O Lugar da Ruralidade na Teledramaturgia: Reflexões a Partir do Enredo de “”1

Paula Beatriz Domingos Faria2

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sudeste de Minas Gerais – Campus Juiz de Fora

Resumo

Levando em consideração a predominância da ambientação urbana na teledramaturgia e considerando que “Velho Chico”, de Benedito Ruy Barbosa exibida em 2016 pela Rede Globo, marcou o retorno da retratação do universo rural do horário nobre depois de mais uma década, o presente artigo pretende discutir a presença desta temática na teledramaturgia brasileira e, mais especificamente, na obra acima citada.

Palavras-chave

História das Mídias Audiovisuais; Telenovela Rural; “Velho Chico”; “Identidade interiorana”.

Introdução

Exibida entre 14 de março e 30 de setembro de 2016 no horário nobre da Rede Globo, “Velho Chico” foi considerada uma trama “diferentona”, com todos os sentidos positivos e negativos que esta palavra pode trazer. Longe de ser uma unanimidade, causou estranhamento e dividiu opiniões, o que é muito natural, já que trouxe uma proposta inovadora se comparada às tramas globais dos últimos anos. Por outro lado, ao mesmo tempo em que se diferencia das recentes produzidas pela Rede Globo, o enredo de Benedito Ruy Barbosa recorre à tradicional saga de Romeu e Julieta, tão repetida na tela da TV e tão aplaudida ao longo das décadas. Além disso, quem conhece mais a fundo as obras deste novelista, certamente já pode fazer uma

1 Trabalho apresentado no GT História das Mídias Audiovisuais, integrante do 11º Encontro Nacional de História da Mídia. 2 Mestre em Comunicação Social pela Universidade Federal de Juiz de Fora, na linha de pesquisa Comunicação e Identidades, pós-graduada em TV, Cinema e Mídias Digitais, e graduada em Comunicação Social/Jornalismo pela mesma universidade. Graduada em Publicidade e Propaganda pela Faculdade Estácio de Sá de Juiz de Fora. Assessora de Comunicação, Cerimonial e Eventos e professora voluntária do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sudeste de Minas Gerais – Campus Juiz de Fora. E-mail: [email protected].

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lista de semelhanças entre "Velho Chico" e obras como "Pantanal", "", "" e "Paraíso". De "Pantanal", “Velho Chico” herdou a exaltação das belezas naturais do país e a ideologia nacionalista que visa mostrar um "Brasil que o Brasil não conhece" retratando seus interiores, além do destaque para as lendas interioranas, que na trama mais recente de Barbosa giram em torno do rio São Francisco, mas que já estiveram presentes em praticamente todas as obras do autor. De "O Rei do Gado", encontramos em "Velho Chico" o viés político, a figura do patriarca autoritário (interpretado nas duas tramas por Antônio Fagundes) e a disputa entre duas famílias: Mezenga e Berdinazzi que deram lugar aos de Sá Ribeiro e aos dos Anjos. A ambientação na pode ser considerada uma herança de "Renascer" e o romance proibido do casal protagonista tem suas semelhanças com o amor entre a santa e o filho do diabo, principal conflito de "Paraíso". Com todas estas semelhanças das obras de Benedito Ruy Barbosa, o autor parece ter uma bela receita de bolo, daquelas de família que só são encontradas nos interiores do país. A ambientação fora do eixo Rio-São Paulo merece sempre ser aplaudida. É uma iniciativa necessária à nossa teledramaturgia e à valorização da nossa cultura. Sem dúvida, Benedito Ruy Barbosa é o principal responsável pela abordagem da ruralidade e pela fuga da chamada “cultura Zona Sul” nas telenovelas brasileiras. Ao lado dele, podemos citar Dias Gomes e Aguinaldo Silva, responsáveis, por exemplo, pelo sucesso de “”, em meados da década de 1980, quando já havia sinais de que a suposta necessidade de retração do universo metropolitano nas obras de ficção transmitidas pela TV não era absoluta. Mas foi Pantanal, escrita por Barbosa e exibida pela TV Manchete em 1990, que quebrou definitivamente este paradigma. Desde então, o universo interiorano, de tempos em tempos, ganha espaço da grade de programação destinada à teledramaturgia, na maioria das vezes no horário das 18h, mas sem deixar de alcançar o horário nobre, como ocorreu com “Velho Chico”.

Sobre Benedito Ruy Barbosa e a retratação interiorana

Nascido em Gália, no interior de São Paulo, o Benedito Ruy Barbosa sempre fez questão de priorizar em suas obras a ambientação interiorana, que, segundo ele mesmo,

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é o seu universo. Assim, apesar da abordagem simultânea de outros aspectos em suas telenovelas, como a imigração italiana e o viés político, o novelista se dedica prioritariamente à divulgação e à valorização da cultura caipira na teledramaturgia. O autor, que escreve telenovelas interioranas desde a década de 1970, ficou mais conhecido, a partir da produção de “Pantanal” para a TV Manchete, em 1990, como teledramaturgo que apresenta sempre uma alternativa à chamada cultura Zona Sul preponderante nas telenovelas. Em seus primeiros capítulos, “Pantanal” contava com um núcleo no Rio de Janeiro, mas, com o desenvolvimento da trama, o autor sentiu que a novela perdia força quando as cenas cariocas eram apresentadas. Por isso, em seu desfecho, a trama já se passava totalmente em terras pantaneiras. “Então, o sonho de um paraíso urbano, liberal, hipermoderno e baseado no poder de consumo começa a ser substituído pela ideia de um outro paraíso, um paraíso perdido e recuperado, baseado na simplicidade da vida e naquilo que o dinheiro já não podia comprar” (BECKER; MACHADO, 2008, p. 11). Conforme o próprio novelista:

O meu universo é o Brasil. Normalmente, um ator vai a Paris ou Nova York quando termina de gravar uma novela. Eu vou para o Pantanal, para o sul de Minas ou para o Araguaia. Estou sempre mexendo com esse sertão, porque tenho uma ligação muito grande com a terra. É uma força telúrica mesmo. Tanto que, no fim da vida, larguei São Paulo e comprei um sitiozinho. Lá estou no meio do mato, é duro me tirar dali. O ser humano é muito importante. Se você parar para observar os personagens numa roda, vai se encantar. Cada um tem uma história para contar, seja ela cômica ou trágica. Se você souber ouvir, vai se enriquecer com essas histórias. É legal falar do ser humano. No interior, há personagens fantásticos, que deixamos morrer na memória porque ninguém quer transformar suas histórias em contos, versos, seriados ou filmes. Mas eles são muito ricos. Eu vivo um pouco nesse universo. Tenho fama de ser falador, gosto de uma boa prosa, mas, quando chego nesses redutos, só fico ouvindo. Não tenho nada para falar. Tenho mais é que ouvir (BARBOSA, 2008, p. 234).

Pallottini (1998) compara a estrutura de uma telenovela à de uma árvore: a filosofia de vida e a visão de mundo do autor corresponderiam às raízes, a história central seria o tronco, e as outras histórias ligadas à principal seriam os ramos. Destaca-se a importância dos princípios do novelista na visão da estudiosa: “As raízes dão a base do trabalho do autor. É fundamental que o autor (ou autores) tenha uma visão de mundo, seja

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ela qual for, que transpareça na obra” (PALLOTTINI, 1998, p. 59). Esta afirmação condiz com o pensamento de Benedito Ruy Barbosa. O autor afirma que muitos de seus personagens são pessoas com quem ele cruzou em seu caminho. “Esse é o meu universo. Eu seria incapaz de escrever uma história sobre Ipanema, Leblon ou Copacabana. Não me atreveria. Então, que me deixem falar sobre o sul de Minas, Goiás, interior de São Paulo” (BARBOSA, 2008, p. 233). Calza (1996) acredita que as telenovelas regionais, bem como as de época, conquistam maior aceitação do grande público, inclusive o público masculino. Isto se explica, segundo ela, devido à repetição dos modos de organização patriarcais.

Renascer, de Benedito Ruy Barbosa (no ar pela Rede Globo, em 1993), construiu com transparência o sistema codificado de poder e dominação de oligarquias ainda atuantes na região produtora de cacau do nordeste brasileiro através de seu excelente José Inocêncio (Antônio Fagundes) – um jagunço arquetípico talhado aos moldes da literatura de cordel. Lembrar o rito de iniciação pelo qual o personagem passa no início da história (costurado vivo), as alianças que faz (pacto com o demônio) para reinar absoluto e por direito de conquista naqueles cafundós. Renascer recoloca e coloca em desfile o que é de valor para o macho: mulheres bonitas, de uma luxúria materializada. Um clima de desordem erótica se instala quando Ritinha (Isabel Filardis) cavalga. As mulheres de renascer existem para os homens, de corpo presente ou guiando-lhes o pensamento mesmo depois de mortas como Maria Santa (Patrícia França) (CALZA, 1996, p. 57-58).

Hamburger (2005) também destaca a estrutura familiar patriarcal das tramas de Benedito Ruy Barbosa e observa que seus protagonistas quase sempre possuem muitos filhos homens, ao contrário do que ocorre em outras tramas rurais em que os coronéis possuem uma única filha. Segundo Balogh (2002), nestas tramas, os patriarcas são, geralmente, mais apegados à terra e ao espaço rural do que os filhos. Estes últimos muitas vezes vão embora para as grandes cidades, seja para ficar com a mãe (como ocorreu em "Pantanal"), seja em virtude dos estudos (como os filhos mais velhos do patriarca de "Renascer"), havendo assim a contraposição entre o urbano e o rural presente em praticamente todas as telenovelas que se ambientam no interior do país.

De qualquer modo, durante boa parte das novelas, a maioria dos filhos não compartilha do amor dos pais pela terra, mas acaba seduzida pela sua força vital no fim da trama (Joventino em Pantanal e Marcos Mezenga em

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O Rei do Gado). Por vezes, justamente o filho menos amado, como o caçula de Renascer, odiado pelo pai, acaba sendo aquele que segue de modo mais eficiente a tradição paterna nas lidas da fazenda (BALOGH, 2002, p. 182).

“Velho Chico” traz uma mudança neste aspecto: nesta trama específica é o patriarca, na figura do Coronel Afrânio, que não se importa com a terra, mas somente com os lucros obtidos através dela. Seu neto Miguel (Gabriel Leone), doutor em Agronomia após vários anos de estudo na França, é quem demonstra maior apego e preocupação com as terras da família e luta pela implantação de uma agricultura sustentável, com orgânicos, protagonizando cenas bastante didáticas sobre o uso de agrotóxicos e defendendo a todo custo seus ideais, que causam a ira do avô, pois Afrânio sonha em ver o neto sendo o novo Coronel Saruê. Por outro lado, Afrânio deposita suas expectativas de ter Miguel como sucessor devido ao afastamento de seu filho Martim (Lee Taylor), que vai embora da fazenda mais por não concordar com as atitudes do pai e menos por querer buscar uma nova vida em uma grande cidade. Por outro lado, a trama também questiona a estrutura patriarcal com a presença de várias personagens femininas nada submissas que tomam atitudes de liderança em contextos diversos, como a própria protagonista Maria Tereza, que apesar de em sua juventude ter obedecido às ordens do pai para se afastar de Santo, pai de seu filho Miguel, e casar-se com Carlos Eduardo (Rafael Vitti/), torna-se uma pessoa questionadora que aponta os erros do pai e não abre mão de ficar ao lado de Santo quando tem uma oportunidade de reaproximação com o grande amor de sua juventude. Destacam- se também as personagens Eulália (Fabíola Nascimento) e Olívia (Giullia Buscacio). A primeira assume as rédeas de sua fazenda, após a morte do marido Ernesto a mando do Coronel Afrânio, e não cede às investidas deste último, que insiste para que ela venda a fazenda para ele e vá embora da cidade. Já Olívia ganha papel de destaque ao convencer e incentivar seu pai, Santo, a adotar a agricultura sustentável, assumindo ao lado dele a liderança de uma cooperativa de pequenos produtores. A segunda versão de "Paraíso" (2009) é outra trama de Benedito Ruy Barbosa exemplar no que se refere ao apego dos filhos em relação à terra e à ambientação interiorana, mas também não segue totalmente a regra de que fala Balogh. O casal protagonista, formado por dois filhos de fazendeiros, passou vários anos no Rio de Janeiro

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em virtude dos estudos. Porém, Zeca (Eriberto Leão) parece não priorizar seus dois diplomas, volta à pequena cidade fictícia que dá nome à trama e, em seguida, passa a viajar trabalhando como líder de uma comitiva de peões. Na fase final da trama, ele funda uma cooperativa de fazendeiros para resolver os problemas da cidade, já que a prefeitura sofre com a falta de verbas. Já Maria Rita (Nathalia Dill), a santinha, resolve abandonar o objetivo de ser freira e deixa o convento em que vivia no Rio de Janeiro para voltar a Paraíso quando descobre que o pai, em virtude da opção dela pela vida religiosa e da consequente impossibilidade de herdar e cuidar da fazenda, pretende doar suas terras para os empregados. “Meu pedacinho de chão” é mais uma das telenovelas que nos cabe destacar por ter inaugurado o horário das 18h da TV Globo em 1971 e a trajetória de Benedito Ruy Barbosa como novelista rural. A trama foi uma coprodução da emissora de Roberto Marinho e da TV Cultura. Para o autor, foi esta a primeira novela educativa da TV brasileira e, desde então, em todas as suas tramas, são notáveis as cenas com um alto grau de didatismo, principalmente no que se refere a questões políticas. Além disso, pode-se considerar a primeira versão de “Meu Pedacinho de Chão” o marco inicial das telenovelas que possuem as questões ligadas à ruralidade como temáticas centrais, ainda que a segunda versão, exibida em 2014, tenha se passado em um cenário muito mais lúdico e afastado daquilo que seria uma típica cidade interiorana brasileira.

Com Meu pedacinho de chão, consegui provar que se podia fazer novela com uma temática rural brasileira. A novela tratava de técnicas de plantio, de vacinação, e falava de moral e cívica, sem abordar nada que algum juiz pudesse achar inapropriado. Ainda assim, tive problemas com uma cena na qual o personagem Giramundo ensinava os caboclos a cantar o hino nacional. Ele era um maestro. Tocava violão e cantava músicas caipiras em cenários que reproduziam uma venda de beira de estrada e uma escola. (BARBOSA, 2008, p. 211).

É visível que o autor dá muito destaque ao didatismo de suas tramas, o que, por um lado demonstra uma preocupação legítima com o papel social e a influência exercidos por uma telenovela, mas que, por outro lado, pode refletir uma descrença na capacidade crítica do telespectador. É interessante lembrar que, antes da década de 1990 e mais recentemente, as telenovelas que podem ser consideradas rurais foram transmitidas no horário das 18 horas

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na grade de programação da Rede Globo. Como explica Campedelli (1987), a primeira atitude da emissora no que se refere à modernização nas telenovelas, foi dividir a produção teledramatúrgica em horários de acordo com os diferentes públicos. Desta forma, o horário das 18h passou a ser o de caráter mais romântico, dedicado às adaptações de romances, com enredos destinados a adolescentes, donas-de-casa e empregadas domésticas; o das 19h passou a colocar no ar histórias leves que exploram o humor e visam atingir este mesmo público, além das mulheres que trabalham fora; o horário das 20h enfocava o dia-a-dia e as questões familiares, sendo destinado à mulher madura, a seu marido e à família em geral; às 22h exibiam-se histórias experimentais. Para a autora (1987, p.38), “embora discutível, a divisão resulta do Departamento de Pesquisa e Análise da Rede, empenhado em escalar a rampa da audiência, no sentido de monopolizar o mercado. Na verdade, o público da novela das seis pode ser o mesmo que assiste à do horário das oito, das dez...”. Percebemos que, ainda hoje, esta divisão permanece mais ou menos a mesma, ainda que se possam encontrar exceções com maior frequência. Devido às várias referências cotidianas à telenovela das 18h como "novelas das vovós", podemos associar a ideia do enquadramento das tramas rurais neste horário com a busca por saciar o saudosismo de uma parcela da população, no caso as pessoas mais velhas que chegaram a viver a realidade de um Brasil ainda bastante rural em um período de pré-urbanização. Assim, chegamos à conclusão de que as aspirações do público desenraizado oriundo do campo de que fala José Marques de Melo (1988) podem nem sempre ser uma representação glamurizada da "modernidade" urbana, ou seja, seu interesse pode também estar focado numa retratação interiorana que lhe permita cultivar o sentimento saudosista. Ainda seguindo a lógica da divisão das telenovelas em horários de acordo com o público e com as temáticas, pode-se perceber que, quando uma trama rural chega ao horário nobre, que quase sempre traz questões muito atuais e o merchandising social, isto pode significar que há uma intenção de despertam o interesse da população como um todo para as questões relacionadas à vida interiorana. Além disso, este é um fator importantíssimo quando se pensa na priorização dos modos de ser e pensar metropolitanos e na ideologia da modernização em tantas obras da teledramaturgia do horário nobre. Sendo assim, é louvável que telenovelas como “Velho Chico” substituam as belas praias da Zona Sul carioca pelas grandes fazendas, pelos rios, igrejas e praças interioranas.

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Como sabemos, as grandes fazendas são indispensáveis às telenovelas rurais, bem como a religiosidade e as lendas, além da ingenuidade cômica de alguns personagens. Hamburger (2005) afirma que, quando se trata do interiorano, esta última característica é quase sempre destacada, enquanto as grandes cidades são apresentadas como ameaçadoras, mas inevitáveis, além de atraentes, liberais e glamourosas. A ingenuidade interiorana muitas vezes, é vista como deficiência cultural, o que reforça o estereótipo do caipira desqualificado. Ainda que Benedito Ruy Barbosa afirme que seu principal objetivo é exaltar a vida e os costumes da população interiorana como um todo, a presença de personagens ingênuos, submissos e desqualificados também é visível em suas tramas. Em “Velho Chico” não são poucas as cenas em que os pequenos produtores são levados a seguir as ordens do coronel em troca de bem menos do que vale o seu trabalho. Em outras cenas, Santo e Miguel se frustram por não conseguirem demonstrar a estes mesmos pequenos produtores a necessidade da união e da cooperação mútua para que eles deixem de ser dependentes do Coronel Saruê, que parece exercer uma dominação inclusive sobre os pensamentos de quase toda a população de Grotas de São Francisco. Enquanto isso, Miguel, o neto do Coronel, especialista em Agronomia, que foi buscar o conhecimento em um grande centro distante da pequena cidade fictícia, é quem se destaca em termos de liderança e conhecimento sobre a produção agrícola e mostra-se contrário ao coronelismo ao recusar-se a tomar o lugar do avô. Por outro lado, temos as figuras do Capitão Ernesto Rosa (morto na primeira fase da trama) e do protagonista Santo dos Anjos, que exercem certa liderança entre a população local e desafiam o coronelismo passado de pai para filho entre os de Sá Ribeiro. Filho de um retirante, Santo, após suas frustrações no romance com Maria Tereza, passa a dedicar-se à terra e busca dar continuidade aos ideias plantados pelo padrinho Ernesto. Santo seria, portanto, a oposição à figura do interiorano preguiçoso e submisso.

Sobre o interior em “Velho Chico”

A ideia defendida por Williams (2011) de que a construção das metrópoles é fruto dos esforços feitos no campo está presente, em “Velho Chico”, na visão de mundo do personagem Miguel. Neto de Coronel e filho (de criação) de um deputado, ele nutre a

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paixão pela terra, ainda que, a princípio, seja impedido pelos pais de retornar a Grotas do São Francisco. Ele busca o que há de mais avançado em termos de agricultura sustentável e torna-se especialista na produção de orgânicos. Ao retornar ao Brasil, depois de muitos anos de estudo na França, ele recusa assumir tanto a carreira política, como deseja seu pai, quanto a vida de coronel, como sonha o avô. Miguel enfrenta todos os obstáculos para colocar em prática sua tese ligada à agricultura sustentável e protagoniza cenas em que lamenta os maus tratos à terra e o uso excessivo de agrotóxicos na propriedade de Afrânio e fala, didaticamente, da terra como um ser vivo, por quem todos deveriam nutrir mais respeito e dedicação, por ser ela o elemento básico para o sustento de toda a população, tanto do campo quanto da cidade. Williams (2011) enumera as atitudes emocionais que se cristalizaram em torno do campo e da cidade: o campo é associado à vida natural, à paz e à virtude simples, enquanto a cidade é vista como o centro das realizações e é associada ao saber, às comunicações e à luz. Por outro lado, há também as associações negativas, que ligam o campo às ideias de atraso, limitação e ignorância, e a cidade ao barulho, à ambição e à mundanidade. Afrânio, quando se encontra no dilema entre assumir o papel de coronel ou o de “doutor”, retrata esta oposição entre o campo e a cidade. Ele fica em dúvida se assume uma profissão ligada ao Direito e vive em Salvador ou se assume a postura de grande proprietário rural e vive em Grotas de São Francisco. Assim, para ser uma pessoa esclarecida e intelectualmente notável, ele teria que viver em uma grande cidade, o que era sua vontade. Aí encontramos a associação da cidade ao saber e às realizações, enquanto o campo é colocado como um lugar retrógrado que “parou no tempo”. Por outro lado, Miguel, ainda que seja ele o personagem de “Velho Chico” mais relevante no que se refere à valorização da terra e da natureza, somente é considerado uma figura de respeito e a quem a população precisa ouvir porque é especializado no assunto por uma universidade parisiense. Mais uma vez encontramos a ligação da cidade ao conhecimento, enquanto o campo, representado no caso pelos pequenos produtores rurais, é associado à limitação intelectual e ao atraso. Cornélio Pires, como grande defensor da cultura caipira, criou o personagem Joaquim Bentinho (o Queima-Campo), numa tentativa de mostrar uma imagem positiva em detrimento daquela difundida por Monteiro Lobato, com seu Jeca Tatu. Enquanto o personagem concebido por Lobato representava o atraso cultural do caipira, Joaquim

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Bentinho se mostrava esperto. Segundo Darcy Ribeiro, Monteiro Lobato, ao descrever o caipira na figura do Jeca Tatu, não compreendeu o traumatismo cultural vivido por ele, que tinha perdido a posse de suas terras a partir do desenvolvimento das fazendas de exportação, e era obrigado a abandonar seu modo de vida tradicional.

As páginas de Monteiro Lobato que revelaram ás camadas cultas do país a figura do Jeca Tatu, apesar de sua riqueza de observações, divulgam uma imagem verdadeira do caipira dentro de uma interpretação falsa. Nos primeiros retratos, Lobato o vê como um piolho da terra, espécie de praga incendiária que atiçava fogo à mata, destruindo enormes riquezas florestais para plantar seus pobres roçados. A caricatura só ressalta a preguiça, a verminose e o desalento que o faziam responder com um "não paga a pena" a qualquer proposta de trabalho. Descreve-o em sua postura característica, acocorado desajeitadamente sobre os calcanhares, a puxar fumaça do pito, atirando cusparadas para os lados. Quem assim descrevia o caipira era o intelectual-fazendeiro da Buquira, que amargava sua própria experiência fracassada de encaixar os caipiras em seus planos mirabolantes (RIBEIRO, 2006, p. 352).

Para Cornélio Pires, o caipira é “um obscuro e um forte” (2002, p. 19), como são os irmãos da família dos Anjos, Santo e Bento (DIyo Coelho/). Ele destaca ainda a relação dos caipiras com a natureza e afirma que eles agem mais pela emoção do que pela razão, se tornando tímidos e desconfiados quando estão em contato com pessoas das cidades, sem deixarem de ser alegres e expansivos quando estão em um meio familiar. Além disso, apesar do analfabetismo, eles teriam uma inteligência rara e grande facilidade para o aprendizado, característica condizente com a personalidade de Santo, em situação como o momento em que ele decide irrigar as terras sertanejas e o momento em que ele aceita a proposta de Miguel e Olívia referente à produção de orgânicos. Williams (2011) destaca três vertentes da retratação do campo: a persistência do romance regionalista, o progresso dos sentimentos relacionados à terra e à vegetação natural, e as memórias e descrições da vida rural, que revelam uma ideia de perda do passado. Conforme o autor, na época em que desenvolvia esta pesquisa (década de 1970), as visões relacionadas ao campo se baseavam numa imagem do passado enquanto as da cidade se ancoravam numa ideia de futuro. Ele considera esta perspectiva limitante, pois, se ligarmos a ideia de campo ao retrocesso e a de cidade ao progresso, o presente passa a ser uma lacuna.

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É possível encontrar nas chamadas telenovelas rurais exemplos das três vertentes apresentadas por Williams, sobretudo a ideia de perda do passado. Em “Velho Chico”, porém, o destaque é para os sentimentos ligados à terra e à vegetação natural. Na trama, apesar da visão retrógrada do coronel, personagens como Martim, Miguel, Tereza e Olívia representam as ideias de que o progresso precisa chegar ao campo, de que a agricultura sustentável e a produção de orgânicos são o caminho para o futuro e de que é a produção rural a responsável pela subsistência de todos, inclusive de quem vive nas cidades (fala-se muito, por exemplo, em exportação de frutas e na satisfação do consumidor). A ideia de atraso, por outro lado, está estampada na figura do autoritário Coronel Afrânio, que, mesmo conhecendo as leis e tendo tido uma juventude idealista como a do neto, insiste em manter a cidade de Grotas de São Francisco parada no tempo, exatamente como era na época de sua fundação. A influência e a dominação do Coronel Saruê sobre a população da pequena cidade não permitem o desenvolvimento social e profissional dos pequenos produtores, que são obrigados a vender a ele suas frutas para que sejam revendidas a preços mais altos. Como lembra Darcy Ribeiro (2006), nas sociedades caipiras, a economia de exportação através das grandes lavouras, o fim do acesso à propriedade das terras pela simples ocupação e cultivo e a obrigatoriedade de compra ou legitimação cartorial da posse tornaram inacessível ao caipira a ideia de uma economia autárquica. Sendo assim, após algum tempo as populações caipiras se reaglutinaram em bases econômicas mercantis, surgiram novos cultivos comerciais de exportação, as estradas melhoraram, os sistemas de transporte por tropas se refizeram e houve uma reordenação institucional nos níveis civil e eclesiástico, já que as vizinhanças se transformam em distritos e os arraiais em cidades providas de certo aparato administrativo. Conforme o autor, a atuação do poder público nas sociedades caipiras não funcionou como uma garantia do bem comum, pois o Estado chega ao mundo caipira como um agente da camada proprietária, representando uma nova sujeição. Nestas condições, torna-se constante a busca do caipira por colocar-se sob a proteção de alguém que tenha voz ou autoridade diante do novo poder, com o objetivo de fugir das arbitrariedades que o ameaçam. Desta forma, segundo o pesquisador, o domínio oligárquico promoveu o desenraizamento do posseiro caipira, que se apavora diante desta nova ordem e tenta se engajar no colonato, como assalariado rural ou tornar-se parceiro, como meeiro, sendo financiado pelo proprietário a quem entrega metade de sua produção, ou como terceiro,

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trabalhando por conta própria e entregando um terço da colheita como pagamento pelo uso das terras. É o que ocorre em “Velho Chico” quando o prefeito da cidade só defende os interesses do coronel, assim como o deputado federal Carlos Eduardo, ao invés de defenderem ambos os interesses da população, tarefa para a qual foram eleitos. Por conta desta dominação e da impossibilidade de desvencilhamento do jogo de Afrânio é que muitos personagens preferem colocar-se sob sua proteção e fazer sua vontade a lutar ao lado de Santo pelo crescimento de uma cooperativa que faça frente às pretensões do grande fazendeiro. Por outro lado, a telenovela tentou, até mesmo por conta dos problemas com a audiência, reconfigurar o posicionamento do Coronel Saruê: aos poucos o personagem de Antônio Fagundes, em conversas consigo mesmo em frente ao espelho, percebe que está ficando sozinho, pois o filho e o neto deixam a fazenda. Ele também parece sentir falta do posicionamento que tinha em sua juventude, o que nos leva a crer que o desfecho da trama contará com uma perspectiva muito mais otimista no que se refere à figura do coronel.

Considerações finais

Como já apontado por vários críticos, “Velho Chico” é considerada um grande momento da teledramaturgia, porque a inovação precisa ser aplaudida e encorajada, ainda que cause estranhamento. Cabe ressaltar que, ainda que a trama aqui analisada tenha recebido bastantes críticas, o fato de o enredo se passar em solo interiorano e retratar tanto a temática do coronelismo quanto a do cultivo de produtos orgânicos mostra o comprometimento dos autores com a ruralidade e que esta última ainda tem seu espaço na mídia. As grandes cidades são pouquíssimas vezes citadas nas cenas de “Velho Chico”. Dentre elas, fala-se em Paris, colocada como símbolo do conhecimento e da sabedoria; Salvador, sinônimo do progresso, dos negócios e da juventude de Afrânio; e Brasília, sinônimo da corrupção. Algumas vezes percebe-se uma crítica a determinados valores interioranos, como a submissão e medo dos pequenos produtores em relação ao coronel Saruê. Porém, é visível que a maioria das cenas retrata as paisagens interioranas, com destaque para o rio que nomeia a trama, além de típicos cenários de telenovelas rurais,

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como o bar, a praça e a igreja. Além disso, a crítica quanto à conformação da população local com a situação política de Grotas do São Francisco pode ser estendida à população brasileira como um todo, já que a corrupção e a manipulação política são problemas presentes tanto no interior quanto nas metrópoles. E não é só pela retratação e valorização da vida interiorana que a mais recente obra de Benedito Ruy Barbosa destacou-se na história das telenovelas consideradas rurais. "Velho Chico" também inovou por privar o telespectador de um hábito que foi imposto pela agitação e pela correria do cotidiano: assistir às telenovelas ao mesmo tempo em que usamos o celular ou o computador. Já faz tempo que a TV não detém 100% de nossa atenção. Ela fica ligada como uma espécie de companhia enquanto nos dedicamos a tantos outros afazeres. No momento de alguma cena marcante ou decisiva é que nossos olhos se desviam de outras telas e retornam à tela da TV. Porém, o telespectador de "Velho Chico", se quisesse compreender bem a mensagem da trama, não poderia manter este comportamento: ele teria que ficar com olhos bem atentos, pois foram inúmeras as cenas em que os personagens permaneciam mudos e era a ação acompanhada da trilha sonora que determinava acontecimentos importantes do enredo. Há que se citar também a utilização da câmera subjetiva utilizada na representação do protagonista Santo dos Anjos nos últimos capítulos da telenovela, devido ao falecimento do ator . O recurso, nunca antes explorado em telenovelas foi muito elogiado e já vem sendo citado como um marco na história da teledramaturgia, já que em outras situações envolvendo a morte de intérpretes, a solução sempre foi a morte também do personagem ou a substituição do ator, o que tornava as tramas inverossímeis e prejudicava o enredo. Por estas e por outras razões que devem ser abordadas em estudos futuros, consideramos que “Velho Chico” traz uma proposta relevante no contexto da queda do protagonismo televisivo como fonte de entretenimento da população e da ausência da ruralidade no horário das 21h por mais de uma década.

Referências Bibliográficas

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