo era nas Laranjeiras, tipo...

[...] Então, assim... eu tenho certeza, se não tivesse esse vínculo com o futebol, eu não teria tido uma relação tão próxima com ele, porque era uma distância muito grande, assim, de... até pra me comunicar mesmo, eu era um garoto, e ele, um velho de 80 anos. Uma comunicação diferente, outro ritmo, mais lento, enfim... interesse, tinha pouco em comum. Então, me aproximou do meu avô, então, assim... por causa do Fluminense,

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por um acaso, foi algo que me aproximou do meu avô, e a, o que você, um garoto extrai de uma relação com um idoso, eu acabei extraindo também. [...] e a minha relação com o meu avô era basicamente pautada no Fluminense. Foi o que aproximou, foi o elo que aproximou a gente... foi esse vínculo.

Apesar da diferença de idade existente entre Leandro e seu avô, o futebol – ou, mais precisamente, o Fluminense – possibilitou a comunicação entre eles e, por conseguinte, serviu de base para o desenvolvimento de uma relação de maior proximidade. O avô de Leandro desempenhou um papel fundamental em seu processo de socialização como tricolor, contando-lhe diversas histórias sobre o Fluminense e sobre suas experiências como torcedor. Nesta outra passagem, o entrevistado retoma e sintetiza a importância do Fluminense como fundamento para a formação e manutenção de vínculos afetivos:

Então, pra mim é uma coisa mais de, quanto algo que conecta com as pessoas. E... além de algo que conecta com as pessoas que eu gosto, minha família, meus amigos, a gente se mantém, porque essa é a questão, por mais, porque hoje, eu saí de Campos. E há muito tempo a minha vida não é lá, não quero voltar pra lá, enfim. Mas, e a vida aqui é muito corrida, eu faço mestrado, eu trabalho na empresa, na Barra, trânsito e tal, mas de qualquer forma, o Fluminense é algo que me mantém preso a eles. Eu continuo falando com eles sobre o Fluminense, sobre resultado. Às vezes ver jogo junto, eles vêm pra cá ver jogo, então, enfim, é algo que mantém, é um vínculo, é um elo que liga três gerações da minha família e esses amigos, entendeu?

De acordo com o entrevistado, o Fluminense é o elemento comum que o mantém conectado a outras pessoas, aproximando-o de seus amigos e unindo três gerações de sua família. Embora a preferência pelo clube seja representada como uma tradição familiar, o entrevistado acusa seu pai de “negligência”, pelo fato de não ter procurado influenciá-lo diretamente, a fim de socializá-lo como um novo torcedor do clube. Segundo ele, porém, essa influência não teria se mostrado necessária, devido à boa relação mantida com o pai:

Cara, então, é... como eu te falei, assim, o meu pai, a influência é uma influência... ele não precisou fazer muito, mais do que não precisou fazer muito esforço, acho que ele foi até meio negligente, assim, tipo, ele nunca me levou no Maracanã e... [...] Eu não precisei, ele não precisou também, porque eu tinha uma relação muito boa com ele, eu idolatrava muito ele, ele era tricolor, e ele não era fanático, ele tinha essa relação meio de esconder, de fingir que não liga, mas ele se posi... sempre se posicionou enquanto tricolor. O Fluminense ganhou com o gol de barriga, ele pegou minha camisa e foi dar aula... na escola técnica, com a camisa do Fluminense. Assim, zoa flamenguista, defende o Fluminense e tal.

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Essa acusação de “negligência” também aparece no depoimento de Vitor, 27 anos. Ele torce pelo Fluminense, mas escolheu o time a despeito de qualquer influência exercida pelo pai tricolor:

Eu acredito que o meu pai tenha influenciado pouco. Eu até brinco com ele, que ele não fez um bom trabalho de pai quanto a isso. Porque eu virei tricolor por conta própria. Mas, assim, num primeiro momento, e... ele deixou que o meu padrinho influenciasse muito.

Devido à influência de seu padrinho, Vitor chegou a torcer pelo Botafogo durante um curto período de sua infância, vindo a adotar o Fluminense como “clube do coração” posteriormente. Apesar de não ter recebido uma forte influência de seu pai, o entrevistado destaca a importância do Fluminense para o desenvolvimento de uma relação especial com seu sogro, que também é tricolor. Pelo fato de todas as suas filhas serem mulheres, o sogro de Vitor se refere a ele como seu “filho tricolor”, apontando, assim, para o fato de que a paixão pelo futebol é uma herança que se transmite, principalmente, através de laços sociais masculinos:

Então, então ele, tipo, ele diz que eu sou quase o filho dele tricolor, entendeu? Assim aí volta e meia, quando acontece alguma coisa, assim, por exemplo, Fluminense ganhou em 2007 a e eu tava lá em Florianópolis, aí... aí ele ligou super emocionado, “você é meu filho homem!”. Todo esse esquema. Como ele tem três filhas mulheres... assim, nenhuma é tão fanática.

As acusações de “negligência” encontradas nas entrevistas indicam o descumprimento de uma espécie de dever ou função atribuída aos pais no contexto do futebol. Nesse contexto cultural, caberia ao pai exercer uma influência ativa sobre seu filho, de modo a fazer com que ele venha a torcer por determinado clube, dando continuidade, assim, a uma tradição familiar. Esse “trabalho de pai”, como afirma Vitor – ou a função do “pai-torcedor”, como a ela se refere o entrevistado Fernando – incluiria ações como comprar a camisa do clube para o filho, levá-lo ao estádio, contar-lhe histórias sobre futebol, sobre suas experiências como torcedor, sobre o passado do clube, sobre os principais títulos conquistados, sobre os maiores ídolos do clube, sobre os jogos mais marcantes, etc. Enfim, caberia ao pai a responsabilidade de ser o primeiro e o principal mediador na relação de seu filho com o universo do futebol.

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Tendo em vista a importância desse papel, em algumas entrevistas realizadas com torcedores mais velhos, os pesquisados destacaram a influência que procuraram exercer sobre seus filhos para que eles se tornassem torcedores de determinado clube. Isso se aplica à experiência de Wagner:

Não, o Bruno é... é tal coisa, eu só não queria que ele fosse flamenguista! [risos] Não, sempre assim, uma camisa do Vasco... Vasco, pô, vamos pro jogo, vamos pra lá, carregar, entendeu? Aí deu pra gente... entendeu? Bruno gostava, sempre gostou de futebol, jogou futebol. Então, a gente fica, é... eu só não queria que ele fosse flamenguista! [risos]. Então, sempre tem uma influência, de pai, de pai pra filho, sempre tem uma influência de time. Ah, você “ah, num tem”, mas sempre tem um pouquinho.

O entrevistado afirma que “sempre tem uma influência de pai pra filho” no processo de escolha do “clube do coração”. Torcedor do Vasco, ele procurou afastar qualquer possibilidade de que seu filho se tornasse flamenguista, aderindo, assim, ao arqui-rival de seu time. A mesma preocupação pode ser encontrada no depoimento de Pedro, 63 anos, que torce pelo Botafogo:

O Diego nasceu numa época que o Botafogo não ganhava nada, já tinha 18 anos que o Botafogo não ganhava nada. Então, eu falava “bom, deixa ele escolher”. Mas só que, entre a minha casa e a casa do meu falecido sogro tinha um bar, dos amigos, que eu freqüentava. Muito meus amigos até hoje, tudo flamenguista. E a minha mulher, a mulher ia pra casa do pai dela, o falecido pai dela, ia com ele, aí o pessoal começava, né, a chamar o moleque de Flamengo, de Mengo, Mengo, Mengo. Aí, o que que acontece, falei “pô, pra fazer a cabeça do meu filho, faço eu, pô!”. Aí eu procurei tirar o inimigo de lado e deixar o meu, aí deu certo, né? E deu certo.

Diante da iminência de que seu filho se tornasse torcedor do Flamengo, Pedro decidiu influenciá-lo, de modo a fazer com que ele escolhesse o Botafogo como “clube do coração”. Quando o “pai-torcedor” não desempenha “devidamente” seu papel, abre-se espaço para que outros atuem em seu lugar. Foi desse modo que o rubro-negro Ademir, 55 anos, conseguiu fazer com que seus afilhados se tornassem torcedores do Flamengo:

Ah, [tive influência] sobre meus dois afilhados, sobre a Tatiana e sobre o Marcos, sobre os dois. Porque o pai deles é Botafogo, entendeu? Então, eles pequenininhos, eu ficava “oh, vai ser Flamengo, vai ser Flamengo”, e ele “que nada, vai ser Botafogo! É minha filha, num sei o que”. Aí eu comecei a levar ao Maracanã, no jogo, que eu sempre ia ao Maracanã, e ele quase não ia ao Maracanã, quase não gostava. Conclusão, os dois passaram a ir. “Padrinho, vamos pro Maracanã?”, os dois iam pro Maracanã comigo, como vão até hoje, “Vamos pro Maracanã?”, “Vamos assistir o jogo...”. E só comigo que eles iam. Viraram os dois

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Flamengo doentes, entendeu? E o pai tá lá, o pai disse agora que vai transformar a minha filha em Botafogo, pra eu sentir o gostinho. Mas só que a própria filha dele já falou “pô, pai, tu não conseguiu transformar teus filhos, tu vai querer transformar...”, entendeu? Não tem jeito. Aí, vai tentar se vingar, mas não vai dar não, não tem jeito mesmo.

Wagner e Ademir destacaram a importância da experiência de estádio para a socialização de novos torcedores. Pedro, por sua vez, procurou contar histórias sobre o passado “glorioso” de seu time, para fazer com que seu filho se tornasse torcedor do Botafogo:

Falava, quando eu começava, falava dos craques, que o Botafogo é o time que mais deu jogador pra seleção em todos os tempos. Em todo o, todo o tempo, é o clube que mais deu jogador pra seleção. Quer dizer, sempre teve craque, depois ficou um tempo aí, 20 anos que... foi um sufoco. [...] Mas, graças a Deus, passou! Então, foi por isso que eu, eu não queria fazer, influenciar a escolha dele... mas no final, acabou tendo que influenciar, porque eu ia acabar tendo um flamenguista dentro da minha casa. E eu não sou muito chegado, não... você sabe disso, né?

Dentre as diversas ações relacionadas à função do “pai-torcedor”, os entrevistados mais jovens destacaram a importância das histórias contadas por seus pais em seu processo de socialização como torcedores. Embora disponham de inúmeras outras fontes de informação sobre futebol e sobre seus times – tais como materiais produzidos pela imprensa esportiva, livros, revistas, jornais, programas de televisão, sites especializados, relatos de outros torcedores, etc. – a transmissão de memórias realizada de pai para filho aparece como um elemento destacado nos discursos produzidos por esses entrevistados sobre sua trajetória como torcedores. Isso pode ser encontrado na entrevista de Roberto, por exemplo. Segundo ele, seu pai costumava lhe contar muitas histórias sobre o Flamengo, o que foi importante no momento inicial de sua formação como torcedor:

Contava muita história, né? Meu pai é da época do... meu pai ia no Maracanã pra ver o Zico jogar, né? Então, contava histórias de tudo, né, cara? Contava histórias de que via o Zico jogar, contava histórias... [...] Mas meu pai contava muita história, contava história daquele Flamengo e Atlético... se eu não me engano, ele tava naquele Flamengo e Atlético-MG de 80. Contou uma história contra o Botafogo, né, porque naquela época de 80 o Botafogo era o, tinha aquele 6 a 1 engasgado, né? Aquele 6 a 0 engasgado. Então ele contava, eu acho que ele tava no Maracanã no 6 a 0 do Flamengo. Então, ele conta muita história de, de... da época do Zico, né? Que po... e aí, e aí que acaba dando muita vontade. Quando eu era moleque, cara, eu tinha muita vontade de conhecer o Maracanã, de... de saber o que que era o Maracanã. Cara, eu acho, cara, que a próxima

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vez que eu for ao Maracanã, agora, ainda mais que é outro Maracanã e tal... eu acho que eu vou chorar, cara. Eu acho.

Como podemos observar, as histórias contadas pelo pai de Roberto envolvem os principais títulos conquistados pelo Flamengo e a figura de Zico, maior ídolo da história do clube. Essas histórias despertavam no entrevistado a vontade de conhecer o Maracanã, o que revela a função socializadora da ida ao estádio. Fernando, que também torce pelo Flamengo, afirma que seu pai costuma lhe contar, com muita freqüência, histórias sobre suas experiências como torcedor, principalmente quando assiste a algum lance de jogos do passado na televisão:

Ah, conta. Sempre conta, quando a gente tá vendo programas, assim, tipo aquele “Gol, o grande momento do futebol”, que passa gols antigos, meu pai sempre fala assim “pô, esse time que era foda, esse time tinha uns caras assim”. Aí, volta e meia tem uns gols que ele fala “pô, eu tava nesse jogo... esse jogo aconteceu isso, isso e aquilo”. “Pô, nesse jogo...”, um amigo dele, ele fala “ah, nesse jogo, o Nilo, a gente içou o Nilo”, antigamente tinha muito disso, né? Nego amarrava as camisas e puxava a galera no Maracanã... não tinha controle nenhum. Aí ele conta várias histórias de... ele nunca, nunca teve história de briga, essas coisas assim, não, mas só de, de, de estádio cheio mesmo. De perrengue pra entrar, pra voltar pra casa, tudo.

Leandro, por sua vez, ressalta a importância das histórias contadas por seu avô, na medida em que seu pai teria agido de modo “negligente” em seu processo de formação como tricolor. Como indicamos em outro trecho deste capítulo, a relação do entrevistado com seu avô teria o Fluminense como principal fundamento. Sendo assim, eles se encontravam nos fins de semana para “falar sobre o Fluminense o dia inteiro”, e o avô lhe contava “muita história dele, do Fluminense, de jogo que ele ia, as viagens que ele fazia de Campos”, etc. Dentre essas histórias, merece destaque aquela que se refere à final do de 1971, disputada entre Fluminense e Botafogo:

Cara, dessas histórias que ele contava, é... vou te falar que a que mais me marcou foi a que ele contava do... do campeonato carioca de 71, que foi... o que me encanta, assim, foi esses padrões absurdos do Fluminense que meio que se repetem historicamente, né? Tipo, eu tava falando do gol de barriga, que foi o que me marcou muito, é muito parecida a história, porque em 71 o Fluminense tinha um time ruim, os tradicionais timinhos do Fluminense... fracos e tal. E o Botafogo era o melhor time, o Botafogo tinha vários jogadores campeões do mundo de 70, Paulo César Caju, tinha o Jairzinho, enfim, era um timaço. [...] E o Fluminense com o Zagallo de técnico, retranqueiro... um time fraco, um timinho, que não era ruim, mas enfim, veio com essa fama, não tinha nenhum grande jogador... foi,

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ganharam de 1 a 0, naquele esquema do Fluminense, 1 a 0. [...] Cara, e assim, esse negócio foi tão marcante, que um vizinho que eu tinha, que era botafoguense, tem seus, tinha, hoje deve ter os seus 60 anos, se você tocasse no assunto desse jogo com ele, ele ficava transtornado... porque tinham roubado, porque tinha sido roubado, num sei o que [risos]. E o Botafogo já era favoritaço, o Fluminense não tinha nenhuma chance e ganhou a final desse jeito. Aí o meu avô, o meu pai, eu imagino a emoção deles. Porque passaram um perrengue, também, saíram de Campos num Fusca, horas e horas, o fusca quebra. Chega aqui atrasado e, pô, chegar lá e ganhar desse jeito, com gol roubado aos 40 e tantos do segundo tempo... é demais, né? [...] Cara, ele me contou essa história, ele me contava a mesma história várias vezes, e eu não me cansava de ouvir, pra falar a verdade. Pra mim, era um prazer, tanto que eu ia pra lá.

Leandro afirma que não se cansava de ouvir as histórias contadas por seu avô, ainda que elas pudessem parecer repetitivas. Na verdade, como afirma Coelho (2009), a repetição não consiste necessariamente num enfadonho “mais do mesmo”, que se limita à reprodução de algo já dito outras tantas vezes. Há sempre algo de novo na repetição, e isso impede que ela seja vivenciada como uma simples reiteração, ou pelo menos, que ela seja experimentada como algo negativo. Histórias contadas repetidamente podem trazer à tona valiosas memórias de conteúdo afetivo, contribuindo para a renovação de laços sociais, como parece ocorrer na relação de Leandro com seu avô. Fernando, por sua vez, diz que as histórias contadas por seu pai às vezes o deixam emocionado, ou melhor, “mexem” com ele, porque remetem a um tempo em que a paixão dos torcedores seria maior, ou mais verdadeira, na medida em que o futebol teria se transformado numa “indústria” atualmente:

Cara, mexem, porque... eu acho que as pessoas, antigamente, gostavam mais de futebol, ou o futebol era uma coisa mais... mais aprazível, mais acompanhável do que hoje em dia, entendeu? Hoje o futebol, cara, hoje o futebol é uma indústria, é um comércio... num, num tem jeito, entendeu? Acho que, antigamente, rolava muito mais paixão do que qualquer coisa. [...] Agora, hoje, existe paixão? Existe, que é remanescente, tal, dessa galera, mas eu tenho uma visão meio pessimista, assim, do futebol. Eu acho que essa coisas, hoje, só existem, porque os caras que acompanharam essa geração de crescimento do futebol, na década de... mais na década de 70, 80, esse caras ainda tão vivos. Entendeu? Mas acho que, com o passar dos anos, cara, eu acho que num, num vai ser. [...] Porque esses caras têm o que contar, entendeu? Pra, pros filhos, pra ter um motivo. Pra, pra criança ser, ser certo time, entendeu?

O entrevistado destaca, portanto, a função socializadora da memória e sua importância para a continuidade das emoções vivenciadas no futebol. Numa visão pessimista, ele avalia que a emoção ainda remanescente no universo mercantilizado

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do futebol estaria ligada às gerações mais antigas de torcedores, pois apenas estes teriam realmente “o que contar” para seus filhos. No trecho seguinte, ele volta a abordar a importância dessas memórias para a socialização de novos torcedores:

Ah, cara, acho que é total, né? Você tem que ter o que contar pro teu filho, né? Você mostrar pra ele... pô, olha esse gol aqui, né? Que nem meu pai fazia comigo. Pô, eu tava em tal lugar... fazer, na verdade, fazer com meu filho a mesma coisa que meu pai fazia comigo, né? “Tava em tal lugar, tava fazendo isso, foi um dia assim, foi um dia assado. Pô, o pai tava no Maracanã esse dia, foi horrível... Flamengo e Grêmio, porra, achei que ia morrer naquele jogo”. E assim por diante, eu acho que é... é tipo, pra você cumprir seu dever como pai-torcedor, entendeu? Acho que você não pode perder essas lembranças, assim.

Halbwachs defende o caráter coletivo da memória, destacando a importância da constituição de um patrimônio comum de lembranças para a formação da identidade de um grupo. A constituição desse conjunto de lembranças envolve a transmissão de memórias de uma geração a outra – ou seja, a socialização transgeracional de lembranças –, o que não significa a mera reprodução de conteúdos, pois esse processo envolve esquecimentos, invenções, reinterpretações, deslocamentos contextuais e a reflexão individual. Além disso, algumas memórias podem estar relacionadas a mais de um contexto, ao mesmo tempo, contribuindo para a ligação do indivíduo a diferentes grupos. Nos exemplos citados acima, os entrevistados comentam a importância das memórias transmitidas por seus familiares para a sua formação como torcedores. Por um lado, essas memórias os conectam ao clube para o qual torcem e à comunidade de torcedores da qual passam a fazer parte. Por outro lado, essas lembranças também se constituem como memórias familiares, contribuindo para a construção de importantes vínculos afetivos masculinos.

2.2 O sentimento pelo clube

Neste capítulo, examino os discursos dos entrevistados sobre o sentimento e a importância da relação mantida com seu “clube do coração”. Nos depoimentos colhidos para a pesquisa, destacaram-se os sentimentos de amor e paixão, bem como a noção de fidelidade. Ao caracterizarem a importância da relação mantida

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com seus clubes, os entrevistados relataram diversos episódios marcados pelo excesso e pelo descontrole, que se afinam com o ideário do amor-paixão romântico. O predomínio desse padrão emotivo aponta para o convívio da masculinidade, no contexto do futebol, com uma sensibilidade definida culturalmente como um atributo feminino no Ocidente. Segundo Abu-Lughod e Lutz (1990), a etnopsicologia ocidental é marcada pela oposição entre as noções de razão e emoção, com a valorização do primeiro aspecto em detrimento do segundo. Esse esquema se articula ainda ao sistema cultural de diferenciação entre os gêneros, estipulando diferentes padrões emocionais para homens e mulheres. Nesse sentido, as emoções são concebidas como um fenômeno tipicamente feminino, sendo negativamente associadas às noções de irracionalidade e descontrole. Os homens, por sua vez, seriam essencialmente racionais, e o controle emotivo é erigido como norma de conduta fundamental para a constituição cultural da masculinidade hegemônica. No contexto do futebol, no entanto, essas regras são subvertidas e a emotividade masculina passa a ser valorizada, principalmente na relação do torcedor com seu “clube do coração”. Como temos destacado ao longo do trabalho, o torcedor pode ser considerado o “lócus da emoção” no contexto do futebol. Nas diversas abordagens sobre o tema, seja por parte da imprensa especializada, do marketing esportivo, ou ainda do meio acadêmico, o torcedor é apontado como aquele que se relaciona com o futebol motivado por um “engajamento emocional” (Damo, 2002). Para os demais integrantes desse universo – jornalistas, jogadores, dirigentes, etc. – as emoções também desempenham um papel importante, mas devem ser racionalizadas para o devido cumprimento de suas funções. Desse modo, o comportamento emotivo é o que singulariza a condição de torcedor no contexto do futebol. Seguindo essa abordagem, Gustavo Bandeira (2010) examina os discursos de amor e paixão produzidos pelos torcedores nos estádios de futebol. Os estádios se apresentam como um contexto especial, não apenas por consistirem no espaço ritual onde ocorrem os confrontos diretos entre as equipes, mas também por serem o local onde os sentimentos dos torcedores são vivenciados e manifestados coletivamente, de modo padronizado e segundo regras específicas. Por meio de cantos, hinos, gritos de guerra, coreografias, bandeiras e faixas, os torcedores juram

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amor eterno e fidelidade aos seus clubes, declarando-se capazes de cometer loucuras e sacrifícios em nome da paixão que sentem por ele. Essas manifestações seguem, portanto, os ideais do amor-paixão romântico, que valoriza o excesso emotivo como uma prova da veracidade dos sentimentos. Em minha pesquisa, os discursos emotivos dos torcedores foram capturados num contexto diferente. As entrevistas em profundidade consistem num contexto mais reflexivo, em que os pesquisados são convidados a recompor e narrar sua trajetória como torcedores, meditando sobre a importância da relação mantida com seu “clube do coração”, e sobre o impacto que essa ligação afetiva tem sobre suas vidas, para além das situações de jogo. Ainda assim, os sentimentos de amor e paixão prevaleceram nos discursos dos entrevistados. Isso pode ser observado no depoimento de Ademir, 55 anos, que torce pelo Flamengo. Ao ser perguntado sobre o sentimento que teria por seu time, respondeu:

Olha só, não especificamente pelo time, mas eu acho que pelo clube, por essa Nação, por ser Flamengo, entendeu? É um espírito de amor, carinho, paixão, entendeu? De vontade de ver vencer sempre, entendeu? Ficar agoniado quando perde, com alguma coisa nessa linha.

O entrevistado define o sentimento por seu clube como um “espírito de amor, carinho, paixão”. É interessante notar a diferença que ele faz entre as noções de “time”, que se limitaria a um conjunto passageiro de jogadores, e “clube”, que remeteria a algo maior e mais significativo. Nesse sentido, o sentimento do entrevistado estaria relacionado à sua identidade como torcedor do Flamengo (“ser Flamengo”) e, por conseguinte, ao pertencimento a uma determinada “comunidade imaginada de sentimentos” (“Nação”), formada pelos demais torcedores do clube. Em outra passagem, ele volta a definir seu sentimento nos termos do amor-paixão romântico: “O Flamengo é assim, é amar ou amar... é amar ou amar, não tem jeito!”. O sentimento de amor também aparece no depoimento de Pedro, 63 anos, que torce pelo Botafogo. Em sua entrevista, ele define o sentimento por seu clube da seguinte maneira:

Eu acho que é igual a todo torcedor, né? É... Num deixa de ser um amor, né, cara? Num é? Quando ganha, você vibra, torce, vibra... e quando perde, fica chateado, aborrecido...

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Pedro define sua relação com o Botafogo como um sentimento de amor, que em sua visão seria o sentimento tipicamente devotado por qualquer torcedor ao seu “clube do coração”. Nesse tipo de relação, as vitórias e derrotas de um time tendem a afetar as emoções e o humor de seus torcedores, como ocorre no caso de Pedro. De modo semelhante, Bernardo, 49 anos, que também torce pelo Botafogo, escolhe o termo “paixão” para definir seu sentimento pelo clube:

Alegria, quando ganha, tristeza, quando perde, coisas boas... Eu gosto do Botafogo, é o meu time, eu sou Botafogo... Agora, se tiver que definir em uma palavra, eu diria que é paixão o que eu sinto.

Jaime, 60 anos, foi mais enfático ao definir seu sentimento pelo Fluminense, clube pelo qual torce. Em seu depoimento, ele foi o entrevistado que mais se aproximou do discurso que valoriza os exageros e sacrifícios que caracterizam o amor-paixão romântico. Como vimos no capítulo anterior, ele atribuiu à “paixão” e à “loucura” o fato de ter se tornado um torcedor “doente” pelo Fluminense, apesar de seu pai e o restante de sua família torcerem pelo Vasco. Em outro trecho da entrevista, ele define seu sentimento pelo clube como “uma paixão infindável”:

Uma paixão infindável... [...] Trocaria qualquer coisa. Eu trocaria a minha carreira... de qualquer coisa, qualquer carreira que eu tenha, trocaria pra ver o Fluminense sempre campeão, todo dia. Tudo! Trocaria todas as mulheres que eu tive na minha vida... tudo, tudo que você possa... pensa uma coisa, eu trocaria. Ah, talvez não pela vida dos entes querido, não, eu digo assim... é incondicional, é uma coisa que num, é... num, num dá pra dizer, é...

Jaime caracteriza seu sentimento como algo “incondicional”. Ele diz que “trocaria qualquer coisa” pelo Fluminense, declaração que assume um importante valor retórico para a caracterização da força de seu sentimento. Embora possamos questionar se o entrevistado realmente seria capaz de trocar “qualquer coisa” por seu clube – como ele mesmo parece fazer, ao ponderar em favor da vida de seus “entes queridos” – o que importa aqui é o significado discursivo dessa declaração, qual seja, a auto-representação do entrevistado como um torcedor apaixonado por seu clube. No fim desse trecho, Jaime também afirma que seu sentimento pelo Fluminense seria “uma coisa que num dá pra dizer”. De modo semelhante, ele afirma, em outra passagem, que “as paixões você não explica [...] você se apaixona e pronto”. Essa relativa dificuldade em explicar o que se sente, ou melhor, em

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verbalizar uma emoção, traduzindo-a em palavras, também aparece em diversas outras entrevistas, voltando a ser manifestada por Jaime no seguinte trecho:

Eu não sei explicar, eu sei que é muito forte, é forte assim de, de minha, meu batimento cardíaco mudar, eu perder os sentidos, eu perder o tônus, eu... eu jogar sapato na televisão e quebrar a televisão em casa, é... ninguém me conhece, só quem me vê... a minha primeira mulher, que é uma amiga que eu tenho até hoje, ela disse que só me conheceu, nós tivemos uma relação muito boa de sete anos, muito... muito querida, é uma pessoa muito querida... só me conheceu no dia que ela me viu no Maracanã.

A dificuldade do entrevistado em definir o sentimento por seu clube pode ser relacionada ao modo como as emoções são concebidas na cultura ocidental. Segundo Abu-Lughod e Lutz (1990), ao serem definidas como fenômenos naturais, subjetivos e irracionais, as emoções tornam-se refratárias a qualquer forma de teorização ou reflexividade, sendo relacionadas aos planos do corpo, das sensações e da experiência. Por isso, o entrevistado procura sugerir a intensidade de seu sentimento através de uma descrição dos fortes efeitos que ele exerceria sobre seu corpo e seu comportamento. Devido ao caráter “irracional”, elas costumam ser associadas à ordem do indizível, ou do incomunicável, pois seriam avessas às convenções sociais. Por outro lado, elas são tomadas como signos da originalidade e espontaneidade da vida interior dos sujeitos, em contraste com a possibilidade de manipulação das formas expressivas. Desse modo, é como se os sentimentos só pudessem se tornar conhecidos no plano da experiência, ao serem vivenciados de modo singular por cada indivíduo. A expressão das emoções não conseguiria captar seu real significado e intensidade. Em termos simmelianos, podemos dizer que o fluxo da vida nem sempre consegue encontrar abrigo nas formas fixas oferecidas pela cultura (SIMMEL, 1983). Desse modo, a incomunicabilidade de um sentimento pode ser entendida como um instrumento discursivo para indicar sua originalidade e intensidade. Na seqüência, Jaime ressalta a importância das emoções vivenciadas através do futebol para a formação de sua subjetividade:

Sabe de uma coisa, eu costumo dizer uma coisa, que eu não disse na entrevista... isso eu gostaria de dizer, que eu aprendi a me apaixonar com o futebol. Quer dizer, se eu hoje sou uma pessoa apaixonada por tudo o que eu faço, eu sou, se eu sou apaixonado pelas mulheres que eu amei,

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que eu amo, que eu vivi, num é? O futebol me ensinou isso. Porque a minha paixão pelo futebol é anterior. [...] Eu sou um ser apaixonado, eu dou aula apaixonadamente. Eu escrevo apaixonadamente, eu faço música apaixonadamente, eu vivo com as mulheres com quem eu vivi na minha vida apaixonadamente, e se a paixão termina, termina a relação. Isso eu aprendi com o futebol. O futebol me fez essa figura apaixonada, eu sou apaixonado por causa do futebol. O futebol me ensinou isso, quer dizer. A primeira coisa que eu me apaixonei, na minha vida, foi pelo futebol. O futebol é devastador pra mim, assim. Devastador, num sentido que eu considero positivo, não no sentido de me fazer mal. Me faz mal... me faz mal. Mas me faz mal, me fazendo bem. Essa é a dialética fundamental: todo o mal traz em si um bem e vice-versa, entendeu? [...]. O futebol é isso pra mim. Portanto, existencialmente é importante pra mim. Eu espero morrer num estádio de futebol, eu sempre digo isso, com o Fluminense campeão. Primeiro vendo campeão, depois morrendo. Seria melhor do que morrer em cima de uma cama doente.

Nesse trecho, o entrevistado afirma ter aprendido a se apaixonar com o futebol. Segundo ele, o futebol teria sido sua primeira paixão, e a força desse sentimento seria tão intensa, que teria servido como fundamento para que ele se tornasse uma pessoa apaixonada em todas as áreas de sua vida: como músico, como professor, em suas relações pessoais, etc. Em todas as suas atividades, ele se diz “tomado” por esse sentimento. O futebol assume, portanto, uma relevância existencial para o entrevistado, constituindo sua própria maneira de ser e de sentir. Jaime também caracteriza o futebol como algo “devastador”, o que aparece, no entanto, como um aspecto positivo em sua perspectiva. Com esse termo, ele se refere aos efeitos nocivos do futebol sobre sua vida, que “fazem mal”, mas, ao mesmo tempo, “fazem bem”. Ao longo da entrevista, ele relata diversos episódios de mal-estar e desmaios, que seriam decorrentes das fortes emoções vivenciadas através do futebol. Como vimos, no primeiro capítulo, o pai de Jaime mudou de time e tornou-se torcedor do Fluminense, justamente pelo medo dos efeitos que o futebol tinha sobre a saúde do filho. Na seqüência, o entrevistado relata alguns desses episódios de mal-estar e desmaios, que na lógica romântica aparecem freqüentemente como um símbolo da fragilidade feminina:

É... me lembro, nitidamente, do desmaio que eu tive em 71, Fluminense e Botafogo, a final, gol do Lula. Eu subi pra comemorar e já vi tudo preto, já caí no chão. E... fui atendido [confuso], me lembro. De lá pra cá, algumas vezes, uma tendência ao desmaio, muitas vezes... em 2008, na final da Libertadores, eu botei meu carro aqui dentro da UERJ, e... saí do Maracanã arrasado com a final da LDU, embora que tivéssemos ganho o jogo, não ganhamos o, a Libertadores. E me lembro de ta sentado no carro, pra tentar sair da UERJ, e não conseguir até seis horas da manhã, chorando... e minha mulher ligando desesperadamente, “Você não vem pra casa?!”, eu digo “Eu não consigo dirigir”. Eu chorava sem parar. Então, eu sou, eu

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sou... com o futebol eu me emociono, assim, talvez como... só com música, talvez eu me emocione tanto. Mas futebol é muito forte, comigo é muito forte... vai me matar um dia, tenho certeza. Tomara que me mate, prefiro morrer de futebol, do que de qualquer outra coisa.

Novamente, Jaime afirma que espera morrer em decorrência das emoções vivenciadas através do futebol. Essa declaração consiste não apenas num prognóstico, mas num desejo de que isso venha a acontecer. À maneira de um poeta ultra-romântico, o entrevistado declara sua disposição em viver sua paixão até as últimas conseqüências. Para ele, “morrer de futebol” seria melhor do que “morrer em cima de uma cama, doente”. Sob os princípios do amor-paixão romântico, somente a vivência plena das emoções pode conferir um verdadeiro sentido à vida. Em outra passagem, essa tendência aparece num episódio em que ele diz ter misturado remédios e bebidas alcoólicas, em virtude de uma “depressão profunda” ocasionada pela derrota de seu time:

Agora, bem recente, vou te dar uma bem recente: Fluminense e Atlético- MG, Mineirão... O Fluminense, em vez de ser campeão de 2012, perde o jogo pro Atlético-MG, 3 a 2... eu entro numa depressão profunda, viro um litro de vodka, misturo com rivotril, que é um remédio brabo, que eu... que eu tenho disritmia, né? Sou epilético, tenho um quê de epilepsia. E... eu não dou conta de nada, penso que eu vou morrer, assim. Minha mulher chega em casa, fala comigo, eu não respondo. Eu caio no chão da cama, acordo no outro dia... Completamente desvanecido, achando que tinha perdido o título, que tava na mão. Por sorte, depois o Atlético começou a degringolar. Mas o momento muito, muito... um dos momentos mais tristes, assim, foi essa derrota pro Atlético e a LDU, né? As duas vezes. A segunda vez, eu quebrei a televisão com o, com uma sapatada, quando o Fred deu uma cabeçada no juiz, porque a gente ia ganhar o jogo, ia virar... tava ganhando, ganhou o jogo, ia ser campeão da sul-americana, e o Fred faz a bobagem de dar uma cabeçada no juiz. Foi triste também. Mas o Atlético-Mg foi muito ruim, porque foi uma coisa da tensão de perder o jogo, perder o campeonato. Perdemos um jogo que podíamos ter ganho, távamos jogando de igual pra igual lá dentro. O time era forte. E eu... eu pirei com o jogo, eu pirei completamente com o jogo. Enlouqueci.

Como podemos observar, o futebol tem um forte impacto sobre o comportamento e as emoções de Jaime. Além de se considerar um apaixonado, ele é um dos poucos entrevistados a se apresentar como um torcedor fanático por seu time. Nesse sentido, ele caracteriza a si mesmo como alguém “emocionalmente conturbado”, referindo-se à paixão por seu clube como uma espécie de “loucura” ou “doença” em diversos momentos. Em sua entrevista, as emoções aparecem como sinônimos de irracionalidade, excesso e descontrole, em conformidade com a ideologia cultural do Ocidente (ABU-LUGHOD E LUTZ, 1990). Desse modo, elas são

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concebidas como elementos perigosos, que ameaçam sua saúde e o levam a cometer atos extremos. No entanto, isso aparece de modo ambivalente, pois o descontrole emocional assume um sentido positivo ao ser apresentado como um sinal de intensidade na relação do torcedor com seu clube. De modo semelhante, Vítor, 28 anos, torce pelo Fluminense e também se considera um torcedor fanático. Segundo ele, apesar de a torcida do Fluminense não ser tão numerosa quanto à do rival Flamengo, o time conta com um “bom número de fanáticos”, que vão sempre aos estádios para acompanhar o clube, nos bons e nos maus momentos. O entrevistado inclui a si mesmo nesse grupo: Eu sou muito, muito, muito fanático pelo Fluminense, eu realmente sou muito fanático. Todas as pessoas que convivem comigo, elas sabem que, assim, isso influencia muito na minha vida. Isso... todo mundo, assim, meus pais, meus amigos, minha namorada... minha namorada é Fluminense, namoro há oito anos com ela, assim, e ela sabe que... pode influenciar no final de semana o resultado de um jogo, assim. Por exemplo, esse fim de semana o Fluminense joga sábado, 16 horas, contra a Ponte Preta. Se o Fluminense perde esse jogo pra Ponte Preta, que é um jogo chave, assim, vai influenciar muito no meu final de semana, entendeu? [...] Assim, eu já saio com... é um, é um pouco mau humor, uma não vontade de... não vontade de fazer as coisas, mas assim, eu não chego tão animado, num vou chegar tão animado, porque, assim, o... pra quem é muito fanático, ele condiciona um pouco sua vida àquilo, ao Fluminense, entendeu?

Vitor se considera um torcedor “muito fanático pelo Fluminense”, devido ao forte impacto que a relação com o clube tem sobre sua vida. Segundo ele, essa relação exerce uma grande influência sobre seu comportamento, condicionando o planejamento de suas atividades e seu estado de espírito. Nesse sentido, ele afirma, em outra passagem, que “a relação com o futebol, ela vai moldando um pouco o que você vai fazendo da vida”. Isso se aplica, por exemplo, à necessidade de conciliar seus compromissos com a agenda de jogos do time:

Aí, isso influencia muito na minha vida, entendeu? Até... com, minha namorada tem uma relação boa com isso, porque ela num... ela sempre entendeu essa, essa forma, como funciona, nunca colocou dificuldades em relação a isso, entendeu? Eu falo porque, assim, o... tem os jogos que tão marcados e, e numa determinada semana eu vou meio que adaptando pra encaixar aqueles jogos. Aqueles jogos vão entrar, entendeu? E, pô... sábado eu tenho dois aniversários pra ir à tarde, Mas, assim, o jogo do Fluminense é às 16 horas. Então, assim, minha prioridade é tentar ir ao jogo... tentar, não! Vou ao jogo, e o resto do fim de semana vai sendo encaixado dentro daquele, daquele horário, daquele calendário, assim. E era uma maneira um pouco... o futebol vai influenciando muito na sua vida, assim. Eu, eu... eu não tenho isso tanto com seleção brasileira. A seleção brasileira, assim, num tem nenhum tipo de afeto especial,

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entendeu? Acompanho, porque eu gosto de futebol, eu num sou... assim, tenho um outro amigo tricolor, que, que ele brinca que ele não é fanático por futebol, ele é fanático pelo Fluminense, entendeu? Então, ele gosta de... é um pouco, é um pouco isso que existe, acho que a gente gosta de torcer, entendeu? Você criar a identidade com aquilo.

Como a maioria dos entrevistados, Vitor indica que o envolvimento emocional estabelecido com seu “clube do coração” seria mais significativo do que a relação mantida com a seleção brasileira, pela qual ele não teria nenhum tipo de afeto especial. De acordo com ele, os efeitos de seu fanatismo pelo Fluminense são tão grandes que chegam mesmo a ser nocivos, atrapalhando sua vida em determinadas áreas, como os estudos e o trabalho:

É... é assim, é algo que, que, claro que, é... as pessoas, do jeito que, que nós somos, assim, fanáticos, elas tentam melhorar em alguns momentos, porque isso atrapalha muita coisa, na vida... Assim, o... atrapalha o... por exemplo, o... eu te falei que eu tava, to me formando agora, né, entendeu? Assim, eu levei muito tempo pra me formar na faculdade, um pouco porque eu fui contratado rápido no trabalho, e outra parte, assim, parcela de culpa pro Fluminense, entendeu? Assim, isso atrapalha... não vou falar que não. [...] já repeti várias matérias na faculdade. Assim, matéria quarta à noite, o campeonato, uma copa do Brasil ou uma Libertadores, começa a engrenar, você vai matando aula toda quarta, enfim. [...] Mas, assim, influencia diretamente na minha vida. Atrapalha, é óbvio que atrapalha a minha vida, assim. Já fui prejudicado em muitas coisas, entendeu? No trabalho eu ficava desgastado, assim. O... o, na escola atrapalhava, enfim.

[...] eu repeti matérias já, outras matérias, na faculdade, não só por presença, mas porque, assim, você tá num momento como 2010... 2010, sei lá, os últimos 10, 15 dias do campeonato, eu não conseguia fazer nada, absolutamente nada [...]. Então, assim, é um influenciar muito na sua vida, que você passa e você, e vai te atrapalhando... vai te atrapalhando, porque, até chegar ao ponto, você chega na semana da final da Libertadores, um jogo assim, uma semi-final de Libertadores... cara, assim, já cheguei a ter que falar pra minha chefe que eu não to conseguindo trabalhar, “vou ter que ficar quase enganando aqui”. [...] mas na semana do, num um jogo como esse, assim, eu passava, assim, um dia inteiro vendo coisas do Fluminense, assim, vendo vídeo e completamente inquieto, não conseguia ficar na minha cadeira, assim levantava... assim, influencia muito, entendeu?

Para acompanhar os jogos de seu time, Vitor foi reprovado por falta em diversas matérias na faculdade. Segundo ele, a ansiedade provocada nos dias de partidas decisivas também contribuiu para atrapalhar seu rendimento e atrasar sua formação. O entrevistado destaca ainda o desgaste enfrentado no trabalho, principalmente quando precisa pedir permissão à sua chefe para sair mais cedo, ou tirar um dia de folga, de modo a poder assistir aos jogos de seu time no estádio:

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Sei lá, fui no Fluminense e Grêmio, agora, na Libertadores... é isso, você acaba se desgastando. Eu cheguei pra minha chefe, tem que perguntar, eu falei “pô, posso tirar um dia de férias”, aí... como eu não gosto de inventar mentira, ela pergunta “ah, é pra algum, por algum problema pessoal?”, eu falei “não”, falo não, cara, “vou usar um dia de férias pra ver o jogo do Fluminense”, entendeu? É isso... Aí, enfim, aí você se desgasta um pouco até, ela fala “ah, você devia falar que...”, às vezes tem um jogo, sei lá, e num, algum horário, eu peço pra sair mais cedo, aí ela fala “pô, você não devia falar que era pra jogo, você devia falar que era pra ir no, ir ao médico”. Eu falo, cara... assim, não acho, é isso da prioridade pra vida... não acho que, assim, seja um motivo menos nobre, nobre, entendeu? Assim, acho que, assim, é um bom motivo... eu num peço sempre. Você pode entrar em questão se eu estou pedindo muito ou não, assim. Mas, que eu não peço muito. Mas, enfim. Mas, eu acho isso um motivo legítimo, entendeu? Se falar que, pô, você vai resolver problemas pessoais e eu vou ver um jogo do Fluminense, pra mim é um bom motivo, entendeu? É isso. Aí, enfim.

Como vemos, o fato de tratar os jogos de seu time como uma prioridade faz com que Vítor enfrente problemas em seu trabalho, pois nesse contexto, a intensidade da relação mantida com seu clube não é entendida como algo legítimo. Como afirma Giddens (1993), a paixão apresenta muitas vezes um caráter anti- social, provando sua força justamente ao desafiar os valores e padrões de conduta que governam o senso comum. Para termos uma noção do impacto que o desempenho do Fluminense tem sobre seu comportamento, Vitor nos fala sobre o “trauma” vivenciado por ele com a perda da de 2008:

Eu tenho uma obsessão pela Libertadores, né? [...] e, cara, assim, ver o seu time ganhar a Libertadores, é como um sonho, assim. É um negócio que eu quero muito ver em algum momento. E... e, assim, todo, acho que todo tricolor tem, tem um trauma de 2008, assim. Eu tenho um amigo, que ele virou hipertenso a partir de 2008, assim... foi bizarro [...] ele virou hipertenso, ele desenvolveu hipertensão, ficou, sei lá, três anos, aí tomou remédio, assim, porque, cara... foi o maior choque que alguém pode, que um tricolor pode ter vivido, assim. [...] o Leandro, por exemplo, não vê nada da Libertadores, ele nunca viu nada... Se pegar, sei lá, o gol do Washington, ele nunca viu. Eu, eu consigo ver, mas, assim... E... isso de influenciar na vida, tem muito. Eu passei, cara, eu passei uns três meses, assim, tipo, mal, mal... mal mesmo, assim, mal pra vida, entendeu? Tipo... sei lá. Alguém chamava pra fazer alguma coisa, minha namorada falava “pô, vamos sair”, eu falava “não, vou ficar em casa”, tipo... sábado à noite, assim, sabe? Assim, um mês e meio depois. Eu ficava, assim, pensando na vida, mal, mal, mal, mal... Isso é foda, cara. Foi um trauma forte. Assim, foi a memória mais triste, com certeza. O... que, sei lá, essa noite eu nem dormi direito. Eu nem dormi, na verdade, direito, não, eu nem dormi. Eu saí do Maracanã, fui ao jogo... eu fiquei, mais ou menos, assim, uma hora, por algum motivo, a polícia deixou, acho que foi pela situação, ela não expulsou os torcedores de lá. Então, assim, tinham alguns tricolores, ainda, que ficaram lá, entendeu?

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O entrevistado nos apresenta a perda da Libertadores como um “trauma”, não só para ele, mas para todos os torcedores do Fluminense – ou seja, os efeitos desse episódio não se limitariam a uma experiência pessoal, alcançando uma dimensão coletiva. De fato, os demais torcedores do Fluminense entrevistados para essa pesquisa também mencionaram a perda da Libertadores como um momento marcante em suas trajetórias. Isso aparece na entrevista de Jaime, que diz ter passado a madrugada chorando, paralisado dentro de seu carro, no estacionamento, após o jogo. Vitor, por sua vez, apresenta essa lembrança como sua memória mais triste enquanto torcedor e nos conta sobre o longo período de tristeza que se abateu sobre ele após a derrota. Ele menciona ainda um amigo que teria se tornado hipertenso, e nos conta sobre Leandro – nosso entrevistado –, que teria passado um longo período sem nem mesmo conseguir falar sobre o assunto. As memórias de Leandro, 28 anos, sobre a perda da Libertadores de 2008 merecem destaque, pois nos indicam o impacto do futebol sobre suas emoções e seu comportamento. Ele considera esse episódio como sua experiência “mais dolorosa” enquanto torcedor e declara nunca ter sentido “um vazio tão grande” como aquele experimentado logo após a partida decisiva. Assim como Vítor, ele se refere a essa experiência como um trauma vivenciado nos planos pessoal e coletivo:

[...] mas a Libertadores ainda é um trauma. Tanto que, isso aí é uma opinião minha, o Fluminense, ele, o que atrapalha o Fluminense de ganhar a Libertadores é justamente esse trauma. [...] Então, assim, é... existe esse trauma, é uma coisa que mexe muito com o tricolor, e é uma coisa que me preocupa, porque, é o que eu falo, eu bato nessa tecla, a gente tem que tentar lidar com esse trauma e acalmar, ter a certeza de que uma hora a gente vai ganhar. Num tem que ser ou agora ou nunca, não, acalmar. Porque é difícil de lidar com isso. Foi, é um grande trauma, assim, é um negócio, um dos piores dias, momentos da minha vida, assim, de longe. [...] Eu... durante muito tempo, eu nem falava no assunto. E... mais do que isso, assim, as imagens da, da final... da Libertadores, eu fiquei, eu fui, eu nunca mais vi, assim, parar pra ver, num quis ver. Mas, assim, hoje em dia, se tiver passando, assim, eu olho. Eu passei anos, dois anos, sei lá, mais até, não sei dizer data, né? Mas, passei pelo menos dois anos sem nem olhar... nada, nenhuma imagem relativa àquilo [...]. Foi uma experiência muito, muito traumática mesmo... entendeu? Incomoda, lógico, mas hoje em dia eu já lido com mais naturalidade e tal, falo numa boa. Mas, incomoda. É o pior trauma... isso que eu to falando cara, e trauma é o que não falta pra quem caiu pra terceira divisão, né? Muita coisa... Enfim.”

Leandro acredita que o trauma da Libertadores de 2008 tenha criado um clima de tensão e ansiedade entre os torcedores, que vem impedindo que o

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Fluminense volte a ter um bom desempenho na competição. Para voltar a disputar o título, é preciso “lidar com esse trauma”. O entrevistado também relata os efeitos desse episódio sobre sua experiência pessoal. Nesse sentido, além de ter passado por um longo período sem conseguir nem mesmo comentar sobre o assunto, ou visualizar qualquer imagem relativa ao tema, ele diz que se afastou dos estádios por cerca de um ano, chegando ainda a enfrentar problemas no trabalho e em suas relações pessoais:

Porque, engraçado que o Fluminense perdeu a Libertadores, eu comecei a trabalhar com jornalismo esportivo no globoesporte.com dois dias depois... não aguentei. Pedi demissão três meses depois, era tortura demais pra mim. [...] tem outras questões também. Questão de ganhar mal, ser explorado, perspectiva profissional, mas assim, a derrota tornou aquela experiência insuportável. Porque foi uma experiência muito dolorosa e que você tenta meio que fugir e, aquilo, eu praticamente tava respirando aquela porra, aquilo no meu trabalho o dia inteiro. [...] Então, era o dia inteiro falando daquilo, vendo aquilo... É, foi... horrível.

Só que, com o tempo, eu vi que as pessoas que ficaram pior, superaram mais rápido, e eu fiquei um ano sem conseguir pisar no estádio... sem ver jogo. E o Fluminense entrou num buraco muito grande também. E... mas, o mais louco de tudo é que, aí a minha vida foi piorando, aí no ano seguinte o Fluminense... aí a coisa degringolou. Aí no Globo Esporte, eu não aguentei trabalhar, pedi demissão, fiquei desempregado. Aí daqui a pouco, aí tava sem dinheiro, desempregado, meu relacionamento, com a minha namorada, de quatro anos, foi pro vinagre também. Eu terminei, pior ainda.

Com a perda da Libertadores, Leandro abandonou um emprego na área do jornalismo esportivo, por não conseguir conviver com esse trauma em seu cotidiano profissional. Desempregado, ele passou por um momento de crise pessoal, que o levaria ainda ao término de um namoro de quatro anos. Desse modo, podemos observar que o desempenho do Fluminense tem um forte impacto sobre o comportamento e as emoções de Leandro, para além das situações de jogo. Na seqüência, ele ressalta a importância do Fluminense como o principal fundamento para a constituição de sua identidade:

Cara, o Fluminense, pra mim, é... a minha identidade é pautada, enquanto, em cima do Fluminense, assim [...] a minha identidade primordial é de tricolor. Então, assim, antes de me enxergar enquanto brasileiro, enquanto qualquer coisa, enquanto homem, enquanto minha religião, sei lá, católico, nem sou exatamente, mas... eu sou, o que eu sou, eu sou tricolor. Se eu for me definir, eu sou um tricolor. Eu não sou um brasileiro, eu sou um tricolor. Me define, a imagem que eu tenho do tricolor, enfim, até a imagem que eu tenho idealizada do que o tricolor é, o que eu tento ser... e, enfim, eu acho que eu sou o Fluminense e

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o Fluminense sou eu. Acho que o clube, assim, o time, aqueles caras lá, 22 jogando, eles não são o clube, o clube é a torcida... é a cultura, é a história, enfim. E sou eu, somos nós, é o que a gente constrói. É um... é algo vivo, né? Enfim. [...] Mas é isso, é a minha principal identidade, eu me vejo como tricolor.

Ao apontar o Fluminense como base para a formação de sua “principal identidade”, o entrevistado procura definir o tipo de relação mantida com o clube, bem como a importância dessa relação. Apesar do impacto que o futebol tem sobre sua vida, Leandro não se considera, no entanto, um torcedor fanático, mas antes, um apaixonado: Acho que no que a expressão “torcedor fanático” se tornou, no senso comum, sim, a maioria das pessoas usa dessa maneira, acho que sim. Mas eu não me considero fanático, não, acho... talvez, apaixonado seja mais... [...] é porque eu não acho que isso seja, porque eu não acho que isso tenha um impacto nocivo na minha vida. Já teve, mas hoje em dia é mais tranqüilo. [...] Eu acho que... fanatismo, se isso prejudicasse de alguma forma, se me fizesse fazer coisas que eu não faria e... não é o caso. Mas eu acho que, no senso comum, como as pessoas interpretam essa expressão, eu acho que talvez, eu acho que eu seria considerado. Pra minha mãe eu sou, por exemplo.

A maioria dos entrevistados recusou a noção de fanatismo como algo negativo, em parte pela associação desse termo ao comportamento violento freqüentemente vinculado pela opinião pública às ações das torcidas organizadas. Por outro lado, podemos compreender a recusa à noção de fanatismo pelo modo como a relação de tipo carismático é concebida na modernidade ocidental. Num estudo sobre as cartas de amor escritas por fãs a seus ídolos, Coelho (2005) questiona a preferência de seus pesquisados pela noção de amor, e não de carisma, para a caracterização dessa relação. Baseando-se em Lindholm (1993), ela indica o carisma como a relação de um grupo de seguidores – sejam eles membros de uma igreja, fãs de uma banda de rock, ou torcedores de um clube de futebol – com seu ídolo. Numa relação do tipo carismático, os seguidores abrem mão de sua singularidade e passam a fazer parte de uma multidão indiferenciada, na qual a única individualidade que se sobressai é a do ídolo. Na modernidade ocidental, no entanto, a individualidade é erigida como um valor cultural fundamental, o que torna depreciável a alienação associada à relação de tipo carismático. Por isso, ao invés de carisma ou fanatismo, os torcedores – assim como os fãs na relação com seus ídolos – afirmam sentir amor e paixão por

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seus clubes, pois esses são sentimentos que promovem a singularização tanto do sujeito como do objeto da relação afetiva. Em conformidade com o que foi dito acima, o flamenguista Roberto, 26 anos, também recusa a noção de fanatismo, interpretada por ele como algo negativo. Nesse sentido, ele se apresenta como um torcedor “equilibradamente apaixonado”, conciliando a desmesura da paixão com a lógica de controle masculino, numa síntese peculiar:

Eu, assim... que eu acho que a palavra “fanático” tem uma carga negativa, sabe, cara? Acho que ser fanático, sempre tem uma coisa meio “ah, fulano é fanático”, ou seja, que o cara é maluco, entendeu? Sempre tem uma coisa meio assim. Aquela idéia do fanatismo religioso, do fanatismo por algo. Então, eu me considero um apaixonado. Eu sou equilibradamente apaixonado pelo futebol e pelo Flamengo, entendeu? Não me considero fanático. [...] Cara, eu acho que eu sinto uma paixão. Eu sinto uma paixão, isso aí... ah, é uma paixão, é um sentimento diferente, é um sentimento de, de... ainda que a gente saiba que é uma coisa completamente alheia a nossa pessoa, entende? Porque o que eu fizer não vai influenciar como o Flamengo vai jogar, mas apesar de ter essa, essa... saber que é uma coisa alheia a minha pessoa e tudo isso, é uma sensação de pertencimento, sabe, assim? Ou seja, que eu faço parte de uma, de uma, de uma legião e tal, e de uma torcida e, sim, me considero um apaixonado pelo clube, né, cara? Acho até que o... acho que o único verdadeiro amor de um homem é pelo clube, cara. Eu acho, porque... se eu tomar de 6 amanhã do Goiás, eu na semana que vem vou estar vendo de novo o jogo do Flamengo, né? Agora, num sei se, num sei se em todos os aspectos da vida, você pode dizer a mesma coisa, né? Se a tua mulher te trai... num sei se você vai voltar a ficar com ela no dia seguinte. Mas se o Flamengo toma de 6 do Vasco no próximo clássico, eu vou ficar puto, vou ficar triste, mas depois, no outro jogo é... é ser casado de novo.

Roberto se considera, portanto, um torcedor “equilibradamente apaixonado” pelo Flamengo. Esse sentimento envolve, mais uma vez, a noção de pertencimento a uma determinada “comunidade de sentimentos”, formada pelos torcedores do clube. O entrevistado acredita ainda que a ligação afetiva de um torcedor com seu time representaria o “único verdadeiro amor de um homem”, devido ao caráter incondicional desse sentimento. Segundo Roberto, somente nesse tipo de relação, o princípio de fidelidade, que acompanha o conceito de amor-paixão romântico, se concretizaria efetivamente, pois um torcedor, idealmente, nunca abandona seu time – o que não se observaria, contudo, nem mesmo no âmbito das relações conjugais. No discurso do amor-paixão romântico, que, em nossa perspectiva, permite lançar uma luz sobre as experiências emotivas dos torcedores de futebol, encontramos a idealização de uma união perfeita entre as noções de intensidade,

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associada ao sentimento de paixão, e de estabilidade, associada ao sentimento de amor (Giddens, 1993). A estabilidade da relação amorosa adviria da fidelidade devida pelo amante ao objeto amado. Como afirma Simmel (1964), a fidelidade é um sentimento sociologicamente orientado, que possibilita a continuidade de uma relação, mesmo quando as motivações que lhe deram origem já não se encontram mais presentes. Isso pode ser observado no depoimento de Fernando, 28 anos, torcedor do Flamengo:

Cara, eu gosto do Flamengo, eu sou flamenguista, eu acho que isso num... deixar de ser... um time, né, eu acho que isso é... não só o Flamengo, acho que qualquer pessoa, né, que eu acho que fala assim “ah, eu não sou mais um time, agora eu vou ser outro”. Porra, uma pessoa dessa, cara, eu acho que ela não merece nem, sei lá, ir pro estádio, sabe? Ou falar qualquer coisa, porque eu acho que o time, você... tudo bem, você não tá ganhando nada com isso? Pô, não, mas é aquela coisa, é... isso acaba te remetendo a uma série de lembranças, coisas boas, coisas ruins, né? Por exemplo, posso, assim. Quando o meu pai morrer, sei lá, por exemplo. Pô, não vai ter como eu não ver um jogo, por exemplo, do Flamengo sem lembrar dele, sacou? Eu lembro do meu avô, que meu avô era flamenguista, porra, roxo. Eu lembro de pouca coisa, assim, mas pô, a gente vê, a gente lembra, assim. Eu acho que a relação minha com, com o Flamengo hoje é justamente essa, assim, porque... aquela coisa, você, você cresceu naquele meio né, cara, então você acaba acompanhando. [...] É lembrança, é crescimento, o cara lembra quando ele era, desde pequeno... num vai mudar depois, entendeu? Então, acho que a minha relação com o Flamengo é justamente essa. Num é questão de, “ah, que eu acho que o time é bom pra cacete, eu acho que o time vai pra frente”. Pô, eu acho que é algo além disso, assim.

No contexto do futebol, a fidelidade se apresenta como um valor fundamental. Como afirma Ruben Oliven (2002), no Brasil, deputados trocam de partido político a todo o momento, sem serem moralmente acusados de traição, mas o torcedor que muda de time recebe imediatamente a alcunha de “vira-casaca” e passa a ser tratado com desconfiança entre seus pares. Para o entrevistado Vinicius, a mudança de time, a partir de certa idade, não se encontraria nem mesmo dentro do horizonte de possibilidades de um torcedor:

[...] o “virar casaca” existe até um certo momento... até 10, 12 anos. Não passa pela cabeça de ninguém, alguém com 23 anos de idade mudar de time, né? Não é algo real, a partir do momento que você escolhe e passou de 13, 14 anos, eu acho que é muito improvável que alguém mude de time.

Tendo em vista a importância da fidelidade na relação do torcedor com seu clube, a mudança de time pode acarretar sanções por parte dos outros torcedores.

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Nesse sentido, Ademir destaca sua fidelidade ao Flamengo e menciona o tratamento dirigido a um amigo que teria mudado de time durante a juventude:

Então, tem essa coisa assim. Quero tá ali, assistir... tá mal, tá brigando pra num ser rebaixado, tá brigando pra subir, tá brigando pra ser campeão... qualquer situação, eu quero tá ali. Eu, minha cervejinha e o jogo, entendeu? E assim eu sou.

Eu tenho um amigo, ele tá lá nos seus 47, 48 anos, entendeu? Paulo Roberto. Ele era Flamengo doente, de ir ao Maracanã, bandeira, ele ia ao Maracanã com a gente, essa coisa toda, torcia e tal... e nessa era mesmo, Zico e Dinamite, é... aconteceu que o Flamengo perdeu um título pro Vasco. É o único sujeito até hoje que eu conheço na história: ele passou a ser Vasco daquele dia pra cá e é até hoje vascaíno. Então, toda vez que a gente tá conversando, e ele começa a falar de futebol, eu dou uma sacaneada nele e proíbo: “você não pode falar de futebol, que tu é proibido!”. Isso gera aquela discussão e tal, num sei que... mas ele virou Vasco, porque o Flamengo perdeu um título pro Vasco. Pô, imagina!

Na história contada por Ademir, a mudança de time se mostra ainda mais grave por ter ocorrido entre arqui-rivais, pois seu amigo deixou de ser “Flamengo doente” para tornar-se torcedor do Vasco. A importância da fidelidade também aparece nos discursos de torcedores cujos times enfrentaram a experiência do rebaixamento, situação vivenciada como uma “humilhação”, por colocar em xeque o pertencimento simbólico de um clube à elite do futebol. Esse é o caso de Jaime, que afirma ter acompanhado o Fluminense em todos os jogos da terceira divisão. Nesse período, sua relação com o clube teria se tornado ainda mais intensa:

Fui ao Maracanã em obras, em obras... não esta, uma das milhares de obras que servem pra ganhar dinheiro. O Fluminense na terceira divisão, jogando com... Eu vi todos os jogos do Fluminense na terceira divisão. Todos, no Rio de Janeiro, não fora do Rio. Eu não podia, porque tinha compromisso com a Universidade. No Rio de Janeiro eu vi todos, o Maracanã em obras, a gente ficou nas cadeiras, onde eram as cadeiras. “A gente” quer dizer a torcida. Eu fui a todos os jogos da terceira divisão, todos! Não fui à final, porque foi lá, com o Náutico, lá em cima, em Pernambuco... mas eu fui a todos os jogos. A terceira divisão mexeu comigo. Eu enlouqueci com a terceira divisão... com a segunda divisão...

Eu conheço tudo, eu fui conselheiro, eu fui sócio, eu sou sócio, eu fui conselheiro... quando o time caiu, eu me associei, quando o time caiu pra segunda divisão, depois pra terceira, eu me associei, me dei de presente um título de sócio-proprietário. E, pra, lá dentro, fui tentar fazer política, me desencantei muito com a coisa de fazer política de clube, porque a política não é feita com a emoção, e eu sou torcedor de arquibancada, eu não, não quero administrar, não quero saber... não quero saber das nojeiras que rolam, não me interessa, eu quero só viver essa paixão, num, num... é, porque com esse tipo de relação, você, a paixão não vem.

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Jaime afirma que tentou participar da vida política do clube, mas desistiu pelo fato de que “a política não é feita com a emoção”, o que não condizia com o ethos apaixonado de torcedor seguido por ele. Wagner, 53 anos, que torce pelo Vasco, também afirma ter acompanhado todos os jogos de seu time na segunda divisão:

Acompanhei, todos os jogos que eu podia, eu ia a São Januário. Esse ano, eu até pude, até acompanhei mais, ia a São Januário... botequim, entendeu? Em casa... terça, sexta, é... acompanhei mais o Vasco. Fui com o Vasco pra segunda e voltei.

Não, não foi obrigação, é amor ao clube. Porque nós, torcedores, nós temos amor ao clube. Nós temos amor a... àquilo que a gente começa a torcer desde mais novo, então, a gente chega e pega um amor pelo, pelo time. Se eu falar assim “ah, eu sou tricolor, mas num... pra mim tanto faz!”, isso aí não é torcedor. Pô, meu irmão é tricolor, mas, porra, nunca foi ao Maracanã, nunca falou... se perguntar o nome de um jogador, talvez ele fale “Félix!” [...]. Quem é torcedor, quem gosta de futebol, quem acompanha, tem um amor mais expressivo pelo clube.

Como podemos observar, Jaime e Wagner apontam, novamente, o torcedor como o “lócus da emoção” no futebol, destacando o engajamento afetivo que se encontraria na base da relação do torcedor com seu clube. Ao longo da pesquisa, nossos entrevistados declararam sentir amor, paixão e fidelidade por seus clubes, enquadrando-se no discurso do amor-paixão romântico que orienta as experiências afetivas dos torcedores de futebol. O que queremos destacar, nesse ponto, é o convívio da masculinidade, no contexto do futebol, com uma sentimentalidade culturalmente compreendida como um traço típico do comportamento feminino. Segundo Giddens (1993), a concepção romântica do amor surge na modernidade, juntamente com a constituição do modelo burguês de família. Nesse período, a divisão sexual do trabalho destinava aos homens as atividades ligadas ao âmbito público, enquanto as mulheres eram relegadas ao âmbito da vida privada. Essa divisão de tarefas era acompanhada ainda por certa redistribuição do trabalho emocional entre homens e mulheres. Responsáveis pelo cuidado da casa e dos filhos, as mulheres tornaram-se o centro da vida afetiva na modernidade, e o mundo dos sentimentos tornou-se historicamente um domínio feminino na cultura ocidental. Por estarem associados à feminilidade, os sentimentos são entendidos como sinais de fraqueza e descontrole, que devem ser evitados com vistas à manutenção de uma conduta genuinamente masculina. Para tornar esse modelo mais complexo,

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abordo a seguir alguns episódios de “choro masculino” relatados pelos entrevistados na rememoração de suas experiências como torcedores.

Na cultura ocidental, a emotividade é compreendida como um atributo tipicamente feminino, devendo ser evitada pelos homens para a sustentação simbólica de sua virilidade. Nesse sentido, os homens não devem sentir ou, pelo menos, não devem demonstrar publicamente o que sentem. Como se costuma dizer no senso comum, “homem não chora”, pois o derramamento de lágrimas é culturalmente compreendido como a principal forma de expressão dos sentimentos. No entanto, ao longo das entrevistas realizadas para esta pesquisa, diversos torcedores relataram momentos de choro desencadeados pela emoção vivenciada na relação com o futebol e, especialmente, com seus clubes. Esse é o caso de Wagner, que ao ser questionado se já havia chorado alguma vez pelo Vasco, respondeu: É... Quando o time é campeão, a emoção vem mais forte, né, cara? Quando teu time é campeão, você... é aquilo que eu te falo, você lá no campo, você tem, sente o calor da torcida, o... calor da torcida, o calor da emoção de você tá vendo, aí você, você, você assim, a tua adrenalina, é... você, mexe mais com você.

O entrevistado afirma que quando seu time é campeão, “a emoção vem mais forte” – ou seja, ele chora – principalmente quando esse momento especial é vivenciado diretamente no estádio, ao lado de outros torcedores. Esse episódio de choro é representado como um momento de descontrole, ocasionado pela intensidade das emoções vivenciadas em decorrência da conquista de um título. O rubro-negro Roberto também relata um episódio marcante de choro em suas memórias como torcedor do Flamengo:

Chorei numa, numa Copa do Brasil. Chorei num Flamengo e Palmeiras, Copa do Brasil. Não lembro o ano agora exatamente, cara, mas eu sei que o Flamengo tinha ganhado no Maracanã de 1 a 0, se eu não me engano. E aí foi lá no Parque Antártica jogar contra o Palmeiras... fez 2 a 1 em cima do Palmeiras. Porra, 2 a 1 com 35 minutos do segundo tempo, o Flamengo precisava tomar três gols pra ser eliminado... tomou! [...] Foi, foi, foi bem triste. Eu acho que foi a única vez que eu chorei, assim, chorar de... de lágrima correr, assim. Mas já fiquei muito triste, assim de... por exemplo, quando eu fui naquele Flamengo e América do México, fatídico dia... eu não chorei não, cara, mas eu fiquei... fiquei, assim... eu acho que se eu tivesse sozinho, eu chorava.

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O entrevistado relembra, nesse trecho, uma ocasião em que teria chorado, em virtude da eliminação do Flamengo na Copa do Brasil de 1999. Essa teria sido, no entanto, a única vez em que Roberto efetivamente chorou por seu clube, muito embora ele mencione diversos outras situações ao longo de sua entrevista em que teria sentido vontade de chorar. Fernando, que também torce pelo Flamengo, relembra um jogo em que “chorou de raiva” após a perda de um título:

Cara, chorei de raiva. Num foi de, de, de tristeza não, foi de raiva, de tão puto que eu tava. Foi no Flamengo e Grêmio, final da Copa do Brasil, 97, gol do Lúcio. Flamengo ganhando de 2 a 1, os caras meteram 2 a 2, aos 40 e varada já, assim... Aí o Flamengo perdeu o título. Pô, fiquei desesperado!

O entrevistado procura enfatizar que seu choro teria sido motivado pelo sentimento de raiva, e não pela tristeza, o que pode ser entendido como uma tentativa de legitimar suas lágrimas como uma expressão genuinamente masculina. Afinal, a raiva é uma das poucas emoções culturalmente associadas ao comportamento masculino, sendo relacionada à violência e à agressividade. O choro de tristeza, por sua vez, permaneceria simbolicamente ligado à fragilidade típica da sensibilidade feminina. No depoimento de Vítor, que torce pelo Fluminense, também podemos observar a particularidade do choro masculino no contexto do futebol:

É, porque eu não choro tanto. Assim, eu tenho esse problema, assim, que eu choro pouco. Não que eu não fique emocionado, mas assim, eu tenho... eu passo muito tempo sem chorar, entendeu? Sou até um pouco, porque eu sou racional demais com, com sentimentos, entendeu? Assim, eu tenho um pouco disso pra chorar, mas... eu chorei, assim, duas vezes, assim. Nem foi exatamente na hora. Na Copa do Brasil foi, mas na Libertadores... na Libertadores, foi um pouco esperando, um pouco durante a noite, entendeu? Assim, um pouco saindo do Maracanã e um pouco ao longo da noite.

Vítor se considera uma pessoa “racional demais” na sua relação com os sentimentos, o que faz com que ele chore somente em raras ocasiões. Nesse sentido, ele se enquadraria no padrão emotivo culturalmente associado à masculinidade. No entanto, o entrevistado recorda duas situações excepcionais em que teria chorado pelo Fluminense: na conquista do título da Copa do Brasil, em 2007, e na perda da Copa Libertadores, em 2008. Leandro, que também torce pelo Fluminense, mostrou-se mais categórico ao falar sobre suas expressões emotivas pelo clube:

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Pelo Fluminense? Cara, se quiser chorar, é o Fluminense. Pra me fazer chorar fácil, é o Fluminense. Mas é engraçado, eu não choro pelo Fluminense de tristeza, assim, eu nunca chorei em nenhum rebaixamento, nem chorei quando o Fluminense perdeu a Libertadores, em nenhum momento, nem depois, assim. E vou, que o Fluminense perdeu a Libertadores, eu comecei a ter, eu tive problema de insônia mesmo, eu... até hoje eu durmo mal. E eu comecei a ter problema de insônia depois que perdeu a Libertadores. Mas eu nunca chorei por derrota. E, mas eu choro quando o Fluminense ganha e... quando é campeão, eu choro. Fluminense, qualquer título do Fluminense, eu vou chorar que nem uma criança, entendeu? E... sei lá, certos vídeos, eu choro... esse vídeo de 106 anos, se eu parar pra ver concentrado, eu choro. É nesse nível a coisa, entendeu? Me emociono mesmo.

De acordo com Leandro, o Fluminense é aquilo que o faz chorar com mais facilidade. Em suas palavras, quando o clube é campeão, ele chora “que nem uma criança”, evocando assim o descontrole emotivo que, além de estar associado à feminilidade, costuma ser culturalmente relacionado ao período da infância. De modo semelhante, Jaime, que também é tricolor, menciona diversas ocasiões em que teria chorado por seu “clube do coração”:

Eu tenho um livro chamado “Fla x Flu – E as multidões despertaram”. São artigos do Nélson sobre o Flamengo, e do, e do, e do Mário sobre o Fluminense. São textos de chorar, chorar... O primeiro texto é do Mário, sobre o Fluminense, eu, quando li a primeira vez o livro, eu não consegui ler até o fim, eu chorava copiosamente, assim, um negócio impressionante.

O que nos impressiona no depoimento de Jaime é que seus relatos de choro não estão necessariamente ligados aos momentos de extrema alegria e tristeza vivenciados no futebol, como aqueles motivados pela conquista de títulos ou por uma grande derrota. As lágrimas desse entrevistado mostram-se freqüentes em sua experiência como torcedor, envolvendo situações triviais, como a leitura de um livro, ou jogos sem grande relevância para a classificação de seu time numa competição:

Eu vi um Fluminense e Santos que eu chorei demais, tava 2 a 0 Santos, 43 minutos, o César, que apareceu na mesma época do Juan do Flamengo... O César, que era um zagueiro muito inferior ao Juan, o Juan não era muito melhor do que ele na época, o Juan melhorou muito com o Gamarra do lado. Mas, o César foi lá, fez dois gols de cabeça. Esse dia eu passei mal! [...] O César foi lá, fez dois gols de cabeça, nesse jogo. Eu, e-e-eu não desmaiei nesse jogo por acaso, eu chorei, mas eu chorei tanto nesse jogo, assim, de emoção... [...] Chorei, eu chorava desesperadamente... de emoção. Foi um 2 a 2. Então é um negócio que mexeu comigo, você diz assim “mas o que que valia?”, nada... valia não perder pro Santos. Eu não queria perder pro Santos.

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Segundo Vincent-Buffault (1988), as lágrimas simbolizam o descontrole do indivíduo e o rompimento da barreira simbólica que separa a interioridade do sujeito e o meio social externo. Idealmente, tudo se passa como se sentíssemos uma emoção muito forte e não conseguíssemos nos conter, deixando-nos então revelar pelo derramamento de lágrimas. O choro não consiste, todavia, numa mera reação fisiológica, nem tampouco num ato puramente espontâneo. Como Mauss (1980) já havia assinalado, toda expressão de sentimentos tem um caráter coletivo e obrigatório, constituindo uma espécie de linguagem, que permite a comunicação social de estados subjetivos. As emoções e suas formas de expressão se organizam de acordo com normas sociais específicas, que podem variar no tempo e no espaço. Nesse sentido, Vincent-Buffault (1988) identifica um momento de redefinição dos padrões emotivos da cultura ocidental com o advento da modernidade. Seguindo o diagnóstico de Elias, ela afirma que esse período teria sido marcado pelo avanço de um processo civilizador baseado fundamentalmente na valorização social da contenção emotiva, o que teria levado a um escasseamento histórico das lágrimas. Embora esse padrão se aplicasse a todos, a autora destaca sua maior difusão entre os homens modernos, enquanto a feminilidade permaneceu associada a uma emotividade descontrolada e excessiva. Ou seja, a contenção emotiva e lacrimal seria um traço da modernidade como um todo, mas, sobretudo, do modelo de masculinidade erigido nesse período. O padrão da emotividade masculina consistiria, portanto, numa espécie de “não-expressão” obrigatória dos sentimentos. No contexto do futebol, no entanto, o choro masculino mostra-se relativamente freqüente e, até certo ponto, obrigatório. Dizer que chorou, ou que sentiu vontade de chorar nesse contexto, não representa uma vergonha para o homem, mas antes uma fonte de orgulho. Como temos destacado ao longo deste trabalho, o futebol se apresenta como um contexto excepcional em que o imperativo da contenção emotiva é subvertido e a expressão de sentimentos passa a ser conciliada com os ideais hegemônicos de masculinidade. O choro masculino simboliza, então, a importância da relação afetiva mantida com o “clube do coração” e se constitui como uma memória importante na trajetória dos torcedores.

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2.3 Memórias marcantes

Neste capítulo, examino as memórias futebolísticas consideradas mais marcantes pelos entrevistados ao longo da pesquisa. Pelo que podemos depreender de seus depoimentos, essas lembranças estão ligadas aos grandes jogos, títulos, vitórias e derrotas vivenciados por eles em suas trajetórias como torcedores. Analiso como essas memórias se organizam, qual a sua importância para a constituição da figura do torcedor apaixonado, e como elas auxiliam a organização da experiência dos torcedores para além do contexto do futebol. Segundo Arlei Damo (2002), o compartilhamento de memórias é um dos elementos que possibilitam a formação da “identidade clubística” e a constituição dos times de futebol como “comunidades imaginadas de sentimentos”. Os torcedores de um clube compartilham padrões de comportamento, sentimentos e visões de mundo, que a seu ver os singularizam como um grupo específico, diferenciando-os dos torcedores de outros clubes. Cada grupo, ou melhor, cada clube e torcida, tem seu próprio patrimônio coletivo de lembranças, que consiste numa visão comum sobre o passado, e diz respeito não apenas a eventos específicos, mas principalmente ao modo particular como esses eventos são interpretados e vivenciados. Como afirma Halbwachs (2011), a memória é uma construção coletiva. Trata- se de uma reconstituição do passado, que se realiza de modo seletivo e fragmentário. Assim, em meio aos diversos eventos que poderiam compor a totalidade virtual da história de um clube, a memória coletiva se forma a partir daqueles que parecem mais significativos e favoráveis para a composição de sua identidade. Nesse sentido, a narrativa da memória-identidade futebolística, reproduzida nas falas dos torcedores, prioriza os grandes títulos e vitórias conquistados por um clube. Isso pode ser observado no depoimento de Bernardo, 49 anos, que torce pelo Botafogo:

Tem aquela final do Botafogo e Flamengo, o Botafogo foi campão em 89, que é 21 anos sem conquistar um título, né? O jogo mais marcante... E aquela final, que foi aqui contra o Santos, do Brasileiro, que a final foi em São Paulo, né? Nós ganhamos de 2 a 1. Foram os dois melhores jogos, realmente [...]. Teve mais, outros jogos também bons, importantes, mas... teve também a da, em 93, quando nós ganhamos do, a Conmebol em cima

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do Peñarol, né? [...] Teve outras decisões, tal, mas esses três foram os mais importantes. [...] Lembro do jogo, da emoção, a jogada do gol... o outro em que o Paulinho Criciúma botou uma bola na trave, quase que, não entrou, quase que seria 2 a 0, é... o do Peñarol, aquela de estar perdendo, virar o jogo, é, e... e depois, não, teve o empate, depois foi pros pênaltis, né, uma emoção maior ainda. E o do campeonato brasileiro, a gente começou perdendo, aquela virada, o gol do Túlio...

Bernardo destaca três títulos conquistados pelo Botafogo na lista de suas memórias mais marcantes enquanto torcedor. Em seu depoimento, ele procura descrever alguns detalhes dos jogos referentes a essas conquistas para sugerir a importância pessoal dessas lembranças. De modo semelhante, Wagner, 54 anos, aponta como sua memória mais marcante o primeiro título brasileiro conquistado pelo Vasco, em 1974, num jogo que ele pode presenciar pessoalmente no estádio do Maracanã:

Cara, quando o Vasco foi campeão brasileiro pela primeira vez em 74... pô, o Maracanã hoje, se botar 60 mil, dizem que tá lotado, pô. Em 74, Vasco e Cruzeiro, 2 a 1 Vasco, último gol do Jorginho Carvoeiro, pô, tinha 150 mil pessoas no Maracanã, cara. É a mesma coisa, 150 mil pessoas... Hoje em dia não dá, não, tem que ser 50 mil, 40 mil, 10 mil... eu acho um absurdo você limitar. Vasco e Flamengo era torcida pra 120 mil, 130 mil pessoas, não tinha menos do que isso, não. Fora os penetras que pulavam o muro, pulavam aquilo... entendeu? Então, é a coisa, que... Vasco e... Vasco e Cruzeiro, primeiro título do Vasco, realmente mexeu muito. Eu tava na geral. [...] lembro o gol do Jorginho Carvoeiro, aquele último lá... pô, o Cruzeiro quase empatou, porque o Andrada tava machucado. Eu lembro, lembro bastante coisa desse jogo, entendeu? O Luiz Carlos jogando, o Zanata jogava, entendeu? É, chamavam ele até de carregador de piano, era um meio de campo.

Ao recuperar essa lembrança, o entrevistado procura matizá-la com detalhes que a compõem a partir de suas impressões pessoais. Ele destaca, por exemplo, o fato de ter assistido a esse jogo na antiga geral do Maracanã, menciona o grande público presente no estádio e relembra o nome do autor do gol do título. Por sua vez, o rubro-negro Ademir, 55 anos, destaca alguns títulos conquistados pelo Flamengo, principalmente no período em que Zico era o principal jogador da equipe:

Na fase Zico, Adílio, Andrade, Junior, pô nós tivemos vários jogos marcantes. Até mesmo porque nós íamos pro Maracanã com a certeza que o Flamengo ganhava, né? Isso aí era... enfim, certo, entendeu? Então, a gente sempre ia, “não, Flamengo campeão hoje”. Então, teve um Fla x Flu que o Leandro fez um golaço do meio de campo, entendeu? Uma coisa, assim, excepcional. Aquele jogo foi muito bom, tem a falta do Pet contra o Vasco, que o Flamengo também foi campeão carioca. Aquilo é inesquecível, entendeu? Não só pros flamenguistas, como pros vascaínos

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também, porque jamais eles vão esquecer. Esses jogos, assim, são bem marcantes. E, na Era Zico, tiveram vários. [...] Eu lembro também do primeiro título que o Flamengo ganhou, em 80, do Atlético-MG. Maracanã lotado, aquela casa cheia, o Atlético tendo a vantagem do empate, o Nunes me faz aquele gol no finalzinho lá do segundo tempo, pô, pra fazer tudo que é flamenguista passar mal no Maracanã. Aquilo é... coisa, assim, também inesquecível. Um outro título que o Flamengo ganhou do Santos também, que o Santos tinha toda a vantagem, e quando veio jogar aqui, quando chega aqui, Zico acabou com o jogo, Nunes sempre fazendo gol também. É emoção que a gente vive, entendeu? Vive e não esquece.

O entrevistado classifica esses jogos como “inesquecíveis”. Em outra passagem, ele procura demonstrar que se lembra de cor da escalação da equipe do Flamengo que marcou sua experiência como torcedor na década de 1980: “Ahhh, lembro! Era Leandro, Mozer, Manguito, Júnior, Andrade, Adílio, Zico, Tita, Nunes e Lico... e Raul no gol”. As memórias marcantes relatadas pelos entrevistados correspondem, antes de tudo, às lembranças dos momentos mais emocionantes vivenciados por eles enquanto torcedores. Ou seja, a emoção é o elemento que parece presidir a constituição dessas memórias futebolísticas, configurando um modo específico de formação de lembranças nesse contexto. Isso também pode ser encontrado no depoimento de Fernando, 28 anos:

Cara, eu num sei, mas... eu achava que era uma coisa minha, só, mas depois que eu comecei a perguntar pros outros isso, você acaba não entendendo por que disso, que é até um pouco contraditório. Mas quando você pensa, assim, pô, você fala, assim, “pô, qual o gol que você comemorou mais, o do Angelim ou o do Pet?” Porra, todo mundo comemorou o do Pet. Pô, o do Angelim foi muito mais importante, né? O Flamengo foi campeão brasileiro. Porra, do Pet foi campeonato carioca, beleza. Mas, brother, ninguém sabe por que, quando fala assim, “ah, gol importante do Flamengo”. Teve até pesquisa na globo.com, recentemente. Porra, gol do Pet ganhou com varadas de distância. Agora, pô, por quê? Não sei. Não, não sei dizer por que. Mas, assim, eu também, eu tenho a lembrança mais, mais, viva, assim, em mim... olha que foram 8 anos de diferença, né? O gol do Pet e pro gol do, do Angelim. Mas eu tenho uma lembrança mais viva. E se eu pudesse classificar, porra, qual gol você ficou mais feliz, quando comemorou, gol do Pet ou do Angelim? Porra, do Pet. [...] Do Angelim também, pra cacete, mas... eu acho que o do Pet foi mais emblemático, assim. Por quê? Num sei...

O entrevistado menciona o gol marcado por Petkovic na final do campeonato carioca de 2001 como sua memória mais marcante. Ele compara a emoção sentida nessa ocasião com aquela proporcionada pelo gol de Ronaldo Angelim, que resultou na conquista do campeonato brasileiro de 2009. Apesar de esta última conquista ser teoricamente mais importante, por tratar-se de uma competição nacional, a

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felicidade sentida com o gol de Petkovic teria sido maior, o que torna essa lembrança mais vívida e mais especial na hierarquia de memórias do entrevistado. É importante notarmos que Fernando procura cotejar sua experiência com a de outros torcedores, o que revela a dimensão social e interativa do processo de constituição de memórias. No trecho abaixo, ele nos oferece alguns detalhes de sua experiência em cada uma dessas ocasiões, com o objetivo de ilustrar a importância desses títulos para a formação de suas memórias futebolísticas:

Pô, gol do Pet, cara. Sei lá, você vê o gol, você, eu lembro onde eu tava: em casa, sentado no sofá, eu e meu pai, a gente não acreditou que tinha sido gol, a gente ficou em silêncio uns cinco segundos, assim... depois a gente foi gritar na varanda. O gol do Angelim, contra o Grêmio, é... eu vejo o gol, eu lembro que eu falava, porra, eu tava no Maracanã, eu tava justamente do lado da baliza, assim, eu tava nas cadeiras, do lado, aqui... do gol. Vi esse gol, porra, de pertinho... fui parar umas três cadeiras na frente, abraçando gente, porra, que eu nunca vi na vida.

O entrevistado afirma que se lembra exatamente de onde estava em cada uma dessas ocasiões e descreve em detalhes sua reação após os gols. Ele diz, em outra passagem, que costuma pesquisar na internet e assistir aos vídeos referentes a esses e a outros momentos marcantes de sua trajetória como torcedor:

Ah, eu vejo sempre, eu vejo, eu gosto. Eu num sei por que, às vezes dá saudade, assim, de você ver... um vídeo que você nunca viu, um outro ângulo, ou você buscar as matérias desse dia, assim, quando o Flamengo foi campeão, tal. Eu gosto, faço, faço isso sim. [...] Sempre que eu posso, eu dou umas, umas... xeretadas na internet, assim, né, pra ver, porque, às vezes, você acaba esquecendo alguns detalhes, né? Então... Às vezes, eu gosto de ver com outras narrações, né? Tipo o gol do Pet, pô, tem, tem no youtube, tem lá a narração do Luiz Penido, do José Carlos Araújo, do... Luís Roberto, tem de um cara árabe, tem, pô, tem várias, assim, aí você vai vendo. Eu gosto de ficar perdendo meu tempo às vezes.

Fernando declara que sente saudades desses momentos, recorrendo aos vídeos disponíveis na internet, como uma forma de revivê-los. Segundo Eduardo Lourenço (1999), a saudade é um sentimento que diz respeito à relação humana com o tempo ou, mais precisamente, com o passado. Nesse sentido, ela costuma ser confundida com outras emoções definidas a partir da mesma relação, como a nostalgia e a melancolia. Para esse autor, no entanto, enquanto a nostalgia e a melancolia seriam acompanhadas pelo sofrimento causado pela impossibilidade de

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recuperação do passado, a saudade seria acompanhada pelo prazer de poder revivê-lo simbolicamente através da memória. Os vídeos assistidos por Fernando também o ajudam a completar seu quadro de memórias, pois adicionam novos detalhes e informações ao conjunto de lembranças sustentado por ele num dado momento. Isso ocorre porque a memória não é estática, assim como não o é o passado que se busca recuperar por meio dela. Na verdade, ao invés de recuperar objetivamente o registro de um acontecimento do passado, o que a memória faz é reconstituí-lo de modo sempre contextual e de acordo com as condições e exigências do presente. A utilização de vídeos da internet para a rememoração de momentos marcantes também pode ser encontrada na entrevista de Roberto, 26 anos:

Um, um que eu gosto muito de ver o vídeo é do brasileiro de 92. Eu era, eu era nascido, mas, bom... eu não lembro de nada. Tinha quatro anos, não lembro de nada. E aí foi, que é o gol do Júnior, o gol do Júnior de falta. Cara, eu gosto muito de ver aquele, aquele gol. Eu gosto muito da comemoração, que ele sai correndo, assim, socando, socando o ar, assim, como se fosse um garoto. O cara tinha, sei lá, 40 anos, quase. Gosto muito daquele... e é em cima do Botafogo, né, cara? É sempre bom. É um título que eu gosto de ver, e... porra, eu gosto de ver o de 81. O de 81 é clássico. O mundial de 81... mas é estranho, porque o vídeo é meio estranho, fazia muito sol no dia, você não consegue ver a bola direito, assim... e o Galvão Bueno narrando. É estranho, assim, cara, que você fica... Mas eu vi esse vídeo já várias vezes com o meu pai, aí o meu pai conta a história de que o Flamengo chegou em Tóquio, e aí o time do Liverpool fazia aquela coisa de “Ah, Flamengo, quem é Flamengo?! Esse timeco sul-americano aí...”, num sei que lá. Com 30 minutos de jogo, tava 3 a 0 Flamengo, um show de bola, né? Então, é, porra... e é o título mundial do Flamengo, né, cara? Então, é bom de ver, é bom de ver. Principalmente juntar com as histórias que o meu pai conta, assim, é bom.

Roberto menciona dois títulos conquistados pelo Flamengo, num tempo em que ele ainda não era nem mesmo nascido. Os vídeos disponíveis na internet permitem, no entanto, que esses acontecimentos sejam incorporados às suas memórias pessoais como torcedor. O entrevistado ainda volta a mencionar a importância das histórias contadas por seu pai – elemento abordado no primeiro capítulo de análise – como um fator de mediação fundamental para a constituição de sua experiência. Na seqüência, Roberto destaca sua preferência por vídeos referentes a momentos realmente vivenciados por ele:

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É engraçado, mas eu gosto de ver vídeos pra relembrar momentos que eu vivi. Eu não gosto, assim, eu não tenho o costume de ver vídeos, sei lá, vídeo do carioca de 78, gol do Rondinelli contra o Vasco de cabeça. Num tenho... assim, vejo, vejo, acho até maneiro, principalmente se eu tiver com alguém que tenha vivido do lado, aí eu acho maneiro. Mas eu gosto de ver os vídeos que eu estava, assim, os vídeos que eu vivi o momento, pra relembrar. Gosto de ver o vídeo do gol do Pet de 2001, sei lá, o vídeo da, do Flamengo campeão da Mercosul, sabe? Copa do Brasil... aí eu gosto de ver, gosto de ver muito esses vídeos. Passo horas e horas. Aí, sei lá, às vezes eu passo horas e horas vendo um Flamengo e Paraná num campeonato brasileiro de 2008, sei lá, gol do Obina, que tirou o Flamengo do rebaixamento, sei lá... por que? Porque eu lembro, falo “pô, maneiro esse jogo”, aí vou ver pra relembrar e tudo, que é meio que, que eu volto ali àquele, àquele momento.

Assistir a esses vídeos na internet permite que o entrevistado retorne, de algum modo, a momentos especiais vivenciados por ele no passado. O mecanismo da memória consiste justamente na possibilidade de voltar simbolicamente no curso do tempo. Roberto afirma ainda que a importância desses vídeos reside no fato de eles mexerem com suas emoções:

Cara, muito, muito. Eu, eu até hoje, quando vejo o gol do Ronaldo Angelim de 2009, aquela... o gol com aquela narração do Luís Roberto, pô cara, dá uma... vem uma, vem uma, dá pra lacrimejar um pouquinho, assim, cara. Dá pra, dá pra, dá pra ficar emocionado, assim. Ele falando que o Angelim quase perdeu a perna e tal, e agora faz o gol da, da, da... ele é meio, ele é meio exagerado, né? Pô, cara, mas me emociona muito, cara, me emociona muito. Eu, quando eu vejo, por exemplo, Copa Mercosul, em cima do Palmeiras, gol do Lê. Esse, que o Lê começa a chorar, coloca a mão no rosto, assim, e começa a chorar... também dá uma coisa, assim, do tipo “porra, esse é meu time!”, sabe? Assim, uma coisa tipo “ahhhh!”. Eu fico emocionado com essas paradas de futebol. E aí eu, eu quando vejo, fico... principalmente se é um jogo que eu, assim, que eu tava no Maracanã, alguma coisa assim, aí eu... ainda, ainda me emociona mais, assim. Quando eu vejo aquele gol de pênalti do Cássio contra o Fluminense... aquele que a bola bate e volta, né?

A relação entre memória e emoção também pode ser encontrada na entrevista de Leandro, 28 anos, que torce pelo Fluminense. O entrevistado destaca a importância dos vídeos encontrados na internet para a formação de suas memórias futebolísticas, principalmente em virtude do péssimo desempenho de seu time no início de sua trajetória como torcedor – como dissemos em outro capítulo, o Fluminense chegou a disputar a terceira divisão do campeonato brasileiro nesse período. Esses vídeos foram um dos mecanismos que possibilitaram a Leandro voltar ao passado do clube, num movimento representado por ele como uma

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espécie de fuga em direção às glórias que sustentavam o status do Fluminense como um “time grande”:

Quando eu era criança, o time do Fluminense era muito ruim... é, eu precisava esca... é, escapar pro passado, né? Na verdade. Eu precisava procurar glória em algum lugar no passado, enfim, pra ver aquele time, um time grande. Porque, na prática, o Fluminense não era, não tava sendo um time grande. O Fluminense era um time pequeno mesmo. Caindo, três rebaixamentos, um atrás do outro, então eu pesqui... estudava muito, gosto de ler e tal. Pesquisava a história do Fluminense, os títulos, tal... eu sei te falar, aqui, todos os títulos do Fluminense, cariocas, de 64 pra cá, entendeu? Falar um por um, qual, contra quem, enfim... Porque, mais por causa dessa época mesmo.

Devido a essa fuga em direção ao passado, o entrevistado afirma que passou a conhecer melhor a história de seu “clube do coração”. Nesse sentido, ele menciona um vídeo em especial, chamado “Fluminense, 106 anos”, que consiste numa compilação de imagens relativas aos principais títulos conquistados pelo Fluminense, desde sua fundação até o ano de 2008. Ao comentar a importância desse vídeo, Leandro nos oferece uma memória detalhada sobre o gol do título marcado por Assis, contra o Flamengo, na final do campeonato carioca de 1983:

Pô, o gol do Assis, né, que ele faz no Flamengo em 83 é uma coisa foda, porque... se você se liga, é que nego, nego só vê o gol do Assis no final, mas, nego não se liga no seguinte, o Flamengo tava no ataque naquela jogada, o empate era do Flamengo, né? O Flamengo tava atacando, o Flamengo tinha um time melhor... me lembro que aquele era o auge do Flamengo. O Flamengo tava atacando, aí o jogador do Fluminense fez a falta no cara, o juiz não deu, aí ainda marcou o impedimento. Aí o cara passou pra um outro, o juiz marcou um impedimento que não tinha do Flamengo... tipo, meio que roubaram o Flamengo. Aí só que ele pega, ele bate rápido pro Deley, aí o Deley, na lateral direita, ele simplesmente, do nada, ninguém entende, ele faz um lançamento longo... de repente, o Assis aparece na cara do Raul. Aí ele vai, aí ele toca, assim, do lado do Raul... ele nem toca tão bem, tão forte, ele toca meio devagar, e ela passa bem perto do braço do Raul, assim, e entra, devagar, assim... acho que ela para até antes do, do fundo da rede. Cara, é um gol tão bizarro, que a comemoração do Assis, ele não acredita. Tipo, ele, ele fica maluco, assim, ele bate na cabeça, ele balança. Tipo, ele olha pro céu, tipo, cara, ele não acredita no que ta acontecendo. Gol de barriga, a mesma coisa...

É impressionante o nível de detalhes dessa memória “de segunda mão” oferecida pelo entrevistado. No fim desse trecho, ele menciona ainda o “gol de barriga” marcado por Renato Gaúcho, também contra o Flamengo, na final do campeonato carioca de 1995. Nas palavras do entrevistado, essa teria sido sua memória mais marcante enquanto torcedor, pois teria contribuído para consolidar a

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escolha do Fluminense como “clube do coração”. Ele destaca ainda que essa lembrança não teria sido marcante apenas para ele, pois consistiria numa espécie de memória coletiva:

Pode ser uma viagem meio autocentrada, mas eu não acho, não... Eu acho que aquele Fla x Flu do gol de barriga foi um negócio que marcou meio que muita gente, até das outras torcidas. Que todo mundo que conversa, o cara lembra exatamente onde tava, como é que foi, enfim... aquele momento foi um negócio impressionante, porque, eu lembro que aquele jogo, tava um envolvimento absurdo em torno daquele clima de Fla x Flu, e centenário...

Pô, o Fla x Flu é um jogo que tem 100, é um clássico que tem 100 anos, e esse é considerado o maior da história. E os velhos, que viram muita coisa, nem discutem. Meu avô, que tinha 80 anos, falou “cara, realmente esse jogo foi um negócio...”. Então, foi uma experiência que me deu um, acho que um gás pra agüentar as dificuldades que vieram depois, entendeu? Mas, é isso, assim, de experiência mais marcante.

Mais uma vez, o valor da memória individual se constitui a partir da comparação com as lembranças trazidas por outros torcedores, com destaque para os mais velhos. A importância do título de 1995 também é destacada pelo tricolor Vítor, 28 anos:

O título de 95 foi o início de tudo. E... e pra mim, e pra, pra essa minha geração, ele foi quase como um, um, alguma coisa como “a gente vai te dar essa alegria, pra você segurar a onda nos próximos anos”, entendeu? Porque, foi o que, foi parecido. Assim, foi relativamente cedo pra, pras minhas lembranças como torcedor. Eu torcia, sabe, desde três anos, desde 93 e... por ser no centenário do Flamengo, daquela maneira como foi também, assim, acho que aquele jogo é marcante.

[...] É engraçado que tem alguns títulos que você não viu, mas que parece que você viu. Porque, assim, o... o de 83 do Assis, eu nasci em 86, obviamente eu não vi. Mas o... isso pertence tanto ao meu mundo, que parece que é um título marcante na minha vida. [...] E, assim, como se eu tivesse visto aquilo, entendeu? Esse “recordar é viver”. Mas assim, eu não vi, eu não participei daquilo. [...] Eu tenho algumas histórias de 95, de algumas lembranças, assim, o muito do não ter vivido, mas com, com... que parece que, assim, são intimamente ligadas, que parecia que eu tava lá. Assim, até 83, enfim. Por gostar muito do Fluminense, muitos títulos eu, eu... eu conheço a história muito bem, entendeu? Assim, então... assim, parece que eu vivi aquilo. Assim, eu falo, sei lá, do... do, pô, do gol do Flávio no, no Fla x Flu de 69, né? [...] Enfim, como se eu tivesse vivido aquilo. [...] Eu falo como se eu, eu tivesse vivido aquilo, e é engraçado isso de um título.

O entrevistado nos fala sobre a sensação de ter visto, participado e vivenciado títulos conquistados pelo Fluminense em épocas nas quais ele ainda nem

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era nascido. Algo semelhante aparece nas entrevistas de Fernando, Roberto e Leandro, abordadas anteriormente. Como afirma Pollak (1992), devido ao caráter coletivo da memória, as recordações pessoais se formam, em grande parte, através de lembranças “de segunda mão”, que dizem respeito ao pertencimento do indivíduo a determinados grupos – neste caso, os clubes de futebol. Além disso, a influência da memória coletiva pode fazer com que as lembranças individuais incluam lugares e acontecimentos situados numa dimensão de espaço-tempo diferente daquela habitada pelo sujeito em seu curso real de existência. Como dissemos em outra passagem, as memórias marcantes dos torcedores correspondem, antes de tudo, aos momentos mais emocionantes vivenciados por eles através do futebol. Essas memórias ilustram a importância do laço afetivo que une o torcedor ao seu “clube do coração”. Conhecer a história do clube e ser capaz de narrar em detalhes momentos marcantes dessa trajetória são elementos importantes na composição da figura do torcedor apaixonado. Essa capacidade de memorização é amplamente destacada por Jaime, 60 anos, torcedor do Fluminense. Logo no início de sua entrevista, ele nos fala sobre a eficácia de sua memória futebolística:

Eu tava te dizendo que eu tenho uma memória futebolística que sempre foi, assim, a memó... da, da, das coisas que pus na memória, foi a que mais sempre funcionou. [...] E minha memória futebolística, ela foi consolidada, assim, com a, assim que, primeiro com a própria audição, porque eu não era alfabetizado, quando... já era apaixonado por futebol sem ser alfabetizado. Quando eu me alfabetizei, eu passei a ler, assim, se... não sei se era semanal, eu acho que era semanal, um negócio chamado “Revista do Esporte”, que era o equivalente a um Placar desses hoje, Lance... não, Lance é jornal, não era diário, era semanal. Então, eu, eu lia aquilo e, e aquilo sempre me fascinou, a vida inteira fui fascinado por informações sobre futebol.

[...] sempre me interessei, então sempre, com seis anos, se você me perguntasse o time da Prudentina de Presidente Prudente, eu te dizia, o time da Internazionale de Milão, Manchester United, eu te dizia, eu não sabia nem falar a língua direito, mas o nome dos caras eu dizia direitinho. Aí, várias vezes, acontecia assim, polêmica lá no armazém, eu saindo já pra escola, e o caixeiro do armazém ia na vila, batia na porta, dizia “Dona Iolanda”, que era minha mãe, “deixa o menino ir lá no armazém”. “Agora não, que ele vai pra escola”. “Só um minutinho, ele precisa ir lá resolver uma polêmica”. Aí tinha coisas assim: “Leônidas da Silva começou a jogar no Botafogo, no Vasco ou no Flamengo?”. Eu chegava lá e dizia “Bonsucesso”. E os caras sabiam que era Bonsucesso, porque era Bonsucesso. Eles tinham, sabiam que eu tinha esse conhecimento mesmo. Então, na verdade, isso foi a vida inteira...

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Como podemos ver, o entrevistado alega sempre ter tido uma boa memória referente ao futebol, virtude esta que seria reconhecida por aqueles que o cercam. Seus relatos são sempre caracterizados por um nível muito grande de detalhes. No trecho abaixo, ele comenta aquela que teria sido sua memória mais marcante como torcedor:

As memórias tão sempre ligadas às grandes vitórias. Você quer ver? O maior jogo de futebol que eu vi na minha vida foi Fluminense e Bayern de Munich, em 1975. O Bayern era a base da seleção alemã, campeã de 74. Tinha dez jogadores da seleção alemã... e chegou no Maracanã, tomou o maior show de bola que eu vi um time tomar na vida. [...] Eu fui ver no estádio. Perdeu de 1 a 0, com a maior atuação que eu vi de um goleiro na minha vida, que foi o Maier, que ele disse no, na entrevista, que foi a maior atuação que ele teve na vida dele, pra ele é inesquecível esse jogo. O Maier foi um dos maiores goleiros que a Alemanha teve em toda a sua história, história de grandes goleiros. E... eu vi esse jogo, esse jogo não me sai da memória. Assim, eu me lembro cada, cada, cada lance desse jogo, assim. Ver ganhar da seleção campeã do mundo, assim, dando um show de bola, show de bola. Cafuringa pegou o Breitner, que outro dia veio, cheio de marra, falando à beça, porra... o Breitner não sabe onde o Cafuringa tá, até hoje. Era bola debaixo da perna, três em cada quatro jogadas. Mario Sérgio, pelo lado esquerdo, a mesma coisa com o Vogts, que marcou o Zico na copa do mundo de 1982, né? Então, aquilo foi o maior espetáculo de futebol que eu vi na minha vida.

Ao longo da entrevista, Jaime também menciona diversas vezes a importância do título carioca conquistado pelo Fluminense em 1964, contra o Bangu. Essa teria sido sua primeira grande experiência como torcedor, contribuindo para consolidar sua preferência pelo Fluminense. O entrevistado afirma que se lembra de tudo referente a esse jogo, como podemos observar no trecho abaixo:

Tudo, tudo... 1 a 0, no primeiro jogo, um jogo à noite, gol do Amoroso... e 3 a 1 no domingo, o Santos... o Fidélis, acho que foi o Fidélis. Eles fizeram um gol, o Castilho soltou a bola, eles fizeram um gol, eu digo “vai embora o campeonato...”. O Fluminense virou. O Amoroso empatou, depois, estreavam dois jovens, nas duas pontas: o Jorginho, na direita, e o Gilson Nunes, na esquerda... cada um fez um gol, os dois gols, muito parecidos. O Jorginho comeu pra dentro, chutou no ângulo do Ubirajara, e o Gilson Nunes termina o jogo fazendo aquele golaço. O Joaquinzinho empatou, quem empatou não foi, não foi o Amoroso, foi o Joaquinzinho... jogador de meio-campo, que veio do Pelotas, do Sul, jogava uma barbaridade... via muito o jogo, entendia muito o jogo. O Fluminense tinha um time gozado naquela época: Castilho... era Jair Marinho, mas nesse campeonato, o Amarildo quebrou a perna dele, apareceu o Carlos Alberto Torres... o maior lateral de todos os tempos, do mundo... depois foi o Leandro, mas primeiro foi o Carlos Alberto Torres. Pinheiro, Dario e Altair, era esse o time, ou Altair ou o Nonô, às vezes, quando o Altair começou a jogar de quarto zagueiro. Oldair, Denílson e Oldair, no meio-campo, Joaquim... e o ataque era Jorginho, Amoroso ou Ubiraci, às vezes jogava o Ubiraci... e Gilson Nunes. Esse time, porra, me encantou, porque... “ah, é um grande time?”, não, nunca foi, mas é... foi o time da minha memória, assim, primeira, assim, time que me fez vibrar muito.

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Dentre os detalhes mencionados por Jaime, merece destaque a lembrança da escalação do time campeão. Apesar de não ter sido um “grande time”, nas palavras do próprio entrevistado, essa equipe ficou marcada em sua memória, devido à importância afetiva da conquista narrada. O entrevistado ainda relembra a escalação de equipes que atuaram pelo Fluminense em outras épocas:

O melhor time do Fluminense é o de 69, 70, dirigido pelo Telê Santana e Paulo Amaral. Aquele foi o melhor time que eu vi, o melhor de todos... melhor que o de 83, melhor que o campeão brasileiro de 10, de 12, o melhor de todos. Aquele foi o melhor time. 69 tinha, eu digo de, eu digo de cor: Félix, Oliveira, Galhardo, Assis e Marco Antônio, Denílson, Didi, Cafuringa, Flávio, Samarone e Lula. Esse era o time. Claudio Garcia entrava, às vezes, no lugar do Samarone ou do Didi. Esse era o time, esse...

Sou capaz de te dizer os times, assim, de épocas que você não faz idéia, assim. Acho que eu sou capaz de dizer a de 16, assim, 17, é... eu tenho muita memória, tenho, eu sou capaz de dizer o tricampeonato de 36, 37 e 38. Tinha Batatais, [confuso], é... Orozimbo. Sei que o ataque era, meio-campo, Romeu... o ataque era Pedro Amorim, Hércules, Carreiro, é... Rômulo, Rômulo e Carreiro... Tim! O meio-campo era Tim, Tim, o grande Tim, o maior treinador de todos os tempos do Brasil!”

Pedro, 63 anos, que torce pelo Botafogo, também faz questão de mencionar a escalação de seu time ao relatar sua memória mais marcante como torcedor:

Ih, da época de 67, eu ia ver todos os jogos. Todos, eu ia ver Botafogo, Vasco, Fluminense, Flamengo, eu ia ver tudo. Na época, eu via Bangu e América, dava quase 100 mil pessoas no Maracanã. Eu ia, quase todos os jogos eu ia. Ia tudo, ia ver tudo quanto era jogo. [...] Então, o que deu mais, mais emoção foi a Taça Guanabara de 67, Botafogo e América, a estréia do Paulo César Caju. Foi 3 a 2 Botafogo, 3 gols do PC, do Paulo César... esse dia me deu até dor de cabeça. [...] Nossa senhora, aquele dia foi brabo! O Botafogo, o time do América era um timaço, né? Tinha o Edu, irmão do Zico [...]. Ele jogava muito, era melhor que o Zico. Então, tinha o Edu, tinha o falecido Eduardo, que era um ponta-esquerda, inclusive tinha um lateral- direito que eu conhecia ele lá de Madureira, Sérgio. Então, o time do América era bom pra caramba. O Botafogo com menos um. E... mas o time do Botafogo também era muito bom, né? O Botafogo de 60 era Manga.... 67, era Manga, Moreira, Zé Carlos, Leônidas e Waltencir; Carlos Roberto e Gérson; Rogério, Jairzinho, Roberto e Paulo César. Timaço, cara! Desses aí, quase todo mundo vestiu a camisa da seleção. Quase todo mundo? Todo mundo! [...] Era um timaço! Era... era um time muito bom: Gérson, Jairzinho, Paulo César, Manga...

A composição afetiva da memória indica envolvimento emocional com o objeto recordado. Declarar que algo ficou marcado em nossas lembranças é uma das formas pelas quais procuramos demonstrar o valor que este acontecimento

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assume para nós. Os detalhes oferecidos em nosso relato ajudam a sugerir nosso grau de envolvimento com este evento, singularizando-o como um acontecimento especial através de uma descrição mais complexa. Ao relatarem, com riqueza de detalhes, os momentos mais marcantes de suas trajetórias como torcedores, os entrevistados procuram representar a importância do laço afetivo mantido com seus “clubes do coração”. A boa memória futebolística consiste, portanto, num dos elementos que compõem a figura do torcedor apaixonado. Como veremos abaixo, a força dessa memória contribui para a organização da experiência dos torcedores para além do contexto do futebol. A importância da memória futebolística não se resume à facilidade que os entrevistados apresentam para recordar jogos e lances marcantes de seus times em detalhes. Além disso, eles afirmam ainda ter maior facilidade para se lembrar de acontecimentos relacionados ao futebol, em comparação com eventos ligados a outras áreas. Nesse sentido, a memória futebolística é utilizada como ponto de referência para a recordação de eventos relacionados a outros setores de suas vidas. Isso pode ser encontrado na entrevista de Roberto:

Não lembro muito bem das coisas do meu colégio e tal, assim. Lembro muito pouco, até, até, assim, de pessoas mesmo. Mas pra futebol, cara, se for um jogo importante, eu lembro muita coisa, cara, eu lembro muita coisa. Eu lembro, eu lembro como que o cara bateu na bola, em quem a bola desviou, sabe? Eu lembro o que que eu fiz depois naquele dia. Tenho uma memória emocional muito ligada ao futebol, sabe? Tipo, quando eu penso, por exemplo, naquele Flamengo e Vasco, 1 a 0, gol do Rodrigo Mendes de falta... Eu lembro que a bola desviou no Naza. Eu lembro que depois daquele jogo, eu fui pro McDonald’s, que era, que a gente foi comemorar o aniversário da minha irmã, entendeu? Eu lembro que, eu lembro que eu fui com uma camisa que vinha escrito, que tava escrito “Rubro-negro desde pequenininho”. Eu lembro que o meu pai não estava no dia, e aí eu lembro dele chegando com o carro dele lá embaixo e falando pra mim “viu, num sei que lá, falei que a gente ia ganhar, num sei que lá!”. Mas, de repente, se você me pergunta, sei lá, o dia do meu aniversário, naquele ano, eu não lembro o que que eu fiz, entendeu? Então, eu tenho uma memória, eu particularmente tenho uma memória muito ligada ao futebol.

O entrevistado afirma ter uma “memória emocional” intimamente ligada ao futebol. Em contraste com isso, ele diz que não consegue se recordar com a mesma facilidade de eventos relacionados aos tempos de colégio, por exemplo. Em suas palavras, a memória futebolística serviria como um ponto de referência, ajudando a evocar e a organizar suas lembranças:

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Ajuda como, como referência, né? Como, como... é, como referência. [...] Eu lembro, por exemplo, que... no, no aniversário da minha irmã de 98, a minha irmã fez aniversário no dia 16 de junho de 98, eu me lembro que um dia antes do aniversário dela, a gente já tava até pensando nas coisas do, do aniversário e tal, mas eu lembro que a gente ficou em casa vendo Brasil e Marrocos em 98. Eu me lembro que foi um jogo em que o Ronaldo tomou uma, uma porrada na coxa, o cara entrou de sola nele, e ficou aquela marca. Lembro da minha mãe comentando aquilo em 98. Eu lembro que o Ronaldo fez um gol naquele jogo. E eu tenho a memória de que a gente tinha comprado bola, bola de encher, pro aniversário da minha irmã no dia seguinte. Entendeu? Então, eu lembro do aniversário da minha irmã, mas mais em função do jogo, não em função do aniversário dela.

De modo semelhante, Pedro afirma que as lembranças ligadas ao futebol o ajudam a recordar eventos ligados a outras áreas de sua vida. Em sua entrevista, ele nos oferece o seguinte exemplo:

Porque marca muito, né? Uma coisa que ocorreu, aí você tava no Maracanã. [...] Eu tenho um irmão, é abaixo de mim... eu estava no... até o placar eu lembro, cara. Eu tava no Maracanã, eu acho que foi um sábado... Botafogo e Fluminense, o Botafogo perdeu de 1 a... de 2 a 1. Eu tava com um colega [...] Então, aí aconteceu um acidente com o meu irmão, com esse meu irmão, que ele tava ajudando uns colegas lá... aí o carrinho lá, ele desceu uma, desceu uma barragem, tipo uma barragenzinha... aí a perna dele abriu, o carrinho, entrou o carrinho e abriu, aí ele levou... até hoje ele tem uma cicatriz feia na perna. Um lance desse, eu tava no Maracanã. Aí eu lembro, lembro disso... tava chovendo.

O entrevistado recorda um acidente ocorrido com seu irmão, enquanto ele assistia a um jogo do Botafogo no Maracanã. A lembrança desta partida serve como referência para reconstituição da memória do acidente. Wagner, por sua vez, relaciona a memória de um título importante conquistado pelo Vasco ao falecimento de sua mãe e ao aniversário de seu filho:

Ah sim, como é que se diz... quando o Vasco foi campeão pela, pela Copa do Brasil, pela primeira vez, foi no dia em que a minha mãe morreu... no dia do enterro dela. Então, é coisa que você... aí sempre quando vem a data, eu me lembro “pô, o Vasco... mais um ano que foi campeão...”. Foi, foi uma coisa, assim, também foi o dia do aniversário do Bruno, então... juntou tudo, entendeu? O dia que o Vasco foi campeão pela primeira vez, pela Copa do Brasil, foi o dia da história do enterro e dia do aniversário do Bruno. [...] Teve esse lance, teve o lance da minha mãe... e teve outros lances, assim, [...] às vezes ajuda, às vezes, pô, me lembro “pô, esse ano eu tava em tal lugar, assim, pô... é, eu assisti isso pelo, pela televisão, pô vi...”, entendeu? Alguma coisa, sempre tem alguma coisa associada ao futebol.

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Como afirma o entrevistado, “sempre tem alguma coisa associada ao futebol”, o que facilita o processo de evocação de suas memórias. O tricolor Leandro também considera que sua “memória de futebol” seria melhor do que sua capacidade para recordar outros assuntos, pois o futebol seria mais marcante:

Cara, minha memória, eu acho assim... tá, vamos lá, o ponto é, eu tenho uma memória de futebol melhor do que pra outras coisas sim. Me marca né, eu acho, me marca mais, tem um impacto grande na minha vida, enfim. E você, e... e acho que são informações que você guarda que tem meio que um padrão, então você consegue organizar melhor no seu cérebro, tipo, tudo arquivado, mais ou menos, por data também. Eu acho... até acontece isso, de... eu lembro de outras coisas através do Fluminense. Se você parar pra pensar, como o futebol tem um calendário que se repete, é... você meio que lembra das, associa as outras coisas ao futebol né? Ah, aquilo, quando o Fluminense ganhou num sei o que... 2005 e tal, ah... foi na época daquilo, que eu fiz sei lá mais o que, entendeu?

Além de ser mais marcante, a organização do futebol em torno de um calendário mais ou menos regular facilitaria o processo de armazenamento e organização das lembranças dos torcedores – primeiramente, daquelas ligadas ao futebol e, em seguida, daquelas ligadas a outras áreas. A memória futebolística se constituiria, portanto, de modo mais estável, oferecendo ordem e um ponto de apoio mais sólido para a formação de memórias sobre outros eventos. No trecho abaixo, o entrevistado nos oferece um exemplo de como isso ocorre:

Por exemplo, uma coisa, coisa pequena: “lembra daquela festa tal, que a gente foi, no morro da Urca, que você pegou num sei quem?”. Que é uma coisa totalmente banal. Você não vai lembrar uma porra dessa, porque você faz isso toda semana. Mas você acaba lembrando, “ah lembro porque foi na véspera do jogo tal do Fluminense, eu lembro que num sei que, eu cheguei e blábláblá”, entendeu? Se você tiver o Fluminense na história, você lembra. Porque é isso, aí você lembra e diz a, se organiza na linha do tempo, né? Porque você, é... você consegue organizar a tua vida inteira através de data de título. Você lembra... cada ano do Fluminense, o que aconteceu, eu lembro. Que, cara, se brigou pra não cair, se caiu, como é que foi que não caiu, se ganhou, o que não ganhou, quem jogava, sei tudo... entendeu? Então, você associa a tua vida, né? Onde você tava, com quem você tava estudando, trabalhando, quem você tava pegando, num sei que.

A memória futebolística contribui para que os torcedores se organizem na “linha do tempo”, como afirma Leandro. Por lembrar-se com maior precisão dos acontecimentos relacionados ao Fluminense, o entrevistado se apóia em sua

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memória futebolística para organizar sua trajetória pessoal. Algo semelhante pode ser encontrado no depoimento de Vitor, que também torce pelo Fluminense:

Eu consigo lembrar, assim, pautar os anos da, da sua vida, da minha vida com o que tava acontecendo, entendeu? Assim, “ah, não”, e aí eu tenho como, tipo, “ah, não, 2000 e sei lá, 2008 foi um ano bom pra mim e tal, eu... não, foi o ano da Libertadores, que eu comecei com num sei... a trabalhar no lugar tal, e fazer num sei o que e tal...

Jaime também destaca a importância das memórias ligadas ao Fluminense. Como vimos em outra passagem, ele declara que sempre se interessou por informações relacionadas ao futebol e que, desse modo, sua memória futebolística sempre foi aquela que “mais funcionou”. Em outra passagem, o entrevistado comenta a importância que essas memórias assumem para a organização de sua experiência. De acordo com ele, as lembranças ligadas ao futebol o “ajudam a pensar”:

Ah, elas me ajudam tanto a pensar a vida, né? É, me ajudam mesmo. Me ajudam a pensar o que eu penso de... nas minhas aulas. Às vezes eu refiro ao futebol, é... nas aulas, não é nem, muita gente pode pensar “foge do assunto”, não, não... É porque isso me faz... tá ligado à forma de eu, a momentos que eu vivi na minha vida, momentos de posições teóricas, momentos de posições afetivas, é... é muito impositiva a questão do futebol. O futebol e a música. Se você cantar uma música da década de 60, 70, eu sei com quem eu tava, quem é que fazia parte da minha vida. Elas servem ponto de referência, ponto de referência... pra pensar. Pro pensar filosófico. [...] Minha trajetória, as coisas que escrevo. As coisas que escrevo, e que não têm nada a ver com futebol. É... sempre vem, sempre vem o futebol. Sempre vem...

O depoimento de Jaime nos remete à noção de que o futebol é “bom para pensar”, como afirma DaMatta (1982), parafraseando a conhecida formulação de Lévi-Strauss. Devido à sua relevância como fenômeno cultural, o futebol pode ser tomado como uma metáfora privilegiada para a reflexão a respeito dos principais valores e dilemas da sociedade brasileira. Constituindo-se como uma linguagem de amplo domínio público, o contexto ritualizado do futebol nos oferece uma base sólida e comum sobre a qual podemos organizar nossos pensamentos e nos comunicarmos com maior facilidade. Além disso, segundo Lakoff e Johnson (1980), o sistema conceitual que se encontra na base de formação de qualquer cultura apresenta uma natureza amplamente metafórica. Ou seja, a cultura se constitui como um amplo conjunto de

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metáforas, que se entrelaçam de maneira coerente, de modo a poderem conferir sentido aos pensamentos e ações individuais. Para os autores, a metáfora consiste em entender e experimentar uma coisa nos termos de outra – de preferência, nos termos de algo que nos seja mais familiar. Sendo assim, a metáfora nos ajuda a organizar nossos pensamentos e ações, como podemos observar na relação de Jaime com o futebol. Na seqüência, o entrevistado continua a comentar a importância dessa relação:

Minha memória paulatinamente vai ficando mais fraca. O futebol faz ela voltar forte, entendeu? [...] Mas o futebol tá sempre trazendo memória boa, eu gosto. Eu gosto de falar, eu gosto de discutir. Acho que tem muita coisa pra se re-historiar no futebol brasileiro, pelo menos pra se polemizar, mesmo que... Eu não to dizendo a verdade, né? Mas eu tô dizendo, assim, a versão que eu tenho... desse momento, dos momentos que eu vivi no futebol, e foram muito importantes. Eles fizeram, na verdade, o que eu sou.

Para Jaime, o futebol tem a capacidade de revigorar sua memória. Mais uma vez, o entrevistado confere uma relevância existencial ao futebol, assim como já havia feito ao apontar a paixão por esse esporte como fundamento para a sua formação como uma pessoa apaixonada em todas as áreas de sua vida. Aqui encontramos, novamente, a relação clássica estabelecida entre memória e identidade, questão abordada desde os primórdios dos estudos acerca do fenômeno mnemônico. Segundo Halbwachs (2011), a memória é coletiva e tem por função instituir um passado comum que sirva como base para a constituição da identidade de um grupo. Pollak (1992), por sua vez, reconhece o caráter coletivo da memória, mas ressalta que a coerência entre memória e identidade também deve ser observada no plano individual. Partindo de referências oferecidas pelo meio social, os indivíduos organizam suas trajetórias pessoais sob a forma uma narrativa coerente, reconstruindo seu passado de acordo com a imagem que desejam passar em cada contexto da ação social – como a imagem de torcedor apaixonado almejada por Jaime.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em minha pesquisa, procurei demonstrar como as experiências emotivas vivenciadas pelos homens no contexto do futebol – com destaque para a relação dos torcedores com seus “clubes do coração” – contribuem para a constituição de identidades e subjetividades masculinas, subvertendo assim a lógica segundo a qual emotividade e masculinidade são definidas como propriedades opostas na cultura ocidental. Para tanto, foram realizadas entrevistas em profundidade com torcedores dos principais times de futebol do Rio de Janeiro (Botafogo, Flamengo, Fluminense e Vasco). As memórias relacionadas às experiências dos entrevistados enquanto torcedores foram tomadas como a principal via de acesso para a compreensão de seus discursos emotivos. No Ocidente, as emoções são concebidas como atributos típicos do comportamento feminino, sendo excluídas do modelo culturalmente hegemônico da masculinidade. Nesse universo cultural, razão e emoção são entendidas como propriedades diametralmente opostas, recebendo diferentes valorações. Em suma, observa-se uma valorização cultural da razão e do intelecto, em detrimento da emoção, que ao ser entendida como o avesso da racionalidade, passa a ser associada ao excesso e ao descontrole que ameaçam a ordem social. Essa concepção se articula ainda ao esquema de diferenciação cultural entre os gêneros e, desse modo, as mulheres são concebidas como naturalmente emotivas e descontroladas, enquanto os homens, por oposição, são definidos como seres essencialmente racionais e, por conseguinte, mais controlados e comedidos em seu comportamento. O que se apresenta, de modo naturalizado, como uma essência deve, no entanto, ser entendido sob os termos da performance e normatividade cultural. Nesse sentido, os homens não são, mas antes, devem agir (atuar) de modo racional e controlado, com vistas a se adequarem a um modelo de masculinidade socialmente construído. No futebol, porém, encontramos um contexto excepcional em que essa lógica de separação entre masculinidade e sentimentos é parcialmente subvertida. Por um lado, o futebol consiste numa atividade eminentemente masculina, pois é praticada, admirada e consumida majoritariamente por homens.

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Esse esporte se encontra na base da socialização masculina desde a infância e proporciona diversas oportunidades de lazer e sociabilidade que possibilitam o estreitamento de laços sociais masculinos. Por outro lado, o futebol também consiste num contexto fortemente marcado pela emotividade. As emoções correspondem à principal motivação que leva alguém a aderir a esse esporte, seja como praticante (jogador) ou como espectador – principalmente nesta segunda condição, pois o torcedor pode ser apontado como o “lócus da emoção” no futebol. O torcedor é aquele que se relaciona com o futebol sob a forma de um engajamento afetivo, estabelecendo um laço de fidelidade e exclusividade com seu “clube do coração”. Em todo caso, o que importa ressaltar é que, ao contrário do controle e comedimento regularmente exigidos dos homens em sua vida cotidiana, no contexto do futebol são valorizados o exagero, o descontrole, o excesso e a desmedida. O futebol institui, portanto, um contexto especial de vivência emocional, em que masculinidade e emoção se combinam de modo coerente e legítimo. As experiências emotivas vivenciadas pelos homens no âmbito do futebol contribuem para a constituição de identidades e subjetividades masculinas. Isso pode ser observado nos depoimentos dos torcedores entrevistados em nossa pesquisa. No primeiro capítulo de análise das entrevistas, procuramos demonstrar que a paixão por determinado clube de futebol é vivenciada como uma tradição familiar pelos torcedores, aproximando o universo do futebol de uma lógica de organização totêmica. Trata-se, mais precisamente, de uma tradição masculina, que se propaga entre os componentes masculinos de uma família. No lugar da livre iniciativa individual, encontramos a forte influência de familiares masculinos no processo de escolha do “clube do coração”, o que inclui a ação de avôs, tios e primos, mas tem como destaque a figura do pai. Essa influência pode ser exercida de modo deliberado ou não, podendo ainda ser diversamente vivenciada como uma ação coercitiva ou como a adesão voluntária às cores de um clube. No futebol, o pai desempenha um papel especial, sendo o principal responsável pela transmissão da paixão por determinado clube para seus filhos. Para dar continuidade a essa tradição familiar, o “pai-torcedor” deve lançar mão de certos artifícios, como ensinar a história do clube a seus filhos, levá-los ao estádio, contar-lhes suas memórias de torcedor, etc. A transmissão de memórias

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futebolísticas desempenha um papel fundamental nesse processo. No contexto do futebol, o pai deve, portanto, atuar como o principal agente de socialização de seus filhos como novos torcedores. Por conseguinte, a paixão por determinado clube acaba se constituindo como um elemento fundamental para o desenvolvimento da relação entre pais e filhos. O futebol oferece os principais assuntos e ocasiões para o estabelecimento de situações de sociabilidade entre eles, contribuindo para a criação e manutenção dos laços afetivos que os unem. Em suma, podemos afirmar que, num primeiro momento, a paixão pelo futebol se propaga através de vínculos afetivos masculinos, contribuindo para fortalecê-los em seguida. No segundo capítulo de análise, procurei compreender que tipo de relação e sentimento os entrevistados estabeleceriam com seus “clubes do coração”, bem como a importância pessoal que eles atribuiriam a essa relação afetiva. Apesar de as entrevistas em profundidade consistirem num contexto específico, tendo em vista a maior reflexividade que caracteriza esse tipo de interação, a maioria dos entrevistados declarou sentir amor ou paixão por seu clube, em conformidade com o discurso romântico presente nas canções entoadas coletivamente nos estádios de futebol. Amor e paixão são sentimentos tipicamente femininos no ideário da cultura ocidental, mas desempenham um papel fundamental no contexto masculino do futebol. Alguns entrevistados também se apresentaram como torcedores “fanáticos” por seus times, embora estes representem uma minoria. O fanatismo foi refutado como algo nocivo pela maioria dos entrevistados, em parte pela associação deste termo à violência cometida pelas torcidas organizadas, e em parte pelo modo como o fanatismo tende a ser caracterizado na cultura ocidental. Em suma, o fanático é aquele que abre mão de sua individualidade, tornando-se indiferenciado em meio a uma multidão que segue e adora um mesmo ídolo. O amor e a paixão, pelo contrário, são sentimentos que individualizam, apontando para a existência de um laço afetivo singular entre o sujeito e o objeto de adoração – neste caso, o “clube do coração”. Apaixonados ou fanáticos, os entrevistados procuraram descrever o forte impacto que o futebol tem sobre suas vidas, para além das situações de jogo. Alguns entrevistados relataram os efeitos que o desempenho de seus times tem

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sobre sua saúde, ocasionando episódios de mal-estar e desmaios, por exemplo. Outros destacaram os efeitos que a paixão pelo clube tem sobre seu comportamento, assumindo muitas vezes um impacto negativo sobre suas vidas pessoais e profissionais. Nesses casos, o sentimento pelo time foi caracterizado como uma espécie de loucura ou doença, remetendo às representações mais comuns das emoções no Ocidente, que as associam às noções de irracionalidade, descontrole e perigo. No entanto, isso aparece de modo ambivalente, pois a nocividade das emoções é valorizada na construção da ligação afetiva do torcedor com seu “clube do coração”. Os entrevistados destacaram ainda a importância das emoções vivenciadas através do futebol como fundamento para a constituição de sua identidade e subjetividade. Por fim, os entrevistados relataram diversos episódios de choro motivados por momentos marcantes vivenciados em suas experiências como torcedores. Assim como toda forma de expressão de sentimentos, o choro constitui uma linguagem, que permite aos indivíduos comunicar aos outros e para si mesmos o que sentem. A expressão de sentimentos tem um caráter coletivo e compulsório, obedecendo a regras específicas em cada sociedade ou contexto social. Na modernidade ocidental, o choro – bem como toda forma de expressão emotiva – é caracterizado como um traço típico do comportamento feminino. No entanto, no contexto do futebol, os homens choram e se emocionam com freqüência, falando abertamente sobre esses episódios ao longo das entrevistas. Portanto, ao invés de feminilizar, as lágrimas simbolizam a força de uma identidade tipicamente masculina no contexto do futebol. É preciso destacar que se, por um lado, a masculinidade construída no contexto do futebol é mais emotiva, por outro lado, a emotividade que se manifesta nesse contexto também passa por um processo de “masculinização”. Assim, encontramos entrevistados que se apresentaram como torcedores “equilibradamente apaixonados” por seus clubes, ou ainda, que disseram “chorar de raiva” nos momentos de derrota de seus times. Nesses casos, a emotividade é combinada com traços característicos do comportamento masculino – respectivamente, equilíbrio e agressividade –, sendo destituída de qualquer fragilidade ou descontrole que poderia mantê-la associada à natureza feminina.

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No terceiro capítulo de análise, abordei as memórias mais marcantes vivenciadas pelos entrevistados enquanto torcedores, o que corresponde aos grandes títulos, vitórias e derrotas de seus “clubes do coração”. Pelos depoimentos colhidos, foi possível observar que essas memórias são eminentemente emotivas, ou seja, a emoção é o elemento que parece presidir o processo de formação dessas memórias, antes de qualquer outro fator. Dito de outra forma, é a emoção o que marca a experiência pessoal, deixando certos momentos gravados na memória. A memória do torcedor é composta não só por acontecimentos vivenciados diretamente, mas também por eventos experimentados “por tabela”, a partir do pertencimento do indivíduo a um determinado grupo – o clube pelo qual se torce, e a “comunidade de sentimentos” composta pelos demais torcedores. Nesse sentido, alguns entrevistados mencionaram, entre suas lembranças mais marcantes, títulos e jogos ocorridos num tempo em que não eram nem mesmo nascidos. Além das histórias contadas por outros torcedores – com destaque para a figura do pai – os entrevistados ressaltaram a importância dos vídeos disponíveis na internet como uma forma de familiarização com essas memórias coletivas. Em todo caso, merece destaque o grande nível de detalhes com que essas memórias marcantes são narradas. Esse detalhamento é uma forma de caracterizar essas memórias como algo especial, singularizando-as através de uma descrição mais complexa. A boa memória futebolística é um dos elementos que caracterizam o torcedor apaixonado, que deve estar a par dos momentos mais marcantes da história de seu clube. Nesse sentido, grande parte dos entrevistados declarou ter uma memória mais eficaz para se lembrar de eventos ligados ao futebol do que para recordar acontecimentos ligados a outras áreas de suas vidas. A distribuição dos jogos e campeonatos em torno de um calendário mais ou menos regular permite uma melhor organização das memórias futebolísticas. Por conseguinte, essas memórias contribuem para a recordação de eventos ligados a outros contextos, possibilitando a organização da experiência dos torcedores para além do âmbito do futebol, e até mesmo da narrativa de suas trajetórias pessoais. Com essa pesquisa, espero ter contribuído para o estudo sócio-antropológico das emoções, área recente das Ciências Sociais, que vem crescendo em importância nos últimos tempos. Ao fazer das emoções um novo objeto de investigação, não é apenas um novo tema que surge, mas também um novo olhar

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sobre temas já explorados sob diversas outras perspectivas, a exemplo da constituição cultural do gênero. Nesta pesquisa, procurei destacar a importância das emoções para a constituição cultural do gênero ou, mais precisamente, da masculinidade. No futebol, encontramos um contexto excepcional, em que os valores hegemônicos da virilidade são substituídos por uma combinação peculiar entre masculinidade e emoção. A consideração desse contexto nos permite desnaturalizar a dissociação comumente realizada entre masculinidade e emoção, apontando para a constituição de diferentes padrões de performance masculina, não apenas em sociedades diferentes, mas também em diferentes contextos de ação dentro de uma mesma sociedade. Ao adotar as memórias de torcedores como vias de acesso para seus discursos emotivos, espero ainda ter contribuído para os estudos sociológicos sobre futebol e memória. O futebol é um elemento da cultura popular em nosso país, que contribui para a formação de grupos, a constituição de identidades e consiste num contexto social particular. No universo cultural do futebol, destacam-se as memórias compartilhadas e disputadas pelos torcedores, contribuindo para a formação dos clubes como diferentes “comunidades de sentimentos”. Na relação com seus “clubes do coração”, os torcedores vivenciam importantes memórias afetivas, que ajudam a organizar sua experiência para além do contexto do futebol. Tendo em vista as inevitáveis limitações desta pesquisa, apontamos para a necessidade do estudo de novas questões em futuros trabalhos. Nas últimas décadas, o futebol brasileiro vem passando por importantes transformações, que podemos caracterizar como um processo de mercantilização e elitização. A mercantilização do futebol diz respeito à transformação desse esporte numa atividade voltada eminentemente para o consumo, minimizando sua importância como fenômeno cultural e sua identificação com as camadas populares no Brasil. Com a mercantilização, modifica-se a identidade de classe do esporte, que passa a contar cada vez mais com membros das classes médias e altas em seu público. Nesse movimento, modificam-se também os padrões de fruição do espetáculo, na medida em que os torcedores são tratados, sobretudo, como consumidores, e o elo afetivo e identitário que os une a seus “clubes do coração” se modifica. As emoções torcedoras encontram-se, portanto, em transformação, mas não necessariamente

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em vias de extinção, e esse fenômeno merece a atenção de trabalhos futuros na área das Ciências Sociais.

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