Universidade do Estado do Pará Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação Centro de Ciências Sociais e Educação Programa de Pós-Graduação em Educação-Mestrado

Giza Carla de Melo Bandeira

Rituais Associados à Colheita do Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião K ỳikatêjê aprendizagens em processos educativos interdimensionais

Belém 2009

Giza Carla de Melo Bandeira

Rituais Associados à Colheita do Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê aprendizagens em processos educativos interdimensionais

Dissertação apresentada como requisito para a obtenção do título de Mestre em Educação no Programa de Pós- graduação em Educação, Universidade do Estado do Pará. Área de concentração: Saberes Culturais e Educação na Amazônia. Orientadora: Prof. Drª Maria de Jesus da Conceição Ferreira Fonseca.

Belém 2009

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Biblioteca do Centro de Ciências Sociais e Educação da UEPA

Bandeira, Giza Carla de Melo

Rituais Associados a Colheita do Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê : aprendizagens em processos educativos interdimensionais / Giza Carla de Melo Bandeira, orientação de Maria de Jesus da Conceição Ferreira Fonseca. Belém, 2009.

Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade do Estado do Pará, Belém, 2009.

1. Índios – vida e costumes 2. Índios – cultura I. Título.

CDD: 21 ed. 306.08

Giza Carla de Melo Bandeira

Rituais Associados à Colheita do Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê aprendizagens em processos educativos interdimensionais

Dissertação apresentada como requisito para a obtenção do título de Mestre em Educação no Programa de Pós – Graduação em Educação. Universidade do Estado do Pará Área de concentração: Saberes Culturais e Educação na Amazônia

Data de aprovação: ____/____/_____

Banca Examinadora:

______Profª. Maria de Jesus da Conceição Ferreira Fonseca - Orientadora Drª. em Ciências Biológicas Universidade do Estado do Pará

______Profª. Ivanilde Apoluceno de Oliveira – Examinadora Membro Interno Drª. em Educação (Currículo) Universidade do Estado do Pará

______Profª. Denise Pahl Schaan – Examinadora Membro Externo Drª. em Antropologia Social Universidade Federal do Pará

Para Tia Onélia ( in memoriam ).

Agradecimentos

À Tia Onélia ( in memoriam ), que um dia comprou os livros de leitura obrigatória deste mestrado e me pediu para que os lessem, incentivando-me à inscrição para o processo seletivo. Infelizmente, há aproximadamente três meses após o resultado final dessa seleção, ela dormiu e não acordou para continuar nesta vida terrena, deixando-me este legado de valorização aos estudos. À minha mãe, a quem devo a luz e tudo o mais que ela tem me dado nestes nossos 24 anos de convivência. Além disso, agradeço imensamente por ela ter me ensinado não apenas as letras, mas, também, algumas coisas da vida. Ao meu pai, irmãos, sobrinho e o restante da minha família, em geral, por acreditarem nos meus empreendimentos de pesquisa, por compreenderem as minhas repetidas ausências. A minha avó Luiza ( in memoriam ), pelas bênçãos que me dava todas vezes em que eu saía de casa, rumo à universidade, além de suas orações e cuidados, desde que eu era bem pequena. Infelizmente, “vó Luiza” não está mais entre nós desde 23 de julho de 2008, fato que me trouxe grande dor durante o mestrado. Aos meus amigos, que são poucos, mas são tesouros, com os quais eu sei que posso contar. Aos amigos da aldeia Kỳikatêjê , especialmente Sr. Ropré, sua esposa Dona Vanda, Sr. Kokoire (o cacique), Rosani e família, pela acolhida em sua casa, Mamãe-grande (minha ĩx ẽ), Prekrut , Krỳt , Kwainõ , Papaiti , entre outros. À Profª Maria de Jesus, a orientadora, por sua dedicação junto a construção desta etapa de minha pesquisa e, principalmente, pela amizade. À banca examinadora, Profª. Denise e Profª. Ivanilde, por sua disponibilidade, tanto na qualificação quanto na defesa desta pesquisa, com contribuições sempre pertinentes. À Profª. Maria do Socorro Reis Lima, por ter favorecido minhas pesquisas com o empréstimo de muitos livros sobre os grupos Jê-Timbira e orientações na área de Antropologia Social e Cultural, incentivando-me nesses estudos. Aos Necapianos (integrantes do Necaps – Núcleo de Educação Cientifica, Ambiental e Práticas Sociais), pelo ânimo e companheirismo no cotidiano de nossas vivências em atividades acadêmicas na UEPA. Ao grupo de trabalho “Sociobiodiversidade e Educação”, o qual tem valorizado e difundido esta pesquisa por meio das ações do Necaps. À direção da escola Estadual Profª. Placídia Cardoso, especialmente profª Maria do Rosário e profª Rita Costa, por terem compreendido algumas ausências minhas na escola em função de atividades de pesquisa para este trabalho. À Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado do Pará (FAPESPA), por apoiar o desenvolvimento desta com bolsa de mestrado. À 3ª turma deste mestrado, pelas socializações de saberes. Ao corpo docente e administrativo do PPGEd – UEPA. À todos que direta ou indiretamente contribuíram para que este trabalho fosse desenvolvido. Agradeço, sobretudo, a Deus, por ter me proporcionado esta oportunidade.

Porque a educação existe de mais modos do que se pensa e, aqui mesmo, alguns deles podem servir ao trabalho de construir um outro tipo de mundo.

(Carlos Rodrigues Brandão)

RESUMO

BANDEIRA, Giza Carla de Melo. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê : Aprendizagens em processos educativos interdimensionais. Dissertação de Mestrado em Educação – Universidade do Estado do Pará, Belém, 2009.

O presente estudo identifica como os fazeres e dizeres, presentes nos rituais associados a colheita do milho-verde dos índios Gavião K ỳikatê-Jê (Bom Jesus do – Pará - Brasil), integram elementos da Biodiversidade Amazônica e que processos educativos ensejam. Nesse sentido, tomei como “pano de fundo” para a investigação os rituais Tuti Krã e Hõprykrã , que são ritos do ciclo anual celebrados por esse povo durante a estação chuvosa. Trata-se de um Estudo de Caso do tipo Etnográfico, em que os dados foram gerados por meio de técnicas de Observação Participante, conversas informais, diário de campo, fotografias, desenhos, além de entrevistas semi-estruturadas e sistematizados por meio de Análise de Conteúdo. Contou com a participação de seis sujeitos identificados como conhecedores e atuantes nas práticas indígenas estudadas. A análise realizada possibilitou compreender a relação intrínseca que existe entre saberes indígenas emergentes dos referidos rituais e elementos da biodiversidade local, em várias formas de aplicabilidade, coadunando com a percepção de que a “megadiversidade amazônica” é um construto interdimensional, pois o mundo “natural” é indissociável do social e cultural. Essa interdimensionalidade contextualiza processos educativos que se dão em vivências individuais e coletivas que atualizam a cultura indígena por meio de práticas educacionais diversas. Com isso, refiro que esses fazeres e dizeres indígenas ensejam aprendizagens enquanto referência para pensar ações de educar que se dão de maneira compartilhada, no “estar-junto”, ressaltando noções educacionais próprias das diversas populações amazônidas como uma etnopedagogia ambiental construída nas relações com o “outro” e por meio do diálogo.

Palavras-chave : Educação; Biodiversidade; Processos Educativos; Amazônia; Gavião Kỳikatêjê .

ABSTRACT

BANDEIRA, Giza Carla de Melo. Rituals Associated with Harvesting Corn-Green in the Village of Indian Hawk Kỳikatêjê: Learning in educational processes interdimensional. Dissertation education - Universidade do Estado do Pará, Belém, 2009.

This study identifies as the doings and sayings, found in rituals associated with harvesting of green corn from the Indians Hawk K ỳikatêjê ( Bom Jesus do Tocantins - Pará - ), incorporating elements of Amazonian Biodiversity and educational processes requires. In that sense, I took as "background" to research the rituals and Tuti Krã e Hõprykrã , which are rites of the annual contracts for these people during the rainy season. This is a case study of type Ethnography, where the data were generated through participant observation, informal conversations, field diary, photographs, drawings, and semi-structured and documented by means of analysis content. It was attended by six subjects identified as knowledgeable and active in indigenous practices studied. The analysis allowed us to understand the intrinsic relationship that exists between emerging indigenous knowledge of these rituals and elements of local biodiversity, in various forms of application, remaining consistent with the perception that "megabiodiversity Amazon" is an inter-dimensional construct, for the world "natural" is inseparable from social and cultural. This interdimensionality contextualizes educational processes that take place in individual and collective experiences that update the indigenous culture through various educational practices. With that, I believe that these doings and sayings ensejam indigenous learning and which are refer to think of educating actions that take place in a shared manner, the "being-together", emphasizing educational concepts peculiar to the various Amazonian population as a built etnopedagogy environmental relations with the "other" and through dialogue.

Keywords: Education, Biodiversity; Educational Processes; Amazon; Hawk Kyikatêjê.

LISTA DE FIGURAS Figura 1 Uma aldeia Timbira . Fonte. Vincente Carelli. 38 Figura 2 Flechas com penas de aves, produzidas por homens da aldeia 43 Kỳikatêjê . Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009). Figura 3 Fragmento de imagem de satélite da Terra Indígena Mãe Maria. 46 Fonte. LANDSAT 223-63 e 223-64 (2005). Figura 4 Aldeia Gavião K ỳikatêjê – casas construídas pela Vale. Fonte. Giza 47 Bandeira. Acervo pessoal (2008). Figura 5 Acampamento dos velhos – casa tradicional Timbira. Fonte. Giza 48 Bandeira. Acervo pessoal (2009). Figura 6 Casa dos segmentos domésticos, de alvenaria, e casa tradicional, 49 de material orgânico. Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2008). Figura 7 O artefato do jogo de corrida de toras, transformado em mobília no 53 acampamento. Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009). Figura 8 Tora confeccionada para corrida, sendo reaproveitada como objeto 53 doméstico. Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009). Figura 9 Máscara Kokrit-Ho sendo usada durante o ritual do baile das 54 máscaras Kokrit . Fonte. Nimuendajú (1935). Figura 10 Corrida de toras na iniciação dos meninos. Fonte. ENTE (2006). 55 Figura 11 Corrida de toras entre as mulheres. Fonte. Thiago Kunz. Acervo 55 pessoal (2007). Figura 12 Jovens correndo para a mata, no ritual de iniciação. Fonte. ENTE 56 (2006). Figura 13 Jogo de flecha. Fonte. Thiago Kunz. Acervo pessoal (2007). 56 Figura 14 Brincadeira de Petecas Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal 57 (2009). Figura 15 Máscara do grupo dos “Lontra”, sendo confeccionada para o rito do 58 Tuti Krã. Fonte. Arquivo da Escola da Aldeia Gavião Kỳikatêjê. Figura 16 Mulher da aldeia Gavião, pintando o corpo com grafismo 79 característico do grupo “Gavião” Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009). Figura 17 Ancião da aldeia Gavião, exibindo sua pintura corporal com grafismo 79 característico do grupo “” . Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009). Figura 18 Ancião da aldeia Gavião, confeccionando petecas com palha de 80

milho-verde. Fonte. Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009). Figura 19 Mulher banhando as petecas com água e urucum. Fonte. Giza 81 Bandeira. Acervo pessoal (2009). Figura 20 Petecas, confeccionadas com palha de milho-verde, recebendo 81 coloração vermelha de urucum para ficarem bonitas. Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009). Figura 21 Ancião chamando para iniciar a brincadeira de petecas. Fonte. Giza 82 Bandeira. Acervo pessoal (2009). Figura 22 Homem da aldeia Gavião Kỳikatêjê , jogando peteca. Fonte. Giza 82 Bandeira. Acervo pessoal (2009). Figura 23 Homem da aldeia Gavião Kỳikatêjê se esforçando para não deixar 83 cair a peteca. Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009). Figura 24 Crianças treinando a brincadeira de petecas. Fonte. Giza Bandeira. 83 Acervo pessoal (2009). Figura 25 Homem do grupo “Gavião” emitindo sons de canto após brincadeira 84 de petecas. Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009). Figura 26 Velhos, jovens e crianças em movimentos de canto e dança no 85 centro da aldeia . Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009). Figura 27 Jovem Kỳikatêjê exibindo sua pintura corporal do grupo “Peixe” . 86 Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009). Figura 28 Vista de cima, do barranco que precedia o local onde estavam as 87 toras de corrida na mata. Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009). Figura 29 Vista de cima, do barranco que precedia o local onde estavam as 88 toras de corrida na mata. Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009). Figura 30 Desenho de Kr ỳt sobre sua máscara (“cabeça de peixe”), usada no 101 ritual Tuti Krã . Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2008) Figura 31 Desenho de máscara construído sob orientação de Sr. Ropré . Fonte. 102 Giza Bandeira. Acervo pessoal (2008). Figura 32 Desenho do tipo de pintura corporal do grupo “Arraia”, sob 103 orientação de Kwainõ. Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009). Figura 33 Desenho do tipo de pintura corporal do grupo “Lontra”, sob 104 orientação de Kwainõ. Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009). Figura 34 Desenho do tipo de pintura corporal do grupo “Peixe”, sob 104 orientação de Kwainõ. Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009). Figura 35 Roça tradicional de milho em novembro de 2008. Fonte. Giza 107 Bandeira. Acervo pessoal (2008). Figura 36 Roça tradicional de milho em janeiro de 2009 . Fonte. Giza Bandeira. 107 Acervo pessoal (2009). Figura 37 Roça tradicional de milho em fevereiro de 2009 . 108

Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009). Figura 38 Coleta de frutos da roça tradicional . Fonte. Giza Bandeira. Acervo 109 pessoal (2009). Figura 39 Desenho do tipo de pintura corporal do grupo “Arara”, sob 111 orientação de Kwainõ. Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009). Figura 40 Desenho do tipo de pintura corporal do grupo “Gavião”, sob 112 orientação de Kwainõ. Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009). Figura 41 Criança tendo seu corpo pintado por sua avó . Fonte. Giza Bandeira. 113 Acervo pessoal (2009). Figura 42 Um ancião e um jovem da aldeia com seus corpos pintados dos 113 tipos “Arara” e “Peixe”, respectivamente . Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009). Figura 43 Homem da liderança da aldeia e jovens, com pinturas corporais . 114 Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009). Figura 44 Ancião confeccionando petecas de palha de milho-verde e crianças 116 observando . Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009). Figura 45 Homem jogando peteca, o percurso do movimento de jogo e 118 crianças acompanhando . Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009). Figura 46 Jovens assando espigas de milho . Fonte. 119 Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009). Figura 47 Mulheres, homens, velhos e jovens assando espigas de milho . 120 Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009). Figura 48 Homens, jovens, mulheres e crianças na dança do Hõprykrã. Fonte. 123 Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009). Figura 49 Mapa dos processos educativos da / na aldeia Gavião K ỳikatêjê. 126 Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).

LISTA DE QUADROS

QUADRO 1 Elementos da Biodiversidade, formas de apropriação e saberes do mito do Tuti 93 Krã QUADRO 2 Elementos da Biodiversidade, formas de apropriação e saberes da confecção 97 das máscaras do Tuti Krã QUADRO 3 Elementos da Biodiversidade, formas de apropriação e saberes da corrida de 99 toras do Tuti Krã QUADRO 4 Processos educativos, práticas de aprendizagem e elementos da 124 Biodiversidade envolvidos.

SUMÁRIO POR ONDE CAMINHEI 15 COM QUEM CAMINHEI 22 COMO REGISTREI E ANALISEI A CAMINHADA 25 SEÇÃO I – ESPAÇO-AMBIENTE-NATUREZA AMAZÔNICO 33 1.1 “NA ALDEIA KỳIKATÊJÊ A GENTE É ÍNDIO TIMBIRA QUE 36 FALA JÊ ” 1.2 “ERA UMA NAÇÃO CHAMADO TIMBIRA , ERA NUMEROSA 42 TIMBIRA ” 1.3 A ALDEIA KỳIKATÊJÊ 46 SEÇÃO II – RITUAIS ASSOCIADOS À COLHEITA DO MILHO-VERDE, 60 MOSAICO DE UMA EDUCAÇÃO DIALÓGICA 2.1 RITO 63 2.2 MITO COMO PRÁTICA PEDAGÓGICA 66 2.3 MITO DE ORIGEM DA CELEBRAÇÃO DE COLHEITA DO 71 MILHO-VERDE NA ALDEIA GAVIÃO K ỳIKATÊJÊ 2.4 HÕPR ỳKRÃ, A BRINCADEIRA DAS PETECAS: MOMENTO DE 78 MÚLTIPLAS VIVÊNCIAS SEÇÃO III – PROCESSOS EDUCATIVOS DA VIVÊNCIA NOS RITUAIS 91 3.1 PROCESSOS EDUCATIVOS, ELEMENTOS DA 92 BIODIVERSIDADE E SABERES DO TUTI KRÃ 3.1.1 O mito de origem 92 3.1.2 Confecção das “cabeça de peixe” 96 3.1.3 Corrida de toras 98 3.1.4 Pinturas 101 3.2 PROCESSOS EDUCATIVOS, ELEMENTOS DA 105 BIODIVERSIDADE E SABERES DO HÕPR ỳKRÃ 3.2.1 A roça tradicional 106 3.2.2 Pinturas Corporais 111 3.2.3 Jogo de petecas 115 3.2.4 Corrida de Toras 120 3.2.5 Dança 122 3.3 PRÁTICAS DE APRENDIZAGEM EM PROCESSOS 124 EDUCATIVOS SOLTOS NA VIDA INDÍGENA CONSIDERAÇÕES QUE NÃO PRETENDEM SER FINAIS 128 Referências 131 ANEXO APÊNCIDES

BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 15

POR ONDE CAMINHEI

Minha formação científica inicial, tanto em Pedagogia (2003 – 2005) quanto em Arte (2003 – 2007), me conduziu ao interesse por questões culturais e educação. Porém, na área de Arte, em busca do diferente, do que “era” distinto de mim, da minha cultura, do meu mundo, iniciei pesquisas sobre objetos rituais indígenas. Essa forma, curiosa, de atuar diante do diferente está marcada na minha própria história de vida, pois me lembro, que quando adolescente, me identificava com as aventuras do “Pequeno Príncipe” sobre coisas que apareciam em seu pequeno planeta e lhe indicavam a existência de outros planetas (SAINT-EXUPÉRY, 2002). “Imaginem como eu ficava intrigado com aquela simples menção sobre ‘os outros planetas’. Esforcei-me, então, por saber um pouco mais” (Idem. p. 16). Assim, durante a graduação, no folhear de livros dos acervos do Museu Paraense Emílio Goeldi (Belém – PA) e na construção de desenhos de observação das fotografias dos livros, se deu meu interesse por máscaras indígenas. Depois, a curiosidade se estendeu para o estudo de rituais que envolvem máscaras feitas de palha. E, assim, os elementos visuais desses objetos se tornaram muito presentes na minha produção em Arte. Além da sedução pela visualidade desses objetos, o estudo de mitos de origem de rituais que envolvem o uso de máscaras de palha, por meio da leitura de escritos etnográficos de viajantes, como Nimuendajú (1883 – 1945) e Júlio César Melatti (1938...), tornou-se imprescindível na apropriação de conhecimentos sobre essas materialidades e sua relação com a dimensão social e cultural. Dessa forma, dei origem, no meu segundo TCC, este para o curso de Licenciatura em Educação Artística, intitulado “Máscaras Kokrit-Ho : a obra é o ato”, ao estudo de dimensões ligadas à Arte e que envolvem o uso de máscaras indígenas em seus respectivos ritos 1. O ritual Kokrit, dos índios Canela Ramkokamekrá (comunidade Jê-Timbira de terras demarcadas ao sul do Estado do Maranhão), foi escolhido para esse estudo de

1 Os ritos refletem a organização interna de uma sociedade e as relações que esta mantém com o meio ambiente em que está inserida (MELATTI, 1978). BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 16

TCC por ser um cerimonial no qual participam grupos rituais de mascarados, os Kokrit- Ho 2. Aprendi, com esse estudo, que um ritual envolve tantas outras dimensões que não apenas a materialidade de seus artefatos, construídos com uma tecnologia própria e a partir de noções apreendidas na realidade. Esse contato documental com os estudos sobre culturas de povos indígenas, do tronco lingüístico Macro-Jê , especialmente os Canela Ramkokamekrá, proporcionou-me maior propriedade sobre conhecimento em relação à práticas culturais desses grupos, visto que os povos da família lingüística e sub-grupo étnico Jê-Timbira 3 , mesmo habitando aldeias distintas, possuem a mesma língua (com poucas variações) e sistemas rituais complexos que se assemelham entre si. Como se vê, meus estudos sobre o ritual dos Kokrit , foram cruciais para compreender diversas dimensões que emergem e constituem um rito: memória, imaginário, biodiversidade, educação, poder, tecnologia, arte, etc. Construí esse ângulo de observação por intermédio de concepções como: a semiótica de Charles Peirce, através da leitura de Lúcia Santaella (2006), a qual me fez ver a cultura como mediação da própria vida e, compreendi também, por meio dos estudos de Boas (1996), a igualdade dos processos mentais de todas as raças, e a negação de um etnocentrismo exacerbado com o qual a cultura ocidental julgou, por tanto tempo, os povos, ditos “nativos”, indígenas. Dessa forma, compreendi o caráter interdisciplinar, inteligível, simbólico e tecnológico das culturas, especialmente na Amazônia, o que caracteriza sua diversidade. Todas essas relações, teóricas e empíricas, bem como a percepção da necessidade de conhecer e difundir a cultura dos povos Jê-Timbira se tornou condição relevante para pensar a pesquisa social e educacional, especialmente na Amazônia. Não obstante, por coincidência ou, quem sabe, movida por forças do cosmo Timbira , em abril de 2007, na ocasião de estar participando de uma monitoria numa oficina de construção de habitações indígenas, no evento da Semana dos Povos Indígenas (Belém – PA), promovido pelo Governo do Estado do Pará e a Fundação

2 o sufixo “Ho” se refere à palha. 3 Os indígenas do Brasil são reconhecidos e diferenciados, dentre outros, pela caracterização lingüística. Classificados em troncos lingüísticos, os sub-grupos étnicos se diferenciam culturalmente por meio de tradições milenares, próprias do grupo: organização social, mitologia, organização do trabalho, ordens de culto, cerimoniais, artefatos, etc. BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 17

Tancredo Neves, conheci um senhor indígena chamado Ropré. Levei uma tarde inteira me doando à conversa com esse senhor que, muito gentilmente e falando fluentemente em língua portuguesa, me explicava sobre os costumes de seu povo, os Gavião Kỳikatêjê. Visto meu interesse, e para a minha surpresa, recebi um convite desse senhor indígena para ir até sua aldeia e, algum tempo depois, passei um dia na referida aldeia, na qual tive contato com o povo de Sr. Ropré e com fragmentos da cultura local . Naquela época, retornei à Belém cheia de ideias e vontade de pesquisar sobre rituais da comunidade Gavião Kỳikatêjê, que acabara de conhecer pessoalmente. Busquei, então, a pesquisa documental, a fim de me inteirar sobre as origens desse povo e não foi difícil descobrir, em descrições etnográficas, que são da família Jê- Timbira , assim como os Canela, que eu estava estudando durante a graduação em Arte, o que facilitou na compreensão das atribuições de sentidos nesses contextos, visto que eu já tinha certo conhecimento sobre esses povos. Nessa busca, percebi a escassez de estudos realizados sobre essas culturas, especialmente relacionados à educação. Esta constatação motivou construção do meu projeto de pesquisa no Mestrado em Educação, relacionado à cultura do povo Gavião Kỳikatêjê. Assim, iniciei contatos mais estreitos junto à comunidade Gavião, de Sr. Ropré. Numa fase exploratória da pesquisa, visitei a “Casa de Apoio ao Índio Gavião” (Ananindeua – PA), onde se abrigam as lideranças da aldeia, quando vão participar de eventos relacionados aos povos indígenas do Pará, e indígenas doentes, quando precisam de tratamentos médicos da capital do Estado, Belém. Nessas ocasiões, aproveitava para fazer contatos, saber sobre a organização e administração da aldeia e levantar minhas possibilidades de pesquisa, visto que uma sociedade indígena se configura com práticas diversas e havia necessidade de fazer “um recorte” para a investigação pretendida. Além disso, eu tinha em vista que o recorte, para o meu estudo , precisava estabelecer alguma relação com o que eu conhecia sobre as práticas culturais dos índios Canela Ramkokamekrá , pelo fato de serem do mesmo tronco lingüístico e sub-grupo étnico. BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 18

Outro momento decisivo para definição deste estudo foi quando estive, na aldeia Kỳikatêjê (Bom Jesus do Tocantins – PA) durante 11 (onze) dias e, nesse período, obtive conhecimentos sobre seu contexto, suas práticas cotidianas e períodos rituais, dentre estes, cerimoniais em que há o uso de máscaras relacionadas à colheita do milho-verde, descritos em conversas informais com o Sr. Ropré. Nessas, identifiquei relações simbólicas ligadas a elementos da biodiversidade local, integrando aspectos de meu interesse de pesquisa. Foram esses relatos que me fizeram ver a potencialidade desses rituais indígenas e suas dimensões como pertinentes à pesquisa em Educação. Percebi, nas atitudes mitológicas relatadas, situações educacionais, corroborando o que Brandão (2007) diz sobre o ato de ensinar na comunidade:

Assim, tudo o que é importante para a comunidade, e existe como algum tipo de saber, existe também como algum modo de ensinar. [...] cada tipo de grupo humano cria e desenvolve situações, recursos e métodos empregados para ensinar às crianças, aos adolescentes, e também aos jovens e mesmo aos adultos, o saber, a crença e os gestos que os tornarão um dia o modelo de homem ou de mulher que o imaginário de cada sociedade idealiza, projeta e procura realizar (p. 22).

É fato que as sociedades indígenas têm suas ideias próprias de compreensão do Universo, o que se configura em concepções da gênese da vida, do princípio da cultura das plantações, dos instrumentos, dos artefatos, das relações sociais dentro e fora da aldeia, da natureza dos bichos selvagens, da astronomia, etc. Esses conhecimentos regem a vida nessas sociedades e instituem identificações culturais em que a biodiversidade local se faz presente.

Isso reflete na concepção de humanidade, entre os indígenas, a qual é reconhecida numa ética estreitamente ligada à memória ancestral, em que os ensinamentos da vida natural são persistentes, e também os valores que vão surgindo das suas próprias condições de vida, dentre eles os valores como respeito, tolerância, paciência, passam a ser provenientes de sua leitura acerca dos processos naturais (LEFF, 2003). BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 19

Dessa forma, entre os indígenas, os modos de compreender o universo implicam em atuar nele, isso expressa processos educativos decorrentes da noção de vida indígena que se (re) produz através das gerações. Na aldeia Gavião K ỳikatêjê, as vivências indígenas em rituais, e, neste caso os de celebração associados à colheita do milho-verde, traduzem-se em fazeres e dizeres que integram elementos materiais e imateriais, inclusive relacionados à biodiversidade amazônica local e engendram processos educativos que precisam ser estudados. Tais reflexões me instigaram a investigar, nesta pesquisa: Como os fazeres e dizeres, presentes nos rituais associados à colheita do milho-verde dos índios Gavião Kỳikatêjê, integram elementos da Biodiversidade Amazônica e que processos educativos ensejam? De modo a orientar esta investigação, defini as seguintes questões norteadoras: a) Como se concebe, organiza-se e se realiza o período ritual associado à colheita do milho-verde? b) Que fazeres e dizeres próprios do período ritual se fazem processos educativos imbuídos de sentidos e significados pelo indígena da aldeia Gavião Kỳikatêjê.? c) Como processos educativos relacionados ao referido período ritual, incorporam elementos da biodiversidade local? Estas questões norteadoras foram (re) construídas a partir da minha inserção e aceitação pelo povo da aldeia Gavião Kỳikatêjê. Além disso, ao conhecer sobre os ritos associados ao período anual de colheita do milho-verde, pude ampliar a pesquisa para além dos ritos que envolvem o uso de máscaras e também perceber outros fazeres presentes no mito de origem desse período ritual e na preparação e na execução dos rituais. Esses fatores foram determinantes para repensar a realização deste trabalho. Desse modo, tenho como objetivo geral da pesquisa: Identificar os fazeres e dizeres, presentes nos rituais associados à colheita do milho-verde dos índios Gavião K ỳikatêjê, que integram elementos da Biodiversidade Amazônica e os processos educativos a estes vinculados. E, como objetivos específicos: a) Descrever os processos de concepção, organização e realização dos ritos associados à colheita do milho-verde ; b) Mapear BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 20

processos educativos, ligados a elementos da biodiversidade local, presentes nos fazeres e dizeres do referido ritual; c) Discutir os fazeres e dizeres enquanto processos educativos imbuídos de sentidos e significados pelo indígena Gavião K ỳikatêjê. Esclareço que esta pesquisa não se trata de um estudo ritualístico, comparativo entre sociedades Jê-Timbira , mitológico e nem baseado em análise de estrutura social. Trata-se de uma investigação sobre a educação presente em rituais indígenas, associados à colheita do milho-verde, no contexto da aldeia dos índios Gavião Kỳikatêjê . A noção de educação, aqui trabalhada, pode até correr o risco de se confundir com a noção de cultura 4, pois compreende a própria socialização da vida como um processo educativo, neste aspecto, coaduna com Brandão (2007, p. 20-1) quando diz que

Esparramadas pelos cantos do cotidiano, todas as situações entre pessoas, e entre pessoas e a natureza – situações sempre mediadas pelas regras, símbolos e valores da cultura do grupo – têm, em menor ou maior escala a sua dimensão pedagógica. Ali, todos os que convivem aprendem, aprendem da sabedoria do grupo social e da força da norma dos costumes da tribo, o saber que torna todos e cada um pessoalmente aptos e socialmente reconhecidos e legitimados para a convivência social, o trabalho, as artes da guerra e os ofícios do amor.

Visualizar esses fazeres e dizeres eminentemente culturais como processos educativos implicou, durante toda a pesquisa, em uma interpretação que envolve os sentidos e os significados que permeiam sua prática. Nesse sentido, do ponto de vista teórico-metodológico, o presente estudo foi construído a partir de uma abordagem de pesquisa qualitativa, caracterizada como uma prática de Etnopesquisa. Esse modo de fazer pesquisa qualitativa empreende uma atividade constante de interpretação do contexto pesquisado, na qual a análise se dá em todo o processo, devendo se intensificar na relação entre teoria e dados coletados, oriundos dos diversos métodos aplicados (MACEDO, 2000).

4 Sistema de formas simbólicas (GEERTZ, 2007). BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 21

Inserida nos estudos de “Etnociência 5”, a prática de Etnopesquisa compreende o fenômeno social e cultural em estudo como uma manifestação de significados e sentidos, regidos por uma maneira própria de ver o mundo e atuar nele. Dessa forma, os fazeres e dizeres investigados, como se tratam de fenômenos culturais (o período ritual associado à colheita de milho-verde), então, exigem um contato direto com a realidade dos ambientes onde se constroem esses fenômenos. Esse contato com a realidade caracteriza uma necessidade pelo uso de metodologias qualitativas, ou seja, “a justificativa para que o pesquisador mantenha um contato estreito e direto com a situação onde os fenômenos ocorrem naturalmente é a que eles são muito influenciados pelo seu contexto” (LÜDKE e ANDRÉ, 1986, p. 12). Além disso, pelo fato dos rituais relatados na pesquisa serem, na comunidade Gavião K ỳikatê-Jê , apreendidos por meio de um “mito de origem” e associado à colheita de milho-verde, caracteriza um caso singular, pois “quando queremos estudar algo singular, que tenha um valor em si mesmo, devemos escolher o estudo de caso”. Dessa forma, esta pesquisa se define como um “estudo de caso do tipo etnográfico” (LÜDKE e ANDRÉ, 1986, p. 17). Faz-se Estudo de Caso Etnográfico nas seguintes condições:

(1) quando se está interessado numa instância em particular, isto é, numa determinada instituição, numa pessoa ou num específico programa ou currículo; (2) quando se deseja conhecer profundamente essa instância particular em sua complexidade e em sua totalidade; (3) quando se estiver mais interessado naquilo que está ocorrendo e no como está ocorrendo do que nos seus resultados; (4) quando se busca descobrir novas hipóteses teóricas, novas relações, novos conceitos sobre um determinado fenômeno; e (5) quando se quer retratar o dinamismo de uma situação numa forma muito próxima do seu acontecer natural (ANDRÉ, 2005, p. 50-1) .

Segundo Ludke e André (1986, p. 18), “os estudos de caso enfatizam a interpretação em contexto”, o que irradia para uma busca em retratar concisamente a realidade em questão. Essa busca, conseqüentemente, gerou uma variedade de dados e fontes de informação, resultado de um envolvimento direto com o objeto de estudo. A definição dos sujeitos desta pesquisa teve, inicialmente, por critérios: sua participação concreta nos fazeres e dizeres implicados, que fazem parte dos rituais

5 “[...] um campo de estudos interdisciplinares que estuda o modo como populações humanas inserem-se culturalmente em ecossistemas, tanto através de processos cognitivos, como de reações emocionais e comportamentais, no qual interpretam-se conexões que emergem como um interpretar-se de sociedade e natureza que se contradiz e se complementa”. (MARQUES, apud AMOROSO, 2002, p. 32). BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 22

associados a colheita de milho-verde e, sobretudo, aquelas pessoas apontadas pela comunidade indígena como detentores do conhecimentos relacionados ao pesquisado. Contudo, percebi que as relações afetivas construídas em torno de valores de confiança mútua também foram contribuições cruciais para a definição dos sujeitos da pesquisa, pessoas com as quais caminhei para a construção deste trabalho.

COM QUEM CAMINHEI

Os sujeitos da pesquisa, com os quais caminhei, são pessoas que me acolheram, com quem participei de vivências para além das atividades restritas ao estudo. Nesse sentido, Ropré , Papaiti , Prekrut , Kr ỳt, Kwainõ , Mamãe-grande e Jõpeyre foram pessoas que possibilitaram o desenvolvimento desta pesquisa e, de alguma maneira, auxiliaram nesta construção, os quais apresento a seguir: Sr. Ropré é uma liderança na aldeia Kỳikatêjê , que exerce um papel muito importante na comunidade, visto que é o tradutor do cacique, pois o mesmo não fala e compreende pouco a língua portuguesa. Assim, ele sempre está presente em todas as tomadas de decisões pela liderança, nos eventos estaduais e nacionais em que há necessidade de ir representar a aldeia e em conversas com o cacique, o qual é seu amigo particular. O Sr. Ropré me relatou várias vezes sobre momentos de doença do cacique em que ele esteve presente, acompanhando e o representando, pois é um homem de confiança. Isso reflete seu cargo na Associação Kỳikatêjê Amitãti , onde ele é o tesoureiro, responsável pela prestação de contas de toda a renda que entra e sai da comunidade, pela compra dos alimentos que vêm da cidade, o chamado “rancho”, que alimenta cada seguimento residencial da aldeia. Além disso, o Sr. Ropré é um participante ativo dos fazeres relacionados à cultura indígena da aldeia, do grupo dos “Lontra”. O Sr. Ropré é o usuário da única máscara, chamada cabeça de peixe, de seu grupo ritual, também “corre tora”, caça e é considerado o melhor jogador de petecas de sua aldeia . Identifiquei-me muito com o Sr. Ropré , desde o nosso primeiro encontro, em 2007, na Semana dos Povos Indígenas. Essa minha aproximação a ele favoreceu a BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 23

pesquisa no sentido prático da vivência, pois o Sr. Ropré , promoveu a minha apresentação junto aos anciãos da aldeia e, desse modo, também foi o meu tradutor, visto que eu falo quase nada em língua Jê. Além disso, a família de Sr. Ropré me acolheu em sua casa, na aldeia, e sua esposa sempre demonstrou muito carinho por mim e, até hoje, guarda a minha rede e sandálias que sempre deixei lá como sinal de retorno. Esse ato representa uma aliança estabelecida entre nós. Papaiti, também sujeito desta pesquisa, é um ancião. Ele não sabe dizer sua idade e ninguém da comunidade sabe informar, porque na época em que ele nasceu os índios não tinham o compromisso, nem interesse, de registrar em cartório, como têm hoje, principalmente em função de matricular as crianças na Escola. Papaiti aparenta ter cerca de 75 anos, tem filhos, netos e bisnetos, todos morando na aldeia Kỳikatêjê . Ele fala pouco em língua portuguesa, geralmente tenta falar e, misturando a língua Jê com português e na velocidade com que os indígenas pronunciam as palavras, chegou a me confundir. Essa limitação gerou, por vezes, dificuldades para explicar o que eu queria saber. Algumas vezes eu explicava por gestos e demonstrações de imagens, e Papaiti adotava o mesmo método para me responder. As anotações de conversas que tive com ele parecem totalmente corrigidas porque não há como escrever o modo como pronunciava as palavras, com rapidez, sons misturados, cantos e demonstrações de imagens. Minha relação com Papaiti se deu por meio da minha vivência no acampamento dos velhos, onde ele sempre se encontrava reformando suas flechas que estavam com as penas roídas por barata. Ele é tocador de apito e cantor, experiente jogador de flechas. Na brincadeira de petecas ele é do grupo “Arara”, além de confeccionar petecas com palha de milho-verde. A maior contribuição de Papaiti a esta pesquisa se apresenta no momento em que ele me levou para conhecer a roça de milho, ensinando-me sobre o tempo de colheita, sobre as outras espécies plantadas na roça de milho, dentre outras informações que me forneceu durante nossa conversa informal na trilha rumo à roça. Prekrut é outro sujeito da pesquisa, que também faz parte da liderança da aldeia. Aparenta ter a mesma faixa etária do Sr. Ropré . Ele não chega a ser considerado ancião, mas é referido como alguém experiente na aldeia, pois conhece sobre as BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 24

histórias do povo, fala bem a língua Jê e compreende parcialmente a língua portuguesa. Prekrut é o cortador de toras da aldeia, responsável por preparar o tronco de árvore, cortar as toras em igual tamanho, cavar para deixar oco (parte do tronco) e pintá-las com urucum. Ele faz parte do grupo ritual “Lontra”, também “corre tora”, caça e é jogador de petecas. Esse indígena forneceu a esta pesquisa informações importantes sobre sua atividade de cortador de toras, além de promover a minha apresentação para outras pessoas da aldeia. Kr ỳt, um jovem de 21 anos, também é um dos participantes desta pesquisa, pois sempre se mostrou solícito para conversar sobre os rituais de sua aldeia, e até contribuiu com a feitura de desenhos sobre a máscara de seu grupo ritual. Eu já o conhecia desde 2007, em Belém, quando fomos apresentados no mesmo evento de Semana dos Povos Indígenas em que conheci o Sr. Ropré . Então, quando cheguei na aldeia, Kr ỳt foi uma das pessoas que promoveu a minha apresentação junto a outros jovens e, ao me relatar sobre sua participação nos rituais, ensinava-me sobre sua cultura. Assim, confirmou que ele é do grupo “Peixe”, e também participa da brincadeira de petecas e de corrida de toras. Kwainõ é mulher jovem, tem um filho com um indígena de uma aldeia Carajá, de Tocantins (TO). É uma participante imprescindível à pesquisa, pois é conhecida na aldeia como uma jovem que sabe fazer todos os tipos de pinturas corporais. Conhecemo-nos por meio da esposa do Sr. Ropré , a qual é sua sogra. Kwainõ chegou a fazer várias pinturas corporais em meu corpo, ensinando-me o que representavam e, ao mesmo tempo, conversando sobre como ela aprendeu a fazer. Algumas dessas pinturas eu não consegui fotografar, porque eu desempenhava vários papéis: pesquisadora, sujeito da pesquisa e fotógrafa. Em alguns momentos, isso se configurou em limitações no contexto da pesquisa. Ronoré , comumente chamada na aldeia de “Mamãe-grande”, é uma anciã muito respeitada.Vários de seus filhos e netos fazem parte da liderança da aldeia. Um de seus filhos é líder da associação Apito , a qual coordena as ações de outro povo Gavião , os Akrãtikatêjê . Minha relação com Mamãe-grande se deu de forma muito especial, pois desde minha primeira ida à aldeia sempre estive com ela, em seu acampamento de palha, onde ela passa o dia inteiro confeccionando adornos, fazendo comida e/ou BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 25

conversando com suas amigas, também anciãs, que moram nessa aldeia ou vêm da aldeia, dos índios Parkatêjê . Estabeleci, com Mamãe-grande, uma forte relação afetiva em momentos de socialização de alimento, de sorrisos, de companhia, etc. Mamãe-grande me adotou como sua filha no momento em que me deu um nome: Jõpeyre Kapreré . Jõpeyre Kapreré sou eu. A minha nomeação e adoção, por Mamãe-grande, proporcionou-me a oportunidade de ser um dos sujeitos da pesquisa, pois no contexto desta pesquisa, Jõpeyre é uma pessoa menos kup ẽ6 do que os demais não-índios que transitam na aldeia Gavião Kỳikatêjê . Penso que não é nem uma pessoa nativa e nem a pesquisadora, mas alguém que se construiu, nesse contexto, para diminuir o fosso entre a figura do pesquisador e a figura do indígena, num momento em que a Mamãe- grande me conheceu o suficiente para estabelecer uma relação significativa e imbuída de sentidos referentes a nossa convivência. Essa vivência com a Mamãe-grande é relatada com mais detalhes na segunda seção deste trabalho. Assim, outros sujeitos contribuíram para que eu compreendesse concepção, organização e realização dos rituais apresentados neste trabalho, porém a participação dos acima referidos foi determinante, pois, suas falas, desenhos, pinturas e companhia em atividades recorrentes da aldeia, deram-me condições para registrar dados significativos à pesquisa, além de auxiliar na configuração desta com métodos de Observação Participante (OP), visto as relações de trocas que estabeleci com os sujeitos durante a caminhada.

COMO REGISTREI E ANALISEI A CAMINHADA

Os registros da pesquisa originados de OP, como recurso de um Estudo de Caso, possibilitaram um conhecimento gerado na prática participativa de interação entre pesquisador e pesquisado (MACEDO, 2006). Dessa forma, a minha presença e participação em rodas de conversa, momentos formais e informais no contexto da aldeia Kỳikatêjê , foram importantes para eu entender noções que regem o pensamento

6 Kup ẽ: palavra de origem Macro-jê, usada para designar a categoria das pessoas “não-índias”, “brancos” ou de outra raça que não pertence a nenhuma etnia indígena. BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 26

indígena, o que configurou um constante processo educativo para mim, enquanto pesquisadora e, sobretudo, aprendiz daquelas “novas” formas de compreensão do universo que, no lócus da pesquisa, apresentavam-se. Assim,

os nós de incompreensão percebidos pelo pesquisador pouco a pouco vão se dissolvendo por um complexo processo de “aprender fazendo”, permitindo-lhe compreender com mais profundidade sentidos até então não detectados de seus referenciais culturais dos seus observados (AMOROSO, 2002, p. 16).

Em consonância com a prática de OP, utilizei o caderno de campo como um instrumento essencial na observação do cotidiano, compondo-se principalmente de minhas impressões subjetivas em que, fora do ambiente de participação, registrei dados adquiridos através das atribuições de sentidos, sentimentos, particularidades de meu interesse enquanto pesquisadora. Os registros no diário de campo me possibilitaram compreender um bojo de significações próprias, adquiridas durante minha história de vida e também durante minha vivência na aldeia, num processo dialético constante, coadunando com o que diz Macedo (2006, p.134): “ao elaborar seu diário, o pesquisador constitui-se um sujeito entre outros sujeitos, humaniza-se, dialetiza-se [...]”. Dar voz aos sujeitos da pesquisa foi também um passo muito importante. Tendo em vista o objetivo de compreender uma realidade educacional própria de uma cultura indígena, através de uma concepção humanista, referindo-me a homens e mulheres, que fazem parte dos fazeres e dizeres culturais associados à colheita de milho-verde , enquanto autores e sujeitos do mundo (SANTOS, 2006). Nesse sentido, tendo em vista o olhar sobre os dados êmicos (do sujeito) e os dados éticos (do pesquisador), optei ainda por realizar entrevista com cinco sujeitos, as quais foram utilizadas como interação mútua, de participação, na modalidade de entrevista semi-estruturada ou parcialmente estruturada, possibilitando o diálogo entre os sujeitos que interagem no processo de pesquisa em busca de dados mais autênticos e, por vezes, inusitados ao pesquisador, dados que, geralmente, só aparecem em momentos de conversas informais (AMOROSO, 2002), como, por exemplo, o fato de que, no início da pesquisa, eu tinha uma idéia de que iria tomar como pano de fundo o BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 27

ritual Tep Krã 7 . Porém, após as conversas informais e parcialmente estruturadas, compreendi que existem outros rituais associados à colheita de milho-verde e que, esses rituais, de alguma maneira, se relacionam e integram elementos da biodiverdidade local, informações que configuraram meus interesses de pesquisa e contribuíram para mudanças inusitadas nos caminhos da mesma. Ressalto ainda, que, durante minha vivência na aldeia, percebi a presença de desenhos em vários ambientes, com os quais alguns indígenas me apresentavam sua maneira de perceber a realidade, como forma de ensinar sobre como ocorrem alguns processos de feitura de artefatos rituais, apresentando formas, cores e usos de elementos naturais diversos, além do significado de seus grafismos em pinturas corporais, por isso os desenhos foram incorporados na pesquisa. Esse recurso visual, aliado às falas dos sujeitos, possibilitou compreender a necessidade de inclui-os neste trabalho, para mostrar as relações que se estabelecem sobre os processos educativos implícitos na cultura do povo em estudo, pois, “representações gráficas feitas pelos informantes, seja em papel ou na areia, são de imensa valia, e são muitas vezes utilizadas para ensinar àqueles que não sabem: os jovens e os pesquisadores” (AMOROSO, 2002, p. 18). Durante a construção e execução dos fazeres rituais associados à colheita do milho-verde, utilizei ainda registros fotográficos que serviam para contextualizar o lócus da pesquisa e dar visibilidade a situações diversas relacionadas ao estudado. As imagens favorecem a experiência perceptiva através da linguagem visual, que configura o texto não-verbal, o qual se aglutina às informações verbais sobre o pesquisado. “Apreendem-se formas, volumes, cores, movimentos, que adquirem num primeiro momento, estruturas frásicas e significantes” (MACEDO, 2006, p. 125). O flash adquire uma semântica no instantâneo fotográfico, imbuído de significados interpretáveis, ao se relacionar com outros dados da pesquisa. Dessa forma, procurei não fazer da dissertação um mero álbum fotográfico, ilustrativo, do que se apresentou na aldeia Kỳikatêjê , mas utilizei imagens

7 Equivalente a Tep Krã – Tep ou Tuti : peixe; Krã : cabeça. Inicialmente o Sr. Ropré se referiu a “brincadeira de peixe”, a qual envolve o uso de máscaras, como Tep Krã . Isso foi repreendido, depois, pelo cacique da aldeia, informando-me que o povo Kỳikatêjê se acostumou a chamar essa sociabilidade de Tep Krã por que viviam junto ao povo Parkatêjê . Então, aprendi que entre os Kỳikatêjê se deve chamar Tuti Krã , uma palavra variante Macro-Jê. BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 28

principalmente como registros coerentes com os objetivos desta pesquisa e passíveis de percepção e interpretação. Logo, busquei selecionar imagens que caracterizam o contexto da aldeia Gavião Kyikatêjê, mostrando várias formas de apropriação da realidade por esse povo, imagens que caracterizam suas formas de comunicação e, ainda, de atividades relacionais que expressam, dentre outros, os processos educativos recorrentes aos fazeres e dizeres discutidos. Importa-me esclarecer que não mostro, nesta pesquisa, tudo o que é possível ler nos dizeres e fazeres estudados. Enfatizo apenas uma das formas de perceber a realidade presenciada na aldeia, revelando o olhar do interpretante 8 que percebe, extrapola o campo dos sentidos sob a realidade latente, pois:

a percepção é sempre um processo seletivo de apreensão. Se a realidade é apenas uma, cada pessoa a vê de forma diferenciada; dessa forma, a visão pelo homem das coisas materiais é sempre deformada. Nossa tarefa é a de ultrapassar a paisagem como aspecto, para chegar ao seu significado. A percepção não é ainda o conhecimento, que depende de sua interpretação e esta será tanto mais válida quanto mais limitarmos o risco de tomar por verdadeiro o que é só aparência (SANTOS, 2008, p. 62).

Contudo, a proposta metodológica desta pesquisa não se afasta da compreensão de que o modo de pensar o universo Timbira , especificamente na aldeia Gavião Kỳikatêjê , está imbuído de significados, linguagens sociais, narrativas visuais, míticas, simbolismos que “borram linhas de contorno” na realidade das práticas de (re)produção do fenômeno cultural. Por esses aspectos, tive a preocupação com os processos que se dão em torno dos fazeres e dizeres próprios dos rituais associados à colheita do milho-verde, que (re)produzem signos interpretáveis e contextualizados. Assim, em todos os aspectos da pesquisa, busquei um caráter processual, em que se (re)constrói, continuamente, essa manifestação cultural singular interrelacionada com contexto diverso da vida na aldeia. Tendo em vista as conexões do espaço habitado (SANTOS, 2008), no contexto dos fazeres e dizeres indígenas estudados, entendi que a análise de conteúdo seria apropriada para discutir os dados gerados, pois possibilita a leitura e interpretação de diversas fontes. Esse procedimento de análise foi adotado para a sistematização dos

8 Numa perspectiva semiótica, o termo “interpretante” é apresentado aqui sob a definição de interpretante dinâmico, isto é, aquilo que o signo efetivamente produz na sua, na minha, em cada mente singular (SANTAELLA, 2006, p. 60). BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 29

dados coletados, a fim de mostrar os processos educativos e compreender como os elementos da biodiversidade local são incorporados nesses fazeres e dizeres que são culturais. Ou seja, não me detive em fazer uma classificação de elementos da biodiversidade local, nem listar conhecimentos indígenas, como numa lista enciclopédica ou suma etnológica, mas mapear e analisar os referidos elementos, suas formas de aplicabilidade e os saberes envolvidos, a fim de discutir processos educativos que se estabelecem junto a elementos da fauna, da flora, do cosmo, e de outras relações intrínsecas à vida indígena, tendo como principal foco o conteúdo presente nas diversas fontes estudantes. Essa análise foi permeada por informações adquiridas no caminhar da pesquisa, junto aos sujeitos participantes, o que é possível num processo de análise de conteúdo, como afirma Franco (2007):

são perfeitamente possíveis e necessários o conhecimento e a utilização da análise de conteúdo, enquanto procedimento de pesquisa, no âmbito de uma abordagem metodológica crítica e epistemologicamente apoiada numa concepção de ciência que reconhece o papel ativo do sujeito na produção do conhecimento (p. 10).

A adoção por esse tipo de análise levou em conta que os dados apresentam significados culturais. Assim, procurei olhar com cuidado para interpretá-los não apenas a partir de minha percepção, mas, sobretudo, tendo em vista as categorias de contexto definidas: o Tuti Krã e o Hõprykrã, de onde os dados emergiram. Nesse sentido, a partir de Moraes (1999), defini os passos para a análise, os quais apresento a seguir: 1º) Reuni e li os dados coletados, gravações das falas, fotos, desenhos e escritos de diário de campo e separei apenas os que estavam estreitamente relacionados aos objetivos da pesquisa e, de alguma forma, respondiam as questões norteadoras; 2º) Após ter filtrado, da miscelânea de informações registradas, apenas o que seria importante para discutir neste trabalho, codifiquei os tipos de dados para fins de organização, da seguinte maneira: as falas transcritas e digitadas. Após serem lidas, foram formatadas com cores diferentes para distinguir as informações de cada BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 30

categoria de contexto – o que era referente ao Tuti Krã de uma cor e o que era referente ao Hõpr ỳkrã de outra cor; 3º) Em seguida, trabalhei por categoria de contexto. Reli os dados para identificar “unidades de análise” e defini as seguintes: “O Mito de Origem”, “Confecção das Cabeça de Peixe”, “Corrida de Toras” e “Pinturas”, presentes no contexto do Tuti Krã ; e ainda, “A Roça Tradicional”, “Pinturas Corporais”, “Jogo de Petecas”, “Corrida de Toras” e “Dança”, estes últimos, presente no contexto do Hõprykrã . Essas categorias foram definidas, pois são etapas significativas dos rituais associados à colheita do milho-verde na aldeia Gavião Kyikatêjê e possibilitam discutir processos educativos a elas recorrentes. 4º) Definidas essas unidades de análise, isolei nas falas, fotos e desenhos, informações referentes a elas e que, de alguma maneira, ensejam processos educativos que incluem elementos da biodiversidade local. Em algumas dessas unidades (“O Mito de Origem”, “Confecção das Cabeça de Peixe”, “Corrida de Toras”), para melhor visualização das informações, construí quadros demonstrativos contendo elementos da biodiversidade local, suas aplicabilidades e saberes envolvidos, os quais foram, em seguida, discutidos conforme as escolhas teóricas desta pesquisa. Em outras unidades de análise, foram apresentadas imagens e falas que se expressam fazeres e dizeres decorrentes de modos de educar, discutindo os processos educativos identificados e suas práticas próprias de aprendizagem. Esse trabalho de sistematização e análise de dados implicou, durante toda o caminhar da pesquisa, “idas e vindas” nas “unidades de contexto”, às quais voltei constantemente, a fim de não perder o sentido originário das informações, ou seja, a noção e apreensão do universo pela pessoa indígena; Esse movimento de releituras dos dados, nas “idas e vindas” às categorias de contexto e unidades de análise, me permitiu uma interpretação dos fazeres e dizeres que não os descaracteriza no seu contexto de formas simbólicas, mas os valoriza nesse movimento. Portanto, adotei uma vertente interpretativa própria de uma proposta de análise de conteúdo, em que se discute as unidades de análise e seus elementos, sem perder a perspectiva de seu conjunto de significados e, ainda, construindo as relações teóricas necessárias para a interpretação e compreensão do estudado . Assim, “a teoria BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 31

é construída com base nos dados e nas categorias de análise [...]”, possibilitando que a própria construção da teoria seja uma interpretação (MORAES, 1999, p. 25). Nesta pesquisa, a teorização é feita a partir das mensagens do investigado, o que caracteriza esta análise de conteúdo como de “nível latente”, em que o pesquisador busca sentidos implícitos às mensagens. Portanto, trata-se de uma abordagem caracteristicamente indutiva, construtiva e subjetiva, reconstruindo as categorias usadas pelos sujeitos para expressarem suas próprias experiências e sua visão de mundo, e assim, chegar à teoria. Logo, “teorização, interpretação e compreensão constituem um movimento espiral em que, a cada retomada do ciclo, se procura atingir mais profundidade na análise” ( op. cit. ). Nessa abordagem, as experiências e noções de visão de mundo dos sujeitos foram, de alguma maneira, captadas e tomadas como imprescindíveis no processo de teorização, interpretação e compreensão do estudado. As expressões, verbais e não- verbais, relacionadas a elementos de cultura material e/ou imaterial, traduzem mensagens diretamente articuladas ao contexto social, histórico, cultural e biológico do estudado, valorizando sujeitos, que há tanto tempo foram silenciados pelas agruras de uma ciência dogmatizada, e que atualmente são considerados detentores de conhecimentos significativos à vida (OLIVEIRA, 2008). Para melhor compreensão deste estudo e seu processo de construção, organizei-o da seguinte forma: a) Introdução, construída em partes: POR ONDE CAMINHEI , na qual consta o histórico da pesquisa; COM QUEM CAMINHEI , em que forneço informações sobre os sujeitos participantes; e, COMO REGISTREI E ANALISEI A CAMINHADA , momento da introdução em que ofereço ao leitor informações sobre os passos metodológicos da pesquisa e a forma como os dados foram tratados, analisados e apresentados nas Seções da dissertação. b) Na Seção I , intitulada ESPAÇO-AMBIENTE-NATUREZA AMAZÔNICO , discuto o modo de apreensão da realidade na referida aldeia lócus da pesquisa, a maneira indígena de se identificar, a história de suas terras e o contexto característico da aldeia, a fim de compreender essa realidade dentro do mosaico de formas em que o “amazônico” se apresenta em sua diversidade. BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 32

c) Na Seção II , denominada RITUAIS ASSOCIADOS A COLHEITA DO MILHO- VERDE, MOSAICO DE UMA EDUCAÇÃO DIALÓGICA, está posto, de modo geral, os rituais associados à colheita do milho-verde, e nesta, discuto o mito enquanto prática pedagógica, além de mostrar toda a narrativa mitológica do mito de origem dos rituais estudados na fala do Sr. Ropré , descrevo também as etapas de realização da “brincadeira de petecas”, presenciadas durante minha vivência na aldeia. Essas duas primeiras seções respondem a uma das questões norteadoras desta pesquisa que trata sobre compreender a forma de concepção, organização e realização dos rituais estudados. d) Na Seção III , PROCESSOS EDUCATIVOS DA VIVÊNCIA NOS RITUAIS faço mapeamento e discussão dos fazeres e dizeres presentes nos referidos rituais, sobretudo, os associados a elementos da biodiversidade local, compreendidos e analisados aqui em vários processos educativos e suas práticas de aprendizagem. Por fim, nas CONSIDERAÇÕES QUE NÃO PRETENDEM SER FINAIS , trato do que aprendi com o estudo, suas contribuições para os meios envolvidos na investigação e, principalmente, aponta possibilidades de continuidade de pesquisa e sua relevância para a área de Educação, especialmente na Amazônia. Nessa parte do texto, não me proponho finalizar a pesquisa, nem digo que aqui se esgotam as análises sobre o estudado, muito menos proponho notas de conclusão, pois considero que o caminho dessa discussão foi apenas iniciado.

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Seção I. ESPAÇO-AMBIENTE-NATUREZA AMAZÔNICO

Sempre que alguém trata à respeito de um fenômeno da/na Amazônia, preocupa-se em situar o leitor sobre sua dimensão territorial: a Amazônia, além de ser uma região de natureza privilegiada por sua diversidade, possui cerca de seis milhões de quilômetros quadrados que se estendem do Atlântico às bases da Cordilheira dos Andes, inclui Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela, sendo que o Brasil exerce “soberania” sobre 64% dessa dimensão. Além da importância referente a exuberância de seu bioma, que constitui 20% da biodiversidade do mundo, a “megadiversidade amazônica”. “Estima-se a existência de 1,8 milhão de espécies distintas de plantas, animais e microorganismos em território brasileiro, uma diversidade genética colossal, daí o termo megadiversidade” (BECKER, 2008, p.40). Esses dados, de certo modo, repetem-se em textos que fazem alguma relação com o assunto. Não questiono o mérito de tais textos, mas percebo que é como se a Amazônia fosse comparada apenas a uma reserva biológica, onde tantos reinos da biota estivessem guardados nela. No entanto, compreendo a Amazônia enquanto espaço de possibilidades, que se metamorfoseia, se transforma e “borra” fronteiras ao se fundir numa idéia chamada “amazônias”. Esse espaço não é apenas a dimensão territorial em que os reinos se dispõem ou estão simplesmente postos, mas é o meio pelo qual a vida se torna possível. Refiro-me à vida levando em consideração suas complexas nuances, sua diversidade, pois penso o espaço como a potência de suas conexões (MERLEAU- PONTY, 1994). “O espaço não é nem uma coisa nem um sistema de coisas, senão uma realidade relacional: coisas e relações juntas” (SANTOS, 2008, p. 27). Essas coisas, que são os bens materiais e imateriais, caracterizam-se como formas que, relacionando-se, constituem o ambiente. A partir de Leff (2003, p. 24), o ambiente é um “conceito que abre a possibilidade do ser como construção social”. Portanto, o espaço- BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 34

ambiente é o lugar onde se relacionam esses bens num conjunto de possibilidades, enquanto totalidade 9. A partir dessa concepção, falo de “amazônias” enquanto totalidade que, quanto mais diversa mais singular, considerando sua “ variedade de elementos vivos e não- vivos, de ritmos, gostos, cheiros, paisagens; de pessoas, crenças, línguas, artes e de muitas formas de ver o “outro”, ou seja:

Não existe uma cultura, uma identidade amazônica no singular. A concepção deste espaço é plural. As diferentes manifestações culturais trazem marcas do híbrido e da mestiçagem e reconhecem as presenças indígenas, africanas, libanesas, nipônicas, entre tantas outras (FARES, 2004, p. 86).

Neste sentido, essas “amazônias”, se apresentam em modos tangidos por cosmologias diversas, ritos fundamentados em mitos singulares e de origem milenar, contrastando com os modos globalizados das cidades que crescem relativamente perto das aldeias “nativas” e comunidades ribeirinhas, criam um mosaico 10 com “matizes de um disco cromático” ainda pouco conhecido. Essa diversidade de “matizes” se apresenta nas correlações da biosociodiversidade, compreendida como o natural em suas múltiplas dimensões integradas, como totalidade biológica, social, econômica, política, histórica e cultural (FONSECA, 2009). A “natureza” histórica e socialmente construída na interação dos entes com o meio físico, considera uma concepção essencialmente histórica da ecologia humana (VIVEIROS DE CASTRO, 2002), a partir de uma noção da antropologia ambiental 11 . Essa “natureza”, referida, construída histórico e socialmente, é substrato de relações de ações, ou seja, é um conjunto de coisas e relações que não se reduz

9 Compreendo, aqui, “totalidade” como categoria epistemológica para apreender a complexidade ambiental, esta entendida como o “entrelaçamento da ordem física, biológica e cultural; a hibridização entre a economia, a tecnologia, a vida e o simbólico” (LEFF, 2003, p.39). 10 Mosaico é uma palavra de origem grega – mouseín : mesmo vocábulo que deu origem à palavra música – significa que é próprio das musas. Foi criado na época do apogeu Greco-romano. Os primeiros registros de mosaicos encontrados são datados de 3.500 anos a. C., na região da Mesopotâmia. Em sacórfagos das mais antigas múmias do Egito também são encontrados mosaicos, em sua decoração externa. Mosaico é um tipo de arte visual cuja técnica consiste em embutir pequenas peças de pedra ou outros materiais (vidro, mármore, cerâmica, etc) para, a partir da união e integração das pequenas formas embutidas, formar uma imagem maior, preenchendo sobre um plano, um suporte. 11 “[...] empenhada em revelar o caráter transformador do homem em sociedade diante do ambiente natural, no caso, instigado particularmente pela dimensão da cultura, da sociedade e das suas dinâmicas” (WALDMAN, 2006, p. 36). BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 35

apenas à categoria das coisas que são biológicas, mas de uma totalidade, tratada anteriormente, enquanto conjunto de possibilidades. Nesse sentido, os termos “espaço”, “ambiente” e “natureza” se completam sem distinções e são tratados aqui enquanto composto de objetos teóricos que caracterizam o conceito mais completo que tenho para pensar uma realidade que é dialética, múltipla, interdimensional e complexa 12 . Este trabalho trata sobre o “espaço-ambiente-natureza” de uma sociedade que se apresenta com modos de vivência próprios dessa região, ou seja, de um ecossistema e de uma sociedade de etnia 13 indígena 14 , fundamentados numa maneira própria de ver o mundo e atualizar-se para a cultura local, por meio de processos que podem ser considerados atos educativos imbuídos de sentidos e significados ameríndios. Olhar uma sociedade enquanto totalidade requer identificar como as coisas e as relações se tornam possíveis nesse “espaço-ambiente-natureza”. No caso deste estudo, essa identificação se inicia pela compreensão da pessoa pertencente a uma etnia indígena, o que requer compreender quem são os povos Jê-Timbira e o que os caracteriza, pois o pano de fundo desta pesquisa incorpora a cultura do povo que habita a aldeia Gavião Kỳikatêjê , índios de herança sócio-cultural dos sub-grupos étnicos Jê- Timbira (grupo mais amplo), ou seja, caracterizados como índios Timbira e falantes da língua nativa Jê . Conhecer as formas de apropriação do espaço por esse povo e o que caracteriza como grupo étnico Timbira , é condição necessária para me aproximar da compreensão da noção nativa de concepção do cosmo, organização e realização de seus rituais, fator de suma importância em estudos sobre fenômenos culturais indígenas, pois, “conhecer

12 A complexidade aqui se trata de uma escolha epistemológica que implica um processo de desconstrução do pensado, é uma resposta ao constrangimento causado pela unificação ideológica, tecnológica e econômica sobre a natureza (compreendida como natureza-mundo). A partir da concepção de “complexidade ambiental”, que abre a possibilidade do diálogo de saberes e, sobretudo, concebe as subjetividades de valores e interesses nas diversas estratégias de apropriação da natureza (LEFF, 2003). 13 Compreendo etnia enquanto grupo mais amplo que caracteriza os grupos étnicos localizados em aldeias distintas, enquanto grupo de pessoas que compartilham uma cultura distinta e comum entre si, comungam instituições, ideologias e costumes, configurando um sentido de homogeneidade. A etnia está no campo da representação coletiva (POUTIGNAT, 1998). 14 São chamados indígenas os povos a habitarem por essas terras da América antes da invasão européia, por ocasião dos invasores terem chegado a “nova terra” imaginando terem encontrado um novo caminho para as Índias. Essa explicação define o emprego da palavra, talvez pelo equívoco da esquadra de Pedro Álvares Cabral, em 1500, mas não define o que é a pessoa indígena como ser culturalmente diferenciado das sociedades ditas ocidentais. BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 36

o conhecimento indígena passa pelo conhecimento de suas estruturas sociais” (VIVEIROS DE CASTRO, 1995, p. 116). Assim, no item seguinte trago algumas reflexões sobre a percepção da pessoa indígena, especialmente pertencente à nação Timbira .

1.1 “NA ALDEIA KỳIKATÊJÊ A GENTE É ÍNDIO TIMBIRA QUE FALA JÊ ”

A titulação deste item traduz a fala de um indígena da aldeia Kỳikatêjê em que o reconhecimento de si e do outro está presente. (Re)afirma uma identificação enquanto pertencente a uma raça 15 , a uma etnia, a um lugar, a uma cultura e tradicionalmente falante de uma língua que lhe é própria. Visto a variedade de concepções, atualmente, sobre o que é ser índio e pela distinção de povos indígenas ainda resistentes e militantes em prol da identificação territorial-cultural e os conflitos nas relações inter-étnicas vivenciadas com os não-índios (kup ẽ) e seus objetos de consumo, restam muitas dúvidas sobre a pergunta que não cala: O que é ser índio? Pela variedade de respostas que podemos encontrar, para esta pergunta, nas sociedades indígenas e não-indígenas, a questão pode se transformar em confusão. Assim, neste trabalho, legitimo a identificação dos habitantes da aldeia Gavião Kỳikatêjê , que se reconhecem enquanto povo de herança cultural indígena dos grupos Timbira . Atualmente, ser índio requer estar ligado a um grupo étnico indígena e ligado a um tronco lingüístico; incorporar as lutas indigenistas por direitos de seus povos, residir ou estar ligado a uma aldeia (porque hoje muitos indígenas vão para as grandes cidades cursar graduação, se especializar em alguma área de conhecimento que seja de interesse de seu povo); e manter sociabilidades entre as famílias, seus pares e o ecossistema local. Esses povos, prováveis primeiros habitantes do território geográfico americano, se caracterizam distintamente e se diferenciam entre si por processos múltiplos de

15 Conceito de “raça” para relacionar ao parentesco biológico efetivo em diferenças percebidas no fenótipo (POUTIGNAT, 1998). BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 37

apreensão da realidade, de concepção do universo, de relações sociais e culturais locais que dialogam com os ecossistemas. Entretanto, ao longo da história de contato entre povos indígenas e outros povos habitantes da América, construiu-se concepções dotadas de incertezas e silenciamentos gerados por armadilhas de um etnocentrismo exacerbado. Algumas dessas concepções se tornaram generalizadas, movidas por forças de poder das sociedades dominantes – os colonizadores de terras e, consequentemente, de culturas. Uma dessas armadilhas do etnocentrismo, talvez a maior de todos os tempos, é a “ilusão do primitivismo”, legado de uma notável prosperidade da visão evolucionista de Darwin, na segunda metade do século XIX, com a idéia de que esses povos eram “[...] fósseis vivos que testemunhavam do passado das sociedades ocidentais”, os civilizados (CARNEIRO DA CUNHA, 1992, p. 11). Assim, eram considerados povos de “culturas arcaicas”, sem escrita (prevalecendo a cultura oral) e de organização social simples e, se por definição o simples é mais fácil de ser estudado, então era preciso começar o estudo das culturas por esses povos (CUCHE, 2002). Assim, a história dos povos considerados indígenas, por muito tempo fora contada a partir do ângulo de observação de seu colonizador, dotada de etnocentrismo e noções científicas que circulam no mundo ocidental. Conscientes disso, hoje em dia, várias aldeias indígenas já possuem escola. Os velhos querem aprender a ler e escrever em português, para poderem contar a história de seu povo, para resolverem o problema que há tantos séculos se arrasta: a concepção de que as comunidades de cultura oral não tem história, simplesmente por que não a escrevem e/ou acumulam dados. Gersem Luciano (2006, p. 38), indígena, professor e doutorando na UNB, afirma o orgulho de ser índio enquanto reconhecimento de uma cidadania indígena brasileira, quando diz: “Ser índio transformou-se em sinônimo de orgulho identitário”. Além disso, em sua obra - “O Índio Brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje” - ressalta a importância de trabalhar esse orgulho de sua raça com as novas gerações, a fim de contribuir para a atualização dos modos de ser da pessoa indígena. BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 38

Como mostrei anteriormente, a identificação indígena perpassa a ligação com a vida em uma aldeia. A Aldeia ( kr ĩ, em língua Jê), como codificação marcada na sociedade ocidental, e principalmente no Brasil, é comumente um termo que significa um pequeno povoado de índios, o que não significa ser um condomínio residencial para índios, pois os processos de construção das mentalidades ecológicas-culturais, que são atividades vitais das culturas indígenas, foram desenvolvidos durante milhares de anos em espaços geográficos e ecossistemas caracteristicamente diversos e imbuídos de sentidos e significados que dão vida e simbologia aos espaços indígenas nos territórios nacionais. O “espaço-ambiente-natureza” indígena é interdimensional e complexo. Envolve relações de objetos materiais e imateriais na sua dinâmica cultural relacionada a uma maneira própria de pensar o universo. Assim, é o bojo de possibilidades objetivas e subjetivas que caracterizam a existência desse espaço, ou seja, é sua totalidade enquanto etnia Jê-Timbira . Segundo Lima (2003), os Jê-Timbira falam línguas muito semelhantes e talvez mutuamente inteligíveis, além de se assemelharem culturalmente, distinguem-se pelo corte de cabelo (linha na região das têmporas), prática de corridas de toras e, caracteristicamente, por se organizarem em aldeias circulares (fig. 1), cuja espacialidade sintetiza o cosmo do grupo étnico Timbira .

Figura 1. Uma aldeia Timbira . Fonte. Vincente Carelli. Esta foto (fig. 1), de Vicente Carelli, mostra uma aldeia Timbira localizada em região de cerrado que apresenta um bioma campestre, com vegetação rasteira e BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 39

pequenas faixas de floresta, diferente das aldeias Timbira localizadas no Estado do Pará, que são circuladas por floresta tropical fechada, de mata alta e diversificada, fato que não altera a organização espacial das aldeias caracterizadas desse grupo étnico. Nimuendajú 16 , por ter realizados estudos junto aos Jê-Timbira , caracteriza-os como detentores de “[...] uma organização social complexa e um sistema ritual altamente desenvolvido” (GORDON, 1996, p.07). As comunidades Timbira organizam suas sociabilidades com base nas relações de parentesco. Assim, de modo geral, para que um indivíduo participe de uma sociedade cerimonial dentro das atividades rituais, é necessário que ele receba nomeação, através de seus segmentos residenciais (domésticos), os quais se relacionam ao parentesco – organização social pertinente no cotidiano e nas relações cerimoniais do grupo. Esse sistema vale para estabelecer todas as formas de relacionamento no kr ĩ, ou seja, é a partir de seus laços familiares que o indivíduo reconhece sua posição adequada na realidade social (LIMA, 2003). De modo geral, nos grupos Jê-Timbira, a realidade é construída socialmente num processo dinâmico. O conhecimento dessa realidade se dá na interpretação do processo de sociabilidades entre as categorias coletivas (sociedades internas, específicas da linhagem), as quais constituem organização, práticas e saberes locais. Seeger (1987, p. 15) pontua a noção dessas categorias coletivas:

[...] ao trabalhar sobre e com as categorias nativas, faz uma opção epistemológica que nos parece definir a especificidade da Antropologia. Tomar a noção de pessoa como uma categoria é tomá-la como instrumento de organização da experiência social, como construção coletiva que dá significado ao vivido.

Nesse sentido, Seeger está fazendo uma referência à concepção de categorias coletivas de Marcel Mauss (1872-1950), o qual, como constituinte de uma linha francesa de pensamento antropológico, compreende que analisar antropologicamente o

16 Etnógrafo Curt Unkel (1883 – 1945), nominado Nimuendaju pelos índios Guarani, pesquisador que a partir de seus estudos, no Brasil, traz os povos de língua Jê para compor o universo antropológico – “[...] nas décadas de 40 e 50 entram efetivamente para a literatura etnológica da América do Sul” (GORDON, 1996, p.01). A primeira monografia de Nimuendajú, publicada em português, foi “Os Apinayé ”, refere-se a uma descrição minuciosa ocasionada por sua vivência entre os índios Jê , Apinayé , pelas margens do rio Tocantins.

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conceito de pessoa é, sobretudo, estudar formas simbólicas, comunicação implícita de uma cultura específica e seu processo social dinâmico. Portanto, o sistema de parentesco adotado pelas sociedades Timbira , torna o estudo isoladamente específico de uma identificação cultural local distinta, diferente do modo de vida ocidental. Desse sistema, origina-se a imposição e/ou transmissão de nomes através das relações de parentesco entre tios (as) e sobrinhos (as). As metades matrilineares e matrilocais (LÉVI-STRAUSS, 1975), características na organização das aldeias Timbira Orientais 17 , possuem nomes pessoais femininos e masculinos apropriados. Essas metades são definidas pela linhagem (ligações por parentesco), a qual se relaciona à localização e ocupação desses grupos no cotidiano da aldeia. Nimuendajú (1983), em sua etnografia sobre os Apinayé (também um grupo de etnia Timbira ) explica que essa organização por metades não tem relação alguma com aspectos religiosos ou econômicos, quando assim se refere:

Nos jogos e esportes, especialmente nas corridas de tora, formam as metades os dois partidos competidores. No mais, suas funções são, sobretudo de natureza cerimonial. Não cabe às metades nenhuma função religiosa ou econômica (NIMUENDAJU, 1983, p. 19).

O fato de que a sociedade se fragmenta em grupos internos menores (domésticos), e a partir dos segmentos residenciais configura papéis sociais distintos, estabelece um paradoxo crucial, isto é, ao mesmo tempo em que o todo se fragmenta nas individualidades. Tais fragmentos coexistem e constituem o todo na infra-estrutura da realidade social, como um mosaico em constante construção. Isto se dá porque os povos se apropriam da realidade de modos distintos. Estou tratando da “noção social de indivíduo, quando ele é tomado pelo seu lado coletivo: como instrumento de uma relação complementar com a realidade social” (SEEGER, 1987, p. 13). Essa noção pode se aplicar à configuração das sociedades indígenas Timbira , de maneira que em outras sociedades (indígenas ou não) essa noção de pessoa pode

17 Os povos de etnia I Orientais no Brasil são: Kreyé (de Bacabal e de Cajuapará), Kukokamekrá , Krikatí , Pukobye (Gaviões, Gaviões do Oeste ( Parakateye ), Krepukateye , Krahô , Porekamekra , Canela (Kenkateye , Apanyekra ) e Xakamekra (NIMUENDAJÚ apud. GORDON, 1996, p. 06). BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 41

ser totalmente distinta. Desse modo, a linhagem se torna um idioma definidor da noção ideal de pessoa nas relações socioculturais dos povos ligados a esse grupo étnico. O sistema de linguagem de códigos sociais configura o que Seeger (1987) chama de originalidade das sociedades tribais brasileiras, cuja elaboração consiste na noção de pessoa como categoria relacionada à corporalidade, enquanto linguagem, em que o corpo fala por meio de seus papéis sociais demarcados numa territorialidade trans-específica. Compreendo, como Santos (2008, p. 84), que “[...] a configuração territorial é sempre um sistema, ou melhor, uma totalidade, ainda que inerte”. Essa totalidade é uma sistema de medidas em que coexistem os elementos da natureza natural e elementos da natureza transformada, criada, em relação de dependência. Enquanto, o diálogo trans-específico que se dá na configuração territorial é compreendido por Viveiros de Castro (2002:357) como conjunto de conteúdos imateriais: suas crenças, mitos, afetos, etc, principalmente o conteúdo das crenças, o qual toma por base o “xamanismo” que rege o modo de conhecer as coisas e se relacionar com elas. Esse aspecto está associado ao perspectivismo ameríndio 18 , possível a partir de relações de ações implícitas no cotidiano, o que desvela a forma de ser da pessoa indígena no corpo social. Essa forma de organização irradia para as práticas culturais como um todo, ou seja, cria uma trama de conhecimentos práticos que tecem o corpo social. Dessa forma, o corpo não se constitui tão somente de material genético, mas também, e principalmente, de uma linguagem simbólica que permeia e estrutura um idioma, formas de comunicação por gestos, imagens, modos e etc. Nesse sistema de linguagem simbólica para construção da práxis do corpo, a noção de pessoa no âmbito da linhagem, delineia o espaço do coletivo social na sociedade indígena de que estamos tratando aqui. “[...] O corpo humano, entre os Jê- Timbira , parece dividido da mesma forma: aspectos internos, ligados ao sangue e ao sêmen, à reprodução física, e aspectos externos, ligados ao nome, aos papéis públicos, ao cerimonial – ao mundo social [...]” (SEEGER, 1987, p. 21). Esses conhecimentos

18 Cf._Perspectivismo e Multiculturalismo na América Indígena” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002). BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 42

orientam práticas cotidianas relacionadas à sua visão de mundo e classificação dos elementos constituintes do universo. A noção de universo apreendida pelos grupos étnicos Jê-Timbira , implica uma maneira de atuar no mundo e conhecê-lo, pois configura saberes que, sendo praticados, atualizam sua cultura, valores e padrões de vida característicos dessa etnia. As características mencionadas estão presentes, de algum modo, nas práticas cotidianas das aldeias Timbira . Não significa que todos os indígenas brasileiros pensem e se organizem da mesma forma. Fique claro que, para cada grupo étnico e cada tronco lingüístico existem maneiras diferentes de apreensão do Universo e construção particular da noção de pessoa. Essas características, tratadas aqui, são próprias dos grupos étnicos de herança cultural Timbira , configuram o “espaço-ambiente-natureza“ onde todas as coisas se tornam possíveis e interconectadas, propiciando uma historicidade distinta para cada povo, conforme sua história cultural, fator que empreende um olhar contextualizado e crítico de quem se debruça em estudos sobre o assunto (SANTOS, 2003). A seguir trato de características que, de certo modo, identificam os Jê-Timbira que habitam atualmente o território paraense.

1.2 “ERA UMA NAÇÃO CHAMADO TIMBIRA , ERA NUMEROSA TIMBIRA ”

Segundo um senhor que constitui uma liderança entre o povo Akrãtikatêjê, no passado, existia apenas o povo Timbira . Aconteceram muitas guerras entre vários grupos do povo Timbira , em que morreram muitos homens, sobretudo os mais velhos, como os pais e avós que detinham maior conhecimento sobre a cultura Timbira . Por causa dessas guerras, o povo Timbira se separou por vários Estados, inclusive pelo Pará. Desde então, em território paraense, os Timbira passaram a ser reconhecidos em três povos, os Parkatêjê, os Kỳikatêjê e os Akrãtikatêjê. Esses três povos foram denominados por viajantes etnógrafos, no início do séc. XIX, como Gavião por usarem BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 43

penas de gavião em seus adornos e flechas (fig. 2), assim como, por, em determinados ritos, emitirem sons de arara e/ou gavião 19 (ARNAUD, 1964;1976; 1989).

Figura 2. Flechas com penas de aves, produzidas por homens da aldeia Kỳikatêjê . Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).

Esses indígenas, chamado Gavião, habitam uma terra legalmente demarca e regularizada como “Área Indígena”, no sudeste do estado do Pará. A história dos territórios Gavião, no sudeste paraense, se mistura violentamente com a história da exploração de castanha-do-pará, pois os mais ricos e cobiçados castanhais, localizados nas áreas da margem direita do rio Tocantins, deram origem aos mais antigos conflitos dessa região, entre os índios Gavião e os castanheiros. Esses indígenas representavam um obstáculo perigoso aos exportadores e comerciantes de castanha, em meados do século XIX, pois defendiam suas terras agressivamente contra os trabalhadores dos castanheiros, que entravam na mata para coletar castanhas

19 Arara e Gavião são denominações de metades matrilineares definidas por relações de parentesco, associadas a períodos cerimoniais como as “brincadeiras de arara e gavião”: corrida de toras, jogo de varinhas, brincadeira de petecas, etc. BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 44

(LARAIA, 1978). Essa situação contribuiu para o início de um crescente contato desses indígenas com os kup ẽ. Essa situação de contato, nesse contexto, aumentou na medida em que novos castanhais eram descobertos na grande mata de floresta tropical da margem direita do médio Tocantins. Por isso, o Estado começou a intervir na situação, quando “as palavras pacificação, catequização ou simplesmente extermínio, passaram a se construir em projetos de ações que moviam pessoas mais interessadas em estabelecer relações com os índios” (LARAIA, 1978:140), os exploradores dessas terras. Isso retrata com clareza a enorme diferença da noção de valor tida por uma sociedade “ocidental” em relação a uma sociedade indígena. Trata-se de um etnocentrismo exacerbado que gera o problema da incomunicabilidade entre duas sociedades distintas, capaz de ocasionar fatos como esse, relatado por Laraia (1978, p. 140):

Se no século XIX e nas primeiras décadas do atual, os Gaviões apareciam para os brasileiros como mais um grupo indígena que inspirava terror, agora, com o desenvolvimento da produção de castanha, o surgimento dos Gavião como um obstáculo ao “progresso” e à “civilização” era algo concreto. [...] Deste modo, vinte anos depois das declarações transcritas acima, o prefeito de Marabá repetia – agora num jornal da capital: “a região do Tocantins está ameaçada de um colapso econômico o que advirá forçosamente se continuar o atual estado de coisas, com os índios Gaviões atacando, freqüentemente, os castanheiros que atemorizados abandonam os trabalhos.

Esses fatos marcaram apenas um início de expropriação cultural por causa da ganância pelas ricas terras do médio Tocantins. A história dos anos 1500 se repetia continuamente, pois as terras descobertas eram boas, férteis, mas seus habitantes eram “selvagens”. Sem a noção de que a sobrevivência do “espaço-ambiente-natureza” dos povos Gavião é intrínseco à Biodiversidade local do ecossistema típico do médio Tocantins, os tidos como brasileiros traçaram suas metas de invasão em prol do “progresso” pelo desenvolvimento econômico da região, o que gerou muitos conflitos durante várias décadas, levando o governo a pensar numa forma de pacificação. Essa pacificação, apoiada pelo governo em parceria com os castanheiros, representou para os indígenas uma vida de dependência das cidades de Itupiranga e Marabá. Nesse contexto, o Serviço de Proteção ao Índio (S.P.I.) entrou em ação, BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 45

cabendo-lhe a tarefa de garantir qualquer porção de terra aos Gavião (Idem), como se os indígenas fossem crianças que precisam de proteção e de quem fale por eles! Tão cobiçada, a pacificação se deu de maneira lenta, pois, aos conflitos relacionados à exploração de castanha-do-pará, se somaram às frentes indígenas contra ações da ELETRONORTE e da Companhia Vale do Rio Doce (CVRD - atual Vale) que na década de 1940 iniciaram as pressões para a instalação de hidrelétricas no Tocantins e a atividade de garimpo, respectivamente. Em 1945, o SPI conseguiu uma gleba de terra para os Gavião, no Arumateuzinho (atual cidade de Tucurui), por meio do decreto nº252/45, área esta que hoje se encontra submersa pelo lago da Usina Hidrelétrica de Tucurui (ENTE, 2006). Logo, até que os povos Gavião conquistassem legalmente terras em igual tamanho e em condições ambientais equivalentes às terras que habitavam antes da construção da hidrelétrica e da exploração de castanha, ainda demorou cerca de 40 (quarenta) anos, após a inundação de suas antigas terras, quando a Área Indígena Mãe Maria foi demarcada.

Finalmente, o decreto nº 93148 de 20 de agosto de 1986 homologou a demarcação administrativa da Área Indígena Mãe Maria. A demarcação da terra foi levada a efeito pelo Convênio 059/82 estabelecido com a CVRD, como condicionante imposta por agências multilaterais externas para a chamada “área de influência” de Carajás, para apoiar projetos de assistência e ações de regularização fundiária (ENTE, op. cit., p. 41).

O artigo 3º desse decreto exclui do domínio indígena as faixas territoriais que correspondem à linha de transmissão da ELETRONORTE e à Estrada Ferro Carajás, as quais “cortam” as terras de Mãe Maria, fator que ocasiona um atual descontentamento por parte dos índios Gavião. Atualmente, nas extensões da Terra Indígena (TI) Mãe Maria (fig. 3), encontram- se: a denominada Aldeia do Trinta, onde moram juntos os Parkatê-Jê e Akrãtikatê-Jê, e a aldeia Kỳikatê-Jê. Essa terra possui aproximadamente 62.488 ha, (compreendidos entre os rios Jacundá e Flecheiras, afluentes da margem direita do rio Tocantins), localizada no município de Bom Jesus do Tocantins (sudeste do estado do Pará), a nordeste de Marabá (principal ponto de referência). BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 46

Figura 3. Fragmento de imagem de satélite da Terra Indígena Mãe Maria Fonte. LANDSAT 223-63 e 223-64 (2005).

A TI Mãe Maria abriga, atualmente, apenas duas aldeias Gavião , pois na Aldeia do Trinta ainda moram juntos os Parkatê-Jê e os Akrãtikatê-Jê . Estes últimos estão se organizando, através da associação Apito, para constituírem sua aldeia independente, assim como os Kỳikatê-Jê fizeram em 2006, quando, organizados, constituíram liderança, por meio da associação Kỳikatê-Jê Amtatí, que possibilitou a criação de uma nova aldeia sob sua administração. Essa nova aldeia é apresentada no item seguinte.

1.3 A ALDEIA KỳIKATÊJÊ

Maior parte das informações contidas neste item, fundamentam-se nas minhas observações de pesquisa de campo, realizadas entre 2007 e 2009, e relatos de sujeitos da pesquisa, registrados durante os períodos de minha vivência na aldeia dos índios Kỳikatêjê, po sto que, por se tratar de uma aldeia nova, não foram encontradas, em BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 47

publicações acadêmicas, descrições sobre a mesma. A informação que tenho é de que, anteriormente, esse grupo se fixava na aldeia de outro grupo vizinho que também habita em terras indígenas Mãe Maria, os Parkatêjê , povo também Timbira . Atualmente, a aldeia Kỳikatêjê está localizada às margens da rodovia BR-222, há 25 Km de Morada Nova (Marabá – PA). Foi criada desde 2006, num terreno onde existia um grande bananal, sobre essa criação o Sr. Ropré assim se refere: “Aqui, que hoje é aldeia, aqui era roça de bananal, rapaz, mas era bunito!” A aldeia tem suas casas dispostas em forma de um circulo composto por 38 habitações de alvenaria (fig. 4) envoltas por uma rua circular, que configura a região dos segmentos domésticos 20 .

Figura 4. Aldeia Gavião Kỳikatêjê – casas construídas pela Vale 21 Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2008).

Cada casa da aldeia se liga ao pátio circular (o centro da aldeia) por um caminho capinado - com poucas formações herbáceas rasteiras – que é denominado kàpê pry jikwa . Além desse caminho, que liga as casas ao pátio, usa-se também a rua circular onde as corridas de toras e procissões rituais de dança e canto tomam sempre a direção contrária aos ponteiros do relógio. Isso me leva a constatar que, é predominante o uso da rua circular no sentido anti-horário.

20 Locais de moradia das famílias. 21 A Vale é uma mineradora multinacional que atua no mundo todo, “produz e comercializa minério de ferro, pelotas, níquel, concentrado de cobre, carvão, bauxita, alumina, alumínio, potássio, caulim, manganês e ferroligas” [...] no Brasil, tem mais de 100 mil empregados, entre próprios e terceirizados” Acesso em 05 de outubro de 2008. BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 48

Em toda a área que envolve a circunferência de casas e no pátio da aldeia, não existem árvores, nem arbustos, dando-se a perceber que o terreno escolhido para a construção da aldeia é inteiramente nivelado. No entorno da rua circular existem outras casas de alvenaria, dentre estas a sede da Associação KỳikatêJê Amtatí , o prédio da escola indígena, a casa que abriga a secretaria da escola e o dormitório dos professores-kup ẽ (professores não-índios que não residem na aldeia, mas permanecem lá durante os dias da semana em que ministram aulas na escola ). Além disso, ao lado da casa que abriga a sede da Associação fica o acampamento dos velhos (fig. 5), uma habitação coberta por palha de babaçu, feita de estacas fincadas e alinhadas ao chão, amarradas às estacas do teto às da lateral com embira, sem paredes, onde os homens velhos normalmente passam o dia inteiro fazendo flechas, reformando arcos, tecendo esteiras que são usadas para dormir e /ou cobrir utensílio, etc. Além disso, o acampamento é o local onde os homens se reúnem para decidirem sobre rituais, visitas a outras aldeias, despesas mensais da comunidade, ou seja, é a sala de reuniões dos homens – quando os homens mais velhos estão decidindo coisas mais importantes. Durante a minha estada a esse espaço, observei que as mulheres que estão por ali, em segundo plano, ou se retiram para suas casas.

Figura 5. Acampamento dos velhos – casa tradicional Timbira. Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).

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A forma das casas onde moram os habitantes da aldeia Kỳikatêjê , atualmente, é de inteira influência dos kup ẽ: feitas de alvenaria, padronizadas, com o financiamento total da Vale, que fornece energia, suprimentos alimentares, quota em dinheiro para manter os projetos da lavoura, da escola e as despesas normais de cerca de 50 famílias que residem na aldeia. Contudo, é possível verificar que as casas de alvenaria acompanham alguns traços das habitações tradicionais das antigas aldeias Timbira , como é possível ver na comparação das imagens (fig. 6), pois o prolongamento de varanda, na parte de trás e da frente, onde recebem visitas, é comum entre ambas habitações (a antiga e a atual). Além disso, o estilo de casa retangular, com cobertura em forma triangular, hoje feita de telhas de barro, anteriormente feita de palha de babaçu, é construída conforme o estilo do acampamento dos velhos, que ainda preserva a tradição.

Figura 6– Casa dos segmentos domésticos, de alvenaria, e casa tradicional, de material orgânico. Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2008).

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Com 262 habitantes, entre estes estão alguns de outras etnias, que residem ali por um período curto (para ajudarem em tempos de colheitas de cupuaçu, castanha-do- pará e milho-verde) ou por período longo, quando são ligados por laços matrimoniais. Nessa aldeia existem várias ligações matrimoniais entre homens Kỳikatêjê e mulheres de outras etnias, como Kaigang, Guarani , Carajá , entre outras. Mesmo com as diferenças étnicas, as semelhanças lingüísticas, e o sentimento de pertencimento de povo chamado “indígena”, tornam as relações possíveis entre os habitantes da aldeia, pois todos os indígenas que ali habitam compreendem e/ou falam o Jê , dos sub-grupos étnicos Timbira , e compreendem, de algum modo, a língua portuguesa, a qual faz parte do cotidiano. Além disso, estão juntos na mesma causa, pois atualmente os grupos étnicos se unem a fim de requererem seus direitos e defenderem seu povo da exploração de suas terras e sua gente. É comum o uso corrente da língua portuguesa no cotidiano dos índios Gavião. Essa incorporação da língua nacional se deu por vários fatores, o principal foi a pacificação por meio do trabalho de missionários e funcionários do SPI (posteriormente FUNAI) que incentivaram ações educacionais no intuito de integrá-los à sociedade nacional, tornando-os “civilizados”, com base na “velha” noção, calcada numa visão evolucionista, de que o índio não é índio mas está índio e que precisa “evoluir” para se integrar aos “costumes nacionais”, os quais envolve o uso corrente da língua portuguesa, a educação escolar e o consumo de materiais industrializados (dependência das cidades). Além disso, a relação com os agentes externos, como comerciantes de castanha-do-pará, Eletronorte e Vale, se constituem num condicionante para o crescente uso da língua oficial nacional (ENTE, 2006). Hoje, na aldeia Kỳikatêjê , a língua portuguesa é usada sem restrições, principalmente entre os de meia idade e os jovens, que freqüentam a escola desde criança. A maior parte dos homens de meia idade, além de compreenderem, falam com fluência o português. Já as mulheres, principalmente as mais velhas, compreendem o idioma português, porém o falam com menor frequência. A língua nativa, de herança do tronco linguístico Macro-Jê , é constantemente usada nas vivências do acampamento, principalmente. No acampamento, os mais velhos se encontram e conversam apenas em Jê, durante as reuniões da liderança da BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 51

aldeia, composta predominantemente de homens de meia idade (entre 35 e 55 anos) e velhos, que tem costume de falar “na linguage”.

Todos pessoa daqui falavam na linguage. Quando chegava lá né, que falava na linguage, os pessoa começavam a mangar. Aí foi criando assim vergonha, aí foi indo... Aí começou a estudar... falando meio português, aí pronto! Aí esqueceram... a linguage nossa e deixa pra falar a linguage da cultura do kup ẽ. Aí ficou difícil! (Ropré, 2009. Comunicação oral).

Há certa preocupação, por parte das lideranças da Associação, sobre o uso e disseminação da Língua Portuguesa entre os Kỳikatêjê , em detrimento da língua nativa, ocasionando, na visão dos mesmos, uma perda de sua cultura, como exclamou um índio que compõe a liderança da Associação Kỳikatêjê Amtãtyi:

[...] quem não entende na língua não entende nada da nossa cultura, das nossas histórias, dos nomes, das coisas que os véio conta! [...] Tem que resgatar essa cultura né, pra num acabar, pra num perder, principalmente a linguage né! (2009)

Entre jovens e crianças ocorre um parcial abandono da língua Jê , por causa do contato com os kup ẽ da cidade que agem com preconceito em relação ao índio e, principalmente, por causa do contato com novas tecnologias (televisão, rádio, meios de comunicação eletrônicos, a musicalidade dos kup ẽ, etc., que, além de serem importantes para o processo de contato e negociações junto aos kup ẽ, seduzem e educam a juventude indígena para os modos de vida da cidade. Há muitas crianças e jovens na aldeia, todos conhecem a cidade de Marabá, pela facilidade que se tem de chegar lá (25 Km) e pela adoção dos ritos da cidade, ao espelharem-se nos programas de TV e nos costumes dos kup ẽ com quem mantêm contato, copiam seus modos de dormir, vestir, andar, comer, etc. Atualmente, as refeições diárias são muito semelhantes ao estilo de vida na cidade, pois todo o povo tem acesso ao comércio de Marabá, ocasionando certa perda do costume de caça e pesca, o que é justificado pelos mais velhos também como causa da escassez – a mata já não tem mais caça como antigamente, os igarapés que recebem influencia do Rio Tocantins estão manchados de ferro por causa da exploração das usinas da Vale. BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 52

Contudo, os velhos da comunidade não revelam grande valor e costume voltados à prática da pesca, mas sim a caça, além disso, criam porcos-queixada, plantam macaxeira, mandioca, abóbora, arroz, para subsistência, criam abelhas para atender à produção de remédios na farmácia da aldeia e investem nas roças mecanizadas de milho (projeto em convênio com a Vale) para alimentarem os animais, o que faz da pesca atividade secundária. Ainda, eles cultivam, ano após ano, uma pequena roça de milho, que costumam chamar de “roça tradicional”, pois queimam a mata, limpam o terreno e plantam à mão, grão-por-grão. Essa roça é utilizada apenas para a celebração da “Colheita do Milho- Verde”, a qual dá inicio ao período ritual da estação das chuvas, quando já é tempo de colheita. Esse período ritual pode ser celebrado com a “Brincadeira de Arara e Gavião” (as duas metades divididas por laços de parentesco), o Hõpr ỳkrã22 ou com o Tuti Krã (tuti : peixe; Krã : cabeça – cabeça de peixe, referente a brincadeira que envolve uso de máscaras por três sociedades cerimoniais internas a esse ritual). Essa decisão cabe aos anciãos da aldeia, pois concordam, em reunião no acampamento, qual desses dois rituais acontecerá. Essa reunião é feita apenas quando se aproxima o período de colheita do milho-verde, da roça tradicional. Dos costumes mais recorrentes na aldeia, se destacam a “Corrida de Toras” e o “Jogo de Flechas”. Normalmente, todos os dias tem alguém fabricando ou reformando flechas no acampamento, uma atividade masculina. Reforma-se a flecha quando as penas da parte inferior se mostram desgastadas ou roídas por barata, cabendo-lhe a troca de penas, que pode ser de arara, mutum e/ou gavião. Com maior freqüência usam, nas flechas, penas de arara e gavião, pois representam as metades matrilineares regidas por laços de parentesco na aldeia, as quais disputam, no jogo de flecha, a maior astúcia em atirar mais distante. O prêmio do jogo é a flecha do adversário. O povo Gavião Kỳikatêjê , em certas ocasiões, disputa jogo de flechas contra o povo Gavião Parkatêjê , assim como em corrida de toras. Mais comum do que o jogo de flechas ainda é a corrida de toras, pois envolve toda a comunidade, inclusive as

22 Hõpr ỳ, relativo a Apr ỳ: palha de milho; Krã : cabeça (neste caso, designa-se este vocábulo à parte redonda da peteca, a qual o jogador bate impulsionando para cima). Hõpr ỳkrã é um vocábulo, de variante da língua Jê, que se usa para especificar que a “Festa de Colheita do Milho-verde” será celebrada com Brincadeira de Petecas. BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 53

mulheres, jovens e velhos, e se pratica quase todos os dias, nas primeiras horas do dia, faça sol ou chuva - “Índio que é índio, tem que correr tora!” – exclama um dos anciãos. As toras são feitas por um homem mais velho e forte (nem ancião e nem jovem), o qual corta a árvore no mato e deixa as toras meio escondidas, para que os competidores a procurem e tragam para o pátio da aldeia. Para a competição do dia-a-dia é usada tora de tronco de árvore de côco babaçu, para competição em período cerimonial de rituais tradicionais das estações climáticas é usada tora feita de tronco de árvore de samaúma. As toras quase sempre são reaproveitadas e até usadas como mobília no acampamento (fig.7-8).

Figura 7. O artefato do jogo de corrida de toras, transformado em mobília no acampamento. Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).

É interessante verificar que os objetos rituais são usados para um determinado fim simbólico e cerimonial, porém, depois disso, despem- se de sua função ritual, indicando que o simbólico está naquele momento em que os objetos são personificados durante o rito. A exemplo disso, podemos citar: a despersonificação das toras, que durante a corrida representam força para o guerreiro que a carrega em suas costas, mas tendo concluído o percurso da corrida, após a chegada, se metamorfoseiam em objetos domésticos, como mostram as figuras 7 e 8.

Figura 8. Tora confeccionada para corrida, sendo reaproveitada como objeto doméstico. Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009). BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 54

Outro exemplo são as máscaras Kokrit, objetos rituais do povo Canela Ramkokamekrá , também Timbira (fig. 9), que durante o baile no centro da aldeia, personificam seres mitológicos, mas após o rito são desmanchadas e reaproveitadas como abanos, esteiras de dormir, cobertura para utensílios domésticos, etc.

Figura 9. Máscara Kokrit-Ho sendo usada durante o ritual do baile das máscaras Kokrit . Fonte. Nimuendajú (1935)

Das práticas indígenas mais importantes, da comunidade Gavião K ỳikatêjê, estão: a corrida de toras ( mẽ krowa rê taihê ), a furação dos beiços, que é a iniciação dos meninos ( mẽkwatwa m ẽkupron makru maip ẽm jahê), o jogo de flechas e a celebração de colheita do milho-verde, que pode ser feita com a “brincadeira de peixe” - período cerimonial que compreende várias sociabilidades, inclusive o Tuti Krã – ou com a “brincadeira de petecas” ( Hõpr ỳkrã). Em todas essas sociabilidades existe, intrinsecamente, uma relação com o ecossistema local. Por exemplo, nas corridas de toras (fig. 10), duas metades, “os Arara” e “os Gavião”, disputam quem chega primeiro no centro da aldeia carregando uma tora de árvore (que pode pesar até 100 kg) nos ombros. Várias pessoas de cada metade vão buscar a trazem em revezamento. BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 55

Durante vivência na aldeia Kỳikatê-Jê , percebi que, no cotidiano, quase todos os dias os homens e as mulheres “correm tora” 23 (fig. 11). No caso de ser apenas a corrida regular do cotidiano, sem fazer parte de um período cerimonial, os indígenas não têm o hábito de pintar o corpo e portar adornos, como costumam fazer durante os cerimoniais.

Figura 10. Corrida de toras na iniciação dos meninos. Fonte. ENTE (2006).

Na iniciação dos meninos é necessário que os jovens permaneçam durante algum tempo em um retiro próximo a um curso d’água, para que, em todas as manhãs, eles possam ir, antes do Sol nascente, mergulhar a cabeça na água e resistir o maior tempo possível, depois devem ir buscar toras na mata, colocá-las em seus ombros até levarem ao centro da aldeia, em revezamento (fig. 12). Assim, os meninos aprendem a ter resistência física, o que é uma característica marcante nas pessoas das comunidades Gavião e, sobretudo, é uma marca dos povos Timbira .

Figura 11- Corrida de toras entre as mulheres. Fonte. Thiago Kunz. Acervo pessoal (2007).

23 Como os índios da comunidade se referem à corrida de toras. BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 56

Figura 12. Jovens correndo para a mata, no ritual de iniciação. Fonte. ENTE (2006).

No jogo de flechas (fig. 13), os jogadores atiram a flecha no chão, a mais ou menos um metro de distância, para que a flecha atinja a superfície e suba, passando por cima da área destinada ao lance, alcance o lugar mais distante possível. Quem conseguir atirar mais longe, fica com a flecha do adversário. É um jogo de demonstração de força, destreza, concentração, coordenação motora, e, além disso, tecnologia, pois cada atirador confecciona sua própria flecha com materiais orgânicos que consegue na floresta aos arredores da aldeia.

Figura 13- Jogo de flecha. Fonte. Thiago Kunz. Acervo pessoal (2007).

Entre os rituais cerimoniais, existe a celebração à colheita do milho-verde. Trata- se de um rito que tem seu fundamento no mito de origem das plantações - contou-me um dos homens que participa da liderança da aldeia:

“No início de tudo, tinha uma grande árvore, com todo tipo de frutos, no centro da aldeia circular, o homem (que diz ser um homem que sabia de tudo) mandou que cada índio pegasse um fruto diferente e fosse fazer uma roça. Depois, no seu devido tempo, quando a roça de milho-verde estava pronta para a colheita, BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 57

o homem mandou que os demais homens, e depois as mulheres, colhessem espigas de milho e tirassem a palha para fazerem petecas” ( Ropré, comunicação oral, 2008).

Assim, a “brincadeira de petecas” - Hõpr ỳkrã denominada na aldeia - (fig. 14), consiste em confecção e sociabilidade masculina que dá início ao período ritual de celebração da colheita do milho-verde, na aldeia Kỳikatê-Jê – o brincante tem direito a apenas uma peteca e deve bater, sem deixar cair no chão, o máximo de vezes que conseguir.

Figura 14. Brincadeira de Petecas Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).

Seguido a essa informação, com base no mito de origem das plantações, o “homem ensinou também a fazer as cabeças de peixe, com trançados de palha de palmeiras que tem água no pé” – explicou o informante. A feitura e uso das “cabeças de peixes” configura a parte da celebração à colheita da roça de milho, chamada Tuti Krã 24 (T uti : peixe; Krã : cabeça) que consiste em máscaras feitas de palha de tucumã e de babaçu, objetos rituais que cobrem o corpo inteiro do usuário, para dança e canto no centro da aldeia. As mácaras Tuti Krã (fig. 15) se distinguem em três grupos cerimoniais: “os Lontra”, “os Peixe” e “os Raia” que dançam e cantam ao som de maracás no centro da rua circular.

24 Na aldeia dos índios Gavião Parkatêjê , o ritual Tuti Krã é chamado Tep Krã . Como os Kỳikatêjê moraram durante muito tempo com os Parkatêjê , passaram a inutilizar as formas de falar de seu povo e aderiram às formas dos “donos da casa”. Atualmente, os mais velhos da aldeia Kỳikatêjê tentam resgatar essas perdas, ensinando as expressões de seu povo de origem. Neste caso, Tuti Krã é vocábulo, de variante da língua Jê, próprio do povo Kỳikatêjê . BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 58

Figura 15- Máscara do grupo dos “Lontra”, sendo confeccionada para o rito do Tuti Krã. Fonte. Arquivo da Escola da Aldeia Gavião Kỳikatêjê

Atualmente, nessa aldeia, faz-se escolha entre dois tipos de rituais para celebração da colheita da roça de milho: os homens mais velhos e o cacique se reúnem para decidirem se vão realizar o Hõpr ỳkrã ou o Tuti Krã. Nesses rituais, o berarubu - bolo de carne de caça e mandioca, assado em folhas de bananeira – é comida típica e faz parte de vários cerimoniais Timbira , descrito em etnografias, como a de Melatti (1978) entre os índios Krahó (grupo Timbira do Maranhão). É uma prática que estabelece relação intrínseca com elementos e BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 59

fenômenos da biodiversidade local e empreende um saber cultural das mulheres da aldeia. Todos os que participam, todos os que brincam, todos os que jogam, se (re)afirmam enquanto pessoa indígena Timbira , enquanto indivíduos produtores de uma maneira própria de compreender a vida e, assim, compor o seu lugar no mundo por meio de práticas naturais, compreendidas nas interdimensionalidades presentes num ambiente amazônico singular. A ética dos saberes indígenas Kỳikatêjê se revela nas práticas intrínsecas à vivência da comunidade (LEFF, 2003). “Os saberes são o conjunto de dizeres/fazeres significados em múltiplas vivências, apresentam-se nas narrativas orais e escritas, na produção técnico-científica e no baú das sabedorias do vivido” (FONSECA, 2009). Esses saberes adquirem sentido nas vivências, na atualização de seus ritos, nos modos característicos dessa cultura Timbira . Analiso essas vivências enquanto práticas educativas, pois vivificam os saberes que compõe a sabedoria indígena. Trata-se de uma racionalidade substantiva que incorpora processos educativos construídos na realidade, que precisam ser conhecidos na sua dinâmica, ocorrência, maneira como se apresentam, considerando-se que se constitui como forma própria de aprender e construir conhecimentos. Procuro, na sessão seguinte, a partir da minha experiência em campo, na aldeia Kỳikatêjê , mostrar as construções de sentidos e significados que dão vida e pano de fundo para o objeto desta pesquisa, que são os processos educativos pertinentes na vivência em um ritual indígena: a celebração da “Colheita do Milho-verde”.

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Seção II. RITUAIS ASSOCIADOS À COLHEITA DO MILHO-VERDE, MOSAICO DE UMA EDUCAÇÃO DIALÓGICA

O espaço-ambiente-natureza compreendido como um mosaico de relações, de formas e sentidos, como foi trabalhado na sessão anterior, apresenta-se em diversas composições de objetos materiais e imateriais, dentre outras, se dá em celebrações de festas, na coletividade dos diversos povos amazônicos.

Na Amazônia, existem muitas festividades compreendidas enquanto representação da coletividade, como a celebração da festa é o momento em que a mesma acontece. “Celebrando-se uma festa, a festa sempre está lá o tempo todo”. Então, a celebração codifica o caráter temporal da festa (GADAMER, 1985, p. 63).

A celebração da colheita de milho-verde, da aldeia Gavião Kỳikatêjê, é uma composição presente no referido mosaico material e imaterial, a qual tomo como referência, a fim de compreender sua concepção, organização, realização e ainda os processos educativos que emergem desse ritual indígena como situações de uma educação do diálogo (FREIRE, 1987).

Essa celebração é realizada uma vez ao ano, durante a estação chuvosa, e se configura como um dos principais períodos cerimoniais da referida aldeia, envolve grupos cerimoniais internos e toma por base um mito de origem. Durante sua preparação e realização, apresenta relações simbólicas que se expressam em composições de cores, formas, cantos, cheiros, gestos técnicos 25 , etc., possibilitando visualizar, dentre outros, processos educacionais diversos, entre os quais: mito de origem, confecção das “cabeça de peixe”, corrida de toras, pinturas, a roça tradicional, jogo de petecas e dança.

Conceber esse processo educacional exige conhecê-lo, por isso, descrevo a celebração e ações a ela relacionadas, a partir de como se apresentou durante minha vivência na aldeia.

As informações que trago neste texto foram registradas na aldeia e se deu entre os anos de 2007 e 2009, durante a coleta de dados deste estudo, em que observei, fotografei e tirei dúvidas sobre situações decorrentes da referida celebração, que exigiam esclarecimentos no momento de sua realização. Minha

25 Compreendo gesto técnico como ação de “eficácia simbólica”, pois garante harmonia entre a noção do pensamento com base nos mitos e os fazeres práticos do grupo (LÉVI-STRAUSS, 1975). BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 61

presença durante sua preparação e execução me oportunizou participar de momentos em que é consentido a presença feminina. É importante esclarecer que há uma demarcação de tarefas em função do gênero nas ações de construção e realização desse ritual, o que, de certo modo, facilitou a minha inserção em determinadas atividades e limitou em outras, cuja participação é exclusivamente masculina. Ao apresentar a celebração da colheita do milho-verde da aldeia Gavião Kỳikatêjê, trago esse rito pela sua descrição do mito de origem e as duas formas de celebração da colheita: Tuti Krã e Hõpr ỳkrã e, ainda, refiro sua potencialidade como prática pedagógica (FREIRE, 2004) e indicadores de uma etnopedagogia ambiental 26 . A oportunidade para conhecer, descrever e analisar essa celebração foi possibilitada pela minha inserção na aldeia, uma inserção que se deu na perspectiva de uma vivência concreta na comunidade indígena Kỳikatêjê e não apenas com intuito de coletar dados necessários à pesquisa. Essa inserção, estabelecida em dias e noites compartilhadas no “espaço-ambiente-natureza” da aldeia, me favoreceu partilhar de situações impares, como o fato de ter sido adotada por uma senhora, conhecida pelo nome Mamãe-grande . Seu nome é Rõnoré, de idade bastante avançada, uma velha respeitadíssima na aldeia, pois já nomeou muitos filhos e netos de filhos. A adoção se deu por meio da nominação, que ocorreu dia 6 de fevereiro de 2009, quando Mamãe-grande me chamou em seu acampamento (casa tradicional Timbira ) e me disse que já sabia qual seria meu nome: Jõpeyre Kãprere (pessoa que sabe fazer berarubu gostoso – comida cerimonial). Este foi o nome que recebi e, a partir de então, Rõnoré passou a ser a minha mãe (minha ĩxẽ), e seus filhos passaram a ser meus filhos de criação. Na aldeia, pessoas estranhas a minha família (família a qual pertence minha mãe) me chamavam de “vovó”, é a forma como chamam minha mãe, pois a partir do momento em que Mamãe-grande me deu nome, eu passei a personificar o papel social dela, minha ĩxẽ, que me instruía sobre tudo o que eu deveria fazer, como deveria fazer, e me dava ordens sobre os deveres domésticos. Os da minha família,

26 Com base no conceito de Etnopesquisa, trabalhado por Macedo (2006) e a partir dos estudos analisados por Fonseca (2009).

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me chamavam pelo nome e, se fosse irmão, por atoum. Mas, é curioso observar que, na relação intra-familiar de irmã e irmão, o contato é apenas de cuidar, limitando-se as ações mais próximas de conversa de modo a evitar laços matrimoniais entre irmãos. Como se vê, tornei-me parte de uma família, o que foi possível a partir de minha relação com minha ĩxẽ, desde minha primeira ida à aldeia, em 2007, em que me acolheu com comida e um lugar para eu sentar durante o dia, e eu sempre lhe fornecia companhia e ajuda no preparo aos alimentos, daí infiro que o nome a mim atribuído tenha essa origem. Essa minha inserção como membro de uma família, me presenteou com a condição de ser alguém que se tornou credenciado a participar do cotidiano das vivências. Não quero dizer que me tornei alheia a minha própria cultura de origem, que neutralizei minhas convicções construídas histórica e socialmente, mas me tornei um pouco menos kup ẽ do que aqueles que circulam o “espaço-ambiente- natureza” – a aldeia - sem estabelecer interlocução simbólica em seu cerne, pois, sendo por ela acolhida, me senti na e com a comunidade, o que facilitou minha percepção do mosaico de relações existentes e, dessa forma, coaduna com as lições de Geertz, sobre o estudo das culturas por meios usuais de suas pesquisas etnográficas, quando diz: Para descobrir quem as pessoas pensam que são, o que pensam que estão fazendo, e com que finalidade pensam que o estão fazendo, é necessário adquirir uma familiaridade operacional com os conjuntos de significado em meio aos quais elas levam suas vidas. Isso não requer sentir como os outros ou pensar como eles, o que é simplesmente impossível. Nem virar nativo, o que é uma idéia impraticável e inevitavelmente falsa. Requer aprender como viver com eles, sendo de um outro lugar e tendo um mundo próprio diferente (2001, p. 26).

Vale ressaltar que todos, na aldeia, reconheciam a minha posição de pesquisadora, pois antes de iniciar a coleta de dados, solicitei permissão para a execução deste trabalho às lideranças (homens mais velhos e coordenadores da Associação Kỳikatêjê Amitatí) e recebi autorização para realizar o estudo (ANEXO). Nessa condição é que apresento a experiência ritual indígena da celebração de colheita do milho-verde, imersa num clima estético de emoções, sentimentos e afetos compartilhados que ensinam sobre a doutrina do “estar-junto” (MAFFESOLI, 1998), o que não significa dizer que todas as nuances do vivenciado possam ser BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 63

consideradas acabadas e esgotadas por este estudo, mas se trata de uma forma de apreensão dessa realidade. Assim, as descrições e suas análises apresentadas, fundamentam-se numa (re) leitura do contexto, nas teorias adotadas na abordagem da pesquisa e na forma de ler o mundo e apropriar-me deste, num complexo de relações imbuídas de significados e estabelecidas pelas linguagens presentes no vivenciado. O movimento de significações nesse “espaço-ambiente-natureza”, se constitui em relações entre mito e ritual 27 . No caso, a celebração de colheita de milho-verde, caracteriza-se como rito relacionado a um mito. De modo a esclarecer o leitor, trago uma discussão sobre o caráter de um rito e de um mito, o que os faz como tal, para compreendê-los no contexto deste trabalho.

2.1. RITO

Rituais são ações de caráter simbólico, que têm equivalentes significativos num determinado bojo de noções, relacionando o indivíduo que pratica a referida ação com o local onde esta é praticada, as relações estabelecidas entre as pessoas nesse contexto, seus papéis socioculturais e as relações cosmológicas pertinentes (LÉVI-STRAUSS, 1975). Os aspectos técnicos materiais e imateriais, utilizados nessas ações, constituem um fazer, um ato ou consecutivos atos que podem ser caracterizadas como ritos.

Os indígenas do Brasil realizam diversos tipos de ritos: ritos de passagem, ritos de gestação e nascimento, ritos de iniciação, ritos de casamento, ritos funerários, entre outros (MELATTI, 1978). Mas, nem sempre, o rito está ligado à esfera religiosa. O Hõpr ỳkrã e o Tuti Krã , por exemplo, são celebrações que, com base em Melatti (Idem), caracterizam-se como ritos do ciclo anual, pois se associa a uma estação climática, nesse caso a estação chuvosa ( amkôti ), ao plantio, crescimento e colheita de um determinado vegetal que nesse caso é o milho-verde.

Os rituais constituem parte das culturas de diversos povos, não apenas na vida indígena, mas os povos de origem ocidental também praticam rituais, como

27 Mito e rito se reproduzem um ao outro, numa relação dialética em que um corresponde às noções e o outro corresponde às ações (LÉVI-STRAUSS, 1975). BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 64

trabalhar, exercer uma função em uma empresa, ministrar aula, fazer parte de uma escola, tomar banho, fazer uma reunião familiar, comer a mesa, etc. São ritos, presentes na vida cotidiana ocidental, imbuídos de aspectos simbólicos e são associados a significados e valores da vida nas cidades urbanas, o que revela o sistema de formas simbólicas desse contexto, sua cultura.

Nesse sentido, as pessoas aprendem, passam a vida inteira apreendendo e significando valores que fundamentam sua cultura, o que constitui processo educativo da vida. MCLaren (1991) trabalha o conceito de educação como sistema cultural, articulando-o a outros termos como cultura e cotidiano, o que revela que a educação não está restrita apenas a rituais escolares, mas está em qualquer outro ritual onde se possa perceber saberes e práticas educativas presentes em processos de apreensão de normas, regras, condutas construídas social e culturalmente.

Os ritos, por vezes, assemelham-se a regras a serem obedecidas, para que se dê a manutenção de uma maneira de ser e se identificar com um grupo de pessoas e/ou lugares.

Por conseguinte, uma parte das regras a serem obedecidas no ato de comer constitui atos simbólicos que dizem alguma coisa das relações sociais que os participantes mantém entre si. Esses atos simbólicos constituem o espaço ritual da refeição. Observando-se um grupo de pessoas a mesa de uma casa, pode-se dizer quem é o chefe da família, quem é a criada, quem é a visita, quem é da casa, simplesmente pela maneira de se comportarem em torno da mesa (MELATTI, 1938, p. 120)

Mas os atos rituais se apresentam em nossa realidade de maneira tão “natural” que geralmente não o percebemos enquanto rituais. Assim, é comum não sabermos explicar os valores simbólicos dos ritos que corriqueiramente atualizamos em nosso cotidiano, assim como os indígenas nem sempre sabem explicar por que o praticam ou, quando explicam, contam histórias que aprenderam com os mais velhos sobre a origem dessas ações, que são os mitos. Isso parece acontecer por que a vida promove uma participação tão profunda do indivíduo com seus meios rituais que, esta participação, acaba nos desnudando de estranhamentos sobre suas ações simbólicas.

Os ritos caracterizam contextos de vida, espaços dinâmicos de interconexões. Nesses espaços, consistem as possibilidades, os meios, as potencialidades e inter- BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 65

relações entre os bens materiais e imateriais. O “espaço-ambiente-natureza”, como trama de processos históricos e culturais relacionados, é onde as “coisas” e as pessoas constituem significado e sentido.

O significado de um objeto pode ser absorvido, compreendido e generalizado a partir de suas características definidoras e pelo seu corpus de significação. Já o sentido implica a atribuição de um significado pessoal e objetivado que se concretiza na prática social e que se manifesta a partir das Representações Sociais, cognitivas, subjetivas, valorativas e emocionais, necessariamente contextualizadas (FRANCO, 2007, p. 13).

Posso considerar uma das diferenças dos ritos indígenas em relação aos ritos dos povos de origem ocidental: são constructo de uma relação de coexistências entre o mundo cosmológico, social e biológico, o que propicia à pessoa indígena um saber ímpar e geralmente relacionado a conhecimentos a cerca de elementos da biodiversidade local.

Segundo Fonseca (2009), essa relação interdimensional gera saberes, entendidos como um conjunto de dizeres/fazeres significados em múltiplas vivências. Assim, compreendo que os saberes que os indígenas possuem sobre os seres vivos e suas relações no “espaço-ambiente-natureza”, os conhecimentos sobre a “medicina” natural dos pajés e feitiçarias dos xamãs , a astronomia, a preparação dos venenos e dos alucinógenos, a feitura das habitações, a confecção dos objetos rituais, etc., estão expressos nas narrativas orais e escritas, na produção dos gestos técnicos e no baú das sabedorias do vivido.

Esses saberes norteiam a vida cotidiana indígena e, de alguma maneira, se atualizam por meio de processos educativos que valorizam, dentre outros, a biodiversidade local, calcados no animismo – perspectivismos baseado num multiculturalismo espiritual, como explica Viveiros de Castro (2002, p. 358):

Vendo os seres não-humanos como estes se vêem (como humanos), os xamãs são capazes de assumir o papel de interlocutores ativos no diálogo transespecífico; sobretudo, eles são capazes de voltar para contar a história, algo que dificilmente os leigos podem fazer. O encontro ou intercâmbio de perspectivas é um processo perigoso, e uma arte política – uma diplomacia. Se o ‘multiculturalismo’ ocidental é o relativismo como política pública, o perspectivismo xamânico ameríndio é o multiculturalismo como política cósmica.

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Dessa maneira, nos ritos os elementos materiais e imateriais ganham classificação no contexto do sistema de formas simbólicas, o qual normalmente costumamos denominar cultura (GEERTZ, 2007). No sistema cultural das formas simbólicas dos grupos Timbira , a valorização da biodiversidade local surge no cotidiano e ritos tradicionais, incutida nas práticas culturais por meio de processos educativos e, sobretudo, da memória dos mais velhos.

[...] Entre os Timbira, a instituição do conselho dos anciãos, realizado pela manhã e ao final da tarde, permite que a memória do grupo seja restaurada para as gerações atuais. Os ritos são escolhidos e planejados nessas reuniões tendo como referência os ritos anteriores. Lyinton (1991:82) salienta o papel dos objetos como evocadores da memória, de coisas que devem ser feitas ou evitadas, e recursos mnemônicos exigidos pelas iniciações [...]. O mito tende a reafirmar o respeito aos mais velhos e a seus ensinamentos das tradições ancestrais (LIMA, 2003, p. 108-109).

Dessa forma, rito e mito se apresentam como formas de aprender e significar elementos da cultura local, pois “[...] entre os índios Timbira , para cada rito há geralmente um mito que narra como os índios aprenderam a realizá-lo”. (MELATTI, 1938, p. 137). Esse é um dos aspectos que ressalta o caráter pedagógico dos ritos e mitos nas culturas indígenas.

Não é comum trabalhar mito como prática pedagógica e sim como sabedoria popular, relacionada ao folclore. Entretanto, vários autores apontam essa possibilidade de conexão inter-cultural, que adoto para minhas reflexões neste trabalho a fim de entender essas práticas como processo educativo. Por isso considero importante discutir o mito como prática pedagógica, o que faço a seguir.

2.2 MITO COMO PRÁTICA PEDAGÓGICA

Para os que pensam que os mitos falam de um tempo remoto e que não se referem ao presente, Júlio Cezar Melatti (1938, p. 133-6) afirma:

Embora as narrativas míticas sempre coloquem os acontecimentos de que tratam em tempos pretéritos, remotos, elas não deixam de refletir o presente, seja no que toca aos costumes, seja no que toca a elementos tão palpáveis como os artefatos. [...] Entre os índios Timbira , o mito de Sol e de Lua conta as peripécias desses heróis, astros personificados, sobre a superfície da terra e como delas resultaram a criação do homem, o aparecimento do trabalho, o aparecimento da morte. [...] O mito reflete tanto BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 67

a situação social presente em que está inserido que se modifica quando é transmitido de uma sociedade para outra.

Nessa perspectiva, os mitos são narrativas jamais postas em dúvida pelos membros das sociedades que os tomam por base, mas recorrentemente se atualizam nas situações sociais. A maioria dos povos indígenas baseia suas sociabilidades em contações de mitos, entendidos enquanto verdades absolutas. O processo de compreensão e atualização do mito nessas sociedades se constituem em ato pedagógico, pois ensejam regras, valores, juízo de gosto, etc. Nesse sentido, o educativo se dá por meio de diversos processos, entre os quais “o uso de estórias é absolutamente pedagógico” (FREIRE, 2004, p.43) e, é interessante perceber que envolvem uma série de elementos da biodiversidade local, numa perspectiva que pode até se compreender como teoria para educação ambiental. Lévi-Strauss (1997) já atestou a familiaridade e paixão que os ditos “nativos” dedicam ao meio biológico, o que diferencia muito da atitude dos “brancos”. Isso não implica dizer que os indígenas conhecem o meio biológico em que vivem porque este lhe é útil, mas que consideram úteis, determinados elementos do meio, porque o conhecem e estabelecem algum sentido para a existência desses elementos, baseado em significados que se fundamentam nas relações práticas da vida, construídos histórico, social e culturalmente. Percebo que, para os indígenas, não há nisso uma teoria, o que há é o mundo como ele é e como é compreendido, portanto considero essas culturas eminentemente pedagógicas, pois o ato de educar para a cultura e para o espaço- ambiente-natureza é totalmente intrínseco à própria vida e essencial para a compreensão ideal da noção de pessoa indígena, como vimos na seção anterior. Essa perspectiva possibilita pensar e propor “novas” ações educativas em contextos de educação escolar, visto que “as tradições indígenas englobam uma série de conhecimentos técnicos, por vezes complexos, que produzem efeitos reais. “Tais conhecimentos viriam enriquecer a própria ciência dos civilizados” (MELATTI, 1938, p. 149). Portanto, os modos de concepção do universo dos povos indígenas, com base nos mitos, podem ser apontados como indicadores de sustentabilidade ambiental, pois o “olhar amigo” sobre a “natureza”, nessas sociedades, se BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 68

comparado a atitude cultural das sociedades ocidentais, tem grande valia em ensinamentos para uma melhor qualidade de vida. Nesse sentido, seria melhor endeusar o ecossistema, (re)criar seres protetores das matas, das águas e da terra, por meio de narrativas mitológicas e, portanto educativas, do que dominar essa biodiversidade com tecnologias que destroem a vida. Seguir instruções de Marcos Terena 28 , por exemplo, parece mais salutar:

A minha prece em nome dos povos indígenas, é que vocês tenham oportunidades de conhecer vários caminhos. Que vocês possam, nos estudos, nas suas lutas, ter capacidade espiritual para vencer as dificuldades. Vocês não podem abandonar o espírito de vocês; o espírito é a maior força que o ser humano possui. Se nós não fortalecermos o nosso espírito, seremos fracos. Podemos ter força física, mas o espírito não vai responder na hora que precisarmos dele. Cada dia, cada tarde, que vocês possam aprender e ensinar aos seus irmãos mais novos, aos seus filhos a amar a Terra. Isto não é poesia, é verdadeiro: a terra de vocês tem que ser sagrada para vocês. Por isso eu disse que nós amamos o Brasil, porque aqui estão os nossos antepassados: no vento, nas estrelas, na lua, no sol. (MORIN, 2004, p. 63-4).

Esses costumes, saberes, valores e práticas mitológicas que regem a vida nessas sociedades e instituem a identificação cultural, evidencia que “a diversidade biológica não é simplesmente um conceito pertencente ao mundo natural. É também uma construção cultural e social” (DIEGUES, 2000, p. 4). Essa perspectiva ameríndia traz uma noção diversa de humanidade, nega a separação dicotômica entre o que é social e o que é natural, quase sempre presente nos compêndios de biologia. Assim, me detenho, quando trato de natureza, na noção explicitada na seção anterior, enquanto espaço-ambiente-natureza, pois coloco a pessoa como sujeito e autor do mundo, visto que [...]“não há natureza humana porque toda a natureza é humana” (SANTOS, 2006, p. 72). Nesse sentido, os espaços peculiares das sociedades indígenas brasileiras se configuram por meio dessa construção particular da noção de pessoa, o que delineia um “leque” de diversidades biosociológicas e cosmológicas indissociáveis, dentre elas a percepção de natureza por meio dos mitos. Tomando por base a noção de pessoa indígena no contexto estudado e, sobretudo fazendo referência à nação

28 “Índio brasileiro do Pantanal do do Sul, fundador do primeiro movimento indígena a União das Nações Indígenas – UNI, piloto de aeronaves, autor do livro O índio aviador e coordenador-geral dos direitos indígenas” (MORIN, 2004, p. 24). BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 69

Timbira e sua tradicional elaboração social, elejo o princípio das cosmologias 29 como construto de reflexão sobre a corporalidade na estrutura social – o corpo da sociedade Timbira (SEEGER, 1987) que é possível identificar por meio dos mitos. Com base em Lévi-Strauss (2004, p. 37), explica-se a absorção do sobrenatural na tradição do mito: É, pois, compreensível que a unidade do mito seja projetada num foco virtual: para além da percepção consciente do ouvinte, que ele apenas atravessa, até um ponto onde a energia que irradia será consumida pelo trabalho de reorganização inconsciente, previamente desencadeado por ele.

Essa “reorganização inconsciente” pode se configurar na personificação ou codificação material do sobrenatural, presente nas manifestações cerimoniais e nos gestos técnicos que propiciam humanidade ao Outro. Desse modo, torna-se possível pensar objetos como máscaras, cocares, instrumentos musicais, toras de corridas, petecas, etc., confeccionados com base em narrativas orais descritivas - mito que dá origem ao rito – como apresentação de seres e valores imbuídos de humanidade, durante os rituais. Assim, o objeto ganha sentido de humanidade a partir de sua relação simbólica e cosmológica, e passa a se relacionar a uma noção de “outro”, por meio de processos educativos. Com relação a essa noção de “outro” e, partindo do pressuposto de que a perspectiva ameríndia enfatiza a importância do xamanismo, não podemos perder de vista a seguinte noção: “[...] o conhecimento xamânico visa um algo que é um alguém, um outro sujeito ou agente. A forma do Outro é pessoa” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 358). O Outro pode ser um ser mítico, um bicho brabo, um animal, uma planta, uma pedra, um objeto que codifica a noção de força, sabedoria, etc. Nas sociedades ameríndias, os mitos fundamentam as práticas e dão personalidade ao Outro, outro este que, em seu valor simbólico, possui linguagem e um papel próprio em determinada sociabilidade. Esse “outro” se situa na noção de outridade, cujo ideal se encontra em aprender a complexidade ambiental, abrindo uma outra alternativa de reflexão sobre a natureza do ser, do saber e do conhecer

29 Por definição, cosmologia é: “1. Narrativa ou doutrina a respeito dos princípios que governam o mundo, o universo. 2. Ciência que estuda as grandes estruturas do universo e sua evolução” (FERREIRA, 2001). Nesse sentido, a doutrina narrada para governar os princípios morais e cerimoniais da vida indígena está nos mitos: formas de pensar o universo e, não havendo origem “real” acabamos lhe atribuindo o caráter sobrenatural. BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 70

(LEFF, 2003) e, portanto, da educação em suas dimensões - social, histórica e cultural - na qual os processos educativos estão inseridos. Por exemplo, Lima (2003) relaciona a cultura material, máscaras de um cerimonial mítico de um determinado povo Timbira , à estrutura de ordenação do universo, quando assim relata: “Os objetos feitos para reafirmar a sociabilidade Timbira apresentam o trançado diagonal sarjado. Ao trançar uma esteira, o artesão trança os pares e as tríades que formam a rede social Timbira ” (p.113) e, esse trançar, é momento de educar e se educar. Isto significa que, tudo o que personifica determinado valor afetivo, moral, espiritual, etc., onde reside o simbólico, constitui-se em “outro” e, ao constituir esse “outro”, estabelece relação com esses valores e (re) cria sua humanidade. Quero dizer que os objetos de cultura material e imaterial não estão submetidos apenas a tecnologia e/ou economia, tomando-os num sentido utilitário, mas que se constituem num sistema de formas criativas e simbólicas. Ao compreender as personalidades que exercem seus papéis nas sociabilidades, a pessoa se educa e é educada na dinâmica de relações de fazeres e dizeres. Trata-se de uma educação da cultura e do ambiente, que se dá por meio do diálogo consigo e com o “outro”, em que a pessoa indígena Timbira é (re) afirmada e atualiza suas práticas culturais próprias. Práticas estas, codificadas em mitos que regem ações e associam, dentre outros, elementos da biodiversidade local intrínsecos. Observo a atualização dos mitos nos fazeres e dizeres que se expressam por meio da cultura da oralidade e pela sua materialização em rituais, enquanto ato pedagógico (FREIRE, 2004), traduzindo-se em “educação da cultura”, cujo ideal considera que a finalidade da educação (seja escolar ou não-escolar) é recriar mundos entre as pessoas, a fim de que a socialização se perpetue. Nesse sentido, a cultura é uma obrigação criativa da construção social de sistemas de atribuição de sentidos e de orientação de condutas interativas (BRANDÃO, 2002). Paulo Freire (1987) chama atenção para a importância da “educação pelo diálogo”, como prática de liberdade, fator que traz as diversas formas de apropriação das realidades, por diversos povos de culturas diferenciadas, os “oprimidos”, para um primeiro plano. Essa prática dá voz ao sujeito na sua especificidade, na sua noção própria de concepção do universo e considera sua perspectiva de ver o “outro”, sua maneira própria de conhecer as coisas e as relações. BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 71

Para conhecer as relações que se dão no contexto da celebração da colheita de milho-verde, na aldeia Gavião Kỳikatêjê , conta-se uma história sobre como deve ser realizada. Trata-se do mito de sua origem, como surgiu, o que mostro no item seguinte.

2.3. MITO DE ORIGEM DA CELEBRAÇÃO DE COLHEITA DO MILHO-VERDE NA ALDEIA GAVIÃO K ỳIKATÊJÊ

Minha descoberta sobre a existência do mito de origem da celebração da colheita de milho-verde, na aldeia, se deu em conversas com Sr. Ropré, em duas ocasiões diferentes. Vale ressaltar que, antes dessa conversa, minhas informações sobre rituais Timbira se limitavam apenas aos que envolvem o uso de máscaras e até nossa conversa, inicialmente, não tinha idéia da existência de rituais desse grupo étnico relacionados a colheita do milho-verde. Assim, na primeira conversa que tivemos sobre rituais associados ao uso de máscaras, percebi que Sr. Ropré não compreendeu o termo. Então, mostrei-lhe imagens de máscaras utilizadas em rituais de outras aldeias Timbira e, nesse momento, verifiquei que ele associou a imagem ao termo “cabeça de peixe” ( Tuti Krã , em sua língua), afirmando a feitura e utilização desses objetos em rituais de sua aldeia. Em seguida, perguntei se havia uma história que contasse como surgiram essas “cabeça de peixe”, e ele me relatou o seguinte: [...] Na época, né, aí ninguém sabia de nada, só que, quenem to falando, então um homem apareceu, aí chegou o homem, aí foi fazer, falou: Rapaz, borá fazer, né, uma brincadeira pra gente brincar que a gente ta muito parado. Aí falou assim, mas como assim? Aí foi e falou assim, falou: Rapaz, eu vou fazer aí vocês vão me acumpanhá. [...] Aí ele pegou e chamou, no final da tarde, reuniu todo mundo lá no meio de campo. Aí o pessoal tava lá em pé conversando sobre brincadeira. Aí ele pegou e falou assim: Olhe, amanhã nós vamo cortar tora, vamo inventar a brincadeira, vai ser peixe, arraia e lontra. Aí foi né, ele falou: Olhe vocês vão cortar três tora. Aí eles foi e cortou três tora, aí eles chegou e falou: E agora? Ele disse: Agora? Agora vocês vão tirar aquele palha de tucum né [...]. [...] Aí ele tirou a palha dela e tira pra fazer e tava ensinando a fazer. Aí eles falou, mas como assim? Aí ele começou a explicar, até que terminou. Aí terminou né, aí eles falou assim: e agora? Ele falou assim: Rapaz, agora vocês num pode usar assim qualquer tipo de palha, usa palha de bacaba [...]. Aí ele foi né, e começou fazer, aí disse: Pra isso tem que ter o pequeno também, pra todas pessoa dançar dentro. Aí ele chamou todo mundo e falou. Aí cada um né, fez pra cada um. Aí foi e falou assim: Pois olha, eu to falando, vocês ficam parado, não tem uma alegria pra vocês... [porque isso é verdade, se fica parado não tem alegria, não sabe o que que vai fazer, não tem animação] ...então pra isso BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 72

que eu to ensinando pra vocês fazer a brincadeira pra correr, brincar, não ficar o pessoal parado. Aí ele fez tudo: mandou pegar palha... [...] Aí então, depois que fez tudinho com a palha, colocou, amarrou tudinho né, aí ele fez tipo um chifre né, com pau. Aí ele pintou, aí mandou pintar, aí pintou tudinho e deixou tudo pronto. Aí eles falou assim: E agora? Aí ele falou assim: Agora vocês vão dançar. Aí falou: Todo mundo? Aí ele falou: Não, é só você. Depois de você, que você vai ta lá no centro pra dançar [...].

Como se pode perceber, quando Sr Ropré inicia seu relato se referindo a um outro tempo - “Na época, né [...]” - articula e distingue o tempo da história contada do tempo presente, o que demonstra o caráter mitológico que a mesma assume, pois é um tempo em suspensão, não tem data definida. Além disso, quando se refere à presença de alguém de fora da aldeia, quando diz que “um homem apareceu” - alguém que ensina a fazer, que mostra como fazer e por que fazer - atribui a esse “homem” a eficácia simbólica da sabedoria (LÈVI-STRAUSS, 1975), pois ele “tava ensinando a fazer” e “começou a explicar”. Essas informações me propiciaram o entendimento de que, relacionado ao uso das “cabeça de peixe”, na aldeia Gavião Kỳikatêjê , existe uma relação mitológica. Dessa forma, continuei a conversa, no intuito de compreender que fazeres esses dados mitológicos ensejam, no contexto da aldeia, e foi então que perguntei sobre as três toras referidas na história contada, e então Ropré disse: “Olhe, amanhã nós vamo cortar tora, vamo inventar a brincadeira, vai ser peixe, arraia e lontra. Aí foi né, ele falou: Olhe vocês vão cortar três tora”. Então, explicou-me: “[...] porque nós tem dois tipo de brincadeira, que a gente fala: ‘raia, peixe e lontra’ e ‘arara e gavião’, essas que são principal”. E, dessa forma, entendi que existem duas formas rituais distintas e que cada uma destas envolve grupos distintos, cujos nomes dos grupos estão presentes nas falas que demonstram a sabedoria do personagem mitológico que ensina a fazer e, além disso, são os principais rituais da aldeia. Interessei-me em saber se as duas formas rituais são feitas juntas, seguidas uma da outra e ele explicou: “Faz separada. É por que do “Peixe, Arraia e Lontra”, né... é uma coisa só. Agora do “Arara e Gavião” é separada dessa outra. Porque a gente faz anos e anos”. Assim, afirmou que são dois rituais diferentes, acontecem separadamente e faz parte da tradição milenar de seu povo, aferível de geração em BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 73

geração, em que todos da aldeia devem se envolver, pois “tem que tá todo mundo, senão fica sem graça, todo mundo ali, [...] porque assim não perde a brincadeira, fica sempre tendo gente em todos os grupo, e nunca acaba” . Assim, com grande expectativa em presenciar esses rituais, referidos como “brincadeiras”, que o povo da aldeia de Sr. Ropré (re)cria. Perguntei-lhe, ainda, sobre qual o período de sua realização, ele respondeu: “Olha, esse ano a gente vai fazer, agora num sei se vai ser o ‘peixe’ ou é ‘arara’, né”. Sobre isso, entendi que não realizam os dois rituais num mesmo ano e que as duas formas atuam como opções de celebração. Então, ele continuou explicando: Ainda não sei qual é que vão fazer esse ano.[...] É assim, oh! Nós tamo é, nesse ano agora, nós temo roça bem aqui oh [apontou na direção onde fica a roça], tem milho, mandioca, macaxeira...Aí quando o milho já fica no ponto de comer, só que as pessoa não vai lá tirar né, o milho, logo não! Tem que ter paciência, né, que vocês chamam! Quando vê que o milho tá bom, aí vai derribar a tora, aí a gente vai correr. Quando terminar nós chama “tora de milho-verde”[...] aí que vem isso que eu to falando, aí que vai escolher ou “peixe” ou “arara”, um desses dois tem que ser!

A partir deste relato, finalmente, entendi que o período de realização das duas brincadeiras referidas, está associado ao tempo da roça de milho-verde. Portanto, na segunda ocasião em que conversei com Sr. Ropré sobre rituais de sua aldeia, não me detive somente em falar sobre fazeres que envolve máscaras, mas perguntei-lhe se havia uma história que contasse como surgiram as brincadeiras associadas à roça de milho-verde. Ele me respondeu com uma longa narrativa:

Isso que eu tô falando, que eu contei naquele dia lá, né. Que aquela árvore de milho, batata,... essas coisas,... Isso foi amostrado primeiro. Aí quando começaram a plantar milho, mandioca, abóbora, essas coisas mais, né! Eles plantavam tudinho. Aí foi através disso que começou. E esse homem falou: - Rapaz, bora inventar né, uma corrida, fazer uma brincadeira pra nós inventar uma corrida de tora! Aí o pessoal não sabia o que era, aí o pessoal falou mermu assim: - Mas como assim!? Aí o homem disse, eu vou fazer pra vocês vêem como é que faz. Aí ele chamou as pessoas, né, pra explicar. Não sei se é Deus, se é o homem, sei que é o homem! Aí foi... Nessa época o pessoal não tinha machado nenhum, aí de repente esse homem pegou um machado e foi... Aí derribou, né, a tora. Aí ele fez dois. Aí ele fez, né, as duas tora ele fez! Aí ele foi caçar com o pessoal, né! Aí ele foi caçar primeiro. Aí o pessoal foram caçar, passaram uma semana! Aí chegaram, aí ele falou assim: - Pessoal, as pessoas têm que tirar é jinipapo pra pintar. Aí o pessoal disseram, não nós vai fazer do jeito que ele ta colocando, né! Nós quer ver como é que é! Aí foram.... O pessoal foram tirar jinipapo pra se pintar. Ele disse mermu assim: - Vocês pintam com jinipapo, mas deixa lugar pra pintar com urucu! BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 74

Aí pintaram de preto, tudinho! Aí quando amanheceu o dia, aí esse rapaz falou assim: - Pessoal, eu não falei isso, mas alguém tem que ir buscar milho! Aí eles falou: - Mas como assim!? Aí ele falou: - Olhe tem dois, pra bem dizer ou do “arara” ou do “gavião”! Mas como assim? Aí ele disse assim: - Olhe, alguém vai ter que ir tirar milho pra colocar lá no meio de campo. Aí eles falou assim, ta bom. Primeiro é do “gavião”, “gavião” foi primeiro tirou milho tudinho, amarrou... e deixou bem no meio de campo. Aí eles falou assim: - Rapaz, e agora!? Aí ele disse: Agora não é homem que vai tirar mais, é as mulher. Aí mandou as muié e as muié foi lá. Tiraram o milho e trouxe. Aí ele disse: - Agora vocês tiram tudinho a palha. Aí eles foram, tiraram a palha tudinho, deixou... Aí eles perguntaram: E agora!? Ele disse: - Agora vocês tem que fazer peteca. Eles falaram, mas como assim? Aí ele pegou o imbigo, né, da palha de milho, aí fez uma peteca, né. Aí deixou. Aí ensinou eles a fazer, aí terminou. Aí eles falou: - E agora?! Agora vocês vão pegar cuia, que naquele tempo não tinha prato né, joga água dentro e pega o peteca lá dentro, pra molhar, que quando molha fica pesado. Aí pegaram cuia com água, aí pegaram as peteca e jogaram as peteca lá dentro, aí pegaram e pintaram tudinho com urucu. Aí eles perguntaram, e agora? Ele respondeu, e agora nós vamo chamar os home tudo pro campo, né, vamo tudinho pro campo! Fica ao redor lá, fica esperando lá... Aí ele disse assim, você vai jogar a peteca, pro pessoal. Ele disse: - Eu vou ensinar aqui pra vocês ficar sabendo. Ele explicava tudinho, ele disse: - Tem grupo dos “arara”, tem grupo dos “gavião”. Então quem botou primeiro foi o grupo do “gavião”, então “arara” que tirou, “arara” que fez. Aí você, como “arara”, aí você vai lá. Primeiro você vai correr ao redor, aí você vai correr no meio de campo lá. Aí esse homem foi,... Pegou uma peteca que foi feita da palha do milho e correu... Correu ao redor tudinho! Aí perguntou, e agora? Aí ele disse: - Agora tu deixa. Aí ele foi e explicou, ele disse: - Olha, primeiro vai ser “gavião”. Vocês vão sair, aí vocês vão ficar bem ali, bem no meio do campo, eles vão jogar pra vocês! Aí um do “arara” veio e tava jogando peteca, né. Aí ele veio e pegou, aí quando ele pega, ele começa a jogar assim, porque isso é uma disputa também, né, de peteca. Aí fica jogando todo mundo, até cair no chão, porque são muitas peteca que eles faz. Aí terminou, aí foi... Ele chamou as pessoas e disse assim: - Olha, agora de tarde agente vai dançar agora! Aí ele mermu tinha feito maracá, né. Com uma cabaça deste tamanho ele tinha feito. Aí foi né,... aí chamou o cantor, né... aí o cantor ficou cantando né. Aí terminou. Ali mermu ele disse: - Agora vocês vão cantar de um por um! Ta! Aí eles foram cantar de um por um, até amanhecer o dia. Aí quando amanheceu o dia, né, que deu umas 6, não, umas 5 horas da madrugada... aí o pessoal foram todo mundo pra tora, saíram umas 5h da madrugada, amanheceram o dia na tora. Aí “arara” e “gavião”, todo mundo foram... Aí pegaram a tora e veio correndo até... Aí ele falou assim olha isso aqui é uma disputa, tem que correr mermu, quem correr tem mais fôlego chega primeiro. Aí o pessoal correram né, aí chegaram com a tora. Aí ele foi BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 75

né e tornou falar de novo pra tirar milho, e tiraram o milho e trouxe, botaram do mermu jeito, lá no meio. Aí foi o “gavião” agora que fizeram as peteca pros da turma dele não joga, vai lá entregar na mão, aí começa a jogar. Aí com isso termina. Quando terminar aí que vem, aí ele falou assim: nós vamo inventar agora. Rapaz, nós vamo inventar agora é “brincadeira de peixe”, que três tora né, é mais bonito. Tudo bem! Aí começa, aí de manhã cedo todo mundo vai pro garapé. É frio! Aí nós vamos banhar, aí ele chega, aí ele falou: olha pessoal vocês divide “peixe”, “raia” e “lontra”, e não pode se misturar, é uma disputa, tem que correr mermu. Quem ganhou, ganhou, quem perdeu, perdeu! Aí eles vão correr né, com torinha pequena. Eles chegam e vão tirar a palha de côco [babaçu], aí vão fazer quatro casa [estilo tapiri] no centro da aldeia – quem nem aqui tem o pátio [fez um rabisco em papel], aí vão fazer uma aqui, outra aqui, outra aqui e outra bem aqui, são quatro casa que eles faz. Aí de tarde eles começam a cantar, cortam varinha desse tamanho [fez um gesto com as duas mãos mostrando o tamanho aproximado de comprimento das varinhas], aí tira três e deixa. Aí vão cantar e dançar também, e começa a corrida dentro do pátio... com varinha mermu. Aí quando termina aí tem aquele tora de najá que chama, é, aí eles começam fazer, aí vão pro mato só um dia, quando chegar vão dá caça pra fazer berarubu, aí vão comer depois da corrida. Aí disso aí termina, isso é só um. Aí terminou, aí falou aí pronto, agora é com uma semana aí alguém cortar tora dessa altura aqui [fez o gesto com a mão esquerda, mostrando a altura da tora], chama sumaúma que chama. Aí derriba uma, aí vão cortar três. Aí vai cavar, deixa tudo pronto! [...]três pedaço. Aí que vão buscar essa palha que eu tava falando! Aí ele disse, já corto a tora, aí nós vamo caçar palha primeiro! Aí vai todo mundo, se num dá né, vai ter que ir pelo menos cinco, dez pessoa buscar palha. Dái traz, daí as pessoa começa a fazer assim [apontou para os desenhos que tínhamos feito anteriormente, das máscaras Tep Krã]. Aí ele pergunto, ta tudo pronto? Aì ta tudo pronto! Aí nós vamo pro mato, aí quando chegar vamo tirar palha lá no mato, quando chegar começa a fazer, que é palha de bacaba que é mais fácil né. Aí vamo caçar, aí passado uma semana eles chegam, aí já vem trazendo a palha de bacaba. Aí eles chega e começa a pintar. Aí quando termina tudinho a pintura, aí cada homem vai pegar carne de caça pra dividir pra dá pra muié fazer berarubú, aí vão dá. Aí quando terminar, aí já pega a máscara e já vou sair com ela, pra dançar... aí todo mundo vai pegar sua máscara, só que eu vou ficar lá no centro [ele é Lontra] e “peixe” e “raia” fica dançando ao redor assim. É como eu tava falando, de primeiro o pessoal aqui não tinha horário, mas aqui pelo horário né eu tiro uma base, de começar das sete, aí termina dez hora. Aí das dez tem mais uma dança, com maracá as pessoa dançam também, dança de “peixe” mesmo”. Aí depois o cacique manda as muié pra roça. É mais com as muié a parte da roça. Aì vai tirar batata, inhame, banana, macaxeira, tudo... mudubim, milho,... Aí nós, homi, ele manda, diz: Pessoal vão pro mato, vão caçar, matar porco né, viado, jabuti... aí a gente traz. Aí as pessoa vai fazer berarubú, muié vai fazer berarubú, assar batata, inhame também. Aí as muié vão juntar tudinho e vão botar em cada casa, porque quando é na época do verão o garapé seca, aí a gente vai pra pegar peixe e tem aquele poraquê lá na beira, e não deixa nós pegar peixe, é assim. Aí então a gente pega batata, caça , tudo... aí vamos botar em cada casa. Aí elas vão pintar com urucu, cortar cabelo, pra ficar tudo pronto, né. Aí nós começa a cantar bem cedo, aí as coisa ficam reservado, aí nós faz fogo grande e começa a cantar direto, só pára pra comer, sem dormir. Aí dança a noite todinha, até de manhã. BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 76

Aí quando amanhecer o dia aí vamo chamar, só a turma do “peixe” que vamo chamar. Aí vamo espalhando, vamo espalhar. Como tava falando, se tem batata né, aí nós vamo tomando até terminar, vamo batendo de casa em casa, só os “lontra”. Aí termina o primeiro. Aí vai ser a “raia”. E já vai a “lontra” de novo, só a “lontra”, pegar berarubú, o “raia” corre com berarubú e a gente corre atrás pra tomar, de um por um, aí toma tudinho! Aí quando termina, o ultimo é a “lontra”, que já é diferente. Aí a gente vai chamar a nossa turma. Aí tem o inhame né que fica tudo separado ali, aí nós vai pegar. As pessoa fica lá né com arco e flecha aí vem atacar só com inhame mermu, não pega outras coisa. Aí as pessoa ficam com medo né, de flechar a gente. Aí eles ficam esperando né, armado. Aí nós vamo pro muié, aí elas jogam em nós o inhame e a gente pega e corre no mato, se esconde. Mas aí né, se o pessoal for esperto né, toma tudinho de nós, aí termina, aí acaba. Aí vão inventar brincadeira de borboleta, que chamam... Aí vamo começar, né, aí vamo gritar, aí as muié vai escutar né, aí vai correr pro rumo das criança, aí vai pegar as criança né, aí vai ficar. Quando for no outro dia, o que pode acontecer! Pega as criança de novo, aí as pessoa vai tirar açaí ou arrancar inhame, ou batata, ou banana, essas coisa pra pagar a criança. Porque eles pegam a criança, aí eles pintam, pinta a criança, banha primeiro, depois pinta. Aí a mãe da criança vai trazer qualquer coisa, ou batata, ou banana, qualquer coisa, ela vai ter que trazer pra dá praquelas pessoa que pintou a criança, aí deixa pra ele, pra pegar a criança de volta. Quem pega as criança é só as muié. Enquanto isso os homem vão ta ajudando, vai caçar. O homem ta ajudando nisso, mas o homem não vai lá pra entregar, é muié que vai. A brincadeira de “peixe” é essa [...].

Neste relato, o Sr. Ropré me forneceu outros conhecimentos, numa estrutura de informações que refletem conexões com o que foi dito na contação mitológica de nossa conversa anterior. Em sua narrativa, pode-se perceber a presença do “homem que ensina”, o qual ele não sabe se é um deus e nem sabe quem é, mas sabe que é um homem que explica todas as coisas, como devem ser realizadas, seus sentidos e significados. Essa (re) organização inconsciente que se dá no mito e em função deste, afirma a absorção do sobrenatural nessa tradição, com base em Lévi-Strauss (2004). Em mitos de vários povos do trono Jê , é possível encontrar episódios em que há presença de um “outro” que ensina, em alguns mitos esse “outro” engana, noutras narrativas mitológicas o “outro” é um herói, etc (Idem). Nesses casos, há uma relação de diálogo com esse “outro” que pode ser codificado como homem, como animal, como bicho brabo, dentre outros. O interessante é perceber que esse outro é pessoa, a partir da perspectiva xamânica ameríndia, pois é um alguém, um agente (VIVEIROS DE CASTRO, 2002). BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 77

O “outro”, nesse diálogo transespecífico, próprio das narrativas mitológicas, constitui-se em persona 30 por meio de seu valor simbólico, suas práticas comunicam pela sua corporalidade cosmológica enquanto linguagem e está presente no mito, como referi no item anterior deste texto. Além disso, pude reafirmar a existência do mito associado à colheita de milho- verde e perceber a semelhança dos fazeres presentes nesse mito, em relação a rituais de outros grupos Timbira que também são associados à roça de milho: o Põhipré , por exemplo, dos índios Krahó , é relatado por Melatti (1978) como rito do ciclo anual. Os ritos do ciclo anual, entre os grupos Timbira , estão geralmente “associados seja a fenômenos climáticos, como as estações seca e chuvosa, seja ao plantio, crescimento e colheita de determinados vegetais, como a batata doce e o milho” (Idem). Dessa forma, percebi que o tempo dos rituais, na aldeia Kyikatêjê , está associado ao ciclo biológico da roça e, por este aspecto, compreendo que o sentido da práxis indígena não dissocia às dimensões do social, do cultural e do biológico, pois sua humanidade está calcada numa maneira de pensar o universo em que essas dimensões são indissociáveis e constituem seu “espaço-ambiente-natureza” enquanto totalidade. Contudo, tendo compreendido o diálogo transespecífico na personificação do “homem que ensina”, a presença de outras formas rituais associadas a colheita de milho (não apenas o ritual que envolve máscaras) e a noção de tempo, no contexto do mito, continuei a inquirir o Sr. Ropré , agora sobre os dois rituais. Perguntei-lhe como é possível saber qual seria o ritual a ser realizado nesse ano (2009), daí ele afirmou: “[...] a gente faz anos e anos, mas ninguém sabe se vai ser ‘Peixe, Raia e Lontra’ ou se vai ser ‘Arara e Gavião”. Sua resposta foi uma indicação clara de que o ritual de celebração da colheita de milho-verde, como prática que ocorre há muito tempo entre o povo Kỳikatêjê , pode ser realizado de duas maneiras distintas. Com a continuidade da conversa compreendi que podem realizar o Tuti Krã , “brincadeira de peixe” que envolve os grupos cerimoniais “peixe”, “raia” e “lontra”, ou ainda o Hõpr ỳkrã, “brincadeira de

30 Termo de origem da Grécia Antiga, designado ao nome das máscaras que o atores do teatro grego usavam; de personare que significa “soar através de”; designado também ao papel social ou o papel de um intérprete. BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 78

petecas” a qual envolve os grupos cerimoniais “arara” e “gavião” e que a decisão de realizar uma ou outra brincadeira, e quando realizar, ocorre quando a roça tradicional 31 de milho está boa para a colheita (para ser consumido), sendo que na mesma é tomada a decisão, em reunião entre os homens anciãos e lideranças do povo. Após esta, o cortador de tora deve ir para a floresta cortar uma árvore de samaúma e preparar tora grande - a “tora do milho-verde”. Então perguntei se é feita a reunião, para a tomada de decisão sobre qual seria a brincadeira, assim que o milho já começa a aparecer e ele me respondeu: “É, é sim. A ispiga já ta grande”. Assim, minha expectativa era saber qual cerimonial seria realizado de modo a poder acompanhar sua forma de organização e execução. Presenciar a realização do ritual associado a colheita de milho-verde na aldeia povo Kỳikatêjê, passou a ser o passo seguinte para compreensão do mesmo. E, o fato de “Estar-junto” da colheita de milho-verde, permitiu-me experienciar vivências que se dão em processos de apreensão dessa realidade e que envolvem múltiplas dimensões do Espaço-ambiente-natureza, entre eles a decisão das lideranças sobre qual cerimonial realizar. Definido o cerimonial, passei a acompanhar os diversos momentos que o constituem, os quais apresento e discuto, a seguir

2.4. HÕPR ỳKRÃ, A BRINCADEIRA DAS PETECAS: MOMENTO DE MÚLTIPLAS VIVÊNCIAS

Na estação chuvosa do ano de 2009, quando a roça de milho já estava quase pronta, pude presenciar a realização da celebração da colheita do milho-verde na aldeia. Nesse ano, a liderança da aldeia decidiu realizar a “brincadeira de petecas” (Hõpr ỳkrã), em detrimento da “brincadeira de peixe” ( Tuti Krã ).

31 Existem dois tipos de roça na aldeia: a roça mecanizada, feita por máquinas, em que a terra é preparada por tratores e a roça tradicional, a qual é preparada manualmente pelos homens da aldeia: derrubam as árvores do local, mantendo os limites da floresta no entorno, queimam e retiram os restos de troncos e abrem pequenos buracos na terra onde semeiam 2 ou 3 grãos de milho, das espigas chamadas “milho-macho” para a germinação de um milharal com grandes espigas. Geralmente na roça tradicional de milho, dos indígenas Kỳikatêjê , não se semeia os grãos em ordem de fileiras e entre o milho se semeia também outros frutos – cabaça rasteira, macaxeira, abóbora, batata-doce, cará, amendoim, etc. BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 79

A informação de que o cortador de toras havia ido para a mata me causou ansiedade, pois indicava que a celebração estava em curso. Essa ansiedade se devia a minha expectativa em presenciar a execução do ritual. Nos dois dias seguintes, o cortador esteve indo à mata, portando machadinha e facão, para preparar as toras de samaúma (cortar, cavar e pintar com urucum). Quando as duas toras ficam prontas, a tora do grupo dos “arara” e a tora do grupo dos “gavião”, o cortador avisa para que todos (homens e mulheres) comecem a pintar o corpo para a festa 32 (fig. 16 e 17).

Figura 16. Mulher da aldeia Gavião, pintando o corpo com grafismo característico do grupo “Gavião” Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).

Obedecendo ordem dos anciãos, os jovens também começam as pinturas corporais com jenipapo (pigmentação escura, quase preta), isso anuncia que no próximo dia a “festa do milho-verde” terá seu início.

Figura 17. Ancião da aldeia Gavião, exibindo sua pintura corporal com grafismo característico do grupo “Arara” . Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).

32 “Se há algo relacionado com toda a experiência da festa, este algo é o que impede todo isolamento de alguém frente a outrem. Festa é coletividade e é a representação da própria coletividade, em sua forma acabada. Uma festa é sempre para todos” (GADAMER, 1985, p. 61). BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 80

Um dia após a feitura das pinturas com jenipapo, os velhos levantam cedo de manhã, antes do sol se mostrar completamente. Um dos velhos segue até o milharal e busca uma espiga de milho e a traz para os demais velhos, no acampamento (ou casa de reunião). Percebi que nesse momento se dá o início da festa. Então, os homens mais velhos, com os corpos pintados com jenipapo e urucum, vão até a roça tradicional buscar mais espigas de milho. Essas espigas têm por finalidade primeira a extração da palha (que recobre a espiga de milho-verde) para feitura de petecas. Tendo chegado as espigas, os velhos começam a confeccionar petecas, amarrando as lascas da palha de milho em fios de embira (fig.18)

Figura 18. Ancião da aldeia Gavião, confeccionando petecas com palha de milho-verde. Fonte. Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).

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Após os velhos terem feito um número considerável de petecas (em torno de dez unidades) uma mulher senta em uma tora e, portando uma bacia com urucum e água sobre as pernas, ela banha as petecas, dando-lhes coloração avermelhada (fig. 19 e 20). Eu perguntei por que ela banha as petecas em urucum e ela responde que “é para ficar bonita” (as petecas). Nesse momento, percebi que várias crianças ficaram ao redor, elas queriam brincar com as petecas e comer os milhos dos velhos (que já estavam assando na brasa que os aquecia). Mas, a velha que banhava as petecas me explicou que as crianças não podem pegar, antes que os homens velhos brinquem com as petecas e carreguem a tora do milho-verde - se elas pegarem, antes da brincadeira dos velhos, e/ou comerem do milho antes do tempo, adquirem doenças.

F i Figura 19. Mulher banhando as petecas com água e urucum. Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).

Figura 20. Petecas, confeccionadas com palha de milho-verde, recebendo coloração vermelha de urucum para ficarem bonitas. Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009). BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 82

Após a confecção das petecas, o ancião de mais idade, o qual a comunidade costuma chamar “Baixinho”, toca um apito (buzina) feito de bambu e chama em voz forte, em língua Jê : “ Amjik ĩn!” – esse grito se refere à chamada de todas as brincadeiras (fig. 21). Assim, os velhos e seus afilhados (para quem deram o nome) se colocam em volta, se reúnem em círculo, em um grande círculo, para que no centro se posicione o jogador de petecas.

Figura 21. Ancião chamando para iniciar a brincadeira de petecas. Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).

A regra da brincadeira de petecas é bater na cabeça ( krã ) da peteca, de baixo para cima, com a palma da mão e não deixá-la cair ao chão (fig. 22 e 23). Quem consegue ficar com a peteca no ar por mais tempo ganha a honra de ser o melhor da brincadeira, e todos da aldeia ficam sabendo disso.

Figura 22. Homem da aldeia Gavião Kỳikatêjê , jogando peteca. Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009). BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 83

São cerca de dez petecas, uma para cada jogador. A peteca não pode ser usada mais de uma vez no jogo, assim que cair ao chão, já não será mais aproveitada para a brincadeira dos velhos. Quando a peteca cai no chão, uma criança corre para pegá- la. A partir daí, várias crianças pegam as petecas que vão caindo durante o jogo dos mais velhos e começam a fazer a brincadeira delas, ao lado do círculo da brincadeira de seus pais, tios, padrinhos, etc. As crianças parecem treinar para serem jogadores de petecas, quando crescerem, elas observam e tentam fazer como os homens mais velhos. Assim, concomitante a brincadeira dos velhos, forma-se uma brincadeira de crianças (fig. 24). Figura 23. Homem da aldeia Gavião Kỳikatêjê se esforçando para não deixar cair a peteca. Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).

Quando acabam todas as petecas dos velhos, se inicia uma cantoria exclusivamente masculina, puxada por um cantador e dois anciãos que tocam buzinas de bambu. As metades “Arara” e “Gavião”, divididas em dois grupos de homens de várias faixas etárias, têm seus gritos próprios, que reproduzem durante o momento de canto (fig. 25).

Figura 24. Crianças treinando a brincadeira de petecas. Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).

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Figura 25. Homem do grupo “Gavião” emitindo sons de canto após brincadeira de petecas. Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).

Depois disso, o povo dispersa, alguns homens vão caçar. Nesse dia, no fim da tarde, uma das mulheres anciãs chegou ao acampamento de posse de um paneiro cheio de urucum, que ela foi buscar na outra aldeia Gavião ( Parkatêjê ), pois “o urucu daqui já está quase se acabando”. Uma das mulheres reclama dizendo que ela planta urucum ali por perto, mas o vento o derruba. Prestei-me a ajudá-las a tirar as sementes de urucum das cascas, ajudei minha ĩxẽ. Depois as mulheres se pintaram, algumas pintaram suas crianças (meninas) para dançarem, os homens pintaram o centro do busto, o rosto, os braços e as pernas até os pés. Ao fim da tarde, por volta de 17horas, os tocadores de apitos – um destes é o cacique – BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 85

começaram a chamar e, caminhando para o centro do pátio, reuniram-se em dança e canto, em língua nativa 33 . Aos poucos, os jovens foram chegando e se juntando à procissão que seguia os cantadores e os tocadores de apito, os quais puxavam a marcha em dança no centro da aldeia circular. Por vezes, se percebia alguns velhos fazendo movimentos que lembram pássaros, os mais novos não cantavam, porém acompanhavam os movimentos dos mais velhos a passos miúdos e ritmados (fig. 26).

Figura 26. Velhos, jovens e crianças em movimentos de canto e dança no centro da aldeia . Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).

Eu perguntei a uma jovem, por que ela estava dançando daquele jeito (com passos miúdos), ela respondeu: “É por causa que faz parte da vida do índio e faz parte da cultura”. Fiz a mesma pergunta a dois rapazes, e eles disseram: “A cultura do índio é assim, a gente tem que fazer o que os mais véio faz”. No meio da conversa, outro rapaz enfatizou: “Quem é índio faz essas coisa, pinta o corpo de arara, gavião, peixe, lontra, raia, cobra 34 ... e tem que fazer essas coisa que são do índio”.

33 Umas das limitações dessa pesquisa se encontra no fato de não dominar a língua Jê , usada pelos mais velhos e situações de reuniões e canto, além de não ter a tradução dos cantos. 34 Motivos representativos que fazem parte da cosmologia desse povo. BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 86

Perguntei para Kwainõ (uma jovem casada que é conhecida na aldeia por fazer pinturas bonitas de todas as representações desse povo) sobre como ela aprendeu a pintar aqueles desenhos, ela explica que “desde criança as mães pintam as meninas, os meninos e o marido, daí os filhos vão crescendo e aprendendo a ser assim, faz parte da vida do índio” (fig. 27).

Figura 27. Joven Kỳikatêjê exibindo sua pintura corporal do grupo “Peixe” . Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).

A dança durou cerca de duas horas, até que o Sol do fim da tarde sumiu completamente e o povo começou a dispersar. Ficaram apenas os homens mais velhos no pátio (no centro da aldeia circular), reuniram-se para definir sobre a corrida da “tora do milho-verde” que aconteceria no próximo dia e que, de fato, aconteceu. Outro dia (15/02), logo no início da manhã, um caminhão buzinou bastante em torno da aldeia. Era o caminhão da Associação Amitãti Kyikatêjê – isso aconteceu quando os jovens não se levantam cedo apenas com o som do apito de bambu, o caminhão buzina em torno das casas para despertá-los. Nesse dia, a chamada era para a corrida da “tora do milho-verde”, que foi preparada com tronco de samaúma, pelo cortador. Eu também me levantei e aproveitei que o caminhão acompanhou os corredores, e fui também ver a corrida desde lá da floresta. Era por volta das seis horas da manhã, ainda tinha neblina sobre as casas, fazia frio. Fui em direção ao acampamento, mas “Mamãe Grande” (Ronoré), minha ĩxẽ, me mandou ir para o BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 87

caminhão acompanhar a corrida e tirar fotos. Percebo que pelo fato de ter levado algumas fotos impressas, da minha visita anterior, eles ficaram mais solícitos à câmera fotográfica. Então, subi, fui em cima do caminhão. O cortador da tora ( Prekrut ) foi também encima do caminhão e me explicou que havia deixado a tora bem longe, “por que a juventude de hoje em dia [da aldeia] está muito preguiçosa” [ele falou rindo]. Na medida em que entrávamos mais na floresta, numa estrada de chão arenoso que parecia não ter fim, o clima e o cheiro de mato me envolvia ainda mais. A tora estava acerca de 6 km de distância do acampamento dos velhos (local de chegada dos corredores), cada uma tora pesava cerca de 80 Kg. O caminhão seguiu até certo ponto da estrada, antes de um barranco que precede o local em que estavam as toras dos dois grupos. Ao olhar de cima do barranco, a paisagem é linda, com árvores grandes e pequenas, que se misturavam a neblina fina que cobria os galhos altos das grandes árvores (fig. 28).

Figura 28. Vista de cima, do barranco que precedia o local onde estavam as toras de corrida na mata. Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009). BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 88

Demorou cerca de 15 minutos até que, quando despontou a primeira tora, a dos casados. Despontou da baixada, nas costas de um dos homens, o qual assim que se sentiu cansado revezou, passando-a para outro companheiro casado. Logo depois subiu na baixada a tora do grupo dos homens solteiros. Entre o grupo de solteiros tinha, inclusive, meninos de 13 anos. A tora pesava mais do que eles, mas chegaram a suportá-la várias vezes sobre seus ombros, é claro, com mais dificuldade do que os homens mais velhos e mais fortes. Perguntei a dois meninos por que eles “correm tora”, eles me responderam que é por que os velhos mandam e eles têm que obedecer, senão os velhos ficam brabos com eles. Os solteiros chegaram a se aproximar do grupo dos casados, na corrida, mas não conseguiram ultrapassá-los (fig. 29).

Figura 29. O grupo dos homens solteiros na corrida de toras . Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).

Os casados ganharam essa corrida. Eles chegaram primeiro no acampamento, derrubaram as toras e permaneceram descansando sentados e esperando o banho d’água fria dado pelas mulheres da aldeia. Algumas mulheres já estavam no local com seus baldes cheios de água para refrescar o marido, os filhos, os sobrinhos, entre outros, numa atitude de carinho, cuidado e solidariedade. BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 89

Após o banho, os mais jovens (principalmente) ficaram comentando uns com os outros sobre a corrida: quem correu mais, quem suportou mais, quem pegou carona no caminhão porque estava cansado, quem aguentou por pouco tempo a tora no ombro e elogios para quem correu muito. Compreendi, ao escutar tais comentários, que os elogios são muito importantes, legitimam os melhores e os mais fortes, o que parece ser motivo de grande honra e auto-estima. Entre o grupo dos mais velhos, escutei um comentário sobre a técnica usada para ganharem, visto que o grupo deles era menor. Um dos casados mais jovens disse que tem que posicionar a parte “ocada” (cavada) da tora sobre o ombro e a parte mais pesada, que é maciça, empinar (inclinar) para cima e para frente. Desse modo, o peso da tora impulsiona o corpo do corredor para frente - se a tora ficar com o peso distribuído mais para trás, poderá cair. Isso ocorreu no grupo dos jovens solteiros que, por vezes, mesmo sendo mais numerosos, não conseguiram ganhar do grupo dos casados, embora, estes, mais velhos e em menor quantidade. Percebi certo orgulho dos dois meninos mais novos (na faixa dos 13 anos) que foram com o grupo dos solteiros, por terem participado da competição. Eles exibiam o fato de terem carregado a tora no ombro, como se isso lhes tornassem guerreiros, homens fortes. Após o banho dado pelas mulheres e alguns minutos de descanso, os velhos mandaram os jovens irem buscar milho na roça tradicional. Foram dois grupos com paneiros para a roça: os solteiros e os casados. Os demais, que ficaram no acampamento, fizeram duas fogueiras. Os dois primeiros paneiros de milho que chegaram foram para a “casa de reunião”, no acampamento, onde os velhos iniciaram a feitura das petecas. Os outros paneiros de milho, que restaram, foram para as duas fogueiras, dos homens solteiros e dos homens casados. Enquanto isso, houve “encarnação” (zombaria) entre os grupos, uns zoavam dos outros dizendo que não sabiam fazer fogo [momento de riso e descontração]. Em seguida, começaram a assar as espigas de milho, retirando apenas a palha mais externa das espigas, deixando ainda algumas camadas de palha sobre o milho e em contato direto com o fogo – o cheiro de milho assado na palha é imprescindível, doce e típico. Quando o milho começa a estalar na fogueira e a palha que recobre a espiga fica bem escura, significa que já está bom para comer. BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 90

Todos estavam com muita fome, pelo jeito, os milhos assados foram o desjejum de todos. Enquanto isso, alguns homens mais velhos confeccionavam as petecas, com as palhas de milho, até que ficaram prontas e, já tendo comido algumas espigas e, portanto, estando alimentados, começaram a jogar petecas. Ropré é considerado o melhor jogador, ele é quem consegue manter por maior tempo a peteca no ar – em algumas vezes que o vi jogando observei que ele teve que derrubar a peteca propositadamente, senão passaria a manhã inteira jogando. Assim, novamente se repetiu a brincadeira, que já havia acontecido no dia anterior, sendo que neste dia aconteceu após a corrida da “tora do milho-verde”. As crianças e algumas mulheres jovens e velhas estavam ali em torno da brincadeira, mas não participam oficialmente com os homens. As crianças esperam que as petecas caiam ao chão para tomá-las para si e fazerem sua própria brincadeira. Após a brincadeira de petecas, as mulheres mais velhas continuam a comer as espigas de milho assado que ainda sobraram. E, o cacique chama os homens (casados e solteiros presentes) para reunião, percebi que o assunto se trata de caça – Ropré (meu principal informante) confirmou que o cacique mandou todo mundo caçar e coletar frutos para darem para as esposas e mães da aldeia para que, no dia seguinte, possam trocar as caças como presentes em troca de seus filhos, num ritual que eu comecei a chamar de “banho das comadres”. Depois da conversa com o cacique, cada qual retornou para sua casa, ficaram apenas os mais velhos no acampamento. Assim, tem-se o fim do Hõpr ỳkrã, parte da celebração de colheita do milho-verde onde se faz a brincadeira de petecas. Verifiquei que a brincadeira, descrita acima, envolve diversas aprendizagens de saberes, valores e habilidades, presentes nos fazeres e dizeres relativos a pintura corporal, corrida de toras, colheita de milho, jogo de petecas em relações com o “outro”, e que as mesmas se dão em situações de vivências coletivas e individuais, na apropriação de saberes presentes e intrínsecos a elementos da biodiversidade local. A partir da compreensão de que a celebração da colheita do milho-verde se constitui como processo de educar, dou a conhecer algumas situações de aprendizagens singulares, próprias da vivência indígena.

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Seção III. PROCESSOS EDUCATIVOS DA VIVÊNCIA NOS RITUAIS

Ao compreender os rituais de celebração de colheita de milho-verde enquanto educação faz-se necessário apresentar processos educativos a ela recorrentes. Neste sentido, analiso a referida celebração indígena diferentemente das análises antropológicas que, na maioria das vezes, buscam entender, a partir desses contextos rituais, a estrutura social e sistemas culturais. Neste estudo, meu olhar se centrou na compreensão dos aspectos educativos pertinentes a essa celebração. Por haver conhecido a forma de concepção, organização e realização dos rituais associados à colheita do milho-verde, na aldeia Gavião Kỳikatêjê , percebi que a atualização do mito de origem por meio de fazeres e dizeres expressados na feitura de seus rituais e na oralidade, se dão, dentre outros aspectos, enquanto ato pedagógico (FREIRE, 2004). Dessa maneira, identifico os dois rituais de celebração da colheita do milho (Tuti Krã e Hõpr ỳkrã ) como mosaico de relações de sentidos e significados que se constrói em situações de aprendizagem para e por meio da cultura Timbira , bem como processos educativos de uma educação que existe solta entre os homens e na vida (BRANDÂO, 2007) relacionados intrinsecamente, por fatores simbólicos, a elementos da biodiversidade local. Essas relações configuram-se enquanto processos educativos, pois são elementos e noções que os sujeitos apreendem, o que lhes tornam membros de uma aldeia de etnia indígena Timbira , Kỳikatêjê (CALEFFI, 2004), configurando uma aprendizagem da/na vivência. A aprendizagem por meio da vivência é reconhecida socialmente – vários são os ditos populares que a referendam afirmando que “é vivendo que se aprende”, “a vida ensina”, dentre outros. Entretanto, identificar os elementos numa análise sistemática ajuda a visualizá-la e compreender seus processos. Especificamente neste estudo, analiso processos educativos em duas categorias de contexto que são os dois rituais de celebração do ciclo anual associados à colheita do milho-verde, que são as duas formas de se realizar a referida celebração: o Tuti Krã e o Hõpr ỳkrã.

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3.1. PROCESSOS EDUCATIVOS, ELEMENTOS DA BIODIVERSIDADE E SABERES DO TUTI KRÃ

O Tuti Krã , descrito na seção anterior, na contação do mito (por Sr. Ropré), demarca, em diferentes momentos, situações de aprendizagens. Neste, percebi que processos de aprender-ensinar se dão na relação com o “outro”, a partir da noção de “outridade” (LEFF, 2003). Além disso, esses processos são vivenciados coletivamente e individualmente. Recorto e analiso alguns fazeres e dizeres que evidenciam tais processos. Reconheço que qualquer tentativa de mapeamento desses processos, o que implica isolamento de dados a fim de torná-los perceptíveis para as categorias de análise, fragmenta o contexto do vivido. Entretanto, a adoção pela análise de conteúdo enseja esta forma de tratá-los, mas ao mesmo tempo valoriza os processos educativos que apresentam significação no contexto do sistema cultural de formas simbólicas da aldeia. Nessa perspectiva, apresento os referidos processos educativos e os saberes relacionados à biodiversidade local em algumas práticas que se dão em diversas vivências: o “mito de origem”, a “confecção das ‘cabeça de peixe’”, as “pinturas” e a “corrida de toras”, considerando que são representativas na contação do mito de origem.

3.1.1 O mito de origem Após ter verificado, na seção anterior, que o relato de Sr. Ropré sobre o surgimento das máscaras - “cabeça de peixe” - se tratava do mito de origem da celebração da colheita do milho-verde e que os elementos expressos no relato demonstravam a “eficácia simbólica” das ações descritas (LÈVI-STRAUSS, 1975), percebi que existe uma relação intrínseca entre a biodiversidade local e o mito, conforme Sr. Ropré me falou:

Isso que eu tô falando, que eu contei naquele dia lá, né. Que aquela árvore de milho, batata,... essas coisas,... isso foi amostrado primeiro. Aí quando começaram a plantar milho, mandioca, abóbora, essas coisas mais, né! Eles plantavam tudinho. Aí foi através disso que começou. E esse homem falou: - Rapaz, bora inventar né, uma corrida, fazer uma brincadeira pra nós inventar uma corrida de tora! [...]

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A presença marcante das roças, especificamente da roça de milho (que envolve outras espécies em seu plantio), é significativa na fala do Sr. Ropré e demarca a origem da celebração da colheita do milho, demonstrando que os ritos originados desse mito estão relacionados ao ciclo anual por que são associados ao plantio, crescimento e colheita da roça (MELATTI, 1978). Essas informações, presentes na forma de pensar dos indígenas, influenciam seus fazeres e coadunam com o que Diegues (2000) fala sobre a biodiversidade não ser um conceito para discutir apenas nas suas relações com o mundo natural, visto que é uma construção cultural e social. É possível, ainda, perceber os saberes que emergem desse processo de educar e a sua apropriação no mito, estes apresento no quadro a seguir:

Quadro 1. Elementos da Biodiversidade, formas de apropriação e saberes do mito do Tuti Krã Elementos da Formas de Expressão de saberes envolvidos biodiversidade apropriação Milho Pla ntio; “Aí quando começaram a plantar milho, mandioca, abóbora, Batata Mito de origem da essas coisas mais, né! Eles plantavam tudinho. Aí foi através Mandioca “brincadeira”. disso que começou . E esse homem falou: - Rapaz, bora Abóbora inventar né, uma corrida, fazer uma brincadeira pra nós Homem inventar uma corrida de tora! [...]” (Sr. Ropré )

Por meio dessa relação intrínseca entre o plantio das roças e o surgimento das “brincadeiras”, posso afirmar que os ritos ligados aos fazeres expressos nesse mito são “ritos do ciclo anual” (MELATTI, 1978). Esse fato empreende valores de Educação Ambiental 35 incorporados à própria vida, ou seja, o plantio e, portanto, o ambiente está associado à própria forma de identificação da pessoa indígena e suas práticas. Nesse aspecto, a educação ambiental se dá num processo educativo vivenciado coletivamente e individualmente, pois o plantio das roças são atividades que se faz geralmente em grupos de pessoas, mas, também, são formas de apreensão de saberes que se dão na relação que a pessoa tem com os fazeres na roça, numa prática de interação e observação. Ao observar o crescimento dos vegetais, o sujeito aprende, dentre outros, sobre o tempo de colheita e valores relativos à tolerância, quando da espera do

35 Com base na noção de Complexidade Ambiental (LEFF, 2003), a qual considera as diversas formas do ser, do saber e do conhecer em suas estratégias de apropriação do Espaço-ambiente- natureza pelos povos. BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 94

tempo do “outro”, outro este que é a própria roça enquanto personalidade imbuída de valor simbólico, presente no mito. Esse valor de eficácia simbólica (LÉVI-STRAUSS, 1975), presente no mito e refletido nos ritos, me conduz à compreensão de que os processos educativos ensinam esses fazeres culturais, incorporando os processos biológicos envolvidos e outros, configurando uma educação interdimensional, pois agrega saberes diversos com práticas diversas, reafirmando o “espaço-ambiente-natureza amazônico” compreendido enquanto totalidade. Além disso, o mito de origem do Tuti Krã apresenta também processos educativos que se dão nas relações entre os outros da aldeia e o ser mitológico que ensina como fazer, como se percebe no relato Sr. Ropré:

[...] Na época, né, aí ninguém sabia de nada, só que, quenem to falando, então um homem apareceu, aí chegou o homem, aí foi fazer, falou: Rapaz, bora fazer, né, uma brincadeira pra gente brincar que a gente tá muito parado. Aí falou assim, mas como assim?

O tempo mitológico expresso na introdução do mito se segue da informação de que, antes do “homem” ensinar, ninguém sabia de nada, as pessoas da aldeia não conheciam uma maneira de mudar a situação de “tá muito parado”, o que seria resolvido com a invenção da “brincadeira”. Dessa forma, estabelece-se a relação com o saber, quando é preciso aprender sobre algo para então mudar uma situação indesejada. A relação com o “homem que ensina” está no saber que ele traz para as outras pessoas. “Procurar o saber é instalar-se num certo tipo de relação com o mundo”, o que torna os homens e as mulheres sujeitos de saber (CHARLOT, 2000, p. 60). O saber, presente no mito, enquanto forma de pensamento indígena, herdado de várias gerações, denota o seu caráter educativo, presente na figura do personagem mitológico simbólico, “o homem que apareceu e ensinou fazer”. Esse personagem tem sua maneira de ensinar: ele não somente foi fazer, ele também falou e convocou todos a uma brincadeira e, os que não entendiam do que se tratava, lhe pediram explicações: Aí foi e falou assim, falou: Rapaz, eu vou fazer aí vocês vão me acumpanhá. [...] Aí ele pegou e chamou, no final da tarde, reuniu todo mundo lá no meio de campo. Aí o pessoal tava lá em pé conversando sobre brincadeira. Aí ele pegou e falou assim: Olhe, amanhã nós vamo cortar tora, vamo inventar a brincadeira, vai ser peixe, arraia e lontra. Aí foi né, ele falou: Olhe vocês vão cortar três tora (Sr. Ropré ).

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A forma de ensinar do personagem mitológico, demonstra claramente um processo educativo que se dá em ambientes práticos de partilha de dizeres e fazeres. Observo que o “homem” foi fazer e convocou os demais a lhe “acumpanhá”, a fazer com ele, o que se caracteriza como processo educativo vivenciado em situação coletiva, no “Estar-junto”, enquanto diálogo, pois o “homem” não apenas falou como se faz e mandou ir cortar a tora, mas disse: “nós vamo cortar tora”, enfatizando sua presença no fazer. Em seguida, as pessoas continuaram a argumentação sobre o “novo” saber trazido pelo “homem que ensina”:

Aí eles foi e cortou três tora, aí eles chegou e falou: E agora? Ele disse: Agora? Agora vocês vão tirar aquele palha de tucum né [...]. [...] Aí ele tirou a palha dela e tira pra fazer e tava ensinando a fazer. Aí eles falou, mas como assim? Aí ele começou a explicar, até que terminou. Aí terminou né, aí eles falou assim: e agora? Ele falou assim: Rapaz, agora vocês num pode usar assim qualquer tipo de palha, usa palha de bacaba [...] (Sr. Ropré ).

Percebo, na descrição, que após terminarem uma etapa dos fazeres as pessoas argumentavam sobre a próxima etapa e, nisto, o “homem” continua a demonstração de fazeres ao mesmo tempo em que explica como usar os materiais (da biodiversidade) para os fazeres. Com relação ao uso de materiais da biodiversidade, para os fazeres, é curioso observar que o “homem” enfatiza a existência de vários tipos de palha e ensina a usar palha de “bacaba”. Portanto, os processos educativos presentes nesse fragmento do mito, deixam claro a importância do trabalho coletivo e das formas de apropriação do saber por argumentação, por demonstração e por explicação. Esses fatores demonstram o que Charlot (2000) chama de engajamento com o saber, o que é possível perceber na relação que os sujeitos estabelecem com o mesmo. Neste sentido, o “homem” se preocupa em explicar sobre a importância dos saberes que ele estava ensinando:

Aí foi e falou assim: Pois olha, eu to falando, vocês ficam parado, não tem uma alegria pra vocês... [porque isso é verdade, se fica parado não tem alegria, não sabe o que que vai fazer, não tem animação] ...então pra isso que eu to ensinando pra vocês fazer a brincadeira pra correr, brincar, não ficar o pessoal parado (Sr. Ropré ).

Neste trecho do mito, o Sr. Ropré intercala a contação mitológica com sua fala, dando ênfase à justificativa dos fazeres compartilhados. O saber, apreendido no engajamento dos sujeitos com os fazeres e dizeres, ensina sobre a importância BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 96

de (re) recriar a “brincadeira”, a fim de não ficarem parados, pois o “estar parado” é uma situação indesejada que não traz alegria. Então constato que esse saber, expresso no fazeres e dizeres, são relevantes, principalmente, para ensinar sobre valores da “alegria”, o que se dá nas relações de “estar-junto”. O valor atribuído a alegria, na narrativa mitológica, me faz lembrar aquela atmosfera de alegria de que Paulo Freire (1996) se refere como imprescindível ao espaço de educar. Dessa forma, a construção do saber, presente na narrativa mitológica, reflete- se, de alguma maneira, nos fazeres práticos dos rituais indígenas. Quero dizer que todas as informações (re)passadas na atualização do mito de origem do ritual Tuti Krã , resultam em saber fazer a “brincadeira de peixe”, o que é possível perceber nas informações dos próximos itens que mostram relatos sobre os fazeres do ritual 36 e seus processos educativos intrínsecos.

3.1.2- Confecção das “cabeça de peixe” Uma das primeiras etapas de realização da “brincadeira de peixe” ( Tuti Krã ) é a confecção das chamadas “cabeça de peixe”, as máscaras. No que se refere à organização da confecção desses objetos rituais, Sr. Ropré diz:

Aí agente vai fazendo né, agente não faz as coisas de qualquer jeito, agente somos bem organizados. Aí vamo fazer! Aí se tem pessoas que tá atrasado, aí vai ter que esperar também. Aí quando todo mundo termina a sua, aí nós vamo dizer que todo mundo tá com tudo pronto, aí vamo dizer: Então vai começar a brincadeira de peixe! Aí as pessoas vai: corta tora – três toras: arraia, peixe e lontra – tem que cortar três toras. E também a pessoa vai cortar e não vai dançar logo no mesmo dia não! A pessoa vai pro mato caçar, passa uma semana no mato. É assim, vai cortar tora numa semana, na outra semana é que vai caçar, só chega em casa na sexta-feira. Aí chega e vão começar a aprontar aquela máscara de brincadeira de peixe, vamo pintar, vamo aprontar tudinho).

O momento de construção da estrutura das máscaras feitas de palha se caracteriza como uma situação coletiva em que todos estão fazendo juntos. Pode-se perceber que o trabalho coletivo não está posto simplesmente no âmbito quantitativo de ser coletivo por que envolve várias pessoas, mas é intrínseco a uma noção coletiva de trabalho por interação e troca de experiências, pois quando tem pessoas atrasadas, os demais esperam. A ética dessa ação compreende que aqueles que já concluíram seu trabalho não podem passar para uma próxima etapa e deixar os

36 Visto que o Tuti Krã não foi possível presenciar, pois no ano de 2009 a liderança da aldeia resolveu realizar o Hõpr ỳkrã. Portanto, as informações que possuo sobre os fazeres do ritual Tuti Krã se constituem apenas de relatos e desenhos. BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 97

demais integrantes do grupo realizando sozinhos o que ainda está por ser feito. Esses fatores se configuram enquanto elementos de um processo educativo vivenciado em situação coletiva que se dão durante a vivência no ritual, na tarefa de feitura das “cabeça de peixe”, as máscaras usadas no Tuti Krã . Nessa vivência, relatada nos fazeres e dizeres do mito, vários saberes intrínsecos à biodiversidade local são compartilhados e, além disso, compõem o mosaico de relações. Durante as conversas com Sr. Ropré , quando eu lhe perguntava sobre os materiais de confecção dos objetos rituais relatados, percebia os saberes relacionados à escolha desses materiais. Sr. Ropré me falou sobre os materiais para a confecção das “cabeça de peixe” e eu lhe perguntava o porquê da escolha desses materiais. Essas relações, para melhor percepção do leitor, estão organizadas no seguinte quadro:

Quadro 2. Elementos da Biodiversidade, formas de apropriação e saberes da confecção das máscaras do Tuti Krã Elementos da Formas de apropriação Expressão de saberes envolvidos biodiversidade Palha de tucum Corda de arco, para lançar flechas; “Agente sempre usa essa palha por que ela Construção das franjas das máscaras, também é boa, porque ela é forte, aí agente chamadas “cabeça de peixe. usa também pra tirar o fio dela [...]Não tora assim fácil, não!”. Penas de papagaio Decoração de máscara; “Aí atrás [da máscara] tem outra pintura assim, mas nós não vamo pintar, nós vamos fazer de pena de papagaio. Aí fica bonita, porque fica bem verdinho”. Resina de tatajuba Aplicar penas de papagaio na máscara. Enfeita com a pena. Quem nem aqui, pega a cola, passa a cola e começa a colar desse jeito[...]Tipo uma cola mesmo! [...]É mas agente usa é tipo um leite. Leite do... “tatajuba”, que é igual cola. Agente passa na palha o “tatajuba” e fica tudo branco, aí é só espalhar as peninhas de papagaio. Aí fica tipo um grude. Ipê Confecção do chifre da máscara É dum pau qu e agente chama “ipê”. [...], tem é muito aqui! Agente tira elas e começa a afinar, tem que ficar bem fininho!

A leitura do quadro propicia perceber que os sujeitos estabelecem relações com os saberes envolvidos nas formas de apropriação dos elementos da biodiversidade local, por meio dos valores que esses saberes representam no contexto de sua aplicabilidade. Como observei, a palha de tucum é referida pelo Sr. Ropré com valor de força; a aplicação de penas de papagaio, na parte de trás das “cabeça de peixe”, BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 98

demonstra uma referência de beleza em seu valor estético; a tatajuba, por sua vez, tem um valor de uso em prol do estético, pois serve para colar as penas de papagaio nas máscaras; e o ipê é uma madeira da qual se faz o chifre das “cabeça de peixe”, uma forma de apresentação da informação mitológica sobre a confecção de máscaras que se faz presente nos fazeres. A confecção das “cabeça de peixe”, a partir desses elementos da biodiversidade local, intrínseca a dimensão social e cultural, constitui-se em processo educativo que se dá coletivamente em práticas de interação e experimentação de materiais. Portanto, vejo que é inviável não pensar a “megadiversidade amazônica” (BECKER, 2008) como uma construção cultural e social, pois os processos educativos emergem na teia de relações simbólicas e interdimensionais que auxiliam na atualização da cultura, especialmente a cultura indígena, em fazeres e dizeres diversos, que continuo observando enquanto ato pedagógico no item seguinte.

3.1.3- Corrida de toras Discuto a corrida de toras referida no mito, como uma das etapas do Tuti Krã , também como processo educativo de apreensão de significados e relações que se dão em situações coletivas desde a sua preparação até a realização. Em relação a preparação Sr. Ropré assim se refere:

Aí as pessoas vai corta tora – três toras: arraia, peixe e lontra – tem que cortar três toras. E também a pessoa vai cortar e não vai dançar logo no mesmo dia não! A pessoa vai pro mato caçar, passa uma semana no mato. É assim, vai cortar tora numa semana, na outra semana é que vai caçar, só chega em casa na sexta-feira

As ações descritas na fala do Sr. Ropré revelam que não se trata simplesmente da construção de produtos, mas da significação de práticas que codificam a forma herdada das gerações indígenas, pois as três toras especificadas são “batizadas” com nomes próprios das ligações matrilineares, propiciam relações intrínsecas a essa organização e aos elementos da biodiversidade representados nas categorias dos grupos internos ao rito (“os Arraia”, “os Peixe” e “os Lontra”), incluindo o material (madeira) que constitui as toras, pois no mito de origem, está evidenciado, inclusive, o tipo de árvore com que se faz as toras para a corrida que se realiza associada ao ritual Tuti Krã , como se pode perceber no relato a seguir: BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 99

[...] aí falou aí pronto, agora é com uma semana aí alguém corta tora dessa altura aqui [fez o gesto com a mão esquerda, mostrando a altura da tora], chama sumaúma que chama. Aí derriba uma, aí vão cortar três. Aí vai cavar, deixa tudo pronto! [...] três pedaço (Sr. Ropré) .

Os três pedaços em que é fatiada a tora de tronco de samaúma, são usados na corrida de toras. Cada pedaço é carregado individualmente pelos integrantes dos grupos internos à “brincadeira”, por revezamento. Aqui, também, é possível perceber elementos da biodiversidade que ensejam saberes engajados numa relação de atribuição de valores, o que ilustro a partir do quadro seguinte:

Quadro 3. Elementos da Biodiversidade, formas de apropriação e saberes da corrida de toras do Tuti Krã Elementos da Formas de apropriação Expressão de saberes envolvidos biodiversidade Samaúma Confecção de toras para uso na “Rapaz, nós vamo inventar agora é “brincadeira de corrida peixe”, que três tora né, é mais bonito [...] chama sumaúma que chama. Aí derriba uma, aí vão cortar três. Aí vai cavar, deixa tudo pronto! [...]três pedaço”. “Aí nós vamos banhar, aí ele chega, aí ele falou: olha pessoal vocês divide “peixe”, “raia” e “lontra”, e não pode se misturar, é uma disputa, tem que correr mermu Quem ganhou, ganhou, quem perdeu, perdeu!”( Ropré ).

Raia Nomeação de grupos internos ao “Aí as pessoas vai corta tora – três toras: arraia, peixe e Peixe ritual – ligados a nominação lontra – tem que cortar três toras” ( Ropré ). Lontra matrilinear da aldeia Timbira.

Sr. Ropré demonstra certa preferência pela “brincadeira de peixe”, quando afirma a presença de três toras e, a isto, atribui valor estético, em que a beleza se encontra num fazer que envolve mais grupos internos à celebração.Tais grupos interagem e se relacionam durante a corrida por meio de um valor ensinado desde a contação do mito, o valor de saber competir, como assim se refere: “[...] vocês divide “peixe”, “raia” e “lontra”, e não pode se misturar, é uma disputa, tem que correr mermu. . Quem ganhou, ganhou, quem perdeu, perdeu!”. Essa apreensão de saberes se dá por meio de processos educativos vivenciados em situações coletivas, no “estar-junto” aos grupo cerimoniais internos ao Tuti Krã . Percebo que nessa realidade relacional em que os sujeitos se apropriam das informações na prática, nos fazeres, faz com que os mesmos interajam com o “espaço-ambiente-natureza” que os envolve e de que são parte. BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 100

O “Estar-junto” que refiro como emergente da vivência, compreende o diálogo com o ambiente, entendido enquanto o mundo ao redor do sujeito, construindo com este uma teia de relações de significados e sentidos. “Estar-junto”, é, pois, criar linguagem com “palavras verdadeiras”, no sentido de transformar o mundo, ou seja, é modificá-lo num ciclo permanente de (re) criação da existência (FREIRE, 1987). Poderia-se questionar o fato de que, na corrida de toras, há corte de uma árvore como a samaúma, árvore de tronco largo, frondosa, uma das mais altas da floresta tropical amazônica. Entretanto, carregar toras de samaúma para os índios da aldeia Kỳikatêjê, representa força, pois é comum os homens da comunidade relatarem e fazerem gestos para demonstrar o tamanho da tora 37 que carregam com orgulho de terem suportado o peso e ajudado seu grupo a chegar até o fim da “brincadeira”. Na tradição milenar indígena, rituais que utilizam corte de árvores da floresta parece não ter impactos relevantes no ecossistema, pois o corte não se dá em larga escala como em casos típicos de devastação da floresta amazônica, ligados à exploração capitalista que a mesma está submetida atualmente. Viveiros de Castro (1995, p.116) afirma:

Não há dúvida que os povos amazônicos encontraram, ao longo de séculos, estratégias de convivência com seu ambiente que se mostraram com valor adaptativo; que para tal desenvolveram um saber técnico sofisticado e infinitamente menos disruptivo das grandes regulações ecológicas da floresta que as técnicas brutalmente míopes utilizadas pela sociedade ocidental; que este saber deve ser estudado, difundido e valorizado urgentemente.

Imaginem, se o corte de árvores para a venda em busca do capital fosse uma cultura milenar?! O planeta Terra já estaria morto há muito tempo! Dessa forma, vejo que a corrida de toras, mesmo envolvendo o corte de árvores, é uma forma de Educação Ambiental, pois está presente em muitas culturas indígenas e nem por isso, atestam desmatamento relacionado a esse fazer. É importante ressaltar que entre os grupos Jê-Timbira , ora as corridas de tora são referidas como recreativas, ora são ligadas a situações cerimoniais e, noutras ocasiões, também podem estar presentes nos mitos (como neste caso estudado). Mesmo assim, em algumas aldeias desse grupo étnico, essas corridas também podem não estar ligadas ao mito (LÉVI-STRAUSS, 2004).

37 Chegam a pesar de 80 a 100kg. BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 101

Neste caso, dos rituais que celebram a colheita do milho-verde na aldeia dos índios Gavião Kỳikatêjê , as três toras feitas de samaúma, presentes na narrativa mitológica, identificam o rito como cerimonial, diferente das outras corridas de toras que se realizam cotidianamente na aldeia, em que são usadas toras de outras espécies da biodiversidade local. Assim como há relação de linguagem , que se estabelece entre as três toras e os grupos cerimoniais internos ao Tuti Krã , as pinturas, presentes no corpo dos sujeitos e nas máscaras, também são tomadas como linguagem que identifica os participantes da “brincadeira” em seus grupos. Sobre as pinturas, trato no próximo item.

3.1.4- Pinturas A distinção entre categorias coletivas internas ao Tuti Krã , se dá, dentre outras, numa prática pedagógica de decodificação (leitura) de imagens que são expressas nas pinturas do corpo e das máscaras (cabeça de peixe), pois “da parte do peixe, pinta só dum jeito, né, só dum jeito que é tipo um peixe, pinta de vários tipos de peixe. Agora, a turma do “arraia” é só dum jeito, é só daquele jeito” (Sr. Ropré ). Os ícones que apresentam a identificação de cada grupo cerimonial são saberes que estão presentes nas pinturas e confecção de adornos e objetos rituais que envolvem, intrinsecamente, o uso de elementos da biodiversidade local. Em conversa com Kr ỳt, um jovem participante da “brincadeira de peixe”, ele me explicou como é confeccionada a sua máscara. Desenhando- a, me mostrou a iconografia que o identifica no ritual como pertencente ao grupo dos “Peixe” (fig. 30).

Figura 30. Desenho de Krỳt sobre sua máscara (“cabeça de peixe”), usada no ritual Tuti Krã . Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2008) BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 102

Outros aspectos de identificação de grupos cerimoniais por imagens, pude perceber quando, apontando para desenhos de máscaras Tuti krã , Sr. Ropré me explicou como é o processo de acabamento na feitura da máscara do grupo “dos lontra”, o qual ele faz parte, dizendo: “agora aqui passa uma tira vermelha bem aqui, e aqui de preto”. Então eu perguntei se o vermelho faz com urucum e o preto com jenipapo, ele continua a explicação:

É. Aí duas tira preta no lado e uma vermelha no meio. Mas não é pequeno assim, é grandão, a pintura tem que ser desse jeito assim. Aí atrás tem outra pintura assim, mas nós não vamo pintar, nós vamos pintar de pena de papagaio. Aí fica bonita, porque fica bem verdinho (Sr. Ropré ).

Neste sentido, educa-se para a aquisição de valores estéticos que são atribuídos aos objetos rituais, a partir da experimentação de misturas e composições de cores com produtos fornecidos pela floresta. A cor vermelha, conseguida das sementes do urucum; a cor preta, propiciada pela semente e fruto de jenipapo e a cor verde das penas de papagaio. As penas verdes se contrastam às outra cores. Sr. Ropré me explicou essas características das “cabeça de peixe”, instruindo-me na construção de um desenho (Fig.31).

Figura 31. Desenho de máscara construído sob orientação de Sr. Ropré . Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2008). BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 103

Concluído o desenho, percebi que se cria uma iconografia nos referidos objetos rituais e que estes personificam valores cerimoniais, educando toda a comunidade da aldeia sobre propriedades distintas dos elementos da biodiversidade local. Educa-se sobre uma estética relacionada à ética do grupo e sobre a comunicação que identifica o objeto ritual dentro de um contexto cerimonial em que estão envolvidos outros ícones diversos. Kwainõ , uma jovem indígena da aldeia é conhecida por fazer belas pinturas corporais, pois tem boa coordenação motora e não erra a direção das linhas do desenho. Ela me instruiu na construção de desenhos (em diário de campo) e sobre os tipos de pinturas corporais que identificam os três grupos cerimoniais internos ao Tuti Krã , como se pode ver nas imagens das figuras 32, 33 e 34.

Figura 32. Desenho do tipo de pintura corporal do grupo “Arraia”, sob orientação de Kwainõ. Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).

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Figura 33. Desenho do tipo de pintura corporal do grupo “Lontra”, sob orientação de Kwainõ. Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).

Figura 34. Desenho do tipo de pintura corporal do grupo “Peixe”, sob orientação de Kwainõ. Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).

Percebo ainda que, ao atribuir valor estético expresso nas cores, extraídas de elementos da Biodiversidade Amazônica local, não se está referindo somente ao seu valor utilitário, mas esses elementos (jenipapo, urucum e penas de papagaio, por BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 105

exemplo) são compreendidos intrínsecos a valores cerimoniais e nisso reside sua eficácia simbólica (LÉVI-STRAUSS, 1975), assim, devem ser conservados. A preocupação com a conservação dos elementos da biodiversidade local, imbuídos de valores simbólicos para o grupo, é exemplificada pelo Sr. Ropré , quando diz: “[...] como tava falando, até jinipapo ta difícil de encontrar já, assim! Jinipapo, urucu,... aí hoje, não faz muito tempo a gente plantou, porque a gente precisa”. Esse dizer reflete a necessidade de considerar os elementos da biodiversidade local para além da percepção econômica, e sim por estarem inseridos na cultura material e imaterial dos povos amazônicos, ensejando uma etnopedagogia ambiental (FONSECA, 2009) que se faz no diálogo das relações com o “outro”, em práticas interativas de aprendizagem. Os processos educativos, discutidos neste item, estão presentes em toda a narrativa do mito de origem dos rituais associados à colheita do milho-verde, na aldeia Kỳikatêjê , não apenas nos relatos referentes ao Tuti Krã , mas, também, nas informações que obtive (falas, fotos e vivências) sobre o Hõprykrã que é outro ritual associado à referida colheita.

3.2 PROCESSOS EDUCATIVOS, ELEMENTOS DA BIODIVERSIDADE E SABERES DO HÕPR ỳKRÃ

Neste item, dou prosseguimento às discussões sobre os rituais de celebração da colheita do milho-verde.Portanto, apresento o Hõpr ỳkrã a partir dos adventos que se apresentaram durante minha vivência na aldeia, quando presenciei a realização mesmo. Trago informações de vários sujeitos que auxiliaram na caminhada desta pesquisa, além de fotografias do ritual em curso, das minhas percepções do campo adquiridas na vivência e os aprendizados construídos. O Hõpr ỳkrã já foi descrito na seção anterior quando da contação do mito de origem (por Sr. Ropré ), em que demarca situações de aprendizagens presentes na narrativa mitológica. Porém, agora, trago, além das informações mitológicas, o substrato dos fazeres e dizeres presenciados nas práticas ligadas ao referido rito, a forma com que o mesmo se apresentou durante minha estada na aldeia Kỳikatêjê . Embora tenha percebido que existem várias etapas de realização desse ritual, neste trabalho destaco as significativas para discutir seus fazeres e dizeres BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 106

integrados a biodiversidade local enquanto processos educativos: a “roça tradicional”, as “pinturas corporais”, o “jogo de petecas”, a “corrida de toras” e a “dança”.

3.2.1- A roça tradicional 38 Existem vários rituais de grupos Jê associados a colheita de vegetais. Alguns desses rituais se tornam quase impossíveis de serem presenciados por pesquisadores, pois geralmente não são celebrados todos os anos, isso acontece por que as lideranças das aldeias Jê escolhem qual ritual irão realizar, no ano em curso (MELATTI, 1978). No ano de 2009, período de realização da minha pesquisa de campo, quando a roça do milho-verde estava ponta para a colheita (boa para o alimento) a liderança da aldeia optou pela realização do Hõpr ỳkrã . Nesse sentido, a roça de milho codifica a noção de tempo para a construção do calendário ritual da estação chuvosa na aldeia Kỳikatêjê . O tempo de colheita é demarcado pelo estado do fruto – bom para comer. Além disso, estando na aldeia, percebi que várias pessoas relacionam o tempo de colheita do milho com o tempo chuvoso, fatores estes que demonstram saberes sobre a flora amazônica e sua relação com as estações climáticas do ciclo anual. Estive na aldeia em vários momentos de crescimento da roça do milho (fig. 35, 36 e 37) quando pude acompanhar e, portanto, aprender sobre essa relação.

38 Existem dois tipos de roça na aldeia: a roça mecanizada, feita por máquinas, em que a terra é preparada por tratores e a roça tradicional, a qual é preparada manualmente pelos homens da aldeia: derrubam as árvores do local, mantendo os limites da floresta no entorno, queimam e retiram os restos de troncos e abrem pequenos buracos na terra onde semeiam 2 ou 3 grãos de milho, das espigas chamadas “milho-macho” para a germinação de um milharal com grandes espigas. Geralmente na roça tradicional de milho, dos indígenas Kỳikatêjê , não se semeia os grãos em ordem de fileiras e entre o milho se semeia também outros frutos – cabaça rasteira, macaxeira, abóbora, batata-doce, cará, amendoim, etc. BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 107

Figura 35. Roça tradicional de milho em novembro de 2008. Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2008).

Figura 36. Roça tradicional de milho em janeiro de 2009 . Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).

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Figura 37. Roça tradicional de milho em fevereiro de 2009 . Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).

Várias pessoas da aldeia me disseram que no ano de 2008, a chuva estava demorando a chegar, mas que, quando a chuva chegasse a roça de milho logo estaria pronta e então começariam as “brincadeiras”. Foi possível eu perceber o avanço no crescimento da roça do mês de janeiro para fevereiro de 2009, quando chegou o período de chuvas, o que confirma o saber do povo da aldeia. Em relação ao tempo, é impressionante o constante uso de relógio, principalmente entre os mais velhos da aldeia, porém alguns não sabem informar as horas. Dessa forma, constato que, embora todo o processo de contato dos grupos Gavião com os kup ẽ não seja recente, mesmo assim, o tempo continua sendo determinado pelo saber que se tem sobre as estações climáticas e pelo crescimento das roças, sendo que, o relógio, para alguns da aldeia, é apenas um enfeite kĩnĩnĩre (bonito). A aprendizagem do tempo pela roça tradicional se constitui por interação e observação em um processo educativo que se dá na vivência, pois na aldeia ninguém ensina sobre o tempo. Esse saber é aprendido na vida, na relação que as pessoas estabelecem com o mundo, em situações coletivas e individuais. O saber BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 109

sobre o tempo é propiciado pelo saber ambiental, a partir da complexidade. Sobre isso, Leff (2003, p. 45) afirma:

É neste sentido que o saber ambiental é entrecruzamento de tempos; dos tempos cósmicos, físicos e biológicos, mas também dos temos que configuram as concepções e teorias sobre o mundo, e as cosmovisões das diversas culturas através da história.

Esse saber do tempo e, portanto, do ambiente, compreende aprender sobre tolerância, no sentido de aprender a esperar as possibilidades do “outro”. Esse “outro” é a roça. Não se pode consumir o alimento que nela é produzido sem que ela esteja pronta, sem que o fruto esteja bom, como afirma Papaiti : “Tem que esperar até ficar grande o pé, até dá o alimento bom pra nós fazer petecas e pra nós comer”. Papaiti me explicou que, primeiro o alimento tem que ficar bom, o que implica o crescimento do vegetal e seu amadurecimento, depois disso, fazem petecas para o ritual e só após se pode comer dos alimentos que estão prontos na roça tradicional. Fui à referida roça na companhia de Papaiti , onde verifiquei, além do milho, várias espécies típicas da região: abóbora, macaxeira, mandioca, melancia, cuia rasteira, amendoim, batata doce, entre outros que talvez tenham passado despercebidos pela minha inexperiência com a mata. De lá trouxemos alguns frutos (fig.38)

Figura 38. Coleta de frutos da roça tradicional . Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).

Além dos saberes sobre o tempo, a relação com a roça propicia saberes sobre os vegetais: sua biologia, formas de crescimento, tempo de colheita, rotação de cultura, entre outros. Neste aspecto, chamo a atenção para a produção de BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 110

petecas em que é necessário palha do milho-verde da roça tradicional, mas não de qualquer espiga, como explica Papaiti :

O milho só tá bom quando tá assim [mostrou-me os fiapos esbranquiçados das espigas de milho]. Os veio sabe que ta bom, mas os novo vem e pega tudo seco. As muié que vem buscar pra fazer berarubu de milho, fica gostoso, rapá, fica forte pra buscar cupu no mato, caça e correr tora!

Na fala, Papaiti enfatiza e valoriza a experiência dos mais velhos da aldeia. Além disso, ele me ensina, mostra-me as características da espiga boa para a colheita, para que eu identifique o bom fruto. Entretanto, ainda assim, senti dificuldades de compreender os procedimentos de colheita. Parece até que os “fiapos” do milho me enganavam! Depois de ter colhido cerca de quinze espigas, Papaiti olhou minhas espigas colhidas e me reprovou, pois algumas eu colhi antes do tempo e, ainda me disse que eu não sabia fazer aquilo, o que demonstra uma prática de avaliação do processo educativo. Nesse sentido, a educabilidade exige apreensão da realidade numa prática permanente de se sentir em constante (re) criação, como explica Freire (1996, p. 28): O melhor ponto de partida para estas reflexões é a incompletude do ser humano de que se tornou consciente. Como vimos, aí radica a nossa educabilidade bem como a nossa inserção num permanente movimento de busca em que, curiosos e indagadores, não apenas nos damos conta das coisas, mas, também, delas podemos ter um conhecimento cabal.

Apenas a consciência sobre a incompletude do ser é capaz de propiciar esses modos de educar e se educar no ato de (re) criação das realidades. Então, experimentei um processo continuo de aprendizagens quando Papaiti se fez meu “professor” ( hapên Kate) e passou a me chamar para ver as espigas que ele coletava, numa prática de aprendizagem que se deu por interação e observação. Ao vê-las, percebi que ele tinha um jeito diferente, ele abria um pouco a palha da espiga de milho, antes de arrancar do “pé” e eu as arrancava sem abri-las, sem saber se estavam boas, arrancando-as antes do tempo necessário para a colheita. Mais uma vez, observei o saber da tolerância com o tempo do “outro” nos processos educativos de “estar-junto”, na (com) vivência das pessoas no Espaço- ambiente-natureza, possíveis de perceber nos fazeres e dizeres indígenas. O ato de não arrancar o fruto sem antes saber se realmente estava bom para a colheita, BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 111

configura uma educação que coaduna com o “aprender a complexidade ambiental”, entendido como “apreender um saber ser com a ‘outridade’”. (LEFF, 2003, p. 61). Como se vê, esses processos educativos integrados a biodiversidade local estão presentes nos fazeres e dizeres relacionados ao Hõpr ỳkrã e se configura em Educação da Complexidade Ambiental. Percebo esses processos também nas pinturas corporais, o que mostro a seguir.

3.2.2 Pinturas Corporais Compreendo as pinturas corporais feitas para a realização do ritual Hõpr ỳkrã enquanto processos educativos que se dão na decodificação de imagens, essa compreensão se estende às pinturas referidas no item 3.1.4, deste trabalho. Porém, no ritual Hõpr ỳkrã os tipos de pinturas identificam os dois grupos internos ao mesmo , os “Gavião” e os “Arraia”. Kwainõ também me ensinou sobre esses outros tipos de pintura e me instruiu na construção dos desenhos (fig.39 e 40).

Figura 39. Desenho do tipo de pintura corporal do grupo “Arara”, sob orientação de Kwainõ. Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).

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Figura 40. Desenho do tipo de pintura corporal do grupo “Gavião”, sob orientação de Kwainõ. Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).

Enquanto Kwainõ me ensinava sobre os desenhos, perguntei a ela como havia aprendido a fazer as pinturas corporais. Disse-me que aprendeu com uma tia, irmã de sua mãe: “Desde que eu era bem piquena, ela pintava o marido, os filho, os subrinho e até eu ela pintava. Aí eu fui sabendo como era as pintura.” A partir do relato dessa jovem, reconhecida na aldeia por suas belas pinturas corporais, entendi que ela estabelece uma relação com o saber que é passado de geração para geração e que, sobre essa prática, ela recebeu o exemplo de sua tia. A corporeidade do exemplo é imprescindível no ato de educar. Nesse sentido, Kwainõ foi testemunha das práticas de sua tia, durante anos de sua infância e juventude, em que observava, interagia e decodificava as imagens pintadas no corpo, reconhecendo o que cada pintura representava nos contextos rituais e, portanto, aprendendo sobre as mesmas, pois a prática testemunhal re-diz o pensamento que se quer imprimir com eficácia (FREIRE, 1996). Ainda durante minha vivência na aldeia, percebi que Kwainõ produz as pinturas corporais de seu marido, filho, sobrinhos, o que demonstra a eficácia da prática educativa, de caráter não intencional, empregada por sua tia em processos de vivência intergeracionais. BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 113

Durante o Hõpr ỳkrã , as pinturas corporais foram reproduzidas no corpo de quase todas as pessoas da comunidade, de todas as faixas etárias (fig.41, 42 e 43).

Figura 41. Criança tendo seu corpo pintado por sua avó. Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).

Figura 42.Um ancião e um jovem da aldeia com seus corpos pintados dos tipos “Arara” e “Peixe”, respectivamente . Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).

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Figura 43. Homem da liderança da aldeia e jovens, com pinturas corporais . Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).

A reprodução das imagens dos tipos de pinturas corporais, feitos com jenipapo e urucum, por todas as gerações da aldeia, reafirma a prática educativa testemunhal (FREIRE, 1996) e todos que são índios na comunidade K ỳikatêjê reafirmam a sua identificação indígena com o próprio corpo. Esses fazeres não tratam apenas de apreensão de leitura de imagens por decodificação e em situações coletivas e individuais. Implica aprender a complexidade ambiental, isso “contribui para um processo de construção coletiva do saber, no qual cada um aprende de seu particular” (LEFF, 2003, p. 61). Esse ser, em permanente construção, “[...] diverso por ‘natureza’, re-significa e re-codifica o saber ambiental para dar-lhe sua marca pessoal, inscrever seu estilo cultural e reconfigura identidades coletivas” (Idem). Nesse sentido, as pinturas corporais educam, pois são processos educativos que tratam sobre o estilo cultural e a construção das identidades numa perspectiva geracional, que se dá na vivência das pessoas. Isso é possível perceber quando os sujeitos, de várias faixas etárias, BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 115

gêneros e em seus papeis sociais, as usam em diversos contextos da vida indígena, no cotidiano e em cerimoniais, inclusive no “jogo de petecas” (Hõpr ỳkrã).

3.2.3 Jogo de petecas A Peteca é uma invenção indígena, referida por Cascudo (2001; 2002) nos escritos de viajantes do primeiro período de colonização dessas terras que hoje chamamos Brasil, “pequena bola achatada, revestida com palha de milho ou outro material, que se joga para o alto, cuidando para não cair. Pode ser jogada por uma, duas pessoas ou uma roda” (Idem, 2001). Na aldeia Kỳikatêjê , o jogo de petecas se dá em uma roda de homens. Meu primeiro contato com informações sobre as “petecas” se deu por meio da contação da narrativa mitológica, em que Sr. Ropré assim se referiu:

Aí ele disse: - Agora vocês tiram tudinho a palha [de milho]. Aí eles foram, tiraram a palha tudinho, deixou... Aí eles perguntaram: E agora!? Ele disse: - Agora vocês tem que fazer peteca.

Como se vê a peteca é uma aprendizagem do mito de origem. O “homem” ensina a fazer brincadeiras a fim de que o povo não fique triste, como referi anteriormente. Além disso, esse “homem” também ensina fazer as petecas: demonstrou como fazer, com o que fazer e ainda explicou sobre as técnicas e sua finalidade: Eles falaram, mas como assim? Aí ele pegou o imbigo, né, da palha de milho, aí fez uma peteca, né. Aí deixou. Aí ensinou eles a fazer, aí terminou. Aí eles falou: - E agora?! Agora vocês vão pegar cuia [que naquele tempo não tinha prato né], joga água dentro e pega o peteca lá dentro, pra molhar, que quando molha fica pesado. Aí pegaram cuia com água, aí pegaram as peteca e jogaram as peteca lá dentro, aí pegaram e pintaram tudinho com urucu. Aí eles perguntaram, e agora? Ele respondeu, e agora nós vamo chamar os home tudo pro campo, né, vamo tudinho pro campo! Fica ao redor lá, fica esperando lá...

É interessante perceber que muitos aspectos relatados nesses dizeres do mito de origem dos rituais estudados coadunam com os fazeres que presenciei, no contexto do Hõpr ỳkrã, o que se pode perceber em imagens que expressam esses fazeres (fig. 44).

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Figura 44. Ancião confeccionando petecas de palha de milho-verde e crianças observando . Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).

Vale ressaltar que nesta imagem estão presentes dois fazeres do Hõpr ỳkrã, a confecção das petecas, pelo ancião sentado à esquerda, e a pintura das petecas, pela mulher sentada à direita. A imagem expressa um processo educativo latente que se dá numa prática testemunhal (FREIRE, 1996), pois a presença das crianças no ambiente dos fazeres e dizeres do ritual educa para o aprendizado de tais práticas. Nestas, o pensamento mitológico está presente e imprime, nas várias gerações, os saberes da cultura, do ambiente, e, portanto, da “natureza” enquanto totalidade, fatores que me levam à compreensão de processos educativos interdimensionais. Esse processo educativo é vivenciado em situação coletiva, porém, é também uma vivência individual, visto que as crianças observam, não confeccionam, mas testemunham da confecção, em que as palavras do mito são corporeificadas pelo exemplo. Nesse contexto, todos aprendem, os que fazem e os que observam, visto que todos estabelecem, individualmente, uma relação de apreensão da realidade (Idem). BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 117

A prática educativa testemunhal não se encontra apenas na confecção de petecas, mas também durante o jogo, cujas regras foram aprendidas por meio do mito, como afirma Sr. Ropré no relato:

Aí ele disse assim, você vai jogar a peteca, pro pessoal. Ele disse: - Eu vou ensinar aqui pra vocês ficar sabendo. Aí um do “arara” veio e tava jogando peteca, né. Aí ele veio e pegou, aí quando ele pega, ele começa a jogar assim, porque isso é uma disputa também, né, de peteca. Aí fica jogando todo mundo, até cair no chão, porque são muitas peteca que eles faz.

Percebe-se que, a noção mitológica define o tipo de jogo, que, nesse caso, se trata de disputa. Existem vários tipos de jogo, como é possível observar nos termos como “jogo de luz”, “jogo de pratos” ou o “jogar das ondas”, “em que há um constante ir e vir, ou seja, um movimento que não está ligado a uma finalidade ultima” (GADAMER, 1985, p. 38). O jogo é uma atividade elementar da vida. É difícil pensar a cultura humana sem o elemento “jogo”, pois neste, se expressa a capacidade dos homens e mulheres criarem agrupamentos, que podem ser de pessoas, de peças, de luzes, de pratos, de cartas, etc. O objetivo do jogo é o seu movimento, podendo se dar consciente ou inconscientemente, como afirma Gadamer (1985). Nesse sentido, jogar exige necessariamente uma relação com o “outro”, seja este espectador, jogador, adversário, peças de tabuleiro, petecas, pessoas, etc.

Tal definição do movimento do jogo significa ao mesmo tempo que o jogar exige sempre aquele que vai jogar junto. Mesmo o espectador que olha, digamos, uma criança que joga para lá e para cá a bola, não escapa a isso. Quando ele realmente “vai junto” não se trata de outra coisa senão da participation, da participação interior nesse movimento que se repete.[...] Ninguém pode deixar de jogar junto (Idem, 1985: 40).

O “jogar junto” é um fazer comunicativo entre aqueles que jogam, aqueles que observam e os elementos materiais e imateriais que constituem a “brincadeira de petecas”. As crianças, não apenas testemunham da confecção dos objetos, mas também do jogar de petecas (fig. 45).

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Figura 45. Homem jogando peteca, o percurso do movimento de jogo e crianças acompanhando . Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).

“O espectador é notadamente mais que um mero observador que vê o que se passa diante de si; ele é, como alguém que participa do jogo, uma parte dele” (GADAMER, 1985, p. 40). Dessa forma, o jogo é uma forma de comunicação e expressão compartilhada pela “outridade”, em que as crianças aprendem jogar petecas por meio do processo educativo da vivência, que se dá no “Estar-junto”. Perguntei ao Sr. Ropré , por ser considerado o melhor jogador de petecas da aldeia, como ele aprendeu a jogar petecas, e ele me respondeu dizendo que sempre via os homens mais velhos jogarem e quando as petecas caíam no chão ele corria para ajuntá-las e com elas ficava brincando, até que se tornou adulto e começou a jogar entre os homens. Essa vivência do Sr. Ropré parece se atualizar nos momentos da “brincadeira de petecas” que acontece atualmente, como expressa o movimento visualizado na figura 45 (acima). Um dos momentos mais marcantes desta pesquisa se deu em conversa com Papaiti , um dos anciãos que confecciona petecas para o Hõpr ỳkrã, quando perguntei por que ele participa do Hõpr ỳkrã. Na sua limitação de não falar bem na minha língua e, compreendendo a minha limitação de não falar em Jê , ele silenciou, olhou ao redor, me apontou a copa de uma árvore bem alta e deu um grito semelhante a BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 119

um canto de arara, depois bateu no peito apontando para si e dizendo: “Arara, é arara!”. Com essa experiência, entendi, mais do que nunca, que as sociedades indígenas se afirmam como parte da “natureza”. As sociedades modernas tendem afirmar que “índio é bicho”, porém, não entendem a relação de reciprocidade que, nesse contexto, os homens estabelecem com os elementos da biodiversidade local.

Podemos dizer que as culturas indígenas tendem a ver a natureza como ela mesma parte da sociedade, ou antes, como mergulhada, tanto quanto a sociedade humana, em um meio universalmente social – o que não é menos verdade (VIVEIROS DE CASTRO, 1995, p. 117).

Papaiti havia me dito que aprendera a fazer petecas com seu pai. Porém, num outro momento, perguntei novamente sobre como ele aprendeu a fazer as petecas com palha do milho e Papaiti disse que ficava olhando seu pai, mas depois enfatizou que aprendeu sozinho – “Só eu mermu”! Essas informações demonstram a eficácia do jogo de petecas enquanto processo educativo que se dá coletivamente e individualmente na cultura indígena, numa relação interdimensional de aprendizagens, inclusive geracionais. Após o jogo de petecas, houve socialização de alimento, quando os milhos foram assados. Isso se deu num ambiente de alegria e descontração entre as várias gerações da aldeia (fig. 46 e 47), fato que reafirma a justificativa do “homem que ensina”, no mito, de que Sr. Ropré se refere:

Aí foi e falou assim: Pois olha, eu to falando, vocês ficam parado, não tem uma alegria pra vocês... [porque isso é verdade, se fica parado não tem alegria, não sabe o que que vai fazer, não tem animação] ...então pra isso que eu to ensinando pra vocês fazer a brincadeira pra correr, brincar, não ficar o pessoal parado.

Figura 46. Jovens assando espigas de milho . Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009). BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 120

Figura 47. Mulheres, homens, velhos e jovens assando espigas de milho . Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).

Isso demonstra que o mito é tão atual quanto à vivência em curso e que os fazeres e dizeres imbricados entre mito e rito, se fazem presentes, também, no jogo de petecas, o que confirma que a cultura, enquanto sistema simbólico, é eminentemente pedagógica (FREIRE, 2004). Da mesma forma, é possível perceber, também, na corrida de toras, referida anteriormente nos processos educativos do Tuti Krã e presenciada no contexto do Hõprykrã , conforme mostro a seguir.

3.2.4- Corrida de Toras No contexto dos fazeres e dizeres relacionados ao Hõpr ỳkrã, a corrida de toras se realiza com duas toras que são “batizadas” com nomes próprios das ligações matrilineares, especificadas para esse ritual como “Arara” e “Gavião”. Assim, como no contexto da corrida de toras do Tuti Krã , essa nomeação dos objetos simbólicos (toras) pelas ligações matrilineares, propicia relações intrínsecas entre essa forma de organização social e os elementos da biodiversidade, fato que mantém relação com o mito de origem, como se pode perceber no relato a seguir:

Aí quando amanheceu o dia, né, que deu umas seis, não, umas cinco horas da madrugada... aí o pessoal foram todo mundo pra tora, saíram umas cinco da madrugada, amanheceram o dia na tora. Aí “arara” e “gavião”, todo mundo foram... Aí pegaram a tora e veio correndo até... Aí ele falou assim olha isso aqui é uma disputa, tem que correr mermu, quem correr tem mais fôlego chega primeiro (Sr. Ropré ).

O relato mostra a corrida de toras, no Hõpr ỳkrã, enquanto “jogo”, tendo em vista a definição de jogo trabalhada na categoria “jogo de petecas” deste texto ( GADAMER, 1985) e, além disso, afirma a relação entre os grupos de “jogadores” BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 121

que disputam e os grupos internos ao ritual, os quais recebem o nome de “animais” presentes na biodiversidade amazônica. A disputa, de fato, se dá na realização da corrida de toras e é preciso fôlego para chegar até a finalidade ultima: derrubar a tora ao lado do acampamento dos velhos ou no centro da aldeia. Discuto a corrida de toras enquanto processo educativo, visto que, nesta se dá a apreensão de significados em situações coletivas, inclusive na preparação das toras. A preparação dessa corrida empreende, além das pinturas corporais de seus participantes, a preparação do tronco da árvore, o que é feito pelo “cortador de tora” que é Prekrut . Durante minha vivência na aldeia, tive uma conversa com Prekrut , nesta elegi alguns pontos de meu interesse para a pesquisa, em que perguntei como é feita a escolha da árvore para o corte e ele explicou: “Tem que conhecer pela folha da samaúma. Quando os velho cortavam eu vi com meu olho e aprendi que é samaúma”. Também perguntei sobre como se prepara as toras e Prekrut respondeu: “Traça com machado em dois [para brincadeira de “Arara” e “Gavião”]. Aí depois vai cavar pra aprontar. Cava com machado, tudo em dois, tudo igual, depois pega urucu pra pintá”. Ainda quis saber por que se pintam as toras com urucum e Prekrut exclamou sorrindo: “Porque branco fica feio, com urucu fica tudo bunito!” Depois continuou me explicando:

Eu aprendi tudo isso que to falando com as pessoa mais velho. Eu procurei ficar olhando os mais velho prepara a tora. Ninguém me chamou pra aprender, eu que ficava olhando”. [...] Eu gosto de corta tora, de fazer tora, porque as pessoa querem saber como corta.

É possível perceber nos fazeres e dizeres do “cortador de tora”, vários processos educativos presentes. Os saberes sobre “botânica” aparecem em sua prática porque foram construídos na vivência com as gerações da aldeia, em que as aprendizagens se fizeram por meio de observação. Prekrut aprendeu sobre reconhecer as árvores da floresta, sobre a técnica de preparo das toras e sobre noções de estética relacionadas ao uso de cor, assim como Kwainõ aprendeu sobre pinturas corporais, por uma prática educativa testemunhal (FREIRE, 1996). É interessante ver que Prekrut tem relação de afeto com o saber construído, quando exibe o fato de que ninguém o chamou para aprender. Em algum momento de nossa conversa ele chega a dizer que aprendeu sozinho, o que o sujeito conclui ao entender que ninguém o impôs o saber. Nesse sentido se constrói o BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 122

protagonismo do sujeito que aprende, o qual se sente autor de seu próprio conhecimento na corrida de toras enquanto processo educativo. Vejo claramente o que Freire (2004) diz sobre a Educação ser um ato político. O papel de educadores, que os velhos da aldeia representam e representaram na vida de Prekrut , é interdimensional visto que se faz político, artista e técnico, construído social, biológico e culturalmente. A política desses educadores é feita com um discurso intrínseco aos fazeres e dizeres da/na vida. “É interessante, há pessoas em quem a identidade entre a prática e o discurso é tal que elas são um discurso” (Idem, 2004, p. 35). Nesse aspecto, não me refiro ao processo educativo como exercício de poder, mas ao papel social que o sujeito apresenta em seu ambiente, em sua relação com / no mundo, se (re) faz processo educativo. Dessa forma, o cortador de toras se sente construtor de seu próprio saber, por que sua forma de saber se dá na relação com /no mundo e essa é uma forma de relação com o saber, um saber prático e processual que é uma forma indígena específica de relação com o ambiente de vivência, considerando o que Charlot (2000, p. 60) diz: “o saber é relação”. Essa construção do saber se dá por meio de processos educativos vivenciados no “estar-junto”. Trata-se de uma realidade relacional em que se dá o saber propicia interação com/no “espaço-ambiente-natureza”. Neste, a vivência é um espaço de diálogo, em que se (re)cria a existência de maneira que os sujeitos passam a se sentir transformadores de realidades (FREIRE, 1987). Assim como em situações relacionadas à corrida de toras, na dança do Hõpr ỳkrã também há relação com o saber em aprendizagens que se dão nesses processos educativos, do que trato a seguir.

3.2.5 Dança Nos fazeres e dizeres relacionados à dança, está presente o canto, desde o relato da narrativa mitológica:

Ele chamou as pessoas e disse assim: - Olha, agora de tarde a gente vai dançar agora! Aí ele mermu tinha feito maracá, né. Com uma cabaça deste tamanho ele tinha feito. Aí foi né,... aí chamou o cantor, né... aí o cantor ficou cantando né. Aí terminou (Sr. Ropré ).

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Presenciei uma tarde de canto e dança no centro da aldeia, durante a realização do Hõpr ỳkrã. Nessa tarde, os homens mais velhos puxavam uma cantoria em língua Jê e dançavam com passos miúdos. Observei que o mito, a todo momento, se atualizava nos fazeres e dizeres do ritual. Os jovens, as mulheres e as crianças acompanhavam os homens, que, por vezes davam gritos que imitavam sons de pássaros – “Arara” e “Gavião”. Sujeitos mais jovens afirmam que tem que dançar por que faz parte da vida do índio, reafirma a forma herdada pelas gerações. O saber, enquanto relação, se dá de forma prática e interativa, na vivência e ainda, no “estar-junto” (fig. 48).

Figura 48. Homens, jovens, mulheres e crianças na dança do Hõprykrã. Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).

Nessa vivência, o saber se dá em processos educativos de repetição de gestos, de observação e identificação de cores, formas, sons, sorrisos, afetos, ligações familiares e, ainda, de reciprocidade com os elementos biosociodiversos do ambiente amazônico, quando a educação se dá solta entre os homens e na vida (BRANDÃO, 2007).

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3.3 PRÁTICAS DE APRENDIZAGEM EM PROCESSOS EDUCATIVOS SOLTOS NA VIDA INDÍGENA

O mapeamento de processos educativos revelados nos fazeres e dizeres relacionados à celebração de colheita do milho-verde, de certa forma, atualizam a cultura indígena e sua relação com a biodiversidade amazônica. Além de que, possibilitam perceber práticas de aprendizagem diversas, que não se fazem em sistemas curriculares de “Educação” e sim em sistemas simbólicos da cultura, em que a Educação “não existe só para difundir o saber, mas para reforçar o existir” (BRANDÃO, 2007, p. 106). Como se refere Brandão (2007), as situações entre pessoas e entre pessoas e as “coisas”, em que se identificam regras, símbolos e valores do grupo social, estão ali esparramadas pela vida contendo sua dimensão pedagógica. Nesse sentido, o conhecimento e mapeamento dos processos educativos presentes na vida indígena, propícia à identificação de várias práticas de aprendizagem soltas na cultura, coexistindo com elementos da biodiversidade amazônica, como demonstrado no quadro a seguir:

Quadro 4. Processos educativos, práticas de aprendizagem e elementos da Biodiversidade envolvidos Processos Educativos Práticas de Aprendizagem Elementos da Biodiversidade envolvidos Mito de origem - Observação; Milho; - “Estar-junto” – diálogo; Batata; - Argumentação; Demonstração; Mandioca; - Explicação; Abóbora; - Contação de história; Bacaba; - Vivência. Tucum; Confecção das “cabeça de peixe” - Interação; Observação; Papagaio; - Experimentação; Tatajuba; - Vivência. Ipê; Corrida de toras - Interação; Samaúma; - Observação; Raia; - “Estar-junto” – diálogo; Peixe; - Vivência. Lontra; Pinturas - Decodificação (leitura) de Arara; imagens; Gavião; - Interação; Urucum; - Observação; Jenipapo; - Vivência. Amendoim; A roça tradicional - Observação; Batata-doce; - Interação; Melancia; - “Estar-junto” – diálogo; Cuia-rasteira – cabaça; - Vivência. Homem; Jogo de petecas - Observação; Interação;- Vivência. Dança - “Estar-junto” – diálogo; Interação; Repetição; -Observação; - Vivência.

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Diante do exposto, é possível afirmar que etapas dos rituais Tuti Krã e Hõpr ỳkrã, próprios da cultura indígena Timbira , se configuram como processos educativos que se dão com diversas práticas de aprendizagem mostradas na segunda coluna do quadro 4. Dessa forma, a cultura, em seus sistemas simbólicos (GEERTZ, 2007), que envolvem várias dimensões da vida, é eminentemente pedagógica. Os processos educativos próprios da cultura e, portanto, da vida indígena Gavião Kỳikatêjê estão presentes por toda parte na aldeia (fig. 49), “esparramadas” na vivência dos entes. BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 126

Figura 49. Mapa dos processos educativos da / na aldeia Gavião Kỳikatêjê. Fonte. Giza Bandeira. Acervo pessoal (2009).

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No desenho do mapa da aldeia (fig. 49), criado por Jõpeyre , o mito de origem está em toda parte, permeando os fazeres e dizeres do povo. A confecção das “cabeça de peixe” está presente no acampamento dos velhos, a corrida de toras é localizada numa trilha que “corta” a mata; as pinturas estão presentes nas casas dos segmentos domésticos, e também no acampamento dos velhos; o jogo de petecas acontece também próximo ao acampamento dos velhos e as danças no centro da aldeia circular. A roça tradicional é feita no meio da mata e por trás do acampamento dos velhos, próximo a aldeia circular. Nesses processos, é imprescindível a presença dos elementos da biodiversidade amazônica, pois são necessários à vida indígena e contribuem para a (re) afirmação da identificação cultural e da forma Jê-Timbira de vivência, fatos que revelam uma vivência em educação (BANDEIRA, 2008). Como é possível perceber, os processos educativos estão em todos os lugares de vivência indígena com / no “espaço-ambiente-natureza”, realizados a todo momento em situações coletivas e individuais de apreensão da realidade, que é construída histórico, social, biológico e culturalmente, portanto, em contextos interdimensionais.

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CONSIDERAÇÕES QUE NÃO PRETENDEM SER FINAIS

Os processos de concepção, organização e realização dos rituais associados à colheita do milho-verde se inserem nas tramas de relações interdimensionais da vivência indígena do povo Gavião Kỳikatêjê . Os atos pedagógicos ali encerrados ensejam propriedades simbólicas que tomam por base seus referenciais culturais do universo material e imaterial. Os gestos técnicos adotados nesses processos rituais, que são do ciclo anual, consideram tais referenciais desde as etapas de preparação até à execução da celebração de colheita do milho-verde, realizados com o Tuti Krã ou com o Hõprykrã, a cada ano e atualizados nos fazeres e dizeres que perpassam de geração em geração. Nesses fazeres e dizeres é possível perceber potencialidade educativa, enquanto prática de aprendizagens que ensina as gerações da referida aldeia sobre a forma de apropriação do “espaço-ambiente-natureza” amazônico, como também pela e para a construção da pessoa indígena Jê-Timbira . A atualização dessas relações de apropriação do espaço se dá em ações culturais possíveis de serem discutidas enquanto processos educativos, haja vista as possibilidades de educabilidade que permite aos sujeitos. Os processos educativos identificados possibilitam a afirmação da pessoa indígena na atualização de ações específicas e baseadas na forma de pensar do povo, pois decodifica seu universo cosmológico histórico, social e cultural. Nesse sentido, as ações se caracterizam como processos educativos: “o mito de origem”, “confecção das cabeça de peixe”, “corrida de toras”, “pinturas”, “a roça tradicional”, “pinturas corporais”, “o jogo de petecas” e a “dança”. Estas se dão nas mais variadas práticas de educar coletivas e / ou individuais de argumentação, demonstração, explicação, interação, observação, decodificação de imagens, contação de histórias, etc, que são alguns do processos de educar identificados no estudo, não significando que não existam outros possíveis de ser mapeados. Para o indígena, não há educabilidade legítima (por ausência de instituição) nessas ações, pois aprenderam, ao longo do processo de contato com os kup ẽ, que “Educação” se dá na escola e / ou na Igreja. Porém, atestam relação com o saber, o que é possível compreender em vários fazeres e dizeres, e inclusive pelo fato de que possuem uma equivalente linguística para o termo “professor”: hapên katê (alguém BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 129

que conhece sobre determinada coisa ou é especialista nisso), designado a pessoas que detém um determinado saber. A percepção do saber, nesse contexto, levou-me a perceber que existe um aprender e isso se dá numa forma de fazer-aprender, em que residem os processos educativos próprios das práticas milenares indígenas e têm sido reinventados por intermédio de uma educação que se dá num ambiente não institucionalizado de ensino, um ambiente chamado “vivência dos entes”. No ambiente da vivência, a ação de educar deve ser compartilhada, por meio de uma educação do diálogo e permeada por aprendizagens interdimensionais, visto que ao aprender sobre práticas da vida indígena a pessoa apreende saberes de múltiplas dimensões do vivido, a saber: biológica, social, cultural, política, etc. Nesse sentido, o “espaço-ambiente-natureza”, compreendido enquanto totalidade auxilia a pensar a biosociodiversidade amazônica nesses fazeres e dizeres que ensejam educação entre os povos ditos “da floresta”. O saber indígena sobre o meio biosociológico apresenta integração simbólica de coexistência entre os entes materiais e imateriais no ambiente natural-cultural, em que os modos de conhecer o mundo implicam modos de atuar nele, revelando processos educativos, imbricados e necessários ao sistema cultural, capazes de produzir, conseqüentemente, sustentabilidade ao espaço habitado por meio de sua relação com o cosmo do grupo. Na interação simbólica, em que coexistem os entes, se dá a “outridade” para pensar a relação do ser, do saber e do conhecer o mundo nas múltiplas formas de apreensão da realidade, nisso reside a educabilidade do ser – no “Estar-junto”, no relacionar-se com o que há no mundo e com o que há em si. Tais processos educativos imbricados ao sistema cultural, os quais existem como forma de educação compartilhada, auxiliam na permanente construção do corpo social Timbira, implicando num modo de conhecer o mundo, o qual é herdado pela tradição 39 . Vale ressaltar que a tradição se atualiza com vista na (re)criação do sujeito inacabado e nisso também reside a educabilidade do ser indígena, que se dá na (com) vivência.

39 Entretanto, a tradição não pode ser entendida como algo estático, mas dinâmico no sentido de se (re) construir para garantir os resultados simbólicos do sistema cultural, mesmo quando os meios já não existam ou os objetos sofram modificações. A cultura “[...] não lida com coisas, mas com significados” (BOSI, 1987, p. 47). BANDEIRA G. C. M. Rituais Associados à Colheita de Milho-verde na Aldeia dos Índios Gavião Kỳikatêjê 130

As estratégias de convivência indígena com o ambiente em que vive, compreende um devir de coexistência, de tal modo, que é possível dizer que o índio existe ao mesmo tempo que existe o seu ambiente (a floresta, o cerrado, o campo, etc). Na Amazônia, a relação entre os povos indígenas e a floresta é mediada pelas formas de organização das múltiplas dimensões do vivido em relações de aprendizagens com e sobre elementos do social, do cosmológico, do cultural e, também, da biodiversidade local. Práticas de aprendizagens decorrentes de processos educativos com e na “Natureza”, em que residem sentidos e significados para a vida dos diversos povos, podem ser consideradas ações de Etnopedagogia Ambiental, pois “circunscreve saberes e práticas significados na/com a natureza, compreendida na sua diversidade enquanto totalidade” (FONSECA, 2009). Essas práticas que decodificam outra forma de fazer-aprender podem até ser incorporadas por outros ambientes de educação (escolar ou não-escolar) como uma “nova” perspectiva educativa, ou seja, se os ciclos naturais da biodiversidade e os fazeres dizeres a estes associados, têm possibilitado educar para a cultura e para o ambiente na aldeia Gavião Kỳikatê-Jê , então, percebo: podem se constituir numa referência para pensar ações de Educação Ambiental de amplo alcance, favorecendo a construção de saberes e valores diversos e significativos à vida.

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. Acesso em 26 de março de 2008.

. Acesso em 03 de outubro de 2008.

. Acesso em 03 de outubro de 2008. . Acesso em: 03 de outubro de 2008.

Acesso em 05 de outubro de 2008.

ANEXO

APÊNDICE 1- Carta de apresentação da Pesquisa à Liderança da aldeia

APÊNDICE 2- Termo de Consentimento livre e esclarecido

APÊNDICE 3- ROTEIRO DE ENTREVISTA SEMI-ESTRUTURADA *

1- Como você aprendeu?

2- Com quem você aprendeu?

3- Por que você realiza essa atividade?

4- Quais materiais são utilizados para a realização dessa atividade?

5- O que os elementos (visuais, sonoros, materiais) significam?

* Após identificar fazeres, que ensejam processos educativos presentes nos rituais associados a Colheita do Milho-verde, elaborei um breve roteiro para coletar dados significativos à percepção de aprendizagens oriundas dos referidos fazeres: brincadeira de petecas, pinturas corporais, corrida de tora, dança. Dessa forma, esse roteiro foi utilizado em conversas com sujeitos conhecedores e participantes de tais fazeres.

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