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JONATHAN CORDEIRO CAVACA

Leitores transmídia: práticas de leitura e a relação entre leitura literária e jogos

ASSIS 2021 JONATHAN CORDEIRO CAVACA

Leitores transmídia: práticas de leitura e a relação entre leitura literária e jogos

Dissertação apresentada à Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, para a obtenção do título de Mestre em Letras (Área de conhecimento: literatura e Vida Social). Orientador: Dr. Sérgio Fabiano Annibal.

ASSIS 2021

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Laura Akie Saito Inafuko - CRB 8/9116 Cavaca, Jonathan Cordeiro C376L Leitores transmídia: práticas de leitura e a relação entre leitura literária e jogos / Jonathan Cordeiro Cavaca. Assis, 2021. 216 p. : il. Dissertação de Mestrado - Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis Orientador: Dr. Sérgio Fabiano Annibal

1. Leitura. 2. Transmídia. 3. Jogos. 4. Narratologia. I. Título.

CDD 028

Dedicatória Dedico esta pesquisa à única pessoa que ficou do meu lado do início ao fim dela, discutindo ideias e teorias noite adentro: a voz em minha cabeça. Brincadeira, dedico à Grazzielle, que me acompanhou por todo este percurso e, vamos por muitos mais. Agradecimentos Agradeço à minha família, que esteve sempre presente em momentos de necessidade. Ao meu orientador, Sérgio Fabiano Annibal, pelos puxões de orelha e por me guiar o olhar para o caminho certo, e às (os) doutoras (es) Arlete dos Santos Petry, Raquel Lazzari Leite Barbosa e João Luís Cardoso Tápias Ceccantini, cujos pensamentos, críticas, ideias e sugestões tornaram possível a evolução e desenvolvimento desta pesquisa. Em especial aos voluntários que aceitaram dedicar seu próprio tempo para responder ao questionário, e à Ellie, Nami, D. V., ao Vesemir e ao Trinity, por estenderem sua generosidade ao limite, permitindo-me entrevistá-los. Sem vocês, esse trabalho não teria sido possível. Literalmente. Agradeço, também à Priscila, ao Fabiano, ao Matheus e ao Pedro, amigos que se interessaram pela pesquisa e me ajudaram com perguntas e insights. À tríade dos grupos que atuaram como meus gurus: o da pós em Games, como os gurus dos jogos na educação; o Geplenp (UNESP/Assis), como os gurus das práticas de ensino; e o Literatura e Tempo Presente (UFSCar), como os gurus da literatura digital. Por fim, mas não menos importante, agradeço às Entidades e Orixás que me acompanham e me ajudaram a tirar força do Olho de Thundera para conseguir ler Genette às quatro da manhã. CAVACA, Jonathan Cordeiro. Leitores transmídia: práticas de leitura e a relação entre leitura literária e jogos. 2021. 220f. Dissertação (Mestrado Acadêmico em Letras). – Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, 2021.

RESUMO

Este trabalho visa observar de que modo as práticas de jogar jogos narrativos digitais alteraram as práticas de leitura literária dos leitores-jogadores do curso de Letras da Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho”, Faculdade de Ciências e Letras, campus Assis, envoltos em um modelo de leitura que o permite percorrer certo texto com o auxílio de outras mídias, aqui intitulada leitura transmídia, praticada por leitores que cresceram em uma realidade transmídia, buscando auxílio de outra(s) mídia(s) para percorrer e fruir uma narrativa, denominamo-los leitores transmídia. Segundo a teoria de Jenkins (2009) acerca da transmídia, compreendemos a leitura transmídia como a leitura feita por meio de duas ou mais mídias, de modo que o conteúdo de uma não é o mesmo da outra, adicionando informações mutuamente, mas completas quando isoladas; e por leitores transmídia, leitores que transitam entre as mídias, buscando novas informações e/ou sensações sobre um mesmo tópico, enquanto mantém seu foco e interesse durante o percurso. Visamos investigar as práticas de leitura desses leitores-jogadores por meio de entrevistas e, para que isso nos fosse possível, dedicamos três capítulos anteriores a este momento para o desenvolvimento teórico de três pontos base, e fundamentais, à pesquisa: percorremos os conceitos de Eagleton (1997) e Compagnon (1999) acerca do que é literatura e como suas nuances se desenvolveram pela história, adentrando as vozes de Genette (1998, 1972), Barthes (1972) e Todorov (1972) quanto à narratologia segundo os Formalistas Russos, resgatando-os na averiguação da literariedade presente nos jogos narrativos digitais, de modo a validar o encontro das duas mídias (livro e jogo); em seguida, o desenvolvimento das práticas de leitura na sociedade, nos valendo de Chartier (1997), Cavallo (1997), Manguel (1996) e Fischer (2003) para trafegar entre a leitura declamada, a leitura silenciosa e a leitura fragmentada, culminando no universo transmídia possibilitado pelo ciberespaço, às cores de Lévy (1998, 2010 e 2017), Rheingold (1993), Jenkins (2009) e Roberts (2013), cenário que favorecera o crescimento e desenvolvimento dos leitores transmídia; o último ponto base trata do jogo em si e seus elementos narrativos, como a literatura ergódica de Aarseth (1997), os labirintos narrativos cujos modelos labirínticos foram tratados por Doob (1992), Eco (1983), Hocke (1974) e por mim, e os intensificadores de leitura – o épico, o estado de flow, ações multimídias e a ilusão de incorporação, postas por McGonigal (2010), Chou (2010), Nakamura e Csikszentmihalyi (2009), Zichermann (2010, 2011), Løvlie (2005) – e seus efeitos na fruição da leitura, no contato com a escrita, e no engajamento em ajudar a evoluir o mundo científico, culminando, finalmente, nas práticas de leitura literária dos leitores transmídia. Todo esse percurso nos disponibilizou uma visão mais pontual em relação às entrevistas, onde fora possível observar uma expansão no que se considera fazer parte do universo literário, abrangendo-o a jogos, filmes, músicas e peças; a influência mútua das práticas de jogar e das práticas de leitura, a construção de seu percurso literário pela afinidade entre jogo e livro; e a utilização de práticas transmídia para lidarem com atividades monomídia.

Palavras-chave: Práticas de Leitura, Leitores Transmídia, Leitura Transmídia, Práticas de Jogar, Narratologia

CAVACA, Jonathan Cordeiro. Transmedia Readers: reading practices and the relation between literature reading and games. 2021. 220f. Dissertation (Masters in Languages). – São Paulo State University (UNESP), School of Sciences, Humanities and Languages, Assis, 2021.

ABSTRACT

The purpose of this dissertation is to observe the ways of which the digital narrative gaming practices modify the literature reading practices of the reader- players in Languages at São Paulo State University “Julio de Mesquita Filho” (UNESP), School of Sciences, Humanities and Languages, campus Assis, surrounded by a reading model that allows them to go through a given text with the aid of other media, addressed here by transmedia reading, practiced by readers who grew up in a transmedia reality, seeking the aid of other media to course and enjoy a narrative, we denominate them transmedia readers. According to Jenkins’ (2009) theory regards transmedia, we understand transmedia reading as the reading performed with two or more media in a way that the content of one is not the same from the other, mutually adding information, but completes when apart; as for the transmedia readers, readers who transit between two media, seeking new information and/or sensations about the same topic, whilst maintaining the focus and interest along the way. We aim to investigate the reading practices of those reader-players through interviews and, so that could be possible, we have dedicated three chapters prior to that moment for the theoretic development of three base points, therefore fundamentals, to this research: we went through Eagleton’s (1997) and Compagnon’s (1999) concepts of Literature and how its shapes shifted throughout history, getting to the voices of Genette (1998, 1972), Barthes (1972) and Todorov (1972) regarding the narratology according to the Russian Formalists, which were brought back to verify the literacy present in digital narrative games, validating the encounter of the two media (book and game); the development of the reading practices in the society, taking Chartier (1997), Cavallo (1997), Manguel (1996), and Fischer (2003) to travel among reading aloud, silent reading and fragmented reading, culminating at the transmedia universe enabled by the cyberspace versed by Lévy (1998, 2010 e 2017), Rheingold (1993), Jenkins (2009), and Roberts (2013), scenery that supported the transmedia readers growth and development; the last base point is the game itself and its narrative elements, such as Aarseth’s (1997) ergodic literature, the narrative labyrinth whose labyrinthic models were discussed by Doob (1992), Eco (1983), Hocke (1974), and myself, and the reding intensifiers – the epic, the flow state, multimedia actions and the embodiment illusion, brought here by McGonigal (2010), Chou (2010), Nakamura e Csikszentmihalyi (2009), Zichermann (2010, 2011), and Løvlie (2005) – and their effects on reading fruition, on the contact with writing, and on the engagement upon helping to evolve the scientific world, finally culminating at the transmedia readers’ literature reading practices. This whole course has provided us a more punctual vision regarding the interviews, where it was possible to observe an expansion on what is considered to be part of the literary universe, embracing games, movies, music and theatrical plays; the mutual influence of the gaming practices and reading practices, the construction of one’s literary path by the affinity between game and book; and the application of transmedia practices to deal with monomedia activities.

Keywords: Reading Practices, Transmedia Readers, Transmedia Reading, Gaming Practices, Narratology. Lista de Figuras Figura 1: ROBERTS, Kevin. Lovemarks, 2013. Figura 2: CAVACA, J. C. Exemplo de labirinto unicursal, 2021. Figura 3: CAVACA, J. C. Exemplos de labirintos multicursais, 2021. Figura 4: CAVACA, J. C. Exemplos de labirintos multifinais, 2021.

Lista de Tabelas Tabela 1: ZILBERMAN, Regina. Níveis narrativos e tipos de narrador, 2012. Sumário

Introdução ...... 14 Capítulo 01 – Literatura e Narratologia ...... 21 Conceitos e funções da literatura ...... 21 Formalistas Russos e narratologia ...... 24 Capítulo 02 – Práticas de Leitura ...... 42 A leitura declamada ...... 43 A leitura silenciosa ...... 45 A leitura fragmentada ...... 47 O germe da leitura transmídia ...... 48 Cibercultura: inteligência coletiva e comunidades virtuais ...... 48 Lovemarks ...... 51 Convergência: crossmedia e transmídia ...... 56 Capítulo 03 – Tecnologia, mídias e narratologia nos jogos ...... 61 Medos geracionais ...... 61 O Labirinto ...... 65 A literariedade dos jogos ...... 76 A narratologia aplicada aos jogos ...... 78 Intensificadores de leitura ...... 83 O envolvimento dos fãs para com as narrativas ...... 87 O conhecimento no universo transmídia ...... 98 Jogadores e Leitores ...... 106 Capítulo 04 – Análise das entrevistas ...... 109 Alguns perfis de leitores-jogadores transmídia ...... 110 Práticas de Jogar na leitura, ou práticas de leitura no jogar? ...... 117 O Cânone e o Popular ...... 121 Mídias e narrativas ...... 123 Os limites da literatura ...... 124 O gosto pela leitura ...... 125 Leitor transmídia ...... 126 Jogar, ler e assistir ...... 128 Livro ou Jogo...... 130 As Práticas mudaram? ...... 131 Considerações finais ...... 133 Referências Bibliográficas ...... 138 Glossário das obras literárias citadas ...... 144 Obras em formato impresso ...... 144 Obras em formato filme e série ...... 147 Obras em formato música ...... 147 Obras em formato jogo ...... 147 ANEXO I - Questionário via internet para triagem de candidatos...... 155 ANEXO II - Roteiro de entrevista ...... 157 ANEXO III - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido ...... 159 ANEXO IV - Respostas do questionário ...... 161 ANEXO V – Entrevistas ...... 167 ANEXO V. A – Entrevista Ellie ...... 167 ANEXO V. B – Entrevista D. V...... 174 ANEXO V. C – Entrevista Vesemir ...... 184 ANEXO V. D – Entrevista Nami ...... 197 ANEXO V. E – Entrevista Trinity ...... 207

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Introdução

Ao longo da história, as práticas de leitura, assim como os leitores e a leitura literária, sofreram mudanças fundamentais: a leitura declamada (leitura em voz alta) criou espaço para o surgimento da leitura silenciosa, que abriu caminho à leitura fragmentada, permitindo a ascensão da leitura de conteúdos diferentes relacionados a um mesmo tópico em mais de uma mídia sem perdê- lo de foco. Intitularemos essa leitura de leitura transmídia (trataremos das mudanças das práticas de leitura no Capítulo 02 e ao longo do Capítulo 03). Acreditamos que, atualmente, todas as práticas de leitura desenvolvidas e estudadas pelas sociedades podem ser encontradas na mídia dos jogos que apresentam uma trajetória narrativa, como Onimusha1, Final Fantasy2 e A Lenda de Zelda3, tratados aqui por jogos narrativos digitais, sobre os quais recai nossa hipótese de serem eles atrativos à leitura literária – e não repelentes – por meio da leitura transmídia. Johan Huizinga, em seu livro Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura (1938), mostra como os jogos sempre estiveram presentes na cultura humana, desde os jogos de tabuleiro, como o xadrez egípcio, até a dança, como jogos de sedução e rituais de magia tribais. Nas tribos, os jogos eram, por vezes, usados como rituais de passagem, sendo preparatórios para a vida funcional adulta. Antes de os jovens passarem no teste, os jogos comumente não ofereciam grandes riscos de morte, sendo a caça a animais menores, pássaros e assim por diante. Uma vez concluído o ritual, o novo adulto passa a não mais jogar, mas a defender sua tribo e sua vida dos perigos externos. Conforme o tempo avança e, com ele, a humanidade muda, também se transfiguram os

1 Produzida pela Capcom, a série narra a história de guerreiros que tentam derrotar o exército Genma (monstros/demônios) liderado por Oda Nobunaga e (no quarto título da cronologia) Toyotomi Hideyoshi. 2 Desenvolvida pela Square Enix, cada título da série conta uma história completamente diferente entre si, não havendo necessariamente uma ligação entre elas. Atualmente, há 15 títulos que seguem um cânone e mais diversos outros para prequelas, sequelas e spin-offs. 3 Desenvolvida por EAD (1986–2013), Capcom (2002–2004), Grezzo (2011– 2019) e Nintendo EPD (2015–presente), a maioria de seus títulos narra a aventura de Link para resgatar a princesa Zelda. 15

jogos: a sobrevivência sai dos entornos da tribo e adentra a própria civilização, fazendo com que o ser humano deixe de se defender de outras raças, para proteger-se de si próprio. O ritual moderno se torna o de ingressão no mercado de trabalho, onde deixa-se de ser criança ao conseguir um emprego relativamente estável. No tocante à leitura, porém, alguns tipos de jogos auxiliaram e foram auxiliados pela evolução tecnológica, mais especificamente o e pelo modelo virtual de Web como um conceito para aplicativos baseados em redes sociais e tecnologia da informação (a Web 2.0). Com a criação e desenvolvimento das redes sociais, plataformas de compartilhamento de vídeos e canais de streaming (forma de difusão de dados digitais), foi-se desenvolvendo uma cultura afetiva e participativa dos clientes, transformando-os de agentes passivos da informação para agentes ativos formadores de opinião, cultura e mudança. Esse modelo de sociedade que começou a surgir com maior força e alcance no fim dos anos 1990 e início dos anos 2000, impulsionou a mídia dos jogos em geral, que, por sua vez, impulsionou de volta a cultura participativa por cada vez mais permitir a escolha de seus jogadores sobre o modo com o qual podem encarar uma narrativa, desenvolvendo um modelo de jogabilidade labiríntico, por onde o leitor-jogador pode caminhar, se perder e encontrar formas nunca testadas de se completar desafios, nos então jogos narrativos digitais. Com essas novas habilidades, os jogadores passaram a se juntar em comunidades virtuais para discutir suas descobertas e auxiliar quem estivesse com dificuldades em algum segmento da narrativa. Por consequência, os fóruns, faqs e wikis se desenvolveram em uns dos maiores espaços de inteligência coletiva acumulada pelos jogadores. Enquanto a internet desenvolveu uma cultura afetiva e (em parceria com os jogos) participativa, os celulares ajudaram a desenvolver a praticidade e velocidade no envio e recepção de informações. Desde os anos 1990, com a primeira tela sensível ao toque do IBM Simon (1994), o acesso à internet do Nokia 9000 Communicator (1996) e a implementação de jogos (Serpente (Snake), popularmente conhecido por “jogo da cobrinha”) nos Nokia 6160 e 5110 (1998), podemos ter um prelúdio do que se veria nos anos 2000: o J-SH04 (2001), com câmera fotográfica, o BlackBerry 5810 (2002), com os primórdios dos 16

aplicativos de celular e o iPhone 2G (2007), que revolucionou todo o conceito de smartphone. Todo e desenvolvimento da tecnologia dos smartphones culminou em uma cultura do envolvimento com a informação: enquanto o controle remoto desenvolveu uma prática de leitura fragmentada, o celular a desenvolveu em uma leitura ainda mais rápida e mais envolvente, devido à sua facilidade e velocidade de se conseguir informações pertinentes ao interesse do leitor. Unindo-se o espaço de atuação provido pela Web 2.0, as práticas de empoderamento e interação dos jogos narrativos digitais e a praticidade e velocidade dos smartphones, o ambiente perfeito para o desenvolvimento de uma nova prática de leitura literária se formou: a convergência. Com a habilidade de encontrar todas as informações e atividades necessárias em um mesmo lugar, as gerações que cresceram nesse universo acostumam-se a transitar rapidamente em diferentes locais informativos ou mídias, para que pudesse se aprofundar em conteúdos e desenvolver seu próprio caminho de raciocínio ou atuação. Assim, acreditamos que os novos leitores, acompanhando desde sempre na prática multimídia e, mais ainda, transmídia, passaram a criar formas de se adaptar à realidade monomídia de um mundo que não acompanhou o próprio ritmo. Portanto, nosso objetivo principal nessa pesquisa é a de compreender as práticas de leitura de alunos de Letras que se considerem jogadores de jogos narrativos digitais e se enquadrem no meio transmídia em quatro pontos: O primeiro deles seria o de entender a representação dos leitores jogadores acerca do que é acolhido sob o termo “literatura”. Para esse fim, dedicamos o primeiro Capítulo dessa pesquisa aos conceitos de Compagnon (1999), Eagleton (1997), Candido (2002) e Tolkien (2008) acerca de literatura e suas funções. Em seguida, discutiremos as questões da narratologia e seus elementos pelos estudos do Formalismo Russo, nas vozes de Genette (1998, 1972), Barthes (1972) e Todorov (1972), devido nosso intuito de relacionar, posteriormente, a narratologia dos textos literários à narratologia dos cibertextos (mais especificamente, dos jogos narrativos digitais). O segundo ponto de destaque se trata da relação entre a formação e desenvolvimento das práticas de jogar desses leitores e suas práticas de leitura. 17

Cobrindo o tema em nosso segundo Capítulo, buscamos as práticas de leitura desenvolvidas pela humanidade ao longo de sua história em autores como Roger Chartier (1997), Guglielmo Cavallo (1997), Alberto Manguel (1996) e Steven Roger Fischer (2003), seguindo à discussão sobre ciberespaço e mídias aos olhos de Pierre Lévy (1998, 2010 e 2017), Howard Rheingold (1993), e Henry Jenkins (2009) e Kevin Roberts (2013) quanto à convergência, crossmedia e transmídia, criando um panorama do cenário estabelecido que favorecera o crescimento dos leitores transmídia. Os motivos que levam o leitor transmídia à leitura literária formam o terceiro e último ponto essencialmente teórico sobre o qual nossa pesquisa versa. Partimos, então, dos elementos literários presentes nos jogos narrativos digitais por meio da literatura ergódica de Espen Aarseth (1997), para os labirintos unicursais, multicursais e em rede de Penelope Reed Doob (1992), Umberto Eco (1983) e Gustave R. Hocke (1974), e trazemos o labirinto multifinal aos modelos narrativos. Ato contínuo, discorremos sobre os elementos encontrados nos jogos narrativos digitais que capturam a atenção, vontade e emoção dos jogadores, como questões de rejogabilidade e releitura, seus elementos narratológicos (em resgate ao Formalismo Russo, do Capítulo 01), o épico (Jane McGonigal (2010) e Yu-kai Chou (2010)), o estado de flow (Jeanne Nakamura e Mihaly Csikszentmihalyi (2009)), ações multimídias (Gabe Zichermann (2010, 2011)), e a ilusão de incorporação (Anders Sundnes Løvlie (2005)) e seus efeitos na fruição da leitura, no contato com a escrita, e no engajamento em missões especiais para ajudar a evoluir o mundo científico, culminando, finalmente, nas práticas de leitura literária dos leitores transmídia. A quarta seção desta dissertação apresenta o desenvolvimento da análise das entrevistas4 e das respostas do questionário virtual realizados com graduandos de Letras da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” de Assis, auxiliando-nos na averiguação ou refutação das ideias postas até então. A fim organizacional, os pontos de observação foram divididos em tópicos em

4 Autorizadas pelo Comitê de Ética por meio do Parecer número 4.367.587 18

uma tentativa de guiar mais facilmente as análises das informações obtidas por meio das respostas. Por nosso foco ser as práticas de leitura literária de jogadores de jogos narrativos digitais num universo transmídia, observando se, de alguma forma, tais práticas se formaram ou foram desenvolvidas a partir de suas práticas de jogar jogos narrativos digitais, assumimos os entrevistados como representantes desses leitores transmídia, tendo neles demonstradas práticas de leitura literária em comum ao grupo. Devido a esse foco, realizaremos uma pesquisa quantitativa em certos momentos e qualitativa em outros, de modo a observarmos como essas práticas de leitura literária se desenvolveram e os percursos de leitura literária que traçaram. Para as entrevistas, resgataremos Pierre Bourdieu em seu texto Compreender (2012), ao demonstrar algumas formas de se diminuir a “dissimetria social” (BOURDIEU, 2012, p. 695) existente em uma entrevista e torná-la não-violenta, entre elas: a aproximação entre entrevistador e entrevistado por pertencerem a um mesmo grupo, classe ou rede de conhecidos. Pelo pesquisador ser um jogador e leitor transmídia, julgamos ser mais fácil a aproximação entre ambos, evitando certos preconceitos e censuras que possam surgir de leitores que desenvolveram práticas diferentes. Faremos, então um levantamento descritivo desse grupo, de modo a responder e compreender os objetivos propostos. Por ser inviável identificarmos e entrevistarmos todos os leitores transmídia que sejam graduandos da UNESP Assis, decidimos utilizar, primeiro, um questionário virtual (ANEXO I) para podermos realizar uma triagem das práticas e percursos que mais foram mencionados e selecionar entrevistados como amostragem (BARDIN, 1977 p. 97) para ilustrar o grupo na próxima etapa da pesquisa, a entrevista (ANEXO II). Nossa proposta é de lançarmos o questionário virtual e enviá-lo para o e-mail dos alunos do curso de Letras da Unesp de Assis – pedindo que o responda os graduandos que se considerem jogadores de jogos narrativos digitais. O questionário está composto por dez questões, sendo três abertas e sete fechadas e, analisados os dados, foram escolhidos 5 dos voluntários de modo a diversificar os tipos de leitores-jogadores apresentados por TUUNANEN 19

& HAMARI (2014), BARTLE (1996) e FORTIM et al (2016), como alguém que seja um jogador ávido movido pela história principal5, mas um leitor casual minerador6; ou um jogador casual explorador7, e leitor casual movido pela história principal; um jogador veterano explorador8 e leitor ávido movido pela história principal. Acreditamos que essa diversidade de leitores-jogadores trará maiores oportunidades de observação das práticas de leitura literária dos leitores transmídia, analisando até que ponto seus modos de jogar influenciam seus contatos com a leitura. Aos selecionados, serão feitos convites via e-mail, e/ou mensagem no aplicativo de mensagens instantâneas “WhatsApp” e/ou “Facebook Messenger”, de acordo com o que o voluntário preencheu na questão 02 do questionário, para participarem de uma entrevista virtual por , devido à situação de isolamento durante a pandemia do COVID-19. Propomos o uso de aplicativos de mensagens instantâneas por nos parecer que o alvo de nossa pesquisa seja mais familiarizado com eles ao uso de e-mail, assim acreditamos conseguir uma comunicação mais rápida com nossos voluntários. Escolhemos atualizar a possibilidade de contato via redes sociais – e não apenas por e-mail –, por apresentarem maior velocidade de contato, porém será mantida a distância profissional acadêmica entre entrevistador e entrevistados, sendo única e exclusivamente utilizadas para fins de comunicação referente à chamada para entrevista, evitando, assim, qualquer possibilidade de inviabilização de pesquisa por tentativa falha de comunicação por utilizar uma rede com a qual os entrevistados não possuam o hábito de interagir.

5 Alguém que joga quase todos os dias sem se preocupar com detalhes e pontas soltas, mas sim com a história principal na narrativa. 6 Alguém que lê de vez em quando, ou em momentos de ócio, buscando falhas ou furos na narrativa, não se importando, necessariamente, com a narrativa em si. 7 Alguém que que joga de vez em quando, ou em momentos de ócio, e busca tantas informações quanto possíveis antes de alcançar o fim da narrativa. 8 Alguém que joga uma ou duas vezes por semana e busca tantas informações quanto possíveis antes de alcançar o fim da narrativa. 20

Nossas entrevistas estão compostas de 11 questões, serão gravadas em áudio e, em seguida, transcritas para análise, mantendo o sigilo e resguardo ético e moral dos entrevistados, segundo o indicado por Bourdieu (2012). Concluída a transcrição, analisaremos as respostas partindo das contribuições dos teóricos já apresentados quanto às representações de literatura e dos jogos. Com as representações em mãos, poderemos nos debruçar sobre a influência das comunidades leitoras e jogadoras (a inteligência coletiva nas comunidades virtuais) para, então, traçar as trajetórias e novas representações geradoras das práticas de leitura literária dos leitores transmídia guiadas pelos jogos. Apesar de essa pesquisa não apresentar riscos aparentes à saúde e se tratar de um processo completamente anônimo, não sendo permitido a divulgação de qualquer informação que possa levar à identificação do (a) participante, eles (as) podem sentir desconforto frente a certa (s) questão (ões). Assim, as perguntas da presente pesquisa estão estruturadas de modo que qualquer desconforto por parte do (a) participante tornar-se-á razão para que o (a) mesmo (a) não necessite respondê-la (s). Com isso, objetivamos nos aproximar das práticas de leitura literária dos jogadores transmídia assim como seus rastros de leitura literária (estratégias usadas na decodificação e compreensão de textos literários) e as influências dos jogos em suas representações.

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Capítulo 01 – Literatura e Narratologia

Conceitos e funções da literatura Conta a lenda que desde muito tempo – milênios –, grandes heróis aventuram-se mundo a fora buscando um tesouro há muito esquecido por nossos ancestrais, sem jamais tê-lo encontrado. Muitos pensaram ter se deparado com tal riqueza, trazendo histórias incríveis e maravilhosas, que seriam confrontadas com as histórias de outros heróis que também acreditavam serem favorecidos com o dom da visão, perpetuando, até os dias de hoje, a lenda da literatura. Com o perdão da breve historinha fantasiosa acima, o conceito do que seria considerado literatura tornou-se uma variante ao longo dos anos. Antoine Compagnon – na obra O demônio da teoria (1999) – resgata algumas dessas visões e as confrontam, expondo as lógicas e incongruências carregadas por certos momentos históricos e culturas. Enquanto, “no sentido mais amplo, literatura é tudo o que é impresso (ou mesmo manuscrito), são todos os livros que a biblioteca contém (incluindo-se aí o que se chama literatura oral)” (COMPAGNON, 1999, p. 31), seu sentido mais restrito expõe as diferenças de conceituação de literatura, uma vez que ela varia conforme o tempo e a cultura (COMPAGNON, 1999, p. 32). Para Aristóteles, por exemplo, os gêneros épico e dramático eram elevados literariamente sobre o gênero lírico, e essa visão perdurou até o século XIX, quando se passou a denominar por literatura as obras compreendidas sob o romance, o teatro e a poesia – e essa, mais tarde diluída nas concepções do verso livre e da prosa poética (COMPAGNON, 1999, p. 32). Acreditando que “o critério de valor que inclui tal texto” no arco literário “não é, em si mesmo, literário nem teórico, mas ético, social e ideológico, de qualquer forma extraliterário” (COMPAGNON, 1999, p. 34), Compagnon vai mais além e diz que definir literatura sempre se baseia em um preconceito elevado a um conceito universal (COMPAGNON, 1999, p. 44), e, partindo de princípios, deixa sua célebre máxima “literatura é literatura, aquela que as autoridades (os professores, os editores) incluem na literatura” (COMPAGNON, 1999, p. 46). 22

Terry Eagleton – em sua obra Teoria da literatura (1983) – realiza um trabalho de resgate parecido ao escolhido por Compagnon, mas caminha em uma direção paralela: apesar de ambos partirem do mesmo ponto de que a definição de literatura é subjetiva, Eagleton verte à visão de que ela “fica dependendo da maneira pela qual alguém resolve ler, e não da natureza daquilo que é lido” (EAGLETON, 1997, p. 11), de modo que se as pessoas estabelecerem que certo texto “se trata de literatura, então, ao que parece, o texto será literatura, a despeito do que o seu autor tenha pensado” (EAGLETON, 1997, p. 12). Algo como o que ocorre à palavra “mato”, que não se relaciona a um tipo específico de planta, mas a qualquer uma que não seja as o jardineiro almeja em seu jardim – “literatura” não se refere a um tipo de escrita, mas a todos que apresentam uma ou outra razão de serem valorizados (ELLIS, John M., 1974 apud EAGLETON, 1997, p. 12-13). Parece-nos que, se o modo de ler algo o define como literatura, a opinião acaba por se tornar grande influência sobre o que é literário e o que não é. A expressão “belas letras”, como Eagleton sugere, já evoca o conceito subjetivo do “belo”, apesar de estar menos ligada ao estilo de uma obra e mais a seu tipo (EAGLETON, 1997, p. 14), justificando a exclusão das histórias em quadrinhos, filmes e jogos da literatura. A fim de identificarmos as práticas de leitura literária dos que aqui serão chamados de leitores transmídia, ou seja, leitores capazes de buscar conteúdo relacionado a um mesmo tópico em mais de uma mídia, sem perder seu foco, achamos necessário, antes, discorrer sobre o tipo de literatura considerado para a organização dessa dissertação. Por ser-nos necessário afunilar o tipo de texto literário que acreditamos estar presente nas leituras dos jogadores transmídia, adicionaremos à definição de Compagnon de que “literatura é literatura” (1999, p. 46), as funções da literatura, observadas por Tzvetan Todorov, J. R. R. Tolkien e Antonio Candido. De Todorov (2007), acataremos o alvará de que a literatura não precisa ser autotélica. “Ela pode nos estender a mão quando estamos profundamente deprimidos, nos tornar mais próximos dos outros seres humanos que nos cercam, nos fazer compreender melhor o mundo e nos ajudar a viver” (TODOROV, 2014, p.76). 23

À vista disso, entendemos, como Candido, em sua obra A literatura e a Formação do Homem (1972), que a arte e a literatura são o uso da linguagem para transpor o real ao ilusório, em uma combinação de elementos da realidade com elementos técnicos. Ele também trará que a literatura possui três funções que, juntas, formam o que ele denomina função humanizadora (CANDIDO, 2002, p. 77). A primeira é a função psicológica, que trata da necessidade do ser humano em criar fantasias, independentemente de seu grau de escolaridade, idade ou gênero, como pode ser visto nas lendas, mitos, folclore, adivinhas, música, entre outros; a segunda função é a formadora, a qual traz a ideia de que, apesar de ser fantasia, as histórias são pautadas na realidade e, por isso, possuem um caráter educador (não pedagógico), uma vez que age e educa tão forte quanto a vida, mesmo sobre o que a ideologia dominante busque acobertar; a terceira das funções é a social, a capacidade do leitor de transportar a sua própria realidade para o meio ficcional e vice-versa, podendo incorporar as experiências da obra às suas próprias (CANDIDO, 2002). Tolkien, em seu ensaio On Fairy-Stories (1947), também considera três funções que a literatura – no caso, o conto de fantasia (Faërie stories) – abrange. A primeira função da literatura, para ele, é a de restauração (recovery), que consiste em ver o mundo por outro ângulo: “com a criação do Pégaso”, por exemplo, “os cavalos foram enobrecidos” (“by the making of Pegasus horses were ennobled”) (TOLKIEN, 2008, p.68); a segunda função é a do escapismo (escape), cujo teor é o de que a literatura é consumida como fuga da realidade e/ou condição (como fome, pobreza e dor), mantendo uma sensação de satisfação; e a terceira função é o consolo (consolation), do final feliz, o qual alivia a angústia das tragédias e desencontros, mas tal alívio vem de uma força miraculosa, de forma que nunca mais possa se repetir (TOLKIEN, 2008). Mesmo que tais conceitos restrinjam a quantidade de obras que acreditamos fazer parte da leitura literária dos leitores transmídia, ainda estamos lidando com uma quantidade grande demais de títulos, muitos dos quais consideramos não ser foco de nossa pesquisa, ou seja, seu auxílio na aproximação das práticas de leitura literária do leitor transmídia não seriam tão 24

significativas quanto às que julgamos mais condizentes às suas práticas de leitura literária. Por exemplo: O Livro de Cain (2011), da série , poderia muito bem se encaixar nas definições acima descritas. Trata-se de uma narrativa episódica, como um compêndio de narrativas acerca da criação do universo e do mundo de Santuário (onde a série se passa), porém, não acreditamos que este seja um livro que será muito citado pelos leitores transmídia em seus percursos literários. O oposto se dá com os livros da série Wiedźmin (1992 – 2013), que dará origem à série de jogos The Witcher (2007 – 2018) e à série de mesmo nome produzida pela Netflix em 2019. Por isso, decidimos entrevistar leitores transmídia e não-transmídia para que possamos analisar suas práticas a partir das obras literárias consumidas por eles e que se enquadrem nas especificações acima.

Formalistas Russos e narratologia Acreditamos, assim, que embora uma definição de literatura ainda não exista de forma consensual, são mais estáveis os aspectos presentes em uma estrutura que as qualificam como tal. O narrador, as personagens, o tempo e o espaço são alguns dos elementos presentes na composição literária e tornaram- se alvo de observações e análises críticas na busca de uma evolução à compreensão literária. Cabe-nos, aqui, uma alusão ao que foi uma das correntes reconhecidas por se voltar a esses mecanismos narratológicos: o formalismo russo. O movimento, que já existia antes da revolução bolchevista de 1917, ganhou destaque na década de 1920 e, perseguidos durante o governo de Stalin, foram silenciados em meados da década de 1930. Os formalistas russos defendiam a separação da literatura de outras áreas do conhecimento, insistindo que ela é feita de seus próprios mecanismos e não se tratava de expressão, opinião ou pensamento do próprio autor, tampouco deveria ter seu conteúdo literário relacionado à psicologia, sociologia ou religião. Era preciso analisar a literatura a partir de si mesma (EAGLETON, 1997, p. 3-4). 25

Preocupados, assim, com a forma da obra, quer dizer, com a estrutura da escrita, observações sobre “o que a obra quer dizer” eram irrelevantes aos formalistas (entre eles: Viktor Borisovich Chklovski 9 – ainda Shklovskii ou Shklovsky –, Roman Osipovich Jakobson10, Boris Mikhailovich Eikhenbaum11, Vladimir Propp12 e Yuri Tynianov13), uma vez que a relação da literatura com a realidade social se encontra fora do escopo da crítica (EAGLETON, 1997, p. 3- 4). Saber que a ditadura de Salazar de Portugal foi tratada em Harry Potter (1997 – 2007) importa menos que como fora tratada14. Nessa visão, como observa Genette (1998), uma obra literária é um conjunto de funções que se ligam em um sistema de níveis textuais, de modo que o literário despertaria na “desfamiliarização”, ou “estranhamento” (CHKLOVSKI, 1917) do mundo por meio da linguagem. Segundo os formalistas russos, então,

Talvez a literatura seja definível não pelo fato de ser ficcional ou “imaginativa”, mas porque emprega a linguagem de forma peculiar. Segundo essa teoria, a literatura é a escrita que, nas palavras do crítico russo Roman Jackobson, representa uma “violência organizada contra a fala comum” (EAGLETON, 1997, p. 2).

9 Cf.: Chklovski, Viktor. Arte como procedimento. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/2544975/mod_resource/content/1/A%20arte%20como %20procedimento.pdf. Acesso em 10 jan. 2020. 10 Cf.: JAKOBSON, Roman. Linguística e comunicação. Disponível em: https://moodle.ufsc.br/pluginfile.php/1277893/mod_forum/attachment/309034/Jakobson%20-%2 0Lingu%C3%ADstica%20e%20comunica%C3%A7%C3%A3o.pdf. Acesso em: 19 nov. 2019. 11 Cf.: EIKHENBAUM, Boris. A Teoria do “Método Formal”. In: OLIVEIRA TOLEDO, D. (Org.). Teoria da literatura. Formalistas russos. Tradução A. M. Ribeiro et al. Porto Alegre: Editora Globo, 1971. p.3-38. 12 Cf.: PROPP, Vladimir. Morfologia do Conto Maravilhoso. Disponível em: https://monoskop.org/images/3/3d/Propp_Vladimir_Morfologia_do_conto_maravilhoso.pdf. Acesso em: 13 ago. 2019. 13 Cf.: TYNIANOV, Yuri. Da evolução literária. In: TOLEDO, D. de O. (Org.). Teoria da literatura: formalistas russos. Tradução Ana Maria Filipouski et al. 2. ed. Porto Alegre: Globo, 1976. p. 105-118; TYNIANOV, Yuri. O problema da linguagem poética I: o ritmo como elemento construtivo do verso. Tradução Maria José Azevedo Pereira e Caterina Barone. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975; TYNIANOV, Yuri. O problema da linguagem poética II: o sentido da palavra poética. Tradução Maria José Azevedo Pereira e Caterina Barone. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975. 14 Todas as relações deste Capítulo entre o formalismo russo a obras da cultura popular foram feitas por mim, e não pelos autores. Acredito que a atualização das referências seria fortuita aos possíveis pesquisadores da área. 26

Assim, frases como “Deixa de ser gado!” estaria fora da esfera literária por sua associação instantânea ao modo de falar cotidiano, enquanto “e tu, ó desprezível presidente” faria parte do universo literário pelo trabalho com a língua para distanciá-lo do uso comum e, dessa forma, desautomatizar a reação cotidiana, destacando, assim, o objeto literário. Lemos o bilhete escrito por um amigo, sem prestarmos muita atenção à sua estrutura narrativa; mas se uma história se interrompe e recomeça, passa constantemente de um nível narrativo para outro, e retarda o clímax ara nos manter em suspense, adquirimos então a consciência de como ela é construída, ao mesmo tempo em que nosso interesse por ela pode se intensificar. (EAGLETON, 1997, p. 5). A título de justiça, os formalistas não buscavam exatamente definir literatura, mas o que faz com que um texto se torne literário. Eles buscavam identificar a literariedade de um texto por meio de certos elementos: “Sentimos através de cada obra que não existe apenas a fala (parole), que existe também uma língua (langue) da qual ela não é mais que uma das realizações. Nossa tarefa é estudar precisamente esta língua” (TODOROV, 1972, p. 241). Por essa razão, voltaremos nossa análise, em grade parte, ao levantado no campo da Narratologia, o qual nos permitirá focar em elementos mais concretos da narrativa, possibilitando-nos estabelecer uma relação mais contundente entre as práticas de leitura literária que veremos mais adiante. Decidimos seguir pelo caminho da narratologia, por acreditarmos, assim como Barthes (1972), de que

há, em primeiro lugar, uma variedade prodigiosa de gêneros, distribuídos entre substâncias diferentes (...): a narrativa pode ser sustentada pela linguagem articulada, oral ou escrita, pela imagem, fixa ou móvel, pelo gesto ou pela mistura ordenada de todas essas substâncias; está presente no mito, na lenda, na fábula, no conto, na novela, na epopeia, na história, na tragédia, no drama, na comédia, na pantomima, na pintura (...), no vitral, no cinema, nas histórias em quadrinhos, no fait divers, na conversação. Além disto, sob estas formas quase infinitas, a narrativa está presente em todos os tempos, em todos os lugares, em todas as sociedades. A narrativa começa com a própria história da humanidade (BARTHES, 1972, p. 19).

Tal visão de narrativa expande o primeiro sentido que Genette propõe ao termo, o qual todo enunciado narrativo (acontecimentos, em série ou isolados, 27

apresentados por meio da oralidade ou escrita) designa-se narrativa. Outros dois sentidos seriam carregados pelo termo: sendo o primeiro dos três já sido exposto, o segundo refere-se às relações entre esses acontecimentos, e o terceiro sentido trata-se do próprio ato de narrar (GENETTE, 1998, p. 23-24). E é justamente nesse segundo que recai as observações de Genette (1998), Barthes (1972) e Todorov (1972) por nele se basear a “análise da narrativa”. Em sua obra Discurso da Narrativa (1979), Genette trata de cinco modalidades presentes em qualquer narrativa. A primeira – a ordem – aborda da organização temporal das unidades narrativas. Segundo Barthes (1972), denomina-se unidade mínima narrativa um segmento da história que se correlaciona com uma evolução de si mesmo: seja em um mesmo nível, ou em outro (BARTHES, 1972, p. 28-29): quando o narrador de Harry Potter e a Pedra Filosofal (1997) apresenta o “Espelho de Ojesed” como mais um elemento mágico do universo de Hogwarts, na verdade está expondo ao leitor um elemento chave no desfecho da trama, ou seja, sua enunciação carrega uma função, tornando-se uma unidade narrativa. Assim, Genette apresenta diversas formas de anacronia propositalmente aplicadas pelos narradores para criar certos efeitos no narratário e no leitor. Entre suas diversas formas, há a interrupção de uma sequência cronológica narrativa pela inserção de eventos ocorridos anteriormente (GENETTE, 1998, p. 38) (analepse) e a previsão de algo ainda não conhecido ou ocorrido (GENETTE, 1998, p. 38), (prolepse). Além das estratégias anacrônicas, o autor nos apresenta, também, aos segmentos narrativos sem qualquer localização de tempo, nem ligação situacional a outros momentos da narrativa, de modo a ser impossível sua colocação em um local exato na linearidade narrativa (GENETTE, 1998, p. 81-82) (acronia), mantendo sempre em mente que essas relações de tempo constituem sempre um alcance e uma amplitude, ou seja, uma distância entre a cena lembrada/prevista da cena no tempo presente da história (uma lembrança pode revelar algo com um alcance de dezenas de anos) (GENETTE, 1998, p.46) e um tempo decorrido dentro da lembrança/previsão. Uma analepse com alcance de 20 anos pode apresentar uma amplitude de cinco dias, por exemplo (GENETTE, 1998, p.46) A segunda modalidade – a duração – desenvolverá o ritmo de uma narrativa. Para isso, Genette se debruçará na ideia de que o tempo narrativo é 28

diferente do tempo da história, fenômeno denominado anisocronia. Quatro elementos ditariam o ritmo narrativo: a pausa descritiva apresentaria a lentidão máxima, pois quando o narrador, por exemplo, descreve ou divaga, a história é congelada, retornando apenas com o fim desse segmento narrativo; no extremo oposto, as elipses carregariam velocidade máxima em relação ao tempo da história, uma vez que um segmento ocultado pode abarcar qualquer quantidade de tempo; entre ambos, o sumário aborda uma forma menos radical de acelerar o tempo de história, resumindo-a ao invés de suprimi-la; o último dos elementos, e o que mais se aproxima de quando o tempo narrativo se torna igual ao tempo da história (isocronia), é a cena, geralmente tratada por diálogos, por apresentar pouca ou nenhuma intervenção do narrador, que pode até se fingir ausente (GENETTE, 1998, p. 93-112). Ainda sobre a pausa descritiva, em outro momento, Genette (1972) discorre sobre a relação entre a narração e a descrição. A narração (representação de ações e acontecimentos) desenvolve quase uma relação de dependência com a descrição (representação de objetos e personagens), mas o contrário não é verdadeiro. A frase “o gato é preto com manchas brancas, olhos verdes-amarelados e pesa cinco quilos” não apresenta narração, porém a frase “A mulher lançou o jarro à amiga” é uma narrativa que comporta elementos descritivos, se considerarmos a diferença descritiva da mesma cena ao alterarmos “à” para “na”, ou “lançou” por “atirou”, além do substantivo “mulher” descrever o gênero da actante (GENETTE, 1972, p. 272-273). A descrição apresenta duas funções diegéticas na “tradição literária ‘clássica’ (de Homero ao fim do século XIX)” (GENETTE, 1972, p. 274): uma com função de ordem decorativa, agindo como uma pausa na narrativa, de papel puramente estético (descrição ornamental) e uma de função de ordem explicativa e simbólica, de modo que, agindo como signo sobre as personagens, revelam e/ou justificam a suas psicologias (descrição significativa) (GENETTE, 1972, p. 274). A frequência com as quais certos acontecimentos (história) e enunciados (narrativa) são apresentados formam a terceira modalidade narrativa, podendo ser um trecho singulativo (único), ou iterativo (repetido) (GENETTE, 1998, p. 113-114, 124). Genette trata de quatro fórmulas para tratar a modalidade: contar 29

uma vez aquilo que se passou uma vez (1N/1H): denominada por narrativa singulativa, ou cena singulativa, onde a singularidade do enunciado narrativo equivale à singularidade do acontecimento narrado (GENETTE, 1998, p. 114); contar uma (ou em uma única) vez aquilo que se passou n vezes (1N/nH): intitulado de narrativa iterativa por vários acontecimentos serem sintetizados em um único exemplo para que, a partir dele, sejam imaginados os demais (GENETTE, 1998, p. 116); contar n vezes aquilo que se passou uma vez (nN/1H): quando há repetição de um acontecimento independente de ser uma repetição ipsis litteris, ou com estilos narrativos diferentes, ou a partir de diferentes pontos de vista. Foi denominada por narrativa repetitiva devido ao fato de a recorrência enunciativa não ser correlata à recorrência dos acontecimentos (GENETTE, 1998, p. 115); contar n vezes aquilo que se passou n vezes (nN/nH): também considerada singulativa pelo número de repetições de acontecimentos e enunciados serem iguais. “Segunda-feira deitei-me cedo, terça-feira deitei-me cedo, quarta-feira deitei-me cedo, etc” (GENETTE, 1998, p. 115). O modo narrativo compõe a quarta modalidade posta por Genette e vários elementos o influenciam: a distância entre o narrador e a narração pode nos presentear com uma narrativa pura, quando não há preocupação em mostrar que não é o narrador que está falando, ou mimética, quando o narrador tenta mostrar que não é ele quem fala, mas sim uma personagem (GENETTE, 1998, p. 160-161). Posta nas falas, podemos encontrar sua forma mais distante: um discurso narrativizado, ou contado, que tenta resumir a fala em um acontecimento; sua forma mais próxima: o discurso direto, denominado de discurso relatado, ou reportado, quando a personagem aparentemente tem controle do próprio discurso; o discurso indireto, ou discurso transposto, onde não há credibilidade quanto à fidelidade e veracidade do que é dito, uma vez que o narrador toma a voz da personagem; e uma “forma extrema da mimese de discurso, em que o autor ‘imita’ a sua personagem” por meio do discurso “estilizado” (GENETTE, 1998, p. 169-170, 182). Talvez nos seja prudente uma distinção dos termos discurso e narrativa antes de prosseguirmos. Segundo Émile Benveniste, discurso, sendo subjetivo, utiliza a primeira pessoa (e, implicitamente, a segunda), aos moldes que 30

Aristóteles intitula “imitação direta” (BENVENISTE, Émile apud. GENETTE, 1972, p. 278), sendo essencial a fonte à sua compreensão e apreciação (BENVENISTE, Émile apud. GENETTE, 1972, p. 280); a narrativa, por sua vez, por ser objetiva, utiliza exclusivamente a terceira pessoa (BENVENISTE, Émile apud. GENETTE, 1972, p. 278), não sendo importante a fonte para sua compreensão ou apreciação (BENVENISTE, Émile apud. GENETTE, 1972, p. 280).

A narrativa inserida no discurso se transforma em elemento do discurso, o discurso inserido na narrativa permanece discurso e forma uma espécie de quisto muito fácil de reconhecer e localizar. A pureza da narrativa, dir-se-ia, é mais fácil de preservar do que a do discurso (GENETTE, 1972, p. 282).

Além da distância, a perspectiva altera o modo narrativo pela movimentação do ponto de vista narrativo (GENETTE, 1998, p. 183). Franz Karl Stanzel (1955 apud. GENETTE, 1998, p. 185), identifica três “situações narrativas romanescas”15: o narrador onisciente (auktoriale Erzählsuation), como em O Senhor dos Anéis (1954); o narrador como uma das personagens (Ich Erzählsuation), como em Um Estudo em Vermelho (1888); e um narrador que acompanha certa personagem durante o decorrer da narrativa (personale Erzählsuation), como em Harry Potter, onde a narrativa segue o protagonista, deixando que o leitor acompanhe seu desenrolar junto a ele. (GENETTE, 1998, p. 185). Pouco depois, Bertil Romberg (1962 apud. GENETTE, 1998, p. 186), coloca uma quarta situação narrativa às três postas por Stanzel: a narrativa em primeira pessoa (GENETTE, 1998, p. 186), como em Dom Casmurro (1899). A perspectiva costuma reger certa focalização narrativa, que pode se dar como a personagem não sendo descrita ou designada pelo exterior, tampouco suas ações, pensamentos e percepções “analisados objetivamente pelo narrador” (GENETTE, 1998, p. 190), em uma focalização interna; como os sentimentos e pensamentos da personagem devendo ser “esquecidas”, em uma focalização externa; ou uma Narrativa não-focalizada, ou de focalização zero,

15 Apesar de os exemplos aqui não serem, necessariamente, parte da cultura pop, todos foram postos por mim, com exceção de quando Genette utiliza o exemplo de Sherlock Holmes, em outro momento. 31

comum à narrativa clássica (GENETTE, 1998, p. 187-190). Alterações de focalização podem ser feitas conscientes pelo narrador para um que possibilite a entrega de menos informações que o foco atual, a fim de omitir detalhes importantes (paralipses), e para um que possibilite a entrega de mais informações que o foco atual, a fim de mostrar detalhes que poderiam passar despercebidos (paralepses) (GENETTE, 1998, p. 193-194). A voz é a última das modalidades narrativas de Genette, cuidando do narrador em si. Em algumas histórias, pode haver mudança de narradores, quando outro personagem que não o narrador primário assume a narrativa para contar algo que vira, ou fizera, por exemplo (GENETTE, 1998, p. 213). A posição do narrador em relação ao momento narrativo nos permite quatro modelos de narração: a narração do que já aconteceu em relação ao presente narrativo, ou seja, narração no passado (narração ulterior); a narração daquilo que vai acontecer em relação ao presente narrativo, ou seja, narração no futuro (narração anterior); a narração do que está acontecendo naquele exato momento, ou seja, narração no presente (narração simultânea); e a narração que varia entre os momentos narrativos, comum em narrativas de diário ou cartas, onde a narração do dia é ulterior, e é substituída pela simultânea ao tratar da noite (narração intercalada) (GENETTE, 1998, p. 216- 217). Outra forma de posicionamento do narrador se dá em relação ao nível narrativo, permitindo-nos uma narração extradiegética, com o narrador se mantido fora do evento narrado; intradiegética, com o narrador contando sua própria história; e metadiegética, onde há narração dentro de uma narração, como quando o narrador introduz uma história secundária dentro da principal (GENETTE, 1998, p. 227-228). Todas essas vozes partem de três tipos de narrador: o heterodiegético, “narrador ausente da história que conta” (GENETTE, 1998, p. 244) (Musashi (1935), obra de Eiji Yoshikawa que narra a história do espadachim Shinmen Takezō (depois Miyamoto Musashi), em sua jornada de autoconhecimento e iluminação), o homodiegético, narrador que faz parte da história, mas conta sobre outra personagem (Sherlock Holmes (1887 – 1927)) e o narrador autodiegético, que faz parte da história, contando o que aconteceu consigo mesmo (Os Sofrimentos do Jovem Werther (1774)) (GENETTE, 1998, p. 244). 32

Os níveis narrativos e os tipos de narrador podem se relacionar de modo a formarem quatro tipos de narração, às quais Regina Zilberman, em sua obra Teoria da literatura I (2012) expõe na seguinte tabela:

Nível Extradiegético Intradiegético Posição

Ilíada D. Quixote das Heterodiegético Homero Crianças, Monteiro Lobato Memórias Póstumas Grande Sertão: Homodiegético de Brás Cubas, Veredas Machado de Assis Guimarães Rosa Fonte: ZILBERMAN, Regina. Teoria da literatura I. Curitiba: IESDE Brasil, 2012. p. 120.

Assim, são formados os tipos: extradiegético-heterodiegético (narrador ausente conta uma história da qual está ausente), extradiegético-homodiegético (narrador ausente conta a sua própria história), intradiegético-heterodiegético (narrador presente conta histórias das quais está geralmente ausente) e intradiegético-homodiegético (narrador presente conta a sua própria história) (GENETTE, 1998, p. 247). Apresentados, Genette dirá que o narrador pode apresentar cinco funções, segundo aspectos da narrativa com os quais se relacionam. A primeira delas é a função narrativa: pautada no aspecto da história, trata-se do ato de narrar propriamente; a segunda se trata da função de regência: baseada no aspecto do texto, se mostra quando o narrador assume uma postura metanarrativa para marcar as relações textuais do seu discurso e se refere à organização interna do texto narrativo em si. As três funções restantes dizem respeito ao narrador e narratário (a quem a narrativa se dirige (interlocutor do discurso), não sendo confundido com o leitor da mesma forma que o narrador não se confunde com o autor) e se relacionam à situação narrativa. Desse modo, a terceira função do narrador seria a função de comunicação: quando há relação ou diálogo entre o narrador e narratário; a quarta, função testemunhal, ou função de atestação: presente no momento em 33

que o narrador chama a atenção para si, revelando sua relação com a história (a fonte das informações que possui, sentimentos despertados por certo episódio etc.); e, por fim, a função ideológica: quando o narrador faz comentários ou opiniões de cunho ideológico. Essa última função é a única entre elas que não está ligada exclusivamente ao narrador, pois personagens podem, também, apresentar função ideológica (GENETTE, 1998, p. 254-257). Por sua vez, Barthes (1972) adicionará à discussão a existência de três níveis de descrição de uma narrativa: o nível das funções, das ações e da narração, sendo uma dependente da outra para produzir significação: “uma função não tem sentido se não tiver lugar na ação geral de um actante; e a própria ação recebe sua significação última pelo fato de ser narrada, confiada a um discurso que tem seu próprio código” (BARTHES, 1972, p. 25-28). Essas relações podem ocorrer dentro de um mesmo nível (distribucionais), ou entre níveis diferentes (integrativas). Ao primeiro nível, pertencerão as funções das unidades narrativas. O que transforma um enunciado em uma unidade funcional não é como é dito, mas “o que se quer dizer” (BARTHES, 1972, p. 30), correlacionando-o a um “ato complementar e consequente” (BARTHES, 1972, p. 32). Há, aqui, duas classes de unidade: a das funções e a dos índices. A classe das funções compreende dois tipos de unidades: as funções cardinais (ou núcleos) são unidades consecutivas e consequentes que abrem, mantêm ou fecham uma alternativa para que a história continue a avançar, por exemplo: se alguém ouve batidas à porta, pode atender o visitante, ou não. Cada possibilidade levaria a história a caminhos distintos, mesmo que muito brevemente (BARTHES, 1972, p. 33). Surgem em pontos de tensão narrativa, onde uma tomada de decisão pode mudar o rumo da história. “Menos importantes” que as cardinais, são as catálises, unidades consecutivas que “apenas” preenchem o espaço entre os núcleos (BARTHES, 1972, p. 33): entre ouvir o som da batida e atender, ou não, à porta, o espaço entre os núcleos pode ser preenchido pelo caminhar até a mesma. Do outro lado, na classe dos índices, estão os índices: unidades integrativas implícitas que remetem a um sentimento, ou atmosfera, como descrever o clima para ilustrar o estado de espírito de uma passagem, ou personagem (BARTHES, 1972, p. 32, 35); e os informantes (informações): 34

unidades integrativas explícitas que remetem a informações situacionais de tempo e espaço e autenticam a realidade do narratário a fim de “enraizar a ficção no real”, como quando se apresenta “a idade precisa de uma personagem” nova à história (BARTHES, 1972, p. 32, 35-36). Ao agrupamento de núcleos, Barthes denomina sequência. Quando um núcleo não possui antecedente narrativo direto, abre-se uma sequência, que perdura até um núcleo que não tenha consequente narrativo direto. Estender a mão, apertar, chacoalhar e soltar são núcleos constituintes de uma sequência que podemos intitular “saudação”, por exemplo (BARTHES, 1972, p. 40, 42). O segundo nível narrativo classifica as personagens a partir de suas ações, que são classificáveis, daí seu nome de Nível das Ações (BARTHES, 1972, p. 46). Três autores discorrem sobre esse ponto: para Bremond, há uma perspectiva diferente sobre a mesma sequência para cada personagem envolvida nela: “o que é fraude para um, é logro para outro”; para Todorov, os predicados de base – como amor, comunicação e ajuda – qualificam a personagem; para A. J. Greimas, as personagens são classificadas segundo o que fazem, denominando-os actantes, que participam de três eixos semânticos: a comunicação, o desejo (ou busca) e a prova (ou luta) (BARTHES, 1972, p. 45- 46). O último nível, o nível da narração, trata da narrativa em si. A narrativa utiliza seu código em dois sistemas: pessoal (o que Genette denomina “narrador homodiegético”) e apessoal (“narrador heterodiegético”, segundo Genette) (BARTHES, 1972, p. 50). Esses sistemas de signos podem aparecer propositalmente trocados, com trechos, ou capítulos escritos na terceira pessoa, quando, na verdade, sua instância é em primeira pessoa:

“ele percebeu um homem de uns cinquenta anos, de porte ainda jovem, etc.”, é perfeitamente pessoal, a despeito do ele (“Eu, James Bond, percebi, etc.”), mas o enunciado narrativo “o tilintar do gelo contra o vidro pareceu dar a Bond uma brusca inspiração” não pode ser pessoal por causa do verbo “parecer”, que se torna signo apessoal (e não o ele) (BARTHES, 1972, p. 51).

Assim como Todorov e Genette, Barthes também volta seus estudos para a decodificação da língua narrativa. Para este, ela pode ser definida por 35

dois processos fundamentais: a articulação, ou seja, a forma, produz unidades (segmentação) e a integração, ou seja, o sentido, “recolhe estas unidades em unidade de um nível superior” (BARTHES, 1972, p. 55) (BARTHES, 1972, p. 55). Charles Bally (BALLY apud. BARTHES, 1972, p. 56-57) traz dois tipos de estruturas linguísticas presentes no francês e alemão que são comparáveis a estruturas narrativas: a língua sintética e a língua analítica. A língua sintética apresenta a predominância de distorção na forma de distaxia, quando os significantes de um mesmo signo são separados por outro(s) signo(s), quebrando a linearidade lógica da narrativa (“por exemplo, a negação ne jamais e o verbo a pardonné em: ele ne nous a jamais pardonné”) (BARTHES, 1972, p. 56-57), e expansão, ao inserir signos entre significantes de outro signo (BARTHES, 1972, p. 56). Narratologicamente, a distaxia se mostra presente na separação de dois núcleos (funções cardinais) consequentes diretos, e a expansão nas catálises, índices, informantes e até mesmo outros núcleos de uma nova sequência postos entre eles: entre os núcleos “ouvir batidas à porta” e “abrir a porta”, pode-se inserir uma série de outras informações e ações, como a descrição da sombra do visitante, e/ou da sequência de interrupção da lavagem da louça. A expansão em uma distaxia pode seguir ad eternum. Por essa razão, a narrativa se configura como uma língua sintética (BARTHES, 1972, p. 56-57). Já, na língua analítica, predomina-se a sequência mimética à linearidade lógica dos núcleos (BARTHES, 1972, p. 57). Essa configuração sintática da narrativa conduz o tempo da história de forma lógica, não real (BARTHES, 1972, p. 57). “A ‘realidade’ de uma sequência não está na continuação ‘natural’ das ações que a compõem, mas na lógica que aí se expõe” (BARTHES, 1972, p. 62). Acima do nível narracional encontram-se outras substâncias do mundo, como comportamentos, fatos históricos etc., não podendo significar narração (BARTHES, 1972, p. 54). Todorov (1972) define duas noções para separar os elementos literários de uma obra dos elementos psicológicos e históricos: a noção de sentido (função), que existe pela possibilidade de se correlacionar um elemento a outros de uma mesma obra, e com a obra toda; e a de interpretação, 36

que existe segundo o leitor, sua personalidade, sua ideologia, seu período de vida e sua bagagem literária (TODOROV, 1972, p. 219). O fato de cada elemento de uma obra ter um sentido por integrarem um sistema, no caso a obra, pode nos levar à ilusão de que a obra em si seria a maior unidade literária, não podendo ser incluída em um sistema superior, portanto sem sentido. A obra, na verdade, faz parte de um universo literário das obras já existentes com as quais se relaciona. “O sentido de Madame Bovary é o de se opor à literatura romântica” (TODOROV, 1972, p. 220). A obra literária apresentaria, então, dois aspectos: História (o que se narra) e Discurso (como se narra) (TODOROV, 1972, p. 220-221). A história existe por convenção, e não “no nível dos próprios acontecimentos” (TODOROV, 1972, p. 222): um romance policial segue certa convenção, como a de ignorar certos detalhes importantes para desenvolver o suspense, trazendo-o à luz próximo ao clímax. Ela seria, então, uma abstração, não narra a si mesma: é preciso sempre ser narrada por alguém (TODOROV, 1972, p. 222). Dois níveis fazem a história: o primeiro, da lógica das ações, diz respeito à relação entre duas ou mais ações, independentemente de sua natureza (TODOROV, 1972, p. 225), formadas por meio de repetições, muitas vezes com o mesmo nome de figuras retóricas, como a antítese; gradação, as diferenças que surgem aos poucos em meio às repetições, a fim de quebrar a monotonia; e paralelismo, constituída por pelo menos duas sequências que apresentem semelhanças e diferenças, assim, como a língua funciona por meio das diferenças, elas se destacam ante as semelhanças (TODOROV, 1972, p. 223). Deste nível surgem dois modelos: o Modelo Triádico, concebido por Claude Bremond, concebe a narrativa como construída pelo encadeamento de micronarrativas, sendo cada uma composta por três, e às vezes dois, elementos obrigatórios (TODOROV, 1972, p. 225-226). Todas as narrativas seriam, então, combinações de diversas micronarrativas que apresentam uma estrutura padrão, equivalente a algumas situações essenciais na vida, como “trapaça”, “contrato” ou “proteção” (TODOROV, 1972, p. 226); e o Modelo Homológico, proposto por Lévi-Strauss, onde “a narrativa representa a projeção sintagmática de uma rede de relações paradigmáticas” (TODOROV, 1972, p. 227). No eixo paradigmático se encontraria as opções, ou melhor, as variações apresentadas de certa ação 37

em uma obra. Por exemplo: uma personagem tentou agradar, declarar ou seduzir outra personagem. No sintagmático está o desenrolar das ações, a resposta ao primeiro movimento: aceitar, recusar, fingir, ignorar. Para cada novo elemento sintagmático, é possível apresentar novos elementos paradigmáticos, desde que presentes na obra (TODOROV, 1972, p. 227-228). O segundo nível é o das personagens e suas relações. Todas as ações realizadas pelas personagens de uma narrativa podem ser resumidas em alguns poucos predicados de base. No exemplo apresentado por Todorov, temos desejo (ou amor), comunicação (ou confidência) e participação (ou ajuda). Esses poucos predicados aos quais se podem refinar as relações entre as personagens podem agregar diversas outras formas derivadas de si mesmas, existentes através de duas regras de derivação: regra de oposição (no caso: ódio, exposição e impedir) e regra do passivo (passagem da voz ativa à voz passiva: ama e é amado, odeia e é odiado, confidencia e é confidenciado, ajuda e é ajudado) (TODOROV, 1972, p. 231-233). Outros predicados postos por Todorov são o ser e parecer, quando a personagem percebe que sua relação que acreditava ter com outra personagem não é verdadeira, e a transformação pessoal, quando um desejo de possessão que, satisfeito, transforma-se em indiferença, por exemplo (TODOROV, 1972, p. 234-235). Em relação ao movimento dessas relações – portanto, da narrativa –, cada obra possui sua própria série de regras de ação, como esta posta por Todorov referente ao desejo: “Sejam A e B dois agentes (aqui entendido como quem age e quem recebe), e que A ama B. Então, A age de maneira que a transformação passiva deste predicado (isto é a proposição ‘A é amado por B’) se realiza também” (TODOROV, 1972, p. 236). O discurso, por sua vez, dispõe de procedimentos que podem ser postos em três grupos: tempo da narrativa, aspectos da narrativa e modos da narrativa. Quanto ao tempo, Todorov versará ao encontro de Genette quanto haver uma discrepância entre o tempo da história e o tempo do discurso16. Enquanto este é linear (para enunciar algo, o narrador precisa sequenciar os elementos,

16 Tempo narrativo, para Genette. 38

relacionando-os, pelo menos, a uma noção de ordem), aquele não segue tal restrição. Vários elementos sequenciais do discurso podem ocupar o mesmo tempo da história – como a descrição de um susto, onde o discurso ordenaria a mudança de expressão facial, mudança de postura, a reação (um grito e/ou um pulo, ou um golpe reflexo), mas tudo isso aconteceria simultaneamente no âmbito da história (TODOROV, 1972, p. 242). Para burlar essa restrição do discurso, opta-se pela deformação temporal a fim de atingir certos efeitos. O medias rés, adotado largamente para o efeito de suspense, cria uma deformação temporal que permite o discurso narrar o fim de uma história primeiro, para depois voltar no tempo e recomeçar a narrativa segundo a cronologia linear do discurso em si (TODOROV, 1972, p. 242-243). Em obras com mais de um foco narrativo (que contam mais de uma história), os encadeamentos, alternâncias e encaixamentos surgem à questão temporal do discurso: o encadeamento sugere que assim que uma história termina, outra começa, sem a possibilidade de voltar à anterior, como em “Os Três Porquinhos”17 (1890): ao terminar de contar o que o primeiro irmão fez, narra-se o segundo, depois o terceiro; quando o Lobo chega, narra-se o ocorrido ao primeiro, depois ao segundo, e, por fim, ao terceiro, nunca voltando à história que já fora narrada (TODOROV, 1972, p. 244). O encaixamento apresenta uma história durante o desenrolar de outra, como em “As Mil e Uma Noites” [3--?], onde várias histórias são postas dentro da própria aventura de Sherazade. As histórias secundárias (ora paralelas à principal, ora com o intuito de expandir o conhecimento do narratário acerca de um evento, ou personagem) também são “menos integradas ao conjunto da narrativa que às histórias principais, e nós as sentimos como ‘encaixadas’” (TODOROV, 1972, p. 244-245). A alternância carrega o ir e vir de histórias incompletas, como em “As Crônicas de Gelo e Fogo”18 (1996 – 2011), onde a narrativa abandona certa personagem no fim de um capítulo para narrar o que está acontecendo com outra personagem 19 ,

17 Exemplo nosso, não de Todorov. 18 Exemplo nosso, não de Todorov. 19 Geralmente durante o mesmo tempo de história do capítulo anterior ou seguinte, de modo a justificar o que se passará em capítulos futuros. 39

voltando à primeira, mais tarde, para lhe dar continuidade (TODOROV, 1972, p. 244). Além dessas questões temporais, há também a relação entre o tempo da escritura (ou tempo da enunciação) e o tempo de leitura (ou tempo da percepção). O tempo da escritura só existe quando o tempo que o narrador tem para escrever ou contar certa narrativa é dado pelo próprio narrador, como em O último dia de um condenado (1829), de Victor Hugo, onde o narrador nos diz que fora condenado à morte; já o tempo de leitura, quando certas ações estão sendo realizadas, como em certas narrativas de ação e aventura, suspense, ou diário em que o narrador mostra intervalos de tempo entre ações: horas, dias, meses, anos (TODOROV, 1972, p. 245-246). O segundo procedimento do discurso, quanto aos aspectos da narrativa, é a maneira de percepção do narrador em relação àquilo que narra. Assim, Todorov resgata Jean Pouillon no tocante a três tipos de percepção (TODOROV, 1972, p. 246): Quando o narrador se mostra onisciente, ou seja, conhecedor de tudo o que é dito e do que não é dito ou mostrado por qualquer personagem, temos a fórmula Narrador > Personagem (visão “por trás”), muito comum na narrativa clássica (TODOROV, 1972, p. 246-247)20. Quando o narrador caminha junto a certas personagens, seja incorporando-as (eu) ou acompanhando-as (ele), percebendo a narrativa exatamente segundo as visões, pensamentos e emoções de seu eu/acompanhante, e nada mais que isso, apresenta-se a fórmula do Narrador = Personagem (visão “com”)21, como em O Assassinato de Roger Ackroyd (1926), de Agatha Christie. Esse aspecto narrativo permite colorir as possibilidades na utilização de certos predicados de base, como o ser e parecer, uma vez que ao apresentar a percepção de várias personagens sobre um mesmo acontecimento, o narrador cria uma espécie de “visão estereoscópica”, possibilitando, digamos, certa “brincadeira” entre o que é e o que parece. (TODOROV, 1972, p. 247-248). O último aspecto de percepção posto por Pouillon é mais como uma convenção, um modelo: Narrador <

20 O equivalente ao narrador onisciente, de Genette. 21 O equivalente ao narrador como uma das personagens, de Genette (Ich Erzählsuation, de Stanzel) 40

Personagem (visão “de fora”), ou seja, um narrador menor que as personagens, sem acesso a qualquer informação interna das mesmas, como pensamentos e intenções (TODOROV, 1972, p. 247-248). Esses aspectos da narrativa foram mudando ao longo dos séculos. O século XVIII demandou o ser em seus romances, em detrimento do parecer, sendo sucedido, no século XIX, pelo oposto: narrar através da consciência das personagens se popularizou nesse período – com romances focados no parecer, não exigindo estabelecer um ser – e se tornou obrigatório no século XX, após sua sistematização, por Henry James (TODOROV, 1972, p. 250). Os modos da narrativa fazem parte do último procedimento do discurso e são as formas pelas quais o narrador apresenta uma narrativa, se ele “mostra” ou “diz”. Os dois modos principais são a representação e a narração, correspondente ao discurso e à história, respectivamente. Isso se dá por suas origens: o drama (representação) – pela história se desenrolar mediante falas, e não por narração – e o conto (narração) – por seu vínculo ao gênero histórico (TODOROV, 1972, p. 250-251). Normalmente, o discurso direto está ligado ao modo performativo (subjetivo) do discurso, por ser-nos apresentado pela fala de uma personagem (TODOROV, 1972, p. 253-254), como em “Então não importa o caminho que você vai tomar”22, enquanto a fala do narrador liga-se ao modo constatativo (objetivo) do discurso, exceto quando utiliza figuras retóricas, como a comparação (TODOROV, 1972, p. 253-254). O próprio conceito de narrador (emissor) cria naturalmente o de leitor (receptor). Como posto por Todorov (1972), história, tempo e narrativa são imaginários, existem por convenções, assim como o papel do leitor. Assume-se tal papel quando há acordo, por exemplo, em se ler uma obra do início ao fim tal qual é apresentada pelo narrador, e não ziguezagueando pela narração, ou quando aceita-se que dada obra é um romance, não uma bula. Em momento algum deve-se confundir a imagem do leitor com a pessoa que está, de fato, lendo, da mesma forma que não se deve confundir um narrador com o autor. A imagem do leitor existe simplesmente pela existência de uma imagem de

22 CARROLL, Lewis. Alice no País das Maravilhas. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2007. p. 84 41

narrador, numa dependência mútua que “confirma a lei semiológica geral segundo a qual ‘eu’ e ‘tu’, o emissor e receptor de um enunciado, aparecem sempre juntos” (TODOROV, 1972, p. 255-257). A observação dos conceitos do termo “literatura”, aceitando-o como termo ainda não conceituável, tampouco nos atrevendo a atribuir-lhe um, assim como suas funções tão caras Candido e Tolkien, e dos da narratologia trazidos pelos Formalistas Russos, nos será ímpar para que alcancemos nosso primeiro objetivo dessa pesquisa: a compreensão dos limites e fronteiras estabelecidas pelos leitores transmídia acerca do que se considera literatura e, se possível, se alguma outra mídia a extrapola e/ou “supera”, no sentido de atribuir-lhe novas características. Não entraremos em discussões, desnecessárias, a respeito de juízo de valor. Para que isso seja possível, precisaremos voltar nosso foco ao conceito de mídia, presente no ciberespaço graças à convergência e como as diferentes mídias afetaram as práticas de leitura de seus usufruidores.

42

Capítulo 02 – Práticas de Leitura Se a imagem de um narrador evoca a de um leitor, segue-se a lógica de que, do mesmo modo que as práticas narrativas foram se alterando, mesclando e evoluindo, também o foram as práticas de leitura, termo que busca abordar a leitura segundo seus diversos elementos influenciadores em certo contexto histórico e social (BATISTA, 2020) e difundido no Brasil a partir de pesquisadores franceses como o historiador Roger Chartier e o sociólogo Pierre Bourdieu. Assim, o estudo das práticas de leitura nos interessa por tomar a leitura como fenômeno social, então mutável pelos momentos históricos e grupos sociais. Como não poderia se diferir em uma pesquisa dessa natureza, esse campo zela pelos processos que as modificam, influenciando a maneira como certos leitores atribuem sentido ao texto, na ampliação ou redução do público leitor e na organização do texto em si e seus suportes. Por leitura, dedicamo-nos à sua acepção de que

A leitura é uma ação, um trabalho do leitor no texto. Que sem dúvida envolve a recuperação da lógica posta pelo seu autor da história contada, do argumento alinhavado, da ideia defendida [...]. Nesse mergulho o leitor traz para o texto outros textos, outras histórias, que nele estão escondidas. Faz o vaivém entre a sua vida e a vida contada no texto, a sua interpretação e a interpretação já sancionada para o texto (SILVA, 1985, p. 20, grifos do autor).

Desse modo, não se pode haver compreensão literária sem leitura, uma vez que se configura interior ao sujeito, portanto vária. Não estando, a leitura, no texto em si,

é concebida de acordo com o desejo do leitor de entender e é transformada ao mesmo tempo em que muda a forma como o leitor organiza seu conhecimento. Com isso, o processo de leitura atingiria seu ápice quando esta transforma o pensamento e o ato de pensar do leitor (ROSA, 2014, p. 53).

A fim de tratarmos de outras hipóteses e expectativas em relação à pesquisa, achamos necessária a contextualização dos conceitos e mudanças das práticas de leitura – como a declamada e silenciosa – e dos leitores ao longo da história. A compreensão das formas de leitura nos serão caras à percepção dos motivos por trás das escolhas e caminhos percorridos pelos leitores literários 43

transmídia. Para tanto, buscamos em Roger Chartier (1997), Guglielmo Cavallo (1997), Alberto Manguel (1996) e Steven Roger Fischer (2003) as informações necessárias.

A leitura declamada Antes da escrita23, o homem de Neandertal lia sinais, em ossos, que lhe era significativo, como pontuação em jogos, e dias passados. A arte rupestre era lida como magia ou aviso (FISCHER, 2006). As histórias eram transmitidas oralmente entre as gerações, incumbindo à memória o dever da perpetuação narrativa, destacando os sons, gestos e expressões naturais como primordiais à narração, estando presente em todas as etapas humanas e nunca deixando seu posto essencial ao desenvolvimento. Mesmo com o surgimento da escrita, ambos passaram a dividir a mesma posição, embora haja, hoje, certa ilusão e até mistificação em relação à escrita sobre a fala – herança, talvez, dos hebreus, cristãos e islamitas, ao usar a palavra escrita como sinal de autoridade (FISCHER, 2006, p.36). A leitura declamada nunca deixou de existir, e está longe de se tornar uma forma de leitura secundária. Em ambientes virtuais, ainda nos dias de hoje, a leitura declamada é ativamente usada. A escrita como fala parece ter se tornado um pensamento comum. Em aplicativos de mensagens instantâneas, como o WhatsApp (desenvolvido pela WhatsApp Inc., em 2009), não é difícil encontrar sujeitos escrevendo que estão dizendo/falando – ou tentando dizer/falar – algo. A opção de enviar arquivo de voz no meio de uma conversa escrita, ou de estabelecer um diálogo apenas com arquivos de voz fora de uma chamada telefônica é comum. Até franquias de jogos eletrônicos, como A Lenda de Zelda (1986 – 2017), Kingdom Hearts (2002 – 2019) e Final Fantasy (1987 – 2020), estão quebrando o padrão de seus títulos para trazer a leitura declamada onde, antes, tinha-se apenas a escrita. O desenvolvimento da escrita pelos egípcios e sumérios, não retirou a necessidade vocal da leitura. Aos gregos, a leitura trazia o conceito do recitar,

23 Aqui entendida como um conjunto de sinais gráficos artificiais correspondente a sons, ou ideogramas de modo a transmitir mensagens completas ou parciais (FISCHER, 2009). 44

noção que persistiu entre os romanos, mas em lenta retração, dando espaço à expansão da leitura silenciosa, já observada na cultura grega do século V a.C. (CAVALLO, CHARTIER, 1998). Manguel (1996), nos dá alguns exemplos de leitura silenciosa através da história: No século V a.C., duas peças mostram personagens lendo no palco:

no Hipólito, de Eurípedes, Teseu lê em silêncio uma carta presa na mão da esposa morta; em Os cavaleiros, de Aristóteles, Demóstenes olha para uma tabuleta mandada por um oráculo e, sem dizer em voz alta o que contém, parece ficar surpreso com o que leu. Segundo Plutarco, Alexandre, o Grande, leu em silêncio uma carta de sua mãe no século IV a.C., para espanto de seus soldados; Cláudio Ptolomeu, no século II d.C., observou em Sobre o Critério [...] que às vezes as pessoas leem em silêncio quando estão se concentrando muito, porque dizer as palavras em voz alta distrai o pensamento (MANGUEL, 1997, p.59).

Porém, também nos mostra que a leitura silenciosa não era a forma padrão de leitura, ao comentar sobre a relação entre Agostinho de Hipona (354 – 430) e a leitura silenciosa de Aurélio Ambrósio (337 – 397), mencionando que “essa maneira de ler parecia suficientemente estranha para que ele a registrasse em suas Confissões” (MANGUEL, 1997, p.59), ou quando São Cirilo de Jerusalém, em 349, pede às mulheres que leiam em silêncio enquanto aguardam as cerimônias. Mesmo na época em que a leitura declamada era dominante e disseminada, a leitura era lenta – salvo profissionais ou leitores muito hábeis. Como posto por Cavallo e Chartier (1998), a leitura dependia da caligrafia do copista, que ora utilizava uma “livreira”, ora semicursiva, ora “cursiva e rica em ligações” (CAVALLO, CHARTIER, 1998, p. 81), de modo que um leitor familiarizado com uma das formas gráficas poderia apresentar dificuldades em ler, ou até em decifrar, outra(s). Outro ponto era que até o século I d.C., os romanos utilizavam pontos entre as palavras, indiciando suas separações (interpuncta) e, no final do mesmo século, adotaram o sistema de escrita onde não há espaços ou divisores entre palavras ou sentenças, já vigente entre os gregos (scriptio continua), tornando a prática da leitura declamada um auxílio necessário. 45

De muitas formas, ela carrega características da narração pré-escrita: antes da escrita, não sabemos quem era autor, quem era ouvinte. Não se sabe quem foi o autor da mitologia tupi, xintoísta ou cristã. As narrativas já existiam muito antes de seus escribas. Da mesma forma, na pós-escrita, a declamação chega a seus ouvintes, que a transmitem de acordo com sua memorização (contando com reinterpretações de detalhes, ou cenas, que não lhes são, mais, tão nítidas) a algum conhecido que não esteve presente. Essa é uma das razões pelas quais os estudos sobre os leitores costumam ser baseados na leitura silenciosa, não na declamada, pois, nesta, os leitores não são apenas os que declamam, também o são quem escuta. Os ouvintes não são, necessariamente, letrados, tampouco aparecem nos registros, dissolvendo os rastros antes mesmo de se formarem. Um mesmo ouvinte poderia participar da declamação de diversas obras ou nenhuma e, estando no público, os olhos não se voltariam a ele, sendo impossível traçá-lo com qualquer precisão (CAVALLO, CHARTIER, 1998). O rastro da leitura silenciosa torna-se muito menos difícil de se seguir. Para se ter uma leitura assim, é preciso possuir o texto em mãos. Registros de empréstimos, ou posse de obras criam uma teia de leitura impossível em uma leitura declamada. A questão de alteração de conteúdo ao se transmitir uma narrativa também não seria um problema, uma vez que o contato do leitor é com o próprio texto, não com a lembrança.

A leitura silenciosa Ainda que a leitura silenciosa tenha caminhado por tanto tempo junto à leitura declamada, apenas se tornou usual, no ocidente, no século (MANGUEL, 1997, p.59). Vários fatores auxiliaram essa latência: segundo Fischer (2006), durante a maior parte da história escrita, o conceito de “ler” estava condicionado ao de “declamar”, ao ponto de leitura e escrita serem “complementos ao discurso oral”, de modo que “literatura” era comumente entendida como o que “poderia ser decorado” (FISCHER, 2006, p.14-15); aos dramaturgos, o drama era feito para ser declamado. Ler silenciosamente romperia com o intuito da obra, a tiraria de sua função e espaço; o analfabetismo também agia como incentivo à 46

permanência da leitura declamada em ambiente social (há até poucas décadas, a leitura de romances de folhetins era feita em voz alta em praças e dentro de casa). Hoje, continuamos com a presença da leitura declamada, por exemplo, em lançamentos de obras literárias, onde é pedido ao autor que leia trechos de sua obra ao público ali presente. Ser usual não significa, necessariamente, ser bem vista. Na Espanha dos séculos XVI e XVII, várias interdições e proibições à publicação, exportação, venda e posse de obras de ficção deram-se pelo temor referente a uma prática de leitura que leva o leitor a confundir real e imaginário, faculdade comprometida devido à popularização da leitura silenciosa, como posto por Roger Chartier:

Por anular a distância entre o mundo do texto e o mundo do leitor, sempre manifesta na leitura em voz alta, por dar uma força de persuasão inédita às fabulas dos textos de ficção, a leitura silenciosa é um encantamento perigoso. O vocabulário a qualifica por meio de verbos do encantamento: encantar, maravillar, embelesar. Os autores a representavam como mais apta que a palavra viva, recitante ou leitora, a tornar crível o incrível (CAVALLO, CHARTIER, 1999, p. 125).

No século XVIII, como posto por Reinhard Wittmann (in. CAVALLO, CHARTIER, 1999), Inglaterra e França apresentavam a leitura distribuída por todo seu território:

Em Paris, todos leem [...]. Todos – principalmente as mulheres – têm um livro consigo. Lê-se no bonde, nos calçadões, nos intervalos do teatro, nos cafés, no banho. Nas lojas leem mulheres, crianças, aprendizes, praticantes (...) os lacaios leem em seus assentos, os cocheiros em sua boleia, os soldados nas guaritas (W. Krauss, p. 194- 312, apud WITTMANN in. CAVALLO, CHARTIER, 1999, p. 135-136).

A leitura, tão disseminada que se tornou, ganhou atenção de diversos campos, sendo vista, por alguns, como uma “febre de leitura” e, rapidamente atingindo o status de “epidemia da leitura” (WITTMANN in. CAVALLO, CHARTIER, 1999, p. 136). Tanto que seus sintomas foram registrados pelo religioso Johann Rudolf Gottlieb Beyer, em 1796:

Leitores e leitoras que se levantam e vão deitar-se com o livro, que se sentam à mesa com ele, que o têm consigo no trabalho, levam-no aos passeios e que não podem separar-se da leitura uma vez iniciada, enquanto não chegarem ao fim. Mas nem bem devoraram a última 47

página de um livro, já se sentem ávidos por outro; e assim que encontram algo, num banheiro, numa estante ou em qualquer outro lugar, algo que pertença a sua área, ou que lhes pareça legível, levam- no consigo, e o devoram com uma espécie de fome canina. Nenhum amante do tabaco ou do café, nenhum apreciador do vinho ou do jogo pode estar tão preso a seu cachimbo, a sua garrafa, à mesa de jogo ou de café quanto alguns famintos leitores a sua leitura (BEYER, p. 07, apud CAVALLO, CHARTIER, 1999, p. 135-136).

Karl Gottfried Bauer, ao trazer os malefícios que a leitura silenciosa poderia trazer, nos mostra que essa “epidemia da leitura” contava naturalmente com a presença em massa da leitura silenciosa:

A posição obrigada e a ausência de qualquer movimento físico durante a leitura [...] provocam efeitos sobre os órgãos sexuais, estancamentos e corrupções do sangue, tensões excitantes e relaxamentos do sistema nervoso, languidez e debilidade no corpo todo (BAUER, p. 190, apud INSTITUTO C&A, 2008, p. 78).

Seu levante nos séculos XVIII e XIX não foi por acaso. Nessa época, a leitura passava por uma revolução, caminhando da leitura intensiva para a leitura extensiva. A prática da leitura intensiva significava a leitura repetitiva de textos “na maioria das vezes de caráter religioso, sobretudo a Bíblia” (WITTMANN, in. CAVALLO, CHARTIER, 1999, p. 136), mas as pessoas passaram a querer novas fontes de leitura, seja para distração, seja para informação, consumindo cada vez mais materiais, numa leitura extensiva das obras e fazendo com que a leitura intensiva se tornasse obsoleta e inferior.

A leitura fragmentada O século XX vai trazer um aparelho que garantirá uma mudança decisiva no modo de leitura do fim do mesmo século: o controle remoto:

Como sabemos, o uso do controle remoto proporcionou ao telespectador a possibilidade de mudar instantaneamente de canal, passando de um filme a um debate, de um jogo ao telejornal, de um clipe publicitário a uma telenovela e assim por diante, numa vertiginosa sucessão de imagens e de episódios (PETRUCCI, Armando, in. CAVALLO, CHARTIER, 1999, p. 219).

Com a habilidade de trocar de informações rapidamente e, acima de tudo, obter informações incompletas, a televisão e o rádio prepararam seus 48

espectadores para a chegada da internet. Se o conforto do controle remoto criava a condição perfeita para o zapping24 (JENKINS, 2009, p. 111), a internet, com seus hiperlinks, e as abas múltiplas trouxeram o ambiente perfeito para que a leitura fragmentada fosse possível. A leitura fragmentada trouxe ainda mais velocidade que a silenciosa. Por não precisar se deter aos detalhes para a compreensão da mensagem, os novos leitores passaram a ler apenas partes das notícias, passando para a próxima, atentando-se pouco ou nada na qualidade ou veracidade do que se lê. Apesar de obras como a web série Zot! (2000), de Scott McCloud, apresentarem estratégias narrativas originais, a maior parte dos textos jornalísticos e literários virtuais não deixavam a sombra das virtualizações, sendo apenas a versão digital dos textos impressos, tanto em blogs como em sites de jornais e outras mídias informativas, ajudando a popularização rápida da prática da leitura fragmentada, permitindo que apenas a leitura das manchetes e títulos das notícias e postagens fosse suficiente para se compreender o texto. Mais tarde, para tentar burlar essa prática e “capturar” leitores fragmentários, sites e blogs adotaram a prática do clickbait (isca de cliques)25. Essa prática foi atacada com força pelos leitores, diminuindo seu uso e fazendo com que aquele que faça uso da prática perdesse confiabilidade de grande parcela do público26.

O germe da leitura transmídia Cibercultura: inteligência coletiva e comunidades virtuais Com o desenvolvimento da Web 1.0 para a Web 2.0 (que permitiu ao usuário participar na formação do conteúdo virtual, gerando conteúdo, moderando-o e agregando valores), foi possível organizar instantânea e globalmente algo que sempre esteve presente desde a história pré-escrita, a que Pierre-Lévy (1998) se refere por inteligência coletiva. A inteligência coletiva

24 Termo estadunidense para a troca constante de canais – conhecida popularmente, no Brasil, por sua forma aportuguesada “zapear”. 25 Títulos sensacionalistas e/ou falsos que buscam chamar a atenção dos leitores para que que abrissem certo link. 26 Porém, ela parece ter sido revitalizada com força total repaginada na forma de fake news, 49

entende o conhecimento como grande demais para apenas uma pessoa, de modo que, para que certo conhecimento seja construído, são necessárias várias fontes que se somam a um mesmo fim, em um grupo (LÉVY, 2010). As criações da inteligência coletiva não têm autor, como a Bíblia e a mitologia grega.

Homero, Sófocles ou Ovídio, enquanto intérpretes célebres dessa mitologia, evidentemente lhe deram um brilho particular. Mas Ovídio é o autor das Metamorfoses, não da mitologia; Sófocles escreveu Édipo Rei, mas não inventou a saga dos reis de Tebas etc (LÉVY, 2010, p. 154-155).

Textos assim só foram possíveis graças ao ciberespaço, palavra originada em 1984, por William Gibson (1948 – atual) em sua obra Neuromancer. Esse termo cobre o universo de informações digitais que possibilitam a comunicação em rede, assim como as pessoas que se comunicam. As técnicas, valores e toda forma de construção material e intelectual criado, desenvolvido e/ou carregado no ciberespaço fazem parte do que chamamos de cibercultura, onde “a conexão é sempre preferível ao isolamento” (LÉVY, 2010, p. 17). Dois elementos são invocados quando se menciona cibercultura: a inteligência coletiva e as comunidades virtuais. Destes, a inteligência coletiva:

seria sua perspectiva espiritual, sua finalidade última. Esse projeto foi propagado pelos visionários dos anos 60: Engelbart (o inventor do mouse e das janelas das interfaces atuais), Licklider (pioneiro das conferências eletrônicas), Nelson (inventor da palavra e do conceito de hipertexto). O ideal da inteligência coletiva também é defendido por alguns gurus atuais da cibercultura como Tim Berners Lee (inventor da World Wide Web), John Perry Barlow (exletrista do grupo musical Grateful Dead, um dos fundadores e porta-vozes da Electronic Frontier Foundation) ou Marc Pesce (coordenador da norma VRML) (LEVY, 2017. p. 133).

A inteligência coletiva parte do princípio de que ninguém sabe tudo, mas todos sabemos parte de alguma coisa e, juntos, podemos construir o conhecimento. Assim, no ciberespaço, nunca estamos sozinhos, nem pensamos sozinhos, sempre usamos nosso conhecimento para/com um grupo – uma comunidade – a fim de evoluí-la, expandi-la, ou apenas para passar tempo. Quanto mais o conhecimento se desenvolve, maior é a inclusão dos usuários da rede, tanto para com novos usuários, quanto para com os mais resistentes a 50

mudanças. O processo de aquisição de conhecimento (responsável pela criação de laços entre os membros de uma comunidade) é o consolidante da inteligência coletiva, não a posse do conhecimento em si. Nas comunidades, além da inteligência coletiva, há também a inteligência compartilhada. Enquanto a inteligência coletiva versa sobre a soma dos conhecimentos individuais, a compartilhada prosa sobre o conhecimento comum a todos. Os fundamentos da comunidade, por exemplo, necessários para que ela se desenvolva e continue harmônica entre seus participantes, seriam parte da inteligência compartilhada, uma vez que todos devem ter conhecimento deles (JENKINS, 2009, p. 57). Para que a inteligência coletiva funcione, é preciso um grupo de pessoas que partilhe de um mesmo interesse e afinidades e esteja disposto a se relacionar num processo de troca e/ou cooperação, sendo irrelevante sua localização geográfica, ou filiação institucional. Denominado por Howard Rheingold (1993) de Comunidade Virtual (RHEINGOLD, 1993, p. 6), atua sob regras não verbais de boa conduta, tornando-se passível de exclusão da comunidade aquele que não as seguir. Segundo o autor, as comunidades virtuais surgem quando relações pessoais se formam a partir da interação entre participantes do ciberespaço em discussões sobre qualquer assunto (RHEINGOLD, 1993, p. 6-7). Por não ser, necessariamente, possível que um participante veja o outro, as relações formadas em uma comunidade se mostram mais rápidas e inclusivas que no mundo real, uma vez que cor, tamanho, sexo e aparência se tornam irrelevantes. “Pessoas cujas debilidades físicas dificultam a criação de novas amizades, encontram nas comunidades virtuais o tratamento que sempre quiseram receber – como seres pensadores e transmissores de ideias e sentimentos” (RHEINGOLD, 1993, p. 24)27. O medo – mais especificamente a vergonha – também é um fator diminuído no ciberespaço, pois da mesma forma que a pessoa é escondida, uma

27 Tradução nossa. No original: “People whose physical handicaps make it difficult to form new friendships find that virtual communities treat them as they always wanted to be treated- -as thinkers and transmitters of ideas and feeling beings”. 51

persona é criada na forma de um . Este avatar, assim como as máscaras, permite que seu operador aja sem ser identificado, desinibindo muitos participantes a se expressar mais abertamente e com mais afinco pelo simples fato de poder pensar entre uma “fala” e outra – algo quase impossível em muitas conversas cara-a-cara (RHEINGOLD, 1993, p. 22). A existência de avatares faz com que se crie na comunidade virtual uma regra não-verbal do respeito ao que é pessoal, ou seja, comentários de teor preconceituoso são passíveis de banimento da comunidade a quem os proferir, instituindo um sentimento ainda maior de segurança aos que encontram dificuldades na comunicação real. As comunidades virtuais são baseadas em grupos cujos integrantes estejam dispostos a expandir, se especializar, descobrir, ensinar e aprender sobre algo relativamente amplo, como as ações de uma desenvolvedora de jogos, ou o universo (lore) de um jogo; ou mais específico, como as relações de certa personagem com outras personagens ou receitas com pimenta e não raramente são conectados a outros grupos. Sendo os assuntos partilhados pelo interesse comum, a participação é recompensada por títulos de confiança. Certos fóruns literalmente geram titulação de confiabilidade a seus participantes, permitindo-os escalar do posto de iniciante, por exemplo, ao de moderador. Segundo Pierre Lévy,

A cibercultura é a expressão da aspiração de construção de um laço social, que não seria fundado nem sobre links territoriais, nem sobre relações institucionais, nem sobre as relações de poder, mas sobre a reunião em torno de centros de interesses comuns, sobre o jogo, sobre o compartilhamento do saber, sobre a aprendizagem cooperativa, sobre processos abertos de colaboração (LÉVY, 2010, 131).

Lovemarks As comunidades virtuais e a inteligência coletiva são tão mais comuns quanto maior for a economia afetiva de algo. Trabalharemos com o conceito de economia afetiva e transmídia de Jenkins (2009) por ele ser um dos grandes nomes na pesquisa da área e por partilharmos a compreensão dos termos. Segundo ele, a economia afetiva acontece quando uma empresa enfatiza suas campanhas na criação de um vínculo emocional com o consumidor, fazendo 52

desse vínculo um “motivador fundamental em suas decisões de compra” (JENKINS, 2009, p. 379). Ela “procura entender os fundamentos emocionais da tomada de decisão do consumidor como uma força motriz por trás das decisões de audiência e de compra” (JENKINS, 2009, p. 96). Conforme a economia afetiva cresce, ou seja, conforme os consumidores investem cada vez mais emoção nas empresas, começa-se a criar as lovemarks (JENKINS, 2009, p. 383). Para Kevin Roberts, “lovemarks são marcas, eventos e pessoas” e explicaria uma relação de longo prazo entre consumidor e marca. Essa relação de fidelidade se daria além da razão, mas ainda consciente, criando uma fundação de amor e respeito, as bases da existência de uma lovemark (ROBERTS, 2013, p. 36). Com pouco amor e pouco respeito, tem-se um produto qualquer; com pouco amor e muito respeito cria-se uma marca; muito amor e pouco respeito é a condição das novidades, que vem e vão com muita intensidade e muito rápido; é com muito amor e muito respeito que se cria uma lovemark (ROBERTS, 2013, p. 37), como no diagrama abaixo:

53

Figura 01: Lovemarks. Adaptado de (ROBERTS, 2013, p. 37)

Tal condição cria no consumidor um sentimento de pertencimento e, ainda mais, de apropriação. Tudo pode ser uma lovemark, desde que seja algo com o qual o consumidor se emocione. Desde a Disney até a banda Pitty, de Greenpeace ao infinito da imaginação humana. “Retire uma marca e ela é substituída. Retire uma lovemark e você tem um protesto nas mãos” 28 (ROBERTS, 2013, p. 37). Esse sentimento de pertencimento e apropriação são fundamentais para que o universo transmídia – nele inclusos a leitura transmídia e os leitores transmídia – exista e se expanda.

28 Tradução nossa. No original: “Take a brand away and it is replaced. Take a Lovemark away and you’ve got a protest on your hands”. 54

Na formação de uma lovemark, três pontos são requeridos: mistério, sensualidade e intimidade. Cada um deles forma um pilar de sustentação do envolvimento emocional humano29: “o mistério é sobre unir histórias, metáforas, sonhos e símbolos”30 (ROBERTS, 2013, p. 39). Usado em todos os jogos que recebem grande orçamento e promoção, ou “AAA”, os desenvolvedores liberam, aos poucos, poucas informações sobre detalhes dos mesmos a fim de manter a hype (o interesse) dos consumidores pelo produto. Em Final Fantasy VII Remake (FFVIIR) (2020), por exemplo, foi exibido um trailer com a abertura do jogo para mostrar o nível gráfico alcançado; semanas depois, um pouco da mecânica de combate; meses depois, a notícia de que a história do remake seria diferente do original; meses depois, um novo trailer, mostrando flashes de uma das cenas que os jogadores mais ansiavam ver; um mês antes do lançamento do jogo, foi liberado uma demonstração (demo) de FFVIIR, onde os jogadores poderiam viver a primeira missão do jogo; na última semana, as redes sociais oficiais de FFVIIR lançaram artes de personagens e papeis de parede gratuitos aos jogadores. Entre um anúncio e outro, os desenvolvedores alimentavam a hype lançando informações sobre as personagens que estariam no jogo, antigos e novos, assim como suas imagens em alta qualidade para download. O resultado disso foi que, em três dias, Final Fantasy VIII Remake já havia vendido mais 3,5 milhões de cópias, e mais de 5 milhões em quatro meses. A sensualidade mexe com os cinco sentidos. Usada corretamente, ela pode ser “um portal direto às emoções”31 (ROBERTS, 2013, p. 39). Os óculos de realidade virtual, por exemplo, trabalham justamente com isso. Compostos por um headset e controles vibratórios com sensor de movimento, os jogos focam a experiência do jogador na ampliação de suas sensações por meio da imersão no jogo. O som 3D permite a ilusão de que os barulhos vêm de trás, de cima, da frente, de baixo ou dos lados do ponto para onde o jogador está olhando ao mesmo tempo em que a câmera nas lentes retiram a distância que o jogador antes possuía da televisão, ou monitor, e os controles vibram conforme a ação

29 Todos os exemplos desses pontos são nossos. 30 Tradução nossa. No original: “mystery is about drawing together stories, metaphors, dreams and symbols”. 31 Tradução nossa. No original: “direct portal to the emotions”. 55

realizada pelo jogador. Em 2018, o PSVR (óculos de realidade virtual da PlayStation) havia atingido a marca de 1,3 milhão de unidades vendidas e de 5 milhões no início de janeiro de 2020, com mais de 21.9 milhões de jogos de realidade virtual vendidos até agosto de 2018. Por fim, a intimidade é desenvolvida a partir da empatia, comprometimento e paixão, criando uma conexão que prossegue tempos depois das recompensas se esvanecerem (ROBERTS, 2013, p. 39). Jogos cooperativos online atuam nesse campo com grande precisão. e Pokémon Go são algumas representações do envolvimento criado pela intimidade. Lançado gratuitamente para consoles e computador em 2017 pela , Fortnite se tratava de um jogo de tiro em estilo Battle Royalle32, gerando uma receita de 1.2 bilhões de dólares nos primeiros 10 meses de lançamento, duplicando esse valor em 2018. Quando lançado em forma de aplicativo para dispositivos da Apple, em 2018, o jogo rendia 2 milhões de dólares por dia (IQBAL, 2020a). Um ano antes de Fortnite, em 2016, o jogo de realidade aumentada Pokémon Go foi lançado gratuitamente para celulares. No inverno de 2016, a Starbucks nomeou uma de suas bebidas como “Pokémon Go Frappuccino”, em homenagem ao sucesso estrondoso do jogo. Em seu primeiro mês, sua renda foi de 207 milhões de dólares e 2,45 bilhões em março de 2019. Apenas em 2016, os jogadores caminharam um total de por 8.7 bilhões de quilômetros – o suficiente para se chegar ao fim do Sistema Solar (IQBAL, 2020b). Vale o acréscimo do detalhe de que todo dinheiro gasto em ambos os jogos é convertido à aquisição de bens virtuais, como trajes, pinturas, danças e outros itens cosméticos existentes apenas dentro do jogo (in-game), ou seja, nada dessas quantias foi revertido a bens físicos, como chaveiro, bonecos, camiseta ou qualquer outro tipo de acessório. Essas informações geram terreno para que a indústria midiática classifique seus consumidores em zapeadores, casuais e fiéis. Os zapeadores, como já dito anteriormente, são aqueles que passam de um programa/jogo/leitura a outro, sem a preocupação de terminar o que começou,

32 Jogos onde 100 jogadores jogam uns contra os outros individualmente ou em times, eliminando-se até que apenas um sobre. 56

ou de prestar atenção no que se consome. Apesar de não acompanharem algo com afinco, esse grupo pode apresentar uma exposição maior aos produtos, passando mais tempo em frente à tv/console/computador/celular/livro/leitor digital. Os fiéis são seletivos no que investir seu tempo, não entendendo como “gastar” tempo assistindo, jogando ou lendo algo. Por dedicarem total atenção e energia em certo assunto, não costumam acompanhar seu ponto de interesse em apenas uma mídia, mas em tantas quanto possível, sendo os mais adeptos à ideia de transmidialidade, que abordaremos muito em breve. Entre esses dois grupos se situam os casuais, que se interessam por um assunto, mas “vê quando dá”, não o acompanhando, necessariamente. Quando conseguem assistir/jogar/ler, não o fazem exclusivamente, tendo normalmente outra atividade concomitante, não raras vezes transportando a atividade primeira ao segundo plano (JENKINS, 2009, p. 111).

Convergência: crossmedia e transmídia Quanto maior a economia afetiva, maior o engajamento do leitor, e o ambiente onde esse cenário é mais propenso a existir é o da convergência de mídia (JENKINS, 2009):

Por convergência, refiro-me ao fluxo de conteúdos através de múltiplas plataformas de mídia, à cooperação entre múltiplos mercados midiáticos e ao comportamento migratório dos públicos dos meios de comunicação, que vão a quase qualquer parte em busca das experiências de entretenimento que deseja (JENKINS, 2009, p. 29).

A convergência se mostra em um ambiente onde exista mais de uma mídia e os conteúdos trafeguem entre estas de forma fluida. Lembrando, mais uma vez, na diferença entre mídia e tecnologia: mídia é o meio de comunicação adotado para a difusão de uma mensagem (televisão, rádio, cinema, console, livro (físico e digital), jornal (físico e digital) etc), e tecnologia são ferramentas (tv com tela LCD, tv com tela de plasma, tv 3D, leitor de CD, leitor de DVD, leitor de Blu-ray, PlayStaion 4, PlayStation 5, One, Xbox Series S/X etc). Abordaremos esse assunto no próximo Capítulo, mas as mídias não são substituíveis, apesar do medo de muitos. As tecnologias são trocadas com frequência por tornarem-se obsoletas, como o VHS, substituído pelo DVD, 57

depois pelo Blu-ray; o disco de vinil, substituído pelo CD, depois pelos arquivos mp3, que estão sendo trocados pelos arquivos FLAC. Estas são as chamadas tecnologias de distribuição (JENKINS, 2009, p. 41). Dentro da convergência, temos dois conceitos: a crossmedia, quando um conteúdo passa de uma mídia a outra sem mudança na mensagem; e transmídia, quando um conteúdo é passado entre as mídias, mas com uma mensagem diferente em cada. Enquanto a função da arte crossmedia é alcançar o maior número de pessoas com o mesmo conteúdo, a transmídia envia fragmentos para cada mídia que, juntos, formam um todo, e separados mantém seu sentido. Matrix, por exemplo, é uma marca transmídia. Existem os filmes de longa-metragem33, um curta-metragem34, jogos35 e anime36. Cada um desses títulos conta partes diferentes da narrativa. Enter the Matrix conta a história dos tripulantes da nave Osíris, que precisam enviar uma mensagem à Zion, a última cidade de humanos na Terra. No início de Matrix Reloaded, os personagens estão discutindo sobre o último voo de Osíris (nome do curta, que conta como aquela informação fora conseguida e deixada na caixa de correio buscada no início de Enter the Matrix) (JENKINS, 2009). Assim, se alguém apenas assistir à trilogia de longa metragens, terá uma história com início, meio e fim, mas se alguém acompanhar a narrativa também nas outras mídias, receberá todo o seu conteúdo. Kingdom Hearts (2002 – atual), por outro lado, é uma narrativa crossmedia. Possui jogos 37 e mangás 38 , porém, ao contrário de Matrix, os mangás não contam histórias diferentes dos jogos, são uma novelização, ou seja, os mangás de Kingdom Hearts contam a mesma história do jogo de mesmo

33 Matrix (1999), Matrix Reloaded (2003) e Matrix Revolutions (2003). 34 The Final Flight of the Osiris (2003). 35 Enter the Matrix (2003) e The Matrix Online (2005) 36 Animatrix (2003) 37 Kingdom Hearts (2002), Kingdom Hearts: Chain of Memories (2004), Kingdom Hearts II (2005), Kingdom Hearts 358/2 Days (2009), Kingdom Hearts Birth by Sleep (2010), Kingdom Hearts Coded (2008) Kingdom Hearts Re:coded (2010), Kingdom Hearts 3D: Dream Drop Distance (2012), Kingdom Hearts Union X [Cross] (2017), Kingdom Hearts III (2019) e Kingdom Hearts: Melody of Memory (2020). 38 Relativos aos jogos Kingdom Hearts, Kingdom Hearts II, Kingdom Hearts: Chain of Memories, Kingdom Hearts 358/2 Days e Kingdom Hearts III. 58

nome. Adicionam alguns detalhes, como uma pequena interação com Cid (personagem do jogo Final Fantasy VII, da Square Enix) quando o vemos pela primeira vez, em Traverse Town (um dos vários mundos explorados por Sora, o protagonista), mas esse tipo de mudança não adiciona importância alguma ao enredo ou desenrolar da narrativa. O conceito de narrativa transmídia veio a público em 1999, com o fenômeno A Bruxa de Blair (1999), um filme independente que, mesmo com baixo orçamento, teve um sucesso espantoso (JENKINS, 2009, p. 145). Um ano antes de estrear no cinema, os produtores do filme criaram um site incrivelmente realista com documentos de diversas bruxas que foram descobertas no decorrer dos séculos (muitas das quais são citadas no filme), lançaram um documentário falso sobre a bruxa de Burkittsville, estruturado como diversos outros documentários sobre o sobrenatural e transmitiram no canal Sci-Fi Channel. Mesmo após o lançamento do filme, foram publicados vários quadrinhos sobre uma outra pessoa que encontrara a bruxa em um bosque perto de Burkittsville. Um dos produtores do filme, Dan Myrick, explicou que eles tentaram montar uma lenda falsa o mais completa possível, com várias vozes, e mistérios. “Nada sobre a lenda poderia ser demonstrável, e tudo tinha de parecer ter uma explicação lógica (da qual o leitor se afastaria o mais rápido possível)” (JENKINS, 2009, p. 146). Mara manter o manto da credibilidade, outro produtor, Ed Sanchez, disse que “estabelecemos a cronologia, acrescentamos detalhes aos antecedentes da história... Começamos a falsificar artefatos, pinturas, gravuras, livros antigos, e eu escaneava tudo e incluía no site” (JENKINS, 2009, p. 146). Ao montar um fórum de discussões no site, Ed Sanchez e os demais produtores viram uma onda de curiosos e fãs surgir, crescer e alimentar a lenda. Segundo Sanchez:

Se você der às pessoas coisas suficientes para explorar, elas vão explorar. É o modo como se coloca a teia de informações que mantém as pessoas interessadas e mantém as pessoas trabalhando para ela. Se as pessoas têm de trabalhar para uma coisa, dedicam-lhe mais tempo. E dão mais valor emocional (JENKINS, 2009, p. 147).

Em outras palavras, o mistério de Roberts (2013) sempre esteve intimamente vinculado à transmídia, afinal, mostrar partes completas de um todo, 59

não esgotando a narrativa em uma única mídia é o que significa ser transmídia. A separação de sequências narrativas cria um sentimento de recompensa muito maior no consumidor, que “descobriu” a ligação entre duas pontas, elevando a economia afetiva da audiência e, consequentemente, elevando o consumo da então formada lovemark (JENKINS, 2009, p. 138). A força de uma narrativa transmídia associada às lovemarks pode ser vista de forma muito simples no Universo Cinematográfico da Marvel (MCU, acrônimo adotado no Brasil, devido sua origem do inglês)39. Os filmes de menor bilheteria foram “coincidentemente” os primeiros filmes do MCU, que contam a história de origem de alguns dos personagens centrais da primeira fase da narrativa: O incrível Hulk (2008), Capitão América: o primeiro vingador (2011), Thor (2011) e Homem de ferro (2008), variando uma bilheteria de US$ 263,42 milhões a US$ 585,17 milhões. Conforme as histórias dos filmes começavam a se conectar em certos pontos, os fãs do Homem de Ferro passaram a assistir aos filmes do Thor e do Capitão América; os de Thor, os do Homem de Ferro e do Capitão América e assim sucessivamente até culminarem a primeira união do grupo Vingadores, no fim da primeira fase do MCU, no filme Os Vingadores (2012), rendendo US$ 1,518 bilhões e tornando-se o terceiro filme de maior bilheteria do MCU até o momento, de um total de 23 filmes. Seguindo com esse modo narrativo, ao fim da terceira fase do MCU, a Marvel conseguiu alcançar a posição de filme com maior bilheteria da história, em 20 de julho de 2019, com Vingadores: Ultimato (2019), levantando uma bilheteria de US$ 2,797 bilhões. Apesar de a convergência mostrar tanto poder sobre seus consumidores – e talvez justamente por isso –, há ainda muitos mitos, medos e mentiras rondando os jogos e os meios digitais em geral, tanto na questão da substituição de mídias consolidadas, quanto nos próprios consumidores de mídias digitais, e transmídia.

39 Os números foram retirados da postagem de Natália Bridi para o site Omelete, disponível em: https://www.omelete.com.br/marvel-cinema/vingadores-ultimato- endgame/bilheterias-do-mcu#45 60

Compreender o desenvolvimento das práticas de leitura por meio do impacto das mídias nos dá condições para que alcancemos nosso segundo objetivo: observar a relação entre a formação e desenvolvimento das práticas de leitura literária dos leitores transmídia e suas práticas de jogar. Acreditamos ser de extrema complexidade seguirmos adiante na compreensão de tais práticas de jogar e seu confrontamento às práticas de leitura literária, sem primeiro entendermos o que é o ciberespaço, seus elementos (inteligência coletiva e comunidades virtuais) geradores da cibercultura e o fenômeno da convergência, que depende da economia afetiva (e, por consequência, das lovemarks) para que sejam criadas mídias ao redor de certas tecnologias e, assim, expandir seu alcance por meio da prática crossmedia ou transmídia. Uma vez estabelecido nosso alicerce (os elementos literários e narratológicos de um texto, o desenvolvimento das práticas de leitura e a evolução e influência das mídias), estamos seguros para nos debruçarmos nos jogos e, finalmente, termos em nosso abraço todos os elementos necessários para podermos traçar com maior precisão esse grupo de leitores-jogadores a quem intitulamos leitores transmídia.

61

Capítulo 03 – Tecnologia, mídias e narratologia nos jogos

Medos geracionais Se houve espanto e/ou reconhecimento nos modos de tratamento que a leitura silenciosa recebera em sua expansão, não foi por coincidência. Assim como ela, em sua época, os jogos e as mídias digitais passam, ainda, por diversos preconceitos. Pierre Lévy (2010) expôs seu espanto em uma reunião com um cineasta que denunciava “a ‘barbárie’ encarnada pelos videogames, os mundos virtuais e os fóruns eletrônicos” (LÉVY, 2010, 11), visto que o cinema, antes de se consagrar arte, sofrera do mesmo desprezo. O medo que vemos de pais e responsáveis dos filhos passarem o dia todo no celular, passando horas jogando, utilizando as mídias sociais concomitante a outras atividades, como comer e tomar banho não é exclusivo desta geração, tampouco deste momento histórico. Esses medos são compartilhados à toda nova mídia, ou prática que ofereça um ponto de mudança histórica. A televisão recebeu – e recebe – tratamento semelhante, as telenovelas ainda são depreciadas como programa desprovido de valor, a internet foi considerada obra satânica, tendo o WWW relacionado ao 666 do livro do Apocalipse, por exemplo (como na obra, lançada em 2005, Revelation WWW. Is 666, de Sir Knight Daryl Breese), assim como o sistema operacional Android, acusado pelo pastor e rapper Juninho Lutero, em 2013 (AMARAL, 2013). Para ilustrar a incoerência de certos medos: ao mesmo tempo em que pais, responsáveis e professores se preocupavam com a exposição do jovem à tecnologia, como ir dormir com o celular na mão, um de seus argumentos para defender a superioridade do livro físico ao virtual era que o leitor não consegue levar o livro digital para ler na cama, como bem visto por Aarseth (1997, p. 16- 17). Questões como essa, apesar de prejudiciais ao bom proveito do que se oferece, podem ser ignoradas por grande parte da população, uma vez que não diz respeito a situações um tanto mais sérias, como riscos à saúde. Assim como havia médicos na época que atestavam o fato de a leitura silenciosa causar esterilidade, há profissionais da saúde que ainda atestam informações que já 62

foram provadas falsas, como o dito de que ficar jogando vídeo game por muito tempo prejudica a visão. Em 2012, Daphne Bavelier apresentou, no evento TED, os resultados de sua pesquisa, provando justamente o contrário: jogadores possuem uma visão melhor que a de não-jogadores. Outro ponto também desmentido pela pesquisadora é que jogos levam a problemas de atenção e alta capacidade de distração: jogadores possuem uma habilidade de resolução de problemas, de acompanhar objetos e atenção, maiores que não-jogadores. Ao dizer que os riscos não são exatamente como propagados, não estamos dizendo que vídeo games não apresentam risco algum. Todos se lembram do massacre de Suzano, em 13 de março de 2019, onde dois garotos assassinaram 10 pessoas em uma escola pública e deixaram mais 11 feridos. As roupas e armas utilizadas pelos dois lembravam os trajes e armas de um jogo de celular, chamado Garena Free Fire (2017) e isso despertou uma discussão sobre jogos violentos criarem pessoas violentas. Em 2004, Arne May e outros 5 pesquisadores observaram os efeitos na plasticidade do cérebro ao se aprender malabarismos, constatando que aprender algo novo e treiná-lo aumenta a massa cinzenta da pessoa. Nesse ponto, jogos treinam pessoas: jogos de ação (Assassin’s Creed, Fortnite, Garena Free Fire, A Lenda de Zelda, ) treinam a atenção espacial e coordenação mão-olho; jogos de quebra-cabeça (puzzle games) (Tomb Raider, The Bridge, Typoman) treinam o raciocínio lógico e tomada de decisões etc. Se os jogadores são treinados a se tornarem melhor em certa qualidade, podemos entender, também, que se uma pessoa apresenta certa pré-disposição à violência, os jogos o treinarão para uma “melhor violência”. É um tanto injusto culpar os jogos pela formação de algo já existente no indivíduo por diversas razões, como pressão social, ambiente de trabalho e/ou familiar tóxicos entre outros fatores. A “culpa” não estaria no jogo, mas no que criou essa pré-disposição no jogador. Se o fato de os garotos terem vestido roupas parecidas com as de um jogo significa que o universo do jogo foi o responsável por uma lavagem cerebral que os levou a isso, estamos nos esquecendo de um ponto fundamental: as pessoas jogam para fugir de sua própria realidade, para buscar soluções para seus problemas e para se satisfazer com as narrativas tanto quanto um leitor os busca em livros, e seria um absurdo dizermos que ao ler um livro ambientado na 63

segunda guerra mundial, uma pessoa sairia com uma arma matando alemães, japoneses e italianos. Não nos parece justo tomar dois pesos para a mesma medida. Adotando um dito de Gabe Zichermann, em 2011, se jogos tornassem as pessoas violentas, teríamos muito mais massacres como esse. Ao invés de incentivar a violência, o que se ouve dos jogadores é que jogam para desestressar, para conseguir passar por certa dificuldade pessoal ou profissional e manter sua sanidade. Parece-nos que o discurso dos jogos tornarem as pessoas violentas vem daqueles que não costumam ou nunca jogaram, perpetuando o ciclo de medo do novo. A única coisa que podemos ter certeza nessa história é que as mídias digitais não serão os últimos a sofrerem os preconceitos de seus predecessores, como posto por Pierre Lévy: “Parece contudo que o passado não é capaz de nos iluminar. O mesmo fenômeno pelo qual o cinema passou se reproduz hoje com as práticas sociais e artísticas baseadas nas técnicas contemporâneas” (LÉVY, 2010, 12), porém é sempre de bom gosto atentarmo-nos ao ponto de fricção. Os que se opõem ao digital não são os pobres, ou os desapoderados, são os que detém alguma forma de poder e privilégios e veem nessa nova prática qualquer tipo de ameaça (LÉVY, 2010, 13). De modo geral, esse medo costuma ser infundado. Precisaremos resgatar os conceitos de mídia e tecnologia para ilustrar o que estamos dizendo, então usemos uma explicação de Lisa Gitelman, apresentado por Jenkins (2009, p. 41): escolhamos a televisão como exemplo. Sozinha, ela é apenas uma tecnologia, mais especificamente uma tecnologia de distribuição de informação. Quando um grupo de pessoas aplica certos protocolos (nosso equivalente para práticas.) culturais a uma tecnologia, cria-se uma mídia, um meio de comunicação. A tecnologia em si é facilmente substituída: as primeiras televisões foram trocadas pelas “tubo” coloridas, depois pelas de tela plana, LCD, LED, plasma, o “tubo” deu lugar ao slim (tela fina), e há muitas pessoas já as substituindo por monitores. Apesar de a tecnologia ser alterada, os protocolos a ela associados não o são, mantendo a mídia e as práticas vivas ad eternum. A mídia televisão não substituiu a mídia rádio, nem o cinema; o cinema não substituiu o teatro; os 64

consoles e computadores não substituíram a televisão; os celulares não substituíram os livros e assim sucessivamente. Algumas práticas podem se tornar obsoletas e a partir daí haver certa migração ou adaptação: com a tinta e couro, a prática de esculpir escritos em pedra deixou de ser usado aos poucos, sendo a prática do esculpir adaptada a do escrever; com a mensagem de texto e voz instantânea e ligação por vídeo, a ligação telefônica via áudio está cada vez mais caindo em desuso.

As pessoas continuam falando-se após a escrita, mas de outra forma. As cartas de amor não impedem os amantes de se beijar. As pessoas que mais se comunicam via telefone são também aquelas que mais encontram outras pessoas. O desenvolvimento das comunidades virtuais acompanha, em geral, contatos e interações de todos os tipos. A imagem do indivíduo "isolado em frente à sua tela" é muito mais próxima do fantasma do que da pesquisa sociológica (LÉVY, 2010, 131, 132).

Parte desse medo vem da forma como a convergência se apresenta, levantando certa confusão quando, ao mesmo tempo que ouvimos o termo convergência, vemos uma divergência dos aparelhos. De fato, em 2002, Cheskin Research explicou em um relatório que “o que estamos vendo hoje é o hardware divergindo, enquanto o conteúdo converge” (JENKINS, 2009, p. 43). Como o mercado ainda está testando as funções cujas combinações são bem aceitas ou não, ao mesmo tempo que é lançado um celular que pode projetar sua tela, conecta-se à televisão e ao computador, toca músicas e vídeos em alta definição e tantas outras possibilidades, também é lançado um leitor cuja única função é a de ler Blu-ray, um autofalante que apenas se conecta a um celular, ou a um computador e assim por diante. Assim, parece que precisamos de vários aparelhos super especializados em certa função e precisamos de aparelhos multifuncionais, ao mesmo tempo (JENKINS, 2009, p. 43). Com a compreensão e separação desses dois conceitos chave da convergência (mídia e tecnologia), acreditamos que tenha sido possível apaziguar ao menos um pouco do medo e receio referente ao assunto principal desta pesquisa: como os jogos influenciaram as práticas de leitura literária das pessoas.

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O Labirinto Como já exposto anteriormente, não são todos os tipos de jogos que nos auxiliariam nesse objetivo. Embora estejam fora do alcance do termo literatura, é inegável a presença de elementos literários em certos tipos de jogos. Tetris (1984), Candy Crush Saga (2012) e Garena Free Fire (2017), por exemplo, pouco acrescentariam à nossa pesquisa justamente por não apresentarem uma narrativa ao longo de sua jogabilidade. Outros, como Horizon: Zero Dawn (2017), Marvel’s Spider-man (2018) e Mortal Kombat (2011), baseiam toda a sua jogabilidade no modo narrativo, ou a dividem em dois modos: uma versão chamada modo carreira (career mode), ou modo história (story mode) e o modo batalha, sendo possível que o jogador possa desafiar outros jogadores online e/ou offline (comumente chamado de partida local). São esses jogos que apresentam a jogabilidade parcial ou completamente associada à narrativa (modo história). A delimitação a esse tipo de jogo foi necessária por ser apenas possível investigar as práticas de leitura literária onde haja a presença da literatura e o único elo entre ela e jogos é, justamente, a narrativa. Eis a razão de um Capítulo inteiro dedicado às concepções de literatura, narrativa e seus elementos. Expostos os conceitos da crítica acerca de ambos os temas, e apresentando o desenvolvimento tanto delas quanto de seus encontros com o público – através de suas práticas de leitura – por meio das, e influenciando as mídias físicas e digitais, acreditamos termos enfim conseguido criar um ambiente onde seja possível conectar mídias por muito tempo tidas como conflitantes. Em 1997 o pesquisador norueguês Espen Aarseth, escreveu uma obra chamada Cybertext: perspective on Ergodic Literature, trazendo a público uma literatura a qual intitulou literatura Ergódica, presente apenas em cibertextos os quais exigem do leitor agência maior que o movimentar dos olhos e o trocar de páginas para se chegar ao fim do texto (AARSETH, 1997, p. 01-02). A narrativa ergódica funcionaria como um labirinto, e aqui encontramos um grande desafio interpretativo: a diferença entre labirinto e ambiguidade. A ambiguidade narrativa permite que o leitor tome escolhas que não afetam o decorrer da narrativa (AARSETH, 1997, p. 03). Com isso, poderíamos cair no falso caminho de que 66

uma narrativa como Dom Casmurro (1899) seria ambígua, porque o leitor poderia escolher ler ou pular as digressões do narrador, atendo-se à parte linear do texto, e a narrativa continuaria sendo a mesma. Para haver ambiguidade, é preciso que seja dado ao leitor a decisão de seguir um caminho A, ou B e, independentemente de sua escolha, o que se segue não se altera de qualquer modo. Exemplo disso surge em jogos como Injustice 2 (2017) e Mortal Kombat 11 (2019), onde em determinado momento da narrativa, o jogador precisa escolher entre dois personagens para controlar e, se escolhido um ou outro, o decorrer da narrativa seguirá inalterada. No caso de Dom Casmurro, além de não haver uma oferta explícita de escolha, ignorar as reminiscências alteraria, pelo menos, a compreensão da narrativa, não nos permitindo fazer a comparação. O labirinto agiria exatamente com o oposto: estar em uma narrativa labiríntica significa receber escolhas que afetarão seu acesso aos próximos segmentos da história (AARSETH, 1997, p. 03). Se seguir a escolha A, os segmentos 1 e 4 se tornarão inacessíveis e o leitor só poderá chegar no segmento 2 mais tarde no decorrer da narrativa; se seguir pela escolha B, os segmentos 1 e 4 se tornam acessíveis, o segmento 2 pode ser acessado imediatamente, mas será impossível participar dos segmentos 3 e 7. Em Life is Strange (2015), por exemplo, o jogador é constantemente posto a decidir entre duas decisões que impactarão a narrativa de alguma forma: se escolher agir da forma X, é possível desvendar o mistério 1 e salvar certa personagem, mas perde o apoio que receberia de outra personagem em um momento decisivo ulterior; se da forma Y, você recebe o apoio quando necessário, mas a outra personagem morrerá. Ao contrário da ambiguidade, o labirinto cria uma impossibilidade (AARSETH, 1997, p. 03). Por ser este um ponto tão quisto à narrativa ergódica, detenhamo-nos um momento mais em seu conceito: “Eu me refiro à ideia de um texto narrativo como um labirinto, um jogo, ou um mundo imaginário no qual o leitor possa explorar à vontade, se perder, encontrar caminhos secretos, passear, seguir as regras e assim por diante” (AARSETH, 1997, p. 03-04). E em se tratando de labirintos, há alguns modelos que precisamos abordar, visto que nem todo tipo se aplica a esta narrativa. 67

O uso do labirinto como metáfora a mensagens polissêmicas – daí sua confusão com ambiguidade – pode ser encontrado há milênios nas mais diversas formas de arte, como pintura, arquitetura, peças e textos literários (DOOB, 1992). Diversos nomes da crítica literária e de outras artes, como Penelope Reed Doob (1992), Umberto Eco (1983) e Gustave R. Hocke (1974), já direcionaram seus estudos sobre o tema e, hoje, encontramos três tipos de labirinto: o labirinto unicursal, o multicursal e a rede (net). O labirinto unicursal está presente na cultura ocidental desde os Egípcios (HOCKE, 1974): trata-se de um caminho único, sem ramificações, que se dobra sobre si mesmo, tendo apenas um ponto de entrada, e um ponto de saída e seu caminho é contínuo, de modo que o que definirá o sucesso ou não de quem se aventura por ele é sua determinação, não suas escolhas, lógica ou intuição (DOOB, 1990, p. 48). Apesar de termos sempre uma definição de que a diferença entre o labirinto multicursal e o unicursal é que aquele apresenta uma série de escolhas, enquanto este, nenhuma, Doob reflete sobre o fato de que o unicursal exige, ao menos uma escolha: a de decidir entrar ou não (DOOB, 1990, p. 51).

Figura 02: Exemplo de labirinto unicursal. Fonte: CAVACA, J. C.

Exemplo de labirinto unicursal na literatura é o caminho percorrido por Samwise Gamgee, da obra O Senhor dos Anéis (1954 – 1955), pois a única escolha dele foi a de aceitar seguir ou não Frodo Bolseiro, estando fadado às consequências do que virá a seguir a partir das escolhas que o portador do Um Anel tomar, não mais as próprias. Em jogos narrativos digitais, o modo unicursal costuma surgir em seu tutorial, guiando o jogador e ensinando-o o mecanismo que será utilizado no decorrer da narrativa e, após essa etapa, são liberadas ao jogador as escolhas típicas de um cibertexto. Dust: An Elysian Tail (2012) 68

apresenta um exemplo de labirinto unicursal durante os tutoriais, ensinando ao jogador como pular, andar, atacar, desviar etc. Talvez o modelo mais conhecido de labirinto nos dias de hoje, o labirinto multicursal também já era discutido por gregos e romanos (DOOB, 1992), porém sua representação imagética surgiu apenas na Renascença (ECO, 1983). Assim como o unicursal, o labirinto multicursal possui uma entrada e uma saída, mas diferentemente do primeiro, este carrega várias ramificações a partir do caminho original, algumas levando a becos sem saída, outras retornando ao caminho principal em algum momento. Sua essência é a confusão, de tal forma que, até que se alcance o centro ou fim do labirinto, não se sabe se eles de fato existem ou mesmo se as escolhas tomadas foram as corretas (DOOB, 1990, p. 46). Dessa forma, enquanto no labirinto unicursal o destino de quem caminha depende do arquiteto (quem constrói o labirinto), no multicursal, o caminhante é o dono do próprio destino (DOOB, 1990, p. 48).

Esse paradigma labiríntico é claramente análogo a outras imagens associadas ao labirinto na literatura: as encruzilhadas, a floresta, o deserto, o oceano, um padrão entrelaçado, uma série de cavernas. [...] Processos análogos também incluem coisas como missões cavaleirescas com aventuras opcionais, a composição ou exegese de um texto ou argumento e a tentativa de compreender inúmeros pedaços de informação de uma vez (DOOB, 1990, p. 48) (tradução nossa)40.

Figura 03: Exemplos de labirintos multicursais. Fonte: CAVACA, J. C.

40 No original: “This labyrinthine paradigm is clearly analogous to other images associated with the maze in literature: the crossroads, the forest, the desert, the ocean, an interlace pattern, a series of caves. [...] Analogous processes include such things as a chivalric quest with optional adventures, the composition or exegesis of a text or argument, and the attempt to make sense of too many pieces of data at once”. 69

Presente na literatura nos momentos equiparados aos que Genette (1998) intitula pausa descritiva, ou nas digressões de fim contextual, esse labirinto surge quando a narrativa toma certo rumo que a afasta de sua linha principal, estacionando-a um momento para dedicar certo tempo à expansão da visão do leitor acerca do ambiente em que as personagens estão, das personagens em si, ou do próprio universo da obra. Vemos isso em Musashi (1998), quando a narrativa se afasta do protagonista para nos mostrar o que está acontecendo com a odiosa Osugi e a apaixonada Otsu, para em seguida recuperar seu fôlego dando sequência à história principal. Também muito comum em jogos narrativos digitais, costuma se mostrar na forma de narrativas contendo missões paralelas (sidequests) à principal (main quest). Elas não são obrigatórias, cabendo ao jogador a decisão de fazê-las ou ignorá-las. Missões paralelas, corriqueiramente, não trazem informações sobre a missão principal, ou auxiliam no desenrolar da narrativa, mas costumam apresentar informações sobre o universo jogável, contextualizações de eventos não mostrados e sobre figuras importantes à narrativa, além de também servir como auxílio para que o personagem jogável possa subir em nível de força e vigor. A franquia Kingdom Hearts (2002 – 2020), o jogo Final Fantasy XV (2016) trazem esse modelo multicursal, com as diversas missões paralelas apresentadas desde o fim do tutorial, e em alguns casos, mais delas são postas ao terminarmos a narrativa principal pela primeira vez. O terceiro modelo de labirinto, um labirinto em rede, foi trazido por Umberto Eco (1983). Trata-se de um labirinto onde todos os pontos (ou nós, como utilizado por Hocke (1974)) são interligados de modo a permitir que a rede se expanda infinitamente, se necessário, não existindo um centro, ou um exterior, podendo o leitor trafegar pela narrativa em qualquer direção fluidamente (ECO, 1983). Na literatura – lembrando que estamos tratando da estrutura narrativa –, talvez o que mais se aproxime dessa qualidade seja a obra Composition No. 1 (1962), de Marc Saporta. Composta de 150 páginas avulsas, a narrativa foi criada de forma que as páginas pudessem ser embaralhadas e combinadas em qualquer ordem e manter sua fluidez. Entre os jogos digitais, o labirinto em rede quase se torna real nos jogos online de jogadores massivos (MMORPG), como Perfect World (2005). Neles, 70

jogadores com certa experiência de jogo convivem no mundo com jogadores iniciantes, podem seguir a história principal, fazer ou ignorar as missões paralelas, ajudar os jogadores mais novos em missões que estes tenham a completar – refazendo-as no processo. Dessa forma, um jogador pode ir e vir pela narrativa quantas vezes quiser, se desejar, e na ordem que lhe for mais conveniente, mas ainda carrega noções claras de início e fim de narrativa, impedindo-os de serem realmente representantes de um labirinto em rede. A questão de poder voltar em uma narrativa pode levantar desconfiança, já que é possível voltar a qualquer parte da narrativa em um texto escrito. É possível, mas não orgânico. Retroceder a narrativa, nesses casos, torna-se algo não-natural. É preciso quebrar a dinâmica da leitura para poder voltar a certo momento da história e isso, ao invés de um labirinto, é andar para trás. Trouxemos esse terceiro modelo de labirinto apenas a título de informação, pois sua característica fundamental de que todos os pontos estão conectados retira o caráter de inacessibilidade do labirinto, que nos é estrutural nessa análise. Com base nos modelos desses três labirintos apresentados e nas narrativas de diversas obras, é possível identificar um quarto tipo de labirinto: enquanto o uni e multicursais possuem um ponto de origem e um ponto de término, este apresenta diversos finais para a mesma origem – a título de identificação, iremos nos referir a ele por labirinto multifinal. Apesar de alguns autores incluírem-no nos multicursais, acreditamos ser de melhor proveito sua separação, pois os caminhos secundários do labirinto multicursal, eventualmente, levam quem o percorre de volta à narrativa principal; em um labirinto multifinal, não. A escolha tomada pela personagem cria um trajeto narrativo completamente novo com seu próprio final e que nunca mais voltará ao primeiro caminho, a não ser que se recomece a narrativa do início (ou do ponto de cisão).

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Figura 04: Exemplos de labirintos multifinais. Fonte: CAVACA, J. C.

No universo literário, encontramo-lo quando certa personagem se percebe em um momento no qual deve tomar explicitamente uma decisão que alterará certo segmento da obra, como quando Harry Potter muda seu destino ao pedir que o Chapéu Seletor não o coloque na Sonserina, sendo encaminhado, então, para a Grifinória, em Harry Potter e a Pedra Filosofal (1997). Jogos de ação e consequência carregam essa característica central. Com vários finais possíveis, cada escolha que a personagem toma a leva a um determinado encerramento, impossibilitando a experiência de outros caminhos e finais em um mesmo percurso, sendo necessário percorrê-los mais uma ou tantas vezes para que seja possível “ler” a obra completa. Nier: Automata (2017), por exemplo, é um JRPG (RPG japonês) de ação com 26 finais – um para cada letra do alfabeto – sendo cinco possíveis de serem vistos apenas ao se completar a narrativa cinco vezes, ora com a androide protagonista 2B, ora com o androide 9S, ora com a androide A2 e as demais de acordo com certas ações tomadas durante a narrativa, como, por exemplo, ativar sua autodestruição dentro da central de operações androide no espaço, não atender a certo chamado de emergência, ou retirar o próprio sistema operacional. Parecido, em certa medida, com a obra aberta, de Umberto Eco (1991), um labirinto precisa de pontas soltas, espaços vazios e/ou mistérios a serem resolvidos para que o leitor/jogador só consiga “terminar” uma narrativa se percorrê-la de novo (e de novo, e de novo...). É precisamente desses vazios que 72

os fãs se apropriam para desenvolver suas próprias versões dos fatos, chamadas de fan fiction (ficção de fãs), às quais abordaremos em breve. O encontro de um leitor com esses dois tipos de leitura (texto linear e cibertexto labiríntico) criam tipos muito diferentes de leitor. O leitor de um texto linear:

Independentemente do quão engajado estiver no desenrolar da narrativa, não carrega em si poder algum. Como o espectador de um jogo de futebol, pode especular, conjecturar, extrapolar e até gritar a plenos pulmões, mas não é um jogador. Como um passageiro de um trem, pode estudar e interpretar as mudanças de cenário, pode descansar os olhos quando achar melhor, até puxar o freio de emergência e sair, mas não é livre para mover os trilhos em uma direção diferente. Ele não pode ter o prazer da influência de um jogador: “vejamos o que acontece se eu fizer isso”. O prazer de um leitor é o prazer de um voyeur. Seguro, mas impotente. (AARSETH, 1983, p.04) (tradução nossa)41.

Enquanto o leitor de cibertextos labirínticos:

Não está seguro e, assim, sendo passível de discussão, não é um leitor. O cibertexto põe o pretenso leitor em risco: o risco da rejeição. O esforço e energia exigidos de seus leitores pelo cibertexto elevam as chances de interpretação às da intervenção. Um cibertexto é um investimento de improvisação pessoal que pode resultar em intimidade ou falha. As tensões vigentes em um cibertexto (...) são também algo a mais: uma luta não somente por compreensão interpretativa, mas também por controle narrativo. [...] O leitor de cibertexto é um jogador, um vicário; o cibertexto é um jogo-mundo ou mundo-jogo; é possível explorar, se perder, e descobrir passagens secretas nesses textos, não metaforicamente, mas pela estrutura topológica do maquinário textual. (AARSETH, 1983, p.04) (tradução nossa)42.

41 No original: “A reader, however strongly engaged in the unfolding of a narrative, is powerless. Like a spectator at a soccer game, he may speculate, conjecture, extrapolate, even shout abuse, but he is not a player. Like a passenger on a train, he can study and interpret the shifting landscape, he may rest his eyes wherever he pleases, even release the emergency brake and step off, but he is not free to move the tracks in a different direction. He cannot have the player's pleasure of influence: ‘Let's see what happens when I do this.’ The reader's pleasure is the pleasure of the voyeur. Safe, but impotent.” 42 No original: “is not safe, and therefore, it can be argued, she is not a reader. The cybertext puts its would-be reader at risk: the risk of rejection. The effort and energy demanded by the cybertext of its reader raise the stakes of interpretation to those of intervention. Trying to know a cybertext is an investment of personal improvisation that can result in either intimacy or failure. The tensions at work in a cybertext, while not incompatible with those of narrative desire, are also something more: a struggle not merely for interpretative insight but also for narrative control. [...] The cybertext reader is a player, a gambler; the cybertext is a game-world or world- game; it is possible to explore, get lost, and discover secret paths in these texts, not metaphorically, but through the topological structures of the textual machinery.” 73

Sendo tais encontros entre leitor e obra distintos, também o são seus modos de fruição das obras, as quais denominaremos releitura e rejogabilidade. Adotaremos esses nomes por nos faltar termos melhores para a relação entre literatura e jogo. Apesar de estruturalmente próximos, esses dois modos são fundamentalmente diferentes. A releitura, até certo ponto, pode equivaler ao labirinto unicursal (convém precisar que o termo “releitura” está sendo utilizado como ler novamente, apenas, e não como compreensão de adaptação, ou reformulação estrutural de uma obra). Nesse tipo de labirinto, como o da Catedral de Chartres, por termos um único caminho a percorrer, impossibilitando que fiquemos perdidos em seu meio, o caminho se dispõe na íntegra para que o viajemos quantas vezes quisermos sem que sejam estruturalmente acrescidas novas informações/nós/bifurcações, cabendo apenas à interpretação e atenção o tecer de detalhes e informações não percebidas na(s) leitura(s) anterior(es). A releitura estaria situada dentro da rejogabilidade, como parte de sua experiência. A rejogabilidade traz, também, outras formas de fruição, não apenas interpretativas, mas estruturais na narrativa da obra. Tornou-se comum em jogos de aventura e RPG (Role Playing Game) a disponibilização de novos conteúdos após a história principal ser completada, como novos níveis de desafio, novas missões secundárias, novos itens e regiões exploráveis, novos personagens com os quais interagir, ou ainda novos modos de jogabilidade e dificuldade com o chamado “New Game +” (modo de jogo disponível ao se completar a narrativa principal, normalmente apresentando desafios maiores que o normal). Em Nier: Automata (2017), por exemplo, ao se terminar a narrativa principal pela primeira vez com a androide 2B, abre-se a possibilidade de rejogar a campanha sob o olhar de seu parceiro 9S. Percorridos ambos os caminhos, descobrimos que esse não era o fim da narrativa, mas metade dela, abrindo-nos a possibilidade de continuarmos a percorre-la com o androide 9S, ou assumirmos o papel da androide A2. Ao escolhermos um, será preciso rejogarmos certos pontos da história para que possamos compreender o que se passa com o outro personagem. Assim, na rejogabilidade, mesmo que um cibertexto comece unicursal, em algum ponto da narrativa se desenvolve a multicursal, ou à rede, trazendo novas possibilidades e visões da narrativa. 74

Em outras palavras, a rejogabilidade traz informações e desafios novos, sendo eles não disponíveis no primeiro percurso da narrativa. Para a releitura, por sua vez, todas as informações e desafios precisam já estar disponíveis desde o primeiro percurso, nada sendo adicionado aos seguintes. Apesar de a releitura fazer parte da rejogabilidade, ambos não dividem as mesmas razões de atuação. O ato de reler algo na tentativa de compreender o que não lhe fez sentido em um primeiro percurso parece-nos comum a muitos leitores – se não a todos. Nada muda no enunciado do primeiro e do décimo percurso além da atenção e discernimento do próprio leitor. Às vezes, as figuras de linguagem (comuns em poemas e músicas) tornam o enunciado obscuro a muitos leitores em um primeiro percurso, tendo de relê-los para compreender ao menos parte do que está sendo dito. Em outros casos, as figuras de linguagem passam despercebidas por muitos corações, adicionando profundidade, intensidade e significado em novos percursos, quando relido – adiciona novos significados aos significantes já apresentados anteriormente, apenas. Buscar a remontagem de sensações, memórias e emoções vividas no primeiro percurso, numa espécie de nostalgia, faz dos seguintes um processo de releitura, uma vez que o enunciado se mantém estruturalmente inalterado. Muitas vezes, porém, a nostalgia não é suficiente para que os leitores percorram uma narrativa pela segunda vez. Por essa razão, quando se tem novos desafios, como o desbloqueio de uma dificuldade maior do jogo, com novas missões paralelas para explorar mais o cenário ou evoluir ainda mais a personagem jogável, além da capacidade de recomeçar a narrativa com todas as características e acessórios conseguidos no primeiro percurso, por exemplo, têm-se um novo motivo para a rejogabilidade. Muitas obras deixam migalhas de referências e homenagens a outras obras, fatos e autores, espalhadas pela narrativa. Essas referências recebem o nome, na cibercultura, de easter eggs. Algumas – ou muitas – dessas referências que passam despercebidas por leitores desatentos podem ser razão para que eles releiam e tentem encontrá-las. Tentar descobrir “o que teria acontecido, se eu tivesse feito tal coisa?” é outra das razões para se percorrer novamente uma narrativa. Pelo fato de que novas informações virão a partir das novas escolhas tomadas (como novas 75

cinemáticas (cutscenes), missões, narrativas ou finais alternativos), estamos diante de uma rejogabilidade, e não releitura. Alguns grupos de leitores precisam finalizar uma narrativa com todas as opções dispostas por ela completadas. Muitos cibertextos trazem um sistema de conquistas e desbloqueios de habilidades e melhorias de personagem ao se completar certos desafios, como conseguir reunir todos os monstros disponíveis, todos os materiais de criação, todos os dados de personagens espalhados pelo cenário e pela narrativa etc. Para incentivá-los a rejogar, são adicionados novos itens, personagens, e/ou eventos após o término do primeiro percurso, normalmente no modo new game +. Há um motivo, porém, referente a ambos os modos de fruição: alguns grupos de leitores focam na narrativa principal durante o primeiro percurso, ignorando as narrativas paralelas, e buscando-as nas leituras seguintes para resolver assuntos pendentes. Nesse caso, tem-se uma releitura quando as narrativas secundárias já se encontram todas presente na principal, e a decisão de ignorá-las não traz qualquer alteração a ela. Uma vez que elas apresentem mudanças à narrativa principal, tem-se a rejogabilidade: Se ignorarmos resgatar todas as Valquírias, ajudar os fantasmas, fechar todos os portais, e todas as outras missões secundárias em God of War (2018), e resolvermos jogar uma segunda vez, realizando todas elas, perceberemos que os acontecimentos da missão principal seguem inalterados, sem nem ao menos uma menção ao que fora, ou não, feito. Diferente de Final Fantasy Remake VII Remake (2020), o qual nos dá segmentos de histórias diferentes de acordo com o esforço da personagem em certos momentos chave. Assim, se realizarmos certas missões secundárias, conseguimos uma cena de interação com uma personagem durante a campanha principal, se realizarmos outras, conseguimos uma cena com outra personagem, se nenhuma missão secundária for feita, temos a cena com uma terceira personagem, cada uma delas trazendo um conteúdo diferente. Não existe rejogabilidade sem releitura, mas o contrário não é verdadeiro. Um texto, por exemplo, será sempre releitura, podendo ele ser ambíguo, ou não, linear ou não. Ambos os conceitos não são contraditórios, tampouco sinônimos. 76

Apesar de compartilharem certas práticas, suas diferenças substanciais nos chamam a atenção para não as usar levianamente. Tomemos O Jogo da Amarelinha (1963), de Julio Cortázar (1914 – 1984), como exemplo. Antes de começar a narrativa, somos postos a uma escolha: temos a possibilidade de ler a obra de duas formas: 01) Sequencialmente, do capítulo 01, ao 02, ao 03, ao 04 e assim sucessivamente, ou 02) Começar pelo capítulo 73 e seguir os comandos dados ao fim de cada capítulo para onde devemos seguir. Se escolhermos a trajetória 01, a narrativa se encerra no capítulo 56, deixando 99 capítulos esquecidos. Se optarmos pelo caminho 02, passaremos por todos os capítulos do livro costurando entre eles conforme nos for mandado. Apesar de podermos seguir a primeira trajetória e depois voltarmos ao início e seguirmos a segunda, adquirindo mais informações acerca das personagens e do contexto da narrativa, todas as informações que conseguirmos pela trajetória 02 já estava presente da primeira vez, fomos nós que as ignoramos. Por não termos capítulos novos adicionados à obra ao terminarmos de percorrê-la pela primeira vez, estamos realizando uma releitura. Talvez agora tenhamos condições suficientes para adentrarmos o último marco necessário para que possamos compreender os leitores transmídia: os jogos. Como já alertado, iremos nos deter em sua estrutura narrativa. Em certos momentos, será necessário analisarmos certas tecnicidades dessa mídia, mas o foco de estabelecermos uma base para que entendamos as mudanças nas práticas de leitura será sempre mantido.

A literariedade dos jogos A começar por uma definição minimamente compreensível – e crua – do que seria um jogo. Um jogo poderia ser definido como uma atividade que vise o divertimento, onde o agente (jogador) participa ativamente através de escolhas e ações e, sem o dito agente, a atividade não poderá ser concluída (eufórica ou disforicamente). Claro que essa definição, abrangente como é, abarca muito mais do que desejamos carregar, uma vez que esportes (basquete, vôlei, tênis de mesa) e jogos analógicos (xadrez, ludo, dominó) se apresentam à 77

denominação. O que buscamos, então, são jogos que se passem no universo digital e que apresentem conteúdo artístico (palavras, sons e imagens) de maneira diferente de seus predecessores (AARSETH, 2003, p. 01,02): Texto não apresenta áudio e filme não carrega texto. Quando ambos estão presentes, nenhum apresenta opção de escolha ao leitor (em relação à história, como um jogador). Tentaremos, aqui, demonstrar as marcas de literariedade presente nas narrativas dos jogos aos moldes da narratologia já apresentada no primeiro Capítulo, relacionando-a aos jogos narrativos digitais. Segundo Aarseth (2003), ao se analisar jogos, três grandes elementos devem ser levados em consideração: a jogabilidade (gameplay), como as possibilidades de ação do jogador e as estratégias possíveis de se tomar; a estrutura do jogo (game-structure), as regras nas quais o jogo ou simulação se monta; e o universo do jogo (game-world, ou lore), o conteúdo em si, como a história, o design e a topologia (AARSETH, 2003, p. 02). Cada combinação gera um modelo diferente de jogo, gerando, também, uma comunidade de jogadores: jogos cuja estrutura seja o de combate um contra um (1x1), cuja jogabilidade seja baseada em pular, abaixar, andar, defender e atacar, como Street Fighter (1987 – 2016), atrairá uma comunidade de jogadores de alta competitividade e afastará os que exploram o universo a fim de coletar tanto quanto o jogo possa ofertar; jogos estruturados na aventura de mundo aberto e jogabilidade condizentes (pular, correr, atacar, defender, abaixar, cozinhar, construir, arremessar, escalar etc.) atrairão com mais facilidade a comunidade exploradora e, quanto aos competidores, pode trazer um nicho intitulado speedrunners (jogadores que tentam terminar o modo história em tempo recorde). A estrutura do jogo se responsabiliza, também, pela construção do labirinto e já nos detivemos o suficiente nesse ponto, restando-nos abordar o universo do jogo, aproximando-nos dos formalistas russos por meio da narrativa43, e a jogabilidade, detendo-nos nos tipos de jogadores que certos

43 Esta aplicação se deu a partir das reflexões desenvolvidas por esta dissertação. 78

estilos desenvolvem, levando-nos naturalmente aos leitores transmídia e suas práticas de leitura literária.

A narratologia aplicada aos jogos O estranhamento de Chklovski (1917) – atuante na estrutura frasal e marca de literariedade – é transportado para a linguagem dos jogos de diversas formas: : Arkham Asylum (2009) nos apresenta um momento de estranhamento causado pela ilusão de mal funcionamento do jogo – a certa altura da narrativa, a personagem é infectada por uma toxina do medo, causando-lhe alucinações até que a imagem se enche de ruído e, de repente, congela por alguns segundos. A imagem fica congelada por tempo suficiente para que o jogador acredite que o jogo tenha “travado” e se prepare para reiniciá- lo – e muitos o fazem –, mas antes de fechar o jogo, de fato, ele volta a funcionar, mas voltando do início do jogo. Ao assistir à introdução novamente, são percebidas certas mudanças, como o Coringa estar dirigindo o Batmóvel, ao invés do Batman, a lua ter o sorriso do Espantalho e a Arlequina ser a médica do Asilo Arkham. Apenas nesse momento que o jogador percebe que tudo era parte do jogo e não havia nada de errado, permitindo que o jogador possa se aproximar da narrativa novamente – uma vez que fora forçado a se afastar dela. Enquanto ele busca o estranhamento atuando sobre a própria linguagem do jogo, outros tentam criar esse distanciamento por meio de quebra da quarta parede em falas do jogo, como em Batman: Arkham City (2011), sequência de Batman: Akham Asylum, onde temos a missão secundária de desvendar os enigmas do vilão Charada, espalhadas pelo mapa do jogo e, ao alcançarmos certa porcentagem de completude, ele diz “O quê? Você está quase acabando? Você está trapaceando? Buscando as respostas na internet? Diga-me!”44. Outros jogos buscam o meio termo utilizando-se de cinemáticas longas, variando de cinco a até mais de quinze minutos45, ou, assim como nos livros, pela linguagem escrita46.

44 Tradução nossa. No original: "What? You're nearly done? Are you cheating? Looking them up on the internet? Tell me!" 45 Kingdom Hearts, Final Fantasy VII Remake, God of War (2018). 46 Dust: An Elysian Tail, Child of Light (2014), Alan Wake (2010). 79

Em alguns jogos, existem dois tipos de unidades narrativas (aos moldes de Barthes (1972)): uma situada no eixo horizontal (sintagmático) do desenvolvimento narrativo e outra no eixo vertical (paradigmático). As unidades horizontais se apresentam como nos livros: cada núcleo narrativo liga-se a outros núcleos, criando a ilusão de sequência cronológica e sucessão ordenada de acontecimentos; as unidades verticais são típicas dos jogos: tratam-se de núcleos de ação (ou núcleos de habilidades), desbloqueadas ou “compradas” no decorrer da narrativa. Quando, em Marvel’s Spider-Man (2018), Peter Parker ajuda a polícia a prender Wilson Fisk, a reajustar os satélites, combater crimes locais etc, estamos no eixo horizontal da narrativa, lidando com núcleos narrativos; mas quando Peter adquire novas habilidades por meio de pontos de experiência gastos para desbloqueá-las (cada habilidade ligada a outras de um mesmo tipo mais poderosas), estamos no eixo vertical da narrativa, lidando com núcleos de ação, ou núcleos de habilidade, uma vez que estamos tratando da “evolução interna” – e extra narrativa – da personagem. Por enquanto, foquemos nos núcleos narrativos para melhor aproximação das duas mídias alvo. As cinco modalidades de Genette (1998) também se fazem presentes nos jogos: A primeira, a anacronia, torna-se visível quando deixamos de seguir o protagonista Peter Parker para podermos compreender como certa situação fora formada, tomando o controle de Miles Morales, ou Mary Jane Watson, em clara analepse; as prolepses das páginas do manuscrito perdido, em Alan Wake (2010), antecipando o que virá a acontecer em breve; a acronia do capítulo 5 de Life is Strange (2015), quando literalmente nos perdemos no tempo da história em um momento de aparente loucura. Quanto à duração, pode-se observar a pausa descritiva: a) quando, como em Dust: An Elysian Tail (2012), acessamos uma região nova (apresentando-nos novos cenários e desafios), uma breve cinemática é mostrada, exibindo parte das belezas e perigos que podemos encontrar ali; b) por meio de missões secundárias, como em Horizon Zero Dawn (2017), que mantêm a missão principal congelada para que possamos descobrir mais sobre o universo do jogo. 80

A descrição significativa de Genette (1972) está intimamente ligada à narrativa e mecânica dos jogos: Dark Souls 3 (2016) adiciona intensidade à sua narrativa de batalha conforme o chefe (ou “boss”, inimigo com maior desafio para se derrotar que os demais) se aproxima da derrota pela trilha sonora, que se torna mais agressiva, mostrando ao jogador que o mesmo acontecerá com o inimigo; audiojogos (audiogames) também usam o som para descrever ações e espaço: por terem sido desenvolvidos para pessoas com dificuldades visuais, o som é renderizado em 360º 3D (tecnologia apropriada, mais tarde, pelos jogos de realidade virtual) para que o jogador saiba se a voz, ruído ou ameaça está vindo da direita, da esquerda, de cima, de baixo, da frente, de trás, de perto ou de longe. Em Alan Wake (2010), encontramos a elipse quando o protagonista mergulha em um lago e acorda em um acidente de carro – ínterim do qual não possui memória alguma e supostamente conseguira escrever um manuscrito cujas páginas, proféticas, se perderam. Ainda no mesmo jogo, por ter sido desenvolvido em capítulos, cada um, a partir do segundo, carrega consigo um sumário do que acontecera anteriormente e em todos os jogos narrativos digitais podemos encontrar cenas que nos aproximam à isocronia, seja na forma de cinemáticas não canceláveis (fazendo com que o jogador precise necessariamente acompanhar o tempo da história), como em God of War (2018), ou nos diálogos não evitáveis, onde geralmente a velocidade com a qual o protagonista se movimenta é reduzida para que o diálogo possa ser exposto integralmente antes que possamos alcançar o destino pretendido (Final Fantasy VII Remake). Life is Strange (2015) nos apresenta um exemplo da frequência narrativa levantada por Genette (1998): ao descobrir possuir a habilidade de voltar no tempo, a protagonista tem a possibilidade de utilizar essa habilidade avidamente, ou o mínimo possível, de modo que cada iteração pode continuar como tal, ou tornar-se um trecho singulativo, sendo algumas escolhas rememoradas com o decorrer da narrativa. Watch Dogs (2014), por sua vez, apresenta o protagonista recordando diversas vezes um acidente trágico em seu passado. A distância entre o narrador e a narração, presente na quarta modalidade (modo), pode se mostrar sutilmente de forma mimética quando nos deparamos 81

com jogos em primeira pessoa, ou seja, quando experienciamos a narrativa pelos olhos do protagonista, como se o tivéssemos “possuído” (Bioshock (2007) e (2009)), com a ilusão de que são as protagonistas quem conta a história; pode se mostrar sutilmente de forma pura quando em um jogo em terceira pessoa, quando conseguimos observar a personagem que controlamos (Resident Evil 3: Nemesis (1999), Diablo II (2000)), com a ilusão de que alguém está contando a narrativa daquela protagonista; ou ainda explicitamente de forma pura, como em The Stanley Parable (2011), que apresenta a voz de um narrador que diz tudo o que a personagem deve fazer, o que ele pode estar pensando e também reage às suas decisões, gozando do protagonista quando não segue suas instruções, por exemplo. A alteração do modo narrativo composto pela perspectiva de nada tem a ver com a mudança de visão de um jogo: jogos em terceira pessoa podem apresentar um narrador onisciente (Kingdom Hearts (2002 – 2019)), um narrador que acompanha certa personagem (Tomb Raider (2013 – 2018)), ou um narrador em primeira pessoa (Life is Strange (2015)), enquanto jogos em primeira pessoa também podem apresentar um narrador onisciente (Borderlands 2 (2012)), um que acompanha certa personagem (Bioshock 2 (2010)), ou em primeira pessoa (The Vanishing of Ethan Carter (2014)). A focalização zero, onde o narrador acompanhante não adentra o psicológico da protagonista, deixando a seu próprio encargo a demonstração de seus sentimentos e pensamentos47, pode ser encontrada em uma escala muito maior que a focalização externa48 e a focalização interna, que pode se mostrar de forma notória49 ou sutil50.

47 3 (2018) e Second Son (2014). 48 Diablo 3 (2012), onde em momento algum é mencionado ou demonstrado quais os pensamentos ou emoções das protagonistas. 49 Como em Control (2019), o qual apresenta um narrador acompanhante que constantemente apresenta os pensamentos da protagonista, ou Amnesia: The Dark Descent (2010), onde a imagem começa a se movimentar como uma miragem e alucinações assolam a protagonista conforme seu medo cresce, ou ainda em Typoman (2015), que mostra o estado de espírito do protagonista através das próprias letras que compõem seu corpo. 50 Resident Evil Revelations 2 (2015), que demonstra o estado psicológico das protagonistas por meio da cor presente na tela do relógio que usam. 82

A voz, quinta modalidade narrativa proposta por Genette (1998), mais comum de se encontrar nos jogos narrativos digitais é a da narração simultânea, como em Injustice: Gods Among Us (2013), e comumente ela é intercalada com a narração ulterior, como as fitas VHS em Resident Evil 7: Biohazard (2017) ou, com jogos em capítulos, com a narração anterior, como em Resident Evil: Revelations 2 (2015), que ao fim de cada capítulo, nos apresenta cenas do próximo. Alguns jogos também podem adotar a narração intercalada para mostrar cenas que, de outro modo, não seria possível observarmos, como em Marvel’s Spider-Man (2018), que segue a narração simultânea até que precisamos assumir o papel de outra personagem, intercalando para a narração ulterior disfarçada de simultânea e retornando à simultânea. Beyond: Two Souls (2013) é um jogo que experimenta a aplicação dessas vozes: assim como Cortázar (1963), ela apresenta ao jogador a opção de jogar a narrativa em ordem cronológica ou na ordem planejada pelos desenvolvedores, esta sendo um vai e vem da história de vida da protagonista, de modo que a narração simultânea de certo trecho torna-se a narração ulterior de outro e anterior de ainda outro. Da mesma forma que a visão de um jogo (primeira ou terceira pessoa) não interfere na perspectiva adotada pela narração, tampouco o tipo de narrador se restringe a ela. Mortal Kombat 11 (2019) é um jogo em terceira pessoa de narrador heterodiegético, enquanto Life is Strange (2015) é um jogo em terceira pessoa de narrador autodiegético, e Batman: Arkham Knight (2015) é um jogo em terceira pessoa de narrador homodiegético; da mesma forma, Borderlands 3 é um jogo em primeira pessoa de narrador homodiegético; Fortnite (2017), em seu modo história “Salve o Mundo”, é um jogo em primeira pessoa de narrador autodiegético, e The Stanley Parable (2011) é um jogo em primeira pessoa de narrador heterodiegético. Jogos narrativos digitais com visão em terceira pessoa costumam apresentar uma narração extradiegética, como em The Legend of Zelda: Breath of the Wild (2017), e os em primeira pessoa, intradiegética, como Outlast (2013), mas nem de longe isso se torna regra: The Stanley Parable (2011) é um jogo em primeira pessoa de narração extradiegética, e Beyond: Two Souls (2013) tem visão em terceira pessoa e narração intradiegética e metadiegética. Marvel’s 83

Spider-Man (2018) também apresenta narração extradiegética e metadiegética, além de apresentar uma visão em terceira pessoa. Pode-se perceber que os jogos narrativos digitais apresentam todas as qualidades presentes em um texto literário, permitindo-nos criar uma ponte estável entre as duas mídias com certa tranquilidade. Devido à sua estrutura e elementos extrapolarem as condições disponíveis ao texto literário escrito, os jogos dispõem do que chamaremos aqui de intensificadores de leitura para atrair novos leitores-jogadores, como o chamado épico, flow, possibilidade de multiações simultâneas em uma mesma mídia e ações multimídias, múltiplas identidades e a ilusão de incorporação (embodiment).

Intensificadores de leitura Jesse Schell (2008, p. 37) afirma que “um jogo é uma atividade de resolução de problemas, abordado com uma atitude lúdica”51. Em todo jogo há um problema52 que precisa ser resolvido, e para isso há sempre um avatar53 disposto a fazer tudo o que for mandado pelo jogador. McGonigal (2010) e Yu-kai Chou (2010) denominam de chamado épico a motivação para resolução destes problemas, porque o jogador tem em mãos uma missão grandiosa a qual não se julgaria capaz de fazer na vida fora do jogo, mas ali isso é possível, e o jogador o faz por vontade própria, sem que alguém exterior à mídia o mande.

Uma vitória épica é um feito tão extraordinariamente positivo, que você não fazia ideia de que era possível até fazê-lo. Ele fica quase além das fronteiras da imaginação e, quando você chega lá, fica chocado ao descobrir do que realmente é capaz (MCGONIGAL, 2010) (Tradução nossa) 54.

51 Tradução nossa. No original: “A game is a problem-solving activity, approached with a playful attitude”. 52 O mundo precisa ser salvo (Assassin’s Creed (2007 – 2020)), alguém precisa ser salvo (Super Mário World (1990), respostas precisam ser encontradas (notpron (2004)), uma guerra precisa ser vencida (Call of Duty (2003 – 2019); Battlefield (2002 – 2018)). 53 Personagem digital controlado pelo jogador, tornando-se sua persona naquele universo. 54No original: “An epic win is an outcome that is so extraordinarily positive, you had no idea it was even possible until you achieved it. It was almost beyond the threshold of imagination, and when you get there, you're shocked to discover what you're truly capable of”. 84

O épico, nos jogos, traz sempre a ideia de algo grandioso, muito maior que o próprio jogador. Apesar de não ser algo exclusivo de um jogador específico, uma vez que outros também o podem realizar, o sentimento de unicidade dado nessas missões é o que as tornam épicas. Alguns jogos usam o épico coletivamente, como em Diablo III (2012), cuja história pode ser completada individualmente (single player), ou cooperativamente (multiplayer) em até quatro jogadores, mas cada vez mais, o épico não está sendo suficiente para muitos, que buscam o épico perfeito (flawless epic), ou seja, completar a história não é mais suficiente, todos os segredos do jogo precisam ser descobertos, todas as conquistas precisam ser alcançadas – feito denominado platinar um jogo – e todas as lutas precisam ser ganhas sem que o avatar do jogador receba danos. Encontramos, a partir disso, gameplays (vídeos em que as pessoas se gravam jogando) com desafios inusitados, geralmente sob o título de “É possível zerar X sem fazer Y?” ou “fazendo apenas Y?”, como “É possível vencer Ganondorf, em Zelda, Breath of the Wild usando apenas galinhas?” Por carregar consigo elementos literários, os jogos acabam por herdar não somente a estrutura de um texto literário, mas também suas funções. A função psicológica de Candido (2002) e a do escapismo de Tolkien (2008) aliam-se ao fato de que se uma pessoa quer escapar, por um momento, de uma situação, ideia, ou alguém, ela se torna mais receptiva à imersão em um ambiente qualquer que não a dela, impulsionando o que Coleridge (2004) designa de suspensão voluntária da descrença55, que consiste na ideia de que, para adentrarmos um mundo fictício, precisamos aceitar como possível e real tudo o que nos é coerentemente disposto na narrativa. Em se tratando de jogos – principalmente jogos narrativos digitais em realidade virtual –, gostaríamos de ir além e expandir a noção de descrença: o jogador chega a alcançar um nível tamanho de imersão que não apenas a descrença é suspensa na realidade da obra, o leitor-jogador desacredita da própria realidade enquanto “vive” a narrativa digital adotando-a como sua e precisando de alguns instantes para se “reajustar”

55 No original: “willing suspension of disbelief”. O termo foi citado pela primeira vez em 1817, na obra Biografia literária ou rascunhos biográficos de minha vida literária e opiniões. 85

ao mundo real com o fim da experiência. A esse viver, denominou-se storyliving (BECK, 2019), considerado o futuro do storytelling (ZONKER, 2016). Porém, é válido ressaltar que a imersão em jogos nos parece ser mais intensa e profunda que em livros. Apesar da suspensão da descrença, da função humanizadora e do escapismo, os leitores se apropriam do universo da obra, mas não das personagens, enquanto os jogadores se apropriam do protagonista e, a partir dele, do universo, referindo-se a si mesmos quando falam das ações do avatar. James Paul Gee (2007) afirma que quando estamos em um ambiente lúdico virtual56, existem três identidades que estão em jogo: a Real, a Virtual e a Projetada57. A identidade real é a da pessoa no mundo físico: Jonathan Cordeiro Cavaca, no caso do autor desta pesquisa, com seus desejos, habilidades, defeitos, problemas e orgulhos; a identidade virtual é a do avatar, da persona feita de dados gráficos em um mundo fictício, com desejos, habilidades, defeitos, problemas e orgulhos próprios58; a identidade projetada é a que constitui a imersão na leitura: é a habilidade do jogador projetar suas experiências e sua própria identidade para o avatar, e vice-versa (GEE, 2007, p. 54 - 55), exatamente como a função social de Candido (2002). É essa última característica que diferencia a interação de jogadores e leitores em maior grau. Jogadores falam de feitos em um jogo, ou dão conselhos em como se fazer algo neste universo, em primeira ou segunda pessoa, exemplos: “subi de nível”, “achei isso em tal lugar”, “você usa o item x assim” e “você precisa falar com tal personagem”, e não “o avatar faz tal coisa” ou “o personagem vai em tal lugar”. Essa projeção cria o que McGonigal (2010) intitula “otimismo urgente”59, que é “o desejo de agir imediatamente para superar um obstáculo, com a crença de termos uma chance razoável de sucesso” 60 (MCGONIGAL, 2010).

56 Essa ideia pode ser estendida para a leitura também. 57 Tradução nossa. No original: “Real Identity, Virtual Identity e Projective Identity”. 58 , protagonista de God of War (2005 – 2018); Sora, protagonista de Kingdom Hearts (2002 – 2019). 59 Tradução nossa. No original: “urgent optimism”. 60 Tradução nossa. No original: “Urgent optimism is the desire to act immediately to tackle an obstacle, combined with the belief that we have a reasonable hope of success”. 86

O otimismo urgente também pode ser ampliado à literatura, na medida que o leitor deseja a continuação da leitura para saber como certo personagem conseguirá superar algum obstáculo (não raras vezes, obstáculos que, de alguma forma, submete o leitor à sua própria condição), em um recurso de roteiro denominado “cliffhanger” (à beira do abismo) que consiste em terminar um capítulo, livro ou filme com uma situação de conflito, sendo resolvido, comumente, no capítulo/livro/filme seguinte. Acreditamos que o fato de nos jogos podermos controlar o personagem e customiza-lo a fim de ficar mais parecidos ao jogador, ou à sua visão do tipo de personagem, como em V: Skyrim (2011), impulsiona a imersão dos jogos a uma velocidade ainda maior, desenvolvendo ainda mais o otimismo urgente e, acentuando a diferença de interações entre o jogo e o livro, uma vez que o jogador é a personagem e, na literatura, os leitores acompanham a personagem. As conversas sobre livros são sempre em terceira pessoa: “o personagem aprendeu algo”, “ele usou um feitiço”, “ela venceu a luta”. E por não se tornarem os protagonistas, acabam se tornando modelos – bons ou maus – aos leitores. Milhares de milhões de crianças querem ser o Flash, a Mulher- Maravilha, o Homem-Aranha, mas só o são durante os jogos de imaginação, não durante a leitura; quando Cinquenta tons de cinza (2011) fez sucesso mundialmente, muitas pessoas desejavam ser a protagonista Anastasia Steele para poder ter seu próprio Christian Grey. Não é por acaso que as marcas crossmedia precisam investir na economia afetiva com mais força que as transmídia. As empresas investem no que os leitores podem ter para se apropriar da marca, podendo se vestir como a personagem, ter o que ela tem, ou ainda, como não é possível ser a personagem, ela pode tê-la para levar consigo aonde for. Porém, mesmo além da ideia de crossmedia e transmídia, vemos nos livros um espaço de exploração do mercado afetivo voltado ao ter para acompanhar, enquanto os jogos investem de forma mais massiva na emoção de viver um personagem e relembrar. Livros investem em camisetas, canecas, chaveiros, marca páginas, bottons, boxes com vários livros, cartazes, pôsteres; filmes e séries (incluindo animes) investem, além dos já mencionados acima, em bonecos de ação (action 87

figures), memes e DVD/blu-ray com versão estendida. Jogos trazem o passe de temporada (season pass) com conteúdos digitais extras61, e boxes de edição de colecionador62. Há alguns anos, os jogos começaram a lançar uma espécie de passe de meia temporada, onde o jogador recebe parte das DLCs, mas não todas: Injustice 2 (2017) lançou a versão Deluxe Edition, como meia temporada e a Ultimate Edition, com a completa; Terra-média: Sombras da Guerra (2017) lançou a versão Silver para meia e a Gold para inteira63. Por conta da apropriação presente nos jogos, ter um passe de temporada, um boneco de ação ou itens de personagens controláveis os faz lembrar dos momentos vividos como a protagonista. Nos livros, ter algo desperta lembranças de um momento de convívio com a personagem, de ter presenciado certo acontecimento. Com os livros baseados em jogos digitais, os jogos acabam se tornando tanto crossmedia (como no caso de Kingdom Hearts), quanto transmídia (como Tomb Raider: The Beginning (2013), que conta a história de como os tripulantes do navio Endurance se reuniram para a aventura do jogo Tomb Raider (2013)). Comumente, a literatura de jogos digitais apresenta certas características passíveis de se agrupar em três categorias criadas para o fim deste trabalho: novelização, expansão e criação.

O envolvimento dos fãs para com as narrativas A primeira categoria, com grande destaque comercial, é a Novelização: a transcrição do jogo em livro, como o que foi feito pelos jogos de Kingdom Hearts (2003), Assassin’s Creed (2009), God of War (2010) e Batman: Arkham Knight (2016), embora o último altere algumas cenas para melhor adaptação à

61 Conhecidos por DLC (downloadable content, ou seja, conteúdo para download), que contém desde personagens controláveis, e itens customizados a capítulos inteiros de mais história. 62 Contendo o jogo, o passe de temporada, um boneco de ação (action figure), ou busto de um personagem, pôsteres, trilha sonora, arte do jogo (artbook) e o que mais os desenvolvedores julgarem atrativo. Normalmente, costumam ser de unidades muito limitadas, na proporção de algumas centenas ou poucas milhares de unidades para uma comunidade de milhões de consumidores. 63 Essa tática foi tomada como uma forma de compensar o valor de um jogo, que se manteve o mesmo desde 2005: US$59.99 (para jogos AAA). 88

escrita, não alterou o enredo em si. Essa categoria determina o caráter crossmedia de alguns jogos, porque apesar de algumas alterações, o enredo não muda. A segunda categoria em destaque e também com forte presença comercial é o da Expansão: a adição de conteúdos significativos ao universo dos jogos: prelúdios, como o exemplo acima citado de Tomb Raider: The Beginning (2013); prequelas (pré-sequência) como em Hitman: A Condenação (2012), em que conta a história anterior ao jogo Hitman: Absolution (2012); sequências como Resident Evil: Caliban Cove (1998), que conta a história da enfermeira do Bravo Team, Rebecca Chambers, após o primeiro jogo da série (Resident Evil (1996)); artbooks como em The Legend of Zelda: Art & Artifacts (2017), o qual contém ilustrações de personagens, objetos, cenários e cenas dos jogos de The Legend of Zelda (1986 – 2019); e expansão de arquivos do próprio jogo (in-game) como em Diablo III: Book of Cain (2011), que reúne vários fragmentos de lendas e mitologia de Santuário – mundo onde se passa a série. Essa última categoria também inclui wikis (banco de dados virtual), fóruns de discussão e gameplays. Com exceção dos prelúdios, prequelas e sequências, a categoria expansão é quase que completamente criada com o esforço das comunidades virtuais e sua inteligência coletiva. Ligado intimamente a essa categoria está a da Criação, que abrange o trabalho feito por fãs, utilizando um universo já existente. Exemplo disso seriam as fanfics (abreviação de fan fictions: ficção feita por fãs com elementos de um universo fictício já existente), como em A audácia dessa mulher, de Ana Maria Machado (1999), que cria uma fanfic de Dom Casmurro, de Machado de Assis (1899), e como as do canal do YouTube AuthenticGames, de Marco Túlio (AuthenticGames - A batalha da torre (2016), AuthenticGames - A batalha contra Ender Dragon (2017)), cujas narrativas se passam dentro do universo de (2011); outro exemplo possível seria dos fãs de Assassin’s Creed II e Brotherhood, que queiram explorar o universo pelos olhos da irmã do protagonista – Claudia Auditore da Firenze, pouco explorada na narrativa – e comecem a escrever entradas de diários, ou contos mostrando o que ela fez, enquanto o jogo focava em Ezzio Auditore da Firenze; ainda outro exemplo seria 89

o de reescrever uma cena da história a qual o fã não tenha gostado, adaptando- a para a forma que mais lhe agradar. Cada categoria busca um público bem distinto entre si. A Novelização busca um público cujo investimento afetivo à marca o permite colecionar mídias, não se importando com conteúdo adquirido. Um público que busca ter para ser, ou seja, quanto mais itens da marca ele possui, maior fã pode ser considerado. A Expansão é direcionada ao público cujo investimento afetivo recai no acúmulo de informações. Pessoas que buscam alcançar todas as conquistas dos jogos (Platinadores) e mediadores/participantes de fóruns e wikis são o maior nicho alcançado. Já a categoria Criação é mais difícil de se encontrar comercialmente, por conta dos direitos autorais. Muitas empresas são contra a publicação de fanfics por medo de perderem o controle sobre sua propriedade intelectual (JENKINS, 2009). Porém, se tratarmos dessa categoria não apenas no quesito comercial, mas também no amador (não vendido comercialmente), temos um gênero de fãs escritores que buscam alcançar outros fãs escritores ou curiosos da marca. A economia afetiva, nesse gênero, cresce de acordo com a permissividade de apropriação do conteúdo pelos fãs. Talvez uma característica comum entre os leitores transmídia seja a inclinação pelo consumo do que Lessig (2008) intitulará remix e do que identificaremos por informações estrangeiras: dados e informações sobre a obra que não estão presentes na obra em si, como notícias relacionadas à obra em jornais, revistas, sites e entrevistas com o autor, que confirma ou declina teorias de fãs, ou esclarece dúvidas que tenham sido postas por fãs, acrescentando à narrativa conteúdo externo à obra. Em 2008, Lawrence Lessig lançou um estudo sobre o fenômeno de reapropriação, pelos fãs, de conteúdos protegidos por leis autorais, o qual denominou remix. Exemplo comum são as músicas remixadas de DJs, onde o artista modifica o ritmo de uma música já pronta e cria, assim, sua própria versão dela. Hoje, temos os memes, imagens estáticas ou dinâmicas de propriedades intelectuais protegidas por leis autorais tirado de seu contexto original, por fãs, e utilizado para demonstrar a reação das pessoas em diversas situações do dia a dia. A discussão sobre se o remix é uma apropriação válida (legal) ou não, não 90

é de nosso interesse nessa pesquisa, basta-nos para demonstrar uma lógica temporal que traz a leitura declamada e silenciosa aos jogos e dos jogos para um tipo específico de leitura. O uso do remix na literatura pode gerar o que entenderemos por literatura interativa: obras que carregam em si adaptações ao leitor transmídia, por fazer dele o protagonista e interagir diretamente com o mesmo, sem um intermediário (protagonista) outro que não o próprio leitor e/ou obras que tragam o jogo para dentro do livro. Os App Books, aplicativos para celular ou tablet contendo uma história gamificada, ou seja, uma história dentro de um jogo e um jogo dentro de uma história, trabalham bem essa ideia. Frankie for Kids (2012) é exemplo dessa categoria. Trata-se de um aplicativo criado pela desenvolvedora StoryMax para contar a história de Frankenstein ou o Prometeu Moderno (1818), obra de Mary Shelley (1797 – 1851), onde o leitor deve pressionar a tela do aparelho para acender/apagar luzes de velas e lanternas, deslizar o dedo pela tela para poder ver a cena por trás de uma fechadura, inclinar o aparelho para que o barco navegue, ou para que o monstro de Frankenstein ande64. Todas essas atitudes, enquanto o leitor lê a história que está escrita a ele na tela do aparelho. Maior uso do remix fazem as fanfics, em especial, os imagine. Esse braço do gênero tenta fazer com que o leitor se torne a protagonista da história, de forma que sempre que a protagonista apareça, o nome seja trocado por y/n (your name – “seu nome” (s/n), em português) ou s/o (significant other – uma pessoa que é importante para alguém, o namorado ou namorada) e haja o mínimo ou nenhuma descrição da mesma, de forma a abranger uma quantidade exponencialmente maior de leitores. Quando a narrativa é em terceira pessoa, os autores buscam uma espécie de narração em segunda pessoa, com o narrador dizendo o que o narratário está fazendo, tentando utilizar ao máximo a segunda pessoa (“você”, no Brasil). Não raras vezes, os imagines atendem a pedidos de leitores, ou seja, um leitor pede uma história sobre um personagem x fazendo y, o autor, então, cria uma história em que a personagem x fala, toca,

64 Para visualização do que está sendo dito, pode-se encontrar o trailer do livro aqui: https://www.youtube.com/watch?v=WAjdFaIumfE 91

mexe, olha etc diretamente com o narratário – “ele/ela passa a mão em seu rosto”, “Eu te amo, s/n”. Enquanto as fanfics são tentativas dos leitores de contribuir e participar da obra da qual são fãs, as informações estrangeiras são comumente buscadas para fins de pesquisa casual, como sanar dúvidas, ou compreender melhor informações que tenham ficado nebulosas. A inteligência coletiva cria, então, um processo de expansão de conteúdo canônico (conteúdo oficial e aceito pelos criadores), e a comunidade virtual de certo conteúdo recebe o nome de fandom (“Reino dos Fãs”), tendo cada narrativa seu próprio fandom. Usa-se, na pedagogia, o termo andaime (scaffolding) para o processo no qual a criança desenvolve novas habilidades a partir das que já dominam. Em se tratando de habilidades de escrita na cibercultura, a comunidade virtual como um todo assume parte da responsabilidade de ajudar os que estão começando

Muitos jovens autores começaram a redigir histórias sozinhos, como uma reação espontânea a uma cultura popular. Para esses jovens escritores, o próximo passo foi a descoberta da fan fiction na Internet, que forneceu modelos alternativos do que significava ser autor. No início, eles talvez apenas lessem as histórias, mas as comunidades fornecem muitos estímulos para que os leitores atravessem o último limiar para a redação e apresentação de suas próprias histórias. E depois que um fã apresenta uma história, o feedback que recebe o inspira a escrever mais e melhor (JENKINS, 2009, p. 251).

A apropriação dos fãs por meio do remix (ainda mais pelas fanfics) foi tão grande e explosiva, que

Com a consolidação do poder representada pelo Digital Millenium Copyright Act (Lei dos Direitos Autorais do Milênio Digital), de 1998, a lei de propriedade intelectual americana foi reescrita para refletir as exigências dos produtores dos meios de comunicação de massa. [...] Como Lawrence Lessig observa, a lei foi reescrita para que “ninguém possa fazer com a Corporação Disney o que Walt Disney fez com os Irmãos Grimm” (JENKINS, 2009, p. 194-195).

Ainda não há uma demarcação real sobre até onde uma homenagem pode ir. Muitas narrativas utilizam do Remix para homenagear outras narrativas por meio de easter eggs, evitando a possibilidade de receberem um processo de direitos autorais. Alguns fazem isso de forma discreta, como em Ghost of Tsushima (2020), onde encontramos uma mesa com alguns origamis 92

simbolizando diversos jogos, como 2 (2020), Ratchet & Clank (2016), Days Gone (2019) e Concrete Genie (2019). Outros são mais ousados e espalham dezenas de referências pelo jogo, como em Guacamelee! 2 (2018), que já em sua cena de abertura refaz o diálogo clássico de Castlevania Symphony of the Night (1997) 65 , além de apresentar dezenas de pôsteres relacionados a outros jogos e séries, como He-Man e os Defensores do Universo (1983 – 1985), Steven Universo (2013 – 2019), Sonic the Hedgehog (1991 – 2019), Super Mário (1985 – 2020), Garfield (1978 – atual) entre muitos outros. Ao mesmo tempo, muitas empresas 66 apertam o cinto quando seu conteúdo é apresentado em outros lugares, como em vídeos do YouTube, quando YouTubers fazem resenhas e utilizam trechos da obra para ilustrar o que é dito, ou quando colocam uma de suas músicas como trilha de fundo dos vídeos. Não é nada raro encontrarmos vídeos de descontentamento desses alvos, dizendo que a empresa denunciou seu conteúdo por violar os direitos autorais do produto. Apesar de já termos essa discussão há décadas, estamos longe de um acordo entre o que e onde se pode remixar um conteúdo e onde se desenha o limite da liberdade. Em 2010, o estúdio finlandês Remedy Entertainment desenvolveu Alan Wake, um jogo feito em episódios. Essa estrutura despertou a curiosidade dos fãs, aumentando o envolvimento destes com a marca em nível de expansão e criação. Os produtores usaram a técnica de capítulos de livros para dividir a narrativa de Alan Wake. São seis capítulos, todos terminados em um cliffhanger (terminar um capítulo com um conflito para resolvê-lo no capítulo seguinte) e uma música de fim de episódio, tal como séries de televisão, aumentando o otimismo urgente gerado ao jogador. Dois anos mais tarde, a produtora CAPCOM usou da mesma estratégia com o jogo Resident Evil: Revelations (2012), o qual foi dividido em 12 episódios.

65 No jogo original, Drácula diz a Richter Belmont: “What is a man? A miserable little pile of secrets. But enough talk… Have at you!”, e em Guacamelee! 2, o vilão diz: “What is a luchador? A miserable little pile of secrets. But enough talk! Have at you!”, e ao derrotar o vilão pela primeira vez, ele setransforma em um ser grotesco gigante, assim como Drácula, no original. 66 Warner Bros, Nintendo e empresas de animação japonesas são as mais conhecidas disso. 93

Também em 2012, a , desenvolvedora americana de jogos, utilizou a divisão de Alan Wake, no jogo The Walking Dead: Season One, sob o nome de episódios, não mais capítulos. Entretanto, ao invés de disponibilizá-los de uma vez ao público, os lançamentos dos episódios foram feitos entre abril e novembro daquele ano. Em intervalos de quase dois meses, os fãs aguardavam os próximos episódios do jogo como aos de uma série. Outra dinâmica resgatada por ele foi a de ação e consequências. Todo diálogo e interação abre uma caixa de opções com respostas pré-programadas (geralmente de três a quatro) e um cronômetro decrescente para que você faça sua escolha dentro daquele tempo e essas respostas afetariam diretamente a narrativa em algum ponto de algum episódio, mudando o curso da trajetória do storytelling. Ao menos era essa a ideia que a empresa vendia de seus jogos, mas, com o passar do tempo e dos jogos desenvolvidos pela Telltale Games, os jogadores perceberam que as escolhas eram ilusórias, uma vez que independente do que você escolhesse, chegaria a um determinado ponto inevitavelmente, quebrando a confiança dos jogadores em relação a marca, diminuindo sua economia afetiva – logo, seus clientes – e culminando na falência da empresa e seu fechamento em 2018. A partir de The Walking Dead: Season One (2012), diversos jogos passaram a usar essas duas táticas, dando destaque ao gênero telltale stories de jogo – jogos de ação e consequência divididos em episódios. A estratégia de ação e consequência é uma entre tantas presente nos jogos para aumentar a suspensão de descrença e imersão dos jogadores, para que possam se sentir “donos” da própria história. Essa imersão é fundamental para que a ilusão da incorporação (LØVLIE, 2005) do avatar seja alcançada ao ponto de o jogador poder dizer “eu fiz isso”, ou “isso aconteceu por minha culpa” etc. O jogo apresenta, também, o comando (input) e resposta (output). Em um jogo, há botões que o jogador precisa apertar para que o avatar possa fazer alguma coisa. Cada comando que o jogador dá, recebe uma resposta de seu avatar instantaneamente, assim, ao apertar um botão para que o avatar pule, ele pula; bater, bate; abaixar, abaixa etc. Isso faz com que, literalmente, o jogador salve a personagem inúmeras vezes e a guie pelo mundo, porém algo além acontece: a consciência de que o avatar não somos nós, em algum momento, 94

se desfaz, fazendo com que o jogador acredite que os dois compartilham o mesmo corpo e mente digitais. Essa ligação, antes única dos jogos e adaptada ao imagine, permite um processo catártico intenso, pois o jogador se sente responsável pelo resultado de uma ação do avatar. Usemos um momento icônico dos jogos de ação e consequência como exemplo: em Life is Strange (2015), temos a possibilidade de voltar no tempo quantas vezes quisermos e somos alertados de que o limite dos poderes de nosso avatar Max Caufield é o cenário em que se encontra, ou seja, no momento que resolvermos deixar o ambiente no qual fizemos certa escolha, não poderemos mais voltar ali. Tendo essa restrição em mente, somos permitidos explorar à vontade o ambiente no qual Max se encontra, xeretar no que quisermos e interagir com qualquer personagem disponível. A certa altura da narrativa, uma personagem está no topo de um prédio a ponto de se jogar e temos a possibilidade de conversar com ela. Se as decisões corretas foram tomadas até esse ponto, serão apresentadas opções de diálogo que podem salvá-la; se não, não lhe serão oferecidas certas opções de diálogo chave para que seja bem sucedida a tentativa, e a personagem acaba por se jogar. Pelo resultado dessa interação ser de exclusiva responsabilidade das ações que Max toma, e pelo jogador a estar controlando, pode-se encontrar espalhados pela internet relatos escritos e em vídeo, da reação dos jogadores ao desfecho dessa cena, desde o alívio por terem conseguido “salvar a amiga”, até declarações de momentos de depressão, em que jogadores acabam duvidando de sua própria condição em relação a amigos do mundo real, acreditando serem pessoas horríveis por “terem matado a personagem”. Os efeitos dessa ligação entre jogador e avatar pode ser observada no que aconteceu com um jogo chamado Undertale (2015). Não é estranho falar ou ouvir sobre as comunidades de fãs (ou fandom) de uma marca. Harry Potter (1997 – 2007) é uma marca literária com um dos maiores fandom literário do mundo, junto com narrativas famosas como Naruto (1997 – 2014), One Piece (1997 – atual) e Pokémon (1997 – atual). Em se tratando de jogos, temos Final Fantasy (1987 – atual), World of Warcraft (2004), League of Legends (2009), Overwatch (2016), entre outros. Todas essas comunidades giram em torno de marcas milionárias, que aplicam milhões de dólares em seus produtos. E em 95

meio a tantas obras monumentais, surge Undertale (2015), criado e desenvolvido por Toby Fox, que reuniu o dinheiro necessário por meio de financiamento coletivo, em 2013. A campanha durou um mês e arrecadou 1022,48% acima da meta original, em um total de 51.124 dólares (SUSZEK, 2013). Undertale conta a história de uma criança que cai em uma caverna e acorda em um lugar cheio de monstros, impedidos de retornar à superfície por uma barreira mágica criada por humanos. Neste mundo, há três “grandes” caminhos a se seguir: o pacifista, com a protagonista se tornando amiga dos monstros, não matando nenhum deles e libertando todos os monstros quando a barreira é destruída; o genocida, com a protagonista matando todos os monstros; e o neutro, com a protagonista matando alguns monstros. Cada caminho leva a uma narrativa completamente diferente da outra, não apenas o final, por exemplo: no pacifista, conforme avançamos na narrativa, encontramos cidades cheias de monstros que nos contam seus sonhos de subir à superfície, seus estudos sobre a história dos humanos, e seus medos; no genocida, as cidades estão vazias, abandonadas e em algumas casas encontramos bilhetes dos monstros nos pedindo misericórdia para não machucar sua família, além de encontrarmos certos chefes inexistentes no caminho pacifista. Ao todo combinação de escolhas permitida pela narrativa cria espaço para 93 finais. Porém, ao contrário de vários jogos com o mesmo modo de labirinto narrativo (multifinais), Undertale baseia sua força narrativa nas personalidades das personagens, pesando nelas a decisão do jogador de poupar ou matar, e assim criando personagens profundos e carismáticos, incluindo chefes de nível – o que traz uma diferença enorme à grande maioria dos jogos. Um modo adotado pela narrativa que amplia a ligação entre jogador e personagem é fazer com que em determinados momentos, certas personagens mencionam habilidades do jogador como se fossem do avatar, como a capacidade de salvar o jogo, recarregá-lo, ou tentar novamente uma luta após “renascer”. Alguns ainda contam quantas vezes eles já nos mataram. Durante o caminho neutro (se alguém for morto) ou genocida, vários momentos apresentam falas que mostram como as coisas que estão acontecendo são culpa nossa, enquanto olham para a tela – não para o avatar, mas para o jogador. 96

Mesmo ao fim do caminho pacifista, quando abrimos o jogo novamente para iniciar uma nova partida, somos recebidos com uma personagem que nos alerta que todos os personagens receberam o final mais feliz de todos e estão em paz, restando apenas um único perigo no mundo: nós. Ao começarmos uma nova partida, apagaremos a memória de todas as personagens que estão ali, então ela nos pede para que as deixemos felizes ali, já que ela mesma tinha essa habilidade e foi contra isso que lutamos durante todo o jogo. O impacto desse jogo foi tamanho que, oito dias após seu lançamento, um fã lançou uma fancomic (história em quadrinhos feita por fãs) chamada Dreemurr Reborn (2015), que começa no fim do caminho pacifista, com o protagonista entregando sua alma para um monstro que ficou para trás, de modo que ele possa subir à superfície e viver com sua família. Essa fancomic gerou inclusive sua própria versão de jogo, também feito por fãs, e o fogo se espalhou sem chance de contenção: animações foram feitas para cada luta contra chefes, algumas com ambas as versões genocida e pacifista; músicas foram criadas; influenciadores digitais de grande público se voltaram aos mistérios e análises do jogo; personagens figurantes ganharam narrativas expandindo suas histórias; todas as personagens ganharam novas histórias como expansão ou alterando sua forma original. Isso criou os Universos Alternativos de Undertale (AU, em inglês): o universo onde as personagens tomaram um rumo mais violento e malvado recebeu o nome de Underfell; Underswap para o que troca a personalidade das personagens; Horrortale abriga as versões mais horrendas de cada personagem; Dustale traz a versão de Sans (um dos monstros) viajando pelas linhas do tempo matando outros monstros para se tornar forte o suficiente para derrotar o humano de sua linha e terminar com o ciclo de assassinatos; Underlust traz um universo hiper sexualizado de Undertale, de conteúdo adulto. Apenas no YouTube, cada uma dessas categorias apresenta vídeos com 7 dígitos ou mais de visualização, com outros milhões de conteúdos espalhados pelo Tumblr, Pinterest, Instagram e DeviantArt. A comunidade tomou tal apropriação do conteúdo que os Universos Alternativos receberam Universos Alternativos, ou seja, fanfics foram criadas a partir de outras fanfics. Dessa forma, Da união de Underfell e Underswap surgiram Swapfell e Fellswap. Fellswap, por sua vez gerou várias outras versões, 97

como Fellswap Gold, Fellswap Emerald e Fellswap Red. Cada sub categoria apresentando dezenas ou centenas de milhares de seguidores. Existem centenas de Universos Alternativos espalhados pela internet. A maioria deles ainda ativos, crescendo, e com suas próprias versões de jogos, animações e músicas. Ainda mais impressionante foi a informação do banco de dados GameFaqs, 2 meses depois do lançamento do jogo: Undertale fora eleito melhor jogo de todos os tempos, competindo com jogos que definiram gêneros, como Final Fantasy VII e A Lenda de Zelda: Ocarina do tempo67 (WOLF, 2020)68. Essa incorporação dos jogadores não nos parece “obra do acaso”. Parece-nos que, cada vez mais, as gerações estão adquirindo consciência de seu poder de atuação global graças às mídias digitais. Os nascidos no final do da década de 1990 puderam crescer com a existência de redes sociais, como Fotolog, Flogão, Orkut, MySpace, MSN e Facebook, graças à Web 2.0. Essas redes, no início dos anos 2000 foram umas das responsáveis pela consciência da geração Y em diante de que se é possível conhecer pessoas do outro lado do mundo sem realmente ser preciso vê-las, e que tais amizades são tão reais quanto, ou mais ainda que nossa relação com um vizinho, inculcando neles um sentimento de solidariedade e empatia a nível global, diminuindo de pouco em pouco a ignorância em relação ao estrangeiro. Esse processo de empatia foi desenvolvido pelos nascidos no início dos anos 2000, que cresceram diante da existência do YouTube, em uma cultura da participação. Com o advento dessa rede, as pessoas foram percebendo que têm voz e há sempre quem os queira ouvir. É muito comum, por exemplo, youtubers pedirem indicações de temas a seus espectadores, escolher entre as ideias oferecidas e desenvolver um conteúdo acerca do tema69. Nesse momento no qual nos encontramos, podemos estar caminhando para um ponto em que o leitor e o espectador passarão a ter poder sobre o decorrer de uma narrativa, assim como o jogador. Em 2018, a série Black Mirror

67 A lista pode ser conferida aqui: https://gamefaqs.gamespot.com/features/bge20_vote. 68 A quem se interessar pelo que fora dito sobre Undertale, aconselho assistirem ao vídeo de Wolf, deixado nas referências, de onde retirei grande parte das informações apresentadas aqui. 69 Estratégia importada dos autores de imagine. 98

laçou um episódio chamado Bandersnatch, sob a descrição de ser um filme interativo, no qual o espectador escolheria o que certa personagem faria/diria em certos momentos e essas escolhas levariam a um determinado final. Em 2019, a PlayStation lançou um jogo chamado Erica, cuja narrativa se passa com atores reais, sem os avatares criados graficamente, e o papel do jogador é decidir o que a protagonista fará/dirá em diversos momentos, sendo que as escolhas levam a finais diferentes. Contando com os App Books, encontramos três mídias apresentando as mesmas estratégias: o leitor/espectador/jogador que interage com a narrativa por meio das ações das personagens que levam a finais diferentes (com exceção dos App Books, que levam ao mesmo final). De repente, nos deparamos com uma convergência de práticas narrativas, pois, hoje, o que faz com que Bandersnatch seja um filme e Erica seja um jogo é o local onde foram disponibilizados. Se aquele fosse lançado pela PlayStation e esse pela Netflix, poderíamos muito bem considerar Bandersnatch como um jogo e Erica um filme interativo. Portanto, o jogo pode estar deixando de se tornar a única mídia narrativa que o leitor se sente como parte da história e se empodera da própria voz.

O conhecimento no universo transmídia Por enquanto, pelo ponto da manipulação das ações das personagens ser majoritária nos jogos, pertencendo a eles os pontos de imersão que trouxemos até aqui, vários campos do conhecimento estão se aproveitando dessa interação e “empregando” jogadores na solução de problemas de nosso mundo, como a campanha Borderlands Science, apresentado como um minigame de Borderlands 3 (2019). Desenvolvido com a colaboração de McGill University, Massively Multiplayer Online Science, e The Microsetta Initiative, o intuito do Borderlands Science é o de reunir exemplos de estruturas DNA para que seja possível o mapeamento dos micróbios presentes no corpo humano (TALBOT, 2020). Iniciado em 7 de abril de 2020, as primeiras 12 horas ofereceram mais dados que um outro jogo chamado Phylo conseguiu reunir em dez anos (DNAPUZZLES, 2020). Um mês após seu lançamento, o jogo já havia conseguido reunir mais de 36 milhões de amostras de DNA (TALBOT, 2020). 99

Outro uso da comunidade virtual em prol do avanço científico foi realizado de maneira menos sutil por Firas Khatib, Miroslaw Gilski, Maciej Kazmierczyk e Szymon Krzywda, que criaram um jogo de modelagem 3D chamado Foldit, onde os jogadores tinham de modelar certas estruturas proteicas para criar um substituto molecular para a protease retroviral M-PMV. Esse problema que permanecera insolúvel por mais de uma década foi resolvido pela comunidade jogadora em três semanas. De repente, a ideia de Jane McGonigal de que, “para sobrevivermos o próximo século nesse planeta”, e “quisermos resolver problemas como fome, pobreza, mudança climática, conflito global e obesidade”, precisamos passar 21 billhões de horas semanais jogando jogos online até o fim da próxima década70 (MCGONIGAL, 2010) não parece tão absurda. Por mais empolgante que essas condições possam ser, Tiziana Terranova, em 2000, abre um alerta para a enorme possiblidade que a Web 2.0 abre para o trabalho gratuito (free labor): “trabalho gratuito é quando consumo consciente da cultura é traduzido em atividades produtivas prazerosamente adotadas e, ao mesmo tempo, normalmente exploradas sem pudor” 71 (TERRANOVA, 2000, p. 37), noção que gerou, como mostrado por Jenkins (2009) piadas como “você produz todo o conteúdo. Eles ficam com todo o lucro” (p. 242), mostrando que serão necessárias certas mudanças nas leis para que a exploração do trabalho virtual seja contida. Não sendo essa nossa preocupação nessa pesquisa, a deixaremos aqui a título de alerta, apenas. Apesar dos jogos apresentarem certa proximidade com relação às práticas geracionais, esse envolvimento que a narrativa precisa criar em seus desbravadores está presente em todas as mídias e é denominado por Csikszentmihalyi (2009) de Flow – um estado em que uma pessoa entra ao fazer uma atividade, quando esquece de fome, desconforto ou fadiga por estar focada

70 Tradução nossa. No original: “if we want to survive the next century on this planet (...) if we want to solve problems like hunger, poverty, climate change, global conflict, obesity, I believe that we need to aspire to play games online for at least 21 billion hours a week, by the end of the next decade”. 71 Tradução nossa. No original: “Free labor is the moment where this knowledgeable consumption of culture is translated into productive activities that are pleasurably embraced and at the same time often shamelessly exploited”. 100

no que faz. Para ele, o flow é “intrinsicamente motivado e autotélico”, desligado de qualquer finalidade, ou efeitos positivos que possam ser consequência da atividade (NAKAMURA; CSIKSZENTMIHALYI, 2009, p. 89)72. O estado de flow é um dos responsáveis pelos jogadores fazerem as coisas sem perceber que o fazem. Em Alan Wake, o protagonista de mesmo nome escreveu um livro, cujo conteúdo ganha vida, mas o autor não lembra de ter escrito tal documento e as páginas dessa obra estão espalhadas por Bright Falls, contendo informações que podem ser valiosas aos jogadores sobre os perigos que os esperam logo à frente. São 106 páginas espalhadas ao longo do jogo, sendo 91 nas dificuldades classificadas como fácil e normal e mais 15 na dificuldade pesadelo. Ao longo do jogo, os jogadores leem até cento e seis páginas “brincando de jogar”, isso sem contar placas e outros avisos in-game (dentro do jogo). Ainda em se tratando de leitura, se nos for permitidas as legendas como forma de leitura, encontramos números ainda maiores: cabe-nos lembrar que os jogos ocidentais de grande nome (os AAA, jogos que recebem grande orçamento e promoção) só trouxeram dublagem em português após 201073, e os japoneses não a trazem até hoje, o que significa que apresentarão legendas que precisarão ser lidas para o avanço e compreensão da narrativa, visto que a grande maioria dos jogadores não possuem nível de fluência suficiente em inglês, nem japonês, para acompanhar a narrativa sem o apoio de tradução escrita: Final Fantasy XV (2016) oferece mais de 5h40m de cutscenes74, ou seja, mais de cinco horas e quarenta minutos de leitura; Final Fantasy VII Remake (2020), mais de dez horas. Outros jogos que são apenas leitura, sem dublagem integral apresentam números similares: Pokémon Sun (2016) e Pokémon Moon (2016), por exemplo, trazem mais de oito horas de leitura, cada. Se contarmos jogos inteiramente em

72 Tradução nossa. No original: “when work on a painting was going well, the artist persisted single-mindedly, disregarding hunger, fatigue, and discomfort” e “phenomenon of intrinsically motivated, or autotelic […], quite apart from its end product or any extrinsic good that might result from the activity”. 73 Assassin’s Creed III (2012), Call of Duty: Black Ops III (2015), Rise of the Tomb Raider (2016) e God of War (2018). 74 Cenas em forma de pequenos filmes que podem variar de alguns segundos a mais de 15 minutos. 101

inglês, Kingdom Hearts 3 (2019) oferece mais de 10 horas de leitura; Nier: Automata (2017), mais de nove horas; Final Fantasy XII (2009 – 2013), mais de 23 horas, Persona 5 (2016), mais de 40 horas. Sem dúvida alguma que o nível de flow experienciado pelas pessoas está intimamente ligado à economia afetiva. Resgatando o dito sobre o youtuber Marco Túlio, do AuthenticGames, por exemplo, o influenciador digital e autor faz vídeos do jogo Minecraft, vendeu quase 250 mil (249.587) unidades de suas obras e, em 2017, teve dois de seus livros entre os 20 infanto-juvenis mais vendidos no Brasil, segundo a publishnews (2017): AuthenticGames - A batalha da torre (2016) e AuthenticGames - A batalha contra Ender Dragon (2017). O Brasil possui uma plataforma de auto publicação de fanfics e histórias originais chamada Spirit Fanfics e Histórias que, até fevereiro de 2018, possuía a média diária é de 1.600 novas histórias, 8.500 novos capítulos e 3.100 novos cadastros de usuários. No total, a plataforma continha mais de 774.038 histórias, 4.553.166 capítulos e 2.795.198 usuários cadastrados. Entre dezembro de 2015 e janeiro de 2016, obteve 11.377.354 visitas, sendo 1.819.063 visitantes únicos, 92.988.376 visualizações de página, com o tempo médio no site de 20m58s. Hoje, somando apenas as categorias com mais de mil histórias, ela carrega em seu banco de dados, mais de 1,2 milhão de títulos, sem contar os diversos capítulos dentro de cada um. Em outra plataforma, a Fanfics Brasil, podemos encontrar a participação dos leitores nas mais de 20 mil fanfics, muitas variando de algumas centenas a mais de cem mil comentários. Esses números nos trazem à memória um pensamento comum posto por Barbosa, Annibal e Boldarine (2010), de que:

Paralelamente ao discurso da promoção da leitura como que justificando sua urgência, está presente a crença de que a pessoa não lê, ou não lê o suficiente, ou não lê o que deveria ler. Alguns discursos implicam a ideia de que hoje se lê menos do que se lia em outros tempos e isso se deveria em parte às pedagogias anacrônicas (com destaque para todas as ações escolares que supõem a leitura obrigatória) e à competição que os meios eletrônicos teriam estabelecido com a leitura. Daí a insistência em propostas de novas pedagogias, mais alegres e dinâmicas, e a suposição de que se deva associar a leitura ao prazer (BARBOSA; ANNIBAL; BOLDARINE, 2010, p. 49).

102

“Associar a leitura ao prazer” nos parece o ponto crucial no cenário da leitura transmídia, mas nem de longe isso seria dizer que sua prática não exija esforço. Entendemos que a resistência dos leitores transmídia não é com o que se lê, mas com como é oferecida a leitura. Estamos à beira da leitura transmídia. Para adentrarmos suas especificidades, precisamos trazer um dos pontos sobre o qual Zichermann (2011) traz uma fala da terapeuta comportamental e cientista cognitiva Andrea Kuszewski sobre Inteligência Fluida (Fluid Intelligence), a inteligência que usamos para resolver problemas. Ela diz que as pessoas fazem cinco coisas para aumentar essa inteligência: 1) buscar coisas novas, 2) desafiar a si mesmo, 3) pensar criativamente, 4) fazer as coisas do jeito mais difícil e 5) criar uma rede de contatos75, e para Gabe (2011), essa inteligência começou a crescer significativamente mais rápido nos anos 90, por causa dos jogos. Um dos resultados dessa inteligência fluida é o que ele intitula de jogador multitarefas. Os jogos digitais dificilmente são monotarefa. Mesmo nos um tanto “mais simples” – pós 1990 –, o jogador precisa, pelo menos, ter atenção nas informações apresentadas na tela, como vida ou tempo (HUD), enquanto não perde de foco seu avatar. Em jogos online, como World of Warcraft, as pessoas devem conseguir conversar em voz e escrever para seus parceiros, operar a personagem, lidar com objetivos a curto prazo, lidar com objetivos a longo prazo e lidar com interrupções, como quando alguém chama no mundo real durante uma partida (ZICHERMANN, 2011, 4m00s). O jogador consegue lidar com todas essas tarefas sem quebrar o flow, por isso é importante destacar que ele não se relaciona a uma tarefa, mas a uma atividade. Todas as tarefas exigidas pelas atividades farão parte do flow e serão atendidas a contento, ou a atividade não poderá ser realizada. Por isso os jogadores fazem dez coisas simultaneamente durante um jogo, e transitam rapidamente entre mídias quando em uma mesma atividade: jogadores conseguem com frequência jogar, conversar sobre e durante o jogo, mandar mensagens referente a ele, conferir segredos do mesmo em wikis e/ou assistir a gameplays sem que seja perdido o foco da atividade. O mesmo não ocorre

75 No original: “seek novelty, challenge yourself, think creatively, do things the hard way and network”. 103

quando há o trânsito entre atividades, justificando, por exemplo o jogador conseguir fazer tudo aquilo, mas não conseguir dirigir enquanto mexe no celular. Acreditamos que essas práticas de jogar atuam diretamente nas práticas de leitura literária desses jogadores. Pelos leitores nascidos pós 2000 terem o jogo como a principal forma de entretenimento, eles cresceram acostumados a serem multitarefa, como diz Gabe Zichermann (2011), mas conjecturamos que além disso, eles cresceram acostumados a serem transmídia, aumentando cada vez mais as comunidades virtuais: O banco de dados do jogo online World of Warcraft, o World of Warcraft Wiki, possui mais de 106.000 páginas sobre o universo da franquia, e era visitado mensalmente por mais de cinco milhões de pessoas, em 2010; o banco de dados de perguntas recentes de jogos, a Gamefaqs, cobre mais de 200.000 jogos, com mais de 20 milhões de respostas, guias, trapaças e mensagens; o banco de dados Fandom carrega mais de 50 milhões de páginas, mais de 400 mil comunidades e mais de 200 milhões de visitantes mensais. Acreditamos que, por adquirir participação mais ativa dos leitores no meio literário, o remix permitido pelas fanfics e novelizações76 sejam as portas de entrada de muitos leitores transmídia a textos literários canônicos à academia, graças ao valor afetivo depositado nessas obras pelos leitores. As novelizações de Assassin’s Creed, God of War e Kingdom Hearts, por exemplo, renderam mais de três milhões de cópias vendidas no Brasil. Nos casos de leitura transmídia, a busca por informações adicionais canônicas, ou não-canônicas estaria diretamente relacionada ao investimento afetivo do leitor à uma marca. Essa busca pode se dar durante a leitura da obra original, anterior a ela, ou posterior. Alguns leitores, antes de ler Dom Casmurro, de Machado de Assis, podem preferir assistir à minissérie Capitu, apresentada pela Rede Globo em 2008, para começar a leitura do livro já imerso no universo da obra. Da mesma forma, poderiam buscar pelos jogos Terra-Média: Sombras de Mordor (2014) e Terra-média: Sombras da Guerra (2017) para, depois, começarem a ler O Senhor dos Anéis, de J. R. R. Tolkien (1954 - 1955). Outros

76 Adaptações de narrativas visuais, como jogos eletrônicos, filmes e séries para o formato escrito. 104

podem buscar por aplicações das teorias que leem em outras obras, como, durante a leitura de A Revolta de Atlas (1957) (anteriormente sob o título Quem é John Galt?), ou A Nascente (1943), da romancista e filósofa Ayn Rand (1905 – 1982), o leitor pode buscar pelo jogo Bioshock (2007). O leitor poderia, também, acompanhar a leitura de A Divina Comédia (1304 – 1321), de Dante Alighieri (1265 – 1321) com o jogo Dante’s Inferno (2010), e/ou com o filme Inferno de Dante: Uma Animação Épica (2010). Alguns, ainda, podem buscar por novos conteúdos após lerem uma obra pela primeira vez: após ler Alice no País das Maravilhas (1865) e Alice Através do Espelho e O Que Ela Encontrou Por Lá (1871), de Lewis Carroll (1832 – 1898), o leitor pode buscar pela versão dos jogos American McGee’s Alice (2000) e Alice: Madness Returns (2011) sobre o que aconteceu à Alice. Como caminho lógico a essa prática, entendemos que quanto mais transmídia um leitor é, mais difícil será de o encontrarmos com apenas um livro, ou leitor digital, em mãos, pela única razão de que um livro é um dispositivo monomídia, longe da ideia que se tem de que os jovens acham que ler livros não é interessante. Tendo crescido em uma realidade transmídia, um leitor transmídia dificilmente se sente confortável com atividades monomídia, como ler livros (ainda mais agravante quando livros físicos). Cientes da importância dessa atividade, o leitor transmídia tenta adaptar essa experiência com qualquer outro dispositivo que possa alcançar, e o mais próximo, normalmente, é o celular. A ideia de se procurar algo enquanto se faz outra atividade pode levar à falsa impressão de dispersão e desfoco. As várias ações com as quais um jogador multitarefas precisa lidar simultaneamente aumenta o tempo dedicado pelo jogador à obra, por envolvê-lo em mais de uma missão. Essa atividade dificilmente seria aplicada a um livro em mídia física, por isso os jogadores precisam de outras estratégias para aumentar seu engajamento à leitura, mesmo que seja apenas para aumentar o tempo investido a ela. Nesse ponto, tornam- se leitores transmídia ao utilizar outras mídias concomitantemente à leitura. Uso de celulares para assistir a resenhas, comentários ou curiosidades sobre a obra, por exemplo, é prática comum entre os leitores para esse fim. Histórias em quadrinhos, por exemplo, seriam mais atraentes que um livro em prosa ou poesia, ao leitor transmídia, não por sua facilidade de leitura, 105

mas por permitir que o leitor atue em mais de uma tarefa ao mesmo tempo, ou que possa mudar de tarefa durante a atividade da leitura. Seguindo essa linha, acreditamos que o uso de celulares, tablets, ou outra mídia/tecnologia durante a leitura de um livro não se dê porque o leitor não está interessado pela obra, mas por estar tentando adaptar uma atividade monomídia à sua realidade transmídia, de modo a conseguir fruir a obra da melhor forma possível. Nos parece que essa estratégia é usada enquanto o leitor não entra no estado de flow, mantendo-se apenas no livro ao atingi-lo. Até o presente estado de nossa pesquisa, entendemos que os leitores transmídia estão perdidos em dois mundos: o deles – transmídia – e o acadêmico – monomídia – e, perdidos que estão, tentam adaptar as atividades propostas ao seu modo de vida, se não for para melhor fruição, então para aumentar o tempo aplicado à leitura monomídia monotarefa, não por desinteresse na prática, mas por necessidade de multifoco. Talvez um exemplo caiba à ilustração do cenário: uma geração que cresceu com energia elétrica dentro de casa teria dificuldade em viver sem luz ou geladeira; uma geração que cresceu com televisão e rádio dificilmente se adaptaria a uma realidade sem ambos; da mesma forma, uma geração que cresceu com jogos e internet, numa dinâmica transmídia multifocal e multitarefas, apresentará resistência, desconforto e recusa a um modelo monomídia, unifocal e monotarefa. Assim como nos é incabível a ideia de educar a geração pós energia elétrica a voltar a viver à base de velas e querosene, também nos é educar a geração transmídia a retroceder a seus pais ou avós. Assim, diferente dos demais, as leituras do leitor transmídia seriam guiadas por um mesmo tópico, mas em diferentes mídias físicas e digitais, e com total atenção no que se lê, uma vez que sua leitura é orientada por motivos momentâneos e particulares. Gabe Zichermann, em palestra à Google TechTalks, em 2010, associa essa habilidade de multifoco ao termo pensamento de jogo (game thinking). O leitor transmídia, portanto, consiste em um leitor cujas práticas de leitura seguiram o avanço, velocidade e praticidade tecnológica, sendo capaz de acompanhar um mesmo tópico através de duas ou mais mídias sem perder o foco do que se busca e lê. Acostumado ao cibertexto labiríntico, decidem investir 106

seu tempo e energia em atividades multitarefas (e lovemarks) que dialoguem com seus interesses próprios enquanto o permite agir sobre a narrativa, tanto nas responsabilidades pelo desenvolvimento do enredo, quanto na busca por informações do universo da história, espalhadas pelas diversas mídias. Enquanto lê um livro, usa o celular para pesquisar sobre personagens, sobre fatos históricos, ou para tirar alguma dúvida sobre o enredo; enquanto joga, busca na internet vídeos mostrando como passar de certo nível, ou chefe de nível no qual o jogador-leitor esteja com dificuldades, e busca em fóruns, faqs e wikis informações que possam ter-lhe passado despercebidas. Se os leitores transmídia foram influenciados pelos jogos narrativos digitais e levarmos em consideração de que há diferentes representações de jogadores, podemos nos questionar sobre a possibilidade de se existirem diferentes práticas de leitura adotadas pelos leitores transmídia.

Jogadores e Leitores Richard Bartle (1996) traz um estudo em que classifica os jogadores em quatro categorias: Conquistador (Achiever), Socializador (Socializer), Explorador (Explorer) e Predador (Killer). O conquistador seria o jogador que busca alcançar e superar qualquer desafio proposto pelo jogo, quanto mais próximo do humanamente impossível, maior sua atração; o socializador busca a interação com outros jogadores e personagens, quanto mais possibilidades de interação harmônica entre jogadores, mais socializadores o jogo adotará; o predador adquire prazer em derrotar oponentes, se o oponente for outro jogador, o interesse dos predadores é dobrado; o explorador busca o universo do jogo, quanto maior o mapa disponível a se descobrir e mais missões secundárias o jogo apresentar, mais tempo e energia os exploradores depositarão. Com o passar do tempo, os exploradores, começaram a adquirir uma nova configuração: além de buscar o máximo de detalhes do universo, eles também passaram a buscar o máximo de detalhes da estrutura dos jogos, como a física, os defeitos (bugs e glitches), modos de trapaça (cheats) etc. Pela atitude normalmente agressiva dos predadores, esse tipo de jogador é comumente vilanizado e desejável fora das comunidades virtuais dos 107

jogos, mas, como apontado por Zichermann (2010), essa é a categoria mais ativa e engajada de uma comunidade, e quando disponibilizado o caminho certo, eles podem ser de grande valia a uma marca. Há outros pesquisadores que aumentam o número de categorias, como dividir os exploradores entre exploradores (para o universo) e mineradores (para as mecânicas), mas por ora, foquemos nas quatro categorias de Bartle: acreditamos que as mesmas categorias de jogadores existam entre os leitores de textos literários. O conquistador passaria a buscar a conquista de obter o maior número de itens relacionado a certa narrativa: livros (novelizações, quando de outras mídias), bonecos de ação, chaveiro, camiseta, pôster etc. Quanto mais itens disponíveis de uma marca, mais presente sua participação na comunidade. O socializador apresentaria e buscaria novas formas de se socializar com personagens de uma narrativa por meio, por exemplo, de fanfics. Além disso, eles podem se apresentar como aqueles membros de uma comunidade que cria situações nas quais seus integrantes possam interagir entre si, ou está ativamente interagindo com os demais. O predador se mostra como o leitor que deseja saber tudo quanto possível de se saber sobre uma narrativa para que possa mostrar a outros leitores o quanto ele sabe muito e os outros sabem nada. Também pode se mostrar como o chamado hater (pessoa que não possui motivos reais para pejorar uma narrativa, mas o faz pelo ato de pejorar, ou na esperança de que, ao tomar essa atitude, a popularidade de uma narrativa que goste – “concorrente” à qual se manifestou – aumente). O explorador, parecido com o predador, surge na forma do leitor que busca tudo que é possível saber sobre uma narrativa nas diversas mídias, mas não com o intuito de mostrar superioridade a outros leitores. Há exploradores que podem buscar o maior número de informações possível para tentar encontrar falhas em sua estrutura (pontas soltas, incoerências, personagens esquecidos etc.), por exemplo. Para que possamos refletir mais objetivamente acerca da existência desse leitor transmídia, entrevistaremos graduandos de Letras a fim de observar suas práticas de leitura e de jogar, a fim de compará-las. Apesar do número 108

reduzido de voluntários entrevistados, suas respostas nos serão suficientes pois eles serão representantes sociais das práticas de leitura literária dos leitores transmídia, aos moldes de Chartier (1991), permitindo-nos

reconhecer uma identidade social, a exibir uma maneira própria de ser no mundo, a significar simbolicamente um estatuto e uma posição; enfim, as formas institucionalizadas e objetivadas em virtude das quais "representantes" (instâncias coletivas ou indivíduos singulares) marcam de modo visível e perpétuo a existência do grupo, da comunidade ou da classe (CHARTIER, 1991, p.183).

Longe de termos uma representação fechada sobre o leitor transmídia, os saberes levantados até aqui nos servirão de ponto de partida para auxiliar- nos na análise do corpus, pois tendo percorrido todo o caminho dos jogos narrativos digitais e sua ligação à literatura, entendido a diferença entre mídia e tecnologia e como os labirintos e elementos dos jogos afetam o mercado afetivo de seus leitores-jogadores, é possível compreendermos as práticas de leitura desenvolvidas pelos leitores transmídia, assim como os possíveis caminhos que se abrem aos jogadores, permitindo trafegarem de leitor-jogador para leitor literário transmídia, cumprindo nosso terceiro objetivo da pesquisa: observar os motivos que levam o leitor transmídia à leitura literária. Agora, resta-nos, apenas, a análise das entrevistas recolhidas dos leitores-jogadores graduandos de Letras para que possamos, enfim, verificar se de fato existe um grupo de leitores transmídia. De modo algum pretendemos adequar o dito pelos entrevistados no que já fora exposto. Pelo contrário, a partir do que nos for apresentado pelos voluntários, iniciaremos um processo de retificação e/ou ratificação do que lhes for condizente, concomitantemente à expansão dos saberes e hipóteses já expostos. 109

Capítulo 04 – Análise das entrevistas É chegada a hora de verificar se o caminho percorrido até aqui é condizente ao que se pode ver nos leitores atuais, ou se chegamos a um beco sem saída e precisamos retraçar nosso percurso. Para tal fim, organizamos as informações recebidas pelo questionário e entrevistas em algumas categorias. Longe de cobrir todas as possibilidades de análise dos leitores transmídia, elas serão um ponto de partida para nossa análise limitada, na esperança de poder trazer a essa discussão combustível para novas pesquisas na área. O questionário foi respondido por 14 pessoas, no decorrer de 5 dias. Duas delas foram desconsideradas por não se encaixarem em nosso público alvo ao mostrarem nenhum, ou quase nenhum contato com livros, ou jogos. Os 12 participantes restantes receberam um e-mail, ou uma mensagem pelo Whats App (de acordo com o que fora posto no espaço de contato) convidando-os a participar de uma entrevista via Skype. Um dos voluntários pôs um número inexistente e não foi possível estabelecer conexão com o mesmo e, dos 11 restantes, cinco responderam aceitando e marcando uma data para que a entrevista individual fosse realizada. No Anexo IV, serão encontradas as respostas do questionário fornecidas pelos voluntários, com exceção dos dois desconsiderados. Lá, foram mantidos os nomes fictícios dos cinco entrevistados, escolhidos por eles mesmos antes da entrevista, e o contato de cada um fora excluído deste arquivo para que seus anonimatos fossem garantidos, sendo o dos restantes substituídos por “Voluntário X”, onde X é o número de cada participante segundo a ordem de resposta no questionário. No Anexo V, serão encontradas as transcrições das cinco entrevistas na ordem em que foram realizadas. Se nos for permitido tomar uma liberdade em relação à construção padrão de uma dissertação de modo a oferecer a quem nos lê uma experiência adaptada de leitura transmídia, indicamos a leitura dos Anexos IV e V antes da leitura deste Capítulo, por acreditarmos que esse movimento facilitaria a compreensão e ambientação, daqueles não acostumados ao ambiente transmídia, em relação ao que fora posto até aqui, e a partir daqui. Digo adaptada, porque para que essa seja uma 110

experiência genuinamente transmídia, as informações dos anexos deveriam estar presentes em outra mídia que não este texto. Talvez nos seja fortuito iniciarmos com o resgate do que seria a “prática”, quando dizemos “práticas de leitura” e “práticas de jogar”. Como já visto no Capítulo 02, a formação de uma prática não é rápida, tampouco simples de se estabelecer em uma sociedade. Com o cuidado de não confundir com práxis, a prática leva anos para se estruturar e gerações para se consolidar. Com tempo e disposição, uma práxis pode se tornar prática, mas não são sinônimos. Por exemplo, estamos em contato com os jogos desde a geração dos Baby Boomers, e apenas depois de mais de 50 anos e quatro gerações começou a ser possível a observação científica das mudanças das práticas de leitura. Também já fora dito que as práticas não desaparecem, coexistem. Não deixamos de ler em voz alta quando surgiu a prática de leitura silenciosa; não paramos de assistir a filmes com a invenção das séries modernas; não nos afastamos dos livros porque existe o videogame. Esse é o ponto crucial dessa pesquisa: as práticas de jogar e as práticas de leitura coexistem harmonicamente, se ajudam, se repelem, ou não há interferência entre elas?

Alguns perfis de leitores-jogadores transmídia Há vários modos de se explorar a narrativa ao se jogar um jogo. Deles, escolhemos três que acreditamos serem mais próximos do grupo alvo e abrangentes nos perfis de jogadores. Achamos melhor adequarmos os perfis de jogadores de Bartle (1996) para sua relação com a narrativa, ao invés de sua relação com outras pessoas. O primeiro modo é o mais direto dos três. O jogador percorre a narrativa principal do jogo e ignora as narrativas secundárias, postas por personagens secundários, terciários ou menores. Este jogador é movido pela história principal. O segundo modo de exploração é mais longo, porém tido como mais “completo” que o primeiro. Antes de terminar a história principal, o jogador busca percorrer o mapa e socializar com as personagens menores do jogo a fim de receber mais missões para que possam evoluir, conhecer mais sobre o universo 111

do jogo, sobre seus mitos, suas histórias e, não raras vezes, sobre si mesmo (ou melhor, sobre o avatar que controla). Este é um jogador explorador. O terceiro modo de exploração que escolhemos carrega um dos grandes mistérios para os outros tipos de jogador, por não entenderem exatamente como esse modo funciona. Aqui, o interesse maior do jogador não está exatamente na narrativa, mas na jogabilidade, na mecânica que envolve o universo e o faz real, buscando por falhas que possam ser aproveitadas para se conseguir vantagem em certa situação, como bugs que fazem um chefe de nível perder com um acerto, ou uma falha na mecânica que permite que o jogador “saia do mapa” e possa pular parte da narrativa e ignorar, às vezes, todo o enredo, tele transportando do início ao fim da narrativa, sem enfrentar os desafios que o jogo fora planejado para estabelecer. Este é um jogador minerador. Com base nesses três modelos de jogadores, estabelecemos três modelos de leitores: O leitor movido pela história principal, ou seja, aquele que lê apenas a narrativa apresentada na obra sem buscar informações secundárias, ou externas ao livro; O leitor explorador, que busca saber mais sobre a obra e/ou a narrativa antes, durante ou após lê-la; e o leitor minerador, que busca por falhas, como “buracos narrativos” e “pontas soltas” na narrativa. Dessa forma, oito candidatos disseram ter a mesma abordagem ao ler e ao jogar: seis disseram ser exploradores em ambos; e dois, movidos pela história principal. Dos outros quatro, dois eram jogadores exploradores e leitores mineradores, e dois eram jogadores exploradores e leitores movidos pela história principal. Não achamos que foi coincidência tantos voluntários se considerarem exploradores, tampouco que os cinco entrevistados estejam nesse perfil. Desde cedo, nos primeiros contatos com literatura, somos incentivados a buscar, ou imaginar certas informações da narrativa, com perguntas como “E agora? O que será que o Coelho Feliz vai fazer?”, ou “Olhem! Essa joaninha já apareceu antes, como ela se chamava, mesmo?”. Conforme a criança desenvolve sua leitura (ao menos teoricamente), os exercícios de adivinhação vão se perdendo e dando lugar à busca por informações extra narrativas, como pesquisar sobre a biografia 112

do autor, sobre a época em que a obra fora escrita, ou sobre outras obras escritas pelo mesmo autor. Essa dinâmica segue com firmeza até chegarmos ao “ponto alto” das aulas de literatura, ou português, dos anos finais do ensino fundamental II: Capitu traiu Bentinho? Pergunta que pode introduzir ao leitor uma nova forma de leitura: ao invés de ler uma obra e identificá-la segundo informações externas, como época e autor, agora buscamos por vestígios diegéticos que comprovem que o narrador está falando a verdade ou mentindo. O leitor, agora mais velho, volta na narrativa buscando falhas no discurso, informações que não se ligam a outras etc. Essa mesma prática pode ser vista em leitores adultos com frequência em debates sobre a veracidade da Bíblia, por exemplo. Assim, a “aparição” de tantos leitores exploradores e mineradores não é surpresa. Tampouco nos é o número dos que são movidos pela história principal, mas para falar deles, primeiro precisamos fazer uma recapitulação da evolução dos jogos. Nos jogos, mesmo se contarmos apenas com os jogos narrativos digitais, podemos obter uma diversidade de estratégias. Alguns jogos são mais voltados para o jogar acompanhado, então podemos encontrar jogos como Super Mário World (1990), e Sonic the Hedgehog (1991) estruturados na forma de fases, facilitando a mudança de jogador entre elas, ou ao se perder uma vida. Em sua maioria, esse tipo de jogo, também chamado de jogo de plataforma, oferece um labirinto multicursal, ou seja, independente do caminho percorrido, o final será o mesmo. Eles são chamativos para mineradores e movidos pela história principal, mas oferecem pouco ao explorador. Com isso em mente, esse gênero passou a adotar estratégias que jogos voltados aos exploradores usavam. Voltaremos nesse ponto mais adiante. O termo “jogo de mundo aberto” costuma carregar uma mecânica bem conhecida: As fases não são mais demarcadas explicitamente e existe um “sistema de coleta”. Nos jogos de plataforma, uma fase tem seu início e fim bem demarcados, sendo que o jogador é normalmente levado de volta ao “mapa do mundo” para escolher o próximo nível, ou refazer o que acabou de terminar; no 113

de mundo aberto, não. O fim de uma “fase” traz uma cutscene77, que dá tempo ao console de carregar a próxima fase em tempo de o jogador poder começá-la quando a cutscene terminar, sem que perceba a transição entre elas. Dentro de uma mesma “fase” (ou seja, entre duas cutscenes), alguns jogos utilizam certas estratégias para manter a imersão durante o carregamento, como limitar a velocidade de locomoção do jogador, gerando o tempo necessário de carregamento: Alan Wake (2010) faz com que tenhamos de acompanhar a personagem que está falando, movendo-se vagarosamente, Final Fantasy VII Remake (2020) faz com que tenhamos de andar durante vários momentos, retirando nossa capacidade de correr, Star Wars Jedi: Fallen Order (2019) e Tomb Raider (2013 – 2018) nos fazem passar por corredores estreitos, que limitam a velocidade e possibilidade de locomoção. Além disso, eles também espalham pelos cenários do mundo vários objetos que podem ser coletados para as mais diversas finalidades: a cada X horn of blood mead, sua fúria máxima é aumentada (God of War (2018)), a cada X blast shards, sua bateria é aprimorada (Infamous (2009)), cada coração amplifica sua saúde máxima (The Legend of Zelda (1986)), etc. Em seu início, percorrer o mapa e explorar as vantagens que o jogo oferece eram decisivos entre uma jogabilidade balanceada, ou à beira do impossível, o que afastava os jogadores movidos pela história principal, que se viam presos em um inimigo várias vezes mais fortes que eles, então as duas modalidades (plataforma e mundo aberto) começaram a se mesclar: os jogos de plataforma adotaram o sistema de coleta do mundo aberto e adicionou passagens secretas para incentivar a exploração de seus jogos78, e o sistema de fases foi sendo convertido em narrativas contínuas, como em Dust: An Elysian Tail (2012), (2015) e Hollow Knight (2017), apesar de não serem todos que seguem esse modelo: Cuphead (2017), Nioh (2017) e

77 Filmes de animação gráfica, podendo trazer dublagens ou não, que avançam a narrativa. 78 Crash Bandicoot (1996) traz os cristais; Rayman Legends (2013), os Teensies a serem resgatados; Darksiders Genesis (2019) traz inimigos com núcleos únicos, baús de tesouro, entre outros. Celeste (2018) deixa claro que seu sistema de coleta não tem valor algum à história, com a mensagem “Morangos vão impressionar seus amigos, mas é só isso, mesmo. Pegue só se quiser muito!”. 114

Celeste (2018), por exemplo, apresentam o modelo de fases em um mapa do mundo. Os jogos de mundo aberto, por sua vez, reestruturaram sua dificuldade, tornando a jornada desafiadoramente balanceada aos não-exploradores, e implantaram a habilidade de viagem rápida de um ponto a outro do mapa, em uma tela muito parecida com os mapas do mundo das plataformas. Graças a esse implante, foi possível organizar com maior facilidade o sistema metroidvania79 de exploração aos não-exploradores. Dessas misturas, surge nossa primeira grande diferença entre o leitor e o leitor-jogador. Enquanto no livro temos os gêneros literários, nos jogos, temos o que vamos chamar de gêneros de jogabilidade. Enquanto, na literatura impressa temos terror, ação, comédia e drama, na literatura interativa temos rpg, ação/aventura, luta, tiro, simulação, música/ritmo, etc. Existem, claro, jogos de tiro de ação, de terror, de comédia, de drama, etc, mas os gêneros narrativos não costumam ser o ponto maior de interesse dos jogadores, mas sim os gêneros de jogabilidade. Vesemir, por exemplo, tem como seus jogos favoritos: The Witcher 3 e The Last of Us. O primeiro é um rpg ambientado na idade média, cujo gênero narrativo é da aventura epopeica; o segundo é um rpg ambientado num futuro distópico, cujo gênero narrativo é o drama. Gêneros narrativos distintos, porém, ambos são do gênero de jogabilidade rpg. Também o Voluntário 11, que diz ter como favorito “qualquer jogo de RPG”; e D. V., com os dois rpgs My time at Portia, e Child of Light, aquele de mundo aberto, este, plataforma. O gênero narrativo não ser o ponto de maior interesse para o leitor- jogador, não significa que não seja importante para ele. O gênero narrativo é um dos grandes atrativos de uma obra. Aliás, é O elo entre jogo e livro. Ellie vai trazer como um de seus jogos favoritos Life is Strange, que narra a história de uma universitária que descobre ter a habilidade de voltar no tempo e começa a utilizá-lo para descobrir coisas sobre as pessoas sem que elas percebam. No decorrer da narrativa, temos a chance de salvar a vida de algumas personagens,

79 Nome resultante da união dos jogos Metroid (1986) e a série Castlevania (mais especificamente, Castlevania: Symphony of the Night (1997)). Esse modelo de exploração consiste em manter certos caminhos bloqueados até que o protagonista receba a habilidade necessária para se superar aquele obstáculo, fazendo com que o jogador precise ficar indo e vindo no mapa diversas vezes para conseguir explorá-lo por completo. 115

enquanto investigamos o desaparecimento de uma antiga estudante, nos vendo envoltos em uma série de dilemas morais que são consequências de nossas próprias ações, conseguindo apoio, ou perdendo pessoas. Não à toa, um de seus livros favoritos é Angústia. Ou então o Voluntário 3, com um de seus jogos favoritos sendo Detroit, um jogo em que somos diversos androides, cada um com sua história, e estamos descobrindo diversas situações, como colher pistas de um assassinato para tentar salvar a refém e prender o bandido, e colher pistas e montar um plano para salvar uma garota do pai alcoólatra abusivo. Sem qualquer ilusão de coincidência, Sherlock Holmes está entre suas obras favoritas. Isso se repete em 11 dos 12 voluntários80, e suas interações com os jogos transbordam para a interação com os livros. Todo esse caminho que estamos percorrendo talvez possa parecer desconexo com o contexto, mas é importante para podermos voltar aos perfis dos leitores-jogadores. Como posto no Capítulo 02, as práticas de leitura silenciosa ajudaram a criar um certo tipo de leitor, centrado no silêncio e tendo a leitura declamada (ou conversa, no geral) como um incômodo que pode atrapalhar ou impedir a fruição, o foco, ou a própria leitura em si. 1980 e 1982 foram anos decisivos, porque os jogos começam a trazer elementos que “quebrariam o silêncio” da leitura nas décadas por vir. Primeiro veio o jogo Rally-X (1980), lançado para arcades pela Namco, sendo o primeiro com música de fundo que tocava durante as fases. Depois, vieram o sintetizador de voz The Voice (1982), do console Odyssey2, e o Intellivoice Voice Synthesis Module (ou apenas Intellivoice) (1982), do console Intellivision. Aquele trazia um jogo cuja finalidade era traduzir em som o que o jogador escrevia no teclado do Odyssey2, saindo do próprio console, ao invés da televisão, mas essa ferramenta não fora muito aplicada nos jogos, que vinham compatíveis com o Odyssey2 padrão (sem o sintetizador de voz), mostrando que “não seria muito provável de a voz ser um elemento chave dos cartuchos”, o que “elimina qualquer incentivo

80 Marcamos as obras correspondentes com a mesma cor no Anexo IV. 116

em comprar o modulador de voz de $100”81 (GOODMAN, 1983), já o Intellivoice, “é interessante, não porque é um sintetizador de voz, mas porque seus jogos iniciais fizeram da voz uma parte integral da jogabilidade”82 (GOODMAN, 1983). Esses dois momentos foram decisivos, por terem aberto espaço para o que os jogos são hoje: não existe um jogo pós 1995 que não tenha música de fundo. Lembremos que o primeiro walkman fora lançado em 1979, pela , estreitando o relacionamento das pessoas com a música. Também é difícil encontrarmos, hoje, jogos sem distinção de voz fora do contexto indie. Não nos referimos necessariamente à dublagem de voz, mas a efeitos sonoros que distinguem quando um personagem está falando algo, desde efeitos sonoros (The Legend of Zelda (1986)), dublagem de voz com sons aleatórios (Machinarium (2009)), ou apenas uma palavra inicial (The Legend of Zelda: Ocarina of Time (1998)), até dublagem completa de voz (Ghost of Tsushima (2020)). Isso, claro, quando o jogo apresenta diálogos, diferentemente de Limbo (2010) e Unravel (2016). Se pensarmos em termos de Brasil e língua portuguesa, a opção de um jogo ter uma dublagem de voz, na maioria das vezes não tinha muita diferença à compreensão, uma vez que pouquíssimos jogos eram dublados para o português, ganhando maior espaço entre os grandes jogos apenas após 201083. Aliando-se essa informação à notícia do walkman (e seus sucessores, como o discman, leitores de mp3, mp4, e os celulares que tocam música), podemos encontrar jogadores cercados por música a maior parte do tempo, acostumados a ter um “som de fundo” na vida real para tudo o que fazem, inclusive ler – Ellie e Nami nos deram exemplos de que usam o celular para ouvir música enquanto leem:

[...] ao ler um livro, eu ouço uma música, porque eu penso que essa experiência vai ficar mais completa (Ellie).

81 Tradução nossa. No original: “the voice is not likely to be the key element of a cartridge” “that eliminates any incentive to buy the $100 voice module”. 82 Tradução nossa. No original: “is exciting--not because it is a speech synthesizer, but because the initial games designed for it have made the voice an integral part of game play”. 83 Nier: Automata (2017) e toda a franquia de Kingdom Hearts, são exemplos de jogos que ainda não trazem a opção do português mesmo na legenda. Mais no Capítulo 03. 117

[...] se estou lendo, eu preciso estar ouvindo música (Nami).

Esse não é o único momento em que jogos e demais tecnologias se cruzam. Dissemos há pouco que não nos era surpresa o número dos leitores- jogadores movidos pela história principal, pois conforme a tecnologia avança e “diminui o tamanho do mundo”, as notícias chegam instantaneamente ao receptor, que tem acesso a ela virtualmente a qualquer momento em suas mãos por meio de aplicativos de mensagens instantâneas (evolução do IRC 84 , e, posteriormente, do ICQ85), ou pelo feed de notícias de aplicativos como Google. O mesmo comportamento pode facilmente ser transportado aos jogos quando os jogadores querem descobrir a história principal do jogo, deixando todo o resto para quando (ou se) percorrerem a narrativa outra vez, como forma de evitar spoilers, informações importantes do enredo que podem estragar (do inglês: spoil) sua surpresa e a emoção para alguns jogadores, por exemplo. Pelos três perfis estarem presentes em grande parte dos jogadores, e serem capazes de servir como um guarda-chuva para outros perfis de jogador, optamos por eles, ao invés de outros. Mas isso acaba não nos respondendo muita coisa, aliás nos deixa muito mais questões: é o leitor que influencia o jogador, ou o jogador que influencia o leitor?

Práticas de jogar na leitura, ou práticas de leitura no jogar? Cobertos os seis perfis de leitores e jogadores, podemos trabalhar em suas relações. Apesar de o impulso querer nos fazer dizer que um influencia mais o outro, como pensávamos no começo, percebemos que um afeta o outro simultaneamente – oito voluntários que se identificaram como o mesmo tipo de leitor e jogador, e quatro se identificaram como diferentes.

84 Criado em 1988, por Jarkko Oikarine, o Internet Relay Chat (IRC) “é um protocolo de comunicação que foi utilizado para bate papo em tempo real e que permitia tanto conversas públicas quanto privadas”, crescendo rapidamente em 1994 (ULTRADOWNLOADS, 2020). 85 Criado em 1996, pela empresa israelense Mirabilis, o ICQ foi um dos pioneiros na área das mensagens instantâneas. 118

Parece-nos que o primeiro contato com a leitura pode influenciar não apenas suas representações de literatura escrita, mas a escolha e representações dos jogos, também: D. V. teve seu primeiro contato por meio de seu irmão, que lia histórias para ela. Seu gosto por jogos tomou o rumo dos de administração, mas entre eles seu jogo favorito é My time at Portia (2019), um RPG que possui todos os seus diálogos dublados e escritos; Vesemir teve seu primeiro contato com as histórias que sua mãe misturava e contava para ele dormir, desenvolvendo seu gosto por literatura de aventura, magia, mitológicas, e por jogos como The Witcher 3 (2015), com a história de Geralt de Rívia, um witcher que enfrenta humanos e criaturas mágicas, quando contratado, enquanto busca por sua protegida, Ciri; Ellie tem suas primeiras lembranças com a leitura na biblioteca da escola durante o intervalo das aulas, onde lia histórias mágicas com pessoas com poderes que a permitissem ter outras visões do mundo, como Percy Jackson (2005 – 2009), da mesma forma, seus três jogos favoritos possibilitam exatamente isso: Assassin’s Creed (2007 – 2020) reconta a história da humanidade segundo a relação entre os Assassinos e os Templários, The Last of Us (2013) traz um futuro distópico, onde espécies de fungos causaram uma espécie de apocalipse zumbi, e Life is Strange (2015) trata de uma menina que consegue voltar no tempo e temos de lidar com as consequências de cada ação tomada; Nami relacionava literatura e arte, observando a linguagem de cada tipo de narrativa e seu jogo favorito é IB (2012), jogo ambientado em meio às artes de um museu; Trinity teve seu primeiro contato com livros de imagens, chamando sua atenção pela ficção de cada obra, sendo The Elder Scrolls V: Skyrim (2011) um de seus jogos favoritos, considerado um dos maiores jogos narrativos digitais da história, ambientado em um mundo medieval fictício, com várias possibilidades de se fazer quase qualquer coisa. Dessa forma, acreditamos que o estado incorporado da cultura, a que dedicamos nosso tempo para adquiri-la e se torna parte de quem somos, aos moldes de Bourdieu (1979), é de estrema importância na criação do elo entre ler e jogar, e, no momento em que é criado essa ligação, as práticas começam a se chocar em um primeiro momento, porque o antigo leitor está presenciando uma sensação diferente com a narrativa: a do controle narrativo. Ser capaz de acompanhar uma narrativa traz um efeito no leitor, ser capaz de fazer a narrativa 119

acontecer traz outro completamente diferente. Para muitos, os jogos trazem o primeiro obstáculo “insuperável”: uma fase muito difícil, um inimigo que parece invencível, um objeto necessário para o avanço da narrativa que não sabemos onde está. Esse tipo de obstáculo não é encontrado nos livros, nem nos livros- jogo. Acompanhamos uma narrativa não interativa e não temos controle sobre o que o protagonista enfrentará, nem como ele fará para seguir adiante, já nos livros-jogo, nossas escolhas levarão a um fim independente do caminho, podendo ser ele eufórico, ou disfórico, mas um fim. No jogo, a história fica parada, suspensa até que o jogador consiga atravessar esse obstáculo e seguir em frente. Nesse momento, o jogador precisa buscar ajuda, e aqui acreditamos que possa se desenvolver cinco possibilidades de eixos de recorrência:

01) O leitor movido pela história principal tem contato com seu próprio perfil de jogador movido pela história principal. Como leitor, nunca precisou buscar por informações externas para compreender a narrativa, ou então essa ideia nunca lhe passara pela cabeça, assim como não costuma, ou nunca conversou com outras pessoas sobre o que leu. Como jogador, a nova forma de obstáculo o frustra não a ponto de ir buscar ajuda, mas de simplesmente abandonar o jogo e dedicar seu tempo a outro jogo, ou outra atividade que lhe proporcione mais diversão.

02) O leitor movido pela história principal tem contato com seu próprio perfil de jogador explorador. Como leitor, nunca precisou buscar por informações externas para compreender a narrativa, ou então essa ideia nunca lhe passara pela cabeça, assim como não costuma, ou nunca conversou com outras pessoas sobre o que leu. De repente, descobre que várias pessoas falam sobre as mesmas coisas, têm dificuldades iguais às suas e estão dispostas a se ajudar. Isso pode germinar a ideia de que se tanta gente joga, seus conhecidos também devem jogar, então começam a conversar sobre os jogos em comum, inevitavelmente levando a conversar sobre livros, fazendo o agora leitor-jogador repensar suas próprias práticas de leitura.

120

03) O leitor movido pela história principal tem contato com seu próprio perfil de jogador minerador. Como leitor, nunca precisou buscar por informações externas para compreender a narrativa, ou então essa ideia nunca lhe passara pela cabeça, assim como não costuma, ou nunca conversou com outras pessoas sobre o que leu. De repente, uma de duas coisas acontece: a) ao buscar por ajuda, encontra pessoas mencionando falhas no jogo que permitem passar por aquele obstáculo a qualquer momento, sem dificuldade alguma, ou b) antes de pensar em buscar por ajuda, descobre, sem querer, uma falha no jogo que o permite passar por aquele obstáculo sem a dificuldade que havia até aquele momento. Essa experiência pode colocar à prova seu entendimento de que uma narrativa não tem falhas (mesmo que a falha presenciada não seja da narrativa). Se o jogo possui falhas, por que o livro não teria? E isso levaria o agora leitor- jogador a repensar suas próprias práticas de leitura.

04) O leitor explorador tem contato com seu próprio perfil de jogador explorador. Como leitor, já desenvolvera o hábito de conversar sobre as obras com outras pessoas e trocar informações com os outros sobre personagens, passagens interessantes/importantes, etc. Com o contato com o jogo, nada muda, ele continua falando com as pessoas sobre o jogo normalmente.

05) O leitor explorador tem contato com seu próprio perfil de jogador minerador. Como leitor, já desenvolvera o hábito de conversar sobre as obras com outras pessoas e trocar informações com os outros sobre personagens, passagens interessantes/importantes, etc. De repente ao ter contato com os jogos, uma de duas coisas acontece: a) ao buscar por ajuda, encontra pessoas mencionando falhas no jogo que permitem passar por aquele obstáculo a qualquer momento, sem dificuldade alguma, ou b) antes de buscar por ajuda, descobre, sem querer, uma falha no jogo que o permite passar por aquele obstáculo sem a dificuldade que havia até aquele momento. 121

Essa experiência pode colocar à prova seu entendimento de que uma narrativa não tem falhas (mesmo que a falha presenciada não seja da narrativa). Se o jogo possui falhas, por que o livro não teria? E isso levaria o agora leitor- jogador a repensar suas próprias práticas de leitura. Entendemos que, após esse choque, o leitor e o jogador tentam entrar em acordo, que vai se estabelecendo com o tempo, conforme se joga e se lê mais 86 , ao ponto de encontrarmos alguns perfis característicos de leitores- jogadores quanto à sua relação com os cânones e o popular, que discutiremos na próxima categoria.

O Cânone e o Popular Conforme se avança na escola, algumas ideias sobre literatura começam a ser postas e marteladas nos alunos e leitores que querem formar. No ensino médio, as aulas de literatura são sobre os clássicos da literatura. Ninguém diz que são os clássicos da literatura escrita do Brasil e Europa, abrindo espaço a outras formas de literatura. Ao invés disso, têm-se o pensamento comum de que a literatura erudita escrita ocupa uma posição superior a outras narrativas: o status de literatura, de Cânone, relegando às demais o status menor de literatura popular. Todos os cinco entrevistados, quando perguntados, mencionaram os cânones da literatura erudita escrita como sendo literatura, mas quando perguntados sobre o que seria literatura para eles, todos disseram que literatura engloba outras formas de se contar histórias, como o filme, a música, o jogo e a peça teatral. Estamos diante do choque de dois estados incorporados da cultura: a vinda da vida, e a vinda da escola. Sobre elas, há outro estado da cultura agindo: o estado institucionalizado, aquilo que demonstra/comprova que alguém/algo possui/possuiu um capital incorporado, não necessariamente carregando valor de capital monetário. Um diploma, por exemplo. (BOURDIEU, 1979). De um lado, temos o estado institucionalizado da família e amigos, sinônimos de lazer e

86 Até aqui, tentamos ser o mais abrangente possível sobre os leitores-jogadores. O que vem a seguir será voltado aos leitores-jogadores que cursaram o curso de Letras da Unesp Assis, logo, por mais que algumas situações possam ser menos nicho e mais globais, será desse público a quem estaremos nos referindo. 122

recreação; de outro, temos o estado institucionalizado da escola, sinônimo de conhecimento, sabedoria e preparo. Assim, ao chegar à faculdade, estamos em um ambiente de trabalho mais sério que as etapas anteriores. Ainda mais séria por estarmos em uma universidade pública. Ainda mais séria por estarmos em um curso que formam leitores como fomos formados: o curso de Letras. Nesse ambiente, é claro a predominância do estado institucionalizado acadêmico, deixando pouca, ou nenhuma abertura a outras formas de literatura dentro do espaço de estudo. Por exemplo, entre as disciplinas obrigatórias do curso de graduação em Letras da Unesp-Assis, não há uma sequer voltada especificamente à literatura das peças teatrais, do cinema, da telenovela, da música nem do jogo87. Parece-nos natural, assim, que os leitores-jogadores professem o que condiz com seu status de acadêmico, de que o entretenimento não tem lugar na literatura, mesmo que a definição que têm para si seja o oposto disso. O que se torna notório nas entrevistas, e nos permitem organizá-los em alguns perfis de leitores: O leitor canônico, o leitor acadêmico, o leitor popular, o leitor misto e o leitor indiscriminado88. O leitor canônico seria o leitor que, levado pelo discurso da crítica literária, observa a literatura canônica como tendo certo grau de superioridade intelectual sobre a popular. Vesemir, por exemplo, vê a literatura popular como porta de entrada ao mundo literário, evoluindo gradativamente até o cânone.

[...] eu gosto de transitar em todas as áreas, porque acho que quando lemos literatura popular, de entretenimento, podemos nos conectar melhor com o aluno que está querendo entrar no mundo da leitura. Não vou passar Macunaíma direto para ele, sem ele ter, primeiro, o gosto de ler (Vesemir).

O leitor acadêmico não necessariamente atribui superioridade ao cânone, mas considera literatura textos que apresentem elementos que

87 A lista de disciplinas obrigatórias pode ser encontrada aqui: https://www.assis.unesp.br/Home/ensino/graduacao/letras/resolucao-unesp-59--de-18-de-julho- de-2017.pdf. 88 Tais perfis foram postos apenas com fins organizacionais, sem a pretensão de torná- los padrões. 123

acadêmicos dizem que literatura tem. Para Nami, trata-se do nível da linguagem; para Ellie, a capacidade de “agregar” mudanças ao leitor, como o desenvolvimento de pensamentos críticos.

[...] tudo que tenha algum tipo de expressão, qualquer que seja a forma, entra na literatura (Nami).

[...] Quero dizer [obras] que agregam uma mudança, ou elevam um pensamento crítico na pessoa (Ellie).

O leitor popular “não se importa” com o cânone, não entendendo a necessidade de uma categorização, mas volta-se para a literatura popular. D. V. só considera certos livros como literatura, porque a academia diz que são, mas não há uma razão específica para que uns sejam e outros não.

[...] Por causa da disciplina que tem como nome “literatura” e apresentou alguns autores japoneses (D.V.).

O leitor indiscriminado conhece as definições acadêmicas para o cânone, mas não atribui distinção de valor entre o cânone e o popular, consumindo indiscriminadamente qualquer forma de narrativa. Trinity, por exemplo, considera narrativa, de modo geral, literatura, independentemente de ser um livro ou uma criança contando o que fizera em casa no dia anterior.

[...] a partir do momento que o indivíduo começa a contar uma história para alguém e começa a usar a linguagem, independente da maneira que for, já considero literatura (Trinity).

Mídias e narrativas Os leitores-jogadores não considerarem a literatura canônica escrita como uma forma (ou a mais) elevada de literatura não significa que não haja diferença entre um livro e outras formas de literatura. Na verdade, todos os entrevistados apontaram que a narrativa dos jogos é diferente da narrativa dos livros por diversas razões, mas as diferenças são apenas isso: diferenças. De nenhuma forma a literatura interativa do jogo é superior à literatura impressa, nem o oposto. 124

Para Nami e Trinity, o labirinto formado pelos jogos, que permitem que a escolha do leitor-jogador impacte efetivamente na história, é um dos pontos fundamentais de diferenciação entre ambas; para Trinity, ainda, os efeitos sensoriais dos jogos e dos livros são pontos a se destacar; para Ellie, D. V., Vesemir, e Trinity, os recursos estilísticos, linguísticos e a própria linguagem diferenciam a narrativa de um jogo e de um livro. Vella (2013, p. 6) trará o exemplo de que, no jogo, ao recebermos um martelo, passamos a “observar o mundo como o que pode ser martelado e o que não pode” 89 . Na literatura escrita, algo parecido pode ser visto com maior facilidade em romances policiais, ainda que com finalidades diferentes. Enquanto, na escrita, o surgir de um novo elemento tem a função de encaixar peças que estavam soltas anteriormente, ou fechar portas que levam a fins errôneos, no jogo, o surgir de um novo elemento abre caminhos anteriormente bloqueados, que podem levar à progressão da narrativa principal, ou à digressão da mesma, abrindo percurso de coleta, ou outras missões paralelas. Há uma diferença presente na fala de Ellie em relação aos outros: ela foi a única dos cinco que considerou elementos não escritos (fotografia, cenário, trilha sonora) como parte da narrativa, identificando a escrita como enredo, e a união de tudo, narrativa. Os cinco, porém, mencionaram, ou deixaram entender que apesar de a forma mudar (por meio dos recursos artísticos/estilísticos), seu conteúdo/enredo continua o mesmo.

Os limites da literatura Essas semelhanças e diferenças entre as mídias fazem com que a fronteira entre o que é literatura e o que é arte desapareçam. Todos os entrevistados apontaram com veemência que, apesar da visão acadêmica de literatura, acreditam que jogos, filmes, séries, peças teatrais e música também são literatura, retirando-os do patamar pejorativo de “entretenimento”, de “pouco valor”. Essa visão acadêmica sobre a literatura, aliás, pode se mostrar aos leitores-jogadores como preconceituosa/excludente (Vesemir e Trinity), elitista

89 Tradução nossa. No original: “perceive the world in terms of things which can and cannot be hammered”. 125

(Nami) ou não fazer sentido algum (D. V. considera livros literatura apenas porque a disciplina literatura diz que é, e ainda assim, apenas os livros que gosta). Cremos que isso também seja decorrente do choque entre os estados culturais nos leitores, entre o adquirido na escola, e as representações de leitura.

O gosto pela leitura Tratamos, em categoria já passada, dos primeiros contatos do leitor e do jogador e um pouco sobre usas interações. Podemos, agora, falar sobre como seus contatos e ânsias chegaram a esse ponto de dissolução em que tudo que carrega narrativa pode ser literatura. Vamos nos colocar, brevemente, no espaço de cada entrevistado: Ellie encantou-se com a leitura por encontrar ali uma oportunidade de encontrar mundos e realidades mais interessantes que a que vivia, sentimento esse transmitido ao seu interesse pelos jogos, e carregando consigo até hoje. Mais tarde, com os estudos literários, provavelmente descobriu que a literatura carrega algumas funções e, entre elas, estão a função psicológica (CANDIDO, 2002), a restauração (TOLKIEN, 2008) e o escapismo (TOLKIEN, 2008). Vesemir imaginava-se dentro das histórias que ouvia, transmitindo aos jogos fantasiosos, tirando reflexões de sua própria realidade. Talvez tenha descoberto, mais tarde na faculdade, que a literatura carrega uma função social (CANDIDO, 2002), e um processo de restauração da própria realidade através da ficção (TOLKIEN, 2008). Nami teve seu início observando as linguagens usadas em diferentes histórias, como as de HQs e mangás, além de buscar a imersão na narrativa, aproximando-se das personagens para criar o link necessário para isso. Eis que se pode ter se deparado com Candido (2002) versando sobre a função social da literatura. Trinity se encantava com as imagens e a ficção dos livros, não diferente de seu encanto com os jogos, que o fazia escapar por um momento de sua própria realidade. Quão surpreso deve ter ficado ao encontrar as funções de escapismo e restauração de Tolkien (2008). Isso se dá não apenas pelas funções da literatura, mas também por suas estruturas narrativas 126

se tocarem em diversos pontos, como coberto no Capítulo 03, assim como a presença do monomito90 (CAMPBELL, 2007) nas outras mídias. De um momento para outro, com alguns textos, todo o discurso que ouviram até o momento sobre literatura e sua separação das demais obras parece ruir. Todos os elementos que encontram na literatura também se encontram nos jogos, nos filmes, nas músicas, ou seja, no antigo “entretenimento” que consumia. Afinal, se essas funções dizem respeito à literatura, então as demais também se enquadram nesse termo, uma vez que oferecem as mesmas funções dos livros. Para manterem-se “a salvo” no meio acadêmico, os leitores- jogadores passam então a adotar algumas medidas de emergência para “consertar” seu estado institucionalizado da cultura acadêmica: Vesemir vê a literatura popular como um meio para se despertar o gosto pela leitura e assim chegar na literatura canônica; Nami assume o discurso de que há um motivo para aquela narrativa existir e estar ali; D. V. aceita que as obras são literatura, porque a academia diz que é; Trinity posiciona-se segundo os recursos linguísticos necessários para se contar uma história. Independente das medidas adotadas, em certo momento da entrevista, todos se mostraram incertos, ou até incrédulos da existência de uma “alta literatura”, superiora às outras formas de narrativa.

Leitor transmídia Talvez tenha saltado aos olhos nossa opção de nos referirmos aos leitores deste Capítulo, até aqui, por leitor-jogador, e não leitor transmídia. Essa foi uma escolha consciente pela razão de que o que foi trazido pode facilmente se relacionar aos leitores transmídia e os leitores-jogadores não-transmídia. Sendo assim, percorridos os caminhos que nos foram possíveis, chegamos ao ponto pelo qual trouxemos nosso ingresso: os leitores transmídia. Relembremos brevemente a definição rudimentar que trouxemos ao longo dessa pesquisa: o leitor transmídia é aquele que utiliza mais de uma mídia

90 Também conhecido como “A Jornada do Herói”, pode ser encontrada, entre muitas outras obras, na música Faroeste Caboclo (1987), da banda Legião Urbana; na peça O Auto da Compadecida (1955), de Ariano Suassuna; no jogo Bioshock (2007), da 2K; nos filmes da série Star Wars (1977 – 2019), da LucasFilm 127

para percorrer uma narrativa. Ao chegarmos nesse momento, talvez nos seja necessário expandir um pouco nosso conceito para: O leitor transmídia é aquele que utiliza mais de uma mídia para auxiliá-lo a percorrer uma narrativa. As entrevistas nos trouxeram informações que sequer cogitamos imaginar, como a influência das práticas de leitura e de jogar serem mútuas, não unilateral. Outra informação foi o modo com o qual as outras mídias podem ser utilizadas. Todos os cinco disseram utilizar uma segunda mídia enquanto utilizam a primeira na leitura de um jogo ou de um livro para buscar informações sobre a narrativa, seja sobre personagens, sobre o enredo, sobre ideias do enredo, dicas, teorias etc. Quando focado no jogo, todos utilizam as mídias para o mesmo fim, mas não apenas para isso. Nami e Vesemir também leem e respondem a mensagens, enquanto Vesemir e Trinity checam suas redes sociais, como Instagram e . Nami utiliza as redes sociais para poder compartilhar com outra pessoa a experiência que está tendo, ou porque o jogo é cooperativo e exige essa relação; Ellie busca por informações para que possa conseguir uma experiência mais completa do jogo; Vesemir verifica suas mensagens por necessidade de trabalho/família; Trinity visualiza seu Instagram para aproveitar as telas de carregamento do jogo, como uma atitude já naturalizada; D. V. avança em outros jogos enquanto joga a mídia primária. Porém, ao focar no livro, precisamos nos deter em certas situações. Ellie, Nami e Vesemir disseram utilizar uma segunda mídia para buscar informações da obra que vão, estão ou já leram91; para Trinity, depende da velocidade com a qual lê uma obra. Para Vesemir e Trinity, as mesmas práticas dos jogos se aplicam aqui: como algo já internalizado, continuam sua rotina de mensagens e mídia social. Para Ellie e Nami, precisamos de uma retrospectiva dos últimos Capítulos. No Capítulo 03, trouxemos a reflexão sobre os leitores transmídia se sentirem como uma pessoa que de repente se vê em um mundo sem energia elétrica, ou geladeira ao precisarem focar única e exclusivamente em um livro e

91 No caso de D. V., busca por críticas e recomendações antes de buscar a leitura da obra na íntegra. 128

que, para adaptarem essa atividade monomídia para seu universo transmídia, utilizam-se de outros recursos, como o celular, por terem se desenvolvido em um universo que exige deles o multifoco em uma mesma atividade. Nami precisa da música para ajudá-la a focar na leitura, por “não conseguir fazer uma coisa só”. Ellie vê na música uma forma de completar sua experiência de leitura, mimetizando o som de fundo dos jogos. Essas duas contribuições de Ellie e Nami foram as responsáveis pela mudança na definição de leitor transmídia, permitindo-nos resolver um problema que poderia ser gerado a partir da anterior: se o leitor transmídia utiliza uma segunda mídia apenas para buscar sobre mais informações sobre a obra que está lendo, onde se encaixariam os leitores movidos pela história principal? A partir do momento que o leitor transmídia se vale de recursos externos para conseguir percorrer a narrativa, ouvir músicas para ajudar a focar, ou aumentar o nível de experiência obtida abre espaço para que os leitores possam caminhar ou correr por uma narrativa sem se preocupar com informações externas à obra, tendo a possibilidade de buscá-las em uma segunda leitura92.

Jogar, ler e assistir Os perfis dos leitores-jogadores refletem, também, seu contato com as informações externas. Trinity e Vesemir são leitores ávidos93 de uma das mídias (jogo e livro), considerando-se exploradores em ambas, Ellie e D. V. são veteranas94 em uma e exploradores nas duas. Nami é a única leitora ávida mineradora para com os livros, quanto ao jogo, ela também se considera exploradora. Aliado ao perfil, as condições financeiras do leitor transmídia ditam seu comportamento para com as obras. Durante a redação desta pesquisa, com o lançamento recente dos consoles PlayStation 5 e Xbox séries S/X, lançamentos de jogos AAA estão custando de 290 a 450 reais. Quando não mais tão recentes, podem cair para um valor entre 180 e 300 reais. Em promoções, lançamentos podem variar entre 180 e 300 reais, e os demais entre 80 e 150. A

92 Esta é apenas uma hipótese. Infelizmente, não nos foi possível entrevistar um Voluntário que se identifique como movido pela história principal. 93 Consomem uma mídia ao menos quatro vezes por semana. 94 Consomem uma mídia ao menos uma vez por semana. 129

essa lista, excluem-se jogos que tenham vendido muito abaixo do esperado, ou recebidos muito mal pelos fãs. Nesse caso, a queda do patamar dos 290 a 450 reais para surgir nas promoções por entre 80 e 150 reais se torna muito mais rápida95. Com a opção de assistir a gameplays96 ou jogar, e a opção de ler/assistir resumos e resenhas ou ler a obra, as Lovemarks de Roberts (2013) são trazidas à tona. Em relação às suas narrativas favoritas, Vesemir e Trinity costumam percorrer a narrativa eles mesmos, organizando suas finanças para que seja possível comprar a narrativa que desejam, evitando gameplays, notícias e até de desconectando das redes sociais para não receberem spoilers (Vesemir). Ellie, por outro lado, muitas vezes assiste a gameplays por não ter condições de adquirir o jogo. Para ambos, assistir à uma gameplay antes de jogar afeta a experiência ao adquirir a obra, seja influenciando a compra (Vesemir), ou a estragando por ter recebidos spoilers (Ellie). Porém, para esta, quando a narrativa possui um labirinto multifinais, gameplays não atrapalham, pois a permite explorar outras opções não cobertas pelo vídeo. Por essa razão, Vesemir e Trinity assistem a gameplays e/ou leem críticas sobre a obra depois de jogar para buscar outras visões dela (Vesemir, Trinity). Apesar de também ser uma exploradora, D. V. não tem problemas em receber spoilers da narrativa (talvez por seu primeiro contato com a literatura ter sido como ouvinte), sendo seu foco maior nos controles do jogo97. Nami, por sua vez uma mineradora, é pouco afetada por spoilers. Na verdade, como seu foco não está na descoberta por exploração, mas nos furos, spoilers não incomodam, ao contrário, assistir/jogar várias vezes incentivam a mineração de informações. As lovemarks (ROBERTS, 2013) se mostram ao compararmos essas informações com as respostas da mesma pergunta, mas em relação às narrativas não-favoritas desses leitores transmídia. Pela diferença de valores entre o livro e o jogo, Vesemir costuma ler a obra, mas assistir à gameplays, porque mesmo se não gostar de um livro, ele ainda poderá ficar guardado em

95 Lembrando que o salário mínimo atual é de R$1.045, e não é possível parcelar a compra das mídias digitais na loja virtual dos consoles. 96 Ou walkthrough, são vídeos que mostram a narrativa completa. 97 Elemento fundamental para que continue ou não a jogar algo. 130

sua biblioteca física, enquanto o jogo ficaria em sua biblioteca virtual, que ninguém além dele mesmo veria, em uma clara relação com o estado objetificado da cultura98, e não apenas seu valor financeiro (BOURDIEU, 1979). Além disso, opiniões, conselhos e indicações adquirem um papel importante para ele, influenciando-o a tentar percorrer uma narrativa fora de seu campo de interesse99. Ellie, D. V. e Trinity assistem e leem resenhas, críticas e comentários antes para não correr a chance de “perder dinheiro” ou se decepcionar100. Aliás, mesmo realizando, sempre que possível, o trajeto jogo-livro, ou seja, se gostar do jogo, busca pelo livro, se não gostar do começo que vê, Trinity não busca nem ler, nem jogar, nem continuar assistindo à obra.

Livro ou Jogo Durante parte da pesquisa, tive a oportunidade de conversar com alguns colegas mestres/mestrandos, doutores/doutorandos e professores universitários, e certa preocupação pairava em muitos quanto à última questão da entrevista: “Se você tivesse que escolher ficar para sempre com um dos dois, você escolheria o jogo ou o livro?”, porque “obviamente escolheriam o jogo”. Eis que tivemos o oposto: Três dos entrevistados escolheram livros e dois, jogos. Ellie é uma leitora veterana e jogadora casual101, Nami e Trinity são leitores ávidos e jogadores casuais. Os três escolheram livro. Para Ellie, o livro é a base para o jogo, então não conseguiria ficar sem; já para Nami, o texto traz a sensação de realidade física que o jogo não traz, a sensação de ter em mãos algo físico.

[...] saber que, realmente, estou com um texto ali, e que em algum momento alguém estava escrevendo, cópias foram tiradas, vendidas, reproduzidas (Nami).

98 Quando um item é instituído de capital monetário e/ou cultural, mas não do capital incorporado. Ter um quadro não significa que seu dono entenda de arte (BOURDIEU, 1979, p. 4) 99 E oferecendo pouca ou nenhuma influência em relação às narrativas favoritas (obras com alto valor de mercado afetivo). 100 No caso de D. V., para saber se a narrativa do livro é interessante para ela. 101 Joga de vez em quando. 131

No caso de Trinity, ambos são imersivos e o agradam, mas por não ter tanta experiência com jogos como tem com livros, prefere o último. D. V. é uma jogadora veterana e leitora casual, enquanto Vesemir é um jogador ávido e leitor veterano. Ambos escolheram jogos. Vesemir, porque o jogo é uma válvula de escape mais rápida, com maior apelo sensorial que o livro, e D. V., porque ao invés de ficar imaginando como são as coisas, o jogo já oferece isso, permitindo- a focar na história, além de o livro ser muito longo e não ter paciência de sentar e ficar lendo102.

As Práticas mudaram? De acordo com o que fora possível observar no questionário e entrevistas, da mesma forma como enquanto jogadores, os leitores transmídia carregam as práticas de leitura anteriores a este momento, em uma espécie de simbiose, uma só funciona em seu máximo com a presença de outra(s): enquanto o som em uma leitura declamada, por exemplo, interfere “negativamente” na leitura silenciosa, ela se torna bem-vinda na leitura transmídia, muitas vezes necessária para que a leitura em si ocorra, como a presença de música ajuda na concentração. Ter um espaço isolado para a leitura silenciosa de um texto escrito se torna necessário na mesma proporção em que 1) o interesse pela leitura daquele texto diminui; 2) a obrigação toma o espaço do lazer. Da mesma forma, quão mais monomídia/monotarefa for o texto, maior se torna a necessidade de se adequar atividades extra literárias ao que se lê, como ouvir música e/ou usar o celular para fins diversos. Porém, independentemente de o texto ser monomídia, multimídia ou transmídia, os leitores transmídia buscam por mais informações além das que são apresentadas no texto em si, como saber mais sobre as personagens, sobre o enredo, ou sobre qualquer outro elemento presente na narrativa que lhes tenha chamado a atenção e/ou curiosidade.

102 Mas ao contrário de Nami, por ter TDAH, fugindo do escopo de nossa pesquisa. 132

Como dito no início deste Capítulo, estas são apenas algumas categorias que estabelecemos com fim puramente organizacional, para que fosse visivelmente mais fácil de nos encontrarmos em meio às informações. Conseguimos, com elas, cobrir todos os objetivos que buscamos, expandindo- os durante os capítulos anteriores e demonstrando-os neste. Com certo aperto no coração em saber que esta etapa está chegando a seu fim, é tempo de concluirmos nossos pensamentos.

133

Considerações finais Iniciamos esta pesquisa com o intuito de tentar identificar certas alterações que as práticas de leitura vêm apresentando ao longo dos últimos anos devido, em parte, à popularização dos jogos narrativos digitais, condensando-se em torno do que nos parecia um leitor diferente dos que observamos nos estudos das práticas de leitura, intitulados aqui por leitores transmídia (leitores que utilizam mais de uma mídia para auxiliá-los a percorrer uma narrativa), assim como se haveria relação direta entre as práticas de jogar e as práticas de leitura. Sendo assim, um de nossos objetivos era o de “entender a concepção dos leitores jogadores acerca do que é acolhido sob o termo ‘literatura’”, dedicando-lhe o primeiro Capítulo, referente à literatura, seus conceitos, funções e componentes narrativos. Eagleton (1997) e Compagnon (1999) trouxeram as questões de que, ao longo da história, o que faz uma obra ser considerada literatura é sempre extraliterário e subjetivo, produto de julgamentos e preconceitos. No Capítulo 04, pudemos observar que esses preconceitos e subjetividades são quebrados pelos leitores transmídia entrevistados nesta pesquisa por identificarem como literatura aquilo que traz uma narrativa, considerando em seu termo obras hoje vistas como externas à literatura, como jogos, filmes, peças teatrais e músicas, todas com o mesmo valor de importância. As funções da literatura postas por Todorov (2007), Candido (2002) e Tolkien (2008) oferecem auxílio a essa nova visão do literário. Todorov (2007) nos mostra que a literatura pode nos ser fonte de aprendizado e amplificador de empatia para com a sociedade; Candido (2002), que pode preencher a necessidade humana de criar fantasias (função psicológica), ensinar tanto quanto a vida (função formadora) e/ou amparar o leitor e sua habilidade de mesclar a realidade de si mesmo e a da obra (função social); Tolkien (2008) traz a restauração por ser possível observar o mundo por um ângulo diferente, o escapismo aos que desejam fugir de sua própria condição e consolo do final feliz como descanso de suas próprias angústias. Todas essas funções, em maior ou 134

menor intensidade, foram observadas nas ânsias dos leitores transmídia para com o que buscam na literatura. Por nos depararmos com a sensação de que ainda estávamos lidando com um campo muito subjetivo, decidimos partir para uma análise mais concreta, presente em toda a literatura: a narrativa. Buscamos seu estudo na narratologia, pelas vozes dos formalistas russos e seus divulgadores. Mais especificamente, de Genette (1998, 1972), Barthes (1972) e Todorov (1972). Sendo a narrativa um dos pontos de ancoragem do termo literatura, foi-nos fortuito todo o caminho percorrido no Capítulo 01, com o discorrer dos elementos narratológicos de cada um dos autores, e no Capítulo 03, com suas equivalências aos jogos narrativos digitais, podendo-se ver como, na realidade, essas relações são vistas de forma muito natural pelos leitores transmídia, não oferecendo a eles a cisão literária, mas pelo contrário: oferecendo sua unificação. Após a discussão sobre teoria narrativa, precisávamos nos debruçar nos leitores em si, mais especificamente, em suas práticas, dedicando o segundo Capítulo à “relação entre a formação e desenvolvimento das práticas de jogar desses leitores e suas práticas de leitura”. Chartier (1997), Cavallo (1997), Manguel (1996) e Fischer (2003) nos permitiram um resgate histórico do desenvolvimento dessas práticas ao longo da história ocidental percorrendo a época quando a leitura declamada era majoritária, observando sua posição ser vagarosamente tomada pela leitura silenciosa. Nos Capítulos 03 e 04, pudemos observar que as duas práticas (leitura declamada e silenciosa) continuam igualmente fortes quando tratamos de jogos narrativos digitais, com casos em que, mesmo quando não há de fato uma voz, há uma identificação de que alguém está falando, som que acompanha a legenda, lida silenciosamente pelo leitor-jogador. Essa posição parecia estável até a chegada do controle remoto, que proporcionou o espaço necessário para que a leitura fragmentada crescesse, auxiliando as mudanças rápidas de atenção exigidas por situações corriqueiras, metamorfoseando-se a cada situação, ao ponto de o leitor transmídia, também detentor dessa prática (de leitura fragmentada), conseguir lidar com cinco informações simultâneas que lhe são apresentadas em uma mesma atividade. Lembremos que estamos nos referindo a tarefas dentro de uma mesma 135

atividade: tarefas dentro da atividade jogar, ou tarefas dentro da atividade ler, não estamos nos referindo a lidar concomitantemente com atividades diferentes, como ler e dirigir, ou assistir à televisão e manter um diálogo. No Capítulo 04, nos foi possível observar que os leitores transmídia entrevistados nessa pesquisa precisam de mais estímulos, como música, para conseguir percorrer uma narrativa monotarefa monomídia, como leitura. Com o advento da internet, assim como a sociedade em si, essas práticas de leitura continuaram a se desenvolver por meio da cibercultura, ambiente da inteligência coletiva e das comunidades virtuais. Buscamos em Lévy (1998, 2010 e 2017) e Rheingold (1993) por suas definições e formações, e pudemos observar suas práticas em uso no Capítulo 04, quando todos os entrevistados (que mostraram-se leitores transmídia) buscam pela inteligência coletiva organizada pelas comunidades virtuais para buscarem mais informações sobre uma obra, além deles mesmos fazerem parte delas e precisando, às vezes, se desligar para evitar receber spoilers de algo que anseia vivenciar, seja em um jogo, ou um livro. A cibercultura se mostrou efetiva dentro do ambiente da convergência (crossmedia e transmídia), cuja efetividade é proporcional ao valor emotivo aplicado a certa marca, podendo criar uma lovemark. Jenkins (2009) e Roberts (2013) foram nossos guias aqui. Na verdade, o Capítulo 04 nos trouxe a confirmação de que as lovemarks de Roberts (2013) são um dos combustíveis primordiais para um leitor transmídia, visto que alguns leitores não dedicam nem parte de seu tempo para o que não lhes agrada, buscando ocupar-se com o que lhes instigue e/ou desafie de forma prazerosa. Faltava-nos, agora, lidar com a questão dos jogos narrativos digitais e seus elementos narratológicos para demonstrar como eles se relacionam com a literatura e “observar os motivos que levam o leitor transmídia à leitura literária”, nosso terceiro objetivo, e tratado no Capítulo 03. Resgatamos Genette (1998, 1972), Barthes (1972), Todorov (1972 e 2007), Candido (2002) e Tolkien (2008) para apresentar as semelhanças de fatores correspondentes nas mídias, relação observada pelos leitores transmídia entrevistados, no Capítulo 04. A literatura labiríntica proposta por Aarseth (1997), Doob (1992), Eco (1983), Hocke (1974), ímpar na relação livro e jogo, também foi trazida no 136

Capítulo 03, sendo expostas suas quatro variações e exemplos. Alguns leitores transmídia mostraram, no Capítulo 04, que esse é um dos pontos principais na hora de identificar um livro e um jogo: as formas como as escolhas do leitor impactam a narrativa. Além das escolhas, os jogos se valem de intensificadores de leitura também presentes nos livros, como o flow, de Nakamura e Csikszentmihalyi (2009), que auxiliam alguns intensificadores da leitura dos jogos, como o otimismo urgente e o épico, tratados por McGonigal (2010) e Chou (2010), as atividades multitarefas, por Zichermann (2010, 2011), e a ilusão de incorporação posta por Løvlie (2005), em união às múltiplas identidades de Gee (2007). Os intensificadores de leitura se mostraram fundamentais na leitura tanto de um jogo, quanto de um livro, visto que os entrevistados mostraram buscar “elementos dos jogos” nas obras escritas que leem. Terminamos o Capítulo 03 com alguns índices que acreditamos poder encontrar na análise das entrevistas, como alguns modelos de leitores-jogadores, que se mostraram diferentes no Capítulo 04. Embora, no três, tratamos da relação dos leitores com outras pessoas, aos moldes de Bartle (1996), uma vez que os entrevistados seriam jogadores, nosso escopo sempre fora suas relações com a narrativa e, por essa razão, alteramos os modelos tratados nas entrevistas para adequá-los aos nossos objetivos. Versamos sobre o jogador movido pela história principal, que não se preocupa com informações paralelas, nem externas à narrativa enquanto a percorre pela primeira vez, o jogador explorador, que busca o máximo de informações paralelas à narrativa principal enquanto a percorre pela primeira vez, e o jogador minerador, aquele que busca por falhas narrativas/mecânicas enquanto percorre a narrativa. Os mesmos modelos foram transpostos aos leitores de literatura escrita, identificando sua construção segundo o decorrer de sua formação acadêmica e seus contatos com os jogos. A formação acadêmica, inclusive, que se mostrou uma das responsáveis pela formação de algumas formas de visão e comportamento para com a literatura canônica escrita e as outras formas de narrativa (a literatura popular escrita também se encontra nestas). Entre os cinco entrevistados, encontramos quatro modelos: o leitor canônico, aquele que absorve o discurso acadêmico de 137

que a literatura canônica apresenta uma superioridade intelectual sobre a popular; o leitor acadêmico, que não atribui superioridade ao cânone, mas considera literatura textos que apresentem elementos que acadêmicos dizem que literatura tem; o leitor popular, que não entende a necessidade de uma categorização, como cânone e popular, mas volta-se para a literatura popular, e o leitor indiscriminado, aquele que conhece as definições acadêmicas para o cânone, mas não atribui distinção de valor entre o cânone e o popular, consumindo indiscriminadamente qualquer forma de narrativa. O que pudemos observar no Capítulo 04 já fora exposto aqui conforme os Capítulos se desenrolavam, restando-nos apenas a questão do quarto e último objetivo de nossa pesquisa: “apreender o percurso de leitura literária dos leitores transmídia”. A resposta se mostrou na relação dos leitores transmídia com seus passados, em choque ou conforme seus estados de cultura, como expõe Bourdieu (1979), e com o desenvolvimento de seus contatos com a leitura escrita e a leitura de jogos, buscando o novo, de acordo com suas representações literárias, e buscando o desafio de acordo com suas representações de jogos, desenvolvendo seus perfis de leitor-jogador e se desenvolvendo enquanto leitor transmídia. Tendo mapeado parte de um dos diversos caminhos possíveis para se compreender as novas facetas das práticas de leitura do século XXI, esperamos que este trabalho possa agregar e auxiliar professores e pesquisadores de literatura na ampliação dessas questões, permitindo-nos conhecer ainda mais um pouco de nós mesmos. Esperamos, também, que a notícia de que os livros não estão ameaçados pelos jogos ajude a acalmar os corações dos que, como Trindade & Annibal apresentavam já em 2010, estão “inquietos a respeito da interação existente entre esse leitor contemporâneo e as novas tecnologias referentes às mídias” (p. 49). As práticas de leitura atribuídas à mídia impressa não se perderam e não há nem mesmo a leve penumbra de que isso acontecerá por causa dos jogos. Elas estão sendo adaptadas à realidade tecnológica para que possam coexistir e, longe de ruir, somar ao contexto literário, como uma forma de trazer os leitores dos mais diversos ao nosso meio da leitura literária. 138

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TRINDADE, Eneus; ANNIBAL, Sérgio F. Leitura, recepção midiática e produção de sentido. Comunicação e Educação (USP), v. 1, p. 45-53, 2010.

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ZONKER, Tammy. Tammy Zonker on Storyliving vs. Storytelling. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=bjL_zvkI-kc. Acesso em: 27 jan. 2020. 144

GLOSSÁRIO DAS OBRAS LITERÁRIAS CITADAS

Obras em formato impresso A audácia dessa mulher: Escrita por Ana Maria Machado, foi publicada em 1999.

A dançarina de Izu: Escrita por Yasunari Kawabata, foi publicada em 1926.

A Divina Comédia: Escrita por Dante Alighieri, foi publicada entre 1304 – 1321.

A Nascente: Escrita por Ayn Rand, foi publicada em 1943.

A Revolta de Atlas: Escrita por Ayn Rand, foi publicada em 1957.

As Crônicas de Gelo e Fogo (série em andamento): Escrita por George R. R. Martin, é publicada desde 1996.

As Crônicas de Nárnia (série): Escrita por C. S. Lewis, foi publicada entre 1950 – 1956.

As Mil e Uma Noites: Escrita por vários autores desconhecidos, com data de publicação incerta.

Alice no País das Maravilhas: Escrita por Lewis Carroll, foi publicada em 1865.

Angústia: Escrita por Graciliano Ramos, foi publicada em 1936.

Anne de Green Gables: Escrita por L. M. Montgomery, foi publicada em 1908.

AuthenticGames - A batalha contra Ender Dragon: Escrita por Marco Túlio, foi publicada em 2017.

AuthenticGames - A batalha da torre: Escrita por Marco Túlio, foi publicada em 2016.

Memórias Póstumas de Brás Cubas: Escrita por Machado de Assis, foi publicada em 1881.

Composition No. 1: Escrita por Marc Saporta, foi publicada em 1963.

Cinquenta tons de cinza (série): Escrita por E. L. James, foi publicada entre 2011 – 2017.

Clube da Luta: Escrita por Chuck Palahniuk, foi publicada em 1996. 145

Declínio de um Homem: Escrita por Osamu Dazai, foi publicada em 1948.

Dom Casmurro: Escrita por Machado de Assis, foi publicada em 1899.

Duna: Escrita por Frank Herbert, foi publicada em 1965.

Fahrenheit 451: Escrita por Ray Bradbury, foi publicada em 1953.

Frankenstein ou o Prometeu Moderno: Escrita por Mary Shelley, foi publicada em 1823.

Frankie for Kids: Desenvolvida pela StoryMax, foi publicada em 2012.

Garfield: Produzida pela Jim Davis, foi lançada desde 1978.

Good Omens: Escrita por Terry Pratchett e Neil Gaiman, foi publicada em 1990.

Halo: The fall of Reach: Escrita por Eric Nylund, foi publicada em 2001.

Harry Potter (série): Escrita por J. K. Rowling, foi publicada entre 1997 – 2007.

Hitman: A Condenação: Escrita por Raymond Benson, foi publicada em 2012.

Macunaíma: Escrita por Mário de Andrade, foi publicada em 1928.

Morte em Veneza: Escrita por Thomas Mann, foi publicada em 1912.

Musashi: Escrita por Eiji Yoshikawa, foi publicada em 1939.

Naruto (série): Escrita por Masashi Kishimoto, foi publicada entre 1999 – 2014.

Neuromancer: Escrita por William Gibson, foi publicada em 1984.

O Assassinato de Roger Ackroyd: Escrita por Agatha Christie, foi publicada em 1926.

O Auto da Compadecida: Escrita por Ariano Suassuna, foi publicada em 1955.

O Castelo Animado (série): Escrita por Diana Wynne Jones, foi publicada entre 1986 – 2008.

146

O Colecionador: Escrita por John Fowles, foi publicada em 1963.

O Cortiço: Escrita por Aluísio Azevedo, foi publicada em 1890.

O Grande Gatsby: Escrita por F. Scott Fitzgerald, foi publicada em 1925.

O Jogo da Amarelinha: Escrita por Julio Cortázar, foi publicada em 1963.

Diablo III: Livro de Cain: Escrita por Flint Dille, foi publicada em 2011.

O Morro dos Ventos Uivantes: Escrita por Emily Brontë, foi publicada em 1847.

O Senhor dos Anéis (série): Escrita por J. R. R. Tolkien, foi publicada entre 1954 – 1956.

O último dia de um condenado: Escrita por Victor Hugo, foi publicada em 1829.

Os Miseráveis: Escrita por Victor Hugo, foi publicada em 1862.

Os Sofrimentos do Jovem Werther: Escrita por Johann Wolfgang von Goethe, foi publicada em 1774.

Os Três Porquinhos: Escrita por autor desconhecido, com data de publicação incerta.

Olhai os Lírios do Campo: Escrita por Érico Veríssimo, foi publicada em 1938.

One Piece (série em andamento): Escrita por Eiichiro Oda, é publicada desde 1997.

Percy Jackson (série): Escrita por Rick Riordan, foi publicada entre 2005 – 2009.

Quincas Borba: Escrita por Machado de Assis, foi publicada em 1891.

Resident Evil: Caliban Cove: Escrita por S. D. Perry, foi publicada em 1998.

Sherlock Holmes (série): Escrita por Sir Arthur Conan Doyle, foi publicada entre 1887 – 1927.

Saga o Wiedźmin (The Witcher) (série): Escrita por Andrzej Sapkowski, foi publicada entre 1993 – 2013.

Tomb Raider: The Beginning: Escrita por Rhianna Pratchett, foi publicada em 2013. 147

Zot!: Escrita por Scott McCloud, foi publicada entre 1984 – 1990.

Obras em formato filme e série A Bruxa de Blair: Produzida pela Haxan Films, foi lançada em 1999.

Black Mirror (série em andamento): Produzida pelas empresas Zeppotron e House of Tomorrow, é lançada desde 2011.

Black Mirror: Bandersnatch: Produzida pela Netflix, foi lançada em 2018.

He-Man e os Defensores do Universo: Produzida pelas empresas Filmation e Mattel, foi lançada entre 1983 – 1985.

Inferno de Dante: Uma Animação Épica: Produzida pelas empresas Film Roman, Production I.G, Dong Woo Animation, Manglobe, JM Animation, MOI Animation, Digital eMation, BigStar e EA Pictures, foi lançada em 2010.

Matrix (série): Produzida pelas empresas Village Roadshow Pictures, NPV Entertainment e Silver Pictures, foi lançada entre 1999 – 2003.

Star Wars (série em andamento): Produzida pela Lucasfilm, é lançada desde 1977.

Steven Universo (série em andamento): Criada por Rebecca Sugar, é lançada desde 2013.

Universo Cinematográfico da Marvel (série em andamento): Produzida pela Marvel Studios, é lançada desde 2008.

Obras em formato música Faroeste Caboclo: Composta por Renato Russo, foi lançada em 1987.

Obras em formato jogo A Lenda de Zelda (série em andamento): Produzida por Shigeru Miyamoto e Takashi Tezuka, é lançada desde 1986.

148

Ace Combat (série em andamento): Desenvolvida por Namco, Bandai Namco Studios e Access Games, é lançada desde 1995.

Alan Wake: Desenvolvida pela Remedy Entertainment, foi lançada em 2010.

Alice: Madness Returns: Desenvolvida pela Inc. e Spicy Horse, foi lançada em 2011.

American McGee’s Alice: Desenvolvida pela Electronic Arts Inc. e Rogue Entertainment, foi lançada em 2000.

Amnesia (série): Desenvolvida pela Frictional Games e , foi lançada entre 2010 – 2020.

Assassin’s Creed (série em andamento): Desenvolvida pela Ubisoft, Gameloft, Griptonite Games e Blue Byte, é lançada desde 2007.

Batman: Arkham (série): Desenvolvida pela , Warner Bros. Games Montréal, Splash Damage, NetherRealm Studios e Armature Studio, foi lançada entre 2009 – 2016.

Battlefield (série em andamento): Desenvolvida ela DICE, é lançada desde 2002.

Beyond: Two Souls: Desenvolvida pela Quantic Dream, foi lançada em 2013.

Bioshock (série em andamento): Desenvolvida pela Irrational Games e 2K, é lançada desde 2007.

Borderlands (série em andamento): Desenvolvida pela Gearbox Software, 2K Australia e Telltale Games, foi lançada desde 2009.

The Bridge: Desenvolvida pela The Quantum Astrophysicists Guild, foi lançada em 2013.

Call of Duty (série em andamento): Desenvolvida pela Infinity Ward, Treyarch, Sledgehammer Games, entre outras empresas, é lançada desde 2003.

Candy Crush Saga: Desenvolvida pela , foi lançada em 2012.

Castlevania: Symphony of the Night: Desenvolvida pela Konami, foi lançada em 1997. 149

Celeste: Desenvolvida pela Matt Makes Games, foi lançada em 2018.

Child of Light: Desenvolvida pela Ubisoft Montreal, foi lançada em 2014.

Civilization (série): Desenvolvida pela MicroProse, Activision e Firaxis Games, foi lançada entre 1991 – 2016.

Concrete Genie: Desenvolvida pela Pixelopus, foi lançada em 2019.

Control: Desenvolvida pela Remedy Entertainment, foi lançada em 2019.

Crash Bandicoot: Desenvolvida pela , Vicarious Visions, Beenox, entre outras empresas, foi lançada entre 1996 – 2020.

Cuphead: Desenvolvida pela Studio MDHR Entertainment, foi lançada em 2017.

Cyberpunk 2077: Desenvolvida pela CD Projekt Red, foi lançada em 2020.

New Danganronpa V3: Minna no Koroshiai Shin Gakki: Desenvolvida pela Spike Chunsoft, foi lançada em 2017.

Dante's Inferno: Desenvolvida pela Visceral Games e Artificial Mind and Movement, foi lançada em 2010.

Dark Souls (série): Desenvolvida pela FromSoftware, foi lançada entre 2009 – 2016.

Darksiders (série): Desenvolvida pela , foi lançada entre 2010 – 2019.

Days Gone: Desenvolvida pela SIE , foi lançada em 2019.

Dead Island (série): Desenvolvida pela Techland, Dambuster Studios, Fatshark e Stunlock Studios, foi lançada entre 2011 – 2014.

Detroit: Become Human: Desenvolvida pela Quantic Dream, foi lançada em 2018.

Diablo III: Desenvolvida pela Blizzard North, foi lançada em 2012.

Doki Doki Literature Club: Desenvolvida pela Team Salvato, foi lançada em 2017. 150

Dust: An Elysian Tail: Desenvolvida pela Humble Hearts, foi lançada em 2012.

Dying Light (série em andamento): Desenvolvida pela Techland, foi lançada em 2015, com novo título previsto para 2021.

Enter the Gungeon: Desenvolvida pela Dodge Roll, foi lançada em 2016.

Enter the Matrix: Desenvolvida pela Shiny Entertainment, foi lançada em 2003.

Erica: Desenvolvida pela Flavourworks e , foi lançada em 2019.

FIFA (série em andamento): Desenvolvida pela EA Sports, é lançada desde 1993.

Final Fantasy (série em andamento): Desenvolvida pela Square Enix, é lançada desde Square Enix.

Fire Emblem (série em andamento): Desenvolvida pela Intelligent Systems, é lançada desde 1990.

Fortnite: Desenvolvida pela Epic Games, foi lançada em 2017.

Fran Bow: Desenvolvida pela Killmonday Games, foi lançada em 2015.

Garena Free Fire: Desenvolvida pela 111dots Studio, foi lançada em 2017.

Ghost of Tsushima: Desenvolvida pela , foi lançada em 2020.

God of War (série em andamento): Desenvolvida pela Santa Monica Studio, é lançada desde 2005.

Guacamelee! (série): Desenvolvida pela DrinkBox Studios, foi lançada entre 2013 – 2018.

Halo (série em andamento): Desenvolvida pela , , , Vanguard Games e Creative Assembly, é lançada desde 2000.

Harvest Moon (série em andamento): Desenvolvida pela Marlevolous Interactive, é lançada desde 1996.

151

Hitman (série em andamento): Desenvolvida pela IO Interactive e Square Enix Montréal, é lançada desde 2000.

Hollow Knight (série em desenvolvimento): Desenvolvida pela, foi lançada em 2017, com o próximo título em desenvolvimento.

Horizon: Zero Dawn: Desenvolvida pela , foi lançada em 2017.

IB: Desenvolvida pela kouri, foi lançada em 2012.

InFAMOUS (série): Desenvolvida pela Sucker Punch Productions e SuperBot Entertainment, foi lançada entre 2009 – 2014.

Injustice (série): Desenvolvida pela NetherRealm Studios, foi lançada entre 2013 – 2017.

Kingdom Hearts (série em desenvolvimento): Desenvolvida pela Square Enix, é lançada desde 2002.

League of Legends: Desenvolvida pela Riot Games, foi lançada em 2009.

Life is Strange: Desenvolvida pela Dontnod Entertainment e Deck Nine Games, foi lançada em 2015.

Limbo: Desenvolvida pela Playdead, foi lançada em 2010.

Machinarium: Desenvolvida pela Amanita Design, foi lançada em 2009.

Marvel’s Spider-Man: Desenvolvida pela , foi lançada em 2018.

Metroid (série): Desenvolvida pela Nintendo Research & Development e , foi lançada entre 1986 – 2017.

Minecraft: Desenvolvida pela Mojang Studios, foi lançada em 2011.

Mortal Kombat (série em desenvolvimento): Desenvolvida pela Midway Games e NetherRealm Studios, é lançada desde 1992.

Mother (Earthbound) (série): Desenvolvida pela Ape, HAL Laboratory, Brownie Brown e Nintendo, foi lançada entre 1989 – 2006. 152

My time at Portia: Desenvolvida pela Pathea Games, foi lançada em 2019.

Nier: Automata: Desenvolvida pela PlatinumGames, foi lançada em 2017.

Nioh (série): Desenvolvida pela Team Ninja, foi lançada entre 2017 – 2020. notpron: Desenvolvida por David Münnich, foi lançada em 2004.

O Chamado de Cthulhu (Call Of Cthulhu): Desenvolvida pela Cyanide, foi lançada em 2018.

Onimusha (série): Desenvolvida pela Capcom, foi lançada entre 2010 – 2019.

Ori and the Blind Forest: Desenvolvida pela Moon Studios, foi lançada em 2015.

Outlast (série em desenvolvimento): Desenvolvida pela Red Barrels, é lançada desde 2013.

Overwatch: Desenvolvida pela Blizzard Entertainment, foi lançada em 2015.

Perfect World: Desenvolvida pela Beijing Perfect World, foi lançada em 2005.

Shin Megami Tensei: Persona (série em desenvolvimento): Desenvolvida pela Atlus, é lançada desde 1996.

Pokémon Go: Desenvolvida pela , Inc. Nintendo, foi lançada em 2016.

Rally-X: Desenvolvida pela Namco, foi lançada em 1980

Rayman (série): Desenvolvida pela Ubisoft, foi lançada entre 1995 – 2015.

Ratchet & Clank (série em desenvolvimento): Desenvolvida pela Insomniac Games, é lançada desde 2002.

Red Dead Redemption (série): Desenvolvida pela Rockstar Games, foi lançada entre 2004 – 2018.

Resident Evil (série em andamento): Desenvolvida pela Capcom, é lançada desde 1996.

153

Rune Factory (série em andamento): Desenvolvida pela Neverland Co., Ltd., élançada desde 2006.

Sky: Children of the Light: Desenvolvida pela , foi lançada em 2019.

Sonic the Hedgehog (série em andamento): Desenvolvida pela Sonic Team, Sega, Dimps, Traveller's Tales, SIMS Co. Ltd., Backbone Entertainment, BioWare e Sumo Digital, é lançada desde 1991.

Star Wars Jedi: Fallen Order: Desenvolvida pela , foi lançada em 2019.

Street Fighter (série em andamento): Desenvolvida pela Capcom, é lançada desde 1987.

Super Mário (série em andamento): Desenvolvida pela Nintendo, é lançada desde 1981 (1985 para jogos de sua própria franquia).

Terra-média: Sombras da Guerra: Desenvolvida pela Monolith Productions, foi lançada em 2017.

Terra-Média: Sombras de Mordor: Desenvolvida pela Monolith Productions, foi lançada em 2014.

Tetris: Desenvolvida por Alexey Pajitnov e Vladimir Pokhilko, foi lançada em 1984.

The Binding of Isaac: Desenvolvida pela Edmund McMillen e Florian Himsl, foi lançada em 2011.

The Elder Scrolls (série em andamento): Desenvolvida pela , ZeniMax Online Studios e Vir2L Studios, é lançada desde 1994

The Last Guardian: Desenvolvida pela SIE e genDesign, foi lançada em 2016.

The Last of Us (série): Desenvolvida pela Naughty Dog, foi lançada entre 2013 – 2020.

The Matrix Online: Desenvolvida pela Monolith Productions, foi lançada em 2005.

The Stanley Parable: Desenvolvida por Davey Wreden, foi lançada em 2011.

The Vanishing of Ethan Carter: Desenvolvida pela The Astronauts, foi lançada em 2014.

154

The Walking Dead: Season One: Desenvolvida pela Telltale Games, foi lançada em 2012.

The Witcher (série em andamento): Desenvolvida pela CD Projekt RED, é lançada desde 2007.

To the Moon: Desenvolvida pela Freebird Games, foi lançada em 2011.

Tomb Raider (série): Desenvolvida pela Core Design, Crystal Dynamics, Nixxes Software, Ubisoft Milan e Eidos Montréal, foi lançada entre 1996 – 2018.

Typoman: Desenvolvida pela Brainseed Factory, foi lançada em 2015.

Undertale: Desenvolvida por Toby Fox, foi lançada em 2015.

Unravel (série): Desenvolvida pela Coldwood Interactive, foi lançada entre 2016 – 2018.

Watch Dogs (série): Desenvolvida pela Ubisoft, foi lançada entre 2014 – 2020.

World of Warcraft (série em desenvolvimento): Desenvolvida pela Blizzard Entertainment, é lançada desde 2004.

155

ANEXO I - Questionário via internet para triagem de candidatos.

01. Contato (E-mail, WhatsApp ou Facebook Messenger) 02. Faixa etária ( ) 17 – 20 ( ) 21 – 25 ( ) 26 – 30 ( ) Acima de 30 03. Você cursou o ensino fundamental e médio em uma escola: ( ) Pública ( ) Particular ( ) Parte pública e Parte Particular 04. Letras é a sua primeira graduação? ( ) Sim ( ) Não. Qual outra graduação você cursou? ______05. Em qual mídia você prefere ler? ( ) física ( ) virtual ( ) não gosto de ler livros 06. Em qual mídia você costuma ler? ( ) física ( ) virtual ( ) não gosto de ler livros 07. Quais são seus jogos narrativos favoritos (jogos que apresentam uma narrativa, diferentemente de Tetris, por exemplo)? 08. Quais são suas obras literárias favoritas? 09. Nos espaços abaixo, assinale a opção correspondente ao tipo de jogador que você considera ser em sua(s) narrativa(s) favorita(s) ao jogá-las pela primeira vez, por favor. Intensidade ( ) Casual (joga jogos narrativos eletrônicos de vez em quando). ( ) Veterana(o) (joga jogos narrativos eletrônicos ao menos duas vezes por semana). ( ) Ávida(o) (joga jogos narrativos eletrônicos a menos quatro vezes por semana). 156

Exploração ( ) Movida(o) pela História principal (joga a missão principal sem buscar ou se preocupar com as secundárias). ( ) Explorador(a) (busca abrir o mapa do jogo e/ou completar as missões secundárias antes de seguir com a história na missão principal). ( ) Minerador(a) (busca por falhas na mecânica (como bugs e glitches)). 10. Nos espaços abaixo, assinale a opção correspondente ao tipo de leitor que você considera ser em sua(s) narrativa(s) favorita(s) ao lê- las pela primeira vez, por favor. Intensidade ( ) Casual (lê literatura de vez em quando). ( ) Veterana(o) (lê literatura ao menos uma vez por semana). ( ) Ávida(o) (lê literatura a menos quatro vezes por semana). Exploração ( ) Movida(o) pela História principal (lê apenas a narrativa apresentada na obra sem buscar informações secundárias). ( ) Explorador(a) (busca saber mais sobre a obra e/ou a narrativa antes de lê-la). ( ) Minerador(a) (busca por falhas (como plot holes) na narrativa). 157

ANEXO II - Roteiro de entrevista

01. Você se lembra o que despertou seu interesse pela leitura? • Lembra o que nele te despertou isso? 02. Quando digo o termo “literatura” quais tipos de narrativa lhe vêm à mente? • Por que você os considera literatura? 03. Há um debate acerca dos limites da literatura, isto é, se filmes, músicas, jogos e peças teatrais podem ser considerados literatura. O que você acha disso? 04. Como você vê a narrativa de um livro e de um jogo? Elas são iguais ou diferentes? • Se sim, como? • Se não, como? 05. Você vê alguma relação entre o modo como você joga e o modo como você lê? • Se sim, como? • Se não, como? 06. O que você busca quando se entrega a essas narrativas? 07. Em relação às narrativas favoritas: é mais comum que você jogue ou leia, ou é mais comum que você assista a gameplay, resenhas, leituras, apresentações, resumos etc? • Se for assistir à Assistir às playthroughs/resumos antes de jogar/ler diminui de alguma forma sua experiência com o jogo? 08. Em relação às narrativas não favoritas: é mais comum que você jogue ou leia, ou é mais comum que você assista a gameplay, resenhas, leituras, apresentações, resumos etc? 09. Enquanto joga, você também utiliza outros aparelhos, como celular, televisão ou computador? • O que você costuma fazer nessa outra mídia quando a utiliza? 158

• Por que você utiliza essa segunda mídia enquanto usa a primeira? 10. Enquanto lê, você também utiliza outros aparelhos, como celular, televisão ou computador? • O que você costuma fazer nessa outra mídia quando a utiliza? • Por que você utiliza essa segunda mídia enquanto usa a primeira? 11. Se você tivesse que escolher ficar para sempre com um dos dois, você escolheria o jogo ou o livro? • Por quê?

159

ANEXO III - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido

O presente Termo de Consentimento Livre e Esclarecido visa certificar o(a) participante de que suas informações pessoais (nome, e-mail ou qualquer outra informação que possa identificá-lo(a)) não serão levadas ao público, em qualquer situação, sem a autorização explícita do mesmo, mesmo após o término da pesquisa, assim como esclarecer os riscos para os quais se expõe e informar como o(a) participante poderá sanar eventuais dúvidas acerca da pesquisa e seus resultados. O(A) participante autoriza o uso das informações não pessoais e/ou identificáveis para o âmbito desta pesquisa e eventuais artigos científicos escritos por este pesquisador, ciente de que o(a) participante pode retirar-se da pesquisa a qualquer momento, se assim desejar, assim como qualquer (quaisquer) informação (ões) por ele dada(s), impossibilitando-a(as) de ser (serem) divulgada(s) e/ou aplicada(s) aos resultados da pesquisa. O(A) participante aceita colaborar com a pesquisa respondendo a perguntas em uma entrevista com o pesquisador acerca de suas práticas de jogar e práticas de leitura literária. As respostas serão cruzadas com as de outros(as) participantes e analisadas pelo pesquisador a fim de identificar se os jogos influenciaram mudanças nas práticas de leitura literária dos leitores transmídia. O(A) participante toma ciência de que essa pesquisa não apresenta riscos aparentes à saúde e que se trata de um processo completamente anônimo, não sendo permitido a divulgação de qualquer informação que possa levar à identificação do (a) participante. Assim, as perguntas da presente pesquisa são estruturadas de modo que qualquer desconforto por parte do (a) participante para com alguma questão tornar-se-á razão para que o (a) mesmo (a) não necessite respondê-la (s), havendo a possibilidade de a entrevista ser interrompida, ou reagendada, segundo vontade do(a) participante. O(A) participante torna-se ciente da possibilidade de sanar quaisquer dúvidas acerca da presente pesquisa, assim como seus resultados e acesso ao registro de consentimento através do e-mail do pesquisador 160

([email protected]), do telefone (14) 998162037, ou por carta a Jonathan Cordeiro Cavaca no endereço Av. Doutor Hércules Galletti, 260ª, bloco 10, apto 303, Jardim Califórnia, CEP 17527-350, Marília/SP. O(A) participante também se torna ciente de que essa pesquisa foi autorizada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP), órgão responsável pela verificação e análise ética de pesquisas e projetos envolvendo seres humanos no Brasil, situado em Av. Dom Antônio, 2100, Vila Tênis Clube, CEP: 19806-900.

Assis, ______de ______de ______.

______Nome do(a) Participante (Participante)

______Jonathan Cordeiro Cavaca (Pesquisador)

______Prof. Dr. Sérgio Fabiano Annibal (Orientador)

161

ANEXO IV - Respostas do questionário

Questões D. V. Voluntário 2 1 ------2 26 – 30 21 – 25 3 Pública Pública 4 Sim Sim 5 Digital Digital 6 Digital Digital 7 My time at Portia Toda a série Final Fantasy Child of Light Legend of Zelda Mother (Earthbound) Breath of Fire 8 A dançarina de Izu (Yasunari Serie das Crônicas de Gelo e Kawabata) Fogo Senhor dos Anéis Hobbit Duna 9 Intensidade - Veterana(o) (joga Intensidade - Ávida(o) (joga jogos narrativos digitais ao jogos narrativos digitais a menos duas vezes por menos quatro vezes por semana). semana).

Exploração - Explorador(a) Exploração - Explorador(a) (busca abrir o mapa do jogo (busca abrir o mapa do jogo e/ou completar as missões e/ou completar as missões secundárias antes de seguir secundárias antes de seguir com a história na missão com a história na missão principal). principal). 10 Intensidade - Casual (lê Intensidade - Veterana(o) (lê literatura de vez em quando). literatura ao menos uma vez por semana). Exploração - Explorador(a) (busca saber mais sobre a obra Exploração - Explorador(a) e/ou a narrativa antes de lê-la). (busca saber mais sobre a obra (Visto a partir da entrevista) e/ou a narrativa antes de lê-la).

162

Questões Voluntário 3 Vesemir 1 ------2 17 – 20 26 – 30 3 Parte Pública e Parte Particular Pública 4 Sim Sim 5 Física Física 6 Digital Física 7 The Witcher 3 Detroit Red Dead Redemption Sky The Last of Us Children of the light 8 Sherlock Holmes Macunaíma Frankenstein Good Omens 9 Intensidade - Casual (joga Intensidade - Ávida(o) (joga jogos narrativos digitais de vez jogos narrativos digitais a em quando). menos quatro vezes por semana). Exploração - Movida(o) pela História principal (joga a missão Exploração - Explorador(a) principal sem buscar ou se (busca abrir o mapa do jogo preocupar com as e/ou completar as missões secundárias). secundárias antes de seguir com a história na missão principal). 10 Intensidade - Casual (lê Intensidade - Veterana(o) (lê literatura de vez em quando). literatura ao menos uma vez por semana). Exploração - Movida(o) pela História principal (lê apenas a Exploração - Explorador(a) narrativa apresentada na obra (busca saber mais sobre a obra sem buscar informações e/ou a narrativa antes de lê-la). secundárias).

163

Questões Ellie Voluntário 6 1 ------2 17 – 20 17 – 20 3 Pública Particular 4 Sim Sim 5 Física Física 6 Digital Física 7 Assassin's Creed To the Moon The Last of Us Life is Strange Life is Strange Fran Bow 8 Os Miseráveis O Colecionador Quincas Borba Fahrenheit 451 Angústia O Morro dos Ventos Uivantes Anne de Green Gables Clube da Luta 9 Intensidade - Casual (joga Intensidade - Casual (joga jogos narrativos digitais de vez jogos narrativos digitais de vez em quando). em quando).

Exploração - Explorador(a) Exploração - Movida(o) pela (busca abrir o mapa do jogo História principal (joga a missão e/ou completar as missões principal sem buscar ou se secundárias antes de seguir preocupar com as com a história na missão secundárias). principal). Exploração - Explorador(a) (busca abrir o mapa do jogo e/ou completar as missões secundárias antes de seguir com a história na missão principal). 10 Intensidade - Veterana(o) (lê Intensidade - Ávida(o) (lê literatura ao menos uma vez literatura a menos quatro vezes por semana). por semana).

Exploração - Explorador(a) Exploração - Minerador(a) (busca saber mais sobre a obra (busca por falhas (como plot e/ou a narrativa antes de lê-la). holes) na narrativa).

164

Questões Voluntário 7 Voluntário 8 1 ------2 21 – 25 21 – 25 3 Pública Pública 4 Outro: Outro: Sistemas de Informação engenharia cartografia e de Agrimensura 5 Digital Física 6 Digital Física 7 Halo: Reach Assassin's Creed NieR: Automata Dying Light Dead Island Ace Combat 7 Halo 5 8 Halo: The fall of Reach (ficção Crônicas de Nárnia científica) 9 Intensidade - Casual (joga Intensidade - Casual (joga jogos narrativos digitais de vez jogos narrativos digitais de vez em quando). em quando).

Exploração - Explorador(a) Exploração - Explorador(a) (busca abrir o mapa do jogo (busca abrir o mapa do jogo e/ou completar as missões e/ou completar as missões secundárias antes de seguir secundárias antes de seguir com a história na missão com a história na missão principal). principal). 10 Intensidade - Casual (lê Intensidade - Casual (lê literatura de vez em quando). literatura de vez em quando).

Exploração - Explorador(a) Exploração - Movida(o) pela (busca saber mais sobre a obra História principal (lê apenas a e/ou a narrativa antes de lê-la). narrativa apresentada na obra sem buscar informações secundárias).

165

Questões Trinity Voluntário 10 1 ------2 21 – 25 21 – 25 3 Pública Parte Pública e Parte Particular 4 Sim Sim 5 Física Digital 6 Física Digital 7 Skyrim Danganronpa V3 God of War Doki Doki Literature Club The Last of Us Undertale Enter the Gungeon The Binding of Isaac 8 O Cortiço Obras da Agatha Christie Morte em Veneza Obras do Raphael Montes Great Gatsby Trilogia do Castelo Animado Declínio de um Homem 9 Intensidade - Casual (joga Intensidade - Veterana(o) (joga jogos narrativos digitais de vez jogos narrativos digitais ao em quando). menos duas vezes por semana). Exploração - Explorador(a) (busca abrir o mapa do jogo Exploração - Explorador(a) e/ou completar as missões (busca abrir o mapa do jogo secundárias antes de seguir e/ou completar as missões com a história na missão secundárias antes de seguir principal). com a história na missão principal). 10 Intensidade - Ávida(o) (lê Intensidade - Casual (lê literatura a menos quatro vezes literatura de vez em quando). por semana). Exploração - Movida(o) pela Exploração - Movida(o) pela História principal (lê apenas a História principal (lê apenas a narrativa apresentada na obra narrativa apresentada na obra sem buscar informações sem buscar informações secundárias). secundárias).

A partir da entrevista, foi dito pelo próprio Voluntário que é: Exploração - Explorador(a) (busca saber mais sobre a obra e/ou a narrativa antes de lê-la).

166

Questões Voluntário 11 Nami 1 ------2 21 – 25 17 – 20 3 Particular Parte Pública e Parte Particular 4 Sim Sim 5 Física Física 6 Física Digital 7 Qualquer jogo de RPG, IB (Jogo de 2012 de terror) como O Chamado de Super Mario Cthulhu 8 Todas de Stephen King Brás Cubas Olhai os Lírios do Campo 9 Intensidade - Casual (joga Intensidade - Casual (joga jogos narrativos digitais de jogos narrativos digitais de vez em quando). vez em quando)

Exploração - Movida(o) Exploração - Explorador(a) pela História principal (joga (busca abrir o mapa do a missão principal sem jogo e/ou completar as buscar ou se preocupar missões secundárias antes com as secundárias). de seguir com a história na missão principal) 10 Intensidade - Ávida(o) (lê Intensidade - Ávida(o) (lê literatura a menos quatro literatura a menos quatro vezes por semana). vezes por semana).

Exploração - Movida(o) Exploração - Minerador(a) pela História principal (lê (busca por falhas (como apenas a narrativa plot holes) na narrativa) apresentada na obra sem buscar informações secundárias).

167

ANEXO V – Entrevistas ANEXO V. A – Entrevista Ellie JONATHAN: Primeiro de tudo: muito obrigado, mesmo, por aceitar fazer parte desta entrevista. Elas são a alma da pesquisa toda e vão me ajudar muito, mesmo! Antes de começar, eu preciso passar para você algumas orientações padrões, que precisam ser passadas agora no começo, tudo bem?

ELLIE: Uhum.

JONATHAN: Eu vou enviar para você um documento chamado “Termo de Consentimento Livre e Esclarecido”, que explica tudo o que vou dizer aqui, agora. Posso enviar por e-mail, Whats App, ou por onde lhe for mais conveniente.

ELLIE: Pode enviar por e-mail.

JONATHAN: Eu só vou precisar que você assine esse documento, e me envie de volta. Pode ser uma foto do documento assinado, ou pode ser só uma foto da sua assinatura (não precisa ser a rubrica, pode ser o nome completo, como no RG), que eu colo digitalmente no documento e lhe envio novamente a versão assinada, sem problema algum. Se você me enviar imagem de sua assinatura, esse arquivo vai ser deletado assim que for posto no documento. Eu preciso lembrar que, sem a sua autorização explícita, toda e qualquer informação pessoal (nome, e-mail ou qualquer outra informação que possa levar a sua identificação) não será levada a público, nunca, mesmo após o término da pesquisa. Outra coisa: vamos supor que aconteça alguma coisa e você não queira mais fazer parte da pesquisa. Você pode se retirar dela a qualquer momento, ok? Qualquer informação que tenha me passado ou que quiser retirar, elas serão excluídas dos arquivos na hora por mim. A partir do momento de seu pedido de 168

exclusão, elas não serão divulgadas, nem aplicadas aos resultados da pesquisa de qualquer forma que seja.

ELLIE: Tudo bem.

JONATHAN: Como as perguntas não são sobre detalhes de sua vida, ou intimidade, essa pesquisa não apresenta riscos aparentes à saúde, mas, se por qualquer motivo você se sinta mesmo que minimamente desconfortável em responder algo, por favor, é seu direito não responder. Por favor, não se sinta obrigada a responder seja lá o que for. Se no fim da entrevista, você respondeu uma pergunta, ou nenhuma, não tem problema nenhum! Qualquer questão que você não queira responder é um feedback para que eu possa melhorar minhas perguntas. Por fim, o documento que vou lhe enviar contém meu e-mail, número de Whats App e endereço para que possa se valer de qualquer um deles para tirar dúvidas sobre a pesquisa, dos resultados, para acesso ao registro de consentimento, enfim. Para qualquer coisa referente à pesquisa.

ELLIE: Tudo bem.

JONATHAN: Você se lembra o que despertou seu interesse pela leitura?

ELLIE: Principalmente, o universo imaginativo, fantasioso, da ficção, porque eu estava no fundamental, quando me interessei mais pela leitura e eu me lembro que ia na biblioteca e passava o intervalo inteiro lá lendo livros de ficção e eu achava muito mais interessante a ficção ao que estava acontecendo na realidade, principalmente porque a escola é um período mais turbulento, e eu me interessava muito mais a ficção que envolvia histórias mágicas, pessoas com poderes... gosto muito de Percy Jackson... por causa dessa possibilidade de viajar para um outro mundo, praticamente.

169

JONATHAN: Você se lembra qual foi a primeira obra que despertou seu interesse pela leitura?

ELLIE: Acho que foi, da Coleção Vagalume... acho que é “Viagem à Ilha Encantada”, ou algo assim.

JONATHAN: Quando digo o termo “literatura” quais tipos de narrativa lhe vêm à mente?

ELLIE: Me vem narrativas nacionais. Principalmente agora, que tenho mais contato. Me vem as mais conhecidas, no caso: Machado de Assis, Gil Vicente... e me traz narrativas que, de alguma forma, agregam ao leitor.

JONATHAN: Quando você fala que agrega ao leitor, você quer dizer...?

ELLIE: Quero dizer que agregam uma mudança, ou elevam um pensamento crítico na pessoa. Coisas que você não tinha se questionado até então, e começa a se questionar.

JONATHAN: Isso é o que faria essas obras serem literatura?

ELLIE: Sim. Até mesmo nas obras fictícias coisas que você teoricamente não teria imaginado e passa a imaginar como seriam as coisas se fossem dessa maneira. Não precisa ser necessariamente um pensamento crítico, mas o despertar de um pensamento que seja diferente daquele que você tinha traçado na sua mente.

JONATHAN: Há um debate acerca dos limites da literatura, isto é, se filmes, músicas, jogos e peças teatrais podem ser considerados literatura. O que você acha disso?

170

ELLIE: Eu acho que pode ser literatura, com certeza. Tanto que as narrativas que têm surgido em músicas, por exemplo, fazem a opção de agregar uma história à letra que constroem, e nos jogos, principalmente. Primeiro, porque eles estabelecem um intertexto com outras obras literárias, e há sempre um motivo para a construção e desenvolvimento da narrativa. Então, sim, eu concordo que é literatura.

JONATHAN: Você vê alguma relação entre o modo como você joga e o modo como você lê?

ELLIE: Sim.

JONATHAN: De que forma?

ELLIE: Eu sou uma pessoa que lê lentamente e gosta de degustar os pedacinhos do livro. Às vezes eu volto cinco vezes até martelar aquilo na minha cabeça, e eu também sou assim com jogos, se eu não sinto que usufruí tanto. Por exemplo, existem alguns jogos em que para você completar 100% de uma missão, você também precisa completar as missões secundárias, e eu gosto de completar esses objetivos para completá-la 100%. Sou assim em ambos, gosto de entender todas as partes, e por isso talvez eu me prolongue nos dois.

JONATHAN: Como você vê a narrativa de um livro e de um jogo? Elas são iguais ou diferentes?

ELLIE: Acho que diferentes, porque a narrativa de um jogo, a estilística que envolve, vai além só de palavras. Existe a fotografia, o cenário, a trilha sonora e elementos além do enredo, que não estão presentes na narrativa de um livro. Por isso o jogo seria uma literatura que tira proveito de outras artes, como a música, o cinema, a fotografia. Por isso acho que são diferentes, mas se complementam, porque a literatura também está presente no jogo. 171

JONATHAN: O que você busca quando se entrega a essas narrativas?

ELLIE: Eu busco conhecer novas histórias, coisas que talvez não fossem possíveis para mim. De novo aquela busca de entender o imaginário. E até mesmo jogos realistas. Há jogos que retratam muito bem um futuro distópico, que talvez não seja tão longínquo. Mas eu busco, justamente, novas perspectivas do mundo.

JONATHAN: Em relação às narrativas favoritas: é mais comum que você jogue ou leia, ou é mais comum que você assista a gameplay, resenhas, leituras, apresentações, resumos etc?

ELLIE: É mais comum que eu assista a uma gameplay, porque existe a questão da acessibilidade. Alguns jogos são de difícil aquisição, por causa, também, do contexto em que está nosso país, então eu acabo lendo, ou vendo uma resenha, para ver se eu tenho condições de adquirir esse jogo primeiro. Às vezes eu acabo não adquirindo o jogo, por causa do valor alto, mas eu também não acho que interfere no aproveito que eu tenho da obra. Não completamente, pelo menos. Existem coisas que serão dispensadas, como fazer as missões do jeito que gostaria em um jogo de mundo aberto, por exemplo, porque está vendo outra pessoa jogar, mas isso não dificulta compreender a mensagem que o jogo quer transmitir.

JONATHAN: Se você assistir a uma gameplay e depois comprar o jogo. Esse contato que terá com a obra seria prejudicado de alguma forma por você já ter assistido à gameplay?

ELLIE: Sim, seria, porque quando você assiste a uma gameplay, você acaba recebendo spoilers da narrativa, então você já tem uma pré concepção, e você pensa “estou nessa parte, então preciso fazer assim e dessa forma para 172

conseguir passar”, porque você se baseia na visão que teve antes, quando assistiu à gameplay. Mas tem vezes que não. Depende muito. Existem jogos optativos – os jogos em que você escolhe a narrativa –, então você provavelmente vai fazer uma escolha diferente e talvez você veja algo que a pessoa que jogou a gameplay não tenha feito.

JONATHAN: Em relação às narrativas não favoritas: é mais comum que você jogue ou leia, ou é mais comum que você assista a gameplay, resenhas, leituras, apresentações, resumos etc?

ELLIE: Que eu também assista a gameplay e resenha, principalmente (risos). Resenha, quando é livro que eu não gosto. Por exemplo, livros do século XIX... Literatura canônica, na maior parte. Eu sei que é necessário ler, mas eu leio uma resenha, às vezes. Os jogos, quando eu sei que não vou gostar do jogo (eu gosto de FPS, jogos de tiro), como um RPG, que é um estilo que não me atrai tanto, eu acabo nem assistindo à gameplay, no caso. Eu já sei aquilo que quero, então acabo buscando sempre o que tenho interesse.

JONATHAN: Enquanto joga, você também utiliza outros aparelhos, como celular, televisão ou computador?

ELLIE: Sim. Dependendo do jogo.

JONATHAN: Que tipo de jogo você usaria, e que tipo de jogo não usaria?

ELLIE: Em um MOBA, como League of Legends, por exemplo, que você tem que construir uma build no seu personagem, então você vai ter que ver uma build no seu celular, ou computador. Também jogos de console, que precisa de uma tv, ou monitor – eu prefiro tv. 173

E dependendo, também, das informações que você quer procurar do jogo, por exemplo: você quer burlar o jogo e saber onde está tal colecionável, porque quer ter todos, então você pesquisa no celular.

JONATHAN: O que você costuma fazer nessa outra mídia quando a utiliza?

ELLIE: Eu costumo fazer pesquisa.

JONATHAN: Sobre o jogo, ou aleatória?

ELLIE: Sobre o jogo. Às vezes, também, tirar dúvidas se existe uma relação do jogo com aquilo que estou pensando. Por exemplo, eu vejo um personagem e parece que a o rosto dele é de certo ator, então eu pesquiso para saber se ele está envolvido, mesmo.

JONATHAN: Enquanto lê, você também utiliza outros aparelhos, como celular, televisão ou computador?

ELLIE: Sim.

JONATHAN: O que você costuma fazer nessa outra mídia?

ELLIE: Dependendo do livro, eu também pesquiso sobre os personagens, mais sobre a história, se tem alguma intertextualidade, sobre um fenômeno que tenha acontecido antes, como uma passagem histórica, e às vezes eu também ouço música.

JONATHAN: Por que você utiliza essa segunda mídia enquanto usa a primeira? Agora tanto faz se para livro, ou jogo. Enquanto você este lendo ou jogando, por que você usa uma segunda mídia enquanto você está realizando a primeira atividade?

174

ELLIE: Acho que para completar toda a experiência, tanto no jogo, quanto no livro. Por exemplo: ao ler um livro, eu ouço uma música, porque eu penso que essa experiência vai ficar mais completa se eu ouvir essa música nesse momento, nessa passagem do livro; ou quando eu pesquiso alguma coisa do jogo, a build, é porque eu acho que a experiência vai estar completa se eu souber trabalhar essa build, e para isso, eu preciso ter outra mídia.

JONATHAN: Uma última pergunta: Se você tivesse que escolher ficar para sempre com um dos dois, você escolheria o jogo ou o livro?

ELLIE: Uau! Essa pergunta é difícil! Acho que apesar do meu amor por jogos, e ter ficado muito em dúvida, inclusive, sobre qual faculdade eu faria, porque eu também faço letras, eu escolheria livros, porque os jogos também dependem dos livros, e tecnicamente, o livro engloba tanta coisa, que eu não conseguiria ficar sem.

JONATHAN: Bom, Ellie. Essas eram todas as questões que eu tinha. Tem alguma coisa que você queira perguntar, ou acrescer em alguma pergunta?

ELLIE: Não.

JONATHAN: Então vou parar a gravação. Muito obrigado por aceitar participar, Ellie! Suas respostas vão me ajudar muito nessa reta final. Muito obrigado, mesmo! ANEXO V. B – Entrevista D. V. JONATHAN: Primeiro de tudo: muito obrigado, mesmo, por aceitar fazer parte desta entrevista. Elas são a alma da pesquisa toda e vão me ajudar muito, mesmo! 175

Antes de começar, eu preciso passar para você algumas orientações padrões sobre como tudo vai funcionar, que precisam ser passadas agora no começo, tudo bem?

D. V.: Certo.

JONATHAN: Eu vou enviar pra você um documento chamado “Termo de Consentimento Livre e Esclarecido”, que explica tudo o que vou dizer aqui, agora. Posso enviar por e-mail, Whats App, ou por onde lhe for mais conveniente.

D. V.: Pode ser por e-mail.

JONATHAN: Eu só vou precisar que você assine esse documento, e me envie de volta. Pode ser uma foto do documento assinado, ou pode ser só uma foto da sua assinatura (não precisa ser a rubrica, pode ser o nome completo, como no RG), que eu colo digitalmente no documento e lhe envio novamente a versão assinada, sem problema algum. Se você me enviar imagem de sua assinatura, esse arquivo vai ser deletado assim que for posto no documento. Eu preciso desse documento para poder usar suas respostas na pesquisa, porque senão, não posso.

D. V.: Ah, entendi.

Eu preciso lembrar que, sem a sua autorização explícita, toda e qualquer informação pessoal (nome, e-mail ou qualquer outra informação que possa levar a sua identificação) não será levada a público, nunca, mesmo após o término da pesquisa. Outra coisa: vamos supor que aconteça alguma coisa e você não queira mais fazer parte da pesquisa. Você pode se retirar dela a qualquer momento, ok? Qualquer informação que tenha me passado ou que quiser retirar, elas serão excluídas dos arquivos na hora por mim. A partir do momento de seu pedido de 176

exclusão, elas não serão divulgadas, nem aplicadas aos resultados da pesquisa de qualquer forma que seja. Como as perguntas não são sobre detalhes de sua vida, ou intimidade, essa pesquisa não apresenta riscos aparentes à saúde, mas, se por qualquer motivo você se sinta mesmo que minimamente desconfortável em responder algo, por favor, é seu direito não responder. Por favor, não se sinta obrigada a responder seja lá o que for. Se no fim da entrevista, você respondeu uma pergunta, ou nenhuma, não tem problema nenhum! Qualquer questão que você não queira responder é um feedback para que eu possa melhorar minhas perguntas. Por fim, o documento que vou lhe enviar contém meu e-mail, número de Whats App e endereço para que possa se valer de qualquer um deles para tirar dúvidas sobre a pesquisa, dos resultados, para acesso ao registro de consentimento, enfim. Para qualquer coisa referente à pesquisa.

D. V.: Tudo bem, então. De acordo.

JONATHAN: Você se lembra o que despertou seu interesse pela leitura?

D. V.: Eu não sou exatamente uma leitora, sou mais uma ouvinte. Eu comecei como ouvinte.

JONATHAN: Começou ouvindo o quê?

D. V.: O meu irmão contando histórias, como os livros do Harry Potter. Eu sei todos os livros, mas não porque eu li, mas porque ele lia pra mim, então eu tenho o mesmo gosto que ele, em alguns aspectos, por causa disso.

JONATHAN: O que despertou seu interesse nisso. Eu não sei se você pedia para ele contar, ou se partia dele, mas o que despertou em você esse interesse em ouvir mais?

177

D. V.: Eu não precisava pedir, ele vinha e contava.

Jonathan: E o que te fez querer começar a ler as obras por você mesma?

D. V.: Comecei com literatura japonesa. Gostei bastante quando tive aula dos textos de literatura japonesa, deles, procurei mais mangás para ler, do mangá, fui para o manhua e as hqs chinesas, coreanas, e coisas assim.

JONATHAN: Quando digo o termo “literatura” quais tipos de narrativa lhe vêm à mente?

D. V.: Só literatura japonesa, que eu gosto.

JONATHAN: E por que você considera literatura essas obras que lhe vieram à cabeça?

D. V.: Por causa da disciplina que tem como nome “literatura” e apresentou alguns autores japoneses.

JONATHAN: Na disciplina, você lembra de ter visto ou ter tido alguma discussão sobre o porquê dessas obras serem literárias, o porquê de elas serem importantes para a literatura...?

D. V.: Não lembro.

JONATHAN: Tudo bem. Sem problema. Há um debate acerca dos limites da literatura, isto é, se filmes, músicas, jogos e peças teatrais podem ser considerados literatura. O que você acha disso?

D. V.: Eu acho que pode ser considerado, porque tem um jogo chamado Child of Light, que conheci pelo meu irmão. Além da imagem do jogo ser muito 178

bem feita, a narrativa se baseia em uma obra, que agora me fugiu, mas é uma releitura, basicamente. Há também O inferno de Dante, e vários jogos que são baseados em obras.

JONATHAN: E você considera que apenas os jogos derivados de obras literárias podem ser considerados literatura, ou todos os jogos podem ser considerados literatura?

D. V.: Me relembra qual é a definição de literatura?

JONATHAN: Vou jogar essa pergunta de volta: o que você considera ser literatura? Deixe-me lembrar uma coisa: nessa nossa entrevista, não tem certo e errado, tudo bem? De acordo com as suas ideias do que é [literatura], eu posso entender melhor o público dos leitores transmídia. Então se o que você disser que é literatura para você for compatível com a ideia de literatura clássica, há um caminho que eu posso seguir, e se o seu conceito de literatura for diferente do conceito clássico de literatura, existe outro caminho que eu posso seguir, também. Ambos me ajudarão igualmente, então não se preocupe com julgamentos, ou preconceitos, se você quiser responder, eu só peço que seja sincera e me diga: para você, o que você considera ser literatura?

D. V.: Os jogos de RPG, porque, no RPG de mesa, por exemplo, você cria uma história, você cria uma narrativa. Então não precisa ser aquela literatura arcaica, aquela literatura tradicional. Por que não pode considerar jogos como literatura? Ou os RPGs? Os RPGs podem trazer oportunidades tanto na leitura, como melhorar a leitura, quanto aprender um novo idioma, porque muito poucos jogos são traduzidos para o português. Ainda que exista, são poucos. Há muitos em inglês, japonês... pode-se encontrar em espanhol e vários outros idiomas. 179

O meu irmão, por exemplo, gosta de jogar em espanhol, para treinar o espanhol dele. Tanto a leitura quanto a audição. Eu já não gosto tanto. Por mais que eu tenha feito espanhol, não gosto tanto do espanhol e ainda não consigo trazer o idioma que estudo atualmente para os jogos, mas consigo trazer o inglês. Consigo treinar bastante o inglês com jogos. Então não acho que [o jogo] possa apenas ser usado como uma espécie de literatura, mas também como ensino de língua.

JONATHAN: Você vê alguma relação entre o modo como você joga e o modo como você lê?

D. V.: Não. Acho que não, porque por mais que eu faça letras, ainda não sou muito fã de ler em si. Estou começando a ler mais agora, com mangá, manhua e manhwa, mas como não tem muitos deles traduzidos em português, eu tenho que lê-los em inglês, então vou enriquecendo o meu inglês ao invés de enriquecer meu português

JONATHAN: Como você vê a narrativa de um livro e de um jogo? Elas são iguais ou diferentes?

D. V.: Iguais e diferentes ao mesmo tempo, porque no livro, você vai ter que imaginar o que está acontecendo e sendo descrito. No jogo, não. Você já tem tudo na sua tela, e precisa prestar atenção na história, assim como tudo à sua volta, no jogo.

JONATHAN: E elas seriam iguais em que sentido?

D. V.: Seriam iguais pela história. A história pode ser a mesma, mas a forma como ela é contada muda de um lugar para outro.

JONATHAN: Quando você vai atrás de uma narrativa, o que você busca quando se entrega a elas? 180

D. V.: Normalmente RPG, ou Civilization, que é um jogo de administrar terras, história. Eu gosto de jogar Fire Emblem Fate: Conquest, que estava jogando, mas parei um pouco. Agora estou jogando Rune Factory 4, que tem a história principal, ao mesmo tempo que existe a administração do reino, plantar coisas e melhorar a visão que o reino tem de você.

JONATHAN: Nesse tipo de jogo, de administração, você já sabe o que vai encontrar nele, como a mecânica básica. O que você busca quando os joga? O que te atrai nesses jogos?

D. V.: Nossa, boa pergunta. Um pouco da história, mas também o gráfico e a jogabilidade que já conheço, como a de um Harvest Moon...

JONATHAN: Em relação às narrativas favoritas: é mais comum que você jogue ou leia, ou é mais comum que você assista a gameplay, resenhas, leituras, apresentações, resumos etc?

D. V.: Quando eu tenho dificuldade, ou não estou conseguindo encontrar um item, por exemplo, então eu vejo um detonado, mas às vezes eu assisto a gameplays para ver se vou gostar de um jogo, também. Mesmo que eu compre um jogo, e ele seja muito bonito, mas com uma mecânica horrível, às vezes é mais fácil continuar na gameplay, porque eu perco a vontade de jogar pela mecânica atrapalhar a jogabilidade.

JONATHAN: Se você assistir a uma gameplay e depois comprar o jogo. Esse contato que terá com a obra seria prejudicado de alguma forma por você já ter assistido à gameplay?

D. V.: Não, porque quando você assiste a uma gameplay, você não vê os controles que estão usando, apenas eles já agindo no jogo. 181

Fora isso, a história ainda continua sendo boa, então ao invés de você jogar com a mecânica ruim, assiste à gameplay, porque o jogo é bom.

JONATHAN: Em relação às narrativas não favoritas: é mais comum que você jogue ou leia, ou é mais comum que você assista a gameplay, resenhas, leituras, apresentações, resumos etc?

D. V.: Só se eu tiver dificuldade para encontrar algo, momento no qual eu assistiria a uma gameplay, ou leria onde posso encontrar o item específico.

JONATHAN: Então mesmo em suas narrativas não favoritas, é mais comum que você as jogue, ao invés de as assistir?

D. V.: Isso, e se a mecânica não for boa, é mais comum eu assistir.

JONATHAN: Enquanto joga, você também utiliza outros aparelhos, como celular, televisão ou computador?

D. V.: Às vezes uso aba de música, ou, em jogos de turno, como Civilization, eu mexo no celular, também.

JONATHAN: O que você costuma fazer nessa outra mídia quando a utiliza?

D. V.: Jogo outro jogo (risos). Como é de celular, existe a possibilidade de deixar a luta no modo automático, então consigo fazer os dois ao mesmo tempo.

JONATHAN: Enquanto lê, você também utiliza outros aparelhos, como celular, televisão ou computador?

D. V.: Eu uso o celular para ler mangá, mahua, manhwa, então eu paro apenas se eu receber alguma mensagem importante no Whats App, relacionada 182

a alguma disciplina ou algo parecido que necessite de uma resposta imediata. Caso contrário, não.

Jonathan: Enquanto você joga, você procura informações sobre aquele jogo?

D. V.: Sim, enquanto eu jogo, procuro informações do jogo, porque preciso saber onde está certo item, ou como conseguir tal item, então procuro.

Jonathan: E enquanto você lê? Você procura informações sobre aquele livro/mangá/manhua?

D. V.: No mangá e HQ, não. O que eu busco são recomendações sobre se a história é legal, daí busco ler.

JONATHAN: Enquanto você joga, por que você acha que utiliza essa segunda mídia enquanto usa a primeira?

D. V.: Para avançar na história do jogo. No computador, eu tenho de ter foco, mas como no celular eu posso deixar no automático, eu preciso olhar de vez em quando, então eu pauso o jogo, certifico-me que parou de rodar no modo automático, aperto para continuar e volto para o jogo [do computador] e deixo esse rodando no automático.

JONATHAN: Uma última pergunta: Se você tivesse que escolher ficar para sempre com um dos dois, você escolheria o jogo ou o livro?

D. V.: Jogos.

JONATHAN: Por quê?

D. V.: Boa pergunta, eu também não sei. Eu prefiro jogo. 183

Acho que seria quase como o livro, a diferença é que ao invés de eu ficar imaginando como são as coisas, o jogo já me dá isso, e eu preciso focar na história.

JONATHAN: E entre jogo e filme?

D. V.: O filme corta muito a história para poder encaixar no tempo de exibição e no orçamento. O jogo não, por mais que eles tenham de se enquadrar em um orçamento, eles têm mais liberdade que o filme. O filme tem efeitos especiais, por exemplo, e o jogo já é feito no computador, sem atores de carne e osso. Você tem a voz da pessoa para adicionar ao jogo, mas não é algo que possa reduzir outros aspectos dele. Harry Potter, por exemplo. No filme, não existe o Pirraça; no livro, sim. Se eu não tivesse meu irmão contando a história para mim, falando que existe no livro e como ele é, eu não saberia que o Pirraça existia, porque o filme não me dá essa informação, e o livro é muito longo e eu não teria paciência de sentar e ficar lendo.

Jonathan: Por que você não teria paciência de se sentar e ler?

D. V.: Porque eu tenho TDAH, tenho Transtorno de Hiperatividade e Déficit de Atenção, então isso atrapalha muito, por eu ser agitada, ficar parada fazendo alguma coisa durante muito tempo.

JONATHAN: D. V., essas eram todas as questões que eu tinha. Tem alguma coisa que você queira perguntar, ou acrescer em alguma pergunta?

D. V.: Não. Por enquanto, está tudo bem.

JONATHAN: Então vou parar a gravação. Muito obrigado por aceitar participar, D. V.! Suas respostas vão me ajudar muito nessa reta final. 184

Muito obrigado, mesmo! ANEXO V. C – Entrevista Vesemir JONATHAN: Primeiro de tudo: muito obrigado, mesmo, por aceitar fazer parte desta entrevista. Elas são a alma da pesquisa toda e vão me ajudar muito, mesmo! Antes de começar, eu preciso passar para você algumas orientações padrões sobre como tudo vai funcionar, que precisam ser passadas agora no começo, tudo bem? Eu vou enviar para você um documento chamado “Termo de Consentimento Livre e Esclarecido”, que explica tudo o que vou dizer aqui, agora. Posso enviar por e-mail, WhatsApp, ou por onde lhe for mais conveniente.

VESEMIR: Pode ser por e-mail.

JONATHAN: Eu só vou precisar que você assine esse documento, e me envie de volta. Pode ser uma foto do documento assinado, ou pode ser só uma foto da sua assinatura (não precisa ser a rubrica, pode ser o nome completo, como no RG), que eu colo digitalmente no documento e lhe envio novamente a versão assinada, sem problema algum. Se você me enviar imagem de sua assinatura, esse arquivo vai ser deletado assim que for posto no documento. Eu preciso desse documento para poder usar suas respostas na pesquisa, porque senão, não posso. Eu preciso lembrar que, sem a sua autorização explícita, toda e qualquer informação pessoal (nome, e-mail ou qualquer outra informação que possa levar a sua identificação) não será levada a público, nunca, mesmo após o término da pesquisa. Outra coisa: vamos supor que aconteça alguma coisa e você não queira mais fazer parte da pesquisa. Você pode se retirar dela a qualquer momento, ok? Qualquer informação que tenha me passado ou que quiser retirar, elas serão excluídas dos arquivos na hora por mim. A partir do momento de seu pedido de 185

exclusão, elas não serão divulgadas, nem aplicadas aos resultados da pesquisa de qualquer forma que seja. Como as perguntas não são sobre detalhes de sua vida, ou intimidade, essa pesquisa não apresenta riscos aparentes à saúde, mas, se por qualquer motivo você se sinta mesmo que minimamente desconfortável em responder algo, por favor, é seu direito não responder. Por favor, não se sinta obrigada a responder seja lá o que for. Se no fim da entrevista, você respondeu uma pergunta, ou nenhuma, não tem problema nenhum! Qualquer questão que você não queira responder é um feedback para que eu possa melhorar minhas perguntas. Por fim, o documento que vou lhe enviar contém meu e-mail, número de WhatsApp e endereço para que possa se valer de qualquer um deles para tirar dúvidas sobre a pesquisa, dos resultados, para acesso ao registro de consentimento, enfim. Para qualquer coisa referente à pesquisa.

VESEMIR: Tudo certo.

JONATHAN: Você se lembra o que despertou seu interesse pela leitura?

VESEMIR: Desde criança, apesar de não termos muito acesso a livros, meus pais sempre incentivaram muito a leitura, sempre foram muito presentes na escola, e minha mãe sempre gostou muito de contar histórias, misturar histórias para eu dormir, então ela trazia alguns livros do trabalho... meu pai sempre gostou muito de ler, lia de tudo. Quando meus pais namoravam, ele encheu a caçamba de uma Pampa com gibis que colecionou durante a vida, para vender. Então a leitura sempre foi muito presente, aqui em casa.

JONATHAN: Você lembra o que chamava sua atenção, ou o seu interesse em querer ver mais, ou ouvir mais...?

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VESEMIR: Eu sempre gostei de imaginar as histórias que estava ouvindo, ou lendo, e de certa forma, me projetar nesses universos. Então era frequente, após a leitura, eu sonhar com aquela história, que eu estava ali. Eu sempre gostei de literatura mitológica, cavaleiresca, de aventuras... foi assim que eu me formei leitor. Conforme o tempo passa, partimos para outros tipos de leitura, mas foi sempre esse universo, que tinha muito a ver com o jogar videogame.

JONATHAN: Quando digo o termo “literatura” quais tipos de narrativa lhe vêm à mente?

VESEMIR: No sentido teórico, ou você quer saber estios de leitura que eu gosto, ou geral?

JONATHAN: Desculpe, deixe-me reestruturar a questão: quando você ouve um professor, amigo ou pais falando sobre literatura, que tipo de narrativa você imagina que eles estejam falando?

VESEMIR: Muitas vezes, a literatura popular. Algo mais voltado à realidade do entorno, porque meus pais não tiveram muito estudo, então quando falam de literatura, eu sei que não estão falando dos grandes clássicos da literatura em si. Talvez eles nunca tenham lido por falta de conhecimento, por uma ignorância no sentido de não conhecer, mesmo. Por não ter tido acesso. Então, muitas vezes, quando ouvimos sobre literatura, estamos falando de algo popular, mais acessível. Um pouco diferente do que vemos ao entrar na Academia, por exemplo, que são outros termos e é a parti daí que passamos a entender literatura não mais como puramente entretenimento, mas mais voltado a questões sociais, com reflexões acerca da sociedade, do homem em si... há esses dois módulos. Como somos do campo de Letras, existem esses dois universos por onde transitamos: em aula, com uma literatura popular para os alunos, e ao mesmo tempo, como pesquisador, uma literatura mais cânone, por assim dizer.

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JONATHAN: E quando é você quem fala de literatura, quais seriam os tipos de narrativa que se encaixa nesse termo “literatura”?

VESEMIR: Eu tenho um pensamento bem amplo em relação a isso. Tenho como livro favorito de literatura erudita, Macunaíma. É meu livro preferido, quando li falei “Nossa! Que livro espetacular! O cara é maluco!”, e você lê na adolescência é uma coisa, lê na faculdade é outra completamente diferente e ainda assim não perde seu encantamento. Mas eu também sou despido de preconceitos que vemos na faculdade e gostar de literatura de entretenimento, como a saga do Percy Jackson e gostar muito dela, e ao mesmo tempo ler Macunaíma, Machado, Clarice, então eu gosto de transitar em todas as áreas, porque acho que quando lemos literatura popular, de entretenimento, podemos nos conectar melhor com o aluno que está querendo entrar no mundo da leitura. Não vou passar Macunaíma direto para ele, sem ele ter, primeiro, o gosto de ler. Então eu gosto de transitar nos dois mundos da literatura.

JONATHAN: Por que você considera os cânones e o popular como literatura? O que neles os faz ser literatura, para você?

VESEMIR: Considero o cânone e o popular como literatura, pois encontramos algumas afirmações que desconsideram o saber popular e suas formas de expressão como literatura. Já ouvi de pessoas ao longo da vida que literatura se limita ao grande cânone e que entretenimento ou obras ditas populares não são literatura. Vejo elas como literatura por ser uma porta de entrada para a leitura e servem como início para uma formação dos leitores.

JONATHAN: Há um debate acerca dos limites da literatura, isto é, se filmes, músicas, jogos e peças teatrais podem ser considerados literatura. O que você acha disso?

VESEMIR: Primeiro, acho que é um debate válido, porque os dois lados têm argumentos positivos, mas não é possível dissociar que, hoje, o cinema, os 188

videogames, as séries têm muito de literatura. Eles têm suas técnicas próprias de cada arte, mas o narrar, a forma como é mostrado, muitas vezes têm uma ligação forte com o que é na literatura dos livros, então acredito que o cinema, os videogames, as séries, também podem ser enxergados como literatura. Talvez um tipo diferente de literatura, mas literatura.

JONATHAN: Diferente como?

VESEMIR: Na linguagem. Na forma de apresentar a sua narrativa. Porque se você disser “literatura”, a maioria vai pensar especificamente nos livros, na literatura escrita. Então, por isso, tipo diferente de literatura. O modo, a linguagem, mesmo, de como se apresenta essa literatura.

JONATHAN: Você vê alguma relação entre o modo como você joga e o modo como você lê?

VESEMIR: Sim. Geralmente, os jogos que gosto de jogar são o que podemos considerar mais literários. Frustra-me muito jogar um jogo que tenha zero história, zero acontecimentos... e estou “jogando por jogar”. Tenho uma relação muito conflituosa com jogos online justamente por conta dessa ausência, e esses jogos que gosto têm muito da literatura que leio. Como disse, são histórias fantásticas, com conteúdo narrativo, e não apenas um “jogo pelo jogo”, como era no começo dos jogos. Por isso vejo bastante similaridade com os livros que gosto de ler e dos jogos que gosto de jogar. São bem parecidos.

JONATHAN: Você disse que o tipo de literatura é diferente, e em questão da narrativa de um livro e de um jogo? Elas são iguais ou diferentes?

VESEMIR: Elas são diferentes pela forma como são apresentadas. No livro, temos uma necessidade maior de conceituar o universo. Ele precisa estar escrito para você estar imerso nele, enquanto o jogo, por ser visual, você tem a 189

possibilidade de a conceituação imagética estar projetada na tela, então você consegue trabalhar outros aspectos sem precisar disso. Deixe-me explicar melhor: Quando você lê um romance realista, é muito importante para o autor expor o entorno, então ele gasta páginas e páginas projetando em nossa mente aquela imagem a partir da leitura, enquanto o jogo traz o reconhecimento dessa imagem rapidamente pelo visual, dando-lhes mais liberdade para trabalhar o contexto, a história em si, as relações entre as personagens de forma diferente, mais rápida, mais progressiva. Até porque, para um jogo ser interessante, ele precisa desse movimento rápido, com transições, sem isso de “Faz duas horas que estou parado nessa parte e não anda”, então é assim que vejo um pouco da diferença dessas narrativas.

JONATHAN: O que você busca quando se entrega a essas narrativas?

VESEMIR: Acho que, primeiro de tudo, buscar uma identificação. Algo que minimamente me ligue àquela narrativa, aquele personagem. Seja pessoalmente (de hábitos, de gostos), ou de preferências de leitura (de encontrar algo que eu gostaria de vivenciar, ou que eu goste de acompanhar e de ler). Eu gosto muito de coisas que, mesmo que de forma sutil, traga problematizações, que além da diversão, gere um pouco de reflexão. Seja ela histórica, social, ou um jogo que pareça ser absurdo, escrachado, mas quando se observa com mais cuidado, pode-se ver um ponto social, ou histórico de onde se possa tirar uma reflexão dali. Acho que há alguns autores, alguns estúdios de games que conseguem mimetizar a realidade, ainda que de maneira absurda, mas que você reconheça o seu entorno ali dentro. Mesmo que seja alguém lá dos Estados Unidos, que não conheça a sua realidade, mas você se reconhece e seu entorno, ali dentro.

JONATHAN: Em relação às narrativas favoritas: é mais comum que você jogue ou leia, ou é mais comum que você assista a gameplays, veja uma resenha, leia um resumo...? 190

VESEMIR: É mais comum que eu leia, ou que eu jogue. Eu tenho um pouco de ansiedade e se eu assistir à gameplay, eu não vou jogar, porque eu já vou saber da história e se tiver algo que não gostei, ou que vai me travar, eu vou acabar não progredindo. Eu vejo, primeiro, algumas reviews acerca do que o jogo ou livro possa me oferecer. Uma resenha mais crítica, talvez do que eu encontrarei ali, mas eu evito assistir a gameplay. Às vezes eu até assisto posteriormente para ver uma outra visão do que eu joguei, ou do que eu li, mas é mais comum que eu leia ou jogue. Muito mais.

JONATHAN: Se for assistir à Assistir às playthroughs/resumos antes de jogar/ler diminui de alguma forma sua experiência com o jogo?

VESEMIR: Ela vai influenciar a minha experiência com o jogo. Seja positivamente, o que me levaria a pensar que eu “realmente preciso” jogar esse jogo, ou negativamente, o que me levaria a pensar se eu o compro ou não. Acontece muito de estarmos navegando pelas listas de jogos em promoção e encontrarmos um jogo com o qual estávamos flertando há um tempo, e gostaríamos de comprar, mas não sabemos se o jogo é bom e temos medo de perder dinheiro, então vou procurar algumas reviews, como “a primeira meia hora do jogo”, para ver se existem elementos que gosto no jogo, por exemplo, então vou mais para as reviews quando o jogo é desconhecido, ou quando conheço o jogo, mas não conheço a história, a jogabilidade... porque já aconteceu de eu comprar um jogo achando que seria fantástico, mas me arrepender profundamente e não conseguir terminá-lo por frustração. Tenho muito pouco problema com questões gráficas. Sou da época do PlayStation 1 e do Polystation, então era muito pouco interessante o gráfico para a gente, em relação ao que o jogo oferecia. Acho que, hoje, vivemos em uma era fantástica em termos gráficos, e isso ajuda muito para se criar boas narrativas, mas o gráfico não me interessa tanto quanto o conteúdo. 191

As reviews têm pouco efeito sobre os jogos que sei que serão bons, mas em jogos desconhecidos, elas podem influenciar se eu jogo ou não determinado jogo.

JONATHAN: Em relação às narrativas não favoritas: é mais comum que você jogue ou leia, ou é mais comum que você assista a gameplays, veja uma resenha, leia um resumo...?

VESEMIR: Acho que em termos de leitura, seria mais comum que eu vá ao livro, primeiro, que a uma resenha. Não tenho muito o costume de ler ou assistir a resenha de livros, geralmente me guio pela sinopse do livro, e como compro online, já vejo alguns comentários na página, antes de comprar, mas em termos de jogos, eu procuro assistir primeiro, porque eu sei que vou me decepcionar um pouco, mas preciso saber o tamanho dessa decepção. Isso acontece muito com jogos de tiro, de guerra, como Battlefield, Call of Duty, porque sou do tempo em que você jogava single player, e havia toda uma história nos envolvendo, ali, e por mais que eu não fosse fluente em inglês, eu gostava de conhecer. Hoje, você compra um jogo desse, e ele tem seis horas de gameplay single player e o resto é todo voltado ao multiplayer online, que é zero conteúdo histórico. Apenas te joga em um mapa e você precisa sobreviver, matar, morrer e acabou. Então vai lançar um Battlefield novo, vou atrás de ver como é o single player, se é interessante, se tem uma história bacana, ou sé algo posto ali só por colocar. Em jogos de RPG, que eu tenho uma relação conflituosa de amor e ódio, que é ou eu amo, ou eu odeio, eu busco saber mais a respeito para saber se vou amar ou odiar. É algo que eu gosto, mas sempre penso bem se vou comprar ou não, porque pode ser um dinheiro desperdiçado.

JONATHAN: E esse tipo de preocupação você não tem com livros?

VESEMIR: Por exemplo, eu não sou muito fã de histórias de terror e horror, seja em filmes, seja em jogos, ou em livros em geral... eu não sou muito 192

adepto a me colocar em estados de adrenalina excessiva para o lado do medo, então eu vou para uma narrativa de terror, de suspense, geralmente influenciado por outras pessoas, então vou por isso, e não vou procurar na internet por resenhas, porque eu sei que a chance de me influenciar negativamente e eu não querer ler aquilo é maior que se eu for influenciado por alguém.

JONATHAN: Se é um jogo não-favorito, você busca uma gameplay primeiro, e se é um livro não-favorito, você vai para o livro primeiro, ao invés de ir para uma “gameplay” do livro. Você imagina um motivo dessa diferença?

VESEMIR: Acho que uma das coisas que me influencia bastante é a questão financeira, porque, hoje, um jogo tem o valor de dois ou três livros, então eu vou pagar 50 reais em um livro, mas um jogo é difícil de se encontrar por menos de 120 reais. Nas super promoções, pode-se encontrar grandes jogos consagrados, por 90 reais. Então há esse apelo financeiro, mas também um livro, se eu não gostar, ele estará na minha biblioteca e eu poderei emprestar para alguém, dar para alguém, e os jogos, por eu comprar a versão digital, eu não tenho o que fazer com ele, a não ser mantê-lo e nunca mais jogá-lo. Ele ficará na minha biblioteca online, e não vou mais acessá-lo. Também acho que o tempo que gastamos com jogos e com livros [influenciam]. Na minha vida, os jogos inegavelmente gastam muito mais horas que a leitura de um livro. Geralmente, eu vou ler um livro antes de dormir para desacelerar, mas pela correria do dia a dia, eu não consigo mais fazer o que fazia na adolescência de pegar um livro de 500 páginas e lê-lo em cinco dias, enquanto um jogo como Red Dead Redemption 2, que só de história principal há 70 horas de gameplay, e você zera isso em duas semanas, chegando em casa, do trabalho, e você diz que vai jogar um pouco, e quando vê, gastou três, quatro horas na frente da tela. Para eu ler, preciso de um ambiente confortável, de silêncio e tranquilidade, e o jogo é tão imersivo e tem os próprios sons, que se você está em um ambiente barulhento, você acaba se dissociando dele, mas para a leitura, 193

eu preciso de um cuidado maior. Tanto é que costumo estudar de madrugada, depois que a casa já silenciou, depois que o pessoal foi dormir, hora em que a rua de casa, que é muito barulhenta, parou com o barulho. Para o videogame, que é algo sonoro, é só por um fone de ouvido no controle e você se dissocia do redor. Acho que são esses elementos que me fazem ler um livro que não seja de um tema que me agrade muito, ou que me seja chamativo, que eu consuma mais, e não um jogo: a parte financeira, de tempo, ou gerenciamento do meu tempo livre que eu poderia estar fazendo isso.

JONATHAN: Enquanto joga, você também utiliza outros aparelhos, como celular, televisão ou computador?

VESEMIR: Enquanto estou jogando, geralmente uso o celular, mais para falar com minha namorada, ou quando está em uma tela carregando alguma coisa, eu olho o Twitter, respondo alguém no WhatsApp, mas eu acabo geralmente focando mais no jogo em si do que em outras coisas. Eu não costumo jogar algo ouvindo música, por exemplo. Tenho alguns amigos que jogam Fifa, que é um jogo que não tem história, só futebol, e eles jogam ouvindo músicas. Eles tiram o som do jogo e conectam o Spotify e ficam jogando de fone de ouvido. Eu não consigo fazer isso. Ainda gosto do som do jogo, da narração, mesmo que repetida, gosto de estar no jogo, apenas. Não costumo ligar computador, ou ficar mudando para televisão enquanto estou jogando, e o celular é basicamente para responder mensagens.

JONATHAN: Por que você utiliza essa segunda mídia enquanto usa a primeira?

VESEMIR: Primeiro, porque o celular se tornou quase como uma extensão de nossa própria mão. É quase impossível você passar um dia sem o celular, seja para trabalho, os milhares grupos de WhatsApp, que quando se tem algo a resolver, não se manda mais e-mail, manda no grupo, então acabamos tendo o celular muito próximo. 194

Também um ponto para evitar problemas no relacionamento, porque quando vou jogar, gasto no mínimo umas duas horas, se eu me ausentar por duas horas é uma situação problemática, então às vezes eu deixo de responder amigos e grupos, mas não deixo de responder minha namorada, ou a minha mãe, porque se ela me mandou uma mensagem, é porque se trata de algo importante, pois quase não usa celular, então ela quer comunicar alguma coisa, ou seja, é mais para um núcleo bem próximo que acabo usando o celular durante os jogos.

JONATHAN: Enquanto lê, você também utiliza outros aparelhos, como celular, televisão ou computador?

VESEMIR: É basicamente a mesma coisa. Seria apenas o celular, ou o computador, quando ele é o livro, como quando estou lendo um ebook. Como eu disse, eu me disperso muito fácil na leitura se não estive rem um ambiente propício, de silêncio, então se estou com a televisão ligada, tocando música, ou mexendo no celular, eu também não consigo me focar, e eu tenho uma coisa – não sei se é uma coisa masculina, ou se é normal – de não conseguir fazer duas coisas ao mesmo tempo. Por exemplo: estou falando com você, se eu pegar o celular, você falar por dois minutos e depois me perguntar o que você falou, eu não saberei. Não lembro, não foquei. Então se eu estou lendo e respondendo alguém no celular, ficarei voltando a leitura, porque esqueci o que estava lendo, onde parei, então gosto de ambientes sem distrações quando estou lendo. O celular está perto para responder algo que precise de uma resposta imediata, mas não ficarei focado nessas coisas. Não consigo ler com a televisão ligada, computador ligado, música tocando.

JONATHAN: Se você tivesse que escolher ficar para sempre com um dos dois, você escolheria o jogo ou o livro?

VESEMIR: Essa é uma pergunta bem capciosa (risos). É uma daquelas perguntas que deixaríamos sem resposta (risos).

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JONATHAN: Tudo bem, sem problemas (risos).

VESEMIR: Não, não. Estou brincando. Acho que é uma pergunta bem complexa, mas se eu disser que ficaria com os livros, eu estaria mentindo. Acho que ficaria com o videogame.

JONATHAN: Por quê?

VESEMIR: Porque é uma válvula de escape mais rápida. É algo em que quando eu quero ter uma fuga da realidade, vou para ele, porque, como eu falei, é uma mídia que tem escrita, imagem, som, ela tem um apelo, uma capacidade de chamar minha atenção maior que o livro. É algo que, quando se para para pensar, você fala que não seria algo tão positivo assim, essa influência tão grande. Quer dizer, se você chegar na sala de aula, hoje, na Academia, na aula de algum professor extremamente conhecedor de literatura e falar para ele que vai abandonar os livros para ficar no videogame, você seria execrado. Mas é algo que me identifico muito. Acredito que somos capazes, como seres pensantes, de dosar as coisas. Não estou dizendo que deixo de sair com a minha namorada para ficar jogando videogame, ou para assistir a um jogo de futebol, mas são coisas que temos de dosar. Há determinados jogos que gosto muito e que, quando lançaram, eu fiquei muito ligado, como foi o caso do Read Dead, como vai ser o caso do Cyberpunk, e estou em uma fase financeira complicadíssima e não sei o que vou fazer da minha vida, porque lança mês que vem e estou pensando em, se lançar, não verei nada, vou me desligar completamente, silenciar essa palavra do Twitter, do Facebook, porque não quero tomar nenhum spoiler, porque tenho certeza de que ele vem aí para brigar pelo top 5 da geração... Mas acho que ficaria com os jogos, porque a vida anda corrida com trabalho, com estudo, e com leituras obrigatórias, que às vezes o livro acaba sendo um pouco maçante, enquanto o videogame é uma fuga mais rápida e mais saudável que outras drogas que eu poderia usar (risos).

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JONATHAN: Bom, essas eram todas as questões que eu tinha. Tem alguma coisa que você queira perguntar, ou acrescentar em alguma pergunta?

VESEMIR: Não, eu queria agradecer a oportunidade, porque é um tema tão pouco estudado e tão marginalizado na academia, a relação com os jogos, os videogames, que quando eu recebi o e-mail da graduação com o link, eu pensei que essa era uma das pesquisas que eu preciso colaborar, ainda que eu imaginei que fosse ficar apenas no formulário, que não fosse ter outra interação, e acho que é muito importante termos esses diálogos acerca do que é literatura, do que ela se constitui e quais são as possibilidades dela, porque eu estudei teatro no meu mestrado, que é algo também relegado nos estudos literários, mas ainda assim tem mais espaço que os videogames. Quando você vai para a faculdade, você não vê tanto esses temas, então você sente falta, porque reconhece nessas coisas valores literários, mas não tem a possibilidade de discussão. Então achei muito bacana quando ouvi, e quando você perguntou se podíamos fazer essa entrevista, eu aceitei. O que pudermos contribuir, pode usar 100% do que falei, e se precisar de algo mais durante a pesquisa, pode me procurar.

JONATHAN: Então vou parar a gravação. Muito obrigado por aceitar participar, VESEMIR! Suas respostas vão me ajudar muito nessa reta final. Muito obrigado, mesmo!

VESEMIR: Eu espero que sejam de bastante utilidade para você, porque é um tema que gosto, as duas coisas.

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ANEXO V. D – Entrevista Nami JONATHAN: Primeiro de tudo: muito obrigado, mesmo, por aceitar fazer parte desta entrevista. Elas são a alma da pesquisa toda e vão me ajudar muito, mesmo!

NAMI: Imagine, não. É difícil, mesmo. Alguém tem que ajudar em alguma coisa, não é? (risos)

JONATHAN: Antes de começar, eu preciso passar para você algumas orientações padrões sobre como tudo vai funcionar, que precisam ser passadas agora no começo, tudo bem? Eu vou enviar para você um documento chamado “Termo de Consentimento Livre e Esclarecido”, que explica tudo o que vou dizer aqui, agora. Posso enviar por e-mail, WhatsApp, ou por onde lhe for mais conveniente.

NAMI: Tanto faz, se quiser mandar por e-mail, porque também fica registrado, acho que é melhor.

JONATHAN: Eu só vou precisar que você assine esse documento, e me envie de volta. Pode ser uma foto do documento assinado, ou pode ser só uma foto da sua assinatura (não precisa ser a rubrica, pode ser o nome completo, como no RG), que eu colo digitalmente no documento e lhe envio novamente a versão assinada, sem problema algum. Se você me enviar imagem de sua assinatura, esse arquivo vai ser deletado assim que for posto no documento. Eu preciso desse documento para poder usar suas respostas na pesquisa, porque senão, não posso. Eu preciso lembrar que, sem a sua autorização explícita, toda e qualquer informação pessoal (nome, e-mail ou qualquer outra informação que possa levar a sua identificação) não será levada a público, nunca, mesmo após o término da pesquisa. 198

Outra coisa: vamos supor que aconteça alguma coisa e você não queira mais fazer parte da pesquisa. Você pode se retirar dela a qualquer momento, ok? Qualquer informação que tenha me passado ou que quiser retirar, elas serão excluídas dos arquivos na hora por mim. A partir do momento de seu pedido de exclusão, elas não serão divulgadas, nem aplicadas aos resultados da pesquisa de qualquer forma que seja. Como as perguntas não são sobre detalhes de sua vida, ou intimidade, essa pesquisa não apresenta riscos aparentes à saúde, mas, se por qualquer motivo você se sinta mesmo que minimamente desconfortável em responder algo, por favor, é seu direito não responder. Por favor, não se sinta obrigada a responder seja lá o que for. Se no fim da entrevista, você respondeu uma pergunta, ou nenhuma, não tem problema nenhum! Qualquer questão que você não queira responder é um feedback para que eu possa melhorar minhas perguntas. Por fim, o documento que vou lhe enviar contém meu e-mail, número de WhatsApp e endereço para que possa se valer de qualquer um deles para tirar dúvidas sobre a pesquisa, dos resultados, para acesso ao registro de consentimento, enfim. Para qualquer coisa referente à pesquisa.

NAMI: Tudo bem, sem problemas.

JONATHAN: Você se lembra o que despertou seu interesse pela leitura?

NAMI: Leitura no geral...?

JONATHAN: Isso, no geral.

NAMI: Eu tive algumas influências na minha família. No caso, por parte de pai, porque minha mãe não tem tanto esse costume, então meu pai sempre trouxe para casa e sempre incentivou, ele mesmo, essa questão da leitura.

JONATHAN: E o que você costumava ler? 199

NAMI: Desde pequena, leio muito mangá e livros, num contexto geral, sempre tive bastante contato.

JONATHAN: Você lembra o que nessas histórias despertou o seu interesse?

NAMI: A linguagem, porque eu conseguia perceber a diferença entre o material de um texto para o outro. Então se eu lesse uma hq ou mangá, eu conseguia perceber a diferença de linguagem usada em um e em outro.

JONATHAN: Quando digo o termo “literatura” quais tipos de narrativa lhe vêm à mente?

NAMI: Eu arrisco dizer acadêmica, mas não só acadêmica de meios acadêmicos, publicados por academistas, por exemplo, mas o material usado para atingir esse nível da academia. Por exemplo, os livros considerados clássicos. Acho que o nome “clássicos” diz bastante, então todas as literaturas, ou textos inclusos nessa questão dos clássicos, eu colocaria aí.

JONATHAN: Por que você os considera literatura?

NAMI: Porque, para mim, essa ideia de literatura envolve uma linha de raciocínio, então cada livro, cada texto tem um motivo para estar ali. Pode ser qualquer motivo, por mais idôneo ou besta que seja, ainda é um motivo e causou a existência desse livro, dessa obra, num contexto geral. Então acho que literatura é toda e qualquer propagação de textos no geral, senão entra na arte, que tem algum motivo para existir.

JONATHAN: Há um debate acerca dos limites da literatura, isto é, se filmes, músicas, jogos e peças teatrais podem ser considerados literatura. O que você acha disso?

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NAMI: Acho que é um debate muito polêmico, e acho que... como posso explicar... a arte é muito ampla. Muita coisa entra no conceito da Arte. A literatura entra no conceito da Arte, mas às vezes a Arte não entra no conceito de literatura. Acho que soa bastante acadêmico falar que literatura está restrita a textos, mesmo que eu tenha afirmado isso antes (provavelmente em um ato falho), mas a literatura é uma forma de Arte, e tudo que tenha algum tipo de expressão, qualquer que seja a forma, entra na literatura.

JONATHAN: Como você vê a narrativa de um livro e de um jogo? Elas são iguais ou diferentes?

NAMI: Há muitas coisas agregadas, porque quando falamos do jogo, podemos falar que está na primeira ou terceira pessoa, do mesmo modo que falamos de um texto, mas a narrativa de um jogo pode ser, ou não, linear. Quando eu era pequena, havia aqueles livros do Clube Penguin, que você podia escolher o que ia acontecer, e então você ia para determinadas páginas do livro. Acho que fazer um livro assim não é fácil, que siga essa orientação de que se pode escolher o que vai acontecer no livro. Então a diferença entre o jogo e o livro seria essa questão da escolha, mesmo: como a pessoa interpretará ou entenderá uma pergunta dentro do livro, do texto, do jogo, da narrativa. Acho que essa diferenciação é importante, mas não significa que sejam exatamente distintas.

JONATHAN: Você vê alguma relação entre o modo como você joga e o modo como você lê?

NAMI: Sim...? Mais ou menos. Mais pelo tipo de conteúdo que acabo consumindo, não é mais pela literatura, ou pelo tipo de jogo em si. Mas, mais ou menos, pelo tipo de conteúdo que consigo consumir.

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JONATHAN: O conteúdo que você consume nos dois são parecidos. É isso?

NAMI: Eu não poderia dizer que... deixa eu pensar em uma franquia que tenha jogo e livro... por exemplo, Resident Evil. Não significa que eu jogue todos os jogos, leia todos os livros, assista a todos os filmes, mas ela tem essa temática de suspense, então acabo lendo outras obras com essa temática, esse gênero.

JONATHAN: O que você busca quando se entrega a essas narrativas?

NAMI: Pensando nas últimas coisas que eu li sem ser por causa da faculdade, acho que a experiência de jogar alguma coisa é você se sentir imerso na história, no que o jogo, ou texto traz. Acho que a experiência de imersão vem de várias formas, então você precisa se sentir próximo da personagem, por exemplo, ter noção do cenário, conseguir entender a narrativa como se fosse você. Enquanto consumidora, acredito que esteja muito bem inclusa nesses aspectos, mas busco muito sobre o sentimento de cada personagem, então se vejo um sentimento que a personagem manifesta e ele possa ser sentido por mim, ou que está muito bem escrito, acabo indo mais para esse lado.

JONATHAN: No questionário, você tinha dito que é uma Mineradora (busca por falhas (como plot holes) na narrativa). Poderia me dizer um pouco como seria isso, por favor? O que você busca nas obras, nesse caso?

NAMI: Vou explicar um pouco sobre a minha trajetória quanto à leitura. Quando leio ou jogo, costumo procurar por histórias que se fechem, ou seja, histórias que tenham um "começo, meio e fim". Eu quero dizer com isso que procuro por coisas que podem realmente acontecer, não literalmente ou que faça sentido em uma esfera real, mas que siga uma linha [de desenvolvimento] para ser contada. 202

Normalmente me sinto bastante desmotivada quando encontro um “easter egg” que não faz sentido na história e acaba sendo apenas uma missão complicada dentro do jogo, por exemplo. No caso de livros, o mesmo acontece com algum personagem que possui relação mínima com a trama e só acaba estando ali para que o leitor simpatize com ele. Da mesma forma que me frustro, também me surpreendo com algumas personagens que podem vir a desenvolver um papel realmente importante na obra ou simplesmente param de aparecer na mesma.

JONATHAN: Em relação às narrativas favoritas: é mais comum que você jogue ou leia, ou é mais comum que você assista a gameplay, resenhas, leituras, apresentações, resumos etc?

NAMI: Acho que assistir algo sobre.

JONATHAN: Você costuma assistir a gameplays de seus jogos favoritos antes de jogá-los?

NAMI: Sim, quando tenho tempo para isso!

JONATHAN: Você costuma assistir/ler resumos/resenhas de um livro favorito antes de lê-lo?

NAMI: Não exatamente. Procuro resenhas e opiniões antes de lê-lo, e se forem muito boas ou muito ruins acabo lendo o material.

JONATHAN: Se você assiste algo sobre um livro, ou sobre um jogo e depois você adquire esse jogo, ou livro. Quando você for experienciá-los por você mesmo, você acha que ter assistido antes diminui, de alguma forma, a sua experiência?

NAMI: De saber o que acontece, estragou, não vou ler mais. É mais ou menos nesse sentido? 203

JONATHAN: De qualquer forma que seja.

NAMI: Não. Normalmente, acabo me animando mais para jogar ou ler, depois de ver resenhas normalmente muito positivas, ou muito negativas, porque acaba me atiçando a curiosidade.

JONATHAN: Depois de ver a resenha, você tenta adquirir a obra para experienciar por você mesma?

NAMI: Eu preciso me sentir muito cativada pela obra para poder realmente correr atrás e adquiri-lo.

JONATHAN: Em relação às narrativas não favoritas: é mais comum que você jogue ou leia, ou é mais comum que você assista a gameplay, resenhas, leituras, apresentações, resumos etc?

NAMI: Acho que minhas experiências medianas estão mais na hora de consumir, mesmo, então jogando algo, ou lendo.

JONATHAN: Você costuma assistir a gameplays de jogos que não sejam seus favoritos antes de jogá-los?

NAMI: Não muito, mas assisto numa baixa frequência.

JONATHAN: Você costuma assistir/ler resumos/resenhas de livros que não sejam seus favoritos antes de lê-lo?

NAMI: Sim, quando não me interesso por ler o material na íntegra, procuro saber mais sobre!

JONATHAN: Enquanto joga, você também utiliza outros aparelhos, como celular, televisão ou computador? 204

NAMI: Sim.

JONATHAN: O que você costuma fazer nessa outra mídia quando a utiliza?

NAMI: Se não estou me comunicando com alguém (provavelmente jogando junto, ou até apenas conversando, mesmo), por exemplo, quando jogava Zelda, havia partes que não dava para passar, então você acaba pesquisando sobre.

JONATHAN: Por que você utiliza essa segunda mídia enquanto usa a primeira?

NAMI: Hum... depende. Às vezes, essa questão de se comunicar com alguém, porque você quer dividir essa experiência com a pessoa, ou é um jogo que não se joga sozinho, depende. Ou por “necessidade” de saber o que acontece, ou como passar [certo nível/obstáculo].

JONATHAN: Enquanto lê, você também utiliza outros aparelhos, como celular, televisão ou computador?

NAMI: Sim.

JONATHAN: O que você costuma fazer nessa outra mídia quando a utiliza?

NAMI: Eu não consigo fazer uma coisa só, então se estou lendo, eu preciso estar ouvindo música, ou estar com meu gato no colo... coisas do gênero. Eu frequentemente tenho outro aparelho perto de mim para consulta de palavras, conceitos, dados ou informações sobre o livro e/ou autor(a).

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JONATHAN: Por que você utiliza essa segunda mídia enquanto usa a primeira?

NAMI: Eu consigo focar melhor no que estou fazendo.

JONATHAN: Se você tivesse que escolher ficar para sempre com um dos dois, você escolheria o jogo ou o livro?

NAMI: Mas... o tipo de conteúdo consumido seria exclusivo de um desses dois meios?

JONATHAN: Isso.

NAMI: Provavelmente livro.

JONATHAN: Por quê?

NAMI: Não é como se minha experiência digital fosse ruim, usando as mídias digitais, mas o sólido, como as páginas do livro me fazem ter um pouco mais de realidade. De saber que, realmente, estou com um texto ali, e que em algum momento alguém estava escrevendo, cópias foram tiradas, vendidas, reproduzidas, então acho que o livro físico – alguns digitais dão essa sensação também – me faz ter uma noção de realidade um pouco melhor.

JONATHAN: Você saberia o que no livro digital dá essa sensação, se não são as páginas físicas? Ou então qual livro digital te dá essa sensação?

NAMI: Nas alternativas digitais, normalmente o próprio texto me dá esse sentimento de realidade. Por opção, eu costumo pegar livros físicos, mas a linguagem dos livros e a minha familiaridade com a temática ajudam muito nesse ponto.

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JONATHAN: Bom, essas eram todas as questões que eu tinha. Tem alguma coisa que você queira perguntar, ou acrescentar em alguma pergunta?

NAMI: Acredito que não. Foi bastante completo. Achei que seria bem mais amplo, mas foi bastante completo. Achei interessante.

JONATHAN: Puxa, obrigado. Então vou parar a gravação. Muito obrigado por aceitar participar, Nami! Suas respostas vão me ajudar muito nessa reta final. Muito obrigado, mesmo!

NAMI: Eu que agradeço!

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ANEXO V. E – Entrevista Trinity JONATHAN: Primeiro de tudo: muito obrigado, mesmo, por aceitar fazer parte desta entrevista. Elas são a alma da pesquisa toda e vão me ajudar muito, mesmo!

TRINITY: A gente precisa se ajudar. Em momentos como esse, é importante.

JONATHAN: Antes de começar, eu preciso passar para você algumas orientações padrões sobre como tudo vai funcionar, que precisam ser passadas agora no começo.

TRINITY: Tudo bem.

Eu vou enviar para você um documento chamado “Termo de Consentimento Livre e Esclarecido”, que explica tudo o que vou dizer aqui, agora. Posso enviar por e-mail, WhatsApp, ou por onde lhe for mais conveniente.

TRINITY: Tudo certo. Por Whats App é mais direto, mais rápido, então pode ser por lá.

JONATHAN: Eu só vou precisar que você assine esse documento, e me envie de volta. Pode ser uma foto do documento assinado, ou pode ser só uma foto da sua assinatura (não precisa ser a rubrica, pode ser o nome completo, como no RG), que eu colo digitalmente no documento e lhe envio novamente a versão assinada, sem problema algum. Se você me enviar imagem de sua assinatura, esse arquivo vai ser deletado assim que for posto no documento. Eu preciso desse documento para poder usar suas respostas na pesquisa, porque senão, não posso. Eu preciso lembrar que, sem a sua autorização explícita, toda e qualquer informação pessoal (nome, e-mail ou qualquer outra informação que possa levar 208

a sua identificação) não será levada a público, nunca, mesmo após o término da pesquisa. Outra coisa: vamos supor que aconteça alguma coisa e você não queira mais fazer parte da pesquisa. Você pode se retirar dela a qualquer momento, ok? Qualquer informação que tenha me passado ou que quiser retirar, elas serão excluídas dos arquivos na hora por mim. A partir do momento de seu pedido de exclusão, elas não serão divulgadas, nem aplicadas aos resultados da pesquisa de qualquer forma que seja. Como as perguntas não são sobre detalhes de sua vida, ou intimidade, essa pesquisa não apresenta riscos aparentes à saúde, mas, se por qualquer motivo você se sinta mesmo que minimamente desconfortável em responder algo, por favor, é seu direito não responder. Por favor, não se sinta obrigada a responder seja lá o que for. Se no fim da entrevista, você respondeu uma pergunta, ou nenhuma, não tem problema nenhum! Qualquer questão que você não queira responder é um feedback para que eu possa melhorar minhas perguntas. Por fim, o documento que vou lhe enviar contém meu e-mail, número de WhatsApp e endereço para que possa se valer de qualquer um deles para tirar dúvidas sobre a pesquisa, dos resultados, para acesso ao registro de consentimento, enfim. Para qualquer coisa referente à pesquisa.

TRINITY: Concordo com tudo.

JONATHAN: Você se lembra o que despertou seu interesse pela leitura?

TRINITY: Lembro, sim. Eu sou uma pessoa que lê desde pequeno, que foi apresentado aos livros desde pequeno, e isso começa desde a infância, que começamos a gostar das imagens que são apresentadas nos livros. Temos esse contato e eu gosto de livros desde sempre. Comecei gostando de livros infantis e acabei pegando gosto por eles desde os primeiros contatos com esses livros infantis mais imagéticos.

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JONATHAN: Lembra o que nele te despertou isso?

TRINITY: Essa é um pouco mais complicada (risos). Não sei, na verdade, o que pode ter causado o interesse. Talvez quando criança gostamos muito das imagens, da história, da ficção em si. Cativam muito a gente. Acredito que seja isso, porque eu gosto muito do plano narrativo, da ficção em si. Isso é o que me cativa bastante na leitura de livros.

JONATHAN: Quando digo o termo “literatura” quais tipos de narrativa lhe vêm à mente?

TRINITY: Os canônicos são os primeiros que passam. Quando se fala em “literatura”, é inevitável pensar nos canônicos e... não sei, numa Clarice Lispector da vida... numas poesias do Fernando Pessoa. Para mim, quando falam “literatura”, a primeira coisa que me passa à mente realmente são os canônicos, mesmo sabendo que literatura não é só isso, mas os canônicos sempre vêm.

JONATHAN: Você disse que literatura não é apenas canônico... quais outros tipos de narrativa lhe vêm à cabeça quando falamos “literatura”?

TRINITY: Narrativas de história em geral. Tudo que envolve o ato de contar uma história, eu já considero como sendo uma literatura, ou uma forma de narrar uma história.

JONATHAN: Por que você os considera literatura?

TRINITY: Justamente porque precisa desse... a pessoa que está contando essa história, essa narrativa, precisa ter seus equipamentos linguísticos, suas estruturas linguísticas para começar a contar essa história. 210

Então a partir do momento que o indivíduo começa a contar uma história para alguém e começa a usar a linguagem, independente da maneira que for, já considero literatura.

JONATHAN: Há um debate acerca dos limites da literatura, isto é, se filmes, músicas, jogos e peças teatrais podem ser considerados literatura. O que você acha disso?

TRINITY: Como pesquisador na área de literatura, eu poderia puxar a sardinha para o meu lado, obviamente (risos), mas concordo muito com uma definição que Compagnon traz ao comparar literatura com um jogo de xadrez, em que toda literatura é aquela na qual o leitor não consegue vencer esse jogo de xadrez... que falta alguns espaços para podermos interpretar. Então, para mim, o limite passa a não ser um limite físico, algo que precise seguir uma estrutura concreta. Basta atingir esses pensamentos no leitor, ou no ouvinte, que já me garante que seja literatura, independente de utilizar recursos estéticos super louváveis, ou algo mais simples, mas que traz outras coisas por debaixo dos panos, como uma tradição oral, folclore, ou algo do gênero. Isso já é literatura, para mim. Então independente de ser uma criança que me conta uma história (eu trabalho com crianças, por exemplo) e talvez ela utilizou o máximo de recursos que ela teve para contar o que aconteceu no dia anterior e ela produziu aquilo de maneira tão única que já a considero literatura. Para mim, o limite não existe. Isso é mais para segregar as pessoas, tirá-las do acesso à literatura como um todo.

JONATHAN: Como você vê a narrativa de um livro e de um jogo? Elas são iguais ou diferentes?

TRINITY: Claramente elas são diferentes. Elas usam recursos diferentes, por mais que, muitas vezes, nos demonstram as mesmas estruturas. Por exemplo: em um jogo, estamos sempre na interação. Estamos sempre em uma posição onde interagimos com a história, muitos jogos mudamos o curso da 211

história e... eu não tive muito contato com esses jogos, mas há vários jogos que conseguimos alterar o rumo da história, e o narrador do livro sempre impõe o curso da história, então nunca conseguimos mudar esse curso. Para mim, há essa diferença de nos jogos elas serem mais interativas, e no livro, pouco. Não posso dizer que não são interativas, porque há alguns livros cujos recursos linguísticos são apresentados para isso, mas no jogo, claramente ficamos submersos de maneira diferente, com mais sentidos do corpo humano sendo ativados durante o jogo.

JONATHAN: Você vê alguma relação entre o modo como você joga e o modo como você lê?

TRINITY: Vejo, vejo, sim. Acredito que o modo como eu jogo é por conta das leituras, na verdade, porque eu sempre fico mais focado no desempenho narrativo, de entender a história. Eu, jogando Skyrim, por exemplo, fico muito mais vidrado em como está correndo a história do que no que e preciso fazer no jogo. Então essa relação íntima entre eu prestar atenção à narrativa talvez venha do interesse de leitura, da história.

JONATHAN: No caso do Skyrim, que você mencionou: você costuma seguir a missão principal, ou costuma abrir o mapa antes de continuar a história?

TRINITY: Eu costumo abrir o mapa. Costumo fazer as quests do indivíduo que está passando em uma ponte... e já me interesso pela história dali e realmente demoro muito para zerar o jogo por conta disso. As histórias são mais cativantes, para mim, em um jogo. Na verdade, em qualquer coisa que eu faça, eu gosto mais da história em si, da narrativa em si.

JONATHAN: O que você busca quando se entrega a essas narrativas?

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TRINITY: Nossa... essa pergunta é filosófica (risos). Estou pensando em como responder... Acredito que seja realmente um meio de escape. Talvez não, talvez em pensar como que outras pessoas estão encarando o mundo, e ter esse contato através da narrativa... acho que é nesse sentido. Não sei se consigo responder isso numa resposta muito curta, ou algo que vá te ajudar. Ela abre para várias interpretações.

JONATHAN: Não tem problema. Se você quiser falar mais sobre isso, pode falar.

TRINITY: Bom... a leitura, quando parte do meu interesse que busco na narrativa, é sempre buscar um escape naquele momento... uma válvula de escape, tanto que tenho vários livros e leio muito quando estou de férias da faculdade. Vão 30 livros facilmente na leitura. Mas às vezes, por fazer o curso de letras, fico muito interessado em perceber esses recursos linguísticos em vários aspectos, em narradores diferentes, em narradores que sabem que estão sendo narrados e acabarão, porque o livro terminará com eles, gosto muito desses recursos psicológicos... Chegando a uma conclusão depois de pensar em voz alta: é um processo de escape, mesmo. De eu entrar em conexão com o livro e ter um processo de escape para a rotina que estou tendo. Um descanso, talvez. Desculpe o prolongar, mas a resposta se formou depois que eu falei tudo em voz alta.

JONATHAN: Não se preocupe com isso, está perfeito. Isso acontece apenas com livros, ou com jogos também?

TRINITY: Com jogos, também. No momento, por exemplo, o único jogo o qual tenho acesso é o lolzinho, e o único recurso que temos ali são as histórias dos personagens e eu sempre gosto dos personagens que têm a história mais densa: gosto da Kindred, que vem da mitologia japonesa, então vou pesquisar sobre a mitologia japonesa, depois vou desenhar o campeão, porque também 213

gosto de desenhar, enfim. As histórias me cativam mais, então acredito que seja esse mesmo escape, de um momento. Acredito que se eu conseguisse fazer meu videogame voltar a funcionar corretamente, eu teria esses recursos nos jogos mais interativos, ainda mais nos que estão sendo lançados hoje, que já sabemos que um The Last of Us [Part II], que acabou de ser lançado, traz um recurso narrativo impressionante! Acho aquele jogo impressionante pela história que ele passa, pela interação que nos propõe. Não consegui jogar, ainda, mas é isso que me cativa e acho que passa por esse escape que temos na hora de entrar em contato com as narrativas.

JONATHAN: Em relação às narrativas favoritas: é mais comum que você jogue ou leia, ou é mais comum que você assista a gameplay, resenhas, leituras, apresentações, resumos etc?

TRINITY: Eu acredito que eu leio depois de jogar. Gosto bastante de ver as pessoas jogando... estou tentando lembrar o nome do jogo que depois virou livro... Assissin’s Creed! Fiquei bem interessado nos livros e aconteceu esse movimento deu jogar, vero pessoal jogando e fazendo as coisas de um jeito diferente, tendo um contato diferente com a história, então fui ler os livros e fiquei um tanto decepcionado, mas enfim. Normalmente faço os dois. Se há a possibilidade de jogar e ler, eu faço os dois.

JONATHAN: Em relação às narrativas não favoritas: é mais comum que você jogue ou leia, ou é mais comum que você assista a gameplay, resenhas, leituras, apresentações, resumos etc?

TRINITY: Na verdade, quando eu não estou gostando, eu já paro tudo. Não jogo, nem leio... já me decepciono logo no começo. Acho que precisa me prender de uma maneira que eu esteja sentido esse prazer do escape, e é possível de eu não fazer nada, mesmo. Mas acredito que se acontecer de eu ficar preso ali, é provável que eu fique apenas restrito ao jogo e não partir para uma narrativa, ou a uma gameplay. É bem provável que não haja essa relação.

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JONATHAN: Enquanto joga, você também utiliza outros aparelhos, como celular, televisão ou computador?

TRINITY: Não, não. Talvez se houver um tempo de carregamento longo, como o LoL, eu olho o Instagram, mas se não, se for mais interativo, não. Vou precisar do meu cigarro, apenas, e o jogarei (risos).

JONATHAN: Você costuma procurar sobre um jogo enquanto você está jogando, ou antes, ou depois?

TRINITY: Procurar gameplay, procurar sobre a história...?

JONATHAN: Qualquer coisa sobre o jogo.

TRINITY: É provável que sim. Ver pessoas jogando para saber o que tenho que fazer em certa quest, ou procurando algo para complementar a gameplay, mas acho que nunca está relacionado à narrativa, nesse caso, mas ao modo de jogar.

JONATHAN: Enquanto lê, você também utiliza outros aparelhos, como celular, televisão ou computador?

TRINITY: Também não. Na verdade, depende do porquê que estou lendo. Se estou lendo um texto da faculdade, então lerei com mais escape para um Instagram ou Facebook, mas se estou lendo pro prazer, mesmo, às vezes nem dá tempo, porque leio muito rápido (risos).

JONATHAN: No caso dos textos da faculdade, que você disse ter escapes maiores, o que você costuma fazer nessa outra mídia quando a utiliza?

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TRINITY: Normalmente uso o Instagram. Fico preso lá e preciso lembrar de sair para voltar aos textos da faculdade.

JONATHAN: E por que você utiliza essa segunda mídia enquanto usa a primeira?

TRINITY: Essa pergunta é difícil, nunca parei para pensar, mas acho que é porque está ali. É o que tem mais notificação, então entro e fico preso ali, rodando.

JONATHAN: Você costuma buscar mais sobre o texto, ou o livro que você está lendo? Qualquer que seja ele.

TRINITY: Sim, procuro. Gosto muito de ver as críticas dos livros, depois, de ver o que estão achando. Quando um livro que comprei na pré-venda é lançado, sempre procuro ver o que estão achando, qual acrítica do livro, então entro no meio e critico também, o que acho e o que não acho... Se há que me interesse para a pesquisa, corro para tentar relacioná-lo... dependendo do livro, pesquiso mais a respeito.

JONATHAN: Se você tivesse que escolher ficar para sempre com um dos dois, você escolheria o jogo ou o livro?

TRINITY: Ah, escolheria livro. É fato.

JONATHAN: Por quê?

TRINITY: Porque é o que tenho mais prazer, efetivamente, quando estou no ato de ler. Gosto mais, me sinto mais interagido quando estou lendo um bom livro que quando estou jogando um bom jogo. Apesar de que não estou tendo muitas experiências [com jogos], então vamos deixar aqui aberto – porque eu sou de humanas, então a resposta vai sempre ficar aberta (risos). Não estou tendo muita experiência com essas novas 216

tecnologias de jogo, esses jogos que, para mim, são incríveis e talvez [essa escolha] se dê porque não tive esse contato com jogos de PlayStation 4, talvez os de PlayStation 5 que estão vindo agora, em que a narrativa é muito bem produzida, que o jogo é muito diferente do que eu tenho contato até hoje, então talvez essa opinião mude se eu estiver em contato, mas no momento, realmente, o livro é o que eu escolho, mesmo.

JONATHAN: Bom, essas eram todas as questões que eu tinha. Tem alguma coisa que você queira perguntar, ou acrescentar em alguma pergunta?

TRINITY: Acredito que não.

JONATHAN: Então vou parar a gravação. Muito obrigado por aceitar participar, Trinity! Suas respostas vão me ajudar muito nessa reta final. Muito obrigado, mesmo!