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N.º 20 | Março 2021

2020 JANUS 2021

Conjuntura internacional As relações internacionais em contexto de pandemia

2020 JANUS 2021

Conjuntura internacional As relações internacionais em contexto de pandemia Colaboraram nesta edição

Amparo Sereno Ingrid Barros Patrícia Daehnhardt Ana Isabel Xavier Joana Roque de Pinho Paulo Duarte Ana Margarida Esteves João Henriques Paulo Fontes Ana Monica Fonseca Jorge Tavares da Silva Pedro Seabra António Mateus José Pita Santos Pedro Steenhagen Bernardo Calheiros Jéssica Maria Grassi Redento Maia Brígida Rocha Brito Julia Mori Aparecido Reginaldo Teixeira Perez Cátia Miriam Costa Luís Barroso Renato Pereira Clara Carvalho Luís Tomé Ricardo Falcão Claudia Generoso de Almeida Luís Valença Pinto Rita Romeiras Daniel Cardoso Luísa Godinho Samuel Caetano Vilela Danielle Jacon Ayres Pinto M. Naguib Omar Sandra Ribeiro David Silva Ferreira Marcos Pascotto Palermo Sergio Luiz Cruz Aguilar Fernando Jorge Cardoso Mark Meirowitz Sofia Martins Geraldes Filipe Vasconcelos Romão Mónica Canário Stefano Loi Francisco Seixas da Costa Nuno Lemos Pires Giulia Daniele Nuno Oliveira Pinto

JANUS 2020-2021 – ANUÁRIO DE RELAÇÕES EXTERIORES © OBSERVARE – Universidade Autónoma de Lisboa Lisboa, Março de 2021

Director: Luís Tomé Editores-chefe: Filipe Vasconcelos Romão e Luísa Godinho Design: Rita Romeiras Biblioteca Virtual: Janusonline.pt

Publicação anual Propriedade: Cooperativa de Ensino Universitário – CRL NIF: 501641238 Redacção: Rua de Santa Marta, 56. 1169-023 Lisboa Impressão: Europress Morada: R. João Saraiva 10 A, 1700-249 Lisboa Tiragem: 200 exemplares Depósito legal: 287724/09 ISSN: 2183-4814 N.o de registo do ICS: 120525

Notas: Uma vez que a presente edição do anuário se reporta a dois anos, os respectivos artigos foram escritos entre 2019 e 2021. Os autores dos textos adoptam diferentes acordos ortográficos. JANUS 2020-2021

Apresentação 7

1. Conjuntura internacional 9

1.1 Presidências europeias – uma realidade mutante Francisco Seixas da Costa 10 1.2 As “novas Operações de Apoio à Paz”: oportunidade e desafios para Portugal Luís Barroso 12 1.3 Português “Radial” António Mateus 14 1.4 As relações luso-espanholas a volta do Tejo. Não só de caudais mínimos Amparo Sereno 16 “vivem” os rios 1.5 A Relação Portugal-Espanha no comércio internacional português Sandra Ribeiro 18 1.6 Brexit: the final countdown? Ana Isabel Xavier 20 1.7 Próxima paragem? Britain’s got talent Ana Isabel Xavier 22 1.8 A defesa europeia em transição: é tempo para um exército da UE? Stefano Loi 24 1.9 Geoeconomia da Europa Central: a Iniciativa dos 3 Mares Bernardo Calheiros 26 1.10 A sucessão de Angela Merkel Ana Mónica Fonseca 28 1.11 Conjuntura política do Cáucaso do Sul David Ferreira e Mónica Canário 30 1.12 Política externa do governo Bolsonaro: continuidade e ruptura Daniel Cardoso 32 1.13 À deriva no mundo: a política externa no Brasil de Bolsonaro Pedro Seabra 34 1.14 O Governo Bolsonaro: crises internas e controvérsias externas Reginaldo Teixeira Perez 36 e Marcos Pascotto Palermo 1.15 A vitória de Joe Biden Filipe Vasconcelos Romão 38 1.16 225 anos do consulado dos EUA nos Açores: a mais antiga representação Paulo Fontes 40 diplomática do mundo 1.17 Nos 70 anos da NATO Luís Valença Pinto 42 1.18 Corrida aos Armamentos, de novo Luís Tomé 44 1.19 5G, Huawei, China e Estados Unidos: a competição pela tecnologia do futuro Sofia Geraldes 46 1.20 Partidos Políticos em Hong Kong Jorge Tavares da Silva 48 1.21 Para além do Sri-Lanka Nuno Lemos Pires 50 1.22 Macau: uma ponte para os Países de Língua Portuguesa Cátia Miriam Costa 52 1.23 Empreendedorismo em África: a derradeira esperança? Renato Pereira, Redento Maia 54 e M. Naguib Omar 1.24 Senegal, o crescimento acelerado das indústrias extrativas sob a égide Ricardo Falcão 56 de Macky Sall 1.25 Angola e os ventos da mudança e continuidade de João Lourenço Cláudia Almeida 58 1.26 Contextos geopolíticos de Moçambique até ao fim da Guerra Fria Fernando Jorge Cardoso 60 1.27 Guiné-Bissau: o novo governo Clara Carvalho 62 1.28 Migração para a Europa na segunda década do século XXI e a percepção João Henriques 64 da população sobre a sua segurança 1.29 Movimentos de mulheres na Palestina e em Israel: Práticas, lutas e desafios Giulia Daniele 66 internos 1.30 Para além da “ecologia do medo”: Direito internacional, Bens Comuns Ana Margarida Esteves 68 e Economia Social e Solidária 1.31 As alterações climáticas, o uso da terra e a produção pecuária Joana Roque de Pinho 70

4 2. As Relações Internacionais em contexto de pandemia 73

2.1 Impactos geopolíticos da crise pandémica Luís Tomé 74 2.2 O imaginário pandémico global Luísa Godinho 76 2.3 COVID-19 e as operações de paz da ONU: algumas considerações Sérgio Aguilar e Julia Mori 78 2.4 Um novo pilar europeu para uma crise sem precedentes Nuno Oliveira Pinto 80 2.5 A União Europeia e a resposta ao COVID-19: coordenação e resiliência Ana Isabel Xavier 82 2.6 O impacto da pandemia COVID-19 sobre as relações transatlânticas Patrícia Daehnhardt 84 2.7 American Leadership and the International Community After COVID-19 Mark Meirowitz 86 2.8 Are China-US Relations Spiraling Down into a New Cold War? Key Flashpoints Mark Meirowitz 88 2.9 Narrativas Políticas na Pandemia e o Recrudescimento do Preconceito Pedro Steenhagen 90 com a China 2.10 The COVID-19 factor in Portugal-China Relations: time to test Paulo Duarte 92 2.11 Geopolítica: O lugar de Portugal entre tendências e trajetórias globais Samuel Caetano Vilela 94 2.12 A influência da pandemia no Conflito Israelo-palestiniano José Pita Santos 96 2.13 Pandemia agrava rececessão sul-africana António Mateus 98 2.14 Os impactos da pandemia COVID-19 no turismo mundial Brígida Rocha Brito 100 2.15 O impacto do COVID-19 a nível dos acordos internacionais: o caso do AfCFTA Sandra Ribeiro e Ingrid Barros 102 2.16 Covid-19, Segurança e Geolocalização: o desafio digital contemporâneo Danielle Jacon Ayres Pinto 104 e Jéssica Maria Grassi

Colaboradores 107

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6 Apresentação

Nos últimos doze meses, uma pandemia mudou o mundo, O OBSERVARE entendeu que estas eram razões mais do monopolizou a informação e influenciou a produção de que suficientes para que a vigésima edição do Anuário conhecimento em diversas áreas. Janus centrasse o seu capítulo temático na forma como As Relações Internacionais não escaparam aos efeitos a COVID-19 afectou o contexto internacional. desta que foi a segunda pandemia do século XXI, provo- Este número contou com a colaboração do Centro de cada pelo vírus SARS-CoV-2, doença zoonótica que a Estudos Internacionais do Instituto Universitário de Lisboa Organização das Nações Unidas1 atribuí à crescente pres- (CEI-IUL), permitindo que a edição beneficiasse do contri- são sócio-económica sobre a natureza, dinâmica que o buto de diversos investigadores desta instituição. O Anuário JANUS é publicado desde 1997, numa aposta capitalismo industrial iniciou e que se tem vindo a apro- clara do OBSERVARE e da Universidade Autónoma de fundar durante todo o Antropocénico2, não obstante a Lisboa (UAL) pela difusão de informação e análise na área denúncia científica realizada em todo o mundo. das Relações Internacionais escrita especialistas a pensar Em poucos meses, a confiança do Homem contemporâ- num público não especialista. neo, herdeiro do pós-Guerra Fria mas também das revolu- ções americana, francesa, industrial, informacional, foi 1 Human Development Report, United Nations Development Programme, 2020. 2 abalada, fazendo evidenciar velhas dinâmicas de coopera- O Antropocénico consiste no período mais recente na história planeta Terra, considerando-se ter tido início em finais do século XVIII, quando as atividades humanas começaram a ter um impacto ção e de competição entre Estados, regiões e instituições. global significativo no clima da Terra e no funcionamento dos seus ecossistemas.

Luísa Godinho e Filipe Vasconcelos Romão Editores do Anuário Janus

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1. Conjuntura internacional JANUS 2020-2021

1.1 • Conjuntura Internacional

Francisco Seixas da Costa PRESIDÊNCIAS EUROPEIAS – UMA REALIDADE MUTANTE Texto entregue em Dezembro de 2020

QUEM, DISTRAIDAMENTE, OLHAR o modelo tucionais dos parlamentos nacionais não deixa Dar a cada Estado-membro a possibilidade de, das presidências do Conselho da União Euro- também de estar presente nesse debate – um rotativamente, ser visto “à frente” das institui- peia, constatando que a rotina da sua rotação debate que nunca terá fim, tanto mais que se faz ções comunitárias confere a estas um sentido semestral permanece intocável, pode ficar com num mercado opinativo marcado pela sensibili- mais democrático, tanto mais que nesse exer- a ideia de que o modo como cada Estado-mem- dade diferenciada existente sobre o assunto no cício os pequenos Estados surgem lado a lado bro é chamado a exercer essas funções perma- seio dos diversos Estados. com outros mais poderosos, numa aparente nece, basicamente, idêntico, desde o início das paridade. Esta coreografia tem, ainda hoje, re- instituições europeias. Essa perceção é apenas O papel do Conselho flexos no modo como, em alguns países, a Euro- ilusória. A realidade é bastante diferente. E há Na constelação de poderes que se refletem no pa é percebida. Funciona, no fundo, como um razões justificativas para isso. processo legislativo em Bruxelas, os governos instrumento de proselitismo europeísta, como Desde a sua fundação, o processo integrador dos Estados-membros, sob uma lógica irrecusá- um fator de mobilização para o projeto. europeu viveu sob a necessidade de compati- vel, nunca deixaram de reivindicar para si o pa- Mas começou a ser claro que, ao lado desses bilizar a eficácia operativa das suas instituições pel central, atenta a legitimidade decorrente do aspetos positivos, as instituições podiam vir a com a sujeição do modelo a constantes testes voto nacional que lhes garante o lugar à mesa sofrer consequências negativas dessa cíclica ro- de legitimidade. decisória. tação, que podia conduzir a máquina comunitá- Essa necessidade foi-se acentuando à medida Ao longo dos anos, foram acordando no seu ria a ficar sob uma deficiente liderança por um que o leque de temáticas abrangidas pelo pro- poder relativo: no início, as diferenças entre si período de meio ano. Podemos imaginar que o cesso integrador se foi diversificando – apro- não eram tão acentuadas, mais recentemente os grande alargamento terá sido a pedra de toque fundando, no jargão europês – e, muito em tratados vieram a consagrar um fosso maior en- para tentar dar maior continuidade à liderança particular, a partir do momento em que áreas tre eles, com a chamada “ponderação” de voto do Conselho Europeu. tradicionalmente reservadas ao poder soberano – isto é, o seu multiplicador de força – a ficar Com o Tratado de Lisboa, surge assim a criação dos Estados – moeda, política externa e de de- ligado ao próprio peso demográfico, o qual, da figura de um presidente do Conselho Euro- fesa, justiça e assuntos internos – passaram a ser aliás, tinha já no Parlamento Europeu uma área peu, estabelecendo uma bicefalia de poder com abordadas à mesa de Bruxelas, pela porta aberta de forte expressão. A ideia teórica da igualdade a chefia da Comissão Europeia, e, no plano ins- em Maastricht. dos Estados, que decorria do Direito Internacio- titucional, tendo como outro parceiro o presi- Também o alargamento geográfico da União, nal, era cada vez mais isso mesmo: teórica. dente do Parlamento Europeu. agora com Estados cujo padrão médio de inte- Ao líder do Estado-membro que tem a presidên- resses, nomeadamente no processo legislativo, cia rotativa é dado, naturalmente, um papel de se afastou daquele que antes prevalecia, amea- destaque, mas essa mesma tarefa está a anos-luz çando a tradicional preeminência dos contri- Dar a cada Estado-membro daquilo que era a sua posição no passado. Dir- buintes líquidos, obrigou a um “preemptive a possibilidade de, -se-á que muito se ganhou em eficácia, mas algo strike” em sede de modificação dos tratados – se perdeu na legitimidade da União, aos olhos objetivado no Tratado de Nice e consagrado no rotativamente, ser visto dos cidadãos nacionais. Tratado de Lisboa. “à frente” das instituições O objetivo, não declarado, foi garantir que comunitárias confere Os derrotados institucionais quem se tinha habituado, desde o seu início, a a estas um sentido Mas os maiores perdedores institucionais são, ter o poder de condução do processo integra- sem a menor dúvida, os ministros dos Negócios dor o não viesse a perder, ou a diluir excessiva- mais democrático. Estrangeiros. mente, por virtude do aumento do número de Antes dos atuais Conselhos Europeus existi- novos parceiros, a grande maioria dos quais, à rem, ou quando apenas funcionavam como época, estava afastada do anterior “mainstream” A perda do direito a uma indigitação desigual reunião informal orientadora, o papel deci- de interesses prevalecente. Com maior ou me- de membros para a Comissão Europeia – lem- sório central nas instituições comunitárias era nor retórica a envolver os discursos justificati- bremos que, no passado, cada Estado “grande” cometido aos ministros dos Negócios Estran- vos, na União Europeia as coisas acabam por ser podia indicar dois comissários – a que o Tratado geiros – a quem era atribuído o título de “pre- bastante simples. Mas muitos consideram que de Nice pôs termo, com compensação no po- sidente do Conselho”. esta é apenas uma questão de eficácia. der de voto nacional no Conselho e no núme- Era nas suas reuniões, em geral mensais, que Mas a paralela questão da legitimidade das de- ro de deputados no areópago de Estrasburgo, desembocava, para ratificação final, tudo o que cisões, que se liga muito à sua aceitabilidade, é atenuou, de certo modo, a possibilidade dos emanava dos Conselhos sectoriais de ministros, também uma preocupação constante da vida eu- Estados utilizarem a Comissão como terreno de muito embora, desde muito cedo, áreas como a ropeia. Daí que, ao longo dos anos, o chamado barganha de poder. Todos sabemos, no entanto, Agricultura ou a Economia e Finanças tivessem “défice democrático” nas instituições europeias que, mesmo aí, os poderes “de facto” continuam marcado uma forte autonomia. tenha vindo a ser constatado como uma evidên- a ter desigual influência, mas, pelo menos, ficou Contudo, o caráter central dos Conselhos de mi- cia, percecionada como tal pelas opiniões pú- atenuada, no plano formal, essa diferenciação. nistros “Assuntos Gerais”, onde tinham assento blicas. Muito do trabalho em torno da revisão os chefes das diplomacias, manteve-se por mui- dos tratados não deixou de ter como objetivo A rotação das presidências to tempo no patamar supremo do processo de procurar colmatar essa falha. Dentro da afirmação da legitimidade e repre- decisão. Além disso, os ministros dos Negócios O crescente reforço do Parlamento Europeu vai sentatividade dos Estados, fez sempre parte in- Estrangeiros passaram a ter lugar cativo nos nessa direção, mas a necessidade de o compa- tegrante o exercício semestral da presidência do Conselhos Europeus, ao lado dos chefes do tibilizar com a preservação dos poderes consti- Conselho de Ministros. Estado ou de governo. Se pensarmos bem, essa

10 posição correspondia, na dimensão interna dos do governo que têm a seu cargo os Assuntos Eu- igualmente para garantir alguma uniformidade Estados, ao imenso papel coordenador, com o ropeus, que obviamente não têm lugar na sala e sentido de continuidade, foi criado o chama- direito à última palavra, que os ministérios dos e que ficam num “backstage” de mero suporte. do “trio” de presidências, que desenha um pro- Negócios Estrangeiros, por muito tempo, tive- Aqueles de quem esses “junior ministers” politi- grama comum. E, não por acaso, foi alterada a ram sobre as questões europeias. Curiosamen- camente dependem, os ministros dos Negócios ordem de exercício das presidências semestrais te, a avaliar apenas pelo caso português, isso Estrangeiros, esses ou ficam nas capitais ou de forma a garantir que, nesse trio, há sempre nem sempre se refletia no lugar do ministro dos dedicam-se a outras tarefas. um estado “grande” da União. Negócios Estrangeiros na hierarquia governa- Mas a Europa, para os chefes da diplomacia, aca- Nada acontece por acaso nesta Europa... n mental interna. bou? Claro que não. Os ministros dos Negócios Um dia, porém, esse mundo, quase imperceti- Estrangeiros continuam a reunir com regulari- velmente, desvaneceu-se. Aquilo a que a lingua- dade, mas com uma pequena-grande diferença: gem das Necessidades chama de “ministérios enquanto cerca de uma dezena de formações sectoriais” ganhou asas próprias, reforçou forte- ministeriais, mais técnicas, têm reuniões pre- mente a sua presença direta em Bruxelas, atra- sididas pelos ministros do país que exerce a vés de gente sua colocada nas Representações presidência semestral, as reuniões dos chefes Permanentes junto da União Europeia, em claro das diplomacias passaram a ser tituladas pelo detrimento da coordenação feita nas capitais. Alto Representante da União para os Negócios Essa evolução não se fez da mesma forma em Estrangeiros e Política de Segurança, dependen- todos os países, mas é detetável uma tendência te do Conselho e que é, simultaneamente, vice- geral nesse sentido. Na perspetiva de alguns -presidente da Comissão Europeia. Os chefes observadores, as questões europeias deixaram, das diplomacias nacionais são “coordenados” em muitos casos, de ser vistas como do foro da pelo chefe da diplomacia europeia, assuma-se política externa, para passarem a ser temas de ou não isto abertamente. natureza interna, que os ministérios técnicos Mas não só: por todo o mundo, a ação dos em- discutem com os seus pares europeus e com baixadores dos Estados-membros passou a ser as instituições, tendo pouco sentido continuar coordenada pelo representante diplomático da a tentar comportá-los num quadro diplomático União, pertencente ao Serviço Europeu de Ação tradicional. Essa leitura, segundo outros, esque- Externa, acreditado como embaixador da União ce a importância da coordenação de posições, Europeia. É ele quem reúne os embaixadores por forma a garantir a coerência global da atitu- nacionais, quem fala localmente em nome da de do país no quadro europeu. União. A mudança foi muito significativa. Mas se o papel coordenador dos ministérios dos Negócios Estrangeiros se foi diluindo, alguns Presidências condicionadas terão pensado que, pelo menos, aquilo que é o As presidências semestrais tiveram sempre “core” da atividade das máquinas diplomáticas condicionantes, que limitavam a liberdade dos pudesse ser preservado nas mãos dos gestores Estados que as assumiam para desenharem um da política externa, os ministros dos Negócios programa à sua exclusiva vontade. Estrangeiros. Mas, também aí, o mundo mudou Desde logo, porque estavam dependentes da bastante. conjuntura e não podiam estabelecer uma agen- O crescente papel dos chefes do Estado ou de da que a não tivesse em conta. Depois, porque governo na vida europeia levou para as suas havia que respeitar o que estivesse no “pipeline” reuniões, para os Conselhos Europeus, o essen- legislativo da União, sob proposta da Comissão. cial das grandes decisões. E o Tratado de Lisboa, Finalmente, em especial tratando-se de Estados quase sem se dar por isso, consagrou a saída dos menos poderosos, porque era sempre necessá- ministros dos Negócios Estrangeiros do lugar, rio negociar a colocação na agenda semestral de no sentido físico da expressão, que tinham nos iniciativas que pudessem ser vistas como abalan- Conselhos Europeus. Agora, quando em Bruxe- do a rotina e os ritmos marcados pelos “powers las se reúnem as figuras de topo dos executivos that be” dentro da máquina. nacionais, vão acompanhadas com os membros Acresce que, para evitar grandes surpresas, mas

UMA PRESIDÊNCIA ATÍPICA A presidência de 2021 é a primeira que Portugal exerce sob o modelo criado pelo último Tratado europeu: o Tratado de Lisboa, finalizado precisamente durante a nossa última presidência, em 2007. Portugal tem perante si um tempo europeu de grande exigência, seja na gestão das questões decor- rentes da pandemia, como a distribuição das vacinas, seja nos efeitos do Brexit nos diversos aspetos da vida europeia. Mas, igualmente, espera-se da presidência um trabalho de impulso para acelerar o ca- lendário das ajudas financeiras decididas durante a presidência alemã. O facto de a Comissão Europeia ter um papel central na execução prática de muitas destas dimensões, não dispensa o Estado-membro que exerce a presidência da necessidade de intervir nas arbitragens que vierem a ser entendidas por necessárias. Dois pontos se destacam, entre outros, naquilo que a presidência portuguesa quer deixar como sua marca no semestre: a realização da cimeira europeia com a Índia e um Conselho Europeu dedicado a consagrar um conjunto de decisões, que anuncia como muito significativo, na área social. No primeiro caso, estamos perante o diálogo com uma potência emergente com uma posição determinante na área indo-pacífica. No segundo, numa União marcada por um crescente afastamento dos cidadãos, o refor- ço da dimensão social pode ser uma chave determinante para mudar algumas perceções negativas e dar um novo impulso à agenda europeia.

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1.2 • Conjuntura Internacional

AS “NOVAS OPERAÇÕES DE APOIO À PAZ”: OPORTUNIDADE Luís Barroso E DESAFIOS PARA PORTUGAL Texto entregue em Agosto de 2020

DESDE O INÍCIO DOS ANOS NOVENTA, as Forças alteração profunda para as operações de apoio à populações, está a centrar-se também no caráter Armadas Portuguesas têm levado a cabo um con- paz “tradicionais”, em especial em relação à apa- humanista da intervenção, desmilitarizando a tínuo processo de transformação para se adap- rente contradição entre intervenção humanitária segurança humana e evidenciando o caráter cos- tarem ao novo ambiente estratégico decorrente e realidade das operações1. No centro da discus- mopolita da intervenção. do fim da Guerra Fria, tendo sido o fim da cons- são reside uma alteração dramática da natureza crição um dos elementos mais importantes. Por- operações de apoio à paz, que passam a estar A importância das operações tugal seguiu os processos de transformação que mais dependentes da capacidade de combate das de baixa intensidade tiveram como denominador comum a conversão forças envolvidas. A probabilidade de as forças armadas portugue- de exércitos de defesa territorial em exércitos ex- As atuais operações de apoio à paz2 têm sido o sas se empenharem em operações de baixa inten- pedicionários. Desde essa data, Portugal tem vin- método mais comum na gestão de crises, espe- sidade na sequência de conflitos intraestatais é do a ter uma relevante participação em operações cialmente em estados frágeis onde a proteção substancialmente mais elevada do que em opera- de apoio à paz, com um efetivo a rondar os 30 de civis é a missão mais exigente, tendo deter- ções de alta intensidade (combate convencional). mil militares em várias partes do mundo (Angola, minado duas importantes alterações: a adoção A capacidade militar do Ocidente, liderado pelo Moçambique, os Balcãs, Timor Leste, Afeganistão, de medidas “robustas” para proteger civis; e uma EUA, apoiada na NATO e, de certa forma, comple- Líbano e República Centro Africana) sob a égide mudança na clareza e no conteúdo dos manda- mentada pela UE, é hegemónica se considerar- da ONU, da União Europeia (UE) e NATO, o que tos, especialmente necessários para operações de mos o emprego de forças militares em combate releva o seu papel como produtor de segurança. apoio à extensão e consolidação da autoridade convencional. Todavia, a hegemonia militar pode Ao mesmo tempo que o final da Guerra Fria do estado3. Depois do insucesso das missões da ser uma “ratoeira” porque os adversários desa- orientava as forças militares para operações de ONU em proteger os civis no Ruanda e em Se- fiam o poder hegemónico na franja do espetro baixa intensidade (intervenção limitada e opera- brenica, o relatório Brahimi refere que nada afeta do conflito em que aspiram vencer. Consequen- ções de apoio à paz), o espetro da ameaça russa mais a credibilidade de uma missão de paz do temente, pequenas guerras não declaradas e a leste tem impelido a NATO para a necessidade que a incapacidade para proteger civis4. ambíguas tendem a proliferar quando existe um de garantir capacidades para operações de alta poder hegemónico8. intensidade. As participações de forças portugue- Nunca o poder militar foi tão destrutivo, rápi- sas em exercícios na região do Báltico, no âmbito do e eficaz, mas nem sempre é suficiente para das medidas dissuasórias da NATO, evidenciam a A capacidade militar do implementar mandatos, controlar territórios e preocupação em agilizar processos, em promo- Ocidente, liderado pelo EUA, populações, apoiar a reconstrução de estados ver a interoperabilidade e em projetar forças. ou prestar apoio humanitário, tal como se tem Neste contexto, é importante responder às apoiada na NATO e, de certa evidenciado no Iraque e no Afeganistão e Mali. seguintes questões: Como pode Portugal ca- forma, complementada pela UE, Os conflitos internos no Iraque, Afeganistão e na pitalizar esta situação e reforçar a sua posição é hegemónica se considerarmos Síria demonstram que o poder está fragmenta- internacional como produtor de segurança? Pode o emprego de forças militares do e se nivela na franja inferior do espectro do um exército estar regularmente empenhado em conflito, onde nem mesmo as grandes potências operações de apoio à paz e estar preparado para em combate convencional. conseguem impor a sua “hegemonia”. A facili- operações de combate convencionais? Como é dade com que se adquire uma AK-47, granadas que Portugal pode ser um ativo participante em ou explosivos, democratiza a violência, pelo operações de apoio à paz e estar preparado para A partir de 2011, o Conselho de Segurança au- que a ordem social e política pode facilmente as demandas de uma operação da NATO? torizou a MINUSMA, a MINUSCA e a MONUSCO, ser ameaçada por pequenos grupos de atores Se as forças armadas portuguesas estiverem pre- sob os cânones do relatório Brahimi. As mis- violentos. paradas para participar nas operações de apoio à sões foram lançadas onde havia conflito aberto A probabilidade de um país ocidental, ou orga- paz como as que atualmente são executadas na e envolvimento de terceiros, tendo as forças nização internacional dominada por países oci- República Centro Africana, estarão também muito envolvidas adotado uma postura mais vigoro- dentais, se empenhar em operações para limitar melhor preparadas para os desafios da sua partici- sa5. Esta aproximação depende da utilização da os efeitos da existência de estados falhados, lutar pação em operações convencionais de que a NATO força armada ao nível tático, especialmente na contra o terrorismo ou proteger populações, necessita. O sucesso das primeiras depende da ca- proteção de civis6. Aquelas missões estão mais como são as atuais operações de apoio à paz em pacidade de combate das forças de paz para im- próximas da estabilização do que das operações África, é francamente elevada. Assim, para além por o mandato, lidar com os “spoilers” e proteger de apoio à paz “tradicionais”, ao serem dirigidas da sua recorrência, será do mais elementar prag- populações ameaçadas. Os requisitos operacionais para neutralizar potenciais “spoilers” e apoiar matismo considerar esta tipologia de operações das atuais operações de apoio à paz são muito se- estados frágeis, o que muda significativamente a como “o normal” num futuro próximo, com todas melhantes aos requisitos das operações de comba- sua natureza: são mais robustas, mais focadas na as consequências que essa opção encerra, como a te, especialmente ao nível tático, onde se localiza o proteção de civis e vêm adotando a estabilização adaptação e desenvolvimento de doutrinas, o en- nível de ambição estratégica de Portugal. como objetivo principal7. sino militar profissional e treino de forças9. Porém, a atual situação resultante da pandemia Se, por um lado, a fragmentação do poder desa- As exigências das “novas” da COVID-19 pode minimizar o impacto das fia as principais potências militares, por outro, é operações de paz “operações robustas”. A COVID-19 aumenta a uma excelente oportunidade para as pequenas O relatório Brahimi, publicado no seguimento do vulnerabilidade das populações mais afetadas potências relevarem o seu papel como produto- insucesso da ONU na Somália e no Ruanda, que pelas crises humanitárias e pela falta de capaci- res de segurança internacional, como é o caso recomenda a execução de “operações de apoio dade de resposta dos estados frágeis, pelo que de Portugal. Na verdade, países como a França, à paz robustas”, deu início à discussão acerca da a missão de paz, ao proporcionar o apoio às EUA e Alemanha, que têm capacidade e peso po-

12 lítico internacional para liderarem operações de torial e na ONU a referência na legitimidade de hospitais; operações de descontaminação e de apoio à paz, têm-se mantido relutantes e assumir de intervenção externa, aos estados-membros desinfeção de lares; apoio à abertura das escolas; um papel mais relevante. A França tem-se focado cabe o papel de assumir um papel mais pre- ações de sensibilização para a prevenção; apoio essencialmente em zonas onde os seus interes- ponderante na ação externa da UE. à instalação de hospitais de campanha) deram ses económicos estão em causa; os EUA refreiam Pela elevada probabilidade de proliferação de um capital de confiança e de credibilidade que o seu empenhamento devido ao “síndrome da crises e conflitos intraestatais, Portugal deve poderá também ser utilizada no vários teatros de Somália”, aos problemas que enfrentam no Ira- optar por considerar os conflitos do tipo “esta- operações. n que e no Afeganistão, bem como à sua ambiva- bilização”, ou de apoio à paz, como prioridade lência na forma como a atual Administração se estratégica. Assumi-la não implica colocar de relaciona com as organizações internacionais; a lado as operações de “alta intensidade”, mas Alemanha, a maior potência económica da UE, tão só preparar-se para o mais óbvio, frequente tem na NATO e na UE o seu eixo em termos de e, ao mesmo tempo, permitir que as suas forças política de defesa, havendo muito raras referên- militares ganhem experiência operacional. Além cias à ONU no discurso político e em documen- do mais, ao nível tático as operações de apoio tos oficiais10. à paz exigem forças de combate e isso é muito Portugal tem sido um dos mais importantes con- relevante para o nível de ambição de Portugal, tribuintes para a segurança internacional, tendo garantindo que as forças cumprem os requisitos já empenhado cerca de 30.000 militares em mais operacionais para a NATO. Notas 1 Kurth, James (2006). Humanitarian Intervention after Iraq: de trinta locais diferentes. O peso específico de Forças expedicionárias, modulares, e equipa- Legal Ideal vs. Military Realities. Orbis (winter 2006), pp. Portugal nos sistemas internacionais tem refletido mento e armamento de alta tecnologia não são 87-101; Banta, Benjamin R. (2017). Leveraging the idea of “humanitarian war”. International Relations 31(4), pp. o esforço dos sucessivos governos em combinar sinónimo de eficácia e sucesso nas operações. 426-446; Bode, Ingvild e John Karlsrud (2018). Implementation a diplomacia com o emprego de forças militares. Paradoxalmente, lutar contra ameaças “assimé- in practice: the use of force to protect civilians in United Dadas as recorrentes imitações financeiras, a apa- tricas” com modelos convencionais acentua a Nations peacekeeping. European Journal of International Relations, pp. 1-28 (Publicado online, disponível em https:// rente especialização de Portugal neste tipo de “armadilha da hegemonia” e intensifica a confli- journals.sagepub.com/doi/10.1177/1354066118796540). operações é uma mais-valia para a política exter- tualidade internacional. Além do mais, o foco no 2 As operações de apoio à paz são aqui entendidas como ações militares multidimensionais com o objetivo de mitigar conflitos na, tornando o país mais visível junto de outras emprego tradicional da força releva a importân- armados em países terceiros. Podem ser levadas a cabo por um potências com mais peso internacional11. Não foi cia dos meios e a condução das operações para só país, embora a norma seja a utilização de organizações um acaso o facto de a França ter intercedido para alcançar uma vitória militar em vez de se dar mais internacionais. Na última década, as operações levadas a cabo pela UA são muitas vezes consideradas como uma que Portugal assumisse a missão de Quick Reac- relevância às condições políticas que se deseja reminiscência de guerra, embora a capacidade demonstrada tion Force (QRF) na RCA. que prevaleçam após a crise ou guerra15. no terreno seja o seu principal “calcanhar de Aquiles” (Weiss, 12 Thomas G. & Welz, Martin (2014). The UN and AU in Mali and O Conceito Estratégico de Defesa Nacional , Aderir à conceção tradicional da vitória militar Beyond: A Shotgun Welding?. International Affairs 90 (4), releva o papel da ONU, da NATO e da UE como pode subordinar a estratégia à tática, o que le- pp. 889-905). parceiros na segurança internacional e como vanta um enorme desafio na educação e treino 3 Bellamy, Alex J. e Charles T.Hunt (2015). Twenty-first century UN peace operations: protection, force and the changing elementos ordenadores dos sistemas interna- dos militares. Aos quadros são exigidas perícias security environment. International Affairs 91 (6), cionais. A realização da estratégia rege-se pela militares e sociopolíticas que os prepararem para pp. 1278-1279) 4 United Nations (2000). Report of the Panel on United Nations regra utilização racional e eficiente de recursos, ambientes complexos, as quais são adquiridas Peace Operations. New York, 2000, p. 51 (Documento que são escassos. Assim, é necessário olhar para pela experiência, raciocínio crítico e investiga- A/55/305–S/2000/809, disponível em http://undocs. as novas missões de apoio à paz como oportu- ção, e que admitam a ambiguidade como regra. org/A/55/305). 5 Berdal, Mats (2019). What are the Limits to the Use of Force nidade e como elemento fulcral na geração do As Forças Armadas (em especial o Exército) têm in UN Peacekeeping?. In Coning Cedric de, and Peter, Mateja capital de competências necessário para lidar uma longa experiência em combates de baixa (eds.). United Nations Peace Operations in a Changing Global Order, Cham, Switzerland: Palgrave Macmillan, pp. 113-132. com a atual complexidade do ambiente estraté- intensidade, que remonta às campanhas de pa- 6 Tardy, Thierry (2011). A Critique of Robust Peacekeeping in gico e, até, liderar operações combinadas. cificação de finais do século XIX em África, que Contemporary Peace Operations. International Peacekeeping, passa por treze anos de guerra em África e, mais 18 (2), pp. 152-167. 7 Bellamy e Hunt 2015; Karlsrud, John (2015). The UN at war: Que desafios e que oportunidades? recentemente, nos Balcãs, Afeganistão, Líbano, examining the consequences of peace-enforcement mandates Com a sua disponibilidade, Portugal reforça a Iraque e RCA. Há muito mais ação militar além for the UN peacekeeping operations in the CAR, the DRC and Mali. Third World Quarterly, 36(1), pp. 40-54. posição euro-atlântica e torna-se um ponto de do combate tradicional, que envolve proteger 8 Hart, B. H. Liddell. (1967/1991). Strategy (2nd rev. ed.). New referência na relação com os países de língua populações, controlar território, impor a lei e or- York, NY: Meridian; Modelski, George (1987). Long cycles in oficial portuguesa, contribuindo de forma de- dem, proteger infraestruturas e garantir serviços world politics. Seattle, WA: University of Washington Press. 9 Travis, Donald S. (2018). Decoding Morris Janowitz: Limited cisiva para a consecução dos objetivos estraté- básicos às populações. War and Pragmatic Doctrine. Armed Forces & Society, pp. 1-24. gicos do país13, cimentando a sua credibilidade Mais recentemente, a COVID-19 veio também Publicado online, disponível em https://journals.sagepub.com/ doi/full/10.1177/0095327X18760272). externa. As continuadas missões no Afeganis- colocar importantes desafios na preparação e 10 Weiss, Thomas G. e Martin Welz (2015). Military twists and tão, no Iraque e, mais recentemente, na RCA execução de operações militares, em que a regras turns in world politics: downsides or dividends for UN peace e no Mali evidenciam essa faceta da política sanitárias impõem restrições nos efetivos e nos operations?. Third World Quarterly, 36 (8), pp. 1493-1509. 11 Pinto, Maria do Céu (2015). Portugal: An Instrumental externa portuguesa. Para além da importân- contactos com as populações. Adicionalmente, a Approach to Peace Support Operations. Journal of cia que pode assumir junto da CPLP, Portugal COVID-19 é um fator que pode agudizar os con- Contemporary European Studies, 23 (1), pp. 118-139. 12 Governo de Portugal (GoP) (2013). Conceito Estratégico pode ser ainda mais relevante junto da UE, flitos existentes e ser catalisador de novos. Apesar de Defesa Nacional. Disponível em https://www.defesa.gov.pt/ cujo conceito estratégico (EUGS – European disso, a COVID-19 é também uma oportunidade pt/comunicacao/documentos/Lists/PDEFINTER_ Union Global Strategy)14 releva a importân- para as forças em missões de apoio à paz, que DocumentoLookupList/10_Conceito-Estrategico-de-Defesa- Nacional.pdf (Acedido em 25 janeiro 2019) cia da União como promotor de segurança podem ter uma componente mais cosmopolita 13 GoP 2013. humana, reconhecendo que não tem havido ao centrar-se também na desmilitarização da se- 14 EEAS (2016). European Global Strategy: Shared Vision, Common Action, A Stronger Europe: A Global Strategy for the soluções rápidas para os atuais conflitos na So- gurança humana, minimizando os efeitos da ne- European Union’s Foreign and Security Policy. Brussels: mália, no Mali e no Afeganistão. A UE vem assu- cessidade de conduzir operações “robustas”. As EEAS, (disponível em http://europa.eu/globalstrategy/sites/ mindo cada vez mais relevância nas missões de recentes ações de apoio civil que as Forças Arma- globalstrategy/files/full_brochure_year_1.pdf ); EEAS (2017). From Shared Vision to Common Action: Implementing the paz, especialmente nas regiões de África e do das Portuguesas executaram para minimizar o im- EU Global Strategy Year 1: A Global Strategy for the European Médio Oriente por serem um foco de instabili- pacto da COVID-19 (produção e distribuição de Union’s Foreign and Security Policy, (Brussels: EEAS, June 2017), disponível em https://europa.eu/globalstrategy/en/ dade que ameaça de o espaço europeu. Assim, gel desinfetante; distribuição de alimentação; ins- vision-action (acedido em 10 de Agosto 2018, 21:00). tendo na NATO a referência na defesa terri- talação de tendas de apoio à triagem em dezenas 15 Travis 2018, pp. 5-7.

13 JANUS 2020-2021

1.3 • Conjuntura Internacional

António Mateus PORTUGUÊS “RADIAL” Texto entregue em Abril de 2020

“If you talk to a man in a language he unders- de escolas quase duplicou no mesmo intervalo, milhões, o que elevaria para mais de mil milhões tands, that goes to his head. de 28 para 51) mas pela sua progressiva reinte- o grande total de potenciais lusofalantes, como If you talk to him in his language, gração na China. língua materna, factor de unidade nacional ou that goes to his heart”. proximidade direta/interesse comercial/cultural. Nelson Mandela Português levado a mil milhões No “Estudo da Estrutura diplomática portugue- Já em segundo momento ilustra-se a mancha de sa” publicado pelo Observare e pela Universi- QUAL O CONTRIBUTO QUE UMA LÍNGUA EM países lusófonos e respectivos vizinhos directos, dade Autónoma de Lisboa (UAL), em 2019, no GERAL E A PORTUGUESA, em particular, podem que quase triplica o território preenchido pelos capítulo “Novas formas de representação”, é ter para o cumprimento da Agenda 2030 de primeiros. Uma leitura que pode quantificada avançada uma formulação de “Embaixadas ra- Desenvolvimento Sustentável, particularmente através de levantamento sistematizado nos mapas. diais”, cuja aceitação esteve longe de ser pacífi- quando o mundo enfrenta à escala global o im- ca, na comunidade diplomática. pacto da pandemia do coronavírus? Mas do qual importa respigar uma justificação A 1 de janeiro de 2016 entrou em vigor uma convergente na tese deste paper, quando cita resolução da Organização das Nações Unidas Se os oito países lusófonos Enrique Fanjul em “Clusters y hubs: nuevas (ONU) com dezassete objetivos (desdobrados contabilizam, entre si, mais ideas para el servicio diplomatico”, para sus- em 169 metas) dedicada às várias dimensões do de 290 milhões de habitantes, tentar e defender a lógica regional e o con- desenvolvimento sustentável (social, económi- os respectivos vinte e quatro ceito de “cluster” na abordagem estratégica co, ambiental), à promoção da paz e da justiça e de Relações Internacionais. “Uma embaixada à eficácia das instituições. vizinhos somam mais radial, sendo de âmbito regional, pressupõe Nela, os líderes dos 193 estados-membros da de 822 milhões, o que elevaria uma ação vasta, implicando uma equipa de ONU comprometiam-se a resolver as carências para mais de mil milhões diplomatas, os quais deveriam ter meios para tanto em países desenvolvidos como em desen- o grande total de potenciais agirem com mobilidade, com condições de volvimento, vincando que ninguém devia ser boa conectividade, mantendo-se em contacto deixado para trás. lusofalantes. não apenas com as autoridades dos Estados Desde então, o mundo assistiu à maior crise situados no perímetro da sua atuação, mas de refugiados e migrantes económicos desde a também com muitos outros interlocutores Segunda Guerra Mundial, que evidenciou as fra- Se os oito países lusófonos contabilizam, entre e, em geral, com a sociedade civil dos países gilidades dos compromissos de solidariedade si, mais de 290 milhões de habitantes, os respec- envolvidos. Tal intervenção deveria corres- (sustentáculo da Agenda 2030) mas resultou tivos vinte e quatro vizinhos somam mais de 822 ponder a objetivos políticos claros, sujeitos também no avanço de fórmulas de “ataque ao problema na sua origem”. Entre estas, a promoção do desenvolvimento sustentado – em particular nas zonas de maior instabilidade social e/ou sócio-económica – criador de condições de manutenção/fixação das populações nas respectivas zonas/países de origem. Em tese submetida à décima-primeira edição dos “Encontros da Tapada”, promovidos em re- gime de Chatam House pelo Instituto Diplomá- tico e o Ministério dos Negócios Estrangeiros, o autor defendeu a utilização estratégica da Lín- gua Portuguesa numa abordagem radial (a que voltaremos mais adiante), a partir dos diferentes PAÍSES DE LÍNGUA PORTUGUESA países lusófonos. Sendo a língua um factor estruturante nas trocas comerciais e nas dinâmicas culturais importa olhar primeiro a inserção global des- ses países-eixo e, depois, sugerir uma aposta estratégica daquela na promoção do desenvol- vimento transfronteiriço e regional. Em levantamento identificado na tabela, assina- la-se a dispersão transcontinental dos países lu- sófonos, a que pode ser adicionado o território de Macau, não só pelo número significativo de estudantes de língua portuguesa (que a nível dos ensinos primário e secundário subiu ali de 6.838, em 1999/2000, para cerca de oito mil, no ano lectivo em curso, enquanto o número PAÍSES DE LÍNGUA PORTUGUESA E PAÍSES VIZINHOS

14 PORTUGUÊS “RADIAL” POPULAÇÃO (milhões) PAISES VIZINHOS POPULAÇÃO P.V (milhões) ANGOLA 32,866 Botsuana 2,351 Congo 5,518 Namíbia 2,54 Rd Congo 89,56161 BRASIL 212,559 Zâmbia 18,383 Argentina 45,195 Bolívia 11,673 Colômbia 50,882 Guiana 0,786 Guiana Francesa 0,298 Paraguai 7,132 Perú 32,971 Suriname 0,586 Uruguai 3,473 Venezuela 28,435 CABO VERDE 0,555 N.A. N.A. GUINÉ-BISSAU 1,968 Senegal 16,743 Guiné-Conacri 13,132 MOÇAMBIQUE 31,255 África do Sul 59,308 Malawi 19,129 Suazilândia 1,415 Tanzânia 59,734 Zâmbia N.A.(1) Zimbabué 14,862 PORTUGAL 10,196 Espanha 46,754 SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE 0,219 N.A. N.A. TIMOR-LESTE 1,318 Indonésia 273,523 TOTAL 8 PAÍSES 290,936 24 822,767 TOTAL GLOBAL 1113,71 (1) Já contabilizada. Fonte: Worldometers (2020) a avaliação periódica, com explicitação das e convergência de interesses, Portugal estaria a áreas temáticas preferenciais para o trabalho actuar como facilitador/dinamizador das trocas diplomático”. comerciais regionais e da diluição de potenciais Após sustentar que “uma representação com focos de conflito. as características acima descritas e uma agenda Caso o incentivo ao ensino/aprendizagem da que, para além dos objetivos político-diplomá- língua portuguesa implicasse um esforço fi- ticos habituais”, identificasse também “áreas nanceiro adicional de Lisboa, tanto a nível de temáticas fundamentais que se prendam com os encargos diretos como na alocação de recursos interesses portugueses na região” reconhece a humanos especializados (por insuficiências do prudência de “lançar uma ou outra experiência destinatário), esse esforço poderia ser contra- piloto, a título experimental”. tualizado através dos atrás referidos acordos Isto pelo “carácter inovador e eventualmente bilaterais e/ou multilaterais. problemático da instauração de embaixadas ra- diais com a natureza agora descrita”. Em caso de bom resultado da fórmula, a experiência poderia “replicar-se ao ponto de, gradualmente, abranger Propõe-se assim uma aposta o conjunto das regiões por onde se dissemina”. no incentivo ao ensino Língua em estratégia inovadora da língua portuguesa em todos Já na tese avançada neste “paper” parece ao os Estados vizinhos de países autor ser despiciente esse teste prévio, por não lusófonos, através de acordos estar em causa a lógica de funcionamento da es- bilaterais ou multilaterais. trutura diplomática, em si, mas a transposição do modelo “radial” para a disseminação do “veí- culo língua”. Propõe-se assim uma aposta no incentivo ao en- A título exemplificativo, a redução de taxas sino da língua portuguesa em todos os Estados aduaneiras nos países destinatários a produtos vizinhos de países lusófonos, através de acordos “Made in Portugal”, proporcional ao encargo bilaterais ou multilaterais, a promover por Lis- implicado pela aplicação deste modelo para os boa, numa lógica estratégica inovadora. contribuintes portugueses. Ou a candidatura a Sendo o conhecimento/partilha de uma mesma financiamento por fundos multilaterais dedica- língua factor facilitador de comunicação/enten- dos a projectos de fixação das populações mi- dimento e, como tal, potenciador de permutas grantes nas respectivas zonas de origem. n

15 JANUS 2020-2021

1.4 • Conjuntura Internacional

AS RELAÇÕES LUSO-ESPANHOLAS A VOLTA DO TEJO. Amparo Sereno NÃO SÓ DE CAUDAIS MÍNIMOS “VIVEM” OS RIOS Texto entregue em Setembro de 2019

DURANTE A ÚLTIMA SECA NA PENÍNSULA, aquela nomeadamente para a adaptação às alterações de Entrepeñas, Buendía e Bolarque – que são as que coincidiu com os trágicos incêndios de Pe- climáticas – como aliás, já aconteceu na prática situadas na nascente do Rio Tejo e tradicional- drogão Grande e que por isso mesmo nunca ire- uma vez, com a revisão do PA em 2008 mente se destinam – com as limitações legalmen- mos esquecer, vieram a público – concretamente, Acresce que, atualmente está em marcha um te estabelecidas – a realizar os transvases do Tejo através da LUSA (27.11.2017) e atrás dela outros processo de revisão da Diretiva Quando da Água para o Segura – bacia nacional espanhola situada meios de comunicação portugueses – notícias (DQA), norma esta que vincula tanto Espanha na vertente mediterrânea – e cujos principais de que Espanha não cumpriu os caudais mínimos como Portugal e que aponta no sentido de esta- beneficiários são os membros do Sindicato de la nem no Douro, nem no Tejo, nem no Guadiana belecer para todas as bacias europeias, de modo Comunidad de Regantes del Aprovechamiento durante o anterior ano hidrológico (entre 1 de ainda mais expresso e inequívoco, os denomi- Tajo-Segura (SCRATS) provenientes das provín- outubro de 2016 e 30 de setembro de 2017). Esta nados “caudais ecológicos”. Isto é, aqueles que cias de Alicante, Múrcia e Almeria. notícia, baseada numa informação cuja fonte era permitem a sobrevivência dos ecossistemas Esta jurisprudência abre um importantíssimo a ONGA ZERO foi posteriormente desmentida associados aos rios – leia-se nas zonas húmidas precedente, que penso terá influência não ape- pelo Ministro do Ambiente português e pela sua e estuarinas, que são as mais valiosas do ponto nas a nível nacional, mas também internacional, homóloga espanhola. Ambos coincidiram em de vista ambiental – mesmo em época de seca considerando que o Plano do Tejo, constitui, no que o único incumprimento (durante uma sema- prolongada. fundo, um instrumento de aplicação dos objeti- na) se tinha produzido no Tejo devido a obras no vos da DQA. Assim, na interpretação do Supre- açude de uma barragem espanhola – acabadas O Acórdão do Supremo Tribunal mo Tribunal – dificilmente rebatível, na minha as quais Espanha terá entregue os caudais ne- espanhol sobre o Tejo opinião – para cumprir a Diretiva é necessário cessários para cumprir a Convenção – e no Gua- A 11 março de 2019, o Supremo Tribunal (ST) ter em conta de modo prioritário a “demanda diana o incumprimento, excecional, terá sido por espanhol emitiu um acórdão sobre o Tejo. Este ambiental” da bacia – e não outras demandas de parte de Portugal (e não de Espanha). veio, de certo modo, adiantar-se tanto ao legis- carácter económico (fora o consumo doméstico lador nacional, como ao europeu. Mediante o que constitui um direito humano) tanto internas mesmo, o Alto Tribunal anula vários artigos do como externas à bacia – estas últimas são as de- Plano do Tejo – concretamente, o artigo 9º 1, 3, mandas do SCRATS. (...) a Convenção de Albufeira 5, 6, e 7 e os correspondentes apêndices 4.1, 4.2 Verdade seja dita, o Acórdão não pode ser con- está melhor preparada para e 4.3, bem como o artigo 10º.2. Neste último se siderado uma “vitória total” das entidades recor- as alterações climáticas do que estabelecia que os caudais ecológicos do Tejo não rentes (vários municípios e ONGA), uma vez que seriam exigíveis entre 2015 e 2021. O Acórdão sobre a questão de se todos os usos (incluídos a maioria das Convenções afirma que estes artigos violam a obrigação da os recreativos/turísticos) da bacia de origem ou existentes a nível mundial. Administração do Estado de estabelecer no Plano “cedente” (o Tejo) devem ter prioridade sobre do Tejo um regime de caudais ecológicos com- os usos agrícolas da “bacia recetora” (o Segura) pleto (com caudais máximos, mínimos e taxas o Tribunal “lava as mãos”, remetendo para o le- de cambio) para todos as 309 massas tipo rio da gislador espanhol: ele é que deve estabelecer a No entanto e segundo o acordo bilateral sobre bacia (e não apenas para 16) entre 2015 e 2021. prelação dos usos da água. Isto é, consumo hu- a matéria – Convenção de Albufeira de 1998 –, Além disso, o Tribunal conclui que, para cumprir mano e caudal ecológico para a bacia do Tejo nem cabe à sociedade civil (ONGA, associações os caudais ecológicos do Tejo, deverá recorrer-se, são “intocáveis”, a seguir deverá ser o legislador etc) nem aos Governos (ministros do ambiente, se necessário, à agua armazenada nas barragens espanhol a determinar a ordem de prioridades. ou outros) o “acompanhamento” da Conven- ção – leia-se, supervisão do cumprimento. Esta A VIGÊNCIA DOS ACORDOS SOBRE AS BACIAS HIDROGRÁFICAS LUSO-ESPANHOLAS função, como o seu nome indica, cabe à Comis- DATA DESIGNAÇÃO DO ACORDO VIGÊNCIA são de Acompanhamento e Desenvolvimento Emenda ao Regime de Caudais da CA de 1998, aprovada pela Conferência 2008.02.19 SI (desde 05/08/2009) da Convenção (CADC), que, no entanto, ficou das Partes. muda, deixando a cidadania confusa com notícias 1998.11.30 Protocolo Adicional à CA de 1998: “Regime de caudais”. SI (desde 17/01/2000 contraditórias. Convenção sobre Cooperação para a Protecção e Aproveitamento Sustentável das 1998.11.30 SI (desde 17/01/2000) Paralelamente, desde a sociedade civil (tanto es- águas das Bacias Hidrográficas Luso-Espanholas – Convenção de Albufeira (CA). 2º Protocolo Adicional ao Convénio de 1968: Aproveitamento hidráulico do troço panhola como portuguesa) e também desde os 1976.04.09 Parcial1 internacional do rio Minho. partidos políticos e outras associações preocupa- Convénio para regular o aproveitamento hidráulico dos troços internacionais 1968.11.05 Parcial das com a causa ambiental, se ouvem vozes cada dos rios Minho, Lima, Tejo, Guadiana e Chança. vez mais insistentes a pedir a revisão da Convenção 1968.11.05 Protocolo Adicional ao Convénio de 1968. Parcial de Albufeira (CA), visando aumentar os caudais mí- Convénio para regular o aproveitamento hidroeléctrico dos troços internacionais 1964.07.16 Parcial nimos que circulam no Tejo – tanto em Espanha do rio Douro e dos seus afluentes. como em Portugal – e alegando que nalgumas 1964.07.16 Protocolo Adicional ao Convénio de 1964. Parcial Convénio para regular o aproveitamento hidroeléctrico do troço internacional zonas “o rio está morto”. Em bom rigor, o que 1927.08.16 NO do rio Douro. se pede não é uma revisão da CA, mas sim do seu Nota do Governo português; e Protocolo Adicional (PA) onde se estabelece o re- 1912.08.29 Nota do Governo espanhol. Residual2 gime de caudais. Todavia, segundo a própria CA, 1912.09.02 Notas trocadas entre os Governos de Portugal e Espanha aprovando as regras para o aproveitamento industrial das águas dos rios limítrofes dos dois países. estes caudais mínimos não constituem um facto 1864.09.29 Anexos ao Tratado de Limites entre Portugal e Espanha Residual consumado, se não que podem ser revistos 1 A vigência é reconhecida expressamente no artigo 27º da CA de 1998, mas desde que não colida com o disposto nesta última. cada vez que as Partes o considerem necessário, 2 Não foi expressamente revogado por nenhuma norma posterior, mas não é aplicável em tudo o que se oponha à Convenção de 1998.

16 do Tejo – o que é imprescindível para travar o Outra questão diferente é o modo em como está • Valladolid efeito da denominada “cunha salina”. a ser aplicada a CA, bem como a “aparente” im- Porto • Salamanca • Assim, antes de avançar para aquele projeto punidade das Partes face aos incumprimentos Madrid conhecido como a “Alqueva do Tejo” que iria do regime de caudais e/ou doutras obrigações • solucionar os problemas da Associação de Bene- processuais exigidas pela CA – tais como troca de ficiários da Lezíria Grande de Vila Franca de Xira informação, notificação e consultas prévias face a (ABLGVFX), cujos agricultores não podem regar projetos que podem causar impactes ambientais Albacete • • Badajoz • devido à salinidade cada vez maior da água, penso nas águas ou sistemas de medição dos caudais e Lisboa que seria necessário fazer uma pausa: aguardar fiabilidade dos mesmos. pela execução do Acórdão do Supremo Tribunal, pelo fim do processo de revisão da DQA e, nessa altura – esperemos que já a situação política es- panhola esteja estabilizada – sentar-se a negociar. (...) o que é preciso (é rever) Antes afigura-se difícil, uma vez que o “pontapé de o estatuto de funcionamento saída” para um novo regime de caudais (tal como aconteceu em 2008) deverá partir da Conferência da CADC e adaptar o regime MAPA DA BACIA HIDROGRÁFICA das Partes – ou seja, o Ministro de Ambiente por- de caudais (...) INTERNACIONAL DO TEJO tuguês e o seu homólogo espanhol. Portanto só Fonte: https://algargosgeoespain.blogspot.com/2017/12/ depois das próximas eleições nacionais portugue- sas e se, entretanto, a situação política espanhola estiver estável é que teremos interlocutores váli- Ora bem, segundo a CA quem deve aplicar a RIO Entrepañas TEJO dos para o início das negociações. Convenção é a CADC. Mas, como podemos res- Buendía ponsabilizar uma Comissão que não tem qual- • Cuenca Conclusão. O défice de aplicação quer autonomia jurídica ou financeira e que da Convenção de Albufeira (CA) depende completamente da Conferência das Em síntese, pode-se dizer que, atualmente, a Partes (CoP), ou dito doutro modo do “Governo Alarcón Valência • principal crítica a CA reside na ideia da Conven- do dia”? Neste ponto, sim, temos bastante a ção não estar preparada para as “alterações climá- aprender com o Norte de Europa, em especial ticas” (AC´s), uma vez que no seu texto nem se das Comissões do Reno ou do Danúbio, para dar • Albacete define nem se usa este conceito. A meu ver, esta um par de exemplos. São estas Comissões com é uma leitura muito redutora e simplista do que autonomia financeira e personalidade jurídica, Talave é a interpretação da lei. Nenhum texto jurídico onde os respetivos Presidentes podem atuar com Camarillas • Alicante se esgota em si mesmo, antes deve ser lido e in- independência e imparcialidade. Cenajo terpretado no âmbito do ordenamento jurídico Ou seja, o que é preciso não é “rever” a CA, mas RIO SEGURA • muito mais amplo e para o qual, a CA, claramen- sim o Estatuto de funcionamento da CADC e adap- Murcia te remete no seu artigo 2º. Eis que eu defendo tar o regime de caudais tantas vezes quanto seja ne- justamente o contrário. Isto é, a CA está melhor cessário, dependendo da verificação dos cenários MAPA DO AQUEDUTO TEJO-SEGURA preparada para as AC´s do que a maioria das climáticos prognosticados para a Península Ibéri- Fonte: https://sites.google.com/site/trasvasetajoamb/ Convenções existentes a nível mundial sobre a ca – e eles estão já amplamente estudados. Para matéria. Durante a minha investigação de douto- isso convém que Espanha e Portugal trabalhem em E, segundo o Tribunal, à luz da atual legislação ramento, que culminou em 2010 e no seguimen- conjunto, visto que o problema é comum, não me espanhola os usos recreativos/turísticos do Tejo to da qual publiquei vários textos para os quais parece que sejam viáveis “soluções estilo Trump”: não têm primazia sobre os usos agrícolas dos be- me remeto – alguns podem ser encontrados em Spain first ou Portugal first. n neficiários do SCRATS. https://sites.google.com/site/amparosereno/home Ora bem, a verdade é que a DQA não aborda a – realizei um trabalho de comparação da CA com questão dos direitos ribeirinhos – que sim são as mais conhecidas Convenções sobre a matéria. considerados, por exemplo, na Convenção das Não estou aqui a querer dizer que as analisei NU sobre rios internacionais para usos diferen- todas. O qual é impossível até porque, entre 2010 tes à navegação. Mas esta Convenção – assinada e o momento em que escrevo este Capítulo, po- tanto por Espanha como por Portugal, e que en- dem ter sido publicadas outras não abordadas na trou em vigor em 2014 –, estabelece um regime minha investigação. Mas penso que pelo menos jurídico destinado às relações entre Estados ribei- as mais importantes, sim, e a verdade é que não rinhos – não entre estados federados ou comuni- encontrei nenhuma que no próprio texto da dades autónomas – pelo que dificilmente seria Convenção estabelecesse numericamente, ou aplicável pelo Supremo Tribunal espanhol. seja em Hm3, a quantidade de água que uma Par- Importa referir também que nem a Convenção da te deve entregar à outra (ou outras) e o modelo ONU, nem a DQA proíbem de modo expresso os de cálculo da mesma. Este facto é notável, uma transvases inter-bacias, apenas os condicionam. vez que os caudais mínimos, por muito criticáveis Neste sentido, a Diretiva é muito mais exigente que sejam, constituem uma referência fundamen- porque considera não apenas o bom estado das tal para os Estados ribeirinhos que lidam com massas de água bacia, mas também as águas de problemas de quantidade de água. É normal que transição e as águas costeiras (até uma milha as Convenções das grandes bacias do Norte de náutica). Isto é, o Acórdão do Supremo Tribunal Europa – Reno ou Danúbio – se centrem muito espanhol é uma boa notícia porque a execução mais na qualidade da água – pois os problemas do mesmo significa: mais água para o Tejo médio, no Norte têm mais a ver com cheias do que com mais água para as massas de água transfronteiri- secas – mas penso que para muitos países do Sul ças e, em último termo, mais água para o Estuário a CA deveria ser um modelo a seguir.

17 JANUS 2020-2021

1.5 • Conjuntura Internacional

A RELAÇÃO PORTUGAL-ESPANHA NO COMÉRCIO Sandra Ribeiro INTERNACIONAL PORTUGUÊS Texto entregue em Outubro de 2019

NUM MUNDO CADA VEZ MAIS GLOBAL, o co- internacional, divulgadas pelo INE, as expor- nificativamente superior ao verificado em 2016 mércio internacional torna-se um pilar para a tações de bens em Portugal aumentaram, em (+3,5%), tendo totalizado 48 219 milhões economia, as empresas e as famílias, quer pelo 2017, 10,0%, em termos nominais, face ao ano de euros em 2017. A considerar, no entanto, rendimento que gera, quer pelo acesso a bens anterior (+0,8% em 2016), totalizando 55 029 que as importações do conjunto dos Estados- necessários para a produção de outros, quer milhões de euros. O valor das importações de -Membros fora da Zona Euro aumentaram 6,6% ainda pelo que permite em termos de bens bens aumentou 13,1% relativamente ao ano (+304 milhões de euros), o que corresponde disponíveis para o consumo final. Assim, as anterior (+1,8% em 2016), totalizando 69 489 a um acréscimo face à taxa de variação regista- profundas alterações que se têm sentido no milhões de euros. da em 2016 (+3,4%). As estatísticas do comér- comércio internacional, nas últimas décadas, cio internacional fornecidas pelo INE referem afetam, de forma direta e indireta, os países e ainda que em sentido inverso ao ocorrido nos os indivíduos, quer enquanto consumidores, quatro anos anteriores, a importância dos quer enquanto trabalhadores. Portugal tem Poderá constituir uma estratégia países pertencentes à Zona Euro como forne- testemunhado estas transformações e o bom para Portugal reforçar o seu cedores de bens a Portugal diminuiu, tendo desempenho das suas exportações é hoje es- peso na balança comercial atingido um peso de 69,4% em 2017 (-1,0 p.p. sencial para um crescimento económico equi- face a 2016). librado. espanhola a aplicação Espanha tem sido o principal parceiro comer- O modelo gravitacional constitui um dos de características específicas cial de Portugal nas últimas décadas, apesar principais modelos para explicar os fluxos co- na comercialização que poderão de, em 1997, Espanha ter sido o segundo cliente de Portugal, sendo o principal a Ale- merciais existentes entre países, utilizando as ser mais adequados em principais variáveis que justificam esses movi- manha. Muitos são os fatores que fomentam mentos. O modelo inicial apresentado por Tin- determinadas regiões. esta relação tais como: proximidade geográfi- bergen (1962) apresenta o comércio entre os ca, cruzamento de necessidades vs capacidade países como sendo baseado na distância exis- produtiva, inexistência de barreiras alfandegá- tente entre eles e na interação derivada do ta- Os países da zona Euro constituem o principal rias, culturais e a proximidade linguística. manho das suas economias. Neste seguimento, destino das exportações de bens portugueses Em 2017, Espanha permaneceu como principal Bergstrand, (1985) defende a aplicação de uma tendo, em 2017, atingido os 34.107 milhões de parceiro comercial de Portugal, com um peso equação gravitacional, sendo esta uma regres- euros, resultado do acréscimo de 8,7% relati- de 25,2% nas exportações (representando são linear, que procura encontrar os valores vamente ao ano anterior (+2 721 milhões de 13.861 milhões de euros) e 32,3% nas importa- dos coeficientes de forma a analisar o impacto euros). O que vem suster o aumento de 3,8% ções (representando 22.453 milhões de euros), que as diferentes variáveis independentes po- antriormente verificado em 2016. As exporta- e foi o mercado que mais contribuiu para o au- dem ter na explicação do comportamento da ções para o conjunto dos Estados-Membros mento global em ambos os fluxos. Aliás, de sa- variável dependente, ou seja, dos fluxos co- fora da Zona Euro aumentaram 7,2% (+447 lientar que, similarmente ao ocorrido nos dois merciais. Ao longo dos anos muitos modelos milhões de euros), tendo em 2016 também anos anteriores, Espanha foi o país que mais estudados foram apontando diversas variáveis crescido 6,2%. No entanto é de salientar que, contribuiu para o aumento global das exporta- independentes para explicar o nível de comér- em sentido contrário ao registado nos dois ções, com um aumento de 7,2% (acréscimo de cio, e as mais utilizadas nas equações gravi- anos anteriores, o peso das exportações para 931 milhões de euros), sobretudo devido aos tacionais são: o PIB de cada país, a distância a Zona Euro na globalidade do comércio inter- metais comuns, produtos agrícolas e veículos existente entre os países e variáveis Dummies, nacional diminuiu para 62,0% (-0,7 p.p. face e outro material de transporte. O mesmo se inseridas para criar um cenário diferente para a 2016). sucedeu com as importações, tendo sido Es- cada tipo de análise desejada. Destas fazem Os países da zona euro também constituem panha o país que mais contribuiu para o cres- parte, entre outras, a proximidade cultural; a os principais fornecedores de Portugal tendo- cimento global deste fluxo, com um aumento proximidade linguística; o facto de pertencer, -se até verificado que as importações de bens de 10,4% em 2017 (+2.108 milhões de euros), ou não, a uma região económica comum, o fac- provenientes do conjunto dos países da Zona principalmente em resultado das importações to de possuir, ou não, fronteira física. Euro aumentaram 11,5% face ao ano anterior de veículos e outro material de transporte, me- De acordo com as estatísticas do comércio (+4.991 milhões de euros), crescimento sig- tais comuns e produtos agrícolas.

EVOLUÇÃO DO PESO DE ESPANHA (%) NAS IMPORTAÇÕES E EXPORTAÇÕES PORTUGUESAS – 1985 A 2016 Importação Exportação

35,0 30,0 25,0 20,0 15,0 10,0 5,0 0,0 1985 1987 1989 1991 1993 1995 1997 1999 2001 2003 2005 2007 2009 2011 2013 2015 2016

18 TABELA 1 – POSIÇÃO E QUOTA DE ESPANHA NO COMÉRCIO INTERNACIONAL DE BENS DE PORTUGAL Dada toda esta análise elaborada, é possível 1997 2007 2017 traçar algumas medidas a nível estratégico para Posição 2 1 1 fomentar as relações comerciais na Península Portugal como cliente de Espanha % Export. Espanha 14,5 24,5 25,2 Ibérica. Posição 1 1 1 Assim, poderá constituir uma estratégia para Portugal como fornecedor de Espanha % Import. Espanha 23,5 29,9 32,3 Portugal reforçar o seu peso na balança comer- Fonte: ITC – International Trade Centre cial espanhola a aplicação de características específicas na comercialização que poderão TABELA 2 – POSIÇÃO E QUOTA DE PORTUGAL NO COMÉRCIO NTERNACIONAL DE BENS DE ESPANHA ser mais adequados em determinadas regiões 2013 2014 2015 2016 2017 (comunidades autónomas e/ou províncias) Posição 3 3 5 5 4 Portugal como cliente de Espanha face a outras. % Export. Espanha 7,47 7,50 7,16 7,15 7,80 Dado que Espanha constituí, até a nível inter- Posição 8 8 8 8 8 no, um mercado muito competitivo, poderá a Portugal como fornecedor de Espanha % Import. Espanha 3,92 3,78 3,90 3,88 3,54 cooperação constituir um instrumento crucial Fonte: ITC – International Trade Centre para fomentar a competitividade. Os clusters têm características específicas de cooperação Dado que os valores das importações são su- o modelo gravitacional apresentado no início, e competição que têm contribuído para o au- periores aos das exportações com Espanha, está explicado o facto de Espanha ser o prin- mento da competitividade que se reflete no Portugal possui com o seu principal parceiro cipal parceiro comercial de Portugal, pois os crescimento económico do país onde se inse- comercial um défice na balança comercial. países têm proximidade geográfica, cultural e rem. Segundo Mateus (2008), “existe um ciclo Contrariamente ao verificado no ano anterior, linguística. vicioso uma vez que a competitividade das o défice bilateral com Espanha aumentou, em No entanto, e apesar de todos estes aspetos empresas fomenta a competitividade de um 2017, em 1.176 milhões de euros, correspon- positivos que incrementam as relações comer- país que gera condições para que as empresas dendo ao maior agravamento do saldo entre os ciais também existem para Espanha em rela- possam adquirir maiores níveis de competiti- parceiros comerciais de Portugal, permanecen- ção a Portugal, existem em menor peso. Ora vidade. Os clusters tomaram-se numa forma do assim, destacadamente, como o mais eleva- vejamos: Portugal não é o único país com que de promover a competitividade das empre- do, atingindo -8.592 milhões de euros. Espanha faz fronteira, e está próximo geogra- sas e, consequentemente, a região e a nação Alargando o período de análise (ver gráfico) ficamente também da Alemanha e da França. onde se inserem”. Neste sentido, deverá, cada podemos analisar desde 1985 o sentido cres- Situação que pode, em parte, justificar o facto vez mais, fomentar as trocas a nível transfron- cente do peso das importações e, apesar de al- de Portugal não ser o principal parceiro co- teiriço aproveitando todo o esforço envolta gumas diminuições pontuais (principalmente mercial para Espanha. De salientar, também, destas regiões por parte da União Europeia, em 2013) o peso das exportações também tem que Espanha não é um mercado único e ho- nomeadamente com o programa INTERREG e tido tendência positiva. Esta tendência repre- mogéneo dado que é constituído por diversas os estímulos que incidem sobre a cooperação senta, de 2013 a 2017, um crescimento médio regiões, agrupadas em 17 Comunidades Au- transfronteiriça. n anual das exportações de 6,6%, enquanto as tónomas (CA). As características intrínsecas a importações aumentaram 5,5%. cada uma das comunidades fazem com que a Segundo dados do Banco Mundial, em 2017, o capacidade de compra, hábitos de consumo comércio representa mais de 65,5% do PIB es- e preferências de consumidores sejam dife- panhol. A Espanha exporta principalmente au- rentes. Neste seguimento, estes diferentes tomóveis (11,2%), produtos feitos a partir do hábitos e características fazem com que exis- petróleo, peças de veículos e medicamentos e tam diferentes estratégias de comercialização importa principalmente petróleo bruto (7,3% e sobre os próprios produtos, que podem ser do total das importações), automóveis e partes mais adequados em determinadas regiões face de veículos e medicamentos. a outras. Assim, será de esperar que a aborda- A primazia que Espanha representa para Por- gem aos diferentes mercados que compõem a tugal não é “retribuída” dado que Portugal totalidade do mercado espanhol deverá ter em não é nem o principal fornecedor nem cliente consideração estas diferentes características. de Espanha. No entanto, é de salientar que a Considerando a economia espanhola como maior abertura das economias verificada nas um todo, as comunidades autónomas da Ca- últimas décadas tem permitido que o volume talunha e de Madrid concentram cerca de das relações comerciais entre os dois países da metade do total das importações espanholas Península Ibérica tenha aumentado. ao exterior (respetivamente, 27,9% e 20,2% Bibliografia geral Tal como é possível observar na Tabela 2, Por- do total em 2017). Fazendo a mesma análise, Bergstrand, J (1985). “The Gravity Equation in International Trade: Some Microeconomic Foundations and Empirical tugal é o quarto cliente e o oitavo fornecedor mas unicamente para o mercado português, Evidence”. The Review of Economics and Statistics, vol. 67, de Espanha. em 2017, estas também foram as CA principais issue 3, 474-81 Segundo dados do ICEX, os principais desti- para as importações de Espanha para Portugal, ICEX (2019). Analisis del Comercio Exterior Español nos das exportações espanholas são a França às quais se junta a Galiza. Resumindo: as prin- INE (2017). Estatísticas do Comércio Internacional, Estatísticas (14,7%), Alemanha (10,9%), Itália (7,8%), Por- cipais CA espanholas nossas clientes foram: Oficiais. Mateus, A. (2007). Knowledge, innovation, competitiveness: tugal (7,8%) e o Reino Unido (7%). Madrid (com 17,6% do total das importações the Portuguese regions, Regional Studies Association Em relação às importações, Portugal repre- espanholas a Portugal, +22% face ao ano an- International Conference “Regions in Focus”, Lisbon. senta para Espanha, nos últimos cinco anos, terior), a Galiza (17,4%, -0,7%) e a Catalunha Mateus, J. C. (2008). Importância dos clusters tecnológicos como forma de eficiência e competitividade empresarial com base o oitavo fornecedor (sendo a Alemanha a sua (14,6%, -4,4%). na integração e desenvolvimento da estratégia de Lisboa: principal origem de importações), represen- Por outro lado, os principais fornecedores de o Parque de Ciência e Tecnologia, TAGUSPARK. Dissertação tando estas, em 2017, unicamente 3,54% do Portugal foram as Comunidades da Catalunha de Mestrado, Universidade de Lisboa. Instituto Superior total das importações. (24% do total), Madrid (cerca de 15%), Galiza de Economia e Gestão. Tinbergen, J. (1962). Shaping the world economy: Suggestions Esta análise permite-nos retirar algumas con- (14%), Andaluzia (10,2%) e Comunidade Va- for an international economic policy. Nova Iorque: clusões. De uma forma geral, e de acordo com lenciana (7,1%). The Twentieth Century Fund.

19 JANUS 2020-2021

1.6 • Conjuntura Internacional

Ana Isabel Xavier BREXIT: THE FINAL COUNTDOWN? Texto entregue em Dezembro de 2020

EM 1986, UMA BANDA SUECA SUGESTIVAMEN- alterados nenhum dos seus direitos, com a entra- vestimento; transportes; energia e cooperação TE INTITULADA EUROPE lançava um hit single da em vigor do acordo de saída são três as áreas nuclear civil; pescas; mobilidade e segurança so- que ainda hoje ecoa nas playlists em modo re- sujeitas a negociações intensas sobre as futuras cial; ou cooperação judiciária em matéria penal. vival: “We’re leaving together / But still it’s fa- relações entre a União Europeia e o Reino Unido: Por sua vez, a mais recente oitava ronda de ne- rewell / And maybe we’ll come back / To earth, 1) os direitos dos cidadãos da UE residentes no gociações entre a União Europeia e o Reino Uni- who can tell? / I guess there is no one to blame Reino Unido e dos cidadãos britânicos residentes do com data marcada para 8 a 10 de setembro / We’re leaving ground (leaving ground) / Will nos países da União Europeia; 2) as contribui- de 2020, em Londres (mais de meio ano após things ever be the same again? / It’s the final ções britânicas para o pacote financeiro da UE o início formal das negociações do período de countdown (…)” até 2020 (divorce bill); e 3) o futuro das relações transição, em plena gestão do COVID-19 e sem Em contagem decrescente para o dia 31 de De- entre a Irlanda do Norte e a EU (ver caixa). extensão de prazo passível de ser solicitado por zembro de 2020, sem prorrogação solicitada a Londres até Julho), fazia antever que os progres- tempo devido e em plena gestão e contenção do sos são ínfimos e o relógio não parece parar de COVID-19, o cenário da saída sem acordo voltou correr. A tentativa de desbloquear as linhas ver- a ser colocado em cima da mesa como admissí- Nesta reta final, Bruxelas melhas de parte a parte, com o fito de quebrar vel. O(s) impasse (s) estiveram na agenda oficial continua a ser favorável o ainda impasse nas negociações comerciais, foi e oficiosa até ao último minuto. Na tarde da con- a principal preocupação de Michel Barnier que, soada, Boris Johnson e Ursula Von der Leyen, a uma saída com acordo, à margem do cronograma programático de dis- visivelmente aliviados, declaravam vitória, com mas sem ceder nas linhas cussão, antecipou a viagem para Londres para discursos díspares sobre o que significa “sobera- vermelhas que foram ditadas recuperar as questões da política de pescas ou os nia” para ambas as partes em pleno século XXI: logo a seguir ao referendo. auxílios estatais. a partir de Londres, um Brexit concretizado em Por fim, a nona e última ronda, entre 29 de Se- 2020 com promessas de recuperação e controlo tembro e 02 de Outubro, em Bruxelas, que serviu total das fronteiras e das decisões nacionais; a também de balanço oficial dos pontos de conver- partir de Bruxelas, “ser capaz de, sem qualquer Os trabalhos iniciaram-se formalmente a 25 de fe- gência de 11 meses de negociações: comércio de dificuldade, trabalhar, viajar, estudar e fechar ne- vereiro de 2020, data em que a declaração políti- bens, serviços e investimento, cooperação nu- gócios em 27 países e conseguir reunir as nossas ca anexa ao acordo de saída e o mandato negocial clear civil, participação em programas da União, forças e falar em conjunto num mundo cheio de foram aprovados pelo Conselho. segurança da aviação, segurança social e o respei- grandes poderes”1. No dia de Natal, Johnson con- A primeira ronda de negociações2 decorreu entre to pelos direitos fundamentais e pelas liberdades vidava os Britânicos a uma “história de embalar” os dias 2 e 5 de março de 2020, em Bruxelas, com individuais (ver cronologia). com as 2000 páginas do acordo, com muito peixe uma série de reuniões bilaterais entre os nego- Nesta reta final, Bruxelas continua a ser favorá- (o último dos imbróglios soberanistas) à mistura! ciadores chefes Michel Barnier e David Frost e vel a uma saída com acordo, mas sem ceder nas sessões específicas temáticas em torno de áreas linhas vermelhas que foram ditadas logo a seguir 2020: o ano de todas as (não) como o comércio de mercadorias, serviços e in- ao referendo – nomeadamente a liberdade de cir- negociações

“Este Tratado de Adesão, que ainda não UMA CRONOLOGIA vimos, e o Tratado de Roma, sobre o qual 01 Janeiro 1973 Adesão formal do Reino Unido à Comunidade Europeia. talvez tenhamos visto demasiado, são 05 Junho 1975 Referendo sobre a adesão formal. 67,2% dos eleitores votaram a favor da permanência. Referendo sobre a manutenção ou retirada do Reino Unido da União Europeia. O leave ganhou únicos na história desta nação. Este é um 23 Junho 2016 com 51,89%, enquanto o remain ficou-se pelos 48,11%. Tratado que submete às obrigações mais David Cameron demite-se. formidáveis e duradoras. É um Tratado – o 24 Junho 2016 Theresa May desencadeia formalmente o artigo 50 do Tratado de Lisboa. primeiro de nossa história – que privaria o 29 Março 2017 Parlamento britânico e o povo dos direitos 12 Dezembro 2018 Moção de desconfiança lançada pela ala eurocética do Partido Conservador. democráticos que exercem há muitos sécu- 07 Junho 2019 Theresa May abandona liderança do partido conservador e do governo. los” (Hansard, 1972). 24 Julho 2019 Boris Johnson encontra-se com a Rainha Isabel II depois de ser eleito líder do Partido Conservador. 17 Outubro 2019 Boris Jonhson renegoceia acordo de saída com a União Europeia. Eleições dão maioria expressiva a Boris Johnson com 365 dos 600 assentos. O resultado foi o melhor Às 23 horas do dia 31 de Janeiro de 2020 (meia 12 Dezembro 2019 para o Partido Conservador desde eleições de Margaret Thatcher nos anos 1980 e o pior noite em Bruxelas), 1713 dias após o referendo para os Trabalhistas desde a década de 1930. Início formal do período de transição. O Reino Unido deixa de ser Estado-membro de pleno direito de 23 de Junho de 2016, o sino Big Ben fez soar 31 Janeiro 2020 doze badaladas num dobrado ressoar: o término da União Europeia, sem participação nas instituições comunitárias. da condição de Estado-membro da União Eu- 25 Fevereiro 2020 Mandato negocial é aprovado em sede de Conselho. ropeia e a entrada em vigor de um período de 2-5 Março 2020 Primeira ronda de negociações (Bruxelas). transição que se estende até 31 de Dezembro de 20-24 Abril 2020 Segunda ronda de negociações (videoconferência). 2020, tendo em vista a formalização e aplicação 11-15 Maio 2020 Terceira ronda de negociações (videoconferência). de um acordo de saída ordenada e estruturada. 2-5 Junho 2020 Quarta ronda de negociações (videoconferência). Enquanto que no período de transição o direito 29 Junho-3 Julho 2020 Ronda restrita de negociações (Bruxelas). comunitário continua a aplicar-se ao Reino Uni- 20-23 Julho 2020 Sexta ronda de negociações (Londres). do e cidadãos, consumidores, empresas, investi- 18-21 Agosto 2020 Sétima ronda de negociações (Bruxelas). dores, estudantes e investigadores não irão ver 8-10 Setembro 2020 Oitava ronda de negociações (Londres).

20 AS DUAS IRLANDAS E O BACKSTOP No âmbito do futuro das relações entre a Irlanda do Norte e a UE, o jargão backstop foi o mais mediati- zado, assumindo-se como uma cláusula de salvaguarda exigida pela UE para impedir a existência de uma fronteira física entre a Irlanda do Norte e a República da Irlanda incluído expressamente no acordo de Theresa May com Bruxelas. Com Boris Johnson e a renegociação do acordo de saída a 17 de outubro de 2019, a principal diferença reside na revisão do protocolo sobre a Irlanda e a Irlanda do Norte6 que, na prática, deixa de ficar condicionado à negociação do futuro acordo de livre comércio entre Reino Unido e UE, mas passa a ser uma norma permanente que entra em vigor depois de terminado o período de transição. Deste modo, rejeita-se a hipótese de uma fronteira física entre as duas Irlandas e toda a ilha é tratada como um mercado único com as mesmas regras para agricultura e produção industrial. Por sua vez, a Irlanda do Norte permanecerá exclusivamente integrada na união aduaneira britânica (podendo assim beneficiar de futuros acordos de comércio livre que o Reino Unido possa celebrar com países terceiros) e alinhada com o código aduaneiro e mercado único da UE, respeitando todas as regras do mercado único e aplicando as taxas europeias para as exportações e importações. Ainda de referir que enquanto o backstop tinha de receber a luz verde da União Europeia para ser desbloqueado, no caso do protocolo tal só dependerá do Parlamento da Irlanda do Norte.

6 Idem; e Fella, S. (2020b) What is happening in the UK-EU future relationship negotiations?, The House of Commons Library (Disponível em https://commonslibrary.parliament.uk/brexit/the-eu/what-is-happening-in-the-uk-eu-future-relationship-negotiations/). culação e direitos de igualdade e reciprocidade outro país terceiro pela Organização Mundial – e deixando sempre claro que, de forma litigiosa do Comércio afigurou-se, assim, como o cenário ou amigável, um divórcio traz inevitavelmente a mais provável até à 25ª hora5. consciência e consequência que os privilégios Mesmo com prenúncio de acordo na véspera de são diferenciados quando se é Estado terceiro ou Natal, de modo a que o Reino Unido saia de facto um Estado de pleno direito. Após 11 meses, per- e de jure do mercado único e da união aduanei- sistiram ainda três grandes divergências relacio- ra da União Europeia, as linhas gerais do acordo nadas com regras de concorrência, governação e sobre as relações futuras terão que ser discutidas pescas. e ratificado pelo Parlamento Europeu, aprovado pelos 27 chefes de Estado e de Governo em sede de Conselho Europeu e, posteriormente, tradu- zido nas 24 línguas oficiais para apreciação dos Uma saída sem acordo parlamentos nacionais e regionais. em que as relações comerciais Mesmo com um acordo (provisório) que inclui e de investimento da UE com cinco anos e meio de quotas asseguradas para as comunidades pesqueiras (embora renegociá- o Reino Unido serão regidas vel anualmente a partir de 2026), caberá ainda pelas regras aplicáveis a à Presidência Portuguesa da União Europeia a qualquer outro país terceiro gestão imediata do impacto dos primeiros meses pela Organização Mundial de adaptação e reorganização na relação entre ambas as partes. Ao milagre de Natal, espera-se do Comércio. assim que a primavera Lusa consiga relançar o futuro da Europa e deixar, efetivamente, o Brexit no ano velho! n Por sua vez, Downing Street foi também clara na abordagem que pretendia de Bruxelas: uma relação de cooperação amigável que respeite a soberania britânica, sustentada por um acordo de comércio livre com tarifas e quotas zero (se- Notas melhante ao que a União Europeia mantém com 1 Citações diretas da conferência de Imprensa da Presidente 3 da Comissão Europeia. países terceiros, nomeadamente o Canadá ), bem 2 Para analisar em detalhe os desenvolvimentos de cada ronda assim condições de concorrência equitativas, de negociações, sugere-se a consulta do website https://ec. abertas e justas sem qualquer outro alinhamento europa.eu/info/european-union-and-united-kingdom-forging- new-partnership/future-partnership/negotiation-rounds-future- regulatório em que tenha de obedecer a regras partnership-between-european-union-and-united-kingdom_en sobre subsídios públicos ao setor industrial, ou (última consulta a 05 de Setembro de 2020). 3 Sobre o acordo Económico e Comercial Global entre a UE corresponder a metas europeias em matéria de di- e o Canadá (CETA) que tem sido amplamente citado pelo reitos laborais ou planos de proteção ambiental4. executivo britânico, vale a pena consultar o website https:// eur-lex.europa.eu/content/news/eu_canada_trade_ agreement-ceta.html?locale=pt (última consulta a 05 Adeus que me vou embora? de Setembro de 2020). Já em contagem decrescente, a agenda do Conse- 4 Mills, C. & Webb, D. & Areas, E. & Cowie, G. & Jozepa, I. & Dawson, J. & Fella, S. & Browing, S. & Mars, S. (2020). The lho Europeu de 02 de Setembro, sob a liderança UK-EU future relationship negotiations: process and issues, da Presidência Alemã, não incluiu as negociações House of Commons Library. (Disponível em https:// pós Brexit no alinhamento, alegadamente por au- commonslibrary.parliament.uk/research-briefings/cbp-8834/). 5 Fella, S. (2020a) Brexit: What happens next?, House of sência de progressos significativos nas negociações Commons Library (Disponível em https://commonslibrary. entre Michel Barnier, negociador chefe da União parliament.uk/brexit/negotiations/brexit-what-happens-next/). Europeia e David Frost, homólogo britânico. Bibliografia geral Uma saída sem acordo em que as relações comer- Hansard. (1972). European Economic Community ciais e de investimento da UE com o Reino Unido (Treaty of Accession). (Disponível em https://api.parliament. serão regidas pelas regras aplicáveis a qualquer uk/historic-hansard/commons/1972/jan/20/european- economic-community-treaty-of#column_681).

21 JANUS 2020-2021

1.7 • Conjuntura Internacional

Ana Isabel Xavier 1 PRÓXIMA PARAGEM? BRITAIN’S GOT TALENT! Texto entregue em Dezembro de 2020

POINTS-BASED IMMIGRATION SYSTEM OU PBS. financeiramente; preenche uma vaga num curso lismos: apresentar um historial de cumprimento É este o passaporte de entrada, a partir de 1 de de uma instituição com licença de responsabili- dos requisitos do Governo britânico em termos Janeiro de 2021, no Reino Unido – um novo zação relativa a estudantes concedida pelo Home de imigração e demonstrar vínculo com uma em- sistema de imigração por pontos que prioriza office. Importante perceber que só a entrada no presa com licença de responsabilização concedi- preenchimentos de requisitos high skilled para país exige um visto que ronda as 300 libras e as da pelo Home office. poder estudar ou trabalhar e subvaloriza a pro- propinas tenderão a ser superiores a 20 mil libras Outros três vistos personificam a nova política de veniência dos cidadãos, passando a igualar o tra- anuais já no ano letivo 2021/2022, sendo os es- imigração do Reino Unido: tamento dado aos cidadãos europeus ao mesmo tudantes europeus equiparados a um cidadão de 1) Health and Care Visa – destinado aos profis- de países não pertencentes à UE. Os controlos qualquer Estado não UE, mais do que duplicando sionais com ofertas de emprego do serviço nacio- regulares passam ainda pela monitorização do o valor das propinas a que estavam sujeitos equi- nal de saúde e prestação de cuidados que falem registo criminal. Turismo, visitas a familiares e parados a Estudantes Britânicos. inglês. O visto abrange as famílias, terão acesso amigos, atividades académicas e negócios, desde prioritário e acompanhamento privilegiado no que inferiores a seis meses não exigirão vistos. processo, incluindo taxas mais baixas de reque- Por períodos superiores a 6 meses, a taxa de re- rimento e isenção de pagamento da taxa suple- querimento paga num Visa Application Centre, Quem quiser trabalhar no Reino mentar de saúde para imigrantes. será acompanhada por uma Immigration Health Unido, a partir de 1 de Janeiro 2) Global Talent Visa – destinado a pessoas al- Surcharge que permitirá o acesso ao Serviço Na- tamente qualificadas e reconhecidas nas áreas cional de Saúde do Reino Unido. Do lado britâ- de 2021, terá que se sujeitar das ciências, dos estudos humanísticos, da en- nico e europeu multiplicam-se as campanhas de a um sistema de imigração genharia, das artes (incluindo cinema, design de informação institucional apontando o primeiro por pontos. moda e arquitetura) e da tecnologia digital, não semestre de 2021 como dealine para a regulari- sendo necessária uma oferta prévia de emprego. zação da situação dos Europeus (ver CAIXA 3). 3) Start Up e Innovator Visa – destinado a pro- Com este sistema (que o Brexit e a pandemia fissões especializadas que promovam a economia vieram acelerar como bandeiras eleitoralistas As crianças com idades entre os 4 e os 17 anos, do Reino Unido. de Boris Johnson), o Reino Unido parece reve- que desejem estudar, terão acesso a um Child lar que não pretende ser a potência cultural e Student visa. Impacto no movimento migratório económica multicultural de outros tempos e, ao Quem obtiver um diploma de licenciatura de – trabalhadores pouco qualificados orientar a sua política migratória para a qualifi- uma universidade do Reino Unido e pretende e jovens cação seletiva dos migrantes, tal poderá ser su- procurar trabalho ou trabalhar por um período Embora ainda seja difícil prever como irá ser ficientemente dissuasor para muitos nem sequer máximo de 2 anos (3 anos para estudantes de implementado e concretizado este sistema, tor- tentarem obter o seu green card. doutoramento) após concluir os seus estudos na-se expectável um impacto significativo nas pode candidatar-se a um Graduate Visa. Entrará aspirações migratórias de quem planeia emigrar Diz-me as tuas qualificações e eu em vigor no verão de 2021 com dois condiciona- para o Reino Unido nos próximos anos, nomea- dir-te-ei que visto podes obter! Até 30 de Junho de 2021, ao abrigo do EU settle- ment scheme, quem for cidadão da UE e se encon- CAIXA 1 – O SISTEMA DE PONTOS EM VIGOR A 1 DE JANEIRO DE 2021 trar a residir no Reino Unido a 31 de dezembro CARACTERÍSTICAS ESSENTIAL POINTS de 2020, pode requerer o Estatuto de Residente Oferta de emprego por patrocinador aprovado Sim 20 no Reino Unido para cidadãos da UE. Com ou Trabalho a um nível de competências adequado Sim 20 sem acordo multilateral de saída, essa será a re- Falar inglês ao nível exigido Sim 10 gra que o Reino Unido quer preservar sobretudo Salário de £20,480 (mínimo) – £23,039 Não 02 tendo em conta as relações bilaterais com os 27 Salário de £23,040 – £25,599 Não 10 Estados-membros. Salário de £25,600 ou superior Não 20 Mas quem quiser trabalhar no Reino Unido, Emprego em situação de escassez (como designado) pelo MAC Não 20 a partir de 1 de Janeiro de 2021, terá que se Qualificação: Doutoramento em temas relevantes para o trabalho Não 10 sujeitar a um sistema de imigração por pontos Qualificação: Doutoramento num tema relevante para o trabalho Não 20 (ver CAIXA 1) que beneficia quem cumprir os Fonte: Home office | Sky News seguintes três requisitos: 1) uma oferta de em- prego de uma empresa com licença de respon- sabilização concedida pelo Home Office; 2) um CAIXA 2 – MOTIVAÇÕES DE CIDADÃOS DA UE E NÃO CIDADÃOS DA UE PARA IMIGRAREM PARA O REINO UNIDO salário mínimo relevante assegurado por um Os números deste gráfico excluem os cidadãos britânicos. Os números incluem apenas a razão ‘principal’ dada, empregador com licença de responsabilização; pelo que a proporção real que vem por qualquer razão em particular pode ser mais elevada. 3) domínio da língua inglesa ao nível intermé- Fonte: ONS Provisional Long-Term International Migration estimates, February 2019, Table 3 dio B1 do Quadro Europeu Comum de Referên- CIDADÃOS DA UE 39% 19% 8% 22% 12% cia para Línguas. CIDADÃOS NÃO Para poder estudar com um visto de estudante, 23% 5% 12% 53% 7% terá de cumulativamente demonstrar que: fala, COMUNITÁRIOS lê e compreende a língua inglesa; o seu único Trabalho definido À procura Acompanhar / Estudar Nenhuma razão propósito é estudar; consegue auto sustentar-se de trabalho Juntar-se a alguém declarada / Outra

22 CAIXA 3 – EXEMPLO DE TEXTO DE UMA CAMPANHA DE INFORMAÇÃO PARA A REGULARIZAÇÃO DA RESIDÊNCIA DOS CIDADÃOS EUROPEUS PÓS BREXIT

ESQUEMA DE REGULARIZAÇÃO DA UE CIDADÃOS DA UE QUE FICAM NO REINO UNIDO APÓS O BREXIT

QUAL É O ESQUEMA DE REGULARIZAÇÃO DA UE? Se é um cidadão da UE ou familiar e gostaria de permanecer no Reino Unido após o Brexit, precisa de se inscrever no esquema de regularização da UE para obter o seu novo estatuto de imigração no Reino Unido e poder comprovar o seu direito de viver, trabalhar e estudar no Reino Unido.

QUAL É O PRAZO LIMITE? O prazo é 30 de junho de 2021. No entanto, se o Reino Unido sair sem um acordo, o prazo será 31 de dezembro de 2020.

Para os cidadãos não comunitários, DEVE ser cônjuge, casado por civil ou parceiro solteiro de um cidadão da UE, sendo que neste último caso necessitará de um cartão de residência que comprove a sua relação. Também pode inscrever-se se for parente de um cidadão da UE, seu cônjuge ou casado pelo civil como: um filho, neto ou bisneto (menor de 21 anos), filho dependente (maior de 21) um pai, avô ou bisavô dependente; ou um familiar dependente (com cartão de residência associado).

NOTA – NÃO é necessário inscrever-se se for um cidadão irlandês ou se tiver obtido anteriormente uma licença por tempo indeterminado para permanecer ou entrar.

DATAS A RECORDAR SE O REINO UNIDO SAIR SEM ACORDO: 31 Dezembro 2020 – prazo limite para o requerimento, último dia para o estatuto dos cidadãos da UE se manter inalterável SE O REINO UNIDO SAIR COM ACORDO: 30 Junho 2021 – prazo limite para o requerimento, último dia para o estatuto dos cidadãos da UE se manter inalterável damente no perfil e natureza desses migrantes. pós pandemia dos commuters de retorno aos Até há relativamente poucos meses, a principal escritórios e ao pret-a-manger, há uma indús- motivação dos cidadãos europeus em imigrarem tria que sempre viveu dos intercâmbios entre para o Reino Unido era claramente laboral (Ver universidades privadas de estudantes europeus CAIXA 2). Estando o novo sistema de imigração e não europeus que pode arriscar ser eclipsada por pontos centrado num perfil highly-skilled, a muito curto prazo. n é expectável que a entrada e permanência de trabalhadores pouco qualificados sejam muito restringidos e a burocracia muito reforçada, tendo como principais alvos os mais precários que trabalham em restaurantes, lojas, fábricas, limpezas… Para além dos trabalhadores pouco qualificados, Notas 1 Referência ao talent show que está no ar desde 2006, a mobilidade jovem poderá também ser afetada, somando já 14 temporadas, e que pretende descobrir novos mas porventura com um impacto ainda por apu- talentos nas mais diversas áreas (dança, música, artes…) rar em definitivo. Com a saída da UE, as univer- Bibliografia geral sidades britânicas deixam de poder beneficiar HM GOVERNMENT (2020), “The UK’s points-based immigration da mobilidade jovem patrocinada pelo progra- system – An introduction for EU citizens”, https://assets. ma ERASMUS e a qualificação académica jovem publishing.service.gov.uk/government/uploads/system/ com os projetos de apoio à investigação como o uploads/attachment_data/file/947984/Intro_guide_FINAL_ WEB.pdf Horizonte 2020 que traziam também oportuni- HM GOVERNMENT (2020), “The UK’s points-based immigration dades acrescidas na fixação a médio prazo. Aos system – An introduction for EU workers”, https://assets. custos e à incerteza da fixação, seguramente que publishing.service.gov.uk/government/uploads/system/ se irá reforçar a competitividade de outras na- uploads/attachment_data/file/947985/Workers_guide_FINAL_ WEB.pdf cionalidades e, senão limitar, pelo menos desin- HM GOVERNMENT (2020), “The UK’s points-based immigration centivar as deslocações de e para o Reino Unido system – An introduction for EU students”, https://assets. da comunidade académica no seu todo. publishing.service.gov.uk/government/uploads/system/ A menos que sejam desbloqueados programas uploads/attachment_data/file/947987/Students_guide__ que substituam o Erasmus e se mantenham bol- FINAL_WEB.pdf HM GOVERNMENT (2020), “The UK’s points-based immigration sas e apoios, nenhum estudante sem meios pró- system – An introduction for EU visitors”, https://assets. prios sobrevive na capital londrina por muito publishing.service.gov.uk/government/uploads/system/ tempo, mesmo com as rendas em valores míni- uploads/attachment_data/file/947990/Visitors_guide__ mos determinadas pelo êxodo transversal para FINAL_WEB.pdf UK GOVERNMENT (2020), “The UK’s points-based immigration fora das cidades onde o teletrabalho se torna system: Application guidance”, https://assets.publishing. mais barato e mais eficiente. Na prática, e mes- service.gov.uk/government/uploads/system/uploads/ mo que venhamos a testemunhar uma euforia attachment_data/file/941372/6.7031_HO_PBIS_Guidance_Re- Brand_Updates_Application_Final_2_.pdf

23 JANUS 2020-2021

1.8 • Conjuntura Internacional

A DEFESA EUROPEIA EM TRANSIÇÃO: É TEMPO PARA Stefano Loi UM EXÉRCITO DA UE? Texto entregue em Setembro de 2019

DURANTE A SUA INTERVENÇÃO NO FÓRUM DA FDE e para a realização de operações militares jeto da CED voltaram a dominar a mesa de nego- PAZ em Paris em Novembro de 2018, o Presidente fora do continente europeu – elemento crucial ciações nos anos ‘90, apesar da mudança radical Marcelo Rebelo de Sousa afirmou que “Portugal pois ainda existiam impérios coloniais. A CED do contexto geopolítico: questões como a sobe- entende que é importante um empenho crescen- assumia uma conotação de complementaridade rania militar nacional, a criação de um military- te dos europeus em matéria de defesa e seguran- relativamente à NATO, presenciava às reuniões da -industrial complex europeu e o papel da NATO ça, indissociável dos compromissos assumidos NATO com um representante permanente e tor- ditaram os limites das ambições militares da UE. com os nossos aliados transatlânticos”. Porém, o nava-se no de facto baluarte avançado de defesa Foi com a Cimeira de Saint Malo em 1998 que o Presidente especificou que “não se trata de um continental contra a ameaça soviética. projeto europeu de integração militar se pôs no- exército europeu, trata-se, sim, de um reforço do vamente em caminho. Os propósitos avançados empenho, e um empenho que é complementar na declaração de Saint Malo e definidos no Hea- daquele que é traduzido pela Aliança Atlântica dline Goal em Helsínquia em 1999 determinaram dos europeus no cenário europeu e nos cenários A PESCO é um ponto a criação de uma força militar de intervenção eu- 1 vizinhos ”. de viragem fundamental ropeia de 60.000 homens e meios de se Esta declaração mostra muitos dos problemas manterem no terreno das operações por um ano. que envolvem o tema da defesa europeia e da na história militar da UE. Todavia as perspetivas de integração militar ela- construção de conjunto de forças armadas da boradas em Saint Malo foram de facto limitadas UE: trata-se das divergências entre os interesses pela intervenção da Secretária de Estado america- geoestratégicos e as políticas de defesa nacional O facto de a CED ser um projeto tão ambicioso na Madeleine Albright que traçou os limites que dos países membros da UE, da questão da sobe- gerou fortes resistência dentro dos países mem- a ambição militar europeia podia ter, afirmando rania militar dos membros da UE, da criação de bros e principalmente em França, o principal a primazia da NATO nas questões militares eu- uma força armada ao mesmo tempo permanente país promotor. O primeiro problema que a CED ropeias e a contrariedade americana à separação e supranacional e da relação entre a UE, os EUA gerou foi de soberania, pois a CED subtraía uma (de-linking) da política de defesa e segurança eu- e, sobretudo, a NATO. margem importante da soberania nacional aos ropeia da NATO, à duplicação (duplicating) dos Apesar destes problemas, recentemente o Presi- países membros; um outro problema foi a dupli- esforços existentes em prol da segurança comum dente francês Emmanuel Macron e a Chancelera cação das funções já desempenhadas pela NATO e à discriminação (discriminating) dos membros alemã Angela Merkel têm posto no centro do de- na Europa; finalmente, outro principal elemento da NATO que não faziam parte da UE. bate a possibilidade de avançar com o tal projeto, que se tornou um travão ao desenvolvimento da O passo sucessivo no caminho em direção de afirmando que um exército da UE continua a ter CED foi a mudança substancial do contexto po- uma maior integração das forças militares euro- uma centralidade crucial na construção europeia. lítico e militar em 1953 com a morte de Estaline peias adveio com a criação dos Grupos Táticos A ideia de um exército europeu, todavia, não é e o degelo de Nikita Khruschchev, para além da ou Battlegroups, forças de intervenção rápida e uma novidade no debate político no seio da UE, conclusão do conflito na Coreia, que determi- multinacionais constituídas por 1.500 combaten- e muitos problemas ligados a este projeto ainda naram um abrandamento das tensões entre os tes mais todo o pessoal de suporte necessário. existem desde as suas primeiras formulações. dois blocos. Quando o parlamento francês não Finalmente, o Tratado de Lisboa ao artigo 42(6) ratificou o Tratado da CED no dia 30 de Agosto constituiu um ulterior avanço na cooperação Um desafio novo com raízes antigas de 1954, o projeto de defesa comum europeu militar europeia estabelecendo a PESCO, um me- A ideia de um exército europeu é recente no de- naufragou e as ambições federativas europeias canismo de cooperação estruturada permanente bate no seio da UE; contudo, já após o segundo sofreram um recuo substancial. que ambiciona criar as bases para uma mais só- conflito mundial, num contexto de tensão cres- Foi no âmbito do falhanço da CED que se puse- lida colaboração militar entre os exércitos dos cente entre o bloco ocidental dominado pelos ram as peças da questão militar europeia na mesa membros da UE. A PESCO pode-se considerar EUA e o bloco oriental dominado pela URSS, o até hoje em dia. O que ficou na mesa política como o ponto de viragem mais substancial no tema da defesa comum europeia emergiu com europeia foram os principais travões que indu- processo de criação de forças armadas europeias. força no debate sobre a estruturação das institui- ziram o fracasso da CED e das FDE: a questão ções políticas continentais. E foi em torno deste da soberania militar, a questão dos interesses Da PESCO ao exército europeu: debate que emergiu a possibilidade de criar uma geoestratégicos das potências europeias, a prima- perspetivas plataforma militar das democracias liberais euro- zia da NATO – e, por conseguinte, dos EUA – na A PESCO é um ponto de viragem fundamental peias que servisse de baluarte contra o expansio- defesa europeia. Para além destas questões, mais na história militar da UE. Todavia, a ativação da nismo soviético. Foi a partir destes pressupostos um problema formal e substancial que a queda PESCO deixa em aberto algumas questões sobre a contextuais que foi redigido o plano Pleven, em do projeto da CED deixou na mesa foi a criação integração militar europeia: a PESCO não cria um 1950, que foi a base para a criação da Comunida- de um military-industrial complex europeu que exército europeu, mas sim articula uma coopera- de Europeia de Defesa (CED) em 1952. pudesse sustentar a criação de um aparelho mili- ção entre os exércitos comunitários no quadro de Relativamente à CED, o plano de criação dessa tar comum na Europa. objetivos comuns estabelecidos sob a supervisão instituição foi no mínimo ambicioso. No Tratado do HR/VP: neste sentido, a ideia de “integração” de criação da CED é sublinhado como esta Co- A queda da URSS: um novo início? militar europeia é substituída por uma ideia de munidade integrasse um órgão chamado de Eu- O debate sobre a criação de um exército europeu “cooperação” militar. Em segundo lugar, a PES- ropean Defense Forces (FDE) – i.e., um exército não foi de facto retomado até quando a queda da CO não resolve os problemas postos na mesa já europeu – que assumia sobre si o monopólio da URSS e a guerra na ex-Jugoslávia demonstraram nos tempos das FDE: as questões da cedência da defesa dos países membros em solo europeu; os todos os limites geoestratégicos e militares da soberania militar, da sobreposição à NATO na de- membros da CED podiam manter forças armadas recém-nascida União Europeia. Contudo, todos fesa do continente europeu e da separação dos nacionais com o único objetivo de integrar as os problemas que se manifestaram perante o pro- interesses geoestratégicos europeus dos america-

24 INTEGRAÇÃO VS. COOPERAÇÃO MILITAR defesa europeia, mas sim contribuíram para os Merkel. A implementação da PESCO pode-se ler Para construir uma defesa comum europeia fo- reformular. Relativamente ao papel da NATO, a como modalidade específica do percurso em di- ram considerados dois possíveis percursos de HR/VP Mogherini reiterou que a aliança atlânti- reção do objetivo da construção de forças arma- estruturação. ca é o alicerce das relações militares UE/EUA; das da EU, ou seja, um percurso alicerçado pela A primeira possibilidade é a integração militar, contudo, as palavras de Trump induziram as ins- cooperação voluntária dos membros da EU, que que ambiciona construir um exército europeu tituições europeia a reconsiderar o papel da UE presumivelmente se irá articular cada vez mais permanente e supranacional, e organizado, con- relativamente ao ónus da defesa do território eu- até redundar na criação de um corpo militar per- duzido e pago pelas autoridades comuns euro- ropeu: de facto, isso pode ser lido como uma re- manente com uma estrutura e um comando às peias. A segunda possibilidade é a cooperação formulação do de-linking de Madeleine Albright. ordens das autoridades europeias. n militar, que implica a construção de capacidades Sobre os interesses geoestratégicos europeus, militares comuns europeias através do estabele- a conclusão do processo de descolonização em cimento de objetivos compartilhados e de de- senvolvimento de projetos. 1974 e a retoma de uma política externa asser- A primeira possibilidade caraterizou o projeto de tiva por parte russa recolocaram o baricentro da construção da Comunidade Europeia de Defesa geoestratégia europeia em direção de Moscovo: entre 1950 e 1954, projeto que fracassou devido também neste caso, as diferenças de perspetiva à resistência principalmente por parte francesa geoestratégica dos países da UE não se modificou à cedência de soberania militar às autoridades de forma substancial, mas o papel desempenha- europeias. A segunda possibilidade é o critério do por Putin contribuiu ao estabelecimento de projetual utilizado para a PESCO, não tendo um prioridades geoestratégicas orientadas para um caráter coercitivo, mas sim de adesão voluntária. reforço militar da UE. Finalmente, a saída do Reino Unido da UE implicará uma simplificação das perspetivas geoestratégicas europeias e, so- A CRIAÇÃO DA CED E DA PESCO bretudo, a saída de um país que, historicamen- “Art. 1 do Tratado da CED: Com o presente tra- tado, as partes contraentes instituem entre si a te, limitou muito as ambições militares unitárias Comunidade Europeia de Defesa, de caráter europeias em nome de um atlantismo militante. supranacional, constituída por instituições co- As mudanças referidas orientaram o processo muns, forças armadas comuns e um orçamento de construção militar europeu para uma cola- comum” boração estruturada; contudo, existem também “Art. 42(6) do Tratado da União Europeia (ver- avanços importantes num sentido de integração são consolidada): Os Estados-Membros cujas militar. Tendo em consideração as questões do capacidades militares preencham critérios mais military-industrial complex e da soberania mi- elevados e que tenham assumido compromissos litar, faz parte da perspetiva já reificada na PES- mais vinculativos na matéria tendo em vista a CO a progressiva homogeneização das estruturas realização das missões mais exigentes, estabele- produtivas militares da UE com o intuito de criar cem uma cooperação estruturada permanente um military-industrial complex que servirá de no âmbito da União”. alicerce para as forças armadas da UE. nos se mantêm no centro do debate. Porém, a PESCO e a declaração de Macron são os resultados das mudanças geopolíticas suce- Numa perspetiva de pequenos didas nos últimos anos e da relação que estas avanços (...) pode-se construir mudanças tiveram com os problemas relativos à criação de um exército da UE ainda na mesa des- uma soberania militar de o projeto da CED. Estas mudanças consistem compartilhada. na viragem agressiva da política externa russa – culminada com a anexação da Crimeia em 2014 – que consolidou os receios dos membros da EU da Europa oriental – principalmente Polónia e os Relativamente à soberania militar, a questão per- países de Visegrad – de que a Rússia constituís- manece delicada: exigir que os países membros se uma real ameaça e que se tornava necessário da UE renunciem à autonomia militar em prol consolidar as capacidades militares europeias em da formação de forças armadas europeias é alta- função de deterrência; a segunda mudança foi o mente improvável, mas numa perspetiva de pe- Brexit, que afastou do debate sobre a integração quenos avanços – já reificada pela construção de militar europeia um ator como o Reino Unido, uma política externa comum, pela criação de um que sempre limitou o desenvolvimento no sen- dispositivo militar como os Battlegroups, pela tido de integração das capacidades militares da construção de um pródromo de military-indus- UE apoderando-se, de facto, das “3 d” formuladas trial complex e por uma colaboração estruturada Notas 1 https://www.rtp.pt/noticias/rtp-europa/marcelo-recusa- por Madeleine Albright em 1999. Finalmente, a e permanente alicerçada por projetos comparti- exercito-europeu-proposto-por-macron_a1110609 política do Presidente dos EUA Donald Trump em lhados – pode-se construir uma soberania militar relação à NATO e à UE, conotada por tons asser- compartilhada evitando a subtração súbita de Bibliografia geral tivos e de limitada confiança para com os aliados margens importantes de soberania nacional aos Fursdon, E. (1980), The European Defence Community: a history, Springer europeus, contribuiu para consolidar a sensação países membros da UE. Ruane, K. (2000) The Rise and Fall of the European Defence na UE de que era tempo de ter forças armadas Sendo assim, pode-se ler a declaração de Macron Community: Anglo-American Relations and the Crisis sólidas para a defesa do seu território para a im- sobre uma armée européenne como a definição of European Defense, 1950–55, Palgrave plementação de uma política externa. de um objetivo de médio-prazo, implícito até Hunter, R. E. (2002) The European Security and Defense Policy: NATO’s Companion – or Competitor?, RAND Corporation Estas mudanças contextuais não resolveram os agora, explícito depois da declaração do Presi- Biscop, S. (2018) European Defence: Give PESCO a Chance, problemas em cima da mesa do debate sobre a dente francês e do apoio mostrado por Angela Survival, Vol. 60 Issue 3, p161-180.

25 JANUS 2020-2021

1.9 • Conjuntura Internacional

GEOECONOMIA DA EUROPA CENTRAL: A INICIATIVA Bernardo Calheiros DOS 3 MARES Texto entregue em Março de 2020

A INICIATIVA DOS TRÊS MARES (I3M) DIZ RES- de “uma região que representa 28% do território a energia, os transportes (rodoviários e ferroviá- PEITO AO ESPAÇO COMPREENDIDO entre os da União Europeia e 22% da sua população, mas rios) e a área digital (comunicações), de maneira mares Báltico, Adriático e Negro, envolvendo um apenas 10% do seu PIB.”1 Tinha por objetivo a a ser ultrapassado o atraso relativo que estes países conjunto de doze países, e constituindo-se como expansão das infraestruturas centro-europeias, têm ainda nestes domínios. Tal como sintetizado um projeto geoeconómico da maior importância o que permitiria um maior desenvolvimento eco- por Alexandr Vondra3, ao nível energético há 4 para a Europa Central. nómico da região e a recuperação do seu atraso grandes projetos: A construção da União Europeia (UE) foi feita, estrutural face aos países ocidentais. – “Uma ligação por pipeline a dois grandes até dado momento, integrando países democrá- terminais GNL: Swinoujsce, na costa báltica ticos “ocidentais”. Tratava-se de um conjunto da Polónia, já operacional; e Krk, uma ilha de Estados que, embora com desenvolvimentos croata do Mar Adriático”; económicos diferentes, tinham uma experiência (...) a I3M é claramente – A “Gas Interconnection Poland-Lithuania” histórica recente muito semelhante e marcada uma iniciativa com a maior (GIPL), que integrará mercados de gás pelas garantias de segurança da Aliança Atlântica, das relevâncias ao nível isolados dos países do Báltico na rede da UE”; o que lhes permitiu o desenvolvimento de que – “O Corredor Gasífero Norte-Sul (BRUA) que se gozam atualmente. geoeconómico e geopolítico. ligará às explorações offshore nos mares Negro Com a queda do Muro e a libertação dos países e Cáspio (via pipeline TANAP na Turquia), da “Europa do Leste”, a maior parte aderiu à UE e integrará os Balcãs na rede da UE”; e à NATO. Mantiveram, contudo, grande descon- A II Cimeira (2017), em Varsóvia, contou com – O pipeline Eastring, que ligará os pipelines fiança em relação à Rússia e certa reticência face a presença do Presidente Trump, que elogiou da Bulgária, Roménia, Hungria e Eslováquia.” às cedências em matéria de soberania exigidas a iniciativa, tendo contestado o gasoduto Nor- Na área dos transportes há a referir, segundo pela UE. Desenvolveram, assim, formas de coo- dstream II e a política alemã, ao lançar este o mesmo autor, os seguintes: peração regional paralelas, tais como o Pacto de este projeto com a Rússia em paralelo com a – “Via Carpathia, uma auto-estrada que ligará Visegrado. Estas, não pondo em causa a inte- política de sanções. Seguiu-se a III Cimeira, em um porto báltico (Klaipeda, Lituânia) a um gração europeia, enfatizavam as especificidades Bucareste (2018), que identificou os projetos hub comercial Egeu (Tessalónica, Grécia); regionais, ao nível económico (em matéria de prioritários. O encontro foi um sucesso, tendo – Modernização da auto-estrada Norte-Sul, desenvolvimento, necessidades infraestruturais, sido criado o Forum Empresarial2, bem como ao longo da estrada E65, que ligará o Báltico dependência energética, etc.), e também políti- uma Rede de Câmaras de Comércio. Foi ainda (de Szczecin, Polónia) ao Mar Adriático co e de segurança (receio do intervencionismo proposto um Fundo de Investimento dos Três (Rijeka, Croácia); russo, defesa da soberania, etc.). Mares. A IV Cimeira (2019), na Eslovénia, fez um – Rail Baltica, que ligará Varsóvia, Kaunas A UE aceitou estas formas de cooperação regio- ponto de situação sobre o desenvolvimento dos (Lituânia), Riga, Tallinn e Helsínquia; nais, sendo que estas se tornaram particularmen- projetos, mas centrou-se na criação efetiva do – Rail 2 Sea, que ligará Gdansk a Constância, te ativas no momento em que na Rússia surge Fundo dos Três Mares, que fica sob a adminis- um porto romeno do Mar Negro”4. um Presidente – Vladimir Putin – crítico do fim tração da Polónia, da Roménia e da República As infraestruturas digitais previstas e apoiadas da URSS, da perda de territórios e do avanço es- Checa e que conta já com 500 milhões de euros, pela UE são as seguintes5: tratégico da NATO para junto das suas fronteiras. uma verba ainda muito reduzida para as necessi- – Projeto RuNe, uma rede de fibra de banda Assim, organizações como o Pacto de Visegrado dades globais deste projeto. Com uma duração larga ligando áreas da Eslovénia, a Região – que agrupava a Polónia, a República Checa, a de 30 anos, pretende garantir um financiamento Autónoma de Friuli-Venezia Giulia e as regiões Eslováquia e a Hungria –, até aí com atividade na ordem dos 100 biliões de euros (a partir de de Primorsko-Goranska e Istarska; bastante residual, vão reforçar a cooperação. um investimento inicial dos Estados-membros – RO-NET Broadband Project, criação São países que veem com crescente desconfiança no valor de 5 biliões de euros). A V Cimeira de infraestruturas de banda larga em zonas as propostas mais federalistas para a construção realizar-se-á em Tallinn (Estónia), em outubro mais desfavorecidas da Roménia. europeia. Para eles, a sua segurança é garantida de 2020. Finalmente, a “Digital 3 Seas Initiative” (D3SI), sobretudo pela NATO e pelos Estados Unidos, Quanto aos objetivos da I3M, sendo recusada prevê várias áreas de cooperação6: havendo problemas que afetam a sua economia qualquer referência geopolítica, assume-se ape- – Cibersegurança; e segurança, como a dependência energética em nas como uma iniciativa para o desenvolvimento – 3 Seas Digital Highway, incluindo fibra óptica relação à Rússia. Problema tão importante quan- das infraestruturas regionais, o que permitirá e tecnologia 5G; to ficou provado que o Kremlin a usava como tirar proveito da centralidade da região e da ex- – Lançamento de iniciativas tecnológicas arma geopolítica, como se tornou evidente no celente rede de contactos com o Ocidente e com conjuntas; caso da Ucrânia. o Leste. Permite, ainda, aproximar o norte do – Implementação do programa Industry 4.0; sul e o Leste do Oeste, dando a alguns Estados – Fortalecer as redes de e-commerce. A Iniciativa dos Três Mares acesso ao mar. Já os seus opositores veem nela Contudo, a implementação destes projetos A Iniciativa dos Três Mares (I3M) é um ambicio- um instrumento de interferência geoeconómica requer um importante financiamento que não so projeto geopolítico proposto pela Polónia, e dos EUA para venda de gás de xisto, sendo que poderá ser garantido apenas pelos Estados- que nasce em agosto de 2016 em Dubrovnik, outros a consideram uma tentativa de promover -membros. Assim, para além da UE, foram já na Croácia, naquela que foi a I Cimeira da I3M, um modelo político e económico diferente do anunciados investimentos norte-americanos contando com doze Estados-membros: de Norte de Bruxelas (embora perfeitamente enquadrado (na área energética) e chineses (embora ainda a Sul, a Estónia, Letónia, Lituânia, Polónia, Repú- na UE). não concretizados). blica Checa, Eslováquia, Hungria, Áustria, Romé- A I3M foi criada para o desenvolvimento de pro- As implicações geopolíticas desta Iniciativa são nia, Bulgária, Eslovénia e Croácia. Estamos a falar jetos de infraestruturas regionais em três áreas: evidentes, estando a região no centro de uma

26 luta de titãs pelo fornecimento de gás natural A crise pandémica de COVID-19 constituiu um à Europa, um dos maiores mercados mundiais. rude golpe para os produtores de gás de xisto Junta-se a preocupação em garantir a sua autono- nos EUA, já que a diminuição do consumo levou mia energética, evitando a excessiva dependência a uma descida drástica dos preços e a uma crise dos fornecimentos russos, que serão canalizados junto dos produtores. Só o futuro nos dirá se o através da Alemanha (Nordstream II), um projeto gás de xisto continuará a estar na equação ener- germano-russo que os Estados-membros7 da I3M gética europeia e se os EUA não terão perdido o veem com grande desconfiança, preferindo-lhe a momentum face às aspirações da UE no sentido diversificação dos fornecimentos. de promover fontes de energia mais limpas, tran- Os EUA têm-se manifestado abertamente contra sição que, embora vá ainda durar alguns anos, o Nordstream II, tendo o Presidente Trump ata- está a ser acelerada com a crise. cado a política energética alemã. O fornecimen- Por tudo isto se vê a dimensão das questões que to de gás de xisto americano é do agrado dos estão em jogo e que, contrariamente ao afirmado países da Europa central, mas, para que este se pelos seus responsáveis, a I3M é claramente uma concretize na escala pretendida, há que discutir iniciativa com a maior das relevâncias ao nível o preço, já que este, embora favoreça a diversi- geoeconómico e geopolítico. ficação das fontes energéticas8, é mais alto que o gás russo. A Polónia, em 2017, fez as primeiras Conclusões importações de gás de xisto americano9,10 tendo A I3M apresenta vários desafios importantes. Andrzej Duda, o Presidente polaco, declarado Desde logo, o montante de investimento neces- que pretende celebrar com os EUA contratos de sário à concretização dos seus projetos, que só Notas longa duração, mas permanece a questão do pre- poderá ser garantido com recurso ao investimen- 1 PWC & Atlantic Council, 2017. The Road Ahead – CEE 11 Transport Infrastructure Dynamics, disponível em https://www. ço, que pode até vir a aumentar . to externo. A UE apoiou já alguns deles, mas a pwc.pl/pl/pdf/the-roa-ahead-raport-pwc-atlantic-council.pdf China tem ficado pelas promessas, havendo paí- 2 Para além de se destinar a criar um ambiente favorável à ses que a acusam de não passar das declarações implementação dos projecos prioritários da I3M, o Forum Empresarial terá também uma função de monitorização da de intenções. Os EUA, por sua vez, investem ape- evolução dos projetos em fase de implementação. “(...) a I3M só poderá ter nas no sector energético, em que têm interesse 3 Vondra, Alexandr, 2018. Regional Integration at the Three Seas Summit, disponível em https://emerging-europe.com/voices/ sucesso se mantiver direto. Falta, assim, garantir a maior parte deste regional-integration-at-the-three-seas-summit/ a orientação atual: uma investimento, sendo que o Fórum Empresarial, 4 Op. Cit. aberto à participação de países terceiros, poderá 5 European Commission, 2018. The Three Seas Initiative Summit: iniciativa regional destinada European Commission Investments in Connectivity Projects”, ter um papel importante neste domínio, mesmo Bucharest, Romania apenas a desenvolver as que o momento não seja o ideal face à crise deri- 6 The Kosciuszko Institute, 2018. The Digital 3 Seas Initiative: a call for a cyber upgrade of Regional Cooperation, Livro infraestruturas da região vada da pandemia de COVID-19. Branco, Polónia, disponível em https://ik.org.pl/wp-content/ no quadro da UE. Os EUA terão dificuldade em vender o gás de xis- uploads/white_paper_the_digital_3_seas_initiative-1.pdf to, mais caro e mais difícil de manipular, tendo 7 Com particular destaque para a Polónia que, com o Nordstream II, perderá a maior parte dos direitos de passagem do gás russo “apenas” o argumento da diversificação de abas- pelo seu território. tecimentos. Mas estes países terão também de 8 Embora a questão do preço seja naturalmente importante, há também a considerar a crescente influência da geopolítica Mas nem todos os países pensam assim. A pro- enfrentar a pressão russa e alemã. Dada a impor- no mercado da energia na União Europeia. posta apresentada por Mike Pence à Hungria, tância do gás natural, a tentação será grande de 9 Refira-se, contudo, que a Polónia pretende tornar-se num hub em 2019, para que esta resistisse às propostas recorrer aos fornecedores com melhores preços, energético regional que, eventualmente, possa vir a substituir a Rússia no fornecimento de gás natural à Ucrânia e à Moldávia. russas de alargamento do Turkish Stream até à apesar de que os EUA tudo farão para que o seu Está também a fazer grandes prospeções para a produção local Europa Central e, em vez disso, optasse pelo gás shale gas seja parte desta equação. de gás de xisto, tendo já aberto vários furos. 10 Engdahl, William, 2017. L’Initiative polonaise des Trois Mers. de xisto americano, foi recebida com frieza. Mas Tudo leva a crer que a I3M só poderá ter suces- Quel en est l’enjeu géopolitique?, New Eastern Outlook, as ambições dos EUA, por ora, não passam disso so se mantiver a orientação atual: uma iniciativa disponível em http://lesakerfrancophone.fr/linitiative- mesmo, já que os russos podem garantir um for- regional destinada apenas a desenvolver as in- polonaise-des-trois-mers-quel-en-est-lenjeu-geopolitique 11 Iniciativa chinesa para o aprofundamento da cooperação necimento contínuo imediato e a preços muito fraestruturas da região no quadro da UE, mas com diversos Estados europeus: Albânia, Bósnia-Herzegovina, mais baixos. com alguma independência dos mecanismos da Bulgária, Croácia, República Checa, Estónia, Hungria, Letónia, Lituânia, Macedónia do Norte, Montenegro, Polónia, Roménia, A China vê também com grande interesse a I3M, União, sempre lentos e exigindo consensos alar- Sérvia, Eslováquia e Eslovénia. A cooperação centra-se nas que poderia utilizar para ligação ao seu projeto gados difíceis de conseguir. Já do ponto de vista áreas das infraestruturas, educação e cultura, tendo três áreas One Belt, One Road. Embora a cooperação entre da segurança, os seus promotores têm sempre prioritárias: infraestruturas, tecnologias de ponta e tecnologias verdes. a China e os países da região se baseie na iniciati- realçado a importância da relação transatlântica. 12 A Polónia tem vindo a manifestar alguma desconfiança va “16+1”12, Pequim acompanha com crescente Espera-se agora que a V Cimeira da I3M, previs- em relação à iniciativa “16+1” por considerar que esta 13 não tem levado a grandes concretizações práticas. interesse os desenvolvimentos desta Iniciativa . ta para outubro deste ano, permita esclarecer a Também tem vindo a evidenciar algum desconforto face A Chanceler Angela Merkel, por sua vez, defen- fase em que se encontra a implementação dos ao desequilíbrio da balança comercial a favor da China. deu em janeiro de 2019 que a questão da depen- diferentes projetos e qual será o impacto da crise n Bibliografia geral dência do gás russo não se pode reduzir a uma nos mesmos. Antonio, Patrício de, 2017. La iniciativa de los Tres Mares que discussão sobre se este vem pelo gasoduto ucra- conectará la Vieja y la Nueva Europa”, disponível em https:// niano ou pelo Nordstream II, tendo-se mostrado ideas.pwc.es/archivos/20171013/iniciativa-de-los-tres-mares- disponível para uma discussão que inclua tam- conectara-vieja-y-nueva-europa/ Calheiros, Bernardo (2019). “A iniciativa dos 3 Mares: geopolítica bém o fornecimento de GNL americano à Euro- e infraestruturas”. JANUS.NET e-journal of International pa. Em contraponto, Mike Pence, Vice-Presidente Relations, Vol. 10, N.º 2, Novembro 2019-Abril 2020. dos EUA, manifestou o desconforto do seu país Gvosdev, Nikolas K., 2019. Why Europe Won’t Go for American sobre esta questão, referindo que não poderiam Natural Gas, The National Interest, disponível em https:// garantir a defesa do Ocidente se os seus aliados nationalinterest.org/feature/why-europe-wont-go-american- natural-gas-45557 continuarem a depender do Leste, tendo-se ma- The Three Seas Initiative, 2019. Priority Interconnection Projects, nifestado ainda como “vigorosamente contra o disponível em https://irp-cdn.multiscreensite.com/1805a6e8/ Nordstream II”. files/uploaded/2018%20List%20of%20Interconnection%20 Projects.pdf

27 JANUS 2020-2021

1.10 • Conjuntura Internacional

Ana Mónica Fonseca A SUCESSÃO DE ANGELA MERKEL Texto entregue em Setembro de 2019

ANGELA MERKEL OCUPA A CHANCELARIA FE- do mesmo sexo, da expansão dos cuidados político alemão. No entanto, o surgimento e re- DERAL e lidera o destino da Alemanha desde infantis e medidas de promoção da natalidade forço do papel destes partidos no novo cenário 2005, em sucessivos governos que passaram e do alargamento dos critérios de dupla nacio- partidário alemão ganhou força com aquele que por coligações de várias composições. Entre nalidade para algumas categorias de migrantes será certamente o momento-chave da Chance- 2005-2009, 2013-2017 e, novamente, no atual aproximaram a CDU de um perfil mais liberal laria de Merkel: a decisão de abertura das fron- governo (até 2021), a União Democrata Cris- e até progressista1. Foi esta adaptação que per- teiras alemãs à entrada de refugiados, o que fez tã (Christliche Demokratische Union, CDU) mitiu que a CDU de Angela Merkel fosse sempre que entre o outono de 2015 e a primavera de governou em “Grande Coligação” com o prin- saindo reforçada nas eleições federais, mesmo 2016, cerca de um milhão de pessoas entrassem cipal partido da oposição, o Partido Social-De- que esse reforço não se refletisse diretamente na Alemanha. mocrata alemão (Sozialdemokratische Partei nas votações. Ou seja, apesar de ter sempre de Deutschlands, SPD); no segundo governo que partilhar o governo em coligações – algo que é Do ‘Wir schaffen das! – nós conseguimos chefiou (2009-2013), Merkel foi a líder de uma intrínseco ao sistema político alemão – a União fazer isto’ à demissão do cargo de líder coligação à direita, com os liberais do FDP Democrata-Cristã de Merkel foi sempre assu- da CDU. (Freie Demokratische Partei). mindo o seu papel de líder incontestada de go- Foi no final de Agosto de 2015 que a Chanceler Foi a liderança de Merkel que permitiu à CDU verno, enquanto os seus parceiros de coligação Angela Merkel anunciou a sua decisão de permi- ocupar um lugar de destaque e, até podemos se iam ressentindo nas urnas. tir a entrada na Alemanha dos migrantes e refu- dizê-lo, de dominação do centro do espectro giados que se acumulavam na Hungria. Esta foi político alemão. E fê-lo através de duas estra- uma decisão unilateral do executivo de Berlim, tégias muito bem-sucedidas: por um lado, con- sem consultar com os partidos políticos repre- seguiu ocupar as áreas de intervenção daqueles (...) o governo de Angela Merkel sentados no Bundestag nem com os seus parcei- que eram os seus tradicionais partidos de opo- tem servido de bastião das ros europeus. Esta terá sido também, a decisão sição, nomeadamente o SPD e os Verdes (Die forças políticas tradicionais mais contraditória de Angela Merkel, sustentada Grüne), ao mesmo tempo que concretizou um contra a ameaça das forças com o famoso ‘Wir schaffen das!’ ou, ‘Nós con- processo de modernização da CDU no seio da seguimos fazer isto!’, dito de forma convicta e sociedade alemã. populistas. apelando à união dos alemães em torno de uma questão eminentemente humanitária2. Esta foi A estratégia política de Merkel uma frase que acabaria por vir a ser usada pelos Chegando à Chancelaria federal em Novembro Nestes catorze anos de liderança de Merkel, a vários opositores de Merkel e, sobretudo, da sua de 2005, Merkel conseguiu beneficiar das po- sociedade alemã sofreu profundas mudanças. política de abertura para com os migrantes. líticas de ajuste do estado social na Alemanha, Por um lado, e como consequência simultâ- A sua decisão de abertura das fronteiras trans- levadas a cabo pelos governos anteriores do nea, quer do impacto da já referida Agenda formou Angela Merkel numa das figuras políti- SPD em coligação com os Verdes e com o título 2010, quer da crise económica e financeira, a cas mais contestadas da Alemanha. Aquilo que abrangente de Agenda 2010. Estas medidas pas- desigualdade social no país aumentou a níveis parecia ser uma decisão de cariz humanitário e saram essencialmente por um corte no sistema até aí raramente observados. Esta desigualdade de emergência rapidamente se transformou na de apoios sociais, em várias áreas, desde pen- acabou por afastar muitos eleitores das urnas, fonte de uma das principais cisões na sociedade sões a subsídios de apoio social (desemprego, sobretudo votantes no SPD, mas também na alemã – e na própria CDU. etc.), com vista a uma adaptação da sociedade CDU. Mais recentemente, ficou claro que estes São vários os indicadores que demonstram que alemã aos desafios globais que se estavam a eleitores foram mobilizados para os partidos a decisão de abertura de fronteiras, que se acu- aproximar, ao nível europeu e não só. Apesar de mais distantes do chamado “arco da governa- mulou com o sentimento de maior fragilidade os primeiros anos da sua chancelaria ainda se ção”, quer à direita, quer à esquerda, que foram social decorrente dos cortes nos apoios sociais, pautarem por medidas de retração dos apoios ganhando cada vez maior peso no Bundestag: a agravado com as consequências da crise finan- sociais e uma menor presença do estado social, Alternative für Deutschland, AfD, de extrema- ceira, foi determinante para a fragilidade da a verdade é que ao longo do tempo, Merkel -direita, e o Die Linke, à esquerda do espectro Chanceler. Se juntarmos a isto a cada vez maior conseguiu ir compensando alguns grupos so- ciais mais afetados pelas medidas da Agenda 2010, nomeadamente ao nível das pensões, e ANNEGRET KRAMP-KARRENBAUER até reintroduziu novamente o salário mínimo, AKK, como ficou conhecida, foi líder da CDU no pequeno estado do Sarre, onde serviu o governo do depois de um longo e intenso debate político. estado por mais de dezoito anos, primeiro como ministra em diversas pastas e entre 2011 e 2018 como Do mesmo modo, a sua atuação na sequência líder do governo regional. Advogada de formação, é uma católica convicta que não evita algumas opiniões da crise financeira internacional, e que passou tradicionalmente conservadoras, entrando em choque com a tendência mais progressiva da Chanceler por ‘salvar’ bancos alemães públicos e privados, Merkel: é contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo (lei aprovada pelo governo da CDU) e tem uma posição de maior cautela relativamente à questão da imigração. Foi chamada por Merkel para ser para além de outras medidas de carácter pouco Secretária-Geral da CDU em Fevereiro de 2018, ocupando um dos principais cargos no partido. “Mini- neoliberal, acabou por colocá-la inquestiona- -Merkel”, como a imprensa alemã a identifica, foi desde logo vista como a mais provável sucessora da velmente como a força política dominante do Chanceler. Participante ativa e determinante na construção do protocolo de governo (tendo continuado centro político alemão. a trabalhar nas negociações com o SPD após um acidente de viação, enquanto estava no hospital), AKK Mas Merkel conseguiu também trabalhar para decidiu não fazer parte do elenco governativo que tomou posse em março de 2018 para se dedicar intei- modernizar o conteúdo e o posicionamento da ramente ao partido. Porém, com a saída de Ursula von der Leyen para a Comissão Europeia no verão de CDU em áreas socioculturais. A aceitação por 2019, AKK decidiu assumir a pasta da Defesa em Julho de 2019, com vista a firmar a sua posição junto parte do partido do casamento entre pessoas do eleitorado e a aumentar a sua popularidade.

28 atenção sobre o discursos anti-imigração da AfD Friedrich Merz, um antigo candidato à liderança partidos da Grande Coligação estão com as suas e a própria divisão dentro da União Democrata derrotado por Merkel, é visto como um neoli- lideranças em disputa. A acrescentar a isto, é Cristã, não é difícil concluir que a liderança de beral defensor da desregulação total. O terceiro por esta altura, a meio do mandato governativo, Merkel ficou indubitavelmente abalada com esta candidato, o atual ministro da saúde, é Jens Spahn, que quer o SPD quer a CDU reavaliarão a sua medida. um conservador moderado. prestação e a continuidade da coligação gover- As derrotas eleitorais sucessivas da CDU nas namental, o que pode levar a que sejam con- eleições federais, que levaram a que a AfD se vocadas eleições antecipadas. É difícil que assim estabelecesse como força política representada aconteça – na verdade, poderia ser uma opção em todos os estados federados, eram um mau Foi a liderança de Merkel calamitosa para ambos os partidos, uma vez que prenúncio para o futuro político da chanceler. que permitiu à CDU ocupar ambos estão a descer nas sondagens a todos Os resultados das eleições federais de Setembro os níveis (liderança, prestação internacional e de 2017, em que a CDU obteve o resultado mais um lugar de (...) dominação políticas internas), sendo ultrapassados nas in- baixo de sempre do pós-II Guerra Mundial – do centro do espectro tenções de voto pelos Verdes e, mais alarmante incluindo das eleições em que tinha saído der- político alemão. ainda, pela AfD. rotada – e as longuíssimas negociações que se A CDU foi o partido responsável pelo governo seguiram para a formação de governo, foram a da Alemanha durante mais tempo desde 1945 e gota de água para Merkel. tornou-se um elemento central para a estabilida- O resultado eleitoral alcançado pela CDU em As eleições em 2018 foram renhidas. AKK venceu de e desenvolvimento económico do país. Nos Setembro de 2017 indicava que seria a Chan- com apenas 51% dos votos, derrotando Merz na últimos tempos, o governo de Angela Merkel celer Merkel a liderar as conversações para a segunda volta. Apesar da esperança na renova- tem servido de bastião das forças políticas tra- formação de um novo governo, sob a sua lide- ção da liderança da União, AKK não conseguiu dicionais contra a ameaça das forças populistas rança. No entanto, os cerca de 30% que a União melhorar o registo alcançado por Merkel. Nas de extrema direita, de movimentos racistas e Democrata Cristã recolheu representaram o eleições europeias de Maio de 2019 e nas três misóginos que vão surgindo por toda a Europa. pior resultado eleitoral de sempre. Os seus eleições de estados federados que decorreram Esperemos que AKK consiga fazer mais e melhor parceiros de coligação, o SPD, alcançaram o mí- ao longo deste ano, a CDU continuou a descer, que a sua antecessora. n nimo de 20%. O parlamento federal resultante chegando ao valor mínimo de 23% nas eleições destas eleições, em funções em princípio até europeias. Ficou claro que não se tratava apenas 2021, elenca sete partidos políticos. Para além de um cansaço da figura e da liderança de Angela da CDU (246 deputados) e do SDP (152 eleitos), Merkel que estava a penalizar o partido. Há uma estão representados a AfD com 91 Deputados; verdadeira necessidade de renovação no discur- o FDP, com 80 representantes eleitos; e Die so e no posicionamento do partido, que deverá Linke e os Verdes / Aliança 90, com cerca de 69 procurar reocupar um espaço que começa a ser e 67 deputados respectivamente3. Pela primeira tomado pela AfD: captar o voto dos eleitores vez na história do pós-II Guerra Mundial, sete mais conservadores, mas não perdendo as suas partidos políticos têm assento parlamentar no características sociais e europeístas. Aliás, isto é Bundestag. algo comum também ao SPD, que teve uma der- Com esta configuração parlamentar tão frag- rota ainda mais assinalável, chegando aos 16% mentada, e depois da recusa inicial do SPD em nas europeias. fazer novamente parte de uma ‘Grande Coliga- ção’, um novo governo federal tomou posse em Expectativas para o futuro: AKK Março de 2018, seis meses depois das eleições. e o dilema da Democracia-Cristã Apesar das reticencias iniciais, o SPD juntou-se à Os resultados das europeias levaram a um criti- CDU (e à correspondente bávara desta, a CSU – cismo mais aceso relativamente à liderança de Christliche Sozial Union) para formar o quarto AKK. Agora a discussão está em torno de quem governo com a liderança de Merkel. será o candidato da CDU à chancelaria. No Desde então a situação tem-se agravado para a congresso realizado em Leipzig no final de No- Chanceler. As derrotas sucessivas nas eleições vembro de 2019, Annegret Kramp-Karrenbauer federais levaram a que, em Outubro de 2018, saiu reforçada. A líder demorata-cristã (e, desde anunciasse publicamente a sua demissão do car- junho, Ministra da Defesa do governo federal) go de secretária geral da CDU, ao mesmo tempo tomou uma posição firme e afirmou claramente: que anunciou também que este seria o seu últi- se não tivesse o apoio claro do partido, estaria mo mandato como Chanceler Federal. disposta a terminar ali o seu mandato4. Tal não aconteceu, mas acabou por ficar em aber- A sucessora escolhida: Annegret to qual a escolha da CDU em termos de candida- Kramp-Karrenbauer to a Chanceler. Não se trata apenas de suceder a Notas 1 DOSTAL, Jörg Michael (2019), “From Merkel to Kramp- Em Dezembro de 2018, na cidade de Hambur- Angela Merkel, depois de 18 anos de liderança Karrenbauer: Can German Christian Democracy Reinvent go, reuniu-se o Congresso da CDU onde seria dos destinos da Alemanha. Quem for o próximo Itself?”, The Political Quarterly, 90: 286-296. doi:10.1111/1467- 923X.12680. escolhida a nova líder do partido. Os três can- Chanceler federal terá de lidar com uma nova 2 Delcker, Janosch, “The phrase that haunts Angela Merkel. didatos apresentados representavam respeti- realidade política e terá de conseguir levar o par- A year on and the German leader hasn’t recovered from vamente três tendências dentro do partido. A tido por terrenos cada vez mais inóspitos para os ‘we can do it.”, Politico, 8/19/16, (Updated 8/23/16, 10:07 AM CET), Disponível em https://www.politico.eu/article/ candidata apoiada pela Chanceler, Annegret tradicionais partidos políticos. the-phrase-that-haunts-angela-merkel/ (consultado a 22 Kramp-Karrenbauer (ou AKK, como é conheci- A fragmentação da sociedade alemã, a cada de Novembro de 2019). 3 Informação do Parlamento Federal alemão. Disponível da e referida pela imprensa alemã) trazia como vez maior dificuldade em cativar o eleitorado em https://www.bundestag.de/en/parliament/plenary/ credenciais uma tendência centrista, apesar de tradicional – ao mesmo tempo que é cada vez distributionofseats (consultado a 24 de Novembro de 2019). eventualmente mais conservadora que a própria mais difícil definir o que é o “centro” político 4 “Angela Merkel’s conservatives show unity at German CDU conference”, Deutsche Welle, disponivel em Merkel, e a liderança do único estado federado da sociedade – tornam os próximos anos bas- https://www.dw.com/en/angela-merkels-conservatives-show- onde a CDU havia vencido eleições, o Sarre. tante desafiantes. Neste final de 2019, ambos os unity-at-german-cdu-conference/a-51375080 (consultado a 25 de Novembro de 2019).

29 JANUS 2020-2021

1.11 • Conjuntura Internacional

David Silva Ferreira Mónica Canário CONJUNTURA POLÍTICA DO CÁUCASO DO SUL Texto entregue em Agosto de 2020

GEOGRAFICAMENTE UMA ZONA TAMPÃO entre a território do Nagorno-Karabakh, habitado maio- na formulação de políticas, e a reforçar o sistema Rússia, a Turquia e o Irão, a região do Cáucaso apre- ritariamente por arménios. Palco de uma guerra eleitoral e o estado de direito. Pashinyan tentou senta consideráveis divisões linguísticas, étnicas, e civil entre 1988 e 1994, o território disputado é de usar a presente crise epidemiológica para ampliar religiosas. A cordilheira montanhosa do Cáucaso, facto independente após um cessar-fogo ter sido os poderes governamentais recebendo, consequen- fronteira geográfica entre a Europa e a Ásia, divide acordado em 1994. A partir de 2008, os confron- temente, fortes críticas da população e no parla- a região em duas partes: norte e sul. O Cáucaso do tos no território têm aumentado em frequência e mento, onde a oposição tem mostrado a sua Norte faz parte da Rússia, enquanto que o Cáuca- intensidade6 e, em 2016, a linha de contacto en- insatisfação com a fraca eficácia do governo no so do Sul, ou Transcaucásia, integra três países, a tre as forças azerbaijanas e arménias mudou pela combate à COVID-19, e com a crescente crise eco- Geórgia, a Arménia e o Azerbaijão, assim como os primeira vez desde os anos 90, com estas últimas nómica, pedindo a demissão do primeiro-ministro. territórios disputados da Abecásia, da Ossétia do a recuperar controlo de pequenas partes de ter- As relações entre a Geórgia e a Arménia têm alter- Sul, e do Nagorno-Karabakh.2 O enfoque deste ar- ritório7 (Simão, 2016: 2). Entre 12 e 16 de julho nado entre tensão e pragmatismo, devido à situa- tigo incidirá nos desenvolvimentos políticos domi- de 2020, uma guerra aberta entre os dois países ção de pobreza das minorias arménias no primeiro nantes nos estados pós-Soviéticos da Transcaucásia, voltou a eclodir, desta vez na região azerbaijana país; à função da Geórgia como ligação terrestre e na influência exercida pelos poderes regionais. de Tovuz, perto de um oleoduto, causando pelo entre a Arménia e a Rússia12; e à opinião negativa menos 16 mortos. de Tbilisi sobre a aliança de Ierevan com Mosco- Desenvolvimentos políticos No Azerbaijão, Ilham Aliyev está no poder desde vo13. Com o Azerbaijão, a Geórgia estabelece uma pós-independência 2003 e a sua família ocupa a presidência desde parceria estratégica, cimentada por grandes proje- Com a obtenção da independência em 1991, a 1993. O contexto eleitoral é marcado por fraude tos de infraestrutura de transporte14. As relações Geórgia adotou uma orientação favorável ao Oci- eleitoral e restrições aos meios de comunicação e entre a Arménia e o Azerbaijão têm sido domina- dente, e procurou tirar partido da sua posição à oposição política. A corrupção no país é desen- das por tensões no Nagorno-Karabakh15. geográfica para assumir um papel preponderante freada, e tem existido um declínio das liberdades em discussões sobre exportações de petróleo e gás civis em anos recentes, pelo que a Freedom House Influência dos poderes regionais natural.3 Após cerca de uma década na liderança classifica o país como “não livre”.8 A liderança azer- A sua localização geográfica, que liga a Europa e a do país, Eduard Shevardnadze foi deposto no se- baijana parece recear que a insatisfação e as exi- Ásia, explica em grande parte o interesse dos gran- guimento da Revolução Rosa, em 2003, motivada gências de uma nova geração pós-soviética no país, des poderes na Transcaucásia: árabes, mongóis, por insatisfação popular com o governo fraco, o assim como os exemplos dados pelos protestos persas, turcos e russos foram, em diferentes épo- sistema político disfuncional, pobreza, corrupção, populares em países vizinhos, tenham potencial cas, bem-sucedidos em controlar toda ou parte da e fraude eleitoral.4 O novo presidente, Mikheil para fomentar instabilidade política9. A descida do região16. Atualmente, a Rússia, o Irão e a Turquia Saakashvili, estabeleceu como objetivos a adesão preço do petróleo causada pela actual crise epide- competem por influência. da Geórgia à NATO e à UE, e a restauração da in- miológica teve um forte impacto na economia do A Rússia vê a Transcaucásia como parte da sua “vi- tegridade territorial do país,5 dado que reivindica- país, fortemente dependente das suas exportações zinhança próxima” e, portanto, como uma região ções de direito à autodeterminação na Ossétia do energéticas. de crucial importância, utilizando-a como um tam- Sul e na Abecásia tornaram os territórios de facto pão para sacudir quaisquer pressões ocidentais, 17 independentes. às quais Moscovo é bastante sensível . O futuro No Verão de 2008, durante um período de forte geopolítico da Transcaucásia é, assim, definido insatisfação russa com as perspetivas de adesão da Com o Azerbaijão, a Geórgia maioritariamente pelos desenvolvimentos globais Geórgia à NATO, Saakashvili ordenou o envio de estabelece uma parceria do espaço pós-soviético. A Rússia tem ainda interes- tropas georgianas para a Ossétia do Sul, percecio- estratégica, cimentada por ses económicos substanciais na região e desfruta de 18 nando uma invasão russa iminente. A reação russa grandes projetos de um considerável soft power . Contudo, a Geórgia, deu origem à guerra Russo-Georgiana em Agosto o Azerbaijão e a Arménia procuram manter alguma de 2008 e, desde então, tem-se verificado a ocu- infraestrutura de transporte. forma de envolvimento ocidental na região, pois pação de facto da Abecásia e da Ossétia do Sul por este propicia um efeito de alavancagem em relação parte da Rússia. Em 2012, com a derrota eleitoral à Rússia, e constitui ainda uma fonte de apoio. do partido de Saakashvili nas eleições parlamenta- O genocídio arménio, perpetuado pelo Império Espera-se que a influência chinesa aumente nos res, deu-se a primeira transição de poder pacífica e Otomano, mas negado até hoje pela Turquia, próximos anos, mas que encontre dificuldades em democrática no país. O partido Sonho Georgiano aconteceu entre 1915 e 1923, resultando, estima- desafiar seriamente a posição da Rússia. Para read- tem-se mantido no poder desde então, embora a -se, na morte de 1,5 milhões de arménios10. Em quirir controlo sobre a Transcaucásia, a Rússia utiliza sua procura de relações mais próximas com a Rús- 1922, a Arménia foi anexada à URSS, readquirindo meios militares e económicos, como a Organização sia, aliada a retrocessos democráticos e à influência a independência em 1991. Uma década de protes- do Tratado de Segurança Coletiva e a União Euro- informal do magnata Bidzina Ivanishvili na política tos pacíficos centrados em direitos humanos, am- -Asiática. A Arménia faz parte de ambas, a Geórgia e georgiana tenham resultado numa série de pro- bientalismo e questões trabalhistas e de emprego o Azerbaijão de nenhuma. testos populares em 2019. Contudo, o sucesso culminaram com a Revolução de Veludo de 201811, As relações entre a Rússia e a Geórgia têm tido uma do governo na resposta à pandemia de COVID-19 desencadeada quando Serzh Sargsyan, presidente aproximação essencialmente de carácter económico aumentou significamente a sua popularidade. A desde 2008, assumiu o cargo de primeiro-ministro sob a alçada do partido Sonho Georgiano. Adicio- Freedom House considera o país parcialmente do novo sistema parlamentar, instaurado em 2015. nalmente, a Geórgia e a Rússia encontram pontos livre, alertando para a existência de retrocessos Protestos populares motivaram a demissão de Sar- comuns na religião (ortodoxa russa) e nos valores democráticos. gsyan, e Nikol Pashinyan foi eleito primeiro-ministro sociais conservadores. No entanto, a maioria da O Azerbaijão tornou-se independente da URSS em em 2018, com o novo governo a comprometer-se a população georgiana é fortemente contra a norma- 1991, disputando desde então com a Arménia o lidar com a corrupção, a aumentar a transparência lização das relações políticas entre os dois países19.

30 O Azerbaijão procura manter boas relações com a fronteiras com o Irão e a Turquia estão sob o con- de impérios, e hoje um importante um centro de Turquia, o Irão e a Rússia, apesar da existência de trolo de guardas russos; os dois países estabelece- transportes, a região encontra na Rússia o poder tensões com os dois últimos. As relações com o ram uma unidade militar conjunta; partilham um dominante dos últimos dois séculos, embora outros Irão são afetadas pela tradição secular e de prática sistema de defesa aéreo; e a Rússia controla vários atores, globais e regionais, desafiem presentemen- tolerante do Islão no Azerbaijão; pelas suspeitas de empreendimentos estratégicos na Arménia, que te essa posição28. As revoluções Rosa e de Veludo irredentismo no norte do Irão, onde vivem números depende profundamente do seu aliado a nível ener- resultaram em progresso democrático na Geórgia consideráveis de iranianos de origem azerbaijana; gético25. As relações entre a Arménia e a Turquia são e Arménia, mas verificam-se atualmente retrocessos pela decisão de Baku de exportar recursos energéti- moldadas pelo genocídio arménio cometido pelo nesse sentido no primeiro29 , enquanto que no se- cos pela Turquia; e pelas boas relações entre Irão e Império Otomano entre 1915 e 1923, cujo reconhe- gundo as reformas não têm ocorrido a larga escala Arménia. A forte presença russa na Transcaucásia, e cimento Ierevan exige a Ancara como condição para e, dada a ausência de um sistema judicial indepen- a importância de manter boas relações com Mosco- a normalização das relações entre os dois países, dente, colocam em risco a democratização30. As vo, também condiciona a política iraniana na região. assim como para a abertura da fronteira entre estes. eleições parlamentares de 2020 no Azerbaijão, que Os interesses do Irão no Nagorno-Karabakh passam Esta condição reforça a dependência arménia da reforçaram o status quo, sugerem que progresso pela manutenção do status quo, assumindo um pa- Rússia para a sua segurança26. democrático significativo no país será um cenário pel mediador, à semelhança da Rússia, de forma a improvável, mas o descontentamento popular tem manter a atenção do Azerbaijão longe do norte do Conclusão vindo a crescer. n Irão20. Os países da Transcaucásia testemunharam, desde a independência, conflitos armados e instabilidade política na forma de guerras civis, golpes palacianos, revoluções e repressão mortal a demonstrações da Espera-se que a influência oposição27. Historicamente um ponto de encontro chinesa aumente nos Notas 23 Perchoc, P. (2017). Briefing. Azerbaijan: Geopolitics and próximos anos, mas que 1 Este texto foi elaborado com o apoio das bolsas de challenging dialogue. Disponível em: http://www.europarl. doutoramento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia com europa.eu/RegData/etudes/BRIE/2017/599418/EPRS_ encontre dificuldades as referências SFRH/BD/144062/2019 e SFRH/BD/128831/2017. BRI(2017)599418_EN.pdf em desafiar seriamente 2 Companjen, F., Marácz, L. K., & Versteegh, L. (Eds.). (2010). 24 Grigas, A. (2016). Exploring the Caucasus in the 21st century: essays on culture, 25 Simão, L. (2018). 26 a posição da Rússia. history and politics in a dynamic context (Vol. 1). Amsterdam: Idem. 27 Pallas Publications. Oskanian, K. (2013). Fear, Weakness and Power in the 3 Post-Soviet South Caucasus. Basingstoke: Palgrave MacMillan King, C. (2004). A Rose among Thorns-Georgia Makes Good. 28 Foreign Aff., 83, 13-18. Simão, L. (2018); De Waal, T. (2019). A Brief Guide to 4 Idem. Understanding the Countries of the South Caucasus. As relações entre o Azerbaijão e a Rússia são também 5 Stent, A. E. (2014). The Limits of Partnership: US-Russian Disponível em: https://carnegieeurope.eu/2019/02/11/ problemáticas, com o primeiro a desconfiar dos in- Relations in the Twenty-First Century-Updated Edition. brief-guide-to-understanding-countries-of-south-caucasus- Princeton, NJ: Princeton University Press. pub-78306 teresses de Moscovo na “vizinhança comum.” Como 29 6 Freizer, S. (2014). Twenty years after the Nagorny Karabakh Freedom in the World 2020 | Armenia Country Report. tal, o Azerbaijão desenvolve as suas relações com a ceasefire: an opportunity to move towards more inclusive (2019a). Disponível em: https://freedomhouse.org/country/ 21 armenia/freedom-world/2020 Rússia na base da procura de interesses comuns . conflict resolution. Caucasus Survey, 1(2), 109-122. 30 7 Simão, L. (2018). The EU’s Neighborhood Policy towards the Freedom in the World 2020 | Azerbaijan Country Report. O Azerbaijão importa um volume considerável de South Caucasus. Expanding the European Security Community. (2019b) Disponível em: https://freedomhouse.org/country/ armas da Rússia, e este último é um ator fundamen- Palgrave McMillan azerbaijan/freedom-world/2020 8 tal no contexto das disputas em Nagorno-Karabakh, Freedom in the World 2020 | Azerbaijan Country Report. (2019b) Disponível em: https://freedomhouse.org/country/ Bibliografia geral devido à influência que exerce sobre a Arménia. azerbaijan/freedom-world/2020 BBC News | Armenia election: PM Nikol Pashinyan wins by Moscovo tem utilizado uma estratégia de “dividir 9 Stronski, P. (2019). Amid Rumors of Aliyev’s Succession, a New landslide. (2018). Disponível em: https://www.bbc.com/news/ Generation Comes of Age in Azerbeijan. Disponível em https:// e conquistar” para apoiar tanto a Arménia como o world-europe-46502681 www.worldpoliticsreview.com/articles/28401/are-azerbaijan- Cheterian, V. (2018). The uses and abuses of history: Genocide Azerbaijão na sua disputa pelo Nagorno-Karabakh president-wife-making-way-for-a-dynastic-succession 10 and the making of the Karabakh conflict. Europe-Asia Studies, e, assim, exercer influência sobre ambos os países22. Derderian, K. (2005). Common fate, different experience: -specific aspects of the Armenian genocide, 1915-1917. (70/6), 884-903. O Azerbaijão é também um parceiro importante Holocaust and Genocide Studies, 19(1), 1-25 De Waal, T. (2018). When Georgians Go Low, Other Georgians Go para o Ocidente, pois assume um papel importante 11 Ohanian, A. (2018). Armenia’s democratic dreams. Available Lower. Disponível em: https://foreignpolicy.com/2018/11/05/ in https://foreignpolicy.com/2018/11/07/armenias-democratic- when-georgians-go-low-other-georgians-go-lower-election/ na esfera energética e do transporte, devido às vas- dreams/ De Waal, T. (2019). A Brief Guide to Understanding the Countries 12 tas reservas de petróleo e gás natural no mar Cáspio Simão, L. (2018) of the South Caucasus. Disponível em: https://carnegieeurope. 13 e aos seus corredores de trânsito que contornam a Minasyan, S. (2015). New Challenges and Opportunities for eu/2019/02/11/brief-guide-to-understanding-countries-of- Armenia and Georgia in the Context of Regional Security. south-caucasus-pub-78306 Rússia, providenciando uma alternativa aos recursos Disponível em: https://library.fes.de/pdf-files/bueros/ naturais desta. Atendendo a fortes vínculos linguís- georgien/12747.pdf Dorsey, J. M. (2019). Crisis In Georgia: Russians Challenge Putin’s 14 Cornel, S. E. (2019). Are Georgia-Azerbaijan relations at risk?. Civilizationalist Ambition – Analysis. Disponível em: https:// ticos e culturais entre o Azerbaijão e a Turquia, os Disponível em: https://www.cacianalyst.org/publications/ www.eurasiareview.com/07072019-crisis-in-georgia-russians- países são aliados próximos. Ancara apoia Baku no analytical-articles/item/13583-are-georgia-azerbaijan-relations- challenge-putins-civilizationalist-ambition-analysis/ conflito do Nagorno-Karabakh, e os países estabele- at-risk?.html Freedom in the World 2020 | Georgia Country Report. (2019c). 15 Oruç, M. S. (2020). What is the role of foreign players in cem uma importante parceria económica, especial- Disponível em: https://freedomhouse.org/country/georgia/ Azerbaijan-Armenia conflict? Disponível em https://www. freedom-world/2020 23 dailysabah.com/opinion/columns/what-is-role-of-foreign- mente a nível energético . Georgia’s epidemiological elections. (2020). Disponível em players-in-azerbaijan-armenia-conflict A Arménia tem boas relações com a Rússia, um país 16 Urigashvili, B. (1994). The Transcaucasus: blood ties. Bulletin https://eurasianet.org/georgias-epidemiological-elections que se considera como protetor do primeiro face a of the Atomic Scientists, 50(1), 18-20. In Azerbaijan, surprise elections yield usual results. (2020). 17 potenciais ameaças do Azerbaijão e da Turquia. Esta Tomé, L. (2018). Geopolítica da Rússia de Putin. Não é a União Disponível em https://eurasianet.org/in-azerbaijan-surprise- Soviética, mas gostava de ser. Relações Internacionais (R: I), elections-yield-usual-results última modera a influência da Rússia na região por (60), 69-99. Kamrava, M. (2017). Conclusion. In M. Kamrava (Ed.). The 18 vias do seu apoio incondicional ao Azerbaijão, e fi- Russel, M. (2018). At a glance. Russia in the Southern Great Game in West Asia (pp. 261-265). New York, NY: Oxford Caucasus. Disponível em: http://www.europarl.europa.eu/ University Press. liação à NATO, organização com a qual a Arménia RegData/etudes/ATAG/2018/614666/EPRS_ATA(2018)614666_ Ohanian, A. (2018). Armenia’s democratic dreams. Available in coopera, incluindo em missões lideradas pela alian- EN.pdf 19 https://foreignpolicy.com/2018/11/07/armenias-democratic- ça24. A UE e a Arménia assinaram em Novembro de Kakachia, K.; Lebanidze, B. (2019). Georgian Dream Meets Georgia’s Nightmare. Disponível em: https://foreignpolicy. dreams/ 2017 o Compreensive and Enhanced Partnership com/2019/06/25/georgian-dream-meets-georgias-nightmare/ Protest season returns to Georgia (2019). Disponível em https:// Agreement, expandindo as suas relações bilaterais. 20 Simão, L. (2018) eurasianet.org/protest-season-returns-to-georgia 21 Idem. Relations with Armenia. (2018). Disponível em: https://www. Ainda assim, a Rússia assume um papel dominante 22 Grigas, A. (2016). Beyond Crimea: the new Russian empire. nato.int/cps/en/natohq/topics_48893.htm?selectedLocale=uk na Arménia: o país aloja uma base militar russa; as New Haven, CT: Yale University Press.

31 JANUS 2020-2021

1.12 • Conjuntura Internacional

POLÍTICA EXTERNA DO GOVERNO BOLSONARO: Daniel Cardoso CONTINUIDADE E RUPTURA Texto entregue em Outubro de 2020

JAIR BOLSONARO ELEGEU-SE EM 2018 Presiden- sileira surgiram com o anúncio dos responsáveis como “o único homem capaz de salvar a civiliza- te da República Federativa do Brasil prometendo por esta área. Quebrando a tradição de indicar ção ocidental”5. De facto, a administração Trump mudanças radicais no sistema político e nas polí- pessoas com carreira consolidada no Ministério foi uma das principais promotoras do anti-globa- ticas públicas nacionais. Os primeiros dois anos de das Relações Exteriores (MRE) para cargos de lismo, inicialmente instigado pelo consultor da governo Bolsonaro mostraram, no entanto, que a relevo na política externa, o presidente escolheu administração, Steve Bannon6. O alinhamento retórica da “nova política” defendida na campanha personalidades com pouca relevância neste cam- com os EUA materializou-se em várias iniciativas. não se materializou na extensão que tinha sido pro- po. Para liderar o Ministério, o presidente indi- Por exemplo, a pedido de Washington, o gover- metida. Para garantir apoio político, o presidente cou Ernesto Araújo, um diplomata de segunda no brasileiro abriu mão do estatuto de tratamen- teve que moderar as suas propostas e teve que linha, com pouca experiência enquanto embai- to diferenciado de país emergente no âmbito recorrer às práticas da “velha política”, aceitando xador. Para o assessorar em questões internacio- da Organização Mundial do Comércio (OMC) compromissos com os partidos do centro e ofere- nais, Bolsonaro nomeou Filipe G. Martins, sem – prescindido, assim, de privilégios concedidos cendo cargos a adversários políticos. Uma das ex- histórico em cargos internacionais. O seu filho, a este grupo de países na negociação de acor- cepções tem sido a política externa onde o governo Eduardo Bolsonaro, também tem assumido pro- dos comerciais. Como contrapartida por esta e Bolsonaro tem frequentemente quebrado tradições tagonismo nesta área ao ponto de o presidente outras concessões, o Brasil recebeu dos EUA a e linhas de força defendidas ao longo dos anos por ter equacionado a sua nomeação para embaixa- designação de aliado extra-Organização do Trata- presidências de vários espectros políticos. dor nos EUA, que não se veio a concretizar. do do Atlântico Norte (OTAN) que dá acesso pre- ferencial ao Brasil na compra de material militar Vectores tradicionais da Política norte-americano e a promessa de vir a ser aceite Externa Brasileira como membro da Organização para a Coopera- O Brasil tem mantido uma política externa relativa- O Brasil tem mantido uma ção e Desenvolvimento (OCDE). mente estável desde a sua independência em 1822, política externa relativamente A orientação ideológica do governo de Bolso- assente numa série de princípios consensualizados naro tem também perigado as relações com os entre as elites nacionais e consagrados no artigo 4º estável desde a sua seus vizinhos, principalmente a Argentina e a da Constituição.1 Este “acervo diplomático” baseia- independência em 1822. Venezuela. Relativamente à Argentina, um dos -se na resolução pacífica de conflitos; no multila- principais parceiros comerciais do Brasil e alia- teralismo; no respeito pelo direito internacional e do na construção de processos de integração pela soberania doutros países. Além destes, o uni- na América do Sul desde os anos 90, as críticas versalismo das relações externas e a preservação Estas escolhas sugerem que a formação da equi- surgiram a partir do momento em que o candi- da autonomia nacional. O primeiro corresponde à pa para a política externa não foi guiada pelo dato de esquerda, Alberto Fernández, ganhou as ideia de estar aberto a relações com todos os países. currículo dos escolhidos, mas pelas suas ideias. eleições presidenciais em 2019. Araújo afirmou O segundo é definido como a margem de mano- Este grupo (Araújo, Martins e Bolsonaros) tem na altura que as “forças do mal estão celebran- bra que o país tem nas suas relações com outros a visão de que o Ocidente foi tomado pelo glo- do”7 e Bolsonaro recusou-se a ir à cerimónia de Estados e na sua atuação na política internacional. balismo, que, de acordo com Rafael G. Martins, posse do novo presidente. Quanto à Venezuela, Subjacente aos princípios do universalismo e da é uma ideologia que preconiza a construção o impulso ideológico da gestão Bolsonaro con- autonomia está a ideia de que o Brasil, enquanto de um aparato burocrático de alcance global, grande país, tem de manter necessariamente uma centralizador e pouco transparente cujo intuito DESTINO DAS EXPORTAÇÕES agenda abrangente e não deve alinhar-se automati- é controlar populações separando-as dos seus BRASILEIRAS EM 2019 (%) camente ao hegemon, designadamente os Estados valores centrais, especificamente Deus, nação e Fonte: Trade Map - www.trademap.org Unidos da América (EUA). Neste sentido, deve a família4. 2,5% manter um relacionamento regular e equidistante Para este grupo, é fundamental derrotar o glo- 4,4% 4,6% com as várias grandes potências, não se compro- balismo para salvar o Ocidente e os seus valo- 46,9% metendo em profundidade com nenhuma delas, res. Esse deve ser, portanto, o norte da política 13,4% preferindo a cautela à adesão.2 externa brasileira. Para tal é imperativo atacar Apesar da constância da política externa, têm ocorri- o multilateralismo e, principalmente, a Organi- do mudanças importantes, sobretudo na intensidade zação das Nações Unidas (ONU), considerada o que se coloca nas prioridades internacionais. Neste pináculo da ameaça globalista. Seguindo esta sentido, as mudanças têm sido, sobretudo, graduais, linha ideológica, ainda durante a campanha, o tendo havido, contudo, momentos de ruptura, de- candidato Jair Bolsonaro afirmou que, se fosse signadamente quando o presidente Castelo Branco eleito, sairia da organização, ameaça que aca- (1964-1967) adoptou uma política de grande aproxi- bou por não concretizar. Continuou, contudo, a mação aos EUA ou durante as presidências de Jânio denunciar outros arranjos multilaterais como o 28,2% Quadros (1961), Ernesto Geisel (1974-1979) e Lula Acordo de Paris e o Pacto Global para Migração, da Silva (2003-2010) quando se tentou uma maior do qual acabou por retirar o Brasil. aproximação a países do Sul Global.3 Além da crítica feroz ao multilateralismo, a con- Resto do Mundo China cretização da missão anti-globalista passa, segundo EUA O anti-globalismo no Governo os seus promotores, por uma aliança absoluta Holanda Bolsonaro: uma ruptura com o passado com os EUA e, especificamente, com o presiden- Argentina Os primeiros sinais de que haveria importantes te norte-americano, Donald Trump, considerado Japão mudanças na formulação da política externa bra- pelo Ministro de Relações Exteriores brasileiro

32 DILEMAS NO CURTO PRAZO NA RELAÇÃO sidente adoptou uma postura mais cautelosa. A DO BRASIL COM A CHINA China continuou a ser, no entanto, um dos alvos O pragmatismo do governo Bolsonaro face à dos ideólogos do anti-globalismo brasileiro. Re- China será em breve colocado à prova. Por um centemente, o ministro Ernesto Araújo publicou lado, nos próximos meses, o governo terá de decidir os termos do leilão para instalação da no seu blog um texto no qual afirmava que o rede 5G no Brasil. Os EUA têm pressionado as coronavírus fazia parte do “projecto globalista” autoridades brasileiras para excluírem a Huawei e visava criar um caminho até ao comunismo. do processo, apesar da empresa chinesa já ter Apesar desta retórica, em termos práticos, o uma relação profunda, longa e abrangente com o Brasil mantém uma relação cordial e pragmáti- Brasil. O governo tem dado indicações contradi- ca com Pequim. O presidente Bolsonaro esteve tórias e não é, ainda, claro que decisão irá tomar. na China em visita de Estado em 2019, onde Por outro lado, Pequim tem pressionado o Brasil afirmou que uma parte importante do Brasil para que formalize a sua integração na Iniciativa precisa da China e a China também precisa Faixa e Rota. A integração ajudaria a desbloquear do Brasil9. Nessa altura, convidou as empresas financiamentos chineses em infra-estrutura, uma chinesas a investir mais no Brasil. O presidente reivindicação antiga do Brasil. Contudo, o presi- facilitou também a concretização do consórcio dente brasileiro tem resistido a dar este passo. de empresas dos dois países que ganhou o lei- lão em Novembro de 2019 para exploração de tra o presidente venezuelano, Nicolas Maduro, poços de petróleo na área de Búzios e Santos10. foi demonstrado menos de um mês após sua Esta moderação do presidente face à China está posse quando, ao lado dos EUA e de outros paí- relacionada com a importância das relações eco- ses sul-americanos, o Brasil reconheceu o líder nómicas entre os dois países. O país asiático é, da oposição venezuelana, Juan Guaidó, como desde 2009, o principal parceiro comercial do presidente interino da Venezuela. Aquela deci- Brasil, tendo sido o destino de 28% das expor- são representou uma tomada de posição num tações brasileiras em 2019. É também, desde conflito político regional, atitude que contras- 2011, um dos principais investidores e financia- tou com a da não-intervenção, pedra angular dores externos no Brasil. Sectores importantes das relações exteriores brasileiras nas últimas da economia brasileira, como a agro-exportação décadas. e a mineração, têm vindo a colocar pressão no governo Bolsonaro para manter relações prag- máticas com a China de forma a que os seus negócios não sejam perigados11. Apesar [da] retórica, em termos Há, contudo, tensões que fazem com que a re- práticos, o Brasil mantém uma lação com a China não seja tão densa como em relação cordial e pragmática governos anteriores. Estas sentem-se, principal- mente, a nível político. Com o alinhamento aos com Pequim. EUA, a relação do Brasil com os BRICS é hoje mais distante do que no passado recente. Dados recentes indicam que os restantes membros do O anti-globalismo e as opções de política ex- grupo, que inclui a China, Rússia, Índia e África terna que dele advêm sugerem, portanto, uma do Sul, se sentem reticentes a abordar temas absoluta ruptura com os vetores tradicionais de mais sensíveis, nomeadamente sobre segurança, actuação do Brasil nas relações internacionais. por receio de que essa informação seja passa- Os ataques ao multilateralismo e a orientação da da pelo governo brasileiro ao norte-americano. política externa por valores religiosos são uma Estes sinais sugerem que a continuidade na re- Notas novidade na política externa do país. Também lação com a China é, assim, principalmente na 1 Fonseca, Carmen. 2011. «A política externa brasileira da o alinhamento automático com os EUA nunca área económica e menos na área política. n democracia: O paradoxo da mudança na continuidade?» foi tão profundo quanto o que está a ser de- Relações Internacionais (R:I), n. 29 (Março): 33–43; e Saraiva, Miriam Gomes. 2013. «Continuidade e mudança na política senvolvido pelo governo Bolsonaro. Enquanto externa brasileira: As especificidades do comportamento que no governo Castelo Branco (1964-1967) externo brasileiro de 2003 a 2010». Relações Internacionais (R:I), n. 37: 63–78. houve uma maior aproximação aos EUA, esta foi 2 Fonseca Jr., Gelson. 2011. «Política externa brasileira: padrões sempre limitada pela prossecução dos interes- e descontinuidades no período republicano». Relações ses nacionais8. No caso do governo Bolsonaro, Internacionais (R:I), n. 29 (Março): 15–32. 3 Fonseca, Carmen. 2011; e Fonseca Jr., Gelson. 2011. dado que o retorno material tem sido esparso, 4 Saraiva, Miriam Gomes, e Álvaro Vicente Costa Silva. 2019. este alinhamento pela primeira vez parece ser «Ideologia e pragmatismo na política externa de Jair Bolsonaro». Relações Internacionais 64: 117–37; e Casarões, absoluto, ilimitado e marcadamente ideológico. Guilherme, e Daniel Flemes. 2019. «Brazil First, Climate Last: Bolsonaro’s Foreign Policy». GIGA Focus | Latin America, n. 5: 14. Relação com a China: continuidade 5 Araújo, Ernesto. 2017. «Trump e o Ocidente». Cadernos de Política Exterior 3 (6): 323–27. BBC Brasil. 2019. «O que explica pela força do comércio o interesse da China em investir no petróleo brasileiro?» BBC Enquanto que na relação com os EUA, com a News Brasil, 2019. 6 Casarões, Guilherme, e Daniel Flemes. 2019. Argentina e com a Venezuela observam-se si- 7 Veja. 2019. «‘As forças do mal estão celebrando’, diz Ernesto nais de ruptura, no caso das relações com a Araújo sobre Argentina». Veja. 2019. China, principal parceiro comercial do Brasil, 8 Fonseca Jr., Gelson. 2011. 9 Gortázar, Macarena Vidal Liy, Naiara Galarraga, e Macarena observa-se sobretudo continuidade. Apesar de, Vidal Liy. 2019. «Bolsonaro sela sua reconciliação com a China na campanha, Bolsonaro ter utilizado uma retó- com propostas de investimento». EL PAÍS. 2019. 10 BBC Brasil. 2019. «O que explica o interesse da China em rica anti-China, acusando o parceiro asiático de investir no petróleo brasileiro?» BBC News Brasil, 2019. neo-colonialismo, durante a sua gestão, o pre- 11 Saraiva, Miriam Gomes, e Álvaro Vicente Costa Silva. 2019.

33 JANUS 2020-2021

1.13 • Conjuntura Internacional

À DERIVA NO MUNDO: A POLÍTICA EXTERNA NO BRASIL Pedro Seabra DE BOLSONARO Texto entregue em Novembro de 2019

A TOMADA DE POSSE DE JAIR BOLSONARO do Brasil em Washington consagrou a noção que Mercosul conheceu um avanço inesperado, com em janeiro de 2019 como novo Presidente da canais de comunicação privilegiados por via fami- o anúncio em junho de um consenso preliminar República representou um ponto de inflexão liar tenderão invariavelmente a prevalecer sobre entre ambas as partes. Apesar da contradição com na história contemporânea do Brasil. Após um qualquer know-how diplomático especializado ataques prévios à existência do Mercosul durante período eleitoral polarizado e controverso em porventura ainda existente. a campanha eleitoral bem como a paternidade igual medida, o governo tem-se essencialmente dúbia quanto ao verdadeiro promotor do desen- caracterizado por um discurso virulento e por lace, o governo de Bolsonaro reclamou para si os uma vontade visceral de proceder a um corte créditos do processo negocial de 20 anos. No en- profundo com a governação anterior do Partido Desenvolvimentos na posição tanto, tal feito foi em verdade alcançado apesar dos Trabalhadores (PT). Nesse sentido, e pese internacional do Brasil têm de Bolsonaro, e não por causa do seu compro- embora quaisquer balanços antes do fim de man- refletido acima de tudo misso com as disposições acordadas, atestando dato acabarem sempre por pecar por defeito, o ditames conjunturais internos em vez disso a dispersão de agendas conflitantes primeiro ano em funções permite desde já desta- no seio da sua própria equipa. car as tendências mais significativas (e problemá- e erráticos. Ao nível bilateral, relações com outros países ticas) em curso. O domínio da política externa, ideologicamente mais alinhados na região evita- em particular, tem servido para reforçar a tão de- ram até ao momento movimentações contrárias sejada distinção com a década precedente, sem, Muito embora a proliferação de atores responsá- de monta aos interesses brasileiros. A tentativa de no entanto, se identificar particular coerência na veis pela execução da política externa brasileira renegociação do Acordo de Itaipu com o Paraguai sua execução. Em vez de representar uma prio- não constitua em si mesmo um fenómeno inu- constituiu uma exceção: o governo em Assunção ridade, desenvolvimentos na posição internacio- sitado ou sequer recente, o último ano tem se quase caiu após protestos locais quando os ter- nal do Brasil têm refletido acima de tudo ditames revelado particularmente assinalável. Reforçando mos acordados vieram a público em julho, des- conjunturais internos e erráticos, sem um rumo a cacofonia de liderança, pródiga em disputas e cobrindo-se que beneficiavam significativamente evidente à vista, e em claro prejuízo da imagem contradições nas redes sociais, o Vice-Presidente mais o Brasil. Mas foi com relação à Venezuela do país no mundo. Hamilton Mourão aparece também nesta equa- que Bolsonaro tentou ganhar de forma mais os- ção como representante de uma ala militar em tensiva as suas principais credenciais regionais. Quem manda e quem decide ascensão, e sobretudo como um pretenso fiel da Por entre ameaças veladas de uma possível in- O primeiro passo aquando de um novo ciclo balança, disposto a temperar declarações mais tervenção militar direta, adotou-se uma posição político passa, inevitavelmente, por mudanças intempestivas e a advogar posições externas mais retórica mais musculada e demandante face ao ao nível de liderança. Neste âmbito, e apesar das realistas em nome do interesse nacional. No en- regime de Nicolás Maduro e de apoio às preten- diferentes personalidades no cargo ao longo dos tanto, o seu espaço de manobra – bem como o de sões de Juan Guaidó. No entanto, a situação de anos, o Ministério das Relações Exteriores (MRE, todos os restantes intervenientes, incluindo uma impasse decorrente acabou por deixar a nu os também conhecido como Itamaraty) sempre re- facção mais liberal-tecnocrática, liderada pelo Mi- limites das capacidades materiais brasileiras em teve a sua centralidade no respetivo processo nistro da Economia Paulo Guedes, ou a extensa paralelo com um aumento abruto do fluxo de decisório. Em teoria, a nomeação do diplomata bancada evangélica no Congresso – permanece refugiados venezuelanos. de carreira Ernesto Araújo para chefiar o MRE não contingente às flutuações de desinteresse do O tema dos refugiados foi também trazido para deveria por isso suscitar quaisquer questões de próprio Presidente por uma política externa in- primeiro plano logo nos primeiros dias de gover- monta, enquanto matéria do foro exclusivo das dividualizada na sua pessoa. A atomização dos no, com o abandono do Pacto Global das Migra- competências presidenciais e enquanto confir- centros de decisão em paralelo com a crescen- ções. Esta posição de antagonismo face a grandes mação de um padrão anterior de escolhas seme- te marginalização do Itamaraty acaba assim por debates internacionais foi mimicada através de lhantes. refletir mais uma desagregação no topo do que um discurso oficial que passou a colocar em Contudo, em vez disso, tal nomeação sobressaiu uma política deliberada ou concertada especifica- causa, inclusive, os argumentos científicos das por motivos bem mais controversos. Primeiro, mente para o efeito. alterações climáticas. De igual forma, uma série por ter refletido uma indicação direta de Olavo de votos em consonância com a Arábia Saudita, de Carvalho, o guru-filósofo radicado nos EUA e Da região para o mundo Egito e outros regimes afins no Conselho de Di- considerado o verdadeiro ideólogo do governo Mas se hierarquicamente é notória a falta de uma reitos Humanos da ONU sobre questões de ideo- Bolsonaro. Ao mesmo tempo que prenunciava orientação clara, na vizinhança mais próxima, o logia de género, contribuiu para fundamentar um redimensionamento da rede diplomática estilo do novo governo não deixou de se fazer uma crescente percepção de retração do Brasil pelo mundo e despoletava purgas internas de sentir desde logo. O legado dos governos PT face à utilidade de instrumentos multilaterais críticos ao governo, Araújo passou assim a assu- tornou-se o principal alvo, patente no desmem- internacionais – antes considerados uma das pe- mir a condição adicional de arauto de tendências bramento de soluções institucionais previamente dras-chave da diplomacia brasileira – bem como obscurantistas internacionais e anti-globalistas. promovidas, tais como a União das Nações Sul- um revisitar de posições que se consideravam até Segundo, porque apenas contribuiu para reduzir -Americanas (UNASUL). Em seu lugar, surgiu então estabelecidas na agenda externa do país. O a relevância do MRE no cômputo geral, já de si o projeto do Fórum para o Progresso e Desen- discurso de Bolsonaro em setembro, abrindo a subalternizado pelo protagonismo de Eduardo volvimento da América do Sul (PROSUL), com a 74ª Sessão da Assembleia Geral das Nações Uni- Bolsonaro, nas funções de presidente da Co- promessa de uma estrutura alegadamente menos das, apenas veio a amplificar tal disposição. missão de Relações Exteriores do Câmara dos ideológica, mas também acarretando menos com- Contudo, nem a região nem os fóruns interna- Deputados, mas especialmente como filho do promissos permanentes para o Brasil. Por outro cionais receberam a mesma prioridade que outro presidente eleito. A sua indicação nominal, ainda lado, o há muito ambicionado e ilusivo acordo de destino mais à norte, nomeadamente os EUA. que posteriormente retirada, como embaixador comércio livre entre a União Europeia (UE) e o Identificando semelhanças ímpares com os mé-

34 todos e estratégias da administração de Donald públicas de Bolsonaro com o Presidente fran- Trump, quer de campanha quer de governo, cês Emmanuel Macron, ilustram amplamente o a equipa de Bolsonaro não tardou em tentar desfasamento entre a imagem internacional que virar a página. Usando Israel como proxy para o Brasil detinha no passado nesta área e aque- demonstrar a sua predisposição face às orien- la que consegue transmitir atualmente. Como tações internacionais emanadas pela nova Casa consequência mais imediata, é possível que tal Branca, prometeu-se quase de imediato o reco- deterioração reputacional leve, por exemplo, a nhecimento de Jerusalém como capital do estado um bloqueio informal da ratificação do acordo judaico. Apesar de tal mudança não se ter ainda UE-Mercosur, com os parceiros europeus a co- concretizado, muito por conta da reprovação dos locarem um premium acrescido numa mudança mercados no Médio Oriente, vitais para as expor- de posição significativa por parte das autoridades tações brasileiras, o tiro de partida para um novo brasileiras ao nível ambiental. alinhamento bilateral estava lançado. Uma visita oficial de Bolsonaro aos EUA em março propor- cionou a cobertura necessária, com a atribuição do estatuto de aliado militar estratégico dos EUA Importa referir os sinais fora da Organização do Tratado do Atlântico Nor- dispares emanados com te (NATO) – o segundo país latino-americano a recebê-lo, depois da Argentina, e apenas o 18º do relação à China. mundo – a constituir o principal dividendo até à data. Contudo, resultados mais tangíveis na for- ma de um apoio concreto à entrada do Brasil na Uma segunda constatação associada a este pa- Organização de Cooperação e Desenvolvimento drão errático reside na manifesta fragilidade em Económico (OCDE), uma isenção de vistos para que o mesmo assenta. Uma adesão inata do go- entrada nos EUA ou o início de negociações com verno de Bolsonaro a movimentos análogos ao vista a um acordo comercial, permanecem, por nível internacional – numa amálgama ideológica enquanto, fora de alcance. capitaneada por Steve Bannon nos EUA, Viktor No polo oposto, importa referir os sinais dispa- Orbán na Hungria, e Matteo Salvini na Itália, res emanados com relação à China. Apesar das entre outros – poderá proporcionar uma frente críticas assinaláveis durante a campanha devido comum ocasional que permite salvar face perante ao seu peso económico crescente, Bolsonaro foi a sua base eleitoral, mas não deixará ainda assim rapidamente forçado a moderar o discurso ofi- de permanecer suscetível a mudanças bruscas na cial. Para tal, beneficiou da blitz de relações pú- fonte. Se as tendências políticas na região (e.g. blicas levado a cabo por Mourão para tranquilizar na Argentina) e no mundo (e.g. nos EUA) se in- o principal importador e investidor no Brasil de verterem diametralmente e governos no espectro que o seu acesso e interesses não conheceriam oposto forem eleitos, o respaldo externo obtido afinal quaisquer alterações de monta. A visita do até à data cessará de existir, acarretando consigo próprio Bolsonaro a Beijing em outubro e a orga- um isolamento substancial do Brasil. A aposta nização da cimeira dos BRICS em novembro no numa agenda marcadamente anti-globalistista e Brasil representaram tentativas de alcançar a qua- numa afinidade umbilical com a administração dratura do círculo neste âmbito, visando manter Trump poderá por isso não sobreviver incólume, a China por perto, mas sem conseguir ainda as- pese embora o estrago decorrente no entretanto. sim disfarçar o incómodo face à sua preponde- Por último, é também por demais expectável que rância na balança comercial nacional. Uma última a política externa continue a refletir conexões in- imagem de marca do primeiro ano de governo trínsecas com o que se passa dentro do próprio prende-se também com as geografias e temáticas Brasil, em termos de um contexto interno extre- que não receberam precisamente qualquer aten- mado face a um passado recente. Dito de outra ção ou foram relegadas para um plano secundá- forma, o que é externo apela à base popular in- rio: África e questões de cooperação sul-sul, por terna, e o que é interno substancia uma resposta exemplo, saltam à vista por terem desaparecido oficial vocifera no plano exterior. Do ponto de em absoluto da lista de prioridades externas. vista do governo de Bolsonaro, as suas posições internacionais não têm que necessariamente O que esperar do Brasil primar por uma justificação pormenorizada ou Perante os desenvolvimentos evidenciados du- seguir uma estratégia detalhada; têm sim que rante o ano transato, é possível desde logo ante- representar caracteres suficientes para um tweet cipar três decorrências para a execução vindoura que seja imediatamente difundido pelos seus da política externa brasileira. A primeira centra-se apoiantes, mantendo o clima de divisão mani- nos custos de reputação internacional, inerentes festado durante as eleições de 2018. Este tipo de a uma abordagem conflitante face a parceiros e interseção entre as duas dimensões continuará a temáticas antes considerados de excelência. A constituir a principal imagem-de-marca externa questão da Amazónia, em particular, recebeu en- do Brasil, alimentando uma percepção generali- foque acrescido durante o segundo semestre, à zada de deriva e dificultando quaisquer projeções medida que novos dados sobre o desmatamento mais otimistas quanto ao seu lugar e atuação no ou sobre as populações indígenas no seu seio, mundo no curto e médio prazo. n vieram a público. As críticas à Noruega e à Ale- manha devido ao corte de financiamento para o Fundo Amazónia, ou até mesmo as disputas

35 JANUS 2020-2021

1.14 • Conjuntura Internacional

O GOVERNO BOLSONARO: CRISES INTERNAS Reginaldo Teixeira Perez Marcos Pascotto Palermo E CONTROVÉRSIAS EXTERNAS Texto entregue em Dezembro de 2019

APROXIMA-SE DE UM ANO do Governo Bolsona- cientista político brasileiro Sérgio Abranches, em O modo pelo qual Bolsonaro reivindicou o con- ro. E não seria exagerada a afirmação de que um artigo publicado em 1988, como sendo o de um trole da sigla PSL – e foi derrotado – é significa- sinônimo para ele seria o de crises (no plural) “Presidencialismo de Coalizão”: findas as elei- tivo para a compreensão do modus operandi de – advindo daí uma saliente dúvida: crises com ções das quais emerge vencedor um candidato, sua gestão: a promoção de ataques públicos às origens externas à gestão ou por ela provocadas? ele tem de compor com partidos vários – em um figuras que o cercam, até o seu defenestrar do Por certo, a resposta a esse questionamento deve sistema multipartidário (hoje, são 33 os partidos governo. E os seus filhos – são três e também po- contemplar as duas dimensões, mas parece haver brasileiros) – para constituir a sua base de apoio líticos – têm tido um papel central nessas alterca- motivos à farta para reconhecermos que a pri- parlamentar. ções. Ocorre que o presidente, juntamente com meira fonte de problemas se encontra no próprio o seu grupo de fiéis aliados, restou minoritário governo. Se isso se pensa da política interna, da desta vez – e teve de buscar alternativas. A saída mesma forma, neste decurso, já se pode pensar encontrada foi a fundação de um novo partido, a Aliança pelo Brasil (ALIANÇA), cujos apoiadores em reflexos de sua atuação em termos de rela- Nas eleições de 2018 ções exteriores. reivindicam o número 38, imagem associada a Rememore-se, brevemente, de alguns traços da alteraram-se as posições uma arma. Entretanto, são muitas as exigências ascensão eleitoral impressionante da candida- e aquelas duas agremiações formais à constituição de um novo partido no tura bolsonarista nas eleições de 2018: foi um (PT e PSDB) restaram Brasil, quase impossíveis de serem satisfeitas a tempo de concorrer nas eleições municipais do processo de alinhamento de diversas posições fortemente derrotadas – que tinham em comum um forte sentimento próximo ano. “antissistema” – com especificidades antipolí- com a vitória de um grupo À semelhança de outras paragens, o sistema par- ticas (alcançando os políticos e as instituições político neófito capitaneado tidário brasileiro é merecedor de críticas. Em representativas, identificados com a corrupção), (literalmente) por um discreto artigo publicado recentemente em jornal de cir- culação nacional (Folha de São Paulo, ed. de 24 com foco no PT (Partido dos Trabalhadores) e ex-deputado federal há três nas figuras de proa dos partidos até então no nov.2019), o cientista político Jairo Nicolau ava- controle do Estado brasileiro: PMDB, PP e PSDB, décadas. liou ceticamente o ambiente no qual funcionam entre outros. Em suma: o discurso proferido por os partidos no Brasil. Segundo o pesquisador, Bolsonaro, fazendo uso até de redes e imagens seus partidos são burocráticos e dependentes religiosas, revestiu-se de novidade em face da Pois bem: nas eleições de 2018 alteraram-se as do Estado, têm lideranças arcaicas e opõem dicção de suas críticas – contra tudo e contra posições e aquelas duas agremiações (PT e PSDB) barreiras à renovação de seus quadros, pois so- todos. Prometia-se um governo de regeneração restaram fortemente derrotadas – com a vitória bretudo desejam administrar e distribuir a seu moral – e de forte conteúdo nacional, sem des- de um grupo político neófito capitaneado (lite- talante os recursos. Ademais, os controles – de curar, no que poderia se considerar em alguns ralmente) por um discreto ex-deputado federal filiados, por exemplo – recaem sobre um órgão pontos paradoxal, de uma agenda liberal na eco- há três décadas – Jair Bolsonaro. Detalhe: esse do Estado, a Justiça Eleitoral. Nessa moldura, a nomia – diante de uma estrutura considerada político não parece ter-se preocupado muito com crise que atingiu o PSL, o então partido do pre- como corrompida. bases eleitorais – nem com o seu partido, o PSL sidente Bolsonaro, é significativa em relação ao (Partido Social Liberal), fundado em 1994, mas conjunto de participantes do jogo democrático: O governo Bolsonaro e o desgaste com fraco desempenho eleitoral até a entrada “As siglas transformaram-se em organizações pe- das agremiações partidárias desse político. Ao adaptar-se à agenda do candi- sadas, com muito pouco incentivo para desem- tradicionais dato, o PSL deu uma guinada à Direita, passando penhar o tradicional papel de intermediárias No Brasil pós-redemocratização (meados da dé- a se considerar conservador nos costumes e rom- entre sociedade e Estado. Colaram-se ao Estado, cada de 1980), o Estado de Direito foi definido pendo com o movimento intrapartidário “Livres”, afastaram-se da sociedade. O alheamento juvenil pela Constituição de 1988. E, nela, foram estam- de tendência liberal/libertária. é uma evidência desse distanciamento”, observa pados os requisitos aos procedimentos afeitos a Atendo-se ao personagem, o inquieto presiden- Nicolau. E, provavelmente examinando de forma uma liberal-democracia de feição moderna: um te, vê-se que já trocou de siglas oito vezes em seu acurada a corrosão que atinge esse sistema, foi conjunto de liberdades (individuais e sociais), caminhar político, e desta vez não foi diferente: que o então candidato Bolsonaro catapultou-se acompanhado por um cardápio de direitos polí- tendo aderido ao PSL na última hora para poder como diferente. Uma das chaves interpretativas ticos, conformariam essa institucionalidade que, disputar as eleições presidenciais – uma vez que ao seu sucesso está na emocionalização da esfera de sua parte, seria coroada por eleições periódi- no Brasil não são permitidas candidaturas inde- pública – lançando provocações a tudo e a todos, cas – a cada dois anos, dependendo dos cargos pendentes –; e, de olho nas verbas destinadas por exemplo – e daí emerge um cenário de crises em disputa, bem como o chamamento do elei- aos partidos pelos fundos partidário (anual) e constantes. torado para um plebiscito sobre forma e sistema eleitoral (bianual), enfrentou recentemente a li- Não é somente Bolsonaro a apostar nas polêmi- de governo em 1993 e de um referendo sobre a derança de seu partido. Explique-se: nos últimos cas. São vários os membros de seu staff que assim proibição da comercialização de armas de fogo e quatro anos, em face de uma decisão judicial que procedem: “A democracia brasileira, com seus munições em 2005. obstou a doação empresarial para as campanhas, poucos altos e muitos baixos, nunca viu um pre- E foi a sequência desses procedimentos demo- a maior parte dos recursos que financiam os par- sidente eleito que defende a tortura, um ministro cráticos – com destaque às eleições presiden- tidos e a sua participação em eleições é pública. da Educação que odeia estudantes, um secretário ciais – que conferiram hegemonia política a Trata-se do fundo partidário, com periodicidade de Cultura que odeia artistas, um assessor para duas agremiações, o PSDB (Partido da Social anual, e o fundo eleitoral, de periodicidade bia- assuntos afro-brasileiros que odeia o movimento Democracia Brasileira), nos anos 1990, e PT, nos nual. Esses fundos importam em somas vultosas, negro, um ministro do Meio Ambiente que odeia anos 2000. Esse sistema foi denominado pelo muito vultosas. ambientalista”, escreveu a jornalista Cláudia Lai-

36 tano (Zero Hora, ed. de 2 dez.2019). Intitulando quanto a comentários que feririam a imagem da Na mesma linha, não menos difícil será a conti- o seu artigo com o significativo “Espírito rixoso”, primeira-dama francesa. No pano de fundo, o nuidade de uma política que insiste em ignorar a comentarista define com essas duas palavras o governo brasileiro insinuou a utilização do tema a “questão social” em sua potência política: um atual governo. E logo esclarece o seu sentido: da Amazônia, como forma velada de oposição da relativo “silêncio das ruas”, até o presente, tem “(...) uma inclinação geral para os confrontos por França ao Acordo Mercosul – União Europeia, poupado o governo de grandes questionamentos motivos fúteis ou banais, os revides irrefletidos, ainda não ratificado. populares – inclusive, vem ele contando com as picuinhas”. Ao final, lamentando sobre essa Por fim, mas não menos importante, declarou, índices razoáveis de popularidade. No entanto, forma particular de condução das questões públi- apoiando a candidatura do liberal Mauricio Ma- seguindo-se o vaticínio apresentado por Max cas, a articulista conclui: “No século XXI, o espíri- cri, que o povo argentino teria “cometido um Weber, em seu clássico A política como vocação, to rixoso encontrou um caldo de cultura perfeito engano” ao escolher peronistas nas eleições pre- publicado em 1918, a díade dominação versus no ambiente de lacração das redes sociais, mas sidenciais recentes daquele país, insistindo até o legitimação definiria a essência das relações po- só masoquistas ficariam felizes ao topar com esse final que não enviaria representante brasileiro na líticas. Bem compreendido, as infrequências dos tipo de assombração, ao vivo, na festa de Natal. posse do novo governo. processos legitimadores requerem dos políticos Ou, pior, decidindo o futuro do país”. profissionais habilidades especiais. As dúvidas Considerações finais, dúvidas iniciais que assaltam as mentes que refletem sobre as coi- Governo Bolsonaro e sua política A pergunta que se impõe diante dos riscos polí- sas da política no Brasil de hoje é se Bolsonaro externa ticos de um governo que age dessa forma, sem continuará sendo eficaz como encantador de ser- Se do ponto de vista da política doméstica, o prejuízo a outras formas de querelas, direciona- pentes – até mesmo porque elas são muitas. n governo recebeu críticas pela escolha de seus -se para o relacionamento institucional: como ministros, na política com o exterior não houve tem interagido Bolsonaro com os demais Pode- exceção. A indicação do atual chanceler Ernesto res da República, destacadamente, o Legislativo? Araújo, rendeu certo mal-estar entre diplomatas Uma resposta provisória – enfatiza-se o provisó- considerados mais experientes e que se consi- rio – aponta a uma convergência de pautas. De deraram deixados de lado, substituídos por um um lado, promovem-se reformas econômicas sob colega considerado mais jovem e que não havia as lideranças de parlamentares hábeis, tais como chefiado uma embaixada. as do presidente da Câmara dos Deputados, Ro- Foi divulgada pela jornalista Patrícia Campos Me- drigo Maia, e do presidente do Senado Federal, llo (Folha de São Paulo, ed. de 14 nov 2018), a Davi Alcolumbre. Nesse caso, os interesses do sua proximidade com o ensaísta Olavo de Car- principal ministério – o da Economia – e de seu valho, que emergiu como articulador intelectual titular, o ministro Paulo Guedes, têm sido con- do bolsonarismo. Comungando de valores como duzidos com um bom nível de concordância. Em um regaste do combate ao comunismo, da opção contrapartida, deve-se admitir que, salvo engano, pela soberania estatal frente ao chamado “globa- o processo legislativo tem funcionado à revelia lismo”, negação do aquecimento global e defesa da figura presidencial. Sintetiza-se a formulação do que seriam valores do Ocidente, Araújo ga- aqui desfilada: de um lado, valores liberais têm nhou crédito junto a duas figuras importantes: o alinhado a política econômica do governo com filho do presidente, senador Eduardo Bolsonaro, uma opinião pública financiada pelo mercado; de e Filipe Martins, secretário de assuntos interna- outro lado, ao revés, juízos do liberalismo polí- cionais do PSL. A condução do que viria a seguir, tico – também vergastados pela opinião pública foi tomada por especialistas, como uma quebra – antepõem-se ao regressismo valorativo pronun- na tradição da política externa brasileira. ciado pelo governo. Provavelmente, tentando interpelar o seu público de apoio em um plano interno, os ataques bol- sonaristas alcançam e contaminam a sua políti- ca externa. De saída, o governo declarou o seu alinhamento acrítico ao governo estadunidense A indicação do atual de Donald Trump – sem exigir contrapartidas e chanceler Ernesto Araújo, criticando o papel externo da China, em um pri- rendeu certo mal-estar meiro momento. Afirmou, taxativamente, apoio entre diplomatas considerados ao governo de Benjamin Netanyahu, de Israel – prometendo a mudança da embaixada brasileira mais experientes. de Tel Aviv para Jerusalém – o que agradou ao eleitorado evangélico, mas desconsiderou o im- portante papel dos países árabes na pauta expor- Do ponto de vista internacional, seguirão os tadora brasileira. debates sobre o posicionamento brasileiro em Dando sequência ao já propalado na campanha fóruns internacionais, mormente os relativos às eleitoral, acusou governos latino-americanos – questões ambientais, sua postura frente aos Esta- em especial, o da Venezuela – de serem ideoló- dos Unidos, que já revelaria certa frustração, bem gicos e populistas. Neste plano, a Venezuela foi como a relação com demais países do Mercosul, acusada de ser responsável pelo derrame de óleo em especial com o novo governo argentino. que contaminou o litoral brasileiro, o que não Equilibrando-se como um encantador de ser- foi comprovado. Ainda, no âmbito ambiental, o pentes, Bolsonaro busca conciliar fundamenta- governo foi acusado internacionalmente de ser lismo de mercado com conservadorismo moral. conivente ou omisso, com relação às queimadas O primeiro valor é estranho a ele, Bolsonaro, na região amazônica, o que rendeu celeuma pes- um notório estatista/intervencionista; quanto ao soal entre Bolsonaro e o presidente francês Em- segundo, há um esforço para demonstrar ade- manuel Macron, sendo o primeiro alvo de críticas são – com destaque à sua dimensão religiosa.

37 JANUS 2020-2021

1.15 • Conjuntura Internacional

Filipe Vasconcelos Romão A VITÓRIA DE JOE BIDEN Texto entregue em Dezembro de 2020

OS NORTE-AMERICANOS NÃO VOTAM numa de reeleição é, assim, bastante elevada. Porém, Uma das consequências políticas mais relevantes eleição directa para escolher o presidente dos Es- a conjugação da personalidade polarizadora de do quadro pandémico foi o esforço desencadea- tados Unidos. Os cidadãos dos cinquenta estados Donald Trump com a hecatombe económica pro- do pelas administrações dos diferentes estados federados e de Washington DC elegem um Colé- vocada pela pandemia da COVID-19 contribuí- federados para ampliar a possibilidade do voto gio Eleitoral composto por 538 grandes eleitores. ram para a eleição do democrata Joe Biden. antecipado presencial e por correspondência. O número de grandes eleitores de cada estado Ao contrário do que ocorreu em 2016 com Em coerência com uma atitude de maior prudên- corresponde à soma do seu número de membros Hillary Clinton, nestas eleições, o Partido De- cia em relação à COVID-19, o Partido Democráti- da Câmara dos Representantes e do Senado. Tendo mocrático uniu-se efectivamente em torno da co mobilizou-se para incentivar o recurso a esta em conta que todos os estados têm o mesmo candidatura do antigo vice-presidente da Barack alternativa. Convém ter em conta que o voto por número de senadores (2), os estados mais peque- Obama (2009 – 2017). Há quatro anos, um dos correio não é uma novidade no sistema político nos dispõem, assim, de uma representação no principais problemas que Clinton teve de enfren- norte-americano: começou a ser utilizado duran- Colégio com mais peso do que os estados maiores. tar foi a resistência que o seu nome gerava na ala te a Guerra Civil (1861-1865) para permitir a par- esquerda do partido. Em 2020, Biden conseguiu ticipação eleitoral dos soldados mobilizados. Ao Sistema eleitoral maioritário surgir como uma figura unificadora, aceite por longo dos últimos 160 anos, vários estados, com Com excepção do Maine e do Nebrasca, o can- todos os sectores democratas em nome do objec- diferentes ritmos, foram facilitando esta prática. didato que alcança uma maioria simples do tivo supremo de derrotar Trump. Segundo dados divulgados pela U.S. Election As- voto popular obtém a totalidade dos grandes sitance Commission, em 2016, 24 porcento dos eleitores do estado. Estes dois aspectos – re- mais de 140 milhões de votantes recorreram ao presentação desproporcional e sistema eleitoral voto por correio.1 Em 2020, de acordo com da- maioritário – permitem que um candidato que A experiência de Biden dos provisórios, a participação subiu em grande obtenha menos votos populares vença a eleição medida graças ao voto antecipado por correspon- presidencial. Ocorreu cinco vezes: em 1824, – trinta e seis anos com dência e presencial. A pandemia terá sido, assim, 1876, 1888, 2000 e 2016. senador e oito anos como determinante numa mobilização sem preceden- Em paralelo, nos últimos anos, assistiu-se a uma vice-presidente – é um activo tes nas últimas décadas: Joe Biden, o vencedor, e consolidação da segmentação de eleitores por muito importante, mas Donald Trump, o derrotado, são já os dois candi- áreas geográficas: os republicanos concentrados datos que obtiveram o número mais elevado de em zonas rurais e os democratas em centros urba- dificilmente fará milagres. votos populares na história dos Estados Unidos. nos. Os estados republicanos foram ficando mais O primeiro conquistou 81.283.098 votos e o se- encarnados (cor associada a este partido) e os gundo 74.222.958. estados democratas mais azuis (cor do partido). Também como há quatro anos, as sondagens No final do século XX, era corrente a ideia de revelaram-se pouco precisas. A generalidade dos Contestação que o futuro pertencia ao Partido Democrático, estudos de opinião indicava uma vantagem nacio- A estratégia de Trump para contestar as eleições em função de uma evolução demográfica que pa- nal entre os 7% e 8% para Joe Biden e o resultado começou muito antes do processo eleitoral e recia favorecer o aumento do peso das minorias ficou pelos 4,5%. Para a vitória de Joe Biden foi corresponde a um padrão semelhante ao utili- afro-americanas e latinas em detrimento de uma determinante o regresso ao campo democrata zado nas primárias republicanas de 2016. Em população branca mais envelhecida. No entanto, dos estados da Pensilvana, Michigan e Wisconsin, Fevereiro desse ano, perante a vitória de Ted em termos práticos, uma maior mobilização da depois da surpreendente vitória aí obtida por Cruz nos caucuses do Iowa, Trump alegou frau- população branca, o desenho dos círculos elei- Trump em 2016. Biden terá conseguido resta- de sem apresentar qualquer prova. No início de torais e o próprio sistema eleitoral têm tornado belecer a conexão com parte dos votantes tradi- 2020, no momento em que percebeu que o voto mais fácil o conformar de maiorias por parte dos cionalmente democratas que recusaram a opção por correio poderia permitir uma maior mobili- republicanos. Clinton nas eleições anteriores. As conquistas da zação do campo democrático, o candidato re- Este quadro de divisão faz com que as campanhas Geórgia e do Arizona, que não votavam maiorita- publicano começou a alimentar suspeitas sobre presidenciais, nos Estados Unidos, tenham uma riamente num candidato democrata, respectiva- potenciais fraudes eleitorais, sem nunca forne- dinâmica muito própria. Se, numa eleição presi- mente, desde 1992 e 1996, ajudaram a consolidar cer qualquer elemento concreto que suportasse dencial brasileira ou portuguesa, todos os votos a vitória no Colégio Eleitoral. as suas afirmações. valem o mesmo e as campanhas são proporcio- A contagem dos votos nos estados com resultados nalmente distribuídas pelos territórios nacionais, Voto por correspondência mais ajustados demorou alguns dias, fruto da ele- no caso norte-americano os candidatos só fazem O novo coronavírus atingiu os Estados Unidos vada participação e do peso do voto por corres- campanha nos estados em que existe possibilida- no início de 2020. Sendo este país um Estado pondência. Na noite de 3 de Novembro, foi logo de de vitória. Segundo a empresa de monitoriza- federal, a coordenação entre as diferentes admi- perceptível que as diferenças nas metodologias de ção Advertising Analytics, em Outubro de 2020, nistrações teria sido fundamental para minimizar voto e de contagem se iriam repercutir na maior as duas campanhas tinham gastado em conjunto o impacto da pandemia na saúde e na economia. ou menor lentidão do apuramento de resultados. mais de 1.000 milhões de dólares em publicidade Donald Trump, que contava com os bons resulta- Os estados em que os votos presenciais foram televisiva em apenas 13 dos 50 estados (ref.) dos macroeconómicos para garantir a reeleição, contados primeiro registaram um avanço inicial de não conseguiu (ou não quis) assumir a gestão e Trump e uma recuperação gradual de Biden à me- Reeleição a própria existência de um problema de saúde dida que o voto por correspondência era contado. Até à eleição de 2020, só não foram eleitos treze pública, provavelmente por considerar que desta Na própria noite das eleições, o ainda presiden- candidatos que fossem ao mesmo tempo presi- forma estava também a assumir que existia uma te apressou-se a reconhecer uma vitória que já dentes em exercício de funções. A probabilidade crise económica. saberia ser difícil de alcançar, iniciando o mais

38 NH 4 12 1 VT 3 3 3 3 10 7 4 3 10 29 MA 11 3 16 RI 4

6 20 CT 7 6 4 NJ 14 1 20 11 18 6 DE 3 5 9 13 MD 10 55 6 10 8 DC 3 15 11 7 11 5 6 9

16 6 9

38 8

29 3

4 Biden Trump

MAPA DOS RESULTADOS (com indicação da quantidade de votos que cada estado e o Distrito de Colúmbia possuíam no Colégio Eleitoral) Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Elei%C3%A7%C3%A3o_presidencial_nos_Estados_Unidos_em_2020

atípico processo de transição da história recente mais o diferencia em relação ao republicano em político, económico e comercial com a China ou dos Estados Unidos da América. Em paralelo, e funções: a gestão da pandemia da COVID-19. o posicionamento norte-americano no Médio à medida que se ia confirmando a reversão das Não restam quaisquer dúvidas de que a primeira Oriente. Também na política externa, Biden po- derrotas de Hillary Clinton na Pensilvânia ou no parte do mandato do novo presidente será mar- derá querer afirmar-se como o “anti-Trump”, as- Michigan, Trump iniciava uma escalada retórica cada pelo problema de saúde pública que repre- sumindo compromissos com o multilateralismo sobre uma eventual fraude massificada que lhe senta o novo coronavírus e pelas consequências político (ONU, NATO, UE) e técnico (ambiental, estaria a roubar a presidência. No campo judicial, económicas da pandemia. Depois de quatro anos cultural, saúde). a sua campanha deu início a uma série de pro- politicamente muito extremados, Joe Biden terá Os próximos quatro anos serão certamente dife- cessos judiciais que visavam a anulação total ou que procurar reconstruir uma base bipartidária rentes dos últimos tempos. As expectativas em parcial de votações, o que se materializou numa mínima para aprovar estímulos económicos e relação a Biden são muito elevadas, sobretudo série de derrotas em tribunais de diferentes ins- para implementar pelo menos parcialmente o no exterior. No entanto, a forma como a socie- tâncias estaduais e federais. seu programa de governo. dade norte-americana se encontra dividida e o Uma das últimas e mais graves tentativas de rever- O contexto interno dos dois partidos não ajuda: aparente propósito de Trump de manter a sua ter a vontade popular passou pela interposição o Partido Democrático assenta cada vez mais na base eleitoral mobilizada representarão grandes de uma acção no Supremo Tribunal dos Estados soma de diferentes grupos minoritários com dificuldades para a nova administração, sobretu- Unidos por parte do procurador-geral do estado agendas específicas e por vezes difíceis de com- do se se mantiver, como se prevê, uma maioria do Texas, Ken Paxton, contra os estados da Geór- patibilizar; o Partido Republicano encontrou no republicana no Senado. n gia, Michigan, Wisconsin e Pensilvânia por uma descontentamento do eleitorado branco a sua eventual alteração das normas para facilitar a elei- base de apoio, galvanizado pelo radicalismo po- ção de Joe Biden. O Supremo Tribunal rejeitou a pulista de Trump. Nenhuma das duas formações acção alegando que o estado do Texas não teria parece grandemente interessada numa política legitimidade para contestar os resultados de ou- de concessões num país cada vez mais polariza- tros estados. do. A experiência de Biden – trinta e seis anos como senador e oito anos como vice-presidente Presidência Biden – é um activo muito importante, mas dificilmente Os vazios de poder tendem a ser rapidamente fará milagres. preenchidos e, à medida que Trump abandona- O presidente dos Estados Unidos da América va as funções presidenciais para se concentrar tem mais margem de manobra na frente externa na contestação dos resultados e em garantir que do que na interna. Nesse campo, o legado da ad- continua a liderar o Partido Republicano, Joe Bi- ministração Trump supõe desafios de dois tipos: den começou a apresentar a sua administração. Já reversíveis, como saída da OMS e da UNESCO, com a solenidade conferida pelo estatuto de pre- o recuo nos compromissos com os parceiros Nota sidente eleito, o seu primeiro gesto foi apresentar europeus no quadro da NATO ou no Acordo 1 https://www.eac.gov/news/2017/06/29/newly-released-2016- um grupo de trabalho para o apoiar na tarefa que de Paris; e de difícil reversão, como o conflito election-administration-and-voting-survey-provides-snapshot

39 JANUS 2020-2021

1.16 • Conjuntura Internacional

225 ANOS DO CONSULADO DOS EUA NOS AÇORES: A MAIS Paulo Fontes ANTIGA REPRESENTAÇÃO DIPLOMÁTICA DO MUNDO Texto entregue em Outubro de 2020

A RELAÇÃO ENTRE OS ESTADOS UNIDOS da 1850, geralmente como simples marinheiros de pectos, comerciais e de transporte, o cônsul América e o arquipélago dos Açores remonta ao convés e como trancadores. Já para o fim da era Charles W. Dabney e seu filho Samuel W. Dabney período da formação da nação norte-americana, baleeira, tinham-se tornado a força dominante tiveram papel de relevo.5 no final do Século XVIII. na baleação americana, ocupando posições de Em 1777, um ano após Thomas Jefferson, prin- capitães, oficiais, e mesmo, armadores. Relações Transatlânticas do Século XX cipal autor do texto da célebre Declaração de Torna-se evidente que esta ponte estabelecida aos nossos dias Independência, ter proclamado, na cidade de pelos navios baleeiros constituiu a primeira fase Na antecâmara do século XX, um conjunto de Filadélfia, a 4 de julho de 1776, que “all men da emigração portuguesa para os Estados Uni- alterações económicas e geoestratégicas su- are created equal”, os Açores deram apoio a dos. Por muitas razões, como a fuga ao recruta- cedem-se e a Ilha do Faial perde importância corvetas da jovem nação que rumavam a França mento militar, o escape às condições opressoras estratégica, também devido à maior pujança e em iniciativas diplomáticas que procuravam as- duma pobreza hereditária e inevitável, imposta concentração de população na Ilha de São Mi- segurar uma aliança política e militar com o rei- por um excesso de população num território guel. Os Estados Unidos decidem deslocar o seu no francês, que se revelaria determinante para o demasiado exíguo para a suportar, um certo iso- Consulado e, a 1 de maio de 1899, inicia oficial- sucesso da Revolução Americana. lamento paralisante, ou, até, determinados pro- mente o Consulado Americano em Ponta Delga- Em 1795, depois do fim da Guerra da Indepen- blemas políticos, muitos açorianos e açorianas da. O escritório da Horta foi reduzido à categoria dência Americana, já no período de vigência da começaram a infiltrar-se nos Estados Unidos, de agência consular nos finais de abril de 1899, Constituição federal, marcada pela proeminên- sob a forma de mão-de-obra inexperiente e ba- quando o cônsul Pickerell transferiu o Consula- cia de James Madison e ratificada em 1788, e rata nas atividades baleeiras.2 do para São Miguel. no decurso do segundo mandato do Presidente O Sr. Moyses Benarus, que tinha sido vice-côn- George Washington, os Estados Unidos da Amé- Os Dabney: três gerações que sul na Horta, passou a agente consular até 24 de rica estabeleceram o seu primeiro consulado no marcaram a Ilha do Faial janeiro de 1918, quando esses escritórios e o da arquipélago dos Açores, há 225 anos. A criação de uma rede consular americana nas Terceira foram definitivamente encerrados e to- Desde a sua instalação, o Consulado dos Esta- ilhas leva-nos aos Dabney que, ao longo de três dos os serviços consulares dos Açores passaram dos Unidos da América nos Açores funcionou gerações familiares – John Bass Dabney, Charles a ser feitos em S. Miguel, devido à guerra. As na cidade da Horta durante 122 anos, até à sua William Dabney e Samuel Dabney –, entre 1806 e outras agências consulares americanas, situadas transferência, em 1917, para Ponta Delgada. 1891, desempenharam funções de representação respetivamente nas Flores e S. Jorge que tinham John Street foi o primeiro cônsul, na Horta, diplomática na cidade da Horta, marcando assim estado sob a jurisdição do Consulado Ameri- tendo nomeado o primeiro vice-cônsul Thomas uma época nas “ilhas do canal” (Faial e Pico) a cano da Horta e em 1899 sob a jurisdição do Hickling, a 7 de julho de 1795, para Ponta Del- que o investigador Ricardo Manuel Madruga da consulado em S. Miguel, tinham sido encerra- gada. Este foi um período em que a liberdade de Costa (2009) chamou “o século Dabney”. das definitivamente antes do fecho das agências navegação, a baleação, a emigração e os cabos consulares da Horta e Terceira.6 submarinos foram fatores centrais da relação Os cônsules americanos em S. Miguel ocupa- entre os EUA e os Açores. vam-se principalmente da situação de cidadãos O Consulado dos Estados americanos naturalizados, que haviam nascido Os Americanos e os Açores Unidos nos Açores é o mais nos Açores, e dos seus filhos, envolvendo inves- Desde 1750 até cerca de 1920, os navios baleei- tigações relativas a naturalização fraudulenta, ros americanos viram-se impelidos para os Aço- antigo posto diplomático deportação, isenção do serviço militar, taxas res pelos ventos dominantes e pela Corrente do norte-americano, do género, militares, assuntos relativos à emigração para os Golfo ao mesmo tempo que se sentiam atraídos no mundo. Estados Unidos da América.7 pela presença de grandes quantidades de cacha- Outros acontecimentos também se deram ao lotes existentes em redor das chamadas Western mais alto nível das relações diplomáticas, assi- Islands (Açores). Além da oportunidade que nala-se a primeira passagem do ex-Presidente uma escala em terra lhes dava para se reabas- A família Dabney mantinha uma grande ativida- Theodore Roosevelt por Ponta Delgada, a 30 de tecerem de água e de provisões frescas, podiam de comercial e marítima na Horta e suas imedia- março de 1909, onde parou algumas horas, na ali recrutar novos elementos para completar as ções, na ilha do Faial, onde as suas casas eram sua viagem para África. Nessa estada, o Cônsul tripulações. Durante um século e meio, foram enormes, bem mobiladas e rodeadas de magnífi- Creevey levou-o a uma colina, o Alto da Mãe de estas as principais razões que levaram os ba- cos jardins. Mantinham o prestígio do Governo Deus, onde hoje se situa o Passeio Theodore leeiros americanos a escalar o porto da Horta e Americano através de uma hospitalidade genero- Roosevelt e existe uma pedra ao longo do pas- outros portos açorianos, mais do que qualquer sa a pessoas distintas. Pode-se compreender que seio assinalando o facto.8 outro lugar no estrangeiro.1 o vencimento dum cônsul americano não teria Após 1917, na sequência da entrada dos EUA na Esta ponte de ligação que os navios baleeiros sido suficiente para manter tão elegante estilo Primeira Guerra Mundial, as relações entre os estabeleceram entre os Açores e New Bedford de vida. Sendo assim, entendeu-se ser essencial norte-americanos e os açorianos aprofundaram- teve uma influência decisiva no crescimento da a um cônsul no Faial ter fortuna pessoal.4 -se, assistindo-se à cedência de pontos de apoio indústria baleeira, e, até da própria cidade. Os Naquele tempo, havia grande prosperidade na- às forças navais norte-americanas nas nossas açorianos estiveram presentes nos navios ba- quela parte dos Açores, envolvendo a exporta- ilhas e à instalação de uma base naval da US leeiros americanos logo a partir dos começos ção de laranjas para a Inglaterra, vinho do Pico, Navy na cidade de Ponta Delgada.9 do século XIX. Faziam parte dessa heroica aven- óleo de baleia e âmbar para os Estados Unidos A base naval americana do Atlântico Central fi- tura quando a indústria e atividades baleeiras e ainda emigração de açorianos e açorianas em cou estabelecida em Ponta Delgada durante a atingiram o seu apogeu, no final da década de larga escala para a América. Em todos estes as- Grande Guerra a fim de proteger os transportes

40 OS AÇORES: UMA PONTE NO ATLÂNTICO O Arquipélago dos Açores sempre desempenhou um papel especial na relação bilateral de Portugal com os Estados Unidos. Famílias de ambos os lados, culturas e economias cresceram juntas nos últimos 225 anos. Estes laços fundaram a prosperidade e segurança conjunta, numa relação que se foi reforçando. Nas sociedades que se constituem de ambos os lados, a maioria dos Portugueses-Americanos é de origem açoriana, estimando-se serem mais de um milhão nos EUA. Projetando o futuro, os Açores continuam a desempenhar um papel muito importante ao estabelecerem uma ponte no Atlântico. De ambos os lados são feitos investimentos e emergem mais turistas americanos e estudantes em intercâmbio. Hoje, já não são só os açorianos que emigram, muitos norte-americanos têm fixado residência nos Açores, procurando a segurança e a qualidade de vida que o arquipélago pro- porciona. A par do papel estratégico que Açores podem desempenhar nas novas configurações de segurança do Atlântico, temos razões suficientes para brindarmos aos 225 anos de uma longa relação atlântica. americanos que levavam tropas para França e Nas décadas de 1960 e 1970 o Consulado norte- com outras finalidades estratégicas. O almiran- -americano prestou um papel da maior im- te Dunn e o seu sucessor, o almirante Jackson, portância no apoio às vagas de emigração dos mantiveram uma esquadra de destroyers que Açores para os Estados Unidos, uma função que eram apoiados por hidroaviões. Na manhã de continuaria a desempenhar nas décadas seguin- 4 de julho de 1917, um submarino alemão dis- tes, embora de uma forma mais atenuada devido parou algumas granadas do exterior do molhe a novas circunstâncias, quer na Região, quer nos para Ponta Delgada, uma das quais matou uma Estados Unidos. rapariga de 16 anos, na Fajã de Cima. O barco Atualmente a missão do Consulado norte- carvoeiro “Orion” na baía de Ponta Delgada, -americano nos Açores é desenvolvida em três perto do molhe, rapidamente disparou algumas domínios principais: 1) manter os laços históri- granadas e o submarino submergiu e rapida- cos de parceria e amizade com o povo e com o mente desapareceu.10 Governo da Região Autónoma dos Açores e de A 16 de julho de 1918, a nova visita de Roose- Portugal; 2) prestar serviços de alta qualidade velt aos Açores contemplou o porto da Horta, aos cidadãos dos EUA nos Açores, salvaguardan- na ilha do Faial e o Porto de Ponta Delgada, que do a sua segurança e bem-estar, uma função de eram os dois utilizados pelos navios aliados importância crescente face ao grande aumento para apoio logístico durante a Primeira Guerra de fluxos turísticos dos EUA para o arquipélago; Mundial. Na altura, em declarações prestadas ao e 3) aumentar os intercâmbios educacionais, co- jornal micaelense, República, Roosevelt afirmou merciais e culturais entre os Estados Unidos e os que graças à sua importância geoestratégica, os Açores, especialmente nas áreas da energias re- Açores haviam prestado um contributo muito nováveis, das tecnologias verdes, dos negócios especial no que concerne ao transporte de tro- e do turismo. pas do Novo para o Velho continente, tornando O Consulado dos Estados Unidos nos Açores é o possível, desta forma, que o desfecho da guer- mais antigo posto diplomático norte-americano, ra não se prolongasse. Roosevelt despertou o do género, no mundo. Contabiliza 225 anos de mundo para a importância da posição geoestra- funcionamento contínuo que consolidaram o Notas 11 tégica dos Açores. aprofundamento de uma relação de amizade, 1 Vermette, Silvia (1995) Os Yankees e o Faial. In “O Faial Mais tarde, em 1944, já na fase final da Segunda de cooperação e de respeito mútuo que muito e a Periferia Açoriana nos Séculos XV a XIX”. Horta: Núcleo Cultural da Horta. Guerra Mundial, foi instalada uma base aérea contribuiu para a concretização de interesses 2 Idem. norte-americana na Ilha de Santa Maria, que comuns que beneficiaram ambas as partes, ao 3 Riley, Carlos G. (2015). Os Açores e os Estados Unidos cerca de três anos depois era transferida para a longo de mais de dois séculos de história e des- da América no “Longo Século XIX”. Nação e Defesa, Nº 141; Base das Lajes, na Ilha Terceira. tino comuns. n Vermette, Silvia (1995) Os Yankees e o Faial. In “O Faial e a Periferia Açoriana nos Séculos XV a XIX”. Horta: Núcleo Em 1949, Portugal foi convidado, ao contrário Cultural da Horta. de Espanha, para membro fundador da Orga- 4 Doty, William F. (2006). Esboço Histórico do Consulado nização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), Americano nos Açores. Horta: Núcleo Cultural da Horta. 5 Idem. embora não tivesse um regime democrático, 6 Ibidem. graças à importância geoestratégica dos Aço- 7 Ibidem. 8 Ibidem. res, em especial da Base das Lajes. Ao longo 9 Andrade, Luís (1993). Neutralidade Colaborante: O Caso do restante período do Século XX, os Açores de Portugal na Segunda Guerra Mundial. Ponta Delgada: (s.e.). 10 revelaram-se fundamentais para a condução da Doty, William F. (2006). Esboço Histórico do Consulado Americano nos Açores. Horta: Núcleo Cultural da Horta. geopolítica americana. 11 Andrade, Luís (2008). Os Açores e a Segunda Guerra Mundial. A relação estreita entre os EUA e os Açores per- In “Franklin Roosevelt e os Açores nas duas Guerras Mundiais”. Lisboa: Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento. mitiu à região e a Portugal fazer parte do esforço que o mundo ocidental, liderado pelos norte- Bibliografia geral -americanos, desenvolveu na defesa da Paz, da Costa, Ricardo Manuel Madruga da (2009). O Século Dabney: Liberdade, da Democracia, da segurança, da Uma Perspetiva das Relações entre os Açores e os Estados Unidos da América à Luz da Correspondência Consular, livre navegação aérea e marítima e da estrutu- 1806-1892. Ponta Delgada: Universidade dos Açores. ração de uma Comunidade Internacional su- Embaixada e Consulado dos EUA em Portugal. Site Oficial. bordinada a regras e dotada de instituições Disponível em: https://pt.usembassy.gov/pt/embassy- multilaterais comprometidas com a promoção consulate-pt/ponta-delgada-pt/ Wheeler, Douglas (1988). “The Azores and the United States e a salvaguarda do Direito Internacional e dos (1787-1987): Two Hundred Years of Shared History”. Boletim Direitos Humanos. do Instituto Histórico da Ilha Terceira n.º1, pp. 55-71

41 JANUS 2020-2021

1.17 • Conjuntura Internacional

Luís Valença Pinto NOS 70 ANOS DA NATO Texto entregue em Setembro de 2019

EM ABRIL DE 2019 A NATO atingiu a idade de 70 fatores. Uns de caráter mais estrutural e outros Com a consequência imediata de, por esse anos. A efeméride convida a algumas reflexões. de natureza mais conjuntural. motivo, se gerar um enorme desequilíbrio A primeira é que a NATO se tem mostrado as- Os fatores estruturais são evidentemente os entre os encargos dos EUA e os dos demais sinalavelmente resiliente. De facto, não abun- mais importantes. Deles, quatro merecem par- aliados na satisfação dos orçamentos da pró- dam os casos de organizações internacionais, ticular atenção. pria Aliança, para o que não se encontra ex- em particular na área da Segurança e Defesa, O primeiro, está ligado às limitações da NATO plicação que vá para lá da falta de vontade e que atinjam essa longevidade. Citado pela perante muitos dos atuais conflitos. A NATO tem de empenhamento dos europeus. Radica aqui revista Economist na edição de 14 de março uma capacidade militar extraordinária. Mas é a questão da fixação de um compromisso para de 2019, um estudo da Brookings Institution exígua nos planos político e diplomático e nula a atribuição à Defesa de 2% do PIB de cada recorda que nos último 500 anos houve 63 nas dimensões económica, social e cultural. Ora, Estado Membro. Questão hoje mais bem con- alianças para fins de Defesa, das quais só 10 face a situações que em larga medida radicam em substanciada e melhor balizada com o critério viveram mais do que 40 anos, sendo a dura- quadros de exclusão política, económica e social, adicional de 20% desses montantes serem em bilidade média de 15 anos. Nada, porém, le- na existência de Estados falhados e frágeis e em cada País alocados a investimento, visando gitima que se presuma uma vida perene para condições ambientais muito adversas, as respos- o levantamento de mais e melhores capaci- a NATO. As alianças não são eternas. E esse é tas têm que ser procuradas através da ação coe- dades militares, e também com a definição um postulado. rente, convergente e coordenada de todas essas de 2024 como o horizonte temporal em que A segunda é que, ao longo da sua vida, a dimensões do trabalho estratégico. O que, por si tudo isso deve estar plenamente observado. Aliança Atlântica assegurou importantes con- só, a NATO não pode assegurar. A situação decor- Também não é razoável tomar esta questão tributos. Viabilizou ou no mínimo facilitou rente das ameaças e riscos que, a partir da África como efémera. o processo de construção europeia, venceu do Norte e do Médio Oriente, se projetam no Sul Finalmente, e as coisas estão obviamente inter- a Guerra Fria, foi decisiva na pacificação das da Europa, é a esse título paradigmática. Para a ligadas, a dificuldade estrutural que resulta da Balcãs Ocidentais, participou com eficácia no resposta a esses problemas a Aliança pode dar crescente disparidade entre o padrão tecnoló- combate à pirataria na região do Corno de importantes contributos no domínio militar, mas, gico das Forças Armadas dos EUA e as dos ou- África e proporcionou um melhor contorno sozinha, não pode pretender criar, face a eles, tros Aliados. Dificultando o trabalho conjunto, para o tratamento da questão afegã. Paz, Segurança e estabilidade. nomeadamente em cenários de maior exigên- Daqui é legítimo concluir que a vida da NATO cia e sofisticação, e também a interoperabilida- tem sido marcada pelo sucesso. Uma expres- de. Talvez pela sua condição de superpotência são disso é também o modo como soube e foi global, os Estados Unidos nem sempre iden- capaz de evoluir para se inscrever com perti- Com exceção de Portugal tificam fortes limitações no seu isolamento político e estratégico, mas em regra procuram nência e utilidade potencial no contexto polí- entre 1949 e 1974 e do tempo tico e estratégico do pós Guerra Fria. E não foi evitar o isolamento operacional e tático. Mas pequena essa transformação, que assentou em da Grécia dos Coronéis, o ponto que aqui importa acentuar é que isso três noções fundamentais. a NATO foi sempre uma aliança fragiliza e pode mesmo comprometer a coesão Uma, a adoção de um novo paradigma de Se- de democracias, no que aliás da Aliança. Pelo menos no plano militar essa circunstância representa um condicionamento gurança, distinto da até aí tradicional visão do radicou muita da sua força Inimigo pré-definido, continuadamente atento à plenitude do artigo 5º, ou seja, ao core do aos objetivos clássicos da Segurança, incluindo e da sua atratividade. Tratado de Washington. os da Segurança Coletiva, mas também atento No que toca a questões conjunturais, mas à dimensão humana que carateriza a Segurança com significativo impacto sobre vida da Alian- Cooperativa do presente. O segundo, liga-se ao desvio, legítimo e nada ça, elas prendem-se sobretudo com as crises Outra, a compreensão que, para atuar eficaz- surpreendente, da prioridade norte americana da nalgumas democracias europeias, com o novo mente sob essa nova perspetiva, é indispensá- Europa para a Ásia-Pacífico e, mais recentemente entendimento turco, com o Brexit e com o que vel agir na busca e promoção da cooperação para o Indo-Pacífico. As dinâmicas geopolíticas a resulta do discurso e da prática da Administra- e no entendimento que a ação carece de ser que assistimos não permitem entender essa al- ção Trump. multidimensional, associando todas as dimen- teração como transitória. Daí que a Aliança faça Com exceção de Portugal entre 1949 e 1974 sões possíveis do trabalho estratégico. bem se a considerar como algo de estruturalmen- e do tempo da Grécia dos Coronéis, a NATO Finalmente, o entendimento que, a lógica que te diferente da realidade que até aqui viveu. Dela foi sempre uma aliança de democracias, no mais importa na maioria da conflitualidade decorre o pressuposto que os europeus se devem que aliás radicou muita da sua força e da sua contemporânea é uma lógica do tipo . sentir e tornar mais responsáveis pela Segurança atratividade, nomeadamente durante a Guer- Os Conceitos Estratégicos que a Aliança ado- do seu próprio continente e também do seu near ra Fria e nos tempos imediatamente subse- tou sucessivamente em 1991, 1999 e 2010 abroad, designadamente o Norte de África e, nal- quentes. atestam estas escolhas, definem a consequente guma extensão, o Médio Oriente, deixando de Esse é um valor que bem se pode tomar como postura e apontam os novos caminhos. tomar como certo e automático o envolvimento sendo intrínseco à organização. Por isso, o Pareceria que a Aliança dispunha de todos os norte americano nessas questões. que hoje se passa em países como a Hungria critérios e instrumentos para ter uma vida fe- Terceiro fator, o protesto dos Estados Unidos, e a Polónia, sendo deplorável, é forçosamente cunda no presente e para encarar o futuro com aliás inteiramente compreensível, pelo facto preocupante, embora haja que reconhecer que tranquilidade. Não é assim. das despesas de Defesa dos aliados europeus até ao presente não condicionou fortemente a A NATO vive um tempo com pouco de risonho ficarem persistentemente abaixo do razoável e vida coletiva da Aliança. Sublinhe-se, porém, o e promissor, para o que contribuem diversos necessário. “até ao presente”…

42 O caso turco, começa por se inscrever no didade nos planos político e estratégico, ex- bilidades estratégicas e uma fatia mais equili- mesmo padrão de desvio da boa norma demo- poria significativas clivagens, seria no mínimo brada na equação da partilha de encargos. Os crática, com exuberantes e bem conhecidos inconclusivo e, no pior cenário, disruptivo da outros, os de caráter circunstancial e conjuntu- atropelos às liberdades e ao Estado de Direito. própria Aliança. ral, muito decorrentes de quem tem hoje voz e Mas o problema é mais complexo, como con- Pano de fundo a tudo isto é, naturalmente, o en- Poder no outro lado do Atlântico, dificilmente sequência do comportamento geopoliticamen- tendimento que agora prevalece em Washington serão anulados por esta via. Mas os excessos te errático que a Turquia tem tido, sobretudo quanto ao valor da relação transatlântica. Não demagógicos, injustos e panfletários que têm nas questões do Médio Oriente, mas não só. A só, nem talvez principalmente, pela menor prio- sido esgrimidos, encontrarão menos espaço e recente decisão de aquisição à Rússia de siste- ridade geopolítica atribuída à Europa. Mas tam- serão mais facilmente rebatíveis. n mas de Defesa antimíssil incompatíveis com os bém por sinais como o abandono dos acordos da NATO é uma evidência disso mesmo. Uma de Paris, a recusa do TTIP, a desconsideração ilação mínima é que no presente a Turquia não da posição europeia no acordo sobre o nuclear pode ser tomada como um Aliado seguro e iraniano, e o afunilamento da relação com a inquestionável. Se atentarmos na importância União Europeia no plano comercial e nele a um geoestratégica da Turquia e no facto das suas contexto de “guerra”. Forças Armadas serem as segundas maiores da Por todas estas razões o momento da Aliança NATO, isso dá-nos uma perceção da relevância Atlântica não é fácil, e para que não se corra o do problema. risco de se ser destrutivo, convida à expectativa. À data de produção deste texto não é possível É o que no essencial os aliados europeus procu- especular sobre o desfecho concreto do pro- ram fazer: manter o status quo com o propósito cesso do Brexit. Mas uma coisa pode ser toma- de não agudizar divergências e assim preservar da como certa: a enorme crise da credibilidade a Aliança na esperança de melhores dias. britânica. O Reino Unido foi sempre justamen- Neste tempo e nestas condições ganha vigor e te compreendido como um parceiro de grande novos contornos a dimensão europeia. fiabilidade e competência nos planos político e Raciocinando em modelo facilmente se percebe estratégico. Se não é legítimo entender que as que muitas das questões que hoje constituem qualidade e competências militares britânicas problemas e embaraços no relacionamento foram ou vão ser afetadas pelo Brexit, a credi- transatlântico e, portanto, na NATO, podem, bilidade da sua ação enquanto Estado está por (e devem…) encontrar resposta no contexto agora muito beliscada. O que tem consequên- especificamente europeu e, em concreto, na cias em dois planos. No plano interno da Alian- União Europeia (UE). ça e no plano da crescentemente importante e A pergunta obrigatória é: será isso possível? necessária cooperação política e institucional São bem conhecidas as dificuldades, divisões entre a NATO e a União Europeia. e limitações de visão, de vontade e de recursos É, contudo, dos ventos que por agora sopram que existem na Europa. em Washington que vêm as mais significativas Mas é também verdade que em matéria de Po- condicionantes. lítica Externa e de Segurança e Defesa houve Em relação à necessidade de maior responsa- em tempos recentes evoluções interessantes bilização e compromisso dos europeus a atual e promissoras. Estão nesse caso a aprovação Administração americana não afirma nada que, em 2016 da Estratégia Global de Segurança da no fundamental, não tenha também sido dito UE e o lançamento no final de 2017 da Coo- pelas duas Administrações anteriores. A dife- peração Estruturada Permanente no domínio rença, que é muito relevante, é que o proclama da Segurança e Defesa (PESCO). E vale a pena num tom agressivo e disruptivo em relação ao assinalar que, apenas com exceções mínimas futuro da Aliança, acenando com o que acha e naturais no caso da PESCO, esses textos me- ser o seu obsoletismo e dispensabilidade. receram uma quase unanimidade, o que con- A isso se adiciona e com grande importância, tinua a verificar-se com a sua materialização. a diferença de perspetiva que se deteta nas Salientando a importância que, pelo menos visões prevalecentes num e noutro lado do potencialmente, essas políticas e práticas ofe- Atlântico. Os EUA de hoje não reconhecem recem à NATO, talvez se possa pensar que, ape- preocupações de governança global, conside- sar de tudo, está a chegar à Europa o tempo ram aliados e parceiros apenas e só se amplia- para uma narrativa de esperança. Mas, subli- rem o Poder dos EUA e não mostram interesse nhe-se o “talvez”… pelas ordens regionais de cooperação. Os Uma coisa, porém, parece inequívoca, o cami- europeus têm preocupações de governação nho de evolução positiva que se subentende global, identificam o multilateralismo como nesse processo está perfeitamente ao alcance condição para essa governação, reconhecem e da Europa. Pelo menos no plano material. privilegiam as ordens regionais de cooperação É um caminho que a Europa deve fazer com e olham para todos os aliados e parceiros sob permanente atenção e empenho na preserva- o prisma de uma cooperação mutuamente fru- ção do vínculo transatlântico e, portanto, da tuosa, dificilmente se pode ter enunciados tão NATO, e no reconhecimento do papel de Ator díspares. indispensável que continua a caber aos EUA Isso explica porque se mostra inviável que a em matéria de Segurança e Defesa da Europa. NATO renove em 2020 o seu Conceito Estra- Se assim acontecer a Europa será melhor e mais tégico de 2010, iniciando em 2019 os corres- forte e poderá responder positivamente à ne- pondentes trabalhos. Há a noção que um tal cessária superação dos fatores mais estruturais debate, incidindo com muito vigor e profun- da crise da NATO, assumindo mais responsa-

43 JANUS 2020-2021

1.18 • Conjuntura Internacional

Luis Tomé CORRIDA AOS ARMAMENTOS, DE NOVO Texto entregue em Novembro de 2020

UMA DAS TENDÊNCIAS MAIS PREOCUPANTES bida de 30% entre 2010 e 2019 e um orçamento de sas militares da Ásia-Pacífico (subindo de uma par- dos últimos anos, e que parece consolidar-se, 20,5 mil milhões de USD no último ano, ocupa a cela de 36%, em 2010). Paralelamente, registam-se é o regresso a uma verdadeira corrida aos arma- 15ª posição do ranking, seguido pela Turquia com aumentos significativos em todas as sub-regiões da mentos. Sintoma disso são os aumentos dos orça- 20,4 mil milhões de USD e que regista o conside- Ásia-Pacífico (Quadro 1). mentos militares e do volume das importações de rável aumento de 86% entre 2010 e 2019. Das po- O “factor China” é, na realidade, o principal insti- sistemas de armas, ao mesmo tempo que se assiste tências regionais, o Irão parece ser a excepção, em gador da corrida aos armamentos na Ásia-Pacífico, ao desmantelamento dos regimes de controlo de virtude das dificuldades económicas: apesar de su- com várias outras potências da região a aumenta- armamentos e ao aumento dos arsenais nucleares bir de 20º para 18º no ranking mundial entre 2018 rem os seus orçamentos de defesa para, de alguma de várias potências. e 2019, regista uma queda significativa de 36% nas forma, balancearem o poderio estratégico chinês, despesas militares na década 2010-2019. com destaque para a Índia (com um aumento de O Mundo gasta mais em armamento Por outro lado, sublinha-se a subida do share do 37% na década 2010-19 e que ascendeu ao 3º lu- do que no período de Guerra Fria Médio Oriente nas importações globais de armas, gar do ranking, com 71,1 mil milhões de USD), o – e África, Médio Oriente e Ásia-Pacífico e que passou de 23% no período 2010-2014 para Japão e a Coreia do Sul (Quadro 2). Já em 2020, gastam muito mais 35% nos anos 2015-2019. Também a este respeito em resposta a uma maior assertividade da China, Conforme revelam os cálculos do Stockholm Inter- se destaca a Arábia Saudita, cujas importações de a Austrália anunciou um aumento de 40% do seu national Peace Research Institute (SIPRI), o mun- armamento aumentaram 130% de 2010-14 para orçamento de Defesa na próxima década, numa do gasta mais em armamento atualmente do que 2015-19, tornando-se no maior importador do postura seguida igualmente pela Índia e pelo Ja- em contexto de Guerra Fria: a preços constantes, mundo, num ranking mundial cujo Top 10) inclui pão. Por outro lado, a Ásia-Pacífico representa 41% as despesas militares globais subiram de 1 bilião igualmente o Egipto, os Emiratos Árabes Unidos, o no total mundial das importações de armamento e 537 mil milhões USD, em 1988, para 1 bilião Iraque e ainda o Qatar (este na 10º posição e com (a maior parcela no comparativo por regiões), com e 922 mil milhões de USD, em 2019, apesar da um aumento impressionante de 631% de 2010-14 seis países no Top 12 (Quadro 3) e nove países no descida nos anos 1990. E como também mostra para 2015-19) (Quadro 3). Israel (14º), Turquia Top 20 dos maiores importadores de armas no pe- o Quadro 1, com excepção da Europa, todas as (15º) e Omã (23º) são outros países da região que ríodo 2015-2019: Índia, Austrália, China, Coreia do regiões do mundo registam aumentos das despe- encontramos no top 25 dos maiores importadores Sul, Paquistão, Vietname e Japão (16º), Indonésia sas militares no comparativo deste lato período de armamento. (17º) e Singapura (19º). de tempo, algumas exponencialmente como África, Mais paradigmático ainda é o caso da Ásia-Pacifico, Médio Oriente e Ásia-Pacífico. onde as despesas militares dispararam de 136 para Cada vez mais EUA vs China e cada vez Em África, entre 1988 e 2019, a preços constantes, 531 mil milhões de USD, a preços constantes, en- menos Europa e Rússia as despesas militares cresceram de 16,3 para 41,6 tre 1988 e 2019 (Quadro 1). Esta macro-região é, Na liderança dos maiores orçamentos de defesa do mil milhões de USD (sublinhando-se o aumento aliás, a única do mundo com aumentos contínuos mundo estão aquelas que são, aparentemente, as de 17% só na década 2010-2019), representando desde 1988, e cujo incremento de 51% na década superpotências declinante e emergente. Os EUA a sub-região do Norte de África, em 2019 (com 2010-2019 é muito superior ao de qualquer outra continuam destacados no topo do ranking, com um montante 67% mais elevado do que em 2010), região do globo, representando, actualmente, cer- um montante de 732 mil milhões de USD a pre- uma parcela de 57% no total do Continente Afri- ca de 30% das despesas militares mundiais. A prin- ços correntes, em 2019, apesar de uma redução cano – muito devido às persistentes tensões entre cipal responsável por este aumento é a China que, de 15% na década 2010-2019 e de um share no to- a Argélia e Marrocos, às insurgências no seio de sozinha, representa agora 50% do total das despe- tal mundial que baixou de mais de 50%, nos anos vários países e à guerra civil na Líbia. A Argélia des- taca-se, representando 44% do total das despesas QUADRO 1 – DESPESAS MILITARES POR REGIÃO, 1988-2019 do Norte de África e sendo o único País africano a REGIÃO/ANO 1988 1998 2008 2018 2019 integrar o Top 40 mundial, na 23º posição. Parale- África 16,3 14,4 31,5 41 41,6 lamente, o Norte de África representa também um Norte de África 4 6 11 22,3 23,4 share de 74% no total das importações de armas África Subsariana 12,3 8,5 20,5 18,6 18,2 do Continente Africano no período 2015-2019, de Américas 712 497 834 768 805 novo destacando-se a Argélia, o 6º maior importa- América Central e Caraíbas 4 4,2 5,1 7,9 8,5 dor mundial nos anos 2015-2019 e cujas importa- América do Norte 675 461 785 705 741 ções de armamento subiram 71% face ao período América do Sul 33,1 32 44,5 55,2 55,3 2010-2014 (Quadro 3). Ásia-Pacífico 136 181 306 507 531 No Médio Oriente, igualmente entre 1988 e 2019, Ásia Central 0,3 1,2 1,8 2,1 as despesas militares saltaram de 80,5 para 225 mil Nordeste Asiático 82,9 112 200 354 370 milhões de USD a preços constantes (Quadro 1), Oceânia/Pacífico 14,8 16,2 22,5 29,5 30,6 Ásia do Sul 24,7 32 54 83,8 89,1 em resultado das ambições e rivalidades envolven- Sudeste Asiático 13,9 20,2 28,6 38 39,7 do a Arábia Saudita, o Irão, Israel e a Turquia, bem Europa 599 276 336 348 365 como, entretanto, a guerra contra o Daesh, os con- Europa Central 42,1 18,8 21,7 28,5 32,6 flitos na Síria, no Iraque e no Iémen ou ainda as Europa Oriental 277 17 51,2 68,9 72,3 pressões sobre o Qatar e o Líbano. A Arábia Saudita Europa Ocidental 279 240 263 251 261 destaca-se, com um incremento de 14% na década Médio Oriente 80,5 83,7 133 209 225 2010-2019 e consolidando-se no Top 5 do ranking Total Mundial 1537 1278 1641 1855 1922 mundial, com despesas militares de 62 mil millhões Valores em Mil Milhões de Dólares dos EUA a preços constantes de 2018. de USD, em 2019 (Quadro 2). Israel, com uma su- Fonte: SIPRI Military Expenditure Database

44 QUADRO 2 – TOP 10 DOS PAÍSES COM AS MAIORES DESPESAS MILITARES EM 2019 continuam a aumentar os respetivos arsenais. Na VARIAÇÃO (%) SHARE MUNDIAL(%) PAÍS DESPESAS EM 2019 realidade, todas as potências nucleares continuam (Mil milhões USD a preços correntes) 2010-2019 2019 a modernizar as suas capacidades e a procurar re- Estados Unidos 732.0 6.0 38.0 definir o papel das armas nucleares nas suas estra- China [261.0] 85.0 [14.0] tégias nacionais. Índia 71.1 37.0 3.7 Por outro lado, temos assistido ao desmante- Rússia 65.1 30.0 3.4 lamento de acordos de controlo e redução de Arábia Saudita [61.9] 14.0 [3.2] armamentos, designadamente o Tratado INF França 50.1 3.5 2.6 – Intermediate-Range Nuclear Forces / Tratado Alemanha 49.3 15.0 2.6 Reino Unido 48.7 -15.0 2.5 de Forças Nucleares de Alcance Intermédio EUA- Japão 47.6 2.0 2.5 -Rússia, o Tratado Open Skies / Céus Abertos (que Coreia do Sul 43.9 36.0 2.3 envolve 34 países), o Arms Trade Treaty (ATT) so- Fonte: SIPRI Trends in World Military Expenditure: p. 2, Table 1. bre Comércio de Armas Convencionais, da ONU ou o Acordo P5+1 com o Irão (assinado, em QUADRO 3 – MAIORES IMPORTADORES DE ARMAS, 2015-2019 2015, mas de onde a Administração Trump retirou PERCENTAGEM DE ARMAS IMPORTADAS ALTERAÇÃO PERCENTUAL os EUA, em 2018). Paralelamente, não é certo que PAÍS 2015-2019 2010-14 DE 2010-14 A 2015-19 EUA e Rússia alcancem acordo para a renovação Arábia Saudita 12.0 5.6 130.0 e extensão do chamado “Novo START” (Strategic Índia 9.2 14.0 -32.0 Arms Reduction Treaty / Tratado sobre Redução Egipto 5.8 1.9 212.0 Austrália 4.9 3.7 40.0 de Armas Estratégicas) de 2010, e que caduca em China 4.3 4.4 3.3 Fevereiro de 2021. Certo é que a China recusou Argélia 4.2 2.6 71.0 liminarmente o convite de Washington para parti- Coreia do Sul 3.4 3.5 3.3 cipar nas negociações sobre controlo de armas nu- Emiratos Arábes Unidos 3.4 4.4 -18.0 cleares estratégicas, invocando que só fará sentido Iraque 3.4 1.8 98.0 envolver-se quando o número das que a Rússia e Catar 3.4 0.5 631.0 os EUA possuem for similar ao da China. Paquistão 2.6 4.5 -39.0 Vietname 2.2 2.6 -9.3 Confiança precisa-se! Fonte: SIPRI Trends in International Arms Transfers: p. 6, Table 2. Há certamente várias razões para explicar o au- mento dos orçamentos de Defesa: da maior dis- 1990 para 38%, em 2019. Segue-se a China que, anos 1990 para os actuais cerca de 50%. Quanto ponibilidade de recursos financeiros em virtude mercê de um aumento de 85% entre 2010 e 2019, à Rússia, apesar do aumento de 30% na década do crescimento económico ao imperativo de fazer gastou uns estimados 261 mil milhões de USD, em 2010-2019, cifra o seu orçamento de defesa nuns face a múltiplos desafios e ameaças “tradicionais” 2019 e vem reduzindo gradual e continuamente módicos 65,1 mil milhões de USD, posicionando- e “não convencionais”, necessidade de reconver- a diferença face aos EUA ao mesmo tempo que se -se no 4º lugar do ranking, em 2019 (chegou a es- são e modernização das respetivas Forças Arma- distancia das demais grandes potências. tar na 5ª e 6ª posições nos anos anteriores). das, satisfazer lóbis da indústria de armamento Com efeito, é notório o empenho de Pequim na e das estruturas militares, garantir privilégios ao “revolução dos assuntos militares com caracterís- Armas nucleares: poucas boas notícias, instrumento militar que garante a perenidade de ticas chinesas”, designadamente das capacidades e várias más regimes autocráticos, etc.. Mas é inequívoco que de projeção de força: por exemplo, entre 1991 e Onde a Rússia mantém a paridade face aos EUA e o reforço das capacidades militares muito deve a 2020, a China aumentou de 70 para 520 o número uma larga vantagem sobre as outras potências é lógicas de poder e de crescentes desconfianças e de mísseis balísticos que possui, de 0 para 52 o nº no arsenal nuclear: cada um dispõe de cerca de rivalidades entre potências, provocando uma es- de submarinos modernos, de 0 para 67 o número 6.000 ogivas em prontidão ou no seu stock militar calada competitiva no desenvolvimento e/ou na de fragatas e destroyers ou de 0 para 1080 o nº e, somados, EUA e Rússia possuem 91% de todas aquisição de capacidades militares tentando balan- de caças de 4ª e 5ª gerações.1 O reforço e a mo- as ogivas nucleares existentes no mundo. As boas cear ou suplantar os rivais – condições estas que dernização das capacidades militares chinesas são notícias são as reduções significativas de URSS/ nos permitem caracterizar uma verdadeira corrida também grandemente responsáveis pela crescente Rússia e EUA nas últimas quatro décadas, levando aos armamentos. A desconfiança e a rivalidade es- relevância e centralidade estratégica da Ásia-Pací- a uma diminuição drástica do número total de ar- timulam essa corrida, da mesma forma que a falta fico para os EUA: por exemplo, em 1987, os EUA mas nucleares no mundo desde o seu máximo de de confiança inibe compromissos sobre controlo e tinham destacados na Ásia-Pacífico 184 mil solda- aproximadamente 70.300, em 1986, para cerca de redução de armamentos. n dos e na Europa 354 mil soldados; actualmente, a 13.410, em 2020.3 situação é a inversa e os EUA têm na Ásia-Pacífico o Porém, há vários aspetos e desenvolvimentos ne- Notas dobro dos soldados destacados na Europa, respe- gativos nesta matéria. Desde logo, o número total 1 Japan-Ministry of Defense (2020). Defense of Japan 2020. tivamente, 132 mil e 66 mil.2 de armas nucleares existentes continua a ser muito Em linha (acesso em 01/09/2020), disponível no url: https:// www.mod.go.jp/e/publ/w_paper/wp2020/pdf/index.html O Top 10 dos maiores orçamentos de defesa do elevado, sendo que mais de 3.700 ogivas nucleares 2 Idem. mundo (Quadro 2) inclui ainda França, Alemanha se encontram em estado de imediata prontidão. 3 FAS – Federation of American Scientists (2020). Status of World e Reino Unido, mas todos perdendo posições e Depois, comparativamente ao período de Guerra Nuclear Forces 2020. Em linha (acesso em 01/09/2020), url: https://fas.org/issues/nuclear-weapons/status-world- share comparativamente a períodos anteriores. A Fria, há agora mais potências militarmente nu- nuclear-forces/11/ redução relativa das parcelas do G3 europeu e da cleares: Índia e Paquistão, desde 1998 e Coreia Rússia, conjugada com a subida dos shares das po- do Norte, desde 2006 – além do caso Israel que Bibliografia geral tências Asiáticas, fez com que a Europa tenha sido não assume oficialmente essa posse, sendo incer- SIPRI (2020). SIPRI Military Expenditure Database. Em linha (acesso em 3/08/2020), disponível no url: ultrapassada pela Ásia-Pacífico na 2ª posição do to desde quando as temi. Acresce que o ritmo das https://www.sipri.org/databases/milex ranking por regiões, com o diferencial a aumentar reduções russa e americana nos últimos anos é SIPRI (2020). Trends in World Military Expenditure, 2019. continuamente. Similarmente, a diminuição rela- mais lento do que nas décadas anteriores, ao mes- SIPRI Fact Sheet, April 2020. tiva das parcelas dos EUA e dos seus aliados eu- mo tempo que o Reino Unido, a França e Israel SIPRI (2020). Trends in International Arms Transfers, 2019. SIPRI Fact Sheet, March 2020. ropeus leva a uma redução do share do conjunto estabilizaram os seus quantitativos nucleares e en- SIPRI (2020). SIPRI Yearbook 2020: Armaments, Disarmament NATO no total mundial de sensivelmente 75% nos quanto China, Paquistão, Índia e Coreia do Norte and International Security.

45 JANUS 2020-2021

1.19 • Conjuntura Internacional

5G, HUAWEI, CHINA E ESTADOS UNIDOS: A COMPETIÇÃO Sofia Martins Geraldes PELA TECNOLOGIA DO FUTURO Texto entregue em Agosto de 2020

A QUINTA GERAÇÃO DE COMUNICAÇÃO MÓVEL tes da infraestrutura 5G. Consequentemente, o end-to-end da Huawei, isto é, ao providenciar (5G) promete a transferência de mais dados, a controlo da propriedade intelectual subjacente hardware, software e apoio operacional con- uma maior velocidade e a conectividade entre ao desenvolvimento desta infraestrutura não só tínuo a um preço competitivo, torna-a numa mais dispositivos, tornando a internet of things confere liderança tecnológica, pela dependência solução atrativa em termos comerciais. Conse- uma realidade1. Consequentemente, liderar o das suas patentes, mas também significa lideran- quente, isto implica uma maior dependência, desenvolvimento desta infraestrutura traduz-se ça económica, considerando todo o ecossistema uma vez que o design, o hardware, o software, em liderança tecnológica, mas também econó- de novos serviços e produtos criados a partir a identificação de vulnerabilidades, os updates e mica e geopolítica, contribuindo para que, no desta capacidade. Assim sendo, o líder do de- o patching estão dependentes da gigante tecno- quadro da política internacional, sobretudo senvolvimento e instalação desta infraestrutura lógica chinesa (Mahbubani, 2019; Shoebridge, entre os Estados Unidos da América (EUA) e a não só será um líder tecnológico, como econó- 2018, pp.1-2). Acresce ainda o facto de a China China, esta conectividade signifique mais (des) mico e geopolítico, explicando, assim, a atual ser também líder na instalação desta infraestru- conectividade. competição tecnológica sobretudo entre EUA e tura, explicado sobretudo pelos investimentos Neste cenário, a crescente influência da chine- a China (Bhaya, 2020; Reardon, 2020). estatais na Huawei, pela concentração de clien- sa Huawei tem sido vista pelos EUA como uma tes em países em desenvolvimento e pelo facto ameaça à segurança nacional e global, sobretu- A Huawei no centro da competição de na China as instalações serem da jurisdição do pela sua relação próxima ao governo chinês entre China e Estados Unidos do governo, enquanto, por exemplo, os EUA em matéria de espionagem política e industrial, A atual competição tecnológica entre Estados estão dependentes do setor privado, sem auto- bem como à economia nacional e global, pela Unidos e China remete-nos para 1957, toda- ridade pública, o que atrasa o processo de ins- competição desleal associada ao investimento via, desta vez o Sputnik tem de nome: Huawei talação, ao qual acresce a situação pandémica governamental chinês. Por conseguinte, a admi- (Bhaya, 2020). A Huawei tem ganho terreno no atual (Fisher, 2020; Reardon, 2020). nistração Trump não só introduziu uma série de quadro da comunicação móvel, ilustrado pelo Deste modo, o papel preponderante da Huawei restrições à Huawei como tem pressionado paí- aumento da sua receita de 28.000 milhões de no desenvolvimento e instalação da infraestru- ses aliados e parceiros que tencionem adquirir a dólares em 2009 para 108.000 milhões de dó- tura 5G contribui para que a China se encontre tecnologia 5G à gigante tecnológica2. lares em 2018, ao passo que os líderes tradicio- numa posição de liderança no que concerne ao Deste modo, o lançamento da infraestrutura nais deste mercado, como a Ericsson e a Nokia, desenvolvimento de uma tecnologia potencial- 5G introduz um novo battleground no âmbito têm assistido a um decréscimo nas suas receitas mente game-changing (Foot e King, 2019, p.44). de uma competição mais alargada para deter em igual período de tempo (Medin e Louie, Este cenário tem gerado ansiedade em Washing- o controlo das indústrias do futuro, motivada 2019, p.2). ton, com diversas acusações de que a Huawei por razões tecnológicas, económicas e políticas, não só tem ligações próximas ao governo chinês traduzindo-se, assim, na first battleground at como tem sido instrumentalizada para espiar os an emerging geopolitical technological compe- EUA e os seus aliados (Reardon, 2020). Apesar tition3. Neste cenário, a Huawei em particular O lançamento da infraestrutura de negar estas acusações e de insistir no facto de tem sido vista como o símbolo do high-stakes 5G introduz um novo não ser uma empresa estatal, a Huawei, fundada wrestling match entre os EUA e a China. em 1987 por um antigo membro do Exército de battleground no âmbito Libertação Popular, é altamente subsidiada pelo 5G: liderança tecnológica é sinónimo de uma competição mais governo e de importância estratégica para a Chi- de liderança económica e geopolítica alargada para deter o controlo na, recebendo tratamento preferencial, incluin- A tecnologia de comunicação 5G promete a das indústrias do futuro. do apoio financeiro, político e diplomático. transferência de um maior volume de dados, a Adicionalmente, à semelhança do que acontece uma maior velocidade, com uma menor latência com outras empresas do país, o Partido Comu- e a conectividade entre um maior número de nista da China tem representantes na empresa. dispositivos (Jover e Marojevic, 2019; Medin e No que diz respeito ao 5G em particular, a A isto acresce o facto de ter estado envolvida Louie, 2019; Ahmad et al., 2018; Shoebridge, Huawei lidera o desenvolvimento da infraes- em escândalos de espionagem, designadamente 2018). À semelhança do que aconteceu com as trutura, sendo a única empresa a nível mundial na União Africana, bem como a suspeita de li- gerações de comunicação móvel anteriores, os com capacidade para produzir at scale and cost gações próximas à comunidade de intelligence primeiros a introduzir, a desenvolver e a insta- todos os seus elementos [do 5G], enquanto os chinesa e militar, estando altamente envolvida lar a infraestrutura 5G terão maiores benefícios seus concorrentes principais não ofereceram no estabelecimento da vigilância doméstica na e vantagens tecnológicas e económicas, uma ainda uma alternativa viável. A Huawei tem, China (Kitchen, 2019, p.9; Mahbubani, 2019; vez que serão líderes na definição das normas assim, adquirido uma porção significativa das Rühlig et al., 2019, pp-2-3; Shoebridge, 2018, globais subjacentes ao desenvolvimento e ins- patentes chave para o desenvolvimento da tec- pp.2-3). Neste contexto, é importante destacar talação desta infraestrutura. Essa liderança tem nologia 5G, o que se traduz num papel central o artigo 7º da lei de intelligence chinesa de sido ocupada sobretudo pela Nokia e pela Erics- na definição das normas globais para o desen- 2017 que obriga legalmente todas as empresas son, contudo, em 2019, esta posição pertence à volvimento e instalação desta infraestrutura e indivíduos nacionais a dar suporte, assistência empresa tecnológica chinesa Huawei (Kitchen, (Kaska, 2019, p.7; Rühlig et al., 2019, p.1). e a cooperar com os esforços de intelligence 2019, p.3; Medin e Louie, 2019, p.2). Segundo dados de 2019, a China lidera o con- nacional e a dar acesso aos servidores e aos da- Adicionalmente, a conjuntura atual aponta para trolo de patentes relacionadas com o 5G, deten- dos armazenados nas várias empresas (Kitchen, que a revolução industrial, já em curso, é e será do cerca de 34%, sendo que 15% pertencem à 2019, p.2; Shoebridge, 2018, p.2). assente na inteligência artificial, na big data e na Huawei, em comparação com os 14% dos EUA Deste modo, a preocupação norte-americana internet of things, que são altamente dependen- (Fisher, 2020). Adicionalmente, a abordagem com a possível instrumentalização da Huawei

46 pela China, para a prossecução de objetivos po- à cadeia de fornecimento da infraestrutura 5G colares. Por outro lado, a pandemia veio também líticos e militares, contribuiu para que esta seja desenvolvida pela Huawei são consequência das acentuar a competição existente entre os EUA e considerada um assunto de segurança nacional. restrições impostas em maio de 2020 pelos EUA, a China, bem como a desconfiança global face Por um lado, teme-se que a gigante tecnológica uma vez que empresas como a TSMC que pro- a este país, considerando o encobrimento ini- contribua para atividades de espionagem políti- duzem componentes centrais – semicondutores cial da doença, com implicações na escolha da ca e industrial e que o seu equipamento tenha, – para o desenvolvimento desta infraestrutura Huawei como fornecedor da tecnologia 5G, o intencionalmente, vulnerabilidades para serem estão impedidas de fornecer à Huawei. que poderá significar um revés nesta competição futuramente ativadas, com o propósito de cor- (Fisher, 2020). n romper as redes de comunicação utilizadas pe- los EUA numa eventual confrontação. Por outro lado, acresce a preocupação económica, assente Além dos Estados Unidos no desejo de proteger a indústria tecnológica e do Reino Unido, países norte-americana da competição injusta e evitar a dependência da economia e tecnologia chinesa como o Japão, Taiwan, (Rühlig et al., 2019, p.2). Austrália, Nova Zelândia ou Vietnam optaram também Abordagem norte-americana por banir a Huawei como e implicações internacionais A preocupação norte-americana para com es- fornecedor de equipamentos. tas dinâmicas traduziu-se já na implementação de uma série de medidas, designadamente a inclusão, pela administração Trump, em 2019, Além dos Estados Unidos e do Reino Unido, da Huawei na Entity List do Departamento de países como o Japão, Taiwan, Austrália, Nova Comércio. A Entity List é uma lista de empresas, Zelândia ou Vietnam optaram também por banir institutos de investigação, organizações públi- a Huawei como fornecedor de equipamentos cas e privadas, indivíduos e outro tipo de atores para a construção das suas infraestruturas 5G. legais estrangeiros que se julgam ser uma amea- Adicionalmente, Espanha, França, Índia, Alema- ça aos Estados Unidos. Deste modo, a Huawei nha, Itália e Holanda apesar de não terem ba- foi considerada uma ameaça crítica à segurança nido completamente a Huawei implementaram nacional, suspendendo-se todos os negócios en- uma série de restrições. tre empresas norte-americanas (como a Google) e a Huawei, estando as primeiras obrigadas a pe- dir a autorização do governo para desenvolver Considerações Finais qualquer tipo de negócio com a gigante tecno- A liderança no desenvolvimento e instalação da lógica chinesa (Mengting e Lee, 2019; Rühlig et quinta geração de comunicação móvel significa al., 2019, p.1). Estas restrições foram reforçadas poder tecnológico, pelo papel central na defini- em maio de 2020, para incluírem empresas es- ção das normas internacionais para o desenvol- Notas 1 Jover, R. P. e Marojevic, V. (2019) ‘Security and Protocol Exploit trangeiras que utilizam propriedade intelectual, vimento e instalação desta infraestrutura, mas Analysis of the 5G Specifications’, IEEE, 7, pp.24956-24963; tecnologia ou equipamentos norte-americanos, também poder económico, pelos serviços e pro- Medin, M. e Louie, G. (2019) The 5G Ecosystem: Risks & Opportunities for DoD, Defense Innovation Board; Ahmad, com efeitos a partir de setembro. dutos gerados a partir desta capacidade e, con- I. et al. (2018) ‘Overview of 5G Security Challenges and As restrições contribuíram já para que países sequentemente, poder geopolítico, explicando Solutions’, IEEE, pp.36-43; Shoebridge, M. (2018) ‘Chinese como o Reino Unido alterassem a sua posição assim a disputa internacional pelo controlo Cyber Espionage and the National Security Risks Huawei Poses to 5G Networks’, Macdonald-Laurier Institute Publication. relativamente à Huawei. No início de 2020, Lon- desta infraestrutura, sobretudo entre os Estados 2 Mengting, L. e Lee, C. (2019) ‘US Blacklist on Huawei: Leverage dres estava disponível para autorizar o uso de Unidos e a China. for the US-China Trade Talks?’, RSIS Commentary, 111; Rühlig, T. et al. (2019) ‘5G and the US-China tech rivalry – a test for componentes fornecidas pela empresa chinesa Neste cenário, a crescente influência da gigan- Europe’s future in the digital age: how can Europe shift back no desenvolvimento e instalação da sua infraes- te tecnológica chinesa Huawei, as suas ligações from back foot to front foot?’, SWP Comment, 29, pp.1-8. trutura 5G, excluindo redes sensíveis (Russo, próximas ao governo e o envolvimento em 3 Rühlig, T. et al. (2019) ‘5G and the US-China tech rivalry – a test for Europe’s future in the digital age: how can Europe shift 2020). Todavia, segundo Calhoun (2020), mo- escândalos de espionagem tem gerado ansie- back from back foot to front foot?’, SWP Comment, 29, pp.1-8. tivações políticas, técnicas e relacionadas com dade em Washington, levando os Estados Uni- as vulnerabilidades na cadeia de fornecimento dos a enquadrar a infraestrutura 5G fabricada Bibliografia geral Bhaya, A. G. (2020) ‘China’s 5G lead, a ‘Sputnik moment’ contribuíram para que, a 14 de julho, o Reino pela empresa como uma ameaça à segurança e for U.S’, CGTN. Unido decidisse banir completamente a Huawei economia nacional e global, contribuindo para Calhoun, G. (2020) ‘5G Risk? Huawei Is Small Potatoes das suas infraestruturas. a definição de uma série de restrições. Deste Compared To TSMC (Who?)’, Forbes. Fisher, W. (2020) ‘COVID-19 Speeds the Race for 5G’, Em relação a motivações políticas, é de destacar modo, esta competição tecnológica é sobretudo E-International Relations. a diplomacia agressiva e a desinformação pro- orientada por motivações económicas e geopo- Foot, R. e King, A. (2019) ‘Assessing the deterioration in movida pela China sobre o envolvimento do Rei- líticas, nomeadamente entre Estados Unidos e China-U.S. relations: U.S. governmental perspectives on the no Unido nas origens da pandemia, as pressões China, pela supremacia do controlo das tecno- economic-security nexus’, China International Strategy Review, 1, pp.39-50. de membros do Partido Conservador e a medi- logias do futuro, dividindo o mundo em duas Kaska, K. et al. (2019) ‘Huawei, 5G and China as a Security da Chinesa de impor uma nova lei de segurança esferas digitais distintas. Threat’, NATO Cooperative Cyber Defence Centre of nacional em Hong Kong. Os aspetos técnicos Assim, o papel da tecnologia 5G foi amplifica- Excellence. assentam na conclusão do UK’s Huawei Cyber do pela atual crise de saúde pública provocada Kitchen, K. (2019) ‘The U.S. Must Treat China as a National Security Threat to 5G Networks’, Issue Brief The Heritage Security Evaluation Centre Oversight Board pela pandemia COVID-19. Por um lado, a crise Foundation, 4952, pp.1-4. sobre deficiências significativas subjacentes a pandémica reforçou a necessidade do desenvol- Mahbubani, K. (2019) ‘The US strategy is not the best way componentes fornecidas pela Huawei, tanto vimento e instalação da infraestrutura 5G, con- to deal with Huawei’, Financial Times. em termos de vulnerabilidades do equipamento siderando o elevado número de consumidores Reardon, M. (2020) ‘5G will change the world. China wants to lead the way’, cnet. como de integridade do processo de engenha- dependentes do espaço digital para realizar as Russo, F. (2020) ‘How can European countries choose between ria. Por último, as vulnerabilidades subjacentes suas tarefas diárias, profissionais, pessoais e es- American pressure and China’s 5G technology?’, CGTN.

47 JANUS 2020-2021

1.20 • Conjuntura Internacional

Jorge Tavares da Silva PARTIDOS POLÍTICOS EM HONG KONG Texto entregue em Dezembro de 2019

HONG KONG (HK) É UM PEQUENO território si- Em 1843 foi criado o Conselho Legislativo (Leg- ros, jurídico, saúde, educação eram selecionados tuado no sudeste da China, com uma extensão de Co), completamente subordinado ao poder para representar a câmara legislativa. Em 1987, 1104 quilómetros quadrados e uma população executivo. Em 1979, Sir Murray MacLehose, o para além do sistema funcional, tentou-se intro- de 7,34 milhões de habitantes. Após um perío- governador inglês, numa visita a Pequim, peran- duzir um sistema de eleições diretas por círculos do colonial sob governação britânica, que durou te Deng Xiaoping, assumiu a possibilidade de geográficos para o LegCo, que seria adiado para 157 anos, o território transitou para a soberania HK poder vir a ser devolvido à RPC, em 1997 1991 devido a pressões de Pequim. Assim, este chinesa, tornando-se uma Região Administrativa (esta informação não foi divulgada aos habi- passou a ter 70 membros, 35 dos quais são elei- Especial (RAE) em 1997. Do ponto de vista políti- tantes do território). Em 1982, a primeira-mi- tos diretamente através dos círculos geográficos, co, HK nunca foi uma democracia liberal com os nistra Margaret Thatcher, também numa visita sob o sistema de representação proporcional, contornos ocidentais. De uma gestão colonial, de a Pequim, iniciou o processo de negociações, enquanto os outros 35 são eleitos indiretamen- estilo vitoriano, com nomeação direta de um go- prometendo para HK um “elevado grau de au- te por meio de círculos funcionais baseados vernador por Londres, passou para um modelo tonomia”. A Declaração Conjunta Sino-Britânica em grupos de interesse locais. A ideia é que os de nomeação de um chefe de executivo, gerido a de 1984 vinha no mesmo sentido, revelando a cidadãos de HK possam eleger uma parte dos partir de Pequim (Beijing). intenção formal da transferência de soberania membros. Pese as intenções do governador, o Ainda assim, o território – sob o princípio go- em 1 julho de 1997. Conselho Executivo manter-se-á dominado por vernativo “Um país, dois sistemas” – garantiu elites não eleitas, incluindo homens de negócio muitas liberdades individuais e um sistema judi- O princípio “um país, dois sistemas” e funcionários da administração pública. cial independente. Embora o aprofundamento A Declaração Conjunta tinha expressado o prin- democrático tenha sido limitado, ganhou uma cípio “Um país, dois sistemas” que deveria ser cultura e consciência política que o torna aves- aplicado ao território, transformando-se numa so ao centralismo de Pequim. O florescimento região administrativa especial. Este princípio de partidos políticos, decorrente do ativismo assenta na ideia de que, apesar da soberania Em 2019 Hong Kong voltou social, é o sinal claro deste contexto. Não dei- chinesa, Pequim compromete-se a não impor a oferecer um cenário xa, no entanto, de colocar HK sobre divisões o modelo socialista em HK, de partido único, de confrontações violentas, políticas internas que são um risco para a esta- e que o sistema capitalista e os modos de vida desta vez devido à denominada bilidade governativas. Partidos pró-China, pró- não devem ser alterados num prazo de 50 anos -democracia e localistas desenham o mapa dos (até 2047). Trata-se de um princípio igualmente lei da extradição. debates locais. aplicado em Macau. A lei básica de 1990 – pro- mulgada pelo governo chinês para o território De colónia inglesa a região funciona como uma espécie de constituição, Os democratas de Hong Kong – emergentes – administrativa especial prevendo a separação de poderes: legislativo, não podiam ter a maioria dos lugares no LegCo Hong Kong foi subtraída ao império chinês administrativo, social, económico e judicial. e este deveria ter menos poder que o Conse- pelos britânicos em três fases distintas. Em Também a economia do território mantém au- lho Executivo (formado por escolha direta do primeiro lugar, após a Primeira Guerra do tonomia em relação à parte continental. A mo- Chefe do Executivo). A ideia de ter membros do Ópio (1839-1842), no decorrer do Tratado de notorização da lei, no entanto, será feita pelo Conselho Executivo a partir entre os membros Nanquim (Nanjing), que incluiu a cedência da Partido Comunista Chinês (PCC) através do do LegCo nunca foi aceite por Pequim. Na es- ilha de Hong Kong; após a Segunda Guerra do Comité Permanente e dos Pequenos Grupos de sência, vai permanecer um forte conflito entre Ópio (1860) e a correspondente Convenção Liderança de Hong Kong e Macau. Por outras pa- estas duas instituições, enquanto se forma um de Pequim (Beijing), onde foi acrescentado o lavras, Pequim mantém o controlo dos assuntos sistema partidário – que não acontecerá em território de Kowloon; e no decorrer da Guer- deste território. O sistema político local passou Macau. O último governador britânico, Chris ra Sino-Japonesa (1894-95) e de uma nova a designar um Chefe do Executivo, o Conselho Patten (1992-1997), procurou acelerar o tar- Convenção de Pequim, onde foi acrescentado Legislativo (LegCo). A escolha do dirigente má- dio modelo democrático em HK – que nunca às possessões inglesas os “novos territórios”. ximo da Região administrativa especial (RAE) existiu– mas colidiu com a reprovação determi- Este foi o período dos “tratados desiguais”, que está sujeita à apreciação do Comité de Seleção nada do governo chinês. O governo chinês foi obrigaram a China a conceder possessões terri- e Escolha do Chefe do Executivo, uma limitação feroz na linguagem contra Patten no período de toriais na sequência de derrotas militares com contrária a todos os princípios democráticos. O negociações– um léxico só visto no tempo da potências industrializadas estrangeiras, par- início dos diálogos para a transição de sobera- Revolução Cultural – usada em jornais oficiais, ticularmente o Reino Unido. Ao longo de 156 nia de HK, abriu espaço para o aparecimento chegando a chamar-lhe “criminoso, que devia anos, este país governou o território de HK em de movimentos, grupos de interesse e pressão. ser condenado por milhares de gerações”. regime colonial. Nesta fase o governo britânico Em 1985 foram introduzidas eleições diretas nomeava diretamente governadores que enviava para dos lugares para os conselhos de 18 dis- O desenvolvimento do sistema para o território, juntamente com funcionários tritos (distritos geográficos). Estes lugares têm partidário em Hong Kong públicos expatriados. Desde então, houve uma pouco poder, tendo em conta, por exemplo, A abertura do processo de negociação sino- preocupação em cooptar as elites locais, tanto que no comité eleitoral para a escolha do chefe -britânico para tratar da transição de HK, as ma- urbanas como rurais. Muitos eram designados do executivo ocupam 117 lugares num total de nifestações de Tiananmen (1989) foram alguns para organismos consultivos e eram-lhes atri- 1200 (10%). Para o LegCo, os britânicos criaram dos impulsionadores de uma sociedade civil ati- buídos honras e títulos. Inclui-se a indicação um sistema de círculos eleitorais – funcional va. Por outro lado, as eleições para os círculos para Membros do Império Britânico (MIB) ou – em que elites de grupos de interesse locais, geográficos (1985) foram determinantes para a Ordem do Império Romano (OIR). particularmente do domínio industrial, financei- criação de partidos políticos no território, pese

48 PARTIDOS REPRESENTADOS NO 6º CONSELHO LEGISLATIVO (2016-2020) PARTIDOS PRÓ-PEQUIM PARTIDOS PRÓ-DEMOCRACIA DAB – Aliança Democrática (12 lugares) Partido Democrático (7 lugares) BPA – Federação de Negócios e Profissionais de Hong Kong Partido Cívico (6 lugares) (7 lugares) PP-LSD – People Power – League of Social Democrats FTU – Federação de Sindicatos (5 lugares) (2 lugares) Partido Liberal (4 lugares) Professional Commons (2 lugares) NPP – New People's Party (3 lugares) Labour Party (1 lugar) FLU (1 lugar) NWSC – Neighbourhood and Worker’s Service Centre (1 lugar) Novo Fórum (1 lugar) PTU – Hong Kong Professional Teachers' Union (1 lugar) Independentes (7 lugares) Outros democratas (3 lugares) Membros “localistas” e membros “não alinhados” (7 lugares) a sua natureza inicial muito próxima do asso- no seu articulado defende a independência da ciativismo. No final dos anos 80, já de destaca- justiça. A partir desta questão, foi-se desenvol- vam três grupos de natureza pró-democrática: vendo uma forte oposição ao governo local lide- o Meeting Point, a Association for Democracy rado por Carrie Lam, próxima do poder central. and People´s Livelihood e o Hong Kong Affairs As contestações iniciais ganharam dimensão e Society. Um consendo entre os três deu origem alteraram o foco, progredindo para uma luta ao partido United Democrats of Hong Kong pró-democracia e até anti China continental. (UDHK) formado em 1990. Destacou-se o movimento da Frente Civil dos Nas eleições de 1991, fortemente impulsiona- Direitos Humanos (FCDH), agregadora de mui- das pelas manifestações de Tiananmen, ocupa- tas Organizações Não Governamentais (ONG) e ram 14 dos 18 assentos dos círculos geográficos. grupos políticos do campo democrático. A nova A partir desta fase, multiplicou-se o número de geração – hongkongers – não se identifica com partidos políticos no território. Formaram-se a identidade chinesa e estão muito descontentes claramente dois campos de partidos. Os que com a política local. Em novembro do mesmo defendem a democracia plena no território e ano, as eleições distritais – as únicas verdadeira- os que são a favor de Pequim, cujo sistema pul- mente democráticas, trouxeram uma inequívoca verizado leva a que nenhum tivesse conseguido vitoria dos partidos democráticos. Os tumultos alcançar uma maioria no LegCo. Os principais acalmaram, mas em 2020 haverá novas eleições partidos pró-Pequim são a Aliança Democrática para o LegCo e certamente novos sinais serão para a melhoria de Hong Kong (DAB), Federa- enviados para Pequim. n ção de Negócios e Profissionais de Hong Kong (BPA), a Federação de Sindicatos (FTU) e o Partido Liberal (PL), este com fortes ligações à elite de negócios. Os principais partidos pró- -democracia são o Partido Democrático (PD) e o Partido Cívico (PC), este com ligações estreitas às classes profissionais locais. O Partido Comunista Chinês (PCC) usa as suas relações informais no território, prática conti- nuada desde o período colonial. Durante déca- das, a agência noticiosa Nova China (Xinhua) foi usada como base para as atividades do PCC. A progressiva tentativa da RPC em anular os grupos e partidos pró-democráticos no território tem agudizado as ações dos dois campos políticos. Bibliografia geral A integração de HK na grande região de Guang- Legislative Council of the Hong Kong Special Administrative dong, a aculturação pró-chinesa, a lei antissub- Region (2019), https://www.legco.gov.hk/index.html, versão, as difíceis condições de vida das gerações consultado em 7 de dezembro de 2019. mais novas, têm sido fatores de enorme contes- Lo, Sonny Shiu.Hing (2014), “Hong Kong”. In Joseph, William A. (ed.), Politics in China – An Introduction. Oxford: Oxford tação social. Os protestos em 2014, conhecida University Press, pp. 452-467. por “A Revolução dos Guarda-chuvas”, foi um Louie, Kin-shuen (2003), “Politicians, Political Parties and dos momentos mais marcantes deste novo ativis- the Legislative Council”. In Sing, Ming (ed.), Hong Kong mo. Destacou-se a figura Joshua Wong, do novo Government and Politics. Hong Kong: Oxford University Press, pp. 284-285. partido Demosistō (criado em 2016), situado Ma, Ngok (2007), “Political Parties and Elections”. In Lam, no campo pró-democrático, “localista”. O localis- Wai-man, et al. (eds), Contemporary Hong Kong Politics – mo foi muito cultivado depois da publicação do Government in the Post-1997 Era. Hong Kong: Hong Kong livro Hong Kong as a City State de Chin Wang, University Press, pp. 117-134. Ma, Ngok (2017), “From Executive Dominance to Fragmaented devido ao apelo que a obra faz à total separação Authority: An Institutional and Political Analysis”. In Fong, do território da China continental. Brian C.H.; Lui, Tai.Lok (ed.), Hong Kong 20 Years after the Em 2019 Hong Kong voltou a oferecer um ce- Handover – Emerging Social and Institutional Fractures After nário de confrontações violentas, desta vez de- 1997. Cham: Palgrave Macmillan, pp. 21-43. Patten, Chris (1998), East and West. London: Macmillan. vido à denominada lei da extradição. Em causa Wright, Teresa (2018), Popular Protest in China. Cambridge: está uma colisão com a Lei Básica de 1997, que Polity.

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1.21 • Conjuntura Internacional

Nuno Lemos Pires PARA ALÉM DO SRI-LANKA Texto entregue em Julho de 2019

A HISTÓRIA ENSINA QUE HOUVE GRAVÍSSI- no Sri Lanka não foi um momento isolado, nem tentes de todo o mundo (oriundos de mais de MOS erros de análise na antevisão da evolução espontâneo. Foi pensado, planeado, financiado, 80 países) a juntarem-se ao Daesh entre 2014 e de conflitos. A circunstância levou, demasiadas sustentado e executado em linha com planos 2018, que cerca de 5.000 eram mulheres, que vezes, a propostas de ação que apenas resolve- muito mais ambiciosos e globais do que a sim- outros tantos eram menores, que quase 8.000 ram o problema daquela situação específica. Por ples execução de um simples ato de violência destes combatentes já regressaram ou tentam exemplo, os EUA apoiaram Ho Chi Min no final local pode parecer indicar3. Estamos no terro- regressar aos seus países de origem e, embora da segunda guerra mundial, Saddam Hussein rismo transnacional 3.04, que se afirma por de- alguns tenham decidido abandonar a causa ou durante a guerra Iraque-Irão e vários dos futu- fender objetivos globais, muito acima de simples os métodos defendidos pelo Daesh, a maioria ros líderes talibãs durante a ocupação soviética ambições regionais ou locais. continua a defender os seus ideais distorcidos7. e, depois, sabemos a história: os aliados de então A violência demonstra a ação, e os atos de ter- passaram à situação de adversários principais. Enquadrando o fenómeno rorismo são a face mais visível que perturba e É fácil fazer esta análise agora, mas foi muito di- A circunstância de análise é fortemente influen- marca a agenda mediática. O número de ataques fícil fazê-la na altura. Importa por isso, mais do ciada pela perceção do momento. Olha-se para terroristas diminuiu efetivamente, em especial que retirar supostas lições do passado, entender 2019 e pensa-se numa acalmia do fenómeno do na Europa e nos EUA, mas, o que muitos pare- o que se está a passar dentro do fenómeno do terrorismo em 2018. Na verdade, a acalmia de cem esquecer, é que a intenção política radical terrorismo transnacional para, prospectivamen- 2018 foi em países ditos “ocidentais” porque, no de ganhar poder, com ou sem violência, que é te, encontrar caminhos de evolução que ante- resto do mundo, o fenómeno continuou em alta. um fator muito mais importante de analisar e de cipem surpresas estratégicas e evitem apostas O problema é que a circunstância percecionada dissecar, nada indica que esteja a diminuir. tímidas e circunstanciais. de análise leva aos decisores, também eles muitas Em 2011 tivemos um exemplo claro de “decisões Vamos fazer uma breve análise do que foi e sig- das vezes, líderes conjunturais ou circunstanciais, apressadas”. Ossama bin Laden tinha sido abatido, nificou o ataque terrorista no Sri-Lanka em abril a mudar recursos e estratégias em função da situa- o Norte de África e o Médio Oriente “explodiam” de 2019, olhar para lá da região e enquadrar o ção percebida no momento. Em 2018, no mundo, em primaveras árabes e, por isso, EUA e aliados re- tema em duas grandes vertentes: do terrorismo houve mais ataques do que em 2017, invertendo tiravam, rápida e completamente, as suas forças do transnacional global e da perspetiva mais global uma tendência de descida desde 2014. Mas, na Eu- Iraque enquanto baixavam a sua presença e apoio dos objetivos prosseguidos, com ou sem recurso ropa, nos EUA e entre os seus principais aliados, a muitos países da região. Foi uma circunstância à violência explícita. houve muito menos ataques em 20185. mal-entendida que levou, em 2014, a fenómenos de enorme dimensão, sendo o mais visível, a as- O ataque no Sri Lanka cendência meteórica do Daesh e a consequente Nove locais atacados, 320 mortos (35 eram es- monstruosidade global que provocou8. Será que trangeiros) e mais de 500 feridos. Ataques por Desde os anos de 1980 em 2019 caminhamos para um erro semelhante? bombistas suicidas, oriundos de “famílias bem que são bem evidentes estabelecidas, tendo alguns deles estudado em as duas narrativas O verdadeiro problema universidades estrangeiras, indica uma vez mais O verdadeiro problema reside na narrativa por que os recrutas para missões suicidas não são extremadas e violentas, detrás da ação. De uma narrativa tanto global tirados apenas dos ignorantes com problemas a da al-Qaeda e a que, como regional, que propõe objetivos claros a económicos e emocionais”1. O grupo a que per- mais tarde, criará o Daesh. atingir, independentemente de implicar o uso de tenciam denomina-se Thawahid Jaman e tem violência ou a não. Em 2019, a narrativa jiadista ligações ao denominado Grupo Estado Islâmico radical, em especial a não violenta, não parece (Daesh). O ataque visou o “cristianismo, o turis- estar a diminuir – pelo contrário, está forte e mo e o mundo empresarial ocidental”2 e, para Infelizmente, muita da análise e, pior, muitas das bem consolidada. que não duvidássemos da determinação perse- repostas políticas, partem apenas deste tipo de Desde os anos de 1980 que são bem evidentes as guida, vimos uma das mulheres a fazer-se explo- constatações. É verdade que o Daesh ficou pra- duas narrativas extremadas e violentas, a da al- dir juntamente com os seus filhos. A preparação, ticamente sem território no Iraque e na Síria em -Qaeda e a que, mais tarde, criará o Daesh9. Estes a determinação demonstrada, a organização e a 2018 (em 2015 tinha chegado a ocupar uma área grupos usaram e usam a violência para atingir os capacidade de atuar, desta forma altamente com- equivalente a Portugal, com mais de 11 milhões seus objetivos, mas ambos se alimentam de nar- plexa, merecem uma reflexão maior. de habitantes e uma riqueza acumulada de 3.000 rativas assertivas, que existem desde o primeiro Como em qualquer outro ataque há, quase sem- milhões de Euros)6. Em 2019 perdeu os finan- milénio e que evoluíram de forma exponencial pre, motivações internas e externas, causas pes- ciamentos, a influência e o poder, desmesurado, desde a criação da Irmandade Muçulmana em soais, regionais e globais. No Sri Lanka há uma que detinha. Mas como os ataques diminuíram 1928 por Hasan Al-Bana. situação política complicada (visível nas difíceis na Europa e nos EUA em 2018, a perceção levou Estas ideologias, por vezes, manifestam-se com relações entre o primeiro-ministro e o presiden- a mudanças. Infelizmente, muitas destas mudan- violência, mas, na maioria das vezes, traduzem- te), uma guerra civil mal resolvida e inúmeros ças não são nem estruturais nem sustentadas em -se apenas em campanhas demoradas, não vio- conflitos étnicos, religiosos e geopolíticos. Neste, políticas de longo prazo. lentas, que procuram subverter a normalidade como em todos os ataques complexos e bem orga- Mudanças apressadas levam ao interromper de democrática dos Estados através de estratégias nizados, nunca há só uma razão ou motivação, há estratégias pensadas para o longo prazo. Estra- bem pensadas, articuladas e profundamente muitas. Mas vamos olhar para além deste ataque. tégias interrompidas deixam de ser estratégias. desestabilizadoras. Os trabalhos de investiga- O Daesh está, mesmo depois de ter perdido qua- Apenas há estratégia quando há determinação ção de Kenneth Reidy (2018) e de Francisco se todo o seu território na Síria e no Iraque, bem de a prosseguir, no tempo e no espaço, até ao Jorge Gonçalves (2019), sobre “The Accidental presente em várias áreas do mundo. O ataque fim. Sabe-se que houve quase 42.000 comba- Ambassadors: Implications of Benevolent Radi-

50 RADICALISMO GERA RADICALISMOS mente, apenas nos preocupamos com a menor O problema principal não é apenas o recurso à violência, é fundamentalmente o da disseminação e atrati- das duas. Só reagimos, de forma clara, à violên- vidade de narrativas radicais proponentes de sistemas políticos totalitaristas, sejam de inspiração religiosa cia. Mas à narrativa radical tardámos a reagir e radical, sejam de ideologias populistas dominadoras. Alguns dos movimentos radicais islâmicos defendem, continuamos tímidos em responder de forma um pouco por todo o mundo, sistemas políticos baseados numa visão estrita da Sharia (incluindo para assertiva. os países da Europa). Em oposição, crescem os grupos de extrema-direita com discursos tão assertivos e Somos míopes. A uma aparente acalmia nos radicais quanto esses, pondo igualmente em causa os sistemas democráticos em que vivemos11. ataques violentos em solo europeu, americano, Assiste-se a movimentos no Reino Unido, em França, na Alemanha, na Bélgica, nos EUA, na Austrália, a australiano ou canadiano, interrompemos ações defender que a Sharia devia ser a base política nestes Estados12. Durante muitos anos as pessoas e os governantes ignoraram estas tomadas de posição e tardaram em responder. Só reagiram quando houve estratégicas de longo prazo e ignoramos as violência, quando houve terrorismo e a permissividade ao discurso radical abriu campo ao crescimento ameaças silenciosas, não violentas, de perturbar de outros movimentos que apresentam um discurso baseado no ódio e na oposição ao “outro” (contra modelos políticos democráticos, constitucionais muçulmanos, judeus, orientações sexuais, etnias, etc.). e consolidados. Radicalismo gera radicalismos. Radicalismo gera radicalismos e é aqui que se deve centrar a ação. Deve-se expor o absurdo de ideias tota- Se os governos não reagem, criam-se grupos na litarizantes, excludentes, impositivas e procurar mecanismos de inclusão de comunidades e de cidadãos13. sociedade que tomam essa iniciativa e, porque Garantir uma educação aberta, respeitadora dos princípios de igualdade, entre homens e mulheres e entre são criados a partir do caos, geram ainda mais religiões. O importante é combater ideias que defendam restrições aos direitos, liberdades e garantias violência. das pessoas, imposição de sistemas políticos ou a expulsão e a menoridade da livre expressão de diversas Não estamos perante fenómenos que impliquem minorias. Resume-se à busca de equilíbrio, oportunidade, firmeza e contra narrativa. Uma correta contra ameaças existenciais, mas temos problemas gra- narrativa evita radicalismos e previne a violência. É a chave para travar e inverter a tendência do crescimen- ves que estão mal respondidos. Não é por travar to de radicalismos de todos os tipos. um ato violento que se acaba com a narrativa radical. Que 2020 não se pareça com 2011 por- calization” e as “As Ameaças Não Violentas do o uso da violência não são exceção. A al-Qaeda que é combatendo a origem do problema que se Islamismo Radical – O Hizb ut Tahrir na Grã- continua implantada em todo o mundo e o vencerá o efeito último das ações violentas. n -Bretanha (1986-2015)” descrevem em profundi- Daesh continua, mesmo depois de tudo, a ex- dade esta temática. pandir a sua influência (em Moçambique, no O verdadeiro problema não está na circuns- Burquina Faso, no Afeganistão e, naturalmente, tância que determinou a ação violenta. Está no Sri Lanka). na causa enunciada de que se alimentam os Notas extremistas violentos. Muito mais do que atos 1 Schweitzer, Yoram (2019), “The Attacks in Sri Lanka and Trends in Salafi Jihadist Activity”, INSS online, consultado em 25 violentos há, em escala maior, mesmo muitíssi- de julho de 2019, disponível em: https://www.inss.org.il/ mo maior, quem persiga e defenda projetos não publication/attacks-sri-lanka-trends-salafi-jihadist-activity/ Mas à narrativa radical 2 violentos (circunstancialmente) de subversão da Idem. 3 Lopes, Margarida Santos (2019), “Daesh – O califado morreu ordem política democrática e constitucional. Há tardámos a reagir a ideologia não”, Revista Visão de 4 de Julho de 2019, Lisboa, propostas de sistemas totalitários e há vontade e continuamos tímidos pp. 66-71. 4 Stavidris, James (2019), “Sri Lanka Attacks Mark the Birth demonstrada de limitar direitos, liberdades e ga- em responder de forma of Terrorism 3.0”, Bloomberg online, consultado em 23 de rantias a milhões de seres humanos. Abundam julho de 2019, disponível em: https://www.bloomberg.com/ assertiva. movimentos que defendem direitos desiguais opinion/articles/2019-04-23/sri-lanka-attacks-mark-the-birth-of- terrorism-3-0 entre homens e mulheres, oportunidades exclu- 5 IEP – Institute for Economics & Peace (2018), “Global sivas para determinadas religiões, restrições no Terrorism Index 2018”, Center of excellence of the U.S. Department of Homeland Security led by the University acesso à educação e imposição política de “algu- Resolver o problema não é, simplesmente, travar of Maryland, Sidney, consultado em 26 de Agosto de 2019, mas verdades” que não podem ser debatidas. a violência. É acabar com a causa defendida que, disponível em: http://visionofhumanity.org/app/ A proposta “político-religiosa” de impor um por vezes, poucas vezes, recorre à violência. É uploads/2018/12/Global-Terrorism-Index-2018-1.pdf 6 ICSR – International Centre for the Study of Radicalization sistema não é recente. Podemos encontrar essa preciso opor uma narrativa estruturada à narra- (2018), “From Daesh to ‘Diaspora’: Tracing the Women and intenção desde os primeiros Carijitas do século tiva radical e mostrar a verdadeira natureza da Minors of Islamic State”, Department of War Studies, King’s College London, consultado em 21 de Agosto de 2019, VII d.C. até às ideias excludentes, amplamente ação distópica destes radicais (deve ponderar- disponível em: https://icsr.info/2018/07/23/from-daesh-to- difundidas por Mawdudi e al-Qutb em meados -se, de forma séria, outras estratégias como a diaspora-tracing-the-women-and-minors-of-islamic-state/ 7 do século XX. Este último autor que, entre várias preparação de muito mais documentários e Idem e Reidy, Kenneth (2018), The Accidental Ambassadors: Implications of Benevolent Radicalization, Tese de obras, deixou o livro “Marcos Miliários – Miles- reportagens fotográficas sobre as bestialidades Doutoramento da Universidade de Northumbria, Consultado tones – 1964” simplifica que tudo se resume a cometidas pelo Daesh na Síria e no Iraque por- em 26 de Agosto de 2019, disponível em: http://nrl. northumbria.ac.uk/39788/ uma simples escolha entre “Al-Hakimiyya (sobe- que é fundamental mostrar os inúmeros atos 8 Hanieh, Hasaan e Mohammad Rumman (2015), The Islamic rania divina) e a Al-Jahiliyya”10. do imenso sofrimento que causaram, desde as State Organization, FES Jordan & Iraq, Jordânia. 9 Não estamos perante ameaças existenciais, nem escravizações forçadas, as mortes por tortura, o Hamming, Tore (2019), “The Hardline Stream of Global Jihad: Revisiting the Ideological Origin of the Islamic State”, sequer de riscos disruptivos. Mas temos um pro- queimar vivo de homens, mulheres e crianças, Combating Terrorism Centre, Janeiro de 2019, Vol 12 nº 1, pp. blema real, que tem dimensão e pode, efetiva- até às violações sistemáticas, sujeitando às maio- 1-7, West Point / New York, consultado em 29 de julho de 2019, disponível em: https://ctc.usma.edu/hardline-stream-global- mente, aumentar. Tudo dependerá da forma como res humilhações, pessoas de crenças ou etnias jihad-revisiting-ideological-origin-islamic-state/ olharmos, lidarmos e respondermos ao problema diferentes). Finalmente, tem de haver uma es- 10 Hanieh, Hasaan e Mohammad Rumman (2015) (…), p. 224. 11 nas suas várias dimensões. Responder à violência tratégia direcionada para as gerações mais no- Macklin, Graham (2019), “The Evolution of Extreme-Right Terrorism and Efforts to Counter It in the United Kingdom”, é apenas responder a uma das dimensões. vas, para as crianças que nasceram ou viveram Combating Terrorism Centre, Janeiro de 2019, Vol 12 nº 1, Muitos grupos que defendem objetivos políticos, em idades muito jovens dentro destas regiões. pp. 15-21, West Point / New York, consultado em 29 de julho de 2019, disponível em: https://ctc.usma.edu/evolution- que consideramos absurdos, desaparecem, mas Temos de evitar que surja uma nova geração ra- extreme-right-terrorism-efforts-counter-united-kingdom/ infelizmente, muitos mais surgem com as mes- dical e global. 12 Gonçalves, Francisco (2019), As Ameaças Não Violentas mas ideias (em Gonçalves, 2019, demonstra-se a do Islamismo Radical - O Hizb ut Tahrir na Grã-Bretanha (1986-2015), Tese de Doutoramento, Universidade Católica existência sucessiva de mais de dez grupos radi- Em síntese Portuguesa, Lisboa. cais no Reino Unido, com um ideário parecido, Os ataques no Sri Lanka em 2019, demonstraram 13 Reidy, Kenneth (2018), The Accidental Ambassadors: que surgiram mal o anterior era ilegalizado). o que não se queria ver e destaparam o que se Implications of Benevolent Radicalization, Tese de Doutoramento da Universidade de Northumbria, Consultado A determinação é assim demonstrada pela re- escondia de muitos: que há duas grandes dimen- em 26 de Agosto de 2019, disponível em: http://nrl. siliência dos ideais e os grupos que defendem sões de um mesmo problema e que, aparente- northumbria.ac.uk/39788/

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1.22 • Conjuntura Internacional

MACAU: UMA PONTE PARA OS PAÍSES DE LÍNGUA Cátia Miriam Costa PORTUGUESA Texto entregue em Novembro de 2019

NO ANO EM QUE SE COMPLETAM OS VIN- Ciente destas características, o Governo da Repú- a China tem sentido no sentido de desenvolver TE ANOS SOBRE a transição de soberania de blica Popular da China começou a delinear um relações complementares que otimizem a sua Macau, importa refletir sobre os novos papéis novo projeto para Macau. Reconhecendo a heran- penetração em cada um dos países. Desta forma, daquela Região Administrativa Especial da Re- ça cultural advinda do período de administração garante através de canais multilaterais a possibi- pública Popular da China. Macau sofreu grandes portuguesa do território, que nunca assumiu for- lidade de manter sempre que necessário um diá- transformações nestas duas últimas décadas. A malmente e na prática as características de um co- logo bilateral que lhe permita concretizar os seus mais conhecida de todas foi indubitavelmente o lonialismo tradicional, o Governo central decidiu objetivos. O Fórum Macau apresenta uma organi- crescimento do setor do jogo e a proliferação de valorizá-la de modo a atribuir uma nova missão a zação pouco comum e não pode ser caracterizado casinos por todo o território da Região Adminis- Macau. Essa nova tarefa seria o estabelecimento como uma organização multilateral pura. A China trativa Especial de Macau (RAEM). Macau lidera de uma ponte permanente de diálogo com os assume um claro papel de liderança, nomeando em valor absoluto os lucros obtidos com o jogo Países de Língua Portuguesa (PLP). De modo a o Secretário-Geral que é secundado por três se- e é a região do mundo em que o jogo ocupa a tornar essa relação mais consistente e permanen- cretários-adjuntos, um nomeado pelos PLP, outro maior percentagem do seu rendimento per capi- te, a República Popular da China propõe a cria- pelo governo de Macau e um outro pelo governo ta. Contudo, o crescimento do sector dos casinos ção de uma nova instituição denominada Fórum chinês. Assim sendo, a proeminência na organiza- envolveu o desenvolvimento de outras ativida- para a Cooperação Económica e Comercial entre ção é chinesa e isso traduz-se numa tentativa de des, como a construção civil, a atividade imobi- a China e os Países de Língua Portuguesa – Fó- orientação da agenda da organização segundo os liária e o surgimento da necessidade de oferta de rum Macau. De forma pragmática, este nome tão interesses da China. Contudo, ao coordenar essa novos serviços. extenso foi convertido praticamente em todos os agenda com os outros compromissos da política As necessidades de suprir mão-de-obra, a par de documentos oficiais da China e dos Países de Lín- externa chinesa, o programa de ação proposto uma maior facilidade de receber pessoas vindas gua Portuguesa em Fórum Macau. pela China acaba também por ser influenciado do território nacional chinês, introduziram al- pela agenda internacional e pelos compromissos gumas alterações à constituição demográfica do A criação do Fórum Macau que o país tem vindo a assumir. território. Apesar dos indivíduos de etnia chinesa O Fórum Macau foi criado em 2003, sendo uma O Fórum Macau promove várias atividades de sempre terem sido dominantes no território, a das primeiras organizações internacionais de ini- aproximação da China aos PLP, mas o impacto das partir de 1999 a sua proveniência dentro do ter- ciativa da diplomacia chinesa, apenas precedida ações desenvolvidas no âmbito do Fórum ainda ritório chinês diversifica-se. Igualmente, fruto de pelo Fórum para a Cooperação China África, cria- não está estudado nem foram publicados dados uma maior procura de trabalhadores, é autoriza- do em 2000, e a Organização de Cooperação de que nos permitam determinar o quão importante da a imigração de países do sudeste asiático. Esta Xangai, fundada em 2001. Estas três organizações tem sido o papel do Fórum no incremento das re- situação trouxe algum desconforto à população têm em comum o facto de terem um escopo mul- lações da China com os PLP. Apesar do discurso de Macau que reivindicou um sistema de quotas tilateral e um carácter regional. Todavia, a forma político em Macau valorizar muito os progressos que lhe assegurasse preferência em alguns servi- como se organizam obedecem às especificidades feitos a partir de 2003, como o demonstram os ços, tendo em conta o grande desenvolvimento encontradas pela China em cada um dos contex- dados contidos na área “A relação entre Macau e de alguns setores de atividade. Deste modo e tos. Distingue o Fórum Macau o facto de este os Países de Língua Portuguesa” do Instituto para após alguns movimentos sociais, o Governo da se ligar especificamente a uma região da China a Promoção do Comércio e do Investimento de RAEM criou uma lei que protege a mão-de-obra e agregar países não pela sua pertença geográfi- Macau aponta apenas para dados gerais sobre a local. Embora, não seja tão significava também ca, mas por uma história e língua parcialmente evolução das relações comerciais entre a China é assinalável a chegada de cidadãos de outros comuns. Longe de reconhecer Portugal, a antiga e os PLP aumentaram cerca de nove vezes en- países, nomeadamente, ocidentais para a gestão capital do Império Colonial como um centro di- tre 2003 e 2016. Os dados, em geral, aparecem e tarefas técnicas dos novos serviços. Esta maior ferenciado, a China cria uma organização em que agregados e os PLP são representados como um diversidade demográfica devolveu a Macau o seu todos os PLP assumem a sua participação numa todo, pelo que desconhecemos as variações espe- tradicional cosmopolitismo. base paritária. Deste modo, a China respeita cíficas para cada relação bilateral. Igualmente, os Dessa abertura ao mundo resultou que Macau os seus princípios de uma cooperação Sul-Sul, projetos como a capacitação e circulação de qua- foi sempre um local onde a comunicação inter- cunhando a sua iniciativa com os princípios da dros ou as novas áreas integradas na cooperação nacional foi praticada de forma endógena, sem igualdade e benefício mútuo. protagonizada através do Fórum Macau não são obedecer a grandes planos centralizados. Deste quantificadas de modo a aferir-se sobre o sucesso modo, a imprensa periódica com tradição se- das mesmas. Quer isto dizer que a organização cular nas línguas chinesa, portuguesa e inglesa não produz informação específica nem publica os subsiste, bem como, o multilinguismo nas co- (...) o Fórum Macau (...) não dados sobre o cumprimento setorial da coopera- municações públicas, também alimentado pela pode ser caracterizado como ção ou de nível bilateral. Todavia, os documentos existência de rádio e televisão nas três línguas. É oficiais inclusivamente referem especificidades fácil encontrar-se no território cartazes em várias uma organização multilateral de cooperação relativamente a alguns PLP, sobre- línguas, anunciando espetáculos ou até fazendo pura. A China assume um claro tudo, aqueles que ainda não atingiram um grau publicidade a serviços, exceção feita para as co- papel de liderança. de desenvolvimento satisfatório (Caixa 1). municações oficiais que são sempre em língua O escopo da cooperação tem sido alargado e portuguesa e chinesa. A estas línguas juntaram-se adaptado à conjuntura internacional, daí que tantas outras, representando a origem das várias algumas áreas fossem introduzidas, outras re- comunidades imigrantes ali presentes, mas sem Mas qual o objetivo de criar mais uma ferramenta forçadas e outras ainda fossem objeto de nova acesso a comunicação pública formal/oficial ou diplomática específica para estes países? A res- denominação. Nota-se que a preocupação com informal. posta poderá encontrar-se na necessidade que o elemento humano, seja através da capacitação,

52 CAIXA 1 – FÓRUM MACAU EM DADOS rá desenvolver a sua paradiplomacia e funcionar E PUBLICAÇÕES como ponte alternativa. Esta abordagem por O Fórum Macau pública publica uma revista parte da China tem frutificado na fundação de semestral e os seus Anuários. Os seus números novas instituições como a MAPEAL – Associação estão disponíveis por via digital, na página web para a Promoção de trocas entre a Ásia-Pacífico da instituição. A revista é subordinada a temas e a América Latina, que é uma Organização Não variados, sendo o seu último número dedicado Governamental, ou o Centro para o Estudo e De- à Grande Baía. O Anuário é, sobretudo, descri- senvolvimento da Indústria das Energias Renová- tivo e elenca as atividades que o Fórum Macau considera mais destacadas e importantes para o veis entre Ásia-Pacífico e América Latina, também desenvolvimento da sua atividade. Contudo, de- iniciativa da sociedade civil. nota-se a inexistência de dados mais específicos que nos permitam apurar os resultados quanti- tativos da atividade da instituição. Igualmente, não existem dados setoriais que nos permitam “(...) o Fórum Macau tornou-se aferir o sucesso dos objetivos delineados. A mais numa ferramenta adicional de recente edição da revista do Fórum Macaué do Verão de 2019. O último Anuário foi publicado atração dos PLP para os novos em 2018. projetos da China. da circulação ou da formação para os mais jovens Reforçando os pressupostos de cooperação e ao nível do empreendedorismo e da inovação relacionamento defendidos em toda a política são áreas cujo desenvolvimento é mais recente, externa chinesa, o Fórum Macau tornou-se numa mas que parecem ter penetrado profundamente ferramenta adicional de atração dos PLP para os o discurso da organização. Os Planos de ação têm novos projetos da China, sejam estes de carácter ainda denotado uma crescente determinação na nacional ou internacional. Não é ocasional o fac- valorização de aspetos que podem indiretamente to de o último número da revista Fórum Macau contribuir para as relações comerciais e económi- ser dedicado à Grande Baía, área em que Macau cas, mostrando que Macau pode ser mais do que se integra e cujas autoridades têm defendido o uma ponte económica, apesar de ser esse o seu envolvimento dos PLP e para tal tem desenvol- ponto de partida (Caixa 2). vido diversos contactos como reuniões e feiras mais localizadas. Quando atribuiu a Macau esta Macau na estratégia global da responsabilidade e possibilidade de relação dire- diplomacia chinesa ta com os PLP, a China também corresponsabi- Macau assume, pois, um papel complementar na lizou a região por parte da sua política externa, diplomacia chinesa e na prossecução dos seus conseguindo assim que o seu envolvimento fosse objetivos de política externa. O território está au- mais efetivo e o aproveitamento das suas relações torizado e mandatado para estabelecer relações históricas e cosmopolitismo mais eficaz. n com os PLP no âmbito da paradiplomacia, poden- do, por isso, proporcionar uma ligação através do Fórum Macau que depois tenha continuidade Bibliografia geral Alden, Chris, Alves, Ana Cristina (2017), “China’s Regional Forum através do Governo local. A finalidade é habilitar Diplomacy in the Developing World: Socialisation and the a região à diversificação da sua economia, usan- ‘Sinosphere’”, Journal of Contemporary China, vol. 26, n. 103, do para tal o património material e imaterial que p. 151-165. possui e evocando um passado comum. Simulta- Costa, Cátia Miriam (Abril, 2015), “Negócios da Crtiatividade e Cultural em Macau”, Revista Macau, https://www. neamente e com base nesse passado cosmopolita revistamacau.com/2015/04/14/negocios-da-criatividade-e- de ligação ao mundo em língua portuguesa, mas cultura-em-macau/, retirado 1 de Julho de 2019. também ao mundo dos impérios ocidentais, a Costa, Cátia Miriam and Lam, Agnes (2016), “When the China tem promovido o alargamento da área de press brought together Macao’s Portuguese and Chinese communities, Macao Magazine, https://www.macaomagazine. atuação da RAEM, incluindo também a América net/history/echo-macaense, retirado 1 de Julho de 2019. Latina como uma das áreas em que Macau pode- “Futuro de Macau joga-se no plano da Grande Baía, diz o Secretário Geral Adjunto do Fórum Macau, Rodrigo Brum”, Fórum Macau, n. 43, Secretariado Permanente do Fórum CAIXA 2 –OS PLANOS DE AÇÃO PARA A COOPERAÇÃO ECONÓMICA E COMERCIAL Macau para a Cooperação Económica e Comercial entre a China e os Países de Língua Portuguesa, p. 33-34. Desde a fundação do Fórum Macau que são traçados Planos de Ação para a Cooperação Económica e Lam, Wai-man (2010), “Promoting Hybridity: The Politics of the Comercial, datando o primeiro plano de 2003, ano da fundação da instituição. Desde então já foram new Macau identity”, The China Quarterly, n. 203, p. 656-674. traçados mais quatro planos de ação, resultado das Conferências Ministeriais desenvolvidas no âmbito Mendes, Carmen Amado (2014), “Macau in China’s relations institucional. Os planos referem a importância de Macau nas relações entre a República Popular da Chi- with the lusophone world”, Revista Brasileira Política na (RPC) e os Países de Língua Portuguesa (PLP) e mencionam a importância de relações baseadas na Internacional, n. 57, p. 225-242. igualdade e no benefício mútuo, o que concorda com o discurso chinês para as relações internacionais. Mendes, Carmen Amado et al. (2011), Assessing the “One Country, Two Systems” Formula: The Role of Macau Os Planos apesar de algumas características de continuidade como as repetidas referências a Macau e às in China’s Relations with the European Union and the relações bilaterais extremamente positivas entre a RPC e os PLP, têm evoluído no sentido do alargamento Portuguese Speaking Countries, Coimbra: Oficina do CES e aprofundamento da cooperação. Igualmente, tendem a convergir com a agenda internacional, introdu- n.o 369. zindo, por exemplo, temas como o oceano, o ambiente e a capacitação humana. Sena, Tereza (2008), “Macau’s Autonomy in Portuguese Apesar da organização assentar, essencialmente, na cooperação económica e comercial, existem áreas Historiography (19th and early 20th Centuries), Bulletin of Portuguese – Japanese Studies, n. 17, p. 79-112. de colaboração específicas dedicadas ao desporto, à língua e à realização de eventos culturais conjuntos, Spooner, Paul B. (2016), “Macau’s Trade with the Portuguese bem como, áreas de cooperação específicas entre a China e alguns dos PLP. Speaking World”, Journal of Global Initiatives: Policy, Nota: Os Planos de Ação para a Cooperação Económica e Comercial estão disponíveis na página web do Fórum Macau. Pedagogy, Perspective, vol. 11, n. 1, article 5.

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1.23 • Conjuntura Internacional Renato Pereira Redento Maia M. Naguib Omar EMPREENDEDORISMO EM ÁFRICA: A DERRADEIRA ESPERANÇA? Texto entregue em Novembro de 2019

DESDE A PUBLICAÇÃO DA COMPILAÇÃO homó- de oportunidade na África subsariana é curto. Tal e crescimento económico. A relação entre investi- nima por Spring & McDade (1998), o Empreen- como referido por Dana & Ratten (2017), o cam- mento e crescimento económico é, independen- dedorismo Africano tem sido reconhecido pelos po do empreendedorismo internacional – par- temente das circunstâncias, uma relação básica académicos das ciências sociais como um fenó- ticularmente no contexto africano – permanece e muito conhecida e tem sido amplamente estu- meno de crucial importância para o desenvolvi- vazio de investigação sobre os processos relativos dada em ambas as suas componentes, pública e mento do continente. à identificação de oportunidades, especialmente privada. Entre as várias divisões possíveis, a literatura do os baseados na inovação. Também estudada é a importante relação entre empreendedorismo separa-o em dois grandes No entanto, algumas variáveis fortemente cor- empreendedorismo e desenvolvimento económi- grupos: “empreendedorismo de oportunida- relacionadas com o desenvolvimento do em- co, que é indiretamente gerado pelo crescimento de” e “empreendedorismo de necessidade”1. O preendedorismo (em África) estão identificadas económico e que resulta da atividade empreen- empreendedorismo de oportunidade, também e começam a ser investigadas. Em particular, dedora, pela criação de emprego, pela adoção chamado de ‘empreendedorismo produtivo’, adquirem importância especial no continente a de inovações tecnológicas assim como pela dimi- baseia-se na criação e lançamento de empresas intervenção da política e do ambiente institucio- nuição da pobreza, como lembrado em Brixiova (inovadoras) a partir da identificação de opor- nal4, assim como o papel das organizações locais (2010). tunidades (económicas) de mercado enquanto e das organizações internacionais. Neste contexto, sendo a criação de empresas a que o empreendedorismo de necessidade é ba- As “organizações” são não só as empresas, mas parte visível do processo de investimento priva- sicamente o autoemprego em atividades simples, também as ONGs, as fundações e as organizações do, interno e externo, compreender o verdadeiro nomeadamente comércio, sem grandes ambições do terceiro setor em geral. O ambiente de doing impacto do empreendedorismo na economia re- de crescimento. business da maioria dos países africanos revela quer a identificação das variáveis que impactam o Nos países africanos menos desenvolvidos, o que considerar apenas as empresas é insuficiente desenvolvimento do próprio empreendedorismo empreendedorismo de necessidade é claramente para a compreensão do fenómeno5. e a sua influência relativa na atividade económica. dominante e é sinónimo de economia informal e Nalgumas sub-regiões, como a África Ocidental, Ndulu et al. (2007) considera as variáveis seguin- de poverty alleviation2. alguns estudos de caso experimentais têm sido tes: contexto institucional, político e regulatório; De acordo com Ács & Varga (2005), o empreen- conduzidos no intuito de se avaliar o papel das legislação sobre a atividade económica; qualida- dedorismo de oportunidade tem um significativo empresas estrangeiras no desenvolvimento lo- de e adequação das infraestruturas; estabilidade impacto positivo no desenvolvimento enquanto cal. Estes estudos revelaram o papel positivo de macroeconómica; proteção da propriedade in- que o empreendedorismo de necessidade tem estratégias Bottom of Pyramid (BoP)6 no desen- dustrial; qualidade do sistema financeiro. um impacto praticamente nulo. volvimento subsequente de inovações por em- Estas variáveis são, de facto, críticas para a com- Assim, cada vez mais países africanos procuram preendedores locais. preensão do empreendedorismo dada a sua no empreendedorismo de oportunidade, basea- influência no nível de risco dos investimentos. do na inovação, a derradeira esperança para as Por causa disso, em muitas economias africanas suas legítimas aspirações de desenvolvimento há uma prevalência de empreendedorismo re- (económico e social). Os tech-hubs de Kigali Cada vez mais países africanos plicativo, de menor valor-acrescentado quando (Ruanda), Harare (Zimbabué) e Acra (Gana), procuram no empreendedorismo comparado com o empreendedorismo inovador, documentados por Friederici (2017) revelam de oportunidade, baseado de maior risco mas também de maior valor-acres- um novo itinerário no empreendedorismo de centado8. oportunidade em África. Um itinerário menos na inovação. A conclusão-chave é que a qualidade do ambien- dependente de recursos naturais controlados te de investimento é, no geral, insuficiente em centralmente por atores governamentais que África por causa do mais elevado custo de doing não tiveram os resultados desejados ou de uma Do ponto de vista metodológico, Karatas-Ozkan business do mundo. diversificação económico-industrial que demora et al. (2014) aconselha a utilização de abordagens Os custos de energia, de transporte, de teleco- décadas a dar resultados palpáveis e que exige pós-positivistas pois estas oferecem a oportunida- municações e segurança, estão entre os que mais volumes de capitais que esses países não detêm e de de se examinar as subtilezas do empreendedo- negativamente afetam as empresas. Mas também que aumenta dramaticamente a sua dependência rismo enfatizando um conjunto de dimensões e os custos alfandegários, os alvarás e os licencia- externa. das suas interações. Essas abordagens pós-positi- mentos têm um peso excessivo, assim como a vistas podem revestir a forma de frameworks com- necessidade de sistemáticos pagamentos “não- Empreendedorismo de oportunidade binando construtos qualitativos e quantitativos, -transacionais” para que as pequenas dificuldades em África como os que podem ser encontrados na literatura do dia-a-dia sejam resolvidas. O Global Entrepreneurship Monitor (GEM), or- francófona, chamados “modelos dialogantes”7. Ndulu et al. (2007) revela uma investigação inte- ganismo internacional que estuda o empreen- ressante sobre as origens do empreendedorismo dedorismo no mundo de forma sistemática há Fundamentação teórica e empírica africano, comparando empreendedores indíge- duas décadas, tem revelado nos últimos anos que A relação entre o empreendedorismo e o cresci- nas (ou locais) com empreendedores não-indí- existe uma forte pré-disposição em África para o mento económico tem sido estudada extensiva- genas (ou estrangeiros) da Ásia, Médio-Oriente empreendedorismo de oportunidade, mas que o mente observando-se uma certa divergência de e Europa. mesmo não é suportado por capacidades inova- resultados. A primeira conclusão é que as empresas indíge- doras endógenas3, redundando na impossibilida- Ndulu et al. (2007), entre outros, relembra o nas são, em média, mais pequenas do que as es- de de se explorar esse potencial. fundamento para se estabelecer um nexo de cau- trangeiras e que, ao mesmo tempo, elas arrancam O corpo de conhecimento que oferece uma pers- salidade entre empreendedorismo e crescimento mais pequenas. Estas diferenças de dimensão au- petiva sobre a dinâmica do empreendedorismo económico através da relação entre investimento mentam ao longo do tempo.

54 O nível de escolaridade dos fundadores ajuda a terístico da economia informal; (ii) controlo dos explicar as diferenças de tamanho entre as em- fatores de produção e (iii) inovação nos sistemas presas indígenas à data da constituição, numa as- e canais de distribuição (e não nos apenas nos sociação linear. A diferença de tamanho é estável produtos). ao longo do tempo. Relativamente ao primeiro fator, os autores As linhas de crédito também são mais acessíveis aconselham os empreendedores a combinar o às empresas estrangeiras do que às locais, suge- desenvolvimento de produtos de design africano rindo uma maior dificuldade destas ao nível da com padrões de qualidade de produção interna- credibilidade e da competência. cionais como meio de atingirem os consumido- Estes resultados indicam também a ausência de res de classe média-alta. A ideia é transcender as redes comerciais nas comunidades locais africa- fronteiras nacionais criando a base de futuras es- nas. Como os sistemas de justiça são no geral tratégias de internacionalização, que são raras no frágeis, é extremamente difícil para uma pequena atual contexto do empreendedorismo africano. empresa africana atingir o mesmo ritmo de de- Relativamente aos fatores de produção, os auto- senvolvimento que um empreendedor estrangei- res poem em evidência a importância do controlo ro, asiático, árabe ou europeu. de terra e de outros fatores de produção básicos, A última conclusão é que o difícil acesso a infor- como a logística, dadas as limitações ao nível da mação afeta mais seriamente os empreendedores distribuição local e as dificuldades crescentes de africanos do que as dificuldades de acesso a capi- importação por restrições cambiais. tal, fator em decréscimo de importância dado o Relativamente ao terceiro fator, este trabalho Notas aumento exponencial do acesso à internet verifi- põe em evidência que os constrangimentos de 1 Hilson, G. & Hilson, A. & Maconachie, R. (2018). «Opportunity or Necessity? Conceptualizing Entrepreneurship at African cado em África nos últimos anos. distribuição continuam a ser os problemas mais Small-Scale Mines». Technological Forecasting & Social significativos em África por causa das grandes Change, 131 (6): 286-302. disfunções existentes e da inexistência de in- 2 Brixiova, Z. (2010). «Unlocking Productive Entrepreneurship in Africa’s Least Developed Countries». African Development fraestruturas fundamentais. Sugere-se que os Review. 22 (3): 440-451; e Brixiová, Z. & Ncube, M. & Bicaba, A qualidade do ambiente empreendedores olhem para vias inovadoras de Z. (2015). «Skills and Youth Entrepreneurship in Africa: Analysis utilização de tecnologias emergentes, como dro- with Evidence form Swaziland». World Development. 67 (1): de investimento é, no geral, 11-26. nes, para ultrapassar essas limitações. n 3 Pereira, R. & Maia, R. (2018). «Entrepreneurship in Africa: insuficiente em África. An Exploratory Analysis Using Data from the Global Entrepreneurship Monitor (GEM)». JANUS.NET e-journal of International Relations, 9 (2), 109-123. 4 Pereira, R. & Maia, R. (2019). «The Role of Politics and Institutional Environment on Entrepreneurship: Empirical Brixiova (2010) acentua a importância de se Evidence from Mozambique». JANUS.NET e-journal ter uma melhor compreensão sobre o impacto of International Relations, 10 (1), 98-111. 5 da falta de capacidades no empreendedorismo Auplat, C. (2006). «Do NGOs influence entrepreneurship? Insights from the developments of biotechnologies and africano, tanto ao nível dos fundadores como nanotechnologies». Society and Business Review. 1 (3): dos restantes recursos humanos, uma vez que é 266-279. 6 Payaud, M.A. & Martinet, A.C. & Amoussouga, F.G. (2014). relativamente grande o conhecimento sobre ou- «La Contribution de la RSE aux Objectifs d’un Développement tras variáveis que o impactam negativamente, tais Durable de l’ONU – Cadre d’Analyse et Propositions pour les como: acesso ao crédito, ambiente de negócios, Pouvoirs Publics des ‘Pays les Moins Avancés’». Revue Française de Gestion. 245: 133-158. constrangimentos infraestruturais e acesso à in- 7 Martinet, A.C. & Payaud, M.A. (2010). «La Stratégie BoP formação. à l’Epreuve des Pauvretés – Une Modélisation Dialogique». Revue Française de Gestion. 208: 63-81. No que se refere às competências, e sendo a 8 Adusei, M. (2016). «Does Entrepreneurship Promote Economic qualidade dos recursos humanos a variável mais Growth in Africa?». African Development Review. 28 (2): crítica para o desenvolvimento do empreende- 201-214. dorismo de oportunidade, Brixiová et al (2015) Bibliografia geral acentua a importância de um fator relacionado Ács, Z.J. & Varga, A. (2005). «Entrepreneurship, Agglomeration com enorme impacto negativo: uma taxa de de- and Technological Change». Small Business Economics. 24 (3): semprego jovem crescente em várias economias 323-334. Dana, L.P. & Ratten, V. (2017). «International entrepreneurship in africanas, paradoxal tendo em conta o padrão de resource-rich landlocked African countries». Journal crescimento económico verificado recentemente of International Entrepreneurship. 15 (4): 416-435. no continente. Ekekwe, N. (2016). «Why African Entrepreneurship is Booming». Ekekwe (2016) identifica um crescimento signifi- Harvard Business Review, 94 (7): 2-4. cativo (exponencial?) do empreendedorismo afri- Friederici, N. (2017). Innovation Hubs in Africa: Assemblers of Technology Entrepreneurs. Unpublished PhD Dissertation. cano, pelo menos nalguns países como a Nigéria, Oxford Internet Institute, University of Oxford. Quénia, Senegal, Ruanda e Gana. Karatas-Ozkan, M. & Anderson, A.R. & Fayolle, A. & Howells, Entre outras razões para este aumento da ativi- J. & Condor, R. (2014). Understanding Entrepreneurship: dade empreendedora está a recente crise econó- Challenging Dominant Perspectives and Theorizing Entrepreneurship Through New Postpositivist Epistemologies. mica originada pela queda abrupta do preço do Journal of Small Business Management, 52(4): 589-593. petróleo e a consequente necessidade de ambos Klingebiel, R. & Stadler, C. (2017). «3 Things Driving os atores públicos e os privados efetuarem tran- Entrepreneurial Growth in Africa». Harvard Business Review. sações comerciais em moeda local, por causa da 95 (2): 2-4. Ndulu, B. & Chakraborti, L. & Lijane, L. & Ramachadran, crise nas taxas de câmbio em que muitos países V. & Wolgin, J. (2007). Challenges of African Growth – africanos caíram. Opportunities, Constraints and Strategic Directions. The Finalmente, Klingebiel & Stadler (2017) identifi- International Bank for Reconstruction and Development, cam três fatores que deveriam levar a um cresci- World Bank, Washington DC. Spring, A. & McDade, B.E. (eds.) (1998). African mento do empreendedorismo em África: (i) foco Entrepreneurship – Theory and Reality. Gainesville, no top of the pyramid, por oposição ao carac- FL: University Press of Florida.

55 JANUS 2020-2021

1.24 • Conjuntura Internacional

SENEGAL, O CRESCIMENTO ACELERADO DAS INDÚSTRIAS Ricardo Falcão EXTRATIVAS SOB A ÉGIDE DE MACKY SALL Texto entregue em Setembro de 2019

COM UM CRESCIMENTO DE 6,8 % em 2018 mas turcas Summa e Limak, e esta última ficaria do Senegal e as populações locais. A abordagem (World Bank) e taxas superiores a 6% desde com a concessão. O aeroporto liga-se a Dakar por do Governo apesar de centralista, e ocupada com 2014, o Senegal está entre os países cujas eco- via de uma autoestrada que serve igualmente as o interesse nacional, não é completamente hos- nomias mais cresceram nos últimos anos. Dos 15 ZES de Diamnadio e Diass. A estes investimentos til, procurando encetar negociações que visam a milhões de habitantes, mais de 60% são jovens infraestruturais juntam-se outros como o TER debelar os problemas introduzidos. Porém, o am- com menos de 25 anos e 40% com menos de (Comboio Expresso Regional) de Dakar-Diamna- biente relativamente amigável para os investidores 14 anos (CIA). O país é composto por 95,9% de dio, inaugurado em Janeiro de 2019, e que verá pode ser contraditório com o interesse das popu- muçulmanos e 47% da população vive em zonas um segundo troço ligar Diamnadio ao AIBD; e a lações, como no caso de Niafrang, na Casamança, urbanas (World Bank). autoestrada Ila Touba, financiada pela sociedade onde estas se organizaram na recusa à exploração Representando de momento cerca de 1,9% do chinesa China-Africa Business Council ligando a do zircão. Existem ainda receios em torno dos PIB senegalês e 35,5% das exportações, mas cidade de Thiès à cidade de Touba, inaugurada conflitos entre a produção agrícola, o setor mais contribuindo apenas para 0,3% do emprego no em Dezembro de 2018. importante do país para uma percentagem consi- país (ITIE, 2018) as indústrias extrativas estão derável da população, e a extração, tal como sobre longe de ser o setor mais importante de ativida- o impacto nos eco-sistemas costeiros e marítimos de económica. Porém, as recentes descobertas e modo de vida das populações locais, como por de petróleo e gás apontam para a possibilidade A atratividade económica exemplo em Bargny, dependentes ainda de ativi- de crescimento considerável do setor, embora as do país é um dos importantes dades ditas ‘tradicionais’ contra as quais corre a expetativas sobre os benefícios desse crescimen- ocupação das terras em regime extrativo. to não possam ser um dado adquirido, vistas as eixos do PSE e o investimento O Ouro é explorado na zona de Kédougou desde muitas debilidades institucionais, a desigualdade em infraestruturas é um há séculos, pelos orpailleurs tradicionais Man- no acesso às infraestruturas, e as polémicas que dos aspetos mais visíveis dinga, mas só em 2009 foi criada a primeira ex- assolam já o setor, ainda antes do começo da co- na atual governação. ploração industrial do minério, sendo atualmente mercialização das matérias-primas. a indústria extrativa mais lucrativa a funcionar no país (cerca de 260 milhões de EUR em 2017). O A “criação” da atratividade económica maior ator é a Teranga Gold Corporation a ope- O ambicioso “Plano Senegal Emergente: traba- Estes investimentos infraestruturais inserem-se rar na localidade de Sabodala. Duas outras licen- lhar para o futuro” (PSE) foi publicado em 2014, todos num quadro de criação de atravidade eco- ças foram atribuídas na mesma região, em 2018, ao longo do segundo ano do primeiro mandato nómica, apesar de o investimento em ‘grandes a outras empresas. do presidente Macky Sall, o quarto presidente da obras’ não ser suficiente para esconder os proble- A exploração dos fosfatos começou na segunda história do Senegal, país que chegará em 2020 mas graves nas infraestruturas urbanas, como a metade dos anos 50 pela Companhia Senegalesa aos 60 anos. Este plano inclui um diagnóstico, gestão do lixo e do saneamento, e rurais, como a dos Fosfatos de Taïba, e posteriormente nos anos uma visão e orientações estratégicas, bem como inacessibilidade em meio rural a serviços básicos 90 pela Indústrias Químicas do Senegal que, em planos de ação prioritários, tendo entrado na sua como saúde, educação, água e energia elétrica 2012, foram compradas pela indiana Indorama, segunda fase em 2019, aquando da reeleição do na sequência de quedas consideráveis na produ- atual presidente. Indústrias extrativas ção. Esta exploração situa-se sobretudo na zona A atratividade económica do país é um dos im- O Senegal coloca o Governo no centro da gestão de Thiès, conhecida como Niayes, zona estratégi- portantes eixos do PSE e o investimento em in- dos recursos naturais e os quadros jurídicos cria- ca na produção agrícola do país. fraestruturas é um dos aspetos mais visíveis na dos (novo Código Mineiro em 2016, novo Código Um dos maiores investimentos estrangeiros no atual governação. O tipo de investimento é sin- Petrolífero em 2019) são instrumentos de reforço Senegal (420 milhões de euros), foi feito na ex- tomático de uma orientação política que prioriza da centralidade do Estado (a partir de Dakar), e ploração do Zircão e da Ilmenite pela australiana a captação de investimento estrangeiro para o do seu poder, e, ao mesmo tempo, regimes de Mineral Deposits Limited – ligada à Teranga Gold desenvolvimento, através por exemplo da cria- facilitação aos investidores. Os investimentos são a operar em Kédougou – que lidera a Grand Côte ção de Zonas de Atividade Económica Especiais considerados pelo prisma do interesse nacional, Opération, ao lado da francesa Eramet. A conces- (ZES), em Diamnadio e Diass. A legislação sobre por oposição ao interesse regional e local, mes- são foi estabelecida em 2007, com a duração de estas zonas foi aprovada em 2017 e estabelece in- mo havendo uma regionalização administrativa. 25 anos, e a exploração faz-se ao longo da costa centivos fiscais e isenções aduaneiras. A constru- Apesar de nos últimos anos ter crescido um oti- ao Norte de Dakar, numa extensão de 107 Kms ção das ZES de Diamnadio e Diass ficou a cargo mismo sobre o potencial futuro das indústrias de comprimento e 4,5 de largura. Uma segunda da China Geology Overseas Construction Group extrativas no país, devido sobretudo ao petróleo exploração foi tentada, desta vez a sul, na região (CGCOC), e alinha-se com o crescimento das e gás, um relatório de 2017 publicado pela ITIE de Casamança, localidade de Niafrang, mas a parcerias com a China, pois o interesse chinês na (Iniciativa para a Transparência das Indústrias oposição da população impediu que o projeto da extensão da sua Belt and Road Initiative para a Extrativas) mostra que à extração mineira corres- Carnegie/Astron, também australiana, avançasse. África Ocidental, faz do Senegal um parceiro re- pondem ainda 89,2% dos lucros do setor, sendo O distrito de Falème, onde se pretende situar a levante. Tal ficou claro em Julho de 2018 quando as receitas mais importantes as do ouro, fosfatos, indústria do ferro, consiste numa cintura de 65 Xi Jinping começou a sua primeira visita à África zircão e cimento. Este cenário mudará com toda Kms de comprimento por 15 Kms de largura e Ocidental precisamente em Dakar. a probabilidade entre 2021/23, quando a comer- situa-se entre o Senegal e o Mali. A parte sene- Em Diass, em 2017, foi inaugurado o Aeroporto cialização do petróleo e do gás começar. galesa foi explorada entre 1957 e 1958, e depois Internacional Blaise Diagne (AIBD), depois dos Na maior parte dos investimentos levantam-se entre 1966 e 1968, e 1975 e 1982. Em 2007 a problemas com o Saudi BinLadin Group os tra- preocupações ambientais fundamentadas, e de- empresa indiana ArcelorMittal ganhou uma li- balhos foram concluídos pelas sociedades anóni- terminantes por vezes, que opõem o Governo cença para exploração mineira em Falème, uma

56 BREVE CRONOLOGIA DA EXPLORAÇÃO PETROLÍFERA E GAZÍFERA NO SENEGAL futura instrumentalização política do assunto. 1986 Acordo com a Tullow Oil Plc. O caso teve igualmente influência em relação à 1993 Assinatura de acordo com a Guiné-Bissau para a Zona de Exploração Conjunta (ZEC). confiança dos senegaleses relativamente à gestão 1998 Código Petrolífero aprovado pelo presidente Abdou Diouf. transparente dos recursos naturais do país, que 2008 Oranto começa a exploração do bloco Cayar Offshore. tinha sido objeto de análise, em 2017, por parte Cayar Offshore Profond e Saint Louis Offshore Profond atribuídos a Petrotim Limited pelo Ministro da Energia do Afrobarómetro, que concluiu que 83% da po- Karim Wade (90% Petrotim / 10% Petrosen). Meses depois, o novo presidente Macky Sall confirma os contratos. 2012 pulação considerava que as descobertas de gás e A empresa, Petrotim estabelece uma filiária no Senegal, Petrotim Senegal, sendo o seu diretor executivo Aliou Sall, irmão de Macky Sall. petróleo ajudariam ao desenvolvimento do país. O Senegal junta-se à ITIE (Iniciativa para a Transparência das Indústrias Extrativas). Uma outra polémica, sem grande impacto na es- 2013 Cairn Energy obtém licença nos três blocos Sangomar Offshore, Sangomar Deep Offshore, Rufisque Offshore. fera pública respeita o acordo, assinado em 1993 A CAP Energy adquire uma percentagem da licença de exploração do bloco Djiffere em parceria com a Trace com a Guiné-Bissau, sobre uma zona de explora- Atlantic Oil Limited. ção conjunta (ZEC), denunciado pelo presidente FAR Limited e Woodside entram numa Joint Venture com Cairn Energy (exploração e avaliação dos campos SNE, 2014 guineense João Mário Vaz em 2014, como usurá- SNE-1 e FAN-1). rio e injusto, respondendo a pressões internas. Timis Corporation adquire os direitos sobre Cayar Offshore e Saint Louis Offshore à Petrotim e revende dois meses depois 60% à Kosmos Energy (campo Grand Tortue). Em 2018 realizava-se em Dakar a terceira ronda 2015 Oranto começa a explorar segundo bloco em Saint Louis Offshore. negocial, ainda sem resultados definitivos. Em Timis Corp vende os restantes 30% de direitos sobre Cayar e Saint Louis Offshore à BP. sentido oposto, em Junho de 2018 oficializou-se Assinatura de Contrato entre o Estado Senegalês e a TOTAL, para a exploração do bloco UltraDeep Offshore, o Acordo de Cooperação inter-Estados, com vista 2017 ao largo da Casamance. ao desenvolvimento e exploração dos reservató- A China National Oil Offshore Corporation (CNOOC) adquire 65% direitos no bloco AGC, entre a Guiné-Bissau rios do campo Grand Tortue/Ahmeyim, de cerca e Senegal. de 560 milhões de metros cúbicos de hidrocarbo- Decisão final de investimento de BP/Kosmos para a Grand Tortue. 2018 netos, entre o Senegal e a República Islâmica da Acordo com a Mauritânia para a exploração do campo Grand Tortue. Mauritânia. n Novo Código Petrolífero. 2019 Decisão final de Investimento de Woodside. Datas previstas por Woodside/Cairn/FAR e BP/Kosmos para a comercialização do Petróleo 2021-2023 e Gás respetivamente. localidade na região de Tambacounda, perto da Offshore Profond são explorados pela Kosmos fronteira de Kidira com o Mali. No entanto, a em- Energy (60%), BP (30%) e Petrosen (10%) e têm presa retirou-se da exploração daquele que seria data prevista de comercialização em 2021. Rela- o mais importante projeto industrial da história tivamente ao Petróleo, as explorações das con- do país (1,66 mil milhões de euros, 20,000 em- cessões Sangomar Offshore, Sangomar Offshore pregos) devido à quebra da procura do aço na Profond e Rufisque Offshore pelas empresas Woo - Europa, em consequência da crise de 2008. O dside (35%), Cairn Energy (40%), FAR Limited Estado senegalês iniciou um processo na justiça (15%) e também Petrosen (10%) tem data prevista que acabaria com uma decisão em seu favor em de comercialização em 2022/3. De assinalar ainda 2013 e um pagamento de uma indemnização. A as avaliações e primeiras explorações em curso indemnização de 110 milhões de euros, acorda- noutros blocos, por empresas como a Oranto, da amigavelmente, foi considerada irrisória pelos Trace Atlantic Oil e Africa Petroleum, a CNOOC, opositores políticos. Já em 2018, a sociedade e a assinatura de um contrato com a Total. turca Tosyali viu em ser-lhe atribuída uma licença Já em 2019, uma polémica veio abalar este emer- de exploração mineira no mesmo território, por gente setor introduzindo graves suspeitas em uma duração de 25 anos, estando atualmente torno de familiares do presidente. O caso come- Bibliografia geral d’Avignon, Robyn. 2018. “Shelf Projects: the political Life este contrato igualmente envolvido numa polé- çou a ter visibilidade com a publicação por par- of Exploration Geology in Senegal”, Engaging Science, mica lançada pela oposição. te da BBC-Panorama de um documentário com Technology, and Society, 4(2018), pp. 111-130 alegações várias envolvendo Aliou Sall, irmão de Diouf, Aly et Guo Kai. 2018. “Le Sénégal voit grand avec les ZES”, Petróleo e Gás Natural Macky Sall, à data Maire de Guédiawaye, e um Retrieved at http://www.chinafrique.com/Afrique/201802/ t20180211_800117603.html O momento da grande mudança no panorama da empresário romeno-australiano Frank Timis, rela- Fent, Ashley. 2019. “Governing alongside: lateral state spatiality extração petrolífera e gazífera no Senegal acon- tivas aos contratos de exploração das concessões and unmet expectations amid mining negotiations in teceu em 2014, com duas grandes descobertas offshore de Cayar e Saint Louis, datados de 2012, Casamance, Senegal”, American Ethnologist, Vol. 46, Nº1, em offshore. Porém, o primeiro Código Petro- com a empresa Petrotim Limited. A empresa em pp. 20-33 questão, sediada nas ilhas Caimão, terá ganho o Fredericks, Rosalind. 2018. “Garbage Citizenship”, Duke lífero no Senegal data de 1998 e as primeiras University Press, Durham and London explorações datam dos anos 60, e aconteceram contrato sem qualquer experiência no ramo da Iniciative pour la Transparence dans les Industies Extractives, igualmente nos anos 80 e 90, intensificando-se, exploração petrolífera e criaria pouco depois a 2018. “Rapport 2017”, disponível em http://itie.sn/2018/11/19/ tanto onshore (bloco de Louga) como offshore, a Petrotim Senegal, que viria a ser administrada por rapport-itie-2017-hausse-des-revenus-generes-par-le-secteur- partir do virar do milénio. O Código de 1998 foi Aliou Sall. Em 2014 a Petrotim alienará os direitos extractif/ Ndao, Fary. 2018. “L’or noir du Sénégal: comprendre l’industrie substituído em 2019 por uma nova versão que de exploração, vendendo-os à Timis Corporation, pétrolière et ses enjeux au Sénégal”, Copyright do autor leva em conta os achados, mas se mantém “ami- que dois meses depois venderia 60% à empresa Sall, Babaly et Jamet Sow. 2019. “Au Sénégal, les ressources gável” para a indústria e é visto como criador de americana Kosmos Energy e três anos mais tarde souterraines suscitent de l’espoir et des inquiétudes”, um ambiente favorável para o investimento. Esse os restantes 30% à BP, ficando agora a Timis Cor- Afrobarometer, Dépêche Nº299, 20 Mai 2019 Sharife, Khadija and Momar Dieng. 2019. “Senegal’s Offshore Oil ambiente é reforçado pela reconhecida capacida- poration com direitos a receber cerca de 10 mil Reserves a Pricey Pawn in Covert Deal”, Retrieved at https:// de técnica da empresa estatal Petrosen, parceira milhões de dólares de comissões, por parte da www.occrp.org/en/investigations/senegals-offshore-oil- obrigatória em todos os investimentos. BP, no espaço de 40 anos. reserves-a-pricey-pawn-in-covert-deal Quanto à exploração são duas as concessões que O caso Petrotim é relevante não apenas pelos Sheehan, Gerry. 2015. “That’s not a very prospective basin ...”, GEO ExPo, Vol.12, Nº5 têm no horizonte a comercialização. No gás, os indícios de corrupção, mas sobretudo pelo im- Unidentified, 2019. “An oily threat to Sall”, Africa Confidential, blocos Saint Louis Offshore Profond e Cayar pacto que teve na esfera pública e pela possível Vol. 60. Nº12.

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1.25 • Conjuntura Internacional

ANGOLA E OS VENTOS DA MUDANÇA E CONTINUIDADE Cláudia Almeida 1 DE JOÃO LOURENÇO Texto entregue em Novembro de 2019

O ano de 2017 marcou a história política de An- a seu favor para poder governar e deixar o seu Administração da Sonangol, e de José Filomeno gola, quando, em resultado das eleições gerais legado, tal como Dos Santos fez quando assumiu dos Santos, da presidência do Fundo Soberano de 23 de Agosto, João Lourenço (JL), militar de a presidência do país em 1980. de Angola, bem como a cessação do contrato com carreira, quadro de topo do partido incumbente A análise destes primeiros anos de governação a Semba Comunicação, cujos sócios são também (MPLA) e ex-ministro da Defesa, sucedeu a José de João Lourenço pode ser feita a partir de XX dois filhos do anterior presidente. Refira-se ain- Eduardo dos Santos, até então o segundo presi- dimensões. da que Filomeno dos Santos foi levado à justiça, dente em funções há mais tempo no poder em No referido Congresso Extraordinário de 2018 acusado de crimes económicos, tendo ficado em África.2 e no posterior de 15 de Junho de 2019, JL, tal prisão preventiva desde 24 de Setembro de 2018 No passado 26 de Setembro de 2019 assinalou-se como outrora o seu antecessor, procurou estabe- até à sua libertação em Março de 2019. dois anos de presidência do terceiro presidente lecer uma configuração de poder intrapartidário Destaca-se ainda o afastamento de Welwitschia da República de Angola, que prometeu ser um para garantir o apoio dos órgãos centrais do par- dos Santos (Tchizé dos Santos) de membro do líder reformador ao estilo do ex-líder da China tido à sua presidência. Desde logo, assistimos à comité central do MPLA, decisão aprovada pelo Deng Xiaoping e com uma «cruzada» contra a saída de quase metade dos membros do Bureau novo Bureau Político em 21 de Novembro de corrupção. A análise que se segue abordará algu- Político, entre figuras da entourage de Dos San- 2019, bem como a sua suspensão da condição mas dimensões políticas fundamentais da gover- tos, membros históricos e generais influentes. de militante por dois anos, sendo que a filha do nação de JL, procurando assinalar o que mudou Entre 2018 e 2019, verificamos um alargamento ex-Presidente já tinha sido afastada do cargo de e permanece igual em relação ao seu antecessor. do Comité Central (de 363 para 497 membros) deputada, por má conduta e contra a disciplina e uma nova composição do Bureau Político, na partidária. A liderança do partido como super sua maioria jovens e considerada próxima a JL A política de afastamento do círculo próximo de fórmula de poder e, por conseguinte, ao afastamento gradual dos Dos Santos do epicentro do poder mostrou-se, A governação de JL foi inicialmente recebida com seguidores do ex-líder. Destaca-se ainda a substi- no entanto, pouco espinhoso, muito devido a an- cautela e ceticismo, no sentido de se perceber se tuição do pró-eduardista Álvaro de Boavida Neto ticorpos dentro do próprio MPLA relativamente o mesmo estaria à sombra do anterior presidente por Paulo Pombolo, no cargo de secretário-geral à família do ex-presidente, a que se acrescenta a e se as suas políticas seriam mais do mesmo. Du- do MPLA. sua pouca popularidade na maioria da opinião rante praticamente o primeiro ano de governação pública. Já os níveis de popularidade de JL, den- de JL (aka JLO), o país viveu a situação inédita O “Exonerador Implacável” e o fim tro e fora do partido no poder, aumentaram com que muitos apelidaram de «poder bicéfalo»; isto da Dinastia Dos Santos estas ações contra a família Dos Santos, não per- é, as duas principais fontes de poder de facto – a Pouco depois da sua tomada de posse, JL sur- mitindo ao ex-Presidente ir em defesa dos seus Presidência da República e o MPLA – não conver- preendeu com uma lista de exonerações em di- membros, como apontado pelo jornalista angola- giam numa só pessoa, já que José Eduardo dos versas áreas estratégicas do Estado, desde a área no Ismael Mateus.6 Santos permaneceu no cargo de presidente do militar e de segurança, com a exoneração das Apesar das exonerações, verificamos, contu- partido ainda por uns largos meses.3 chefias da polícia e de oficiais generais das for- do, uma linha de continuidade na composição Porém, em 8 de Setembro de 2018, o partido, no ças armadas,5 à banca nacional (Banco Nacional do governo de JL, já que vários dos seus atuais poder desde a independência do país em 1975, de Angola), até ao sector petrolífero (Sonangol) ministros são elementos fortemente ligados realizou o seu 6º Congresso Extraordinário onde e dos diamantes (Endiama), passando também ao anterior executivo e associados à má gestão JL foi eleito presidente do MPLA com 98.5% dos pela comunicação social (TPA, RNA, Edições No- governamental. Com efeito, como aponta o in- votos, sem quaisquer candidatos alternativos. Tal vembro e Angop). Por outro lado, o presidente vestigador angolano Sérgio Dundão, 35,48% da como em Moçambique, o processo de transição mudou mais de metade dos governadores pro- equipa executiva atual (11 ministros) são minis- de liderança política começou primeiro ao nível vinciais. tros reconduzidos do governo anterior, tendo o do Estado e só depois ao nível do partido no presidente promovido cinco secretários de Esta- poder. Esta sequência no processo de transição do (16,12% dos atuais ministros) da antiga pre- de liderança revela, por um lado, a centralidade sidência à categoria de ministros e somente oito do MPLA na arquitetura do poder, e, por outro, a (...) assistimos a um presidente novos ministros foram nomeados.7 continuidade de lógicas hegemónicas de constru- que, tal como o anterior, 4 ção e de consolidação do poder. procura montar um tabuleiro Reconciliação e sociedade civil Nesta senda da continuidade, o atual presidente Um dos ventos de mudança de JL diz respeito, acumula uma tríade de poderes (Chefe de Esta- de forças a seu favor. precisamente, à memória coletiva. Nomeada- do, Chefe do Executivo e Presidente do partido), mente, a entrega dos restos mortais do fundador não tendo manifestado qualquer vontade em da UNITA e inimigo histórico do MPLA, Jonas rever a Constituição de 2010 amplificadora dos Neste «buldózer» de exonerações, respaldado Savimbi, ao seu partido e familiares em Maio de poderes formais do presidente. por um discurso de combate à corrupção que 2019.8 Tratou-se de um gesto com enorme carga No passado 26 de Setembro de 2019 assinalaram- o próprio presidente sublinhou implicar uma simbólica, em que a liderança de JL procurou di- -se os dois anos de governação deste terceiro pre- destruição do «ninho de maribombos» ou de ferenciar-se também ao nível dos esforços de re- sidente de Angola e ao contrário da visão inicial influências nefastas, o afastamento e responsabi- conciliação nacional, especialmente pelo epíteto que o novo presidente estaria à sombra ou de lização dos intocáveis da Dinastia Dos Santos foi de “arquiteto da paz” atribuído ao seu antecessor, alguma forma controlado por José Eduardo dos amplamente aplaudida, tendo promovido uma para além de ganhar o reconhecimento do maior Santos, as políticas de João Lourenço revelam boa imagem do presidente dentro e fora do país. partido de oposição. rupturas e continuidades que mostram um presi- Em especial, a exoneração dos filhos Isabel dos Mas esta «nova política de reconciliação» teve um dente que procura montar um tabuleiro de forças Santos, do cargo de presidente do Conselho de marco importante ao nível intrapartidário, no-

58 A CONSTITUIÇÃO DE 2010 E O SISTEMA PRESIDENCIALISTA ANGOLANO Em 21 de Janeiro de 2010, a Assembleia Nacional, dominada pelo MPLA (191 deputados num total de 220), aprovou – com o boicote do principal partido da oposição (UNITA) e várias críticas da sociedade civil – uma nova constituição que, basicamente, ampliou os poderes formais do presidente, para além de permitir a José Eduardo dos Santos ser Chefe de Estado até 2022. A partir de então, Angola passou de um sistema semipresidencialista de governo para um de tipo presidencialista. O Presidente da República não é apenas o Chefe de Estado e o Comandante-em-Chefe das Forças Armadas Angolanas, mas também o Chefe do Executivo, tendo o cargo de Primeiro-Ministro sido eliminado (Artigo 108º da CRA). Muito importante, com esta nova constituição, o presidente deixou de ser eleito diretamente por voto popular (Artigo 109º da CRA). Em vez disso, o candidato cabeça-de-lista do partido ou da coligação de partidos vencedor das eleições gerais torna-se automaticamente Presidente da República e o segundo candidato, Vice-Presidente. Não obstante o reforço dos poderes do presidente, este encontra-se subordinado ao partido que o escolhe como cabeça-de-lista para as eleições. Em consequência, o actual presidente deve obediência ao partido MPLA e, subsequentemente, ao líder do partido. De acordo com os estatutos atuais do MPLA, o partido estabelece e é responsável por orientar e monitorar o programa do governo [Artigo 86º (3) (k) dos Estatutos, 2017]. Por outro lado, a composição do executivo e a nomeação para outros car- gos na administração do Estado necessitam do aval do Bureau Político, o qual é presidido pelo presidente do partido [Artigo 86º (3) (b) dos Estatutos, 2017]. Em suma, a liderança do partido é absolutamente crucial para a liderança do Estado e, simultaneamente, uma super fórmula de poder. meadamente, o reconhecimento e condecoração zembro de 2018 com críticos da sociedade civil dos primeiros presidentes do MPLA, Ilídio Macha- angolana, incluindo o jornalista e ativista Rafael do e Mário Pinto de Andrade, e do membro histó- Marques – o qual, entretanto, foi condecorado rico do partido, Viriato da Cruz. Estas três figuras pelo presidente em 2019 – e o rapper e ativista históricas haviam sido removidas, como refere o Luaty Beirão, preso juntamente com mais 16 investigador angolano Cláudio Fortuna, do ima- jovens por rebelião contra o antigo Presidente. ginário vernacular dos militantes e da história do JL tem procurado condecorar figuras afastadas partido por orientação dos líderes antecessores pelo eduardismo11, exortando alguns pelo com- (Agostinho Neto e Dos Santos).9 bate à corrupção, e, assim, assinalar a sua lideran- ça diferenciadora.

Considerações finais (...) João Lourenço surpreendeu Nestes dois primeiros anos de governação do com uma lista de exonerações novo presidente de Angola, vemos linhas de con- em diversas áreas estratégicas tinuidade e de rutura em relação ao seu anteces- sor. Desde logo, assistimos a um presidente que, do Estado. tal como o anterior, procura montar um tabuleiro de forças a seu favor para governar e com preten- sões de deixar um legado distinto, mas claramen- Nesta sequência e por ocasião do 43º e 44º ani- te sem a conjuntura e o tempo que Dos Santos versário da independência de Angola, JL conde- teve para o fazer. Apesar da comunicação política corou também personalidades críticas do regime diferenciadora da do seu antecessor e de algumas dos Santos, com isto ganhando a simpatia e apoio políticas populares contra a Dinastia Dos Santos, de membros alienados do MPLA e da sociedade que permitiram a acumulação de algum capital civil.10 Mas o grande “quebrar do silêncio” refere- político entre os membros do seu partido, fora Notas 1 Texto entregue em Novembro de 2019. -se a um dos episódios mais violentos da história dele e a população, a imagem de JL tem vindo 2 Precedido de Teodoro Obiang, presidente da Guiné Equatorial do partido após a independência: o 27 de Maio a degradar-se. Atualmente, em que se percebem desde 1979. Refira-se ainda o caso de Omar Bongo, presidente de 1977, do qual resultou a detenção arbitrária, ventos de continuidade e o prometido «milagre do Gabão desde 1967 até 2009. 3 Claudia Generoso de Almeida e Benja Satula, «Only one man tortura e morte de um grande número de pessoas económico» ainda longínquo, a governação tem for two jobs: the leadership transition in Angola», Presidential supostamente associado ao grupo da “Revolta sido encarada com um misto de desencantamen- Power, 4 de Julho de 2018 (disponível em https:// presidential-power.net/?p=8324). Ativa” de Nito Alves, o qual procurou desafiar e to e de expectativa. O país continua mergulhado 4 Veja-se Christine Messiant, 2007, «The Mutation of Hegemonic até cessar a liderança de Agostinho Neto. Desde numa grave crise económica, a par de uma cres- Domination: Multiparty Politics without Democracy,» in logo, JL reconheceu o 27 de Maio como uma cente onda de protestos contra o desemprego, Angola, the Weight of History, London: Hurst ou Ricardo Soares de Oliveira, 2015, Magnífica e Miserável: Angola Desde ferida aberta e mostrou abertura do governo com uma população ciente que os privilegiados a Guerra Civil, Lisboa: Tinta da China para medidas de reparação às vítimas e suas fa- continuam os mesmos. n 5 «PR mexe nas chefias militares das FAA», ANGOP – Agência Angola Press, 16 de Maio de 2019. mílias, ao mesmo tempo que Francisco Queiroz, 6 Manuel Luamba, «“Não deixei os cofres do Estado vazios”, diz ministro da Justiça e dos Direitos Humanos, re- ex-Presidente angolano», DW, 21 de Novembro de 2018. conheceu os excessos cometidos e a violação de 7 Sérgio Dundão, «Dois anos de presidência de João Lourenço», Jornal Económico, 27 de Setembro de 2019. direitos humanos durante esse trágico evento. 8 João Lourenço já havia apoiado a trasladação dos restos mortais O revisitar do passado por parte do atual presi- do General Ben Ben da UNITA para a província do Bié, concedendo-lhe a título póstumo a Medalha do Mérito Militar dente, com isso procurando trazer de volta as durante o 43º aniversário da independência de Angola. consideradas persona non grata, é algo que o 9 Manuel Luamba, «Angola comemora 43 anos de independência próprio Dos Santos já havia feito, por ocasião das com “sinais de reconciliação”», DW, 11 de Novembro de 2018. 10 Entre os quais, os músicos Bonga e Waldemar Bastos. Veja-se primeiras eleições multipartidárias de 1992, com Manuel Luamba, «Angola comemora 43 anos de independência a chamada reunificação da grande família MPLA. com “sinais de reconciliação”», DW, 11 de Novembro de 2018. 11 Fonseca Bengui e João Dias, «Chefe de Estado condecora Esta política de inclusão tem abrangido também a figuras da sociedade civil», Jornal de Angola, 8 de Novembro sociedade civil, destacando-se o encontro em De- de 2019.

59 JANUS 2020-2021

1.26 • Conjuntura Internacional

CONTEXTOS GEOPOLÍTICOS DE MOÇAMBIQUE Fernando Jorge Cardoso ATÉ AO FIM DA GUERRA FRIA Texto entregue em Julho de 2020

A LUTA ARMADA DE LIBERTAÇÃO NACIONAL socialista da Frelimo; a terceira, em 1976, dada A Frelimo assumiu o poder num contexto de apa- e os primeiros 15 anos de independência em a nacionalização dos prédios de rendimento em rente avanço do campo socialista e de enfraqueci- Moçambique foram conduzidos pela Frelimo julho desse ano, que atingiu uma relevante fonte mento do capitalismo nos anos 70. São exemplos em contextos geopolíticos determinados pelo de rendimento das classes médias. Após o êxodo, significativos do ambiente que se vivia à época, conflito Leste – Oeste e numa região fortemente permaneceram no país cerca de 20 mil brancos, as vitórias das guerrilhas comunistas no Vietna- influenciada pelo regime do apartheid. parte dos quais adquiriu a nacionalidade moçam- me, Laos e Camboja em 1975, as independências bicana. Uma medida do impacto deste êxodo so- das demais colónias portuguesas no mesmo ano, Da independência bre a administração pública e a economia pode a vitória dos Sandinistas na Nicarágua em 1979 O fraco apoio político e económico e nulo em ser inferida pelo número de alunos matriculados e, por último, em dezembro desse ano e com termos militares dos governos ocidentais à luta na Universidade: de 3.500 (dos quais 40 negros) efeitos diretos em Moçambique, a assinatura do de libertação nacional em Moçambique deveu-se em 1974, para menos de mil em 1976. Acordo de Lancaster House, que levou à inde- a quatro fatores principais: um, a existência do pendência do Zimbabué em Abril de 1980. Conflito Leste – Oeste e o facto de Portugal ser Em paralelo e com influência nas alianças polí- membro da OTAN; dois, a relação política privile- ticas da Frelimo, de 1974 a 1976 deu-se a maior giada do movimento com os países socialistas ex- O número de portugueses crise estrutural do capitalismo desde 1929-1933, pressa em apoio militar, logístico e em formação; que ocasionou leituras erróneas que apontavam três, a importância estratégica da rota do Cabo, brancos em Moçambique era para uma falência próxima do sistema. Na verda- principalmente de 1967 a 1975, quando o canal estimado em cerca de 200 mil de, a crise induziu inovações tecnológicas que de Suez foi encerrado na sequência da guerra antes da revolução de abril em pouparam energia – novos motores e ligas mais dos 6 dias – o que ajuda a compreender também Portugal. leves – e que revolucionaram as comunicações alguma tibieza das medidas ocidentais contra o – fibras óticas. Feitas com fortes subsídios gover- regime do apartheid; quatro, a opção socialista, namentais, o surto de inovações acabou por re- que está presente desde a fundação e é reafirma- forçar o capitalismo, que aumentou as vantagens da em 1968, em Congresso liderado pelo primei- O êxodo da população branca não é somente ex- económicas competitivas que já detinha sobre o ro presidente da Frelimo, Eduardo Mondlane, e plicável pelo medo da mudança ou pela orientação campo socialista. reforçada por Samora Machel desde que assume socialista da Frelimo. Parte dessa população saiu Foi neste contexto que a Frelimo se transformou a presidência em maio de 1970. também por não querer viver num país governado em partido comunista em 1977, apostando na fa- Na primeira metade dos anos 70, três aconteci- por negros – não foi por acaso que um número lência do capitalismo e no aumento do apoio dos mentos internacionais influenciaram o rumo dos significativo dos que saíram se radicou no país do países socialistas, expectativas que não se iriam acontecimentos em Moçambique: em 1972, o apartheid. Na verdade, o modo de vida da popula- confirmar. Em 1978, a África do Sul deixou de princípio do fim da guerra do Vietname, com o ção branca, que povoou o país somente no século vender ouro ao país a preços fixos – num valor início das negociações de paz de Paris, na sequên- XX, foi influenciado pela vizinhança dos regimes igual a metade dos salários pagos aos mineiros no cia da abertura de relações entre os EUA e a China; racistas da África do Sul e da Rodésia do Sul. Este fim dos contratos sazonais – e, em 1979, adotou em 1973, a subida dos preços do petróleo, que ca- êxodo fez sair do país a grande maioria de proprie- uma “Estratégia Total” contra Moçambique, cara- talisou a crise estrutural do capitalismo de 1974- tários, gestores e trabalhadores qualificados e levou terizada por ações de desestabilização a todos os 1976; em 1974, a revolução de abril em Portugal, o governo a ter que assumir as empresas abandona- níveis, direta e indiretamente. Entre o Acordo de que levou, em setembro desse ano, aos Acordos das, nomeando comissões administrativas1. Lancaster House, dezembro de 1979, à indepen- de Lusaca e à formação de um Governo de Transi- dência do Zimbabué, abril de 1980, a África do ção conducente à independência e à transferência E dos Acordos de Lancaster House Sul acolheu o MNR, transformando-o em força de poder para a Frelimo em junho de 1975. A Frelimo aplicou as sanções decretadas contra de desestabilização2. Desde então, o MNR trans- O número de portugueses brancos em Moçam- a Rodésia do Sul após a independência de 1965 mutou-se na Renamo que, até final dos anos 80, bique era estimado em cerca de 200 mil antes da e albergou e apoiou a ZANU de Robert Mugabe a operou sob tutela do regime do apartheid. revolução de abril em Portugal. De 1974 a 1976, partir de 1976. Estas decisões conduziram a guerras Neste período, apesar da radicalização do regime, 80% saiu do país em três vagas: a primeira, em fronteiriças entre os dois países de 1976 a 1979 e à a política externa do país foi de abertura, com a 1974, na sequência dos Acordos de Lusaca e do contrainformação e contraguerrilha protagonizadas busca de apoios económicos diversificados, ace- medo causado por eventuais consequências da por portugueses e moçambicanos que pertenciam a lerada pela dificuldade de os países socialistas revolta gorada de segmentos da população bran- tropas especiais e a forças paramilitares (os Flechas). fornecerem tecnologias e meios de produção ca de 7 a 11 de setembro e das reações popula- Estas operações, dirigidas pelos serviços secretos ro- adequados. O apoio ocidental aumentou também res violentas a disparos de comandos em 21 de desianos, incluíram a criação da rádio Moçambique por Moçambique ser a rota alternativa de acesso outubro; a segunda, em 1975, a partir da inde- Livre e de uma força militar de contraguerrilha, o ao mar para os vizinhos. A criação dos Países da pendência, em resultado do clarificar da natureza MNR (Movimento Nacional de Resistência). Linha da Frente, em 1976 – Angola, Moçambique,

LINHA DE TEMPO DE ACONTECIMENTOS 1974 1975 1976 1977 1978 1979 1980 1981 Revolução de abril em Independência Independência Aplicação das sanções Transformação da Acordo de Lancaster Independência do Guerra de Portugal, fim da luta de Moçambique de Moçambique à Rodésia do Sul, Frelimo em partido House, aliança tática Zimbabwe, génese desestabilização, armada de libertação criação do MNR marxista-leninista, entre Samora Machel da Renamo sob paralisação nacional radicalização e Margaret Thatcher tutela do regime progressiva das do regime do apartheid principais vias de comunicação

60 O desenvolvimento de Moçambique até ao término da guerra fria foi fortemente influenciado pelo Confli- TANZÂNIA to Leste – Oeste, pela vizinhança do regime do apartheid e, até final dos anos 1970, pela do regime racista

MALAWI sul-rodesiano. Foi igualmente determinado pela opção ideológica da Frelimo, que liderou a luta armada de libertação nacional contra o regime colonial português, apoiada pelos países socialistas, pelos países MOÇAMBIQUE escandinavos, pelo Grupo dos 77 e por movimentos de esquerda em vários países ocidentais. ZÂMBIA A evolução interna é melhor compreendida quando enquadrada nos respetivos contextos geopolíticos, sem o que a compreensão do desenvolvimento e das opções políticas fica comprometida. Um dos elemen- tos mais interessantes da história do país até final da guerra fria foi o reconhecimento generalizado, incluin- do de adversários e inimigos políticos, da natureza competente e não corrupta do poder no consulado de

ZIMBABUÉ Samora Machel, apesar das limitações às liberdades políticas e dos erros de governação, principalmente a concentração forçada de camponeses em aldeias comunais e a expulsão de desempregados das cidades.

BOTSUANA 1980 com fins militares. Outra, a “Operação Pro- Samora Machel, com o Programa de Ajustamento dução” de 1983, com a expulsão de “marginais” e Económico (PAE) 1984-1986 e com medidas de Maputo • desempregados das cidades para o campo, maio- desvalorização da moeda, que abriram caminho SUAZILÂNDIA AFRICA ritariamente para o Niassa. Ambas as políticas a negociações para a reestruturação e o perdão DO SUL levaram à diminuição da produção camponesa, parcial da dívida externa. LESOTO a desastres humanitários localizados e a ressenti- Com Joaquim Chissano, a construção do socialis- mentos anti Frelimo, capitalizados pela Renamo. mo foi descartada definitivamente. Foi neste perío- Terceiro, a deterioração económica na URSS e no do que se liberalizou a economia e se produziu um leste europeu, que ajuda a explicar o veto que foi outro tipo de êxodo interno, desta vez de quadros dado à entrada de Moçambique no CAME (Conse- políticos e militares e de gestores e trabalhadores lho de Ajuda Mútua Económica) em 1982 – mo- especializados do setor público para o privado – MAPA DE MOÇAMBIQUE E PAÍSES VIZINHOS tivado pela deterioração económica no campo que acelerou a fragilização do Estado e a perda socialista europeu e não por razões de cariz ideo- de competências da administração pública. Até ao Botsuana, Zâmbia e Tanzânia, que levou à forma- lógico. fim da década, a Frelimo assumiu progressivamen- ção, em Abril de 1980, da SADCC, Conferência te o modelo de ajustamento estrutural típico do de Coordenação do Desenvolvimento da África “Consenso de Washington” – mais desvalorizações Austral, à qual se juntaram o Zimbabué, o Leso- monetárias, maiores cortes orçamentais e no in- to e a Suazilândia, foi essencial para esse apoio. Até ao fim da década, vestimento público, políticas monetárias e fiscais Moçambique recolheu apoio do ocidente também de redução da procura, venda de bens públicos, a Frelimo assumiu pela perceção generalizada nos moçambicanos, diminuição do peso do setor estatal. Como coro- no corpo diplomático, empresários estrangeiros e progressivamente lário, criaram-se grupos clientelares dependentes cooperantes, da natureza não corrupta do regime. o modelo de ajustamento de concessões e contratos públicos e instalou-se a estrutural típico do lógica de comissões e de associação de nacionais Até final da década de 1980 (influentes) a investidores privados. Foi a partir “Consenso de Washington. À entrada dos anos 1980, com a independência deste período que proliferaram ONGDs, que cana- do Zimbabwe, a liderança da Frelimo anunciou lizaram a ajuda externa, marginalizando o Estado o lançamento de um ambicioso programa de e substituindo as suas funções. Foi também neste modernização do país, o PPI (Plano Prospetivo A conjunção destes fatores levou a Frelimo a re- período que, sob a presidência de Joaquim Chis- Indicativo), que ambicionava erradicar o subde- ver estratégias e a iniciar um processo de aber- sano, se iniciaram contactos com a Renamo e se senvolvimento. O plano mal saiu das intenções, tura a Ocidente ainda no consulado de Samora assinou o Acordo de Paz de Roma de 1992, pondo sendo a sua implementação travada pela conju- Machel. Tal é exemplificado pela adesão ao Banco assim fim a 16 anos de desestabilização e guerra gação de três fatores. Mundial e ao FMI em setembro de 1984, ao Acor- civil – já após o fim do conflito Leste – Oeste, da Primeiro, a concretização da Estratégia Total sul- do de Lomé III em dezembro desse mesmo ano libertação de Nelson Mandela e do início da transi- -africana, com o paralisar de vias de transportes e pelo encontro de Samora Machel com Ronald ção política na África do Sul.3 n e comunicações e a sabotagem da produção Reagan na Casa Branca em setembro de 1985, agrícola – através da ação da Renamo, ao tempo que levou à melhoria das relações com os EUA e à batizada de “bandidos armados”. Este facto levou saída de Moçambique da “lista negra” de grupos Notas à assinatura do Acordo do Incomáti em março de considerados terroristas ou comunistas. 1 Até final da guerra fria o governo só concretizou três nacionalizações, todas entre 1975 e 1976: dos prédios 1984, com o compromisso entre Moçambique e a A morte de Samora Machel em outubro de 1986 de rendimento, da Carbomoc (carvão de Moatize) África do Sul de por fim a apoios à Renamo e ao encerrou definitivamente o capítulo da cons- e da Petromoc (refinaria de petróleo). O setor estatal aumentou assim fortemente com a nomeação de Comissões ANC, respetivamente – Maputo cumpriu, Pretória trução do socialismo em Moçambique, encerra- Administrativas para empresas abandonadas ou falidas. não, tendo a desestabilização prosseguido e evo- mento esse que, na verdade, já havia sido por 2 Evento mencionado em Serving Secretly por Ken Flower, luído, com o tempo, para uma guerra civil. ele iniciado. Na realidade, o primeiro exemplo então chefe dos serviços secretos rodesianos. 3 Existem bastantes fontes, incluindo teses de mestrado Segundo, os efeitos de duas políticas desastrosas. de programa de ajustamento estrutural, bati- e de doutoramento, que abarcam o período tratado neste Uma, a concentração da população rural em “al- zado de Programa de Reabilitação Económica, artigo. O autor decidiu não as mencionar, não só para evitar esquecimentos injustos, mas também porque foi testemunha deias comunais”, iniciada no pós-independência aprovado no consulado de Joaquim Chissano em privilegiada em Moçambique de grande parte dos com fins económicos e sociais, reforçada nos anos 1987, foi começado a preparar no governo de acontecimentos narrados.

1982 1983 1984 1985 1986 1987 1988 1989 Veto à entrada de Congresso da Frelimo, Acordo de Incomáti, Normalização das Morte de Samora Início do consulado Começo de Fim da guerra fria, Moçambique no CAME começo da inflexão adesão ao FMI, relações com os EUA, Machel de Joaquim Chissano, contactos indiretos Renamo autonomiza-se do modelo de ao Banco Mundial encontro Samora aceleração da Frelimo-Renamo com o anúncio do fim desenvolvimento e à Convenção Machel e Ronald abertura económica com ajuda da do apartheid de Lomé Reagan igreja católica

61 JANUS 2020-2021

1.27 • Conjuntura Internacional

Clara Carvalho GUINÉ-BISSAU: O NOVO GOVERNO Texto entregue em Outubro de 2019

O NOVO GOVERNO DA GUINÉ BISSAU (GB), só foi reposta com as duplas eleições de maio de fazem-se sentir em termos políticos e militares, saído das eleições de 10 de março de 2019, foi 2014, sendo eleito presidente José Mário Vaz e conduzindo a mudanças de governo, mas o nível anunciado apenas na noite de 3 de julho desse tendo o PAIGC confirmado a sua liderança com de conflitualidade no interior do país permane- ano. As redes sociais explodiram, contabilizando 48% dos votos expressos e 57 dos 102 assentos ce baixo. Esta instabilidade contínua conduz, no e escrutinando os perfis dos novos governantes: parlamentares. Foi iniciado um processo de ne- entanto, à quase impossibilidade de implemen- 11 mulheres, das quais 8 ministras e 3 secretá- gociação que garantiu o apoio da UE a uma refor- tar as agendas governativas, permanentemente rias de estado; 4 jovens com menos de 40 anos; 4 ma estrutural do setor económico no país, a qual ameaçadas. Por outro lado, a conflitualidade sociólogos, incluindo o primeiro ministro. Num nunca chegou a ser implementada devido à crise latente é o foco principal das agendas dos par- governo com 16 ministérios e 15 Secretarias de política de 2015. Com efeito, o clima de instabi- ceiros internacionais, em particular das organi- estado, estes números são significativos dos múl- lidade manteve-se, sobretudo devido ao conflito zações internacionais que lideram as iniciativas tiplos esforços e pressões realizados tanto pelos latente entre o presidente José Mário Vaz e o líder de construção da paz no país. Deve-se notar que, partidos tradicionais como pela comunidade do PAIGC e primeiro-ministro, Domingos Simões embora o país seja considerado de conflito mode- internacional para se chegar finalmente a um Pereira, à demissão deste pelo primeiro, e à atua- rado, ele faz parte do “sistema de conflitos do Se- acordo tanto com o presidente da república, José ção do chamado “grupo dos 15”, um conjunto de negâmbia”, onde se incluem a Gâmbia e a região Mário Vaz, como com a Assembleia Nacional Po- deputados dissidentes expulsos do PAIGC que o de Casamança, no Senegal. Os conflitos em cada pular. Este anúncio foi realizado depois de quase fizeram perder a maioria absoluta no parlamento. uma dessas regiões ou países fluem rapidamente quatro meses de negociações, numerosa pressão A instabilidade política que se seguiu conduziu para territórios vizinhos, particularmente entre a da sociedade civil, dos partidos tradicionais e da à intervenção das agências internacionais, com região da Casamança e a Guiné-Bissau. Do ponto comunidade internacional, com particular inci- particular relevo para a CEDEAO. No período que de vista dos atores internacionais, particularmen- dência na CEDEAO, inquietos com a continuação mediou entre as eleições legislativas de 2014 e de te da CEDEAO, é necessário buscar soluções de da sempre latente crise política que parece endé- 2019, o presidente nomeou seis chefes de gover- construção e manutenção da paz de forma a ga- mica neste pequeno país. no: Domingos Simões Pereira, Bacilo Djá, Uma- rantir a segurança em toda a região. As iniciativas Neste artigo procuro demonstrar que este gover- ro Cissoko, Carlos Correia, Artur Silva (que não de construção da paz na Guiné-Bissau são uma no representa, em primeiro lugar, a expressão conseguiu formar governo) e, na sequência dos prioridade para a comunidade internacional que da força de uma sociedade civil ativa e em cres- acordos de Conacry (ver infra), Aristides Gomes. apoia a reforma do setor de segurança, a revisão cimento na Guiné-Bissau, com particular relevo Esta turbulência teve repercussões negativas jun- do sistema jurídico e a integração da justiça res- na capital, sempre apoiada pelas organizações to da população e da comunidade internacional, taurativa e as redes de alerta precoce. internacionais. Depois, que os seus principais e conduziu a uma constante mudança das estru- A CEDEAO está presente no país desde o golpe objetivos são o de transmitir uma ideia interna turas governativas, dificultando a implementação de 1998. A sua atividade foi fundamental após o e externa de estabilidade e coesão e assegurar a de ações de intervenção. golpe de 2012, tendo proporcionado a mediação realização das eleições presidenciais que fecham do acordo entre as partes para a realização do o ciclo da normalização democrática no país. duplo processo eleitoral de 2014. A CEDEAO é responsável pela reforma do sector militar, que A Guiné Bissau e a instabilidade Este governo representa (...) conduziu eficazmente através da ECOWAS Mis- permanente: crises desde 2012 a expressão da força sion in Guinea-Bissau, ECOMIB, a qual mantém A Guiné-Bissau é um país da África Ocidental, de uma sociedade civil uma presença militar no país e garante o apoio e membro da União Africana (UA), da Comunida- ativa e em crescimento proteção das instituições do estado. Esta reforma de Económica dos Estados da África Ocidental é tanto mais louvável quanto os esforços anterio- (CEDEAO), da Comunidade dos Países de Língua na Guiné-Bissau. res não só redundaram em fracassos como cria- Portuguesa (CPLP) e da Organização Internacio- ram crispações com as chefias militares. O caso nal da Francofonia (OIF). Embora a língua oficial mais flagrante foi a implementação da Missão Mi- seja o português, só uma minoria da população A realização de um novo ciclo eleitoral em 2019 litar de Angola na Guiné-Bissau (MISSANG), ativa domina esta língua. A maioria fala crioulo, lín- e a constituição do novo governo ficaram-se a no país entre Março de 2011 e Junho de 2012 ao gua que desde a guerra nacionalista se divulgou dever, em grande medida, à pressão da socieda- abrigo de um acordo político-militar de coope- como meio de comunicação preferencial, e lín- de civil e ao esforço conjunto das organizações ração técnica, reforma das forças armadas e po- guas locais de base oeste-africana. É um Estado internacionais, cuja visão de peacebuilding e liciais, e reforço das suas infraestruturas. Após a independente desde 1973 (reconhecido por Por- statebuilding suportam o fortalecimento das crise política de 2015 o papel da CEDEAO foi fun- tugal em 1974), sistematicamente marcado por organizações de base e o surgimento de novas damental, atuando como intermediária entre as convulsões políticas e militares. Desde o golpe de plataformas. Porquê e como são as questões que partes, conduzindo a um acordo assinado entre Estado de 1998 e dos conflitos que se seguiram, o procuramos esclarecer. os representantes das principais forças políticas, país foi palco de diversos atentados, assinalando- a Assembleia Nacional, organizações religiosas e -se os assassinatos de Tagme Na Waie, Chefe do A preparação da normalização da sociedade civil. O Roteiro de Seis Pontos e o Estado-Maior das Forças Armadas, e do presiden- democrática através do apoio consequente Acordo de Conacri, de setembro e te Nino Vieira, em 1 e 2 de março de 2009 respe- à sociedade civil. outubro de 2016 respetivamente, estabeleceram tivamente, e os golpes militares de abril de 2010 Apesar da Guiné-Bissau ser caracterizada pela sua os principais passos que levaram à constituição e abril de 2012, tendo este último conduzido à contínua instabilidade política, desde 1998 que de um governo de compromisso com o objetivo deposição do primeiro-ministro Carlos Gomes os seus efeitos nunca conduziram a um conflito de atingir o próximo ciclo eleitoral, inicialmente Júnior, e originado diversas sanções por parte co- que se alastrasse ao nível nacional. Os efeitos des- previsto para 2018 e posteriormente adiado para munidade internacional. A ordem constitucional tes conflitos, incluindo o golpe militar de 2012, 2019. Além destas ações, a CEDEAO incentivou

62 COMPOSIÇÃO DO NOVO GOVERNO Os elevados índices de participação nos atos elei- papel preponderante na gestão de conflitos e DA GUINÉ-BISSAU, JULHO DE 2019 torais (84,7% nas eleições legislativas) são outro na pressão sobre os entraves presidencial e par- PAIGC 10 ministérios e 10 secretarias de estado indicador da vontade e confiança da população lamentar à nomeação do novo governo. Este APU-PDGB 3 ministérios 2 secretarias de estado no processo de representação democrática. executivo representa igualmente os esforços con- UM 2 secretarias de estado juntos das organizações da sociedade civil e dos PND 1 ministério Quem é quem no novo governo parceiros internacionais para empoderar grupos PUN 1 ministério O novo governo é constituído por 16 ministérios de base no sentido de ter uma sociedade civil for- MP 1 ministério e 15 secretarias de estado, sendo as diferentes te e atuante. As agências internacionais têm vindo PCD 1 secretaria de estado pastas partilhadas entre o PAIGC e diversos pe- a apostar nas organizações da sociedade civil e, quenos partidos. A sua composição é reveladora muito em particular, na afirmação de mulheres a criação de redes de mediação, de formação e da preocupação do chefe de governo (e do parti- e jovens, estes últimos entendidos na definição de alerta precoce, através da REMPSECAO, e das do vencedor) em conseguir equilíbrios políticos lata da União Africana que considera jovem toda redes locais da West Africa Network for Peace- e alianças que lhe permitam governar de forma a faixa etária até aos quarenta anos. Como vi- building, WANEP, e da Women in Peacebuiding estável. Não tendo conseguido alcançar a maioria mos, estes esforços sucederam-se a vários níveis Network, WIPNET. absoluta, o PAIGC procurou ampliar o seu leque depois de 2012 e acentuaram-se perante a crise Desde 1999, na sequência do golpe de 1998, as de apoiantes distribuindo pastas pelos partidos institucional de 2015. Nações Unidas mantêm no país um Gabinete de com quais celebrou um acordo de incidência O novo governo tem pela frente múltiplos de- Construção da Paz da ONU para a Guiné-Bissau parlamentar que lhe permite obter a maioria no safios e um orçamento reduzido para lhes fazer (UNOGBIS), liderado por um Representante parlamento. Estes partidos (Assembleia do Povo face. O primeiro destes reptos é garantir que Especial do Secretário Geral da ONU. Em 2007, Unido – Partido Democrático da Guiné-Bissau, as eleições presidenciais se realizam no tempo a delegação passou a “escritório integrado” e APU-PDGB, o quarto mais votado com 5 deputa- previsto, sob o olhar atento da comunidade in- foi renomeada UNIOGBIS. O seu principal ob- dos, União para Mudança, UM com 1 deputado, ternacional, em particular a CEDEAO e a União jetivo é a construção da paz na Guiné-Bissau, e Partido da Nova Democracia com 1 deputado) Africana. A situação do governo está dependen- tendo trabalhado em conjunto com a Comissão vêm agora esse acordo largamente refletido na te da eleição do futuro presidente da república, de Construção da Paz (UN PBC) e o Fundo de distribuição das pastas governativas, sendo acres- para a qual o candidato melhor posicionado é Consolidação da Paz (PBF). As atividades da centados por novas formações. No novo governo o atual presidente do PAIGC, Domingos Simões UNIOGBIS centram-se no empoderamento da o PAIGC detém 10 ministérios e 10 secretarias de Pereira. Até lá, deve assegurar o normal funcio- sociedade civil, nomeadamente através do apoio estado; a APU APU-PDGB 3 ministérios 2 secre- namento das instituições num país habituado a à constituição de redes, tais como: a rede de asso- tarias de estado; a UM 2 secretarias de estado; greves sucessivas de professores, que não dispõe ciações de jovens (RENAJ); a rede de defensores o PND 1 ministério; o PUN 1 ministério; o MP 1 de um serviço de saúde universal e que procu- dos direitos humanos; a plataforma política das ministério e o PCD 1 secretaria de estado. Esta re- ra instituir serviços jurídicos acessíveis. A médio mulheres (PPM), o grupo das mulheres facilitado- partição é essencial para assegurar o apoio parla- prazo procurará implementar o ambicioso plano ras do diálogo e a rede de mulheres mediadoras mentar, e garantir que estes mesmos partidos não de reconstrução económica apresentado em Bru- (REMUME). O programa PBF estende-se ainda ao procuram outras formas de expressão. Neste jogo xelas em 2015 e depois adiado pelos sucessivos apoio à reforma do sector judicial e ao suporte de equilíbrios o PAIGC tem ainda de contentar os conflitos políticos, Terra Ranka. Na Guiné-Bissau da literacia política dos atores políticos e da so- seus políticos mais experientes e complementar impõem-se numerosas medidas e reformas que ciedade civil. com figuras inovadoras. Estes últimos represen- só um governo estável poderá assegurar. Em pri- Em 2013, os principais atores internacionais, tam o rejuvenescimento de um partido que 46 meiro lugar, o governo terá de procurar manter a respondendo à chamada do Secretário-Geral da anos no poder de forma quase ininterrupta des- sua aceitação e apoio popular, num país pequeno ONU, criaram uma plataforma de coordenação gastaram interna e externamente. e habituado à permanente intriga política entre e entendimento, o P5, que inclui, além da CE- os vários grupos de influência. Depois, terá de DEAO, a UNIOGBIS, a CPLP, a UE e a UA, esta defrontar o problema da segurança das suas última como coordenadora. Embora não seja fronteiras demasiado permeáveis que continuam uma estrutura formal, a sua constituição demons- O novo governo tem pela apetecíveis para o narcotráfico, como o compro- tra a preocupação e consciência da necessidade frente múltiplos desafios vam o arresto, já este ano, de 800 quilogramas de de coordenação das instituições internacionais cocaína no dia das eleições, 10 de março, e de presentes no país. No conjunto destas organiza- e um orçamento reduzido quase de duas toneladas no início de setembro. ções os papéis desempenhados pela CPLP, pela para lhes fazer face. Procurando criar um estado sustentável, o gover- Comissão Europeia e pela União Africana são os no terá de avançar com a cadastração tanto de mais discretos. A Comissão Europeia surge como pessoas, como de bens comerciais e fundiários, o principal financiador das reformas lideradas essencial para a criação de um sistema de taxação pela CEDEAO, das atividades eleitorais e das or- que permita alguma autonomia ao estado. Num ganizações da sociedade civil. A União Africana, A imagem de um governo que integra um núme- país cujo principal recurso é a exportação de cas- bem como a CPLP, têm desempenhado um papel ro significativo de mulheres e de políticos mais tanha de caju, baseada nos pequenos produtores ativo na realização do processo eleitoral, onde jovens, com uma carreira feita nas áreas que vão e em unidades de base familiar, a cadastração dos operam como observadores. agora liderar e não na política tradicional, con- bens fundiários e aplicação da nova lei da terra Os resultados destas ações conjuntas são visíveis tribui grandemente para a sustentação deste exe- arrisca-se a ser um novo motivo de conflito. A no país, que conta atualmente com membros das cutivo. As novas ministras têm um perfil público manutenção da paz social e implementação de várias redes de solidariedade, gestão de confli- construído no ativismo cívico e em cargos institu- programas efetivos de solidariedade nacional, tos e alerta precoce em todas as comunidades. cionais. Os ministros e secretários de estado mais baseada num regime jurídico acessível, na efetiva As organizações da sociedade civil são presença jovens destacaram-se tanto no ativismo como em igualdade de género, no acesso universal à esco- constante nas manifestações de rua, nos media, cargos profissionais e diretivos independentes. laridade e à saúde, são ainda metas difíceis de na vigilância dos processos democráticos e eleito- O novo executivo responde assim à imagem dos alcançar. A permanência governativa é desejável rais. O Grupo das Organizações da Sociedade Ci- atores mais visíveis da mudança, nomeadamente para a implementação de programas económicos vil para as Eleições, GOSCE, é um dos melhores os jovens, que foram muito ativos na contestação e sociais a que o governo se propõe, mas não é exemplos desta atividade e vigia detalhadamente à inércia dos antigos executivos, e as mulheres, garantida num país onde todas as alianças se re- cada elemento e passo dos processos eleitorais. cujas associações têm vindo a desempenhar um velam frágeis. n

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1.28 • Conjuntura Internacional

MIGRAÇÃO PARA A EUROPA NA SEGUNDA DÉCADA DO SÉCULO XXI João Henriques E A PERCEPÇÃO DA POPULAÇÃO SOBRE A SUA SEGURANÇA Texto entregue em Setembro de 2019

Os trágicos atentados ocorridos a 11 de Setembro o que, frequentemente, resulta em conflitos de de resto, nos consecutivos relatórios produzidos de 2001, nos Estados Unidos, acabariam por dar natureza social, envolvendo os novos habitantes pelos Serviços de Inteligência dos países de aco- lugar a uma inevitável associação que, de resto, e as populações de acolhimento, que não escon- lhimento. não é nova, entre imigração e terrorismo, e que dem o seu mal-estar com esta reconfiguração das Todavia, e apesar de, através de diferentes estu- rapidamente se alastrou a todo o mundo e, em suas sociedades, chegando mesmo a acreditar dos, não estar demonstrado que os imigrantes particular, ao ocidental. Sobretudo, a partir des- que muitas vezes a figura do refugiado serve para vindos de países devastados pela guerra consti- se momento, a luta contra o terrorismo jihadista esconder propósitos bem hostis. A este propósi- tuam um potencial risco de terrorismo, é, igual- passou a ser a principal preocupação dos líderes to, e segundo uma projecção do Pew Research mente, verdade que há registo de um efectivo mundiais. Nesse sentido, foram muitos os países Center4, em 2050, a população muçulmana na aproveitamento do fenómeno, por parte das or- que passaram a adoptar ou a reforçar medidas de Europa triplicará, o que corresponderá a 14 por ganizações terroristas, por via da infiltração de controlo fronteiriço, na convicção de que estas cento do total da população do Continente, ante- agentes seus no território europeu6. De facto, contribuiriam, de modo decisivo, para uma efec- vendo-se, de acordo com os analistas, a instalação as migrações internacionais desde sempre cons- tiva prevenção do flagelo jihadista. de sérios problemas de natureza demográfica, tituíram um verdadeiro desafio à segurança dos O Jihadismo, e, muito em particular, o de natu- dos quais resultarão situações potenciadoras de Estados. Nesse sentido, a questão demográfica reza bélica – Jihadismo Islamista ou Terrorismo instabilidade e violência política, confirmando, ressurge como um dos problemas a justificar a Jihadista –, tem vindo, ao longo dos últimos de resto, algumas das tendências actualmente particular atenção dos líderes mundiais, e muito anos, a fustigar a mente e a ceifar vidas não só assinaladas. em particular, os da Europa, destino privilegia- no seio das populações ocidentais, como nas dos do por largas massas populacionais oriundas de próprios muçulmanos. O termo diz-nos que es- países de maioria muçulmana. A este propósito, tamos na presença de uma ideologia extremista, como anteriormente referido, o estudo do Pew que é inspirada nos textos alcorânicos e que, Os dados recolhidos ao longo Research Center7, antevê que, em 2050, a popula- segundo os seus seguidores, é o único cami- dos últimos anos, por muitos ção muçulmana, na Europa, triplicará. nho possível para esconjurar os males de que o Junto da população europeia, a entrada massiva especialistas (...) contrariam mundo contemporâneo padece, por via da “reis- de migrantes registada, sobretudo na sequência lamização de toda a sociedade”, com recurso à liminarmente a tese defendida dos longos e consecutivos conflitos sociais em doutrina salafista, que defende o “retorno às ori- por muitos sectores sobre países do Médio Oriente, em muito tem contri- gens e grandeza do Islão” e o “restabelecimento a relação entre migração buído para uma crescente percepção de inse- do Califado em todo o planeta”1. Estes são, pois, gurança, associada à ameaça económica e aos e terrorismo. os principais objectivos político-religiosos de seus valores culturais e identitários, o que tem todos os grupos e organizações promotoras do contribuído, decisivamente, para um sentimento terrorismo jihadista, tendo como destinatários os contrário à imigração, e que explica comporta- governos do mundo ocidental e todos aqueles mentos recorrentes e generalizados de natureza que são liderados por muçulmanos considera- Análise racista e xenófoba, em particular em países como dos “apóstatas, ímpios, corruptos e aliados do Para muitos especialistas, a globalização é descri- a Irlanda, a Hungria, a Suíça e a República Checa, Ocidente”. Esta versão não é, todavia, partilhada ta como um fenómeno emergente e continuado sempre na convicção de que a imigração funciona pela generalidade dos muçulmanos2, que são, da integração da economia a nível global, dentro como veículo transmissor de actividades terroris- ironicamente, as principais vítimas do jihadismo. do modelo económico capitalista, onde os princi- tas trazidas dos países de origem para os de aco- Considerando os enormes fluxos migratórios pais beneficiários são as nações mais ricas5. Uma lhimento. Muito provavelmente, a divulgação de com origem nos países da região MENA3, e os re- das consequências negativas da globalização, é a alguns estudos sobre o fenómeno das migrações, sultantes, sobretudo, da guerra civil, na Síria, que inevitável internacionalização do terrorismo jiha- onde é exaltada a ameaça que está subjacente à teve o seu início em 2011, como, também, outros dista e do crime organizado, onde o factor eco- chegada destas massas populacionais, terá clara- devidos a permanentes conflitos sociais e viola- nómico se mostra absolutamente determinante mente contribuído para a instalação desse mar- ção dos direitos humanos, vive-se, actualmente, para a prossecução dos seus objectivos. Ainda cado sentimento de oposição. Para Rodrigues8, a numa era a que muitos analistas já chamaram a associado ao fenómeno da globalização, encon- partir de uma análise atenta é possível estabelecer da “crise de refugiados”, considerando-a mesmo tramos um outro, o das migrações, que passou a uma relação entre imigração e uma séria ameaça a mais grave desde o fim da II Guerra Mundial, constituir um tema de relevante importância, em à segurança. Para a mesma autora, “o século XXI e que é reforçada por outro factor de inegável particular o que está relacionado com os enor- será o século das migrações, tornadas numa das importância, o das alterações climáticas. Este mo- mes fluxos de refugiados em direcção à Europa, principais fontes de preocupação, apresentando vimento populacional em massa reacendeu o fe- algo que se têm acentuado, sobretudo, após o como causa próxima o aumento dos clandestinos nómeno migratório, onde a Europa surge, tanto ano de 2011, com o início da guerra civil na Síria. e das ameaças transnacionais, mas que têm a sua por razões de proximidade geográfica, como de É, pois, possível observar que factos como o das origem efectiva no medo perante a hipótese de oportunidade para um futuro melhor, como um alterações climáticas ou o da fuga populacional mudança de referência identitária por parte das destino privilegiado. É, no entanto, prematuro de territórios em permanente estado de guerra, sociedades de acolhimento, mesmo que muito fazer uma previsão sobre o verdadeiro impacto em muito têm contribuído para o agravamento desse medo seja apenas sugerido e nunca efec- destes fluxos migratórios na vida das sociedades da situação. Por razões relacionadas com a se- tivado”. receptoras. gurança, estes deslocamentos populacionais em Outro importante factor que, desde há algum Nesse sentido, o continente europeu passou a massa passaram a dominar as atenções, sobretu- tempo, tem preocupado os líderes políticos eu- abrir portas a outros tipos de cultura, alguns do dos líderes europeus, pela associação logo fei- ropeus, está relacionado com a actual e futura bem contrários aos padrões de vida ocidental, ta ao terrorismo e ao crime organizado, apoiada, reconfiguração social do Continente, é o do gra-

64 dual envelhecimento da sua população, o que, sucessivos conflitos sociais. Seja por razões de inevitavelmente, vai pôr em causa a tão desejada natureza económica ou por motivações de índole sustentabilidade socioeconómica. Neste domí- social ou política, não é de crer que o fenóme- nio, há que reconhecer a contribuição dada com no migratório, em particular para o chamado a entrada de novos contingentes populacionais. mundo civilizado, conheça, a breve trecho, o seu É algo, de resto, admitido pelos diferentes líderes epílogo. Bem pelo contrário, as tendências resul- políticos europeus, aos quais, uma vez mais, são tantes do gradual envelhecimento da população colocados sérios desafios de integração social e ocidental, pondo em causa, de modo decisivo, a às questões securitárias a ela associadas, tanto consolidação económica das nações, são bem re- no curto como no longo prazo, considerando veladoras da continuidade e incremento dos re- o novo quadro criado pelas futuras gerações de cursos proporcionados pelas migrações. Os mais imigrantes nascidas, entretanto, nas sociedades recentes e representativos estudos revelam uma de acolhimento9. irreversível tendência de crescimento da popu- Com base em múltiplos factores, dos quais se lação muçulmana em todo o território europeu, destaca o notável incremento da população mu- em particular no seu espaço mais ocidental. Para çulmana, todos os indicadores revelam que, no analistas como Rodrigues13, as migrações inter- caso particular da Europa, o fenómeno do jiha- nacionais, sob o ponto de vista político, deverão dismo tende a uma inquietante consolidação, ali- ser entendidas como um desafio “que deve ser cerçada em novos meios de financiamento e de perspectivado, de forma direccionada, para três recrutamento para a causa jihadista. sectores específicos: o da imigração ilegal, o do Apesar de a sua esmagadora maioria dos muçul- tráfico de seres humanos e o da criminalidade e manos ser contrária a acções terroristas, o certo terrorismo”. Nesse sentido, cabe às autoridades é que uma parte assinalável dos jihadistas que a pesada tarefa de promover um amplo debate actuam em território europeu provém dessa mes- público, de modo a prevenir reacções de índole ma comunidade. Não será, pois, por acaso, que, xenófoba ou racista de que têm vindo a ser alvo Notas de acordo com a pesquisa realizada por Ramos, as populações que chegam ao território europeu 1 Estimativas não-oficiais apontam para 0,5 por cento o número Loureiro e Graça10, se verifica, junto da popula- em busca de protecção ou de uma vida melhor. A de muçulmanos comprometidos com alguma actividade ligada ção europeia, uma maior oposição à entrada de sociedade europeia caminha a passos largos para ao terrorismo jihadista. 2 De acordo com o WORLDATLAS, a comunidade muçulmana imigrantes muçulmanos, comparativamente à de uma nova realidade social. Aos líderes políticos forma o segundo maior grupo religioso em todo o mundo, imigrantes não-muçulmanos, como acontece em europeus é exigida a rápida adopção de medidas com cerca 1,8 mil milhões de aderentes. Disponível em: https://www.worldatlas.com/articles/countries-with-the-largest- países como Portugal, Polónia, República Checa, que acautelem as futuras gerações e onde o tra- muslim-populations.html [Consultado em 8 de Julho de 2019]. Hungria e Espanha. dicional modelo societário do Velho Continente 3 Médio Oriente e Norte de África. jamais seja posto em causa. n 4 PEW RESEARCH CENTER. Europe’s Growing Muslim Population. [Consultado em 1 de Agosto de 2019]. Disponível Conclusões em: http://www.pewforum.org/2017/11/29/europes-growing- A preocupação que os europeus têm sobre os muslim-population/. 5 OSTERHAMMEL, Jürgen; PETERSSON, Niels P. – Globalization riscos associados à entrada de imigrantes no seu – a short history. Princeton: Princeton University Press, 2005. território está amplamente generalizada, tendo 6 FORRESTER, Andrew C. [et al.] – Do Immigrants Import começado logo a partir dos violentos atentados Terrorism? Cato Institute [Em linha]. Working Paper número 56 (2019). [Consultado em 28 de Agosto de 2019]. Disponível de 11 de Setembro de 2001, nos Estados Unidos, em; https://www.cato.org/publications/working-paper/ e que se foi acentuando ao longo das duas pri- do-immigrants-import-terrorism 7 Op. Cit. meiras décadas deste novo milénio. Este crescen- 8 RODRIGUES, Teresa Ferreira – Dinâmicas Migratórias e Riscos te sentimento foi, mais recentemente, reforçado de Segurança em Portugal. Lisboa: IDN CADERNOS [Em linha]. pelos significativos movimentos populacionais Número 2 (2010), p. 26 [Consultado em 22 de Agosto de 2019]. Disponível em: https://www.idn.gov.pt/publicacoes/ provenientes de áreas devastadas pela guerra, cadernos/idncaderno_2.pdf. em particular da Síria e do Iraque. A reforçar o 9 WILNER, Alex; DUBOULOZ, Claire~Jehanne. Homegrown Terrorism and Transformative Learning: An Interdisciplinary sentimento de intranquilidade dos cidadãos eu- Approach to Understanding Radicalization. Global Change, ropeus, surgem as posições de alguns destacados Peace & Security [Em lionha]. 2010. [Consultado em 4 de líderes políticos, com a afirmação de que, com Setembro de 2019]. Disponível em: https://www.tandfonline. com/doi/full/10.1080/14781150903487956. a entrada destes novos contingentes populacio- 10 Op. Cit. nais, estarem a ser postos em causa os valores 11 RAMOS, Alice; LOUREIRO, Ana; GRAÇA, João – Migrações e refugiados – Atitudes e percepções dos europeus. Instituto da democracia e os modelos ocidentais, sem que de Ciências Sociais [Em linha]. 2016. [Consultado em 6 de se possa afirmar, contudo, que estes movimentos, Setembro de 2019]. Disponível em: https://repositorio.ul.pt/ só por si, sejam uma ameaça à segurança dos ci- handle/10451/26525 12 Op. Cit. dadãos europeus. Certo é que, para a generalida- 13 Op. Cit. de das sociedades de acolhimento, a entrada de largas massas de migrantes tem sido entendida Biliografia geral como uma séria ameaça à sua segurança11. No en- FERREIRA, Susana Raquel de Sousa – A política de imigração europeia : instrumento da luta antiterrorista? [Em linha]. tanto, os dados recolhidos ao longo dos últimos Lisboa: Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade anos, por muitos especialistas, com destaque Nova de Lisboa. Dissertação de Mestrado em Ciência Política para Forrester et al.12, contrariam liminarmen- e Relações Internacionais, 2010. Disponível em WWW:. GUILD, Elspeth . Security and migration in the 21st century. a relação entre migração e terrorismo. Todavia, Cambridge: Polity Press, 2009. esta realidade não tem impedido a instalação junto da população europeia de um sentimen- Documentação oficial consultada to crescente de insegurança consubstanciada na EUROPOL. Terrorism Situation and Trend Report 2019 (TE-SAT). Disponível em: https://www.europol.europa.eu/activities- entrada de largas massas populacionais oriundas services/main-reports/terrorism-situation-and-trend-report- de países muçulmanos e de zonas afectadas por 2019-te-sat

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1.29 • Conjuntura Internacional

MOVIMENTOS DE MULHERES NA PALESTINA E EM ISRAEL: Giulia Daniele PRÁTICAS, LUTAS E DESAFIOS INTERNOS Texto entregue em Setembro de 2019

AO ABORDAR A ANÁLISE DOS MOVIMENTOS das pelas mulheres tornaram-se na característica mais de 1980, a maioria das ativistas políticas israelitas mulheres palestinianas e israelitas é necessário, em influente da resistência não violenta na Cisjordânia têm vindo a compreender que a ocupação militar é primeiro lugar, salientar o contexto histórico, bem e na faixa de Gaza1. também uma questão feminista, o que levou a que como o contexto sociopolítico no qual as mulheres Ao longo da transformação interna palestiniana, a rigorosa ligação entre o feminismo e o pacifismo ativistas construíram a sua política. As mulheres pa- após a conferência de Madrid de 1991 e da fase acabasse por se tornar parte consciente dos seus lestinianas continuam a viver dentro de uma nação de abertura definida como o ‘processo de paz’ discursos internos5. apátrida, onde a luta liderada por um movimento israelo-palestiniano, as mulheres foram chamadas Para além de lidar com a disparidade interna israeli- de libertação nacional ocupou um lugar central para executar funções de liderança no que diz ta entre os judeus Ashkenazi, judeus Mizrahi6, cida- nas suas realidades quotidianas, em contraste com respeito às expressões políticas nacionais de uma dãos palestinianos de Israel e outras comunidades o nacionalismo institucionalizado e com o Estado- sociedade democrática e igualitária, mesmo que minoritárias, as organizações de mulheres israelitas -nação estabelecido (o Estado judeu), experien- essa proposta permaneça, maioritariamente, a um têm sido predominantemente compostas e orienta- ciado pelas mulheres israelitas. Nesse contexto, o nível teórico2. das por mulheres judias Ashkenazi, colocando em ativismo político das mulheres, quer nos territórios falta a representação dos chamados ‘outros’, ou, palestinianos ocupados quer em Israel, tem sido por outras palavras, a maioria dos judeus Mizrahi, cada vez mais influenciado e, na maioria dos casos, palestinianos, russos, beduínos, etíopes e migran- impedido de progredir devido aos principais obstá- O desejo de alcançar tes juntamente com trabalhadores estrangeiros. No culos associados à ocupação militar israelita. a dignidade humana entanto e recentemente, as mulheres das comu- Neste artigo, estabelecido a partir da minha disser- nidades mais desfavorecidas começaram a tomar tação de doutoramento e no livro dele resultante e a igualdade, foi reivindicado consciência das suas condições desprivilegiadas, ao intitulado Women, Reconciliation and the Israeli- por um número crescente chamar a atenção para as suas necessidades especí- -Palestinian Conflict: The Road Not Yet Taken de mulheres feministas de ficas e ao partilhar as suas experiências opressoras7. (Routledge, 2014), quero analisar a correlação ambos os lados Ao contextualizar as suas próprias lutas dentro da existente entre o paradigma do ativismo político sociedade israelita militarizada, bem como a noção das mulheres seculares na Palestina/Israel e teorias do ‘Outro’ dentro de Israel e relativamente às mu- feministas de construção de género, juntamente lheres ativistas palestinianas da Cisjordânia e da com a construção de paz num conflito cujo am- Consequentemente ao desaparecimento dos acor- faixa de Gaza, as mulheres ativistas israelitas não biente se caracteriza pela luta étnica, nacional, po- dos de Oslo e com o exacerbar da segunda Intifa- representam uma subjetividade unitária. lítica, social e de classes sociais. da em 2000, a relação entre a luta pela libertação nacional e a luta contra o patriarcado interno colo- Ativismo conjunto de mulheres Mulheres palestinianas e as suas lutas cou-se numa posição crítica, uma vez que a agenda israelitas e palestinianas: uma análise dentro de uma identidade nacional das mulheres se concentrou mais na resistência à crítica profundamente enraizada ocupação, acabando por adiar a agenda das ques- Na década de 1990, tanto em Israel como nos ter- Desde o momento da Nakba (a ‘Catástrofe’ pales- tões de género. A maioria das mulheres ativistas ritórios palestinianos ocupados, as organizações tiniana) em 1948 e a consequente perda das suas compreenderam que não foi suficiente ganhar, de mulheres decidiram assumir a defesa de polí- casas e desapropriação das suas terras, as mulhe- apenas, consciência dos seus direitos e que, em ticas alternativas e explorar, a partir de dentro, a res palestinianas mobilizaram todos os recursos de vez disso, precisam de progredir com mudanças complexidade das identidades e as suas diferenças forma a fornecer as necessidades básicas e a assis- estruturais coletivas. através de um processo que tem requerido um tência psicológica necessária à sobrevivência das ‘constante cuidado e reparo’. Aquilo que foi iden- suas famílias. Ao longo da criação da União Geral Identidades étnico-nacionais tificado em termos de uma ‘política transversal’, das Mulheres Palestinianas (UFMP), em 1965, heterogéneas entre mulheres fundada a partir de práticas de enraizamento e de como uma filial feminina dentro da Organização ativistas israelitas mudança8, emergiu como um antecedente indis- para a Libertação da Palestina (OLP), o apoio Desde o rescaldo da primeira guerra israelo-árabe, pensável no processo de interpretação de análises às mulheres, particularmente direcionado para a os papéis de género judeus israelitas, como mães teóricas de políticas quotidianas9. alfabetização, primeiros socorros e enfermagem, e titulares de crianças, começaram a ser apresenta- Com base nesses princípios, o Jerusalem Link, foram incluídos na campanha sumud (perseveran- dos como ‘mães de soldados’ e ‘mães da nação’3. que teve início em 1993, pode representar o re- ça) que marcou o ativismo político do movimento Através da Declaração da Independência (1948) sultado emblemático de tais iniciativas conjuntas, nacional crescente. e da Lei da igualdade de direitos para as mulhe- representando o que foi e qual é o atual estado A partir desse momento histórico, como em muitos res (1951), as mulheres israelitas foram levadas a do debate dentro dos projetos conjuntos israelo- outros países do mundo, as organizações políticas pensar que podiam adquirir direitos como o da -palestinianos, de forma, em primeiro lugar, a insti- das mulheres começaram a adotar o conceito do igualdade de oportunidades no novo cenário so- tucionalizar políticas partilhadas entre as mulheres feminismo, embora se tenham levantado questões ciopolítico, no entanto, estas duas leis nunca tive- de Jerusalém Ocidental e Oriental e, em segundo controversas sobre conteúdos e implicações rela- ram força constitucional. lugar, a lidar com crenças fundamentais comuns, cionadas com o seu significado num contexto tão Numa sociedade construída sobre o mito da mas- tais como o reconhecimento da autodeterminação específico. Durante os primeiros dias da primeira culinidade militarizada, tanto na esfera pública do povo palestiniano, o estabelecimento de um Es- Intifada, em dezembro de 1987, o movimento das como na privada, o caso de Israel provou ser um tado palestiniano independente ao lado de Israel, mulheres palestinianas atingiu um grande poten- caso excepcional no qual as mulheres ora são en- em conformidade com o direito internacional, e cial na luta nacional, unindo mulheres de todas corajadas a participar no sistema político, ora se finalmente, o tema mais controverso da partilha as idades e classes sociais. Na realidade trágica da defrontam com a realidade diária de uma socieda- de Jerusalém. Em detalhe, o lado israelita, repre- ocupação militar, as atividades diárias organizadas de patriarcal militarizada4. Desde o final da década sentado por Bat Shalom (Filhas da paz) e abran-

66 gendo cidadãs palestinianas de Israel, definiu-se (o ‘ocupante’). Iniciativas semelhantes têm gerado como uma organização feminista circunscrita no debates controversos dentro de Israel, onde a into- movimento pacifista israelita, enquanto que, do lerância e a violência direcionada a civis e ativistas lado palestiniano, as mulheres representadas por de direitos humanos têm aumentado cada vez mais. Markaz al-Quds la l-Nissah (Centro das Mulheres Por estas razões, é necessário ter em conta, cons- de Jerusalém), reivindicaram a conscientização tantemente, as condições estruturais que têm ca- política através de aspirações nacionais subjugadas racterizado o status quo nos territórios da Palestina/ pela ocupação militar externa. Israel, sem ignorar as causas históricas e políticas Apesar disso, o debate crítico feminista sobre e desse conflito. Mesmo que a maioria dos exemplos entre mulheres palestinianas e israelitas do Jeru- de ativismo político feminino não tenham sido ca- salem Link ocorreu ao longo de um quadro mar- pazes de conciliar, efetivamente, as suas posições ginalizado e discriminatório: dado que a assimetria teóricas com as suas ações, o valor das suas lutas entre o ‘ocupante’ e o ‘ocupado’ ainda persiste, o contra a ocupação militar israelita e, ainda, o con- projeto foi interrompido. Por um lado, as mulheres tributo para o avanço de paradigmas alternativos Notas palestinianas têm confiado na transformação polí- dentro das suas sociedades, é difícil de contestar. 1 Abdo, Nahla (1994) ‘Nationalism and : Palestinian Women and the Intifada – No Going Back?’, in Valentine tica da sociedade israelita, enquanto que as suas O incentivo de iniciativas de solidariedade, condu- M. Moghadam (ed.) Gender and National Identity, London: homólogas israelitas têm confiado na construção zido por mulheres ativistas que destacaram o seu Zed Books; Dajani, Souad (1994) ‘Between National and Social de pontes baseadas, mais, nas relações pessoais criticismo ao redor da questão das relações de po- Liberation: The Palestinian Women’s Movement in the Israeli Occupied West Bank and Gaza Strip’, in Tamar Mayer (ed.) entre as mulheres de ambos os lados. Ao fazer isto, der entre o ‘ocupante’ e o ‘ocupado’, simbolizou Women and the Israeli Occupation, London and New York: as mulheres israelitas judias têm salientado, de a tentativa de desenvolver uma confiança e uma Routledge; Jad, Islah (1999) ‘From Salons to the Popular Committees: Palestinian Women 1919-89’, in Ilan Pappé (ed.) forma consciente, a sua determinação em refletir cooperação verdadeira, ancorada à realidade no The Israel/Palestine Question: Rewriting Histories, London and sobre teorias feministas enquanto que, as mulhe- terreno. Em particular, a crítica feminista interna New York: Routledge; Peteet, Julie M. (1991) Gender in Crisis: res palestinianas raramente adotaram (apenas em tornou-se numa ferramenta fundamental para Women and the Palestinian Resistance Movement, New York: Columbia University Press. algumas ocasiões e só através dos seus principais reestruturar práticas políticas, bem como para a 2 Jad, Islah, Johnson, Penny and Giacaman, Rita (2000) ‘Transit representantes) uma atitude feminista tão vincada, abordagem útil, embora problemática, de perspe- Citizens: Gender and Citizenship under the Palestinian n Authority’, in Suad Joseph (ed.) Gender and Citizenship in the que também não tem vindo a ser incluída nos obje- tivas para um futuro justo na Palestina/Israel. Middle East, New York: Syracuse University Press; tivos políticos de apoiar a luta nacional10. Shalhoub-Kevorkian, Nadera (2009) Militarization and O potencial destas iniciativas conjuntas tem-se co- in Conflict Zones in the Middle East, Cambridge: Cambridge University Press. locado cada vez mais questionável, uma vez que 3 Berkovitch, Nitza (1997) ‘Motherhood as a National Mission: muitas delas, especialmente as israelitas, participa- The Construction of Womanhood in the Legal Discourse in Israel’, Women’s Studies International Forum, 20(5/6): ram no crescimento de relações mútuas fundadas 605–619; Bernstein, Deborah (ed.) (1992) Pioneers and sobre o consentimento oculto de condições assi- Homemakers: Jewish Women in Pre-State Israel, Albany, métricas. Para alguns, as mulheres ativistas, grupos NY: State University of New York Press. 4 Fuchs, Esther (ed.) (2005) Israeli Women’s Studies: A Reader, partilhados e atividades conjuntas ainda tentaram Piscataway, NJ: Rutgers University Press; Herzog, Hanna (1998) estabelecer sociedades ‘normalizadas’11, o que ‘Homefront and Battlefront: The Status of Jewish and Palestinian ’, Israel Studies, 3(1): 61–84. pode ser considerado um ato de consentimento 5 Golan, Galia (1997) ‘Militarization and Gender: The Israeli com a contínua ocupação militar e com o colapso Experience’, Women’s Studies International Forum, 20(5/6): de projetos conjuntos políticos. 581–586; Helman, Sara (2009) ‘Peace Movements in Israel’, Jewish Women: A Comprehensive Historical Encyclopaedia, http://jwa.org/encyclopedia. Conclusão 6 O panorama social judeu dentro de Israel é composto por duas categorias principais classificadas pelos: Judeus Ashkenazi, Após o outubro de 2000, o terreno político alte- população judia de origem europeia, americana e russa, rou-se e o progresso das associações conjuntas que corresponde a trinta e dois por cento da população femininas foi interrompido. Este declínio foi re- total de Israel e que simboliza a elite económica, política e social dominante; e pelos Mizrahim, a população judaica conhecido como um complexo fracasso político, com origem no Norte de África, Médio Oriente e Ásia, que incapaz de transformar diálogos em ações que po- representa quarenta e oito por cento do total da população israelita, mesmo que estejam à margem do poder. deriam vir a gerir a inclusão e a solidariedade entre 7 Dahan-Kalev, Henriette (2001) ‘Tensions in Israeli Feminism: as mulheres ativistas nas zonas de conflito e, ainda, The Mizrahi-Ashkenazi Rift’, Women’s Studies International a levar este progresso além da situação geral que Forum, 24: 1–16; Lavie, Smadar (2011) ‘Mizrahi Feminism and the Question of Palestine’, Journal of Middle East Women’s existe no interior das suas sociedades. No entanto, Studies, 7(2): 56–88; Lavie, Smadar (2014) Wrapped in the Flag nos últimos anos, o desejo de alcançar a dignida- of Israel, New York and Oxford: Berghahn Books. 8 Yuval-Davis, Nira (1999) ‘What is “Transversal Politics”?’, de humana e a igualdade, foi reivindicado por um Soundings, 12: 94–98. número crescente de mulheres feministas de am- 9 Pope, Juliet J. (1993) ‘The Emergence of a Joint Israeli- bos os lados, que expressaram um forte criticismo Palestinian Women’s Peace Movement’, in Haleh Afshar (ed.) Women in the Middle East: Perceptions, Realities em relação às suas próprias perspetivas nacionais and Struggles for Liberation, London: Macmillan; Pouzol, e para com a propagação de injustiças no seio de Valerie (2008) Clandestines del la Paix: Israéliennes et Palestiniennes Contre la Guerre, Paris: Complexe. minorias oprimidas. 10 Cockburn, Cynthia (2007) From Where We Stand: War, Em particular, de um lado, o papel político femini- Women’s Activism and Feminist Analysis, London: Zed Books; no palestiniano aumentou, tanto individualmente Jacoby, Tami A. (2005) Women in Zones of Conflict, Montreal: McGill-Queen’s University Press; Sharoni, Simona (2012) como coletivamente, na medida que tem demons- ‘Gender and Conflict Transformation in Israel/Palestine’, trado a sua capacidade, força e determinação de Journal of International Women’s Studies, 13(4): 113–128. 11 No meio académico, bem como nos movimentos populares, conquistar os seus objetivos e de motivar indiví- o conceito de ‘normalização’ tem sido amplamente discutido duos de diferentes contextos e pontos de vista (Salem, Walid (2007) ‘A Path to Peace’, in Mohamed A. Salam políticos a juntarem-se na luta não-violenta que de- et al., ‘What is Normalization?’, BitterLemons-International, 42(5). Mesmo que tenha sido empregue no idioma comum, corre, atualmente, em diversas aldeias palestinianas após o Tratado de paz israelo-egípcio em 1979, durante a na Cisjordânia. Do outro lado, várias israelitas femi- década de 1990, o conceito ganhou uma conotação negativa relativamente aos projetos de cooperação conjunta (os nistas e mulheres promotoras da paz, puseram em chamados ‘People-to-People Projects’) entre palestinianos causa os seus papéis como cidadãs do Estado judeu e israelitas judeus.

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1.30 • Conjuntura Internacional

PARA ALÉM DA “ECOLOGIA DO MEDO”: DIREITO INTERNACIONAL, Ana Margarida Esteves BENS COMUNS E ECONOMIA SOCIAL E SOLIDÁRIA Texto entregue em Setembro de 2019

“O Sono da Razão Produz Moralizar para controlar étnicas cujas práticas culinárias e higiénicas Monstros” (Goya) O discurso da “ecologia do medo” aproxima-se chocam com as destes setores “bem-pensantes”. O DISCURSO PREDOMINANTE SOBRE A CRI- perigosamente do veiculado pelo movimento Setores estes que facilmente irão deitar fora a SE climática contribui para a captura da esfera Lebensreform entre as duas guerras mundiais. sua máscara politicamente correta, se o agra- pública pelo que Slavoj Zizek chama “ecologia Ao focar-se numa interpretação moralista da vamento dos efeitos das alterações climáticas do medo”1. Movimentos como “Extinction Re- crise, desvia a atenção das estruturas de poder levarem a migrações em massa dos países mais bellion” e “Fridays for Future” fazem serviço e reprodução cultural, que promovem a pre- atingidos. Segundo Philip Alston, enviado para público ao chamar a atenção para as ameaças dação dos ecossistemas. Além disso, promove os direitos humanos da ONU, tais migrações po- à biodiversidade, incluindo à nossa espécie. No uma abordagem moralizante da crise climática dem levar a que os países menos atingidos de- entanto, o foco da sua ação tem sido mobilizar a que alimenta pulsões autoritárias. A sua ex- fendam o seu “bem-estar” através de barreiras à opinião pública através de manifestações e “per- pressão mais radical encontra-se em setores do imigração e medidas discriminatórias que levem formances” de elevada carga emocional, basea- movimento de permacultura e ecoaldeias, que a um “apartheid climático”8. Tal proposta está das em cenários de calamidade. vêm na Razão a causa primordial da “destrui- presente na visão apocalíptica de Steve Ban- Num artigo publicado a 5 de Setembro no jor- ção da Mãe Terra” e defendem como solução non e a sua proposta para um “renascimento nal “The Independent”, Zizek argumenta que o uma “redescoberta do sagrado”, baseada numa do Ocidente”.9Poderá entrar também, de forma foco num discurso sensacionalista, baseado em abordagem acrítica e nostálgica de mundivisões mais ou menos insidiosa, na agenda política da intervenções de figuras carismáticas e no uso pré-modernas que em muito se assemelha ao União Europeia, sobretudo tendo em conta que de imagens de alto impacto emocional mas de discurso da extrema-direita. Um dos exemplos o novo colégio de comissários europeus inclui validade duvidosa2, tem um efeito contraprodu- mais extremos é o “Anastasianismo”, movimen- um responsável pela “preservação do modo de cente. Além de alimentar os argumentos dos ne- to neo-rural inspirado por Vladimir Megre, em- vida europeu”. gacionistas das alterações climáticas, contribui presário russo e autor de The Ringing Cedars of A perspetiva de um “apartheid climático” não é para “uma desconfiança profunda em relação à Russia6, uma série de dez romances, o primeiro exclusiva do nosso tempo. Há séculos que faz mudança, ao desenvolvimento, ao progresso”, dos quais foi publicado em 1997, que inspirou parte da imaginação do Ocidente. Foi defendido exercendo uma função tradicionalmente atri- a criação de milhares de ecoaldeias cujo lema por escritores utópicos como Tommaso Campa- buída à religião organizada: Limitar a capacida- é “Família, Tradição e Ecologia”. Tais princípios nella, autor de Cidade do Sol10, e John Hum- de de imaginar futuros alternativos, em nome são sustentados por uma espiritualidade neo- phrey Noyes11, filósofo norte-americano que de uma catástrofe iminente. -pagã, baseada numa reconstrução de crenças fundou a comunidade de Oneida, no estado de O pintor Francisco de Goya é conhecido, entre religiosas pré-cristãs, e por uma orientação po- Nova Iorque. Ambos defenderam a exclusão de outras obras de arte, pela gravura intitulada lítica de carácter nacionalista que inclui o apoio “indivíduos indesejáveis” das suas comunidades “O Sono da Razão Produz Monstros”3. Esta incondicional a Vladimir Putin e seu governo7. sustentáveis, através de barreiras geográficas e pode ser interpretada como um aviso em re- socio-económicas, assim como a introdução de lação a dois fundamentalismos, igualmente medidas eugenistas, com vista à seleção de ca- destrutivos: racterísticas físicas e psicológicas que levassem – O da razão, que eleva considerações instru- Está a emergir (...) uma nova à emergência de um “tipo humano superior”, 12 mentais acima de todos os critérios morais ou cultura de distinção social, em harmonia com o meio ambiente . Tal abor- estéticos. Tal atitude está na base do modelo dagem higienista esteve na base das primeiras económico extractivista que levou à atual cri- na qual os sinais exteriores reservas de conservação ambiental nas colónias se climática; de riqueza se fundamentam britânicas em África13, assim como nos primei- – O da emoção, que leva ao que Rob Riemen no “consumo sustentável”(...) ros clubes ambientalistas dos EUA14. Estiveram chama a “sociedade do kitsch”4, onde o im- também na base dos tristemente célebres pro- pacto nos sentidos e na imaginação se torna gramas de limpeza étnica na Alemanha nazi15 e o princípio basilar da ação pública, em detri- de eugenia na Escandinávia, que os manteve até mento de uma análise racional, sistémica e Tal abordagem moralizante também está pre- aos anos 7016. historicamente contextualizada. sente em setores da classe média de países O romance “O Conto da Aia”, de Margaret Os regimes totalitários do século XX mostram industrializados que interpretam a sustenta- Atwood, ilustra como a “ecologia do medo” a fragilidade dos valores humanistas diante da bilidade ambiental como uma questão sobre- pode levar à morte da democracia: Para manter emergência da “sociedade do kitsch”, que ten- tudo de higiene, estética e “bem-estar”. Está o “status quo”, as classes dominantes não hesi- de a apontar as instituições democráticas como a emergir nestes setores uma nova cultura de tam em instaurar um regime totalitário que lhes responsáveis pela frustração das expectativas distinção social, na qual os sinais exteriores de garante prioridade no acesso a bens escassos, de “bem-estar”. Um exemplo é a forma como o riqueza se fundamentam no “consumo susten- neste caso úteros férteis e alimentação sadia. movimento Lebensreform (“Reforma da Vida”)5 tável”, nomeadamente de produtos orgânicos Num dos capítulos, figuras máximas do regime contribuiu para a emergência do nazismo entre e tecnologias não-poluentes cujos preços são mostram como uma hierarquia rígida permitiu as duas guerras mundiais. Este movimento con- ainda inacessíveis para as massas. Daqui para a redução de 78% do carbono atmosférico em siderava a sociedade industrial como promotora a recuperação do discurso do “pobrezinhos apenas três anos, assim como a transição para de “degeneração” física e moral do volk alemão mas limpinhos” – desde que os pobres sejam uma agricultura 100% orgânica. Isto acompa- e seu meio ambiente, defendendo a sua “rege- os “outros”, obviamente – é um passo de for- nhado de uma teocracia que eliminou direitos neração” através do “regresso à natureza” e a miga. Discurso esse que tende a apontar grupos laborais, e reduziu novamente as mulheres formas pré-modernas de organização económi- sociais inteiros como agentes patogénicos: Das a propriedade da família e do estado. A visão ca, social e política. “massas ignorantes e irresponsáveis” a minorias distópica de Atwood não é mera ficção: A emer-

68 gência da República de Gilead é uma síntese das vestigadores, ativistas, empreendedores sociais derivas autoritárias, motivadas por contextos de e gestores públicos para discutir estratégias de escassez, que devastaram o Ocidente durante o integração da transição para a sustentabilidade século XX. num projeto mais amplo de promoção da justi- As alterações climáticas colocam-nos perante ça social e do aprofundamento da democracia. uma nova crise de escassez, desta vez ainda Esta conferência, aberta ao público, é organi- mais radical por ameaçar a própria sobrevivên- zada pelo Centro de Estudos Internacionais cia da nossa espécie. Ultrapassar tal crise só será (CEI-IUL), com o apoio do Departamento de possível através de um modelo de governança Economia Política do ISCTE-IUL, do Centro que vá além do conceito de “desenvolvimento de Ecologia, Evolução e Mudanças Ambientais sustentável”. A escassez induzida pelas altera- (CE3C) da Faculdade de Ciências da Universi- ções climáticas exige que sejamos capazes de dade de Lisboa (CE3C) e a Incubadora de Eco- fazer mais com menos: Mais qualidade de vida nomia Solidária da Universidade Federal de com menos recursos materiais, substituindo o Alagoas (UFAL, Brasil). paradigma de crescimento económico, assen- te no extrativismo e acumulação de valor, por modelos circulares de produção, distribuição e consumo, baseados em sinergias entre os ciclos A perspetiva de um “apartheid naturais e a atividade humana. climático” (...) há séculos

Do medo à esperança: Convergir que faz parte da imaginação movimentos, mudar estruturas, do Ocidente. aprofundar a democracia Como fazer mais com menos sem novas derivas autoritárias? Segundo Christopher McMichael, tal só é possível através de um movimento A realização deste evento insere-se num pro- transnacional que torne claro à opinião pública pósito maior: Promover uma convergência entre que a crise climática é provocada pelas mesmas os movimentos de Economia Social e Solidária, estruturas de poder que têm levado a crescentes Bens Comuns e reconhecimento jurídico do desigualdades sociais.17 Embora o caldo cultu- Ecocídio, de forma a garantir que os “monstros” ral que sustenta a “ecologia do medo” coloque que a “ecologia do medo” (e o “sono da Razão” sérios limites à imaginação política e espaço de que esta induz) pode vir a despertar não terão manobra necessários para uma mudança estru- a última palavra no que diz respeito à transição tural, tais limites não são irreversíveis. Há espa- para a sustentabilidade. n ços no meio jurídico, no estado e na academia Notas 1 https://www.independent.co.uk/voices/amazon-fires-rainforest- onde estão a ser incubadas estratégias de tran- capitalism-bolsonaro-climate-crisis-zizek-a9091966.html sição para a sustentabilidade que neutralizam 2 O caso mais recente foi a de publicações sobre os incêndios deste ano na Amazónia, da parte de Emmanuel Macron, as atuais estruturas de poder e aprofundam a Leonardo di Caprio, Madonna e Cristiano Ronaldo, que democracia. Um deles é o movimento pelo re- incluíam fotos que não correspondiam aos mesmos ( https:// conhecimento do ecocídio como crime punível www.forbes.com/sites/michaelshellenberger/2019/08/26/ why-everything-they-say-about-the-amazon-including-that-its- pelo direito internacional, iniciado por Polly the-lungs-of-the-world-is-wrong/?fbclid=IwAR2D2vnNVfdmnhq Higgins, recentemente falecida, e atualmente xxOLcQZtyxjHKMeXn_ j8VUuy-iF8ZWxLsDmgRH8bMPZE ). 3 https://es.wikipedia.org/wiki/El_sueño_de_la_razón_ liderado por juristas de renome internacional produce_monstruos como Baltazar Garzón.18 Outro é movimento 4 https://www.carnegiecouncil.org/studio/multimedia/20180201- dos Bens Comuns, que inclui especialistas como to-fight-against-this-age-fascism-humanism-rob-riemen 5 https://en.wikipedia.org/wiki/Lebensreform Gael Giraud, economista-chefe na Agência Fran- 6 https://en.wikipedia.org/wiki/Ringing_Cedars%27_ cesa de Desenvolvimento. Giraud argumenta Anastasianism 7 https://www.theglobeandmail.com/news/world/the- que a transição para a sustentabilidade só é bewitching-lure-of-home-grown-cults/article957664/ possível através de um ordenamento jurídico 8 https://www.publico.pt/2019/06/25/mundo/noticia/ internacional que proteja os recursos naturais mundo-vias-enfrentar-apartheid-climatico-avisa-responsavel- onu-1877540 da privatização e promova a sua gestão como 9 https://www.newframe.com/long-read-apocalyptic- bens comuns, segundo o princípio da subsidia- opportunism-and-the-new-far-right/ 10 19 https://io9.gizmodo. riedade. O movimento de Economia Social e com/a-400-year-old-utopia-that-includes-polygamy-and- Solidária promove uma estratégia de transição eugeni-1564057350 para a sustentabilidade baseada na gestão co- 11 https://en.wikipedia.org/wiki/John_Humphrey_Noyes 12 https://io9.gizmodo. munitária dos recursos económicos, na reloca- com/a-400-year-old-utopia-that-includes-polygamy-and- lização das cadeia produtivas e na valorização eugeni-1564057350 ; https://en.wikipedia.org/wiki/Oneida_ stirpiculture dos territórios e da diversidade de saberes. Este 13 https://www.cambridge.org/core/journals/african-studies- movimento fundamenta-se numa “comunidade review/article/elephant-in-the-room-confronting-the-colonial- de prática” que envolve pequenos produtores, character-of-wildlife-conservation-in-africa/6A2F07AA3CDA9666 45AAC064C78122D9 gestores públicos e académicos e promove um 14 https://link.springer.com/article/10.1007/BF01866762 modelo de governança partilhada entre o esta- 15 https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/ S1085663399800023 do, o tecido produtivo e a sociedade civil. 16 https://www.theguardian.com/world/1999/mar/06/ A conferência internacional Economia Social e stephenbates Solidária e Movimento dos Bens Comuns, cuja 17 https://www.newframe.com/long-read-apocalyptic- opportunism-and-the-new-far-right/ segunda edição terá lugar nos próximos dias 6 18 https://www.youtube.com/watch?v=rUCTbY7_wkk a 8 de Novembro no ISCTE-IUL, irá reunir in- 19 https://reporterre.net/spip.php?page=memeauteur&auteur =Entretien+avec+Gaël+Giraud

69 JANUS 2020-2021

1.31 • Conjuntura Internacional

AS ALTERAÇÕES CLIMÁTICAS, O USO DA TERRA Joana Roque de Pinho E A PRODUÇÃO PECUÁRIA Texto entregue em Setembro de 2019

EM AGOSTO DE 2019, A PUBLICAÇÃO do relatório global com o consumo de carne – por vezes de gado e plantações de arroz; e 82% de óxido nitroso, especial sobre o clima e o uso da terra pelo Painel forma mais emocional do que objetiva. com origem na gestão desadequada de pastagens, Intergovernamental sobre as Alterações Climáticas O IPCC Special Report on Climate Change and estrume e fertilizantes)4. Prevê-se que o crescimen- (IPCC) coincidiu, por puro acaso, com a publicação Land, divulgado a 8 de agosto de 2019, trouxe cla- to populacional, o aumento nos rendimentos e as de notícias sobre a aceleração das taxas de destrui- reza para o debate, através de uma avaliação rigo- mudanças nos padrões de consumo levem a um ção da Amazónia. Depois de vários anos em que o rosa do conhecimento científico mais recente sobre aumento das emissões provenientes da agricultura. problema esteve relativamente controlado, as ima- as relações multidireccionais entre o uso da terra Além da instabilidade climática, a terra sofre a gens da floresta em chamas e a visão dantesca do e o aquecimento global. Pronunciando-se também pressão das atividades humanas, estando actual- céu de São Paulo, escuro em plena tarde, provoca- sobre os custos e benefícios climáticos da produção mente degradado um terço da terra não gelada, e ram indignação nacional e internacional, levando a pecuária, o relatório apresenta o uso da terra para estando a segurança alimentar mundial ameaçada. protestos nas ruas e atitudes controversas por parte produção de comida não só como problema, mas As alterações climáticas relacionam-se com a de- do Presidente Jair Bolsonaro e do seu Ministro do também como parte da solução para o aquecimento gradação dos solos e a insegurança alimentar de Meio Ambiente, Ricardo Salles. Ambos foram acusa- global. forma bidireccional. Por um lado, os fenómenos dos de enfraquecer as medidas de combate à explo- extremos como secas, ondas de calor e inunda- ração de madeira, produção pecuária e mineração A terra e o IPCC “Land Report” ções, cada vez mais imprevisíveis, frequentes e ilegais, e de desrespeitarem acordos internacionais O segundo de três relatórios especiais1, produzi- intensos têm um forte impacto na produção de sobre a proteção da Amazónia. dos no âmbito do Sexto Ciclo de Avaliação, o Land comida, nos serviços de ecossistema, nas colheitas Além da preocupação com a perda de biodiver- Report2, como é mais conhecido, consiste na pri- e nas cadeias de abastecimento. Tais fenómenos, sidade, a potencial substituição da floresta por meira avaliação abrangente do sistema terra-clima por sua vez, fazem aumentar o custo da comida sistemas abertos e mais secos e os impactos nas po- pelo IPCC, tendo sido um contributo para as nego- e ameaçam já os quatro pilares da segurança ali- pulações indígenas, a revolta com as queimadas na ciações internacionais no âmbito da Conferência mentar (disponibilidade, acesso, utilização e esta- Amazónia reflete também uma inquietação geral das Partes da Convenção Quadro sobre as Altera- bilidade), bem como a própria saúde humana e a com as repercussões no clima regional e global. A ções Climáticas em Madrid, Espanha (COP25, De- infraestrutura. A situação é mais crítica nos países utilização de florestas tropicais densas, e de outros zembro de 2019). Os autores, 107 cientistas de 52 de baixo rendimento e nos trópicos. As tensões biomas como o Cerrado brasileiro, pela indústria países e múltiplos horizontes disciplinares, avalia- e os dramas humanos relacionados com a migra- agropecuária e as suas vastas pastagens e planta- ram, sintetizaram, e procederam à revisão de toda ção na fronteira entre o México e os EUA resultam ções de soja, representa, de facto, múltiplas amea- a produção científica relacionando o uso da terra parcialmente da seca de longa duração na América ças interligadas para o clima. Não só a destruição com a variabilidade climática. Avaliaram as opções Central. Por outro lado, os solos da terra degrada- de vegetação e solos liberta dióxido de carbono, disponíveis para adaptação e mitigação da cres- da, além de menos produtivos, absorvem menos um gás de efeito de estufa (GEE), como também cente instabilidade climática; e quais os benefícios carbono, exacerbando o aquecimento global. reduz a função de sumidouro de carbono (carbon mútuos em termos de luta contra a desertificação, Os diferentes usos da terra e os sistemas alimenta- sink) dos mesmos solos. Por outro lado, a crescen- degradação da terra e insegurança alimentar. res afetam a capacidade produtiva da terra e alte- te população de gado nesses biomas, para respon- ram as condições ambientais locais, aumentando der à crescente procura global de carne, aumenta ou mitigando a intensidade, frequência e duração as concentrações atmosféricas de metano e óxido dos fenómenos extremos, e as alterações climáti- nitroso – gases cujo efeito de estufa ultrapassa o Os diferentes usos da terra cas. Alterar as formas de usar a terra mantendo a do dióxido de carbono. As interações entre a agri- e os sistemas alimentares sua produtividade pode levar a uma redução das cultura, a desflorestação, a degradação da terra e afetam a capacidade produtiva emissões, por exemplo através de práticas agríco- as alterações climáticas exemplificam as dinâmicas las que aumentem a matéria orgânica no solo e a entre a atmosfera e a terra, mediadas pelo uso hu- da terra e alteram as condições retenção de carbono e nutrientes, que controlem mano da terra, que foram analisadas pelo IPCC no ambientais locais. a erosão, que melhorem a gestão de pesticidas e Special Report on Climate Change and Land. Com colheitas, bem como a tolerância ao calor e à seca forte enfoque sobre a produção de alimentos, a de- – o que simultaneamente beneficia a segurança ali- gradação ambiental e a segurança alimentar, este mentar. Reduzir a perda e o desperdício de alimen- relatório foi caracterizado na comunicação social A “terra” (land) é a porção terrestre da biosfera que tos – atualmente, um terço da comida produzida é como um apelo das Nações Unidas para mitigar inclui os recursos naturais, os processos ecológicos, perdido ou desperdiçado – também é essencial. O as alterações climáticas através da modificação a topografia, e as habitações e infraestruturas que IPCC avalia que reduzir esse desperdício minimi- dos hábitos alimentares. A alegada recomendação operam dentro desse sistema. Ao prover alimenta- zaria a superfície dedicada à produção de comida para que se adotem dietas sem carne foi a que mais ção, biodiversidade e serviços de ecossistema, a ter- e as emissões resultantes da produção, processa- captou a atenção dos meios de comunicação, que ra e o seu uso asseguram subsistência e bem-estar. mento e transporte de comida. recorreu a títulos como “Nações Unidas recomen- Tendo mapeado o estatuto atual do “uso da terra” Outro conjunto de opções de resposta às alterações dam alimentação vegetariana para salvar o planeta” (land use) à escala global, o relatório avalia o conhe- climáticas tira vantagem dos processos naturais de fi- nas primeiras páginas. Em Portugal, a decisão do cimento científico sobre a rede de interacções entre xação de carbono na biomassa e no solo. Atualmen- Reitor da Universidade de Coimbra, de retirar a os diferentes usos, as respetivas emissões de GEE, te, a terra e o seu uso representam um net carbon carne bovina das cantinas da universidade, veio ali- e os impactos sobre o clima. Entre 2007 e 2016, sink de 11,2 Gt CO2 /ano, absorvendo aproximada- mentar o debate acerca dos malefícios ambientais a agricultura, a silvicultura e outros usos da terra3 mente 29% das emissões totais de carbono – quase da produção de gado. Por conseguinte, os meses foram responsáveis por 23% das emissões antro- um terço do CO2 emitido pela queima de combustí- seguintes foram férteis em produção científica, pogénicas totais de GEE (i.e., 13% das emissões de veis fósseis. Este efeito de absorção pode ser poten- política e mediática relacionando a crise ambiental dióxido de carbono; 44% de metano, emitidas pelo ciado através de tecnologias de emissões negativas,

70 i.e., a bioenergia, e a captura e armazenamento de armados e ainda pelas políticas de desenvolvimento rar o compromisso do Acordo de Paris (2015) de carbono através da florestação (BECCS5)6. O IPCC que promovem a sedentarização. manter o aumento da temperatura média global alerta, no entanto, para os riscos destas estratégias Estas iniciativas abraçam o consenso científico atual abaixo dos 2°C8. No entanto, nas palavras de Hoe- caso sejam aplicadas em larga escala: extensas áreas sobre os benefícios ecológicos, sociais, económicos sung Lee, Chair do IPCC: “Land is under growing florestais e monoculturas de biocombustível podem e nutricionais da produção pecuária nas zonas ári- pressure and is part of the solution, but land can- degradar solos e ecossistemas nativos, promover a das. No geral, a produção pecuária maximiza a con- not do it all”. Uma vez que queimar combustíveis competição fundiária e o desalojamento de comu- versão da energia solar em proteína, sendo a única fósseis para produzir energia gera 77% dos GEE, é nidades com direitos fundiários frágeis, deslocar a maneira de produzir comida em áreas demasiado absolutamente urgente mitigar essas emissões. O produção de comida e a desflorestação para outras marginais para qualquer outro tipo de agricultura, receio que a crise climática e o crescente aumento áreas, ameaçando a insegurança alimentar dos mais sustentando assim milhões de pessoas. O gado pro- da procura mundial de carne façam expandir as vulneráveis, não só nos países de baixo rendimen- duzido nessas zonas participa em mercados nacio- fronteiras da produção pecuária é legítimo. No en- to como também nos países de alto rendimento. nais e regionais, alimenta cidades e é exportado de tanto, fazer do gado o primeiro culpado pelo aque- Veja-se que a crise alimentar de 2008 foi em parte África para o Médio-Oriente. Estes sistemas de pas- cimento global é eticamente repreensível (porque provocada pelos incentivos europeus e americanos torícia móvel, geralmente sustentáveis, sem inputs negaria os seus benefícios para as populações vul- à indústria da bioenergia. químicos e cujas pastagens sequestram quantidades neráveis), não reflecte o conhecimento científico A recomendação geral do IPCC vai no sentido de significativas de carbono, são compatíveis com a sobre a interacção uso da terra/atmosfera, e ofusca privilegiar uma gestão sustentável da terra relati- existência de megafauna, contribuindo assim para o altíssimo impacto dos setores da energia e trans- vamente às soluções técnicas. Reduzir e inverter a as economias nacionais através da conservação da porte. Manter o aquecimento global abaixo dos degradação da terra a todas as escalas terá efeitos biodiversidade e do turismo. As savanas da África 2°C será ilusório enquanto a utilização de combus- não só imediatos como também a longo prazo, para Oriental, por exemplo, evoluíram juntamente com tíveis fósseis não diminuir drasticamente. n o mundo e para as comunidades locais, proporcio- a pastorícia e as actividades que lhe estão associadas nando simultaneamente opções de adaptação e mi- (e.g., queimadas), originando a diversidade paisagís- tigação das alterações climáticas e apoiando vários tica e faunística que hoje atrai riqueza. objectivos de desenvolvimento sustentável. As notícias recentes da destruição da Amazónia têm Notas 1 O IPCC publicou o Special Report on Global Warming of 1.5°C contribuído para denegrir a produção de gado, en- em 2018, e o Special Report on the Ocean and Cryosphere in Vacas e variabilidade climática quanto partidos políticos, e empresas na demanda a Changing Climate em Setembro de 2019. Está a preparar um relatório especial sobre alterações climáticas e cidades no Aproximadamente dois bilhões de pessoas vivem do hamburger vegan perfeito, apontam para a eli- próximo ciclo de avaliação. em drylands – as áreas hiperáridas, áridas e semiári- minação do consumo de carne bovina como solu- 2 IPCC publicou o Special Report on Global Warming of 1.5°C das que cobrem 41% do planeta. O relatório dedica ção para a crise climática. No entanto, o relatório em 2018, e o Special Report on the Ocean and Cryosphere in a Changing Climate em Setembro de 2019. Está a preparar especial atenção a estas áreas pelo facto de sofrerem do IPCC não preconiza essa opção. Sugere antes um relatório especial sobre alterações climát e cidades maior risco de desertificação. Contando-se entre as que “as dietas equilibradas, com alimentos vegetais no próximo ciclo de avaliação. 3 Excluindo as actividades de pré- e pós-produção. áreas que menos contribuem para o aquecimento tais como sementes, legumes, leguminosas, frutos 4 BECCS: Bioenergy and Carbon Capture and Storage. global, estas zonas áridas estão perigosamente vul- e alimentos de origem animal produzidos em sis- 5 A bioenergia é uma energia renovável que funciona em ciclo neráveis aos fenómenos meteorológicos extremos temas de baixas emissões apresentam oportuni- fechado (i.e., o carbono emitido pela combustão é reabsorvido na biomassa que se tornará biocombustível). e à pressão do crescimento populacional, cujos im- dades importantes para a adaptação às alterações 6 “Balanced diets featuring plant-based foods, such as coarse pactos na terra irão agravar o aquecimento global. climáticas e sua limitação” (tradução minha)7. O grains, legumes, fruits and vegetables, and animal-sourced food produced sustainably in low greenhouse gas emission Nestas zonas áridas (savanas africanas, desertos do relatório diferencia explicitamente os sistemas de systems, present major opportunities for adaptation to Médio-Oriente e estepes da Ásia Central) a produ- produção pecuária de alto impacto ambiental e and limiting climate change” (IPCC 2019: 26). 7 ção extensiva e móvel de gado, camelos, cavalos, altas emissões, como nos países industrializados e Em 2015 os países signatários do Acordo de Paris concordaram com o objectivo de melhorar a resposta global às alterações cabras e ovelhas contribui crucialmente para a nutri- na Amazónia, dos sistemas de produção de baixas climáticas mantendo o aumento de temperatura média global ção e subsistência dos seus habitantes, e para as eco- emissões, existentes em muitas zonas áridas. O re- abaixo dos 2°C acima do nível pré-industrial, e de reforçar nomias locais, nacionais e regionais. Estes sistemas latório conclui também que o setor agropecuário os esforços para limitar o aquecimento aos 1.5°C. tradicionais de produção agrícola são adaptados à pode ajudar a mitigar as emissões usando técnicas Bibliografia geral variabilidade ecológica das terras áridas. Através da de gestão de pastagens e dos solos que aumentem African Union. (2010). Policy Framework for Pastoralism in Africa: movimentação estratégica dos animais, permitindo- o sequestro de carbono no solo, usando técnicas Securing, Protecting and Improving the Lives, Livelihoods and Rights of Pastoralist Communities. Addis Ababa: -lhes o acesso a água e a pastagens consoante a sa- adequadas de gestão do estrume e da quantidade Department of Rural Economy and Agriculture, African Union. zonalidade e evitando os riscos relacionados com de alimentos e melhoramentos genéticos. O mesmo Friend, T. (2019). Can a Burger Help Solve Climate fenómenos extremos e outras ameaças (doenças, relatório reconhece também explicitamente o papel Change? The New Yorker. https://www.newyorker.com/ conflitos), a pastorícia móvel está apta para lidar fundamental da pecuária na capacidade adaptativa magazine/2019/09/30/can-a-burger-help-solve-climate- change?utm_campaign=aud-dev&utm_source=nl&utm_ com a crescente imprevisibilidade climática e respe- das comunidades rurais às alterações climáticas e brand=tny&utm_mailing=TNY_Magazine_ tivas consequências socioambientais. No entanto, é à insegurança alimentar. Finalmente, considerou- Daily_092319&utm_medium=email&bxid=5c3493cccff06b73 necessário reunir um certo número de condições. -se eticamente inaceitável instar cidadãos de países 09043d96&cndid=55882429&esrc=&mbid=&utm_term= Algumas políticas internacionais reconhecem as em desenvolvimento a desistir de uma fonte basilar Herrero, M., Addison, J., Bedelian, C., Carabine, E., Havlik, P., Henderson, B., et al. (2016). Climate change and pastoralism: vantagens da pastorícia móvel e a importância da de proteína, enquanto a grande contribuição para o impacts, consequences and adaptation. Rev. Sci. Tech. Off. Int. mobilidade animal, apoiando esse tipo de produção aquecimento global continua a provir da combustão Epiz., 35(2), 417–433. animal orientado para o desenvolvimento sustentá- de petróleo, gás natural e carvão para produção de Herrero, M., Thornton, P. K., Gerbe, P., & Reid, R. S. (2009). vel e para a adaptação às alterações climáticas. energia e transportes nos países industrializados. Livestock, livelihoods and the environment: understanding Em 2010, a título de exemplo, a União Africana pu- the trade-offs. Current Opinion in Environmental Sustainability, 1, 111–120. blicou o Policy Framework for Pastoralism in Afri- IPCC. (2019). Climate Change and Land, an IPCC special ca onde propõe medidas pan-africanas de apoio ao Vacas e combustíveis fósseis report on climate change, desertification, land degradation, desenvolvimento das zonas onde prevalece a pasto- Os sistemas agropecuários podem e devem reduzir sustainable land management, food security, and greenhouse gas fluxes in terrestrial ecosystems. Geneva. https://www.ipcc. rícia móvel. Estas passam por respeitar a governação as emissões associadas aos seus produtos, resul- ch/site/assets/uploads/2019/08/Fullreport-1.pdf flexível e coletiva das pastagens e dos recursos e tando em reduções absolutas de emissões de GEE. Krätli, S., Huelsebusch, C., Brooks, S., & Kaufmann, B. (2012). também por facilitar o movimento transfronteiri- É também mais exequível que as pessoas alterem Pastoralism: a critical asset for food security under global ço de animais domésticos, ultrapassando assim os as suas dietas do que substituir a infraestrutura climate change. Animal Frontiers, 3(1), 42–50. Sage, C. (2013). The inter-connected challenges for food security obstáculos à mobilidade criados pelas alterações do durável da energia e do transporte. Diminuir as from a food regimes perspective: Energy, climate and uso da terra e a privatização da terra, pelos conflitos emissões em todos os setores é essencial para hon- malconsumption. Journal of Rural Studies, 29(1), 70–80.

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2. As Relações Internacionais em contexto de pandemia JANUS 2020-2021

2.1 • As Relações Internacionais em contexto de pandemia

Luis Tomé IMPACTOS GEOPOLÍTICOS DA CRISE PANDÉMICA Texto entregue em Novembro de 2020

A COVID-19 INSTALOU UMA “CRISE” que, por pelo prisma de comparativos estatísticos, “esque- A incapaz liderança dos EUA e o fim definição, significa “desordem” ou alteração na cendo” as muitas outras matérias que requerem a da Presidência Trump ordem pré-existente. É ainda cedo para tirarmos atenção e a cooperação internacional, do combate No respeitante aos EUA, a sua sociedade altamen- ilações demasiado conclusivas sobre todos os seus às alterações climáticas à gestão das migrações e te polarizada e a incompetência do Presidente efeitos, mas parece claro que a crise pandémica su- dos refugiados. Em particular, apesar dos persis- Trump impediram a superpotência de funcionar blinhou e acelerou tendências que vinham de trás, tentes apelos de vozes como as do Secretário-Geral eficazmente ante a COVID-19. Considerando que e desencadeou dinâmicas que poderão redefinir a das Nações Unidas António Guterres ou do Papa os seus propósitos políticos seriam mais bem Geopolítica Mundial. Destacamos aqui alguns des- Francisco, a pandemia fez praticamente “esquecer” servidos pela desvalorização da pandemia e pelo ses principais impactos geopolíticos. os inúmeros conflitos violentos que continuam a descrédito dos cientistas e, por outro lado, mais decorrer e as populações mais carenciadas de aju- pela confrontação do que pela unidade nacional, a Expansão do nacionalismo da de emergência internacional. postura de Trump agravou clivagens sociais e polí- e do populismo ticas. O trágico desempenho dos EUA na gestão da Os dados evidenciam que alguns países e regiões pandemia tem múltiplas causas, mas talvez a mais têm sido mais bem sucedidos do que outros na significativa seja a incapaz liderança do Presiden- gestão da pandemia. Demonstram também que Pequim pode estar a ir te Trump. À tragédia provocada pela pandemia o sucesso/insucesso na resposta à pandemia não longe de mais e depressa soma-se a maior queda no PIB e no emprego dos é uma questão de regime político: algumas de- EUA em muitas décadas. mocracias liberais apresentam uma relativa boa de mais, arriscando provocar A mesma incompetência foi expressa na frente ex- performance, mas outras têm mesmo resultados uma verdadeira “frente” terna: a COVID-19 evidenciou a falta de vontade e/ catastróficos, e o mesmo acontece com os regimes anti-China. ou capacidade da Administração Trump para lide- autocráticos. rar o mundo numa crise global, bem como para Contudo, o nacionalismo, o populismo e os ata- articular com aliados e parceiros. Paralelamente, ques à ordem internacional liberal, que vêm em Trump atacou as instituições internacionais – vi- crescendo desde há anos, tiveram nesta crise um Felizmente, a cooperação internacional entre sando, em particular, a OMS – em vez de as gal- novo pretexto instrumental para tentar promover comunidades científicas de diferentes países vanizar. Esta postura pode dever-se a uma certa as suas agendas. E isto apesar do fracasso na gestão manteve-se, incluindo na partilha de dados e “fadiga hegemónica” ou a um cíclico isolacionis- da pandemia por dirigentes nacional-populistas conhecimentos sobre o novo coronavírus e na mo/recuo estratégico americano, mas a “marca como Trump nos EUA, Modi na Índia ou Bolsona- busca de vacinas e tratamentos anti-COVID-19. Trump” é inquestionável, subvertendo e limitando ro no Brasil. Com efeito, de um modo geral, em Ainda assim, por (ir)responsabilidade de alguns os esforços coletivos e mais concertados. No seu vez de cooperarem construtivamente para bene- dirigentes políticos, prevalece uma lógica nacio- conjunto, estes fatores resultam num novo ques- fício comum, promovendo esforços coletivos e nal de “corrida à vacina”, pelo menos entre várias tionamento sobre a posição e o papel dos EUA no coordenados perante uma crise global, os Países grandes potências, e expressa em termos simila- sistema internacional. voltaram-se para si próprios, procuraram respostas res à tradicional corrida aos armamentos. A crise pandémica abateu-se sobre os EUA em “nacionais”, pregaram uns contra outros e, fre- plena campanha rumo às eleições presidenciais quentemente, fizeram dos rivais bodes expiatórios Nova desunião da União Europeia de novembro de 2020, marcando a postura quer para os seus próprios fracassos. Este clima é propí- As respostas nacionais à pandemia têm imperado de Trump quer dos seus adversários políticos in- cio à expansão do vírus do populismo e do nacio- igualmente na União Europeia: os Estados-mem- cluindo, obviamente, Joe Biden. Muito provavel- nalismo, que tentará aproveitar-se também da crise bros não agiram de forma concertada nem solidá- mente, a trágica gestão da crise pandémica foi um económica e social associada à crise pandémica. ria quando o COVID-19 irrompeu na Europa, dos principais motivos para a derrota de Trump mas unilateralmente, fechando fronteiras, sus- nestas eleições que, por sinal, decorreram num Fragilização do multilateralismo e pendendo a livre circulação, estipulando medi- contexto em que o País registava novos máximos esquecimento de (quase) tudo o resto das, comprando materiais de protecção, etc., de infetados e de mortos por COVID-19. Foi, pois, Os egoísmos nacionais sublinhados pela pandemia numa lógica de “cada um por si” e sem qualquer em contexto de crise pandémica que a nova Admi- também alimentam uma outra tendência anterior: coordenação. Depois da crise da dívida soberana, nistração Biden iniciou a tarefa hercúlea de tentar a fragilização do multilateralismo. Os ataques à da crise migratória e da crise Brexit, a crise pan- recuperar os EUA, interna e externamente, dos Organização Mundial de Saúde (OMS) são disso o démica veio, uma vez mais, sublinhar a desunião escombros da Administração Trump. melhor exemplo, num contexto que precisamente da União. Associado a isto, a UE viu prejudicados aconselharia a cooperação internacional e o apoio os seus propagados “poder de atração” e “lide- A maior assertividade da China à principal instituição internacional com respon- rança pelo exemplo” ficando, de novo, incapaz de Xi Jinping sabilidades na coordenação e gestão global da de liderar ou de ser uma voz decisiva na gestão Quanto à China, além de ser o “berço” onde pandemia. Mas não só: muitas outras instituições global da pandemia – ou seja, perdendo uma ex- deflagrou o novo coronavírus, as tentativas do internacionais ficaram como que paralisadas pelo celente oportunidade para se afirmar enquanto regime de ocultar dados e silenciar cientistas e “auto-confinamento” dos seus Estados-membros actor internacional relevante e pólo de poder médicos, bem como as dificuldades do País “fá- enredados na gestão “nacional” da pandemia, mundial perante a “ausência” dos EUA. A necessá- brica do mundo” em produzir e fornecer ventila- como se os organismos multilaterais deixassem de ria articulação entre os Estados-membros parece dores e materiais de protecção, numa fase inicial, ter relevância nessa e em todas as outras áreas do ter ressurgido, a custo, com o Fundo de Recupe- puseram em causa o “papel dirigente” do Parti- sistema internacional. ração Económica, mas não é certo, longe disso, do Comunista Chinês e a imagem internacional Similarmente, virados essencialmente para si pró- que as tensões intra-comunitárias não regressem da China. Porém, com as vigorosas medidas que prios, os Países pareceram olhar os “outros” apenas com a execução desse pacote. implementou, Pequim começou a controlar a

74 VARIAÇÕES ANUAIS DO PIB (%), 2018-2021 tras regiões quer da China comparativamente a PROJEÇÕES todas as outras principais economias do mundo 2018 2019 2020 2021 (ver Quadro). A confirmar-se, significa o reforço PRODUÇÃO MUNDIAL 3.5 2.8 -4.4 5.2 da centralidade da Ásia-Pacífico na economia Economias desenvolvidas 2.2 1.7 -5.8 3.9 mundial e, paralelamente, que a China poderá Estados Unidos 3.0 2.2 -4.3 3.1 sair da “dupla crise” pandémica e económica Zona Euro 1.8 1.3 -8.3 5.2 com o maior PIB do mundo em termos reais, Alemanha 1.3 0.6 -6.0 4.2 depois de já ter ultrapassado o PIB dos EUA em França 1.8 1.5 -9.8 6.0 paridades de poder de compra – com as con- Japão 0.3 0.7 -5.3 2.3 sequências daí decorrentes em todas as outras Reino Unido 1.3 1.5 -9.8 5.9 dimensões do poder, e limitando a margem Mercados emergentes e economias 4.5 3.7 -3.3 6.0 em desenvolvimento para estratégias de “desacoplamento” de outros Ásia emergente e em desenvolvimento 6.3 5.5 -1.7 8.0 países face à China. Ou seja, desta crise poderá China 6.7 6.1 1.9 8.2 também resultar uma globalização económica Índia 6.1 4.2 -10.3 8.8 mais sino-cêntrica. Rússia 2.5 1.3 -4.1 2.8 Por outro lado, a pandemia fez questionar a América Latina e Caraíbas 1.1 0.0 -8.1 3.6 hiperglobalização e a dependência de determi- Médio Oriente e Ásia Central 2.1 1.4 -4.1 3.0 nadas cadeias internacionais de produção e de África subsariana 3.3 3.2 -3.0 3.1 abastecimento. Confrontados com dificuldades Fonte: IMF, World Economic Outlook. Updated, October 2020. de fornecimento de equipamentos médicos e materiais de protecção, muitos Governos e Países pandemia, ao mesmo tempo que esta se expandia perceção de bipolaridade entre as superpotên- passaram a pretender ter “reservas estratégicas” desenfreadamente noutros países e regiões, com cias aparentemente declinante (EUA) e emergen- para não depender (pelo menos, depender tanto) destaque para a Europa e, depois, os EUA. te (China). Em contexto de crise, as rivalidades de abastecimento externo, procurando dispor Mas mais relevante, em plena crise pandémica, geopolíticas tendem mais a intensificar-se do que de um determinado nível de produção nacional a China mostrou uma invulgar assertividade, pa- a atenuar-se, e a crise pandémica parece confir- e também diversificar os seus fornecedores. recendo abandonar quer o princípio de “manter mar este dictum. A COVID-19 não é origem nem um perfil baixo” associado à “estratégia dos 24 causa da competição entre os EUA e a China, mas Possíveis reajustes estratégicos caracteres” de Deng Xiaoping quer a tradicional exacerbou tensões e fricções existentes há anos A “dupla crise” pandémica e económica poderá, linha de “coexistência pacífica” e essencialmente (de disputas comerciais e de tarifas à questão de igualmente, ter importantes repercussões em não-confrontacional. Com efeito, da intensifica- Taiwan, Direitos Humanos, Mar da China do Sul, termos estratégicos, embora algumas tendências ção do repovoamento e da militarização no Mar tecnologia, etc.), num ambiente agravado quer sejam ambivalentes. Por exemplo, mais do que da China do Sul à Lei de Segurança Nacional pela assertividade chinesa quer pela campanha nunca, as pandemias passaram a ser assumidas imposta a Hong Kong, passando pelo confronto rumo às presidenciais americanas. como uma questão de “segurança nacional” por militar com a Índia pela primeira vez em décadas Entre muitos outros exemplos da interação praticamente todos os países, o que pode favo- e por sucessivas fricções diplomáticas e ameaças competitiva, ressalta uma invulgar retórica con- recer o reforço dos orçamentos das áreas da se- de sanções a vários países, da Austrália ao Cana- frontacional e acusações mútuas sobre quase gurança e defesa. Ao mesmo tempo, todavia, o dá ou ao Reino Unido, Pequim deu um “grande tudo; fazerem da ONU, da OMS ou da OMC um aumento dos orçamentos na área da saúde e os salto em frente” na concretização do “sonho chi- verdadeiro “teatro de operações” ou “campo de necessários recursos adicionais quer para fazer nês” e na afirmação das reivindicações da China. batalha”; e alguns aspetos simbólicos nunca vis- face à crise económica e social quer para pro- Esta assertividade é, em larga medida, inerente tos desde o estabelecimento de relações diplo- mover a recuperação, podem comprometer ou ao regime do “autocrata acelerador” Xi Jinping, e máticas bilaterais, em 1979, como a proibição obrigar a reajustar certos programas, investimen- resulta também de uma clara auto-confiança em de entrada nos EUA de militantes do Partido Co- tos e orçamentos antes previstos nos domínios face do crescimento do “poder nacional abran- munista Chinês, as sanções chinesas a Senadores da segurança e defesa. Ora, este tipo de reajustes gente” chinês, da percepção de declínio dos Americanos e à gigante de armamento Lockeed pode acarretar alterações substanciais na situação EUA, da tentativa de tirar partido das oportuni- Martin, o encerramento do Consulado da China e nos equilíbrios estratégicos entre potências e dades criadas pelo desnorte da Administração em Houston e dos EUA em Chengdu ou a retira- em certas regiões, bem como colocar em causa Trump e pelas fracturas internacionais e ainda da do “estatuto especial” a Hong Kong pelos EUA determinados compromissos anteriores (como, de uma tentativa de acelerar a centralidade da na sequência da nova “Lei de Segurança Nacio- por exemplo, no seio da NATO, até 2024 desti- China numa “nova era”. nal” imposta por Pequim à Região Administrativa nar 2% do PIB para a Defesa, muito dificilmente Contudo, Pequim pode estar a ir longe de mais e Especial de Hong Kong. Similarmente, a gene- alcançável pela maioria dos Aliados europeus), depressa de mais, arriscando provocar uma verda- ralidade dos países e regiões do mundo passou com consequências imprevisíveis. deira “frente” anti-China. Com efeito, para muitos a sofrer pressões diretas destes dois principais países e líderes políticos esta crise sublinhou ou pólos de poder global. Crise com desfecho incerto contribuiu para alterar a perspectiva acerca da Os efeitos da COVID-19 têm produzido acesos China, de “panda gigante benigno” de cujo cres- Reforço da centralidade económica debates e muitos cenários sobre uma hipotética cimento todos podem beneficiar para “dragão da Ásia-Pacífico e questionamento “nova ordem” internacional, desde uma “segun- ameaçador” que a ressurgente China igualmente da hiperglobalização da Guerra Fria” ao “fim da globalização”. A reali- representa. No fundo, a crise pandémica pode Da crise pandémica resultam efeitos econó- dade é que, estando em plena crise pandémica, contribuir para afirmar a China enquanto super- micos que poderão vir a ter reflexos muito é demasiado cedo para vermos os seus efeitos potência emergente, mas também trazer-lhe os significativos nos equilíbrios geopolíticos, geoe- em toda a extensão – como qualquer outra cri- custos inerentes a essa condição. conómicos e geoestratégicos que conhecemos, se, também esta pode conhecer diversos desfe- e tanto entre grandes potências como nas várias chos, uns piores do que outros. É impossível o Bipolaridade competitiva EUA – China regiões do mundo. regresso ao status quo ante. Mas a ordem que Numa estrutura de poder mundial em transição As estimativas apontam para uma queda do PIB se seguirá é uma absoluta incerteza. E a incerte- e que, na última década, podemos caracterizar menos acentuada e uma recuperação mais rápi- za é, afinal de contas, outro dos efeitos de uma como “uni-bi-multi-polar”, esta crise reforçou a da quer na Ásia-Pacífico por comparação a ou- crise. n

75 JANUS 2020-2021

2.2 • As Relações Internacionais em contexto de pandemia

Luísa Godinho O IMAGINÁRIO PANDÉMICO GLOBAL Texto entregue em Dezembro de 2020

LONGE DE IMAGINAR QUE UMA PANDEMIA, fenómeno pandémico na sua complexidade. ro do conceito de imaginário defendido por como a propagada pela COVID-19, estaria imi- Este esforço holístico constitui, de resto, um Castoriadis, autor que, já na década de sessenta, nente, em Setembro de 2019, Christos Lynteris, dos mais valiosos contributos do livro. considerava, por oposição à dominante visão prolífico antropólogo social interessado pelas freudiana, que entendia o homem como prisio- abordagens biopolítica e visual das epidemias, O imaginário pandémico neiro do seu passado, ser o imaginário assente publicou, podemos hoje dizer, uma obra mar- O grande objetivo do autor é identificar e co- nas possibilidades imaginadas de futuro. cadamente premonitória. Intitula-se Human nhecer o imaginário pandémico, a estrutura Para o realizar, Lynteris arrisca um olhar atempo- Extinction and the Pandemic Imaginary (em de representação mental disseminada à escala ral conseguido através do estudo de um corpus português, “A Extinção Humana e o Imaginário global e que se encontra na base dos fenóme- que integra produtos da sociedade de consumo Pandémico”) e debruça-se sobre a dimensão nos sócio-políticos que ocorrem em conse- contemporânea, como notícias, posts, filmes e cultural das pandemias, uma perspetiva dife- quência das pandemias, constituindo destas séries, juntamente com os relatos clássicos de renciadora das análises científicas e mediáticas um importante fator explicativo. O caráter es- Tucídides sobre as pragas, videojogos e mate- dominantes, sobejamente interessadas nas di- trutural destas representações mentais globais riais de campanhas de comunicação estatais. mensões clínica, económica e geopolítica. torna-as, aliás, segundo o autor, um aspecto Pretende o autor fixar o imaginário pandémico Autor destacado do campo da Antropologia incontornável de qualquer análise dos fenó- a partir do estudo de representações discursi- Médica, Professor na britânica University of St. menos sociais globais que se queira completa vas muito variadas e essa ambição diacrónica Andrews, Lynteris interessou-se, em particular, e aprofundada. e multidimensional sobre a designada cultura pelo estudo antropológico das doenças infec- pandémica constitui um dos maiores contribu- ciosas, tema que conheceu um desenvolvimen- tos deste livro. Na verdade, segundo Gerlach e to expressivo desde 2013, sobretudo como uma Hamilton, esta cultura constitui-se não a partir resposta a fenómenos como o das alterações As doenças globais constituem da proliferação da pandemia como um fenóme- climáticas, por autores como Keck, Caduff, Kelly padrões epidemiológicos, no médico mas, antes, a partir da “explosão da e Nading, entre outros. comunicação sobre pandemias imaginadas e Neste Human Extinction and the Pandemic epistemológicos e bio-políticos. potenciais”. Imaginary, Lynteris retoma o angustiante deba- te sobre o perigo da energia nuclear, que teve O fim intemporal lugar durante a Guerra Fria, propondo-se de- As doenças globais constituem padrões epide- senvolver um estudo que desafia as tradicionais O conceito de imaginário surge no livro de for- miológicos, epistemológicos e bio-políticos. fronteiras entre as Ciências Sociais e as Humani- ma dialética. Por um lado, resultado de formas Segundo Lynteris, as pandemias caracterizam- dades e lance “um olhar telescópico” ao modo imaginárias que, ao longo dos séculos, institu- -se por uma dinâmica algo irracional, surgindo como os imaginários globais têm sido cultural- cionalizadas por via dos Estados e da dinâmica inesperadamente e do mesmo modo desapare- mente construídos em resposta às pandemias, do capitalismo mediático, eternizaram o mito cendo (o que o autor designa por fim intempo- em particular através de instrumentos visuais e do domínio humano sobre o não-humano, ao ral), sem que uma explicação causa-efeito possa discursivos. ponto de tornarem absurda a “conceptualização estabelecer-se. O fim epidemiológico, por sua Resultado do trabalho como investigador prin- de um futuro pós-humano em termos radical- vez, traz consigo um encerramento epistemo- cipal na Universidade de Cambridge, Lynteris mente novos”; por outro lado, permitindo ex- lógico para a humanidade, de novo pacificada propõe uma abordagem multidimensional a perienciar o mundo e pensar o futuro noutros com a sua condição. Na atualidade, esta repaci- partir de um enfoque cultural. O autor relaciona termos que não os da condição de domínio do ficação significará o regresso do imaginário de a perspectiva cultural com as tradicionais pers- humano sobre o não-humano. É justamente uma modernidade higiénica, livre de doença e pectivas analíticas, permitindo compreender o neste último sentido que Lynteris se diz herdei- prudentemente separada da natureza.

PANDEMIAS QUE MUDARAM A HISTÓRIA Fonte: www.history.com 430 A.C. 165 D.C. 250 D.C. 541 D.C. SEC. XI 1350 1492 1665 PANDEMIA ATENIENSE PRAGA ANTONINA PRAGA CIPRIOTA PRAGA JUSTINIANA PANDEMIA DE LEPRA PESTE NEGRA PRAGA COLOMBIANA GRANDE PRAGA Foi a primeira A peste de Antonino Tendo possivelmente Surgida no Egito, A lepra tornou-se uma Responsável pela Após a chegada dos DE LONDRES pandemia registada começou entre começado na Etiópia, a praga de Justiniano pandemia na Europa morte de um terço da espanhóis ao Caribe, Num outro surto e aconteceu durante os hunos e infetou passou pelo norte espalhou-se pela da Idade Média. população mundial, doenças como devastador, a peste a Guerra do alemães e romanos, da África, por Roma, Palestina, pelo Império Trata-se de uma este segundo grande a varíola, o sarampo bubónica causou Peloponeso, passando tendo estes espalhado atingindo depois Bizantino e depois por doença bacteriana surto de peste e a peste bubónica a morte de 20% da pela Líbia, Etiópia a doença por todo o Egito e dirigindo-se todo o Mediterrâneo. de desenvolvimento bubónica começou foram transmitidas população de Londres. e Egito. Os sintomas o império. Os sintomas ao norte da Europa. As recorrências desta lento que causa possivelmente na Ásia aos povos nativos Com o aumento do incluíam febre, sede, incluíam febre, dor Houve surtos praga nos dois séculos feridas e e alastrou para pelos europeus, número de mortos língua e garganta com de garganta, diarreia recorrentes nos três seguintes acabaram deformidades, a lepra a Europa. A Inglaterra levando à morte de e o surgimento sangue, pele e lesões e feridas. A praga séculos seguintes. por matar cerca de era considerada um e a França ficaram cerca de 90% destes de valas comuns, encarnadas. continuou até cerca A peste de Chipre 26% da população castigo de Deus, tendo tão incapacitadas nos continentes centenas de milhares de 180 d.C. causava diarreia, mundial. Transmitida sido responsável por pela praga que do Norte e do Sul. Em de gatos e cães foram O imperador Marco vómitos, úlceras por ratos e pulgas, o julgamentos morais acabaram por 1520, o Império Asteca apontados como Aurélio foi uma das na garganta, febre seu principal sintoma e o ostracismo das estabelecer uma foi destruído por uma sendo a possível suas vítimas. e gangrenas nas era o aumento da vítimas. trégua à guerra infecção de varíola, causa e massacrados. mãos e pés. glândula linfática. que protagonizavam. que acabou por A doença espalhou-se dificultar a resistência pelos portos ao longo aos colonizadores do rio Tamisa. espanhóis.

76 Bibliografia geral Christos Lynteris é antropólogo médico, espe- económicos sobejamente tratados nas análises Bashford, A. (2016). Quarantine: Local and Global Histories. cialista no exame antropológico e histórico de mais difundidas, incidindo, antes, sobre o sen- London: Palgrave Macmillan. epidemias, zoonoses, epistemologia epidemio- timento de confiança do Homem na sua rela- Biehl, J. (2007). Will to Live. AIDS Therapies and the Politics lógica, cultura visual médica, medicina colonial e ção com as forças não-humanas e, em última of Survival. Princeton, NJ: Princeton University Press. Briggs, C. L. (2009). Biocommunicability and the biopolitics pandemias como eventos que representam um instância, com a sua própria existência. O ima- risco existencial para a humanidade. Entre as suas of pandemic threats. Medical Anthropology 28(3): 89–198. ginário pandémico representa a dificuldade Caduff, C. (2014). Pandemic prophecy, or how to have faith publicações encontram-se estudos sobre as crises de o Homem se encontrar num mundo que se in reason. Current Anthropology 55(3): 296–315. epidémicas na China moderna, nomeadamente confronta, cada vez mais frequentemente, com Chircop, J. & F. Martinez, (2018). Mediterranean Quarantines, a epidemia SARS e seu impacto na sociedade 1750-1914. Space, Identity and Power. Manchester, UK: a perda do domínio humano. Esta perda iden- e na governação. Manchester University Press. Professor na St Andrews University, na Escócia, titária, por sua vez, inevitavelmente recoloca Christos Lynteris, (2016). Ethnographic Plague: Configuring foi Andrew Mellon e Isaac Newton Postdoctoral a questão – central na obra – da finalidade do Disease on the Chinese-Russian Frontier. London: Palgrave mundo e da vida humana, colocando agora a Macmillan. Fellow e investigador principal do European Re- Christos Lynteris, (2016). ‘The Epidemiologist as Culture Hero: search Council e da University of Cambridge. possibilidade de anomia, ou seja a hipótese de Visualizing Humanity in the Age of “the Next Pandemic”,’ ausência de um fim específico. Visual Anthropology 29: 36-53. Christos Lynteris and Nicholas Evans (2018). Histories Mas se o fim pandémico é extemporâneo, já a of Post-Mortem Contagion: Infectious Corpses and chegada das pandemias parece ser passível de Contested Burials. London: Palgrave Macmillan. Christos Lynteris, (2019). Human Extinction and the Pandemic preparação. Na verdade, as narrativas pandémi- Imaginary. London and New York: Routledge. cas – ficcionadas ou históricas – apresentam-nas Um aspecto crucial da obra como algo que se repete ciclicamente e que nada é o (re)questionamento e a (re) possui de novo. definição que, segundo o autor, as pandemias suscitam sobre O que é ser humano? Um aspecto crucial da obra é o (re)questionamen- a concepção do que é ser to e a (re)definição que, segundo o autor, as pan- humano. demias suscitam sobre a concepção do que é ser humano. O medo omnipresente da extinção da humanidade, que aparentemente paira sobre toda a experiência pandémica, é interpretado pelo au- Já incontornável parece ser, no entanto, para o tor de modo distinto. Não se trata de recear o fim autor, a magnitude existencial dos fenómenos do Homem, mas, antes, de recear a impossibilida- pandémicos. Este questionamento existencial, de de este controlar o não-humano, nomeadamen- mais ou menos consciente mas por demais evi- te a natureza e a tecnologia, e, por conseguinte, o dente nas narrativas estudadas por Lynteris, ad- receio de o Homem confrontar-se consigo mesmo vém do fracasso da técnica ou, pelo menos, do e com a sua natureza frágil e finita. seu limitado alcance, consigo arrastando o po- Neste sentido, o livro defende a tese segundo a der simbólico global da medicina e do Estado. qual as pandemias inauguram uma nova forma Historicamente, segundo o paradigma domi- de extinção assente num outro sentimento do nante, os humanos tornam-se humanos por 2020 que é ser humano, sentimento que rompe com meio do progressivo domínio da tecnologia. Foi COVID-19 os cânones do iluminismo e do renascimento, a invenção e o domínio desta que permitiram Em 11 de março de 2020, que colocaram o Homem no centro do univer- ao Homem diferenciar-se dos outros animais e, a Organização Mundial da Saúde anunciou so, pretensamente detentor de um poder quase como resultado, ser capaz de se afirmar perante que a COVID-19 era oficialmente uma pandemia ilimitado e omnipotente, para o reposicionar, a natureza. A miragem da extinção humana que, depois de se espalhar por 114 países em três meses e infetar mais de 118.000 pessoas. A propagação agora, mais do que lateralizado face à mão da neste momento, paira sobre o imaginário global não estava nem perto do fim. natureza e do não-humano, subjugado a estes não parece ser associada ao fim da espécie hu- A COVID-19 é causada por um novo coronavírus últimos. mana num sentido biológico, mas antes ao retor- que não fora encontrado anteriormente em pessoas. O mais profundo impacto da pandemia ex- no dos humanos ao seu estatuto não humano, Os sintomas incluem problemas respiratórios, travasa, assim, os efeitos sociais, políticos e animal ou natural. n febre e tosse e podem causar pneumonia e morte. Tal como a SARS, espalha-se por meio de gotículas de espirros.

1817 1855 1875 1889 1918 1957 1981 2003 PRIMEIRA CÓLERA A TERCEIRA PRAGA PRAGA FIJI GRIPE RUSSA GRIPE ESPANHOLA GRIPE ASIÁTICA HIV SARS Foi a primeira das Com início na China Regressando da A mais significativa A gripe das aves, que Iniciada em Hong Identificada pela A Síndrome sete pandemias de e indo para a Índia Austrália, onde pandemia de gripe debutou em 1928 e Kong, espalhada pela primeira vez em 1981, Respiratória Aguda cólera que ocorreriam e Hong Kong, a peste contactaram com começou na Sibéria resultou em 50 milhões China e depois pelos a SIDA destrói Grave (SARS) foi até meados do século bubónica fez 15 um surto de sarampo, e no Cazaquistão, de mortes em todo Estados Unidos, a o sistema imunológico, conhecida em 2003 XX. A doença era milhões de vítimas. os britânicos alastrou para o mundo, espalhou-se gripe asiática resultando em e tem por sintomas provocada por uma A Índia enfrentou acabariam por trazer Moscovo, chegou rapidamente pelo acabaria por chegar eventual morte problemas infeção do intestino o maior número a doença de volta à Finlândia e depois globo. Centenas a Inglaterra, onde, por doenças que respiratórios, tosse delgado e transmitia-se de vítimas e a para as ilhas Fiji. à Polónia, de onde se de milhares de em seis meses, 14.000 o corpo normalmente seca, febre e dores através da água epidemia foi usada Espalhando-se transmitiu ao resto americanos morreram pessoas morreram. combateria. As de cabeça. Os esforços e alimentos infetados como legitimação rapidamente pela ilha, da Europa. No ano e a escassez de Uma segunda onda pessoas infectadas de quarentena com fezes. Originária para políticas foi responsável pelo seguinte, a doença armazenamento de se seguiu no início encontram febre, dor provaram ser eficazes, da Rússia, acabaria repressivas que amontoar de cruzou o oceano para corpos atingiu o nível de 1958, causando de cabeça e aumento o vírus foi contido e por espalhar-se pela desencadearam cadáveres e o dizimar a América do Norte de crise. Mas um total de cerca de dos gânglios não reapareceu desde Europa, África, Ásia alguma revolta de aldeias inteiras. e a África. No final a ameaça da gripe 1,1 milhão de mortes linfáticos. 35 milhões então. A experiência e América, onde matou contra os britânicos. Um terço da de 1890, 360.000 desapareceu no verão em todo o mundo. de pessoas em todo da SARS serviu de 150.000 pessoas. A pandemia foi população das Fiji, pessoas morreram. de 1919, quando Uma vacina acabaria o mundo morreram alerta para melhorar Uma vacina foi criada considerada ativa um total de 40.000 a maioria dos por ser desenvolvida, desde a descoberta da as respostas aos em 1885. até 1960. pessoas, morreu. infectados desenvolveu contendo a pandemia doença. A cura ainda surtos, como o H1N1, imunidades ou morreu. com eficácia. não foi encontrada. Ebola e Zika.

77 JANUS 2020-2021

2.3 • As Relações Internacionais em contexto de pandemia

COVID-19 E AS OPERAÇÕES DE PAZ DA ONU: ALGUMAS Sergio Luiz Cruz Aguilar Julia Mori Aparecido CONSIDERAÇÕES Texto entregue em Setembro de 2020

AS CRISES INTERNACIONAIS APRESENTAM uma ção na mídia da Comissão Municipal de Saúde de de Resposta Humanitária, o Relatório sobre os grande oportunidade para que as Organizações Wuhan sobre casos de uma nova ‘pneumonia vi- Impactos Socioeconômicos da COVID-19, várias Internacionais (OI) se tornem mais ativas e, com ral’. Em 30 de janeiro de 2020, o Diretor-Geral da reuniões sobre diferentes tópicos e com outras isso, aumentem sua legitimidade no sistema in- OMS declarou o novo surto da COVID-19 como instituições, e a solicitação pelo engajamento do ternacional. A epidemia global causada pela CO- uma emergência de saúde pública de preocupa- CSNU para mitigar as implicações da pandemia VID-19 apresentou uma exigência para que as OI ção internacional, o mais alto nível de alarme. Em na paz e segurança internacional4. encontrassem soluções coletivas. Durante a pan- 11 de março, a OMS declarou a pandemia devido Em 2 de abril, a AGNU aprovou uma resolução demia, a Organização Mundial da Saúde (OMS) aos níveis alarmantes de propagação e severidade clamando o sistema ONU para trabalhar com to- esteve na vanguarda das ações, estabelecendo do vírus1. dos os atores relevantes por uma resposta global normas, fornecendo informações e conselhos coordenada para a pandemia5. Mas, apenas em para as questões de saúde internacional, e desen- 1 de julho de 2020, o CSNU conseguiu aprovar volvendo programas relacionados à COVID-19. a Resolução 2532 relativa ao tema6. Apesar da Mas, além das questões de saúde, a manutenção No final de 2019, urgência, a aprovação da resolução não foi uma da paz e segurança global está entre os desafios a Representação da OMS tarefa fácil para os Estados envolvidos. Muitas ne- que exigem ações multilaterais da Organização na República Popular gociações foram necessárias a partir da primeira das Nações Unidas (ONU). da China captou uma iniciativa de proposta feita em 18 de março pela Os principais órgãos da ONU incluem o Conse- Estônia. Durante as considerações preliminares, lho de Segurança (CSNU), a Assembleia Geral declaração na mídia o primeiro confronto entre China e EUA foi sobre (AGNU) e o Secretariado, embora só o primeiro da Comissão Municipal a denominação e origem do vírus, o que provo- seja o responsável pela manutenção da paz e da de Saúde de Wuhan cou uma pausa nas discussões. A França incitou segurança mundiais. As decisões do CSNU permi- sobre casos de uma nova discussões entre os cinco membros permanentes tem que a ONU mobilize tropas multinacionais do Conselho para construir um projeto de reso- para operações de manutenção da paz, por meio ‘pneumonia viral’. lução. Na sequência, a Tunísia apresentou um das quais a Organização atua para reduzir a vio- projeto. Em abril ocorreu a primeira videocon- lência, mitigar crises humanitárias e gerenciar/ ferência fechada com os membros do Conselho resolver conflitos ao redor do mundo. No início No nível político, a primeira resposta da ONU para tratar as implicações da COVID-19. de 2020, treze operações estavam desdobradas foi em 19 de março por meio de um discurso Enquanto isso, os EUA suspenderam o financia- na África, Ásia, Europa e Oriente Médio, as quais do Secretário Geral (SGNU), no qual ele definiu mento e, posteriormente, encerraram sua relação foram impactadas pela pandemia. áreas críticas de ação para enfrentar a emergência com a OMS, o que acrescentou uma nova discus- sanitária, o impacto social, a resposta e a recu- são entre a China e os EUA a respeito da menção Medidas adotadas e impactos peração econômica2. Alguns dias depois, apelou da OMS na resolução. Os esforços continuaram nas operações de campo para um cessar-fogo geral em todos os conflitos nos dois meses seguintes até que, em 28 de ju- No final de 2019, a Representação da OMS na ao redor do mundo3. As ações subsequentes do nho, a minuta franco-tunisiana da resolução foi República Popular da China captou uma declara- SGNU incluíram o lançamento do Plano Global colocada para apreciação7.

AÇÕES DA ONU E OPERAÇÕES DE PAZ EM RELAÇÃO À COVID-19 MARÇO ABRIL MAIO JUNHO JULHO 11 – OMS declara pandemia 01 – AGNU aprovou a Resolução 08 – Apelo para abordar e combater • – Proposta para incluir na minuta 01 – CSNU aprovou por unanimidade 18 – Estônia propôs declaração “Global solidarity to fight the o discurso de ódio COVID-19 consideração sobre a resolução a Resolução 2532 sobre à imprensa pelo CSNU coronavirus disease 2019 20 – Série de diálogos na África da AGNU a COVID-19 19 – Primeira declaração pública (COVID-19) sobre COVID-19 e cessar-fogo 28 – Proposta de Resolução 02 – Vídeo-conferência aberta sobre o COVID-19 (define três 03 – Atualização do apelo por um • – França continuou no esforço franco-tunisiana foi do CSNU sobre a manutenção áreas críticas para ação) cessar-fogo global de intermediar um compromisso colocada para apreciação da paz e segurança internacional: 23 – Apelo por cessar-fogo global 08 – Primeira videoconferência com entre a China e os EUA implicações da COVID-19 25 – Lançamento do Plano Global os membros do CSNU sobre 27 – CSNU debate proteção de civis 07 – Reunião de alto nível da ONU de Resposta Humanitária as implicações da COVID-19 em conflitos armados sobre Multilateralismo após para a COVID-19 e discussões sobre a proposta • – Estônia e a Alemanha a COVID-19 31 – Lançamento do Relatório sobre frano-tunisiana de resolução propuseram concentrar os Impactos Sócio-Econômicos 09 – SGNU pede o envolvimento a resolução no apelo da COVID-19 do CSNU do SGNU de cessar-fogo • – Confronto entre China e EUA 14 – EUA anuncia fim da relação • – EUA seguiu irredutível sobre a origem do vírus com a OMS e origina a principal quanto a menção à OMS • – A França incitou a construção discussão China-EUA sobre a de projeto de resolução menção à OMS para cessação global das 27 – Reunião virtual do CSNU sobre hostilidades manutenção da az e segurança • – Tunísia apresentou projeto internacional de resolução em defesa do • – Pautas adicionadas no projeto cessar-fogo do Secretário-Geral de resolução franco-tunisiano: SGNU reconhecimento do papel CSNU das mulheres na resposta à COVID-19 e a expansão AGNU do cessar-fogo por 90 dias DIRETRIZES DO SECRETARIADO ADAPTAÇÕES DAS OPERAÇÕES DE PAZ NO TERRENO Elaboração própria baseado em Guterres, 2020a,b,c; UN, 2020a,b,c; What’s In Blue, 2020.

78 IMPACTOS INICIAIS DA COVID-19 Com relação ao apelo geral de cessar-fogo, en- NAS OPERAÇÕES DE PAZ DA ONU quanto um número substancial de partes em • Suspensão das rotações, repatriações e novos conflito expressou sua aceitação, grupos arma- desdobramentos de pessoal militar e policial dos continuaram em atividade em diversos paí- entre abril e junho de 2020. ses como no Afeganistão, Darfur/Sudão, Iêmen, • Engajamento de representantes especiais Líbia, Mali, República Centro-Africana (RCA), e enviados do SGNU com os atores dos conflitos para garantir cessar-fogo. RDC e Sudão do Sul, dentre outros. Na África, • Reorientação das operações no terreno nos países onde as principais missões de paz para: apoio as autoridades nacionais em da ONU estão desdobradas ocorreram casos de sua resposta à pandemia; proteção dos violência armada, a maioria praticada por grupos peacekeepers e manutenção da capacidade armados e alguns ataques relacionados com a de continuar as operações; diminuição violência intercomunal. da possibilidade do pessoal da ONU ser vetor de contágio; e proteção de comunidades vulneráveis. • Medidas de distanciamento social e proteção A pandemia não alterou de pessoal nas bases da ONU. os objetivos estratégicos • Adaptação das atividades operacionais para a realidade da pandemia. das missões, mas atividades operacionais foram No nível estratégico, tendo em vista a dificulda- impactadas. de do CSNU em adotar uma resolução e sob a liderança do SGNU, os órgãos do Secretariado emitiram orientações para as missões de campo. No norte e nordeste da RCA, civis foram mortos Decisões foram tomadas como a suspensão das e feridos por conta da luta entre facções rivais, rotações, repatriações e novos desdobramentos na RDC os grupos armados Cooperativa para o de pessoal militar e policial até ao final de junho8. Desenvolvimento do Congo (CODECO) e Forças O Departamento de Operações de Paz (DPO, em Democráticas Aliadas (ADF) promoveram ata- inglês) disseminou boas práticas observadas para ques no leste do país, onde também ocorreram as operações alcançarem com mais eficácia as co- confrontos entre milícias das etnias Hema e Len- munidades em relação à preparação, prevenção e du. No Mali, soldados e civis foram mortos em resposta à pandemia. O Escritório de Estado de diversos ataques. No Sudão do Sul, conflitos in- Direito e Instituições de Segurança (OROLSI, em tercomunitários nos estados de Jonglei e Warrap inglês) emitiu uma orientação operacional para causaram centenas de mortes de civis e milita- apoiar a mitigação da propagação, especialmente res. Em Darfur/Sudão, conflito entre tribos rivais para uso dos funcionários penitenciários. A Polí- também deixou dezenas de pessoas mortas12. cia da ONU (UNPOL) delineou procedimentos a Dessa forma, apesar do pedido de cessar-fogo do serem seguidos pelos policiais em suas operações SGNU foi percebida uma enorme distância entre diárias. declarações de apoio e sua real colocação em Notas No nível operacional, os representantes especiais prática nas regiões em conflito armado. 1 World Health Organization (WHO). 2020. Timeline: WHO’s COVID-19 response available at https://www.who.int/ e enviados do SGNU foram aconselhados a se emergencies/diseases/novel-coronavirus-2019/ interactive- envolverem com os atores dos conflitos para ga- Algumas Conclusões timeline#!. 2 Guterres, António (2020c). Secretary-General’s Opening rantir que o cessar-fogo geral fosse implementa- A dimensão dos impactos nas operações de paz Remarks at Virtual Press Encounter on COVID-19 Crisis. New do. As operações de paz foram reorientadas para no terreno e uma possível relação da pandemia York: United Nations Secretary-General available at https:// quatro objetivos-chave: apoiar as autoridades na- com a postura adotada por grupos armados de- www.un.org/sg/en/content/sg/speeches/2020-03-19/ remarks-virtual-press-encounter-covid-19-crisis. cionais em sua resposta à pandemia; proteger seu pende de uma análise mais profunda uma vez 3 Guterres António (2020a). Opening Remarks of the Secretary- pessoal e sua capacidade de continuar operações que a crise ainda se encontra em andamento. General’s Appeal for Global Ceasefire. New York: United críticas; assegurar que seu pessoal não fosse um No entanto, algumas observações iniciais já são Nations Secretary-General available at https://www.un.org/sg/ vetor de contágio; e ajudar a proteger comuni- possíveis. Pode-se dizer que, no âmbito da ONU, en/content/sg/speeches/2020-03-23/secretary-general-appeal- for-global-ceasefire dades vulneráveis e continuar a implementar os a iniciativa das ações veio do SGNU, enquanto o 4 Guterres, António (2020b). Remarks to the Security Council 9 mandatos . Assim, os componentes de todas as SCNU sofreu uma inércia inicial, possivelmente on the COVID-19 Pandemic. New York: United Nations operações receberam novas tarefas relacionadas ligada a rivalidade EUA – China. Dessa forma, se- Secretary-General available at https://www.un.org/sg/en/ com a pandemia e reorientaram seu alcance co- guindo a iniciativa do SGNU, os departamentos content/sg/speeches/2020-04-09/remarks-security-council- covid-19-pandemic. munitário, especialmente ações de conscientiza- e escritórios do Secretariado emitiram diretrizes 5 UN (2020a). A/Res/74/270. New York available at https://undocs. ção, prevenção e resposta à COVID-19. que reorientaram as operações de campo. Em org/en/A/RES/74/270 As secções de informação pública de todas as geral, a pandemia não alterou os objetivos estra- 6 UN (2020c). S/RES/2532. New York, 1 July available at https:// operações fizeram extenso uso dos meios de co- tégicos das missões, mas atividades operacionais undocs.org/en/S/RES/2532(2020) 7 What’s In Blue (2020). Security Council Resolution on municação disponíveis para atingir as comunida- foram impactadas. Já em relação ao apelo de ces- COVID-19 available at https://www.whatsinblue.org/2020/06/ 10 des . As ações também se relacionaram com as sar-fogo do SGNU, atos de violência continuaram security-council-resolution-on-covid-19.php especificidades de cada operação, por exemplo, nos países onde as operações multidimensionais 8 Guterres, António (2020b). 9 Idem. no Sudão do Sul a UNMISS priorizou os locais de da ONU estão desdobradas, a sua maioria na Áfri- 10 UN (2020b). Community outreach & COVID-19 available at proteção dos civis, na República Democrática do ca, tendo como alvo os civis, as forças armadas https://peacekeeping.un.org/sites/default/files/20200522_ Congo (RDC) a MONUSCO desdobrou bases tem- nacionais e, em alguns casos, os peacekeepers. n peacekeeping_community_outreach_and_covid.pdf. 11 IPI – International Peace Institute (2020). Prioritization and porárias para proteger as populações vulneráveis Sequencing of Peacekeeping Mandates: The Case of MINUSMA. afetadas pela violência intercomunal, enquanto New York, Jun. 12 OCI – Observatório de Conflitos Internacionais (2020). no Mali, a MINUSMA substituiu as patrulhas pela Informativos diversos entre março e setembro de 2020. Marília: vigilância e dissuasão por meios aéreos11. Unesp available at https://www.marilia.unesp.br/#!/oci

79 JANUS 2020-2021

2.4 • As Relações Internacionais em contexto de pandemia

Nuno Oliveira Pinto UM NOVO PILAR EUROPEU PARA UMA CRISE SEM PRECEDENTES Texto entregue em Julho de 2019

A PROFUNDA CRISE ECONÓMICA E SOCIAL à es- Os princípios inscritos no Pilar Europeu dos – às condições de emprego dos nacionais de paí- cala global, o impacto provocado pela pandemia Direitos Sociais (ver quadro) irão exigir um ses terceiros que residam legalmente na União do novo coronavírus nas condições de vida e de reforço considerável da cooperação e da so- Europeia. trabalho de milhões de pessoas, o crescimento lidariedade entre os vários Estados-membros exponencial do desemprego e da precaridade da UE. O novo Plano de Recuperação, apre- Um acervo desigual laboral em diversos países constituem um impor- sentado pela Comissão Europeia, deverá assu- O facto de existir voto por maioria qualificada, e tante desafio aos compromissos assumidos pela mir, neste contexto, uma relevância acrescida, por unanimidade, em certas áreas de intervenção União Europeia (UE), e pelos seus Estados-mem- pese embora as divergências conhecidas, não levou a um desenvolvimento desigual do acervo bros, em matéria de Direitos Sociais. só pelos montantes envolvidos, mas, sobre- comunitário em matéria de política social. Em- Aprovado na Cimeira Social para o Emprego tudo, pelos compromissos assumidos pelos bora as normas de proteção sejam, de um modo Justo e o Crescimento, realizada em Gotembur- Estados-membros, em diversos domínios, no geral, abrangentes, subsistem ainda diversas lacu- go, em novembro de 2017, o Pilar Europeu dos quadro europeu. nas em vários domínios. Além disso, os processos Direitos Sociais define 20 princípios e direitos A entrada em vigor, em julho de 2019, do regu- legislativos especiais não conferem ao Parlamen- essenciais que visam assegurar a equidade e o lamento que criou a nova Autoridade Europeia to Europeu, como referimos, um papel igual e funcionamento dos mercados de trabalho e dos do Trabalho, com sede em Bratislava, irá ajudar a preponderante enquanto órgão codecisor, sendo sistemas de proteção social na União Europeia. definir as regras a cumprir em matéria de direitos apenas consultado nesses casos. Trata-se do primeiro conjunto de direitos, procla- e de obrigações relacionadas com a mobilidade Numa comunicação recente, a Comissão Eu- mados pelas instituições europeias, desde a Carta transfronteiriça, mas importa sublinhar que serão ropeia defendeu um recurso mais frequente à dos Direitos Fundamentais da UE. as autoridades nacionais a quem caberá garantir votação por maioria qualificada no domínio da Atualmente, mais de 17 milhões de cidadãos eu- o seu cumprimento. política social5, possibilidade que se encontra ropeus vivem ou trabalham noutro Estado-mem- prevista nos tratados europeus, e que poderá ser bro da União Europeia, cerca de duas vezes mais utilizada em algumas áreas específicas, através do que se verificava há uma década. das denominadas “cláusulas-ponte”. Os constrangimentos impostos pela pandemia Numa comunicação recente, Estas cláusulas permitem a passagem da regra da no funcionamento do Mercado Único, nomea- a Comissão Europeia defendeu unanimidade para a votação por maioria qualifica- damente no âmbito das diferentes liberdades de da em determinadas circunstâncias. No entanto, circulação, a desregulamentação dos mercados um recurso mais frequente para poderem ser ativadas o Conselho Europeu de trabalho, a deterioração das condições de vida à votação por maioria terá de decidir por unanimidade, de acordo com e das relações laborais, o dumping social, a utili- qualificada no domínio o artigo 48.º, n.º 7, do Tratado da União Europeia, 1 zação de novas formas de trabalho , são apenas da política social. sem objeção dos parlamentos nacionais e com o algumas das (muitas) questões em aberto. consentimento do Parlamento Europeu. No discurso proferido sobre o estado da União, A dimensão social da União Europeia em 2018, Jean-Claude Juncker anunciou uma re- Saber como reforçar e modernizar o modelo Em cima da mesa vão estar diversas questões visão exaustiva de todas as “cláusulas-ponte” pre- social europeu perante as profundas transforma- sensíveis, como a organização e o financiamento vistas nos tratados, tendo a Comissão Europeia ções decorrentes dos recentes desenvolvimentos de atividades comuns, nomeadamente a realiza- apresentado, com esse objetivo, três comunica- tecnológicos, da globalização, e do envelheci- ção de inspeções conjuntas, e a definição de um ções. Uma sobre política externa e de segurança mento demográfico foram alguns dos temas novo quadro de competências em matéria trans- comum (em setembro de 2018), outra sobre fis- que a Comissão Europeia pretendeu analisar no fronteiriça. calidade (em janeiro de 2019), e a terceira sobre Livro Branco sobre o futuro da Europa2, e nos Embora a maior parte das questões relativas energia e clima (em abril de 2019). documentos de reflexão que publicou sobre a à política social, em que a União Europeia tem A comunicação sobre as “cláusulas-ponte” no do- dimensão social da Europa3 e sobre o controlo poderes de ação, esteja já sujeita a votação por mínio da política social é, assim, a quarta a ser da globalização4. maioria qualificada, o que permitiu a construção, adotada pela Comissão Europeia. Como primei- Reafirmando as conclusões da Cimeira Social de ao longo dos últimos anos, de um acervo signi- ro passo, o documento defende o recurso mais Gotemburgo, o Conselho Europeu, de dezembro ficativo, um número limitado de áreas continua frequente a esta possibilidade para facilitar a de 2017, voltou a chamar a atenção para «a neces- a requerer que sejam tomadas decisões por una- tomada de decisões em matéria de não discrimi- sidade de se dar prioridade à dimensão humana e nimidade no Conselho e processos legislativos nação, procurando, paralelamente, reforçar a sua de se continuar a desenvolver a dimensão social especiais, em que o Parlamento Europeu não tem proteção. No entender da Comissão Europeia, a da União Europeia». um papel igual ao do Conselho, enquanto órgão utilização de “cláusulas-ponte” poderia também Como salientou Angela Merkel, em julho de codecisor. Referimo-nos, nomeadamente: vir a ser considerada, num futuro próximo, para 2020, na apresentação dos objetivos da presidên- – à não discriminação com base em diferentes adotar recomendações no domínio da segurança cia alemã do Conselho da UE, no segundo semes- motivos (sexo, raça ou origem étnica, religião ou social e da proteção social dos trabalhadores, ten- tre de 2020, a Europa só superará com êxito a crença, deficiência, idade e orientação sexual); do em vista a modernização e a convergência dos crise se conseguir ultrapassar as suas diferenças e – à segurança social e proteção social dos traba- sistemas de proteção social. identificar soluções comuns. «Acredito firmemen- lhadores (exceto em situações transfronteiras); Segundo a Comissão, a passagem para a votação te que a dimensão social é tão importante quanto – à proteção dos trabalhadores contra os despe- por maioria qualificada não implicaria alterações a dimensão económica. Precisamos de uma Euro- dimentos; no quadro de competências atualmente em vi- pa justa em termos económicos e sociais», referiu – à representação e defesa coletiva dos interesses gor. O âmbito e as condições para o exercício a chanceler alemã no Parlamento Europeu. dos trabalhadores e dos empregadores; dos poderes da União Europeia permaneceriam

80 inalterados, assim como os Estados-membros – Integração das prioridades definidas no PAINEL DE INDICADORES SOCIAIS continuariam a ser responsáveis por determinar Pilar dos Direitos Sociais no Semestre Eu- I. Igualdade de oportunidades e acesso as características dos seus próprios sistemas de ropeu, com a seleção das matérias sobre ao mercado do trabalho proteção social. as quais deverão ser anualmente apresen- 1. Educação, competências e aprendizagem Na comunicação intitulada “Um quadro financei- tados resultados: os princípios e os direitos ao longo da vida ro plurianual novo e moderno para a concreti- consagrados no novo pilar deverão ser tidos 2. Igualdade de género no mercado do trabalho 3. Desigualdade e mobilidade ascendente zação eficaz das prioridades pós-2020 da União em conta ao longo do Semestre Europeu para 4. Condições de vida e pobreza Europeia”6, a Comissão Europeia defende que o acompanhar, comparar e avaliar os progressos 5. Juventude orçamento da UE deverá cumprir as promessas registados. Serão também identificadas algu- II. Mercados de trabalho dinâmicos que os líderes europeus fizeram na Cimeira de mas áreas específicas, que deverão ser objeto e condições de trabalho justas Gotemburgo, em 2017, e continuar a desenvol- de uma avaliação circunstanciada. Trata-se, no- 6. Estrutura da população ativa ver a dimensão social da União, destacando a im- meadamente, da Análise Anual do Crescimento 7. Dinâmica do mercado do trabalho portância assumida pelo novo Pilar Europeu dos (no mês de novembro), que define as priorida- 8. Rendimentos, incluindo os ligados Direitos Sociais. des económicas e sociais a nível europeu, e dos ao emprego Importa, no entanto, salientar que a maior par- relatórios por país (em fevereiro/março), que III. Apoio público / Proteção e inclusão social te das competências e dos instrumentos neces- constituem a base das orientações específicas 9. Impacto das políticas públicas na redução sários para a implementação do Pilar Europeu relativas a cada Estado-membro. da pobreza dos Direitos Sociais dependem, sobretudo, das – Prestação de assistência técnica, promoção 10. Estruturas de acolhimento na primeira autoridades nacionais e regionais dos diferentes da avaliação comparativa e intercâmbio de infância Estados-membros da União Europeia. Ainda que boas práticas: o Semestre Europeu deverá 11. Cuidados de saúde a União Europeia possa desempenhar um papel proporcionar igualmente um espaço de diálo- 12. Acesso digital importante neste processo, nomeadamente em go entre as partes interessadas, promovendo Fonte: Comissão Europeia (https://ec.europa.eu/knowledge4policy/ matéria legislativa, a responsabilidade pela apli- o intercâmbio de experiências e a aprendi- online-resource/social-scoreboard_en). cação do novo pilar cabe em grande medida, zagem mútua, numa perspetiva de maior como referimos, aos seus Estados-membros. convergência em torno dos melhores de- No entanto, a Comissão Europeia não poderá sempenhos. Nesse sentido, as entidades com deixar de assumir também, em nosso entender, responsabilidades na área da política social e um papel ativo em diferentes áreas, melhorando do emprego no âmbito do Semestre Europeu, a aplicação do direito da União Europeia, favore- como o Comité do Emprego e o Comité da cendo o diálogo social nos Estados-membros, e Proteção Social, deverão assumir um papel re- avaliando os progressos alcançados em matéria levante na avaliação do grau de convergência social no âmbito do Semestre Europeu. entre as diversas políticas. – Avaliação e acompanhamento dos desempe- O Semestre Europeu nhos com recurso ao Painel de Indicadores O Semestre Europeu foi instituído em 2010. Con- Sociais: juntamente com a proposta relativa ao siste na designação dada ao primeiro semestre Pilar Europeu dos Direitos Sociais, a Comissão do ano, no âmbito do qual os Estados-membros Europeia apresentou igualmente um novo Pai- promovem uma maior coordenação das políticas nel de Indicadores Sociais (ver quadro), que de caráter económico e orçamental, assim como pretende avaliar o desempenho dos Estados- das reformas a realizar. As prioridades definidas -membros na área social e do emprego, assim e as reformas que se pretendem implementar como os objetivos definidos no pilar. Os re- constam, respetivamente, dos Programas de Es- sultados obtidos pelo painel foram utilizados, tabilidade (Programas de Convergência no caso pela primeira vez, na elaboração do Relatório dos países que não pertencem à Zona Euro) e dos Conjunto sobre o Emprego, de 2018, tendo Programas Nacionais de Reformas (PNR). os indicadores servido para apoiar as análises Num parecer7, adotado em julho de 2019, o Comité realizadas sobre cada país, relativas a esse ano. Económico e Social Europeu considera que a União Embora não esgote o debate sobre o acompa- Europeia deverá renovar o seu sistema de coordena- nhamento da aplicação do Pilar Europeu dos ção e governação em matéria de política económica, Direitos Sociais, o novo painel proporciona defendendo a aposta numa nova estratégia europeia um conjunto de informações relevantes, per- para o desenvolvimento sustentável. mitindo efetuar análises comparativas sobre Relativamente ao Semestre Europeu e aos objeti- o desempenho registado pelos vários países e vos definidos para a política de coesão, o Comité acompanhar a sua evolução. concorda com a proposta apresentada pela Co- A introdução no Semestre Europeu deste novo missão Europeia no sentido de reforçar a ligação painel de indicadores sociais poderá, no entanto, Notas 1 Refira-se, a título de exemplo, o teletrabalho, definido no entre o Semestre Europeu e o financiamento da ser significativamente mais abrangente. Deverá Código do Trabalho como uma “prestação laboral realizada política de coesão, no próximo Quadro Financei- refletir, neste ciclo de coordenação, o conjunto com subordinação jurídica, habitualmente fora da empresa ro Plurianual (2021-2027). de prioridades definidas no Pilar Europeu dos do empregador, e através do recurso a tecnologias de informação e de comunicação”. O acordo-quadro Para além do objetivo de promover o alinha- Direitos Sociais. europeu, assinado em 2002 pela ETUC, UNICE/UEAPME mento das políticas orçamentais e económicas Deverá ser esse, em nosso entender, o princi- e CEEP, constitui ainda a principal referência para a regulamentação do trabalho virtual por meio nacionais com as regras e os objetivos fixados a pal objetivo da análise realizada, no âmbito do de negociação coletiva e regulamentação estatal. nível da União Europeia, importa igualmente, em Semestre Europeu, às medidas tomadas e aos 2 COM(2017) 2025. nosso entender, que o Semestre Europeu possa progressos alcançados a nível nacional por cada 3 COM(2017) 206. 4 COM(2017) 240. contribuir também para acompanhar os progres- Estado-membro, tendo por referência o Painel de 5 COM(2019) 186 final. sos realizados no âmbito do Pilar Europeu dos Indicadores Sociais, nos três domínios de prin- 6 COM(2018) 98 final. 7 The European Semester and Cohesion policy – Towards Direitos Sociais, nomeadamente através das se- cípios inscritos no Pilar Europeu dos Direitos a new European strategy post-2020 (own-initiative opinion): guintes ações: Sociais. n https://www.eesc.europa.eu/pt/node/67711

81 JANUS 2020-2021

2.5 • As Relações Internacionais em contexto de pandemia

A UNIÃO EUROPEIA E A RESPOSTA AO COVID-19: Ana Isabel Xavier COORDENAÇÃO E RESILIÊNCIA Texto entregue em Janeiro de 2021

A promoção da saúde, a proteção dos cidadãos 2021 se deu luz verde a uma terceira vacina – da Em terceiro lugar, a luta contra a desinformação. contra ameaças à saúde e o apoio a sistemas de anglo-sueca AstraZeneca – embora envolta numa De acordo com o website www.EUvsDisinfo.eu saúde dinâmicos constituem os três objetivos verdadeira guerra comercial (ver CAIXA 1). mais de 700 casos relacionados com o corona- estratégicos da política de saúde comunitária. O Até ao momento, a Comissão investiu mais de vírus foram denunciados, tornados públicos ou Tratado de Lisboa, em vigor desde 2009, reforçou 660 milhões de euros, ao abrigo do programa identificados entre 30 de Março (data em que a a importância da política de saúde ao estipular Horizonte 2020, para desenvolver vacinas, novos Comissão criou a página web) e 22 de dezembro que «na definição e execução de todas as políti- tratamentos, testes de diagnóstico e fornecimen- de 2020. Paralelamente, o website faculta infor- cas e ações da União será assegurado um elevado to de equipamento médico. Acresce que a UE é mações que visam desfazer mitos e permitir veri- nível de proteção da saúde». parceira da iniciativa universal COVAX, destinada ficar factos para todos os cidadãos da União. Assim, a responsabilidade pelos sistemas de a assegurar o acesso equitativo e universal às va- Por fim, não menos importante, o apoio ao em- saúde continua a incumbir, em primeiro lugar, cinas contra a COVID-19, contribuindo com 400 prego, às empresas e à economia. Neste contex- aos Estados-Membros, mas a União Europeia milhões de euros em garantias e 100 milhões de to, a Comissão Europeia ativou, pela primeira enquanto tal não deixou de desempenhar um euros em subvenções de investigação. vez, uma cláusula de derrogação que autorizou papel relevante no incremento da saúde pública os Estados-membros a flexibilizar as regras orça- e na prevenção e gestão de doenças, bem como mentais e proporcionar liquidez imediata para na minimização de fontes de perigo para a saúde apoiar financeiramente os sistemas de saúde, humana e na coordenação das estratégias de saú- O Conselho Europeu pequenas e médias empresas e os trabalhadores de com e entre os Estados-Membros. Extraordinário de 17 a 21 mais afetados pela pandemia. Para o efeito, a União Europeia fez-se valer de de Julho acabou por se saldar todos os recursos e instrumentos ao seu dispor: Orçamento, orçamento… divergências o Centro Europeu de Prevenção e Controlo das numa maratona negocial e condicionalismos a fazerem parte! Doenças (ECDC) e a Agência Europeia de Medi- só comparável à discussão Foi a 10 de Julho de 2020 que o Presidente do camentos (EMA) no âmbito da Direção-Geral da e aprovação dos Tratados Conselho Europeu apresentou a sua proposta Saúde e da Segurança dos Alimentos (DG SANTE); para o Quadro Financeiro Plurianual 2021- Europeus. a estratégia em matéria de saúde «Saúde para o 2027 e o pacote de recuperação associado ao Crescimento» e o seu programa de ação (2014- combate ao COVID-19. Nesse contexto, Charles 2020); o quadro REACH (para a avaliação e registo Michel afirmava: “Os objetivos da nossa recupe- de substâncias químicas); a Autoridade Europeia Uma segunda área de importância vital, sobretu- ração podem ser resumidos em três palavras: para a Segurança dos Alimentos (EFSA); e a Estra- do com impacto no segundo trimestre do ano de primeira convergência, segunda resiliência e ter- tégia Europeia «Juntos para a saúde» que apoia a 2020, refere-se ao repatriamento de cidadãos da ceira transformação. Concretamente, isso signi- estratégia global Europa 2020 de uma economia UE1. À data de 03 de Dezembro de 2020, 90.060 fica: reparar os danos causados pelo COVID-19, inteligente, sustentável e inclusiva, mas com foco cidadãos da UE tinham sido repatriados ao abrigo reformar as nossas economias e remodelar as numa população saudável. Referir ainda, pela sua do mecanismo de proteção civil europeu. nossas sociedades”. importância estratégica, o programa EU4HEALTH 2021-2027, simultaneamente de resposta imedia- ta à gestão da pandemia e em linha com a perspe- CAIXA 1 – GUERRA CONTRATUAL NA CORRIDA ÀS VACINAS tiva de longo prazo da UE no campo da saúde. O A 29 de Janeiro de 2021, a Agência Europeia de Medicamentos deu luz verde a uma terceira vacina, desta investimento ronda os 9,4 mil milhões de euros, feita da empresa anglo-sueca AstraZeneca. Mas o clima é de declarada guerra contratual, com grande risco assumindo-se assim como o programa de saúde de falhar prazos e números e, por isso, com grande impacto para a saúde pública dos cidadãos europeus. de sempre mais significativo em termos de financia- Na verdade, à semelhança do que fez com a Moderna e com a Pfizer/Biontech, a Comissão Europeia mento para os 27 Estados-membros, organizações estabeleceu com a AstraZeneca um acordo de reserva antecipada de aquisição no valor de 336 milhões de de saúde e Organizações não governamentais. euros equivalente a 300 milhões de vacinas. Alegando dificuldades na cadeia de produção, a AstraZeneca afirmou que iria dar preferência a quem assinou contratos mais cedo e, desde logo, continuar a abastecer o governo britânico. Na prática, isso significaria entregar aos europeus apenas 30% do inicialmente pro- As dimensões de resposta da União metido até Março. Neste seguimento, Bruxelas mandou inspecionar uma das fábricas sedeadas na Bélgi- Europeia ca, exigiu a publicação do contrato e ameaçou preparar um sistema de controlo à exportação de vacinas. Quatro grandes áreas foram identificadas pela A guerra contratual adensou ainda mais com a interpretação do próprio documento que fora assinado a União Europeia como prioritárias na resposta ins- 28 de Agosto de 2020: a AstraZeneca defende-se referindo que não existe um calendário específico para titucional de cooperação e coordenação. a entrega das vacinas, mas apenas uma cláusula que obriga aos “melhores esforços” para a entrega das A primeira refere-se ao apoio à investigação sobre doses aos Estados-membros; a Comissão reconhece o facto de alguns pontos do acordo terem que ser tratamentos, meios de diagnóstico e vacinas. A 26 disputados em tribunal, mas ser crystal clear que o facto da AstraZeneca ter assinado previamente outros de Dezembro de 2020, a vacina foi disponibilizada contratos com outros clientes não a desobriga de entregar as doses que foram pedidas e pré-financiadas simultaneamente aos 27 Estados-membros para pela União Europeia. iniciar a vacinação aos grupos identificados como A verdade é que o que deveria ser uma demonstração vigorosa de solidariedade europeia, uma afirmação prioritários a partir de 27 a 29 de Dezembro. Foi a do poder de compra do mercado único e uma posição moral contra os nacionalismos da vacina com 21 de Dezembro que a Comissão Europeia auto- custos mais baixos e diversificação de apostas inteligentes, tem sido muitas vezes percecionado como rizou a introdução no mercado europeu das pri- burocrático, restritivo e lento. Alguns Estados membros, pressionados pelas suas opiniões públicas nacio- meiras vacinas contra a COVID-19 da BionTech e nais, querem mais espaço de manobra e avançar para a aquisição de outras vacinas mesmo que à revelia do arsenal de vacinas europeu. É o caso da Hungria, que depois de ter adquirido 2 milhões de doses da da Pfizer recomendadas positivamente pela Agên- vacina russa Sputnik-5, se prepara para adquirir 500 mil doses do laboratório chinês Sinopharm. cia Europeia de Medicamentos. Só em Janeiro de

82 QUADRO FINANCEIRO PLURIANUAL (QFP) 2021-2027 planos nacionais de recuperação e resiliência para Dotações totais por rubrica em milhares de milhões de euros 2021-2023, em conformidade com o Semestre QFP NEXTGENERATIONEU TOTAL Europeu. Esses planos serão avaliados em 2022, Mercado único, inovação e digitalização 132,8 mil milhões de EUR 10,6 mil milhões de EUR 143,4 mil milhões de EUR por maioria qualificada do Conselho e após pro- Coesão, resiliência e valores 377,8 mil milhões de EUR 721,9 mil milhões de EUR 1 099,7 mil milhões de EUR posta da Comissão. n Recursos naturais e ambiente 356,4 mil milhões de EUR 17,5 mil milhões de EUR 373,9 mil milhões de EUR Migração e gestão das fronteiras 22,7 mil milhões de EUR - 22,7 mil milhões de EUR Segurança e defesa 13,2 mil milhões de EUR - 13,2 mil milhões de EUR Países vizinhos e resto do mundo 98,4 mil milhões de EUR - 98,4 mil milhões de EUR Administração pública europeia 73,1 mil milhões de EUR - 73,1 mil milhões de EUR TOTAL QFP 1 074,3 mil milhões de EUR 750 mil milhões de EUR 1 824,3 mil milhões de EUR Fonte: Comissão Europeia op cit https://ec.europa.eu/info/strategy/recovery-plan-europe_pt

Dias antes, foi a França e a Alemanha que avança- importante ainda, é o acordo certo para a Europa, ram com a proposta de um fundo de recuperação neste momento. (…) Decidimos apoiar um or- para a UE de 500 mil milhões de euros, financiado çamento de 1 074 milhares de milhões de euros por emissão de dívida pela Comissão Europeia e para os próximos sete anos. Decidimos mobilizar distribuído a fundo perdido, através de subven- 750 mil milhões de euros para apoiar a recupera- ções, aos países e setores mais afetados pela crise. ção económica.”2 Porém, o Conselho Europeu Extraordinário de 17 a 21 de Julho acabou por se saldar numa mara- tona negocial só comparável à discussão e apro- vação dos Tratados Europeus. Com a pandemia a A associação sem precedentes repercutir-se de forma assimétrica na União Euro- entre o Estado de direito e os peia (com Itália e Espanha a registarem um maior número de infetados e óbitos do que qualquer valores europeus, tornou-se outro Estado-membro) testemunhou-se uma dis- um dos condicionalismos crepância que acabou por se revelar estrutural: da atribuição do Quadro os países do sul (mais afetados pelo vírus, com Financeiro Plurianual e dívidas soberanas mais elevadas e dependentes de indústrias extremamente afetadas como o do Fundo de Recuperação. turismo) e os denominados Frugais – Holanda, Dinamarca, Suécia e Áustria (receando perder fi- nanciamento comunitário, mostraram relutância No entanto, Charles Michel, no mesmo contexto, em conceder subsídios a fundo perdido aos paí- realçava ainda o pioneirismo do momento: “(…) ses em dificuldades). é a primeira vez na história da Europa que o nos- No final da reunião, o Presidente do Conselho so orçamento está claramente ligado aos nossos Europeu elogiava os progressos alcançados: “Este objetivos em matéria de clima. É a primeira vez é um bom acordo. É um acordo sólido. E, mais que o respeito pelo Estado de direito é um critério decisivo para as despesas do orçamento. É ainda a primeira vez que reforçamos em conjunto as nos- CAIXA 2 – NEXT GENERATION EU sas economias contra uma crise”.3 Mais verde, mais digital e mais resiliente. É assen- De facto, de modo a cumprir o objetivo da de neu- te nesta tríade que a União Europeia projeta, no tralidade climática até 2050, as metas climáticas da verão de 2020, um instrumento orçamentado em UE para 2030 e o Acordo de Paris, 30% do finan- 750 mil milhões de euros para apoiar a imediata ciamento terá de ser direcionado obrigatoriamente recuperação económica e social provocados pela para estas áreas. pandemia e que, no seu âmago, é um chapéu en- Para além disso, a associação sem precedentes quadrador de três iniciativas complementares. entre o Estado de direito e os valores europeus, A primeira, mais significativa, reportam-se aos fun- tornou-se um dos condicionalismos da atribuição dos do mecanismo de Recuperação e Resiliência. Na prática, 672,5 mil milhões de euros em em- do Quadro Financeiro Plurianual e do Fundo de préstimos e subvenções para apoiar reformas Recuperação. Este aspeto só ficou efetivamente e investimentos assentes nos planos de recu- firmado no Conselho Europeu de 10 e 11 de peração e resiliência dos Estados-membros Dezembro de 2020, após a Hungria e a Polónia orientados sobretudo para as transições eco- (que respondem por procedimentos de infração lógica e digital. ao abrigo do artigo 7.º por violações ao Estado A segunda refere-se à Assistência à Recuperação de Direito) desbloquearem a sua aprovação, para a Coesão e os Territórios da Europa (REACT- confiantes na apreciação futura da sua legalida- -EU), que disponibilizará 47,5 mil milhões de de pelo Tribunal de Justiça da União Europeia. euros ao Fundo Europeu de Desenvolvimento Na prática, a Comissão Europeia congelaria os Regional (FEDER), Fundo Social Europeu (FSE) fundos a um país que viole o Estado de direito e Fundo Europeu de Auxílio às Pessoas mais ca- e caberia então a esse governo encontrar apoio Notas 1 renciadas (FEAD). de maioria qualificada dos Estados-membros para https://ec.europa.eu/info/sites/info/files/20201207_ A terceira relativa a outros programas ou fundos coronavirusoutbreak_euresponse_repatriation.pdf descongelar esses mesmos fundos. 2 https://www.consilium.europa.eu/pt/press/press- europeus, como o Horizonte 2020, o InvestEU, Para além disso, em linha com o Quadro Financeiro releases/2020/07/21/remarks-by-president-charles-michel-after- o desenvolvimento rural ou o Fundo para uma the-special-european-council-17-21-july-2020/ Transição Justa (FTJ). Plurianual (ver QUADRO) e o Next Generation EU 3 https://www.consilium.europa.eu/pt/press/press- (ver CAIXA 2), os Estados membros devem elaborar releases/2020/07/21/remarks-by-president-charles-michel-after- the-special-european-council-17-21-july-2020/

83 JANUS 2020-2021

2.6 • As Relações Internacionais em contexto de pandemia

O IMPACTO DA PANDEMIA COVID-19 SOBRE Patrícia Daehnhardt AS RELAÇÕES TRANSATLÂNTICAS Texto entregue em Outubro de 2020

COMO EM TODOS OS DOMÍNIOS da política afetadas nos países europeus, demonstrando a A médio prazo, a pandemia inverterá a ten- internacional, a pandemia de COVID-19, que sua capacidade de adaptação rápida a situações dência recente de aumento dos orçamentos marcou severamente o ano de 2020, impactou de emergência médica. Mas o último estudo nacionais de defesa, com impacto negativo sobre as relações transatlânticas. Transatlantic Trends, de junho de 2020, de in- para a evolução da dinâmica das políticas de O primeiro impacto foi a falta de unidade quérito à opinião pública na Alemanha, França segurança e defesa da União Europeia que, transatlântica, evidenciada na desvalorização e Estados Unidos confirmou o efeito negativo para além do ramo da defesa tradicional, têm estratégica da aliança pelo Presidente Donald da pandemia sobre a cooperação transatlântica. que incluir as novas dimensões, como a saúde Trump - revelada, pela ausência de cooperação global, mudanças climáticas, migrações força- entre a Europa e os Estados Unidos para res- Respostas europeias das e cibersegurança. No contexto da relação ponder à pandemia, por atitudes nacionalistas O segundo impacto da pandemia de COVID-19 transatlântica, esta redução dos orçamentos na procura de máscaras, equipamento médico foi o efeito simultaneamente paralisador e im- europeus de defesa impactará sobre o obje- e vacinas e pelo acelerar da crise política tran- pulsionador para a integração europeia e cons- tivo da NATO de alocação de 2% do PIB dos satlântica já existente. tituiu um sério teste à capacidade de resposta Estados membros para as despesas militares, A crise transatlântica antecedeu contudo a da União Europeia. Num primeiro momen- reforçando a tendência de erosão da comuni- pandemia. Nos seus 72 anos de vida, nunca a to, entre março e maio de 2020, os Estados dade transatlântica. Apesar disto, é possível aliança transatlântica fora submetida a tantas membros rejeitaram uma resposta conjunta que a recessão económica promova o reforço mudanças simultâneas no seu tabuleiro geo- da União, optando por estratégias nacionais de projetos colaborativos e de mecanismos de político e o desentendimento transatlântico de fecho das fronteiras para a contenção dos cooperação de defesa bi e multilateral, como maior do que durante o período da administra- riscos para as suas populações, de redução do os que já existem entre a NATO e a UE, mas ção Trump: o presidente foi abertamente hostil número de infetados e da taxa de mortalidade. isso dependerá dos reajustes orçamentais de face à Alemanha de Ângela Merkel e ao pro- A pandemia pôs à prova a solidariedade euro- ambas as instituições e dos seus Estados mem- jeto de integração europeia, a Grã-Bretanha peia ao revelar a falta de apoio dos europeus bros assim como da evolução das estratégias retirou-se da União, e o presidente francês, à Itália e à Espanha, os países mais fustigados de combate à pandemia. Emmanuel Macron, anunciou a ‘morte cere- pela crise. O desentendimento entre os paí- Mas a pressão sobre os europeus para contri- bral’ da NATO, pela ausência de liderança dos ses do Sul – Portugal, Espanha e Itália, com buírem mais para a estabilidade europeia e Estados Unidos e falta de coordenação estraté- a França e Irlanda, que reivindicavam ‘corona transatlântica continuará enquanto os países gica com os aliados. Assistimos à erosão da co- bonds’, e a mutualização das dívidas para com- europeus da aliança não assumirem essa res- munidade de segurança pluralista e da ordem bater a recessão económica, – e os chamados ponsabilidade, e a Europa, que é uma impor- internacional liberal, e ao crescente défice de ‘países frugais’ – a Holanda, a Finlândia e Áus- tante entidade regulatória multilateral, será confiança entre os aliados europeus e os EUA, tria – que, com a concordância tácita da Alema- um mero peão de potências extra-europeias causado por divergências sérias sobre políticas nha, se opunham a medidas de mutualização e cada vez menos relevante estrategicamente comerciais, diplomacia, orçamentos de defesa, da dívida reproduzia a crise da zona do euro para os nossos aliados norte-americanos e para política de alianças, o recuo estratégico e fim de há uma década quando o tandem franco- a estabilidade do espaço euro-atlântico, em vez da liderança norte-americana de zonas de crise -alemão se opôs a uma medida semelhante. do ator estrategicamente autónomo e sobera- na vizinhança europeia, como na Líbia, Sahel, no que ambiciona ser. Somália, Síria e Iraque. Por seu turno, a recessão económica que a pan- A Europa e a competição estratégica demia provocou dificultou os esforços de recu- A pandemia pôs à prova a EUA-China peração da relação transatlântica e a consequente O terceiro impacto da pandemia do COVID-19 redução dos orçamentos europeus, incluindo as solidariedade europeia (...) foi a confirmação da ausência de liderança verbas para a segurança e defesa, reforça a ten- global dos Estados Unidos no sistema inter- dência de erosão da comunidade de segurança, nacional e na defesa da ordem internacional agravada pelo aproveitamento da Rússia e da Chi- Num segundo momento, contudo, a pandemia liberal: a pandemia reforçou a política nacio- na através de ações de ingerência em processos impulsionou o aprofundamento da integra- nalista, transacionalista e unilateralista de eleitorais democráticos, apoio a movimentos po- ção europeia. Após semanas tensas de ‘make Trump, acelerando o enfraquecimento da es- pulistas e campanhas de desinformação. or break’ do próprio projeto de integração tabilidade estratégica da ordem internacional e É certo que como organização de defesa, a europeia, dificultadas pelas negociações di- o preenchimento do vazio de poder pela China NATO, o principal pilar da defesa coletiva dessa fíceis do Brexit, os Estados Membros, sob a e Rússia. A retirada de instituições, como a Or- estrutura transatlântica, mantém a sua centra- co-liderança, julgada adormecida, da França ganização Mundial de Saúde ou a UNESCO, de lidade, com battlegroups multinacionais em e da Alemanha, demonstraram solidariedade tratados internacionais, como o Plano de Ação presença rotativa na Polónia, Lituânia, Estónia intra-europeia. O Conselho Europeu, de 21 de Conjunto sobre o programa nuclear do Irão, e Letónia, liderados pelos Estados Unidos, Ale- julho, aprovou a decisão inédita de criação um o Acordo de Paris sobre Alterações Climáticas manha, Grã-Bretanha, e Canadá como resposta Fundo de Recuperação Europeu, de 750 mil ou o Tratado de Céus Abertos, desmontaram a à anexação russa da Crimeia e à contínua “guer- milhões de euros para relançar a economia e estrutura multilateral da ordem internacional ra híbrida” na Ucrânia Oriental, ou a presen- apoiar os Estados mais afetados, representan- liberal criada após 1945 e enfraqueceram o ça reforçada no Mar Negro. E, em resposta à do um sucesso histórico na resposta solidária Ocidente enquanto aliança política. pandemia, a NATO disponibilizou capacidades da UE para a reconstrução económica, e impe- As respostas diferenciadas dos EUA e da China de transporte aéreo estratégico para fornececi- dir a fragmentação da União e a ascensão de à pandemia consolidaram a competição entre mento de equipamento médico às zonas mais partidos eurocéticos e populistas. as grandes potências e tornou-a o fator deci-

84 OS EUROPEUS VÊEM A CHINA COMO A POTÊNCIA ECONÓMICA DOMINANTE MUNDIAL damento institucional entre a NATO e a UE, % quem diz _ é a maior potência económica do mundo. escolha mais comum pelo reforço do elo político-institucional e se- Nota: Aqueles que não responderam não apareceram. Fonte: Gross domestic product (GDP), 2nd quarter 2020. PEW RESEARCH CENTER curitário com parceiros democráticos no Indo- “Perceções desfavoráveis da China atingem máximos históricos em muitos países” -Pacífico, como a Índia, o Japão, a Austrália e a Coreia do Sul, e por um consenso político en- CHINA ESTADOS UNIDOS JAPÃO UE tre os aliados sobre as novas ameaças globais 36% 5% Canadá 47% 7% e sobre quais as estratégias mais eficazes para Estados Unidos 32 52 5 6 as combater. Nem a Europa deve correr o risco de que a geoeconomia dite as suas opções na Itália 57 32 7 4 Alemanha 55 17 5 18 Aliança Atlântica, nem os EUA devem esquecer Bélgica 54 32 6 7 que as sete décadas que garantiram a sua lide- rança global assentaram num sistema de alian- Países Baixos 52 29 4 13 Espanha 51 35 5 7 ças multilaterais estruturantes dessa liderança França 48 34 8 7 norte-americana. n Suécia 47 39 4 9 Reino Unido 47 37 5 8 Dinamarca 42 34 6 16 MÉDIA 51 34 5 8

Austrália 53 34 3 5 Japão 31 53 6 4 Coreia do Sul 16 77 1 4

MÉDIA DOS 14 PAÍSES 48 35 5 7

sivo da recuperação da relação transatlântica. a excessiva dependência económica face às ca- Esta nova competição, cuja centralidade é a deias de distribuição, por exemplo de máscaras relação entre os Estados Unidos e a China, e medicamentos, e à penetração chinesa em seto- poderá galvanizar a marginalização da Aliança res estratégicos como no sistema de redes móveis Atlântica e a redefinição das alianças globais. 5G pela empresa chinesa de telecomunicações Para evitar a irrelevância estratégica, a Euro- Huawei. Mas a China tem conseguido explorar di- pa precisa de reforçar o multilateralismo e visões transatlânticas, entre aqueles aliados que, posicionar-se estrategicamente para constituir- como a Alemanha, tratam a relação com a China -se enquanto ator internacional credível, com como essencialmente geoeconómica, e os EUA, capacidade de atuação e evitar ser o teatro de que consideram a China um competidor geopolí- atuação das grandes potências, onde a China tico, apesar de não terem empoderado a relação adquire infraestrutura crítica em países econo- transatlântica para uma abordagem conjunta. A micamente vulneráveis, como aconteceu du- assinatura do Acordo Abrangente de Investimen- rante a crise da zona do euro. Um inquérito do to, entre a UE e a China, em finais de dezembro Pew Research Center, publicado em outubro de 2020, foi reflexo dessa estratégica chinesa, e de 2020, mostra que a maioria dos europeus nos Estados Unido foi, por isso, criticado tanto identificam a China e não os Estados Unidos por membros dos Partidos Republicano e Demo- como a potência económica global dominante, crata, assim como pela futura administração do mas que a reputação do país sofreu com a res- presidente Joe Biden. posta chinesa ao COVID-19, com um aumento Bibliografia geral da opinião desfavorável face à China. A revitalização da parceria BRATTBERG, Erik. «The troubling impact of COVID-19 on transatlantic relations». Carnegie Endowment for transatlântica International Peace, 20 maio 2020. Disponível em: https:// A vitória de Joe Biden como novo presidente carnegieendowment.org/2020/05/20/troubling-impact-of-covid- dos Estados Unidos foi por isso crucial para 19-on-transatlantic-relations-pub-81874 A médio prazo, a pandemia iniciar a recuperação da parceria transatlânti- DAEHNHARDT, Patrícia; GASPAR, Carlos. «A erosão da comunidade transatlântica». In Nação e Defesa 151, 2019, pp. 45-65. inverterá a tendência recente ca e o futuro da Aliança. Assim, o necessário MACRON, Emmanuel. «Emmanuel Macron warns Europe: de aumento dos orçamentos reset para revitalizar a relação transatlântica NATO is becoming brain-dead». In The Economist 7 pressupõe mudanças de ambos os lados do novembro 2019. Disponível em: https://www.economist.com/ nacionais de defesa (...) Atlântico. O regresso dos EUA aos fora multila- europe/2019/11/07/emmanuel-macron-warns-europe-nato-is- terais e a uma política multilateral de alianças becoming-brain-dead NATO. Declaração dos Chefes de Estado e de Governo, na cimeira poderá incluir um acordo comercial transa- de Londres da NATO, 3-4 dezembro 2019. Disponível em: Por último, o quarto impacto da pandemia foi a tlântico – mesmo que a contenção da China https://www.nato.int/cps/en/natohq/official_texts_171584.htm consolidação da emergência estratégica da China e o aprofundamento da presença estratégica PEW RESEARCH CENTER. «Unfavorable Views of China Reach como desafio prioritário para a Aliança Atlântica. dos norte-americana no Indo-Pacifico seja a Historic Highs in Many Countries», 6 outubro 2020. Disponível em: https://www.pewresearch.org/global/2020/10/06/ O reforço da cooperação transatlântica sobre uma prioridade da política externa da nova admi- unfavorable-views-of-china-reach-historic-highs-in-many- estratégia unificada quanto à China enquanto nistração. countries/pg_2020-10-06_global-views-china_0-01/ ‘competidor estratégico’ (EUA) e ‘rival sistémico’ Os aliados devem regressar a uma visão es- TRANSATLANTIC TRENDS 2020. «Transatlantic Opinion on Global (UE) revitalizaria a coesão transatlântica e contri- tratégica comum partilhada e a um nível de Challenges Before and After COVID-19». German Marshall Fund, Institut Montaigne, Bertelsmann Foundation, junho buiria para conter a ingerência política e tecnoló- confiança que defina uma nova estratégia de de 2020. Disponível em: https://www.gmfus.org/sites/default/ gica da China no espaço euro-atlântico e reduzir ordem internacional. Isso passa pelo aprofun- files/TT20_Final.pdf

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2.7 • As Relações Internacionais em contexto de pandemia

AMERICAN LEADERSHIP AND THE INTERNATIONAL Mark Meirowitz COMMUNITY AFTER COVID-19 Texto entregue em Outubro de 2020

SINCE THE ONSET OF THE COVID-19 PANDEMIC, Crisis and confusion on the American home front China continues to seek to control international America has been in the throes of internal poli- caused in large part by the COVID-19 pandemic has institutions such as the Food and Agriculture Or- tical conflict which goes beyond the usual con- weakened America’s resolve to be in the forefront of ganization.12 fusion that accompanies an election year in the the international community as it has traditionally The control of international institutions is essen- United States. Indeed, “[t]he pandemic has fed and historically been. tial to the success of China’s other initiatives and a raging case of partisan polarization for which activities, including its Belt and Road Initiative there is as yet no treatment or vaccine” and “has (including the militarization of ports13 such as revealed that the United States is reaching a syste- the Ream Naval Base in Cambodia), its aggressive 1 mic breaking point”. With the decline of confidence posture towards Hong Kong and Taiwan and its Among the consequences of this American do- expansion into the South China Sea, and beyond mestic political crisis are the impacts on Ameri- in domestic political into the Strait of Malacca to counter India. The can leadership in the world, and pointedly, on institutions, America’s recent 25-year deal between China and Iran14 fur- the perception of America as a world leader. leadership potential has been ther illustrates China’s strategic approach to re- These developments have taken a toll on Ameri- undermined and its capacity gional and world-wide influence and expansion. can leadership in the world, which was already In a “May 2019 study ‘People’s Republic of the challenged by the Trump Doctrine2 with its focus to serve as what President United Nations’, by the Center of New Security, on isolationism, causing America to withdraw Ronald Reagan described as a bipartisan research group”, it was suggested from its usual position of leading the way for the a “shining city on a hill” (…) that “China’s UN actions were part of its effort to rest of the world and maintaining a liberal rules- to the rest of the world has redefine how such institutions are run, shifting -based international order. America’s withdrawal away from Western concepts of democracy and from the Paris Climate Accord and other multila- been significantly reduced. human rights”.15 teral and international commitments exemplifies Here is where the global political pandemic this dynamic. comes into play. The weakening of internatio- America is not alone, since for America and the At the United Nations, China has taken steps to nal institutions and the rise of autocratic world rest of the world, the “pandemic has been a glo- control the institution and reduce the influence leaders is a cause for concern especially when bal political stress test.”3 Beyond the COVID-19 of the United States and its allies (and the rules- the United States has eschewed influence in the pandemic is the “global political pandemic”, na- -based American-led international order). For world and multilateral engagement. mely a “global democracy blight causing political example, when China “curtailed political free- What is also worrisome is the way in which life in many countries to become more polarized doms in Hong Kong…two rival declarations China and Russia have combined and coope- and less democratic”4 or what has been termed circulated at the United Nations Human Rights rated to thwart the power and influence of the “democratic decline syndrome”5. Council. One, drafted by Cuba and commending United States, which will prevent “US efforts to What has made America such a potent force in Beijing’s move, won the backing of 53 nations. maintain and shape the international order”16. world affairs is its commitment to democracy. Another, issued by the U.K. and expressing con- Indeed, China and Russia “now directly contest This is a strength when combined with other na- cern, secured 27 supporters”8. As the US pulls liberal aspects of the international order from tions’ similar commitment. back from international and multilateral commit- within that order’s institutions and forums; at However, with the decline of confidence in do- ments, China is happy to fill that void. As China the same time, they are building an alternative mestic political institutions, America’s leadership pushes to place its civil servants at the “helm order through new institutions and venues in potential has been undermined and its capacity of international institutions”, it is able to “stifle which they wield greater influence and can de- to serve as what President Ronald Reagan descri- international scrutiny of its behavior at home -emphasize human rights and civil liberties… bed as a “shining city on a hill”6 (or as an example and abroad”9. An egregious example of this was In the UN General Assembly, between 2006 and or standard bearer) to the rest of the world has Beijing’s securing a seat on the five- member pa- 2018, China and Russia voted the same way 86 been significantly reduced. nel that selects UN rapporteurs on human rights percent of the time…”17 In addition, “China America, as of this writing, is facing a national abuses “officials who used to target Beijing for and Russia have been at the forefront of crea- Presidential election with a President who tested imprisoning more than a million Uighurs at so- ting new international institutions and regional positive for the Coronavirus, a blistering dispute -called re-education camps in Xinjiang”10. In the forums that exclude the United States and the between the political parties about basic political words of Hans Blix, a former Swedish diplomat West more broadly” such as the “BRICS” (Brazil, tenets and institutions, as well as domestic poli- who chaired the UN’s weapon-inspection pro- Russia, China, India and South Africa), and “a tical upheaval. gram in Iraq, “’[t]he US is withdrawing from mul- plethora of new regional security organizations” Has all of this been caused by COVID-19? Not tilateralism to our great regret, and the Chinese such as the The Shanghai Cooperation Organi- necessarily but the pandemic has exacerbated are moving in”11. President’s Trump’s withdrawal zation (SCO).18 trends already in place. In all candor, “with the from the World Health Organization (WHO) did There have been dire predictions expressed that legitimacy of many institutions resting on their not help to secure American oversight over such America has already lost and that, in the words ability to solve problems quickly and effectively, an important international institution especially of one commentator, “[t]he deference to Wes- COVID-19 challenges political leaders and insti- during the pandemic (and after accusations of tern societies, which was the norm in the 19th tutions in ways that they cannot easily manage.7 Chinese control of the WHO). It would have been and 20th centuries, will be replaced by a growing Turning to the international arena, the world is facing better for the US to remain in the WHO where respect and admiration for East Asian ones. The a huge challenge from China – and the question is it could at least have taken note of what the or- pandemic could thus be the start of the Asian whether the US will be able to meet that challenge, ganization was doing and to counter Chinese century…The world after the crisis may see a which many have termed a threat to world stability. influence. hobbled West and a bolder China. We can expect

86 that China will use its power. Paradoxically, a First, Americans need to resolve domestic diffe- China-led order could turn out to be a more ‘de- rences. Then, America must work with its allies mocratic’ order”.19 to revive and strengthen the American-led rules I believe, however, that there is room for opti- based international order. Of course, we despe- mism. China’s clash with India in the Galwan rately need an end to the COVID-19 pandemic Valley20 and its persistent efforts to push back preferably through a proven vaccine – that will India and extend China’s influence over the definitely calm down the fractures in American Strait of Malacca, as well as China’s aggressive society and foster American efforts to build effec- militarization of islands in the South China Sea tive alliances throughout the world. and its disputes with regional powers such as the If all goes well, America will be perceived again as Philippines and Vietnam, hold out the possibili- the world leader, working to achieve democracy, ty and hope that China can be pushed back and peace and stability for all of mankind. n Notes contained. In the case of the Philippines, while 1 Chua, Amy. “Divided We Fall.” Www.Foreignaffairs.Com, 3 Aug. 2020, www.foreignaffairs.com/reviews/review- Philippine President Rodrigo Duterte did redu- essay/2020-06-01/divided-we-fall. Accessed 13 Oct. 2020. ce tensions with China in the South China Sea 2 Anton, Michael. “The Trump Doctrine.” Foreign Policy, Foreign Policy, 20 Apr. 2019, foreignpolicy.com/2019/04/20/ (SCS) following the Philippines’ decisive victory the-trump-doctrine-big-think-america-first-nationalism/. in the Permanent Court of Arbitration (which 3 Fukuyama, Francis. “The Pandemic and Political Order.” debunked China’s claims in the SCS), Duterte Www.Foreignaffairs.Com, 3 Aug. 2020, www.foreignaffairs. com/articles/world/2020-06-09/pandemic-and-political-order. is now “becoming less conciliatory toward Chi- 4 Mead, Walter Russell. “Opinion | The Global Political na”.21 Vietnam has welcomed America’s much Pandemic.” Wall Street Journal, 29 June 2020, www.wsj.com/ articles/the-global-political-pandemic-11593469913?mod=sear stronger and assertive stance against China’s chresults&page=2&pos=4. Accessed 13 Oct. 2020. claims in the SCS, which have been very proble- 5 Ibid. matic for Vietnam.22 Indeed, “[e]very step that 6 Reagan, Ronald. “Transcript of Reagan’s Farewell Address to American People.” The New York Times, 12 Jan. 1989, a newly assertive Beijing takes to advance its www.nytimes.com/1989/01/12/news/transcript-of-reagan-s- claims to regional hegemony in Asia drives nei- farewell-address-to-american-people.html. 7 Mead, Walter Russell. “Opinion | The Pandemic Is a Dress ghbors like India, Australia, Japan and Vietnam Rehearsal.” Wall Street Journal, 3 Aug. 2020, www.wsj.com/ closer to the US”.23 articles/the-pandemic-is-a-dress-rehearsal-11596495140. The “Quad” consisting of Australia, India, Japan Accessed 13 Oct. 2020. 8 O’Keeffe, Yaroslav Trofimov, Drew Hinshaw and Kate. and the United States have vital interests in com- “How China Is Taking Over International Organizations, mon in terms of pushing back and containing One Vote at a Time.” Wall Street Journal, 29 Sept. 2020, www. wsj.com/articles/how-china-is-taking-over-international- Chinese expansion. The goals of the Quad inclu- organizations-one-vote-at-a-time-11601397208. Accessed 13 de forming a “coalition of the willing and capable Oct. 2020. that seeks to ensure a favorable balance of power, 9 Ibid. 10 Ibid. deter Chinese aggression and other negative 11 Ibid. behavior, and maintain a rules-based order that 12 Gladstone, Rick. “As U.N. Turns 75, the Celebration Is Muted by Calamity and Conflict.” The New York Times, 22 Sept. 2020, they see a rising China challenging through its www.nytimes.com/2020/09/15/world/United-Nations-General- actions”.24 Assembly.html. Accessed 13 Oct. 2020. The concern still is that an America weakened by 13 Albert, Eleanor. “China’s Global Port Play.” Thediplomat.Com, 11 May 2019, thediplomat.com/2019/05/chinas-global-port- the pandemic and domestic unrest may not be play/. strong enough to be able to take the necessary 14 Hincks, Joseph. “What China’s New Deal with Iran Says About Its Ambitions in the Region.” Time, 29 July 2020, time. steps to reverse the forces arrayed against the US com/5872771/china-iran-deal/. and its allies and assert American leadership in 15 Gladstone, Rick. “As U.N. Turns 75, the Celebration Is Muted the world. by Calamity and Conflict.” The New York Times, 22 Sept. 2020, www.nytimes.com/2020/09/15/world/United-Nations-General- The very first step is for America “to its own Assembly.html. Accessed 13 Oct. 2020. house in order”. In many respects the upcoming 16 Cooley, Alexander, and Daniel H. Nexon. “How Hegemony Ends.” Www.Foreignaffairs.Com, 24 June 2020, www. November 3, 2020 election is the “most impor- foreignaffairs.com/articles/united-states/2020-06-09/ tant election in history” and that the “fate of the how-hegemony-ends. American republic – and the world – could de- 17 Ibid. 18 Ibid. 25 pend on what happens on Nov. 3. Hopefully, 19 Mahbubani, Kishore. “Kishore Mahbubani on the Dawn of the the results of the election will settle outstanding Asian Century.” The Economist, 20 Apr. 2020, www.economist. com/by-invitation/2020/04/20/kishore-mahbubani-on-the- issues. dawn-of-the-asian-century. Thereafter, America must forcefully work with its 20 Galwan Valley: China and India Clash on Freezing and allies to push back and contain China and assure Inhospitable Battlefield.” BBC News, 17 June 2020, www.bbc. com/news/world-asia-india-53076781. Accessed 13 Oct. 2020. that there will be, going forward, an American- 21 Alibe, Ted. “The Philippines Takes a Tougher Approach to Its -led rule-based international order, and not a South China Sea Claims.” Stratfor, 6 Oct. 2020, worldview. stratfor.com/article/philippines-takes-tougher-approach-its- Chinese-led world order. In light of the “wide- south-china-sea-claims. ning … values chasm that divides [China] from 22 “Vietnam’s Response to the United States’ Changing Approach the West” as a result of the “shocking policies in to the South China Sea.” Council on Foreign Relations, 4 Aug. 2020, www.cfr.org/blog/vietnams-response-united-states- Xinjiang and Hong Kong”, Europe will be driven changing-approach-south-china-sea. “back to America’s embrace”. As a result of the 23 Mead, Walter Russell. “Opinion | A World of Geopolitical Opportunity.” Wall Street Journal, 12 Oct. 2020, www.wsj.com/ aggressive posture of China in the South China articles/a-world-of-geopolitical-opportunity-11602540176. Sea, the regional powers will seek America’s help Accessed 14 Oct. 2020. and support. Throughout the world, the antido- 24 Madan, Tanvi. “What You Need to Know about the ‘Quad,’ in Charts.” Brookings, 5 Oct. 2020, www.brookings.edu/blog/ te to China’s overreach will be an alliance with order-from-chaos/2020/10/05/what-you-need-to-know-about- the United States, which will candidly not be able the-quad-in-charts/. 25 Hirsh, Michael. “The Most Important Election. Ever.” Foreign to pursue an isolationist policy, if China is to be Policy, 13 Oct. 2020, foreignpolicy.com/2020/09/25/2020- effectively contained. election-donald-trump-joe-biden/. Accessed 13 Oct. 2020

87 JANUS 2020-2021

2.8 • As Relações Internacionais em contexto de pandemia

ARE CHINA-US RELATIONS SPIRALING DOWN INTO Mark Meirowitz A NEW COLD WAR? KEY FLASHPOINTS Texto entregue em Setembro de 2020

AMERICA AND THE WORLD ARE NOW waking and to militarize commercial ports in key stra- – Capabilities for power projection beyond the up to the multi-faceted effort of China to pro- tegic locations (also sometimes referred to as first island chain. China’s continuing improve- ject its power and influence both regionally the “string of pearls”). Hong Kong, which was ments of air and ground missile strike capabil- and globally, particularly through the influence supposed to be governed under a “one country, ities and, increasingly beyond the First Island of China’s naval power via People’s Liberation two systems” approach following the handover Chain enable other military assets to operate Army Navy (PLAN). In the South China Sea from the UK to China in 1997, has now effective- farther from China; (SCS), for example, China has sought to trans- ly been fully absorbed into mainland China with – China’s nuclear weapons policy prioritizes the form the SCS into “China’s Caribbean” (Kaplan) the enactment a repressive National Security maintenance of a survivable nuclear force that under China’s sovereign control. The US ini- Law outlawing peaceful protest, and elections can retaliate against an adversary’s first strike tially reacted with freedom of navigation oper- have been postponed. Given the Chinese ob- – and respond with sufficient strength to in- ations (FONOPS) – and by supporting States session with “One China”, suppressing Taiwan’s flict unacceptable damage on an enemy; and such as Vietnam being bullied by China in the independent existence, some have wondered if – To project and sustain military power at great- SCS. The US State Department has forcefully Taiwan is the next Hong Kong, the next target of er distances. Beyond its base in Djibouti, the challenged Chinese claims in the SCS stating Chinese aggression. The fact that the pandem- PRC has been seeking access to selected for- that “Beijing has failed to put forth a lawful, co- ic originated in China is a source of vigorous eign ports to pre-position the necessary logis- herent maritime claim in the South China Sea” debate as to whether China was responsible for tics support to sustain naval deployments in noting that the Permanent Court of Arbitration the release of the virus (with President Trump waters as distant as the Indian Ocean, the Med- (convened in connection with the dispute be- calling COVID-19 the “China Virus”). The lead- iterranean Sea and Atlantic Ocean to protect tween The Philippines and China) “rejected the ers of the World Health Organization (WHO) its growing interests. Both the PRC and Cam- PRC’s maritime claims as having no basis in in- have been accused of being under the control bodia have publicly denied having signed an ternational law”. of China, and the United States announced that agreement to provide the PLAN access to Ream It seems that suddenly China has gone from it is pulling out of the WHO, effective July 2021. Naval Base in Cambodia. Cambodia declined being perceived as a “partial power”1 to being a U.S. offer to pay to renovate a U.S.-donated a powerful State with “solar system influence building on Ream Naval Base. If China is able cast[ing] an enormous gravitational pull both to leverage such assistance into a presence at regionally and globally”.2 The long-standing fo- Ream Naval Base, it suggests that China’s over- cus on trade issues with China is now a distant China’s leaders might wish to seas basing strategy has diversified to include second to serious concerns about China’s rise as rule the world. At some point military capacity-building efforts. a military and expansionist power. they may be stretched thin and All of these developments must give American Some have even suggested that the United face vulnerabilities. All empires policy makers cause for serious concern. Ameri- States is now in a Cold War with China. Whether ca and the world are faced with a challenge very or not the US and China are in a new Cold War, face such challenges. much analogous to the rise of the Soviet Union the challenge from China is formidable. Former after the Second World War. Australian Prime Minister Kevin Rudd is of the George Kennan urged that America needed to view that “it may not yet be Cold War 2.0, but it The Confucius Institutes, long thought of as take action to contain the USSR. Like the Com- is starting to look like Cold War 1.5”. a beneficent soft power effort to provide ed- munist Party of the USSR, it can be said of the ucation exchange and resources to countries Chinese Communist Party, that the “leadership “Hide Your Strength, Bide Your Time” around the world, are now seen as a form of of the Communist Party is… always right” and (Deng Xiao Ping) – Not Anymore! “sharp power”, seeking to penetrate the “po- that the party’s “infallibility” rests on “iron disci- China is no longer hiding its real intentions and litical and information environments of target- pline”. What Kennan advocated as a response to is now outwardly pushing forward to extend ed countries” (Walker). This is accomplished the USSR applies equally to China now, namely its power and influence throughout the world. through “CAMP Vulnerability”. “In democratic “long-term, patient but firm and vigilant con- This situation has been developing steadily over countries, the spheres of culture, academia, tainment” of China’s expansive tendencies”. We time. In the words of China’s leader for life Xi media, and publishing (the so-called “CAMP” should note that the competition with China Jinping, “[o]ur nation is a continental power sectors) are open and accessible... Unfortu- may not wholly be about Communist doctrine and an oceanic power, possessing a wide range nately, however, this makes them ripe targets and might be based in nationalism as well.5 of strategic maritime interests.” Xi stated at the for sharp-power penetration”. US Secretary of There are certainly elements of nationalism 12th Party Congress of the PLAN that a “power- State Mike Pompeo announced that he wants where “China is eager to stand tall, asserting its ful and modern navy” is needed “for the realiza- the Confucius Institutes in the US to close by power in Asia and beyond” thereby overcoming tion of the Chinese Dream and the dream of a the end of 2020. a “century of humiliation”. strong military”.3 Among the key takeaways from the Pentagon’s What appeared to be a series of unconnected Report on China 2020 are the following:4 Two Roads Diverged in a Wood moves of the part of China, on further analysis – China’s strategy seeks to achieve the “great We might be able to identify two roads to Chi- seem to be elements of an organized world- rejuvenation of the Chinese nation”; na’s desire to become a superpower (“two paths wide push for Chinese hegemony and influence. – Nationalist aspirations to “return” China to a to global domination”): one runs through the The Belt and Road Initiative (BRI) touted as a position of strength, prosperity and leader- Western Pacific, focusing on building regional soft power effort to assist developing nations, ship on the world stage; primacy as a springboard to global power. The is now looked at as an effort to obtain influence – Strengthening the PLA into a world class mili- second road focuses less on building a position over nations stuck in a ‘debt trap’ to China, tary by the end of 2049; of unassailable strength in the Western Pacific

88 than on outflanking the US alliance system and As with China now, Kennan said that “the issue – Talwar, Puneet, “China is Getitng Mired in the force presence in the region by developing Chi- of Soviet-American relations” was “in essence a Middle East”, August 17, 2020, www.foreig- na’s economic, diplomatic, and political influ- test of the over-all worth of the United States naffairs.com ence on a global scale. Either way the threat to as a nation among nations. To avoid destruction – “The Sources of Soviet Conduct” by X, Foreign America and its allies is real and formidable.6 the United States need only measure up to its Affairs Magazing, July 1947 Areas of Future ConcernIn many respects, best traditions and prove itself worthy of preser- – US Department of State, US Position on Mar- Australia is the ‘canary in the mine’. When vation as a great nation”. Clearly, maintaining a itime Claims in the South China Sea, Michael Australia supported the effort to find out how world in which there is an American rules-based R. Pompeo, Secretary of State, July 13, 2020, the coronavirus originate in China, the Chinese order which implements the tenets of interna- www.state.gov government responded with crushing tariffs tional law and stability is the highest priority – Walker, Christopher, “What is “Sharp Power”? and other actions against Australia. Australia is at this time. America can and must do its part July 2018, Vol. 28, No. 3, www.journalof- on the front line. A Chinese official referred to to preserve a stable and peaceful world order. democracy.org Australia as a “bit of chewing gum stuck on the At minimum, we do need to immediately insti- – Yoshihara, Toshi and Holmes, James R., Red sole of China’s shoes. Sometimes you have to tute a “new architecture of détente between the Star Over the Pacific: China’s Rise and the find a stone to rub it off. one’s shoe that needs United States of China” to prevent the situation Challenge to US Maritime Strategy, Annapolis: to be kicked off”. from spiraling out of control.7 Naval Institute Press, 2018. n It is no coincidence that Chinese troops at- – Australian Prime Minister Scott Morrison, tacked Indian troops in the remote Galwan Aspen Security Forum, August 4, 2020, www. Valley, the first such clash since 1962. “China’s c-span.org greatest vulnerability in its strategy to dominate – Babones, Salvatore, “The Next Front in the the Indian Ocean – and thereby India – is the India-China Conflict Could Be a Thai Canal”, Malacca Strait... a lifeline for China’s seaborne Sept. 1, 2020, BY SALVATORE BABONES, trade and the main path of its navy toward www.foreignaffairs.com South Asia, and points further west”. China has – Brands, Hal and Sullivan, Jake, “China Has been pushing to invest in the establishment Two Paths to Global Domination”, May 22, a canal across Thailand’s Kra Isthmus, which 2020, www.foreignpolicy.com would open a second sea route from China – ‘Chewing gum stuck on the sole of our shoes’: to the Indian Ocean. Such a canal would “fit the China-Australia war of words – timeline, neatly into Beijing’s plans to encircle India… TheGuardian.com, April 29, 2020 and would allow the Chinese navy to quickly – Colby, Elbridge and Kaplan, Robert D., “The move ships to the Indian Ocean without divert- Ideology Delusion: America’s Competition ing more than 700 miles south to round the tip with China is Not About Doctrine”. September of Malaysia”. 4, 2020, www.foreignaffairs.com China recently entered into a 25-year strategic – Elbridge Colby on China’s Expanding Military partnership with Iran in trade, politics, culture Influence, C-Span, www.c-span.org. Septem- and security. Indeed “China’s growing influence ber 6, 2020 in East Asia and Africa has challenged US inter- – Gladstone, Rick, “How the Cold War Between ests, and the Middle East is the next battlefield China and US is Intensifying”, www.nytimes. on which Beijing can challenge US hegemony com, July 22, 2020. – this time through Iran”. – Green, Michael and Medeiros, Evan,“Is Tai- wan the next Hong Kong?” July 8, 2020, www. What is to be Done? foreignaffairs.comKaplan, Robert D., Asia’s Australia’s Prime Minister Scott Morrison insist- Cauldron, The South China Sea and the End ed that we “deal with the world as it is not as of a Stable Pacific, New York: Random House, we’d like it to be”. The reaction must be organ- 2014 ized and effective. – Office of the Secretary of Defense, “Military Clearly the US can’t do all this alone – it needs and Security Developments Involving the Peo- to work with its allies, in particular, Japan, Aus- ple’s Republic of China 2020: Annual Report tralia and India, the States in the South China to Congress” Sea, as well as the nations caught in China’s – “Pompeo hopeful China’s Confucius Institutes ‘debt trap’ by the BRI – to push back against will be gone from U.S. by year-end”, Sept. 1, China’s ascendancy. 2020, Reuters.com – Rogers, Katie and Mandavilli, Apoorva, Be Careful What You Wish “Trump Administration Signals Formal With- Notas For – Chinese Proverb drawal From W.H.O., www.nytimes.com, July 1 David Shambaugh, China Goes Global: The Partial Power, New York: Oxford University Press, 2013 China’s leaders might wish to rule the world. At 7, 2020 2 Elbridge Colby on China’s Expanding Military Influence, some point they may be stretched thin and face – Rudd, Kevin, “The Coming Post-COVID Anar- C-Span, www.c-span.org. September 6, 2020 vulnerabilities. All empires face such challenges. chy: The Pandemic Bodes Ill for Both Amer- 3 Toshi Yoshihara & James R. Holmes, Red Star Over the Pacific: China’s Rise and the Challenge to US Maritime Strategy, The Chinese may even make the mistake of be- ican and Chinese Power- and for the Global Annapolis: Naval Institute Press, 2018 coming “mired in the Middle East” or in some Order”, May 6, 2020. www.foreignaffairs.com 4 US Department of State, US Position on Maritime Claims in the South China Sea, Michael R. Pompeo, Secretary of State, other region and may face pushback as they re- – Saleh, Alam and Yazdanshenas, Zakiyeh, July 13, 2020, www.state.gov lentlessly push forward with their actions in the “Iran’s Pact with China is Bad News for the 5 Elbridge Colby and Robert D. Kaplan, “The Ideology Delusion: SCS, Hong Kong, Taiwan, and through the mil- West”, August 9, 2020, www.foreignaffairs. America’s Competition With China is Not About Doctrine”. September 4, 2020, www.foreignaffairs.com itarization of the BRI. It is essential for America com 6 Hal Brands and Jake Sullivan, “China Has Two Paths to Global and its allies to unite and act forcefully to push – Shambaugh, David, China Goes Global: The Domination”, May 22,2020, www.foreignpolicy.com 7 Kevin Rudd, “The Coming Post-COVID Anarchy: The Pandemic back the rise of China where China interferes Partial Power, New York: Oxford University Bodes Ill for Both American and Chinese Power- and for the with regional and global stability. Press, 2013 Global Order”, May 6, 2020. www.foreignaffairs.com

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2.9 • As Relações Internacionais em contexto de pandemia

NARRATIVAS POLÍTICAS NA PANDEMIA E O RECRUDESCIMENTO Pedro Steenhagen DO PRECONCEITO COM A CHINA Texto entregue em Outubro de 2020

NA LÍNGUA CHINESA, mais especificamente por atores diversos. Restaria saber qual narra- e geopolíticos. Nesse contexto, alguns países no mandarim, 欧美 (Ōu Měi) pode ter dois tiva prevaleceria ao longo do tempo, qual teria ocidentais promoveram duras críticas à China, significados principais. O primeiro é bastante a força para tornar-se um fato ou uma verdade alegando, por exemplo, que esta teria omitido objetivo, “Europa e Estados Unidos”, porém o para seus povos e para a História Mundial. No informações essenciais no início do surto e segundo carrega certo grau de subjetividade, Brasil, ainda hoje, ensina-se às crianças que Pe- poderia ser culpada ou pela pandemia ou, no podendo denotar a ideia de “Ocidente” ou de dro Álvares Cabral descobriu o Brasil, como se mínimo, pela forma como o novo coronavírus “mundo ocidental” em um sentido próximo a a terra brasilis ali não estivesse antes de 1500, expandiu internacionalmente no início do ano “mundo desenvolvido”. Afinal, em termos de lo- com toda a riqueza das culturas indígenas pre- de 2020. Por sua vez, o gigante asiático retru- calização geográfica, “Ocidente” é representado sentes. Não se propõe estudo sobre o período cou em variadas oportunidades, dizendo ser pelo ideograma 西 (Xī). pré-Cabral, para além de algumas menções ge- alvo de preconceito e de teorias da conspiração Trata-se de uma perspetiva bastante interessan- néricas. e buscando focar na cooperação com os países te e, por vezes, desconhecida pelas pessoas no afetados. plano ocidental, até pela questão da barreira Não cabe, aqui, esmiuçar todo o embate que linguística; contudo, a desinformação pode ge- vem ocorrendo no âmbito da pandemia, mas rar certos ruídos no diálogo com chineses, bem Narrativas são extremamente sim, partindo do reconhecimento de que esse como resultar em preconceito para com a Repú- importantes para a História choque existe, reconhecer algumas narrativas blica Popular da China. O Brasil, por exemplo, e para a construção – ou que arriscam fazer recrudescer o preconceito tendo recebido grande influência europeia e em relação à China. Para isso vale fazer uma bre- norte-americana ao longo de sua história, consi- destruição – de relações. ve comparação entre dois artigos do The New dera-se, certamente, parte do mundo ocidental York Times: “China May Be Beating the Coro- – inclusive, o atual Ministro das Relações Exte- navirus, at a Painful Cost” 1,publicado em sete riores do país, Ernesto Araújo, já deixou clara Trata-se de abordagem diferente de outros paí- de março do corrente ano, e “Italy Announces essa perceção em seus discursos e textos com ses sul-americanos, que buscaram revisar narra- Restrictions Over Entire Country in Attempt to viés conservador. Imagina-se, assim, como essa tivas implementadas pelos detentores de poder Halt Coronavirus”2, publicado pouco tempo informação pode soar estranha para uma pessoa e resgataram raízes e conhecimentos tradicio- depois, no dia nove do mesmo mês. chinesa, ou mesmo como um brasileiro poderia nais de civilizações pré-colonização. Processos A começar pelo primeiro texto, pode-se mencio- ficar desconfortável com a diferente perceção históricos distintos resultaram, obviamente, nar que ele já traz em seu subtítulo o questiona- do distante povo do País do Meio. em dissemelhantes narrativas e formas de pers- mento se outros países lutando contra o surto Aliás, “País do Meio” é a tradução direta de 中国 petiva sobre seus povos. Em contrapartida, poderiam aprender com os esforços chineses ou (Zhōng Guó), que, por sua vez, é o que a ressalta-se, dentre outros fatores, a relevância se a cura poderia ser pior que a doença, indican- língua portuguesa chama “China”. O termo em das disputas de poder e dos interesses em privi- do apreensão quanto às medidas de quarentena mandarim advém da visão de mundo chinesa, legiar determinada narrativa em detrimento de sendo adotadas. Em seu início, menciona que, representada nos mapas utilizados pelo país outra na construção de identidades – e todos surpreendentemente, o país que encobriu e ad- com seu território centralizado e baseada na no- os sentimentos inerentes a questões identitá- ministrou mal o surto inicial parecia estar con- ção de que a China seria uma referência global, rias – e de verdades amplamente reconhecidas seguindo controlá-lo, pelo menos segundo os tendo em vista sua relevância histórica, cultural, e difundidas. números oficiais, mas que estes poderiam estar geográfica, política e socioeconômica. De facto, imperfeitos ou incompletos – as próprias esco- para um representante da cultura ocidental, A pandemia da COVID-19 e as narrativas lha de palavras e estruturação argumentativa já deve gerar estranhamento não vislumbrar o glo- preconceituosas em relação à China indicam, desde o começo, a perceção negativa bo de uma maneira eurocêntrica. Tudo é uma acerca das iniciativas e dos dados chineses. questão de perspetiva e, no fundo, de narrativa. Desde o início da pandemia da COVID-19, uma Ademais, o artigo menciona que a dura estra- verdadeira guerra de narrativas políticas insta- tégia da China impõe questionamentos profun- O domínio da narrativa e o poder lou-se e mexeu, dentre outras questões, com dos e incorre em alto custo para a população e sobre a verdade aspetos eleitorais, identitários, nacionalistas suas liberdades pessoais, bem como, após trazer Narrativas são extremamente importantes para a História e para a construção – ou destruição – de relações, podendo influenciar de maneira determinante os rumos de um pensamento in- dividual ou coletivo. Por trás do desenvolvimen- to de uma narrativa e de sua aceitação como fato 中国 ou verdade pela maioria de uma população, há, geralmente, alguma espécie de disputa, e, no caso do sistema internacional, no qual variados interesses estão em jogo a todo o instante, não é incomum que essa disputa envolva poder. Um mesmo acontecimento histórico, por exem- plo, acerca da colonização europeia no conti- nente sul-americano, certamente poderia ser contado de formas absolutamente divergentes EXEMPLO DE MAPA-MÚNDI UTILIZADO NA CHINA

90 O PESO DA NARRATIVA CONTRA A CHINA NA VISÃO DOS ESTADUNIDENSES nização Mundial da Saúde. No fim, são os dois Em abril de 2020, o Pew Research Center publicou uma pesquisa demonstrando que, desde o surgimento caminhos principais a se escolher nestes tempos da pandemia da COVID-19, as visões negativas sobre a República Popular da China e seu presidente, de pandemia: a COVID-19 poderá servir para Xi Jinping, continuaram em ascensão no povo estadunidense, atingindo 66% em opiniões desfavoráveis. afastar os povos e os governos, privilegiando Tratava-se, então, de um recorde desde que o centro começou esse tipo de exame, em 2005. suas divergências e dificultando o entendimen- Vale notar que, entre 2017, quando Donald Trump assumiu a presidência dos Estados Unidos e começou, to mútuo, ou para aproximá-los, valorizando a partir daí, a promover a construção de narrativas preconceituosas e a impulsionar sua guerra comercial suas semelhanças e superando diferenças cultu- contra a China, e 2020, houve um crescimento de quase 20% no número de estadunidenses que tinham rais. Torce-se pela segunda alternativa. opiniões desfavoráveis em relação ao País do Meio. Certamente, há de se considerar que o advento do novo coronavírus e o recrudescimento das críticas ao gigante asiático, inclusive, por meio de termos É hora de almejar relações internacionais mais estigmatizantes, sejam fatores relevantes para esse aumento; contudo, entre 2017 e 2019, portanto ainda diversas e menos dualistas. Afinal, nenhum Esta- no período pré-pandemia, a percentagem já havia dado um salto de 47% para 60%, então o maior índice do é perfeito, e toda nação tem muito a ensinar, negativo. inclusive, e, hodiernamente, talvez principal- Em mais uma pesquisa do tipo, publicada em julho de 2020, ou seja, apenas quatro meses após a reali- mente, a China. A Ásia, liderada pelo País do zação da investigação anterior, percebeu-se novo recorde histórico, com 73% dos estadunidenses tendo Meio, ganha crescente importância na política e uma visão desfavorável à China. Dentre outros fatores envolvidos, destaca-se que a deterioração das na economia internacionais, e isso deve ser leva- relações entre os países, acompanhada do uso de narrativas políticas negativas direcionadas à China, do em consideração pelo Ocidente, que vê seu relaciona-se à deterioração dos indicadores de opinião dos estadunidenses sobre o gigante asiático. De histórico e pleno domínio sobre o pensamento facto, narrativas influenciam os rumos de uma nação e sua perceção de mundo. Reverter o corrente qua- e a prática internacionais ser desafiado, em prol dro de disputas e de desconfiança em prol de uma busca de cooperação e de respeito mútuo é o desafio de uma maior democratização do sistema inter- de ambos os países no mundo pós-pandêmico. nacional. Em vez de seguir o instinto natural de temer e de afastar o “desconhecido”, mantendo- números positivos sobre as medidas efetivadas, os textos foram publicados, a Itália registava um -se ideias pré-concebidas e o status quo, sugere- questiona a validade desses dados. Por fim, ele recorde mundial de mortes, com quase mil em -se buscar a aproximação e a compreensão, bem promove uma crítica ao Partido Comunista da vinte e quatro horas, e já ultrapassava o total como construir pontes reais para a cooperação, China, mencionando que seu sistema autoritá- da China na metade do tempo lidando com a para a solidariedade e, por que não, para uma rio top-down dá a seus oficiais um poder quase pandemia.4 “comunidade com futuro compartilhado para a ilimitado – informações que são um tremendo humanidade”. n equívoco e desconsideram toda a complexida- O caminho da solidariedade de do sistema político chinês – e argumenta no e da cooperação sentido de uma suposta frustração crescente Para além da objetividade de absurdos como da população com o lockdown, alegando que, o termo “vírus chinês”, utilizado amplamente apesar de todas essas medidas tidas como pro- pelo presidente dos Estados Unidos Donald blemáticas, seria improvável que o vírus fosse Trump para referir-se ao novo coronavírus, a eliminado no país. Meses depois, mais especi- breve análise acima demonstra como narrativas ficamente a 6 de outubro, a China comemorava podem estar permeadas de preconceitos e de 51 dias consecutivos sem casos locais da CO- subjetividades relativas às perceções individuais VID-19, com um total de 4.634 mortes e 85.482 ou coletivas de um determinado país ou região, pessoas infetadas desde o início da pandemia.3 que, por sua vez, influenciam outras pessoas e Passando para uma breve análise do segundo coletividades local e globalmente sobre a China. artigo supramencionado, vale dizer que ele tem Com isso, corre-se o risco de, por meio da falta início lembrando que a Itália era o primeiro país de conhecimento profundo e/ou do amparo em europeu a anunciar medidas nacionais severas, versões estereotipadas do “outro”, a narrativa, que visariam a adotar os limites drásticos que es- carregada de subjetividade, gerar desinforma- tariam a funcionar na China, e questionando se ção e deteriorar relações. um Estado moderno europeu que protege suas Palavras e narrativas importam, especialmen- liberdades individuais faria os sacrifícios neces- te quando advêm de líderes e de pessoas pú- sários – repete-se, “sacrifícios necessários”. O tom, quando se trata de medidas semelhantes na Europa, já é outro daquele utilizado para a China, “um regime autoritário”, como o texto A COVID-19 poderá servir para faz questão de frisar, em antagonismo ao “Esta- afastar os povos e os governos do moderno europeu” citado. Em seguida, é mencionada uma declaração do (...) ou para aproximá-los. Notas 1 QIN, Amy. China may be beating the coronavirus, at a painful primeiro-ministro italiano, Giuseppe Conte, em cost. The New York Times, 2020. Disponível em: https://www. meio a explicações sobre as medidas sendo ado- nytimes.com/2020/03/07/world/asia/china-coronavirus-cost. html. Acessado em: 03/10/2020. tadas e os impactos na população: “Todos nós blicas ou de grandes canais de informação, já 2 HOROWITZ, Jason. Italy announces restrictions over entire temos de renunciar a alguma coisa pelo bem da que podem resultar em estigmatização, reforçar country in attempt to halt coronavirus. The New York Times, Itália”. O artigo traz, ainda, a informação de que preconceitos e incitar alguma forma de confli- 2020. Disponível em: https://www.nytimes.com/2020/03/09/ world/europe/italy-lockdown-coronavirus.html. Acessado em: um diretor do Instituto Nacional de Saúde da to, como o que vem ocorrendo entre Estados 03/10/2020. Itália, Giovanni Rezza, teria confirmado que o Unidos e China. Ao mesmo tempo, podem 3 UOL. China chega a 51 dias consecutivos sem casos locais de COVID-19. UOL, 2020. Disponível em: https://noticias.uol.com. governo tinha duas escolhas, ou promover um também incentivar e desenvolver empatia e br/ultimas-noticias/efe/2020/10/06/china-chega-a-51-dias- lockdown semelhante à Wuhan ou impor as res- amizade, promover o estreitamento de laços consecutivos-sem-casos-locais-de-covid-19.htm?utm_ trições que vinha impondo. Ao fim, menciona em prol de um mundo mais pacífico e facilitar source=meio&utm_medium=email. Acessado em: 07/10/2020. mais uma declaração de Conte, que teria ape- a cooperação, como o que deve ocorrer com 4 O GLOBO. Itália tem quase mil mortes em um dia e ultrapassa lado para o senso de dever cívico de seu povo: uma eventual vacina chinesa, que se tornará um China em número de casos. O Globo, 2020. Disponível em: https://oglobo.globo.com/mundo/italia-tem-quase-mil-mortes- “Todos devem fazer sua parte. A decisão correta bem público mundial, conforme anunciado pela em-um-dia-ultrapassa-china-em-numero-de-casos-1-24333330. é ficar em casa”. No fim do mês em que ambos China na última Assembleia Mundial da Orga- Acessado em: 04/10/2020.

91 JANUS 2020-2021

2.10 • As Relações Internacionais em contexto de pandemia

THE COVID-19 FACTOR IN PORTUGAL-CHINA Paulo Afonso Brardo Duarte RELATIONS: TIME TO TEST Texto entregue em Julho de 2020

ALTHOUGH SMALL IN TERMS OF DEMOGRAPHY, and companies to donate in order to help China sador to Portugal, George Glass, that “this Xi is economics and territory, Portugal has shown a save face abroad. A kind of reactive soft power, not China with whom the Portuguese have been pragmatic and responsible stance compared to which allows the Chinese phoenix to reemerge trading for 500 years”.7 Among the reasons that neighbor Spain, but also to other European and from the ashes, while in the process it helps lead the US, as well as France and Germany to non-European countries in the way it has han- others to rise as well. China’s mask diplomacy fear an excessive opening of Portugal in relation dled human losses vis-à-vis COVID-19. Due to its is likely to help China killing two birds with one to China, let us emphasize the fact that Portugal faster and more effective response (praised by stone. On the one hand, it enables Beijing to save is the first country in the EU issuing public debt commentators and international media), Portu- face vis-à-vis a heterogeneous international com- in renminbi (also called ‘Panda Bonds’). Besides, gal is referred to as an exception in the European munity. On the other hand, the mask diplomacy Portuguese private bank Millennium BCP has be- Union (EU) (Financial Times 2020). is likely to make China benefit from the crisis to come the first European bank to issue Union Pay come out stronger in the end.3 credit cards. Testing Geopolitics: Facts, Fears There is a historic déjà-vu, although not with a But there are also fears that the Portuguese and Hopes Europe devastated by a pandemic, but rather by scheme of the Golden Visa enables non-EU citi- Albeit Portuguese culture is not a collectivist one, a world war that created a need. It was necessity zens to travel into the Schengen space, in addi- contrary to Chinese culture (in which there is a that gave meaning and foundation to the Marshal tion to being a relatively easy way for Chinese propensity to obey to a strong figure), Portugal’s Plan, which in turn helped to consolidate the people to get Portuguese citizenship. Security capacity for adaptation was not less remarkable dollar as an international reference currency. In issues are also present in the Starlab venture. The than that of China, which built hospitals in just other words, necessity created the superpower. latter is a lab in which Portugal and China join ef- a few days. What is more, the Portuguese pop- If one recalls the saying that “there are no free forts to produce microsatellites (figure 1) as well ulation scrupulously followed the containment lunches”4, then there may be a calculated mix be- as to monitor Ocean. measures, something that did not happen, for tween altruism, revisionism and imperial temp- Now, it seems odd that Portugal opened its space example, in Italy. In short, Portugal sought to tation underlying the mask diplomacy. But not sector to China considering that Brussels had avoid the mistakes of others instead of replicating limited to the mask diplomacy. In fact, an analy- previously cancelled its cooperation with Beijing them. The same can be said about China, which sis of China’s foreign policy shows multiple and on the construction of the EU’s Galileo system, was incomparably faster in learning with its own paradoxical outcomes.5 In fact, at the same time precisely due to the EU’s complaint of espionage mistakes, i.e. with its own management of past Beijing promotes the creation of a Community of by China. Furthermore, it is not just the space episodes, such as the severe acute respiratory Common Destiny (CCD), builds artificial islands, sector which Portugal allowed China to partici- syndrome. Nonetheless, this does not invalidate defends globalization in Davos, while it hinders pate in within the framework of the Starlab, but that the Portuguese population recognizes that the penetration of Western companies in the another topical and geostrategic area: Oceans. It China has a certain moral responsibility for this Chinese market. Moreover, the CCD has created is worth mentioning here that Portugal has the virus. After all, this is not the first time that a se- an order in which the most vulnerable countries third largest Economic Exclusive Zone in the EU. rious pandemic – if we recall the Spanish flu (of become indebted in the medium and long-term Now, if the United Nations approves Lisbon’s can- Chinese origin despite its name), among other to China. didacy to almost double its maritime platform, public health crises – was born precisely in Chi- one easily understands that the Starlab main as- na. However, as shown by a survey carried out sets, i.e. satellites and Ocean (North Atlantic), will between 9 and 14 April 2020, most respondents provide China with a strategic foothold in terms (48.3%) argue that China should not be blamed At the end, history will tell us of information, surveillance, access to resources, for the COVID-19 pandemic, nor should it be whether Lisbon will choose among others. asked for any compensation.1 Even among re- spondents who believe China is responsible for to remain unconditionally loyal Winds of change: is China’s momentum the pandemic, not all argue that Beijing should to its longstanding allies or, in Portugal fading? be asked a compensation. instead, tempted to further Despite such unprecedented initiatives, COVID-19 For its part, China recognizes that it must save experience Lord Palmerston’s developments have shown that Chinese momen- face vis-à-vis the global spread and impacts of tum in Portugal may not be that strong as it has COVID-19. One of the ways through which Bei- forbidden fruit. appeared to be. Let us put it clear. As a matter jing seeks to save face is by means of donations. of fact, US has chosen the right time (Beijing fo- Several Chinese companies and Chinese citizens cused on Hong Kong riots and COVID-19 still in operating/residing in Portugal, in addition to the In the case of Portugal and lato sensu the EU, an initial stage) to pay a top-level visit to Portu- Chinese government itself, offered to donate sup- Carlos Branco devalues China’s mask’s diploma- guese port of Sines on 12 February 2020. Consid- port material to fight the pandemic. It was the cy, claiming that “Europeans will not exchange ering that China has already shown interest in the case of the Chinese millionaire Ming Chu Hsu the alliance with the US for political alignment port of Sines, US Secretary of Energy Dan Brouil- who donated 4.6 million € to Portugal, through with China or Russia”.6 Nonetheless, that has lette together with a business delegation, visited the offer of “80 ventilators and other medical pro- not prevented China from performing extraor- the Port of Sines Harbor, Logistics and Industrial tection [materials]”.2 More examples were repli- dinary advances in Portugal even before the Complex. This was not a leisure trip but geopol- cated in Portugal, through other Chinese citizens, mask diplomacy, something that makes the US itics. In fact, the US is most likely to become the more or less anonymous. However, this may uncomfortable. To be sure, Portugal, which is world’s top producer of Liquefied Natural Gas generate doubts about whether altruism really currently a case study across the EU due to the (LNG) in the coming years. That said, Portugal abounds or, instead, if it is the Chinese govern- good receptivity shown toward the Belt and Road is certainly insignificant as a market for US GNL ment himself who persuades Chinese individuals Initiative (BRI), has been warned by US Ambas- consumption, but Sines port may provide the US

92 with an effective gateway (as Sines is the closest (implicit in the accession of several EU states to European deep-water port to the US) to carry its the Asian Infrastructure Investment Bank against GNL to broad EU markets.8 Now, considering the US will), in the post-COVID-19 era China is US and China’s interest in Sines, Lisbon would still standing. Such view is shared by Luís Tomé, certainly privilege its longstanding ally. After all, who adds that “despite the uncertainty and un- Portuguese waters are NATO waters, not Chinese predictability that characterize the current sit- ones. uation, there is a clear tendency for the global More interesting perhaps of the COVID-19 test geopolitical reorganization to be favorable to to the Chinese momentum in Portugal is to China”.12 This is due, to a large extent, to the US compare the different reactions of Portuguese lack of preparedness in handling the pandemic President Marcelo Rebelo de Sousa to Donald domestically, but also to the absence of any effort Trump phone’s call on the afternoon of 1 May, on the part of Washington to lead international 2020, and later to Xi Jinping’s phone call. In the initiatives in order to fight the pandemic.13 first case, both US and Portuguese Presidents ad- In turn, the scenario is not very different in the dressed, in a quite cordial manner, several issues European Union, or rather, European disunion, of bilateral interest and referred to the econom- which curiously and paradoxically, received a ic and international situation generated by the faster support from China and Russia to fight the pandemic. During the conversation, President pandemic. In the new order that is gaining shape, Notes Trump “praised the Portuguese performance in the issue is not so much about the de-westerniza- 1 Jornal de Negócios (2020). https://www.jornaldenegocios.pt/ this pandemic outbreak and offer[ed] all the help tion of politics in Gaspar’s view, but more about economia/coronavirus/detalhe/sondagem-china-nao-e- that was considered useful and necessary”. At the what he calls de-globalization, accompanied by a responsavel-pela-epidemia 2 Sic Notícias (2020). https://sicnoticias.pt/especiais/ end, the two Presidents exchanged wishes “for consolidation of “competition between the Unit- coronavirus/2020-04-05-Quem-e-a-empresaria-chinesa-que- the greatest successes of the two friends in over- ed States, China and Russia, whose logic is the re- doou-equipamentos-no-valor-de-46-milhoes-a-Portugal- 3 9 14 The Wall Street Journal (2020). https://www.wsj.com/articles/ coming the current situation”. turn of regionalist protectionism”. Albeit there china-asserts-claim-to-global-leadership-mask-by- Some days later, in the evening of 7 May 2020 is no consensus among experts on the contours mask-11585752077 4 it was the Chinese President who called the of the post-COVID geopolitics, there is however See https://blog.degruyter.com/milton-friedman-no-thing-free- lunch/ Portuguese President. Again, there is a déjà-vu a point of relative convergence. In other words, 5 Duarte, P. and Leandro, F. (eds). (2020). The Belt and Road in international politics, an action taken by Chi- there is awareness that the pandemic showed Initiative – International Perspectives on an Old Archetype of a New Development Model. Singapore: Palgrave na that, based on a pavlovian logic, leads the the vulnerabilities of the global market, but also 6 Diário de Notícias (2020). https://www.dn.pt/mundo/ US to react. But this time was different. The US that “no sovereign state should continue to de- geopolitica-do-virus-o-choque-america-china-11990132.html took the initiative and China reacted. After the pend on third states in strategic domains and, of 7 Diário de Notícias (2019). https://www.dn.pt/mundo/ este-xi-nao-e-a-china-com-quem-os-portugueses-tem- Chinese regime’s informants alerted Xi Jinping course, medicines and health equipment, whose comerciado-durante-500-anos-10878774.html about Trump’s warm phone call to Marcelo, the production is dominated by China”.15 7 Duarte, P. (2020). “Portugal na Faixa e Rota: Impactos, Chinese President tried, although unsuccessful- This being said, let us stress that Portuguese for- Oportunidades e Desafios”. Brotéria, 190(4): 419-427. 8 Presidency of the Republic of Portugal (2020). ly, to replicate the friendly tone. It is necessary eign policy has been particularly skilful in dealing http://www.presidencia.pt/?idc=10&idi=176855 to understand Marcelo’s profile to realize that if with China, while keeping its old compromises 9 Esteves, J. (2020). https://sol.sapo.pt/artigo/695997/ opiniao-portugal-china-marcelo-sem-xi-coracao he does not use adjectives to describe the con- vis-à-vis the EU and the US. 10 Idem. versation with his Chinese counterpart (or with 11 Diário de Notícias (2020). https://www.dn.pt/mundo/ any other interlocutor), then it is because there geopolitica-do-virus-o-choque-america-china-11990132.html PORTUGUESE FOREIGN POLICY TRILEMMA 12 Idem. 13 was no human warmth. But as or more remark- Source: Elaborated by the author, 2020 Ibidem. able is the fact that the Portuguese President is 14 Ibidem. European Union 15 Leigh, E. (2012). “Edward Leigh’s substantive speeches highly prudent and diplomatic in his words. As in the House of Commons: May 2010 – December 2012”. such, the fact that the Portuguese President de- Collected Parliamentary Speeches. liberately criticized China for not having honored timings regarding the delivery of medical sup- General bibliography Diário de Notícias (2019). https://www.dn.pt/mundo/este-xi-nao- plies ordered by Portugal, is something unprece- e-a-china-com-quem-os-portugueses-tem-comerciado-durante- dented in a diplomat like Marcelo. But it reveals, 500-anos-10878774.html at the same time, that “the honeymoon between PORTUGAL Diário de Notícias (2020). https://www.dn.pt/mundo/geopolitica- Portugal and China is over”, as Esteves notes.10 do-virus-o-choque-america-china-11990132.html Duarte, P. (2020). “Portugal na Faixa e Rota: Impactos, Although Xi Jinping’s call was a gentle reminder Oportunidades e Desafios”. Brotéria, 190(4): 419-427. that Portugal is a key player within the BRI, the Duarte, P. and Leandro, F. (eds). (2020). The Belt and Road fact is that since the beginning until the end of China United States Initiative – International Perspectives on an Old Archetype of a New Development Model. Singapore: Palgrave the conversation, the Portuguese President never Esteves, J. (2020). https://sol.sapo.pt/artigo/695997/opiniao- referred the word BRI, contrary to what he used portugal-china-marcelo-sem-xi-coracao to do in previous occasions.11 The Portuguese unprecedented stance toward Financial Times (2020). https://www.ft.com/content/67e1661b- But even admitting that Portugal-China honey- China has shown so far the topicality of what f12b-4473-9bc2-aa2b5998ad73 moon has not come to an end (thus contradicting Lord Palmerston had once wisely observed: Jornal de Negócios (2020). https://www.jornaldenegocios. pt/economia/coronavirus/detalhe/sondagem-china-nao-e- Esteves’ thesis), in practice Portugal counts only “states have no permanent friends or allies, only responsavel-pela-epidemia for a small portion in the chess of international permanent interests”.16 This does not mean Leigh, E. (2012). “Edward Leigh’s substantive speeches in the politics. At stake is a deeper and macro restruc- nevertheless that the honeymoon with China House of Commons: May 2010 – December 2012”. turing not just of geopolitics, but also of global will last forever, as the phone call between Xi Collected Parliamentary Speeches. Presidency of the Republic of Portugal (2020). http://www. geo-economics. Regardless of all controversy Jinping and Marcelo Rebelo de Sousa has fore- presidencia.pt/?idc=10&idi=176855 around the anti-versus pro-China debate, one shadowed. At the end, history will tell us wheth- Sic Notícias (2020). https://sicnoticias.pt/especiais/ thing is clear: COVID-19 is just one more phase in er Lisbon will choose to remain unconditionally coronavirus/2020-04-05-Quem-e-a-empresaria-chinesa-que- China’s multilateralism. Indeed, if before the out- loyal to its longstanding allies or, instead, tempt- doou-equipamentos-no-valor-de-46-milhoes-a-Portugal- The Wall Street Journal (2020). https://www.wsj.com/ break of the pandemic, Chinese multilateralism ed to further experience Lord Palmerston’s for- articles/china-asserts-claim-to-global-leadership-mask-by- had already shown a remarkable sophistication bidden fruit. n mask-11585752077

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2.11 • As Relações Internacionais em contexto de pandemia

GEOPOLÍTICA: O LUGAR DE PORTUGAL ENTRE TENDÊNCIAS Samuel Caetano Vilela E TRAJETÓRIAS GLOBAIS Texto entregue em Outubro de 2020

A PANDEMIA PROVOCADA PELO NOVO CORONA- Um outro fator a ter em consideração nes- As relações UE-China VÍRUS terá consequências nas relações de poder ta breve análise é o facto de 2020 ser um ano Os primeiros meses da pandemia suscitaram a nível global. Ainda que o fenómeno seja recen- eleitoral nos EUA. Porém, independentemente várias reflexões sobre as cadeias de abasteci- te, as respostas dos Estados e a forma como o das orientações que uma futura Administração mento e distribuição e expuseram a elevada surto de COVID-19 tem vindo a evoluir permitem norte-americana reserve para a política externa, dependência que a maioria do mundo tem antecipar trajetórias de mudança na geopolítica não é previsível que as tensões entre os EUA e em relação à China. Uma análise ao discurso mundial. a China sejam facilmente ultrapassadas. Ainda político dos líderes dos países mais desenvol- No entanto, da mesma forma que muitas organi- assim, é relevante observar a atuação da admi- vidos permite identificar uma tendência para zações internacionais e atores políticos têm vindo nistração Trump. Durante os últimos quatro o protecionismo económico, pelo menos tran- a afirmar que a pandemia veio expor fragilidades anos, os EUA abandonaram o Acordo de Paris, sitoriamente, como solução para recuperar que já existiam, as reconfigurações que a geopo- reduziram compromissos com a OMC, saíram da as economias nacionais durante os próximos lítica poderá vir a conhecer, também serão resul- UNESCO, do Conselho dos Direitos Humanos e, anos. tado das tendências que já marcavam a ordem já durante a pandemia, da OMS. A União Europeia (UE), o maior bloco comer- mundial antes das autoridades chinesas terem cial do mundo, apesar do impasse que antece- assumido a gravidade da situação perante a Or- deu a aprovação do plano de recuperação para ganização Mundial de Saúde (OMS). a economia europeia, reuniu consenso quanto Antes da pandemia, o principal foco de tensão O investimento da China à necessidade de encurtar essas cadeias e, em entre grandes potências mundiais era a guerra no desenvolvimento determinados setores considerados estratégicos, comercial entre os Estados Unidos da América do seu poder marítimo garantir volumes de produção consideráveis sem (EUA) e a China – as duas maiores economias recurso aos mercados extracomunitários. mundiais. Segundo o Banco Mundial, em 2019 não se encontra limitado Para esta análise, este é um objetivo importante. a economia americana cresceu 2,3%, enquanto a a infraestruturas portuárias Atualmente, a UE é o principal parceiro comer- economia chinesa alcançou um crescimento de e tem sido acompanhado cial da China, quer em importações, quer em 6,1% do seu produto interno bruto (PIB). do crescimento da sua exportações. Para além da reindustrialização do Nenhum dos dois países ficou indiferente à pro- continente europeu, essencial para o encurtar pagação da COVID-19, mas o efeito desta sobre armada naval. das cadeias de abastecimento e distribuição, a as suas economias é bastante distinto. As perspe- Comissão Europeia afirmou que é necessário tivas do Banco Mundial para 2020 indicam que proteger as empresas europeias de aquisições a economia americana terminará o ano com um Em sentido contrário, no seio da Organização estrangeiras. recuo de 6% no seu PIB. Enquanto isso, a eco- das Nações Unidas (ONU), a China gere a FAO, As decisões tomadas pela UE, no imediato e du- nomia chinesa permanecerá em crescimento, o ICAD, a UNIDO e a ITU e, fora dessa esfera, rante os próximos anos, terão consequências no perspetivando-se um aumento de 2% do PIB. liderou a criação do NDB – o banco de desen- futuro de ambas as economias e, por isso, já co- As estimativas anteriores ao início da pandemia in- volvimento dos BRICS, que é sediado em Xangai meçam a emergir sinais de maior tensão entre o dicavam que a economia chinesa iria ultrapassar a e do AIIB – o banco asiático de investimento em bloco europeu e a China. norte-americana em 2032. Não obstante, as tensões infraestruturas, com sede em Pequim. Ambos mais recentes entre as duas maiores economias não os bancos têm funcionado como alternativas ao O lugar ocupado por Portugal podem ser encaradas como uma nova “guerra fria”. Banco Mundial. O volume de investimento chinês em Portugal Ao contrário do que aconteceu no tempo da União Em suma, para além dos ritmos de crescimento superou os 9.000 milhões de euros em 2018. É das Repúblicas Socialistas Soviéticas, a China não que, cumulativamente, ano após ano, vão apro- o segundo país europeu que mais investimento pretende destruir o modelo capitalista. Aliás, o cres- ximando o PIB chinês do PIB americano, os EUA direto recebeu da China desde 2010, tendo a sua cimento da economia chinesa, sobretudo desde a têm vindo a reduzir as suas responsabilidades maioria sido canalizado para os setores da ener- sua adesão à OMC em 2001, mostra o quanto tem no sistema internacional, enquanto a China re- gia, eletricidade, finanças, seguros e, também, o beneficiado deste sistema económico. força a sua importância. imobiliário.

CRESCIMENTO DO PIB CHINÊS E NORTE-AMERICANO, EM TRILIÕES DE DÓLARES (ESCALA ANGLO-SAXÓNICA) Fonte: Banco Mundial, disponível em https://data.worldbank.org/indicator/NY.GDP.MKTP.CD?end=2019&locations=CN-US&start=2000&view=chart China EUA

25000 20529 21374 19485 18707 20000 17522 18219 16197 16785 14713 14992 15543 13815 14452 14449 15000 13037 14343 11458 12214 13895 10252 10582 10936 12310 10476 11062 11233 10000 9570 7552 8532 6087 4594 5102 5000 3550 1955 2286 2752 1211 1339 1471 1660 0 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019

94 Porém, em 2016, aquando da aquisição da maio- posicionamento geográfico do país é relevante A história da diplomacia portuguesa mostra que ria do capital da entidade que gere o Porto de para a afirmação da China como principal po- a política externa do país foi sempre desenvolvi- Pireu, na Grécia, o consórcio China Ocean Shi- tência mundial e a história da diplomacia por- da de forma alinhada com os interesses da po- pping Company assumiu o seu interesse no tuguesa mostra que Portugal sempre procurou tência marítima dominante. A adesão à UE, então porto de Sines. Segundo dados do Centro de encontrar-se alinhado com a potência marítima Comunidade Económica Europeia (CEE), parece Estudos Estratégicos Internacionais, a China está dominante, mas o país encontra-se integrado na ter invertido momentaneamente essa tendência. atualmente presente em 46 portos ou projetos UE e na NATO. Todavia, a posição geográfica do país não mudou portuários no continente africano. Em termos No entanto, a conjuntura atual é diferente: com e a importância do oceano Atlântico tem vindo a crescer novamente. geoestratégicos, a China tem claramente um o Brexit, Portugal estará pela primeira vez inte- Em termos diplomáticos, perante a perda do poder plano para o controlo das rotas comerciais nos grado numa organização internacional da qual o marítimo, Portugal aprofundou a sua aliança com a Reino Unido não faz parte (com a devida exce- oceanos Índico e Atlântico. Inglaterra. À medida que os EUA foram consolidan- Revisitar a história mundial permite compreen- ção para a CPLP). E esta é uma circunstância que do o seu papel liderante, na sequência da II Guerra der facilmente a trajetória seguida pela China. ocorre a par do isolacionismo norte-americano, Mundial, Portugal também acabou por estreitar as Portugal e Espanha coincidiram como grandes de controvérsias levantadas no seio da NATO e suas relações com os norte-americanos. A sua po- potências mundiais, justamente durante o pe- de uma pandemia que obrigará o país a definir sição geográfica permitiu que fosse membro funda- ríodo em que dominaram os mares e as rotas um novo conceito estratégico. dor da Organização do Tratado do Atlântico Norte comerciais. A Inglaterra afirmou-se enquanto su- Após alguns anos de trabalho, em 2009, Portugal (NATO), mesmo durante o isolacionismo do Estado perpotência mundial pelo mesmo motivo. Atual- entregou à ONU uma proposta de extensão da Novo e, já em democracia, em 1995, celebrou com mente, os EUA são a maior potência marítima e, sua zona económica exclusiva (ZEE), cuja deci- os EUA um acordo bilateral de cooperação e defesa. claro, a potência dominante a nível global. são será tomada em 2021. Atualmente, Portugal No que respeita à China, as boas relações entre Dados da OMC demonstram que mais de 80% do detém a terceira maior ZEE da UE. Porém, com a Portugal e o país asiático não são recentes. Existe comércio mundial é transportado por via marí- saída do Reino Unido e, considerando que parte um tratado de amizade e comércio com mais de tima. Neste sentido, o pensamento de Alfred T. da ZEE francesa não se situa no Atlântico, Portu- 130 anos. No entanto, o expansionismo comer- cial da China, sobretudo após a adesão à OMC, Mahan, um dos mais notáveis precursores da gal terá a maior ZEE da UE. Se a extensão reque- criou dificuldades significativas a vários setores geoestratégia moderna e do domínio marítimo rida à ONU for concedida, a área sob jurisdição da economia portuguesa. Ainda assim, poucos norte-americano, mantém-se válido: “quem con- portuguesa será equivalente a quarenta vezes o anos depois, a China tornou-se um parceiro eco- trola os mares controla o mundo”. território continental do país. nómico de referência para Portugal. Porém, o investimento da China no desenvolvi- O mapeamento de recursos realizado ao longo mento do seu poder marítimo não se encontra dos últimos anos revelou a importância do ocea- limitado a infraestruturas portuárias e tem sido no Atlântico como província biogeoquímica e Para concluir, relativamente ao poder marítimo, acompanhado do crescimento da sua armada na- energética. Nesse sentido, o interesse chinês em existem escolhas por fazer. Portugal terá de de- val. Para além da guerra comercial, a expansão da Sines não terá apenas a ver com as rotas comer- cidir se aprofunda as suas relações com a China, presença militar chinesa no mar do Sul da China ciais que servem o sudeste asiático e o continente ou se procura consolidar parcerias estratégicas e no Índico também tem criado alguns focos de africano. O conhecimento disponível aponta para para um novo polo de desenvolvimento, centra- tensão com os EUA, que ainda mantém uma parte uma intensificação das rotas comerciais e energé- do no oceano Atlântico, junto dos EUA, do Reino da sua frota na região. ticas no oceano Atlântico e a posição geográfica Unido, da Alemanha, da França e de outros par- Em 2018, James Fanell, antigo diretor de in- de Portugal faz do país um player fundamental na ceiros europeus. A expansão da ZEE portuguesa, teligência da Sexta Frota dos Estados Unidos, reorganização do tabuleiro geopolítico. o Brexit e a crise suscitada pela pandemia são a apresentou ao Congresso norte-americano um Ainda que o Tratado de Lisboa consagre as com- oportunidade para recolocar o mar no centro do relatório que alertava para o rápido processo de petências exclusivas da UE na conservação dos pensamento geoestratégico português, cuja am- desenvolvimento da força naval chinesa, que em recursos biológicos do mar, o plano de recupe- bição, no médio-longo prazo, deveria passar pela alguns aspetos já supera a norte-americana. ração para a economia europeia deverá ser en- liderança do bloco atlantista europeu. n A capacidade militar, no realismo político, é um carado como uma oportunidade para conferir requisito essencial para qualquer superpotência. peso político e económico a Portugal, relevando Não obstante, Martin Jacques, autor do best-seller novamente a sua posição na geopolítica mundial. “When China Rules the World”, ressalva que o ex- A Comissão Europeia, aquando da definição da pansionismo chinês difere da visão ocidental de estratégia para o decénio 2010-2020, assumiu a imperialismo. A fonte do poder chinês reside no intenção de desenvolver uma política para o de- crescimento económico e na criação de relações signado “mar europeu”. Os dados demonstravam, de dependência. É dessa forma que a China pre- na altura, que economia relacionada com o mar tende tornar-se o parceiro mais importante e in- correspondia a 40% do PIB europeu. O acesso a dispensável da economia mundial, para qualquer 15,5 mil milhões de euros a fundo perdido e a Estado ou bloco comercial. 26,3 mil milhões de euros a crédito em condições favoráveis, montantes que se somam aos fundos e “A fonte do poder chinês reside programas de financiamento habitualmente dispo- no crescimento económico e na criação nibilizados no âmbito de cada Quadro Financeiro de relações de dependência.” Plurianual da UE, são uma oportunidade única Bibliografia geral Casaburi, I. (2018) Chinese investment trends in Europe Chinese Contrariamente ao que aconteceu com Portu- para a redefinição da geoestratégia portuguesa. investment trends in Europe. Barcelona: ESADE. gal, Espanha, Inglaterra ou EUA, cujas posições Recentemente, a instalação da tecnologia 5G, Jacques, M. (2012). When China rules the world: The end of the geográficas privilegiaram a expansão marítima, a cujo leilão esteve suspenso até início de outubro western world and the birth of a new global order. New York: China não dispõe das mesmas condições de saída por causa da pandemia, espoletou um incidente Penguin Books. Krastev, I. (2020) Is it Tomorrow Yet? Paradoxes of the para o mar. No entanto, as suas ações recentes diplomático entre Portugal e os EUA. Neste as- Pandemic. London: Penguin Books Ltd. explicitam, de forma clara, a importância geoes- peto, a posição da UE quanto ao papel da China Mayan, A. T. (2010) The influence of Sea Power upon History, tratégica que lhe atribui. na instalação da infraestrutura permanece dúbia. 1640-1783. Cambridge: Cambridge Library Collection. A reorganização do panorama geopolítico pode- Não deve ser encarada como uma questão me- U. S. House of Representatives (2018) Hearing: Full Committee Hearing: China’s Worldwide Military Expansion (Open) rá ser acelerada pela pandemia e, nesse âmbito, nor. Tem impacto na política de segurança e defe- [https://docs.house.gov/Committee/Calendar/ByEvent. Portugal depara-se com escolhas decisivas. O sa e, evidentemente, consequências geopolíticas. aspx?EventID=108298]

95 JANUS 2020-2021

2.12 • As Relações Internacionais em contexto de pandemia

A INFLUÊNCIA DA PANDEMIA NO CONFLITO José Pita Santos ISRAELO-PALESTINIANO Texto entregue em Outubro de 2020

A REGIÃO DO MÉDIO ORIENTE tem sido palco corrente do denominado “Acordo do Milénio”, checkpoints entre West Bank e Israel) e como a de inúmeros confrontos entre vários povos e re- subsidiado pelos Estados Unidos, como mais intervenção internacional poderia ser a solução ligiões. Desde o período de ocupação otomano, um marco para a construção de paz nesta região para a possível cessação ou regulação do conflito. passando pelas conquistas cristãs e muçulmanas, do mundo. Contudo, após o anúncio público Destacamos ainda Muller (2019), que conduziu até à ocupação britânica e jordana de território do “Acordo do Milénio” e após as eleições que um estudo onde se apresenta uma análise quan- palestiniano e pela Two-State Solution, decor- reconduziram Benjamim Netanyahu no cargo titativa, com a realização de entrevistas, de modo rente da Resolução n.º 181/1947, da Assembleia de primeiro-ministro israelita, surge uma nova a que se possa percecionar a eficiência e credibili- das Nações Unidas1, com todos os problemas prioridade no espectro político: o impacto da dade da abordagem europeia no conflito israelo- políticos e de segurança os confrontos têm sido pandemia da COVID-19 na economia e subse- -palestiniano. Na sua conclusão, indica que a cíclicos. quente recessão económica. Todo o discurso União Europeia tem um papel determinante na Os Acordos de Oslo (1993) assinados pelo gover- político pós-eleições abrandou a operacionaliza- regulação e moderação do conflito, fruto do seu no de Israel e pela Organização de Libertação da ção do plano de anexação unilateral, demolições soft power, em contraste com outros países com Palestina (OLP) criaram a Autoridade Palestiniana, e redistribuição de parcelas de território com a uma intervenção mais próxima do hard power. a qual tem poderes administrativos parcelares sob Autoridade Palestiniana, levando a que parte da Depois do começo da pandemia, toda a inter- o território palestiniano. Os acordos de Oslo (II) imprensa israelita critique e questione se o “Pla- venção da União Europeia tem diminuído face às são depois emendados, em 1995, delineando a no de Paz de Trump” não será outra vítima da restrições securitárias existentes, o que pode con- gestão do território da Palestina, com a criação do COVID-194. tribuir para uma maior insegurança na região5. designado território do West Bank (Áreas A, B e C) Acresce referir que a construção de um Estado sob o controlo político da Fatah e a Faixa de Gaza, O contributo da União Europeia palestiniano com o intuito de estabilizar a região atualmente sob a égide do Hamas. Esta compar- na Palestina não pode ser dissociada da existência de um Esta- timentação territorial originou limitações no A União Europeia constitui o fiel da balança de do autocrático, em que as questões humanitárias exercício da cidadania palestiniana, seja através todo o processo de mediação e promoção dos são muitas vezes colocadas em dúvida6. Assim, a dos vários controlos fronteiriços, seja pela divisão esforços de paz na região. A esse propósito, Mer- diminuição da intervenção das missões da União política do seu território ou ainda pelo descon- linger e Ostrauskaite (2006) relevam o papel da Europeia nos territórios palestinianos constitui tentamento dos palestinianos acerca do seu pró- União Europeia no conflito israelo-palestiniano um indicador negativo no reforço para o estabe- prio governo. No plano interno, destaca-se uma e a importância estratégica das suas missões a lecimento da segurança humana e melhoria das acentuada divisão na população, que resultou operar no terreno, como parte da afirmação da condições dos seus habitantes, sendo determi- na dissolução do parlamento e a emergência do política externa europeia. De igual forma, Tocci nante a resposta conjunta aos desafios gerados presidente Mahmoud Abbas como detentor do (2009) analisa a União Europeia como o principal pela pandemia. poder legislativo, executivo e presidencial2. bastião na promoção do conceito de segurança Esta breve súmula histórica exemplifica como humana, sem comprometer Direitos Fundamen- esta região tem sido um dos principais focos de tais e exemplificando com a sucessão de eventos Covid-19: O “novo” conflito instabilidade com a ocorrência de guerra, movi- do conflito israelo-palestiniano. Israelo-Palestiniano? mentos de libertação contra a ocupação, demoli- A disseminação da COVID-19 vai indubitavelmen- ções unilaterais, manifestações ou outras formas te afetar toda a vivência no mundo árabe e em es- de protesto e incidentes nos controlos fronteiri- pecial na Palestina. Os recursos financeiros, por ços (Checkpoints) entre Israel e Palestina. Como A União Europeia constitui si já escassos devido às várias restrições impostas fatores adicionais e potenciadores do conflito, o fiel da balança de todo pelo governo israelita, vão agravar uma situação podemos indicar a ocupação ilegal de território de carência económica, pela canalização de par- palestiniano pelos israelitas, mormente pela ane- o processo de mediação te do orçamento de Estado para as medidas de xação unilateral de território com importância e promoção dos esforços urgência necessárias para dar resposta ao Estado estratégica na região (i. e. Montes Golã), seja pe- de paz na região. de Emergência declarado pelo Presidente Abbas los seus recursos naturais, seja pela importância e as consequentes medidas legislativas que se militar, na fronteira com a Líbia e a Síria. A cria- seguiram7. ção de colonatos judaicos em toda a área do West As consequências da adoção das medidas de Bank permite um controlo de todos os recursos O envolvimento das missões europeias, na verten- emergência têm impacto nos vetores da carência naturais desde a exploração aquífera, produção te de cooperação internacional e na tentativa de na prestação dos cuidados de saúde, crescimento de eletricidade e a agricultura, sendo outros dos moderar a paz naquela região do Médio Oriente, do índice de pobreza, aumento da insegurança motivos indicados para o aumento da instabilida- pode ser um baluarte pela promoção dos direitos alimentar, limitação do acesso à informação, de na região3. humanos e da igualdade de género. Zaid (2006) aumento da violência de género e o défice da Nos últimos anos, a introdução do conceito de enuncia na sua investigação que a preservação da resposta humanitária das organizações interna- segurança humana na análise dos conflitos e a segurança humana é um dos elementos consti- cionais8. mudança do paradigma da segurança constituí- tuinte e fundador da União Europeia no conflito No entanto, também podemos elencar alguns ram os alicerces para as missões de cooperação israelo-palestiniano, sendo um fator determinan- desafios na área da Justiça. A operacionalização internacionais e tem originado diferentes abor- te e positivo para a regulação do conflito. das missões europeias concentra-se, por força do dagens à implementação de missões de paz. Os No mesmo sentido, Moller (2003), Faber e Kaldor seu mandato, na esfera da reforma da Justiça e obstáculos no conflito israelo-palestiniano são (2010) e Nusseibeh (2008) também abordaram restruturação das forças policiais. Não deixa de uma realidade que está em constante mutação, esta problemática reforçando a falta de condições ser relevante que no que respeita ao acesso à conforme o mais recente efeito causa-efeito de- da segurança humana como obstáculo à paz (ex. Justiça, um dos mais importantes fatores de ava-

96 liação do Estado democrático de uma sociedade, segundo os últimos dados9, a população pales- tiniana revela um índice de maior satisfação na realização de Justiça com os tribunais religiosos da Sharia (55%), relegando os tribunais comuns para patamares de menor satisfação. Nesta “nova” realidade pandémica, o acesso à Justiça pode ser prejudicado porquanto as limitações e restrições impostas pelos sucessivos Estados de emergência não permitem a circulação de pessoas para os centros de decisão.

Este novo desafio (pandemia) veio, assim, adensar uma nebulosa agenda securitária em volta do conflito israelo-palestiniano.

Ainda no que concerne às autoridades policiais a Palestinian Civil Police (que revela o maior índice de satisfação com cerca de 55%) tem limi- tações na sua ação por força das restrições impos- tas pelo fim de coordenação entre a Autoridade Palestiniana e Israel (pós “Acordo do Milénio”), o que leva a que os elementos policiais não possam mover-se entre áreas B e C, impedidos de realizar Bibliografia geral Notas Kaldor M. (2010) “Putting people first: The growing influence o seu trabalho e limitando a influência de coorde- 1A criação do Estado de Israel em 1947, sob a égide da mesma nação da missão europeia. resolução e a divisão do território, tem sido, nas últimas of human security” in Yale Journal of International Affairs. 20-2010. 10 décadas, a razão para os confrontos políticos e do Segundo o mais recente inquérito , realizado aparecimento de movimentos de libertação para fazer face Merlinger, m. e ostrauskaite, R. (2005). Power/Knowledge in em Setembro de 2020, quando questionados à ocupação (Al-Fattal, 2010). International Peacebuilding: The Case of the EU Police os palestinianos acerca dos últimos desenvolvi- 2 Al-Fattal, R. (2010). The foreign policy of the EU in the Mission in Bosnia. Alternatives Ed., pp. 297-323. Palestinian territory. CEPS. Moller, B. (2003). “National, societal and human security: mentos no conflito, cerca de 75 % dos inquiridos 2 Bouris, D. e İşleyen, B. (2018). The European Union and Discussion – Case study of the Israel-Palestine conflict” indica que a situação pandémica contribui para practices of governing space and population in contested states: in Pan-European security and environment in the Insights from EUPOL COPPS in Palestine. Geopolitics. 1-21. Mediterranean: Conceptualizing security and o abrandamento da execução do plano de anexa- 3 Saarela, Silja. (2018). Human security policy as a mean to environmental conflicts. Edit. Hans Gunter Brauch. ção. No entanto, a maioria (76%) continua preo- build peace – the case of Eupol Copps in the occupied Müller, P. (2019). Normative power Europe and the Palestinian territories. School of politics and international cupada com a perspetiva de que a insegurança Israeli-Palestinian conflict: the EU’s peacebuilding narrative relations – University of Kent. e anarquia regressem ao quotidiano palestiniano 4 Tibon, A. (2020). Will Trump’s Mideast peace plan be another meets local narratives. European security, 28 (3), 251-267. fruto das indefinições e restrições originadas pela coronavirus victim? (Em linha) Disponível em https://www. Müller, P. e Zahla, Y. (2018). Local Perceptions of the EU’s role in haaretz.com/us-news/.premium-will-trump-s-mideast-peace- peacebuilding: The case of security sector reform in Palestine. pandemia. plan-be-another-coronavirus-victim-1.8683588. (Consultado Contemporary Security Policy 39: 1, pp. 119—141, 2018. Concluímos que este novo desafio (pandemia) em 01 de Junho de 2020). Nusseibeh, L. (2008). “Why human security is relevant to 5 veio, assim, adensar uma nebulosa agenda secu- United Nations Economic and Social Commission for Western Israel-Palestine conflict?” in Palestine-Israel Journal of Politics, Asia (2020). The impact of COVID-19 on in Economics and Culture. VOL 15, Issue 3. ritária em volta do conflito israelo-palestiniano, the Arab Region. (Em linha). Disponível em https://arabstates. Sabiote, M. A. (2008). EUPOL COPPS in the Palestinian unwomen.org/en/digital-library/publications/2020/04/ que constitui um desafio que a União Europeia Territories: A Neutral Force or a Protagonist in the Shadow?. the-impact-of-covid19-on-gender-equality-in-the-arab-region. não pode ignorar para salvaguarda da segurança (Consultado em 01 de Outubro de 2020); e Palestinian Center Fornet Cfsp Forum 6 (3): 5– 7. humana nos territórios palestinianos e a promo- for Policy and Survey Research (2020). Public Opinion Poll Tartir, A., e Ejdus, F. (2018). Effective? Locally owned? Beyond ção dos esforços de paz na região. n N.77. (Em Linha). Disponível em http://pcpsr.org/en/ the technocratic perspective on the European Union police node/817. Consultado em 29 de Setembro de 2020. mission for the Palestinian territories. Contemporary Security 6 Saarela, Silja. (2018). Policy, 39(1), 142-165. 7 A este propósito vide Palestinian Decree N. 1 of 2020, Tocci, N. (2009). “Firm in rhetoric, compromising” in reality: The Concerning the Declaration of the State of Emergency; EU in the Israel-Palestine conflict. Ethnopolitics VOL 8, No. Law by Decree N. 7 of 2020, Concerning the State of 3-4, pp. 387—401, 2009. Emergency; Law by Decree N. 8 of 2020, Concerning the Tomé, Luis and Açikalin, Suay Nihan (2019), “Chapter 1. Emergency Public Budget of 2020; Decree N. 3 of 2020, Concerning the Extension of the State of emergency; Decree Complexity Theory as a New Lens in International Relations: N. 4 of 2020, Concerning the Declaration of the State of System and Change” in erçetin, s. s. and potas, N. (Eds.), Emergency; Decree N. 5 of 2020, Concerning the Extension Chaos, Complexity and Leadership 2017. Explorations of the State of Emergency; Decree N. 6 of 2020, State of Chaos and Complexity Theory. Netherlands: IGI Global / of Emergency and Decree N. 8 of 2020, Concerning Springer, pp. 1-15. the Extension of the State of Emergency. Tomé, L. (2010). A geopolítica e o complexo de segurança na Ásia 8 United Nations Economic and Social Commission for Western Oriental: Questões teóricas e conceptuais. A Geopolítica Asia (2020). e o Complexo de Segurança na Ásia Oriental: Questões 9 WCLAC (2020). COVID-19, Violence against women and Teóricas e Conceptuais. post-lockdown interventions in Palestine Women’s Centre for Legal Aid and Counselling. (Em linha). Dísponível Zaid, Y. (2006). “Middle East Security: A View from Israel, em http://www.wclac.org/Library/All?C=5. (Consultado Palestine and Iraq” in A Human security doctrine for Europe: em 08 de Outubro de 2020). Project, Principles, Practicalities. Edit Marlies Glasius & Mary 10 Palestinian Center for Policy and Survey Research (2020). Kaldor. Routledge.

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2.13 • As Relações Internacionais em contexto de pandemia

COVID-19 | ÁFRICA António Mateus PANDEMIA AGRAVA RECECESSÃO SUL-AFRICANA Texto entregue em Janeiro de 2021

UMA QUEBRA CINCO VEZES MAIOR do que a Angola surgia aqui à cabeça, com 109 casos fatais, particularmente atingidos pelas restrições do crise de 2009, assim se compara a contração de seguido por Cabo Verde, com 40, Guiné-Bissau, confinamento, em termos de perdas diretas de mais de 50 por cento do produto interno bruto 34, Moçambique, 23, e São Tomé e Príncipe, 15, rendimentos. da economia mais industrializada do continente divergências entre parâmetros que a Organiza- Inicialmente elogiada, por ter sido, a 27 de mar- no segundo trimestre de 2020, em agravamento ção Mundial de Saúde admite possam derivar da ço, dos primeiros países a aplicar medidas abran- de um quadro de recessão já anterior à pandemia exiguidade de recursos humanos e laboratoriais gentes de combate à pandemia, a África do Sul do novo coronavírus. para identificação rigorosa das causas de mortes. voltou a ser destaque global, agora pela negativa, Na origem desta quebra acentuada o Reserve No relatório anual do Programa Alimentar Mun- quando os números de contágios e de vítimas Bank (banco central sul-africano) identificava dial (PAM) “Food Crises 2020” Angola surgia mortais dispararam após o alívio daquelas, em as fortes medidas de contenção implementadas ainda, a par da Nigéria, na linha vermelha de maio, particularmente nas províncias de Gauteng no país com impacto acentuado na produção de alertas internacionais associados à pandemia, por e do Cabo Ocidental, as mais povoadas do país. bens e serviços, rendimentos e emprego. a enfrentar em tempos de quebra acentuada dos O maior produtor mundial de platina e crómio Estatísticas globais do Centro de Recursos de preços de crude, sua principal fonte de divisas. (e um dos principais de ouro e diamantes) re- Coronavírus da Johns Hopkins University situa- duziu a metade a sua produção mineira durante vam, no final de janeiro, a África do Sul como o o confinamento mas já tinha entrado em reces- país africano mais afectado, em número de casos são desde o último quadrimestre de 2019, devido da pandemia, e o décimo quinto a nível mundial, Situação particularmente a uma série de factores conjunturais. com cerca de milhão e meio de contágios. agravada durante o primeiro Mesmo em Gauteng, a província com maior pro- Se à escala do continente essa leitura compara- período de confinamento; duto interno bruto da África do Sul e onde reside tiva pode ser questionada pela inexistência e/ou período em que Pretória estima a esmagadora maioria da comunidade lusófona fiabilidade das estatísticas, testes e diagnósticos naquele país, 16 por cento dos respectivos 12 relativos à pandemia, da maioria dos restantes ter havido perdas diárias milhões de habitantes já precisavam de ajuda ali- países africanos, o mesmo já não se verifica quan- na ordem de 13 mil milhões mentar antes da pandemia. do transposta para o plano transcontinental. de randes. A situação viu-se particularmente agravada duran- A 2 de setembro, quando África ultrapassava no te o primeiro período de confinamento, período seu conjunto a barreira das 30 mil vítimas mor- em que Pretória estima ter havido perdas diárias tais do novo coronavírus e o total de infectados na ordem de 13 mil milhões de randes. Perante já excedia um milhão e 200 mil, só na África do O PAM sublinhava que a pandemia ameaça vi- um déficit orçamental significativo, desemprego Sul contabilizavam-se 13.308 mortes e 613.017 das, fontes de subsistência e redes comerciais, elevado, empresas públicas em colapso e uma contágios (o sêxtuplo do segundo país africano de que depende, em África, a sobrevivência de quebra acentuada das receitas fiscais questiona- mais atingido, o Egito). dezenas de milhão de pessoas, e expõe países -se de onde virão os fundos necessários à gestão A título indicativo, entre os países lusófonos com grandes níveis de endividamento, sem e relançamento da economia do país. africanos, Moçambique era, nessa altura, o que meios para recorrer a novos empréstimos ou A titulo ilustrativo do impacto da pandemia sobre contabilizava o maior número de contágios, com onde o serviço das dívidas já contraídas se reve- a economia sul-africana (ver gráfico) – compa- 4.039 casos, seguido por Cabo Verde, com 3.970, la incomportável. rando as prestações do segundo trimeste de 2020 Angola, 2.279, Guiné-Bissau, 2.205, e São Tomé e Outro indicador a ter em conta neste quadro, com as de 2019 – o sector agrícola (o mais indus- Príncipe, 896. Um ranking que diverge substan- é a elevada percentagem da população africana trializado do continente) foi a única excepção a cialmente quando o indicador de referência é o urbana dependente de jornas (receitas diárias) e um quadro recessivo generalizado, com a Cons- número de mortes atribuídas à COVID-19. empregada nos sectores informal e de serviços, trução Civil, Manufatura e Minas a registarem quebras de mais de 70 por cento. NOVE SECTORES REGISTARAM UMA CONTRAÇÃO NO 2º TRIMESTRE DE 2020 Já ao nível dos lares sul-africanos e ainda com Crescimento da indústria no segundo trimestre de 2020 em comparação com o primeiro trimestre do mesmo ano. base em dados do Instituto de Estatísticas da Áfri- Sazonalmente ajustado e anualizado. Fonte: Gross domestic product (GDP), 2nd quarter 2020. Contribuição ca do Sul (ver gráfico), a variação de consumos percentual (antes e depois de pandemia) – e também aqui Agricultura 15,1% 0,3 comparando os segundos trimestres de 2020 -0,6% Sector Público -0,1 e 2019 – a quebra acentuada é quase total em PIB sectores como a hotelaria e restauração (99,9%) -28,9% Finanças -5,4 -51,0% e cresce apenas com algum relevo (3,6%) no das -32,5% Serviços -1,6 comunicações. -36,4% Electricidade, gás e água -0,7 À escala continental e regional, o Internacional Food Policy Research Institute estima que a pan- Comércio -67,6% -10,5 demia agrave em 20 por cento os níveis de po- -67,9% Transportes e comunicações -6,6 breza mundial, afundando abaixo desta linha 147 -73,1% Minas -6,0 milhões de pessoas adicionais, mais de metade (79 milhões) na África subsaariana, uma região -74,9% Manufacturas -10,8 onde, já antes da COVID-19, uma em cada cinco -76,6% Construção -3,1 sofria de fome. -100% -75% -50% -25% 0% 25% 50% 75% 100% Num cenário onde a África do Sul e a Nigéria, as duas maiores economias de África, registaram

98 quebras de cerca de um terço dos respetivos Pro- destacava pela negativa a nível continental, com A OMS alerta, por isso, que o cenário da pande- dutos Internos Brutos, no primeiro quadrimestre 65 % (18 656) do total de mortes derivadas da mia em África possa ser bem mais grave do que deste ano, milhões de comerciantes e artesãos do COVID-19 em África, seguida pela Argélia 6.6% (1 o traduzido nas estatísticas globais e mesmo o sector informal (que formam 85 por cento dos 873), Etiópia 4.8% (1 371), Nigéria 4.0% (1 125), agravamento da percentagem de casos confirma- empregos no continente) figuram na primeira Quénia 3.0% (842), Camarões 1.5% (425), Zâmbia dos, de 2,8 no início de junho, para 5 por cento linha de risco de perda de subsistência. 1.2% (346), Senegal 1.1% (320), Gana 1.1% (310), em meados de julho, seja um quadro redutor da Ao nível das principais instituições financeiras, o República Democrática do Congo 1.1% (303) e realidade. FMI aceitou perdoar seis meses de serviços das Angola 0.9% (251). O Africa CDC (Centres for Disease Control and dívidas dos 25 países mais pobres (entre eles Mo- Prevention) sublinha, nesse quadro de apreen- çambique, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe) são, que 75 por cento dos casos de contágio con- mas não o cancelamento das mesmas, matéria firmados no continente dizem respeito apenas a onde a China, o principal credor do continente, Tal como no caso da SIDA, cinco dos países africanos. finalizou no âmbito dos G-20 um acordo de pa- nos anos 80 e 90, da real E se o menor índice de mortalidade atribuído em gamento diferido. África à COVID-19 (comparativamente aos valores A chamada Debt Service Suspension Initiative dimensão sanitária do novo dos restantes continentes) possa derivar da média permitirá aos países mais pobres que solicitaram coronavírus em África etária baixa da respetiva população, o facto é que a Pequim a restruturação das respetivas dívidas – é apenas possível vislumbrar o número de mortes por causas não especificadas para poderem enfrentar os efeitos da pandemia uma ponta do iceberg. no continente aumentou consideravelmente no – suspender até ao final do ano o pagamento dos segundo e terceiro trimestres deste ano. respetivos serviços uma vez satisfeitos uma série Tal como no caso da SIDA, nos anos 80 e 90, da de critérios definidos pela China. real dimensão sanitária do novo coronavírus em Angola (o país africano com maior dívida a Pe- Um cenário que tende a agravar-se se a pande- África é apenas possível vislumbrar uma ponta do quim) e Moçambique, cujos serviços de dívida à mia não for contida. E tornar-se uma realidade iceberg. Paradoxalmente (ou não), os países com China representam 3,1 por cento e 2 por cento presente nos próximos anos a menos que sejam maiores recursos clínicos e meios de diagnóstico dos respectivos Produtos Internos Brutos desta- tomadas medidas pró-ativas de identificação, iso- do continente são os que aparentam ser os mais cam-se entre os potenciais maiores beneficiários lamento e tratamento. atingidos. dessa iniciativa. Para já, o cenário nesta frente diverge conside- E se a larga maioria dos países africanos não apre- O Finantial Times precisava a 30 de agosto que ravelmente do recomendado, com o número senta, de todo, dados atualizados sobre o evoluir a dívida externa soberana de Angola ascendia, de testes no continente a ficar muito àquem do da pandemia, entre os que o fazem, o rol de apa- nessa data, a 49 mil milhões de dólares, quase desejável, incluindo na África do Sul, de longe o rentemente “poupados” à COVD-19 é dominado metade dos quais (45 por cento) devidos por país com o maior número de testes por mil ha- pelos com menores recursos clínicos (disponí- Luanda a Pequim. bitantes, 62,4 (contra 201,88, por exemplo, em veis ou afetados à pandemia) e/ou serviços de E, se o impacto financeiro e social da pandemia Portugal), segundo dados compilados pelo “Our saúde mais frágeis do continente. exige intervenções inovadoras e a uma escala sem World In Data”). Para intervir de forma adequada a um desafio precedentes, o mesmo se verifica ao nível dos sis- Ainda de acordo com a mesma fonte, se a África com tal nível de complexidade exige-se um diag- temas de saúde. do Sul lidera em número de testes efectuados nóstico rigoroso das variáveis em causa, particu- No seu relatório mais recente (até á data deste pa- e expectavelmente, de resultados positivos dos larmente as respeitantes à evolução do contágio, per) a Organização Mundial de Saúde identifica- mesmos, menos previsível seria que em termos mortes e curas do novo coronavírus, requisito va a 20 de outubro de 20201 um total cumulativo percentuais fosse também, de longe, o mais muito longe de ser vislumbrável à escala conti- de 1 262 476 casos de COVID-19 em África, mais atingido pela pandemia, com cerca de 12,3 por nental, em África. n de metade dos quais (56%) registados na África cento de testes positivos, seguido pela República do Sul (706 304). Democrática do Congo, com 11,9 e o Gana, 8,6, No respeitante a fatalidades atribuídas à pande- sendo que apenas 12 países africanos apresenta- mia, vincava que também aqui a África do Sul se ram à OMS dados atualizados de testagem.

DESPESAS DAS FAMÍLIAS CAÍRAM NA MAIOR PARTE DOS SECTORES NO 2º TRIMESTRE DE 2020 Alterações na estrutura de consumo das famílias no 2º Trimestre de 2020 em comparação com o 1º Trimestre do mesmo ano. Sazonalmente ajustado e anualizado. Fonte: Gross domestic product (GDP), 2nd quarter 2020. Contribuição percentual Comunicações 3,6% 0,1

Casa, água, electricidade, gás e outros combustíveis 1,5% 0,2

Educação 1,1% 0,0

-3,8% Saúde -0,2 -4,3% Bens e serviços diversos -0,4

-26,8% Alimentação e bebidas não alcoólicas -4,5

-58,2% Mobiliário e equipamento para o lar -5,3

-71,4% Transporte -11,7

-86,0% Lazer e cultura -6,6

-91,5% Roupa e calçado -8,0

-92,4% Bebidas alcoólicas e tabaco -6,9

-99,9% Restauração e hotelaria -6,5 Nota -125% -75% -25% 0% 25% 75% 125% 1 External Situation Report 34, COVID-19 Situation Update for the WHO African Region, 21 October 2020

99 JANUS 2020-2021

2.14 • As Relações Internacionais em contexto de pandemia

OS IMPACTOS DA PANDEMIA COVID-19 Brígida Rocha Brito NO TURISMO MUNDIAL Texto entregue em Dezembro de 2020

“As restrições às viagens impedem também As quebras evidenciadas em algumas regiões perdas ligeiras a nível mundial de 0,4% relativa- aproveitar o potencial do turismo para a do Mundo, de 2018 para 2019, podem ser jus- mente ao ano anterior; de 2009, aquando da construção de um futuro melhor em benefício tificadas tanto pelo contexto internacional que, emergência da crise económica de impacto mun- de todos”. perante as circunstâncias dos eventos mundiais dial, que originou uma maior redução das chega- Zurab Pololikashvili (emergência de conflitos, instabilidade governa- das internacionais na ordem dos 4%. Contudo, (Secretário-Geral da UNWTO) tiva, eventos climáticos extremos, entre outros) os momentos seguintes às fases de recessão para condicionam a viagem programada e realizada o turismo anteriormente identificadas, demons- A TRANSIÇÃO DE 2019 PARA 2020 FICOU MAR- com motivações de lazer e férias, como pelas tram a capacidade de reverter a situação de for- CADA PELO SURGIMENTO imprevisto de uma cri- estratégias de marketing turístico de alguns des- ma tão positiva que se registaram aumentos se pandémica desencadeada pelo vírus Sars-Cov2 tinos em relação a outros, complementadas por superiores às quebras (cf. Gráfico). Com exceção (COVID-19), período marcado pela incerteza, so- distinções e prémios. Contudo, as análises pros- destes dois momentos, a tendência foi no senti- bretudo no que respeita aos impactos globais, mas petivas apresentadas pela UNWTO2 sugeriam do da consolidação do crescimento das chegadas também à durabilidade dos efeitos. Desde o seu que 2020 seria um ano profícuo para o setor, internacionais de turistas, podendo destacar-se surgimento e proliferação, algumas certezas têm particularmente estimulado pela multiplicação áreas regionais diferentes em função dos perío- acompanhado a evolução da pandemia, tornando- de segmentos turísticos oferecendo diversidade dos considerados. -se evidências, nomeadamente: a afetação global de atividades e programas, contribuindo para a De uma forma global, até 2019, o turismo re- em todo o Mundo, sem poupar países ou popu- dinamização interna, quer nacional quer local, velou resiliência sempre que se registaram si- lações; a sensação generalizada de insegurança das potencialidades de áreas regionais onde o tuações adversas que promoveram prejuízos, resultante de uma ameaça global invisível; a fragi- turismo representa a principal fonte de receitas. resultando em retomas sequentes. Contudo, no lidade do sistema mundial em encontrar soluções Este é o caso de pequenos territórios insulares, ano de 2020, o setor foi profundamente afetado adequadas em tempo útil que permitam conter os os denominados Pequenos Estados Insulares em pela crise pandémica provocada pelo Coronavírus canais de transmissão; o impacto negativo alarga- Desenvolvimento (SIDS). da Síndrome Respiratória Aguda Grave 2, o do em todos os sectores de atividade económica. SARS-CoV2 (COVID-19), e os impactos fizeram Um dos sectores que reconhecidamente tem sido sentir-se de forma global, com um traçado evo- particularmente afetado pela crise pandémica é o lutivo indefinido, incerto e sem prazo. As esti- turismo, seja nas atividades diretas ou indiretas. A preocupação com mativas revistas apresentadas pela UNWTO em a sustentabilidade turística Dezembro de 2020, tendo presente a evolução Tendências do turismo mundial nas diferentes dimensões ao longo do ano, sugerem quebras muito acen- Desde meados do século XX, aquando da mas- tuadas nas atividades do setor com a possibilida- sificação do turismo a nível mundial, resultado (económica, sociocultural de de perdas em todo o Mundo entre 850 e 1.100 da democratização dos tempos de lazer e das fé- e ambiental) passou a ser milhões de turistas internacionais. rias pagas, o que facilitou o acesso generalizado apresentada como estratégica às viagens, que a autonomia do setor se tornou para a UNWTO. Turismo mundial, COVID-19 uma realidade. A transição do século XX para e a Agenda 2030 XXI confirmou a valorização internacional de Os estudos que analisam o papel do turismo um setor que, além de todas as potencialidades enquanto mecanismo catalisador de desenvol- que lhe são atribuídas – económicas, sociais, A leitura dos dados desde o ano 2000 apresenta vimentos vários, em particular para os países culturais, ideológicas e ambientais – promoveu uma tendência global de crescimento até 20193, que se confrontam com situações agravadas de a proximidade entre povos e regiões, seja em com regressões pontuais em períodos de crise pobreza, apresentam o setor como central na contexto de usufruto de tempos de lazer e férias, que foram seguidas de fases de retoma. Estas si- promoção da mudança, requerendo uma aten- seja por enquadramento profissional. tuações ocorreram nos anos de 2003, aquando ção particular sempre que se atende para a sus- A análise das estatísticas do turismo regular- da crise provocada pelo vírus SARS, registando-se tentabilidade. mente divulgadas pela Organização Mundial do Turismo (UNWTO), a agência das Nações Unidas A UNWTO E A MITIGAÇÃO DE IMPACTOS COVID-19 NO TURISMO SUSTENTÁVEL especializada na promoção do turismo mundial, A Organização Mundial do Turismo (UNWTO), agência das Nações Unidas especializada na promoção do evidencia uma tendência de crescimento da im- turismo responsável e sustentável apresenta um conjunto alargado de recomendações, que é esperado portância do setor em todas as regiões, ao longo que os governos nacionais adotem de forma adaptada para a regulação do setor face à crise pandémica. do tempo, com variações em função do período Estas recomendações resultam do trabalho do Comité Mundial de Crise para o Turismo e têm por princi- 1 considerado. Contudo, em média e até 2019 , pal objetivo gerir a crise, reduzindo o impacto da pandemia no setor. A preocupação centra-se na liquidez o interesse regional foi positivo, apresentando das empresas turísticas e, de forma consequente, no emprego, requerendo a facilitação para a retoma taxas de crescimento sustentadas superiores mediante a aplicação de estímulos financeiros, e o fortalecimento da resiliência de todos os stakeholders. a 2%. Se em 2019, a média de crescimento do Neste sentido, a UNWTO propõe uma resposta integrada denominada COVID-19: Putting people first, turismo internacional foi de 4% (8% no Médio inteiramente focada na Agenda 2030, orientada por quatro princípios centrais: a) a cooperação com a Oriente, 5% na Ásia e Pacífico, 4% na Europa e Organização Mundial da Saúde (OMS) como garantia de respeito pelas orientações de saúde pública; b) em África e 2% no continente americano), em a aplicação das medidas recomendadas pela OMS como meio de redução dos canais de transmissão; c) 2018 os valores médios ultrapassaram as expec- a solidariedade entre países; d) a resiliência que tem sustentado o setor do turismo e que é considerada tativas com 6% a nível mundial (3% no Médio como peça-chave para a recuperação do setor. Entre as medidas propostas pela UNWTO, as recomenda- Oriente, 7% na Ásia e Pacífico, 6% na Europa, ções remetidas para os governos nacionais, os princípios anteriormente defendidos da ética e da respon- 9% em África e 2% no continente americano). sabilização no turismo e a sustentabilidade são transversais.

100 EVOLUÇÃO DAS CHEGADAS INTERNACIONAIS, EM MILHÕES (2000-2020) (e) estimativa. Fonte: UNWTO

1600 1,408 1,460 1400 1,333 1,243 1,143 1,197 1200 1,097 997 1,044 1000 929 952 855 912 892 756 809 2020 (estimativas) COVID-19 800 674 674 694 691 -850 milhões a -1,1 biliões

mihões 620 600 2009 Crise económica mundial 2003 400 -37 milhões (-4%) SARS 360 200 -3 milhões (-0,4%) 0 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019 2020 (e) (e)

É reconhecido o contributo do turismo para as litarista. Contudo, os segmentos de turismo am- O princípio convencionado pela UNWTO de que áreas social, económica, cultural e ambiental, bientalmente enquadrados proliferaram desde o turismo contribui para a poverty alleviation, por promover de forma ímpar a formação pro- finais da década de noventa, contribuindo para a na senda de alcançar os Objetivos de Desenvol- fissional, a capacitação e a sensibilização que preservação de espaços, nomeadamente protegi- vimento Sustentável (Agenda 2030), por facilitar são fatores determinantes para a melhoria da dos, e a conservação de espécies, em particular a aquisição de rendimento ao gerar emprego qualidade na prestação de serviços diretos (por com estatuto de ameaçadas e endémicas. qualificado, melhorar o acesso a bens e serviços, exemplo, alojamento, restauração e animação A preocupação com a sustentabilidade turística dinamizar os circuitos económicos e estimular a turística) e indiretos (tais como, a produção do nas diferentes dimensões (económica, socio- produtividade de setores confluentes fica em ris- setor primário e o artesanato que alimentam o cultural e ambiental) passou a ser apresentada co de ser conseguido. Em paralelo, o investimen- turismo). Por outro lado, favorece a criação de como estratégica para a UNWTO, atendendo ao to no setor energético por via das renováveis, empregos e o empreendedorismo, habitualmen- facto de que deste setor depende o bem-estar de tão relevante para a mitigação das alterações te considerados como instrumentos dinami- uma parte significativa da população mundial. climáticas, é secundarizado, assim como a mo- zadores da economia, tanto a nível micro, por Face à pandemia COVID-19, que proliferou em dernização de infraestruturas eficientes. As desi- via do acréscimo dos rendimentos das famílias, todo o Mundo a partir do final de 2019, e à rá- gualdades entre o rural e o urbano deixam de ser como macro, favorecendo a cobrança de impos- pida transmissão, que se descontrolou em vários uma prioridade e os desequilíbrios regionais e tos e a retenção nacional de mais valias geradas países nos diversos continentes, o setor do tu- internacionais tendem a sofrer um agravamento. pelo setor. rismo foi fortemente afetado, inicialmente com A valorização dos ecossistemas marinho e flores- Ao turismo é atribuído o qualificativo de di- abrandamento nas viagens, chegando a uma pa- tal, incluindo as ações de preservação ambiental nâmico, já que o setor concentra atividades ralisação entre Abril (variação de -97%) e Junho e conservacionistas ficam pendentes e o reforço inovadoras nas práticas, o que é confirmado de 2020 (variação de -93%). De acordo com os das identidades comunitárias com envolvimento pela diversidade de segmentos que atualmente dados apresentados pela UNWTO5, neste perío- das partes interessadas (stakeholders), refor- dominam o mercado em todo o Mundo, mobi- do, as áreas regionais mais afetadas em relação çando culturas tradicionais fica esquecido. Em liza recursos vários, nomeadamente financeiros, às chegadas internacionais foram a Ásia-Pacífico suma, considerando que o turismo, de forma materiais e humanos, potenciando-os a favor (variação de -99%) e África (variação de -99%). direta e indireta, contribui para a Agenda 2030, da consolidação das iniciativas que envolve. De A acentuada quebra na procura do turismo a COVID-19 representa um fator de retrocesso acordo com a UNWTO4, o turismo é responsá- internacional associada ao receio de infeção, nesta caminhada. n vel por um entre onze empregos criados a nível relacionada com os tempos de quarentena re- mundial, incluindo jovens e mulheres, o que queridos à chegada ao destino e impostos após também contribui para a diminuição das desi- o regresso ao país de origem, ou resultante do gualdades independentemente do critério ser o abrandamento da atividade profissional desin- género ou a idade. centivaram a viagem, gerando impactos negati- No que respeita à dinâmica sociocultural, o turis- vos repentinos e incertos nos efeitos de longo mo é definido como aIndústria da Paz, por ser prazo. O cancelamento de viagens internacionais facilitador e promotor do encontro de culturas, e a diminuição dos passageiros aéreos6 influen- valorizando-as independentemente de se tratar ciou negativamente todo o setor: suspensão de de modelos culturais ancestrais, marcados pela contratações temporárias e sazonais; inatividade tradição ou modernos. A valorização das culturas com implicação em situação de lay-off; despedi- Notas 1 UNWTO, consultado em linha, disponível em https://www. de acolhimento do turismo é um dos requisitos mentos que resultaram de encerramentos tem- unwto.org/, em 10 de Dezembro de 2020. defendidos pela Organização Mundial do Turis- porários ou permanentes de empresas turísticas 2 Idem. 3 Ibidem. mo e adaptados pelos Estados membros na di- e ainda falências. Nestes casos inserem-se, por 4 Ibidem. namização do setor, na promoção de atividades exemplo, as agências de viagens, os alojamentos 5 UNWTO (2020). World Tourissm Barometer. Vol 18, Issue 5. e na venda do destino no mercado internacio- turísticos, a restauração e similares, os presta- 6 IATA, consultado em linha, disponível em www.iata.org/ economics, em 25 de Setembro de 2020. nal. A promoção da multiculturalidade contribui dores de serviços de transporte, os animadores 7 UNWTO, consultado em linha, disponível em https://www. para a tolerância mútua, já que o contacto entre turísticos, incluindo guias. No conjunto das ati- unwto.org/, em 10 de Dezembro de 2020. povos caracterizados por diferentes padrões de vidades enquadradas pelo turismo é estimado Bibliografia geral cultura favorece o conhecimento da diversidade que em resultado da crise pandémica se percam UNWTO, consultado em linha, disponível em https://www.unwto.org/, de formas de pensar e agir. entre 100 e 120 milhões de postos de trabalho7 em 10 de Dezembro de 2020. Quanto à preservação ambiental, o turismo é, em todo o Mundo, o que inverte a tendência an- UNWTO (2020). World Tourissm Barometer. Vol 18, Issue 5 muitas vezes, acusado de depredador sempre teriormente defendida pela UNWTO de adaptar UNWTO (2020). Impact assessment of the COVID-19 outbreak on international tourism. Madrid: UNWTO economics, em 25 que existe apropriação e utilização de recursos a atividade do turismo na Agenda 2030 da sus- de Setembro de 2020. naturais seguindo um princípio meramente uti- tentabilidade. IATA, consultado em linha, disponível em www.iata.org/

101 JANUS 2020-2021

2.15 • As Relações Internacionais em contexto de pandemia

O IMPACTO DO COVID-19 A NÍVEL DOS ACORDOS Sandra Ribeiro Ingrid Barros INTERNACIONAIS: O CASO DO AfCFTA Texto entregue em Agosto de 2020

NAS ÚLTIMAS DÉCADAS, FORAM AUMENTANDO possa aumentar exponencialmente (recordando permitindo a especialização de produção interna as preocupações no que concerne à estratégia a que hoje as operações de exportação e importa- de bens e serviços por países que tenham vanta- executar em relação ao desenvolvimento no con- ção entre países africanos e países não africanos gem comparativa sobre estes, e permitindo um tinente africano. O que, segundo Obida (2019), supera consideravelmente aquele que se verifica mais facilitado acesso a novos conhecimentos e inclui o impacto sentido pelos cidadãos dos entre países africanos). Possibilitando o acesso a novas tecnologias que contribuam para um me- países africanos que foram (e continuam a ser) bens e serviços a preços mais acessíveis e compe- lhor desenvolvimento dessas atividades. afetados em matéria de qualidade de vida (saúde, titivos, um maior grau de interação cultural, uma O AfCFTA é uma oportunidade de África se tornar habitação, água e desenvolvimento humano). O ação económica e política mais bem coordenada economicamente sustentável, através não só do crescimento do comércio permanece limitado e integrada, promovendo assim a inovação a ní- fomento das trocas comerciais, mas como uma sob as quatro principais regras do Acordo Geral vel continental. De forma sucinta, poderá dizer-se possibilidade de atrair mais Investimento Direto sobre Tarifas e Comércio (GATT) e da Organiza- que a necessidade de se promover a prosperida- estrangeiro, apesar de ser um continente que ção Mundial do Comércio (OMC). Estas incluem: de dos povos africanos e tornar África num agen- apresenta, ainda, muitas lacunas em termos de o princípio da nação mais favorável, proibição de te ativo e competitivo no teatro geopolítico e desenvolvimento. Dever-se-á atentar a aplicação restrições quantitativas, tratamento especial ou económico global é a derradeira razão por detrás deste Acordo devido à fragilidade económica e diferenciado para países em desenvolvimento, da constituição do AfCFTA. estrutural de alguns países e, portanto, criar polí- princípio de não discriminação e suas exceções. ticas de suporte que salvaguardem o crescimento económico destes. De referir que estas regras foram implementadas em 1947, um momento em que a maioria dos A presente situação em África, no que se reporta países africanos se encontrava sob jugo colonial, O AfCFTA tem como objetivo o comércio internacional (intra-africano e extra- resultando, naturalmente, na construção de um a plena realização de um -continental), quando comparado com outras modelo de comércio internacional que não teve mercado único interno para geografias, ainda é muito debilitada. Na verdade, este é o mercado que atualmente tem os menores em consideração (e nem a intervenção) dos inte- a livre circulação de pessoas, resses comerciais dos países africanos. níveis de intervenção no comércio internacional Assim, após décadas de diversas iniciativas e do capital, bens e serviços. focando-se maioritariamente no comércio de ma- recurso intensivo à ajuda externa e a pacotes de térias-primas (como petróleo, cacau, chá, ouro, financiamento disponibilizados por instituições íon de lítio, etc). De acordo com o relatório das internacionais multilaterais como o Fundo Mone- Adotado a 21 de março de 2018 em Kigali, Nações Unidas, numa aproximação mais detalha- tário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, vê- Ruanda, o AfCFTA simboliza um passo signifi- da, até muito recentemente era possível descre- -se agora um novo projeto destinado a promover cativo para impulsionar oportunidades para a ver o seguinte cenário: desde 2008 que África, o crescimento do comércio intra-africano, através industrialização, o comércio intra-africano e a para além de Ásia, é o único continente com uma de integração económica continental, o Acordo integração económica regional. Este Acordo é tendência crescente no comércio intra-regional de Livre Comércio Continental Africano – AfCF- a manifestação de um projeto ambicioso de se (não obstante, isso não se traduz num elemento TA. Mais de quarenta países africanos reuniram-se criar uma união socioeconómica, política e cultu- de competitividade em relação ao resto do mun- com a ideia de concretização de um acordo de ral africana, previsto no Tratado de Abuja (1991). do, significa antes que outros continentes, em livre comércio intra-africano. O objetivo princi- Reunindo cinquenta e cinco países com um PIB comparação com o continente africano, pode- pal deste acordo é a promoção do comércio em combinado de aproximadamente 3 biliões de dó- rão enfrentar situações de estagnação, enquanto África. Segundo o relatório oficial da Organiza- lares norte-americanos. que África, assim como a Ásia, vêm a demonstrar ção das Nações Unidas (ONU), espera-se que o O AfCFTA tem como objetivo a plena realização comportamentos progressivos relativamente ao AfCFTA proposto melhore e aumente o comércio de um mercado único interno para a livre circu- comércio intra-regional). intra-africano em 52%. lação de pessoas, capital, bens e serviços. Isto As participações de exportações intra-continen- A independência mais antiga do continente apro- poderá ser concretizado com a redução e elimina- tais são muito menores em comparação com as xima-se dos 70 anos (sendo que as outras inde- ção paulatina de taxas e de outras barreiras alfan- extra-continentais, sendo as participações de ex- pendências não demoraram a segui-la) e o nível degárias e a abolição determinativa de barreiras portações extra-africanas registadas entre 80% a de industrialização de África durante parte signi- não alfandegárias referentes ao comércio e ao in- 90% desde 2000 a 2017, enquanto que, para as ficativa deste período viu tímidos avanços, muito vestimento. Desta forma, o Acordo operará como exportações intra-africanas, são registadas 16,6% por conta dos diferentes conflitos que eclodiram um propulsor do aumento de trocas comerciais das participações, sendo África, desta forma, con- em diversas partes, dos reduzidos níveis de de- entre os países africanos, estabelecendo políticas siderada o segundo continente mais dependente senvolvimento humano e da falta de meios de de coordenação e outras medidas de domínio de exportações para o resto do mundo. circulação intra-continental a nível nacional, re- macroeconómico que facilitem estas relações e Em 2016, o comércio comunitário económico gional e continental. Esta reflexão levou os seto- que, ao mesmo tempo, assegurem a eficiência intra-regional foi mais elevado na SADC (34,7 mil res público e privado a concluírem que este é um portuária e o controlo fronteiriço, que reforcem milhões de dólares norte-americanos), seguido paradigma que precisa de ser alterado de forma a coesão económica e social, que fortaleçam a pelo CEN-SAD (18,7 mil milhões de dólares) e a que se possa promover o desenvolvimento eco- capacidade dos Estados-Membros para competir por último pela ECCAS (800 milhões de dólares). nómico, social e humano, não só a nível nacional, em mercados mundiais e abastecer os mesmos, No que diz respeito à parte do comércio das mas também a nível continental. que estimulem a produção intra-regional e, que comunidades económicas intra-regionais em Neste seguimento, é necessária a promoção da li- promovam o desenvolvimento harmonioso eco- percentagem do comércio total em África, neste vre circulação de pessoas, bens, serviços e capital nómico bem como o desenvolvimento humano mesmo ano, verificaram-se níveis mais profundos a nível intra-continental de modo a que o nível continental. A liberalização das trocas amplifica- de integração na SADC (84,9%), seguida por CO- de trocas comerciais entre os países africanos rá a possibilidade de transformação económica, MESA (59,5%), e, por ultimo, ECCAS (17,7%).

102 BLOCOS REGIONAIS DA UNIÃO AFRICANA Tendo em conta a situação anterior ao surto da A União Africana (UA) reconhece oito CERs (Comunidades Económicas Regionais), são elas: COVID-19, em que significativa parte das econo- • SADC – Comunidade de Desenvolvimento da África Austral, mias africanas se encontrava muito alavancada • COMESA – Mercado Comum da África Austral e Oriental, quer a nível interno quer a nível externo (par- • EAC – Comunidade da África Oriental, ticularmente com a China e com organismos • ECOWAS – Comunidades Económicas de Estados de África Ocidental, multilaterais como o FMI e Banco Mundial) , res- • AMU – União do Magrebe Árabe, tringindo fortemente a margem de manobra em • CEN-SA – Comunidade dos Estados Sahel-Saarianos, termos de políticos fiscais, prevê-se que a recupe- • ECCAS – Comunidade Económica dos Estados Centro-Africanos, ração económica e social das diversas economias • IGAD – Autoridade Inter-Governamental para o Desenvolvimento. Apesar de se tratarem de diferentes CERs, os propósitos e metas de cada uma delas, embora possuam as africanas seja não só mais difícil de se concretizar, suas particularidades, tendem a ser semelhantes, o que foi considerado essencial para a implementação como também leve mais tempo do que em outras do AfCFTA. Verificam-se nomeadamente na adoção, harmonização, coordenação, e promoção de políti- realidades extra-continentais. cas, programas, estratégias e outros projetos de desenvolvimento relacionados ao comércio, alfândega, Contudo, existe também a possibilidade que a transportes, comunicações, agricultura e recursos naturais, proteção do meio ambiente, energia, promo- implementação do Acordo venha a ser um meca- ção da paz e segurança, de uma forma particular. E, de uma forma geral, aos campos social, educacional, nismo essencial para a aceleração deste processo cultural, tecnológico e científico, e também em promover o desenvolvimento, crescimento e sustenta- de recuperação económica num espaço de tem- bilidade económica, alcançar a livre circulação de pessoas, capitais, bens e serviços. Outro objetivo é po potencialmente inferior ao que é esperado, estabelecer uma união económica abrangente, eliminando tarifas aduaneiras e outras taxas de efeito equi- uma vez que a sua implementação se traduziria valente que incidam sobre as importações e exportações entre os Estados-Membros dos diversos blocos num esforço concertado a nível continental, ul- regionais, tarifas não aduaneiras que restrinjam o melhor funcionamento do mercado e quaisquer outros trapassando as típicas limitações nacionais e re- obstáculos, criando um ambiente propício ao investimento além-fronteiras e doméstico, consequente- gionais que até o presente momento têm servido mente fortalecendo os laços socioeconómicos, políticos, culturais e históricos entre os países africanos. de entrave a um maior grau de desenvolvimento em África. n A lista dos dez principais países exportadores fenómeno este que poderá ser agravado devido intra-africanos de 2015-2017 é liderada pela Es- às restrições económicas, demográficas e sociais. watini (antiga Suazilândia, com 70,6%), Namíbia A pandemia do Coronavírus atingiu praticamente (52,9%). E a lista dos 10 países com menos parti- todas as economias africanas, em consequência cipações de exportações intra-continentais é lide- da disrupção que se verificou nas cadeias de va- rada pelo Chade (0,2%) seguido da Guiné (1,6%) lor globais e nas quedas abruptas dos preços das e da Eritreia (2,3%). matérias-primas que constituem o grosso da ba- Apesar deste quadro, mais da metade dos lança de exportação de muitas destas economias, países africanos já assinou o AfCFTA e o nú- afetando intensamente as receitas fiscais. mero mínimo de ratificações para a sua im- plementação já foi atingido, resultando num compromisso de redução em 90% das tarifas aduaneiras sobre os bens para estimular o Com a COVID-19, estima-se comércio intra-africano e impulsionar o cres- cimento continental. No entanto, existe tam- que a balança de importações bém o exemplo da Nigéria que, sendo a maior e exportações dos países economia e a nação mais populosa de África, africanos sofrerá um decréscimo é também um dos onze outros países que se de aproximadamente 270.000 recusaram a assinar ou aderir ao projeto intra- -comercial. Embora a iniciativa seja de extrema milhões de dólares. importância, já se verificam retrocessos com o impacto da pandemia da COVID-19 e com a in- dicação, pela Nigéria e os outros dez países, de Segundo o mesmo relatório, esta situação de- que o AfCFTA é potencialmente prejudicial aos monstra a necessidade de redução da dependên- seus interesses económicos nacionais. cia com o exterior e de fortalecer e intensificar

Assim, face ao impacto económico que a pan- as relações comerciais intra-africanas. Devido à Bibliografia geral demia da COVID-19 acarreta, faz-se necessário COVID-19, estima-se que a balança de importa- African Development Bank (2020); The Impact of The atentar, aqui, aos seus efeitos sobre o continen- ções e exportações dos países africanos venha Coronavirus (COVID-19) on The African Economy, te africano. Sendo África fortemente depen- a sofrer um decréscimo de aproximadamente African Development Bank Report (2020). 270.000 milhões de dólares (o que poderá re- Agreement Establishing the AfCFTA (2018). dente das relações comerciais com economias Jaén, A. (2019) African Continental Free Trade Area: A Tool estrangeiras, sente-se que a desaceleração e sultar numa inflação, considerando a prevista for Economic Transformation? Africa Report 2019, chap 3. até o declínio de muitas dessas economias, até escassez de bens de consumo básicos e não só) Madrid: Fundación Alternativas. então mais bem desenvolvidas em comparação e que o consumo público em África atingirá um Muchanga, A. (2019). The African Free Trade Are in an Era com as dos países africanos, resultará numa acréscimo de pelo menos 130.000 milhões de of Pessimism Over Multilateralism: Critical Sucess Factors and Prognosis, African Export-Import Bank. maior fragilidade do mercado africano e da sua dólares. Da atual situação do Coronavírus prevê- Obida, D. (2019). The Quest for Africa’s Trade Growth: atividade económica. -se um crescimento anormal de endividamento Intra-african trade and the Proposed African Continental De acordo com o Relatório do Banco de Desen- e deficits fiscais tanto em África como no resto Free Trade Areas (AfCFTA): A Commodification of Old volvimento Africano (2020), alguns setores-chave do mundo, em consequência da tentativa de sa- Practice or Maintenance of New Order?, World Journal of Innovative Research (WJIR) ISSN: 2454-8236, Volume-6, nas economias africanas já estão a vivenciar uma tisfação, na sua maioria, de necessidades sociais, Issue-2, Pages 42-49. desaceleração como resultado da pandemia, par- económicas, sanitárias e de saúde do mundo, não Tralac (2019) The African Continental Free Trade Area, A Tralac ticularmente os setores do turismo, do transporte esquecendo que esta pandemia afetará negativa- Guide 6th edition. aéreo e a indústria petrolífera (dramaticamente mente os meios de subsistência aumentando as Treaty Establishing the African Economic Community (1991) United Nations Conference on Trade and Development (2019); afetados pelo encerramento de fronteiras, pelas debilidades macroeconómicas, nomeadamente Economic Development in Africa Report (2019): Rules regras de distanciamento social, entre outros), ao nível do emprego. of Origin for enhanced intra-African trade.

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2.16 • As Relações Internacionais em contexto de pandemia

COVID-19, SEGURANÇA E GEOLOCALIZAÇÃO: Danielle Jacon Ayres Pinto Jéssica Maria Grassi O DESAFIO DIGITAL CONTEMPORÂNEO Texto entregue em Outubro de 2020

ESTE ARTIGO TEM POR INTUITO DEBATER Tais medidas geram uma série de controvérsias biente favorável para mudanças radicais. Naomi sobre o uso da geolocalização dos indivíduos ao passo que adentram um território caro aos Klein (2008) define doutrina do choque como o como resposta dos Estados à emergência sani- cidadãos, no que diz respeito aos direitos civis, ataque sistemático da esfera pública depois de tária causada pelo novo coronavírus, discutindo à democracia, ao limite da intervenção estatal um desastre, quando a população está focada na e levantando questões relacionadas a utiliza- no direito à privacidade e à proteção de dados emergência. ção dessas informações sensíveis ao pensar dos indivíduos. a segurança nacional, a proteção dos dados De outra parte, importa destacar que diante do individuais, o direito à privacidade e possíveis crescente autoritarismo observado em alguns implicações para o pós-pandemia. países e crescente retirada de direitos dos indi- Um fato que nenhuma víduos, há preocupações quanto à legitimidade das repostas deve negligenciar O uso de dados de geolocalização que possa estar sendo criada neste momento diante da pandemia de crise pandêmica para a permanência de é que o elemento principal Diante da emergência sanitária vivenciada ao medidas de vigilância em massa mesmo após a do processo de avanço longo de 2020 com a pandemia de COVID-19 pandemia. Proposições de um suposto dilema tecnológico não é a máquina, (Sars-Cov-2 ou novo coronavírus), o mundo entre a maior eficiência e segurança diante dos mas sim o ser humano. tem buscado medidas efetivas de controle e riscos futuros de novas epidemias, ou crises de prevenção da propagação da doença entre suas outra natureza, ao custo da retirada de direi- populações, apelando para o uso das tecnolo- tos hoje compreendidos como fundamentais, gias disponíveis no espaço cibernético. Entre as como o da privacidade, são postas diante da Nessa perspectiva, algumas considerações e soluções encontradas por muitos países diante emergência sanitária e as crises econômicas questionamentos devem ser discutidos, entre es- do rápido avanço do vírus, destaca-se a apro- agravadas pela situação2. tes, destacam-se: será que este tipo de tecnologia priação, por parte do Estado, dos dados dos realmente deve ser utilizado diante da situação indivíduos, como os dados de geolocalização. Problemáticas e questionamentos de crise e pandemia vivenciada? Qual a real efeti- Entre os países que adotaram ferramentas de diante da utilização dos dados vidade do uso dessas tecnologias para o combate monitoramento de seus cidadãos, como o uso individuais da propagação da COVID-19? Até onde o Estado dos dados individuais de geolocalização frente Diante de uma emergência sanitária como a que pode ir em termos de monitoramento? Quais a pandemia da COVID-19 podemos citar França, o mundo vive atualmente, respostas rápidas são as implicações do uso destes dados de maneira Reino Unido, Rússia, Índia, Singapura, Vietnã, essenciais, assim como repensar estratégias e indiscriminada no que diz respeito aos direitos Tailândia, Israel, China, Coréia do Sul e alguns políticas estatais partindo dos meios tecnológi- civis e ao direito à privacidade? governos locais dos Estados Unidos e do Brasil1. cos disponíveis. Contudo, medidas que possam Partindo disso, outras problemáticas entram em A utilização desses dados está possibilitando ao atentar a privacidade e liberdade dos indivíduos cena: será que os usuários realmente podem op- longo da pandemia monitorar o cumprimento podem vir a ser legitimadas na situação de pande- tar em disponibilizar ou não seus dados? E qual o do isolamento social, controlar a localização dos mia que o mundo vive. real grau de transparência sobre a coleta, armaze- casos de COVID-19, podendo, inclusive, alertar Discursos nessa direção levam a normalização de namento e uso dos dados pessoais? Como estes pessoas que estejam próximas a esses locais ou situações que antes viam-se como improváveis. dados são ou poderão ser combinados e até que mesmo que tiveram contato com pessoas infecta- A ideia da doutrina do choque demonstra como ponto poderão ser usados no presente e no futu- das ao mapear os trajetos feito pelos infectados. períodos de crise são utilizados para criar um am- ro? Qual a capacidade de segurança e proteção dos dados armazenados? São muitas perguntas e todas com uma imensa O USO DOS DADOS DE GEOLOCALIZAÇÃO NO BRASIL, NA CHINA E NA COREIA DO SUL série de repostas possíveis. Porém, um fato que No Brasil, algumas cidades e estados têm utilizado dos serviços de geolocalização para identificar nenhuma das repostas deve negligenciar é que o locais de aglomeração e o nível de cumprimento do isolamento social, como São Paulo, Rio de elemento principal do processo de avanço tecnoló- Janeiro, Florianópolis e Recife7. Nesse cenário e frente a lei Geral de Proteção de Dados brasileira gico não é a máquina, mas sim o ser humano. Logo, importa mencionar as várias lacunas e incertezas que tal comportamento promove, gerando receios nenhum avanço pode se dar num caminho que seja diante da falta de um maior amparo em relação a possíveis violações aos direitos individuais e contrário à sua emancipação e garantia de diretos. também nos processos de armazenamentos e utilização posterior a pandemia dos dados obtidos Nesse sentido apesar da alegada confidenciali- na geolocalização. dade dos dados, especialistas afirmam não ser Já no Oriente, muitas dessas ferramentas são utilizadas desde o início do surto e, em alguns casos, difícil a identificação dos usuários a partir da in- antes mesmo disso. No caso da China, que já possuía amplos meios de vigilância digital, foram terconexão com outras informações disponíveis3 implementados diversas ferramentas sem a necessidade da adesão voluntária da população, como, . por exemplo, tecnologias de reconhecimento facial, controle de movimentação dentro do país e Ademais, há a discussão de que esse nível de ras- controle da temperatura corporal8. A Coréia do Sul também se utilizou dos dados de geolocalização treamento idealizado não seria realmente efetivo e vídeo dos smartphones, além de acessar dados de cartão de crédito, afirmando serem respeita- no controle da pandemia nos moldes propostos das a prerrogativa de transparência, a preservação de identidade e garantindo a destruição desses e que não poderia ser realmente, completamen- dados após a pandemia9. te, anônimo4. No caso de países como a China e a Coréia do Sul – bem como outros países orientais – já há um Dentro de uma lógica já difundida do capitalis- ordenamento jurídico que, muitas vezes, permite medidas como as tomadas, sendo estas definidas mo de vigilância – termo cunhado pela autora em lei e aceitas pela população, ou, em alguns casos, independem da autorização dos indivíduos10. Shoshana Zuboff (2019) – torna-se cada vez mais Além disso, a ideia de coletividade é, de modo geral, maior nesses países, se comparado com os comum a coleta, armazenamento e venda de in- 11 ocidentais . formações pessoais, como os dados de geolocali-

104 Por fim, não haverá a eficácia desejada no comba- te e prevenção de pandemias se for empregado somente este tipo de tecnologia de geolocaliza- ção. Deve-se reforçar, antes de tudo, as medidas mais essenciais defendidas pela Organização Mundial de Saúde (OMS), pelos cientistas e pes- quisadores da área: testar o máximo possível, manter o nível recomendado de isolamento, garantir os materiais e infraestrutura hospitalar necessária e investir massivamente em ciência, pesquisas e tecnologias, uma vez que os exem- plos de países mais bem sucedidos apontam que ambas as respostas são complementares para o PAÍSES QUE IMPLANTARAM APLICATIVOS DE RASTREAMENTO DA COVID-19 sucesso na proteção dos indivíduos frente as si- Fonte: Butcher (2020) tuações como a que vivemos hodiernamente. n zação, gerando receios quanto a forma com que Essa é a problemática levantada por Snowden estes são armazenados e controlados pelas cor- (2020, s/p) em entrevista concedida à Vice, onde porações e pelos Estados. Devido aos riscos de ressalta: “à medida que as leis de emergência uso indevido dessa quantidade massiva de dados proliferam, à medida que sacrificamos nossos di- Notas coletados, cria-se um importante impasse acerca reitos, também sacrificamos nossa capacidade de 1 Biddle, S. Coronavírus traz novos riscos de abuso de vigilância dos riscos à privacidade, liberdade e à segurança deter esse deslize em um mundo menos liberal digital sobre a população. The Intercept Brasil. São Paulo, 06 5 de abril de 2020. Disponível em: https://theintercept. individual , ou seja, a direitos fulcrais para os se- e menos livre”. Snowden (2020) acrescenta que com/2020/04/06/coronavirus-covid-19-vigilancia-privacidade/; res humanos. não importa como está sendo usado e se confia- Cravo, A.; Oliveira, R. Monitoramento da população para combater o novo coronavírus se espalha pelo país. O Globo, 14 Assim, outro ponto fundamental a ser levado em mos em quem está lidando com essas informa- de abril de 2020. Disponível em: https://oglobo.globo.com/ consideração neste debate diz respeito às garan- ções, em algum momento estes dados poderão brasil/monitoramento-da-populacao-para-combater-novo- tias para o pós-pandemia. Quais as garantias de ser controlados por alguém que os utilizará de -coronavirus-se-espalha-pelo-pais-24368779; Dias, T. Vigiar e lucrar. The Intercept Brasil. 13 de abril de 2020. Disponível em: que o uso desses dados irá cessar após a pande- modo abusivo. https://theintercept.com/2020/04/13/vivo-venda-localizacao-an mia? Como poderemos ter certeza de que a po- onima/?fbclid=IwAR2j7OUZS3oDFyss1f2yJ5oNmy7vMCxxuaJza BsYbBhDbqOB0dYCZVMKL6M; Ellis-Petersen, H. India’s lítica de usos dos dados pessoais não se tornará Considerações finais Covid-19 app fuels worries over authoritarianism and um padrão, usada como ferramenta estatal para Por fim observa-se que não há de fato um mode- surveillance. The Guardian. 04 de maio de 2020. Disponível maior controle de sua população, justificando- lo certo a seguir, ainda mais frente a situações em: https://www.theguardian.com/world/2020/may/04/ how-safe-is-it-really-privacy-fears-over-india-coronavirus-app; -se, por exemplo, os benefícios para a prevenção de emergência sanitária como a COVID-19, Huang, Y.; Sun, M.; Sui, Y. How Digital Contact Tracing Slowed ou controle de novas crises que virão? Qual a todavia, as diversas construções sociais, cultu- Covid-19 in East Asia. Harvard Business Review. 15 de abril de 2020. Disponível em: https://hbr.org/2020/04/how-digital- garantia que as próprias empresas não passarão rais e políticas de diferentes regiões do mundo -contact-tracing-slowed-covid-19-in-east-asia; Louis, J. Using a utilizar esses dados de forma deturpada para criaram um novo desafio para o entendimento tech to fight COVID-19. The Asean Post. 03 de abril de 2020. aumentar ainda mais seus lucros? e a legalidade da privacidade no âmbito inter- Disponível em: https://theaseanpost.com/article/ using-tech-fight-covid-19; e RFI. Europeus querem criar nacional. O desafio, mais que pontual frente a aplicativo que rastreia contaminados pela Covid-19 e isola COVID, é um desafio perene que terá que ser contatos. Rádio França Internacional. 02 de abril de 2020a. Disponível em: http://www.rfi.fr/br/geral/20200402-europeus- enfrentado a partir das novas tecnologias e das -querem-criar-aplicativo-que-rastreia-contaminados-pela- Há receios de que, após novas percepções e limites da sociabilidade. O -covid-19-e-isola-contatos. foco deverá ser sempre o humano nunca a má- 2 Biddle, S.; e Chandran, R. Here’s how Asia is using tech to a pandemia, tenha-se tackle COVID-19. World Economic Forum. 18 de março de ultrapassado uma barreira quina, pois é o primeiro o locus de qualquer 2020. Disponível em: https://www.weforum.org/ processo tecnológico que influencia e modifi- agenda/2020/03/asia-technology-coronavirus-covid19- importante relacionada solutions/. que a humanidade. 3 Dias, T. ao direito à privacidade, Em suma, não se questiona a excepcionalidade da 4 Snowden, E. Entrevista com concedida à Vice. Vice. 09 de abril situação e a importância de ferramentas inovado- de 2020. Disponível em: https://www.vice.com/en_us/article/ à transparência do Estado bvge5q/snowden-warns-governments-are-using-coronavirus-to- e à própria democracia. ras como forma de conter a pandemia. Contudo, build-the-architecture-of-oppression. deve-se atentar às particularidades que garantam 5 Chandran, R.; Dias, T.; e Valente, J. Covid-19: iniciativas usam aos indivíduos a possibilidade de seu consenti- monitoramento e geram preocupações. Agência Brasil. Brasília, 12 de abril de 2020. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc. mento, que atentem às garantias dos direitos com.br/geral/noticia/2020-04/covid-19-iniciativas-usam- Partindo do exposto, há receios de que, após a constitucionais e às prerrogativas democráticas monitoramento-e-geram-preocupacoes. 6 Biddle, S.; e Bioni, B.; Zanatta, R.; Monteiro, R.; Rielli, M. pandemia, tenha-se ultrapassado uma barreira que compõem o Estado de direito, assegurando Privacidade e pandemia: recomendações para o uso legítimo importante relacionada ao direito à privacidade, que não transformem uma crise sanitária em um de dados no combate à COVID-19. Conciliando o combate à cenário perda dos direitos civis. COVID-19 com o uso legítimo de dados pessoais e o respeito à transparência do Estado e à própria democra- aos direitos fundamentais. São Paulo: Data Privacy Brasil, 2020. cia. Com isso, os dados coletados poderiam fu- Essencialmente, tais decisões e políticas a serem 7 Dias, T.; Cravo, A.; Oliveira, R.; e Valente, J. turamente ser adquiridos pelos governos como implementadas devem ter uma fundamentação 8 Huang, Y.; Sun, M.; Sui, Y. 9 Louis, J. meios de vigilância e controle mais estrito da po- técnica e científica que atestem sobre sua impor- 10 Chandran, R. pulação e utilizados de forma a moldar compor- tância e eficácia, essas medidas devem ser trata- 11 Huang, Y.; Sun, M.; Sui, Y. tamentos dos indivíduos, controlar resultados das como temporárias, estabelecendo um prazo eleitorais, monitorar pessoas contrárias a deter- para que os dados coletados sejam destruídos, Bibliografia geral minados regimes políticos e outras tantas possi- devem prezar a menor intrusão à privacidade Butcher, I. Há 49 apps nacionais de rastreamento de contatos bilidades de uma lista que parece ser grande. Há, possível, devem promover a transparência dos com COVID-19 no mundo. Mobile Time. Disponível em: nesse sentido, questionamentos sobre as possi- processos e a garantia de anonimato dos usuá- https://www.mobiletime.com.br/noticias/27/07/2020/ha-no- mundo-49-apps-de-rastreamento-de-contato/. bilidades de que quando passar essa pandemia, rios, bem como da segurança destas informações Klein, N. A doutrina do choque. A ascensão do capitalismo do essas medidas possam evoluir para a retirada de de modo que estas sejam usadas exclusivamente desastre. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008. direitos civis já legalmente consolidados. para o fim pretendido6. Zuboff, S. The age of surveillance capitalism – the fight for f human future at the new frontier of power. PublicAffairs, 2019.

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Colaboradores JANUS 2020-2021

Colaboradores

Amparo Sereno Professora no Instituto Superior de Contabilidade e Administração de Lisboa (ISCAL) e investigadora integrada no OBSERVARE – Observatório de Relações Exteriores (UAL). Doutorada em Direito pela Universidade Católica Portuguesa (UCP) de Lisboa em 2010, com uma tese sobre regiões hidrográficas internacionais.

Ana Isabel Xavier Professora Associada do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Autónoma de Lisboa (UAL). Subdiretora e Investigadora Integrada do OBSERVARE – Observatório de Relações Externas. Doutorada em Relações Internacionais (especialização em Estudos Europeus) pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (2011).

Ana Margarida Esteves Socióloga, Investigadora no CEI – Centro de Estudos Internacionais do Instituto Universitário de Lisboa, ISCTE-IUL.

Ana Monica Fonseca Doutorada em História Moderna e Contemporânea, especialização em História das Relações Internacionais pelo ISCTE-IUL (2011), é atualmente investigadora integrada no Centro de Estudos Internacionais e Professora Auxiliar do Departamento de História do ISCTE-IUL. Trabalha sobre a história portuguesa do século XX, História da Guerra Fria, História da Alemanha no século XX e história das relações Internacionais no período contemporâneo.

António Mateus Licenciado pela UTL, jornalista profissional desde 1983 e autor de cinco livros sobre experiências de reportagem situações de conflitos, dois dos quais dedicados a Nelson Mandela. Foi enviado especial da agência Lusa e da televisão pública portuguesa RTP a mais de uma centena de eventos, para cobertura desde as sucessivas rondas de paz para Moçambique, Angola e Namíbia, todo o processo de erradicação do apartheid na África do Sul e a eleição de Nelson Mandela como primeiro presidente não branco da África deste país.

Bernardo Calheiros Doutorando em Relações Internacionais na Universidade Autónoma de Lisboa (UAL). Mestre em Estratégia e licenciado em Relações Internacionais. Possui Curso de Defesa Nacional do IDN e Curso de Estudos Avançados de Geopolítica UAL-IDN. É investigador integrado do Observare – Observatório de Relações Exteriores da UAL. Atualmente, é técnico superior da Direção de Serviços de Relações Internacionais da Direção-Geral de Política de Defesa Nacional (DGPDN).

Brígida Rocha Brito Professora Associada na Universidade Autónoma de Lisboa, no Departamento de Relações Inter- nacionais. Subdiretora do OBSERVARE. Atua na(s) área(s) de Ciências Sociais e Humanas com ênfase em Relações Internacionais e Sociologia, tendo-se dedicado aos Estudos Africanos Interdis- ciplinares em Ciências Sociais, nomeadamente na área do desenvolvimento.

Cátia Miriam Costa Investigadora no Centro de Estudos Internacionais (ISCTE-IUL) e professora auxiliar convidada na mesma instituição. É diretora da Cátedra Ibero-América Global do European Institute of Interna- tional Studies (sediado em Estocolmo ( e membro das redes de investigação Chinese Intelectual History (sediada em Taiwan), OceanGov (Rede COST) e CoopMar – Cooperação Transoceânica (Rede CYTED). Tem diversas publicações científicas em português, inglês, espanhol e francês.

Clara Carvalho Professora no Departamento de Antropologia do ISCTE-IUL e investigadora do CEI-IUL. Foi pro- fessora convidada nas universidades de Lille, França (2002 e 2003) e Brown, E.U.A. (2004), bem como nos ateliers metodológicos do CODESRIA (2005, 2007 e 2008). Desenvolveu a sua inves- tigação na Guiné-Bissau desde 1992 onde trabalhou sobre o poder local.

Claudia Generoso de Almeida Investigadora do ICS-ULisboa e CEI-IUL e Professora Auxiliar convidada no ISCTE-IUL. Doutorada em Ciência Política, Administração e Relações Internacionais, tem publicado sobre política em Angola e Moçambique. Foi investigadora visitante na Universidade Agostinho Neto e Universidade Eduardo Mondlane. Colabora, como country expert (Angola), no V-DEM e contribui regularmente para o Presidential Power sobre política angolana.

Daniel Cardoso Professor do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Autónoma de Lisboa. Investigador integrado do Observare-Observatório de Relações Exteriores da UAL e associado do Instituto Português de Relações Internacionais-NOVA FCSH. Os seus interesses de investigação centram-se na governação em rede e multi-nível e nas políticas externas do Brasil, China e União Europeia.

Danielle Jacon Ayres Pinto Doutora em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Brasil. Profes- sora da graduação e pós-graduação em Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Brasil. Coordenadora do Grupo de Pesquisa em Estudos Estratégicos e Política Internacional Contemporânea (GEPPIC). Vice-Presidente da Associação Brasileira de Estudo de Defesa (ABED).

108 David Silva Ferreira Doutorando em Ciência Política no ISCTE–IUL, onde também completou o Mestrado em Estudos Internacionais. Licenciou-se em Administração Pública na Universidade do Minho. É investigador integrado do CEI-IUL, e as suas áreas de investigação incluem: política externa dos EUA e da Rússia, e relações entre os dois países; armas nucleares; NATO; e o espaço pós-Soviético.

Fernando Jorge Cardoso Doutorado (1991) com agregação (2006) em Economia pelo ISEG. Em Moçambique, licenciou-se em economia (1976), foi docente e diretor da Faculdade de Economia da UEM e assessor do Ministro do Plano (1977-1983) e diretor-geral da empresa açucareira Maragra (1983-1985). Em Portugal é desde Outubro de 2012 coordenador da área de estudos do IMVF e docente convidado do ISG. Foi docente na UML (1991-2007), UFP (2008-2011), ISEG (1993-1994) e ISCTE (1995-2000). Investigador do CEI-IUL.

Filipe Vasconcelos Romão Professor do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Autónoma de Lisboa e investigador integrado do OBSERVARE. Professor convidado da Universidad ORT del Uruguay. Presidente da Câmara de Comércio Portugal – Atlântico Sul e comentador de política internacional da Rádio Televisão Portuguesa e da Antena 1. Doutorado e licenciado em Relações Internacionais pela Universidade de Coimbra.

Francisco Seixas da Costa Investigador do OBSERVARE. Foi embaixador português no Brasil, em França e em organizações internacionais (ONU, OSCE e UNESCO) e secretário de Estado dos Assuntos Europeus (1995/2001). Foi docente da UAL. É atualmente gestor e consultor de empresas, colunista na imprensa e comentador televisivo de temas internacionais. É presidente do “Clube de Lisboa”.

Giulia Daniele Investigadora no Centro de Estudos Internacionais do Instituto Universitário de Lisboa (CEI-IUL) e investigadora visitante no Centre for Research on Migration, Refugees and Belonging (CMRB) da Universidade de East London (UEL). Doutoramento em Políticas, Direitos Humanos e Sustentabi- lidade, 2012 – University of Exeter, UK, e Sant’Anna School of Advanced Studies, Italy. Mestrado em Relações Internacionais e Direitos Humanos, 2007 – University of Torino, Italy.

Ingrid Barros Aluna finalista na Licenciatura de Economia na Universidade Autónoma de Lisboa. Adquiriu expe- riência de voluntariado em Angola.Frequentou curso de formação profissional de Falar em Público, Fazer Apresentações e Comunicar com Impacto na CERTFORM.

Jéssica Maria Grassi Doutoranda em Relações Internacionais na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Brasil. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Estudos Estratégicos e Política Internacional Contemporânea (GEPPIC).

Joana Roque de Pinho Investigadora do CEI-IUL. Doutorada em Ecology (Human-Environment Interactions specialization), 2009 – Colorado State University – Fort Collins, USA- B.Sc. (Hons) Wildlife Management, 1998 – Centre for Wildlife Management, University of Pretoria, Pretoria, África do Sul. Licenciada em Biologia Aplicada aos Recursos Animais, 1998 – Faculdade de Ciências, Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal.

João Henriques Doutorado em Relações Internacionais e Mestrado em Ciência Política e Relações Internacionais pela Universidade Nova de Lisboa. Auditor de Defesa Nacional pelo Institut des Hautes Études de Défense Nationale (IHEDN), de Paris. Vice-presidente do Observatório do Mundo Islâmico. Arti- culista do The International Journal of Intelligence, Security, and Public Affairs.

Jorge Tavares da Silva Doutorado em Relações Internacionais pela Universidade de Coimbra. Licenciado em Comércio Internacional pelo Instituto Superior de Ciências de Informação e Administração (ISCIA). Professor Convidado de Ciência Política e Relações Internacionais na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e no Departamento de Ciências Sociais, Políticas e do Território da Universidade de Aveiro. Investigador no GOVCOPP – Unidade de Investigação em Governança, Competitividade e Políticas Públicas.

José Pita Santos Comissário da Polícia de Segurança Pública. Investigador assistente integrado do Centro de Inves- tigação do ISCPSI. Mestre em Ciências Policiais, na especialização em Segurança Interna, pelo ISCPSI. Doutorando em Relações Internacionais: Geopolítica e Geoeconomia, na UAL.

Julia Mori Aparecido Aluna do Curso de Relações Internacionais da UNESP – Campus de Marília/SP, Brasil. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Conflitos Internacionais e do Observatório de Conflitos Inter- nacionais. Bolsista de Iniciação Científica do CNPq.

109 JANUS 2020-2021

Luís Barroso Luís Barroso Coronel de Infantaria e desempenha a função de comandante do Regimento de Apoio Militar de Emergência. Mestre e doutor em História, Defesa e Relações Internacionais pelo ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa. Docente no Instituto Universitário Militar e colabora com o ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa e Academia Militar no Doutoramento em História, Estudos de Segurança e Defesa, sendo investigador integrado no Centro de Estudos Internacio- nais do ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa.

Luís Tomé Diretor do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Autónoma de Lisboa (UAL), Diretor do OBSERVARE – Observatório de Relações Exteriores e Coordenador do Doutoramento em Relações Internacionais: Geopolítica e Geoeconomia da UAL.

Luís Valença Pinto General do Exército (aposentado). Professor Catedrático Convidado na Universidade Autónoma de Lisboa (UAL) e no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa. Investi- gador integrado no OBSERVARE/UAL e investigador no CIEP do IEP. Dedica-se em especial às temáticas ligadas à Segurança e Defesa, à Estratégia, à Geopolítica, à Europa (incluindo a UE e a NATO), ao Mediterrâneo e a África.

Luísa Godinho Professora do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Autónoma de Lisboa. Doutora e Mestre em Ciência Política pela Université de Genève, Suíça, tendo obtido ambos os graus com o apoio da Fundação para a Ciência e a Tecnologia. Licenciada em Comunicação Social pela Universidade de Lisboa.

M. Naguib Omar Professor Associado do Instituto Superior de Ciências e Tecnologia de Moçambique, Investigador Integrado do OBSERVARE.

Marcos Pascotto Palermo Doutorando em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, possui graduação em Ciências Sociais. Professor do Curso de Direito da Faculdade de Direito de Santa Maria e da Universidade Franciscana, em licença para dedicação exclusiva ao Doutoramento. Realizou mobilidade académica internacional, durante o segundo semestre de 2018, na Universidade de Lisboa (Portugal), sendo também investigador do OBSERVARE.

Mark Meirowitz Professor da State University of New York (SUNY) Maritime College, onde leciona Política Externa Americana, História Americana, Direito Constitucional e Política e Direito dos Oceanos. Doutora- do em Ciência Política e advogado.

Mónica Canário Doutoranda em Ciência Política no ISCTE–IUL, onde também completou o Mestrado em Estudos Internacionais e a Licenciatura em Ciência Política. É investigadora integrada no CEI-IUL, e as suas áreas de investigação incluem: Europeização, Política Europeia de Vizinhança, Magrebe e Igualda- de de Género. Entre 2017 e 2019 foi coordenadora nacional do movimento HeForShe da ONU.

Nuno Lemos Pires Brigadeiro-General, Doutorado, Subdiretor-Geral de Política de Defesa Nacional e Professor da Academia Militar. Serviu nas Forças Armadas, na NATO e cumpriu missões em Moçambique, Angola, Paquistão e Afeganistão. Tem 10 livros publicados e mais de 100 capítulos ou artigos em livros e publicações variadas, nas línguas portuguesa, inglesa e espanhola.

Nuno Oliveira Pinto Doutorado em Gestão, na especialidade de Estratégia, e mestre em Sociedades e Políticas Europeias, Nuno Gama de Oliveira Pinto é consultor na EuroDefense, e perito para missões de assistência técnica, e de ajuda externa, da União Europeia. Em Portugal, é investigador sénior e professor convidado no Centro de Estudos Internacionais (CEI-IUL), na Universidade Aberta, e na Universidade Nova de Lisboa.

Patrícia Daehnhardt Professora de Relações Internacionais na Faculsdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Investigadora do Instituto Português de Relações Internacionais. Doutorada em Relações Internacionais pela London School of Economics and Political Science.

Paulo Duarte Professor na Universidade Lusófona do Porto e professor convidado na Universidade do Minho. Doutorado em Ciência Política pela Universidade Católica de Louvain.

Paulo Fontes Investigador do Centro de Investigação em Ciência Política da Universidade de Évora. Doutorado em Teoria Jurídico-Política e Relações Internacionais pela Universidade de Évora em 2016. Licen- ciado em sociologia pela Universidade dos Açores em 2000, concluiu o mestrado em sociologia pela mesma Universidade em 2012.

110 Pedro Seabra Investigador de Pós-Doutoramento no Centro de Estudos Internacionais do Instituto Universitário de Lisboa (CEI-IUL). Doutorado em Ciência Política, com especialização em Relações Internacio- nais, pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS, ULisboa) e Mestre em Ciência Política e Relações Internacionais pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Univer- sidade Nova de Lisboa (FCSH-UNL).

Pedro Steenhagen Pesquisador do Núcleo de Estudos Brasil-China da Fundação Getulio Vargas (FGV), Joint Research Fellow do Centro de Estudos Latino-Americanos e Caribenhos da Southwest University of Science and Technology (SWUST) e Mestre em Análise e Gestão de Políticas Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (IRI/PUC-Rio).

Redento Maia Professor Catedrático da Faculdade de Economia da Universidade Agostinho Neto, Investigador Integrado do OBSERVARE.

Reginaldo Teixeira Perez Professor Titular do Departamento de Ciências Sociais/CCSH e do PPGCS da Universidade Federal de Santa Maria. Doutorado em Ciência Política (Ciência Política e Sociologia) – UCAM/IUPERJ (1998). Desde 2002, lidera o Grupo de Pesquisas (CNPq) “Instituições Políticas”, subdividido nas seguintes Linhas de Pesquisa: Direito e Política, Pensamento Político Brasileiro e Teoria Política.

Renato Pereira Professor Associado da Universidade Autónoma de Lisboa, Investigador Integrado do OBSERVARE. Doutorado em Ciências de Gestão pela Université Paris Dauphine e Mestre em Ciências Empresariais pelo ISCTE-IUL, fez formação avançada em Estratégia Empresarial na Sloan School of Management do Massachusetts Institute of Technology.

Ricardo Falcão Investigador de Pós-Doutoramento no Centro de Estudos Internacionais do Instituto Universitário de Lisboa (CEI-IUL). Doutoramento em Estudos Africanos, em 2016 – Instituto Universitário de Lisboa, Lisboa, Portugal. Licenciatura em Antropologia, em 2005 – Instituto Universitário de Lisboa, Lisboa, Portugal

Rita Romeiras Licenciada em Design de Comunicação pela Faculdade de Belas Artes (FBA-UL), em 2004. É designer no OBSERVARE – Observatório de Relações Exteriores, desde 2013. Colabora em diversos projectos, como designer independente.

Samuel Caetano Vilela Licenciado e mestre em Relações Internacionais pela Universidade de Coimbra, onde se encontra a concluir o programa de Doutoramento em Governação, Conhecimento e Inovação, organizado em colaboração com o Centro de Estudos Sociais. Assistente parlamentar no Parlamento Europeu, colaborador da A3ES membro associado da Associação Portuguesa de Ciência Política.

Sandra Ribeiro Doutorada em Economia pela Universidade Autónoma de Lisboa (UAL), mestre em Economia Monetária e Financeira pelo Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG) e licenciada em Eco- nomia pela UAL. É docente na Universidade Autónoma de Lisboa desde 1999, professora adjunta convidada no Instituto Superior de Contabilidade e Administração de Lisboa (ISCAL) desde 2014 e formadora desde 2003. É investigadora integrada no Centro de Investigação OBSERVARE – Observatório de Relações Exteriores da UAL.

Sergio Luiz Cruz Aguilar Livre Docente em Segurança Internacional e Doutor em História pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), São Paulo, Brasil. Professor da Faculdade de Filosofia e Ciências da Unesp e dos progra- mas de pós-graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP-UNICAMPPUC/SP) e em Ciências Sociais (UNESP). Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq.

Sofia Martins Geraldes Doutoranda em História, Estudos de Segurança e Defesa (ISCTE/Academia Militar) e bolseira FCT. A sua tese analisa o impacto da desinformação externa online na security governance da UE e da NATO. Foi Fundadora e Coordenadora do EuroDefense-Jovem. Estagiou no Instituto da Defesa Nacional. Licenciada em Ciência Política e Relações Internacionais e Mestre em Relações Internacio- nais (Universidade da Beira Interior). Interesses de investigação: Estudos de Segurança, Operações de Informação, Ciberespaço, UE e NATO.

Stefano Loi Historiador, investigador no Centro de Estudos Internacionais – IUL, tem um currículo de estudos de história das instituições militares. Atualmente dedica-se à investigação em torno da União Europeia e dos relativos assuntos de defesa e segurança.

111 Deus ambivalente de dois rostos contrapostos,

de origem indo-europeia e um dos mais antigos

de Roma. Deus das transições e das passagens,

assinalando a evolução do passado para o futuro,

de um estado a outro, de uma visão a outra,

de um universo a outro, deus das portas. Preside

aos começos. O primeiro mês do ano (Janeiro,

Janua, Januaris: a porta do ano) é-lhe consagrado.

Guardião das portas, que ele abre e fecha,

tem por atributos a varinha do porteiro e a chave.

O seu duplo rosto significa que ele vigia tanto

as entradas como as saídas, que olha tanto para

o interior como para o exterior, para a direita

e para a esquerda, para a frente e para trás, para

cima e para baixo, a favor e contra. Os seus santuários

são sobretudo arcos, como as portas ou galerias

em lugares de passagem.

(segundo o Dicionário dos Símbolos, Teorema, Lisboa, 1994)

Toda a correspondência relativa a este anuário (pedidos, críticas e sugestões) deve ser dirigida a: OBSERVARE – UAL • RUA DE SANTA MARTA, 56 • 1169-023 LISBOA [email protected] www.observare.autonoma.pt/janusanuario O anuário JANUS é editado regularmente, desde EDIÇÕES ANTERIORES 1996-97, pelo OBSERVARE – Observatório de JANUS 2018-2019 – A dimensão externa da segurança interna Relações Exteriores – da Universidade Autónoma JANUS 2017 – A comunicação mundializada de Lisboa. JANUS 2015-2016 – Integração regional e multilateralismo Estuda a situação mundial, privilegiando o relacio- JANUS 2014 – As metamorfoses da violência (1914-2014) namento de Portugal com os outros países. Procura JANUS 2013 – As incertezas da Europa uma nova abordagem das relações internacionais: não apenas as políticas externas dos governos, JANUS 2011-2012 – Portugal num mundo em mudança mas ainda a comunidade das nações e as inte- JANUS 2010 – Meio século de independências africanas racções das sociedades, cruzando os domínios da JANUS 2009 – Aliança de Civilizações: um caminho possível? política, da diplomacia, da estratégia, do ambiente, da economia, da cultura e das dinâmicas sociais. JANUS 2008 – O que está a mudar no trabalho humano JANUS 2007 – Religiões e política mundial Os estudos que integram cada número do JANUS JANUS 2006 – A nova diplomacia partem de dados concretos, desde o inventário JANUS 2005 – A guerra e a paz nos nossos dias de factos políticos às estatísticas económicas. Os seus autores são professores e investigadores JANUS 2004 – O mundo e a justiça da UAL, colaboradores de outras Universidades JANUS 2003 – A convulsão internacional e especialistas em geral. JANUS 2002 – A política externa portuguesa

Em regra, cada número do JANUS tem um tema JANUS 2001 – Actualidade das migrações dominante que ocupa cerca de metade da publi- JANUS 1999-2000 – Dinâmicas e tendências das relações externas cação. Mas outros capítulos de menor dimensão JANUS 1998 – Suplemento: As Forças Armadas Portuguesas preenchem o anuário, articulando o rigor da infor- mação com as questões da actualidade interna- JANUS 1998 – Relações com as grandes regiões do mundo cional. JANUS 1997 – As relações exteriores