Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016

Apologia do riso em Alto Astral: textos e pretextos para a comédia na teleficção1

Robéria Nádia Araújo NASCIMENTO2 Universidade Estadual da Paraíba, UEPB

Resumo

Ao considerar a instância enunciativa da trama e suas nuances de paródia, este artigo pensa a relação da ficção com o campo da religiosidade, sugerindo que, ao evocar o riso nas alusões espíritas, a teledramaturgia parece forjar espaços de fruição favoráveis à midiatização dos fenômenos “sobrenaturais” sem resvalar para caricaturas grotescas sobre a filosofia religiosa. Pelo viés da intertextualidade, a produz uma paráfrase dos postulados espíritas à medida que imprime um formato lúdico à narrativa. Com o propósito de fundamentar tal argumento, o presente texto aborda as tipologias do gênero comédia a fim de demonstrar que Alto Astral desconstrói o padrão do melodrama ao reconfigurar o Espiritismo sob o viés do humor, rompendo com a perspectiva doutrinária que marcou os folhetins do passado da Rede Globo.

Palavras-chave: Ficção Seriada; Comédia; Midiatização Religiosa; Espiritismo.

Introdução

Este texto3 propõe que as narrativas ficcionais constituem espaços de fruição favoráveis à interface mídia e religiosidades4. Nesse sentido, sugere que as se apropriam do universo religioso, fomentando interações com diferentes crenças que, por sua vez, favorecem novas dinâmicas de sociabilidade, tecidas a partir da ressignificação das suas narrativas5. De modo sutil, conceitos e referências ao místico e ao sobrenatural pontuam os enredos ficcionais numa tentativa de despertar o interesse da audiência e

1 Trabalho apresentado no GP Ficção Seriada, XVI Encontro dos Grupos de Pesquisas em Comunicação, evento componente do XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação.

2 Professora Titular do Curso de Comunicação Social da UEPB. Doutora em Educação pela UFPB. E-mail: [email protected]

3 Derivado de um estudo em andamento, intitulado “Reinvenções do místico e do cômico: o viés espiritualista de Alto Astral”, do curso de Comunicação Social da UEPB, que tem como bolsista o aluno Rafael Galdino Ribeiro. Os procedimentos metodológicos incluem a análise de conteúdo e a constituição de um Grupo Focal em fase de articulação dos dados. Portanto, este texto expõe uma sistematização preliminar do objeto ao apresentar a revisão de literatura realizada até o momento.

4 Em conformidade com Vilhena (2008), optamos pelo plural por considerarmos que a polifonia de crenças existentes no país enseja que a acepção de religião seja vislumbrada numa perspectiva múltipla, para além de uma visão reducionista, sem enquadrar adeptos, práticas e subjetividades numa única nomenclatura.

5 A partir da interlocução com o Grupo Focal, será possível observar a inteligibilidade e as impressões dos participantes para uma possível validação dessa hipótese.

1 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016

ampliar seu repertório para os diferentes modos de crer6 nos fenômenos atrelados à esfera da espiritualidade, ao invés de se reportar diretamente ao Espiritismo7 enquanto vertente religiosa. Analisando a teledramaturgia, Junqueira e Tondato (2009) perceberam que “a religião e a religiosidade são fortes componentes da construção do habitus moral8 das novelas nacionais, atravessando todas as classes, gêneros e gerações” (JUNQUEIRA; TONDATO, 2009, p. 185). No estudo em questão as autoras observaram que as manifestações de misticismo em vários produtos ficcionais representam, na verdade, possibilidades de ruptura com os valores católicos que, no passado da TV, eram exclusivos nas tramas em virtude da colonização portuguesa e suas influências. Tal fato, segundo elas, reflete com propriedade a globalização religiosa da sociedade brasileira: “Nos anos 1970, a presença das religiões nas novelas era limitada à católica, ou no máximo à convivência entre os cultos africanos e o catolicismo. Os anos 1980 viram surgir aqui e ali outras crenças” (JUNQUEIRA; TONDATO, 2009, p. 188). Seguindo esse raciocínio, enfatizam que a partir de 1990, a abordagem da ficção televisiva foi ampliada, envolvendo um leque de referências diversificadas que registrou do vampirismo à ufologia, passando pelas citações à nova era e pelas expressões espíritas. Essa nova postura parece sinalizar o sincretismo religioso que caracteriza o país, onde os católicos, apesar da tradição, se mostram flexíveis, “simpatizantes” a múltiplas crenças e suas manifestações, numa espécie de pertencimento fluido que Negrão (2009) denomina de identidade religiosa dúplice e tríplice. As autoras referidas ponderam ainda que no universo da ficção é possível perceber a centralidade do protestantismo nos meios sociais

6 A Rede Globo é a primeira emissora do país, depois da extinta Tupi, a tematizar, em novelas e minisséries, contextos ligados à espiritualidade e às religiosidades (diversas crenças servem de pano de fundo para as tramas). Entretanto, referências ao espiritismo ganham cada vez mais espaços não apenas no formato de telenovelas, como também no nicho das produções cinematográficas- as surpreendentes bilheterias dos filmes Chico Xavier, Bezerra de Menezes, Nosso Lar e As mães de Chico Xavier, investimentos da Globo Filmes, ilustram essa perspectiva.

7 Negrão (2009) insere essa doutrina no contexto cristão, apontando que se houver alguma divergência com o catolicismo, esta se dá pela crença nos espíritos, pela possibilidade de comunicação com eles, bem como na defesa da reencarnação presidida pelos princípios evolutivos e decorrentes do livre-arbítrio dos seres humanos. Em proximidade ao contexto cristão-católico, o autor destaca que a vertente enfatiza a moralidade e a prática da caridade, salientando que “a duplicidade católica-espírita se mantém ativa no Brasil, visto que alguns espíritas permanecem „socialmente católicos” (NEGRÃO, 2009, p. 20). Daí o interesse por abordagens televisivas, ficcionais ou não, que aludam a esse universo de crenças.

8 Em relação às práticas de produção “naturalizadas” pelos autores das narrativas, que costumam inserir nas tramas representações do cotidiano religioso sincrético brasileiro, mantendo vivas certas tendências de enunciação. De acordo com essa abordagem, inspirada nos postulados teóricos de Pierre Bourdieu e o conceito de habitus, as telenovelas podem ser entendidas enquanto representações do campo social, e não mais como expressões dos monopólios industriais. Por essa lógica, criam maneiras ficcionais singulares, e ao mesmo tempo similares, de ler, narrar e contar as práticas religiosas, inspirando-se nos preceitos formulados pelas diferentes denominações do “mundo real”. De 1973 a 2008, as autoras destacam 27 obras teleficcionais que trataram de temas religiosos na Rede Globo. Entre essas, as tramas de Ivani Ribeiro podem ser facilmente reconhecidas pelo enfoque espírita e místico que as permeiam.

2 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016

economicamente desfavorecidos, assim como a umbanda e o candomblé surgem como sinônimos de tradição familiar ou transgressão dos personagens. Conforme apontam as autoras, o Espiritismo é atrelado à intelectualidade dos núcleos ficcionais, num reflexo dos censos religiosos que indicam a parcela social mais escolarizada do país como pertencente a essa doutrina, opção quase sempre derivada de escolhas dos sujeitos e não de pertencimentos familiares. Por ser uma filosofia religiosa avessa às autoridades institucionais, Negrão (2009) esclarece que o Espiritismo não tem sacerdotes e se ancora numa visão universalizada da fé, atribuindo à responsabilidade individual o caminho para a transformação interior, o que pode chamar a atenção da sociedade para os seus pressupostos. Num pensamento análogo, Velho (2003) considera que “o além” de fato instiga a curiosidade, construindo uma rede de conexões, nem sempre religiosas, que enlaça a imaginação da coletividade com o mistério, capturando o interesse para o sobrenatural e as questões que lhes perpassam: “Dentro da sociedade brasileira, e em sua diversidade de credos, existe uma ordem de significados que gira em torno da crença em espíritos, num fascínio que avança de modo expressivo” (VELHO, 2003, p. 56). Essa crença, no entender do autor, se alicerça de modo difuso e informal, sem um controle institucional legitimado que aproxima o público dos assuntos ligados ao mistério e à magia. No intuito de ilustrar esse contexto, lembramos a telenovela (Globo/1994), que ficou marcada no imaginário coletivo por adotar, pela primeira vez na emissora, a vertente Kardecista numa perspectiva doutrinária, incluindo em sua narrativa trechos literais das obras espíritas para respaldar as situações, sobretudo as que reproduziam os fenômenos mediúnicos e tratavam da vida após a morte. Até hoje, as concepções que muitos telespectadores construíram a respeito de “céu” ou “paraíso” são influenciadas, em maior ou menor grau, pelo plano espiritual que foi mostrado no folhetim. Na busca de fundamentação aos preceitos kardecistas, as imagens aludiam à colônia Nosso Lar, descrita minuciosamente pelo espírito do médico André Luiz (por psicografia ao médium Chico Xavier) na obra homônima que inspirou a sinopse de Ivani Ribeiro. Assim, os telespectadores tinham acesso à codificação espírita por registros imagéticos e dramáticos que evocavam as sensibilidades. Após a reverberação positiva do enfoque pioneiro, a Globo continuou enveredando pelos temas místicos e sobrenaturais, aludindo à reencarnação ou aos mentores espirituais, a exemplo do que ocorreu nas telenovelas: (2010),

3 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016

(2012) e Além do Tempo (2015), grandes sucessos da autora Elizabeth Jhin, que vem se notabilizando por abordagens dessa natureza. Negrão (2009) assinala que a expressiva aceitação das tramas de inspiração espiritualista pode estar atrelada ao fato de que hoje as doutrinas tradicionais já advogam teorias reencarnacionistas, comuns à codificação espírita, incorporando diálogo e liberdade nas narrativas sobrenaturais e nos discursos de esperança num mundo melhor. Segundo o autor, falar de fé não implica nitidez na hegemonia simbólica das religiosidades como havia nos tempos em que ser católico era uma regra na sociedade, reproduzida nas artes, na literatura e nos produtos ficcionais. Na trama contemporânea de Alto Astral9, exibida no horário das sete em novembro de 2014, o Espiritismo não provoca lágrimas, como ocorreu em A Viagem. Verifica-se um tom de comédia que não apela para caricaturas grotescas, sugerindo que o plano terreno e o espiritual (chamado oportunamente de “astral”) se entrelaçam para nos “divertir”, ainda que algumas mensagens subliminares advoguem uma reflexão para a “vida no além”. Caracterizada pela leveza narrativa, embora exponha “proximidade” aos escritos Kardecistas, a telenovela sugere que a “desencarnação” pode ser lúdica. Os “fantasmas aparecem”, literalmente, em situações hilárias que fazem piada da morte. Em alguns núcleos, também é possível notar uma tendência à comédia dramática, que tende a conciliar a invocação do riso com a abordagem do drama, criando, desse modo, uma alternância de registos discursivos que se apropria da seriedade das situações para exibir o seu reverso (NOGUEIRA, 2010). Em Alto Astral, parece haver uma quebra de “protocolo”, um desdobramento de matrizes discursivas que “desconstrói” a tradição dos enfoques religiosos, uma vez que as simbologias espíritas são parodiadas, ainda que o apelo à sensorialidade permaneça ativo. Ao contrário do que ocorreu na novela A Viagem, Alto Astral mescla o sério e o riso, ao fomentar uma linguagem dissonante por evocação de paráfrases. Nesse processo de inversão paradigmática, registra-se uma desvinculação com as “convenções” do melodrama para ser possível instituir um novo código narrativo que permite leveza ao brincar com o “sobrenatural”. A adoção desse mecanismo sugere que o misticismo forjado pela ficção não perde seu poder atrativo, uma vez que as tramas permanecem mobilizando a atenção das pessoas apesar da recorrência narrativa aos seres do “além” e as suas interferências na terra.

9 Autoria de Daniel Ortiz, Direção Geral de Jorge Fernando e Supervisão de Sílvio de Abreu, baseada na sinopse original de Andréa Maltarolli, autora da Rede Globo falecida em 2009. Em relação ao título da telenovela, o termo “alto”, que adjetiva o substantivo “astral”, sugere ludicidade e inspira um sentido “positivo”. No que concerne ao lúdico, Nogueira (2010) assinala que o artifício não perde sua intencionalidade discursiva, pois uma pretensão sempre existe na sua utilização: a interpelação do espectador, na tentativa de inverter as suas convicções e despertar suas expectativas para o conteúdo narrativo.

4 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016

Em contrapartida, as diversas religiosidades pressupõem regras, exigem seriedade de abordagens, solicitam o aval de alguma “tradição”. Vilhena (2008) aponta que sob a crença espírita subjaz um viés “formal”, mas, aos olhos do senso comum, é também uma crença impregnada pelo misticismo devocional, pela ideia do fascínio em relação ao mistério, o que desperta a curiosidade e a aproxima das pessoas. “Entretanto, a formalidade tem tom de „liberdade‟: a crença em espíritos, pela possibilidade de intercomunicação entre vivos e mortos, favorece a aceitação da proposta de Kardec, que se deu no país em meados do século XIX” (VILHENA, 2008, p. 41). Nessa dinâmica, a ficção parece se apropriar das referências religiosas, tornando-se um ambiente privilegiado para a disseminação das suas simbologias. Ao difundir uma narrativa mística, inspirada nos princípios espíritas, a ficção não se configura apenas num pano de fundo para informações desse campo, mas atua com intencionalidade para estabelecer elos com a audiência, através de uma cultura da imagem capaz de gerar novos “vínculos de sentidos”. De acordo com Baitello Junior (2010), tais vínculos criam uma cultura de força expressiva na sociedade, fomentando “a era da iconofagia”, que não explica os reais significados dos ícones que representa, mas os torna facilmente reconhecíveis como se fossem objetos de manipulação coletiva. Daí a naturalização das alusões espíritas na TV. O oportuno pensamento de Lopes (2003) corrobora esse processo de disseminação de temáticas, ao defender que a TV alimenta na sociedade um repertório cultural comum, criando um nicho de aproximação que permite que as pessoas de classes sociais, gerações, sexo, raça e regiões diferentes se posicionem e se reconheçam umas as outras. Para a autora, longe de promover interpretações consensuais, mas, antes, produzir lutas pela interpretação de sentido, esse repertório compartilhado está na base das representações de uma comunidade nacional imaginada que a TV capta, expressa e constantemente atualiza. Com tal propósito, a narrativa ficcional traduz as tematizações sociais através de relações afetivas, ao nível do vivido, misturando-se na experiência cotidiana e revelando-se em múltiplas facetas: subjetiva, emotiva, política, cultural, estética, entre outras. Junqueira e Tondato (2009) também acreditam que as telenovelas instalam um espaço de discussão sobre questões éticas e morais, que se verifica nas interações familiares e na ressonância que suscitam. Considerando a empatia do público com situações e personagens, atuam nas sensibilidades e sociabilidades, desenvolvendo relações emocionais com os telespectadores, que se projetam nas tramas e se identificam com os enfoques.

5 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016

Nesse fluxo de intercâmbios, a fusão do imaginário e do real pela ficção permite sintetizar problemáticas da sociedade e da cultura que oferecem ao público novas formas de percepção do mundo, incluindo-se, nesse patamar, múltiplas leituras religiosas, descontando-se, evidentemente, as licenças poéticas e os exageros dos estereótipos. De todo modo, as lógicas midiático-televisivas realizam operações sutis e estratégicas nas apropriações dos conteúdos de caráter religioso, o que populariza diversas crenças, especialmente o Espiritismo, atribuindo aos seus princípios possibilidades de midiatização. Miklos (2013) salienta que se todas as esferas sociais foram abarcadas pela comunicação, as experiências religiosas não poderiam passar incólumes por esse processo, seja qual for a tela em que se enquadrem. Na percepção do autor, além da TV, aplicativos, sites, canais e portais intensificam o trânsito de referências que atestam a migração religiosa, construindo um horizonte promissor à “midiatização do religare”, no qual os deslocamentos do sagrado indicam a empatia por diferentes credos. Mas, ao contrário dos evangélicos e católicos que divulgam sua fé por diferentes meios eletrônicos, torna-se válido ressaltar que os espíritas não realizam proselitismos e não manifestam desejo missionário de conversão. Sobretudo por esse aspecto, uma paródia da filosofia espírita na teledramaturgia adquire inovação, uma vez que outras religiões não aparecem na TV sob a ótica do humor, utilizando o ambiente midiático como marketing. Por isso, as religiosidades surgem em diferentes narrativas e suportes, permitindo que “a concretude da experiência da fé seja deixada no passado para emergir no presente de uma sociedade escravizada pelos signos da visibilidade” (MIKLOS, 2013, p. 165). Ao elegermos Alto Astral como espaço de interlocução para o cruzamento de sentidos entre a teledramaturgia e as religiosidades, partimos do pressuposto de que as narrativas ficcionais espelham esse processo de midiatização (FAUSTO NETO, 2011) de modo significativo ao se entrelaçar com as referências dos universos religiosos. Essa interface tem se tornado recorrente nas novelas da Rede Globo ao longo dos anos, especialmente quando as tramas evocam mistérios da ordem do sobrenatural e da paranormalidade. Entretanto, a novidade que se esboça tem a ver com o tom de humor atribuído aos “fantasmas” e o destaque às situações hilárias em que esses se envolvem. Convém assinalar que a pesquisa que originou este texto se ancora nos Estudos Culturais, adotando como eixo o posicionamento de Hall (2004) e a ideia de que os produtos midiáticos oferecem amplas possibilidades interpretativas, permitindo ao público que os recebe diferentes atribuições de sentidos. Nessa perspectiva, torna-se pertinente

6 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016

salientar que a decodificação desses produtos pode ser “hegemônica”, quando parte de uma esfera dominante de influência; “opositiva”, quando é contrária à visão estabelecida pelos meios e produtos; e “negociada”, quando há possibilidades de se contra argumentar sobre as experiências vividas e assimiladas. Esse último ponto de vista nos parece pertinente, pois a sociedade exercita sua racionalidade e cria as condições de intervenção nos conteúdos. Nessa linha de raciocínio, a interpretação é autônoma, mas não se dissocia da cultura que a constitui. Tal acepção se assemelha àquela formulada por Martín-Barbero (2009), ao se reportar às mediações culturais da comunicação. Essas considerações preliminares nos convocam a analisar as matrizes simbólicas da teleficção, especialmente no que tange à paródia dos fenômenos espíritas. Com base nos aportes teóricos supracitados, parece oportuno indagarmos: como Alto Astral alia comédia e melodrama no enfoque do Espiritismo? Visando refletir sobre a questão, este texto busca compreender a utilização dos recursos narrativos da comédia enquanto vetores para a midiatização religiosa, uma vez que os dispositivos de mediação comunicacional10 sugerem novos arranjos interpretativos e novas racionalidades.

Incursões “ao além”: os eixos da comédia e as estratégias do humor

A trama de Alto Astral se passa na cidade fictícia de Nova Alvorada e gira em torno do médico Caíque (Sérgio Guizé), que desde a infância tem visões de espíritos e sofre a influência de seu mentor, Dr. Castilho (Marcelo Médici), com quem mantém dívidas passadas que precisam ser liquidadas na vida atual em nome da evolução espiritual de ambos. Graças à intervenção deste espírito, Caíque, um clínico geral que tem “pavor de sangue”, entra em transe mediúnico e salva a vida de Laura (), realizando uma operação na estrada, sem assepsia e anestesia, fato que surpreende a sociedade, revelando os poderes de cura do protagonista “atrapalhado”. Eles se apaixonam, mas a moça é noiva de Marcos (Thiago Lacerda), irmão e rival do médico, que persegue o rapaz alegando que sua mediunidade se trata de esquizofrenia11. Para conquistar Laura, sua alma gêmea, Caíque recebe o auxílio de um espírito infantil, Bella (Nathalia Costa), que se diz sua filha e que precisa reencarnar. Para isso, a menina será o cupido do casal. O núcleo mediúnico também

10 Martín-Barbero (2009) propõe que o deslocamento das mediações culturais da comunicação para as mediações comunicativas da cultura criam os processos de midiatização incidindo sobre suas potencialidades e desdobramentos. 11 A associação da mediunidade a problemas psiquiátricos nada tem de “engraçado”; a literatura espírita narra que no século XIX muitos médiuns foram internados como loucos. Contudo, a trama ameniza o enfoque apelando para as situações em que o protagonista utiliza seu dom para ajudar os pacientes do hospital.

7 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016

inclui a paranormal Samantha (Cláudia Raia), que deseja enriquecer e alcançar a fama na mídia. “Uma voz” do além se aproveita dessa condição (Morgana, vivida pela atriz Simone Guttierrez) e sugere aconselhamentos à falsa vidente, através de premonições que tumultuam a cidade. O menino Azeitona (JP Rufino) e o cozinheiro Afeganistão (Gabriel Godoy) também manifestam sensibilidades mediúnicas. Há até uma família, que habita uma casa de aparência mal-assombrada, cuja filha, Ana Dirce (Marianna Armellini) desconhece o fato de ter ”feito a passagem”, informação que sua mãe, igualmente morta, esconde para não entristecer a moça. Entre flashbacks da vida passada e provações da vida presente, a narrativa se desenrola mostrando os fenômenos espíritas sob o viés do humor. Nogueira (2010) explica que a comédia tende a ressaltar as fragilidades do ser humano pondo em relevo o vício, a negligência, a pompa, a presunção, a vaidade ou a insensatez. Esses aspectos a tornam um (sub) gênero ficcional frequentemente depreciado, como se a ausência de seriedade discursiva fosse um argumento para lhe desqualificar. Contudo, o artifício traz em suas potencialidades uma espécie de insight que descobre em qualquer tema ou personagens pretextos para o riso, sinalizando espaço para a criatividade narrativa. Em Samantha, por exemplo, a vaidade e a ambição exageradas poderiam ser rejeitadas pela audiência, mas, ao contrário, os desvios de caráter romperam com o estereótipo de uma antagonista tradicional, tornando-a cativante e engraçada. O carisma e a repercussão da personagem superaram a recepção do protagonista, ilustrando a ascensão de uma personagem, concebida como secundária, que passa a influir na trama para além das expectativas do autor. As estratégias de construção do humor ainda podem ser caracterizadas em alguns eixos: O exagero, que se fundamenta na lógica da hipérbole e tende a despertar no espectador uma sensação de incredulidade; O equívoco, que traz divergência para a interpretação do público ou dos interlocutores acerca de um mesmo fato mostrado à luz do riso; O absurdo, denominado de humor non-sense, que tende a acentuar a vulnerabilidade da lógica causal dos acontecimentos mostrados na ficção; O insólito, que impede qualquer desfecho previsível para uma situação parodiada; O escatológico, que consiste na provocação deliberada do espectador, através do abuso do mau gosto em palavras ou atos encenados;

8 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016

O anacrônico, que coloca em relação na ficção dois universos que cronológica e ontologicamente seriam incompatíveis; O agravamento, em que as peripécias atribuem uma lógica de desconcertação crescente a personagens e/ou situações; O recrudescimento, quando todos os conflitos parecem definitivamente resolvidos, revelando uma nova incidência de acontecimentos inesperados e engraçados; A descontextualização, que retira ideias do contexto usual, para expor novos significados e traduzir leveza; O imprevisto, que desilude ou contraria todas as expectativas criadas para uma dada situação, a fim de evitar desfechos óbvios (NOGUEIRA, 2010, p. 21-22). Além desses aspectos, a comédia ainda pode se desdobrar em várias modalidades, dependendo do tom ou do propósito do humor utilizado. Assim, uma espécie de classificação didática pode favorecer a nossa compreensão do tema. Destacamos aquelas que, na nossa percepção, são enfatizadas em Alto Astral. Em primeira instância, surge a paródia, que consiste na apropriação de uma situação ou personagem para desvelar suas contradições a partir das próprias premissas. A narrativa toma o discurso espírita como pano de fundo para fazer piada de seus fenômenos, mostrando, por exemplo, a mediunidade como caricatura, mas sem minimizar o teor dos postulados religiosos ou desrespeitar seus fundamentos. A ironia, que é um mecanismo linguístico através do qual o sentido literal se inverte para dar lugar ao sentido figurado, afirmando algo ao insinuar o seu contrário. Na novela, as situações do além são retratadas sem o teor doutrinário que poderiam merecer, caso a ficção tivesse interesse em promover reflexão sobre a doutrina; o ridículo, elemento que releva a insignificância de certos valores ou sublinha a hipocrisia de convenções para criticar costumes sociais. Em alusão a essa modalidade narrativa, notamos que o ato da incorporação mediúnica surge para se reportar aos diversos pseudomédiuns do cotidiano que se utilizam de suas faculdades para proveito pessoal. Os interesses de marketing de Samantha, que se apresenta como “vidente”, mas só deseja conquistar fama e riqueza, ilustram esse aspecto com propriedade. O gracejo é outro recurso adotado em Alto Astral, uma vez que a comédia não apela para piadas ofensivas ou grosseiras, nem exagera na sátira ou aciona o escárnio para desqualificar o Espiritismo. A narrativa visa provocar o riso espontâneo, através de diálogos e/ou situações ingênuas.

9 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016

Em última instância, identificamos o humor espirituoso, que consiste na sugestão do riso de modo elegante, aliando sabedoria, ironia, sutileza e perspicácia às mensagens que desejam ser disseminadas. Através de Caíque e suas aventuras, que resvalam para uma comédia pastelão, percebemos uma contraposição de posturas à médium interesseira, Samantha, com seus desejos materiais, uma vez que o médico desenvolve seus dons para a prática do bem e da caridade, que são, por analogia, princípios defendidos pela doutrina espírita. Dessa forma, as lógicas da produção ficcional se apropriam de diferentes mecanismos para ser possível formatar operações sutis nos conteúdos, sejam esses de cunho religioso ou não, criando um horizonte de tematizações plurais que possibilitam o trânsito de sentidos e identificações, forjando uma cultura da mídia (KELLNER, 2001) para fins de reconhecimento social. Em Alto Astral, as matrizes de “identificação cultural” (HALL, 2004) de ordem religiosa apelam ao reconhecimento dos telespectadores, ao mesmo tempo em que mostram a leveza de uma trama na qual “os fantasmas se divertem e nos divertem”. Narrativas de polarização do bem e do mal se sucedem, descontando-se, evidentemente, os exageros das licenças poéticas que perpassam a fantasia. Nas teleficções, os mocinhos enfrentam as vilanias das mentes perversas na busca por um final feliz que quanto mais difícil se apresentar, mais emocionantes serão os seus desdobramentos. As malhas desse enredo, que nos é familiar, nos remetem ao pensamento de Lopes (2004), para quem a narrativa ficcional representa um lugar privilegiado de onde se anuncia uma nação representada e não só “imaginada”. Desse raciocínio, emerge a percepção de que no Brasil os produtos da ficção redefinem as fronteiras culturais das expressões religiosas, alargando o trânsito de significados e sincretismos, midiatizando crenças e rituais para representar os contornos do pluralismo. Se observarmos com atenção, nas telenovelas há sempre um padre, um pastor, um guia espiritual para aconselhar e cuidar de seus protegidos para que o bem supere a maldade e a vilania. No caso de Alto Astral, os mentores espirituais de Caíque cumprem a função de nortear os caminhos do protagonista, até que ele se interessa pelo atendimento fraterno aos pacientes e é apresentado a um centro espírita, a fim de conhecer e estudar a obra de Kardec, trabalhar pela sua evolução e entender a natureza de sua “missão” na terra. Ainda que esse percurso seja alternado com a comédia, é

10 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016

possível perceber que a intertextualidade se encarrega de disseminar as bases da doutrina. Assim, os gêneros ficcionais se mostram em permanente estado de fluxo e redefinição, despertando novas inteligibilidades, mesclando particularidades, conformando novas sínteses sociais, restituindo e atualizando velhas histórias. Sob a ótica do humor, os clichês românticos do folhetim ultrapassam o padrão habitual das paródias de vida e morte para expressar matrizes culturais religiosas, que atuam enquanto “pontos de intercessão social nas relações entre cultura popular, erudita e de massa” (LOPES; BORELLI; RESENDE, 2002, p. 254). Nesse sentido, a comédia, segundo o pensamento das autoras, aciona valores opostos, evocando um contraponto que transmuta o melodrama: “a morte e o riso, a maldade e o riso, a tensão e o riso, retomando as matrizes clássicas da literatura e do teatro populares” (LOPES; BORELLI; RESENDE, 2002, p. 278). Se a vida cotidiana exagera nas tragédias e angústias, na ficção, o lúdico funciona como escape na construção de um realismo-emocional que visa minimizar as ambiguidades na busca de um final feliz: antevemos os desfechos, imaginamos as parcerias e os afetos. Na narrativa de Alto Astral, o escapismo é incorporado à comicidade, a fim de promover uma ruptura com o padrão dramático conhecido. Ainda que o horário das sete seja destinado à leveza narrativa, nessa novela é possível entrever, em meio ao lúdico, uma intertextualidade com os postulados espíritas em meio a uma atmosfera de mistério. Afinal, o protagonista Caíque, no início da trama, rejeita sua condição de médium, não faz apologia de seus supostos dons, até que passa a desenvolver trabalhos de cura espiritual no hospital da família, incorporando seu mentor Castilho, sutilmente colocando em prática a máxima espírita de que “fora da caridade não há salvação”. Ao se aproximar da doutrina, Caíque, incentivado pelo mentor, às vezes é flagrado lendo um livro de Kardec ou se reportando à codificação espírita12, buscando entender suas visões dos “seres do além”. Nessas situações e em outras, a adoção da paráfrase pode ser percebida. Esse artifício ocorre quando algo é explicado ou demonstrado por outros termos sem intenção de literalidade (BULHÕES, 2009).

12 Para Allan Kardec, a codificação articula uma ciência filosófica de consequências religiosas, cujos princípios foram reunidos por ele em 1857, sob a orientação dos Espíritos Superiores em cinco obras basilares: O Livro dos Espíritos (1857); O Livro dos Médiuns (1861); O Evangelho Segundo o Espiritismo (1864); O Céu e o Inferno (1865) e A Gênese (1868). A codificação espírita visa esclarecer as questões humanas: Quem sou? De onde eu vim? O que sinto? Por que sofro? Para onde vou? (VILHENA, 2008, p. 32).

11 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016

Aludindo ao aspecto ficcional dessa continuidade e dos novos modos de (re) dizer, Andrade (2003) discute o processo, mencionando a personagem oriental Scherazade, para aludir que cada história contada tem sempre um elo de aproximação, evocando outra que lhe sucede ou lhe seja subjacente. Por isso, os princípios espíritas estão diluídos na novela, são narrados e podem ser reconhecidos nos diálogos, signos e situações parodiadas, a exemplo do passe13 espiritual recebido por Caíque, sempre com o auxílio de Castilho. Pelo exposto, a paródia é uma imitação cômica ou burlesca de elementos existentes ou já conhecidos. Bulhões (2009) argumenta que a ficção midiática é um campo de permanentes intercâmbios, no qual os gêneros, formatos e linguagens se contaminam reciprocamente, em um irrefreável sincretismo, em uma permanente permuta que reconfigura a matriz que lhe originou, gerando espaço para o novo e o impactante. Assim, dos cenários ficcionais para a vida real, as narrativas se hibridizam e personagens múltiplos exercitam nossa memória, promovendo diferentes histórias, a partir dos signos existentes, suscitando novas inteligibilidades e agenciamentos de sentidos. Acionando um cruzamento de códigos, a ficção amplia o seu repertório, produzindo um movimento circular de citações explícitas a determinados contextos. Nessa dinâmica, Alto Astral constrói uma paráfrase do Espiritismo, reportando-se a uma “comédia pastelão”, ainda que a recorrência discursiva seja ambígua ou alterada em clichês narrativos que subvertem a ordem do pensamento filosófico de Allan Kardec, revestindo de leveza os princípios doutrinários, como se isso ressaltasse a própria obra a que se refere. Sobre esse mecanismo, Bulhões (2009) salienta: “Situações ficcionais são usadas como homenagens, ao mesmo tempo em que parecem brincar, ou zombar daquilo que homenageiam” (BULHÕES, 2009, p. 127). Esse movimento de reapropriação temática auxilia o mundo ficcional a se reciclar e instiga a sedução das narrativas, que se travestem de outros recursos para comunicar o mesmo código, suscitando a intertextualidade. Sempre que uma narrativa se refere à outra, de modo explícito, como Alto Astral se reporta aos postulados espíritas, assimilando tais elementos nas situações criadas, elabora uma paródia dessa religiosidade, produzindo uma autorreferência. No entendimento do autor, o ficcional midiático acaba atingindo um patamar em que a própria ficção passa a ser o assunto

13 À luz dos preceitos espíritas, significa a transmissão energética de fluidos pela imposição das mãos dos médiuns, indivíduos autorizados a aplicá-los, com fins de cura ou desobsessão espiritual. Os espíritas acreditam que essa prática alcança o períspirito, um invólucro que liga o corpo ao espírito encarnado.

12 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016

principal: “Assim, narrativas calcadas na paródia, na paráfrase, na citação, na montagem ou no plágio podem ser classificadas de intertextuais” (BULHÕES, 2009, p. 129). Martín-Barbero (2014), por sua vez, argumenta que a ficção coloca a cultura em movimento, tornando-a um fenômeno polifônico e plural, multifacetado em suas idiossincrasias. Além da ideia de completude e complementação, ligadas à historicidade cultural, o autor evidencia ainda que os diferentes símbolos na cultura do ver, representados pelas narrativas da ficção, fazem pensar, dão o que pensar, criando releituras e reinventando novos sentidos para a vida cotidiana. Estejamos, pois, nos limites do drama ou do riso, atentos ao que esses símbolos nos dizem.

Considerações Finais

Seguindo a trilha dos argumentos expostos, percebemos que os símbolos do fantástico sugerem a atração do público pelo mistério. Isso nos leva a pensar que entre o céu e a terra da ficção ainda há uma espécie de universo paralelo onde sobra espaço para o riso e “para o além”. Nesse raciocínio, torna-se um recurso apropriado tematizar num folhetim contemporâneo discussões como morte ou vidas passadas pela via romanceada do humor e da leveza, como ocorre em Alto Astral, se considerarmos que as noções/tensões ali mostradas representam a face “sisuda” da sociedade, para as quais evitamos dirigir nossa atenção. Por que, então, não refletirmos sobre o lado “sério” da vida (ou da morte), “brincando” com questões que não sabemos explicar? O riso, assim como o pranto, instaura dinâmicas de sensorialidade e sugere sociabilidades permitindo que a ficção subverta os lados sombrios da vida real. Desse ponto de vista, o realismo fantástico atrelado à comédia parece contribuir com a midiatização do Espiritismo, ao promover associações com referências religiosas à medida que as conecta com o mundo fascinante da imaginação. Adotando essas estratégias, a narrativa ficcional captura as atenções do público por contar uma história fora dos padrões usuais, permitindo que a paródia expresse sua intertextualidade. Por essa razão, a telenovela cumpre uma função referencial com o discurso espírita que a inspirou reconfigurando o padrão narrativo do melodrama. A mobilização linguística chama atenção para temas caros ao Espiritismo, a exemplo da mediunidade, mesclados à perspectiva do humor, de modo a instigar um deslocamento do viés doutrinário para o lúdico, evocando uma mensagem subliminar que também converge com a crença abordada: ficção não é lugar para proselitismo religioso.

13 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016

Para os espíritas, os intercâmbios com o denominado plano sobrenatural não são fantasiosos, mas convicções resultantes do aprendizado de princípios que dão vida à doutrina que escolheram. Todavia, no território da ficção, existe um elo entre sonho e devaneio que diz respeito às necessidades subjetivas universais e atemporais da fantasia. Essas, por sua vez, refletem as expectativas da audiência, (re) alimentando os modos de contar uma boa história. Portanto, a subjetividade da ficção parece se aliar ao surreal para nos dizer que rir continua sendo um bom antídoto para as mazelas sociais. Na paródia de Alto Astral a comédia tece uma linha tênue que aproxima “os mortos dos vivos”, traduzindo o desejo do ser humano de rir de si mesmo pela impossibilidade de explicar o que não conhece. Nesse viés, uma metáfora da espiritualidade pela ótica da leveza produz uma “correlação temática”, uma vez que o dito ficcional corresponde à doutrina, mas não resvala para a seriedade dos dogmas nem para o deboche ou a ridicularização das situações representadas, sejam essas de dor, perdas, decepções, desencantos, uma vez que a magia da ficção sempre as transmuta em alegrias. Nesse sentido, o eixo narrativo de Alto Astral se contagia (e nos contagia!), literalmente, por um astral positivo.

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Roberta Manuela Barros de. O fascínio de Scherazade: os usos sociais da telenovela. São Paulo: Annablume, 2003.

BAITELLO JUNIOR, Norval. A era da iconofagia. São Paulo: Hacker Editores, 2010.

BULHÕES, Marcelo. A ficção nas mídias: um curso sobre a narrativa nos meios audiovisuais. São Paulo: Ática, 2009.

FAUSTO NETO, Antonio. Processos midiáticos e construção das novas religiosidades: dimensões discursivas. Intertexto. Vol. 2. Nº 7. Porto Alegre: UFRGS, 2011.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2004.

JUNQUEIRA, Lília; TONDATO, Márcia Perencin. Religiosidade e desigualdades sociais nas telenovelas. In: LOPES, Maria Immacolata Vassalo de (Org). Ficção televisiva no Brasil: temas e perspectivas. São Paulo: Globo, 2009.

14 Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016

KELLNER, Douglas. A cultura da mídia: estudos culturais: identidade e política entre o moderno e o pós-moderno. Bauru, SP: EDUSC, 2001.

LOPES, Maria Immacolata Vassalo de; BORELLI, Silvia Helena Simões; RESENDE, Vera da Rocha (Orgs). Vivendo com a telenovela. São Paulo: Summus Editorial, 2002.

LOPES, Maria Immacolata Vassalo de. Telenovela brasileira: uma narrativa sobre a nação. Comunicação e Educação. Volume 26. São Paulo, 2003.

------. Para uma revisão das identidades coletivas em tempos de globalização. In: LOPES, Maria Immacolata Vassalo de (Org). Telenovela: internacionalização e interculturalidade. São Paulo: Edições Loyola, 2004.

MARTÍN-BARBERO, Jesús.. Uma aventura epistemológica. Entrevistador: Maria Immacolata Vassallo de Lopes. Matrizes. São Paulo, v.2, n.2, jul./dez. 2009.

------. A comunicação na educação. São Paulo: Contexto, 2014.

MIKLOS, Jorge. A ciber-religião: a midiatização do sagrado e a sacralização da mídia. In: MARANHÃO FILHO, Eduardo Meinberg de Albuquerque. Religiões e religiosidades no (do) ciberespaço. São Paulo: Fonte Editorial, 2013.

NEGRÃO, Lísias Nogueira (Org.). Novas tramas do sagrado: trajetórias e multiplicidades. São Paulo: Edusp/FAPESP, 2009.

NOGUEIRA, Luís. Manuais de Cinema II: gêneros cinematográficos. Covilhã: Labcom, 2010.

VELHO, Gilberto. Projeto e metamorfose: antropologia das sociedades complexas. Rio de Janeiro, Zahar editores, 2003.

VILHENA, Maria Ângela. Espiritismos: Limiares entre a vida e a morte. São Paulo: Paulinas, 2008.

15