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Anais Eletrônicos do X Encontro Internacional da ANPHLAC São Paulo – 2012 ISBN 978-85-66056-00-6

De quem é a Copa? A memória social da conquista de 1978

Lívia Gonçalves Magalhães1

Ao longo do século XX, a Copa do Mundo de Futebol da FIFA tornou-se um dos maiores eventos esportivos mundiais. A seleção argentina esteve em quatro finais, vencendo a metade delas: em 1978, como país sede, e em 1986, no México, e garantiu o vice-campeonato em 1930, no Uruguai, perdendo para a seleção anfitriã, e em 1990, na Itália, perdendo para a Alemanha. Durante a última ditadura civil-militar, a Argentina viveu duas Copas, 1978, em casa, e 1982, na Espanha. Até hoje, a conquista de 1978 é tema de disputas e comemorações. Além de ter sido a primeira vitória na competição, a realização do evento no próprio país significou tanto uma maior participação popular como um diferente uso político pela ditadura. Neste sentido, a Copa tornou-se, para alguns, símbolo do apoio da sociedade ao regime; para outros, uma forma de protesto, comemorando durante um período repressivo; e, finalmente, para outros foi somente um acontecimento esportivo, sem associação política, exatamente em um momento em que para os argentinos tudo parecia tratar-se de posições políticas. Essas memórias conflituosas permanecem até os dias atuais, com diversos percursos ao longo dos anos, e permitem perceber diversas manifestações de apoio, resistência e certo consenso ao longo dos anos ditatoriais. Porém, como afirma Elizabeth Jelin, é preciso compreender que “esas memorias y esas interpretaciones son también elementos claves en los procesos de (re)construcción de identidades individuales y colectivas en sociedades que emergen de períodos de violencia y trauma”2. Ou seja, para entender tais conflitos, temos que entender não apenas a experiência ditatorial, mas também o processo de democratização e a atual disputa pela memória do país. Como destaca Le Goff, a maneira como operamos a memória está ligada a maneira como operamos em relação à sociedade, o que também ajuda a entender tais conflitos ao longo do passado recente argentino.3

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I. Introdução

A partir de 1983, com o fim do Processo e as inúmeras denúncias de violações de direitos humanos aos responsáveis militares, e a consequente condenação moral do próprio governo (tanto na sociedade argentina como internacionalmente), a principal memória do período passou a ser a de reprovação ao regime. A Copa do Mundo de 1978 foi inserida nesta leitura, e associada com a própria ditadura, como uma parte a mais da mesma. Durante anos, condenou-se tanto o evento como os jogadores, a comissão técnica e os torcedores, e para muitos era uma vergonha assumir ter participado das celebrações, que ganharam uma conotação quase tão negativa como a própria ditadura. Para outros, como o goleiro da seleção Ubaldo Fillol, as críticas não são justas com o plantel:

Yo me pongo en el lugar de Luque y se me caen las lágrimas. De dolor, no de bronca. Luque perdió a un hermano. Que volvía de Haber jugado un partido de fútbol, tuvo un accidente y se mató. Y después que aparezcan diciendo –algunos tipos, Billardo o algunos otros- de que ganamos el Mundial gracias a la dictadura? No, es duro, es muy fuerte.4

No novo período democrático a memória coletiva que prevaleceu em um primeiro momento foi a de uma sociedade vítima da violência resultante do antagonismo e do conflito entre duas forças políticas, guerrilheiros e militares, que resultou na violência física, na forma da violação de direitos humanos de vítimas desta mesma sociedade “inocente”. Ao longo das últimas décadas esta memória foi constantemente problematizada, como por exemplo, por organizações de familiares de desaparecidos políticos – principalmente, H.I.J.O.S., que luta para recuperar a identidade política de seus pais –, ou por aqueles que defendem uma memória positiva da ditadura – e, nesse sentido, o julgamento dos membros das organizações armadas.5 As diferentes manifestações relacionadas à Copa do Mundo de 78 refletem tais questionamentos. Por um lado, alguns condenam qualquer tipo de participação na festa, associando a celebração esportiva com o apoio ao regime; por outro, estão os que entendem o futebol como um campo autônomo, independente e impenetrável pela política, e por isso criticam qualquer associação entre a vitória da seleção nacional e a ditadura. E recentemente ganhou força a leitura daqueles que entendem que a própria celebração foi uma forma de resistência ao regime, mostrando que o futebol estava nas “mãos do povo”, e este o utilizou como um desafio à ditadura, celebrando nas ruas e festejando sob um governo autoritário. 3

Estas três principais leituras atuais disputam entre si o espaço da memória sobre a Copa do Mundo e a ditadura, mas também se complementam. Analisá-las permite compreender aspectos fundamentais da sociedade naqueles anos, assim como, ampliar questões sobre os atores sociais e seu cotidiano nos anos de ditadura civil-militar.

II. Preparando a casa

A Argentina foi escolhida sede da XI Copa de Mundo em 1966, dez anos antes do golpe civil- militar, durante o 35º Congresso da FIFA em Londres. O outro país candidato era o México, que renunciou após ser confirmado em 1964 como sede da Copa de 1970. Na época da escolha, a Argentina vivia há poucos dias sob a ditadura liderada pelo General Juan Carlos Onganía, e, mesmo com as crises política, social e econômica que se agravaram ao longo dos anos, a escolha foi ratificada pela FIFA em 1971. Em 1974, o então presidente Juan Domingo Perón definiu que a organização da Copa seria responsabilidade do Ministério de Bem Estar Social, sob o comando de José Lopez Rega, através da “Comissão de Apoio ao Mundial”.6 Após o golpe em 1976, a Junta Militar que assume o poder e instaura o autodenominado Processo de Reorganização Nacional decide pela manutenção do evento. Porém, a conturbada situação do país fez com que a FIFA, então presidida por João Havelange - que organizava sua primeira Copa do Mundo -, solicitasse em maio do mesmo ano uma posição definitiva em relação a realização ou não da Copa naquele país:

Eu fui ver a Isabelita, segunda mulher do presidente Perón, eu lhe disse: “Nós estamos a dois anos e meio da Copa, e nós estamos com problemas” – não, estávamos a três anos –, e ela me disse: “Não, eu vou ver, presidente Havelange...”, não sei o quê. O tempo passou, veio a revolução, e eu aí um dia fui a Buenos Aires. Fui recebido pelo presidente Videla, e eu disse a ele: “Presidente, o senhor tem que me garantir que vai fazer, se não tem que tomar uma providência”. “Senhor Havelange, eu não lhe dou a melhor Copa do Mundo; mas vou lhe dar uma das melhores Copas. O senhor pode estar tranquilo”. E me deu. Agora, o que ele fez e o que ele não fez eu não tenho nada a ver com isso. A decisão da Copa na Argentina foi do Congresso [da FIFA], não era minha, e antes de eu chegar. Então, eu tinha que respeitar.7

Apesar de algumas opiniões contrárias, principalmente por parte do Ministro da Economia José Martínez de Hoz, que afirmava ser impossível arcar com os gastos da organização na situação em que o país se encontrava, o regime sabia a importância e o potencial da Copa para sua imagem. A principal justificativa para os altos gastos foi de que a maioria das obras era de infraestrutura – vias expressas, hotéis, estádios, aeroportos, um novo 4

edifício para a Argentina Televisora Color (ATC), que pertencia ao Estado, entre outros – , mas também incluiu a contratação da empresa Burson & Masteller, consultora dos Estados Unidos, para assessorar as estratégias de comunicação e melhorar a imagem da ditadura, principalmente no exterior. Foi nesse contexto que o governo começou a intervir diretamente no futebol nacional. Ainda em 1976, nomeou como presidente da Associação Argentina de Futebol (AFA) Alfredo Francisco Cantilo, nome de confiança das Forças Armadas. Em junho do mesmo ano criou o Ente Autárquico Mundial 78 (EAM 78), que substituía a antiga comissão criada por Perón, o que na prática significava que a organização da Copa ficava nas mãos do governo, e a AFA se responsabilizava somente pela preparação da seleção nacional. Mas mesmo com a tentativa de desassociar o evento do governo anterior, ironicamente, a Copa do Mundo que ajudou os militares a renovarem o apoio da sociedade ao governo representava a memória peronista que os mesmos procuravam extinguir. Os símbolos do evento, divulgados internacionalmente antes do golpe e pensados ainda durante o governo peronista, estavam diretamente associados ao ex-presidente: “el diseño de las dos líneas paralelas que parecen el contorno de una Copa no era otra cosa que el clásico saludo de Perón, con las manos en alto”.8 O Processo foi marcado por diversas disputas entre as Forças Armadas, e a realização da Copa do Mundo foi mais um espaço de conflito, principalmente, entre o ministro de Economia e o Almirante Emilio Massera, que exigiu uma pessoa de sua confiança em uma posição central no EAM. Em 1976, o presidente e chefe do Exército, Jorge Videla, nomeou o General Actis como presidente da instituição. Massera aceitou, porém exigiu que o Almirante Carlos Alberto Lacoste fosse o segundo nome na instituição, e os desentendimentos entre os dois responsáveis pelo EAM foram constantes.9 Em agosto de 1976, Actis foi assassinado em um episódio contraditório, e a presidência da entidade foi ocupada formalmente pelo general Antonio Merlo, mas o poder de fato possuía Lacoste.10 Para a Copa de 1978, o EAM decidiu construir três novos estádios e restaurar outros três. As sedes do evento eram Buenos Aires (com dois estádios, o Monumental de Nuñez, do Clube Atlético River Plate, e o José Amalfitani, do Clube Atlético Vélez Sarsfield, ambos restaurados com financiamento governamental); Córdoba (o Estádio Olímpico de Córdoba foi construído para o evento); Mar del Plata (o Estádio Mundialista foi construído para a ocasião); Rosário (o Gigante de Arroyito, estádio do Rosário Central); e Mendoza (onde foi construído o Estádio Ciudad de Mendoza). De acordo com o calendário, a seleção local viajaria apenas entre as províncias de Buenos Aires e Santa Fé (onde fica a cidade de 5

Rosário), o que foi considerado por alguns competidores um favorecimento, já que outras seleções faziam longas viagens entre as distintas sedes. A televisão também teve um importante papel, e a transmissão em cores do mundial foi uma das ferramentas de propaganda do evento utilizada pelo governo. A primeira transmissão no país ocorreu em 1951, e foi durante a década de 1970 que o televisor se popularizou de fato no país. Os três canais privados que existiam em Buenos Aires (Canal 9, Canal 11 e Canal 13 – e existia um canal público) foram estatizados em 1974, durante o governo de Isabel Perón. Durante o Processo, os mesmos canais foram divididos entre as três Armas: o 9 ficou sob responsabilidade do Exército; o 11, da Força Aérea; e o 13, da Marinha.11 Para a transmissão da Copa para o mundo, o governo fez um forte investimento em infraestrutura, já que uma das exigências da FIFA era a transmissão em cores do evento. Para isso, o governo criou o Ente Argentina 78 TV – “dirigida por representantes de las tres Fuerzas Armadas, de la Secretaria de Información Pública y de la Secretaria de Comunicaciones”12 –, e investiu na construção do complexo ATC (Argentina Televisora Color, nome dado em 1979), pronto em apenas 18 meses, que garantiu as exigências da entidade. Porém, a tecnologia não chegou a tempo ao país, que somente transmitiu os jogos em cores para o exterior e, internamente, em cinemas e teatros específicos, e para as residências, apenas a partida final. Assim, mais do que a vitória da seleção nacional, a principal arma nas mãos da ditadura era a realização e organização do próprio evento. Era a oportunidade de melhorar a imagem da ditadura, tanto interna – em 1978 a “guerra contra a subversão de esquerda”, a principal justificativa para o golpe, considerada vencida pelo regime – como externamente, em meio a denúncias de violação de direitos humanos tanto por exilados como por organizações internacionais. Para o Processo, o êxito futebolístico ultrapassava o limite esportivo, e o objetivo era que os próprios líderes ficassem associados à vitória. Para isso, mesmo sem uma política oficial e sistematizada de propaganda, o governo realizou diversas campanhas, cujo objetivo era construir a participação da população no projeto civil-militar do novo país e instaurar a ideia de guerra e luta contra a “subversão”, seja ela interna ou externa. Uma das ações oficiais de propaganda política foi a contratação da agência de relações públicas Burson & Marsteller. Foram feitas diversas publicidades internacionais do país, convidados jornalistas e personalidades estrangeiras viajaram à Argentina, além de serem realizadas atividades culturais em importantes cidades europeias.13 Neste espaço da propaganda, a realização da competição no próprio país dava aos militares argentinos uma 6

ferramenta a mais no uso da Copa a seu favor.14 Mas, ao mesmo tempo, esta organização foi um dos principais desafios em relação à sua imagem que o regime teve que enfrentar. Outro problema era a garantia de que não ocorreriam atentados durante a competição. Para isso, o governo não hesitou em negociar com os líderes da oposição armada que estavam no exílio, assim como ameaçou de morte membros da oposição que mantinha nos centros clandestinos de detenção. Mesmo assim, houve uma ameaça de bomba no centro de imprensa antes do jogo de abertura, e durante alguns minutos membros do grupo Montoneros conseguiram interromper a transmissão do evento em La Plata e colocaram no ar a Marcha Peronista. Um dos símbolos do evento foi a sua mascote, o Gauchito, batizado de Pampita. Tratou-se de um menino vestido a caráter de gaúcho argentino, um dos esteriótipos nacionais que a ditadura procurou valorizar: “el modelo del melting pot como política frente a la inmigración, y un subsecuente mito de unidad étnica; y un relato de origen que instituyó la figura del gaucho como modelo de argentinidad y figura épica”.15 Mesmo sem a garantia da vitória, o interesse principal da sociedade era finalmente conquistar uma Copa do Mundo. O objetivo levou a AFA a investir desde 1975 em um nome que conquistava a opinião do país: Cesar Luís Menotti, nascido em Rosário e ex-jogador do Santos ao lado de Pelé. Menotti era treinador do Huracán, clube que em 1973 conquistou importantes títulos com um estilo de jogo inovador, valorizando o que o técnico considerava o jogo bonito argentino, oposto ao modelo europeu em voga. No momento do golpe de 1976, ele estava com a seleção em uma gira europeia, e ao retornar seu cargo foi mantido, apesar das intervenções da Junta Militar na diretoria da AFA. Menotti tinha relações tanto com o partido comunista como com o peronismo, porém não foi considerado uma ameaça para o novo regime: ao contrário, sua campanha vitoriosa (em 1976 conquistou o campeonato juvenil de Toulon, com a seleção base que conquistaria a Copa de 1978) o tornou interessante para os planos de conquistar a competição em casa. De fato, o treinador nunca se envolveu em grandes polêmicas. Soube conviver com a ditadura, porém não fez qualquer apoio aberto ao regime. Quando questionado sobre seu papel na Copa e o posterior uso da vitória pelo Processo, Menotti foi firme: “Traté que el equipo divirtiera a la gente (...) hice todo lo que pude dentro de mis posibilidades. Además, ¿sabes lo que hay que diferenciar acá? Yo soy un laburante, viejo... no soy factor de poder”16. De todas as formas, Menotti tinha a seu favor a proibição por parte do governo de que os meios de comunicação falassem mal da seleção nacional. Assim, mesmo com uma derrota durante a competição, contra a Itália na primeira fase, e os resultados iniciais que não 7

mostravam um time seguro para a disputa da taça, o treinador não teve que enfrentar críticas e oposição. Questionado por seu papel, para alguns, “responsabilidade”, na vitória que permitiu a celebração do próprio regime, Menotti procura desvincular qualquer tipo de associação entre seleção e ditadura:

no era la Junta Militar, no era la platea de River, era la gente de Jose Carlos Paz la gente de los pueblos, la gente que se bajaba de los camiñones, de los taxis, y no nos dejaban pasar. Yo siempre terminaba mi charla diciendo lo mismo: cuándo saluden levanten la cabeza y van a saber para quien juegan. Ahí están, son estos, los que están ahí. Ahí está tu viejo, tu hermano, tus amigos, tu barrio, tu gente…17

Mas o treinador não teve que responder, pelo menos durante o evento, nem mesmo ao polêmico jogo entre as seleções argentina e peruana, em que os donos da casa venceram por seis a zero. De acordo com as regras da competição, Brasil e Argentina definiriam a vaga na final pelo saldo de gols. O Brasil venceu a Polônia e colocou o rival em uma situação complicada: precisava de quatro gols de diferença contra o já desclassificado Peru para garantir a disputa contra a Holanda. Pela organização da tabela dos jogos, os argentinos entraram em campo já sabendo o resultado que precisavam. A goleada sofrida pelos peruanos é até hoje motivo de discussões, e os que defendem o suborno afirmam que o Almirante Lacoste, “munido de uma linha de crédito da ordem de 50 milhões de dólares, além de 35.000 toneladas de grãos, teria negociado com membros da delegação peruana, que repassariam as cifras à Junta Militar em Lima”18. A seleção brasileira ficou com o terceiro lugar na competição, e a delegação voltou ao país declarando-se campeã moral do torneio. Para os líderes argentinos, foi uma demonstração da capacidade do país: “La felicidad del presidente. ‘Con el coraje de nuestro pubelo’. El presidente Videla, junto a los miembros de la Junta y en compañia de Henry Kissinger, presenció el partido desde el palco oficial. ‘Mostraron el coraje de los argentinos’, dijo el Presidente”19. Para o povo argentino, a vitória contra o Peru só aumentou a euforia nacional. A cada jogo, as ruas eram tomadas pelos argentinos com bandeiras e gritos de saudação à seleção. O regime e os meios de comunicação exaltavam a euforia popular, que consideravam resultado não apenas da alegria esportiva, mas da situação que vivia o país. Após a final contra a Holanda, a comemoração tomou conta do país, pelas ruas cantava-se o slogan “25 millones de argentinos jugaremos el Mundial”, título e parte da música oficial do evento, composta por Martin Darre.20 A canção evoca a união nacional e a participação popular no evento, reflete a 8

retórica oficial da oportunidade de mostrar ao mundo uma imagem positiva da Argentina. Foi repetida constantemente durante a competição, procurando sempre associar o êxito da conquista da primeira Copa com o novo período inaugurado pelo Processo. O discurso de união não se limitava ao regime, era parte tanto do grito da torcida como dos próprios jogadores e do técnico Menotti: “Lo vimos furioso una sola vez: antes del alargue en la final contra Holanda. Nos miró y nos dijo: ‘Vean a su alrededor. Somos 80,000 contra once. ¿Lo vamos a perder?’. Fue el shock que necesitaba el equipo. Salimos convencidos y ganamos el título”21.

III. “¿Las dictaduras pasan, las copas quedan? Fuimos, ganamos, bailamos”22

Para os torcedores, a Copa era motivo de festa. O evento era há muito esperado pelos argentinos, que viveram a conquista e cada jogo com grande entusiasmo. Porém, muitos viveram uma situação contraditória. Sabiam que o regime utilizava a Copa a seu favor, viam e viviam as campanhas e propagandas, mas não deixaram de comemorar. Para diversos dos que estavam clandestinos dentro do país, era também uma oportunidade para sair às ruas e de talvez encontrar pessoas que acreditavam mortas ou desaparecidas. Deste ponto de vista, a Copa foi um alívio. Para os que estavam presos, legalmente ou como desaparecidos, as experiências foram diversas. A maioria reconhece a época da Copa como um período de euforia, de acompanhar os jogos e torcer. Muitas vezes, inclusive, com os próprios torturadores. Entre os presos também foram comuns as discussões sobre qual deveria ser o papel da oposição, principalmente das organizações armadas, durante o evento: “Y nos hubiera encantado que afuera nuestros compañeros impidieran la realización del Mundial o algo así, pero ya una vez que entraban a la cancha ya... gritábamos los goles”.23 E mesmo com o acordo de cessar fogo entre os líderes Montoneros e a Marinha, assinado antes da Copa, houve aqueles que tentaram algum tipo de ação contra o governo:

creo que fue a la noche, estábamos todos encerrados y ponen el partido. Van 3 o 4 minutos del partido y de repente irrumpe la marcha peronista. La marcha peronista y una consigna que decía “Argentina Campeón, Videla al paredón”. Y ahí se cortó la transmisión y obviamente no pudimos escuchar más el partido. Nosotros por un lado pensamos: “Los compañeros están haciendo toda una campaña de hacer conocer ante los periodistas 9

extranjeros, ante lo resto de la gente, de la población en general de cual era la situación y cual era nuestra postura”. Nosotros queríamos que Argentina saliera campeón, pero que Videla fuera al paredón por todo lo que estaba haciendo. ¿Ahora justo en la cárcel de La Plata lo tenían que hacer? [risos] Nos queríamos volver locos, “¿justo acá tenían que venir a cortar la transmisión?”, porque nos cortaron el partido y bueno... Por supuesto la gran mayoría de los presos que no compartían algunas de esas ideas silbaban, se volvían locos, y bueno, desgraciadamente. Y a partir de ahí se terminó el Mundial para nosotros, se terminó el Mundial para nosotros.24

Por outro lado, os que estavam fora do país também viveram de forma intensa a Copa de 78. A questão de boicotar ou não a Copa foi discutida em diversas partes do mundo, principalmente em lugares com grande número de exilados, como México, Brasil, Espanha e França. No México, por exemplo, os membros Montoneros trabalhavam também na Contra- Ofensiva (que ocorreu em 1979), e aproveitaram a atenção internacional para realizar diversos trabalhos de denúncia da situação argentina.25 Para muitos exilados a Copa era também um momento de esperança, tanto de alguma possível ação contra o governo como de encontrar nas transmissões algum companheiro desaparecido nas plateias dos estádios. Mas o principal centro de debates foi a França, onde foi organizado o Comitê de Boicote à Copa do Mundo (COBA). E nem mesmo aí as opiniões foram unânimes sobre a promoção do boicote. No caso do Comitê em Paris, era difícil para os franceses entenderem que a maioria dos exilados argentinos não era a favor deste tipo de ação:

Y fue difícil porque en el exilio la mayoría de los exiliados argentinos, de todas tendencias, PRT, Montoneros, otros, más o menos todos estaban en contra hacer el boicot, por el boicot. Por diversas razones, dicen que el pueblo no comprende, el pueblo argentino; hubo otro argumento, era de decir que es muy importante que viene la prensa internacional con la Coup para ver la situación. No. La Junta muy bien organizada. El foot es una pasión, ne regarde pas côtes. Finalmente, la decisión fue de hacer el boicot.26

A questão de boicotar ou não a Copa foi colocada nos diversos exílios, e de maneira geral os argentinos eram contra tal atitude. Finalmente, o Boicote acabou tendo um efeito inverso, pelo menos em um primeiro momento. As manifestações fizeram com que muitos jornalistas fossem cobrir a Copa, também pendentes de conferirem a situação do país e as denúncias. O governo argentino soube, então, utilizar essa atenção a seu favor e investiu forte na propaganda que enaltecia a imagem positiva do país e no recebimento dos turistas e dos jornalistas. O resultado foi uma melhora significativa na imagem externa, especialmente pelo testemunho dos visitantes ao deixar o país: “Visitantes, que se han sentido como en su propia 10

tierra, tratados con afectuosa hospitalidad, podrán ahora testimoniar sobre la realidad de nuestra patria, deformada por una abierta campaña internacional”27. Entre os exilados, a maioria afirma que acompanhou e torceu pela seleção. E, claro, que celebrou a vitória nas ruas. No México, alguns exilados Montoneros foram celebrar em frente à Embaixada Argentina aos gritos de “Argentina Campeón, Videla al paredón”. De uma forma geral, para os que eram a favor da Copa, o futebol era entendido como algo em uma esfera separada da política. Para os que se opunham, exatamente por seu peso político, não podia ser deixado nas mãos do regime, e era uma oportunidade de manifestações e denúncias. E para outros, principalmente membros de grupos peronistas, o futebol era, de fato, um espaço de resistência, e a visão do povo manipulado pelo esporte era elitista e equivocada:

[…] y yo planteé que no estaba de acuerdo con este posicionamiento que planteaba que todo el pueblo es un pueblo de imbéciles, que se ganaba la Argentina campeón del Mundial todos se iban a olvidar de lo que pasaba, que iban a salir a gritar “Viva Videla”, y que la instrumentación que hacia Videla, y que por supuesto hacia una instrumentación maléfica del Mundial de Fútbol era una historia. Y que había una historia popular que así como había otros países que habían tenido su Mundial de Fútbol... el pueblo argentino no iba a quedar atrapado ni engranado por si Kemps hiciese un gol o no hiciese un gol. O sea, que mi posición fue de esta perspectiva, reconociendo lo que hacía la Junta, de que había que tomar el Mundial de Fútbol sin tanto dramatismo, y si ganaba o perdía Argentina la gente iba a salir a la calle, iba a saltar de alegría y después iba a ir a su casa y va a seguir pensando que era una época de mierda.28

Por fim, estavam aqueles que, no exílio ou no país, não festejaram a Copa, por entender que era um momento equivocado, que a situação do país não permitia este tipo de celebração. E também que era uma ferramenta nas mãos dos militares:

Pero yo lo viví de un modo absolutamente marginal, o sea, no lo celebré, no participé, te mentiría si te dijera que no vi algun partido, pero con un sentimiento muy contradictorio y amargo, adónde sabes que sí, podés tener algun sentimiento a favor de que gane la Argentina pero al mismo tiempo la conciencia y la lucidez de que si la Argentina gana sirve para afianzar el Processo, no? El Processo Militar no dependía del Mundial pero en alguna medida iba a legitimarlo, como sucedió.29

Esta foi a posição que, posteriormente, com o reestabelecimento da democracia, ganhou força na memória sobre o evento: a Copa como um mero instrumento de consenso nas mãos do governo, sem qualquer outra interpretação possível. Hoje, ela não apenas é revisada, 11

mas é contestada por muitos dos atores que viveram aqueles dias de festa, e reivindicam seus festejos e, claro, o valor de seu primeiro título.

IV. Considerações Finais

Os efeitos da Copa de 78 se prolongaram, e 1979 foi outro importante ano. Em junho, aproveitando sua imagem favorável, o governo realizou um jogo comemorativo de um ano do título e dos 75 anos da FIFA, com uma seleção formada por jogadores do país (nem todos os vencedores do ano anterior) contra um combinado de diversos países do mundo. O técnico italiano Enzo Bearzot liderou o segundo grupo que teve jogadores importantes como os brasileiros Leão e Zico, o francês Michale Platini, os italianos Causio, Tardelli e , o polaco Boniek.30 Os argentinos perderam por 2 a 1, num evento que lotou mais uma vez o estádio Monumental na capital Buenos Aires. Alguns meses depois, a vitória da seleção argentina na Copa Juvenil de Futebol da FIFA, realizada no Japão, com o jovem Diego Armando Maradona como destaque, certamente não gerou a mesma euforia que a conquista no ano anterior em casa, mas também significou uma renovação na imagem oficial. O campeonato ocorreu na mesma época da visita da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, que chegou ao país no dia 06 de setembro.31 Foi durante essa competição, coincidindo com a vista da CIDH, que o governo divulgou o slogam: “Los argentinos somos derechos y humanos”. Com a vitória, surgia também uma nova geração de jogadores, parte deles se consagrariam campeões na Copa do Mundo do México em 1986, como o próprio Maradona. Era o grupo que na década seguinte consagraria o país frente ao mundo, principalmente ao vencer uma Copa sem o fantasma da ditadura, como aconteceu em 1978. Se, durante a Copa e nos posteriores anos que a ditadura seguiu no poder, os jogadores foram festejados como os grandes heróis nacionais, após a redemocratização, tiveram que enfrentar uma nova leitura crítica do evento. Diversos críticos associaram a vitória ao modelo ditatorial, e consideraram que a própria participação e conquista dos jogadores era uma forma a mais de apoio ao regime. De heróis a vilões: acusados de cúmplices e de ajudar a ditadura com a vitória em campo, os jogadores passaram a reivindicar o papel de glória na história nacional: “A medida que pasa el tiempo sentimos más orgullo de lo que hicimos. Porque hicimos Argentina 12

campeona del mundo por primera vez en la historia y defendimos la bandera”32. Hoje, não apenas os jogadores, mas o próprio evento passaram a ter um sentido positivo para grande parte da sociedade argentina, que passou a viver aquela experiência como um grande momento na história nacional, ainda que durante um dos períodos mais problemáticos de seu passado recente.

1 Nível: Doutorado, Universidade Federal Fluminense (UFF), Agência de Fomento: REUNI. 2 JELIN, Eizabeth. Los trabajos de la memoria. Madrid, Siglo Veintiuno 2002, p. 5. 3 LE GOFF, Jacques et al. Memória/História. Lisboa, Imprensa Nacional / Casa da Moeda, 1986. 4 Ubaldo Matildo Fillol, em BONADEO, Gonzalo; GUEBEL, Diego; PERGOLINI (Dir.). Mundial 78. La Historia Paralela. DVD. Argentina, 2008. 5 JELIN, Elizabeth. La justicia después del juicio: legados y desafíos en la Argentina postdictatorial. In: QUADRAT, S. et al. (Org.). Ditadura e Democracia na América Latina. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008, p. 341-360. 6 José Lopez Rega também foi Ministro de Bem Estar Social de Isabel Perón, e foi o responsável pela organização e ação da Triple A, grupo paramilitar de direita que atuou na década de 1970. 7 João Havelange. Entrevista concedida à autora no Rio de Janeiro, RJ, 28 jan. 2010. 8 GILBERT, A.; VITAGLIANO, M. El terror y la gloria – La vida, el fútbol y la política en la Argentina del Mundial 78. Buenos Aires: Editorial Norma, 1998, p. 13. 9 Lacoste foi também homem de confiança de José Lopez Rega. Posteriormente, já no período democrático, sua carreira política no espaço esportivo continuou por um tempo, quando foi tesoureiro da FIFA, durante a presidência de João Havelange. Cf. BUFALI, Andrés Alberto; BOIMVASER, Jorge Daniel; CECCHINI, Daniel Guillermo. El libro negro de los Mundiales de Fútbol. Buenos Aires: Planeta, 1994. 10 BUFALI, BOIMVASER e CECCHINI, op. cit. Mesmo sendo a informação oficial de que o crime foi responsabilidade da organização armada Montoneros, o mesmo não foi incluído pelos militares em um livro publicado posteriormente com todos os supostos atentados de grupos guerrilheiros contra as Forças Armadas, o que gerou a suspeita de que os responsáveis foram homens fortes da própria Marinha. 11 Com a redemocratização, em 1984 o antigo dono do Canal 9 conseguiu judicialmente recuperar a propriedade do sinal. Os canais 11 e 13 foram privatizados pelo presidente Carlos Menem, em 1989. 12 Clarín, 01 jun. 1978. 13 Esta também foi a empresa responsável pelo slogan “Los argentinos somos derechos y humanos”, de 1979, nas vésperas da visita da Comissão Internacional de Direitos Humanos da OEA. 14 FRANCO, Marina. La ‘campaña antiargentina’: la prensa, el discurso militar y la construcción de consenso. In: BABOT, Judith Casali; GRILLO, María Victoria (Ed.). Derecha, fascismo y antifascismo en Europa y Argentina. Universidade de Tucumán 2002, p.195-225. 15 ALABARCES, Pablo. Fútbol y Patria. El fútbol y las narrativas de la nación en la Argentina, Buenos Aires: Prometeo libros, 2002, p. 9. 16 El porteño, set. 1982, p.15. Após a eliminação da Argentina na Copa de 1982, na Espanha, Menotti deixou o cargo e se autoexilou na Espanha, onde treinou o Futebol Clube Barcelona. No mesmo ano, assinou uma das cartas solicitadas e publicadas no jornal La Nación, questionando os desaparecidos durante a ditadura. 17 Cesar Luís Menotti, em Mundial 78, op. cit. 18 AGOSTINO, Gilberto. Vencer ou morrer – futebol, geopolítica e identidade nacional. Rio de Janeiro: Mauad, 2002, p 183. 19 Clarín, 22 jun. 1978, p. 2. 20 A letra completa: “25 millones de Argentinos/ jugaremos el mundial/ mundial la justa deportiva sin igual/ mundial un grito de entusiasmo universal/ vibrar, soñar, luchar, triunfar/ luciendo siempre sobre la ambición y la ansiedad/ temple y dignidad/ jugar en limpia competencia hasta en final/ sentir latente 13

en cuerpo y alma el ideal/ así brindar a todos nuestra enseña grande/ y fraternal, azul y blanca celestial/ con fervor enfrentaremos/ con amor recibiremos/ con honor en la victoria o en la derrota/ palpitando igual, nuestro corazón/ [... assobio ...]/ luciremos nuestra imagen/ en deporte y en cultura/ brindaremos a hermanos/ de otras tierras nuestra proverbial/ hospitalidad/ mundial la justa deportiva sin igual/ mundial un grito de entusiasmo universal/ vibrar, soñar, luchar, triunfar/ luciendo siempre sobre la ambición y la ansiedad/ temple y dignidad/ jugar en limpia competencia hasta en final/ sentir latente en cuerpo y alma el ideal/ así brindar a todos nuestra enseña grande/ y fraternal, azul y blanca celestial/ 25 millones de Argentinos/ jugaremos el mundial”. Disponível em: . Acesso em: 10 out. 2011. 21 , capitão argentino em 1978. Disponível em . Acesso em: 07 out. 2011. 22 LAMADRID, Juan Carlos Cernadas; HALAC, Ricardo. Yo fui testigo. Tomo 8, Los Militares y el Mundial. Buenos Aires, Editora Perfil, 1986, p. 9. 23 Memoria Abierta. Testimonio de Julio Menajovsky, Buenos Aires, 2002. 24 Memoria Abierta. Testimonio de Julio Menajovsky, Buenos Aires, 2003. 25 A chamada “contra-ofensiva” montonera foi o retorno de militantes montoneros que estavam no exílio e entraram clandestinamente na Argentina para tentar uma nova ofensiva contra a ditadura. O resultado foi um desastre, e resultou em fortes críticas aos líderes desta agrupação, que incentivaram o retorno. Cf. NOVARO, M.; PALERMO, V. Historia Argentina v. 9 – La dictadura Militar 1976/1983, del golpe de Estado a la restauración democrática. Buenos Aires: Paidó, 2003. 26 Memoria Abierta, Testimonio de Louis Joinet,Buenos Aires, 2007. 27 Jorge Rafael Videla em Mundial 78, op. cit. 28 Memoria Abierta, Testimonio de Nicolás Casullo,Buenos Aires, 2005. 29 Memoria Abierta, Testimonio de Horacio Paglione (Tarcus), Buenos Aires, 2004. 30 BLAUSTEIN, E.; ZUBIETA, M. Decíamos ayer. La prensa argentina bajo el processo. Buenos Aires: Colihue, 2006, p. 289. 31 No informe divulgado em 11 abr. 1980 a Comissão concluia que “A la luz de los antecedentes y consideraciones expuestos en el presente informe, la Comisión ha llegado a la conclusión de que, por acción u omisión de las autoridades públicas y sus agentes, en la República Argentina se cometieron durante el período a que se contrae este informe – 1975 a 1979 – numerosas y graves violaciones de fundamentales derechos humanos reconocidos en la Declaración Americana de los Derechos y Deberes del Hombre”. O informe completo da visita está disponível em: . 32 Ubaldo Matildo Fillol, em Mundial 78, op. cit.