Um conto, um : a intertextualidade musical no conto Flores em vida, de Luís Pimentel

Edemilson Antônio Brambilla (UPF)1 ([email protected])

Resumo: Este estudo tem como objetivo analisar a intertextualidade entre literatura e música presente no conto intitulado Flores em vida, de Luís Pimentel. O autor parte da biografia do músico , e do imaginário social e cultural de sua época, para narrar a história de um músico que nega o sistema comercial. O personagem central da trama construída por Pimentel é apresentado como sendo um músico bastante próximo ao povo, cuja atividade musical, apesar da completa insegurança financeira, é pautada pela gratuidade de seu trabalho, sendo que seu exercício musical é destinado às camadas populares e direcionado a ouvintes encontrados ao acaso no meio social em que este se insere. Tal construção ficcional carrega importantes traços ligados à biografia e às músicas compostas por Nelson Cavaquinho, tendo em vista que, por conta de seu estilo boêmio e a consequente negação aos principais meios de comunicação do país, sua arte dialogou diretamente com as camadas sociais marginalizadas e com indivíduos excluídos da sociedade. Servirão como base para análise neste estudo os pressupostos teóricos de Julia Kristeva, bem como demais teóricos que versam acerca da noção de intertextualidade, e que nos possibilitam compreender, a partir dessa perspectiva, de que forma o texto de Luís Pimentel é influenciado por outras referências textuais − como a vida e a obra musical de Nelson Cavaquinho −, acentuando, dessa maneira, as relações entre o universo literário e o musical feitas pelo escritor.

Palavras-chave: Literatura; Música; Intertextualidade; Luís Pimentel.

Abstract: This study aims to analyze the intertextuality between literature and music present in the short story entitled Flores em Vida, by Luís Pimentel. The author starts from the biography of the musician Nelson Cavaquinho, and from the social and cultural imagery of his time, to narrate the story of a musician who denies the commercial system. The central character of the plot constructed by Pimentel is presented as being a musician quite close to the people, whose musical activity, despite complete financial insecurity, is guided by the gratuity of his work, and his musical exercise is aimed at the popular strata and directed to listeners found at random in the social environment in which it is inserted. Such fictional construction carries important traits linked to the biography and music composed by Nelson Cavaquinho, considering that, due to his bohemian style and the consequent denial to the main media of the country, his art dialogued directly with the marginalized social layers and with individuals excluded from society. The theoretical assumptions of Julia Kristeva will serve as a basis for analysis in this study, as well as other theorists who deal with the notion of intertextuality, and which enable us to understand, from this perspective, how Luís Pimentel's text is influenced by other references textual - like the life and musical work of Nelson Cavaquinho -, thus accentuating the relations between the literary and musical universe made by the writer.

Keywords: Literature; Music; Intertextuality; Luís Pimentel.

1 Mestrando em Letras pelo Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo (PPGL/UPF), é graduado em Música (L) pela mesma instituição.

Introdução

Ainda que as relações entre Literatura e Música, enquanto áreas distintas do saber, sejam tão antigas quanto a existência de ambas, seja no período pré-histórico, onde temos o desenvolvimento do aparelho fonador humano e o consequente surgimento simultâneo do canto e da fala, e perpassando, também, a Antiguidade Greco-Latina e o Romantismo. Mas, o estudo mais metódico desta aproximação entre música e literatura, ou seja, a reflexão entre ambas enquanto áreas de pesquisa, ainda mostram-se em estágio inicial de desenvolvimento, se apresentando como um campo intertextual dentro da Literatura Comparada, ou ainda como um campo de estudo entre mídias, ou intermidiático. Uma das principais referências nesses estudos músico-literários, Solange Ribeiro de Oliveira, em sua obra Literatura e música (2002), discute, dentre outros temas, o conceito de Melopoética (mélos (canto) + poética) como um elemento de iluminação recíproca entre a literatura e a música. Tais estudos apontam três campos principais onde essa relação ocorre, a saber: a música e a literatura; a literatura na música; e, música na literatura, ou músico- literário. O primeiro caso, a música e a literatura, refere-se a criações mistas que incluem simultaneamente o elemento verbal e o musical (ex: ópera, drama musical, o lied, entre outros); a literatura na música (literário-musicais), por sua vez, são os que usam da crítica literária para fazer a análise musical (ex: a música programática, imitação de estilos literários pela música); o terceiro caso, a música na literatura (ou músico-literários), diz respeito à música das palavras, a estruturação de textos literários com base em técnicas de composição musical, ou o papel de alusões e metáforas musicais na obra literária, incluindo o retrato da figura do músico, por exemplo. Nos ocupamos desta terceira perspectiva − da música na literatura − no presente estudo, tendo em vista que, não são raras, especialmente na literatura brasileira, referências à música presentes em obras de vários escritores, a exemplo de Machado de Assis e Mário de Andrade, ou então, de escritores gaúchos como Erico Verissimo, Luiz Fernando Verissimo, Charles Kiefer e Luiz Antonio de Assis Brasil, autores cuja influência musical perpassa, direta ou indiretamente grande parte das suas obras, assumindo um importante papel tanto no aspecto narrativo quanto no aspecto estruturante de suas criações literárias. Este estudo, em específico, tem como objetivo analisar a intertextualidade entre literatura e música presente no conto intitulado Flores em vida, de Luís Pimentel. O autor parte da biografia do músico Nelson Cavaquinho, e do imaginário social e cultural de sua época, para narrar a história de um músico que nega o sistema comercial. O personagem

central da trama construída por Pimentel é apresentado como sendo um músico bastante próximo ao povo, cuja atividade musical, apesar da completa insegurança financeira, é pautada pela gratuidade de seu trabalho, sendo que seu exercício musical é destinado às camadas populares e direcionado a ouvintes encontrados ao acaso no meio social em que este se insere. Tal construção ficcional carrega importantes traços ligados à biografia e às músicas compostas por Nelson Cavaquinho, tendo em vista que, por conta de seu estilo boêmio e a consequente negação aos principais meios de comunicação do país, sua arte dialogou diretamente com as camadas sociais marginalizadas e com indivíduos excluídos da sociedade. Servirão como base para análise neste estudo os pressupostos teóricos de Julia Kristeva, bem como demais teóricos que versam acerca da noção de intertextualidade, e que nos possibilitam compreender, a partir dessa perspectiva, de que forma o texto de Luís Pimentel é influenciado por outras referências textuais − como a vida e a obra musical de Nelson Cavaquinho −, acentuando, dessa maneira, as relações entre o universo literário e o musical feitas pelo escritor.

A intertextualidade: conceito, origens e aplicabilidade

O termo intertextualidade, cunhado por Júlia Kristeva, ganha projeção principalmente a partir de dois textos: o primeiro deles, intitulado A palavra, o diálogo e o romance – publicado originalmente em 1966 –, é o primeiro em que aparece “a noção de intertextualidade como procedimento real da constituição do texto” (FIORIN, 2006, p. 163). O segundo texto, intitulado O texto fechado (1967), é onde a autora precisa de maneira bastante clara a definição do termo, como sendo o “cruzamento num texto de enunciados tomados de outro texto”; “Transposição [...] de enunciados anteriores ou sincrônicos”, a intertextualidade é entendida, então, como um elemento essencial do trabalho da língua no texto. Ambos os ensaios de Kristeva ganham maior notoriedade com a sua consequente publicação na obra intitulada Introdução à semanálise (1969), uma das principais da escritora. Na interpretação feita por Carvalhal (2006, p. 88) do conceito de intertextualidade, o termo cunhado por Julia Kristeva “designa o processo de produtividade do texto literário que se constrói como absorção ou transformação de outros textos”. A teoria postulada por Kristeva encontra nos escritos de Mikhail Bakhtin e deu seu Círculo de pensadores sua base fundante. Ainda que o termo intertextualidade nunca tenha aparecido nos escritos de tais pensadores, Bakhtin foi o primeiro a introduzir na teoria literária a ideia de que “todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto. Em lugar da noção de intersubjetividade, instala-se a

intertextualidade, e a linguagem poética lê-se pelo menos como dupla” (KRISTEVA, 2005, p. 68). Ou seja, para Bakhtin e seu Círculo, o texto literário não é um ponto, um sentido fixo, mas é um cruzamento de superfícies textuais, um diálogo de várias escrituras, um cruzamento de citações (FIORIN, 2016, p. 57). Kristeva então, vai chamar de texto o que Bakhtin denomina enunciado. Assim, dialogismo e intertextualidade passam a ser sinônimos, sendo que, qualquer relação dialógica é denominada de intertextual. A autora compreende, portanto, que o processo de escrita é resultante de um processo de leitura feito anteriormente, onde o texto lido passa por um processo de absorção, e o novo texto torna-se uma espécie de réplica ao(s) texto(s) anterior(es). A análise intertextual ocorre, portanto, por meio de um processo de verificação da presença efetiva de um texto em outro, que pode ocorrer, principalmente, por meio de imitação, apropriação, cópia literal, paráfrase, e paródia do texto fundante. A proposta de Kristeva torna-se importante, especialmente porque ela “abala a velha concepção de influência, desloca o sentido de dívida antes tão enfatizado, obrigando a um tratamento diferente do problema” (CARVALHAL, 2006, p. 51). Ainda nesse sentido, de acordo com Jenny (1979, p. 14), “a intertextualidade designa não uma soma confusa e misteriosa de influências, mas o trabalho de transformação e assimilação de vários textos, operado por um texto centralizador, que detém o comando do sentido”. Com base nisso, percebe-se que a antiga noção de dependência e dívida de um texto em relação a outro passa a ser entendida como um processo natural, uma vez que um texto irá, sempre, constituir-se a partir de textos anteriores, de modo que os textos passam a ser rotineiramente reescritos de forma contínua. Por meio desse processo, portanto, a própria noção de autoria torna-se uma noção de difícil compreensão, uma vez que, por conta da inevitável dependência de um texto a outro anterior, somos impossibilitados de saber quem é, de fato, o autor de determinado escrito. Vejamos a posição de Kristeva sobre esse aspecto, e como ela encontra no dialogismo bakhtiniano sua base fundante:

“[...] o diálogo não é só a linguagem assumida pelo sujeito; é uma escritura onde se lê o outro. [...] Assim, o dialogismo bakhtiniano designa a escritura simultaneamente como subjetividade e como comunicatividade, ou melhor, como intertextualidade; face a esse dialogismo, a noção de pessoa-sujeito da escritura começa a se esfumar para ceder lugar a uma outra, a da ambivalência da escritura” (KRISTEVA, 2005, p. 71).

Analisar o texto literário de acordo com essa perspectiva, conduz o pesquisador a uma atividade comparatista que busca explicar os procedimentos utilizados para que um texto se

relacione com outro. Cabe ao crítico literário, portanto, não limitar sua análise à “simples identificação de relações, mas que as analise em profundidade, chegando às interpretações dos motivos que geraram essas relações” (CARVALHAL, 2006, p. 51). Sob essa ótica, a intertextualidade não se limitaria a simplesmente analisar, comparar e identificar as possíveis relações entre os textos, ou seja, compreender de que forma um texto resgata uma obra anterior, mas, buscaria analisar com profundidade os procedimentos utilizados para gerar esse novo texto, uma vez que, buscaria responder as seguintes indagações: quais as razões que levaram o autor recente a ler os textos anteriores? Que novo sentido o autor atribui àqueles textos anteriores? Essa perspectiva intertextual pode ser observada diretamente na construção textual feita por Luís Pimentel no conto Flores em vida. Em sua narrativa, Pimentel se apropria de elementos oriundos do universo musical, dialogando especialmente com a vida e a obra do sambista carioca Nelson Cavaquinho, para retratar de maneira ficcionalizada o seu exercício artístico, e os dilemas humanos inerentes à suas composições.

A intertextualidade no conto Flores em vida

Publicada em 2005, a coletânea de textos denominada Contos para ler ouvindo música, organizada por Miguel Sanches Netto, reúne contos de escritores brasileiros que, dentre suas diversas abordagens, possuem a música como tema norteador de todas as narrativas. Dentre os autores que integram essa obra, podemos citar nomes como: Luís Fernando Verissimo, Lygia Fagundes Telles, Luiz Antonio de Assis Brasil, Aldir Blanc, Arthur Dapieve, Luiz Vilela, Tony Bellotto, Sérgio Sant’Anna e Luís Pimentel. O conto Flores em vida, de Luís Pimentel, objeto de análise do presente estudo, narra a história de um músico boêmio que, depois de uma noite de festas, se dirige até sua casa. No trajeto, encontra- se com amigos e desconhecidos com os quais divide histórias e rememora alguns sucessos do samba nacional. Ainda que não seja mencionado de forma direta no texto de Pimentel, o personagem trata-se de Nelson Antônio da Silva (1911 – 1986), sambista carioca popularmente conhecido como Nelson Cavaquinho. O autor parte da biografia do músico, e do imaginário social e cultural de sua época, para narrar a história de um músico que nega o sistema comercial. Esse personagem central da trama construída por Pimentel é apresentado como sendo um músico bastante próximo ao povo, cuja atividade musical, apesar da completa insegurança financeira, é pautada pela gratuidade de seu trabalho, sendo que seu exercício musical é destinado às

camadas populares e direcionado a ouvintes encontrados ao acaso no meio social em que este se insere. Vejamos a relação entre o personagem criado por Pimentel e o círculo social e cultural que o cerca: A noite ainda discutia se ia ou não embora, mas os negociantes de frutas, legumes, frangos e bugigangas da feira da Glória já armavam as barracas, entre risadas e assovios, cantos de galo, restinho de neblina virando poeira em direção ao Aterro. O homem de cabeça branca e violão no ombro escorregou pelas cordilheiras de paralelepípedos da rua Hermenegildo de Barros e se deixou levar ladeira abaixo pela Cândido Mendes, até desembocar na Augusto Severo. Encostou o violão no poste e pegou uma talhada de melancia na barraca do Genaro, amigo desde a infância na praça da Bandeira. ─ Melancia a essa hora, meu velho? ─ Combate a ressaca, Genaro. ─ Sai dessa vida. ─ Já tentei. Essa vida é que não quer sair de mim (PIMENTEL, 2005, p. 75-76).

É somente a partir dos acontecimentos e das ações narradas por Pimentel que se pode identificar a identidade do músico boêmio. Embora não cite diretamente seu nome, o enredo construído por Pimentel nos dá indícios de que este personagem seja o músico Nelson Cavaquinho, uma vez que, alguns trechos são narrados em primeira pessoa, e dialogam intertextualmente com composições feitas pelo sambista carioca. Vejamos a primeira das histórias contadas pelo personagem músico, e que dialoga intertextualmente com a música Palhaço, de Nelson Cavaquinho:

Os cabelos branquinhos, poeira da idade, estão meio desarrumados. Passa a mão e observa que também estão bastante engordurados, purpurinas da madrugada. Lembra-se de uma criatura a quem amou, que o chamava de cabelos de prata. Fartos e ondulados, reluziam diante do espelho, na luz esfumaçada do cabaré de bandidos do largo do Estácio. Mas nem tudo que reluz é ouro e a criatura o trocou um dia por um moço requintado, de bigodinho desenhado e cabelos pretos, feito as asas da graúna, tratados na brilhantina Glostora. – Me senti um palhaço, Genaro. Se já não bebesse bastante, teria começado a beber naquele momento. Doses de angústia depois, fez um samba assim: Sei que é doloroso um palhaço / Se afastar do palco por alguém / Volta, que a plateia te reclama / Sei que choras, palhaço / Por alguém que não te ama... – Fiz? Fiz, E esse eu sei que não vendi a filho da puta nenhum (PIMENTEL, 2005, p. 76-77).

O trecho ainda enfatiza o fato de o compositor não se render ao sistema comercial do universo musical que o circunda, uma vez que ele se negou a vender sua composição para que outros pudessem gravá-la e cantar a sua história. Esse distanciamento dos principais canais midiáticos, conforme supracitado, é um dos traços característicos da obra de Nelson Cavaquinho. Além disso, Pimentel parte de alguns traços biográficos de Nelson Cavaquinho e do imaginário social e cultural de sua época para construir alguns pontos de sua narrativa, vejamos:

─ Eu era muito jovem ainda, assim que nem você. Não tinha respeito pela vida. Nem tinha medo da morte. Foi antes de virar o disco, de virar a mesa, de virar polícia. Fui o pior soldado da história da Polícia Militar do . Comecei a vida na farda no Batalhão de Cavalaria da PM, onde fiquei sete anos. Metade em cima do cavalo, metade na prisão. Abandonava a diligência e o animal, picava a mula para o morro de Mangueira. Jogar conversa fora e cerveja para dentro com , Carlos Cachaça, Geraldo Pereira, Zé Com Fome, Padeirinho. Para eles, eu fiz um samba assim: Quando eu piso em folhas secas / Caídas de uma mangueira / Penso na minha escola / E nos poetas da minha Estação Primeira / Nem sei quantas vezes subi o morro cantando... Fui o hóspede mais assíduo do xadrez do quartel da rua Evaristo da Veiga. Mas era bom pegar cana, você sabia? Se não fosse o xadrez do batalhão, eu não teria feito muito samba de sucesso. Às vezes ficava um mês confinado. Então aproveitava a tranquilidade para compor (PIMENTEL, 2005, p. 78).

Importante salientar, nesse ponto, que Nelson Cavaquinho foi, de fato, soldado no Batalhão de Cavalaria do Rio de Janeiro, boa parte desse período levando uma vida subversiva conforme relatado pelo próprio personagem. A intertextualidade aqui se dá por meio da música Folhas Secas, que retrata muito do círculo social no qual Nelson Cavaquinho se inseria, especialmente ligado à escola de samba Estação Primeira de Mangueira, e de outros importantes nomes do samba daquele período, como Cartola, Geraldo Pereira e Carlos Cachaça ─ um dos fundadores da escola Mangueira. O enredo de Pimentel ainda nos traz detalhes sobre a vida de Nelson Cavaquinho antes de se dedicar exclusivamente ao universo musical, vejamos:

─ [...] Na verdade, antes de encarar o batalhão eu já havia enfrentado outros batentes para ajudar no orçamento da família. Trabalhei em fábrica de tecidos, em Deodoro, na função de ajudante de tirador de resíduos, e como auxiliar de eletricista no centro da cidade. Meu paui era tocador de tuba da Banda da PM. Que coisa, hein?! Tocador de tuba. ─ Ainda existe tocador de tuba? ─ Não existe mais tuba. Nem tocador (PIMENTEL, 2005, p. 78).

Cumpre notar que, o músico Nelson Cavaquinho trabalhou, de fato, nessas funções supracitadas, e seu pai foi músico na Banda da PM, além de ser um dos principais influenciadores da carreira musical do filho. Em outro trecho, mais uma obra de Nelson Cavaquinho é retratada. Desta vez, a composição intitulada Não Faça Vontade a Ela é utilizada para representar os dilemas amorosos ligados ao personagem, vejamos:

A prostituta de decote farto esparrama os peitos em seu ombro e beija sua testa, os lábios cheios de batom aplicado de qualquer jeito: ─ Paga um conhaque, índio? Nem espera pela resposta, sabe qual é. Pede o conhaque no balcão, entorna de uma vez e volta para a calçada. ─ Conhece a moça? ─ A moça me conhece. Nem pegou o violão, apenas sussurrou, marcando com as pontas dos dedos na mesa: Não faça vontade a esta mulher / Não deixe ela

fazer o que quer / Deve-se ter amizade / Mas não se deve dar liberdade... (PIMENTEL, 2005, p. 79).

Outro retrato que pode ser evidenciado no referido conto de Luís Pimentel são os conflitos internos do próprio personagem, expressos também por meio da intertextualidade musical com a obra de Nelson Cavaquinho, como ocorre com a faixa intitulada A flor e o espinho, composta em uma parceria com o sambista e amigo Guilherme de Brito, e Alcides Caminha. Vejamos o trecho do conto onde essa referência intertextual ocorre:

Ele continua hospedando a tristeza que parece não ter cura. Recorre aos versos do parceiro Guilherme, para casar com sua melodia cheia de flechas sorrateiras: Tire o seu sorriso do caminho / Que eu quero passar com a minha dor / Hoje pra você eu sou espinho / Espinho não machuca a flor / Eu só errei quando juntei minha alma à sua (PIMENTEL, 2005, p. 81).

De acordo com Braga (2014, p. 74), em Nelson Cavaquinho, canções que abordam expressões como árvores, flores, folhas e frutos costumam lembrar ao sujeito a passagem do tempo. Nos em que isso acontece, os ciclos da vida dos homens e das plantas parecem seguir em paralelo. Outra passagem que deixa evidente o uso da intertextualidade para representar os conflitos internos do sujeito pode ser evidenciado no trecho abaixo, onde um dos ouvintes encontrados ao acaso na boemia pede à Nelson Cavaquinho que cante um de seus principais sucessos, composto em parceria com o amigo e sambista Guilherme de Brito, vejamos:

─ Vai, poeta. ─ Sou cantador. Poeta é o Guilherme. ─ Então canta uma das suas com ele. Pode ser Quando eu me chamar saudade, aquela que diz “me dê as flores em vida “? ─ Só se você prometer que não pede mais nenhuma. ─ Prometo. Mas, dessa vez, com o violão. Além dos bares, sapatarias, papelarias e lanchonetes começavam a abrir as portas. A mesa já recebera outros notívagos e alguns madrugadores (diúvagos?) para ouvir o índio: Sei que amanhã quando eu morrer / Os meus amigos vão dizer / Que eu tinha um bom coração / Alguns até hão de chorar... Para, enjoado e cansado. Toma ar, toma mais um gole e canta mais uns versos: Por isso é que eu penso assim: / Se alguém quiser fazer por mim / Que faça agora / Me dê as flores em vida... (PIMENTEL, 2005, p. 79-80).

Na interpretação feita por Braga (2014, p. 78-79), a representação da morte em Quando eu me chamar saudade traz uma diferença em relação à maioria das outras canções com tema semelhante compostas por Nelson: a ideia de que se pode viver, mesmo após a morte, nas lembranças deixadas (“Alguns amigos vão dizer/ que eu tinha um bom coração”). O tema da imortalidade do poeta, conquistada através da lembrança dos que ficam, embora muito comum no samba, é pouco explorado por Nelson Cavaquinho. A ideia dessa extensão

da vida na memória dos admiradores não costuma servir de consolo para o sujeito, que prefere “as flores em vida” às homenagens póstumas. Ainda de acordo com Braga (2014, p. 80), há um prolongamento da vida através da lembrança e da homenagem dos amigos, o que dá ao sujeito-poeta uma esperança de futuro que aparece ao longo de toda a canção (“amanhã”, “vão dizer”, “hão de chorar”, “vai se lembrar”). Esse futuro, contudo, é temporário, pois a permanência do sujeito na memória dos amigos é fugaz, até que o esquecimento o mate definitivamente. Esse tom melancólico e a exposição dos intensos dilemas existenciais acompanham também as outras referências intertextuais do conto, expressas também quando o personagem chegou em sua casa após ter passado a noite na boemia. É como se essa condição acompanhasse toda a existência desse personagem, e só poderia ser expressa ou evidenciada de um modo mais direto através de suas composições. Vejamos outro trecho que alude à essas questões:

Botou no velho toca-discos um 78 rotações, meio arranhado, com um samba- canção dos mais antigos: Quando eu morrer deixarei minha fama / Deixarei no mundo quem me ama / As lágrimas que rolam em meu rosto / Não sabem dizer qual é o meu desgosto... Que diabo de desgosto era este? A companheira nunca soube (PIMENTEL, 2005, p. 82).

De acordo com Braga (2014, p. 66), o discurso dialógico e o endereçamento nos sambas estabelecem uma rede de compartilhamento da dor. Por outro lado, parece também haver a valorização do isolamento, na contramão da inserção social que se estabelece ao longo de toda essa poética. E o isolamento, muitas vezes, acontece mesmo dentro do eu-lírico, como se vê nos versos citados de Minha fama. Falar da dor já é socializá-la. Esconder o pranto parece apenas um uso retórico da linguagem para reforçar a ideia de sofrimento que permeia muitas dessas canções, valorizando-a e intensificando-a.

Considerações finais

Percebe-se, através desta breve análise, que a construção ficcional feita por Luís Pimentel no conto Flores em Vida carrega importantes traços ligados à biografia e às músicas compostas por Nelson Cavaquinho, tendo em vista que, por conta de seu estilo boêmio e a consequente negação aos principais meios de comunicação do país, sua arte dialogou diretamente com as camadas sociais marginalizadas e com indivíduos excluídos da sociedade. Não nos coube aqui analisar de modo pormenorizado tais relações, mas sim apontar os aspectos principais que fazem com que o texto de Pimentel dialogue diretamente com a vida e

a obra do sambista carioca e com seu círculo social e cultural. Tal aproximação encontra na intertextualidade o seu fio condutor para a elaboração de toda a narrativa, aproximando a narrativa de Luís Pimentel com aspectos significativos do exercício artístico praticado pelo músico Nelson Cavaquinho.

Referências.

BRAGA, T. A. O que fica quando o poeta se vai? Sujeito e sociedade nos sambas de Cartola e Nelson Cavaquinho. 2014. 113 f. Dissertação (Mestrado em Letras) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2014. Disponível em: https://app.uff.br/riuff/bitstream/1/10127/1/disserta%C3%A7%C3%A3o_26- fev_completa.pdf. Acesso em: 30 nov. 2020.

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