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147 148 • Comunicação e Sociedade 50 Dois livros censurados: Feliz ano novo e Zero*

Two censored books: Feliz ano novo and Zero

Dos libros censurados: Feliz ano novo y Zero

SANDRA REIMÃO João Luiz de Oliveira João Professora no Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Metodista de São Paulo e pesquisadora – Produtividade em Pesquisa, do CNPq. Publicou, entre outros, os livros Mercado editorial brasileiro (ComArte/Fapesp, 1996) e Livros e televisão: correlações (Ateliê, 2004). E-mail: [email protected].

* Este trabalho contou com auxílio da Fapesp - Projeto regular de pesquisa.

149 REIMÃO, Sandra. Dois livros censurados: Feliz ano novo e Zero. Comunicação & Sociedade, São Bernardo do Campo, PósCom-Metodista, a. 29, n. 50, p. 149-161, 2. sem. 2008.

Resumo Esse artigo aborda a censura, em 1976, pelo Departamento de Censura e Diversões Públicas (DCDP), de dois livros de ficção: Zero, de Ignácio de Loyola Brandão, e Feliz ano novo, de Rubem Fonseca. Busca-se situar esses livros no conjunto da literatura brasileira ficcional da década e visa-se também entender a especificidade desses atos censórios, relacionando-os à atuação da censura do DCDP e ao conjunto da produção ficcional do momento. Palavras-chave: Livros – Censura – DCDP.

Abstract This article focuses the censorship, in 1976, by the Department of Censorship and Public Entertainment (DCDP), of two novels: Zero, by Ignácio de Loyola Brandão, and Feliz ano novo (Happy new year), by Rubem Fonseca. The study aims at placing both works within the context of the Brazilian literature in the 1970s as well as interpreting these censorship acts by relating them to the DCDP policy at that time. Keywords: Books – Censorship – DCDP.

Resumen Ese artículo aborda la censura, en 1976, por el Departamento de Censura y Diversiones Públicas (DCDP), de dos libros de ficción: Zero, de Ignácio de Loyola Brandão, y Feliz ano novo, de Rubem Fonseca. Se busca situar estos libros en el conjunto de la literatura brasileña de la década y se objetiva también comprender la especificidad de estos hechos censorios relacionándolos a la actuación de la censura del DCDP y al conjunto de la producción de ficción del momento. Palabras clave: Libros – Censura – DCDP.

150 • Comunicação e Sociedade 50 m 17 de dezembro de 1976, uma sexta-feira, saiu impres- so no Diário Oficial da União um despacho do ministro da E Justiça Armando Falcão, que, seguindo o modelo-padrão, apresentava o seguinte texto: “Proc MJ-74.310-76 – Nos termos do parágrafo 8º do artigo 158 da Constituição Federal e do artigo 3º do Decreto-lei n. 1.077, de 26 de janeiro de 1970, proíbo a pu- blicação e a circulação, em todo o território nacional, do livro Feliz ano novo, de autoria de Rubem Fonseca, publicado pela Editora Artenova S.A., , bem como determino a apreensão de todos os seus exemplares expostos à venda, por exteriorizarem matéria contrária à moral e aos bons costumes. Comunique-se ao DPF. Publique-se. Brasília, 15 de novembro de 1976”. A censura a Feliz ano novo, de Rubem Fonseca, deu-se um mês e pouco após a censura de Zero, de Ignácio de Loyola Brandão. Feliz ano novo e Zero fazem parte de um conjunto de livros de literatura de ficção de autores brasileiros que foram publicados em 1975 e 1976 e que se tornaram referências para o período. Nesses anos, ao lado de Zero e Feliz ano novo, foram publicados também, entre outros: Lavoura arcaica, de Raduan Nassar, Leão de chácara, de João Antonio, A festa, de Ivan Ânge- lo, Quatro olhos, de Renato Pompeu, e A ilha, de Fernando Morais. Esse grupo de textos abrange narrativas das mais dife- rentes feições: vai da proximidade do relato jornalístico ao experimentalismo formal, passando por narrativas alegorizantes e pela busca de entendimento e exploração de novas formas de comportamento e de visões alternativas do real e do mundo, mas, em que pese essa diversidade, em comum todos têm um forte vínculo com o Brasil do momento, todos se propõem analisar, opinar, intervir, atuar diante da realidade imediata do País de então.

151 Na década de 1970, por inúmeros fatores, entre os quais o fato de o livro literário poder ser menos dependente do investi- mento estatal e ser pouco visado pela censura, a literatura foi um centro de atenções e inscreveu-se “significativamente na atuali- dade do debate cultural” (HOLLANDA; GONÇALVES, 1990, p. 98 e 113). Nesse sentido, pode-se dizer que o âmbito artístico-cultural articulou-se, no Brasil, na década de 1970, de forma diversa à da década de 1960. Na década de 1960, o mais representativo da produção cultural, aquilo que era capaz de representar e pensar os debates de então se dava nos “gêneros públicos, de teatro, afiches, música popular, cinema e jornalismo, que transformavam este clima em comício e festa, enquanto a literatura propriamente saía do primeiro plano”, como observou Roberto Schwarz (1978) no artigo “Cultura e política – 1964-69”. Na década de 1970, esse eixo se desloca para a literatura que “expressa, nas opções de linguagem, produção e mercado, sintomas significativos de um debate vivo dentro do campo cultural” (HOLLANDA; GON- ÇALVES, 1990, p. 99). O conjunto dos textos literários publicados em meados da década de 1970 pode ser visto como um segundo período da narrativa ficcional da década, enquanto que Acidente em Antares, de Érico Veríssimo, de 1971, e Bar Dom Juan, de Antonio Callado, do mesmo ano, seriam os carros-chefes do primeiro período literário logo após a decretação do Ato Institucional n. 5 – essa primeira leva pode ser vista como claramente vinculada ao horizonte temático de uma possível revolução social no Brasil.

Sobre Feliz ano novo Feliz Ano Novo foi publicado pela Artenova, uma editora carioca fundada em 1963 por Álvaro Pacheco. Em meados dos anos 1970, a Artenova lançava cerca de quinze títulos novos por mês. Feliz ano novo é de 1975, e até o final de 1976 tinha vendido 12 mil exemplares, tendo sido o quinto livro de ficção mais ven- dido no Brasil no ano 1976. Para assinalar a forte presença da literatura brasileira em meados da década de 1970, lembremos que o livro mais vendido

152 • Comunicação e Sociedade 50 do ano 1975 foi Fazenda modelo, de de Hollanda, e que Chico Buarque foi também, em parceria com Paulo Pontes, o autor do livro mais vendido de 1976 – Gota d’água –, roteiro da peça que estava em cartaz na época. Com muita ironia e humor, Chico Buarque, em Fazenda modelo, como se explicita na contracapa da primeira edição, “recorre à alegoria e nos oferece uma novela pecuária, um livro que diverte, irrita, inspira e consola”. Gota d´água tematiza, no dizer dos autores no texto de introdução da primeira edição do livro, “a experiência capitalista que vem se implantando aqui [...] a brutal concentração de riqueza”. Segundo a revista Veja, na edição de 31/12/1975, os livros nacionais mais vendidos do ano foram: 1) Fazenda modelo, de Chico Buarque de Hollanda; 2) Gabriela, cravo e canela, de ; 3) Novo Dicionário Aurélio, de Aurélio Buarque de Hollanda Ferreira; 4) Teje preso, de Chico Anysio (Francisco Anysio de Oliveira Paula Filho); 5) As meninas, de ; 6) Dôra, Doralina, de ; 7) De notícias e não-notícias, de Carlos Drummond e Andrade; 8) Leão-de-chácara, de João Antônio; 9) Solo de clarineta, de Érico Veríssimo; e 10) A travessia da via crucis, de Carlos Eduardo Novaes. Em 1976 a listagem dos mais vendidos do ano da revista Veja não foi apresentada repartimentada em autores nacionais e autores estrangeiros e, sim, em ficção e não-ficção. Na listagem dos livros ficcionais mais vendidos de 1976 aparecem cinco de autores brasileiros: em primeiro lugar, Gota d’água, de Chico Buarque de Hollanda e Paulo Pontes; em quinto, Feliz ano novo, de Rubem Fonseca; em sétimo, Cândido Urbano Urubu, de Carlos Eduardo Novaes; em nono, A última do brasileiro, de Ziraldo Alves Pinto; e em décimo, A grande mulher nua, de Luis Fernando Veríssimo. Na década de 1970, especialmente em meados dela, pode- se afirmar, a literatura nacional produzida no calor do momento desempenhou um papel central de resistência. Como disse o escritor Júlio Martins, em depoimento a Heloisa Buarque de Hollanda em Política e literatura: a ficção da realidade brasileira, falan- do sobre esse período: “A função da produção cultural e da lite- ratura em particular, nestes anos, foi principalmente a de resguar-

153 dar a nossa integridade criativa, a nossa dignidade ameaçada” (HOLLANDA; GONÇALVES, 1990, p. 68 e 70). Feliz ano novo foi o quinto livro de Rubem Fonseca. Desde seu primeiro, Os prisioneiros, publicado pela Codecri em 1963, a temática da violência tem sido central em sua produção literária. Como todos os seus livros anteriores, Feliz ano novo é uma cole- tânea de contos. São quinze contos relativamente curtos, totalizando 144 páginas com um projeto gráfico despojado – sem orelhas, sem prefácio e com uma diagramação convencional. Formado em Direito e tendo trabalhado como delegado, Rubem Fonseca traz em sua literatura o tema da violência e da barbárie da cidade do Rio de Janeiro. O fato de ele ter sido delegado de polícia o colocou em um lugar privilegiado para constatar o cres- cimento da violência descontrolada nos centros urbanos. O conto que dá nome ao volume, “Feliz ano novo”, narra como três párias, três excluídos sociais que estão vendo as festas de fim de ano, pela televisão e “esperando o dia raiar para comer farofa de macumba” em um decadentíssimo apartamento, quase um cortiço, da Zona Sul do Rio de Janeiro, acabam, meio que por acaso e quase sem planejamento, munidos com armas, inva- dindo uma festa de réveillon em uma casa de classe alta – “a gente ouvia o barulho de música de carnaval, mas poucas vozes can- tando. Botamos as meias na cara, cortei com a tesoura os bura- cos dos olhos. Entramos pela porta principal”. A extrema violên- cia com que eles atiram em quatro dos participantes da festa é correlata a um chocante descaso pela vítima e pela vida. Nas palavras de José Antonio Pasta Júnior1, na literatura de Rubem Fonseca “a perspectiva é um enfrentamento com um co- tidiano que não tem horizonte de revolução à vista, que não tem horizonte de transformação radical à vista, há um tipo de embate com um novo tipo de realidade brasileira”. Essa nova realidade brasileira, nos textos de Fonseca, segundo Pasta, correlaciona-se com uma transformação da visão de povo brasileiro:

1 Em entrevista concedida a Sandra Reimão e Helena Bonito C. Pereira em 11/07/2007.

154 • Comunicação e Sociedade 50 A literatura de Rubem Fonseca, Feliz ano novo em particular, marca uma hora histórica na percepção, na visão do povo brasileiro. O povo brasileiro que aparece na literatura dele, aquilo que aparece como os tipos populares, tem uma feição claramente desidealizante. O escritor vai se confrontar com a transformação da malandragem em marginalidade pesada, com o crime pelo crime, com o prazer da desforra e da vingança social, com aquilo que se chama mais gene- ricamente de desagregação do tecido social.

Um outro traço salientado por Pasta Junior em Feliz ano Novo é que há também nesse conjunto de contos uma “desi- dealização das elites; digamos que ela não ocupa a maior parte do livro mas também é forte. [...] Há três contos que vão nesse sentido: ‘Nau Catrineta’, ‘Passeio noturno (parte I)’ e ‘Passeio noturno (parte II)’”. “Nau Catrineta” se inicia com a declamação de um trecho do poema de mesmo nome do escritor português Almeida Garret. Este construiu seu poema a partir de uma nar- rativa popular, com inúmeras versões, que narra como um anjo salvou um capitão em um barco à deriva. No conto essa narra- tiva se transforma em um ato de antropofagia: para que os ma- rinheiros não morressem de fome, alguns foram mortos e comidos pelos sobreviventes. O conto de Rubem Fonseca foca- liza o dia do vigésimo-primeiro aniversário de José, o herdeiro de uma família rica. Nessa data, para assumir seu lugar no seio da burguesia, ele teria que cumprir uma missão: comer carne huma- na. Assim ele se tornaria o novo chefe da família, uma família cujos membros, diz o conto, se orgulhavam de serem “carnívoros conscientes e responsáveis. Tanto em Portugal como no Brasil”. Com o mesmo grau de violência, descaso pela vida e gratuidade dos atos, os contos “Passeio noturno (parte I)” e “Pas- seio noturno (parte II)” narram como um executivo a bordo de um carro usa o ato de atropelar (e matar) como um exercício de relaxamento. No próprio conto “Feliz ano novo”, em paralelo à violência insana e gratuita dos marginais liderados por Pereba, a burguesia assaltada e assassinada, ou seja, os participantes da festa de final de ano também apresentam um comportamento irrespon- sável e vazio de sentido – além de serem pernósticos e petulantes.

155 Abordando essa violência enfocada e retratada por Rubem Fonseca, (2002, p. 6) afirma:

Imagem do caos e da agonia de valores que a tecnologia produz em um país do Terceiro Mundo é a narrativa brutalista de Rubem Fonseca [...]. A dicção que se faz no interior desse mundo é rápi- da, às vezes compulsiva; impura, se não obscena; direta, tocando o gestual; dissonante, quase ruído.

Sobre o romance Zero A violência também é um traço central no romance Zero2, de Ignácio de Loyola Brandão. A primeira edição, no Brasil, foi publicada em 1975. Antes dessa houve uma edição na Itália, em 1974, da Editora Feltrinelli. A primeira edição brasileira foi da Brasília/Rio, lançada no dia 31 de julho de 1975. A Brasília/Rio era uma pequena editora carioca de propriedade de Lygia Jobim. As vendagens justificaram uma segunda edição por essa mesma editora. Ignácio de Loyola Brandão recorda esse episódio3:

Zero tinha sido publicado na Itália pela Feltrinelli e teve repercus- são no Brasil porque a Veja fez uma matéria grande. Até foi o Silvio Lancelotti que fez essa matéria, falando de um livro brasi- leiro que tinha sido publicado lá, o que era uma curiosidade na época, porque a primeira edição era em italiano. [...] Quando o livro saiu e provocou certa curiosidade, eu fui procurado por uma certa pessoa chamada Lygia Jobim, que eu não conhecia e não tinha a menor idéia de quem era, que me perguntou se eu estava disposto a publicar esse livro aqui e eu falei que sim, claro, eu fiz esse livro para publicar aqui.

Zero é constituído de um conjunto de pequenas histórias, fragmentos, apresentados graficamente como tais. Loyola observa a origem de muitos desses fragmentos: “Zero nasceu também da censura. Eu era secretário do jornal. [...] E aí as primeiras coisas

2 O título completo da obra é Zero: romance pré-histórico. 3 Entrevistas concedidas a Sandra Reimão e Helena Bonito C. Pereira em se- tembro de 2006 e maio de 2007.

156 • Comunicação e Sociedade 50 proibidas eu fui jogando na gaveta. [...] Tudo que está aí é coisa real e é o Brasil. E aí eu falei ‘dá para fazer um romance, dá para montar um romance’”. Analisando o caráter fragmentário da narrativa nesse romance, Heloisa Buarque de Hollanda e Marcos Augusto Gonçalves (1990, p. 61) assinalam:

Zero, a princípio, se manifesta como uma grande alegoria do es- tado violentado e desagregado de um país que ainda espera por sua história. [...] O recurso ao fragmento e o próprio aproveita- mento do espaço gráfico do livro, aqui e ali diagramado à moda dos jornais, promove um estilhaçamento da perspectiva naturalista do jornal. [...] É assim que a técnica do fragmento aqui traduz a desagregação produzida pelo clima de opressão que acompanha, em todos os momentos, a narrativa de Loyola.

Os atos censórios Em novembro e dezembro de 1976, respectivamente, Zero e Feliz ano novo foram alvo de atos censórios por parte do Minis- tério da Justiça. Para entendermos como se dava essa apreensão de obras publicadas e em circulação pelas livrarias do País, é preciso voltar no tempo e verificar a especificidade da censura em relação a livros. Uma matéria da revista Veja, na edição de 29 de dezembro de 1976, esclarece a questão:

Como se editam muitos livros no Brasil, tornou-se impossível exercer uma censura prévia eficiente. Assim preferiu-se o sistema de denúncia. Alguém que tenha lido um livro, autoridade ou não, e o considere atentatório à moral ou mesmo subversivo, faz uma denúncia ao Ministério. Instala-se, então, um processo no qual é dada a um assessor do ministro da Justiça a tarefa de ler a publi- cação e emitir um parecer. Com base neste, o ministro decreta ou não a apreensão. A tarefa passa a seguir para a Polícia Federal, que deve providenciar o recolhimento dos exemplares à venda.

Zero e Feliz ano novo foram vetados por atuações desse tipo – ambas motivadas por denúncia. No caso de Zero, não houve pare- cer, foi despacho direto. Loyola Brandão relembra assim esse fato:

157 Eu tenho vagas idéias. Uma, que o jornal Opinião, parece, numa crítica, numa resenha sobre outra coisa, citou o Zero como um livro que mostrava o momento da ditadura, dos militares. Isso teria sido lido pela mulher de um general e [...] que teria comen- tado “olha, tem um livro aí que parece que além de tudo era pornográfico” e alertou uma mulher que era amiga da mulher do Armando Falcão, que levou a queixa ao marido.

Loyola continua assim seu relato:

Uma tarde de novembro o Mino Carta me ligou de Brasília e disse: [...] “O Zero está em cima da mesa do Armando Falcão. O Zero vai ser proibido. Porque não tem nenhum motivo para o Zero estar em cima da mesa do Falcão”. No dia seguinte foi cen- surado. Aí eu fui procurar o censor. Ele me perguntou qual era o livro e disse: “Eu vou verificar. Há dois caminhos. Se for proi- bição política, não tem nada o que fazer. Você vai ser processa- do, inclusive. Se for proibição moral, fica tranqüilo. Não se faz uma nova edição e cala-se a boca. Fique quieto”. No dia seguin- te ele me ligou [...]: “O processo contra o Zero é moral”. E eu perguntei: “E agora, o que eu faço?”. “Fique tranqüilo. Não faça nada”. “E o livro vai ser apreendido?” “Se se for apreender tudo que está aí, eles ficam perdidos, eles não têm nem gente para isso. Os livros continuarão nas livrarias”.

Loyola esclarece que sempre se alegava que a censura era por motivos morais para poder justificar o ato censório no De- creto-lei 1.077, que estabelecia a proibição da publicação e a apreensão dos exemplares de obra que fosse considerada “con- trária à moral e aos bons costumes”. O processo em relação a Feliz ano novo se deveu também a uma série de coincidências. No livro Bastidores da censura, Deonísio da Silva cita um depoimento de Lygia Fagundes Telles ao Jornal do Brasil (19/01/1977), em que ela relata como um es- tudante de Brasília lê um livro de Rubem Fonseca. Vem o pai, que percorre, meio por acaso, algumas páginas do livro. Mas o pai em questão, continua Deonísio da Silva,

158 • Comunicação e Sociedade 50 é íntimo de um ministro. Alertado por esse pai, o ministro manda um funcionário ler o dito livro. Funcionário e ministro fazem cara de horror e o livro é proibido. Mas Feliz ano novo não é apenas mais um dos livros proibidos pelo ministro. E Rubem Fonseca é escritor de prestígio e diretor da Light4. Alertado mais uma vez, o ministro resolve ele mesmo ler o livro. Recebe-o com passagens assinaladas em vermelho. Escandaliza-se outra vez, agora para justificar a proibição.

Lygia Fagundes Telles, segundo Deonísio Silva (1989, p. 86), encerra a matéria afirmando a existência de uma minoria que se põe a ostentar o poder de “proibir os livros dos quais não gosta, sem examinar a sua qualidade artística”. O parecer elaborado por um técnico do DCDP em 03/12/ 1976, que deu origem ao despacho de censura publicado em 17/ 12/1976, fala em

personagens portadoras de complexos, vícios e taras [...], delin- qüência, suborno, latrocínio e homicídios, sem qualquer referência a sanções. [...] A pornografia foi largamente empregada. [...] E são feitas rápidas alusões desmerecedoras aos responsáveis pelo des- tino do Brasil e ao trabalho censório5.

Considerações finais Na segunda metade da década de 1970, escritores, editores, intelectuais, artistas, cientistas, professores e a sociedade em geral começaram a mobilizar-se para resistir e protestar contra os desmandos e arbítrios de um regime autoritário. Essa resistência da sociedade aos atos autoritários do gover- no de então culminou, em várias demonstrações e atos públicos de repúdio ao autoritarismo. No que diz respeito às manifestações pela liberdade no âmbito das produções culturais, destaca-se o “Manifesto dos 1.046 intelectuais contra a censura”, entregue ao ministro da Justiça, em Brasília, no dia 25 de janeiro de 1977, por

4 Na época, empresa estatal de distribuição de luz e energia. 5 Disponível no acervo do Arquivo Nacional – Fundo: DCDP, Seção: Censura Prévia, Série: Publicações, caixa 18.

159 uma comissão composta por Helio Silva, Lygia Fagundes Telles, Nélida Pinõn e Jefferson Ribeiro de Andrade, em Brasília. Os livros Feliz ano novo, de Rubem Fonseca, e Zero, de Ignácio de Loyola Brandão, e seus processos de censura são exemplares no que diz respeito a características do universo dos livros e da literatura ficcional no Brasil em meados da década de 1970. Em primeiro lugar, as comparações das formas das narra- tivas e das propostas literárias desses dois livros atestam e exemplificam a diversidade de modelos da literatura produzida no período. Em segundo lugar, os dados de vendagem dos dois li- vros (em menos de um ano Feliz ano novo vendeu 12 mil exem- plares e Zero teve duas edições vendendo cerca de 6 mil exempla- res6) também podem ser vistos como índices da força e da aceitação do autor de ficção brasileiro naquele período. Por fim, notemos que os processos que resultaram nos vetos censórios a Feliz ano novo, de Rubem Fonseca, e a Zero, de Ignácio de Loyola Brandão, em consonância com o que diz a literatura da época e com estudos posteriores, originaram-se como que por acaso, a partir de denúncias de pessoas que se sentem no direito de proibir os livros de que não gostam – como era freqüente. Na ampla bibliografia sobre o tema, gosta- ríamos de destacar o livro de Deonísio da Silva (1989), Nos bas- tidores da censura: sexualidade, literatura e repressão pós-64, e o artigo de Carlos Fico (2002), “Prezada censura”. Em 1969, depois do período de vigência do AI-5, Zero, de Ignácio de Loyola Brandão, foi publicado em terceira edição pela Editora Codecri. Rubem Fonseca, por sua vez, processou o Ministério da Justiça pela censura a Feliz ano novo e seu livro só foi liberado bem mais tarde, ao final do processo. Esse processo é o tema central do mencionado livro de Deonísio da Silva. Zero, de Ignácio de Loyola Brandão, já teve mais de treze edições em português, atualmente (2008) é publicado pela Editora Global e foi traduzido para o alemão, coreano, espanhol, húngaro e inglês. Feliz ano novo, de Rubem Fonseca, encontra-se, atualmente, em décima edição e é publicado pela Companhia das Letras.

6 Informação do autor, em entrevistas concedidas a Sandra Reimão e Helena Bonito C. Pereira em setembro de 2006 e maio 2007.

160 • Comunicação e Sociedade 50 Referências BOSI, Alfredo (org.). O conto brasileiro contemporâneo. 14. ed. São Paulo: Cultrix, 2002. FICO, Carlos. Prezada censura: cartas ao regime militar. Topoi – Revista de História, Rio de Janeiro, v. 5, p. 251-286, 2002. HOLLANDA, H. B. de & GONÇALVES, M. A. A política e a literatura: a ficção da realidade brasileira. Rio de Janeiro: Europa, 1990. _____. FREITAS FILHO, A.; GONÇALVES, M. A. (orgs.). Anos 70: literatura. Rio de Janeiro: Europa, 1979. SCHWARZ, R.. Cultura e política – 1964-69. In: O pai de família e outros estudos. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. SILVA, D. da. Nos bastidores da censura: sexualidade, literatura e repressão pós- 64. São Paulo: Liberdade, 1989.

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