4 VISÕES SOBRE A MASCULINIDADE NA HQ – OS LIVROS DA MAGIA, DE

Dr. Fábio Caim

Faculdade Cásper Líbero – São Paulo/Brasil Faculdades de Campinas, FACAMP – Campinas/Brasil

RESUMO

O objetivo deste artigo é entender de que forma a representação das 4 personagens masculinas – , Mister Io (Mistério), Doutor Oculto e Vingador Fantasma – ao interagirem com a personagem adolescente – Timothy Hunter –, na HQ “Os Livros da Magia”, conformam jeitos de ser masculino, introduzindo trilhas de possíveis singularidades que se estendem pelo passado, presente, futuro e outras dimensões, como se a masculinidade fosse um jogo construtivo de diferentes posições que se completam e testam continuamente. De certa maneira, a apresentação que as personagens fazem ao adolescente do mundo da magia pode ser interpretada como uma apresentação do que significa ser masculino e quais pesos esse tipo de gênero carrega, justamente, porque são solicitadas da masculinidade diversas provas de que se é masculino. Sendo assim, o objeto de estudos deste artigo é a HQ “Os Livros da Magia” (edição de luxo), publicada em 2013 pela Panini Comics (Brasil), por meio do selo Vertigo (HQs voltadas para um público adulto). A primeira edição do “The Books of Magic” foi em 1990, lançada pela DC Comics dos EUA, em 4 volumes: Livro I – O Labirinto Invisível; Livro II – O Mundo das Sombras; Livro III – A Terra do Crepúsculo de Verão e o Livro IV – A Estrada para o Nada. A proposta deste artigo está baseada em uma fundamentação teórica que miscigena dois campos complementares, identificada como semiótica-psicanalítica. O uso das duas teorias se justifica por investigar a HQ como linguagem (semiótica), porém com o objetivo de desvendar sua atuação como representante de fenômenos psicanalíticos que se dão no seio da própria cultura, neste caso, as trilhas possíveis de constituição das singularidades do masculino.

PALAVRAS-CHAVE: singularidades masculinas; semiótica; psicanálise; história em quadrinhos.

INTRODUÇÃO A arte sequencial abusa de uma perspectiva temporal diacrônica e por isso se apresenta como uma narrativa – invariavelmente – crescente e romanceada por mostrar personagens que devem atuar em uma determinada história, segundo linhas de conduta coerentes com o contexto, ou ambientação. Em certo sentido, o herói é aquele que valoriza uma postura moral adequada à realidade social e o vilão um possível perverso que não se familiariza ou conforma com os preceitos e regras sociais. Entretanto, há as personagens mais cinzentas que transitam por

vias não tão claras ou definidas, mas ainda assim apropriadas para a narrativa da história em quadrinhos. Sendo a história em quadrinhos uma arte sequencial o acaso não é característica de sua conformação, sua semiose é bem conduzida por determinadas regras constituintes do meio em si, que são aplicadas por meio de sinsignos. Talvez, neste aspecto exista uma forte diferença qualitativa entre a arte em si, livre do primado do mercado, e as histórias em quadrinhos que demandam certa adequação aos gostos dos leitores. A arte seria um qualissigno icônico remático, isto é, mera possibilidade de ser – apesar de sua aplicação em um existente, atuando segundo a criatividade e seu imperativo seria a própria qualidade do que deve ser representado, enquanto que as histórias em quadrinhos seriam sinsignos incônicos remáticos, isto é, existentes criativos, porém condicionados às regras contextuais que conformam sua realidade física, segundo padrões de mercado, de consumo e, até mesmo, de estilo. Consequentemente, caracterizadas como produções culturais. Toda produção cultural resvala – quando incorpora o masculino e feminino em seu discurso – em representações dos sujeitos que apresentam caminhos marcados pelo gênero, entendido aqui como performance (Butler, 2017), ou seja, como um jeito de ser, de se organizar e de se expressar que faz com que o sujeito atue em sua realidade segundo linhas de condutas baseadas em crenças e hábitos culturalmente desenvolvidos, portanto, historicamente dados. Entendemos que o gênero é culturalmente erigido e socialmente aplicável, portanto partícipe de um fluxo de entrelaçamentos que se movimentam conforme a própria semiosfera se modifica e, definitivamente, ela está constantemente em movimento. Essa situação leva-nos a compreender que gênero, novamente, é uma performance e não um dado pronto e acabado, ou parte estanque de um sistema que se encontre absolutamente ancorado no biológico, como exclusiva ou principal fonte de significados. Neste sentido, a história em quadrinhos como produção cultural é, também, fruto das representações presentes no sistema de pensamento de um determinado momento histórico e social, incorporando, como toda arte o faz, o “clima” ou “atmosfera” daquele pedaço temporal.

Todas as práticas sociais envolvem interpretar o mundo. Como observam os pós-estruturalistas, nada humano está “fora” do discurso. A sociedade é um mundo de significados. Ao mesmo tempo, significados carregam os traços dos processos sociais por meio dos quais foram produzidos. Sistemas culturais refletem interesses sociais particulares e partem de modos de vida específicos. (CONNELL, PEARSE, 2015, p. 172)

Talvez, a forma mais apropriada fosse assumir que da perspectiva da semiótica tudo é signo e signo só se faz como tal em um contexto onde pode significar. Neste aspecto, até mesmo o homem seria signo realizável em seu ambiente, além de ser réplica de hábitos e crenças prévias. Consequentemente, suas produções sígnicas também seriam discurso. É por participar da teia de significados culturais de determinados contextos que a HQ pode ser analisada segundo o ponto de vista do gênero e a partir de uma compreensão psicanalítica da construção das masculinidades, usando para isso um sistema de pensamento dinâmico por ser triádico, que é a teoria semiótica de extração peirceana. O objetivo deste trabalho é analisar a história em quadrinhos como uma plataforma de sentidos para a representação de caminhos possíveis da masculinidade. A HQ analisada – Os livros da Magia, de Neil Gaiman, com desenhos de John Bolton, Scott Hampton, Charles Vess e Paul Johnson (todos homens) – é um material rico, justamente, por colocar em rota paralela 4 possíveis trilhas para esta performance que são encabeçadas por personagens interessantes e místicas: John Constantine, Mister Io (Mistério), Doutor Oculto e Vingador Fantasma.

Figura 1 Os Livros da Magia Fonte: GAIMAN, Neil. Os Livros da Magia. 1ª ed. Barueri, SP: Panini Books, 2013

AS PERSONAGENS Como citado anteriormente são 4 personagens que apresentam a Thimoty Hunter os caminhos do misticismo metaforicamente representando percursos possíveis para a masculinidade. Thimoty Hunter, ou Tim é um adolescente inglês de 12 anos que está predestinado se tornar o maior mago do mundo e por isso precisa ser devidamente orientado para que não se perca em caminhos obscuros.

Figura 2 Figura 3 Figura 4 Figura 5 O Labirinto Invisível O Mundo das Sombras A Terra do Crepúsculo Estrada para o Nada de Verão Fonte: GAIMAN, Neil. Os Livros da Magia. 1ª ed. Barueri, SP: Panini Books, 2013

As demais personagens místicias são (por ordem estabelecida na própria HQ): Vingador Fantasma, John Constantine, Doutor Oculto e Mister Io (Mistério). O Vingador Fantasma é uma personagem misteriosa que tem sua história pouco explorada, em certos momentos aparece como um penitente que caminha pelo mundo desde a época da morte de Cristo, por vezes identificado com Judas Escariotes ou com o Judeu Errante, além de outros possíveis vínculos. No entanto, em muitas histórias é apenas uma entidade sem passado definido que de vez em quando se aventura pelas histórias da Liga da Justiça Sombria. Foi criado por John Broome e Carmine Infantino e uma das características mais marcantes dessa personagem é seu não envelhecimento, possivelmente, sendo imortal. A responsabilidade dele na história é apresentar ao Tim o passado (Livro I – O Labirinto Invisível), como tudo começou, de que forma os anjos caíram na Terra e como alguns lugares lendários, como Atlântida, se apagaram no decorrer dos milênios.

John Constantine – personagem criado em 1985 por Alan Moore foi levado às telas de cinema em 2005 por meio da interpretação de Keanu Reeves e, também, foi tema de uma série de TV que durou de 2014 a 2015, com o ator Matt Ryan interpretando o papel desse místico. A personagem, normalmente, associada a um selo mais adulto da editora DC, o Vertigo, tem como característica principal uma personalidade por vezes misógina, vigarista com certo talento místico. Atua de maneira pouco moral e muito menos ética, já que está sempre procurando saídas nada ortodoxas para os enredos nos quais é envolvido. Dentre as personagens que povoam a história dos Livros da Magia, John Constantine é o menos poderoso, apesar de possuir certos talentos conquistados, por vezes, de maneira bastante questionável. Nos “Livros da Magia” John Constantine é o responsável por apresentar Tim (Thimoty) Hunter o mundo presente da magia (Livro II: O Mundo das Sombras), caminhando por lugares escuros, pregando peças em alguns personagens e tomando atalhos morais para chegar a destinos mais difíceis. De certa forma, o que é apresentado ao garoto é o submundo, algo que está lá, mas não é visto pelos “meros mortais”. Doutor Oculto, visto como o detetive do sobrenatural, foi uma das primeiras personagens da DC Comics criado em 1935 e, na HQ Livros da Magia, é responsável por levar Tim ao mundo dos sonhos (Livro III: A Terra do Crepúsculo de Verão). Uma característica interessante dessa personagem é que ela tem um alter-ego chamado Rose, sua parte feminina que se manifesta quando eles adentram a Terra do Crepúsculo de Verão. Em certo sentido, ela demonstra uma comunhão entre o feminino e o masculino ao garoto que está em busca de conhecimento (de si?). Por fim, a última personagem é o Mister Io ou Mistério e talvez ele seja o menos maleável de todos já que pautado em cima de sua moral cega (litaralmente, já que a personagem é cega) “enxerga” tudo como preto e branco, sem meio termo. Possui a habilidade de caminhar pelo tempo e leva o Tim em um passeio quase sem volta para o futuro (Livro IV: Estrada para o Nada). A premissa da personagem é que por não ter a capacidade de enxergar, ele não se deixa seduzir pelas maldades do mundo terreno, conservando assim uma moral extremamente rígida. Durante o percurso na HQ, Mister Io revela que foi cegado pelo seu

pai para que não se tornasse mais um pecador no mundo, todavia é aquele que segue com Tim pelo futuro apresentando muitas possibilidades de caminhos até passar por uma época tão distante, que só restam arquétipos do que teria havido anteriormente.

OS 4 PERCURSOS SOBRE A MASCULINIDADE Na HQ o leitor se deparará inicialmente com a reunião das 4 personagens místicas que decidem se devem ou não apresentar ao Tim os percursos do caminho do misticismo. Psicanaliticamente, 12 anos é uma já fase pós-edipiana onde a escolha objetal estaria razoavelmente consolidada, ou seja, os percursos parecem mais versar sobre caminhos heteronormativos que o adolescente pode vir a tomar, do que especificamente sobre a finalidade libidinal. Todavia, as discussões de gênero atualmente permitem desvelarmos a dinâmica psíquica como uma atualização (Butler, 2017, Connell, 2016), por isso mesmo compreendida como performance. Enquanto que a psicanálise oferece observações fundantes sobre a construção psíquica e seus desdobramentos, os estudos de gênero possibilitam olhar melhor as interações desses desdobramentos com as realidades sociais e culturais. Por sua vez, a semiótica (de extração peirceana) nos autoriza uma perspectiva sobre a dinâmica da linguagem desde sua capacidade representativa e referencial até a interpretativa. Essa composição de saberes forma o conjunto teórico que usaremos para a análise desse rico material repleto de referências singulares. Sob o olhar do gênero existiriam 4 concepções teóricas usadas para investigar a masculinidade.

Connell (1987) elenca quatro concepções teóricas que definem a masculinidade, mas que, a seu ver, são incompletas: 1) A “essencialista”: define masculinidade a partir dos atributos biologicos, ou seja, o fato de ter pênis; 2) A normativa: define masculinidade tomando como referência um padrão comportamental, um conjunto de atitudes e expectativas. Nessa concepção, é homem quem estrutura sua prática de acordo com este modelo; 3) Positivista: busca determinar a forma como os homens são, fazendo com que haja uma ênfase no fato observado. Trata homens e mulheres como blocos; 4) Semiótica: define masculinidade a partir de um sistema simbólicos nos quais masculinidade e feminilidade estão em contraste (passivo x ativo, subjetivo x objetivo). (BENTO, 2012, p. 84)

Neste ponto devemos estabelecer uma crítica à abordagem conferida à semiótica, pois por mais que existam vertentes (falamos de semióticas e não apenas uma semiótica) que atuem segundo a lógica dicotômica, a semiótica peirceana é triádica e não se fundamenta em pares de opostos, pois dá preferência a uma compreensão da dinâmica expressiva, denotativa e de sentidos dos signos e como eles se relacionam a partir de seu momento de predominância nestras três instâncias. O Livro I – Labirinto Invisível dá início à jornada oferecendo ao Tim Hunter o direito de conhecer os caminhos da magia e escolher, ao final deles, se gostaria ou não de trilhá-los. Na verdade, há uma “pegadinha” nesse processo já que ao aceitar ir com o Vingador Fantasma para o passado, Tim concordou ali em entrar e participar do mundo da magia. Levado ao início de tudo, a personagem adolescente se depara com formações geracionais anteriores que vão se desenrolando por diversos fios e tecendo uma rede na qual ele se encontra, rede esta que conduz suas ações. Fazemos nosso próprio gênero, mas não somos livres para o fazermos como quisermos. Nossa prática de gênero é poderosamente formatada pela ordem de gênero em que nos encontramos (Connell, Pearse, 2015, p. 156). As visões de cunho religioso (a queda dos anjos) e os anjos que encarnam conceitos arquetípicos são apresentados como esteios da realidade moral, por isso visualmente gigantescos. Entretanto, neste momento, o Vingador Fantasma diz que até mesmo esta realidade é uma questão de ponto de vista. Lendas e mitologias como a da Atlântida, Rei Artur (Merlim), os deuses Egípcios, Orientais e Gregos, também, surgem nesse percurso místico demonstrando que o legado geracional é simbólico, isto é, carregado de símbolos remáticos (signos que expressam determinados padrões culturais de maneira muito aberta ao sentido) postos em sociedade para serem geradores dos mais diferentes tipos de sonhos, utopias e fantasias, além de condutas morais. Nesta trilha positivista (Connell, Pearse, 2015,p. 135) o masculino parece determinado pelo seu passado histórico, que o situa em um modo de ser testado e validado por gerações anteriores. As figuras com as quais interage durante a senda são homens: Orion, o mago atlante; Merlim, o mago da Távola Redonda e Sargon, o mago moderno

dono de um artefato místico de alto poder. A interação com essas personagens acontecem principalmente por meio da seguinte advertência: “tudo tem um preço”.

O modelo hegemônico exalta a virilidade, a posse, o poder, a violência, a competitividade, mas apenas uma pequena parcela da população masculina preenche as condições desse modelo. Para Nolasco (1995), o masculino, como categoria que serve a um conjunto de identificações e comportamentos, se configura para o indivíduo como um campo de representação comprometido com a visibilidade do empírico. A ação, o fazer, o realizar e o desempenho colocam os homens continuamente diante da questão do uso e da legitimidade de seus comportamentos. (BENTO, 2012, p. 90)

O signo simbólico dicente exposto na assertiva “tudo tem um preço” se transforma em uma leitura generificada pelo nosso ponto de vista. Isto significa que ser homem segundo os padrões heteronormativos, portanto, oriundos do patriarcado - nomenclatura usada para nomear sistemas de poder masculinos (Connell, Pearse, 2015,p. 135) cobra seu preço do sujeito singular, que enraizado em um contexto carregado de legissignos se vê compelido a replicar os ideias de masculinidade como fórmula para execução de sua própria singularidade. No Livro II a personagem é conduzida aos EUA, partindo da Inglaterra, por meios escusos (sem pagar o vôo, sem passaporte, sem passar pela imigração ou alfândega do país) para conhecer outros praticantes da arte mística que poderiam lhe ensinar alguma coisa. Neste momento é que Tim entra em contato com algumas mulheres – Madame Xanadu, uma cartomante imortal e (filha de que também foi apresentado ao adolescente pelo Vingador Fantasma), uma mística que já participou de algumas formações da Liga da Justiça e trabalha fazendo mágica de salão como forma de entretenimento. Além disso, durante este livro Tim é atacado por uma mulher (integrante da seita Chama Fria que gostaria de ver o próximo grande mago morto antes de atingir seu potencial), que por sua vez é morta por um dos seus protetores, Boston Brand – um fantasma que pode assumir o corpo dos vivos. O feminino nesta narrativa é pautado pela ideia patriarcal de submissão, como uma forma de ser que está subordinada aos desejos do masculino ou, por outro lado, como uma forma tão distante e diferente que é vista como ameaça e precisa ser eliminada.

John Constantine, sintetiza a figura do conquistador, daquele que faz uso de todos os instrumentos para alcançar seus objetivos sem que as escolhas morais tenham real significado diante dos fins. Portanto, ele apresenta um jeito de ser masculino muito próprio da contemporaneidade seguindo um padrão normativo (Connell apud Bento, 2012, p. 84) que define a masculinidade por meio de condutas a serem seguidas e replicadas. O percurso é recheado de situações perigosas que expressam a violência como uma qualidade enraizada e normatizada pela singularidade tradicional do masculino, ao mesmo tempo que colocam Tim em contato mais íntimo com Zatanna, que por sua vez apresenta um lado bastante maternal como se coubesse à mulher somente esta singularidade, já que as demais apresentadas até então são bem superficiais. A máxima apresentada pela alimentação de uma singularidade tradicional da masculinidade é dita por Tim à Zatanna, quando ela aperece vestida como maga - “Cê não fica com VERGONHA de se vestir assim?” (Gaiman, 2013, p. 95). A imposição do gênero masculino como estatutário de um poder controlador é evidente nesta simples fala da personagem, que expressa indignação pela decisão de vestimenta da Zatanna. O Livro III – A Terra do Crepúsculo de Verão é um momento de integração, em que é posto em discussão o próprio inconsciente como campo onírico e palco de diversas fantasias. Quadro significativo desta parte da HQ é da página 110, quando o Doutor Oculto atravessa o portão e se transforma em Rose, sua parte feminina. “Macho e Fêmea. Animuas e Anima. São aspectos que trazemos dentro de nós. Neste aspecto sou Fêmea. Digamos que... Facilita certas questões” (Gaiman, 2013, p. 110), diz Rose ao Tim para explicar sua transformação. Cabe a ela conduzi-lo pela travessia no reino da fantasia, como se sobrasse ao feminino a subjetividade como seu ambiente de influência, assim como é determinado que o lar em seus ambientes como a cozinha e os quartos sejam os espaços possíveis para sua expressão. Tanto é que no momento da HQ onde é requerida a força e o pragmatismo da disputa, encontramos novamente o Doutor Oculto se fazendo presente. É nesta terra da fantasia que Tim se depara com o heroi adormecido, representante simbólico de todos os possíveis herois que povoaram e povoam as narrativas míticas e que, também, povoam o imaginário de cada menino. Entretanto, na figura da bruxa Baba Yaga se tangibiliza o preço a ser pago por fantasiar, quando ela o prende e o coloca com outros

animais na cozinha para ser transformado em comida. Não é dispensável ao masculino este papel do sonhador, justamente, por ser uma condição de gênero associada ao feminino ou ao louco; condição esta tida como essencialista (Connell apud Bento, 2012, p. 84). Ainda pelo campo do sonhar se faz acontecer um encontro deveras significativo para nossa compreensão dessa trilha sobre a masculinidade, que é o encontro com Sonho, um dos 7 Perpétuos, sendo os outros: Morte, Destino, Destruição, Desejo, Desespero e Delírio. Temáticas do inconsciente, ou melhor, pulsões inconscientes, que nos fazem compreender os Perpétuos como pontes do verdadeiro contato do Tim com seu inconsciente. Todavia, segundo a perspectiva da psicanálise este contato seria impossível, visto que esta instância é inacessível ao consciente, escapando apenas por meio dos sonhos, atos falhos, xistes entre outros elementos simbolizantes. Portanto, neste Livro III compreendemos que além de uma discussão de gênero, a masculinidade é uma aposta do inconsciente que povoado de incontáveis elementos caóticos transgride regras e convenções em busca de dar vazão a expressão de seus desejos, seja por meio de percursos neuróticos, perversos ou psicóticos. Por fim, avançamos sobre o Livro IV em que Mister Io (Mistério) irá levar Tim pelos caminhos possíveis do futuro. Segundo o guia, eles verão os caminhos de maior probabilidade, mas nem por isso caminhos estanques e pré-determinados. Apesar da imponderabilidade do futuro, a personagem Mister Io é o que mais se apresenta como um moralista, com uma visão bastante dicotômica entre o bem e o mal, entre o certo e o errado. Obvimente, para o nosso olhar não passa despercebido que seja exatamente esta personagem a apresentar ao garoto os caminhos de um futuro que ainda se construirá, que ainda se fará para além de quaisquer condutas morais. Além disso, como bem sabemos a moralidade é um conjunto de regras, portanto, hábitos que estabelecem relação direta com seu contexto, variando de cultura para cultura e de momento histórico para outro. Mister Io consegue acessar o futuro e caminha cada vez mais para frente com o Tim, chegando a apresentar épocas onde a ciência se confunde com a magia, ou onde a magia avançou e ocupou um espaço deveras significativo relegando a ciência a um patamar secundário. No entanto, a parte mais significativa deste livro é quando chegam ao final dos tempos e encontram Terminus, a última fortaleza feita dos restos das partículas que ainda

sobraram e lá se deparam com figuras arquetípicas como o Hierofante, o Eremita, o Bobo, o Imperador e a Imperatriz e, por fim, se veem frente a frente com a própria Morte, não mais como arquétipo e sim como último princípio de realidade. Desta forma, entendemos que o último livro explicita a mortalidade como trilha corrente para toda e qualquer masculinidade. Orientada por diferentes perspectivas arquetípicas a senda das singularidades do masculino findará, invariavelmente, no inominável que nem mesmo é campo possível do gênero, porém, a Morte (como personagem dos 7 Perpétuos) é representada por uma mulher de inspiração gótica, talvez validando que o fim é por princípio um recomeço, já que é puramente uma perspectiva essencialista (Connell apud Bento, 2012, p. 84) que a vida se faça no cerne da mulher.

CONCLUSÃO Parece-nos evidente que a HQ transmite uma expressão bastante generificada das representações do masculino, bem como das personagens femininas sendo estas todas coadjuvantes na narrativa. Pudemos notar que os caminhos possíveis da singularidade do masculino perpassam valores e qualidades que são comumentemente associadas ao sistema patriarcal, compreendido aqui como campo onde se tecem as construções de força que sustentam o estatuto do masculino heterossexual, como seu correspondente máximo. A HQ promove uma narrativa ampla que abarca diferentes pontos de vista sobre a idealização do masculino tradicional, todavia, não permitindo ou demonstrando a existência de possibilidades de singularidades que não estejam encaixadas na ideia de dominância. Reserva, portanto, a condição de protagonista ao papel da aparência masculina normativa, que apesar de se imiscuir no campo da magia (normalmente associada ao gênero feminino), o faz segundo um ponto de vista pragmático e, potencialmente, patriarcal. No fim dos tempos a Imperatiz é a personagem distante de sua realidade, que por um lapso não se lembra mais que o Mago se foi, a idiotização da personagem no fim do percurso valida a assertiva de que ao feminino é resguardado um lugar para ser tutelado, enquanto que ao masculino sobra-lhe a função principal de guia e pretetor.

Sendo assim, os caminhos apresentados conduzem para um mesmo posto de observação, em que a singularidade do masculino tem uma conformação própria e avessa à criatividade da performance do gênero. Vingador Fantasma, John Constantine, Doutor Oculto e Mister Io são facetas da mesma moeda representando a penitência, a esperteza, a ambiguidade e a rigidez, que são valores associados ao masculino. A penitência reforça o sentido patriarcal ocidental pela sua estreita ligação com os aspectos religiosos do criastianismo (os anjos são figuras presentes na narrativa), já a esperteza apresenta um apelo constrangedoramente contemporâneo demonstrando o prazer na possibilidade de se conseguir vantagens pelos caminhos mais fáceis. A ambiguidade, muito bem representada na figura ambivalente do Doutor Oculto, deixa uma brecha para que o feminino possa ser encarado como um elemento simbolizado no inconsciente, porém também como uma parte selvagem que precisa ser domesticada. Por fim, a rigidez moralista do Mister Io expõe uma briga secular entre a vontade liberta do desejo sem controle e o próprio plano civilizatório, pois segundo Freud (2010) é preciso renunciar à libido para que a sociedade possa ser erigida, isto é, é preciso renunciar a satisfação de parte dos desejos, sublimando-os em construções mais simbólicas como a própria cultura. Concluindo, os caminhos possíveis do masculino apresentados na HQ “Livros da Magia” são oriundos de uma visão normativa, posicionados como valores patriarcais e acessíveis àqueles dispostos a pagar o preço de se conformar a esse interpretante final, portanto inalcançável que é o ideal da masculinidade hegemônica.

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