Revista Brasileira fase ix

• JULHO-AGOSTO-SETEMBRO 2020 •

ano iiI • n.° 104 Academia Brasileira Revista Brasileira de Letras 2020

D i r e t o r i a D i r e t o r Presidente: Marco Lucchesi Cicero Sandroni Secretário-Geral: C o n s e l h o E d i t o r i a l Primeiro-Secretário: Antônio Torres Segundo-Secretário: Edmar Bacha Merval Pereira Tesoureiro: José Murilo de Carvalho João Almino

C o m i s s ã o d e P u b l i c a ç õ e s M e m b r o s E f e t i v o s Alfredo Bosi Affonso Arinos de Mello Franco, Antonio Carlos Secchin , Alberto Venancio Filho, Alfredo Bosi, P r o d u ç ã o E d i t o r i a l , Antonio Carlos Secchin, Antonio Cicero, Antônio Torres, Monique Cordeiro Figueiredo Mendes Arnaldo Niskier, , Carlos R e v i s ã o Diegues, Candido Mendes de Almeida, Perla Serafim

Carlos Nejar, , Cicero Sandroni, P r o j e t o G r á f i c o Cleonice Serôa da Motta Berardinelli, Victor Burton Domício Proença Filho, Edmar Lisboa Bacha, E d i t o r a ç ã o E l e t r ô n i c a Evaldo Cabral de Mello, Evanildo Cavalcante Estúdio Castellani Bechara, Fernando Henrique Cardoso, Geraldo Carneiro, Geraldo Holanda Academia Brasileira de Letras Cavalcanti, Ignácio de Loyola Brandão, João Av. Presidente Wilson, 203 – 4.o andar Almino, Joaquim Falcão, José Murilo de Rio de Janeiro – RJ – CEP 20030-021 Carvalho, José Sarney, , Telefones: Geral: (0xx21) 3974-2500 Marco Lucchesi, , Marcos Setor de Publicações: (0xx21) 3974-2525 Vinicios Vilaça, Merval Pereira, Murilo Melo Fax: (0xx21) 2220-6695 Filho, Nélida Piñon, , Rosiska E-mail: [email protected] Darcy de Oliveira, Sergio Paulo Rouanet, site: http://www.academia.org.br Tarcísio Padilha, . ISSN 0103707-2

As colaborações são solicitadas.

Os artigos refletem exclusivamente a opinião dos autores, sendo eles também responsáveis pela exatidão das citações e das referências bibliográficas de seus textos. Transcrições feitas pela Secretaria Geral da ABL.

Esta Revista está disponível, em formato digital, no site www.academia.org.br/revistabrasileira. Sumário

Cicero Sandroni Apresentação 7 ENSAIO Ubiratan Machado As viagens dos românticos pelo país e a revelação do Brasil 9 Arnaldo Niskier Futuro à distância 21 Ivo Korytowski Monteiro Lobato foi racista? 29 Cyro de Mattos O precursor e pré-modernista Afrânio Peixoto 35 Flávia Amparo Confinamentos da existência: um mergulho nas falhas subterrâneas da consciência humana no universo ficcional de Ana Paula Maia 39 Lúcia Bettencourt Resumo da ópera 49 Glauber de Oliveira A Poesia de no site da Academia Brasileira de Letras 59 Alcmeno Bastos Em torno do romance carioca 61 Roberto Acízelo de Souza Os professores do Colégio Pedro II e a institucionalização acadêmica da Literatura brasileira 69 Leandro Garcia Rodrigues José Américo de Almeida e o seu tributo a 79 Felipe Fortuna Disjecta membra – O que as partes dizem sobre a poesia de Drummond 91 Arnaldo Saraiva Memória de uma grande homenagem no Fundão a um grande poeta 103 POESIA Pedro Mohallem 107 Marlos Degani 115 Igor Fagundes 123 Tanussi Cardoso 131 Marcelo Moraes Caetano 139 Yke Leon 147 CONTO Godofredo de Oliveira Neto Esquisse 155 Renard Perez Banca de jornal 165 Paulo Veras Sorte canina 173 Roberto Gomes Um poço de grosso calibre 175 Eglê Malheiros Requiescat in pacem 179

Esta a glória que fica, eleva, honra e consola.

Apresentação

Cicero Sandroni Ocupante da Cadeira 6 na Academia Brasileira de Letras.

rossegue a Revista Brasileira com sua espontâneo, de poetas de gerações pas- vocação plural. Colaboram neste nú- sadas. Reafirmam a pujança de nossa poe- P mero 104 nada menos do que doze sia contemporânea, que, sintonizada com o ensaístas, seis poetas e cinco contistas, en- presente, não abandona um diálogo crítico tre escritores veteranos, já consagrados, e com o passado. vários outros da nova geração. Em comum, Igualmente multifacetada e abastecida a qualidade dos textos, independente do no conhecimento de formas novas e anti- gênero da contribuição dos autores. gas é a produção contística enfeixada neste No ensaísmo, destaca-se o largo espec- número. Narrativas de linguagem e padrão tro temático, com ênfase na literatura bra- narrativo mais ortodoxos convivem com ou- sileira, ficção ou poesia, dos séculos XIX e tras de vertente experimental, no exercício XX. O século XXI também se faz presente. da fragmentação discursiva. Ao lado de pesquisas históricas, compare- De toda essa polifonia a Revista Brasi- cem ensaios que enfrentam questões polê- leira se faz receptáculo e porta-voz. Nossas micas. A seção contempla igualmente revi- páginas estão abertas a contribuições, ten- sões do cânone e textos na fronteira entre o do por critério, basicamente, o compromis- ensaio e crônica. so com a qualidade literária. Como sabem, Os seis poetas nos deixam entrever um o artigo 1.o dos estatutos da Casa nos de- denominador comum: apesar de bastante termina a defesa e a valorização da “cultura diferenciados, neles é perceptível a valori- da língua e da literatura nacional”. Esse é o zação técnica do poema. Não por acaso, nosso compromisso, materializado no con- quase todos com formação universitária, junto de textos que trimestralmente a Revis- em oposição ao caráter mais “intuitivo”, ta traz a público. Boa leitura!

ENSAIO As viagens dos românticos pelo país e a revelação do Brasil

Ubiratan Machado Jornalista, tradutor, autor de vinte e cinco livros, entre os quais A vida literária no Brasil durante o romantismo (Prêmio para obras em conclusão, da Biblioteca Nacional), História das livrarias cariocas, vencedor do Prêmio Votorantim, entre outras obras.

Viajar! Viajar! A brisa morna do sistema de transporte, facilitando o in- Traz de outro clima os cheiros provocantes. tercâmbio entre as províncias. Em meados do século XIX viajar pelo Brasil era quase sempre uma aventura pe- nosa. O país continuava como caranguejo s românticos buscaram, de forma arranhando a praia, do exemplo clássico de apaixonada, conhecer e compre- Frei Vicente do Salvador. As regiões mais O ender o Brasil. Os resultados ultra- prósperas e as principais cidades, concen- passaram as expectativas. Coerentes com os tradas no litoral, contavam com um siste- anseios da jovem nação, o surto de progres- ma de transporte marítimo precário e lento. so, em especial nos anos 1850, a década A maioria das embarcações, patachos e ve- de ouro do Império, eles criaram a historio- leiros, transportavam tudo, inclusive passa- grafia brasileira escrita pelos filhos da terra, geiros em meio a cachos de bananas e mer- registraram com graça, bom humor, alguns cadorias. Delas dependiam exclusivamente toques trágicos e um indisfarçável orgulho, as pequenas cidades litorâneas. Quem vivia hábitos e costumes de cidades e sertões, nos centros maiores – Rio, Bahia, Recife, em prosa de ficção, poemas, narrativas de Santos, cidade minúscula, mas de movi- viagem, ensaios literários e jornalísticos, e mento intenso – podia recorrer aos paque- percorreram o país em todas as latitudes, tes estrangeiros, pontuais na chegada em em viagens muitas vezes penosas. Neste nossos portos, provenientes ou em deman- processo foram fundamentais a criação das da do sul do continente. Os vapores nacio- academias de direito e medicina, em São nais, empregados na navegação de cabo- Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, Recife, onde tagem, só começam a circular no final da os estudantes dialogavam e descobriam a década de 1850. existência de múltiplos Brasis, tão diferentes Com o interior, as comunicações eram mil e tão semelhantes entre si, as missões cien- vezes piores. Dependíamos, basicamente, da tíficas de exploração do país e a ampliação tração animal. Os caminhos não passavam 10 • Ubiratan Machado de picadas, rasgadas no mato, mantidas Daí, a escassez de narrativas de viagens abertas graças aos tropeiros. Nessas trilhas empreendidas por brasileiros através do estreitas, esburacadas, muitas vezes perigo- Brasil e a importância das existentes, equi- sas, uma viagem de cem quilômetros levava, valentes – exagerando um pouco – à litera- em média, de dois a três dias. A lentidão es- tura de posse da terra do século XVI. pichava as distâncias, já de si imensas. A pri- Os quatrocentos e poucos quilômetros meira estrada moderna, a União e Indústria, entre o Rio de Janeiro e São Paulo, em entre Juiz de Fora e Petrópolis, só foi concluí­ lombo de burro ou cavalo, eram cobertos da em 1861. entre doze e quinze dias. Em 1859, com a Por essa época, a Europa e os Estados entrada em cena do vapor, a viagem dimi- Unidos contavam com um sofisticado sis- nuiu para cerca de três dias, se não houves- tema ferroviário. Na metade da década de se nenhum imprevisto. O trajeto marítimo 1820, Tio Sam inaugurou as primeiras es- entre a Corte e Santos consumia de dezoito tradas de ferro. Vinte anos depois, o trem a vinte e quatro horas. No porto paulista, fazia parte da vida de milhões de habitan- iniciava-se a subida acidentada da serra de tes, expandindo-se entre os Aleganis e o Cubatão até São Paulo. Eram dois dias em Mississipi. lombo de burros cansados, que pareciam Em 1861, quando explode a Guerra de galgar a contragosto as trilhas abertas no Secessão, a malha ferroviária norte-ameri- mato, muitas vezes beirando precipícios cana chega a 50 mil quilômetros. Tínhamos, profundos. O aluguel dos animais incluía o então, exatamente 78,5 km de ferrovias: os direito a jantar e pernoite em uma hospeda- 30,5 km do porto de Mauá à Raiz da Serra, ria do caminho, o Pouso das Caveiras. e mais 48 km da Estrada de Ferro D. Pedro A beleza da paisagem do alto da serra II, abertos ao tráfego em 1858. Nosso meio compensava a aspereza da viagem. Muitos de transporte habitual continuava sendo o poetas, sobretudo estudantes, se emociona- lombo de burro ou de cavalo, em viagens vam com o espetáculo, como João Cardoso cansativas, lentas, cheias de atropelo. de Menezes e Sousa, futuro barão de Para- Por tudo isso, o brasileiro não viajava napiacaba. ficou deslum- por gosto ou curiosidade, um hábito que brado com os rios correndo lá embaixo e começava a se disseminar na Europa e nos Estados Unidos, com a criação das primei- as balsas verdes, ras agências de viagem. No Brasil, viajava-se As lagoas serenas, as casinhas Erguidas no mistério da espessura, apenas por necessidade, preparando desde O grupo das colinas, que fenecem logo as nádegas para o duro castigo de sal- Na linha azul do mar! titar por vezes durante semanas e semanas, em cima de uma sela. Ia quem precisava. Na época do início das aulas ou das Eram negociantes, magistrados transferidos férias, os vapores se enchiam de estudan- de localidade, militares, artistas mambem- tes, embarcados aos grupos. Eram viagens bes, estudantes que saíam de suas provín- cheias de brincadeiras, de recitação de poe- cias com destino às academias de direito ou mas, de ajuste de contas com os calouros. medicina. Raras famílias. Um trote de que ninguém escapava era o As viagens dos românticos pelo país e a revelação do Brasil • 11

“juramento pelas armas da marquesa” (alu- No dia 27 de novembro de 1861, o Her- são à marquesa de Santos), diante de um mes partiu do Rio de Janeiro com destino a rochedo esguio e ereto no canal de Santos, Campos. Havia cerca de noventa pessoas a lembrando um falo. Os novatos, com sole- bordo, entre passageiros e tripulantes. Na nidade cômica, ou indisfarçável tensão, se- altura de Macaé, o casco do navio arranhou gundo o temperamento de cada um, eram uma pedra do recife Lajes da Tábua. Julgan- obrigados a repetir: do tratar-se apenas de um banco de areia, o comandante tentou se reaproximar da terra, Juro e prometo mas teve de parar, devido ao risco de uma Por esta zorra, Que serei burro explosão. Um bote com doze pessoas conse- Até que morra... guiu chegar a Macaé e solicitar socorro. Três pequenas embarcações partiram para reco- Brincadeiras à parte, havia um certo lher os náufragos. Nada fácil. O mar furioso conforto nos paquetes, vapores e brigues dificultava o resgate. Vários passageiros fo- que navegavam pelas costas brasileiras. ram resgatados, tiritando de frio, agarrados O relacionamento era fácil e muitos viajan- aos mastros partidos e outros objetos. Mais tes viviam aventuras amorosas. Castro Alves de cinquenta salvos e trinta e sete afogados, teve um breve romance em uma de suas entre eles Manuel Antônio de Almeida. viagens da Corte para a Bahia. No vapor, Depois de dois anos de permanência proveniente de Buenos Aires, e com destino na Europa, para onde partira em busca de à Espanha, conheceu uma jovem espanho- melhoras para a sua saúde, Gonçalves Dias la que o poeta chama de Inês, nos versos resolve regressar ao Brasil. Está quase mo- ardentes de “A uma Estrangeira”. Foi uma ribundo, mas insiste em viajar. No dia 10 paixão fulminante, de acordo com o tempe- de setembro de 1864, no porto de Havre, ramento arrebatado do poeta, mas superfi- embarca no veleiro Ville de Boulogne, com cial, como não podia deixar de ser. destino ao Maranhão, “Em outubro devo A ambiência marítima provocava uma lá estar. Se não ficar no mar”,1 escreve a sensação de liberdade e convidava às ex- Antônio Henriques Leal, cheio de pressen- pansões poéticas, sobretudo em noites de timentos funestos. Era o único passageiro. luar, quando o passageiro sentado no tom- Durante os cinquenta e três dias de travessia badilho podia assistir a um espetáculo ines- do Atlântico, o seu estado se agrava drama- quecível. Inesquecível, também, era quando ticamente. Não tem mais forças nem para o mar se encontrava revolto ou havia tem- se levantar da cama, recusa alimentos, inge- pestade. Mas, aí, a sensação era de outro rindo apenas água com açúcar, mas ainda tipo, associada ao temor de naufrágio, um fuma quatro ou cinco charutos por dia. acidente bastante comum, em particular Na tarde de Finados, fraco demais para em certos trechos do nosso litoral. Basta andar, o poeta pede que o levem ao tom- lembrar que duas das maiores figuras do badilho, para ver a costa brasileira, que co- romantismo brasileiro morreram em nau- meça a se desenhar no horizonte. Desmaia frágios: Gonçalves Dias e Manuel Antônio 1 Lúcia Miguel Pereira. A vida de Gonçalves Dias. Rio de de Almeida. Janeiro, José Olympio, 1943, p. 378. 12 • Ubiratan Machado de emoção ou de fraqueza. No dia seguin- com José de Alencar. Estudante da Acade- te, pelas quatro horas da manhã, o navio mia de Olinda, de volta do Ceará, para pas- se choca com o baixio dos Atins, na cos- sar dois meses, foi revendo as paisagens vis- ta maranhense, partindo ao meio. Alguns tas dez anos antes, quando deixara a terra marinheiros ainda viram o poeta em seu natal com destino à Corte. O impacto em camarote, com metade do corpo para fora sua sensibilidade foi imenso. A visão dos da cama. Quando resolvem socorrê-lo, a ca- “tabuleiros gentis”, das “várzeas amenas bine já está submersa. Toda a tripulação se e graciosas” e das “matas seculares que salva. Dias foi a única vítima. vestiam as serras como a arazoia verde do No ano seguinte, o Brasil quase volta a guerreiro tabajara”,2 despertou-lhe na ima- perder um grande poeta em naufrágio. Em ginação a vaga ideia de uma história, que março de 1865, Fagundes Varela embarca seria a semente de O Guarani e de Iracema, no Rio de janeiro, com destino a Recife, mas, sobretudo, determinante em seu des- onde pretende concluir o curso jurídico. No tino de paisagista deslumbrado com a pai- litoral baiano, no mesmo local onde trezen- sagem brasileira, um cenário meio mágico, tos anos antes naufragara Anchieta, o navio que ocuparia um lugar de relevo dentro das Bearn choca-se com um recife. mil e uma noites brasileiras projetadas pelo O pânico a bordo aumenta com a escu- escritor. ridão da noite e a chuva, que começa a cair. Um Brasil muito diferente foi o que O poeta mantém uma calma imperturbável, Gonçalves Dias conheceu em sua viagem comportando-se como um velho marinheiro, à Amazônia, como integrante da Missão tranquilizando as pessoas e auxiliando no Científica de Exploração – a chamada mis- transporte dos náufragos para a terra. Na são das borboletas –, que se propunha a praia, recolhe palmas de coqueiros e palmei- efetuar um levantamento das riquezas da ras, para construir cabanas para os sobrevi- região Norte. Com esse objetivo, os traba- ventes, que ali permanecem por seis dias. lhos foram divididos em seis seções: botâ- A intensificação das viagens de estudan- nica, mineralogia, zoologia, astronomia, tes, uma boa parte deles poetas e colabo- geografia e etnografia, esta chefiada pelo radores habituais da imprensa, representa poeta. um capítulo importante no processo de Dias chegou em Manaus no final de fe- conhecimento do país e no fortalecimento vereiro de 1861, depois de uma desalenta- de laços da nacionalidade. As narrativas de dora temporada no Ceará. O estado nordes- viagem, como depoimento pessoal, foram tino fora escolhido como uma das etapas escassas e breves, mas elas figuram com dos trabalhos da comissão, pela abun- abundância em poemas, contos, folhetins e dância de riqueza mineral que se julgava trechos de romances, com o entusiasmo da mocidade, exaltando as seduções, riquezas 2 José de Alencar. Como e porque sou romancista. Rio de Janeiro, José Olympio, 1953, p. 64. Neste ponto, e peculiaridades do país. Alencar foi enfático, não querendo deixar dúvidas: “A Para alguns desses rapazes, viagens ou inspiração do Guarani, por mim escrito aos 27 anos, caiu na imaginação da criança de nove, ao atravessar as uma viagem determinada foram funda- matas e sertões do norte em jornada do Ceará à Bahia” mentais para o seu futuro. Como aconteceu (idem, p. 50). As viagens dos românticos pelo país e a revelação do Brasil • 13 existir ali. A comissão, ousadamente, che- Imagine-se, então, para o poeta, atacado gara a proclamar que iria “mudar a face do por escrófulas no pescoço, já minado pela Brasil”, transformando-o em um país rico. tuberculose e esgotado pelos contratempos Tudo parecia cor-de-rosa. da excursão pelo Ceará. Os contratempos começaram ainda em Gonçalves era, porém, homem de uma Fortaleza, assumindo um aspecto burlesco fibra extraordinária. Recebendo o apoio do na primeira saída. Meses antes, Guilherme presidente do Amazonas, Manuel Clemen- Schur Capanema, responsável pela parte de tino Carneiro da Cunha, segue até as nas- mineralogia, importara alguns camelos da centes do rio Amazonas, em território peru- África, julgando que seria o transporte ideal ano. Conhece um outro lado da natureza, para o Ceará. muito diverso do aspecto idílico apresenta- No dia da partida, lá estava Gonçalves do nos poemas indianistas. Dias, equilibrando-se entre as corcovas de Além da monotonia confrangedora da um camelo, em direção à Serra da Arata- floresta e dos rios, mal os viajantes se arris- nha. O poeta desiste logo, não suportando cavam a entrar no mato eram logo ataca- a monotonia da viagem. Além disso, um dos pelos: dos animais quebrara a perna. O aciden- Miruins, os micuins, os piuns, os mosqui- te levou o presidente do Ceará a acusar o tos, as mutucas e os carapanãs – as aranhas, poeta de agir de má-fé. Mas, como? O epi- os lacraus, as cobras, todo o arsenal do diabo em um número infinito de instrumentos – uns sódio, supremamente ridículo, chegou a ser na terra, outros nos ares – uns que mordem comentado até no Senado. pela manhã, outros à tarde, outros à noite, já Durante cerca de dois anos, a comissão estes que ferram cantando, já outros que mor- percorreu vários pontos da província, em dem à surdina, – com rostro ou mandíbulas, excursões penosas, por vezes sem a menor com a boca ou com o abdômen, – estes aqui, gota de água. Os caminhos eram tão ás- aqueles mais longe.3 peros que gastavam os cascos dos cavalos, Isso não o impede de se deslumbrar com tendo o pessoal improvisado botas de sola a natureza tropical, a sua imensa riqueza de para as suas patas. A comida faltava, as ver- matizes, as formas caprichosas, os bandos bas escasseavam, quase todos adoeceram. de aves, os “olores tão suaves que os não Em abril de 1861, os chefes se reuniram, em descobriram ainda os nossos perfumistas de Fortaleza, e deram os trabalhos como en- agora”.4 cerrados. Fora um fiasco retumbante. Não Na segunda missão, pelo rio Madeira, se encontrou ouro, prata ou depósitos de que durou cerca de um mês, além da mis- outros minerais que justificassem as imen- são de etnógrafo, o poeta teve de inspecio- sas despesas. Todos retornaram ao Rio de nar as escolas primárias e as diretorias de Janeiro. Apenas Gonçalves Dias, fiel ao de- índios. Apesar de adoentado, interessa-se ver, partiu para Manaus. por tudo, com uma visão surpreendente- O plano consistia em seguir pelos rios mente moderna em certos aspectos, como Negro e Amazonas, até atingir as inóspi- 3 Carta de Gonçalves Dias a Antonio Henriques Leal, tas regiões do rio Madeira. Era um roteiro em: Lúcia Miguel Pereira, op. cit., p. 288. cheio de sacrifícios para um homem sadio. 4 Idem, p. 288. 14 • Ubiratan Machado o problema da devastação das florestas, as Não há gente como a nossa (refere-se aos possibilidades de desenvolvimento de uma índios). Soldados bons como eles! Marujos ex- agricultura adaptada à região amazônica e celentes – remeiros incansáveis, e sempre fa- lando, sempre alegres. Dóceis, humildes ainda a navegabilidade do rio Madeira. assim, fáceis e tratáveis! Farinha à disposição, Mesmo enfraquecido, desejoso de vol- e haverá gente para tudo! Peixe seco já é uma tar logo ao Rio, abalado pelo drama íntimo fortuna – carne, isso vem do céu. É o máxi- que atravessa, em seu relacionamento com mo que pedem. E esse máximo não é ainda a a esposa, Dias aceita o convite do presiden- mínima parte de qualquer miserável que nos te da província para uma nova excursão, em vem da Europa.5 visita às escolas da região do rio Negro. Foi Mais alguns dias e chegam a Cocuí, uma viagem exaustiva, a mais cansativa da ponto final da viagem, já na região limítrofe temporada amazônica. com a Venezuela. Um vapor conduz o grupo até Santa Isa- O regresso, a favor da correnteza, foi bel, final do curso navegável do rio. O res- mais fácil e rápido. Depois de 55 dias de tante do caminho teria de ser vencido em viagem, o grupo acha-se de novo em Ma- pequenas embarcações. A viagem torna-se naus. Ao contrário das outras excursões, penosa. Acordavam de madrugada, efetua- essa foi toda registrada por Dias, com uma vam a distribuição de aguardente aos índios, objetividade de repórter – aliás, de grande andavam até a hora do almoço, descansa- repórter –, o que não exclui trechos de ad- vam e partiam de novo, só parando para jan- mirável prosa poética. tar e dormir, às vezes ao relento, em redes, O poeta trouxe ainda uma valiosa cole- ao redor do fogo feito pelos índios. A ali- ção de objetos indígenas. Mas vangloriava- mentação limitava-se a carne seca e farinha. -se, sobretudo, da amizade dos índios, Algumas vezes obtinham uma galinha ou que o chamavam de carinã écatu, ou seja, um leitão em troca de fumo ou aguardente. “branco bom mesmo”. Nada podia alegrá- Comiam também tucunarés, flechados pelos -lo mais: “Ótima gente! Por fim apaixono- índios dentro da água, tartarugas, ovos de -me deles, ponho cueio e vou para o mato, jurará e jacus. Quando encontravam goia- traduzir meus indignos versos em língua de beiras, bananeiras, laranjeiras, mamoeiros ou caboclo”.6 pés de frutas silvestres, fartavam-se. Havia Uma outra contribuição valiosa no pro- outras dificuldades, capazes de exaurir um cesso de conhecimento e difusão do Brasil homem, o sol inclemente, as terríveis tem- para os brasileiros foi a viagem empreen- pestades tropicais, a travessia de cachoeiras, dida pelo português abrasileirado Augusto quando as canoas eram descarregadas. Emílio Zaluar, entre o Rio de Janeiro e São Afinal, o grupo alcança São Gabriel, Paulo. Realizada por terra, consumiu cerca onde, com exceção de uma dúzia de mo- de dois anos. Tinha um propósito mais ou radores, todos eram indígenas. Dias não se menos inconfessável, mas muito comum na cansa de admirar os índios e as suas atitu- vida literária de então, a aplicação de um des desinteressadas, em contraste com o egoísmo do civilizado. Escreve em seu ca- 5 Idem, p. 300. derno de anotações: 6 Idem, p. 303. As viagens dos românticos pelo país e a revelação do Brasil • 15 pequeno golpe para se conseguir dinheiro, gostavam de receber visitas e também de mediante promessas que nunca poderiam ostentar riquezas. Começavam a desfrutar ser cumpridas. Era o que hoje se chama de da fama, meio anedótica, de acender cha- picaretagem e, naqueles dias, de cavação. ruto com nota de mil réis e de se exibir nos Zaluar, então editor e proprietário do cabarés da moda, em Paris. O jornalista per- jornalzinho O Paraíba, de Petrópolis, partiu correu todas as cidades do norte paulista e com a intenção de obter o máximo possível várias vilas – Bananal, Barreiro, Areias, Que- de assinantes remidos. Ou seja, mediante o luz, Silveiras, Lorena, Guaratinguetá, Apa- pagamento da quantia de 500$ (quinhen- recida, Pindamonhangaba, Caçapava, Tau- tos mil réis) receberiam a publicação pelo baté (a maior cidade da região), São José, resto da vida. Jacareí, Mogi das Cruzes –, retratadas de No final de agosto de 1859, Zaluar sai forma bastante simpática. Mesmo quando do Rio de Janeiro em direção ao Vale do fazia restrições, como sobre o aspecto triste Paraíba fluminense. Nessa primeira par- e pesado de Taubaté, logo dourava a pílula. te da viagem, utiliza a Estrada de Ferro D. Sobravam motivos para essa atitude Pedro II, cujo trecho construído alcança as cautelosa. Em cada parada, Zaluar conse- proximidades de Piraí. O resto do percurso guia várias assinaturas, o que lhe permitiu foi feito a cavalo. Durante os meses de se- chegar a São Paulo com uma boa quantia tembro e outubro, visita as cidades de Piraí, nos bolsos. Não desejaria, pois, matar a ga- Barra Mansa e Resende, mas sobretudo as linha dos ovos de ouro. A receptividade dos fazendas da região, verdadeiros palacetes, poderosos explica também o fato de, em suntuosos, decorados com gosto, em meio nenhum momento de sua narrativa de via- aos infindáveis arbustos copados de café, gem – publicada em capítulos no Jornal das espalhados “por toda parte, no pendor das Famílias, antes de serem recolhidas no vo- colinas, nas fraldas da montanha, nos pín- lume intitulado Peregrinação pela Província caros do morro”.7 de São Paulo –, o escritor sequer aludir aos A parte principal da viagem transcorre escravos, de cujos braços dependiam todas no estado de São Paulo. Como o sul flumi- aquelas riquezas. Era um assunto tabu entre nense, o norte paulista vivia a fase áurea de a burguesia rural, no momento em que co- sua economia. Havia muito dinheiro circu- meçava a despontar uma mentalidade abo- lando na região. As cidades se moderniza- licionista. Assim, aproveita para demonstrar vam, apresentando um aspecto agradável, piedade pelo indígena – o que não era de com seus imensos casarões e muitas obras surpreender, em pleno reinado do indianis- públicas em andamento. Vivia-se, sobretu- mo em literatura – e preocupação com os do, nas fazendas, “os verdadeiros castelos costumes e a natureza da região, tão falsifi- feudais do nosso tempo”,8 que centraliza- cados por estrangeiros irresponsáveis: vam toda a atividade econômica. Os ricos Todos os dias chegam da Europa livros re- fazendeiros, senhores da vida e da morte, cheados das mais ridículas e mentirosas fábu- las acerca dos costumes singulares do interior 7 Augusto Emílio Zaluar. Peregrinação pela Província de São Paulo. São Paulo: Cultura, 1943, p. 30. do país, e desta grandiosa natureza com que a 8 Idem, p. 45. Providência mimoseou os povoadores da terra 16 • Ubiratan Machado americana, enquanto bem pouco são os escri- cinco mil bestas, atraindo gente até da tores sérios que se tenham dado ao trabalho Bahia. Mas ver e conhecer não bastava. Era de pintar com suas verdadeiras cores a magni- preciso, ainda e sempre, aumentar o volu- ficência e a beleza destas regiões.9 me de assinaturas de O Paraíba. Com esse As reportagens de Zaluar procuram essa objetivo, Zaluar prolonga o passeio a Porto fidelidade, transmitindo um razoável volu- Feliz e Itu, de onde regressa a São Paulo. me de informações, amenizadas pela evo- Concluindo a longa viagem, conhece São cação de algum fato histórico ou por uma Vicente, cuja decadência o impressiona, divagação poética, tão ao gosto da época. “voltada ao abandono e quase reduzida a Chegando a São Paulo, o jornalista tor- ruínas”,12 e Santos, onde embarca no vapor nou-se muito popular entre os acadêmicos para o Rio de Janeiro. de Direito, dando origem a um novo verbo, Neste início de década de 60, as fer- Zaluar, com o significado de ser muito fre- rovias começam a se expandir, mas ainda quente. Não gostou da cidade, à qual fez muito lentamente. Só em 1864, a Estrada muitas restrições. Considera-a monótona, e de Ferro D. Pedro II alcança Piraí, comple- mesmo tando mais um trecho da projetada linha Nos seus dias de festa, em vez do riso jo- Rio-São Paulo. Foi um acontecimento. Para vial e franco, é taciturna e reservada, como evidenciar as vantagens do novo meio de uma beata que vai à missa das almas com o transporte e a sua segurança, combatendo rosto escondido na mantilha e as contas do a desconfiança que muitas vezes escondia rosário a aparecem por baixo das rendas de pânico, a direção da empresa convidou di- um mantelete de seda.10 versos jornalistas e escritores, residentes na Da capital, Zaluar dirige-se ao oeste do Corte, a viajarem até a cidade fluminense. estado, visitando Campinas, Rio Claro e Pi- Um dos convidados foi o jovem cronista racicaba, esta vivendo um surto extraordi- do Diário do Rio de Janeiro, Machado de nário de progresso, graças ao café. Regressa Assis, que não contém o entusiasmo. a São Paulo, onde permanece vários meses, Nenhum homem de gosto, que tenha em mudando radicalmente de opinião sobre a apreço as maravilhas da natureza e os prodí- gios do braço humano, pode deixar de ir ver, cidade e seus habitantes. ao menos uma vez na vida, os trabalhos ar- Tivemos ocasião desta vez de apreciar rojados e os panoramas esplêndidos que lhe com mais intimidade o caráter dos paulistas, oferece uma viagem pela estrada de ferro de e modificar, confessamos, o juízo precipitado D. Pedro II.13 que nos levaram, e levarão a qualquer outro, as primeiras impressões de quem entra nesta capital.11 Como acontece na França e em todo o mundo, o trem de ferro torna-se uma Curioso de novos cenários, segue para das bandeiras dos intelectuais, que nele Sorocaba, a fim de assistir à grande feira simbolizam o espírito progressista do sé- anual, onde chegavam a ser negociados culo. Em 1851, bem antes do novo meio

9 Idem, p. 121. 12 Idem, p. 220. 10 Idem, p. 137. 13 Machado de Assis. Crônicas, volume II. Rio de Janei- 11 Idem, p. 175. ro: W. M. Jackson, 1944, pp. 169-170. As viagens dos românticos pelo país e a revelação do Brasil • 17 de transporte chegar ao Brasil, Pereira da acostumados a ver os rios urbanos do Rio de Silva já o defendia. Narrando sua viagem Janeiro dos dias de chuva.17 pela Inglaterra, credita ao trem o fantástico E ainda acusam Machado de frieza dian- progresso alcançado pelo país. Rebate com te da natureza... veemência a opinião de “que os caminhos A viagem do jovem cronista, como a de de ferro tiraram às viagens a sua cor pitores- outros jornalistas convidados, e os seus de- ca e poética”.14 E indaga se havia algo de poimentos entusiasmados representavam a mais admirável “do que a rapidez de raio” consagração de um transporte moderno e com que o levou em duas horas e meia de rápido, que começava a mudar a visão do Southampton a Londres, através de cam- homem do século XIX em relação ao tempo pinas e outeiros bem-cultivados, vendo ali e ao espaço,18 mas que ainda encontrava um arado trabalhando, mais além “o pastor opositores. solfejando seus amores ao pé do rebanho”, Para alegria desses conservadores, que e logo uma aldeia e uma cidade, “apare- preferiam a tração animal, a viagem inicial cendo e desaparecendo tudo em um minu- da Santos-Jundiaí, a 6 de setembro, termi- to, como cenas de feitiçaria”.15 nou em desastre. A musa popular não per- 1865 é um ano importante na história deu a oportunidade de glosar o fato: da viação férrea no Brasil, com a inaugura- ção da Santos-Jundiaí e o prolongamento Quem tem medo de morrer, Numa estrada tão segura? da Estrada de Ferro D. Pedro II até Vassou- O passeio é deleitável, ras. Para conhecer o percurso recém-inau- Há na serra água potável gurado, a direção da empresa convida, Pra benzer a sepultura.19 novamente, Machado de Assis. Às seis e meia de uma manhã de setembro, o cro- Enquanto o povo ironiza o desastre, nista embarca na primeira classe, sacode Taunay fazia uma viagem fantástica, autên- o pó que cobria o marroquim do assento tico roteiro de bandeirante do século XIX, e senta-se junto à janela. Com satisfação, com estações no inferno e no paraíso. Mili- revê a paisagem percorrida no ano anterior, tar de profissão, o jovem segundo-tenente aqueles “panoramas maravilhosos que em de artilharia segue para a fronteira com o todo o trajeto a serra oferece”.16 O encanto Paraguai, região invadida pelas forças de aumenta após Piraí, trecho que ainda não Solano Lopes, como integrante da comissão conhecia, com o viajante sempre atento ao de engenharia da coluna organizada para Paraíba: combater no norte de Mato Grosso. A vista deste rio, farto de águas, entre- Em abril de 1865, a tropa sai do Rio de meado de numerosas ilhas de pedra, era um Janeiro, desembarca em Santos, deslocando- espetáculo delicioso para os meus olhos, -se em seguida pelo interior de São Paulo,

14 Pereira da Silva. Variedades literárias. Rio de Janeiro: 17 Idem, p. 327. Garnier, 1862, p. 95. 18 A propósito, consultar Claude Pichois. Vitesse et Vi- 15 Idem, p. 96. sion du Monde. Neuchatel: La Baconnière, 1973. 16 Machado de Assis, em R. Magalhães Jr. Vida e obra 19 Afonso A. de Freitas. Tradições e reminiscências de Machado de Assis, volume I. Rio de Janeiro: Civiliza- paulistanas. São Paulo: Monteiro Lobato & Cia., 1921, ção Brasileira, 1981, p. 327. p. 106. 18 • Ubiratan Machado

Minas Gerais e Goiás, até os confins de aumentam, numa prova eloquente do pen- Mato Grosso, através de uma região bár- samento de muitos soldados de que “Deus bara, de natureza esplendorosa, em muitos é grande, mas o mato ainda maior!”. Como pontos ainda virgem da mão do homem sempre surgem as brincadeiras, toleráveis branco e que o escritor iria incorporar à geo­ ou abusivas. Alexandre de Escragnolle, pri- grafia literária do Brasil. mo de Taunay, vendo uma tropa carregada O trajeto foi sendo vencido com lenti- de queijos de Minas, manda-a parar e, com dão. No percurso entre São Paulo e Ube- ar autoritário, dirige-se ao capataz: raba, foram gastos quatro meses. Até aí, – Você tem de pagar o imposto de guerra. parece que ninguém se lembrava de que – Que imposto é este?, indaga o caipira, ia para a guerra. Em Campinas, a coluna assustado. permaneceu dois meses. Foi uma sucessão – A guarda da frente é para isso. Passe de jantares, festas, piqueniques, namoros, para cá quatro queijos e dos bons; um para bailes e rega-bofes “a se prenderem, uns mim e três para os soldados. Agora, leve aos outros, e sem nos deixar um momento este documento para impedir, caso exijam, de folga”.20 Na realidade, julgava-se que a novas cobranças. tropa jamais alcançaria Mato Grosso, tama- E entregou ao mineiro um bilhete, escri- nhas as dificuldades do percurso. Pensando to a lápis, com os seguintes dizeres: “Dei- assim, andavam pouquíssimo, às vezes me- xem passar o portador em paz; já satisfez nos de meia légua por dia. o tributo”.22 Neste passo, seguiram para Uberaba, um A coluna deixa Minas, transpondo o rio caminho já movimentado, ladeado de casas Paranaíba e prossegue em marcha lenta pe- e ranchos, que serviam refeições abundantes los belos campos do sul de Goiás. Na pe- e gostosas. Taunay fica deslumbrado com a quena vila mato-grossense de Santana do natureza, emociona-se ao avistar, pouco de- Paranaíba, “miserável e sezonática”23, que pois de Franca, o primeiro buriti (“difícil, se Taunay iria imortalizar em Inocência, o co- não impossível, é ver-se cousa mais elegan- mandante recebe ordem de mudar o rotei- te, harmoniosa no todo, esbelta, airosa ao ro de viagem. Em vez de seguir para Cuia- 21 mesmo tempo que solene e melancólica”), bá, devem se encaminhar para Miranda, delicia-se com os bandos de pombos, papa- no sul da província, ainda ocupada pelos gaios e periquitos, interessa-se pelas boiadas paraguaios. procedentes de Goiás, acha majestoso o rio A partir de Santana de Paranaíba, entra- Grande, na divisa de São Paulo com Minas -se no chamado “sertão bruto”, um imenso Gerais. estirão de terra, sem moradores, Depois de uma parada de 47 dias na ci- por toda a parte, a calma da campina não ar- dade mineira, a coluna põe-se em marcha roteada: por toda a parte, a vegetação virgem, para a região em conflito. As deserções como quando aí surgiu pela primeira vez.24

20 Taunay. Memórias. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exér- 22 Taunay. Memórias, p. 138. cito, 1960, p. 119. 23 Taunay. Visões do Sertão, p. 48. 21 Taunay, Visões do Sertão. São Paulo: Melhoramentos, 24 Taunay. Inocência. Rio de Janeiro: Francisco Alves, s/d, p. 55. 1924, p. 2. As viagens dos românticos pelo país e a revelação do Brasil • 19

A paisagem muda. Os campos de cer- Uma outra ameaça são as inúmeras co- rado, o cerrado mato-grossense, de árvores bras. Em certa ocasião, ao se preparar para elevadas, alternam-se com os capões, “tão tomar banho, Taunay percebe uma imensa regulares e simétricos em sua disposição jararacuçu. Por pouco não é mordido. De que surpreendem e embelezam os olhos”25 outra vez, ao despertar de um sono pro- e as charnecas, onde crescem o buriti e “o fundo, encontra, sob o couro onde dormia, gravatá entrança o tapume espinhoso”.26 uma enorme jararaca preguiçosa, que ali se Afinal, acampam em Coxim, na conflu- aninhara em busca de calor. ência dos rios Taquari e Coxim, um ponto O perigo está em toda parte. Na passa- considerado estratégico para impedir o aces- gem do rio Aquidauana, Taunay presencia so dos paraguaios à capital do estado. Era uma cena dantesca. Acabara de fazer a tra- dezembro e, até então, a coluna já percorre- vessia, a nado, quando vê, a poucos metros, ra 1.742 km. Foram dias longos, monótonos, sem nada poder fazer, as águas se tingirem que Taunay alivia pescando, herborizando, de sangue e um colega ser tragado por um desenhando quadros da região. De repen- imenso jaú. Mas a região é edênica, de uma te, começam as chuvas, e o local fica ilhado, beleza perturbadora. sem qualquer possibilidade de chegarem ali- “Se há rio formoso no mundo, é o rio mentos para as quase três mil pessoas que ali Aquidauana”,28 com seu leito de areias al- se encontram; dois mil e tantos homens em víssimas ou rochas de grés vermelhas, fa- armas, e centenas de agregados, mulheres e zendo linhas e desenhos que parecem “tra- até crianças, que seguiam os militares. çados, em horas de capricho, por algum Após Coxim, a viagem se transforma em misterioso escultor, que não sabia como pesadelo. O rio Negro encontra-se cheio e é desperdiçar o tempo”.29 O escritor diz nun- preciso esperar que baixe. Os homens pas- ca ter sentido uma alegria tão pura, como sam a noite trepados em árvores, atacados ali. Ao passear pelo rio vê: pelos implacáveis “pernilongos de cervo, A cada instante antas, veados e varas de assim chamados porque não há couro que porcos monteses que vinham à beira desse- o ferrão não atravesse”.27 Desesperados dentar-se e paravam atônitos ao encontrarem com a mosquitada, os animais arrebentam gente em tão tranquilas e solitárias paragens; as cordas e saem em disparada. víamos lontras e capivaras que mergulhavam Ultrapassado o rio, a coluna segue pelo espavoridas, ao passo que nas grandes árvo- Pantanal, através de brejos pestilentos, que res pousavam inúmeras aves, mutuns, jacus, bandos e bandos de jacutingas, tão nume- margeiam as montanhas. Às febres que co- rosas que nos pareciam de urubus, araras e meçam a dizimar as tropas, junta-se mais papagaios sem conta, um mundo enfim de outro suplício, a fome. Sem víveres, o pes- pássaros de todos os matizes e tamanhos, que soal tem dificuldade até de engolir a saliva, davam a esses lugares aspecto maravilhoso, tão apertada estava a garganta. paradisíaco.30

25 Idem, p. 3. 28 Taunay. Céus e terras do Brasil. Rio de Janeiro: Fran- 26 Idem, p. 3. cisco Alves, 1924, p. 85. 27 Taunay. Em Mato Grosso invadido. São Paulo: Melho- 29 Idem, p. 86. ramentos, s/d, p. 15. 30 Idem, p. 87. 20 • Ubiratan Machado

Afinal, acampam na Serra de Maracaju, região insalubre. A permanência ali provo- para retemperar as forças. Nestes dias de paz, ca uma verdadeira devastação. O beribéri em meio ao esplendor da natureza, Taunay mata dezenas de soldados e oficiais. Mes- vive um romance de amor com uma india- mo assim continuam por 113 dias naquele zinha da nação chané. Mal a viu, montada local maldito, de onde se deslocam para num boi, atrás da família, o segundo-tenente Nioac. No início de março de 1867 – dois tem um impacto. A moça, de quinze para anos após a partida do Rio de Janeiro, ten- dezesseis anos, era de uma beleza exótica, do percorrido cerca de 2.500 quilômetros e com seu rosto oval, bela boca com os “den- perdido um terço dos homens –, a coluna tes cortados em ponta, à maneira dos felinos, encontra-se a apenas doze léguas do forte cabelos negros, bastos, muito compridos”.31 paraguaio de Bela Vista. Os indícios da pre- A paixão é recíproca, irresistível, um “senti- sença dos inimigos são cada vez maiores. mento forte, demasiado forte”.32 Alguns dias depois ocorrem os primeiros Mas guerra é guerra. Em julho de 1866, combates. Os brasileiros são obrigados a re- a coluna desloca-se para Miranda, numa cuar, no episódio conhecido como retirada

31 Taunay. Memórias, p. 201. da laguna. Mas isso já não é conversa de 32 Idem, p. 207. viagem, mas de guerra. Futuro à distância

Arnaldo Niskier Ocupante da Cadeira 18 na Academia Brasileira de Letras. Formado em Matemática e Pedagogia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É Doutor em Educação. Foi membro do Conselho Nacional de Educação. Autor de mais de cem livros. Membro da Academia Brasileira de Educação.

uso de inovações tecnológicas no Os problemas para a incorporação da ensino foi acelerado pela pande- tecnologia pela escola brasileira incluem O mia do novo coronavírus. Trouxe, a muitas falhas na infraestrutura, além da for- reboque, o reforço da valorização de habi- mação docente. Um dos tradicionais obstá- lidades essencialmente humanas, que (ain- culos à realização dos programas pensados da) não foram substituídas pela máquina: é a escassez de recursos financeiros. Há um criatividade, empatia, liderança e empre- discurso na praça afirmando que não é esse endedorismo, entre outras competências o maior dos nossos problemas. O que pesa tão importantes para o profissional desse no processo é a falta de qualidade opera- “novo” normal. cional. Cita-se como maior exemplo, no As tendências para o futuro tornarão a caso do magistério, o fato comprovado de educação onipresente, com o modelo con- que melhores salários não são determinan- vencional atuando junto com a formatação tes de uma grande mudança. Se os salários on-line, praticada nos cursos de EAD. fossem dobrados, nem por isso a qualidade Boa parte das escolas vai caber nos dis- seria estabelecida de imediato. Isso depen- positivos móveis, tornando possível respei- de de uma série de fatores, alguns até bas- tar o ritmo de aprendizagem de cada aluno. tante complexos. Caberá ao professor de amanhã o papel Os investimentos na função educação de curador, escolhendo os conteúdos, os alcançam 6,3% do Produto Interno Bruto. meios e fazendo a conexão entre eles. Deveriam chegar a 10% em escala nos anos A modalidade da educação à distância seguintes. São recursos dignos de países não é nova. Há registros do século passado industrializados, mas o que nos impacienta mostrando sua aplicação em países desen- é que não se sente um adequado planeja- volvidos. Aqui no Brasil é que as coisas sem- mento sobre o que vem por aí. pre foram lentas. Ainda hoje se questiona o Qual o milagre que se espera para aca- seu emprego, por uma justificativa altamen- bar com os 12 milhões de analfabetos adul- te discutível: o medo da pilantragem. tos hoje existentes? O que fazer para que a 22 • Arnaldo Niskier educação infantil deixe de ser prioritária só diversas mídias educacionais. O grande nos discursos e passem a existir as creches desafio é saber utilizá-las de modo eficiente tantas vezes prometidas? O ritmo de traba- e permitir que elas contribuam com as prá- lho do que temos visto não nos deixa nada ticas pedagógicas. otimistas. Estamos vivendo em pleno mundo Enquanto o número de matriculados em digital, trabalhando com cidadãos digitais. cursos presenciais de formação de professo- Embora ainda existam bolsões de pobre- res no Brasil se manteve estável nos últimos za, a verdade é que, de 20 anos para cá, cinco anos, as matrículas nos cursos à dis- a internet comercial é uma realidade, hoje tância cresceram em ritmo acelerado. Um com cerca de três bilhões de navegantes. Ter em cada três alunos de graduação na área um celular passou a ser um direito humano de educação faz o curso remoto, de acor- para cerca de 5,2 bilhões de pessoas, que do com dados do governo. Em pedagogia, representam ¾ do mundo. especificamente, a taxa é maior: metade Escola portátil, conteúdos personaliza- dos estudantes está matriculada em cursos dos, aulas virtuais: o futuro da (nova) edu- à distância. As informações são do último cação está bem delineado. Para fazer a tec- censo do Ensino Superior disponível. nologia melhorar o ensino, falta viabilizar A procura por cursos de formação de as velhas questões trazidas pelo passado, docentes à distância foi estimulada por lei. como infraestrutura, formação de professo- Há mais de 20 anos, a Lei de Diretrizes e res e verba. Bases da Educação (LDB) tornou obrigatória O Brasil tem um sistema de formação de a formação em ensino superior para pro- professores que precisa de alterações pro- fessores da educação básica. Como muitos fundas. Há, nas universidades brasileiras, docentes já davam aula sem diploma uni- um compromisso reduzido com a formação versitário, o curso remoto acabou sendo de docentes para a educação básica. uma boa opção – a maioria dos alunos de Temos 280 mil professores universitários cursos à distância no Brasil trabalha e estu- e o total de doutores não passa de 20% da ao mesmo tempo. desse número. Deve-se abrir caminho para A oficialização da EAD enseja dois tipos a EAD, que poderia ser fundamental nesse de receio: a) a falta de cuidado no creden- processo de conhecimento novo. ciamento das instituições; b) o facilitário na Segundo um recente levantamento da concessão de diplomas. São preocupações Organização para Cooperação e Desen- que não devem inibir o processo. Não pode- volvimento Econômico (OCDE), na última mos admitir que sejamos definitivamente década, em comparação com estudantes de incapazes de levar a sério esse tipo de expe- 65 nacionalidades, ninguém avançou tanto riência pedagógica ou qualquer outro. em sala de aula quanto os chilenos. O méri- Ao longo da história a escola foi adap- to do Chile foi aplicar com disciplina e per- tando-se às novas tecnologias. Num primei- sistência iniciativas de eficácia já testadas, ro momento a educação formal era basea- com sucesso, em países desenvolvidos. Elas da em aulas expositivas, com o enfoque no só funcionaram porque permaneceram de discurso do professor. Atualmente, temos pé ao longo de duas décadas ininterruptas Futuro à distância • 23

– a salvo de trocas de poder, ideologias e crescente em aproximar o mundo acadêmico ingerências políticas que costumam provo- do mundo tecnológico. Antes disso, porém, car retrocessos na área. as instituições precisam sobreviver. O abandono escolar é uma realidade Em recente conferência realizada no país, brasileira, embora o Governo tenha estimu- o sociólogo português António Nóvoa, Reitor lado a valorização da escola por intermédio honorário da Universidade de Lisboa, defen- de ambiciosos projetos sociais, como o Bol- deu a criação de um “lugar institucional”que sa Família, que contemplou 13,8 milhões de assumisse a responsabilidade de formar pro- famílias, beneficiando cerca de 50 milhões fessores. Nesse “lugar” deveria haver uma de pessoas. E mais recentemente o chama- forte presença das escolas e dos professores, do auxílio emergencial. permitindo que os estudantes das licenciatu- ras se socializassem, desde o primeiro ano, Futuro híbrido adquirindo uma cultura profissional docente. A formação continuada se faz, dentro Na educação, o futuro é híbrido. Se da profissão, através de reflexões sobre a pessoas e máquinas trabalharem em con- experiência e o trabalho docente, procuran- vergência, o capital humano nunca per- do as melhores soluções e caminhos para derá importância. A máquina pode muito, a educação dos alunos. Cursos, seminários mas não pode tudo. Milhões de estudan- e palestras têm as funções de convívio e tes, com a existência da pandemia, fizeram contato com ideias e autores, mas não são a migração das aulas presenciais para as satisfatórios como formação continuada. remotas, mantendo do jeito que era possí- É preciso cooperação, reflexão e pesquisa vel. Haverá o retorno às salas de aula, com constantes sobre o trabalho docente. uma consciência mais ampla de que sempre O filósofo francês Michel Serres (1930- teremos um humano por trás das aplicações 2019), autor de mais 60 livros publicados das novas tecnologias, construindo o plane- ao longo de 50 anos de trabalho, destaca a jamento de um futuro amplificado. diferença, em língua francesa, entre educar Frente às demandas do mercado, as ins- (éduquer) e instruir (instruire). Instruir é dar tituições de ensino superior (IES) precisam a informação sobre um conhecimento. Tra- formar profissionais sintonizados com esse ta-se de ciência, de transmissão de conhe- novo mundo. Para se manter relevantes cimentos, como a matemática, a gramática no mundo pós-pandemia, as IES terão que etc. Obviamente, isso não é educar. Educar adaptar seus currículos para as novas tec- é formar uma pessoa, em seu sentido mais nologias, de forma a não perder a oportuni- amplo. Em toda educação há a instrução, dade de navegar nas ondas do futuro, que de alguma forma. chegou mais cedo do que se esperava. Serres chama a atenção para a era digi- Para ajudar as IES, a ABMES e a Microsoft tal como a terceira revolução na história firmaram parceria para a adoção de currículos da Humanidade. A primeira foi a escrita. de Inteligência Artificial na graduação. Dezes- A segunda, o livro. A terceira, o digital. É sete instituições aderiram ao projeto, e outras preciso estar atento, não somente aos novos estão a caminho, mostrando o interesse lançamentos da parafernália tecnológica, 24 • Arnaldo Niskier mas, principalmente, às mudanças que o Com o tempo, os cursos à distância foram digital provoca na forma como as crianças se expandindo para além das licenciaturas. pensam, como usam o cérebro, como aces- O número de matrículas em cursos na área sam o conhecimento, como se relacionam e de educação à distância cresceu 26,71% como se comunicam. Essas mudanças tra- nos últimos cinco anos. Já os presenciais de zem uma verdadeira revolução na aprendi- formação de docentes tiveram aumento de zagem e, obviamente, na escola. 0,12%. Ainda estamos atrasados. É essencial compreender a importância Há experiências isoladas que merecem dessas transformações. O acesso à informa- todo crédito, como o curso de especializa- ção é hoje imediato, fácil e disponível a todo ção à distância que se desenvolve na cáte- mundo pelas novas tecnologias. É possível dra da Unesco existente na Universidade de que estejamos, pela primeira vez na história Brasília. A Universidade Federal de Santa da escola, perante uma “revolução de bai- Catarina, por intermédio da sua Faculdade xo”. Até hoje, as mudanças foram sempre de Engenharia, desenvolve um inteligente pensadas a partir “de cima”, pelos refor- projeto de EAD, que, por sua seriedade, madores, pelos políticos, pelos pedagogos. recebeu aplausos e incentivos financeiros Agora, a revolução se impõe “de baixo”, do Conselho Nacional de Desenvolvimento pela forma como as crianças pensam e aces- Científico e Tecnológico (CNPq). sam o conhecimento. Elas estão nos obrigan- Há outros experimentos em instituições do a mudar as escolas e a própria educação. universitárias ainda não credenciadas pelo CNE (como manda a lei). Em todos eles, Investimentos pelo que se sabe, existe a preocupação com a garantia de qualidade, sem o que não há É lamentável que, em nosso país, ain- como fazer prosperar esse imenso potencial da faltem investimentos na qualificação de professores. Faltam também laboratórios e de atendimento, num país com as nossas bibliotecas. O Brasil tem cerca de 200 mil incríveis dimensões. escolas, a maioria sem bibliotecas e labora- Deve-se louvar igualmente o pionei- tórios compatíveis. Diante disso, como ofe- rismo da Universidade Virtual criada pela recer aos nossos educandos a possibilidade Faculdade Carioca do Rio de Janeiro, sob de uma educação de qualidade? É essencial a inspiração do professor Celso Niskier. corrigir essas falhas. As sociedades mais É dele também a autoria da primeira delibe- bem-sucedidas economicamente e as que ração oficial de criação de cursos à distân- alcançaram os graus mais elevados de bem- cia, numa decisão do Conselho Estadual de -estar são as que mais dominam as várias Educação do Rio de Janeiro. áreas do saber. A questão da Educação é O que se pode desde logo assegurar é estratégica para atingir o estágio de desen- que avançamos tecnologicamente em ter- volvimento que almejamos como nação. mos de hardware. Satélites, parabólicas, Na verdade, a educação à distância computadores, ilhas de edição totalmente ganhou força no Brasil justamente por causa digitalizadas, canais exclusivos para edu- da necessidade de formação dos professores. cação – enfim, sob esse aspecto, não há Futuro à distância • 25 dúvida que se pode contar com imensa e comunicação postal, telefônica e via satéli- rica parafernália eletrônica. te. Não foi por outra razão que o Congresso Onde ainda existe grande precariedade é Nacional recebeu, em 1972, o primeiro Pro- na engenharia de software, ou seja, na indis- jeto de Lei, criando a Universidade Aberta, pensável produção de programas. Somos o que se repetiu em 1987. Só em 2006 ela corajosos para comprar equipamentos dignos começou a funcionar – e de modo precário. do Primeiro Mundo, mas os salários pagos Os ministros Hugo Napoleão (28-2-1988 aos nossos professores e especialistas, em a 17-1-1989) e Carlos Sant’Anna (17-1-1989 geral, ainda não passam do Terceiro Mundo. a 15-3-1990) criaram Grupos de Trabalho Enquanto isso, no mundo caracterizado para estudar a educação aberta e à distân- pela sociedade pós-industrializada, desdo- cia, entendida como moderna modalidade, bram-se projetos de sucesso, alguns dos capaz de revolucionar a nossa política de quais são oferecidos ao Brasil numa tenta- recursos­ humanos. Alguns experimentos tiva de conquista do mercado, de imensas chegaram a ser financiados pelo MEC, em virtualidades. 1989, como o programa de educação con- A Universidade de Harvard realiza pro- tinuada para professores de matemática e gramas com a Argentina; a Universidade de ciências do primeiro grau (Funbec), forma- Michigan, que procurou o Brasil para a feitu- ção de especialistas­ em educação à distância ra de um MBA, está com os seus tentáculos (Universidade de Brasília), criação do Cen- estendidos a Hong Kong, Japão, Tailândia e tro de Educação à Distância da Uerj, Proje- outros tigres asiáticos, num fenômeno de to Vitória-régia (Secretaria de Educação do expansão que justifica os temores da globa- Amazonas), materiais para rádio e televisão lização cultural; o mesmo faz a Universidade (Irdeb) etc. da Pennsylvania, por intermédio da sua notá- Como sempre acontece, não houve vel e bem-sucedida Wharton School, onde continuidade, embora do Grupo de Traba- estivemos por quatro vezes para estudar a lho fizesse parte um representante do Con- problemática da previdência complementar. selho Federal de Educação e outro do INEP, Hoje, os seus programas são oferecidos ao instituições aparentemente não perecíveis Brasil, de forma indireta, utilizando os meca- (o CFE trocou de nome). nismos da educação à distância e, mais parti- A título histórico, registramos os nomes cularmente, o potencial dos satélites domés- constantes da Portaria Ministerial número ticos de telecomunicações. 418, de 10 de novembro de 1988, assina- da pelo ministro-interino Luiz Bandeira da Grupo de trabalho Rocha Filho, com Arnaldo Niskier, Terezinha Maria Abranches Felix Cardoso, Maria de Para a implantação de um Sistema Lourdes Marques Bittencourt, Anna Rosa Nacional de Ensino Superior Aberto e à Dis- Bogliolo de Siqueira, Jane Maria Fanti- tância contribui decisivamente a existência nelli Tomasini, Inês Bettoni e Marly Gonet de um amplo parque editorial, de inúmeras Mourão Branco. emissoras de rádio (mais de três mil) e de Este Grupo de Trabalho, por nós coorde- televisão, além de uma excelente rede de nado, concluiu documento intitulado “Por 26 • Arnaldo Niskier uma Política Nacional de Educação Aberta e no prioritário campo da capacitação e aper- à Distância”, em fevereiro de 1989, em que feiçoamento de professores, mas em outras foram estabelecidas estratégias de implan- áreas igualmente importantes do nosso pro- tação, acompanhamento e avaliação, de cesso de crescimento. Se optar pelo finan- que se pode extrair o seguinte resumo: ciamento a projetos, que se faça a cobrança Proceder ao levantamento da demanda imperiosa da QUALIDADE, assim justificando real de necessidades, a ser atendida pela meto­- o investimento público numa área de relevo dologia de EAD; promover a formação de estratégico para o país. O que nos anima é equipes multidisciplinares para a produção de o despertar da Universidade Aberta do Brasil programas; ampliar o acervo das bibliotecas escolares, de modo a incorporar também víde- (UAB), um consórcio de universidades oficiais os, disquetes e outros materiais; incentivar a empenhadas nessa modalidade. produção de programas locais de rádio e tele- Para que o tema ganhe continuidade, é visão; apoiar técnica e financeiramente pro- importante que sejam levados em conside- gramas e projetos de EAD promovidos por ins- ração os itens que propusemos ao Conselho tituições públicas de ensino e organizações da Nacional de Educação através da Indicação sociedade civil sem fins lucrativos; estabelecer n.o 6/96, em que se previa a criação de um mecanismos de acompanhamento e avaliação Sistema Nacional de Educação Aberta e à de programas e projetos da EAD; aproveitar a infraestrutura de instituições de ensino de Distância; antes, é de nossa autoria a Indi- nível médio e superior, para torná-las centros cação n.o 1/86, do Conselho Federal de Edu- de EAD regionais e/ou estaduais; incluir a cação, sobre Informática na Educação. Um metodologia da EAD nos currículos dos cursos documento pioneiro, com algumas suges- de educação e de comunicação; oferecer, nas tões importantes: universidades, cursos de especialização em educação à distância; oferecer cursos de espe- 1. estabelecer a Política Nacional de Educa- cialização para professores e outros profissio- ção Aberta e à Distância, no âmbito do nais de ensino superior, em face da carência de recursos humanos com titulação adequada Conselho Nacional de Educação, inte- e formalmente exigida etc. grando o Plano Nacional de Educação; 2. estimular a experiência da Universidade O que se lamenta é o “embargo de Virtual, com a oferta ilimitada de cursos gaveta” sofrido pelo estudo mencionado, não presenciais e a ampla utilização de que custou muitas horas de reuniões e expe- endereços eletrônicos; riência transmitida, sem que na prática fosse colocado em execução. Mas, quem sabe, 3. integrar os esforços das redes nacionais criou um clima favorável ao seu desencade- de rádio e televisão educativa, a fim de amento agora? dar suporte aos projetos de treinamen- Que somos um grande mercado, não há to de capacitação de profissionais, nos dúvida. Que sofremos um atraso crônico na níveis médio e superior; apropriação de tais ideias, menos dúvida ain- 4. Criar a primeira experiência-piloto na da. Cabe ao Ministério da Educação o natu- área do magistério, qualificando pro- ral papel de liderança, para acelerar o empre- fessores e especialistas, com ênfase no go na modalidade e, a nosso ver, não apenas emprego da informática na educação; Futuro à distância • 27

5. Treinar profissionais de multimídia (ro- Quarta revolução industrial teiristas, engenheiros de software, pro- Em torno de 60% das profissões de 2019 dutores visuais, animadores, produtores ainda não existem. É preciso preparar os de vídeo, fotógrafos, locutores, dubla- nossos jovens para esse mercado. O conhe- dores etc., todos eles constituindo o cimento é o maior insumo do século XXI. É que hoje chamamos de profissionais de ele que vai determinar o sucesso de um pro- newmedia); fissional. E o maior centro de distribuição de 6. Orientar a produção de softwares edu- conhecimento continua sendo a escola. cativos no país, para distribuição nas Já se fala em quarta revolução indus- escolas públicas, com vistas ao aper- trial. São tecnologias capazes de integrar os feiçoamento da qualidade do ensino domínios físicos, digitais e biológicos da vida (ênfase na educação básica); humana. Essa revolução seria caracterizada 7. Elaborar uma estratégia nacional para pela difusão da internet móvel, o surgimen- to dos sensores menores, mais poderosos e o ensino por correspondência, baseada mais baratos, e pela inteligência artificial nos princípios da educação continuada e aprendizado da máquina. O professor e em perfeita consonância com a reali- deve atualizar-se nas tecnologias inovado- dade brasileira, preservada a qualidade ras e descobrir-se um facilitador do proces- dos serviços a serem prestados; so educacional, reinventando um conjunto 8. Promover a formação de equipes mul- de ações didático-pedagógicas. tidisciplinares para a produção de pro- Prevê-se a valorização do ensino técnico- gramas; -profissional de que o país tanto carece. O en- 9. Ampliar o acervo das bibliotecas esco- ­sino médio deve oferecer habilidades e com­ lares, de modo a incorporar também petências aos alunos segundo suas escolhas vídeos, disquetes e outros materiais; pessoais – e de acordo com as variações do mercado. É o que faz com sucesso o Sistema S 10. Incentivar a produção de programas desde a década de 1950, com a boa tradição locais de rádio e televisão; dos seus cursos profissionalizantes. Quando 11. Apoiar técnica e financeiramente pro- o assunto é tecnologia aplicada à educação, o gramas e projetos de EAD, promovi- SESI, o SENAI, o SESC e o SENAC são pionei- dos por instituições públicas de ensino ros na formação dos profissionais do futuro. e organizações da sociedade civil sem Essas entidades colocam os jovens em conta- fins lucrativos; to com a tecnologia desde cedo e contribuem com a formação de adultos mais conectados 12. Aproveitar a infraestrutura de institui­ à inovação. O SESI mantém aulas de robótica ções de ensino de nível médio e supe- no currículo de 400 de suas escolas de ensino rior para torná-las centros de EAD regio­ médio e fundamental. Há cinco anos, organi- nais e/ou estaduais; za um torneio de Robótica para estudantes de 13. Incluir a modalidade de EAD nos cur- 9 a 16 anos, de escolas públicas e particulares, rículos dos cursos de educação e de desafiados a criar soluções inovadoras e cons- comunicação. truir robôs com peças de Lego. 28 • Arnaldo Niskier

Desafios As mudanças de grande amplitude que caracterizam a sociedade contemporânea O mundo vive a dicotomia cruel: de um vêm causando um impacto de proporções lado, altas tecnologias e, de outro, mão inéditas no campo educacional. O aumento de obra de baixa qualificação (no caso da crescente da demanda por mais escolarida- China, com salários baixos pagos aos tra- de, a busca por novas formações, a neces- balhadores, provocando uma competição sidade de percursos curriculares mais flexí- perversa). O simples adestramento de tra- veis, a existência de recursos pedagógicos balhadores não parece o ideal. Ele resolve tecnologicamente avançados, o advento da questões de momento, com oportunismo, internet e das redes sociais e a comprovada não levando a soluções duradouras. limitação das metodologias mais ortodoxas A globalização da economia, muito boa tornam evidente que a escola, como é hoje, para certos países, já nos trouxe problemas internos graves, como os que ocorrem na não atende às expectativas e necessidades indústria naval, a indústria de brinquedos da juventude brasileira. e a indústria têxtil. Apresenta-se uma pers- Será possível vencer esse grande desafio, pectiva favorável para o Brasil em produtos quando alcançarmos um efetivo empenho agropecuários e produtos minerais (minério das autoridades, com professores e especia- de ferro, bauxita e manganês). listas, numa escola renovada e com os equi- Devemos levar a nossa política de recur- pamentos necessários, formados e dispos- sos humanos a considerar todos esses tos, com uma remuneração compatível. Só fatos, na diversificação necessária. Sob esse assim poderá prevalecer, para o bem do país, aspecto, o papel do novo ensino médio é o que vimos denominando de novo huma- estratégico e essencial, podendo elevar a nismo tecnológico. qualidade dos nossos produtos, valorizando Como fecho, devemos exaltar a Escola a mão de obra indispensável e distribuindo SESC de Ensino Médio, criada no Rio de melhor e de forma bem mais equitativa a Janeiro, para servir de modelo a outras mais renda nacional. que deverão existir. Monteiro Lobato foi racista?

Ivo Korytowski Escritor com duas obras premiadas pela UBE, tradutor consagrado, lexicógrafo, filósofo pela UFRJ, pesquisador da história do Rio, blogueiro e Youtuber. Pode ser contactado no Facebook.

os últimos anos, na onda do politi- refletia a visão do judeu na sociedade da camente correto, surgiu a acusação época, moldada por séculos de pregação N de que Monteiro Lobato teria sido pela Igreja da doutrina da culpa coletiva, racista. A gente tem que julgar um artista com base em Mateus 27:25: “O seu sangue pelo contexto e espírito de sua época. Na caia sobre nós e sobre nossos filhos”. peça O mercador de Veneza, Shakespeare Também o grande sociólogo Gilberto cria um personagem que é o protótipo da Freyre teve, na juventude, uma fase “racis- imagem do judeu usurário e desalmado vi- ta”, e não é por isso que vamos desmerecer gente naquela época. Por isso vamos tachá- o conjunto de sua obra. Em artigo intitu- -lo de antissemita? Charles Dickens, em Oli- lado “Na Argentina”, publicado na coluna ver Twist, cria um personagem judeu que “Da outra América”, na pág. 3 do Diário explora crianças ensinando-as a roubar. Por de Pernambuco de 31 de outubro de 1920, que personagem tão negativo tinha que ser aos vinte anos, portanto, escreveu Freyre: justo um judeu? Por que não católico ou Algumas das páginas mais interessantes do livro do Sr. Lima são as dedicadas ao problema hinduísta? Mas não é por isso que vamos da raça na Argentina. Parece que nesse ponto tachar o Dickens de antissemita e deixar de a República do Prata leva decidida vantagem ler seus livros. sobre os demais países americanos. Em futuro Aqui no Brasil temos o exemplo do escri- não remoto sua população será praticamente tor paraense Inglês de Sousa, um dos fun- branca. Tão inferiores em número à caudalosa dadores da Academia Brasileira de Letras, maré caucásica são os elementos de cor que o que, no início do seu conto “A festa do ju- processo de clarificação da raça argentina será relativamente breve, fácil e suave. deu”, desanca o “Povo Escolhido” com epí- tetos como “malvado judeu” e “[o] homem Acusam Lobato de, em sua caracteriza- que havia pregado as bentas mãos e os pés ção da Tia Nastácia, ter sido racista. Acu- de Nosso Senhor Jesus-Cristo numa cruz”, sam-no também de ter sido partidário da mas jamais ocorreu a alguém tachá-lo de eugenia, e tacham o seu único romance, O antissemita, pois sabemos que ele apenas presidente negro, de racista. Mas esquecem 30 • Ivo Korytowski que, em seu conto magistral intitulado “Ne- doenças, como a gente lê no artigo “Paying grinha”, Lobato faz uma denúncia pungen- a high price for skin bleaching” publicado te dos maus-tratos infligidos a uma menini- na Africa Renewal de abril-julho de 2019. nha de raça negra. Um racista de verdade Lobato, em uma de suas cartas para jamais teria escrito um tal conto. Godofredo Rangel (7/2/1912), publicadas A Tia Nastácia realmente é caracterizada em A barca de Gleyre, refere-se com cari- como uma negra beiçuda e, a certa altura nho à tia Anastácia, a “preta que eu trou- de Reinações de Narizinho, Pedrinho revela xe de Areias”, ama de seu filho Edgard, que ela tinha vergonha de ser preta. “Tia na qual decerto se inspirou para criar a Tia Nastácia não sei se vem. Está com vergo- Nastácia: “Excelente preta, com um mari- nha, coitada, por ser preta.” Mas a gente do mais preto ainda, de nome Esaú”. Ainda tem que entender o contexto da sociedade sobre Anastácia, em entrevista a Silveira Pei- da época. A escravidão havia sido abolida xoto no final dos anos 30, incluída no livro poucas décadas antes. Os negros libertados Prefácios e entrevistas, diz Lobato: não receberam nenhum tipo de indeniza- Uma preta alta, muito boa, muito resmun- ção, tampouco receberam instrução. Quan- guenta, hábil quituteira... Tal qual a Anastácia, do escravos, não frequentavam escolas, e ou a Tia Nastácia dos livros. depois de libertos o sistema educacional E em outra de suas cartas para Godofre- levou décadas até absorvê-los. Em meados do Rangel (27/6/1909), escreve: do século XX, metade da população bra- Eu gosto muito dos negros, Rangel. Pare- sileira ainda era analfabeta, e entre estes cem-me tragédias biológicas. Ser pigmentado, analfabetos havia uma forte proporção de como é tremendo! negros. Na época em que Lobato escreveu suas obras, embora alguns negros já tives- Em 10 de janeiro de 1917, escreve: sem se destacado na sociedade, como os Consulte os negros velhos daí, porque já notei que os negros têm muito melhores olhos engenheiros irmãos Rebouças, ainda cons- que os brancos. Enxergam muito mais coisas. tituíam exceções. Não existia uma classe média negra. Existe o outro lado da moeda, passagens E essa fantasia do negro querer ser em que fala depreciativamente dos negros, branco não é tão estranha quanto se afigu- mas são poucas, numa correspondência que ra. Macunaíma, o herói sem caráter, criação durou quarenta anos. genial de Mário de Andrade, também nas- Carta a Godofredo Rangel de 30/7/1910: ceu preto, mas, ao se banhar numa água A minha ideia do porão falhou, porque encantada, transformou-se em “branco uma criada ocupa a repartição próxima, e louro e de olhos azuizinhos, água lavara o como é preta põe lá um bodum pior que o pretume dele”. E nos próprios países afri- barulho da sala. canos na atualidade não são incomuns os Carta a Godofredo Rangel de 29/10/1916: cosméticos de branqueamento da pele. A A Capital [...] publicou umas tantas infâ- Organização Mundial de Saúde adverte que mias sobre o nosso grande morto [poeta Ri- os tratamentos para embranquecer a pele cardo Gonçalves], escritas em língua de negra praticados na África podem causar graves suja. Monteiro Lobato foi racista? • 31

Carta a Godofredo Rangel de 6/2/1915: Por outro lado, Lobato sente uma afini- O negrinho aluno está uma pura maravi- dade pelo povo. Luta em vão contra a buro- lha; conheço uns tantos desses pretos de pas- cracia e a ditadura Vargas para trazer ferro e tinha, brancos por dentro, pretos só por fora. petróleo ao país, modernizando-o. No pós- Parece absurdo, mas na época, assim -Segunda Guerra Mundial, simpatiza com o socialismo soviético, como revela ao repórter como alguém pão-duro era chamado de Tulman Neto do Diário de São Paulo, em en- “judeu” (os dicionários consignam este uso, trevista publicada em Prefácios e entrevistas: por exemplo, o Houaiss: “pessoa usurária, “O quase certo [...] é a passagem da Ordem avarenta”), usava-se a expressão “preto de Social Capitalista para a Ordem Socialista, alma branca” para um negro com caracterís- mais ou menos como na Rússia”. Em car- ticas consideradas mais típicas da população ta de 15/7/1915 para Godofredo Rangel, branca. escreve: É bem verdade que, em carta de A burguesia não tem alma. Educação e 3/2/1908, quando Lobato tinha 25 anos, riqueza são máscaras de desindividualização. existe um trecho na primeira edição forte- Que delícia nadar nas ondas da plebe, como mente racista, tanto é que foi eliminado das num mar!... Como Gorki nadava... edições subsequentes: Que contra-Grécia é o Rio! O mulatismo Em carta de 7/12/1916, escreve: dizem que traz dessoramento do caráter. Di- O caboclo parece-me hoje açúcar refinado zem que a mestiçagem liquefaz essa cristali- perto do açúcar preto que são os urupês cita- zação racial que é o caráter e dá uns produ- dinos de gravata. Que pulhas! tos instáveis. Isso no moral – e no físico, que feiura! Num desfile, à tarde, pela horrível rua Em carta de 17/4/1917, escreve: Marechal Floriano, da gente que volta para os A nossa imbecilização é das mais curiosas: subúrbios, perpassam todas as degenerescên- vem de cima para baixo, e decresce quando cias, todas as formas e má-formas humanas chega ao povo. Quanto mais conheço os pa- – todas, menos a normal. Os negros da África, redros [= mandachuvas], mais admiro o equi- caçados a tiro e trazidos à força para a escra- líbrio, a sensatez, a sanidade mental destes vidão, vingaram-se do português da maneira meus bons caboclos da roça. mais terrível – amulatando-o e liquefazendo- Se fosse verdadeiramente racista, Lobato -o, dando aquela coisa residual que vem dos subúrbios pela manhã e reflui para os subúr- não elogiaria nestes termos o mulato Lima bios à tarde. [...] Barreto, na época vítima de preconceito: Como consertar essa gente? Como sermos Conheces Lima Barreto? Li dele, na Águia, gente, no concerto dos povos? Que proble- dois contos, e pelos jornais soube do triunfo mas terríveis o pobre negro da África nos criou do Policarpo Quaresma, cuja segunda edição aqui, na sua inconsciente vingança!... já lá se foi. A ajuizar pelo que li, este sujeito Talvez a salvação venha de São Paulo e me é romancista de deitar sombras em todos outras zonas que intensamente se injetam de os seus colegas coevos e coelhos, inclusive o sangue europeu. Os americanos salvaram-se Neto. Facílimo na língua, engenhoso, fino, dá da mestiçagem com a barreira do preconceito impressão de escrever sem torturamento – ao racial. Temos também aqui essa barreira, mas modo das torneiras que fluem uniformemente só em certas classes e certas zonas. No Rio não a sua corda-d’água. (Carta de 1o/10/1916 a existe. Godofredo Rangel) 32 • Ivo Korytowski

Aliás, Monteiro Lobato, à frente da Edito- E o narrador, Lobato, usa com frequên- ra Revista do Brasil, editou uma obra de Lima cia a designação “a boa negra”. Com seus Barreto, Vida e morte de M. J. Gonzaga de dotes culinários, conquista não só os huma- Sá, um total fracasso de vendas, que Lobato nos, mas também São Jorge, o Minotauro e atribuiu ao título, pouco convidativo. o anjinho da Viagem ao céu: “Quando eu O primeiro livro que Lobato publicou, havia de pensar que até os santos e os anjos baseado em série de reportagens para O Es- haviam de comer os meus bolos fritos?”. tado de São Paulo, intitulado O Saci-Pererê: Como bem lembra o escritor Helio Bra- resultado de um inquérito (1918), é sobre a sil, em “O tempo e as injustiças” (artigo lenda do saci, que depois deu origem a um publicado no meu blog Sopa no Mel), a es- de seus livros da série infanto­juvenil. Um pevitada Emília como o sábio e desajeitado escritor racista estrearia em livro com uma Visconde de Sabugosa “saíram das mãos da lenda da cultura negra? negra Nastácia, foram por ela plasmados, a Por todos esses motivos, eu acho um ‘grande mãe negra brasileira’.” exagero a gente querer tachar o Lobato de Quanto ao fato de Monteiro Lobato ter racista por ter criado a Tia Nastácia da ma- sido partidário da eugenia, quero lembrar neira como criou. A própria caracterização que originalmente se tratou de um movi- dela é ambígua. No livro Histórias de Tia mento que se acreditava científico, assim Nastácia ela é a figura principal e, bem no como o marxismo, a frenologia e a psicaná- início, observa Pedrinho que lise também se acreditavam científicos (hoje Tia Nastácia é o povo. Tudo que o povo sabemos que não são). Seu objetivo básico sabe e vai contando, de um para outro, ela era a melhoria da raça humana em geral, deve saber. Estou com o plano de espremer Tia Nastácia para tirar o leite do folclore que no sentido de eliminar a transmissão de há nela. doenças sabidamente hereditárias, embora como corolário combatesse a mestiçagem E pouco depois Pedrinho diz: “As negras e defendesse o branqueamento da popu- velhas são sempre muito sabidas.” Isso é ser lação. Em prefácio ao livro Bioperspectivas racista? É bem verdade que a certa altura do ativista pró-eugenia Renato Kehl, assim do livro (na história “O Macaco, a Onça e Lobato a define: “aplicação da ciência para o Veado”), quando Nastácia observa que melhorar o mau animal humano”. O pró- “A sina dos carneiros é a panela”, Emília prio Kehl assim a define no Boletim de Eu- reage com estas palavras: “Bem se vê que é genia n.o 4, de abril de 1929: preta e beiçuda.” Mas Emília é uma boneca A eugenia tem por fim cooperar para o insensível, desbocada, que não respeita nin- aumento progressivo dos homens física, psí- guém. No início de Viagem ao céu, quando quica e moralmente sadios; para a diminuição Emília diz que “negra velha não tem direito paulatina do contingente dos fracos, doentes de repousar”, Pedrinho chama sua atenção: e degenerados – concorrendo, desse modo, Malvada! Quem neste sítio tem mais direi- para a constituição de uma sociedade mais sã, to de descansar do que ela, que é justamente mais moralizada, em suma, uma humanidade quem trabalha mais? Então negra velha não equilibrada, composta de indivíduos fortes e é gente? belos, elementos de paz e de trabalho. Monteiro Lobato foi racista? • 33

É verdade que a ideia degenerou no vence por fim a inteligência do branco. Con- delírio da raça pura do Hitler, mas não é in- segue por meio dos raios N, inventados pelo comum boas ideias degenerarem em ideias professor Brown, esterilizar os negros sem que péssimas, por exemplo, a ideia do amor uni- estes deem pela coisa. (Carta de 8/7/1926) versal de Jesus Cristo degenerou na caça às Um romance racista, sim, escrito para bruxas e guerras de religião, e a ideia da so- uma sociedade então notoriamente racista, ciedade sem classes de Marx degenerou na imaginando o que aconteceria se a popula- barbárie stalinista. Muita gente boa, como ção negra dos Estados Unidos superasse nu- e Roquette-Pinto, foi parti- mericamente a população branca. É como dária da eugenia, não só Monteiro Lobato. se tentássemos imaginar hoje como seria O próprio João Ribeiro, intelectual acima de Israel se a população árabe ultrapassasse a qualquer suspeita, simpatiza com as Lições judaica. Um exercício de futurologia. Desi- de Eugenia de Renato Kehl (Boletim de Eu- ludido por não encontrar editor em terras genia, 6-7, junho-julho de 1929, p. 6). Por de Tio Sam, Lobato desabafa para Rangel: outro lado, Lobato não foi um ativista his- Meu romance não encontra editor. Falhou térico, um fanático da eugenia, apenas um a Tupy Company. Acham-no ofensivo à digni- simpatizante. Não escreveu artigos para de- dade americana, visto admitir que depois de fender explicitamente a eugenia. Não cola- tantos séculos de progresso moral possa esse borou com o Boletim de Eugenia, porta-voz povo, coletivamente, cometer a sangue-frio o do movimento que circulou de 1929 a 1932, belo crime que sugeri. Errei vindo cá tão ver- nem sequer é mencionado lá. Em sua cor- de. Devia ter vindo no tempo em que eles lin- respondência com Godofredo Rangel, que chavam os negros. se desenrolou por um período de quarenta Segundo Edgard Cavalheiro, biógrafo anos e na qual ele abria seu coração, a pala- de Lobato, o fracasso deveu-se ao fato de vra “eugenia” não ocorre nenhuma vez. Já o romance tocar em tema tabu, “falar de “progresso(s)” ocorre dez vezes. corda em casa de enforcado” (Monteiro Lo- Quanto a O presidente negro, é uma bato, vida e obra, p. 341). obra futurista à maneira das obras de H. G. O presidente negro constitui hoje a prin- Wells que Lobato pretendia lançar nos Esta- cipal peça de acusação na tentativa de incri- dos Unidos para ganhar muito dinheiro, pla- minar Lobato como tendo sido racista. Até no esse que saiu pela culatra. Podemos dizer certo ponto Lobato foi racista, sim. Muita que foi o grande equívoco literário de Lobato gente boa na época foi racista. Euclides da – afinal, ninguém é perfeito. Assim descreve Cunha foi. A expressão “raça superior” figu- o autor sua trama em carta a Rangel: Uma ideia-mãe! Um romance americano, ra quatro vezes em Os Sertões, por exemplo: isto é, editável nos Estados Unidos. Já comecei A mistura de raças mui diversas é, na maio- e caminha depressa. Meio à Wells, com visão ria dos casos, prejudicial. Ante as conclusões do futuro. O clou será o choque da raça negra do evolucionismo, ainda quando reaja sobre com a branca, quando a primeira, cujo índi- o produto o influxo de uma raça superior, ce de proliferação é maior, alcançar a branca despontam vivíssimos estigmas da inferior. e batê-la nas urnas, elegendo um presiden- A mestiçagem extremada é um retrocesso te preto! Acontecem coisas tremendas, mas (Cap. II, “O vaqueiro”). 34 • Ivo Korytowski

A intelectualidade era racista como hoje o nível cultural de nossa juventude daria é socialista, e olhem quantas barbáries se um salto de qualidade. Lobato aborda a cometeram em nome do socialismo! mitologia, o folclore, a literatura clássica, Querer boicotar Lobato devido ao seu a geografia, a astronomia, a gramática, a racismo é injustiça cometida contra um aritmética, a história do mundo, a história homem tão patriota que, na luta para mo- das invenções, a exploração do petróleo, o dernizar o país e implantar as indústrias do diabo a quatro. Creio também que, se ti- petróleo e do ferro, tirando assim o Jeca vesse escrito numa língua universal, como Tatu da miséria, entrou em choque com o inglês ou francês, suas obras virariam de- a ditadura Vargas e foi parar na prisão. senhos animados de sucesso internacional Francamente, Monteiro Lobato tem tantas e o Sítio do Picapau Amarelo tornar-se-ia qualidades e tão poucos defeitos, mas nós, parque temático. Claro que tudo isso são brasileiros, sofremos de “complexo de vira- meras especulações. -lata” e, agraciados com um escritor de lite- E, last but not least, para dar uma ideia ratura infantojuvenil da sua magnitude, em da criatividade de Lobato, transcrevo um diá­ vez de o valorizarmos e nos orgulharmos logo da Emília e Dona Aranha, costureira, dele, procuramos seus defeitos. em Reinações de Narizinho: Cresci lendo as obras de Monteiro Lo- – Mas quem é que fabrica esta fazenda, bato e confesso que, na inocência da in- Dona Aranha? [...] fância e adolescência, jamais detectei sinais – Este tecido é feito pela fada Miragem – respondeu a costureira. de racismo, embora agora adulto eu consi- – E com que a senhora o corta? ga perceber que ao menos a espevitada e – Com a tesoura da imaginação. politicamente incorreta personagem Emília – E com que agulha o cose? tem lá seus arroubos racistas. Lobato é um – Com a agulha da fantasia. autor de uma imaginação estonteante, e – E com que linha? acredito que, se adotado no nosso ensino, – Com a linha do sonho. O precursor e pré-modernista Afrânio Peixoto

Cyro de Mattos Ficcionista e poeta. Editado em Portugal, Itália, França, Espanha, Alemanha e Estados Unidos. Premiado no Brasil, Portugal, Itália e México. Membro efetivo da Academia de Letras da Bahia e do Pen Clube do Brasil. Primeiro Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz (Bahia).

aiano de Lençóis, Afrânio Peixoto atrasada dentro de um Brasil obsoleto, de (1876-1947) formou-se em medici- arcabouço e entorno arcaicos. Do homem B na. Dedicou-se à higiene pública e brasileiro estagnado no povoado de Caja- medicina legal. Passou a infância e mocida- zeira, às margens do rio Pardo, com cen- de em Canavieiras, no sul da Bahia, muni- tenas de casas habitadas por uma popula- cípio onde foi plantada a primeira muda de ção com natureza rudimentar, vivendo sem cacau trazida do Pará, que produziria uma sistema social organizado, que fosse capaz lavra de duração permanente, tornada po- de impelir um caldeamento de gente hete- derosa ao se espalhar tempos depois pelo rogênea para uma etapa considerada como território sulino do estado da Bahia. civilizada. Responsável pela criação de uma civili- Afrânio Peixoto viveu o clima eclético zação singular, ao longo dos anos, a lavra que impregnava nossas letras nos fins do cacaueira forjaria uma saga de cobiça e século XIX e princípio do XX. Essa fase co- morte. Ocuparia espaço extenso e bárbaro nhecida como sincrética procedia do entre- trabalhado no romance de cruzamento de vários estilos, estéticas e ten- como um mundo das terras do sem-fim, dências. Vivia-se o Brasil com o pensamento correspondente à época da conquista e po- na França. O ambiente intelectual brasileiro voamento. Na obra romanesca de Adonias era dominado pelo espírito da Belle Époque. Filho, essa geografia primitiva seria recriada A literatura correspondia ao sorriso da socie- com o trágico na infância da selva. dade. O Brasil não era visto dentro do Brasil, A infância e mocidade de Afrânio Peixo- ligado à sua problemática social. to em Canavieiras deu-lhe condições para Estreou com os versos de Rosa mística, vivenciar o ambiente, relacionar-se com ti- livro típico do simbolismo em vigor na épo- pos e costumes da região para assim, dota- ca. Mas somente com os romances regiona- do de conhecimentos locais, escrever Ma- listas rurais, superiores aos urbanos, iria se ria Bonita (1914), romance de uma região notabilizar como ficcionista, juntando-se a distante e longínqua, de formação social outros intelectuais da época, representantes 36 • Cyro de Mattos de uma linha de escritores que pretendia agonizante, publicou seu primeiro livro Rosa ver o Brasil com sua problemática social de mística em cinco cores, numa tipografia de natureza arcaica, de contornos humanos Leipzig. Como criador de tipos femininos rústicos e formação desordenada, como consegue boa fatura literária com a figura , J. Simões Lopes Neto, de Maria Bonita, o nome que deram para Lima Barreto, Hugo de Carvalho Ramos e traduzir, em palavra, a formosura e admi- Monteiro Lobato, entre outros. ração feliz que todos sentiam ao ver uma Com Maria Bonita (1914), torna-se o pre- criatura tão bela. Para distingui-la de outras cursor do ciclo do cacau na Bahia, cujo arran- da terra, “o povo conferiu-lhe esse apelido, que nas letras brasileiras foi dado com Jor- para que assim, na sua formosura e presen- ge Amado em Terras do sem-fim, em 1943. ça, fosse conhecida por toda a redondeza”. No romance desse baiano de Lençóis, o ca- Em Maria Bonita, o autor pode ser visto cau entra em cena como um componente como um visionário dos temas do Movimen- da paisagem, no texto atraente ocorrem alu- to Modernista de 22, dando bom exemplo sões ao cacaueiro, já chamado como a árvore de reconstituição social e cultural de nossa que produzia os frutos de ouro, mais pela cor realidade, no começo do século XX. Essa amarelada quando maduro do que como fa- coordenada mostra-se evidente quando o tor preponderante nos conflitos que essa la- romancista transpõe para o cenário regional vra iria gerar numa saga de cobiça e morte. o arraial de Jacarandá, o ponto de encontro Ainda não se configura no romance de de populações disseminadas pelas margens Afrânio Peixoto o legítimo homem do ca- do rio Pardo e outros cursos d’água numa cau, ávido por ser o dono de um fruto po- zona de algumas léguas, que se estendiam deroso, fomentador de riquezas, motivador “ainda para o interior nos barracões de pia- de tocaias e lutas sangrentas. O cacau não çava, do Campinho ou do Zinco, ou nas mi- é assim determinante de conflitos extremos nas de diamantes do Salobro”. em Maria Bonita, ficando visível que a lavra Com um caldeamento humano hetero- dos frutos dourados à época dava os seus gêneo, formado por gente de nível social primeiros passos sem a épica de um parto e cultural baixo, algumas pessoas se distin- difícil, que se fez na terra fértil, com a mata guiam no arraial pela educação, préstimos ainda não descoberta e cercada de perigo. provados, condição econômica privilegiada O cacau concorre em Maria Bonita somente como donos de fazendas. Na relação dos para que a terra seja apresentada com uma personagens que atuam no romance, Ca- cor diferente; basta notar que as amêndoas pitão Albernaz é um afazendado nas vizi- eram secadas no tabuleiro com rodas e tri- nhanças, juiz de paz, suplente de delegado, lhos de madeira, transportadas depois para que promovia autuações e processos nos Canavieiras através da canoa, pelo rio Pardo. casos graves. Tinha sido rábula, julgava-se Afrânio Peixoto não deixou obra vo- um criminalista de mão cheia. Seu Gonzaga, lumosa como ficcionista, em razão de se homem esquisito, de passado misterioso, de preocupar com a divulgação de conheci- bons préstimos, consertava relógios, pos- mentos eruditos e científicos. Respirando suía alguns medicamentos, colava louças, na juventude um clima de feição parnasiana pintava a bandeira do Divino Espírito Santo, O precursor e pré-modernista Afrânio Peixoto • 37 dourava o andor para a procissão do Senhor Quando mais precisava da proteção e dos Passos. Na fazenda Boa Vista, embora carinho, Maria Bonita vê-se abandonada preservados na sua morada rural, sem se in- por Luís, que prefere fugir a enfrentar situa- trometer nas intrigas do arraial, distinguiam- ção adversa, mostrando-se sem brios nes- -se principalmente como os donos da terra sa hora em que o amor cobra coragem de os Moreira, representados por Dona Maria- quem deve se mover pelo sentimento forte na, matriarca autoritária, e o marido Quin- do coração apaixonado. Obedece às ordens quim, “homenzinho murcho, de fisionomia da mãe e vai para a capital terminar os estu- inexpressiva, barba grisalha”, de tempera- dos. De retorno a Cajazeira toma conheci- mento pusilânime. A família completava- mento que Maria Bonita estava casada com -se com os três filhos, Pequenina, Diogo e João, homem atencioso, leal, dedicado à Luís. A matriarca reunia nas mãos todos os esposa e ao filho que tinha com ela. Sem poderes, era sisuda, impetuosa, enquanto o conseguir abafar a vontade de se encontrar marido, a prole, os agregados e o povo de com Maria Bonita, sente que não ficara es- Jacarandá respeitavam a sua vontade forte. quecido o seu amor verdadeiro. Maria Bonita é um romance de amor Tenta várias vezes na canoa passar de- com linguagem agradável, equilibrado nas fronte à morada da antiga amada, na espe- descrições do ambiente, que se presta à rança de vê-la, mesmo que de longe. Até ocorrência das cenas com personagens tí- que procura entrar durante a noite na mo- picos e costumes, mostrando nas linhas de rada de Maria Bonita, mas é descoberto e seu enredo infiltrações românticas. Apresen- foge. Depois o povoado ficou sabendo que ta a personagem Maria Bonita como um ti- fora assassinado numa emboscada. po bem delineado nos traços externos e in- O final com ritmo de tragédia, que obe- teriores, que lhe dão crédito para ser inscrita dece às determinantes do destino, cujas for- com a sua beleza e caráter na galeria das ças não se podem mudar, acontece com o célebres mulheres de nossa prosa de ficção. desespero de Maria Bonita. As mãos em gar- Luís apaixona-se por Maria Bonita, re- ra arranham o rosto num gesto alucinado, conhecida por Dona Mariana como criatura “embora sem culpa, era a causa de tudo.” de origens indignas, classe social inferior, Culpa de tanta desgraça e todo o mal. sem a grandeza aristocrática para casar Afrânio Peixoto é herdeiro moderado do com um de seus filhos. Em seus rompantes Machado de Assis analista e do José Alen- neuróticos, a arrogante matriarca alardeava car descritivo. Usa os diálogos no momen- ser descendente de Diogo Álvares Cabral, to certo com bom aproveitamento, recorre o Caramuru, e Catarina Paraguaçu, o casal aos versos dos poetas populares e os inse- que representava a origem da nobre famí- re no texto, tornando a narrativa prazero- lia brasileira. Filho seu não estava destinado sa. Estiliza a linguagem em nível da fala e para se casar com qualquer grapiunazinha,* da norma culta codificada pelo gramático, gente de nível inferior. sem transmudá-la como cópia integral do coloquial corrompido, mas fazendo comu- * Grapiunazinha, diminutivo de grapiúna, termo de ori- nicativa a língua na sua dinâmica. Mantém- gem indígena, que significa os que chegaram ao sul da Bahia no tempo da conquista e povoamento da terra. -se em posição de equilíbrio, entre o que 38 • Cyro de Mattos o personagem vive e informa na sua rea- conteúdo vê-se que o romance tem como lidade, interior e circundante. Consegue centro a beleza de uma mulher, que des- extrair da realidade exterior e do psicologis- de criança os que a conhecem a querem mo do personagem pensamentos e ações, bem, embora o mundo não perdoe a nin- que dizem de um mundo preconceituoso, guém quando se é dono de grande vanta- atrasado, formado por gente mesquinha, gem. Certo trecho do romance informa que esquecida nas terras longes. Não exagera “é motivo de infelicidade não ser quase igual na adjetivação, é certeiro quando os per- a todo mundo ou a muita gente no mun- do”. A observação completa-se numa aferi- sonagens agem e informam seus desígnios. ção de essência dramática sobre a vida. “A É narrador envolvente, que segura o leitor beleza, o talento, a riqueza, são dons funes- com o seu estilo elegante. tos: despertam cobiça e inveja, nunca simpa- Se o espaço do romance regionalista tia e afeição.” configura-se no alcance do ambiente, tipos e costumes, em Maria Bonita a criatura hu- Leituras sugeridas mana mostra-se como o foco dos conflitos PEIXOTO, Afrânio. Maria Bonita. São Paulo: Editora Clube da sua própria condição, caracterizada pela do Livro, 1974. BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. São beleza e formosa presença de mulher. Pelo Paulo: Editora Cultrix, 1970. Confinamentos da existência: um mergulho nas falhas subterrâneas da consciência humana no universo ficcional de Ana Paula Maia Flávia Amparo Doutora em Literatura Brasileira pela UFRJ. Professora Titular do Colégio Pedro II e Professora Associada da Universidade Federal Fluminense.

na Paula Maia recebeu, nos dois humanas, a violência e a morte e, de certo últimos anos, uma das mais pres- modo, precisam se embrutecer para pode- A tigiadas premiações literárias bra- rem sobreviver em ambientes subumanos. sileiras, o Prêmio São Paulo de Literatura, Em entrevistas, tanto na imprensa quan- pelos seus romances Assim na terra como to em plataformas virtuais, a escritora afir- embaixo da terra (2017) e Enterre seus mor- ma que há um divisor de águas em sua obra, tos (2018), coroando uma carreira ficcional de modo que o projeto literário concebido iniciada em 2003, com o livro O habitante no primeiro livro veio a sofrer, segundo ela, das falhas subterrâneas. Embora a conso- uma mudança radical a partir da publicação lidação da carreira tenha sido alcançada a de seu segundo romance, quando passou a partir das obras da maturidade, o primei- adotar uma perspectiva singular de escrita, ro romance da escritora traz elementos de com mais autonomia criativa e contundên- grande relevância para a compreensão de cia narrativa. traços primordiais da sua criação literária. Assim, tomando A guerra dos bastardos Desde sua estreia nas letras, a autora (2007) como referência dessa nova fase, vem construindo uma carreira ascendente, Maia daria início à trilogia denominada pela migrando da área do teatro, especificamen- crítica de “A saga dos brutos”, completada te da escrita de roteiros, para o campo da pelo terceiro livro Entre rinhas de cachorros ficção, dedicando-se a compor obras mar- e porcos abatidos (2009), que inclui duas cantes sob a perspectiva da brutalidade. novelas, sendo a primeira a que dá título ao A força de seus personagens reside na ca- livro e a segunda O trabalho sujo dos outros. pacidade de resiliência e resistência, espe- O primeiro livro de Maia, O habitante cialmente no desempenho de funções con- das falhas subterrâneas (2003), foi inserido sideradas pela sociedade como atividades na linhagem dos romances de formação, degradantes, arriscadas ou sem prestígio cujo núcleo narrativo se concentra nas des- social. Seus protagonistas são homens que venturas de um adolescente de classe mé- vivenciam a ferocidade da vida, as misérias dia alta de São Paulo, que não consegue se 40 • Flávia Amparo sentir pertencente ao seu estrato social e à fixo, imutável e legitimador dos discursos, sua família. Sob forte influência de J. D. Sa- essa nova visão seria construída de modo a linger, especificamente de O apanhador no repensar as margens e as fronteiras, a fim campo de centeio, o livro de estreia de Maia de abrir espaço à questão da alteridade: caminha no mesmo passo do romance do O movimento no sentido de repensar as escritor norte-americano, com muitos epi- margens e as fronteiras é nitidamente um sódios que guardam um paralelismo quase afastamento em relação à centralização jun- tamente com seus conceitos associados de unívoco com os do autor, mudando apenas origem, unidade e monumentalidade, que os cenários e acrescentando um ou outro atuam no sentido de vincular o conceito de elemento mais original à trama. centro aos conceitos de eterno e universal. A partir de A guerra dos bastardos, Ana O local, o regional e o não totalizante são rea- Paula Maia acabou por enveredar-se num firmados à medida que o centro vai se tornan- polo oposto ao da primeira obra, aprimo- do uma ficção – necessária, desejada, mas ape- rando-se na criação de personagens condi- sar disso uma ficção (HUTCHEON, 1991, p. 85). cionados pelo mundo do trabalho. Como Assim sendo, as figuras simples do mun- a própria autora designa, esses indivíduos do do trabalho tendem a assumir um novo brutalizados executam o “trabalho sujo” re- protagonismo na literatura contemporânea. jeitado pelos demais, sendo moldados, sob Embora já tivéssemos algumas dessas per- uma perspectiva um tanto determinista, pe- sonagens periféricas elencadas em obras las tarefas que realizam e pelos ambientes clássicas da literatura universal, não se podia que frequentam. Suas ações – desempenha- das em condições subumanas em porões, afirmar que havia, em relação a elas, uma prisões, cavernas, necrotérios e subterrâne- plena adesão do público da época. Jacques os – fazem mover a máquina do consumo Rancière, ao analisar um conto de Flaubert longe das vistas de uma sociedade cínica sobre uma criada (“Um coração simples”), e asséptica, que, para não comprometer aponta essa tendência de captação do real a própria consciência, prefere se manter à no contexto da prosa, ao revelar como as distância dos rejeitos e dos cadáveres que personagens que representam um universo costuma descartar. passivo podem ganhar destaque no enre- A transposição do foco da autora, do do, corrompendo o modelo tradicional, que universo dos indivíduos privilegiados para costumava dar ênfase apenas aos perfis ati- o submundo dos subalternizados, remete vos e aos heróis aristocráticos. Segundo ele, a um traço característico da prosa contem- seria essa atitude uma abertura para o que porânea, de desviar-se do centro hegemô- chamou de “democracia literária”. nico para dar protagonismo às figuras que Essa nova capacidade de qualquer um vi- ver qualquer vida arruína o modelo que unia povoam as margens da vida social. Lin- organicidade do relato à separação de ho- da Hutcheon, ao analisar os contextos da mens ativos e homens passivos, almas de elite Pós-Modernidade, revela de que modo se e almas vulgares. Ela produz esse real novo, constitui uma discussão acerca da noção de feito da própria destruição do antigo “possí- centralidade no discurso contemporâneo. vel”, esse real que não é mais um campo de Assim, desviando-se da ideia de um centro operação para os heróis aristocráticos das Confinamentos da existência • 41 grandes ações ou dos sentimentos refinados, sente-se maravilhado diante da visão de mas o entrelaçamento de uma multiplicidade uma mesa da cozinha, onde cores textu- de experiências individuais, o tecido vivido de ras e aromas dos alimentos são meticulo- um mundo no qual não é mais possível distin- samente expostos e criam uma espécie de guir as grandes almas que pensam, sentem, aura sagrada em torno da arte de cozer. sonham e agem, e os indivíduos presos na re- petição da vida nua (RANCIÈRE, 2017, p. 27). Contudo, ao chegar à área dos fundos (arrière-cuisine), o personagem de Proust Embora o crítico tenha como modelo a escandaliza-se ao ver a criada, aos gritos e prosa realista, que decidiu romper com o fora de si, matar com extrema violência e arcabouço romântico, podemos analisar de crueldade a ave que seria saborosamente que modo esse processo tende a se trans- servida no jantar (PROUST, 1913, p. 149). formar no contexto da prosa contemporâ- Marcel conclui, não sem pesar, que a bele- nea, na medida em que essa “democracia za do banquete trazido ao centro da cena literária” passa a ser corroída por dentro. O escondia dos olhos dos comensais a crueza “tecido vivido do mundo” não é mais uni- essencial dos bastidores, a dureté singulière formemente formado pelo “entrelaçamen- de Françoise. O choque, porém, não foi su- to de uma multiplicidade de experiências ficiente para pôr fim ao martírio das aves, individuais”, mas se constitui pela rotura, tornando-se, afinal, só um detalhe a ser to- pela desconstrução e pela corrosão dos dis- lerado em nome do prazer à mesa. cursos, sem que haja um fio condutor ou al- De certo modo, desde o primeiro ro- guma outra figura que adquira precedência mance, Ana Paula Maia vinha esboçando nesse encadeamento de fios. um exercício de contraposição entre almas Remetendo mais uma vez ao contexto refinadas x almas brutas, de modo a trazer à dos clássicos, o contraponto entre o mundo superfície aquilo que a sociedade preferiria aristocrático e o mundo do trabalho apare- manter nos subterrâneos. Há, no livro de es- ce de maneira singular em alguns escritores. treia, elementos que subjazem no fundo do A rigor, eles parecem buscar contrastes nar- quadro, mas que marcam a originalidade de rativos quando deslocam seus personagens Maia e o início de seu descolamento da lite- de um plano superior idealizado para uma ratura de Salinger. Essas marcas, ainda sutis, realidade mais contundente do cotidiano. de sua personalidade literária assumiriam É o que percebemos num dos capítulos de mais tarde a centralidade de seu método de À la recherche du temps perdu, de Marcel composição. Proust, em que se verifica o confronto entre Assim sendo, um dos elementos-chave o que Rancière chamou de “almas da elite” de O habitante das falhas subterrâneas é e “almas vulgares”. a viagem de Ariel Esperanto, que funciona Em “Du côté de chez Swann”, há uma como um rito de passagem da adolescên- cena em que o refinado protagonista de cia, um atravessamento do protagonista, Proust, tocado pelas memórias gustativas, saindo dos umbrais de um apartamento de resolve deixar o salão onde o banquete luxo em São Paulo para realizar uma súbita diário é servido para descer até o “reino” e vertiginosa descida às entranhas da socie- de sua empregada Françoise. De início, dade carioca. 42 • Flávia Amparo

Esse caminho iniciático de Ariel – que e Elisa, cambiam completamente de am- abandona seu destino inicial na cidade, o biente. Na casa em que vão encenar mais bairro dos tios em Copacabana, para co- uma sequência de peripécias, as cenas do nhecer os inferninhos da zona boêmia do livro ganham contornos de uma produção Rio –, terá um participante especial, o ta- de Hitchcock, com direito a pássaros em- xista Wandercidney, para guiar (ou desnor- palhados, fetiches, sedução, louras, sexo, tear) o protagonista nessa jornada. Desde traição, marido taxidermista e fuga (MAIA, a estranheza do nome, assinalando a ori- 2003, p. 130-132). gem humilde do personagem, até os des- Apesar de Ariel seguir como um sonâm- dobramentos do episódio no bar do primo bulo o script de suas desventuras, há sem- Cuzcuz, na Lapa, o taxista é o protótipo dos pre uma resistência interna, um asco ou um “brutos” que Ana Paula Maia irá aperfeiço- julgamento moral que o faz rejeitar, desde ar nos romances posteriores. o início, as asperezas e brutalidades de um Outra grande diferença que vemos nes- mundo que ele estranha por completo, tal se romance de 2003 diz respeito à concep- como o Holden de Salinger. Mente e corpo ção estrutural da obra, já que o enredo se aparecem claramente em desacordo, já que distende, como num looping de ações en- a mente julga, critica e resiste, enquanto cadeadas, retomando alguns elementos es- o corpo se entrega, sem questionamento, pecíficos de roteiro cinematográfico. Além a todo tipo de desejo que possa aliená-lo disso, o uso de uma linguagem tipicamente de sua melancolia primordial e de um vazio adolescente segue um fluxo de consciência que o assombra. vertiginoso e prolixo, que se alonga em pa- Nos romances mais maduros de Maia, rágrafos bem extensos, quase sem pausas. percebemos que essa ambivalência (resis- Nos romances posteriores, fugindo do estilo tência x alienação) vai ser construída de do primeiro, a autora investiria na economia uma outra forma. Os contrastes são mais de linguagem e na narração direta dos fa- firmemente demarcados, assim como as tos, concedendo maior consistência narrati- fronteiras de cada território, que delimitam, va e um ganho efetivo na construção de um quase sempre, dois espaços: o dos refina- texto mais enxuto e, sobretudo, de maior dos e o dos confinados. Os limites de um e impacto sobre o leitor. de outro apenas se tangenciam, num con- Para exemplificar as influências cine- tato mínimo, quase sempre sem chance real matográficas de Maia em O habitante das de transposição. falhas subterrâneas, podemos retomar a Apesar da aparente isenção e distancia- cena do bar da Lapa, quando Ariel e Wan- mento das classes abastadas, uma simples dercidney são envolvidos por um conjunto aproximação é suficiente para que sintam o de ações dignas de um filme de faroeste: impacto da realidade dos brutos, expondo- álcool, briga, ganchos de direita, garra- -as às contradições e desajustes de sua pró- fadas na cabeça e sangue jorrando, uma pria condição. Retomando a cena de Proust, versão adolescente dos filmes de Sergio podemos dizer que a violência da cozi- Leone. Os personagens, ao saírem do local nheira Françoise e o asco do dândi Marcel acompanhados por duas mulheres, Bárbara alinham-se, de modo que a catarse furiosa Confinamentos da existência • 43 de um se transforme no súbito choque de Quando sai do banheiro, [Edgar Wilson] consciência do outro. depara-se com o grupo de estudantes enfilei- É nesse espaço de ambivalências que a rado, caminhando pelos corredores do mata- douro. A maioria tem dificuldade para respirar ficção de Maia realiza o desvelamento das e por isso eles colocam um lenço sobre a boca engrenagens da crueldade que mantêm a e o nariz. Alguns decidiram recuar quando máquina social girando. Esses contrastes já avançavam para área de sangria, só em imagi- estavam assinalados desde o primeiro ro- nar o que estariam prestes a ver. Estar diante mance, mas são as obras posteriores que de bois e vacas pendurados de cabeça para vão trazê-los para o centro da cena. Ain- baixo pelas patas traseiras e com os pescoços da que os indivíduos do topo da pirâmide cortados jorrando litros de sangue em tonéis social prefiram mascarar o “trabalho sujo fétidos, misturado a vômito e outros excre- mentos, não era o que eles tinham em mente. dos outros”, dos que vivem à margem, a Ninguém sairá impune. Este pensamento dei- literatura de Maia arremessa no rosto do xa Edgar satisfeito (...) (MAIA, 2013, p. 69). público os dejetos dos subterrâneos. São as cenas de arrière-cuisine que vão tornar Como o dândi de Proust, os consumi- aqueles do topo cúmplices da brutalidade dores de hambúrguer se defrontam com o diariamente multiplicada no submundo dos processamento inicial da carne que conso- invisibilizados. mem, tornando-se cúmplices do sofrimen- Em De gados e homens (2013), por exem- to e da morte dos animais. O trabalho sujo plo, a oposição entre esses dois polos ocorre dos brutos causa incômodo aos olhos e aos na visita de estudantes de colégio a um aba- narizes refinados dos estudantes da cida- tedouro de gado. Os alunos vão ter um en- de. Uma das alunas tenta usar o discurso contro com um dos personagens preferidos para intimidar Edgar Wilson e se dispõe a de Ana Paula Maia, Edgar Wilson, que irá se julgá-lo moralmente pela truculência de sua consolidar como um dos brutos recorrentes função no abatedouro: “O senhor não acha da obra, aparecendo em vários romances da que sacrificar esses animais é crime? (....) O autora. Wilson é o atordoador, funcionário senhor não se envergonha disso?” (MAIA, responsável por desferir um golpe de mar- 2013, p. 70). reta, no momento do abate, na cabeça do A lacônica resposta de Wilson também gado. O trabalho braçal exigia determinação vem em forma de pergunta: “A senhora já e força física, mas também uma conexão comeu um hambúrguer? (...) E como a se- com o animal, de modo a fazê-lo, se é que é nhora acha que ele foi parar lá?” (MAIA, possível, sem prolongar-lhe o sofrimento. 2013, p. 72). Wilson entrega a marreta de O encontro entre Wilson e os estudan- atordoar gado para a moça, que, exposta à tes evidencia o contraste entre os rudes e cumplicidade do crime, sucumbe aos pran- os cultos, mas por um panorama invertido, tos. De fato, são os rudes que vão ensinar em que estes figuram como um gado dócil, lições práticas de sobrevivência; afinal, em- alienado de seu próprio papel no mundo, bora com papéis distintos, todos os indiví- e aquele exerce uma função mais doutriná- duos são participantes, de uma forma ou ria, ao propor um aprendizado por meio do de outra, desse violento jogo do qual “nin- choque de realidade: guém sairá impune” (MAIA, 2013, p. 69). 44 • Flávia Amparo

Outro aspecto que merece destaque primariamente vegetariana começou a variar na ficção de Maia é tomado de emprésti- a dieta, evidentemente, e passou a depender mo da obra de Salinger, que é a imagem muito mais de carne. Para o grupo obter essa do “Catcher”, que seria essencialmente fonte de alimento tão energética e tão disper- sa, não compensava vagar como um bando um apanhador/coletor/caçador. Seguindo pouco organizado de adultos e crianças, qual essa linha, os protagonistas de Maia se en- os atuais chimpanzés e bonobos. Era mais efi- quadram no perfil de caçadores-coletores, ciente ocupar um acampamento (daí o ninho) aqueles que quase sempre estão sobrevi- e despachar caçadores que pudessem trazer vendo num dos dois extremos: na caça/aba- carne, caçada ou coletada, para dividir com te de animais ou no recolhimento de ob- os outros. Em troca, os caçadores recebiam jetos ou dejetos humanos. Inevitavelmente, a proteção do acampamento e de sua prole. num mundo cão, os que não são caçadores A partir de estudos sobre humanos modernos acabam se tornando a caça. – incluindo os caçadores-coletores, cujas vidas nos dizem sobre as origens humanas – psicó- Nessa perspectiva, sob o olhar de uma logos sociais deduziram o crescimento men- nova teoria de seleção das espécies, Maia se tal iniciado com a caça e os acampamentos. debruça sobre a vida dos fortes, dos rudes, Relacionamentos interpessoais atrelados à dos sobreviventes do mundo cão. Talvez competição e à cooperação eram vantajosos. possamos pensar que essa obsessão da au- O processo era incessantemente dinâmico e tora pelos “Catchers”, caçadores-coletores, exigente (WILSON, 2018, p.16-17). possa ter se inspirado na obra do biólogo Se seguirmos a hipótese biológica de norte-americano Edward O. Wilson, cujo Wilson, pavimentamos todo o processo nome se assemelha muito ao do principal evolutivo humano a partir de uma mudança personagem criado pela autora para povo- na forma de alimentação, responsável por ar alguns de seus romances, Edgar Wilson. uma intensa transformação na estrutura so- Além dele, há vários personagens corres- cial. Assim sendo, no instante em que esse pondentes na obra, todos começados com homem descobriu em si a vontade e as van- as mesmas iniciais: Ernesto Wesley, Elvis tagens de comer carne, passou a sustentar Wanderley e Erasmo Wagner. Em O sentido da existência humana, redes de caçadores-coletores que pudessem Edward O. Wilson compara o homem a ou- ir muito longe para buscar essa iguaria. Por tras espécies que desenvolveram a eussocia- essa hipótese evolutiva, tanto a competição lidade, que seria a capacidade humana de quanto a cooperação nasceriam desse pro- construir uma estrutura social organizada e cesso, assim como dele viriam todas as am- funcional como a das abelhas e cupins. O bivalências que essa cadeia social precisou biólogo, fazendo uma releitura de Darwin, manter para sustentar o desejo ancestral conclui que a mudança brusca de dieta da pela caça. espécie humana, passando de herbívora para Por esse viés biológico, o momento de carnívora, possa tê-la feito dar o salto evoluti- evolução do homo sapiens e de criação vo e se distanciar dos demais primatas: de suas complexas redes cerebrais, para- Há mais ou menos 2 milhões de anos, doxalmente, é o instante também em que na África, uma espécie de australopitecíneos se determina a essencialidade dos brutos, Confinamentos da existência • 45 fixando seu lugar em atividades cujo uso Assim, interessa à autora explorar de da força e da violência remontam às raí- que modo o homem, diante de situações- zes ancestrais de nossa sociedade. Assim, -limite, encontra força e instinto suficientes ao trazer essas hipóteses científicas para o para livrar-se, ainda que temporariamente, campo literário, Maia parece nos dizer que, de tudo o que o ameaça e confrange. En- inevitavelmente, continuamos reproduzin- quanto o filósofo grego propõe que só a do essa memória primitiva, a despeito de razão conduziria à plena luz, à libertação do todo avanço científico atual. O desejo de cárcere, Maia investe sua verve literária na consumo, cada vez mais voraz, por carne exploração desse veio mais obscuro do ho- desnuda também a ferocidade da eusso- mem, descendo num nível mais profundo cialidade humana, que, entre cooperação dessa caverna primitiva, onde a humanida- e competição, pode tanto se unir diante de de parece estar definitivamente confinada. objetivos comuns, quanto mudar de alvo e Com incursões no campo da Filosofia, sua passar a caçar os de sua própria espécie, intenção estética consiste em explorar a es- como na sentença hobbesiana. curidão e as falhas subterrâneas desse abis- Talvez por isso as capas dos livros da mo da consciência humana. autora reproduzam sempre imagens de ani- Essa ideia de confinamento manifesta- mais: porcos, cães, bois, javalis e abutres. -se desde o primeiro romance da autora, Algumas vezes, são também entremeadas estando frequentemente associada à me- a figuras humanas, como é o caso de Entre lancolia e ao sentimento de clausura do rinhas de cachorro e porcos abatidos. Há, indivíduo dentro de uma realidade da qual ainda, em O habitante das falhas subterrâ- ele tenta, em vão, se desprender. Vale lem- neas, a representação da figura do homem brar que, além do desenho rupestre da primitivo nos moldes das pinturas rupestres, capa, O habitante das falhas subterrâneas relembrando simbolicamente nossas ori- evoca também a obra de Jules Verne, Via- gens nas cavernas. gem ao centro da Terra, romance narrado Seria possível, usando o tema como em primeira pessoa pelo jovem Axel, sobri- mote, remeter à alegoria platônica do mito nho e aprendiz do famoso cientista Otto da caverna, que propõe o racionalismo Lidenbrock. O rapaz se sente literalmente como saída do aprisionamento das ideias. aterrado pela ideia de vivenciar uma insó- Entretanto, parece haver um interesse de lita expedição pelas profundezas da Terra, Maia em, partindo do mesmo tema, traçar que o tio, intransigente e autoritário, irá caminho inverso e problematizar os instin- obrigá-lo a fazer. tos mais irracionais do homem, como os de Além das semelhanças dos nomes dos sobrevivência. Esses instintos, a despeito de narradores, Ariel e Axel, o título do roman- toda galvanização efetuada pela ciência e ce de Ana Paula Maia foi inspirado num dos pela cultura, ainda se mantêm tão selva- trechos da obra de Verne. Trata-se de um gens e impetuosos quanto no princípio, momento de desespero, em que Axel pega mesmo que a sociedade tente formatar os um caminho diferente do tio e do guia de indivíduos dentro de determinados padrões viagem e se perde dentro dos subterrâne- éticos e morais. os do vulcão. Ao vagar pelo escuro, sem 46 • Flávia Amparo lanterna e tateando a solidez das rochas, o será posto ipsis litteris no romance de Maia, rapaz sente toda dimensão do seu confina- quando Ariel salva uma criança de um atro- mento, como um enterrado vivo nas entra- pelamento e sente necessidade de receber nhas do abismo. das pessoas esse mesmo cuidado: “Eu pre- A escuridão absoluta fazia de mim um cisava de mais atenção. Do mundo talvez. cego em toda a acepção da palavra. Então, Ou de qualquer um” (MAIA, 2003, p.162). perdi a cabeça. Ergui-me, os braços estendi- O sentimento de solidão e desespero que dos, tentando dolorosamente tatear. Peguei- o protagonista manifesta assemelha-se ao de -me a correr, precipitando meus passos ao acaso naquele inextrincável labirinto, sempre Axel, só que funciona como metáfora de um descendo, correndo pela crosta terrestre, aprisionamento psicológico, que o conduz a como um habitante das falhas subterrâ- um desejo frequente de autodestruição: neas, chamando, gritando, urrando, já ma- Era assim que eu me sentia. Um habitante chucado pelas saliências das pedras, caindo das falhas subterrâneas. Um maldito habitan- e levantando-me ensanguentado, chegando te das falhas subterrâneas todo ensanguenta- a beber esse sangue que me inundava o ros- do esperando que aparecesse a primeira mu- to, sempre à espera de que alguma muralha ralha para arrebentar a minha cabeça (Idem). imprevista viesse oferecer à minha cabeça um obstáculo para ali se chocar. Aonde me O tema, no entanto, será retomado conduziria essa corrida sem sentido? Até num contexto mais literal em outra obra da hoje não sei. Após várias horas, sem dúvida autora, Carvão animal (2011), tratando de no limite de minhas forças, eu caí como uma um confinamento físico que corrói a saúde massa inerte ao longo da parede e perdi todo e a humanidade dos trabalhadores de uma sentido de existência (VERNE,1867, p.128 – mina de carvão. Nesse caso, a opressão de grifo nosso).1 fora é que abala o senso de existência e Simbolicamente, a sensação claustrofó- anula a dignidade dos sujeitos. bica desse tipo de confinamento remete-se O local da mina de carvão é uma espécie à trajetória errante de Ariel, à sensação de de deserto. Isolado, abafado, muita poeira, e, mesmo com tantos trabalhadores, existe so- desnorteio e sufocamento que o jovem ex- lidão. A imensidão das extensas proporções perimenta em relação ao mundo à sua vol- de terras ao redor pode esmagar a condição ta. O trecho aqui citado do livro de Verne humana que existe até no mais bruto dos ho- 1 No original: L’ombre absolue faisait de moi un aveugle mens (Posição 638-639). dans toute l’acception du mot. Alors ma tête se perdit. Je me relevai, les bras en avant, essayant les tâtonne- Mais uma vez Edgar Wilson aparece ments les plus douloureux. Je me pris à fuir, précipitant mes pas au hasard dans cet inextricable labyrinthe, des- como personagem, e mesmo sendo o mais cendant toujours, courant à travers la croûte terrestre, bruto dos homens, não escapa de vivenciar comme un habitant des failles souterraines, appelant, um desespero como o de Axel, ao se ver criant, hurlant, bientôt meurtri aux saillies des rocs, tombant et me relevant ensanglanté, cherchant à boire enterrado na mina após uma explosão de ce sang qui m’inondait le visage, et attendant toujours gás. Mesmo sem a lanterna, perdida nos que quelque muraille imprévue vint offrir à ma tête un obstacle pour s’y briser! Où me conduisit cette course escombros, ele tenta desesperadamente insensée? Je l’ignorerai toujours. Après plusieurs heu- encontrar uma saída em meio aos corpos res, sans doute à bout de forces, je tombait comme une masse inerte le long de la paroi, et je perdis tout de outros mineiros. Será um dos poucos sentiment d’existence! trabalhadores a escapar vivo do lugar do Confinamentos da existência • 47 acidente, prometendo a si mesmo nunca Maia, tornando-se o leitmotiv de sua obra mais perder o sol de vista. como um todo. Edgar Wilson abre os olhos, mas está cego Seja na evocação do texto de Verne, que devido à extrema escuridão. Sua lanterna desa- dá luz ao título do primeiro livro, seja na pareceu quando foi arremessado para as pro- epígrafe retirada do Gênesis “Tu és pó, e ao fundezas da terra como um habitante das pó retornarás”, que abre o romance Carvão falhas subterrâneas. Sem nenhum vestígio animal, Maia, assim como a deusa mitoló- mínimo de luz, levanta-se da grande poça de água e lama para a qual foi lançado (...). Apal- gica de mesmo nome, ergue seu reino (fic- pa dolorosamente as paredes. Está um pouco cional) das entranhas da terra. Contudo, ao machucado e parece que foi só. Ele ouve gri- contrário desta divindade, sua criação não tos de socorro, gemidos abafados e apavora-se segue o curso natural das plantas, erguen- pela primeira vez em toda a sua vida (MAIA, do-se em direção à luz. Seus personagens 2011, posição 672-673 – grifo nosso). são feitos de barro e devem regressar ao Os assombros que mais desesperam o caminho original, ao pó da terra: “Daqui a homem parecem estar no embate entre um algumas décadas ou uma centena de anos subterrâneo físico e um psicológico. É possí- haverá mais corpos embaixo da terra do vel perceber essa densidade na proposta de que sobre ela” (MAIA, 2011, posição 508). Maia, já que o pior não seria exatamente a Sendo, então, os homens as raízes des- morte, mas estar confinado vivo dentro da sa lavoura arcaica, eles precisam mergulhar terra. Psicologicamente, esses subterrâne- nas profundezas do chão como um espelho os também podem ser associados às raízes invertido da árvore original, crescendo nos dos sujeitos, às suas origens, à memória do avessos da terra. seio familiar que, normalmente, é permea- Apesar da própria autora defender um da pela violência. Talvez por essa razão es- salto radical da sua obra após o primeiro ro- ses homens desterrados do útero materno mance, e de verificarmos muitas mudanças nunca tenham uma figura feminina como significativas no foco, na estrutura e no es- base de apoio, sejam elas mães ou esposas, tilo dos livros posteriores, podemos afirmar, e tampouco geram filhos. contudo, que a obsessão primordial da fic- A obsessão da autora pela etimologia ção de Maia está contida na alma da obra de da terra replica-se em vários títulos de suas estreia. Os protagonistas de seus romances obras, nas epígrafes e no próprio enredo serão, de certo modo, como “habitantes das de seus romances. Numa simples aprecia- falhas subterrâneas”, sujeitos que, mesmo ção dos dois livros mais recentes da autora sem saída ou diante da imutabilidade de sua – Assim na terra como embaixo da terra e condição, não vão ficar passivamente ajo- Enterre seus mortos – vemos que os “sub- elhados e amarrados assistindo à exibição terrâneos” do primeiro livro continuam platônica das sombras projetadas na parede. ecoando, especialmente por meio da rei- Diante de um mundo formatado e for- teração do radical da palavra “terra”. Isso matador, fundado num racionalismo apa- nos leva a refletir sobre a (co)incidência do rente, os inconformados vão continuar a se tema original, presente desde o primeiro debater no escuro, a tatear as paredes, a romance, e sua replicação na ficção de correr em busca de uma saída, mesmo que 48 • Flávia Amparo percam o sentido da existência ou mergu- MAIA, Ana Paula. De gados e homens. Rio de Janeiro: Re- cord, 2013. lhem ainda mais fundo nesses subterrâne- ______. Carvão animal. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, os. É nesse espaço onde nascem os brutos, 2011. (e-book) ______. O habitante das falhas subterrâneas. Rio de Janei- sob o impacto das emoções mais primitivas, ro: 7Letras, 2003. que a ficção de Ana Paula Maia se consolida PROUST, Marcel. À la recherche du temps perdu. Du côté de chez Swann. Paris: Bernard Grasset, éditeur, 1913. como uma escrita de resistência, ainda que, Disponível em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k para pintar o caráter de seus personagens, 1049566j. Acesso em: 29 maio 2020. RANCIÈRE, Jacques. O fio perdido: ensaios sobre a ficção ela precise extrair a tinta dos escombros do moderna. Trad. Marcelo Mori. São Paulo: Martins Fon- tes, 2017. desespero humano. SALINGER, J.D. O apanhador no campo de centeio. Trad. Caetano Galindo. São Paulo: Todavia, 2019. Referências bibliográficas VERNE, Jules. Voyage au centre de la terre. Paris: J. Hetzel, 1867. Disponível em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/ HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo: história, btv1b8600259v/f13. Acesso em: 30 de maio 2020. teoria e ficção. Trad. Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Ima- WILSON, Edward O. O sentido da existência humana. Trad. go, 1991. Érico Assis. São Paulo: Cia. das Letras, 2018. Resumo da ópera

Lúcia Bettencourt Nascida no Rio de Janeiro, formada em Letras, começou a publicar em 2006. Escreve ensaios, romances, contos e livros infantis. Recebeu alguns prêmios, entre os quais destaca-se o Prêmio ABL (ensaios) por O banquete: uma degustação de textos e imagens (Vermelho Marinho, 2012). Tem contos traduzidos para o inglês, francês e espanhol. Finaliza, no momento, um romance-ensaio sobre Anita Malfatti.

m setembro de 2019 parti para uma metade dos turistas que visitam a França, e aventura que deveria ser, nas pala- talvez 2/3 dos que invadem Paris são chi- E vras de Guimarães Rosa, “uma via- neses. Todos sabiam que o vírus já devia gem inventada no feliz”. Iniciava um pós- ter chegado. Os franceses que estavam na -doutorado na Sorbonne, pesquisando a China foram repatriados e quarentenados, vida da pintora brasileira Anita Malfatti. Um mas aqui e ali já espoucavam casos do que pequenino apartamento alugado no 6ème, passou a ser conhecido como Covid-19. vistos, seguros, toda a papelada necessária, Em fevereiro falava-se na possibilidade de muita disposição e inúmeros sonhos. Um uma quarentena, que começou numa ver- ano inteiro à minha frente, na encantadora são branda no dia 8/3/2020, com o fecha- Paris, frequentando não apenas bibliotecas, mento de lojas e restaurantes. Uma semana mas galerias de arte, estúdios de pintura, depois, era o confinamento. Senti-me em mu­seus e cursos de pintura e desenho. prisão domiciliar, e tudo me parecia injusto. Che­guei na véspera de uma greve geral. Para tentar manter um pouco o equilíbrio, No sáb­ado seguinte, os coletes amarelos segui o conselho de uma amiga, de fazer faziam sua manifestação semanal: algumas uma espécie de diário, a que dei o nome de estações de metrô fechadas, agitações e Resumo da ópera. passeatas. Pouco depois, uma longa gre- ve dos transportes motivou uma greve es- Resumo da ópera tudantil em solidariedade e, em seguida, 7.1 levou à suspensão das aulas na Sorbonne, à redução dos horários de funcionamento A conselho de Maribel Baer Bahia, resol- de bibliotecas e dos museus, pois os fun- vi fazer um diário do confinamento. Como cionários não conseguiam locomoção. chego “atrasada” neste diário, minha pri- Quando, finalmente, a greve se encerrou, meira entrada é a 7.1, o que significa séti- apareceram as primeiras notícias de uma mo dia da primeira semana de quarentena. nova doença, originada na China. Mais de A França não entrou de sola nas restrições. 50 • Lúcia Bettencourt

Recomendou, antes de fechar tudo. Mas a 4.2 primavera não colaborou. No domingo Quarto dia da segunda semana. Um 16/03, o dia estava lindo, a temperatura dia lindo e com a promessa de chegar aos amena e os jardins franceses já estavam 14ºC! Vinha esperando a sexta-feira com cobertos de flores. O governo havia deter- ansiedade para sair de casa. Vou impri- minado o fechamento de todas as lojas e mir minha declaração e ir às compras. E, restaurantes, mas Paris é linda, uma cida- como vou sair, lembrei-me da Helena, aos de que nos chama para flanar. E lá fui eu, 100 anos e sempre faceira. Ela me ensinou para o Jardim do Luxemburgo. Andar me muitas lições, uma das mais sérias (embo- fez bem. Ver as flores me deixou encantada. ra possa parecer fútil) foi o uso do batom. Mas havia uma multidão no parque, o que Ele contribui para a autoestima. Passamos me assustou. E, apesar da proibição, a bar- o batom nos olhando, e é importante olhar raquinha de cachorro-quente estava aberta para si mesma, olhar por si mesma. Além e cheia de clientes. Voltei para casa, com disso, depois de pintar os lábios, damos o planos de voltar todos os dias, tomando famoso “beijo” no papel. Que importa se distância dos outros. Só que acordei com é um papel? Fixe no beijo. Um beijo é um a notícia que Macron havia decretado o beijo e é sempre bom. Finalmente, nossa confinamento e proibido deslocamentos tendência é dar um sorriso, para ver se há desnecessários. falhas na pintura. Querem coisa melhor que 1.2 começar o dia com um beijo e um sorriso? Para os rapazes, talvez fazer a barba seja Primeiro dia da segunda semana de um equivalente. Olhar-se por um instante. quarentena, e parece que já não tenho Cuidar-se com atenção para não se ferir, mais nada que dizer. No entanto, sempre é acariciar o próprio rosto com uma loção… possível comentar a beleza do dia gelado, sempre começar o dia com um gesto gentil, que me impede de abrir a janela. Quero fi- seja beijo ou carícia. Vamos aos batons e car aconchegada no quentinho. Não posso aos barbeadores, amigas e amigos. Depois deixar de pensar no início de minha tem- ao dia. Entre afazeres (nem sempre agradá- porada em Paris. Cheguei animada, cheia veis), lembraremos do sorriso, do beijo, da de planos, para pesquisar a vida de Anita carícia e poderemos oferecê-los virtual ou Malfatti e os “anos loucos”. Fui a exposi- presencialmente, caso estejam quarente- ções e academias de pintura, examinei ga- nando em companhia. lerias de arte, procurei conhecer recantos de Montmartre e Montparnasse. Tentei ir 6.2 a restaurantes populares naquela época. E, no entanto, o destino foi caprichosamente Sexto dia da segunda semana. Essa noi- me cortando essas opções, com greves de te o vento me acordou diversas vezes. Fica transportes e museus fechados, e, final- difícil engrenar o dia quando não repou- mente, com essa pandemia. De Anita e sua samos bem. Não é o meu corpo que está época efervescente, caí no isolamento e si- cansado, é a mente, que está exausta de lêncio do quarto proustiano! pensar, que se confunde e se esforça para Resumo da ópera • 51 calar os medos e as tristezas. Ontem dei um estar vivendo num delírio, e de presenciar passeio lindo. Todos os passeios em Paris as personagens mais inverossímeis solando são lindos, é verdade. Não entendo como árias incoerentes, daí fazer este resumo, essa cidade consegue ser tão sedutora, macunaímico, sem caráter, mas revelando não importa a circunstância. Chova ou faça o mosaico em que se transforma o pensa- sol, com ou sem greve, a pé ou de carro, mento em uma vida confinada. Estou em cheia ou vazia, Paris é sedutora. Ontem tive Paris, mas sem vista para a cidade. Tenho, a impressão que a cidade, coquete, se en- porém, a luz parisiense que, desde que co- tregava, pedaço a pedaço, a meus olhos, mecei a fazer aulas de arte, descobri ser como uma modelo diante das lentes do uma luz propícia às aquarelas. Olho para o fotógrafo. Tirei algumas fotos de locais por pedacinho do céu que me cabe e penso no onde sempre passava (todos a menos de que chamam aqui de “lavis” e eu traduzo 1km de minha casa), mas sem vê-los. Tudo como aguadas, sem ter certeza do termo, mudado, tudo igual. Era como se a história pois nunca tive aulas de aquarela no Bra- mostrasse o que realmente é, uma constru- sil. Quando bem jovem, tive umas aulas no ção, uma obra sem pressa de acabar e in- Parque Lage. Só que o professor ensinava diferente àqueles que a constroem. Tantos desenho a carvão, e eu detesto sujar mãos reis, tantos heróis, tantos poemas, tantas e pés. O carvão sujava muito os meus de- dores. Tantas pessoas humildes ocuparam dos, que sujavam meu rosto, minha roupa, os andaimes das fachadas e construções e o mundo! Felizmente, o professor tinha magníficas e foram esquecidas, pois o que um filho que devia ter a mesma idade que fica é uma janela envidraçada, toda ferro eu e, apesar de se chamar Pedro Paulo Ru- e vidro, força e fragilidade, rebrilhando ao bens, não se interessava nada por desenho, sol (dizem, aqui, que quando vemos o sol mas conhecia todos os caminhos do Par- se refletindo numa janela, é que anjos nos que. Passamos a percorrê-lo juntos, à caça observam e abençoam). As pessoas que já de framboesas e jambos e outros tesouros. não passam pelas ruas dão lugar a todos os Uma tarde, encontramos os destroços de que passaram antes de nós. Somos efême- um monomotor e uma loura vestida com ros. Mas sonhamos, e os sonhos são eter- uma pele de onça acudindo um pobre pilo- nos. Parafraseando Drummond, esse vento, to desacordado, mas depois fugindo dele. essa solidão, botam a gente filosófica pra Era um set de filmagem, que acompanha- chuchu… mos com interesse e uma certa desilusão. Era isso? Uma história que não progredia? 7.2 Que se repetia e repetia, tediosa como uma Sétimo dia da segunda semana. Ainda quarentena? Eu, que sempre detestei sujar não expliquei o nome que escolhi para ca- pés e mãos, descobri o truque das atrizes de beçalho destas publicações. Li, mas depois Hollywood, obrigadas a representar descal- nunca mais consegui encontrar onde, a fra- ças nas “inóspitas selvas brasileiras”, den- se que vou citar imperfeitamente e sem co- tre as quais a do Parque Lage se destacava nhecer o autor: “Ópera é o teatro encena- pela ferocidade dos mosquitos e maribon- do num manicômio”. Tenho a sensação de dos. Elas usavam esparadrapo cor da pele 52 • Lúcia Bettencourt cobrindo a sola de seus mimosos pezinhos Madre Xavier. Mais outro inglório final de de estrelas! Só que eram esparadrapos im- carreira. Para terminar, soube que o profes- portados, os nacionais eram brancos e gru- sor, que idolatrávamos, estava no elenco davam de tal maneira na nossa pele que, de uma peça no centro da cidade, naque- para retirar a cola, era necessário esfregar le teatrinho que fica numa “não rua” que até que esta saísse junto. Fim de mais uma desemboca na Avenida Rio Branco, ali nas outra carreira artística: nem desenhista nem alturas do Castelo. Era um papel secundá- artista de cinema. No entanto, quando já rio, eu sabia, mas era um palco profissional estava no Clássico, tivemos aulas de artes onde veria meu mentor representar. Lá fui cênicas. Minha dolorosa experiência cine- eu. Descobri que ele atravessava o palco matográfica me fez optar pelo teatro (e o numa fantasia de burro. E nunca quis saber teatro era tudo de bom naqueles tempos qual a metade do burro lhe cabia. Desin- de Roda viva a Macunaíma; de A moreni- teressei-me da carreira. Mas conservo meu nha a Hair). A mim me coube o monólogo amor pelo teatro. de mãe de uma criança excepcional, trecho de uma peça cujo nome não lembro, de Pe- 4.3 dro Bloch. Nosso projeto era uma colagem Quarto dia da terceira semana. Nestes de vários textos, dentre os quais cobiçava dias tão iguais a si mesmos, só encontro no- apaixonadamente o pedacinho de Bodas de vidades nas nuvens, que voltaram para en- sangue, que ainda lembro de cor: “Mas a cobrir o céu que me cabe nesta quarentena. culpa, a culpa é da terra e do cheiro que Olho para cima e lá estão elas, não muito desprendem teus peitos e tuas tranças”. escuras, mas prateando a luz que entra pela Não, eu não queria dizer estes versos. O janela. Diz a canção que cariocas não gos- que queria era ouvi-los, dirigidos a mim, tam de dias nublados, e acho que sei o por- adolescente casta e tímida, mas que pode- quê: os dias nublados nos roubam as cores ria viver as turbulências da paixão sem fazer da cidade vibrante que é o Rio. Em Paris, “porcarias”, como aquela criada de O pri- porém, as cores existem em outra intensi- mo Basílio se referia ao sexo. (São Google dade. A cidade é acinzentada. Paredes re- me socorreu e me lembrou que seu nome cobertas de fuligem ou de andaimes, numa era Juliana.) Resumindo a ópera, apesar de eterna manutenção do Patrimônio. Não lhe fazer parte do elenco teatral, fui convida- faltam cores, mas educadamente discretas, da pela equipe de cinema para gravar uma deixando que os canteiros possam se des- cena, pois o diretor, que também era o di- tacar e que os frisos de árvores de algumas retor de teatro, achou que eu tinha olhos de suas avenidas se exibam como coristas expressivos. Gravei na antiga igrejinha do de um espetáculo sempre em construção. Forte de Copacabana. Outra vez cenas re- Paris fotografa bem, por causa disso. Sua petidas até a insensibilidade. Uma cena luz não agride, não sublinha defeitos, an- muda. Era só o meu olhar, o que queriam tes os desmancha em suave imprecisão. Os registrar. Nunca representamos a peça nem telhados da cidade, que antes me pareciam exibimos o filme. Uma desgraça cancelou as feitos de ardósia, mas que agora se reve- festas de fim de ano: a morte da adorável lam de algum metal possivelmente proibido Resumo da ópera • 53 em outros países, deixam os prédios com a que a torre seria temporária, desarmada aparência grisalha de cidadãos respeitáveis. após servir de entrada para mais uma das Os dos palácios demonstram sua finesse exposições universais, glórias da burgue- ostentando uma pátina verde, plúmbea. sia e de seus empreendimentos. Tal como Neste desfile de modas antigas, destacam- a máquina do mundo, que se revelou para -se construções modernas, nem sempre o poeta, foi uma visão rápida, uma breve, belas. Na verdade, algumas são horrendas, brevíssima epifania. Lastimei a revelação, me fazem fechar os olhos ao passar por feita a alguém como eu, incapaz de trans- elas. Vidros tingidos de amarelo gema ou formar essa dádiva em poema, lição ou má- de azul chiclete me fazem perguntar como xima. Meus olhos já nasceram num mundo foram parar à beira do Sena, desfigurando- onde a Torre Eiffel é sinônimo de beleza e -o. Uma das construções modernas de que encanto. Esqueci os prédios esmagados, le- gosto é a Fundação Louis Vuitton. Relutei vantei os olhos para a torre e minha alma em ir conhecê-la, mas, quando fui, me dei- voou. Paris tem dessas coisas, em qualquer xei levar pela estranheza de seus vazios. esquina você pode se descobrir alada. Uma arquitetura feita de espaços, de ven- tos e de passagens. Penso sempre no fato 6.3 de que Proust nunca mencionou a Torre Sexto dia da terceira semana. Saí hoje de Eiffel nos milhares de páginas de seu ro- manhã. Isso é uma grande novidade: depois mance, onde toda a história da França se de 9 dias em casa, fui ao supermercado. apresenta, e todas as invenções modernas Acontece que, ao voltar, me perdi! Acredi- se destacam. Nem sequer uma palavra so- tem ou não, consegui me perder sem nem bre a torre, imensa. Impossível de ser igno- sequer reparar que estava perdida. Desci a rada, ela sempre foi, mas ele se manteve rua du Dragon, parei para fotografar a ma- irredutível. Ela não existe em sua Paris sobre çaneta de um restaurante que nunca havia a qual até os aviões passeiam, assimilados notado antes. Trata-se de um restaurante a anjos de Giotto. Noutro dia, antes da chinês, que deve ter achado aquela locali- quarentena, obviamente, uma das minhas zação muito auspiciosa, pois o dragão é um flânneries, vulgarmente conhecidas como dos signos de sorte, segundo o horóscopo voltinhas, me levou a uma avenida e, de chinês. Depois da parada para a foto, fui repente, numa esquina, lá estava ela, onde descendo a rua, namorando um sapatinho eu menos esperava, e os prédios elegantes, azul de uma vitrine, estranhando as madei- todos da mesma altura, pareciam prestes a ras que começam a cobrir as vidraças de serem esmagados pelas patas gigantescas, outras lojas. Atravessei a rua no sinal, sau- acinzentadas, de um inseto desmesurado. dando o centauro da esquina do Carrefour Nesse momento tive um vislumbre do que de la Croix-Rouge. Meus olhos gulosos de poderia ter sido aquela construção para o “quarentenada” vão tentando se alimentar olhar de esteta que Proust gostava de lan- de imagens para ruminar mais tarde. E creio çar à sua volta. Nada explicava aquela Babel que foi neste momento que enveredei por moderna, sem outra função que a glorifica- uma outra rua, que não a minha. As pessoas ção da lógica. Naqueles tempos, julgava-se que me conhecem pessoalmente sabem 54 • Lúcia Bettencourt que sou mesmo desligada. Fui caminhando, graciosidade e elegância para alimentarem- surpreendida com as novidades, mas sem -se em cochos baixos demais. Como invejei perceber que estava num caminho trocado. a Emília, olhando para os míopes rinoceron- Quando cheguei na esquina seguinte e não tes, estáticos, resistindo como estátuas de vi a rua de Rennes nem as torres familia- sal, voltados para o passado. Como me de- res da igreja de Saint-Sulpice, fiquei admi- sapontei com os hipopótamos tímidos, que rada. Tinha entrado pela rua do Cherche- só emergiam para lançar-nos um bocejo de -Midi e custei a entender onde estava. Rua tédio infinito. d’Assas?! Talvez meu inconsciente tenha Recebo notícias de animais silvestres que me carregado para longe, para prolongar vão tomando conta de ruas e quintais, nesta um pouco mais o passeio. Talvez meu corpo quarentena. Cabras descem de suas monta- tenha se sentido tão bem caminhando que nhas e vão visitar as cidades, transformadas desviou minha atenção. O fato é que, com em “virológicos”. Caminham, espantadas, isso, perdi minha hora. Mas o que importa observando as pessoas empilhadas em jau- a hora perdida numa quarentena? las/apartamentos, caminhando incessante- mente de um lado para o outro. Desviam-se 1.4 de onças pardas adormecidas entre jasmi- Quarta semana se iniciando neste dia neiros, como num poema. Outras notícias 7 de abril. Hoje, ao acordar, os pássaros anunciam patos desfilando pelas ruas de Pa- gargalhavam, soltos no céu. São gaivotas. ris, e eu me espanto. Pois esperava que fos- Não entendo o que fazem aqui, tão longe sem os ratos, os que tomassem a cidade de do mar. Suspeito que Paris tenha um mar assalto, desesperados com a falta da comida “interior” que permita a aclimatação de abundante que os turistas e os próprios pa- aves marinhas como eu. Sempre disse que risienses espalhavam por todos os cantos da não poderia viver longe do mar, pois preciso cidade. Já as gaivotas… Estas riem, garga- de seu cheiro, da hipnose de suas ondas, lham, voando pelos céus abandonados pelos de seus recados que me fazem sonhar. E, aviões e outras aves. Nem mesmo as pombas aqui, como estas gaivotas perdidas, sobre- soltam seus arrulhos tristonhos. Só as gaivo- vivo bem, o mar dentro de mim, com suas tas cruzam os céus trazendo, em seus gritos, marés altas e baixas, suas ondas de entu- os ecos do mar. siasmo ou desespero. E penso nos animais 3.4 nos zoológicos, distantes de seus habitats, longe de seus companheiros de espécie. Há Escrevo sorrindo. Que razões pode ter quanto tempo obrigamos os animais a es- alguém para sorrir no terceiro dia da quarta sas quarentenas? E, no entanto, como apre- semana de quarentena?! Pois eu lhes digo: ciei conhecer os elefantes e águias, as ser- ir à rua, sair às 8h30 para “fazer exercício”, pentes e os tigres, até o patético urso polar, caminhar pela cidade nunca inteiramente de pelo esverdeado pelo limo das águas em deserta, com o coração meio temeroso, que vivia constantemente mergulhado, no sem saber se vai conseguir andar depois de nosso eterno verão. Como adorava as desa- tanto tempo parada dentro de um studio. jeitadas girafas, que precisavam perder sua Surpreendentemente meu programa de Resumo da ópera • 55 exercícios físicos: dança com o aspirador de 5.4 pó, ioga na cozinha e alongamento ao sol Um telefone toca e ninguém atende. No no solo mostraram que estão dando resul- meu prédio são muitos os apartamentos va- tado. Fui e voltei, com a máscara (caseira) zios, pode ser que seja por isso que ninguém cobrindo meu rosto e meio que me sufo- pressiona o botão e diz “alô”. O telefone cando, sem cansar, e ao chegar ainda tive segue tocando sua urgência… O que será fôlego para subir os quatro andares a pé! que se esconde atrás desse toque? Como se O exercício de hoje me levou até a praci- não bastasse minha porção de angústia, lá nha Christine, e fiquei feliz de ver as árvores fico eu presa ao toque do telefone, à indife- já com suas copas completas. Depois atra- rença ou incapacidade da pessoa chamada, vessei a rua e lá do outro extremo da ponte à apreensão de quem chama. Quanto mais saudei a Torre Eiffel, com a alegria de quem reencontra uma velha amiga. Voltei pela rua me afasto das angústias políticas, mais pro- de Buci, para comprar uma baguette, que in- fundamente mergulho na solidão inerente felizmente não estava quentinha. Uma para a cada pessoa. Por mais sociáveis e alegres, mim e outra para o mendigo que estava sen- por mais belicosos e agressivos, tendemos a tado ali perto. Só consegui ver flores bem ao nos definir como grupos. Procuramos a in- longe. Sinto muita pena de não estar acom- teração, a diversão em conjunto, o amigo, panhando o desabrochar dos canteiros e a a mãe. Acontece que nada disso nos salva floração das árvores. No domingo, antes da de nossa condição: somos sós. Estamos sós quarentena, as magnólias ainda estavam em num universo imenso onde, mesmo que a botão lá no Luco (Jardim do Luxemburgo). vida pulule, intensa, está tão distante que Agora devem estar no auge, lindas. Flores- jamais fará diferença para nós. E levamos, cem para si mesmas, para os pássaros, para dentro de nós, a certeza da finitude. No en- os sortudos moradores à volta, pois de suas tanto, somos a formulação da imortalidade: janelas podem ver os canteiros e árvores lá DNA. Sou tão ignorante que nem saberia dentro. O parque está fechado, as únicas precisar se esta fórmula pertence à mate- aberturas são as grades das portas que dão mática, à física, à química. Em minha limita- para as aleias desertas, bordadas de árvores ção, creio que pertence a todas elas, e ainda de sombra, não de flores. Por enquanto vou a mais uma – para mim a mais importante – esquecendo minha difícil condição de qua- à linguagem, uma que ainda não decodifi- rentenada e tratando de aproveitar esses camos, que não conseguimos traduzir se- minutos roubados ao isolamento. O preço a não com muitas imperfeições e enganos. pagar é alto: um protocolo de limpeza can- Talvez seja a usada por Deus, e cada um sativo ao chegar, incluindo a lavagem ime- de nós seja apenas uma palavra, ou menos diata de roupas e, depois, os dias sem saber ainda, uma letra, pequena parte do livro da se essa saída selou o meu destino ou não. vida. Podemos até ter a capacidade de reco- Ao sol, esses fantasmas deixam de existir nhecer essa linguagem, mas somente nossa porém, e o dia transcorre com maior alegria vaidade acha que podemos traduzi-la. Pois, e entusiasmo. E assim vamos sobrevivendo e como palavras divinas (criados à imagem nos adaptando. e semelhança de Deus), somos o Verbo. 56 • Lúcia Bettencourt

Sozinhos não somos mais que uma simples Imaginem uma cidade atingida por uma consoante, cujo segredo está na companhia bomba dessas, imaginem Paris, assim. Nas – “com”. Se conseguirmos entender isso, duas saídas para “exercício físico”, que fiz talvez deixemos de ser sós, talvez deixemos durante o tempo em que estou quarente- de nos dar importância em demasia e talvez nando, não pude deixar de pensar nessa desapareçam todas as angústias e aflições. bomba e de me perguntar por que teria so- O telefone parou de tocar. Uma criança brevivido. Ou estaria eu morta, meu corpo chorou e foi consolada. Os ruídos da manhã físico desintegrado pelos nêutrons, enquan- de sábado me asseguram que a vida, como to minha consciência continua vagando, a conheci, ainda pode continuar, apesar de perdida? Sou muito dada a estas misturas tantas elucubrações (no sentido irônico da de sonho e realidade. Sairei daqui, caso palavra, por favor!) saia, para um mundo onde já não existe mais nem a alegria exuberante de um Mo- 3.5 raes Moreira nem o olhar fundo e faminto de Rubem Fonseca. Para um mundo que Terceiro dia da quinta semana. Esta ma- viu o colapso de países onde os mortos se neira nova de contar o tempo às vezes me acumularam insepultos, onde os médicos deixa um pouco desorientada. Mas, seja do se viram obrigados a escolher quem tinha jeito que for, os dias vão passando e passam direito à vida ou não. Para um mundo em rápido. Ontem me perguntava se o mun- que se falou muito dos mortos famosos, do lá fora ainda existirá quando sair daqui. mas onde ninguém ficou sabendo do nome Pessoas morrem, a cada dia sabemos de dos milhares de mortos sacrificados à sua mais mortes. Pessoas que amamos e admi- condição de gente humilde. Que desânimo! ramos morrem. Quem sobrará ao final? E que cicatrizes carregaremos, depois de ter- 5.5 mos amputado tantos dias de nossas vidas? Quem contará os beijos que deixamos de Quinto dia da quinta semana. Estou dar? [Lembro do trechinho de Proust que resignada a não sair, mas confesso que, está em “Um amor de Swann” (No cami- em manhãs como a de hoje, maldigo a nho de Swann), e que fala do início de sua sorte. Estou perdendo a primavera. Céus relação com Odette. Lá o autor diz que, no doces, temperaturas amenas, mas, de vez começo de uma paixão, teremos mais difi- em quando, um ventinho frio, que nos faz culdades em contar os beijos dos amantes correr para longe da sombra e procurar um do que teríamos em contar as flores de um raio de sol entre as árvores, que ainda não jardim no mês de maio…]. Esse é tempo fecharam integralmente suas copas. Paris é sem beijos e de muitas lágrimas. Será que a cidade que sabe acolher as estações, e va- as lágrimas que chorarmos marcarão nossas lorizá-las, dando a cada uma seu destaque, faces? Perco-me em pensamentos, que me como uma boa dona de casa recebendo trazem à lembrança uma terrível arma que convidados. Paris, portanto, é a civilização foi inventada lá pelos anos 70, a bomba de festejando a natureza. Uma natureza aco- nêutrons. Uma arma que só destruiria gen- modada, disciplinada, ao gosto francês. Ao te, e preservaria armamentos e construções. mesmo tempo em que responde, e muito Resumo da ópera • 57 bem, aos cuidados que recebe. Sinto falta animadora em nenhuma das localidades. dos lindos jardins públicos e privados. Sinto Afinal, com insensatez e impulsividade não falta de ficar parada em frente a prédios, es- chegaremos muito além do cemitério, em preitando seus pátios floridos, namorando minha opinião. Mas deixem minhas opi- as esculturas aprisionadas para deleite ex- niões para lá. Elas valem menos que notas clusivo dos proprietários. Sinto vontade de de cruzeiro velho! E, já que falamos em no- flanar, e flanar é um andar diferente, poé- tas, descobri que as de euros reverenciam tico, onde nossos passos acontecem ligeira- estilos arquitetônicos. Nunca tinha repara- mente acima do chão. Vamos caminhando do nisso, pois, infelizmente, os euros não sem sentirmos o cansaço, olhos descobrin- se multiplicam entre meus dedos. Segundo do tesouros onde outros veem apenas uma o informe, a nota de 5 euros refere-se ao tabuleta, ou uma porta. Desviamos dos estilo clássico, a de 10 remete ao românico. caminhos diretos para seguir os meandros A nota de 20 euros homenageia o gótico, e de um rio imaginário e surpreender flores, a de 50 é renascentista. Quem tiver a sorte e escutar pássaros, ou encontrar gente que de ter uma nota de 100, vai ver o barroco. dança nas ruas, ao som de um saxofone e A nota de 200, que não é fácil de encontrar, de um violão. Visitamos diferentes épocas é dedicada ao estilo moderno. Fiquei saben- históricas, de um lado da rua, o medieval, do, no informe, que a nota de 500 euros de outro, o ultramoderno. Sorrimos das (nem sabia que existia!) tem como motivo ironias que aproximam inimigos e afastam o estilo contemporâneo. Viva a Europa, os amantes em esquinas incongruentes. E, que sabe valorizar seu patrimônio. Mas, a surpresos, escutamos nosso próprio cora- cada saída de casa, mesmo essas rápidas ção, quando o sol nos paralisa com seu raio corridas à farmácia e aos correios, mais me e nos fixa como agulha de um gnômon, de convenço que o “lá fora”, tão lindo, sem as um relógio de sol. Ontem fui à procura de pessoas que o animavam, vai perdendo a máscaras. Não as encontrei, mas encontrei nitidez, tal como fotografias antigas. O que lilases florindo. Ganhei (perdi) meu dia. E nos consola é irmos colocando, em cada viva a poesia! bairro, por trás das portas fechadas, o nome dos amigos, as lembranças do que vivemos 1.6 naqueles tempos em que ainda não éramos Mais uma semana de quarentena. Sigo confinados. lamentando a cidade que perdi. Tenho este 6.6 meu cantinho parisiense, mas a cidade não está aqui dentro. Aqui dentro há saudade. Quarenta e um dias de quarentena. Saudade do “lá fora”, saudade do “lá lon- Na noite passada os moradores do 18ème ge”. Tem dias que o lá fora predomina no se insurgiram e fizeram um baile popular meu desejo de escape. Outros é o lá longe, no meio da rua. Era ao anoitecer, as pes- e nem sei dizer a qual dos “lá longe” me soas começaram a sair espontaneamente refiro, pois tenho filhos no Rio e no Texas. de suas casas e a se reunir, uns trouxeram Hoje creio que os dois “lá longe” me preo- seus instrumentos, outros apenas chega- cupam igualmente. A situação não parece ram. Elas e eles se enlaçaram e festejaram, 58 • Lúcia Bettencourt alegres, como se não houvesse amanhã. Aí o Nabil. Ele veio me atender quando preci- chegou a polícia e acabou com a festa. Mas sei levar algumas coisas que estou deixando já dá para ter uma ideia de como será o dia na casa de uma amiga, e foi logo me mos- 11/05, o programado fim do confinamento. trando sua foto no Le Monde Weekend: era Acredito que a festa começará à meia-noi- uma reportagem sobre pessoas que conti- te. Ao contrário da Cinderela, as pessoas, nuam trabalhando durante a quarentena. já quase totalmente transformadas em A foto merece destaque, pois é a do refle- abóboras, verão suas formas retornarem, xo dele sobre o capô do táxi, um trabalho reencontrarão seus sorrisos e calçarão seus verdadeiramente interessante. Tiramos um sapatos mais lindos e suas roupas mais ale- retrato juntos. Ele, com a revista aberta e gres, abrirão o frasco de perfume em vez de eu, com essa máscara artesanal que aprendi usarem o álcool em gel, e dançarão a noite a fazer na internet. Assim que Nabil soube inteira. Brindarão, se darão as mãos e volta- que eu era brasileira, animou-se, como se rão a se beijar. Pais e filhos se reencontrarão, fosse um amigo que estivesse me reencon- amantes separados se reunirão. “Vai ser bo- trando depois de algum tempo distante. nita a festa, pá!” Quando soube da notícia, Contou-me sobre sua ida ao Brasil, onde até me entristeci um pouquinho com minha passou três semanas durante o Carnaval. tomada de decisão de voltar para o Rio. Mas Adotou-me imediatamente, disse que me agora entendo que não teria com quem ce- levaria ao aeroporto e cumpriu sua pala- lebrar se ficasse por aqui. Estarei no Rio no vra. Fez ainda mais, me acompanhou até o final da quarentena de lá (que oficialmente check-in, carregou minhas malas, e me fez nunca existiu), e faremos uma ciranda, da- prometer que não desistiria de Paris! Essa quelas lindas, como um dia fiz em Recife, ao cidade é mesmo especial, não acham? Eu som de Lia de Itamaracá. Todos numa roda, acho. Em vez da melancólica despedida os corações batendo em uníssono, os olhos para a qual estava preparada, tive compa- voltados para o céu, e depois descendo para nhia e alegria, histórias para me alimentar e contemplar o rosto das pessoas queridas, distrair. E, assim, vou encerrando esta tem- das pessoas estranhas, das crianças e dos ve- porada em Paris. Com chave que, se não lhos, amando cada traço, sorrindo com olhos é de ouro, é, pelo menos, brilhante. Meu e bocas descobertas, o corpo totalmente coração, tão apreensivo ainda ontem, hoje integrado na roda que se estreita e amplia, está cheio de alegria, já planejando a pró- como um coração. Quero isso, minha gente. xima viagem. E, daqui a pouco, embarco. Meu chão, minhas memórias, nossos ritmos, Portanto, vou tratando de encerrar esta ses- nossos afetos. são, fechar o computador e dizer mais uma vez “Au revoir”. Até qualquer dia, minha 7.6 linda cidade! E aqui vou eu, minha outra Paris surpreende, mesmo nos últimos linda cidade, capaz de encantar também, instantes de minha permanência. Ontem com outro charme, mas com a mesma in- conheci, por acaso, um taxista “famoso”, tensidade. Até já, meu Rio de Janeiro. A Poesia de Carlos Nejar no site da Academia Brasileira de Letras

Glauber de Oliveira Formado em Ciências Sociais e Filosofia (Bacharelado/Licenciatura) na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

esolveu-se fazer estudo em torno da interessante? O poeta de Miguel Pampa é poesia do grande poeta brasileiro ilustre membro da instituição citada e tem R Carlos Nejar. O estudo não é tão am- como primeira forma de contato oficial com bicioso, mas tem bom efeito de mostruário, seu trabalho, além dos seus livros, a página afinal trabalha o autor destas linhas com a internética da Academia Brasileira de Le- produção poética do poeta gaúcho apre- tras. É a primeira aproximação, oficial, na sentada no site da Academia Brasileira de internet com o trabalho poético deste au- Letras, instituição da qual o poeta discorri- tor. Assim a empresa deste ensaio razoabili- do é membro com mérito altaneiro. za sua viabilização. De tal forma que se pas- Pensou-se inicialmente em comentar os sa agora para a lavra poética propriamente poemas que fazem parte dos livros Sélesis falando. e Danações, isto porque estes dois livros Começamos com “Lunalva”, poema de mais alguns outros compõem o que concre- Sélesis. Este poema é um poema feito de tamente é a primeira reunião de livros de paralelismos e tem evidente caracterização poesia do poeta Carlos Nejar, mas se pesou profético-religiosa. Este é único poema, no a obrigação do ensaio e se achou melhor site, do livro “Sélesis”, mas muito signifi- escrever sobre todos os poemas que estão cativo. presentes no site da Academia Brasileira O poema seguinte é este, de Danações, de Letras (incluindo assim poemas do livro que merece ser citado inteiro: Ordenações). Fez-se percuciência deveras considerável Qualificação sobre os poemas do, como já citado, honro- Não venham com razões so membro da Academia Brasileira de Letras e palavras estreitas. e agora se parte para uma ressalva: não é O que sou sustenta que destacar a produção do poeta Carlos o que não sou. Nejar apresentada no site da Academia Por mais grave a doença, Brasileira de Letras é tarefa, sem dúvida, a dor já me curou. 60 • Glauber de Oliveira

E levo no bordão, a morte”. Temos uma forte oposição de o campo, a cerca, imagens e de ideias. Tanto no poema cita- as passadas que vão, do como também no poema “A paz”, este o rosto que se acerca nitidamente um poema coligido em Orde- na rudeza do chão. nações. O que sou Para terminar temos o poema “Das é dar socos medidas”, também de Ordenações, que contra facas quotidianas. nos apresenta uma poesia de resignação. E é pouco. A título de curiosidade apresenta-se uma Junto com o poema “Apreensão”, tam- anotação feita em torno do livro Danações, bém de Danações, eles reforçam caracterís- apesar de já se ter falado sobre o mesmo, ticas apresentadas em “Lunalva”, já comen- que é a de tratar esse livro de uma poesia tado. de asseveramento, de conclusão. Ainda de Danações, há “No tribunal”, Esta foi a tentativa, modesta, de falar do no qual temos uma poesia claramente me- poeta Carlos Nejar. Poeta de obra gigantes- tafórica, ilustrada em versos como estes: “o ca, já toda (ou quase toda) compilada, fazer rosto girando em mim, / farândola.” Inelu- este ensaio foi algo melífluo. Homenagem tavelmente intensa riqueza verbal. ao autor falado, o texto tem sua missão “Do trato com a morte”, que não está cumprida em introduzir leitores a este enor- discriminado a que livro pertence, trata-se me poeta. E se teve como canal o site da de um poema longo, enumerado e que Academia Brasileira de Letras, mostrando- traz um procedimento bastante evidente -nos este poeta por volta dos seus 30 anos na poesia ocidental: o das paralelísticas en- de idade, já que os poemas são de livros cadeadas. Sempre se pede a leitura de um da década de 1960 e o primeiro publicado poema, ele explica muito mais do que qual- na década de 1970 (mais precisamente em quer exegese. Especialmente neste caso 1971). de se entender o que são as paralelís­ticas encadeadas. P.S.: uma faceta que não se consegue dei- Entramos nos poemas de Ordenações, xar de falar e que ficou fora do ensaio é supostamente, já que não foi revelado a a faceta gaúcha do autor. Ao que parece que livro pertence o poema “Do trato com inevitável deixar de lembrar. Em torno do romance carioca

Alcmeno Bastos Professor de Literatura Brasileira da Universidade Federal do Rio de Janeiro (aposentado), Membro Efetivo da Academia Carioca de Letras, do PEN Clube do Brasil e da UBE-RJ – União Brasileira de Escritores-RJ. Autor de inúmeros trabalhos na área de Literatura Brasileira, o mais recente dos quais, Machado de Assis: a poética da moderação (Rio de Janeiro: Batel, 2018).

comum citar como indiscutíveis ro- seus romances o são, e neles o Rio de Janei- mancistas “cariocas”, por ordem cro­ ro pulsa em sua realidade urbana, com seus É nológica de aparecimento na cena tipos sociais, suas instituições públicas e/ou literária: Manuel Antônio de Almeida privadas, sua topografia peculiar. Sendo as- (1830-1861), Machado de Assis (1839-1908) sim, é indiscutível o pertencimento dos três e Lima Barreto (1881-1922). De fato, os três ao conjunto romance “carioca”. são cariocas por nascimento, cresceram, vi- É comum também acrescentar a essa veram e morreram na cidade do Rio de Ja- lista o nome de (pseudô- neiro, cariocas “da gema”, portanto, ainda nimo de Eddy Dias da Cruz, 1907-1973), que o designativo adotado na época fosse igualmente carioca “da gema”, especial- “fluminense”. Não sendo desprezível essa mente por conta de seus romances Mara- circunstância de “berço”, afinal de contas fa (1935) e A estrela sobe (1939), represen- esses autores sempre respiraram o Rio de tativos das transformações observáveis na Janeiro, não carregavam memória de ou- paisagem físico-social do Rio de Janeiro da tras plagas, e mesmo pouco se afastaram primeira metade do século XX, então capi- da cidade (nenhum deles saiu do Brasil uma tal da República, como o crescente prestígio vez que fosse), os estudiosos não a tomam do rádio, mas também pelo inacabado ciclo em sentido radical, como se fora ela a úni- O espelho partido [O trapicheiro] (1959), ca marca de autenticidade. Manuel Antônio A mudança (1962) e A guerra está entre de Almeida ocupa o posto de iniciador da nós (1968), suposto diário de um escritor, “linhagem”, credenciado por um único ro- Eduardo, que abrange os anos de 1936 a mance, Memórias de um sargento de milí- 1944 e mostra um Rio de Janeiro imerso na cias, o que se explica, talvez, pela brevidade ditadura varguista do Estado Novo (1937- de sua vida. Não cabe especular se a conti- 1945) e um mundo conflagrado na Se- nuação de sua obra teria o mesmo acento gunda Guerra Mundial (1939-45). Nos dois “carioca”. Já de Machado de Assis e Lima primeiros romances aqui citados, os protago- Barreto pode ser dito que a totalidade de nistas, Jorge e Leniza, são de classe média 62 • Alcmeno Bastos baixa e tentam ascender socialmente, com vivência na cidade do Rio de Janeiro, onde a correspondente melhoria financeira, no viveu desde os oito anos de idade. Para a mundo viciado das lutas de boxe arranjadas expressividade ficcional de seus romances (Jorge) e dos percalços da carreira de uma e contos, desde a estreia em 1963, com cantora de rádio (Leniza). Para tanto, am- A coleira do cão (contos), muito contri- bos deixam-se levar pelas circunstâncias e bui a ambientação físico-social de suas es- pagam alto preço moral por isso: tórias nesta cidade do Rio de Janeiro, com (...) Enquanto dividia sua atividade en- seu cortejo de personagens, tanto do “bai- tre o escritório e o ringue, a maior parte do xo” quanto do “alto” mundo social, quase tempo no escritório, a realidade passara-lhe sempre vivendo situação-limite. Vamo-nos quase despercebida. Depois, porém, o meio servir de dois exemplos: o romance Agos- apareceu-lhe claramente tal qual era e enver- gonhava-o. (...) Fechava os olhos e os ouvi- to (1990) e o conto “A arte de andar nas dos, continuava. Mantinha, contudo, novos ruas do Rio de Janeiro” (de Romance negro planos. Mal se apanhasse com uma maquia e outras histórias, 1992). Neste último caso, [comissão], que lhe permitisse enfrentar os temos uma espécie de texto-ícone, pois o acontecimentos, abandonaria as luvas e lan- leitor “percorre” suas páginas do mesmo çaria a sua vida para outro rumo. No boxe é modo, quase errático, com que Augusto, o 1 que não poderia ficar. protagonista, vai de um lado a outro da ci- O contrato do Cassino não veio, a venda dade (limitado embora ao centro), sem que dos discos não lhe deu grandes lucros, mas a Continental estava lhe pagando direitinho a narrativa evolua para um desfecho. quinhentos mil-réis por mês. Suas despesas Em suas andanças pelo centro da cida- atingiam agora a um mínimo de um conto e de, desde que começara a escrever o livro, quinhentos. Só em cabeleireiro iam uns vinte Augusto olha com atenção tudo o que pode mil-réis por semana. Era incapaz de fazer as ser visto, fachadas, telhados, portas, cartazes unhas, viciara em manicure. Cinema todos os pregados nas paredes, letreiros comerciais lu- dias. Não dispensava lanches na cidade. Cha- minosos ou não, buracos nas calçadas, latas péus era um por mês, de cem mil-réis para de lixo, bueiros, o chão que pisa, passarinhos cima. Sapatos, tinha um batalhão, mas tam- bebendo água nas poças, veículos e principal- 3 bém Amaro tinha uma sapataria de luxo... E mente pessoas. era ele que entrava com a diferença. Aliás, to- Augusto é, portanto, um olhar atento e lerava-o mais agora. (...)2 integrador dos elementos da paisagem ur- Em ambos os casos, a condescendên- bana, perceptíveis especialmente por quem cia moral e o peso da engrenagem trazida à “anda” pelas ruas da cidade. E no final de cena pelas novidades urbanas. Agosto, lê-se: E mais recentemente, na segunda meta- A cidade teve um dia calmo. O movimen- de do século XX, um quarto nome: o de Ru- to do comércio foi considerado muito bom pelo Sindicato dos Lojistas do Distrito Fede- bem Fonseca (1925-2020), nascido em Juiz ral. Também as repartições públicas, os ban- de Fora, Minas Gerais, mas de ampla e rica cos, as fábricas e os escritórios funcionaram 1 REBELO, Marques. Marafa. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1947, pp. 127-128. 3 FONSECA, Rubem. “A arte de andar nas ruas do Rio 2 REBELO, Marques. A estrela sobe. Rio de Janeiro: Edi- de Janeiro”. In: –. Romance negro e outras histórias. São ções de Ouro, s/d, p. 96. Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 9-50. Em torno do romance carioca • 63 normalmente. Os cinemas tiveram grande mesma nitidez taxonômica de romance ur- afluência de espectadores, acima do comum bano, romance regionalista, romance histó- para uma quinta-feira. rico, romance de tese, romance indianista, Os mil e quinhentos turistas que haviam romance político, por exemplo. Mas não é desembarcado do navio Santa Maria visitaram difícil imaginar que um romance, para mere- os principais pontos turísticos da cidade e to- dos disseram entusiasmados que o Rio merece cer o designativo “carioca”, deva represen- o título de Cidade Maravilhosa. tar ficcionalmente, com suficiente carga de (...) tipicidade, a vida social na cidade do Rio de Foi um dia ameno, de sol. À noite, a tem- Janeiro, em algum momento histórico. É o peratura caiu um pouco. A máxima foi de que acontece no romance tido como inicia- 30,6 e a mínima 17,2. Ventos de sul a leste dor dessa “linhagem”, Memórias de um sar- moderados.4 gento de milícias, de Manuel Antônio de Al- Sendo Agosto uma narrativa engenho- meida, que se abre deste modo: Era no tempo do rei. sa, que enlaça dois planos: o da crise polí- Uma das quatro esquinas que formam as tica que culmina com o suicídio de Getúlio ruas do Ouvidor e da Quitanda, cortando-se mu- Vargas e o da trama policial que vitima o co- tuamente, chamava-se nesse tempo – O canto missário Matos, esse final surpreende, pois é dos meirinhos –; e bem lhe assentava o nome, possível dizer que a cidade do Rio de Janeiro porque era aí o lugar de encontro favorito de é verdadeiramente personagem, e não ape- todos os indivíduos dessa classe (que gozava nas ambiente, já que o texto não diz respei- então de não pequena consideração). Os mei- rinhos de hoje não são mais do que a sombra to à sorte das personagens, mas sim a como caricata dos meirinhos do tempo do rei; esses estava o Rio de Janeiro naquele 26 de agos- eram gente temível e temida, respeitável e res- to de 1954, dois dias após a morte de Getú- peitada; formavam um dos extremos da for- lio Vargas e um dia passado da morte do co- midável cadeia judiciária que envolvia todo o missário Matos, o protagonista de Agosto. Rio de Janeiro no tempo em que a demanda De volta à fundamentação possível da ca- era entre nós um elemento de vida: o extremo rioquice do romance carioca, por imperativo oposto eram os desembargadores. Ora, os ex- tremos se tocam, e estes, tocando-se, fecha- lógico, como já dito, não basta a certidão de vam o círculo dentro do qual se passavam os nascimento do autor para atestar essa condi- terríveis combates das citações, provarás, ra- ção peculiar, dada a evidência de que muitos zões principais e finais, e todos esses trejeitos outros autores, cariocas de batismo, não in- judiciais que se chamava o processo. tegram esse cânone. E se não basta essa cir- Daí sua influência moral.5 cunstância de batismo, cabe ainda perguntar Em diálogo direto com o leitor suposta- se um romance “carioca” pode ter sido es- mente seu contemporâneo (o romance foi crito por um romancista não carioca, de nas- publicado originalmente em folhetins no cimento ou de vivência prolongada. Em que Correio Mercantil do Rio de Janeiro, entre consiste, portanto, a carioquice do romance 1852 e 1853, anonimamente, e em livro “carioca”? Por partes, então: romance cario- ca não é uma especificação técnica com a 5 ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memórias de um sar- gento de milícias. Edição preparada por Terezinha Mar- 4 _____. Agosto: romance. São Paulo: Companhia das tinho. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro – MEC, Letras, 1990. 1969, p. 107. 64 • Alcmeno Bastos em 1854, com a indicação de ser de auto- parte considerável da obra de José de Alen- ria de “um brasileiro”), o narrador situa a car (1829-1877), por exemplo, especialmen- ação num tempo histórico, “o tempo do te a trilogia dos “perfis de mulheres” (Diva rei”, presumivelmente entre 1808, data de – 1862, Lucíola – 1864, e Senhora – 1875), chegada da família real portuguesa ao Bra- se enquadra nessa categoria, pois a ação se sil, e 1821, data de regresso de D. João VI, passa no Rio de Janeiro, os tipos sociais são o “rei”, a Portugal; num espaço físico de- encontradiços na realidade social da cidade, marcado, as “quatro esquinas que formam como Aurélia Camargo, a heroína do tercei- as ruas do Ouvidor e da Quitanda”; e carac- ro livro da trilogia, de quem diz o narrador, teriza um tipo social: o “meirinho”, impor- na abertura: tante na época, a ponto de o narrador dizer Há anos raiou no céu fluminense uma que os “meirinhos de hoje” (itálicos nossos) nova estrela. Desde o momento de sua ascensão nin- não eram mais do que “a sombra caricata” guém lhe disputou o cetro; foi proclamada a dos de antigamente. Observe-se a consciên- rainha dos salões. cia demonstrada pelo narrador de que recu- Tornou-se deusa dos bailes; a musa dos pera um tempo e um espaço que não são poetas e o ídolo dos noivos em disponibilidade. contemporâneos do seu leitor de eleição, daí Era rica e famosa. a necessidade de bem explicar o que eram, Duas opulências, que se realçavam como “no tempo do rei”, os “meirinhos”. a flor em vaso de alabastro; dois esplendores que se refletem, como o raio de sol no prisma Dada a condição privilegiada do Rio de do diamante. Quem não se recorda de Auré- Janeiro no cenário das cidades brasileiras, lia Camargo, que atravessou o firmamento da capital do país desde a segunda metade corte como brilhante meteoro, e apagou-se do século XVIII (1763) até o ano de 1960, de repente no meio do deslumbramento que quando perdeu essa condição para Brasília, produzira o seu fulgor? a cidade foi o centro de irradiação das de- Tinha ela dezoito anos quando apareceu a cisões políticas, econômicas, culturais; sede primeira vez na sociedade. Não a conheciam; e logo buscaram todos com avidez informa- das embaixadas dos países com os quais o ções acerca da grande novidade do dia.6 Brasil mantinha relações diplomáticas; em resumo, polo natural da vida brasileira, o As situações nas quais se envolvem as Rio de Janeiro foi sempre um centro essen- personagens são perfeitamente reconhecí- cialmente urbano, mesmo quando tinha veis na crônica da vida citadina do Rio de uma face ainda colonial, antes das gran- Janeiro (os bailes nos quais brilhou a estre- des reformas promovidas no início do sécu- la de Aurélia Camargo, como no exemplo lo XX. Deste modo, o romance carioca foi acima). Também a obra de Joaquim Manuel sempre, inevitavelmente, romance urbano. de Macedo (1820-1882), especialmente Assim sendo, muitos romances escritos seu romance de estreia, A moreninha (1844), por outros autores que não os acima elen- com seu elenco de jovens estudantes e mo- cados, e que provieram de outros lugares, cinhas casadoiras, em namoros inocen- tomaram o Rio de Janeiro como objeto de tes na paradisíaca ilha de Paquetá, rapazes representação ficcional e são, portanto, por 6 ALENCAR, José de. Senhora. Rio de Janeiro: José esse aspecto, romances “cariocas”. Uma Aguilar, 1959, p. 953. Volume I da Obra completa. Em torno do romance carioca • 65 cientes de sua inteireza sentimental, mas Romance urbano, representação ficcio- inevitáveis vítimas dos encantos de alguma nal da vida na cidade do Rio de Janeiro em “moreninha”: certo momento histórico, com indicações – E eu afirmo que segunda-feira voltarás da topografia da cidade (ruas, avenidas, da ilha de... loucamente apaixonado de algu- morros, praias etc.), de sua efervescência ma de minhas primas. sociocultural (carnaval, botecos, cinemas, – Pode bem suceder que de ambas. teatros, escolas de samba, futebol etc.), de – E que todo o resto do ano letivo passa- rás pela rua de... duas e três vezes por dia, so- seus tipos característicos (o capoeira, o ma- mente com o fim de vê-la. landro, o operário, o estudante, a normalis- – Assevero que não. ta, o burguês endinheirado ou o morador – Assevero que sim.7 de rua, o policial, o político etc.), enfim, do complexo reduzido à denominação “cario- E numa chave de brutal realismo natu- ca”, o que dá ao romance carioca sua indis- ralista, O cortiço (1890), de Aluísio Azevedo cutível carioquice? (1857-1913), focaliza um espaço de habi- Em artigo publicado no Suplemento tação promíscuo para pessoas de condição Dominical do Jornal do Brasil de “sábado social e financeira baixa – o capoeira, o imi- 1, e domingo, 2 de agosto de 1959”, com grante português, a mulata sedutora, as la- o título de “O romance carioca 1”, Carlos vadeiras –, realidade urbana típica do Rio de Heitor Cony (1926-2018) 9 discorre sobre o Janeiro do final do século XIX e início do sé- assunto e é taxativo: “Dizer romance cario- culo XX, assim descrito: ca, pra encurtar a conversa, é dizer Manuel E os quartos do cortiço pararam enfim de Antônio de Almeida, Machado de Assis e encontro ao muro do negociante, formando com a continuação da casa deste um gran- Lima Barreto.” E se são esses os represen- de quadrilongo, espécie de pátio de quartel, tantes do “gênero”, em que consistiria, afi- onde podia formar um batalhão. nal, o romance “carioca”? Descartando al- Noventa e cinco casinhas comportou a gumas hipóteses, sugere que sejam “certos imensa estalagem. tiques, certo aristocracismo, certa visão su- Prontas, João Romão mandou levantar na perior dos fatos e dos homens e, sobretudo, frente, nas vinte braças que separavam a ven- muito humor”. Cony esclarece estar usan- da do sobrado do Miranda, um grosso muro do o termo “aristocracismo” de preferên- de dez palmos de altura, coroado de cacos de vidro e fundos de garrafa, e com um grande cia a “cosmopolitismo”, tanto porque não portão no centro, onde se dependurou uma caberia falar de cosmopolitismo em rela- lanterna de vidraças vermelhas, por cima de ção à cidade, que antes da gestão Pereira uma tabuleta amarela, em que se lia o seguin- Passos “era uma aldeia suja e nauseante, te, escrito a tinta encarnada e sem ortogra- uma grande vala cortando a cidade, hábitos fia: “Estalagem de São Romão. Alugam-se ca- 8 sinhas e tinas para lavadeiras”. 9 CONY, Carlos Heitor. “O romance carioca 1”. In: Jor- nal do Brasil. Suplemento Dominical, sábado 1, e do- 7 MACEDO, Joaquim Manuel de. A moreninha. 5. ed. mingo 2 de agosto de 1959. Em 2011, a Folha de São São Paulo: Melhoramentos, s/d, p. 16. Paulo do dia 18 de março, decorridos cinquenta e dois 8 AZEVEDO, Aluísio; O cortiço. Rio de Janeiro: Nova anos, republicou a parte inicial deste artigo, sem altera- Aguilar, 2005, p. 452. Volume II de Aluísio Azevedo: fic- ção de texto ou de conceitos. Ignoramos se em edições ção completa em dois volumes. posteriores foi completada a publicação. 66 • Alcmeno Bastos coloniais, sujos também”, e porque os três Caderno Ideias do Jornal do Brasil,10 quan- autores citados não eram “viajantes”, pou- do da morte do autor de Marafa, Marques co tendo se afastado do Rio de Janeiro. Des- Rebelo não só integra, sem reservas, o câ- tes traços, destaca o último como o mais none dos romancistas cariocas como foi o importante: “Mas é sobretudo no humor, seu último representante, de modo que sua na ironia controlada, que vamos encontrar morte marcaria o “encerramento de uma li- o traço principal do romance carioca.” Por nhagem novelística que começa idealmen- isso mesmo, Cony descarta todos os outros te, e no seu caso específico, com o autor romancistas importantes do século XIX, e das Memórias de um sargento de milícias, se diz impressionado com a falta de hu- esse Manuel Antônio de Almeida que ele mor em autores como José de Alencar, Jo- [Marques Rebelo] amou e biografou”. aquim Manuel de Macedo e Aluísio Azeve- Fausto Cunha decreta o fim do romance do: “são completamente falhos no humor carioca dessa “linhagem” inaugurada por e quando tentam fazer rir caem numa vul- Manuel Antônio de Almeida “por uma ra- garidade de fazer pena”. Por lhes faltar zão muito simples”: a ficção de Manuel e humor e ironia “controlada”, não podem a de Marques (e os outros romancistas “ca- ser autênticos romancistas “cariocas”. riocas”?) estavam “encerradas como ciclo e E em conferência pronunciada em 2015, não permitem sequer a imitação”. Contu- na Academia Brasileira de Letras, decorridos do, segundo Fausto Cunha, nada impediria cinquenta e sete anos do artigo do Jornal do que surgisse “um novo tipo de romance ca- Brasil, reafirma essa linha de argumentação rioca”, o que coloca novas questões. O fim nos seus pontos essenciais, o que nos per- do romance carioca da “linhagem” consa- mite supor que o artigo seja a melhor fon- grada se deveria ao mero esgotamento da te para conhecimento das ideias do autor fórmula, ao desaparecimento de seus culto- sobre o assunto. Talvez possam ser consi- res mais representativos, ou à mudança na deradas novidades a admissão de que ele própria realidade físico-social que lhes servi- mesmo, Cony, possa ser considerado tam- ra de matéria, isto é, a cidade do Rio de Ja- bém um romancista “carioca” e a referên- neiro? Decorridos quase cinquenta anos do cia a Rubem Fonseca, de cuja obra, ob- artigo de Fausto Cunha, fica a provocação: viamente, não tinha conhecimento, dado existe um “novo” romance carioca? que, como já dito, Fonseca estreia em li- De volta ao “humor” e a “ironia con- vro em 1963. Um desses pontos essenciais trolada”, que Cony, aliás, não menciona- reafirmados na conferência da ABL é a re- ra antes, é fácil concluir que não são pri- cusa (enfática, aliás) de José de Alencar, vativos do romance “carioca”. Na verdade, e Aluí­sio Aze- esses atributos cabem melhor no caso da vedo no cânone, por conta da falta de hu- crônica, modalidade por excelência recep- mor em seus romances. tiva à leveza discursiva, tal qual praticada Ainda no que diz respeito a Marques Re- por autores cariocas ou que aqui viveram belo, para Fausto Cunha, em artigo intitula- 10 CUNHA, Fausto. “Nascimento, apogeu e fim do ro- do “Nascimento, apogeu e fim do roman- mance urbano carioca”. In: Jornal do Brasil, Caderno ce urbano carioca”, publicado em 1973 no Ideias, 22 de setembro de 1973, p. 5. Em torno do romance carioca • 67 como, exemplarmente, (1913- que é, afetando crer que efetivamente assim 1990), (1924-2004), José deveriam ser as coisas”,12 como em incontá- Carlos Oliveira (1934-1986), entre outros. veis exemplos fáceis de ser encontrados na No que diz respeito a Lima Barreto, visce- obra machadiana. Em Manuel Antônio de ralmente crítico, sanguíneo, sem meios-ter- Almeida, apesar do retrato “realista” da vida mos, o que menos se pode encontrar em na cidade “no tempo do rei”, isto é, no iní- seus romances é “ironia controlada”. Veja- cio do século XIX, temos uma certa bonomia -se, por exemplo, o retrato de Floriano Pei- com relação às personagens, mesmo aque- xoto (1839-1895), o “Marechal de Ferro” las que poderiam ser consideradas negativas, do registro oficial, em Triste fim de Policar- como o temido Major Vidigal, que se aman- po Quaresma (1911), pelos olhos decepcio- teigava no trato com Maria Regalada, antiga nados do protagonista: amante dele, quando esta se engaja na de- Era vulgar e desoladora. O bigode caído; o fesa de Leonardo, preso pelo major. O major, lábio inferior pendente e mole a que se agar- aliás, no fim das contas, não só não prende rava uma grande “mosca”; os traços flácidos e mais Leonardo como o transforma no “sar- grosseiros; não havia nem o desenho do quei- xo ou olhar que fosse próprio, que revelasse gento de milícias” do título do romance. algum dote superior. Era um olhar mortiço, re- E em Marques Rebelo, que Cony aceita com dondo, pobre de expressões, a não ser de tris- reticências no cânone do romance carioca teza que não lhe era individual, mas nativa, de (“até certo ponto, merece ser enquadrado” raça; e todo ele era gelatinoso – parecia não na categoria de romancista carioca), essa iro- ter nervos.11 nia “controlada” pode ser observada já no A descrição acima, se bem que, em prin- primeiro parágrafo de A estrela sobe, quan- cípio, seja feita do ponto de vista da perso- do o narrador comenta a morte da que se- nagem (“Quaresma pôde então ver melhor ria a irmã mais velha de Leniza, com apenas a fisionomia do homem”), desnuda o par- quatro meses de vida: a gastroenterite que tidarismo do narrador, contrapondo a ima- a vitimou “zombou tanto da homeopatia e gem ígnea da consagração oficial à metá- alopatia dos médicos como do empirismo fora redutora: “todo ele era gelatinoso”. E solícito dos vizinhos”. nem de longe cabe fala de “ironia controla- Pelo acima exposto, temos que convir da” nesse ataque frontal. em que o único critério válido para classi- Em Machado de Assis, sim, podemos fa- ficar um romance como “carioca” é ser ele lar de “humor”, sobretudo, e de “ironia con- a representação ficcional da vida em so- trolada”, se bem que é necessário distinguir ciedade no Rio de Janeiro de um determi- uma coisa da outra, e aqui recorremos à de- nado momento histórico, contemporâneo finição de humor e ironia feita por Henri Ber- ou não do autor, com toda a sua reconhe- gson (1859-1941) em O riso: a ironia é o cível tipicidade. Que em muitos desses ro- enunciado daquilo que “deveria ser, fingin- mances o “retrato” venha envolvido em do crer que assim é em realidade”, enquanto “humor e ironia controlada” é pouco para o humor seria “uma descrição minuciosa do 12 BERGSON, Henri. La risa. Traduzido para o espanhol 11 BARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. por Amália Haydeé Raggio. Buenos Aires: Editorial Lo- São Paulo: Ática, 1983, p. 114. sada, 1943, p. 96. 68 • Alcmeno Bastos singularizá-los em sua carioquice, porque Referências bibliográficas o Rio de Janeiro não é apenas a solarida- ALENCAR, José de. Senhora. Rio de Janeiro: José Aguilar, de jovial dominante em A moreninha, mas 1959. Volume I da Obra completa. ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memórias de um sargento guarda dimensões do viver nem sempre de milícias. Edição preparada por Terezinha Martinho. amenas, nem sempre viciadas e promíscuas Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro – MEC, 1969. AZEVEDO, Aluísio; O cortiço. Rio de Janeiro: Nova Agui- (O cortiço), nem sempre amargas e sau- lar, 2005, p. 452. Volume II de Aluísio Azevedo: ficção dosas (O Ateneu), nem sempre cruas e até completa em dois volumes. BARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. São Pau- violentas (na obra de Rubem Fonseca, por lo: Ática, 1983. exemplo), nem sempre clamorosamente in- BERGSON, Henri. La risa. Traduzido para o espanhol por Amália Haydeé Raggio. Buenos Aires: Editorial Losa- justas e preconceituosas (Clara dos Anjos, da, 1943. de Lima Barreto), mas um composto de to- CONY, Carlos Heitor. “O romance carioca 1”. In: Jornal do Brasil. Suplemento Dominical, sábado 1, e domingo 2 das essas circunstâncias. E se o romance ca- de agosto de 1959. rioca pode ser assim tão diverso, também _____. “O romance carioca”. In: Folha de São Paulo, 18 de março de 2011, disponível em https://www1.folha. os romancistas cariocas o serão, e bastaria uol.com.br, acesso em 30/10/2020. olhar de perto a obra dos três “fundadores” CUNHA, Fausto. “Nascimento, apogeu e fim do romance urbano carioca”. In: Jornal do Brasil, Caderno Ideias, da linhagem – Manuel Antônio de Almei- 22 de setembro de 1973, p. 5. da, Machado de Assis e Lima Barreto – para FONSECA, Rubem. “A arte de andar nas ruas do Rio de Ja- neiro”. In: –. Romance negro e outras histórias. São concluir que a invariante é o olhar crítico e Paulo: Companhia das Letras, 1992. compreensivo lançado sobre a realidade so- MACEDO, Joaquim Manuel de. A moreninha. 5. ed. São cial da cidade do Rio de Janeiro, em sua ti- Paulo: Melhoramentos, s/d. REBELO, Marques. Marafa. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1947. picidade “carioca”. _____. A estrela sobe. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, s/d. Os professores do Colégio Pedro II e a institucionalização acadêmica da Literatura brasileira * Roberto Acízelo de Souza Doutor em Teoria da Literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, com estudos de pós-doutorado em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo. Professor titular de Literatura Brasileira da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e ex-professor de Teoria da Literatura da Universidade Federal Fluminense.

Imperial Colégio de Pedro II foi fun- ano. Como não havia cursos superiores de dado a 2 de dezembro de 1837, letras no Brasil, seu currículo correspondia O dia do aniversário de doze anos de à cúpula dos estudos linguísticos e literá- seu patrono – o príncipe Pedro de Alcân- rios entre nós, e assim o colégio fazia as tara –, começando efetivamente a funcio- vezes de uma faculdade de letras, outor- nar no ano letivo subsequente. Concebido gando a seus egressos o título de bacharel com o objetivo de servir como modelo para em letras. um sistema próprio de educação nacional, Os programas escolares do estabeleci- a ser progressivamente implantado no país mento, a partir de 1850, passaram a ser pu- no período pós-independência, em subs- blicados em plaquetes, a maioria das quais tituição ao que vigorara na época colonial conservadas nos seus arquivos. No que diz – monopolizado por ordens religiosas ou, respeito às matérias literárias, observa-se, a partir da reforma pombalina da educa- nas sucessivas reformas curriculares, um ção em Portugal e seus domínios, baseado retraimento progressivo das antigas disci- nas chamadas aulas régias –,1 ministrava plinas clássicas e de proposição universa- formação acadêmica de nível secundário, lista – retórica e poética –, que vão sendo numa seriação que ia do primeiro ao sétimo gradualmente substituídas por conteúdos 1 Licenças do estado a pessoas que, requerendo-a e programáticos centrados na cultura literá- submetendo-se a seleção pelas autoridades compe- ria especificamente brasileira. Assim, se na tentes, obtinham concessão especial para lecionar de- terminada disciplina, em geral em suas próprias casas, década de 1850 só constam do currículo as como atividade secundária e mediante remuneração disciplinas retórica e poética, em cujos pro- simbólica ou pouco mais que isso. No Brasil, a primei- ra aula régia, para a qual foi nomeado o advogado e gramas quase nada há de literatura brasi- poeta Manuel Inácio da Silva Alvarenga (1749-1814), leira, no ano de 1860 cria-se uma disciplina instalou-se no Rio de Janeiro em 1782, e se destinava ao ensino de retórica e poética. Na mesma cidade, no dita literatura nacional. Desde então, o es- início do século XIX, funcionaram, na área das letras, paço curricular reservado às letras do Brasil pelo menos outras três aulas régias, dedicadas respecti- só faz expandir-se, a ponto de, a partir de vamente a gramática latina, língua grega e retórica. (Cf. Duran, 2010, p. 63.) 1892, o ensino literário concentrar-se numa * Aproveitam-se neste ensaio passagens da caracterização biobibliográfica dos autores estudados constantes de trabalho nosso anterior: Historiografia da literatura brasileira: textos fundadores (1825-1888). Rio de Janeiro: Caetés, 2014. 2 v. 70 • Roberto Acízelo de Souza

única matéria – história da literatura nacio- cido, no dizer de seus contemporâneos, nal –, com a supressão de retórica e poética. como “chefe da escola romântica”, foi Ora, a caracterização de uma literatura nomeado em 1838 professor do colégio.2 nacional própria, distinta em primeiro lugar Na verdade, porém, quase não exerceu o da portuguesa, e cumulativamente de todas magistério na instituição, pois logo no ano as outras, constituía uma declaração de in- seguinte foi investido na função de secre- dependência cultural, reflexo e ao mesmo tário do então coronel Luís Alves de Lima e tempo reforço da independência política Silva (1803-1880) – o futuro Duque de Ca- recém-proclamada. O Colégio Pedro II, por xias – nas suas missões político-militares – sua vez também decorrência do empenho ditas “pacificadoras” pela história oficial –, de consolidar a nacionalidade – pretendia ser primeiro no Maranhão, na repressão à a independência educacional –, naturalmen- Balaiada, e depois no Rio Grande do Sul, na te forneceu um apoio imprescindível para a Guerra dos Farrapos. Terminado o conflito concretização desse projeto: acolheu-o nas no Sul, elegeu-se deputado geral pela pro- suas diretrizes pedagógicas, reconhecendo-o víncia gaúcha e, após o exercício do manda- como matéria de ensino, dando assim sta- to durante uma legislatura, foi requisitado tus institucional aos conceitos correlativos para o serviço diplomático, assumindo vá- de literatura brasileira e sua historiografia, rias e sucessivas missões no exterior. transformando-os desse modo em disciplina Sua passagem pelo Pedro II e sua atua- acadêmica: história da literatura brasileira, ção como professor acabou sendo, pois, ou, por abreviação, literatura brasileira. breve. Assim, no conjunto de sua obra vas- Influíram nesse processo diversos profes- ta e heterogênea – compreendendo, como sores do colégio, e não só com suas aulas se sabe, poesia, dramaturgia, prosa de fic- – mesmo porque nem todos eles lecionaram ção, filosofia e história –, a pequena parte matérias propriamente literárias –, mas tam- dedicada aos estudos literários nada tem a bém com publicações que figuram entre as ver com a prática docente. Aliás, suas con- pioneiras para o estabelecimento da historio- tribuições nesse campo são quase todas grafia da nossa literatura. Assim, o Pedro II se anteriores ao vínculo que manteve com o inscreveu nessa trajetória como instituição, e colégio, e nenhuma delas se destinava pro- também mediante intervenções pessoais de priamente à comunidade escolar, embora, vários integrantes de seu corpo docente. com exceção de um ensaio teórico datado Vejamos então o papel desses antigos de 1859 (“Influência da poesia na ordem mestres do colégio em cujo espólio literário, 2 Segundo a prosa confusa e errática de Escragnolle Dó- em alguma medida, encontram-se contri- ria (1869-1948), o memorialista do colégio, Magalhães buições inaugurais para a configuração do teria sido nomeado para ensinar desenho (cf. Dória, 1997 [1937], p. 32), o que é plausível, considerando campo disciplinar referido. que, antes de cursar medicina, ele iniciara um curso de belas-artes. No entanto, é certo que em algum momen- to sua disciplina passou a ser filosofia, conforme infor- mação da mesma fonte, que, de resto, registra que, 1 consultado pelo reitor, ele teria recusado a regência da cadeira de desenho, admitindo apenas que, além da Domingos José Gonçalves de Maga- sua matéria – filosofia –, poderia encarregar-se do ensi- lhães (1811-1882), quando já era reconhe- no de história. (Cf. ibid., p. 35.) Os professores do Colégio Pedro II • 71 social”), participem do empenho típico de 2 sua época no sentido de trabalhar pela consolidação da ideia de literatura brasi- Francisco de Paula Meneses (1811- leira. Desse modo, um desses textos tinha 1857) era médico, o que não impediu que por propósito divulgar a produção cultural o governo imperial o nomeasse, em 1844, brasileira na Europa – a sumária notícia de lente de retórica do município da corte (a seu projeto de escrever uma história literá- cidade do Rio de Janeiro) e, em 1848, ca- ria do Brasil, seguida de referência ao seu tedrático de retórica e poética do Colégio 5 livro de estreia (Poesias, de 1832), parte Pedro II. Seus escritos – estudos de medi- de sua lavra no “Resumo da história da cina, memórias históricas, alguns poemas – acham-se dispersos em periódicos ou literatura, das ciências e das artes no Bra- permaneceram inéditos, caso de uma tra- sil”, comunicação que assinou com Torres gédia e de uma comédia. Interessam para Homem e Araújo Porto Alegre, lida no Ins- os estudos literários sua tradução/adap- tituto Histórico de Paris no ano de 1834; tação de um manual didático de retórica, outros dois – o prólogo ao volume Suspi- ao que parece de autoria do publicista e ros poéticos e saudades (1836), intitulado político francês Jean-Théophile-Victor Le- “Lede”,3 e o manifesto romântico “Ensaio clerc6 (1771-1820), bem como duas peças sobre a história da literatura do Brasil” oratórias proferidas ex-officio7 em soleni- (1836)4 – dirigiram-se a leitores mais espe- dades acadêmicas: Discurso recitado na cificamente interessados em poesia e pro- augusta presença de sua majestade o im- blemas literários; e um terceiro – o ensaio perador Pedro II, por ocasião da distribuição “Literatura brasileira”, publicado em duas dos prêmios e colação do grau de bacharel partes no Jornal dos Debates Políticos e em letras, no Imperial Colégio de Pedro II Literários, no ano de 1837 – visava ao pú- (1848); Discurso recitado na augusta pre- blico amplo e diversificado constituído por sença de suas majestades, por ocasião da leitores dos então populares periódicos de distribuição dos prêmios e colação do grau variedades. de bacharel em letras, no Imperial Colégio

3 Antonio Carlos Secchin, em pronunciamento duran- te recente evento acadêmico, chamou atenção para 5 No Brasil oitocentista, o magistério não era propria- um fato geralmente ignorado: a obra de Gonçalves mente uma profissão, sendo exercido por diplomados de Magalhães publicada em 1836 e tida como mar- em carreiras que pressupunham formação acadêmica co inaugural do romantismo brasileiro, referida por de nível superior, como padres, médicos, advogados e, nossas histórias literárias pelo título Suspiros poéticos menos comumente, engenheiros. e saudades, na verdade constitui um volume que re- 6 Na obra, que teve sua única edição em 1856, acha- úne duas obras autônomas – “Suspiros poéticos” e -se abreviada a indicação do autor: J. Vict. Le Clerc. O “Saudades” –, dado que não só correspondem elas a manual figura como livro adotado para a disciplina de partes específicas do volume, mas também se acham retórica no programa de ensino do colégio do ano de caracterizadas como tal pela tipologia usada na folha 1858, e como livro alternativo no de 1860, “na falta” de rosto da primeira edição. Pela organização da edi- – diz o documento – do compêndio adotado naquele ção por nós consultada – a quinta, de 1986 –, parece ano, Nova retórica brasileira, de Antônio Marciano da que o prólogo mencionado diz respeito a ambas essas Silva Pontes (1836-c. 1880). obras. 7 Segundo regulamentos do Pedro II, o orador nas ce- 4 Republicado em 1865, em versão um tanto alterada e rimônias de formatura deveria ser o catedrático de re- com o título mudado para “Discurso sobre a história da tórica e poética. (Cf. Dória, 1997 [1937], p. 55; Silva, literatura do Brasil”. 2002 [1859], p. 61.) 72 • Roberto Acízelo de Souza de Pedro II (1853). Não obstante o caráter Machado, 2001, p. 90), mas, lamenta o protocolar e cerimonial dessas falas, no pri- mesmo Norberto (ibid.), o texto não chegou meiro desses discursos Paula Meneses dis- a ser publicado, tendo-se perdido, pois, na serta sobre a importância das letras na vida efemeridade de sua apresentação oral. de uma nação, enquanto no segundo faz o elogio do que chama “método histórico”, cuja adoção, em detrimento do “método 3 dogmático”, ele recomenda para o ensino Justiniano José da Rocha (1812-1862), das literaturas modernas em geral e da nos- não obstante suas origens humildes e, sa em particular, o que lhe fornece ocasião numa sociedade escravocrata, sua condi- para considerações crítico-historiográficas ção de mestiço, formou-se em direito e teve sobre escritores brasileiros da época colo- uma vida de intensa atuação intelectual e nial, com relevo para Cláudio Manuel da política: exerceu a advocacia, militou no Costa, Basílio da Gama e Santa Rita Durão. jornalismo, foi deputado, professor, ficcio- Além desses trabalhos, há notícias de nista, tradutor. No Colégio Pedro II, foi do- que escreveu uns “Quadros da literatura cente de história e geografia, desde quando brasileira”, obra que, no entanto, parece ter a instituição começou efetivamente a fun- ficado incompleta e inédita, a proceder in- cionar, no ano de 1838. formação de Sacramento Blake (1895, v. 3, Sua obra consta de livros didáticos de p. 78) a seu respeito: “Sei que é um traba- geografia e história, mas também, embora lho importante e o autor concluía a última sem conexão com sua atividade no magisté- parte quando faleceu.” Incompleta, inédita rio, inclui um dos textos pioneiros na traje- e – acrescentamos – perdida, ao que tudo tória que levou à constituição de uma histo- indica, pelo resultado negativo das pesqui- riografia da literatura do Brasil. Trata-se de sas que fizemos nos locais onde mais prova- “Ensaio crítico sobre a coleção de poesias velmente poderia ser encontrada.8 do Sr. D.J.G. de Magalhães”, publicado em E consta ainda, conforme Joaquim Nor- 1833, no qual, além de considerações críti- berto (Silva, 2002 [1859], p. 61-62), que cas sobre o livro de estreia de Gonçalves de Paula Meneses tenha desenvolvido, na Magalhães (Poesias, 1832), então recém- condição de membro do Instituto Históri- -lançado, esboça um panorama da poesia co e Geográfico Brasileiro, segundo praxe brasileira a partir da segunda metade do sé- da época naquela instituição, um tema de culo XVIII, ao mesmo tempo que propõe um pesquisa proposto por D. Pedro II: “O es- programa para seu desenvolvimento, com tudo e a imitação dos poetas românticos vistas à apuração crescente do que chama promove ou impede o desenvolvimento da “princípio nacional”. poesia nacional?”. A glosa desse mote im- perial teria sido lida em sucessivas sessões do Instituto Histórico do ano de 1850 (cf. 4 Antônio Francisco Dutra e Melo (1823- 8 Biblioteca Nacional (Setor de Manuscritos), Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Arquivo Nacional, Nú- 1846), também de origem humilde, foi ad- cleo de Documentação e Memória do Colégio Pedro II. mitido como professor de inglês no Colégio Os professores do Colégio Pedro II • 73

Pedro II quando contava apenas dezessete publicados em jornais do Rio de Janeiro nos anos, em 1840, portanto. Sua produção anos de 1848 e 1849, aos quais se podem poética, salvo umas poucas inserções em acrescentar os prólogos que escreveu respec- antologias, permanece inédita em livro, tivamente para seu livro de estreia (Primeiros achando-se dispersa em periódicos do seu cantos) e para o drama Leonor de Mendonça tempo, particularmente na revista Minerva (1847). Um documento circunstancial – uma Brasiliense. É autor de um livro didático da carta a seu amigo Pedro Nunes Leal (1823- matéria que lecionava, e consta que tam- 1901), datada de 1857 –, contudo, no qual bém deixou inéditas algumas páginas em ele trata do problema da língua literária que prosa. Como crítico, apesar de mínima sua deveria ser adotada por nossos escritores, contribuição nesse campo – dois ensaios, acabou configurando sua contribuição aos um dos quais perdido –, teve seus méritos debates então candentes sobre a constituição exaltados por Sílvio Romero (1954 [1888], de uma literatura genuinamente brasileira. p. 946-947). Desses textos, aquele que nos chegou – o estudo analítico “A moreninha, 6 por Joaquim Manuel de Macedo”, datado de 1844 – constitui seu vínculo com a nas- Santiago Nunes Ribeiro (c. 1820- cente historiografia literária brasileira, pois 1847), de biografia obscura, teria nascido nele o autor, depois de rapidamente ca- no Chile e, órfão, teria sido trazido para o racterizar o romance como gênero literário Brasil ainda menino por um tio sacerdote, novo e promissor, destacando alguns dos foragido por questões políticas com as quais seus cultores europeus, saúda o livro de Ma- se envolvera no seu país. O certo é que, ape- cedo, publicado naquele mesmo ano, como sar de um início de vida que deve ter sido de representante inaugural daquela espécie de muito sacrifício (seu tio morreu logo depois prosa narrativa em terras brasileiras. de chegar ao Brasil), e sobre o qual pouco se sabe, em 1843 já o encontramos professor no prestigioso Colégio Pedro II. Pois nesse 5 ano, por sua condição de catedrático de re- 9 Antônio Gonçalves Dias (1823-1864) tórica – o primeiro da instituição, aliás –, tornou-se professor de latim e história no 9 Segundo Escragnolle Dória (cf. 1997 [1937], p. 32), no Pedro II em 1849, nomeado certamente entanto, o primeiro professor da disciplina no colégio, pelo prestígio intelectual que adquirira prin- integrante do grupo de mestres que, no início do ano letivo de 1838, assumiu a primeira turma de alunos ad- cipalmente com a publicação dos seus Pri- mitidos no estabelecimento, teria sido Joaquim Caetano meiros cantos (1846). No entanto, levando da Silva (1810-1873), o qual, segundo a mesma fonte, uma vida de viagens e comissões de estudo, foi “[...] interinamente encarregado de lecionar Gramáti- ca Portuguesa e Grego” (cf. ibid.). Parece, contudo, que pela Europa e pelo norte do Brasil, seus da- essa interinidade se estendia também à outra matéria dos biográficos revelam que terá sido bre- ensinada por ele nesses primeiros tempos do Pedro II – retórica –, pois seu magistério deve posteriormente ter-se ve o período durante o qual efetivamente limitado ao grego, dado que, em outro ponto de seu exerceu o magistério. livro (p. 73), Dória o dá como docente exclusivamente desta disciplina. Além disso, nomeado reitor já em 1839 Sua produção como crítico é mínima e – o segundo a ocupar o cargo, que exerceria até 1851 sem maior importância: uns poucos artigos –, dificilmente poderia ter acumulado, além da função 74 • Roberto Acízelo de Souza vemo-lo proferindo o discurso de abertura ou “intimidade”, reflexão de resto coinci- da cerimônia de colação de grau da primei- dente com a ideia machadiana exposta no ra turma formada no estabelecimento, na ensaio “Notícia da atual literatura brasileira: presença de sua majestade, o imperador D. instinto de nacionalidade”, formulada, po- Pedro II, em praxe que se estabeleceria des- rém, apenas em 1873 (cf. Coutinho: 1968 de então (cf. Dória, 1997 [1937], p. 55). Jo- [1956], p. 307; 1968, p. 43 e 187; 1980, p. vem Brasil aquele, por sinal: o estado nacio- 42), e – acrescentamos nós – num contexto nal contava vinte e um anos; o catedrático já pós-romântico e por assim dizer também orador, pouco mais de vinte; e o imperador, pós-nacionalista. E Cândido, lamentando-lhe dezoito.10 a morte prematura, “[...] quando apenas De sua obra crítica destaca-se um longo começava a escrever e a ordenar as ideias” ensaio diretamente ocupado com a questão (1971 [1959], p. 337), chega a afirmar que que aqui nos interessa – “Da nacionalida- Nunes Ribeiro “[...] morreu cedo demais para de da literatura brasileira” –, publicado em confirmar o que sugerem seus poucos escri- duas partes em dois números sucessivos da tos, isto é, que seria talvez o melhor crítico revista Minerva Brasiliense, no fim do ano de sua geração” (ibid., p. 334).11 de 1843. Sem importância como poeta, o valor de sua produção como crítico, apesar da pouca extensão, é destacado tanto por 7 Afrânio Coutinho como por Antônio Cândi- Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro do. Coutinho assinala que poucos compre- (1825-1876) era padre e doutor em teolo- enderam tão bem quanto ele a questão do gia. Foi admitido como catedrático de retó- caráter nacional da literatura brasileira, que rica e poética no Colégio Pedro II no ano de seria verificável não como mera evidência 1857, sucedendo na cadeira a Paula Mene- exterior – a representação da paisagem, por ses, por sua vez sucessor de Nunes Ribeiro. exemplo –, mas, segundo as próprias expres- Autor de obra múltipla – poesia, livros didá- sões do autor, como certo “sentido oculto” ticos e religiosos, memórias históricas, uma antologia de poesia, estudos literários –, administrativa, o magistério de duas disciplinas. Se pro- cede a hipótese, Nunes Ribeiro é que teria sido mesmo o primeiro professor efetivo de retórica no colégio. 11 Um ex-aluno de Nunes Ribeiro – e de Gonçalves de 10 Quanto à idade que então teria Nunes Ribeiro, juntan- Magalhães –, bacharel da turma formada pelo colégio do algumas pontas talvez seja possível deduzir. Vejamos: em 1847, também inscreveria seu nome entre os pionei- ele foi o primeiro professor de retórica do colégio, e, por- ros da historiografia literária nacional: Manuel Antônio tanto, é plausível que tenha sido admitido nos primeiros Álvares de Azevedo (1831-1852), com o seu exten- anos de funcionamento efetivo da instituição, isto é, so ensaio “Literatura e civilização em Portugal”, escrito 1838 ou 1839. Como vimos, a admissão de professores provavelmente no início de 1850 e publicado postuma- muito jovens não devia ser tão excepcional, haja vista mente em 1855. Como os bons professores costumam o antes citado caso de Dutra e Melo, professor da casa gostar dos discípulos que deles discordam, Álvares de aos dezessete anos. Ora, Nunes Ribeiro, morto em 1847 Azevedo deve ter sido aluno dileto de seu mestre Nunes – “na quadra dos vinte anos”, no dizer de Antônio Cân- Ribeiro, pois dele divergiu quanto à tese segundo a qual dido (1971 [1959], p. 337) –, se tivesse, digamos, vinte duas literaturas nacionais distintas podem compartilhar e sete anos – para lidarmos com um número redondo a mesma língua – caso das literaturas portuguesa e bra- – quando de seu falecimento, teria nascido em 1820, e, sileira –, afirmando, ao contrário, a impossibilidade de assim, teria dezoito ou dezenove anos quando se tornou distinguir-se entre as letras do Brasil e as de Portugal, professor no Pedro II, e vinte e três quando discursou convicto de que “[...] sem língua à parte não há literatura naquela primeira formatura de alunos. à parte” (Azevedo, in Souza, v. 1, p. 386). Os professores do Colégio Pedro II • 75 há muito só é lembrado como um dos pio- mas não sabemos se, além desse cargo ad- neiros da historiografia literária nacional. ministrativo, terá efetivamente exercido o Nesse setor de sua produção, destacam- magistério na instituição. Sua obra inclui es- -se os livros que escreveu diretamente em tudos de medicina, história, biografias, tra- função de seu magistério: Curso elementar duções e ensaios. No seu livro Lucubrações de literatura nacional (1862), Postilas de re- (1870), que contém estudos sobre ciências tórica e poética (1872), Resumo de história e letras distribuídos em duas partes respec- literária (1873).12 O primeiro desses livros, tivamente assim intituladas, reuniu, na se- aliás, de certa forma pode ser considerado, ção relativa às letras, os artigos que escre- salvo pela circunstância de ocupar-se tam- veu criticando a língua de José de Alencar, bém com a história da literatura portuguesa nela figurando ainda o ensaio “A literatura (apesar do adjetivo nacional constante no brasileira contemporânea”, trabalho que o título), a primeira apresentação historiográ- inscreve no grupo de docentes do Pedro II fica sistemática da literatura brasileira.13 de que estamos tratando, pois nele o au- tor empreende uma síntese historiográfica 8 da literatura brasileira – que, aliás, acaba incorporando as realizações nos campos da Antônio Henriques Leal (1828-1885) ciência, da música e das artes plásticas –, era médico e militou na política, elegendo- visando a ressaltar o seu caráter nacional e -se vereador e deputado. Foi diretor do a demonstrar a tese de sua diferenciação re- internato do Imperial Colégio de Pedro II, lativamente à literatura portuguesa.

12 O vínculo dessas obras com a vida escolar do Pedro II acha-se bem documentado, nos programas de ensino que se conservaram, hoje parte do acervo do seu Núcleo 9 de Documentação e Memória (NUDOM): o Curso foi livro adotado nos anos letivos de 1862, 1863 e 1870; o Resu- Francisco Inácio Marcondes Homem de mo, nos anos de 1892 e 1898; e as Postilas, embora, na Melo (1837-1918), bacharel em direito e documentação disponível, não conste como livro adota- do, têm como subtítulo de suas três edições (1872, 1877 político (foi presidente das províncias de São e 1885): “ditadas aos alunos do Imperial Colégio de Pedro Paulo, Ceará, Rio Grande do Sul e Bahia), II, pelo respectivo professor, cônego dr. J.C. Fernandes Pi- nheiro”. Se esse “ditadas aos alunos [...] pelo [...] profes- destacou-se como historiador e geógrafo, sor” deve interpretar-se literalmente, podemos imaginar a tendo exercido o magistério de história no monotonia das aulas de então. No entanto, conforme um Pedro II. Sua contribuição para o nascente memorialista do Pedro II (Dória, 1997 [1937], p. 93), esse mestre que talvez ditava as suas aulas, não deixava de ser conceito de literatura brasileira e sua histo- estimado pelos estudantes: “Nas colações de grau, como riografia, que na verdade constitui um desvio de estilo, discursava o professor de retórica, lendo peças cheias de considerações históricas ou literárias de conse- em relação aos temas sobre os quais escre- lhos e advertências aos bacharelandos. Em 1858 orou o veu, restringe-se ao pequeno ensaio “As le- lente de retórica, cônego Fernandes Pinheiro, desfavoreci- do de voz, mas muito querido de alunos.” tras no Brasil”, publicado em 1860, na Revis- 13 Podem disputar-lhe a precedência, contudo, a in- ta Popular, periódico que se constituiu num completa História da literatura brasileira de Joaquim Norberto (1820-1891), cujas partes que chegaram a ser dos principais órgãos divulgadores das ideias escritas foram publicadas na Revista Popular de 1859 românticas entre nós. Peça de feitio flagran- a 1862, e O Le Brésil littéraire: histoire de la littérature temente retórico, o texto revela claramente a brésiliene, de Ferdinand Wolf (1796-1866), datado de 1863 e dedicado exclusivamente à literatura brasileira. vocação de seu autor para a oratória política. 76 • Roberto Acízelo de Souza

10 apreço, que começa pela Antiguidade, pas- sa pelas principais literaturas modernas e Manuel da Costa Honorato (1838- se encerra com a brasileira. O Compêndio, 1891), também bacharel em direito, bem desse modo, documenta claramente o con- como padre, foi admitido no Colégio Pedro traponto, tão marcante no Oitocentos, en- II como professor substituto da cadeira de tre o universalismo da retórica-poética e o retórica, poética e literatura nacional no nacionalismo da história literária: baseia sua ano de 1879, muito provavelmente na vaga organização nos conceitos retórico-poéticos de Fernandes Pinheiro, que falecera em de gêneros, mas faz concessões ao histori- 1876. Publicou várias obras, sobre temas cismo, ao narrar a evolução de cada gênero de religião, direito, história, geografia, na no quadro das diversas literaturas nacionais verdade irrelevantes mesmo na sua época, (sem excluir as “literaturas” bíblica e anti- além de um livro de leitura para o ensino gas), embora, no caso da obra em questão, primário e uma súmula didática de gramáti- as assim chamadas “noções de desenvolvi- ca do inglês. Na área dos estudos literários, mento histórico” não passem de simplórias além da modestíssima tese que apresentara listas de autores, provavelmente para deses- no concurso para o magistério – O poema pero de alunos obrigados a decorá-las. épico: “Colombo” e “Os Timbiras”; poesias líricas: Bernardo Guimarães e Fagundes Va- rela –, escreveu um manual escolar de sua 11 disciplina, que teve sucessivas edições, al- Benjamin Franklin Ramiz Galvão (1846- teradas no conteúdo e no título, até uma 1938) foi médico e professor catedrático versão que se pode considerar a mais com- de medicina. Seu vínculo com o Pedro II é pleta e definitiva: Sinopse de poética nacio- duplo: aluno do colégio, posteriormente, nal (1859); Sinopse de eloquência e poética em 1869, se tornou seu professor, primei- nacional (1861); Sinopses de eloquência e ro de grego, e depois de retórica, poética poética nacional acompanhadas de algu- e literatura nacional. Publicou trabalhos de mas noções de crítica extraídas de vários medicina e ciência, filologia, tradução, his- autores e adaptadas ao ensino da mocidade tória literária, além de relatórios e catálogos brasileira (1870); Compêndio de retórica e bibliográficos elaborados durante o período poética (1879). em que ocupou o cargo de bibliotecário (di- Na edição de 1879, certamente não retor) da Biblioteca Nacional. por acaso publicada justo no ano do início Sua contribuição no campo da nossa de seu magistério no Pedro II, a matéria nascente historiografia literária, contra- se apresenta organizada de acordo com riando concepção largamente acatada na os programas de ensino então vigentes época, desenvolve o argumento de que a na instituição. Assim, conforme esquemas literatura produzida no Brasil só se torna historicistas colegiais típicos do século XIX, brasileira após a independência, mais pre- em cada “ponto” (designação de extração cisamente a partir da então chamada “re- escolar para os capítulos da obra) se apre- forma do Sr. Magalhães”, de 1836; antes, senta um sumário histórico do gênero em portanto, durante todo o período colonial, Os professores do Colégio Pedro II • 77 e até alguns anos após a independência, a XIX,16 como também se tornou o protótipo produção letrada do Brasil se inscrevia na – se não o único, certamente o principal – literatura de Portugal.14 Esse ponto de vista dos vários projetos de história literária brasi- é defendido no estudo intitulado “Litera- leira realizados no século XX.17 tura”, publicado na Revista Mensal da So- ciedade Ensaios Literários, no ano de 1863, quando o autor, por conseguinte, contava 13 dezessete anos, provavelmente ainda alu- João Capistrano de Abreu (1853-1927) no do Pedro II, ou então bacharel recém- dedicou-se inicialmente aos estudos literá- -formado na instituição em que mais tarde rios, mas, a partir de meados da década de seria professor. 1870, reorienta seus interesses intelectuais para o campo da história. Assim, no início dos anos 1880, é aprovado em concurso 12 para o cargo de professor catedrático de Sílvio Vasconcelos da Silveira Ramos corografia (geografia) e história do Colégio Romero (1851-1914) entra para o qua- Pedro II. É autor do extenso ensaio “A li- dro de professores do Colégio Pedro II em teratura brasileira contemporânea” (1870), 1880, como docente de filosofia. De suas no qual, com preocupações teóricas e me- numerosas publicações, que se espraiam todológicas ainda pouco comuns em sua por diversas áreas – filosofia, política, direi- época, e que ele utiliza para o estudo do to, história, etnografia, folclore, literatura, caso brasileiro, retoma a ideia romântica de sem falar de suas tentativas malsucedidas natureza, interpretando-a, porém, como no domínio da poesia –, cabe destacar aqui meio físico-geográfico capaz de determinar a História da literatura brasileira. Datada de 1888, trata-se de obra que, beneficiária de 16 Além da edição de 1888, a obra teve quatro edições uma longa série de trabalhos pioneiros, que no século XX e uma no XXI, datadas respectivamente de 1902-1903, 1943, 1949, 1954 e 2001. vinham sendo produzidos desde a década 17 A obra, por suas dimensões, bem como por seu ca- da independência,15 como que realiza o ráter digressivo e sua inclinação para a defesa partidá- ria de teses polêmicas, não foi concebida para servir projeto de definir plenamente os concei- de livro-texto escolar. No entanto, a partir de 1892 é tos correlativos de literatura brasileira e sua adotada no Pedro II, substituindo o livro de apoio ao ensino de literatura brasileira que vinha sendo adotado sistematização historiográfica. Sua História, desde 1879: Le Brésil littéraire: histoire de la littératu- por mais datada que seja, constitui a única re brésiliene (1863), do historiador austríaco Ferdinand do gênero que não só sobreviveu ao século Wolf (1796-1866). Assinale-se que a adoção do livro de Wolf – escrito em alemão por um austríaco, traduzido para o francês e publicado em Berlim, e, não obstante 14 Fernandes Pinheiro, no antes referido Curso elemen- tudo isso, usado por mais de uma década como manual tar de literatura nacional, sustenta essa mesma opinião. escolar no principal colégio do país – é sinal claro da es- 15 Pode-se considerar como ponto de partida do pro- cassez de materiais de apoio para o ensino sistemático cesso aqui referido uma carta de José Bonifácio (1763- de literatura brasileira disponíveis no século XIX. (Em 1838) datada de 1825, na qual, salvo novas descober- complemento à nota: Le Brésil littéraire só viria a ser tas, emprega-se pela primeira vez a expressão “história traduzido para o português em edição de 1955, não literária do Brasil” (cf. Souza, 2014, v. 1, p. 19), ou en- mais, naturalmente, por interessar como obra didática, tão o início da publicação da antologia Parnaso brasilei- mas por sua condição de contribuição pioneira para a ro, organizada por Januário da Cunha Barbosa (1780- historiografia da literatura brasileira devida a um autor 1846), que saiu em fascículos de 1829 a 1832. estrangeiro.) 78 • Roberto Acízelo de Souza a fisionomia de uma sociedade nacional e, que, como se sabe, se expressaram algumas pois, do caráter particular da literatura que vezes de modo tão áspero que entraram constitui sua expressão. para o folclore da vida literária nacional no Oitocentos.

14 Referências José Veríssimo Dias de Matos (1857- BLAKE, Augusto Victorino Alves Sacramento. Dicionário bibliográfico brasileiro. Rio de Janeiro: Imprensa Nacio- 1916), como Ramiz Galvão, antes de ser nal, 1883-1902. 7 v. professor de história e português do Pedro CÂNDIDO, Antônio. Formação da literatura brasileira: mo- mentos decisivos (1836-1880). 4. ed. São Paulo: Mar- II, foi aluno do colégio, e depois seu reitor. tins, 1971 [1959]. V. 2. Como aluno, frequentou a instituição na COUTINHO, Afrânio (Dir.). A literatura no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Sul Americana, 1969 [1956]. V. 2. década de 1870, retornando na condição ______. A tradição afortunada: o espírito de nacionalida- de na crítica brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio, de docente no início dos anos 1890. Autor 1968. de obra vasta, constante de alguma ficção ______(Org.). Caminhos do pensamento crítico. Rio de Ja- neiro: Pallas; Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1980. e sobretudo de trabalhos nas áreas de et- V. 1. nografia, educação, filosofia e literatura, DORIA, Escragnolle. Memória histórica do Colégio de Pedro II: 1837-1937. [2. ed.]. Brasília: Instituto Nacional de firmou sua reputação principalmente no Estudos e Pesquisas Pedagógicas, 1997. [1937]. DURAN, Maria Renata da Cruz. Ecos do púlpito: oratória âmbito dos estudos literários. Sua História sagrada no tempo de D. João VI. São Paulo: Ed. Unesp, da literatura brasileira, publicada em 1916, 2010. MACHADO, Ubiratan. A vida literária no Brasil durante o constitui o ponto culminante de sua impor- romantismo. Rio de Janeiro: Eduerj, 2001. tante contribuição no processo de definição ROMERO, Sílvio. História da literatura brasileira. 5. ed. Or- ganizada e prefaciada por Nélson Ribeiro. Rio de Janei- da disciplina. Nesse livro, em que se afasta ro: José Olympio, 1954 [1888]. V. 3. do ponto de vista sociológico adotado por SILVA, Joaquim Norberto de Sousa. História da literatura brasileira: e outros ensaios. Organização, apresenta- Sílvio Romero em sua obra homônima de ção e notas de Roberto Acízelo de Souza. Rio de Janei- ro: Zé Mário Ed.; Fundação Biblioteca Nacional, 2002 1888, ao situar em perspectiva estética o [1843-1862]. estudo da cultura literária brasileira, pare- SOUZA, Roberto Acízelo de (Org.). Historiografia da litera- tura brasileira: textos fundadores (1825-1888). Rio de ce discretamente sintetizar as divergências Janeiro: Caetés, 2014. 2 v. que manteve por longos anos com aquele ______. O império da eloquência: retórica e poética no Brasil oitocentista. Rio de Janeiro: Eduerj; Niterói, RJ: seu colega e contemporâneo, divergências Eduff, 1999. José Américo de Almeida e o seu tributo a Alceu Amoroso Lima

Leandro Garcia Rodrigues Leandro Garcia Rodrigues é doutor e pós-doutor em Estudos Literários pela PUC-Rio. Professor de Teoria Literária da UFMG e pesquisador do Museu Imperial. É especialista na obra de Alceu Amoroso Lima.

arquivo de Alceu Amoroso Lima, da época.1 Também exploramos algumas atualmente salvaguardado no Cen- cartas já publicadas de Alceu com Mário O tro Alceu Amoroso Lima para a de Andrade, as quais falam e refletem a Liberdade (CAALL), é rico e diversificado obra de José Américo, tudo no sentido nas mais diversas tipologias documentais. de completar um pouco a dimensão que Com imenso destaque, tenho pesquisado nos foi impossível investigar pelas razões especialmente a sua imensa correspondên- expostas. cia com os mais diferentes missivistas e in- terlocutores. Deste imenso volume, quero I – O lançamento aqui refletir um pouco acerca da amizade O romance A bagaceira, publicado em entre Alceu e José Américo de Almeida, 1928, pela Imprensa Oficial da Paraíba, autor de uma importante obra, cujo des- é sempre lembrado como o marco inicial taque é sempre A bagaceira, publicado do nosso modernismo regionalista, espe- em 1928, que teve de Alceu não apenas cialmente na perspectiva nordestina deste a sua leitura de crítico literário, mas uma mesmo regionalismo, uma vez que tivemos entusiasta divulgação no meio cultural da várias experiências desta proposta estética época. que refletiram diferentes espaços geográfi- Infelizmente, por conta do atual estado cos do país. Na crônica “Raquel”, publicada da pandemia da Covid-19, foi impossível 1 Em razão de outras pesquisas já realizadas no arqui- acessar o arquivo de José Américo de Al- vo de Alceu, possuía algumas cartas de José Américo meida, a fim de buscar as cartas que ele já transcritas, bem como utilizei – e muito – o acervo digital do site www.alceuamorosolima.com.br, que dis- recebeu de Alceu. Assim, este ensaio foi ponibiliza sua correspondência passiva, uma preciosa escrito levando em consideração apenas a ajuda em tempos de pandemia, quando o nosso acesso aos arquivos físicos ficou totalmente impossibilitado. parcela que Alceu recebeu do escritor pa- Para acessar os artigos de Alceu publicados na imprensa raibano, bem como artigos do crítico so- da época, recorri ao mesmo site e também ao conteú- do da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, bem bre José Américo publicados na imprensa como coletâneas de textos críticos já publicados. 80 • Leandro Garcia Rodrigues em O Jornal, em 4/5/1958, Alceu Amoroso deste. Desde 1919, Alceu vinha exercendo Lima não apenas fez uma revisão acerca da um verdadeiro apostolado na crítica literá- obra de Raquel de Queirós, mas também re- ria brasileira, semanalmente, analisando e fletiu criticamente acerca de outros impor- divulgando escritores dos mais diferentes tantes escritores nordestinos, dentre eles rincões do Brasil. De norte a sul, autores José Américo de Almeida: jovens e/ou consagrados enviavam-lhe os O romancista paraibano, enfim – que iria seus lançamentos na esperança de ter uma tornar-se depois de 30 um dos homens públi- análise e, se possível, alguma menção nas cos mais representativos do Brasil moderno – vi- suas crônicas publicadas em diferentes jor- nha abrir para as nossas letras contemporâneas nais, mas especialmente em O Jornal. Havia um capítulo novo, reintroduzindo a literatura mesmo uma espécie de “fé” na práxis crí- das secas que já vinha do século XIX, mas com tica amorosiana, como se percebe na dedi- um novo vigor e restaurando entre o Norte e o Modernismo os laços que, em 1923, Gilberto catória que o poeta Raul de Leoni escreveu Freyre tinha evitado, quando opôs o tradiciona- na folha de rosto do seu Luz mediterrânea, lismo nordestino às exigências, em parte cos- enviado a Alceu em novembro de 1922: “a mopolitas, de Graça Aranha e dos modernistas Tristão de Athayde, / a quem entrego este de São Paulo e do Rio (Lima, 1969, p. 110). livro / com tranquila confiança / na lealda- de da sua nobre / crítica construtiva”.3 Esta A bem da verdade, em fevereiro de “tranquila confiança” de Leoni era igual- 1928, José Américo enviou a sua primei- mente sentida e compartilhada por outros ra carta a Alceu Amoroso Lima, junto dela autores, e alguns ressaltavam a “crítica ia também um exemplar de A bagaceira,2 construtiva” de Alceu, até mesmo quando com uma bela dedicatória – que também é este discordava e avaliava negativamente o uma carta – na qual se lê: exemplar analisado. É um ciclo literário que perdura e durará Avaliando este exemplar do livro, lido e enquanto persistir nos espíritos a repercus- são do fenômeno que o provoca. / Tristão de anotado por Alceu, deparamo-nos com di- Athayde, Affonso Arinos, p. 163. versas anotações que o crítico fez no senti- do de orientar o seu futuro artigo, no qual Tristão de Athayde: apresentaria ao público as suas impressões Se nem mesmo a epopeia admirável de Eu- d’A bagaceira. Felizmente, para nós pesqui- clides da Cunha pode ainda traduzir o “horror sadores, Alceu tinha o bom hábito de rabis- da realidade”, eu, bicho do mato, não alcan- çaria exprimi-lo. Mas senti-lo como ninguém. car os seus exemplares, sublinhar determina- No mais, invoco (em minha gíria forense) os das passagens, anotar às margens, registrar doutos suplementos de sua crítica de adivinhão. asteriscos nas laterais, sinais de exclamação José Américo de Almeida e/ou interrogação em diversos trechos, en- Paraíba do Norte, 1928. fim, não era uma leitura passiva – mas um verdadeiro debate (ou embate) com o que De fato, ele não foi o único a se aproxi- estava lendo e analisando. Transcrevo, a se- mar de Alceu por conta da atividade crítica guir, os registros feitos pelo crítico no verso 2 Transcrevo estes textos manuscritos – todos inéditos da folha de rosto deste volume: – diretamente deste mesmo exemplar, atualmente na biblioteca Tristão de Athayde, no CAALL. 3 Idem à situação da nota anterior. José Américo de Almeida e o seu tributo a Alceu Amoroso Lima • 81 p. 3 – muito bom porque a carregara nos braços”, escreven- p. 26 – autorreflexão do bem ao lado: “A linguagem é de uma p. 90 – descrição do sertanejo riqueza extraordinária de termos e de um p. 172 – 1.a decaída sabor local esplêndido.” Já na página 206, p. 182 – citar assinalou o trecho: p. 214 – perplexo De noite, rebolava-se na cama. Não se p. 227 – descrição admirável em três linhas lembrava dele, mas sentia que lhe faltava al- – citar guma coisa, como alguém que dormisse sem travesseiro, p. 245/246 – descrição admirável – citar p. 249 – citar antepassado da mãe preta e deu a sua opinião de crítico: “É admirável p. 251 – reflexões sutis nas expressões, sempre original e saboroso.” Particularmente, o último capítulo foi Ao longo de outras páginas do livro, fartamente sublinhado e demarcado por Alceu também registrou as suas marcas de Alceu – quer com asteriscos, quer com li- leitura, suas opiniões, como na introdução, nhas verticais às margens direita e esquerda página 3, na qual sublinhou a passagem – no sentido de ressaltar a importância da “Um romance brasileiro sem paisagem se- conclusão deste romance. Na última folha, ria como Eva expulsa do paraíso. O ponto à página 331, Alceu esboçou o começo do é suprimir os lugares comuns da nature- seu futuro texto crítico a ser publicado na za” e registrou ao lado: “Muito bom”. Na imprensa, onde lemos: página 11, sublinhou o trecho “A solidão Eu afirmo sem hesitar que este livrinho entretinha intimidades desiguais” e escre- de um desconhecido pode ser explorado com veu acima: “Este livro me está parecendo vantagem, ao lado, senão acima, dos maiores notável”; e no fim deste mesmo capítulo, romances brasileiros. Pois não é apenas um grande livro novo: é um grande livro humano. anotou: “capítulo admirável”. Continuo folheando este exemplar, quan- Em 11/3/1928, Alceu Amoroso Lima do encontro sublinhado, na página 30, o se- publicou, em O Jornal, o texto “Uma re- guinte fragmento “em sua dúplice organiza- velação”, no qual apresentava ao público ção moral, em sua sensibilidade contraditó- A bagaceira, de José Américo de Almeida.4 ria, ria-se e comovia-se”, o que levou Alceu Tratou-se de uma análise verdadeiramente a anotar: “Admirável, que coisa trágica!”. Já apaixonada feita pelo crítico, ocupando ¾ na página 58, o crítico sublinhou o fragmento da página daquele periódico, demonstran- O sertão é pra nós como homem malva- do a robustez do seu escrito, com diversas do pra mulher: quanto mais maltrata, mais se citações de passagens do romance. Destaco quer bem. [...] Porque saber sofrer, moço, isso é que é ter coragem alguns momentos desta análise, como esta: Pois esse livro é um romance da seca, e e fez a seguinte observação: “Esplêndido e embora a considerando apenas em suas re- terrivelmente verdadeiro”. percussões e não diretamente – talvez o Mais adiante, na página 105, Alceu res- 4 Alceu tinha o costume de, numa mesma crônica, apre- saltou a seguinte passagem: “E foi ver Sole- sentar dois ou três lançamentos literários, analisando ambos. Todavia, nesta ocasião, usou todo o seu artigo dade que estava queimada... com Pironga, para refletir apenas A bagaceira. 82 • Leandro Garcia Rodrigues grande romance do Nordeste pelo qual há pois certamente ele sentia neste romance o tanto tempo eu esperava. Senão completo, ao irromper de algo novo na nossa literatura; menos intenso. [...] Nem apenas um romance em suas palavras: “talvez o grande romance social; nem apenas um romance de instintos, do Nordeste pelo qual há tanto tempo eu embora exagerando um pouco esta face em prejuízo daquela. Ambas as coisas, ao mes- esperava”. Por isso, há de se ressaltar o cará- mo tempo, e ambas com tal originalidade, tal ter realmente fundador de José Américo de firmeza de traço, tal angústia de sentimentos Almeida – deslocando àquela região a pro- profundos, bárbaros, primitivos, e ao mesmo dução modernista ainda muito concentrada tempo tal requinte de psicologia em recolher no sudeste brasileiro, especialmente entre a cada passo gotas de verdade profunda, que os estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais acabei o livro sentindo que nascera realmente e São Paulo. Mais adiante, na conclusão do alguém para exprimir não apenas o horror do inexprimível daquela terra do Nordeste, mas seu artigo, assim Alceu afirmou: um pouco de todo o homem brasileiro de Não posso entrar em mais detalhes. Não hoje. E dizê-lo duramente, mas sem grosseria. quero privar o leitor do gosto de desvendar Asperamente, mas sem brutalidade. Dizê-lo a trama angustiosa, esse entrechocar de ins- com o coração ferido e ao mesmo tempo com tintos bárbaros e primitivos que o autor sabe a alma apaixonada e uma inteligência extra- fazer viver com tanta paixão e tanta sutileza. ordinariamente penetrante. [...] Há, portanto, [...] Só noto um defeito sério, além de certa nesse livro, a síntese em que eu vejo o que já parcialidade no realismo dos sentidos: a fal- pode haver de realmente nosso, de realmente ta de impressão de “tempo”. O livro se passa novo em nossa arte literária: a inteligência e entre 1898 e 1915, os dois períodos da seca. o instinto, a natureza bárbara da terra e dos E, no entanto, não se sente bem a passagem homens do interior da terra, e a natureza civi- do tempo. Talvez que a narrativa pedisse mais de um volume. Como teve de fazer Proust lizada, requintada do espírito que vai transfor- para colocar o leitor no tempo vivo. Eu afirmo mando essa terra, que se vai fundindo com ela sem hesitar: este livrinho de um desconhecido e transfigurando-a para uma unidade futura pode ser colocado, com vantagem, ao lado (Lima, 1930, pp. 138-140). dos maiores romances brasileiros. Pois não é Devemos levar em consideração o entu- apenas um grande livro nosso: é um grande livro humano (Idem, pp. 150-151). siasmo – até um tanto ufanista – de Alceu em sua análise: ainda não tínhamos, no nos- Percebam que Alceu termina o seu arti- so modernismo, o que a historiografia literá- go usando – embora com poucas modifica- ria batizou de Romance de 30, ou Regiona- ções – o pensamento que ele manuscreveu lismo Nordestino, ou então Regionalismo de no seu exemplar, e que transcrevi ante- 30 e quaisquer outros nomes e expressões riormente. Tal fato reafirma a importância para esta práxis literária. De fato, os “clás- da interdisciplinaridade ao tratarmos de sicos” da literatura nordestina de 30 viriam arquivo, biblioteca e produção intelectual algum tempo depois: O quinze (1930), de um determinado escritor – são saberes Menino de engenho (1932), Cacau (1933), cruzados, uma polifonia de textos, ideias e São Bernardo (1934) e Vidas secas (1938), linguagens que se entrecruzam no nosso dentre tantos outros títulos. Daí certamen- fazer investigativo. Não sem razão que Al- te se compreender o entusiasmo de Alceu fredo Bosi afirmou, na sua História concisa enquanto crítico e analista d’A bagaceira, da Literatura Brasileira: José Américo de Almeida e o seu tributo a Alceu Amoroso Lima • 83

De qualquer modo, A bagaceira, escrito mas seguido de um certo ceticismo (para o nos fins da década de 20, momento em que polígrafo paulista). Respondendo a Alceu o Modernismo começava a tomar no Nordes- Amoroso Lima, em carta de 22/4/1928, as- te uma coloração original, oferecia elementos sim afirmou Mário de Andrade: que iriam ficar no melhor romance da déca- E recebi a Bagaceira.5 Já conhecia. Acho da seguinte: um tratamento mais coerente de fato um livro muito bom, mas muito irre- da linguagem coloquial, traços impressionis- gular. O assunto geral sobretudo tem um ar tas na técnica da descrição e, no nível dos de coisa já sabida, já lida, que água bem o li- significados, uma atitude reivindicatória que vro. Mas esse paraibano é de força.6 Quanto a o clima de decadência da região propiciava. você falar que o livro não é regional, discordo. O romance, saudado pelo principal crítico da É regionalíssimo. O vocabulário nem é parai- época, Tristão de Athayde, vinha também ao bano sequer porque segundo me informaram encontro dos novos estudos sociais que, sob está cheio de localismos que requeriam mes- a inspiração de Gilberto Freyre, começaram 7 a assumir feição mais sistemática a partir do mo na Paraíba um glossário pro livro. O caso Congresso Regionalista do Recife, em 1926 também é regional: só possível de suceder no (Bosi, 1994, p. 395). extremo Nordeste. Até o sentimento do caso. Amores daqueles, contrastes de pais e filhos Realmente, Alceu Amoroso Lima se em- daqueles, eram possíveis só mesmo num Brasil polgou com A bagaceira, e não satisfeito de de dantes. Cheira: “mostraram-me um dia na tê-lo lançado nos meios literários da antiga 5 Pela afirmação de Mário, percebe-se que José Américo capital federal, tratou igualmente de divul- de Almeida remeteu seu romance a diversas personalida- des do meio literário do Rio e de São Paulo, tanto que há gá-lo alhures, enviando volumes a determi- dois exemplares na biblioteca do escritor paulista: um de- nados amigos de outros estados, no sentido dicado (provavelmente enviado por José Américo) e outro analisado e comentado por Mário, o seu “exemplar de mesmo de promover a obra de José Améri- trabalho”, como ele gostava de dizer, enviado por Alceu. co de Almeida – esta “novidade bárbara” No primeiro, temos a seguinte dedicatória: “A você Mário que vinha da Paraíba. Assim, dentre os seus de Andrade, criador / da beleza brasileira e crítico / adivi- nhão, com a condição de ler até / o fim atrás de alguma importantes correspondentes, Alceu enviou coisa de / seu apetite de Brasil. / José Américo de Almeida um exemplar a Mário de Andrade, em São / Paraíba do Norte / 1928.” Na mesma folha, logo abaixo, Mário assim escreveu, a lápis: “Redação d’A União / Di- Paulo, em 9/4/1928, ressaltando: reção José Américo de Almeida / Trincheiras / Paraíba do Meu caro Mário Norte” (IEB, Biblioteca, Fundo Mário de Andrade). Agradeço sua última carta. Junto, isto é, 6 Dois anos depois, em 16 de novembro de 1930, na pelo correio de hoje, mando a você o exem- sua coluna do Diário Nacional, Mário publicou a crônica “José Américo de Almeida”, na qual fez uma interes- plar de um romance do Norte que me parece sante análise da dimensão política do autor paraibano, conter coisas admiráveis. Foi para mim uma motivado pela elevação de José Américo à condição de revelação. Como o livro não se encontra nas governador do estado da Paraíba. (Cf. ANDRADE, Mário livrarias, lembrei-me de mandar a v. um dos de. Táxi e crônicas no Diário Nacional. Estabelecimento de texto, introdução e notas de Telê Porto Ancona Lopez. exemplares que recebi do autor (Rodrigues, São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1976, pp. 275-276). 2018, p. 106). 7 No seu exemplar de A bagaceira, Mário não escre- veu nenhuma nota marginal. Todavia, é sintomática a Era o início de um riquíssimo intercâmbio quantidade de palavras que ele sublinhou ao longo do livro, todas de caráter regionalista e comuns no interior hermenêutico-epistolar entre Mário e Alceu, nordestino, ressaltando uma espécie de pesquisa socio- tendo A bagaceira como o centro deste deba- linguística feita por Mário. Cito algumas: esgalepada, moambeiro, encostão, remanchado, chambão, tope, te: ora com o entusiasmo da novidade (para pegadio, estrompa, estrovinhado, afutrique, cambitei- o crítico literário), ora com reconhecimento, ro, empacho, azucrim etc. 84 • Leandro Garcia Rodrigues roça dançando mestiça formosa” etc. Hoje, só mesmo caso entre pai e filho. E há inúmeros mesmo em regiões atrasadíssimas repisando casos a citar. fenômenos fazendológicos (!) da monarquia. Eu acho justamente que esse ato do Lúcio Isso até me parece que regionaliza tanto o li- e do Dagoberto universalizam o romance da vro, tornando-o tão de possibilidade esporá- Bagaceira. dica em algum lugar do Norte (nem em Mato Em primeiro lugar, é visível o caráter sim- Grosso é possível porque os criadores de lá bólico que tem essa dissidência. Não são ape- vivem em S. Paulo, nem em Minas, onde o nas dois homens que se defrontam ali. Muito guzerate é mesmo pura questão de patrio- mais do que isso. São duas gerações. E mais tismo... mineiro, nem no Amazonas, onde a ainda – são dois Brasis. É o Brasil de ontem, língua corrente é o... inglês) regionaliza tanto semibárbaro, empírico, instintivo, e o Brasil de o livro que o localiza e portanto... o desregio- hoje – ideólogo, cerebral, hesitante. Dagoberto naliza (Idem, pp. 108-109). e Lúcio, além de serem duas criaturas de carne e osso (e o são de verdade), são dois símbolos. Alceu recebeu a carta de Mário e não Ora, isso dá ao romance uma significação tardou em respondê-la, discordando frontal- nacional, muito além dos limites do Marzagão mente da opinião do autor de Macunaíma. ou do Bondó. É toda a tragédia do Brasil de Semanas depois, em 10/5/1928, o crítico hoje que passa naquele episódio tão localiza- do de fatos, tão regionalizado de ambiente enviou longa carta ao polígrafo, reservando (Idem, p. 112). a metade final dela apenas para tratar do “caso José Américo de Almeida”, e afirmou: Parece que nada abalava o entusiasmo Não creio que v. tenha razão em acusar o e a admiração de Alceu pelo lançamento de livro de regionalismo. Quando eu digo que ele José Américo de Almeida, mesmo o ceticis- não é regionalista, não digo que não seja um mo de Mário de Andrade, cuja opinião era livro enraizado. Nunca. Ao contrário. Susten- muito respeitada pelo crítico carioca. E repi- tei que o livro era “o romance do Nordeste”, to: A bagaceira era lançada com um ar de “o romance da seca”. Agora, o que eu nego é que ele seja regionalista, isto é, que restrinja novidade, como algo novo, um experimen- o seu significado à região de onde veio. V. diz talismo literário que trazia a realidade nor- que o problema, a luta do pai e do filho, em destina à baila do mundo literário do nosso torno da mesma mulher, é um caso que só se modernismo. Pelo olhar analítico amoro- podia dar na fazenda. Não compreendo bem siano, tal fato deveria ser valorizado, pois o que v. quer dizer. Pois a evidência do contrá- isso era uma demonstração da vitalidade rio está, por ex., em toda a literatura francesa. da nossa literatura, a comprovação da sua Fort comme la Mort8 de Maupassant é a luta diversidade expressiva e, por que não dizer, de mãe e filha em torno do mesmo homem. E creio que o Vieil Homme9 de Porto-Riche é o uma certa chance de se fazer justiça ao Nor- deste, incluí-lo de vez na produção literária

8 Quinto romance de Guy de Maupassant (1850-1893), da época. Tal orientação de Alceu fica clara publicado em 1889. O título foi tirado do livro bíblico quando analisamos a sua correspondência Cântico dos Cânticos, no qual se lê: “O amor é forte com Jorge de Lima, ora em processo de como a morte, o ciúme é duro como a sepultura”. 9 Peça teatral de Porto-Riche (1849-1930), publicada organização para futura publicação: em em 1911. Como bem afirmou Alceu, o enredo tematiza várias cartas, ele admoesta Jorge de Lima a o triângulo amoroso entre pai, filho e uma amante, tal como já fora explorado em outras peças de vulto, como publicar em editoras do Rio de Janeiro, no Amoureuse (1891) e Le Passé (1897). sentido de dar visibilidade à sua poesia e à José Américo de Almeida e o seu tributo a Alceu Amoroso Lima • 85 sua obra nos meios culturais da então capi- a este o seguinte telegrama: “Desvanecido tal federal. E como sabemos, Mário de An- seu interesse meu romance. Remeti correio. drade não deixava uma carta sem resposta, Saudações. José Américo de Almeida.” Era não fugia ao embate que a epistolografia o início de uma série de cartas, todas sain- suscitava, e então conclui a sua opinião do de João Pessoa rumo ao Rio de Janei- acerca d’A bagaceira, nesta carta enviada a ro, mantendo Alceu informado acerca das Alceu Amoroso Lima, em 19/5/1928: encomendas, do interesse da imprensa em Tempo está passando e inda não respondi diversos estados brasileiros pelo livro etc. ao caso que você vinha discutindo na última Nesta carta de 2/4/1928, José Américo nos carta. Fui besta em não especificar de que an- fornece as suas primeiras explicações: tagonismo entre pai e filho eu falava. Não é Paraíba do Norte, 2 de abril de 1928. no caso de amor, coisa possível, está claro, em todas as épocas e países. Falei, mas era no an- Meu generoso confrade e amigo: tagonismo de ideias de modernização prática Acabo de receber a sua carta que é mais entre os dois. Pai atrasadão e filho inovador um documento de estímulo para o obscuro isso é que com o caráter em que está na Baga- escritor provinciano. ceira é regionalíssimo. Existe sempre entre pai Eu escrevi o romance A bagaceira do nor- e filho aquele antagonismo fatal de progresso deste e para o nordeste. Certo de que somen- ou que nome tenha, que distingue uma ge- te as sensibilidades impregnadas das mesmas ração da seguinte, porém não com o caráter impressões imediatas poderiam compreendê- que isso tem na Bagaceira (Idem, p. 118). -lo. E por aqui não houve quem não o sen- tisse, porque todos estavam acostumados a Com este debate crítico, encerro minha observá-lo na realidade de nossa vida dramá- análise a respeito das opiniões suscitadas tica. Posso dizer que cheguei a criar a crítica pelo lançamento deste romance de José indígena: não faltou homem de imprensa que Américo de Almeida, no sentido de demons- não viesse dar o seu juízo comprobatório. trar a não unanimidade crítica em relação a Mas sempre me pareceu que no sul o am- este livro e o seu lançamento. Entretanto, é biente físico e a paisagem social da tragédia seriam considerados falsos. É tudo tão diverso notória a defesa saudável de opiniões dife- por aí! rentes que ajudam a compreender a obra em E eu tinha medo também da incompre- questão. Passo para as reações do autor. ensão cultural: seria recusada minha arte bár- bara que reage em fórmulas novas contra o II – O tributo de José academicismo pé de boi... Américo Mas – digo-lhe com a maior sinceridade – sempre confiei no seu extraordinário discer- Desde o momento que Alceu decide aju- nimento crítico e, principalmente, na orienta- dar na divulgação d’A bagaceira, como era ção da sua inteligência brasileira que não se de se esperar, José Américo de Almeida não desvirtua e, antes, se define com mais vigor pelo grande conhecimento comparativo das se conteve em alegria e reconhecimento ao literaturas estrangeiras. amigo por este feito, por esta colaboração Crítica de adivinhão – foi o que lhe disse em apresentar ao grande público o seu novo na dedicatória, porque vinha surpreenden- romance. Dias após ter saído a crônica de do em seus estudos essa agudíssima pene- Alceu, em 13/3/1928, José Américo enviou tração de quem sente toda a obra antes de 86 • Leandro Garcia Rodrigues compreendê-la. Crítica de adivinhão – repito espécie de “padrinho literário” d’A baga- agora, depois que me virou a alma pelo avesso. ceira. A carta é deveras interessante por Basta-me, pois, ter sido revelado pelo mais diversas razões, exploro algumas: a) a cor- prestigioso dos paraninfos. respondência como espaço de debate sobre É tamanha [a] sua autoridade, que de toda literatura, isto é, a carta apresentando as- parte me chegam pedidos do romance, de lite- ratos, de pessoas desconhecidas e de livrarias. pectos críticos da criação, os bastidores do A primeira edição limitada de 500 exem- fazer literário, as primeiras motivações do plares tinha-se esgotado aqui e no Recife. A autor, sua ideia primaz e central; b) neste segunda, saída há dois dias, pelo que vejo, caso bem específico, o intercâmbio epis- não chega para nada. tolar entre Nordeste e Sudeste brasileiros Eu não quero mercantilizar minhas emo- deflagrando distâncias e incompreensões ções acumuladas, mas desejo ser lido para di- mútuas, especialmente uma espécie de vá- vulgar estas coisas do nordeste. cuo cultural entre estes dois Brasis, entre Enviei-lhe em duas remessas 19 volumes os diferentes projetos modernistas ora em e ponho à sua disposição outros tantos que ache por bem distribuir pelos seus amigos. desenvolvimento. Tudo isso deve ser perce- São os leitores que mais me convém. bido numa correspondência como esta, que Agora, nós temos que ser camaradas. não foi a única neste sentido e com este Mando-lhe, por isso, desde já, o retrato do objetivo, ao contrário, o fluxo epistolar na- “desconhecido”: 41 anos com um princípio de queles tempo e espaço propiciou aproxima- calvície correspondente aos cabelos que prefe- ções e denunciou sintomáticos distancia- rem cair a ficar brancos; 3 anos de seminário, mentos, difíceis incompreensões. A seguir, a pulso, com sonhos frequentes de que volta a pela importância do seu conteúdo, opto em ser seminarista; 14 anos de recolhimento com a inteligência entupida da poeira dos clássicos; transcrever integralmente esta carta de José vida ao ar livre, nos últimos tempos, com um Américo a Alceu, datada de 10/6/1928, grande estrago de sensibilidade no fórum; bi- pois se trata de um verdadeiro documento bliografia: uma conferência sobre poetas da para a nossa crítica e para a historiografia abolição, uma caricatura de novela e um vo- da literatura brasileira: lume de mais de 600 páginas sobre problemas Paraíba, 10 de junho de 1928. econômicos e sociais, que não figuram como obras do mesmo autor; péssimo conversador; Caro amigo Tristão de Athayde: língua solta nas indesejáveis emoções da ora- Recebi com muita alegria a sua impressão tória; ex-especialista em polêmicas estéreis; um sobre a minha réplica ao Agripino.10 Tem-me tanto ou quanto sorumbático; exageradamen- chegado de toda parte, até dos cafundós de te míope; só sabe assinar o nome, sendo o mais Minas, palavras de solidariedade e de aplau- feito à máquina de escrever e mais não diz... sos a essa despretensiosa defesa; mas, só sua Creia na minha gratidão, porque o que A aprovação me convinha. bagaceira vale hoje é a sua crítica. E aqui fico 10 No sentido de “dar voz” a José Américo de Almei- como seu maior admirador, da, frontalmente atacado pelo crítico Agripino Grieco Confrade e amigo quando do lançamento de A bagaceira, Alceu “cedeu” José Américo de Almeida a sua coluna “Vida Literária”, em O Jornal, no dia 5 de maio, 1928. Nela, José Américo escreveu um longo artigo de título “Crítica de Bagaceira – Carta Aberta a Desta forma, mesmo sem tê-lo plane- Agripino Grieco”, defendendo-se das incompreensões jado, Alceu Amoroso Lima se tornou uma do crítico e explicando as motivações do seu romance. José Américo de Almeida e o seu tributo a Alceu Amoroso Lima • 87

A referência à nova Escola do Recife foi Parece que a saída no sul tem sido grande. uma ironia com que visei certo grupo que exa- O Pereira de Carvalho mandou me dizer que o gera os méritos de Gilberto Freyre. Um des- livreiro já fala em outra edição. Um meu amigo, ses fanáticos chegou a escrever que o tema Waldemar Leite, vindo de Florianópolis, contou- d’A bagaceira relativo à desorganização da -me que sua passagem em Santos coincidiu com família em consequência da seca foi inspirado a chegada da A bagaceira. E viu venderem-se num estudo desse escritor em livro comemora- 150 exemplares em menos de duas horas. tivo do centenário do Diário de Pernambuco, Tudo isso é obra do seu extraordinário esquecido de que A Paraíba e seus problemas11 prestígio de crítico. é anterior ao mesmo estudo e de que o “jovem A Companhia Editora de S. Paulo interes- pensador nordestino” se apoiou na minha hu- sou-se também pelo contrato, mandou pedir milde autoridade em longas citações. meu endereço etc.; mas já havia compromisso A tréplica do Grieco não merece atenção. com o Castilho. A Editora tem a vantagem de Ele revelou até falta de espírito, aludindo aos difundir livros para todo o Brasil. As livrarias termos secos da dedicatória (“crítico que dese- daqui recebem grandes consignações. jo e temo”), sem compreender a razão desse Voltando ao caso de Corisco, só o “cavalo temor que se justificou... de sela” do senhor de engenho é mantido na O que me diz sobre o juízo do Alberto de estrebaria. Os outros ficam soltos na baga- 12 Faria, nome de meu grande apreço depois ceira. Dagoberto disse à Xinane, no 2.º cap.: do Mauá, é muito interessante. “estrebaria é para cavalo de sela; você nasceu Não sei se já lhe falei nessa “3.a edição foi pra cangalha”. E Pirunga pediu licença a com glossário”. O contrato foi estipulado por Dagoberto para acabar de matar o animal meus amigos deputados Oscar Soares e Perei- moribundo. Aliás, um paraibano, jornalista em ra de Carvalho: 5 mil exemplares e mais 100 Belém, também incidiu nesse equívoco. para distribuição gratuita. Agora, as confidências que me pede. Faço O glossário foi pedido com urgência por uma confissão fiel. Como no tempo em que telegrama e organizado de afogadilho. Resul- eu era seminarista. tado: escaparam muitos brasileirismos e foram Comecei como jornalista político, princi- registrados outros desnecessários. O pior, po- palmente em campanhas de oposição. Nesse rém, é que não foi feita a revisão. Saiu tudo exercício diário, adquiri certa facilidade de truncado, uma palavra por outra, etc. Imagine redação. Cheguei a ditar os artigos ou, por que deram olhar como sinônimo de ver, em vez de vir: olhe aqui que corresponde a venha cá. outra, a encher o jornal de trabalhos ditados. O livro não está menos defeituoso. Arran- Depois li muito. Lia tudo quanto alcança- jaram até solecismo. va, sem nenhuma sistematização. Fui, assim, Outra coisa: o Castilho não espalhou o ro- adquirindo fumos de letrado. mance pelo norte. De forma que vivo impor- Tornei-me cronista da revista Era Nova, tunado por constantes pedidos do Piauí, do de muita circulação no nordeste. Os diretores Ceará, de Alagoas etc. Só esta semana uma dessa revista resolveram publicar minhas crô- livraria daqui conseguiu obter os volumes en- nicas em volume a que dei o título de Sem me comendados com urgência por telegrama. rir, sem chorar. Mas, quando a composição já ia em meio, 11 Publicado em 1923, pela Imprensa Oficial da Paraíba. impliquei com esse gênero literário. E sacri- 12 Alberto de Faria (1965-1931) – advogado e intelec- fiquei tudo, inclusive algumas conferências tual que, no séc. 19, foi filiado aos diversos grupos enfeixadas. republicanos e abolicionistas. Publicou, em 1902, a bio- grafia Mauá (Pongetti & Cia.); em 1928, foi eleito para Surgiu, então, A novela, edição paraibana. a cadeira 39 da ABL. Era sogro de Alceu Amoroso Lima. Carlos D. Fernandes deu “Branca Dias”. E eu 88 • Leandro Garcia Rodrigues que nesse tempo já andava descontente com Do que nunca deixei foi de registar flagrantes o ficcionismo nacional, fiz uma brincadeira: do interior em minhas escapadas por lá. dei Reflexões de uma cabra.13 Uma caricatura Essa elaboração não vinha sofrendo ne- perpetrada em menos de 8 dias. É localíssima nhuma influência porque eu não tinha tempo e de mau gosto. Não presta para nada: repre- de ler. senta, apenas, um documento de reação con- A preocupação com o romance prejudica- tra os modelos consagrados. va-me, às vezes, o trabalho forense, porque eu Voltei-me para estudos mais sérios, com não deixava de pensar nele. Resolvi, assim, em algum método. maio do ano passado, acabá-lo, fosse como Fui, daí a pouco, incumbido de escrever A fosse. Paraíba e seus problemas. Aproveitando-me Havia muito material informe acumulado. das noções acumuladas, preparei esse livro, Entrei a condensá-lo. Tenho horror à “conti- dia a dia, à medida da composição. Ia, simul- nuidade da narrativa” de que falou o Grieco. taneamente, consultando as fontes, redigindo Detesto também a minúcia. Daí o processo de e emendando as provas. eliminação. Procurei reduzir tudo a flagrantes, Concebi, afinal, em 1924, o plano da A ba- manchas e sugestões. O que parece “detalhe” gaceira. Primeiro, as teses. E meu maior es- ao Agripino é uma intervenção das coisas que forço foi procurar diluí-las na ação para que compõem a tragédia. o romance não tivesse o caráter de um en- Fiz tudo também para suprimir a ênfase e saio. O enredo devia ficar apenas impregnado a sensibilidade própria. Minha sentimentalida- dessas intenções sociais e humanas; não devia de é fácil. Mas eu queria que a tragédia se anunciá-las em fórmulas expressas. manifestasse por si mesma e não por minha Modificou-se, então, meu sistema de vida: exaltação verbal. deixei o cargo de procurador-geral do Estado, Só não tive coragem de adoçar as realida- lugar sedentário, passando a advogar. E, absor- des. A bagaceira é quase toda sentida. Feita de vido por essa nova atividade, tive quase que re- emoções reconstituídas. Teria sido uma traição nunciar à literatura. Mas fiquei pensando; não ao meu sentimento da terra e do momento me esquecia da A bagaceira. E, assim, fui, pou- humano sacrificar à pureza acadêmica as feal- co a pouco, disciplinando o entrecho e fazendo dades e as asperezas da verdade interpretada. o trabalho de discriminação das cenas. A construção dos primeiros capítulos foi Consegui, desse modo, a distribuição em lenta. Depois, já não fui muito senhor de mim; capítulos. Feito isso, organizei um caderno o romance passou a dominar-me. Escrevi mais com as respectivas epígrafes e entrei a ano- de um capítulo desprezando o subsídio pre- tar tudo que me ocorria em observações de parado e modificando o plano preconcebido. atitudes, de emoções e de particularidades de Muitas cenas e descrições, das mais aplaudi- linguagem popular. das pela crítica, como a serenata de cigarras, Pude reconstituir as minhas impressões de ocorreram-me nesse turbilhão. duas secas. E fui passar uma estação de re- Os nomes dos personagens e dos lugares pouso no “brejo”, de cuja vida rural guardava são todos de minha Areia. Uns tipos são sím- vivas reminiscências. bolos de mentalidades dominantes em cada Aí já ia começando a redigir com grandes meio; outros, como João Troçulho, são de car- pausas. Com intervalos de meses a fio. Mas, ne e osso. As paisagens são todas do natural. quando tornava, tinha a vantagem da auto- Que mais direi? crítica: emendava o que já me parecia ruim. Eu não podia fazer A bagaceira em 25 noi- tes de convulsões. Triturei-a: ela já estava no 13 Publicado em 1922, pela Editora A União. meu sangue; saiu com um pouco de mim. José Américo de Almeida e o seu tributo a Alceu Amoroso Lima • 89

É uma confissão que me desmerece peran- reedição da 1.a para o próximo mês de julho, te os romancistas de partos duplos. aguardo essa oportunidade. Farei com que as Permita-se, agora, que lhe fale um pouqui- livrarias daqui façam pedidos em conta firme. nho de seus estudos. Não precisa devolver os artigos. Quando Feliz é o crítico que pode enfeixar seus tra- sai qualquer coisa, mandam-me às dúzias balhos com essa unidade fundamental. José como pretexto para pedir o livro. Veríssimo, com tantos defeitos, era um tipo Remeto agora outros escritos que, por desse censor igual, dentro da mesma concep- mais modestos que sejam, não deixam de ter ção da literatura. Depois, só vejo a sua obra. alguma novidade. Vai o do escritor que tam- Grande obra de intérprete e de orientador bém considerou Corisco liquidado na estreba- que, apesar da atual confusão de valores, já ria. Ele é do sertão paraibano. consegue firmar todo o seu prestígio. Crítica De José Lins do Rego só tem mesmo maior de sugestões, que parece um pretexto pra interesse o 4.º Os outros são resumos do enre- descarregar ideias. Que aplaudindo ou diver- do com ligeiros comentários. O 5.º tem algum gindo, é sempre construtiva. Não se restringe sabor local. às impressões da leitura: disciplina dentro de Vão A Paraíba e seus problemas e as Refle- sua ordem de conhecimentos, mas com uma xões para esconder na estante. probidade exemplar. É o modelo que convém Aceite um afetuoso abraço do grande às correntes literárias imbuídas de pensamen- admirador to que subsistem a arte pela palavra. José Américo de Almeida O livro não é, apenas, interpretado com extraordinária penetração: é julgado como Esta carta se explica. E explica muito a uma parcela da inteligência geral. respeito do romance A bagaceira. Só uma cultura bem aparelhada como a Temos aqui uma das melhores demons- sua é capaz desses estudos. (Não poderia ser trações acerca da flexibilidade do gênero outro o título). E o que mais me admira é você com essa visão de conjunto não perder o sen- epistolar: um verdadeiro laboratório de timento de brasilidade. Ao contrário: cada vez ideias, uma espécie de reflexo, o outro lado mais o revigora como nos ensaios sobre a lín- de uma obra. Ou seja, podemos afirmar, gua brasileira, os poetas de hoje e como [eles] sem medo da hipérbole, que esta carta de nos veem. Com toda a minha franqueza, che- José Américo pode ser considerada uma go a dizer-lhe que os seus últimos trabalhos biografia d’A bagaceira, o relato das moti- estão ganhando em consistência e limpidez na vações e decisões que possibilitaram a sua colheita desses sentidos. gênese. E é tão forte o seu poder de apreensão dos temas brasileiros, a ponto de nas referidas Interessante perceber a confiança do au- crônicas ter vindo ao encontro de peculiarida- tor na crítica feita por Alceu Amoroso Lima des do nordeste que já estavam no meu plano que, na sua opinião, é a razão para o total de revelações. (Em outra carta tratarei deste sucesso editorial do seu romance. Pela car- ponto para satisfazer também à sua generosa ta, percebe-se a imensa diferença nas pro- curiosidade sobre meus projetos de futuro). postas de crítica literária exercidas por Alceu Já pareço suspeito para julgá-lo. Queria e Agripino Grieco – aquele conhecido pelo dizer tudo o que penso de sua função de crí- tico sem nenhuma autoridade, mas de formas caráter construtivo e apaziguador na práxis que todos sentissem o que eu dissesse. Mas, hermenêutica; já este, sempre visto como já que anuncia a edição da 2.a série e talvez a demolidor e fomentador de polêmicas. 90 • Leandro Garcia Rodrigues

É a epistolografia possibilitando novas contrários, confrarias, influências pessoais abordagens críticas, tecendo e revelan- etc. Neste sentido, a amizade entre Alceu do verdadeiras redes de sociabilidade, é e José Américo é um importante capítulo o arquivo de um escritor trazendo a lume na trajetória da nossa literatura modernista, novidades a partir de documentos e textu- especialmente ao aproximarem-se as co­me- alidades antigas. Ressalto sempre a impor- morações do centenário da Semana de tância e a necessidade de salvaguardarmos Arte Moderna, quando seremos levados os arquivos literários, pois estes revigoram a constantes (re)avaliações não apenas do e atualizam os estudos e pesquisas, possi- nosso cânone, mas da nossa própria histó- bilitam descobertas e novas abordagens ria literária. que trazem frescor e ajudam na tarefa de historiografar e compreender o complexo Referências processo da literatura brasileira. ALMEIDA, José Américo de. A bagaceira. João Pessoa: Im- prensa Oficial da Paraíba, 1928. ANDRADE, Mário de. Táxi e crônicas no Diário Nacional. Estabelecimento de texto, introdução e notas de Telê III – Conclusão Porto Ancona Lopez. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1976. ARQUIVO do Centro Alceu Amoroso Lima para a Liberdade Ao longo de toda a sua vida, sempre (CAALL). Petrópolis, Rio de Janeiro. que lhe fosse possível, em livros, cartas, arti- BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994. gos e entrevistas, José Américo de Almeida INSTITUTO DE ESTUDOS BRASILEIROS DA USP (IEB-USP). Arquivo Mário de Andrade. relegava a Alceu Amoroso Lima o sucesso _____. Biblioteca, Fundo Mário de Andrade. do seu principal romance, bem como agra- LEONI, Raul de. Luz mediterrânea. Rio de Janeiro: Jacinto Ribeiros dos Santos, 1922. decia ao crítico pela sua definitiva entrada LIMA, Alceu Amoroso. Estudos – 3.a série. Rio de Janeiro: nos meios literários da época. É importan- A Ordem, 1930. _____. Meio século de presença literária. Rio de Janeiro: Li- te entendermos este tributo de reconheci- vraria José Olympio Editora, 1969. RODRIGUES, Leandro Garcia. Alceu Amoroso Lima – cul- mento, pois o conceito de vida literária é tura, religião e vida literária. São Paulo: EDUSP, 2012. construído, inclusive, com narrativas de _____. Correspondência Mário de Andrade e Alceu Amo- roso Lima. Rio de Janeiro/São Paulo: PUC-Rio/EDUSP, amizades e inimizades, de grupos afins ou 2018. Disjecta membra – O que as partes dizem sobre a poesia de Drummond

Felipe Fortuna Poeta, ensaísta, tradutor e diplomata

para Marlene de Castro Correia na poesia de Carlos Drummond de Andra- de, que se valeu de um amplo espectro (da o célebre “Poema de Sete Faces” – dissolução à erosão, do desaparecimento poema inaugural do primeiro livro à anulação) para se referir às coisas e às N de Carlos Drummond de Andrade pessoas. –, existe a seguinte terceira estrofe, a indicar Pernas, olhos e mesmo o coração (se a terceira face desse poema autobiográfico: não for tomado unicamente em seu sentido simbólico) são as partes destacadas e pre- O bonde passa cheio de pernas: pernas brancas pretas amarelas. sentes na estrofe citada (e, na estrofe se- Para que tanta perna, meu Deus, pergunta guinte, o verso “o homem atrás dos óculos [meu coração. e do bigode” exibe um desmembramento Porém meus olhos não perguntam nada. também de muita eloquência): com essas partes, mostra-se um mundo urbano e ve- É a primeira manifestação (repito: logo loz, um mundo em agitação e já excessivo, no primeiro poema do primeiro livro) de um que cala fundo no poeta: o sentimento do procedimento a ser repetido e muito utiliza- mundo (o coração) pergunta e questiona, do em outros poemas do modernista minei- porém os olhos seguem impassíveis, vendo, ro, com fundas repercussões em sua obra: reconhecendo, separando as cores. trata-se de uma tendência ao desmembra- Persiste na poesia de Drummond a per- mento e à fragmentação de elementos con- cepção de um mundo povoado e tumultua­ cretos, o que também caracterizou a poesia do, de um mundo que parece excessivo e nu- de alguns poetas de vanguarda.1 Esse proce- meroso, em contraposição ao mundo familiar dimento deve ser examinado com atenção e pacato do interior do país. O poeta se cala 1 Um desses poetas é Pablo Neruda, admirado por Car- los Drummond de Andrade e citado em “Consideração ao ver as partes desse mundo novo, que se do Poema”, poema de abertura A rosa do povo (1945). orgulha do progresso e não das tradições, Em Poesía y estilo de Pablo Neruda [1940], Amado Alonso dedica a seção “Disjecta Membra y Objetos He- do poeta chileno (Buenos Aires: Editorial Sudamericana, terogéneos” à análise desse fenômeno nos livros iniciais 1968, cuarta edición, p.312-326). 92 • Felipe Fortuna intuindo-lhe a vastidão e a sua dimensão pernas indicam, assim como em “Moça e descomunal, como que acuado e perple- Soldado”, a atividade dos corpos e sua mo- xo por se reconhecer, ele também, uma bilidade, pouco a pouco revelando impul- de suas partes. Esse mundo novo é urba- sos que não são apenas físicos. Ainda nessa no e acelerado, um mundo que se cons- contemplação muda, o poeta espia em ati- trói na forma de cidades sem que seja pos- tude obsessiva, atendo-se à descrição, agin- sível compreender a sua finalidade e a ideia do como observador discreto, mas sem que mesma de progresso. O progresso fará do lhe escape qualquer opinião ou julgamento: poeta um permanente desconfiado, o que só intensificará a perplexidade com a frag- Meus olhos espiam as pernas que passam. mentação e com as partes disjuntas das Nem todas são grossas… pessoas e das coisas. A cidade é uma usina Meus olhos espiam. que gera pessoas em movimento – mas es- Passam soldados. sas pessoas, de tão agitadas e velozes, per- … mas todas são pernas. dem toda informação pessoal e são vistas, Meus olhos espiam. nas ruas, como pedaços e fragmentos, irre- Tambores, clarins conhecíveis por inteiro: por isso mesmo, “o e pernas que passam. bonde passa cheio de pernas”, e o trans- Meus olhos espiam porte urbano serve para conduzir os mem- espiam espiam soldados que marcham bros humanos que transportam o corpo.2 moças bonitas Tanto quanto no “Poema de Sete Faces”, as soldados barbudos … para namorar, 2 Em uma análise sobre a representação da vida urba- na nos romances, Robert Alter propõe que a represen- para brigar. tação do lixo produzido nas cidades exprime (como em L’Éducation sentimental, de Gustave Flaubert) “a jum- A repetição das palavras provoca. Nos ble of glimpsed fragments that do not hold together, versos “Meus olhos espiam / espiam espiam (...) the fragments are kinetic expressions of human energies.” Essa representação, ele explica, é inovadora (...)” se estabelece, a par da obsessão, a pa- e antecipa a percepção modernista. Ao comentar Mrs. ralisia do poeta, que, ao espiar tanto, não Dalloway, de Virginia Woolf, por exemplo, o ensaísta afirma que “fragmentation, as we have seen, is an es- confessa seu sentimento. Porém, no poe- sential element in the experience of the modern me- ma “As Pernas”, já se percebe que o mes- tropolis as an incessant shower of heterogeneous and largely unconnected stimuli rain down on the senses”. mo leitmotiv – as pernas – surge também Por fim, em comentário sobre Ulysses, de James Joyce, de forma repetitiva, a indicar nova obses- o ensaísta trata, justamente, de um cena urbana em são, dessa vez com o sinal incontornável do que Leopold Bloom observa uma elegante mulher subir no bonde, que começa a se mover, e salienta tanto “a desejo. O poeta antecipa as “sonhadas per- fragmentação da experiência visual” quanto a percep- nas” que podem aparecer em zona não to- ção da figura humana não como um todo, mas como “partes disjuntas do corpo”: “We have had abundant talmente iluminada. occasions to observe the fragmentation of visual expe- rience in urban novels from Flaubert onward, with the Bato palmas. Na esperança human figure often seen not as a coherent whole but de ver as pernas no alto through the traces it leaves in disjunct body parts.” (Cf. da escada Imagined cities – Urban Experience and the Language of the Novel. New Haven: Yale University Press, 2005, as pernas sempre defesas p.17, p.111 e p.125). as sempre sonhadas pernas Disjecta membra – O que as partes dizem sobre a poesia de Drummond • 93 as pernas, aparição separadas do todo a que pertenciam. O no sombrio alto da escada. poeta Horácio, nas Sátiras (I, IV, 62), faz re- ferência aos “membros despedaçados do Nesses poucos versos, a repetição sur- poeta” (disiecti membra poetae), em bre- preende: pernas, alto da escada e mesmo ve exemplo sobre o poeta Lucílio.3 Disjecta a semântica visual de “ver” e “aparição” membra também significam os fragmentos constituem a força que antecipa o obje- existentes de manuscritos e objetos cultu- to de desejo do poeta. Esse objeto encon- rais (como cerâmica ou metais), que permi- tra-se, no entanto, ameaçado pela interdi- tam projetar, pela parte, um objeto original. ção, e por isso mesmo existe “esperança” Geralmente, a poesia de CDA vai privilegiar de ver pernas “defesas” que estão em lugar o fragmento como índice de uma percep- inacessível e “sombrio”. A seu modo, dá- ção, buscando desestruturar o todo em par- -se continuidade à sequência de “pernas” e tes significativas. Tratará assim do efêmero “olhos”, mas a presença das partes corpo- e da contradição, buscará ampliar a sensi- rais destacadas permite concluir que outros bilidade ao confundir-se com a fugacidade elementos deverão inserir-se em uma lógica e a impermanência das coisas: tanto a rela- da composição. ção amorosa quanto a experiência política No poema “Tarde de Maio”, com seu estarão submetidas a essa constante deses- longo e inesquecível verso no qual surpre- truturação, núcleo de angústia e de maior ende o aparecimento de um fragmento de fragmentação. Paralelamente, o fragmen- um corpo morto, o poeta vai ampliar o sen- to servirá, nessa poesia, a um processo de tido das partes corporais, conferindo-lhe composição e decomposição com caracte- nova dimensão: rísticas singulares. Como esses primitivos que carregam por toda Note-se que, no trecho citado de “Tarde [parte o maxilar inferior de seus mortos, de Maio”, o poeta trata de uma dimensão assim te levo comigo, tarde de maio, não corporal das disjecta membra ao escre- quando, ao rubor dos incêndios que ver “porções de minh’alma”. É uma adição consumiam a terra, importante, que articula o concreto e o abs- outra chama, não perceptível, e tão mais trato, e lhe permite ampliar, por meio da in- [devastadora, surdamente lavrava sob meus traços cômicos, serção de outras dimensões das partes, a sim- e uma a uma, disjecta membra, deixava ainda bologia dessas partes descartadas. No poema [palpitantes “A Boca”, por exemplo, o espaço mínimo e condenadas, no solo ardente, porções de entre duas bocas distantes é bem a indica- [minh’alma ção do que duas partes do corpo alcançam: nunca antes nem nunca mais aferidas em sua [nobreza Boca: nunca te beijarei. sem fruto. Boca de outro, que ris de mim, no milímetro que nos separa, A ideia de disjecta membra está origi- cabem todos os abismos. nalmente relacionada aos fragmentos po- 3 Cf. Horace, Satires, epistles, ars poetica. Tradução de éticos e às partes de um corpus que po- H. Rushton Fairclough [1926]. London: William Heine- deriam ser ainda identificáveis, apesar de mann, 1942, The Loeb Classical Library, p. 52 e 53. 94 • Felipe Fortuna

Com a organização desses fragmen- construído a partir da premissa emblemáti- tos (disjecta membra corporais e não cor- ca que fulge já no primeiro verso: “Os ho- porais), logo se percebe que o poeta logra mens preferem duas.” O desdobramento compor e decompor diversas dimensões de em apreço indica que Adalgisa “virou duas sua poesia: a glosa sobre o mundo, como diferentes”, “Adalgisa e Adaljosa”, uma bem se lê em “Canto Órfico”: delas “loura, trêmula, blândula”, a outra “morena esfogueteada”. Esse desdobra- Mundo desintegrado, tua essência paira talvez na luz, mas neutra aos olhos mento não acontece sem precisão – e, por desaprendidos de ver; (...) isso mesmo, indica-se que as duas mulhe- res não existem “como se as duas fossem Também está presente quando se faz uma”, mas sim na seguinte forma: “é uma necessário tratar de si mesmo, em nota bio- que são duas”. gráfica, como surge, por exemplo, em “Os A persona desdobrada de Adalgisa tem Últimos Dias”: consciência de sua duplicidade:

Uma parte de mim sofre, outra pede amor, Ando na rua a meu lado, outra viaja, outra discute, uma última trabalha, colho bocas, olhos, dedos sou todas as comunicações, como posso ser pela esquerda e pela direita. [triste? Existe, contudo, em meio à conveniente Por fim, esse uso da fragmentação se repartição dessa mulher, uma notável angús- faz de novo presente em importantes poe- tia: pois eis que Adalgisa, sabedora de que mas de temática social e política, como será “os homens preferem duas”, também en- mostrado mais adiante, e ainda em alguns frenta a realidade de que “alguns mal sabem poemas de fatura erótica. escolher”. É muito possível que esse em- Todo o poema “Desdobramento de Adal­ barras de richesses constitua, afinal, aquela gisa” transmite a voz de uma mulher – logo mesma situação pioneira na qual o poeta se desdobrada em duas mulheres – que se di- vê diante de tantas pernas que o induzem à rige a um homem, por sua vez tratado de paralisia: “porém meus olhos / não pergun- “meu rei” e a quem será prestada subser- tam nada”. É bem o sintoma de perplexida- viência, não fosse o uso permanente da se- de diante de um desdobramento múltiplo, gunda pessoa do plural.4 Todo o poema é de possibilidades amplas e infinitas, segundo

4 “Desdobramento de Adalgisa” é poema publicado um processo infernal e sucessivo: originalmente em jornal, no ano de 1933 e, em segui- da, no segundo livro de Carlos Drummond de Andra- costuma andar “na rua a meu lado”. Coincidentemen- de, Brejo das Almas (1934). Segundo Fernando Py, o te, a “Balada para as Três Mulheres do Sabonete Ara- poema foi inspirado em anúncio (até hoje não pesqui- xá”, de , também teve por inspiração sado) do jornal argentino La nación, no qual aparecia um anúncio publicado em jornal que, no caso, desdo- um rosto ou um corpo de mulher várias vezes irradia- brou em três a imagem da mulher: “São amigas, são do, não necessariamente, como afirmam automatica- irmãs, são amantes as três mulheres do sabonete Ara- mente alguns críticos, a jornalista e poeta Adalgisa Nery xá? / São prostitutas, são declamadoras, são acrobatas? (1905-1980) (cf. Fernando Py, “Edições dos Livros de / São as três Marias?” O poema, escrito em Teresópo- Carlos Drummond de Andrade”, in Língua e literatu- lis, é datado de 1931, e publicado em 1936 no livro Es- ra, 16, 1987-1988, p.80). Esse desdobramento é tam- trela da manhã. Manuel Bandeira também teria escrito, bém um desmembramento: Adalgisa “virou duas dife- ao fim, uma paródia do poema “As Três Irmãs”, do ro- rentes / para mais a adorardes”, ela é loura e morena, e mântico Luís Delfino. Disjecta membra – O que as partes dizem sobre a poesia de Drummond • 95

Saberei multiplicar-me Poeta do finito e da matéria, e em cada praia tereis cantor sem piedade, sim, sem frágeis lágrimas, dois, três, quatro, sete corpos (...) boca tão seca, mas ardor tão casto. numerosa qual Amor. No poema “América”, o homem minús- A mítica Adalgisa é uma totalidade feita culo diante do seu continente (“um homem de suas partes contraditórias, “duas partes pequenino diante de um rio”) traz as partes diferentes”, que ameaça e paralisa com sua do corpo para projetar imagens de fragili- voracidade. Ameaça e paralisação que, a pro- dade, da velhice e da ignorância, que con- pósito, permanecerão com o poeta de forma vergem para a mudez do poeta, perplexo e constante: pois, como bem se mostra em “As paralisado: Contradições do Corpo”, existe duplicidade e Passo a mão na cabeça que vai desmembramento no próprio corpo do poe- embranquecer. ta, que ilude e força o encontro: O rosto denuncia certa experiência. Meu corpo não é meu corpo, A mão escreveu tanto, e não sabe contar! é ilusão de outro ser. A boca também não sabe. Sabe a arte de esconder-me Os olhos sabem — e calam-se. e é de tal modo sagaz “América” é um poema longo no qual se que a mim de mim ele oculta. (...) forma uma colcha de retalhos – e cada um Meu corpo ordena que eu saia em busca do que não quero, (...) deles trata de um acidente geográfico e sen- Se tento dele afastar-me, timental, uma recordação e o trânsito inten- por abstração ignorá-lo, so das gentes, tudo isso que, visto em pers- volta a mim, como todo o peso (...) pectiva – e a perspectiva é a ideia grandiosa da América – torna o lugar e o poeta ainda Um aspecto significativo das disjecta menores. Como se essas partes não formas- membra do poeta está relacionado à di- sem um todo – ou, formando-o, exibissem mensão política: por meio de cortes, muti- um todo menor. O resultado desse exame lações, enxertos e agregações, vai-se fazen- dos espaços e das gentes, onde as cidades do o caminho das opções e das escolhas. crescem juntamente com os desertos, onde Como se sabe, é em A rosa do povo (1945) pessoas aparecem e desaparecem, deixa a que se concentra e até se dramatiza a mais impressão de que o conjunto busca articular- robusta eloquência política do poeta, ob- -se a partir de disjecta membra, mas com sua servador engajado dos eventos da II Guer- conformação de impassível puzzle: ra Mundial e emocionado criador de uma irmandade espiritual e ideológica, cujo arco Esses pedaços de ti, América, partiram-se na vai, como demonstra “Consideração do [minha mão. Poema”, de Vladímir Maiakóvski a Pablo A criança espantada não sabe juntá-los. Neruda, de Guillaume Apollinaire a Murilo Mendes e . Livro de agu- A rosa do povo guarda um poema dos da preocupação com a contingência e, ao menos comentados na obra de Carlos Drum- mesmo tempo, com os recursos de que um mond de Andrade: “Noite na Repartição”. poeta dispõe: Para maior precisão, o poema se assemelha 96 • Felipe Fortuna a um sketch teatral, em que partes de um porta, a aranha, a garrafa de uísque, o gar- escritório, incluindo animais, respondem ou rafão de cachaça, o coquetel, todos os ál- dialogam com um oficial administrativo. E é coois, a traça, a aranha, o telefone, a vassou- ele quem dá início a uma conversa tensa e in- ra elétrica, a pomba, os processos, os cacos feliz com o papel, “única ambrosia” prova- da garrafa (esses já transformados em disjec- da pelo oficial administrativo, e que ainda se ta membra de si mesmos). Assim se confir- faz presente no sabão que passa pelo corpo ma o sentido primeiro de repartição, “ação e na água que bebe. Repartição é, portanto, de dividir em partes; partilha, reparte”: de esse espaço de submissão e opressão que, fi- fato, uma considerável alteração – mais cor- nalmente, gerou revolta; repartição que tam- retamente, uma oposição – ao sentido se- bém representa, no poema, partes isoladas guinte da palavra, que denota o “serviço de de objetos e pequenos seres que participam organização”.6 Habilmente, o poeta conse- da confusão geral de um lugar antes orga- gue duas subversões ao serviço: primeira- nizado e burocrático – e cada uma dessas mente, por apresentar a repartição no horá- partes poderá expressar-se, a partir de ago- rio noturno, quando o expediente está bem ra: cada uma delas repartirá a sua angústia. encerrado; em seguida, ao introduzir os ele- O escritório assim repartido, portanto, vem a mentos que trarão desordem, carnavalização ser um exemplo de eloquentes disjecta mem- e destempero à ordem burocrática, as bebi- bra que terão voz sob uma clave algo surre- das alcoólicas; por fim, os pequenos animais, alista e mesmo delirante, embora atrelada a todos eles razoavelmente presentes em uma uma experiência que, logo se desconfia, tem repartição – à exceção da pomba. E é a pom- algo de autobiográfica e exasperante: expõe- ba, com seu simbolismo comum, que anun- -se ali um burocrata que se preocupa com o ciará a mensagem de renascimento ao espa- amor, o prazer sexual, o prazer das viagens. E ço agora caótico, ao trazer, como se palavra tem seu projeto iconoclasta: de ordem fosse, uma conclamação: Quero que vos junteis e compreendais a vida. (...) quero matar o DASP, quero incinerar os [arquivos de amianto. A função dessa pomba é a de juntar par- Sou um homem, ou pelo menos quero ser um tes, membra conjuncta, no espaço que, de- 5 [deles! sordenando-se, se estilhaçou em disjecta No poema, além do oficial administrati- membra. Caberá à ave ensinar o oficial ad- vo e do papel, falarão ainda, pela ordem: a ministrativo a não desprezar o papel, dan- do-lhe novas funções, como escrever ro- 5 O Departamento Administrativo do Serviço Público mances e cartas de suicídio... A pomba é (DASP) foi criado em 30 de julho de 1938, estando pre- a promotora de “uma coisa bela”, o que visto na Constituição de 1937 elaborada pelo Estado Novo. Getúlio Vargas o quis diretamente subordinado à deverá surgir somente quando o oficial ad- Presidência da República e tinha por meta uma reforma ministrativo considerar o seu espaço de tra- administrativa capaz de organizar e racionalizar o ser- viço público no país. O DASP teve profunda influência balho, a sua repartição, igualmente como na vida política do Brasil e impôs um Estatuto dos Fun- cionários Públicos Civis da União. Aqui interessa salien- 6 No poema “Madrigal Lúgubre”, contudo, o termo re- tar o fato de que Carlos Drummond de Andrade foi, ele partição é utilizado com sentido precipuamente erótico: mesmo, funcionário público atuante no período e, por “Dai-me vossa cama, princesa, vosso calor, / vosso cor- isso, com muita razão para protestar. po e suas repartições”. Disjecta membra – O que as partes dizem sobre a poesia de Drummond • 97 espaço do sonho e do devaneio, o espaço reconstituinte: pela via do amor, o poeta se da criação que parece faltar em detrimen- descobre Outro e poderá, assim, gozar ple- to da rotina.7 namente a existência que antes se lhe apre- Na poesia de CDA, existe a consciência sentava sem sentido ou absurda. Trata-se, da unidade perdida: o contato feroz com a portanto, de uma fragmentação a criar esse existência impõe ao poeta a admissão de Outro que se comunica, expande, interage que, após nascer, deve ser enfrentada “a – em suma, revitaliza-se. Aqui vale repetir a dor de formas repartidas”, como escreveu citação de um dos seus poemas mais elo- no poema “Nascer de Novo”. Essa sensa- quentes, “Os Últimos Dias” – com forte e ção de exibir “um eu todo retorcido” (título dramático apelo à fraternidade, no qual o de uma das seções com que CDA organizou tom de convocatória e de união não ocul- a sua Antologia poética) aguarda um renas- ta a angústia do ser a trilhar o seu absurdo cimento, que possa atenuar a dureza do existir –, o poeta demonstra essa forma de confronto com a vida. E esse renascimen- estar-no-mundo: to, que o poeta acaba descobrindo, aconte- Uma parte de mim sofre, outra pede amor, ce na forma de um “segundo nascimento”, [outra viaja, justificando-se o título do poema, que “res- outra discute, uma última trabalha, gata o sofrimento do primeiro”, anunciado sou todas as comunicações, como posso ser pelo poeta não sem que se perceba o seu [triste? júbilo e o seu êxtase: No final do poema, percebe-se que es- Amor, este o seu nome. sas partes, integrando-se a partes alheias Amor, a descoberta de sentido ao poeta, induzem a uma dissolução que no absurdo de existir. tende a anular a identidade mesma do poe- ta. O gesto de radical fraternidade elimina Talvez mais importante do que essa des- a marca do sujeito, a presença solitária do coberta – afinal tão consagrada em nume- eu, exterminando o indivíduo e sua história rosíssimos textos literários e religiosos – se- pessoal, em movimento de doação: ria observar que a presença mesma do amor produz uma fragmentação que o poeta E a matéria se veja acabar: adeus, composição usufrui (em termos psicanalíticos, esquizo- que um dia se chamou Carlos Drummond de frenicamente), em seu novo nascimento: [Andrade. Adeus, minha presença, meu olhar e minhas Não sou eu, sou o Outro [veias grossas, que em mim procurava seu destino. meus sulcos no travesseiro, minha sombra no Em outro alguém estou nascendo. [muro, sinal meu no rosto, olhos míopes, objetos de Aqui se percebe que as disjecta membra uso pessoal, ideia de justiça, revolta e sono, possuem uma tensão de paradoxal força [adeus, 7 Aqui não se pode omitir a rotunda afirmação de Car- vida aos outros legada.8 los Drummond de Andrade na crônica “A Rotina e a Quimera”: “Observa-se que quase toda a literatura bra- 8 Uma análise do mesmo poema poderia considerar, por sileira, no passado como no presente, é literatura de exemplo, que a transição do individual para o coletivo funcionários públicos.” Cf. Passeios na ilha (Rio de Ja- também se manifesta por meio do aumento grada- neiro, Organizações Simões, 1952), p.113. tivo das estrofes e do tamanho dos versos: no início, 98 • Felipe Fortuna

O problema da unidade perdida atraves- Ainda mais expressivo desse momento sa diversas fases da obra do poeta e constitui noturno da poesia de Carlos Drummond de geralmente fonte de tensões e de questiona- Andrade é “Canto Órfico”, poema que não mentos. A menção às disjecta membra tor- esconde, por mais de uma razão, alguma na-se recorrente, mais ou menos legível sob deferência à Geração de 45.9 Nele se en- a força de versos que parecem transtornados contra o tema da unidade perdida: pela fulguração metafísica e pelo recurso à Orfeu, dividido, anda à procura mitologia. Não se trata, aqui, do poeta en- dessa unidade áurea, que perdemos. gajado e interessado em notícias e ocorrên- Mundo desintegrado, tua essência cias da guerra. Em livros como Claro enigma paira talvez na luz, mas neutra aos olhos (1952) e Fazendeiro do ar (1954), de nature- desaprendidos de ver; (...) za mais filosófica e meditativa que caracteri- “Orfeu, dividido” e “Mundo desin- zam o tédio e possivelmente a desilusão do tegrado”: dificilmente haveria percepção poeta, há como uma preparação resignada mais dilacerada nessa poesia que, havia al- para os aspectos mais noturnos do ser. “Ha- guns poucos anos, também reclamara que bilitação para a Noite” é, justamente, o título “Este é tempo de partido, / tempo de ho- de abertura do primeiro poema de Fazendei- mens partidos”, como se lê em “Nosso Tem- ro do ar, e a sua primeira quadra não deixa po”. Ocorre que, agora, esse dilaceramen- dúvidas sobre a consciência que o poeta tem to parece mais profundo, menos conjuntural de algo que se apaga em seu ser: e episódico. O “Mundo desintegrado” não Vai-me a vista assim baixando indica só a guerra e as suas misérias: ele é ou a terra perde o lume? global, pois atinge o insondável, justamen- Dos cem prismas de uma joia, te, aquela “unidade áurea, que perdemos”, quantos há que não presumo. não apenas vinculada aos fatos e aos acon- É importante notar que os dois últimos tecimentos (“les événements m’ennuient” é versos dessa quadra não fazem pergunta al- a famosa citação de Paul Valéry que o poe- guma, ao contrário do que ocorre nos dois ta escolhe para a abertura do seu livro Claro primeiros: trata-se do indício mais eloquen- enigma). A “terra [que] perde o lume”, do te de uma aceitação. O poeta não tem a primeiro poema, “Habilitação para a Noite”, capacidade, por força do tempo, por algu- ainda se lê nesse penúltimo poema, nos ver- ma decadência vital, por alguma perda de sos “aos olhos / desaprendidos de ver”: luz brilho que a terra passa a exibir aos seus mortiça que mal se comunica aos olhos acos- olhos agora cansados, de perceber a totali- tumados a tanto espiar. “Canto Órfico” está dade. À sua maneira, os “cem prismas” são estruturado em duas partes: a primeira, que as disjecta membra de uma joia que o poe- se pode nomear de descrição e comentário, ta não percebe mais. na qual o poeta mostra uma terra desolada: 9 Os poetas da Geração de 45 buscaram atenuar algu- predomina uma construção em dísticos de redondilhas mas das principais conquistas do modernismo brasilei- menores. Ao final, em movimento crescente, há es- ro, como o verso livre e o maior apreço pelo registro trofes com até onze versos e versos longuíssimos, que oral. A revista Orfeu, fundada em 1947, reuniu boa par- mais se assemelham, também na sua enumeração e na te dos escritores dessa geração, que cultuavam formas eloquência, a um texto em prosa. tradicionais, como o soneto. Disjecta membra – O que as partes dizem sobre a poesia de Drummond • 99

A dança já não soa, testemunhar a última fase do seu pleno en- a música deixou de ser palavra, gajamento. O poeta se partiu no “tempo o cântico se alongou do movimento. dos homens partidos” e, agora, dá início a Na segunda parte, Orfeu, herói, músi- uma recuperação de si mesmo ao escrever co e poeta, é invocado – mais do que isso, não mais a um personagem histórico ou a é conclamado a juntar as disjecta membra, uma cidade devastada, mas a Orfeu, mito pois, como se sabe, Orfeu foi despedaça- essencial do novo instante. do após perder Eurídice: sua cabeça e sua É muito possível que um movimento lira rolaram pelo rio Hebro, e todos os de- pendular do contingente ao transcenden- mais membros foram espalhados em diver- te já estivesse ativo em “O Elefante”, de A sos lugares (Ovídio, As metamorfoses, livro rosa do povo, poema significativo para o XI). No “Canto Órfico”, o poeta ordena: exame do uso das disjecta membra na poe- sia de Carlos Drummond de Andrade. Nele, Orfeu, reúne-te! chama teus dispersos as partes constroem: trata-se bem mais de e comovidos membros naturais, exemplo de membra conjunta, da necessi- e límpido reinaugura dade de reunir e de agregar peças para que o ritmo suficiente (...) se possa fazer o grande animal (a “massa Integra-nos, Orfeu, noutra mais densa imponente”) que desfilará. Assim apare- atmosfera do verso antes do canto, cem, em sequência, orelhas, tromba, pre- do verso universo, (...) sas, olhos, pele, cauda, pernas, ventre, pa- tas. Mas esse elefante em construção, tão Reunião e integração: eis os dois pedi- logo se vê finalizado, está em situação de dos, um tanto exasperados, que o poema instabilidade: a sua existência mesma é des- transmite. A busca “dessa unidade áurea, fazer-se, tocado pela improvisação, pelo que perdemos” se transforma no tema do- olhar alheio, pela precariedade. Em ima- minante da segunda parte do poema: ati- gens que impressionam, o poeta narra tude contrastante de quem agora deseja como ocorre sua dissolução, seu descola- integrar-se “noutra mais densa / atmosfe- mento que, de gradual e tenso, passa a ser ra” quando se recorda a solidariedade que rápido como avalanche: o poeta expressara em um poema como A cola se dissolve “Nosso Tempo”: e todo seu conteúdo Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos. de perdão, de carícia, As leis não bastam. Os lírios não nascem de pluma, de algodão, da lei. (...) jorra sobre o tapete, qual mito desmontado. Visito os fatos, não te encontro. Como acontece em “Tarde de Maio”, o “Canto Órfico”, o mais rilkiano dos poe- processo de disjecta membra, em “O Ele- mas de Carlos Drummond de Andrade, um fante”, é feito de partes corporais e não dos mais melancólicos e desesperançados, corporais, que indicam complexas depen- alude a alguma insondável morte que aco- dências – por exemplo, como se a falta de meteu o poeta, decerto ao olhar para trás e carícia fosse responsável por não fixar “suas 100 • Felipe Fortuna orelhas pensas”. Para sua sobrevivência, existia um elefante-poeta somente revelado o elefante fabricado “de meus poucos re- na hora mesma em que toda a estrutura se cursos” também depende, mais do que do desfez, em que foram mostradas as disjec- olhar alheio, da aceitação do outro. O pri- ta membra que eram as de um só ser: “eu e meiro obstáculo, contudo, é um “mundo meu elefante, / em que amo disfarçar-me.” enfastiado / que já não crê nos bichos / e Em outras palavras: durante todo o tempo, duvida das coisas”, o que aponta para a pri- o poeta era, ele mesmo, uma parte descar- meira fragilidade do bicho-construção. Há tada desse elefante que fingiu existir auto- mesmo uma indiferença geral à passagem nomamente. Por meio de disjecta membra, do animal, que exibe uma característica pe- o poeta havia passado todo o tempo sepa- culiar: o elefante não é, em si mesmo, a rado e externo ao animal, para afinal con- imagem do Belo, que se exibe à admiração fessar que era integralmente esse animal pública ou à adoração. Os seus sentimen- que, por sua vez, se desfez. tos, salienta o poeta, são louváveis e mere- Sabe-se bem como o modernismo con- ceriam a atenção de todos: as suas partes duziu a fragmentação, a descontinuidade e mais interessantes são as que os olhos não o conflito do sujeito em numerosos textos perscrutam, pois estão em dimensão sen- literários. Poeta modernista, Carlos Drum- sível e invisível. Os olhos do elefante, lem- mond de Andrade explorou todos esses bra o poeta, guardam “a parte do elefante temas em sua obra, sob o influxo da psi- / mais fluida e permanente, / alheia a toda canálise, do trauma das grandes guerras fraude”, e mesmo assim, sendo olhos, não mundiais, das radicais divisões políticas. In- são vistas. “O Elefante”, por meio de um teressa conhecer, contudo, como o poeta processo de construção e de disjecta mem- problematizou essa desconstrução, que exi- bra, comunica uma notável desarticulação be dolorosas interações. Por exemplo, em entre o indivíduo e o seu entorno (social e, “Confidência de Itabirano”, a transição en- também, afetivo), no qual a fabricação e o tre a província e o espaço urbano, entre a desfazimento do animal indicam um pro- vida no interior e a vida na cidade, entre o cesso contínuo e decadente. E o verso final, prestígio de uma posição social na provín- “Amanhã recomeço”, ordena esse proces- cia e sua metamorfose em peça ordinária so à maneira de um Sísifo, em permanente da estrutura estatal acarreta uma partição labuta, sem questionar objetivos, sem exigir inaugural e importante, radicalmente de- compensações. Também na parte final des- monstrada nesses versos: se poema logo se revela uma importante, Tive ouro, tive gado, tive fazendas. se não estratégica, qualificação das disjec- Hoje sou funcionário público. ta membra de que se valeu o poeta: é que, apesar da nítida separação entre o elefan- Porém, a incontornável demonstração do te fabricado e o poeta (e mesmo da separa- antes e do depois não parece suficiente: é ção com a audiência, como demonstram os preciso apresentar a parte arrancada, a par- versos “Vai o meu elefante / pela rua povo- cela da alma que é, na prática, uma ferida ada,”), descobre-se que ele mesmo, o poe- exposta. E isso o poeta faz magistralmente ta, era parte constituinte do elefante; que nos dois versos seguintes daquele poema: Disjecta membra – O que as partes dizem sobre a poesia de Drummond • 101

Itabira é apenas uma fotografia na parede. vai destruir. À maneira de Orfeu, o poeta, Mas como dói! quando olha inadvertidamente para trás, Pelo mesmo processo das disjecta mem- testemunha a morte inapelável da vida na bra, a cidade do interior, cidade de origem, província e daquele “Eu sozinho menino foi transformada em uma evocação gravada entre mangueiras” (“Infância”). em fotografia e pendurada na parede: mas, Por tudo o que se comentou, esse des- justamente, esse pequeno pedaço de papel membramento que persiste na poesia de Car- guarda “porções de minh’alma”, e passa a los Drummond de Andrade nada tem de liber- doer como se fosse um membro arrancado tador: ao contrário, é fonte de uma angústia do corpo. Ao deixar Itabira, o poeta tam- a ser confessada a cada instante, quando não bém deixou a sua unidade, o mundo orga- comparada com uma tensão desproporcio- nizado e constituído, o ambiente pacífico, nal, como se lê em “Sentimento do Mundo”: maternal e ordeiro que a cidade dos fun- Tenho apenas duas mãos e o sentimento do cionários públicos e de outras vicissitudes mundo.

Memória de uma grande homenagem no Fundão a um grande poeta

Arnaldo Saraiva Ocupante da Cadeira 6 dos Sócios Correspondentes da ABL.

inteligência, o dinamismo e a sen- Em fins de 1967, António Paulouro disse- sibilidade cultural de António Pau- -me que gostaria de prestar uma home- A louro, assim como o seu empenho nagem ao autor de Morte e vida Severina, numa relação fraterna com o país “desco- peça com que no ano anterior um grupo berto” pelo beirão Pedro Álvares Cabral, teatral, o TUCA, formado por estudantes da fizeram com que o Jornal do Fundão e por- Universidade Católica de São Paulo, entre tanto o Fundão ficassem para sempre liga- os quais o músico , ganhara dos à história dos dois maiores poetas que, o Festival de Teatro de Nancy; antes de re- na opinião de muitos, o Brasil já teve: Carlos gressar ao Brasil, o grupo fez escala e apre- Drummond de Andrade e João Cabral de sentações em Portugal, obtendo retumban- Melo Neto. tes sucessos em teatros de Lisboa, Porto e O primeiro, que não gostava de viajar, Coimbra. Perguntando-me se achava possí- foi presença semanal em crônicas inesque- vel a deslocação a Portugal e ao Fundão de cíveis que o jornal publicou desde 1980 até João Cabral – que acabava de deixar a em- 1985 (ele faleceu em 1987). O segundo, baixada do Brasil em Berna, onde era minis- que este ano faria cem anos se não tivesse tro-conselheiro, para se tornar cônsul-geral falecido em 9 de outubro de 1999, esteve em Barcelona –, e ouvindo a minha respos- no Fundão para aí receber uma também ta, logo me pediu para iniciar as diligências, inesquecível homenagem. acrescentando: “seria ótimo se pudéssemos A ideia partiu, claro, do fundador do festejar o 22.o aniversário do Jornal com Jornal do Fundão, que já conseguira levar a uma homenagem ao grande Poeta”. terras da Beira e ao Fundão, em janeiro de Era então adido cultural da embaixada 1963, o ex-presidente Juscelino Kubitschek, do Brasil em Lisboa o escritor Otto Lara Re- e, em maio de 1966, o escritor Érico Verís- sende, de quem me tornara amigo. Falei simo, ambos aclamados por multidões de com ele, que sabia, como eu, que João Ca- admiradores, malgrado os obstáculos que a bral não prezava os festejos e as glórias li- essas visitas quis impor a polícia salazarista. terárias, mas que logo se dispôs a ligar para 104 • Arnaldo Saraiva o Consulado-Geral do Brasil em Barcelona; mesa montada no palco o Diretor do Jornal com o seu “papo” insinuante, que Nelson do Fundão tinha à sua direita João Cabral, Rodrigues não se cansava de elogiar nas Alves Redol, Jaime Lopes Dias e à sua es- suas crônicas, não tardou a vencer alguma querda José Cardoso Pires, Salette Tavares e resistência inicial do Poeta. E nos dias 13 o juiz corregedor Raul Moreira de Andrade. e 21 de janeiro de 1968 o Jornal do Fun- António Paulouro abriu a sessão e, em dão podia anunciar na primeira página a palavras que disse “humildes”, falou na ale- presença de João Cabral na festa do seu gria de estar em presença de um poeta cuja aniversário. “voz de amanhã é hoje um refrigério e um O anúncio dizia que outros dois escrito- cântico de amor puro entre os irmãos que res brasileiros estariam também presentes somos todos os homens do mundo”, “ir- – o adido cultural e o mãos para as tarefas da paz, não a paz dos romancista e também meu amigo Marques cemitérios, ou a paz aparente do medo e da Rebelo, que programara uma nova viagem servidão, mas a paz nos corações, feita de por Portugal (lembro-me que, evocando justiça e de verdade”. outra viagem, ele escrevera a respeito da Em seguida, como programado, eu lisboeta Avenida da Liberdade: ”Quando é e Ruy Belo lemos alguns poemas de João que a inauguram?”). Por razões distintas, à Cabral que, diria a reportagem do próprio última hora nem um nem outro puderam Jornal do Fundão, “a assistência aplaudiu deslocar-se ao Fundão. Mas João Cabral demoradamente”. Terminados os aplau- não faltaria; desembarcando em Lisboa do sos, o poeta tomou a palavra, agradeceu avião que o trouxera de Barcelona, tinha à a honra da homenagem, os elogios de sua espera um carro que, na ausência de António Paulouro e anunciou que não fa- Otto Lara Resende, o encarregado de negó- ria um discurso, mas se prestaria a respon- cios da Embaixada do Brasil, Cláudio Garcia der a perguntas que lhe quisessem fazer. E de Souza, pusera à sua disposição, e com estas logo dispararam, vindas de pessoas um motorista muito especial: Ruben Andre- bem conhecidas no mundo da cultura: José sen Leitão, o conhecido Ruben A., que era Salvado Sampaio, Mário Castrim, Antu- então funcionário da Embaixada do Brasil, e nes Ferreira, Alçada Baptista, Raul Calado, que em 1950 se tornara, em Londres, ami- António Santos Taborda e José Alberto go do poeta brasileiro, por sinal seu coetâ- Marques. Se tinham que ver com a oficina neo (sim, também estamos a celebrar este cabralina e com o seu “antilirismo”, algu- ano o centenário do seu nascimento). mas delas, reportando-se ou não à mensa- A homenagem no Fundão – que Antó- gem de Morte e vida Severina, ou ao em- nio Paulouro quis que fosse também uma penho do poeta na luta contra a injustiça, festa da poesia – não podia ser mais expres- a pobreza e a miséria, não disfarçavam o siva: posto de lado, por parecer exíguo, o aproveitamento que então era comum previsto salão do Casino Fundanense, na fazer-se das manifestações culturais para noite friorenta de 27 de janeiro de 1968 criticar o regime salazarista, o que também apinharam-se na sala do Cine Teatro Gar- fora bem perceptível nas visitas de Jusceli- dunha “mais de quinhentas pessoas”. Na no Kubitschek e de Érico Veríssimo. Nessa Memória de uma grande homenagem no Fundão a um grande poeta • 105 altura poucos saberiam o que António Pau- o embaixador do Brasil, dr. Carlos Silvestre louro revelaria anos mais tarde na televisão: de Ouro Preto, ofereceria na sua Embaixada que a Censura tinha cortado parte da pri- um almoço a João Cabral, para o qual con- meira página do Jornal do Fundão com a vidou especialmente António Paulouro e notícia do evento; e menos sabiam que a me convidou a mim, pois queria agradecer- PIDE, como fizera também com os outros -nos a iniciativa e o êxito da homenagem dois brasileiros, fora ouvindo as palavras ou fundanense (na qual não pudera participar seguindo os movimentos do vice-cônsul de por uma imprevista retenção no Rio de Ja- Barcelona, e até meus; por engano, foi pa- neiro), tendo também convidado para esse rar ao processo pidesco de meu irmão uma almoço o adido cultural Otto Lara Resende ficha datada de 6 de junho de 1968 em que e alguns importantes escritores portugue- um chefe da PIDE solicitava “ao Serviço de ses: Vitorino Nemésio, Sophia Andresen, Ficheiros informação do que constar acerca Maria de Lourdes Belchior, Luís Francis- de João Cabral de Melo Neto”. co Rebello, Ruben A., Alexandre O´Neill e Simples, discreto, conciso, o poeta a David Mourão-Ferreira. tudo foi respondendo; e o auditório, como O nome de João Cabral já antes da ho- disse Valentim Alferes no jornal Beira Bai- menagem comparecera no Jornal do Fun- xa, “manteve-se sempre preso na atenção dão, em textos de Matilde Rosa Araújo e de dispensada aos intervenientes”, ou, como José Carlos de Vasconcelos. Poucas sema- disse o próprio Jornal do Fundão, manteve- nas depois dela, em 31 de março, o jornal -se sempre, ao longo de 3 horas, “em clima publicaria o seu poema inédito, “Touro de de encantamento e beleza”. lide”, que eu lhe pedira para incluir num Nesse auditório estavam outras impor- suplemento de literatura brasileira. E ao tantes personalidades da cultura portugue- longo dos anos seguintes lembraria em vá- sa, que participariam também no almoço rias circunstâncias o poeta ou a sua poesia: que no dia seguinte, domingo, o Jornal do por exemplo, em 16 de dezembro de 1983 Fundão serviria a 300 convidados no salão reproduziu o seu poema “Cartão de Natal”; do Casino Fundanense: aos já citados que na em 12 de setembro de 1986 anunciou o véspera tinham composto a mesa, lido poe- seu hipotético retorno, não concretizado, mas ou entrado em diálogo há que acres- ao Fundão, para participar, como Eugénio centar, por exemplo, os nomes de Ruben A., de Andrade, nas Jornadas da Beira Interior; Fiama Hasse Paes Brandão, José Hermano e em 25 de outubro de 1996 deu conta de Saraiva e José Lopes Dias. um colóquio na Escola Secundária do Fun- Findo o almoço, em que também foram dão, em que a sua poesia, como a prosa homenageados funcionários, correspon- de Graciliano Ramos, serviu como guia de dentes e amigos distintos do Jornal do Fun- “uma viagem ao mundo do Nordeste” dão, seguimos – Ruben A., João Cabral e brasileiro. eu – para Coimbra, por causa de um encon- Se o jornal não esqueceu João Cabral, tro universitário que o poeta tinha marcado este também não esqueceria o Fundão. para a manhã de segunda-feira. E dali se- Numa evocação que fez em 1976 dos seus guiríamos para Lisboa, onde no dia seguinte “encontros” com Ruben A., ele confessaria 106 • Arnaldo Saraiva que, antes da homenagem, ”não sabia Belmonte, terra do seu talvez parente (insi- onde estava o Fundão” e que a viagem a nuava) Pedro Álvares Cabral, que por mais terras da Beira fora “inesquecível”: lembra- de uma vez me disse que queria visitar – va-se “das falésias a pique entre as quais o e que não chegou a visitar – quando em Tejo entra em Portugal”, lembrava-se “de 1985-1987 esteve como cônsul-geral do Castelo Branco, onde todo mundo gostaria Brasil no Porto. de viver na velhice e morrer” e lembrava-se Ao longo da segunda metade do século que, “depois do Fundão, da experiência de XX, João Cabral recebeu muitos prêmios, tudo, da visita à Covilhã, do outro lado do incluindo o Prêmio Camões, e muitas ho- vale, dos pequenos povoados vazios de ho- menagens. Mas nenhuma se pareceu com mens válidos /…/ quase abandonados, onde a única grande homenagem que lhe foi só se viam mulheres vestidas de preto”, fora prestada em Portugal. Graças a António surpreendido, num desses povoados serra- Paulouro, o Jornal do Fundão e o Fundão nos, ao ver “uma espécie de quermesse” ficaram para sempre honrosamente ligados cujos prêmios eram “linguiças, queijos, co- à história de um dos maiores poetas da lín- mida”. O tempo não permitiu uma visita a gua portuguesa. POESIA Pedro Mohallem

edro Mohallem é poeta e tradutor, Participou de revistas e antologias poé- bacharel em Letras e mestrando em ticas como a Meteoro e a Poesia Brasileira P Estudos da Tradução pela Universida- em Contracorrente. Autor de Véspera; De- de de São Paulo (USP). bris (Patuá, 2019). 108 • Pedro Mohallem

Napoleão

Quando o mais era azul e desolada espera – fixo ponto exclamativo na planície arenosa – tudo e nada revelava-te a esfinge. Tu, cativo

de uma febre imortal que, sem remédio, ensolarava as lápides salinas, tu te vias a ti, tão só, no tédio sobrevivente às glórias e às ruínas. Pedro Mohallem • 109

Viniciana

Pouco importam, meu bem, atos e juras do amor maior, das afeições mais certas: de ti não quero mais do que procuras, nem de mim queiras mais do que me ofertas.

Tornemo-nos, se agora tu despertas e eu adormeço e as línguas são mais puras, criaturas, só, de tudo tão libertas que nem sequer suspeitem ser criaturas...

E, num desprezo íntimo do ser, como as horas eternas pois extintas juntos possamos desacontecer; e sejam nossos únicos segredos o sudário de luz nas tuas pintas e o perfume de tâmara em meus dedos. 110 • Pedro Mohallem

Vermelho fruto malmente visto...

Vermelho fruto malmente visto, que a sombra atiras sobre meu rosto,

por que me lembras tanto de Cristo? Porque não toco, mas sinto o gosto?

Porque te acusas, na altura, misto de luz e carne, destino e mosto?

Por não caíres se a lança enristo contra teu cerne já decomposto?

Vermelho fruto malmente visto, tão menos visto que pressuposto,

é só por isto, é só por isto: porque és a sombra sobre meu rosto. Pedro Mohallem • 111

A P. H. B.

(De Véspera; Debris)

Do pomo que se desprende sobre o paladar maduro (onde germina o presente em seu estado mais puro), atiramos as sementes no árido solo futuro (quanto mais dele se lembre, tão mais amargo, mais duro); mas no fruto que se ignora – muito aquém dos nossos saltos projetados contra o tempo –, a defloração do Agora (é para os pomos mais altos a carne do esquecimento). 112 • Pedro Mohallem

Legado

Passam as nuvens como vai passar o dia, azul e incerto, de viver; e, se a nuvem delida no ar é ar,

serás quem foste, sendo no meu ser: este barulho que não sei calar, esta palavra que não sei dizer. Pedro Mohallem • 113

Ecdise

Pétalas sobre um galho úmido e negro: um farfalhar, e nada sobra, salvo um duro desejo de durar.

Rompantes, raiam as cigarras pelos troncos: a fibra sedosa do ocaso, num rasgo, dá que outra toada vibre, outra: não o irrequieto estrídulo da seiva subterrânea aberta ao mundo; mais acídula, oca e sólida ​–​ crânio que à terra jamais se resigna ​– outra eclode, mais muda cantiga, presa, de resina, ao pife que a modula.

Há muita música, excelente voz vibrando escondida nesse oco instrumento (por entre serragens de sentido e raspas mais de quintessência que porventura fiquem passada a ecdise, no silêncio eloquente do líquen), e acaso irrompam as cigarras invisíveis, que tingem a fibra sedosa do ocaso de cobre, teso timbre, alheias, quase troncos, não sucumbirão ao próprio eco e rebento, estas que são matriz e fruto peco.

Vida, memória, flor num muro fendido: ser o estar. Nada mais resta, salvo o duro desejo de durar.

Marlos Degani

arlos Degani, Nova Iguaçu/RJ, Lançou também um audiobook chama- é jornalista e escreveu crônicas do Marlos Degani – até agora, em 2009, M periódicas no sítio do Baixada com a sua poesia completa (édita e inédita). Fácil e no jornal O Correio de Lavoura por Em setembro de 2014 lançou, num muitos anos. Lançou seu primeiro livro de evento mundial, no Hangout do Google, poemas, Sangue da palavra, em 2006, que seu segundo volume de poemas, Internado, conta com a apresentação do poeta Ivan no formato e-book, ainda disponível nas Junqueira, imortal da Academia Brasileira melhores livrarias virtuais do planeta. Parti- de Letras, falecido em 2014. cipa do grupo Desmaio Públiko. 116 • Marlos Degani

Perturbado

Tenho de pôr no dez o volume do meu silêncio, remexer fundo o lodo dos timbres, das algemas e emergir as mentiras antigas quase verdadeiras; quero falar pelos cotovelos: eu mesmo, apenas.

E como é estranho alguns tipos de pensamentos desta usina neuroelétrica do cérebro que elenca, entre os miolos sangrentos, o outro lado do tempo que escala, ao contrário, a medida do movimento.

Tenho de sair de cena de carona com um dilema: o que há lá dentro que não deixa em paz o poema? Marlos Degani • 117

Novelos

Se um dia eu soubesse de mim mesmo, não sei se me saberia todo e por inteiro, pois de biombos e espelhos é que sou feito, na dobradiça embutida e sutil do movimento transeunte no meio do esquerdo e do direito – no cérebro cinzento de dentro para dentro.

Assim como o meu verso me desloco em silêncio, já que do vírus do poema sou um dos hospedeiros.

O poeta se acostumou a ficar perdido no nevoeiro e precisa de estar em pedaços para se sentir coeso.

E se um dia eu me encontrasse em mim mesmo, nada veria: estou nos nós cegos dos meus novelos

(entre o bordado do fim e a agulha de um começo). 118 • Marlos Degani

Uniplural – o poeta

Eu sou o poeta. Aquele mesmo que vaga na vaga suja da caverna. O dito estranho. O dito paspalho do castelo, mas ninguém sabe o que de fato se passa pelo meu cérebro. Acham que são nuvens do nada;

todavia, trafego sobre os pecados abertos da alameda do inferno. Quem lê minhas mentiras entre poemas? E quem acredita que o verso seja realmente verdade? Qualquer um me chama de nome. Não exijo o dicionário,

apenas a palavra. Todos me têm: o vate, o tolo e o padre. Comum de dois clandestino. O da birosca. O do lounge. Eu sou o poeta. E escondo embaixo da escada a ladainha do meio-dia a pino. Madame Satã. Kurt Cobain. Zé Pilintra.

Eu sou o poeta. A real sentença dos homens que me resta. O que não se parece com o que você atesta. Eu sou o poeta. Marlos Degani • 119

Sobre a outra tirei as malas do saco abri os guarda-roupas foi bom ver as suas asas foi bom ter ficado à toa olhando do chão a casa e vendo você feito louca fincando as unhas com força e tirando o osso da escápula pus a alma no espantalho fechei com todas as coisas foi bom ter bebido sua cachaça foi bom ter rasgado suas roupas naquela antigeografia das nossas coxas uma sob duas são duas sobre as outras. 120 • Marlos Degani

Ausências

Lancei aquele anzol de uivos ao redor do vento ligeiro, tal qual um opressivo e denso cortejo de cheiros e temperos e perfumes e o desejo de pescar a lavanda que passeia sob o teu seio

direito, primeiro, e depois, sobre o segundo; inteiro. O violeta raso da noite média escapa acolá, ali, feito quase tudo a repetir algo que já estava desfeito, destruído em meio às rajadas vindas do esqueleto

trêmulo, peito a peito, preso na imagem do teu beijo distante, solto na meia-noite imprecisa do pesadelo dessa tua ausência, dia a dia, perdida entre o novelo das horas e do meu disco velho na agulha do desespero.

A madrugada aterrissou acima daquele bordado vermelho. A saudade não trouxe nem um verso. E o poema não veio. Marlos Degani • 121

Zona do silêncio

Tudo muito bem aqui no mundo dos mortos, onde quase todos passam – exceto as horas que se atrapalham sem ponteiros ou relógios quando marcam a implacável tirania dos ossos.

Não temos dia e noite, tampouco ocaso e aurora; o tempo também morreu feito o que há em volta. O cinza é dominante sobre os escombros tortos das ruas sem alamedas e das almas sem corpos.

O sol vermelho sanguíneo ultrapassa o céu ocre. Vejo os becos e as cédulas sujas que se enrolam – conduzem a poeira por entre as ventas expostas e não há quem saiba mais o que realmente importa.

Ouço muletas e próteses que se escoram no poste. Há gemidos invisíveis que não têm sul. Nem norte.

Igor Fagundes

gor Fagundes é poeta, ensaísta, profes- dez livros, organizador de quatro e coautor sor do Departamento de Arte Corporal de dezenas. Tem cerca de 60 premiações I da Universidade Federal do Rio de Janei- em certames literários. Colaborou com a ro (UFRJ), no setor de Filosofia, Estética e ABL como revisor de publicações de 2005 Teorias da Dança. Doutor em Poética (UFRJ). a 2009. Macumbança (2020) é sua mais re- Membro do PEN Clube do Brasil. Autor de cente obra. 124 • Igor Fagundes

educação pela parede

A educação pela parede quer-se exata: cada tijolo é uma escolha e uma alquimia. Na casa o espaço imita a pedra cabralina em dura guerra contra a dor que entranha a sala

Veja o retrato que olha o tempo na parede e dela espera um céu brotar, emoldurado como se nuvens fossem cal, cimento, rede e se pudesse ler um verso atrás dos quadros

pois toda imagem se faz corte pelo meio cabe ao que habita a arquitetura completá-la: romper as portas, sempre, todas, para ver-se por dentro e fora e remontar o que se estraga

E se mil portas há nos tetos e nos textos e se outras mortas vão tecendo copos, pratos há uma parede dentro deles, pelos atos que se refletem no invisível dos espelhos

A educação pela parede quer-se exata mas o que é do homem foge ao cálculo e à régua o traço pode impor-se a nós e não o inverso nos resta o jogo entre o que ocorre e o que se espera

No aprendizado do concreto no abstrato além de muros pelas folhas e objetos outro se oferta, grita em nós, aqui se cala: por dentro, eterna, uma parede nos amarra

Fonte: Sete mil tijolos e uma parede inacabada (2004). Igor Fagundes • 125

na cama

Ela bem longe e ao mesmo tempo sem distância ela me toca e me retoca em mãos bem mansas ela sussurra que sou seu com voz sacana ela me beija, afaga, toma e desengana ela me quer, não por amor, talvez por sanha ela desnuda-me os lençóis, depois me arranha ela mistura-me ao veneno de uma aranha ela me cospe, bate, berra, me arde e sangra ela se culpa em fingimento: nunca é santa ela vasculha cada ruga e não se cansa ela perfura-me na agulha e me desmancha ela costura com silêncio a pele lânguida ela tortura, sedutora, e não com lâmina ela é uma fuga, cura ou fogo que me inflama? ela é pergunta sem resposta que me tranca ela me estranha quando a paz na cama é tanta ela sem dente arranca os meus e me abocanha ela sem pés a cada noite se levanta ela sem corpo a cada dia me acompanha

Quem tem a morte não precisa de outra dama

Fonte: Zero ponto zero (2010). 126 • Igor Fagundes

por uma gênese do horizonte

Hoje quero amanhecer com os afogados implorar que voltem a caminhar comigo penteá-los como se evocasse filhos abraçá-los como quem pede um chamado

Hoje à tarde vou morrer com os afogados engolir a água que invadiu suas sebes me arder no sal que arranhou suas malhas e arranhar as minhas com o que partiu suas pedras

Hoje à noite vou salvar-me entre afogados ler em seus olhos alguma paz em riste embora nas pupilas ouça ainda uma voz rouca, para sempre dilatada

Amanhã estaremos todos acordados em mar profundo poderemos ser crustáceos cavaremos até chegar ao mais escuro ninho de pérolas e tudo será claro

para amanhã iluminar outro afogado que na voragem de salvar-nos será salvo e se unirá ao nosso fio interminável de corpos sob o pôr/nascer-do-sol

e amanhã saberemos de que é feita esta linha vista ao longe: de um pouco de água e muito de nada lavando por dentro o peito dos mortos

Fonte: Por uma gênese do horizonte (2006). Igor Fagundes • 127

salvar-se salvar-se não do perigo salvar-se no perigo de abrir-se ao cio da chuva de adagas sobre as vidraças do sorriso salvar-se como o acrobata a salivar o doce do risco de ser pego pelo açoite da farsa do equilíbrio salvar-se como a espora se devora de espera pela hora do coice do cavalo mais fiel e subitamente arredio salvar-se como no circo salta alguém sobre o vazio de qualquer cama elástica: trapézio na promessa duvidosa de uma asa salvar-se como quem no espinho da rosa se serena como quem goza e se descasca e se desvenda e venda na cuidadosa faca de um poema

Fonte: Pensamento dança (2018). 128 • Igor Fagundes

sortilégio

e tudo aqui nos lábios vai se despedindo o furta-cor de um hálito, ora desbotado o chumbo que trouxeste na saliva, e mais: o toque débil, um câncer, vou te deglutindo até engolir completamente essa metástase de nós, até te devolver os teus punhais e um corte em ti fizer também algum sentido

e tudo no palato vai o desmentindo um céu na boca: o sol banido nas amídalas queimado por seu breu, um afogado em luz se na garganta, umbrais, jamais o paraíso de se calar, sem ais, ou de dizer sem risco de ter nas cordas e vocais um calo, um pus de amor, se é ele um vírus bêbado e em delírio

e tudo em nossas línguas vai se decompondo: por entre os dentes, a palavra faz seu túmulo e vou velando, aos berros, restos de algum verbo de sonho, quando o afeto cai em fundo sono e lança ao mar, em sobras, perna, braço, punho da história inscrita nas geleiras de um inferno como este de beijar sem fim o já defunto

Fonte: Pensamento dança (2018). Igor Fagundes • 129

cabimento

A impossibilidade de dizer já é possibilidade de dizer

O não dito enquanto tal está dito e o silêncio fez todo o sentido

O inominável jamais deixou de ser um nome

A ausência precisou estar presente Do contrário nada se despede caso nem venha

Experimente agora escrever dança dentro de um fonema e me diga se dançar não cabe no poema

Fonte: Pensamento dança (2018). 130 • Igor Fagundes

ostinato rigore

A vida inteira a procurar um paus-de-deux com a palavra, em rigor alexandrino: a folha, o palco do passé de um bailarino que, esguio, arrisca no soneto um arabesque

Depois vêm todos rir do meu balé parnaso: modernos, pós-modernos, fartos de pliés jurando que a escansão é peça de museus e não se mede uma poética em esquadros

para que irrompa em cena o corpo imponderável entregue ao fogo fátuo de um mover sem fundo pudesse a dança ser o poema absoluto

e fosse o poema a dança oculta de uma fala por baixo do silêncio, acima dos murmúrios de um pássaro a voar além do que traduzo

Fonte: Pensamento dança (2018). Tanussi Cardoso

anussi Cardoso é carioca. Formado poeta chileno Leo Lobos e da poeta mexica- em Jornalismo e em Direito. É poeta, na Angélica Santa Olaya. O livro foi lançado T crítico, contista, tradutor, letrista e no Peru, no Festival Internacional de Poe- compositor de MPB. Tem poemas publica- sia de Bambamarca, e, posteriormente, na dos em mais de 10 países e traduzidos para Cidade do México, a convite da Universi- o inglês, francês, espanhol, italiano e russo. dade Nacional do México. Em 2013, Teias: Publicou 12 livros de poemas, entre eles: Prêmio Literário Narciso de Andrade. Em em 2000, Viagem em torno de: Prêmio 2017, Eu e outras consequências: Prêmio ALAP de Cultura 2000, e Prêmio Capital Manuel Bandeira 1919, da União Brasileira Nacional 2000 – Poeta do Ano. Em 2006, de Escritores. Exercício do olhar, lançado na Cidade do Seu livro Exercício do olhar foi traduzido México, a convite do Segundo Festival Lati- ao espanhol, pelo poeta peruano Óscar Li- no-americano de Poesia, e eleito o Melhor mache, sob o título Ejercicio de la mirada e livro de poesia de 2006, pelo Congresso será publicado, ainda em 2020, pela editora Latino-americano de Literatura. Em 2008, Amotape Libros, no Peru. 50 poemas escolhidos pelo autor, que, em Pertence ao PEN Clube do Brasil, à 2014, recebeu nova edição, publicada pela União Brasileira de Escritores, à Associação Ed. Fénix, em Odivelas, Portugal. Em 2009, Profissional de Poetas do Estado do Rio de Del Aprendizaje del Aire, coletânea bilíngue Janeiro e é ex-presidente do Sindicato dos (português-espanhol), com tradução do Escritores do Estado do Rio de Janeiro. 132 • Tanussi Cardoso

A hora absoluta

Estranhos meus mortos abrem as janelas penetram em meu quarto e me sufocam. Insinuantes me beijam e sangram em mim alegrias e pecados acariciando, sem pudor meus sonhos, minhas partes e meus ossos. Meus mortos e seus gemidos têm rostos, sinais e olhos que fagulham calafrios. Ousados vêm no breu do sono e dormem em minha cama e me despem e se debruçam sobre meu corpo silentes e queridos e rezam e choram por mim como a lua clamando sua outra metade como um espelho colando os próprios vidros. Meus mortos sem censura meus delicados mortos que, à noite, penteiam meus cabelos e, solidários, preparam o meu jardim. Tanussi Cardoso • 133

As mortes quando o primeiro amor morreu eu disse: morri

quando meu pai se foi coração descontrolado eu disse: morri

quando as irmãs mortas a tia morta eu disse: morri

depois, a avó do Norte os amigos da sorte os primos perdidos o pequinês, o siamês morri, morri

estou vivo a poesia pulsa a natureza explode o amor me beija na boca um Deus insiste que sim

sei não acho que só vou morrer depois de mim 134 • Tanussi Cardoso

Copacabana

A noite infiel. Eis que os gatos são pardos e, onívora, ela mascara e mente com sua escura garganta de dentes. Porque o susto dos edifícios espanca os olhos, a noite veste-se de anjos caídos, famintos de Bob’s e gorduras, enquanto as pernas dos travestis e prostitutas suavizam as calçadas da Prado Junior. Vidro (ou porcelana) que se espatifa entre murros e balas perdidas, a noite tem janelas abertas no último andar, olhos passeando nos sapatos, chupadas homéricas, glandes e grades bestiais e come menininhas dentro da Atlântica. A noite e seus esqueletos, seus cordeiros sem Deus, coxas, garras, desesperos embriagados e sua poesia concreta. As 1001 luas de encantos e contos reinventados, onde sereias se internam nos aquários dos hospitais e grafitam nas paredes pálidas dos hospícios. A noite sem tempestades, feito mar sem sal. Realeza intacta como crina de cavalos selvagens que o vento serpenteia e alisa. A noite – lírico punhal sangrando os domingos. Tanussi Cardoso • 135

A escuridão fundamental

Um homem no escuro ainda assim é um homem.

É sempre mais que a escuridão que o assombra.

É belo tal um navio-fantasma quando naufraga.

É triste feito a flor do meio-dia.

Move-se como se move um cão: pelo faro.

Mas tem a luz de um relâmpago: ainda que acesa a lágrima.

Um homem no escuro é seu próprio enigma: silêncio indecifrado. 136 • Tanussi Cardoso

Cilada

O amor não é a lua iluminando o arco-íris nem a estrela-guia mirando o oceano

O amor não é o vinho embebedando lençóis nem o beijo louco na boca úmida do dia

O amor não é a angústia de se encontrar o sorriso nem o vermelho do coração dos pombos

O amor não é a vitória dos navios e dos barcos nem a paz cavalgando cavalos alados

O amor é, sobretudo a faca no laço do laçador O amor é, exatamente o tiro no peito do matador Tanussi Cardoso • 137

O tênue fio do tempo

o menino, o pai e o violino unidos, únicos, sozinhos

árvores num jardim de delícias dedos de brinquedos do destino

delicados, os gestos do pai ensinam ao menino o violino

cordas num mesmo abraço sons de um mesmo sino

(só a vida determina a equação dos caminhos)

não se sabe onde doeu o grito quando o elo foi perdido

o menino cresceu do pai entre solidões e atritos

e nunca mais se tocaram como se toca um violino 138 • Tanussi Cardoso

Poema para depois da solidão

e verás o tempo perdido porque não abraçaste suficiente o amigo

por medo por desleixo por pudor

por falta de flor no peito

e sentirás a angústia do vazio

porque os braços eram escorregadios porque as mãos não se doaram porque a boca não ofertou o beijo

porque o sexo diluiu-se em gozo porque o amor foi dito sem fogo porque a palavra mentiu seu desejo

tudo parou a noite baixou como morte

agora recomeçar como o homem que viu a aurora e entendeu o sinal Marcelo Moraes Caetano

arcelo Moraes Caetano é doutor membro do PEN Clube do Rio e da Acade- em Letras pela Universidade do mia Brasileira de Filologia. Suas obras mais M Estado do Rio de Janeiro (UERJ) recentes são Silêncio (poesia), Ed. Jagua- e mestre em Letras pela PUC-Rio. Profes- tirica, 2020, e Em busca do novo normal: sor adjunto da UERJ, escritor com mais de reflexões sobre a normose em um mundo 50 livros publicados no Brasil e no exterior, diferente, Ed. Jaguatirica, 2020. 140 • Marcelo Moraes Caetano

Homenagem a Florbela Espanca

Nas minhas madrugadas, sempre vais à busca de outra dama preferida. E deixas-me rezar nas catedrais dos sonhos sem altar, reza mentida.

Fio-me em ter-te um dia entre os cristais, mas isto é veleidade desabrida. Oh Deus, rezei por tão inútil lida! Não fui fiel às causas divinais!

Há de remir-se em mim feito uma santa um vaso de pureza e castidade, o dom de ajoelhar-me às cousas pias.

Hei de carpir do que ora me quebranta uma canção divina que me invade e olvidarei de ti, que me inebrias... Marcelo Moraes Caetano • 141

Arquitetura da ida

No entorno das façanhas mais sublimes, onde não se abstrai nada dos fatos, onde humano não sabe e comete crimes, onde o espelho nega até os retratos...

Quando o tempo se embrenha com o espaço, e tudo é somente ser ou não ser, dar-se-á veloz o tal primeiro passo no trem da vida, esteja onde estiver.

Não falo sobre o que já está superado, nem sobre quem quero que me abandone, tampouco sobre alguém que nem me espera.

Falo sobre a perfeição do quadrado, sobre a elegância linear do cone, sobre a ternura serena da esfera. 142 • Marcelo Moraes Caetano

poema quadrante

A V E

V V

E V A Marcelo Moraes Caetano • 143

Bilac no Rio de Janeiro

Ora (direis) ouvir estrelas! Certa é a fila do supermercado santo. O preço do feijão saiu da oferta. Eu pedir-vos-ei: bradai um belo canto.

Todas as noites, num suave acalanto, persigo a voz da via láctea alerta; olho fito no infinito e seu manto celestino em espiral que desaperta.

Direis agora: “O preço a que chegou o trigo já não permite que o pão – angelical – seja de qualidade, meu amigo!”

Eu vos direi: “As feiras são mais belas, são mais baratas, aguardai o final: a xepa traz tangerinas e estrelas!” 144 • Marcelo Moraes Caetano

Teresa

A vez primeira que eu fitei Teresa, pensei que fosse um erro rococó. Quando sorriu, meu Deus! Ai que tristeza! Ela era feia, feia de dar dó!

Com a sutil leveza das carrancas Me disse “Olá!”, me ofereceu um lírio. Quis dar-me um beijo. Eu, louco de martírio, desvinculando-me de suas retrancas.

Eis que me tenta abraçar entre os seus loucos suspiros de opressora louca. Eu só gritava: “Adeus! Adeus! Adeus!”

Ela insistiu. Fez-me correr à beça. Tenho amor-próprio e paciência pouca. Pois se ela chora a mim não me interessa. Marcelo Moraes Caetano • 145

Tecendo a noite

Uma aranha sozinha tece uma teia: Ela não precisa de outras aranhas. Nem de uma que teça esse fio que ela e o desfie a outra; nem de outra aranha que teça o fio de uma aranha antes e o desfie a outra; nem de outras aranhas que com nenhumas outras aranhas se enlacem os fios de lua de seus silêncios de aranha, para que a noite, desde uma teia tênue, se torne têxtil, entre todas as aranhas.

E se incorporando, entre todas, se esgueirando tenda, onde entre só uma, se entretecendo para todas, no todo (a noite) que plana plena de solidão. A noite, todo de uma teia tão aérea que, têxtil, se eleva por si: lua-imensidão. 146 • Marcelo Moraes Caetano

Meio a meio

(para o querido )

um pouco de mim é gesto um pouco de mim é mudez um pouco de mim é texto um pouco de mim se desfez

um pouco de mim retrata um pouco de mim avança um pouco de mim é prata um pouco de mim é lança

um pouco de mim explode um pouco de mim germina um pouco de mim se esconde um pouco de mim desatina Yke Leon

ke Leon é poeta, jornalista, apresen- Jornalismo pela PUC-Rio e pós-graduado em tador, produtor e roteirista. Douto- Arte e Literatura pela mesma instituição. Y rando em Comunicação pela Ponti- Vencedor de prêmios literários, é pesquisa- fícia Universitade Católica do Rio de Janeiro dor de música brasileira, cultura e amor. Atual- (PUC-Rio) e mestre em Mídias Criativas pela mente é Superintendente de Leitura e Conhe- Escola de Comunicação da Universidade Fe- cimento da Secretaria de Estado de Cultura e deral do Rio de Janeiro (UFRJ), é formado em Economia Criativa do Rio de Janeiro. 148 • Yke Leon

Feixe de luz

A fina fresta de luz que escorre pela porta do meu quarto Antes de dormir É como uma trilha de fótons que me levam até o pote no final do arco-íris

Agora mesmo a luz tomando forma entre a fresta é como um espelho do horizonte projetado sob meus pés

Estiquei a mão para fora da cama E não consegui conter a invasão

O feixe de luz atravessou a minha mão

Como se eu também fosse de luz Como se eu também escorresse pela porta

Do lado de fora uma lanterna invisível aponta para uma fresta fina de luz que escorre pela entrada do quarto

Levantei e fui em direção àquela claridade Como se me jogasse numa piscina luminosa que preenchesse o corpo de fora para dentro

Enquanto a força dos feixes me atravessava Tive uma revelação: O céu é uma barriga invertida Estamos dentro do estômago do universo. Yke Leon • 149

Formiga

Segui o caminho de uma formiga Com o olho. Tomei seu corpo Como sendo meu.

Não entendia aquela rigidez da ordem. Andei, subi parede, passei pelo canto do canto, não cheguei a lugar nenhum.

Até que uma delas, Me chamou mais afastado e disse: “A gente se segue de curiosidade”.

De repente Ficou claro: A formiga não se aguenta na própria vida E tem sede da vida do outro.

E então eu fiquei muito triste De lembrar Que tem um monte de gente Que é formiga também. 150 • Yke Leon

O leite

Sou tanto que nem me caibo. Procuro-me em tudo que perdi E abro, mexo, reviro as gavetas Para me olhar de fora.

Não sei se me gosto, Mas me convivo Queira ou não queira.

Outro dia Achei um pedaço de papel amassado E abri. Estava escrito Num garrancho juvenil: “Não esquecer o leite”

Lembrei-me do copo Que esqueci por cima da pia Nesta manhã. O vidro acomoda aquilo Que – talvez – tenha esquecido De lembrar.

Um pouco de mim ficou no leite que não bebi. Yke Leon • 151

O pássaro

Sabe, Beatriz, Essa coisa da lógica pode me pegar um dia E me tomar todo pelas suas medidas. Saberão quanto peso, que tamanho tenho, os sapatos que irei comprar, e o banco que me abraçará melhor.

Mas nada disso importa, minha querida.

Jamais conseguirão em números exatos O prazer que sinto quando mergulho numa cachoeira Ou quando invado algum abraço bem apertado. Não há engenheiro capaz de medir De quantas cilindradas é feito meu afeto.

Por isso não quero entender para repetir, Gosto do que existe enquanto unidade.

Agora mesmo ando no desenho de uma nuvem torta, Que vejo deitado deste jardim molhado.

Só quero fechar os olhos agora, E me sustentar no ar por algum tempo. Como o pássaro que esquece as suas asas E simplesmente voa.

É isso.

Quero andar como quem simplesmente voa. 152 • Yke Leon

Poema da papelaria

Hoje eu vi uma fotografia impressa em papel Paraná Nunca tinha ouvido falar em papel Paraná

Virei pro lado e perguntei: – Por que Paraná? – Por que não ofício? – Por que não A4? – Por que não A3? – Por que não Carta? – Por que não Jornal?

Aprendi que as coisas em papel Paraná Deixam a imagem mais bonita

Peguei uma folha em branco e Rabisquei teu nome nela

Peguei outra folha em branco e Rabisquei um poema nela

Corri para te mostrar. A chuva molhou os meus bolsos E apagou o que eu tinha escrito no papel Paraná.

Não sobrou nada da minha caligrafia.

Mas você ainda me amava, Mesmo sem papel Paraná. Mesmo sem poema.

Eu não soube te proteger da tempestade. Mas não importa. O amor é o que fica depois da chuva. Yke Leon • 153

Você não deveria ter surgido agora

Você não deveria ter surgido agora Atropelando a minha vida com tanto ar

De que tamanho é o seu pulmão? Quanto cabe de amor dentro dele?

Me abraça com a sua respiração E aperta a cada vez que inspirar E afrouxa a cada vez que expirar Mas não solta Não me desamarra do teu abraço

Eu quero que o meu nome seja o seu bocejo o seu espirro a sua tosse

E que você diga ele no meio de uma frase solta de um pensamento invasivo de um sonho malicioso de madrugada

Eu quero ficar preso na sua garganta E nunca descer E nunca subir

Me deixa só estar ali Parado Lambendo seu pescoço por dentro 154 • Yke Leon

Alívio

E como é que se livra deste desejo incontrolável de traduzir o mundo em versos? Defini limite: Só enquanto houver uma folha, Escondida debaixo de alguma pedra, Impedida de seguir o vento, Continuarei a escrever. CONTO Esquisse

Godofredo de Oliveira Neto Romancista premiado, é autor de 12 livros de ficção, entre eles O bruxo do Contestado, Menino oculto, Grito, Amores exilados, Marcelino e Ilusão e mentira. Menino oculto e Amores exilados estão na 4.a edição na França, com grande repercussão nos jornais Le Monde e Le Figaro. O autor é o atual professor titular de Literatura Brasileira da UFRJ. É titular da Cátedra Machado de Assis do Colégio Brasileiro de Altos Estudos da UFRJ.

Ouvi o som doce de sapatilhas na madeira York: herança. A Saint Patrick’s Cathedral do palco, sedas de violinos, acordes de se embaralha, a minha visão se turva, pode músculos, um azul turquesa me envolvia os ser pelo fato de ter levantado a cabeça para olhos, voei por sobre montanhas e vales, olhar detidamente as torres, não sei, traços batia asas, o mundo era meu, Tchaikovsky me de quadros de Jheronimus Bosch debruam acompanhava, Stravinsky me cumprimentava, as quinas da igreja, morcegos entram e Ravel fazia mesuras de cortesia em minha direção. Todos diziam baixinho voa, Nikki, saem indecisos e histéricos pela porta cen- voa, isso, assim, foge do trovão, ouve só a tral, o céu escurece, a cidade escurece, os primavera, deixa rebentar as flores, aprecia os prédios em volta escurecem, a catedral se ninhos, o amor, o céu, deixa silvar a cotovia incendeia, rubra entre o breu, entre trevas, e o rouxinol, voa sobre o Danúbio, sobre as entre o nada, o inferno, me puxam para águas de Veneza, isso, ouve os violinos. dentro, alguém me toca as costas, não, não NIKKI K.M.L. quero ir, diabo, não me empurra, acho que desmaiei, de baixo para cima vejo rostos próximos ao meu, vários, órbitas de várias ncontro o parente na entrada da Saint cores, bocas, narizes, sempre me pergun- Patrick’s Cathedral, em Nova York. Foi tei como um nariz, uma boca e dois olhos E ideia dele. Às 14 horas ele deve che- podem construir rostos tão diferentes, me gar. Por que exatamente neste lugar não disseram que a combinação de palavras sei. Parece filme policial. É que ali não tem também, agora era o caso, quantas caras erro, num café poderia gerar confusão, são distintas umas das outras me olham? Um parecidos, a catedral todo mundo conhece, braço mais amigo me levanta, fala em portu- explicações dele no whatsapp, eu ainda no guês, está melhor? Estou, obrigado, a língua Rio de Janeiro. Examino as torres, li terem me acalma, até então naquela posição sub- cem metros de altura, comparo as portas e jugada só ouvia oh my God. Claro, era o pa- a rosácea com as de Veneza, que visito em rente. Reconhecível pela barba aparada, os breve pela mesma razão da vinda a Nova olhos esverdeados, o cabelo liso alourado 156 • Godofredo de Oliveira Neto da minha avó, cara de meio perdido, me no esgoto, é assim que me vejo, no esgo- lembrou alguém do Brasil, claro, a nossa to, caído na sarjeta. Escrevo algumas linhas família toda vem do Vêneto, não lembra? no guardanapo de papel, será meu epitá- sim, sim, lembro, Belluno, Veneza, Trento, fio ou serão minhas memórias? Confissões Bérgamo, por ali. Claro, Sordi. Digo o nome de um derrotado moralmente, profissio- dele pela primeira vez, como o ator de ci- nalmente, eticamente, o esboço do Bosch nema italiano dos anos sessenta, ele diz o como a minha vida, um loser, um projeto meu, sim primo Luiggi. A semelhança com rudimentar de vida que não se concretizou, certas pessoas do meu país não me cai bem, um esboço de existência, uma esquisse de sinto azia, por que desmaiei? Ele abre o ce- quadro. Grandioso em alguns sonhos. Só lular, minha cara no visor, reconheci você na em sonhos. O que estou fazendo aqui, meu hora, me diz, abro o meu aparelho, custo Deus? Por que alimentar a esquizofrenia da a me concentrar nas teclas, Sordi aparece família? afinal, sorridente, parece franco na foto, A quem estou enganando? O encontro ele é honesto? Examino-o como examinei será em Veneza, não rolou com o Sordi em as torres da catedral, ele olha para o chão, Nova York, agora tem que continuar, Lui- tímido até agora, propõe logo um café nas ggi. Um dos tios ainda diz a frase chavão cercanias. Antes o clássico aperto de mão, e de mau gosto “se só tem tu vai tu mes- o jogo começa, segura meu braço, tapinha mo”. O parente desconhecido, desta vez, nas costas. Ator italiano dos anos sessenta que cara terá? As fotos nas redes sociais caricaturado. Quer ir ao hospital? Não, não, são dele mesmo? As feições regulares, o estou ok, de vez em quando tenho isso, já bigode fino, cabelo ruivo, enferrujado se estou acostumado. dizia na minha escola, tinha vários no colé- gio, ele vai me passar a esquisse do Bosch assim? A gente permuta um apartamento 2 de duzentos e cinquenta metros quadra- Atravesso a rua no sinal fechado, uma dos na Avenida Beira-Mar Norte em Floria- mulher de cabelo curto, loiro, ao volante nópolis, três quilômetros de terra na beira de um carro de marca japonesa me acena, da BR-470 entre Navegantes e Blumenau, retribuo o gesto algo hesitante, ela põe o um quarto e sala quase esquina da praia indicador na orelha e gira, louco eu? Me do Leblon no Rio de Janeiro e um apart­- dou conta que ela limpava o para-brisa em- -hotel de trinta metros quadrados em Fort baçado, o lenço servia para isso, termino a Lauderdale, nos Estados Unidos, todas travessia constrangido, entro num café per- propriedades de meu avô deixadas para a to do terminal de ônibus, na calçada a placa família, pela esquisse. Olho as escrituras, Veneza-Noale, o último cheiro de gasolina tudo em dia, já passadas para o seu nome, e escapamento, logo só gôndolas, lanchas um nome longuíssimo, Alessandro De An- e o vaporetto de transporte público. Daqui gelis Palumbo Marchetti de Santis Marini a pouco o hotel na rua Mandola, perto do Coutinho, só falta minha assinatura, o in- Campo Sant’Angelo. No Café o conhaque ventariante. Em troca ele passa o Bosch desce tal uma barata se arrastando devagar com uma declaração de que a obra lhe foi Esquisse • 157 ofertada de boa-fé por um contraparente, Meirelles. Sordi insistiu, em Nova York, que obra que estava com a família dele desde eu deveria sempre realçar Victor Meirelles, 1901. Alessandro se compromete a assinar, Cruz e Sousa, Anita Garibaldi, o monge no cartório de Veneza, a devolução aos ver- João Maria e o naturalista Fritz Müller como dadeiros proprietários, a família Coutinho grandes expoentes catarinenses da história Sorrentino Caruso, nomeadamente os her- do Brasil, e agora, com a posse do Bosch, deiros Matilde, Alberto, Gianfranco e Júlio. vocês serão a sexta referência brasileira. Sei o script de cor e salteado, repito ele há Não desgostei dessa proposta, à noite sen- semanas. Os advogados das duas partes já ti a culpa cristã de sempre pela vaidade e resolveram o contencioso jurídico. narcisimo. A sexta personalidade cultural só Do Campo Sant’Angelo pego uma ruela por sermos proprietários de um quadro do e vou até o Campo San Fantin, do Teatro Bosch, que nem terminado está, é apenas La Fenice. Em cartaz “Fausto”, dirigido por uma esquisse, que vergonha pensar isso, o Frédéric Chaslin. Amanhã será o encontro que que os meus camaradas de esquerda com Alessandro no Ristorante al Theatro, ali pensariam? Tomo aperol em cima de aperol pertinho. Mensagem para Ana Júlia, con- no bar Brasilia, não poderia não ir com esse versa afetiva dessa vez, querida, amável, nome, perto do hotel, já tinham me reco- produtiva, se diz mergulhada nos versos de mendado, Sestieri San Marco 3658, antes Paul Éluard, Breton e Augusto dos Anjos, passei na livraria na mesma ruazinha, mais estou torcendo aqui por você aí em Veneza, um depósito de livros do que uma livraria, meu amor, pergunto a ela por que ela não consegui uma edição antiga, de 1901, em veio comigo, como eu poderia, Luiggi? E o super bom estado, de La Divinna Comme- trabalho? E além disso não quero me meter dia, Dante me persegue desde o Ensino Mé- nessa história de herança da família de vo- dio. Leio o canto XXV do Paraíso – Vinca la cês, não tenho nada com isso e essas coisas crudeltà che fuor mi serra/ Del bello ovile sempre dão rolo, é briga na certa, e como ov’io dormi agnello,/ Nimico ai lupi che ci foi lavrado um título de propriedade de algo danno guerra. As esferas, a oitava, as vi- que ainda não existe eu não entendi. O teu sões de Cristo e da Virgem Maria me sos- irmão podia ter te acompanhado, isso sim, segam, a Igreja triunfa, com Dante os remé- é verdade, mas ele nunca quer nada, Ana dios para as minhas aflições funcionam mil Júlia, está sempre deprimido, pois é, Luiggi, vezes mais. a família de vocês é desse jeito. Não gos- Posto mensagem carinhosa para Ana tei da observação negativa sobre a minha Júlia. Como agirá Alessandro? Será como o família, não disse a ela, mas não gostei, Sordi? No bar do aperol uma mesa de brasi- desliguei. leiros discute a política do Brasil, aplaudem Ligo para a Fabiana, colega da Uni- o esforço para pôr no seu devido lugar o versidade Federal de Santa Catarina, ela exagero do espaço do saber universitário, organizou uma conferência para mim na a arte esquerdista hipervalorizada, a ciência universidade Ca’ Foscari, falo sobre pintura dimensionada equivocadamente, devia-se brasileira do século XIX, vou dar força ao realçar, isso sim, a sabedoria popular hau- quadro A Primeira Missa no Brasil, do Victor rida não nos livros, mas na experiência 158 • Godofredo de Oliveira Neto própria, menos livros e mais saber, esse é o nós que elas estão olhando, mas para elas meu lema, gritou uma senhora de Ribeirão mesmas diante do vidro. Tudo agora é fake, Preto, secundada por Deus acima de tudo, perfis falsos, tudo invenção, então para mim completou o marido gordo de bochechas elas estão me paquerando e pronto, qual é arroxeadas, quase do tom das duas garrafas o problema, me explica ele no seu portu- de vinho engolidas. guês arrastado aprendido nos dez anos pas- No calçadão à beira-mar entre a praça sados no Brasil, em Itajaí, Santa Catarina. San Marco e Giardini – conto vir com Ana Logo passa uma jovem, nitidamente menor Júlia na próxima Bienal de Veneza – ando- de idade, dos seus dezesseis anos, morena, rinhas do mar passavam umas para as ou- com certeza mexicana, conserta a maquia- tras, em pleno voo, pedaços de peixe numa gem diante do vidro bem na nossa frente, experiência de comunidade surpreendente. Sordi arredonda os lábios e envia um beijo Os brasileiros comiam caviar, as andorinhas estalado. A mesa ao lado viu a cena. Pelo do mar me fizeram lembrar deles. Arle- jeito não gostaram. Também um rapaz ar- quins voam nas minhas retinas. Não vou rumou o rabo de cavalo diante do meu pa- desmaiar. Ainda tenho que telefonar para rente italiano, vira-se para um lado, para o os herdeiros, inclusive a minha mãe. Talvez outro, tira uma sujeirinha entre os dentes, também ao Aldo, mas o meu irmão vive em Sordi não mandou beijo mas não ignorou. outro planeta. Também gosto deste tipo, diz, junto com uma gargalhada que acabou por irritar ain- da mais a mesa ao lado. Na hora de pagar 3 explicou que só tinha uma nota de cinquen- Café pertinho da Saint Patrick’s Cathe- ta dólares, pagasse eu. E não esquecesse de dral. Uma vidraça espelhada separa a gente deixar pelo menos dois dólares para o gar- da calçada. Gozado, Luiggi, você saiu bem çom. Para uma outra jovem que deu uma escuro, nas fotos você parecia mais branco, paradinha na vidraça espelhada, Sordi mos- a cara do teu pai, aqui em Nova York você trou a nota de cinquenta, ela pareceu ver, e, é negro, no Brasil não, né? Não respondo, para minha surpresa, deu um beijo perto do responder o quê? Abro logo a conversa, vidro. Vê como elas enxergam, meu chapa. pois ele sabe o que estou fazendo ali. Vim Quando interessa elas veem, quando não, para reaver a esquisse do Bosch que está não. Argumentei que dessa vez é porque as com a nossa família há mais de cinco sécu- luzes do café estavam acesas e de fora se los. Exagero de propósito nos séculos. via, claro. Sordi respondeu com um fuck! Dois cafés, sim café italiano. O garçon Esse ia ser o meu interlocutor na divisão dos anota no iPad. Sordi sorri a cada mulher que bens, mais precisamente do esboço de um ajeita o cabelo, se olha e arruma discreta- quadro do Bosch. mente a saia, roda ligeiramente em volta Tarefa difícil e fácil para ele, fake e ver- da cintura, o reflexo como um espelho na dade, tudo misturado. Ia me tratar como Quinta Avenida. A cara do Sordi me informa se eu e nossa questão de herança fossem que a última, uma ruiva sessentona, batom verdadeiros ou ia me enrolar como nos en- vibrante, sorri para ele. Digo que não é para rolam há décadas? Esquisse • 159

4 comprobatório, o cartório de Florianópolis traduziu e chancelou a propriedade à vis- Me dou conta que ficamos três horas no ta dos documentos italianos devidamen- café. Tento lembrar das palavras, histórias te traduzidos. Só faltava a materialidade: de família, do sangue italiano que corre nas O quadro. nossas veias, segundo detalhou, em você Luiggi é fera para essas coisas, esquer- menos, precisou, mas dá no mesmo, ainda dista, maneja bem as mentiras dos partidos finalizou, cinquenta por cento é a metade, comunistas, observara tio Domênico, sol- sorriu ao dizer, assassinatos de parentes, teirão sem filhos, rabugento, oriundo da loucuras em outros. O mundo da Máfia em Lombardia, se orgulha disso, com fazenda Chicago seduziu aquele nosso primo lá do de tabaco e gado entre Indaial e Timbó, no Vale do Itajaí, sabe, o Humberto? Lembro- médio Vale do Itajaí e dono de apartamen- -lhe que só conheço o Humberto de nome, tos pelo Brasil afora e nos Estados Unidos. ele é quarenta anos mais velho do que eu, Mas no caso é o melhor, ordenou. E se en- você também, ah, cazzo, é verdade, res- riquecer com a gente vai deixar a luta socia- ponde, a conversa não acabava. Assim que lista, quer apostar? Todos riram. pago o café, Sordi combina outro encontro Na hora pensei em desistir, mas o tio num minúsculo café do outro lado da rua, Domênico tinha outras qualidades. Demons- Café Severino, de um brasileiro. A gente se trações de afeto eram para ele coisas de despede. Até amanhã, amanhã a gente fala maricas, palavra usada por ele. O afeto do Bosch, hoje foi para nos conhecermos vinha na alma da agressão. A gente tinha mais, murmurou, humilde agora na frase. que entender, minha mãe sempre dizia. E deixando esperança no ar. O good bye sai E para ele eu tenho cara de Jesus Cristo alto da sua boca, baixinho da minha. Os da com esse cabelo comprido roçando os om- mesa ao lado fazem uma reflexão negati- bros, afirmação dele. Às vezes acho que é va, não entendi, o Sordi entendeu, mostrou deboche, às vezes elogio. o finger, outro fuck you. Meu mundo Envio mensagem pelo celular. Ana Júlia de coroinha na igreja católica de Itajaí se responde, Florianópolis está com um tempo desmorona. maravilhoso, aqui está friozinho, tipo vento Nomeado inventariante de toda a famí- encanado na Quinta Avenida, nem parece lia, professor de história da arte na Univer- que ainda é só outono, Ana Júlia sempre sidade Federal de Santa Catarina, formação responde na hora, está tudo bem, meu dupla de advogado na Estácio em Criciúma, americano? tudo ótimo, previne a família o Luiggi é o cara para tocar o inventário. que já encontrei o Sordi, ah, que máximo, Frase peremptória do tio Domênico. Não vou dizer, e foi legal? Sim, o cara é meio es- tive escolha. Riqueza à vista para todos com quisito, mais velho do que eu pensava, mas a esquisse do Bosch na mão. O cartório de maneiro. OK. Amanhã vou fazer uma visita Veneza tinha dado o veredito final quanto aos meus pais, tem uma festa da família em à propriedade do quadro, um comerciante Nova Veneza. O pastor e o pároco da igreja holandês vendera ou dera a um membro da católica vão fazer uma cerimônia ecumêni- nossa família há tempos, há um documento ca muito bacana. Beijos. 160 • Godofredo de Oliveira Neto

Imagino Ana Júlia pronta para dormir, homens de capuz me empurram, caí, o lou- amarrando os cabelos, tirando a maquia- ro de olhos claros me mantinha imobilizado gem em volta dos olhos esverdeados, mãe com o pé no peito, o outro, tipo indiano, de família originária do Tirol italiano e pai chutava as minhas costelas, senti um pano do Tirol austríaco, dos imigrantes chega- enfiado goela abaixo, tossi, não conseguia dos à região em 1880, ela se orgulha des- respirar, o pano na boca impedia qualquer se passado, sempre compreensiva comigo, ar, apontei com o dedo, grunhi. Os dois me carinhosa, com mil explicações sobre o que levantaram, eu como morto, me jogaram na seja amor, ódio, afeto, amizade, simpatia, cama, puxaram um pouco o bolo de tecido, atração física, são pequenas diferenças, diz reconheci o guardanapo do café envidraça- sempre, e o traço separando essas noções do de antes, só então reparei a figura atrás muda toda hora. Amor é tudo isso mistu- dos dois monstros, Sordi tinha nas mãos rado, e o amor louco acaba em dois anos, uma enorme pasta, daquelas usadas pelos quantas vezes ela não me preveniu desse alunos de Belas-Artes para guardar os dese- jeito com largo sorriso? Sorriso de indul- nhos e esboços. Abriu a pasta me olhando, gência, de condescendência? A terapia com cara de torturador. Um pôster do qua- com conhecida psicanalista de Florianópolis dro A nau dos loucos, do Bosch, a centíme- deve ter ajudado ela nas definições, não sei tros dos meus olhos, é esse que você quer, o que ela viu em mim, o loser, como me seu escroto, seu filho da puta, Sordi parecia qualificam os membros da minha família. outra pessoa, violento, sórdido, como seu A noite no hotelzinho acanhado foi tu- nome lembrava, falava grosso, tá vendo a multuada, barulho na rua, barulho do quar- monja franciscana, porra? Simão, Pedro e to vizinho, barulho de criança de colo no Jeová, o clero pecador, seu brasileiro viadi- quarto da frente, de descarga de vaso sani- nho, gosta de quadro que tem o bem e o tário perto da escada, de conversas em lín- mal na luta, caralho, é isso que tu qué? Sor- guas estrangeiras, aos brados, passando no di imitava um palavreado que não era o que corredor. Quarto só com uma pia. Toalete eu tinha ouvido há poucas horas no café, no corredor. Também, cinquenta e três dó- ele não conhecia esse registro linguístico do lares a diária quase não tem aqui, só lá onde Brasil, tá vendo os dois caras com água na você está, na parte mais pobre do Brooklin, cintura, esse carregando essa tigela aqui, Brownsville, por lá, Sordi dixit. Sonhos e pe- ó, tá vendo, ó? Esse com certeza ia mor- sadelos. Foi assim a minha noite. rer logo depois, como tu vai se continuar Amanhã vai ser o encontro no Café Se- insistindo em treco de herança. Comecei verino, 11 horas. a tremer, a suar, Sordi continuava, sabe o que eu faço com essas merdas? Isso aqui, ó, rasgo pedacinho por pedacinho e enfio 5 na porra da tua boca, senti o algodão do A porta quase arrebenta, não eram ba- guardanapo ser substituído por pedaços de tidas, mas murros, acordei com a impres- papel, Sordi caprichava no recorte da monja são de levar pauladas na cabeça. Já vai, franciscana, acabou enfiando o quadro in- já vai, balbuciei, um momento, abri e dois teiro em pedacinhos na minha boca, senti Esquisse • 161 que ia morrer sufocado, o braço dormente, tem? Tenho, foi vendida para um grupo po- o travesseiro apertando o nariz, as costelas deroso, é distribuída geral no Brasil e con- doíam, a cabeça latejava. sigo comprar. Penso comigo que se fosse num romance ninguém ia me acreditar em Nova York tomando uma cerveja nascida no 6 Vale do Itajaí. Café Severino. 11 horas em ponto. Não 13 horas. Sinto fome. Vê um acarajé é bem um café, mais um corredor, murmuro. também, please. Saiu please. Ele me respon- O quê? Pergunta o rapaz atrás do pequeno de em inglês. 13h30 nada. 14 horas mensa­ balcão. Nada, respondo. Comida baiana es- gem. Luiggi, meu primo, deu problema aqui crito em português. Você é baiano? Não, na em casa e o celular deu bug, só agora con- verdade sou de Alegrete, no Rio Grande do segui me organizar. Sordi marca para a noite Sul, de família de origem ítalo-alemã, mas seguinte, endereço, tipo night club mas de- aqui só desperta algum interesse o Brasil cente, conforme detalha, numa rua não mui- negro ou indígena, de origem europeia não to longe do meu hotel, faço esse esforço de tem o menor valor pra eles, daí vão para sair de New Jersey por você, querido primo. a Alemanha ou para a Itália e pronto. Mas Me surpreende essas histórias do Sordi, mas meu mundo está escrito ali naqueles ver- pode ser verdade, pergunto para a Ana Jú- sos na parede, De boleadeira na mão / De lia o que ela acha, ela que sempre responde barbicacho apertado / Vou de poncho pelo agora não lê a mensagem, penso telefonar, estradão / Vou no meu bagual montado / mas não há muita coisa para dizer, melhor Na guaiaca a faca fina / No coldre a minha esperar. garrucha / Enfrento boi, bandido e bruxa / Mas tremo por uma china. O rapaz, estimulado pela leitura, pela 7 sua própria voz de poeta e pelo cheiro dos Ana Júlia me escreve duas horas depois, pampas gaúchos, retira uma cuia da pra- diz que vai me passar um fato meio desa- teleira. Peço um café. Nesses dez anos de gradável, um longo diálogo enviado por Estados Unidos não deixei um dia sequer engano pelo tio Domênico, o e-mail é ruim, de tomar chimarrão. Acho que já ouvi esses muito ruim, Luiggi, inacreditável, muito versinhos folclóricos, lhe digo, é, é conheci- feio da parte dele, te envio em breve. Não do no Sul. Entram duas chinesas, não china imagino o que pode ser, doença, morte na do versinho, pedem coca e cheeseburger, família, falcatruas, me diz sobre o que que a fumaça e a gordura invadem o corredor. é, Ana Júlia, que porra é essa? Espera um Olho o relógio, 12 horas, nada do Sordi. pouco, Luiggi, estou falando com o teu ir- As chinesas são substituídas por dois brasi- mão no fixo. leiros, vê duas coxinhas e um acarajé, com- Se a gente conseguir mesmo o esboço padre. Uma cerveja e dois copos, tem brasi- do Bosch a gente manda todo mundo sifu leira? Tenho, claro, então manda aquela de e vende o quadro em São Paulo. O Luiggi Petrópolis. Termino o café, também peço é fraquinho, o irmão um bosta derrotado, cerveja, a Eisenbahn, aquela de Blumenau, nunca deu certo na vida, abre um negócio, 162 • Godofredo de Oliveira Neto fecha um mês depois, abre outro, pega e comunista. E sem viado. Minha Igreja é fogo, acho que ele mesmo bota para não a guiada por Jesus, e nessa não tem essa trabalhar e não precisar pagar o dinheiro pouca vergonha, a minha igreja valoriza o que emprestei para ele, cinquenta mil assim trabalho e a ordem, Deus está no coman- na bucha, qual é? do. Não vou deixar os meus quatro irmão Ele nunca pagou, Domênico? botarem a mão no quadro de Bosch, vão Não, nunca pagou. Só que a gente tem jogar tudo fora, não sabem negociar, têm que se precaver, Timóteo, se precaver. Ele é vergonha de ganhar dinheiro. bem capaz de ir falar com o tio dele, o meu Mas o Sordi não é o primo querido do irmão Júlio, dos direitos humanos na ONU, Alberto do colégio americano? principalmente porque ele está lá em Nova Até certo ponto. É primo de brincadei- York. Júlio tem um carguinho pequeno lá no rinha, a gente conheceu ele na infância. almoxarifado. E ainda escrever para os ou- O Sordi descambou para o outro lado, mas tros dois tios, o que é professor de biologia agora é figura essencial para nós. num colégio para refugiados africanos na Quanto vale o quadro do Bosch, Domê- Califórnia, o Alberto, e o Gianfranco, que nico? trabalha como secretário de diretor – o equi- Não é bem um quadro, um esboço ape- valente de datilógrafo na minha época – na nas de um quadro famoso. OMS em Genebra. Os quatro juntos, contan- Sim, ok, mas quanto vale? do a minha irmã, têm força porque se unem. Dez milhões de euros!! Sacou a jogada? O projeto de vida deles ficou sempre pela Sordi ficará com uma parte, mas o quadro metade. Como esboços de vida, de carreira, não está com ele. Vou dar uma parte para a um sonhava ser professor numa universida- Igreja e com a outra, pequena, vou comprar de americana, os outros dois diplomatas. Eu uma fazenda em Mato Grosso. Mas fazer estudei pouco, vim de baixo, lutei, sofri, suei, tudo na legalidade. Não quero problemas, mas venci. Sou o único de nós cinco que tem só não pode deixar o quadro cair na mão um pouco de recursos financeiros. desses meus irmão. Continua com os apartamentos aluga- Mas como a justiça atestou a proprieda- dos em Florianópolis? de um quadro que não está materializado? Continuo, além da fazenda tenho de- Isso é que você vai ter que resolver, Timó- zoito apartamentos em Floripa, oito em teo. Te chamei para isso. O juiz se baseou na Balneário Camboriú e cinco em São Paulo, foto. E a família toda assinou um termo afir- em Miami tenho dois, mas aqueles para mando que não pode mostrar o quadro por o meu uso. Tudo fruto do meu trabalho, medida de segurança. A posse é provisória. de investimentos, de compra e venda, de Ok. incorporações imobiliárias. Meus irmãos A Matilde, minha irmã, acha o Luiggi nunca gostaram de mim porque eu sou do um deus, inteligente, estudioso, filho que campo, da linha de frente, da luta diária, qualquer mãe queria ter, ele foi para a Uni- que sou religioso, que eu tenho precon- versidade porque não sabe fazer nada, não ceito o escambau, e tenho mesmo, e daí? achou trabalho. São todos assim, parece um Quero um Brasil e uma Europa sem macaco esboço de vida, uma esquisse de quadro. Se Esquisse • 163 você conseguir me ajudar nessa luta jurídi- Ok, Domênico, tenho uns conhecidos ca, te dou dois apartamentos, você escolhe na comunidade nova-iorquina, morei lá um qual e escolhe a cidade. tempo, tenho advogados amigos, uma rede Ok, Domênico, ok. Topo. parceira, vou dar um jeito no Luiggi. Mas e o que fazer com o Luiggi? Eu sei disso, Timóteo, por isso te cha- É deixar rolar, ele vai se emaranhar nas mei. Apaga o e-mail depois, tá? próprias pernas, Timóteo, pode ter certeza. Claro, Domênico, claro.

Banca de jornal

Renard Perez Contista, romancista, ensaísta e jornalista.

Para João Fernandes de Morais (Fernando) que acaba estendendo o maço, aceita, mas insiste que pegue do seu, troca de gentile- e repente, na esquina, a banca de zas, o que é que tem aí bom pra se ler, tem jornal. A rua escura, as calçadas Flash Gordon? Tem não, Flash Gordon não D já vazias, os carros voando, à sua sai mais. Não sai? Não sai mais Flash Gor- direita as grades descidas, o chão úmido don? Sai não. E tem Ferdinando? Acabou das lavagens, lá dentro os balcões e suas também. Também não sai mais? Sai mais registradoras em sossego, o aparelho des- não. O que porra é que ainda sai? O ou- ligado de café, as garrafas repousando nas tro meio que ri, vai olhando as capas de cor prateleiras, a noite acabou. A cabeça meio no jeito meio profissional, meio displicente, zonza, não era sonolência antes um embo- tem Fantasma, tem Terror, tem Flinstone, tamento, ir para casa, o jeito agora é dor- serve não, eu queria Flash Gordon, Flash mir. Súbito além da transversal aquela luz, a Gordon no Planeta Mongo, o Zé MuIambo, claridade contra o prédio da frente, os pos- o Brick Bradford. O outro não entende, não ters dependurados por fora da armação. E tem metade de sua idade, engraçado, nun- o rumo dos passos em direção à claridade, ca viu um jornaleiro moço na madrugada, além da abertura a figura emoldurada pe- também não é italiano, você é cearense, las capas de cor lendo qualquer coisa, alô meu chapa? Olha a rua, os ônibus passan- companheiro. do vazios, barulhentos, o trocador fuman- Os olhos que deixam a leitura e o fi- do, uma luz baça no céu, tu não bebe não, tam, um jeito de avaliação, os lábios que tu fica amarrado aí, tu quer uma cervejinha, se abrem num sorriso. Tudo bom, compa- eu vou apanhar uma cervejinha pra ti, a nheiro. Apoia-se ao balcão, tem o Jornal do gente fica bebendo. Dá pé não, cara, deixa Brasil? O sorriso, ainda não chegou, tem só pra lá. Um gesto, umas passadas na noite, o segundo caderno. Apalpa-se, encontra não há mais banca, prédios escuros, uma o maço, aceita um cigarrinho, diz pergun- esquina, outra esquina, aquela luz, aquele tando. Obrigado, tenho cigarro, e é o outro movimento, as vozes. A caminhada outra 166 • Renard Perez vez, a banca novamente, o jornaleiro sorrin- a cabeça balançando, tu não está te lem- do. Um bate-papo, um gosto bom na boca, brando não, cara? Foi no sábado, tu an- as grandes pilhas chegando, um jardinzi- corou sábado aqui, a gente conversou, fi- nho. O relógio – puta-merda já são cinco camos falando até o cu da madrugada, tá horas, meu chapa acho que vou andando, lembrado não? amanhã é dia de branco, boa noite compa- Foi no sábado, eu parei aqui no outro sá- nheiro, eu acho que vou levar o Fantasma, bado? E não parou, não, puta-merda, e tu o Mandrake, esse tal de Flinstone, esse ne- não te lembra de nada? Quer dizer que eu gócio presta? passei sábado aqui, eu acho que estava doi- As histórias em quadrinhos sobre a me- dão, então é por isso, as revistas, acordei no sinha, onde diabo foi arranjar isso? A gar- domingo com umas revistas de historinha, ti- ganta irritada, um maço de cigarros cheio, nha Fantasma, tinha o Flinstone, tinha um tal na cadeira as calças jogadas, apenas três de Riquinho, então deve ter sido daqui que moedas nos bolsos, caramba, bebi feito eu levei, quer dizer que eu estou devendo as uma besta. Uma cena vaga, uma conversa revistas. Tá não, cara, tu pagou, pagou tudo, com alguém, e aquelas revistas em quadri- pagou até quase dobrado, dizia que traba- nhos, terei parado num jornaleiro? lho à noite é “bandeira dois”. Puxa vida, eu Diabo, isto está chato, o melhor é me devia estar ruim, eu estava ruim não estava? mandar, garçom vê a conta aqui. Bota ruindade nisso, tu estava naquela base, Movimento no bar da esquina. Um cho- disse que se eu não recebesse dobrado en- pinho, está certo, um chopinho em pé, o úl- tão tu ia comprar um negócio pra mim, per- timo, depois deste eu me mando. O copo na guntou se eu bebia, eu disse que estava sem frente e de repente nenhuma vontade, “não beber, se fumava, disse que fumava, então cabe mais nada”. Deixa o copo quase cheio, tu saiu, voltou com um Continental e com vasculha os bolsos, vai andando enviezado. uma água tônica e um ovo cozido, e duas O táxi passa devagar, a mão volta ao bolso, cebolinhas, foi apanhar lá no Beco da Fome, não dá para o táxi. Um sinal de agradeci- te lembra não, cara? Tu ficou aí um tempão, mento para o motorista, vai andando a pé. eu disse que o patrão tava vindo, era bom tu A calçada sem fim, o ponto de ônibus, te chegar, tu se mandou, ia naquela base. O eu acho que devia apanhar o ônibus. Em ônibus vinha chegando na esquina e tu cor- pé junto ao poste, a rua vazia, dois caras reu, ele diminuiu a marcha e tu conseguiu conversando, a porra desse ônibus não che- pegar, eu fiquei só olhando, achei que tu ga. Novamente os zigue-zagues, lá adiante ia se estrepar no caminho. Fiquei pensando a luz, essa luz, aproxima-se, a fisionomia que não devia ter te mandado embora, tu dentro da banca parece familiar, “oi, meu ficava por aqui descansando até melhorar, chapa, como é que vai”. O outro sorri, o correu tudo bem? Correu bem, sei lá, acho aceno com a mão, tudo bem? Um cigarro? que correu, eu não estou aqui? Ah, gostei do O tipo aceita, fuma também, você não se Riquinho, acho; que foi daqui que eu levei, é chateia de ficar aqui a noite toda? uma historinha legal. Franze a testa – eu acho que conheço Duas da matina, a claridade da banca, você de algum lugar. Aquela fileira branca, só que já não são apenas as pernas que o Banca de jornal • 167 levam. É algo menos inconsciente, não está és pernambucano, cara? Tu parece Pinel. Te tão alto assim. Lá está o jornaleiro sentado respondi na primeira vez que tu encostou no gradil que cerca o jardinzinho, se chega, na banca, já disse umas cinco vezes, porra, oba, o outro até sorri. sou do Rio Grande do Norte, vê se dessa Aceita o convite, senta-se também no vez não esquece, diz rindo, eu sou de Natal, gradil. Na frente a banca, sua aparente sou do bairro do Alecrim, da tua terra. Tu armação de papéis coloridos, as revistas já me disse que também é do Rio Grande suspensas dos fios de arame, presas entre do Norte – dá novo sorriso, a cabeça balan- si pelos pregadores de roupa. Miniatura de çando. Olhou fascinado, é mesmo, tu falou, um palco extravagante, teatrinho de fanto- de repente começou a lembrar, como é que ches, um brinquedo de armar de seu tempo tinha podido esquecer. Porra, tu és também de menino. E o entrelaçado das imagens. do Rio Grande do Norte, sou de uma cidade Pernas que empurram faces, sisudas, sorri- perto da tua, sou de Goianinha, tu conhe- dentes, opostas famas que se ladeiam, Pelé ce, é quase fronteira com a Paraíba. O ou- e Kissinger, Batman e a Princesa Grace, Aris- tro rindo, e nele um calor por dentro, uma tóteles, Tarcísio Meira, e as letras dos títulos, coisa sedosa, aquela coincidência, o cara é a bola roçando a ponta dos dedos do go- da sua terra. Agora tem quase a certeza, leiro no salto, a carbonizada pilha de mor- foi por isso que simpatizou com ele, algu- tos do desastre ferroviário. A decolagem da ma coisa inconsciente. Os olhos envolvem nave espacial, os guerrilheiros árabes, as carinhosamente o outro, aquela barba, os células, aquele extraordinário mundo im- ombros estreitos, o corpo pequeno e ágil, presso, e tem gente que compra tudo isso, cinquenta quilos, cinquenta e três, parece não é, cara, se tem. Fica olhando, não sabe um calango, visão de gente igual noutras o que o subjuga, semelhante atração por paisagem, azulão de céu. Só que a pele lá aquela caixa colorida na noite, e a figura é mais curtida. Sol que avermelha, brisa, do jornaleiro, alguma coisa remota. Misté- águas tranquilas, botes, cajueiros, avoantes, rio, uma obscura fascinação, uma lembran- carne de sol, porra, tu és do Rio Grande do ça do passado. Os Flash Gordon de hoje, Norte. as novas Bette Davis, outros Joel McCrea, Oi, praça, tudo bem, estamos aí. Len- outros Roosevelt, outros ChamberIain, os do umas revistinhas. Quero não, fumei até Contos Magazine, os Globo Juvenil. E aque- demais. Para conversar? Se tem, bicho, às le vigia solitário em seu castelo, o guardião vezes tem papo até sobrando, nessas horas dos tesouros, enquanto fora a vida passa, que tu chega é que dá esse descanso. Porra, o tempo passa, aquela sentinela, como é são só duas horas? Tu tá chegando cedo, mesmo o seu trabalho, meu chapa. não tá falando engrolado, está até goza- O rosto largo, a testa apesar do cabe- do, tá bebendo não, meu chapa. Como é lo comprido vê-se bem o formato do crâ- o negócio? Vai se levando, pode sentar no nio, cara, me diga uma coisa, você não é banquinho. Dá licença aí, O Dia não chegou italiano como todos os jornaleiros que eu ainda não, tem só A Notícia, vai A Notícia? vejo por aí, como o da minha rua, também Isso aí, conterrâneo. Dá pro gasto. Tem não parece filho de, parece nordestino, tu uns caras, os porteiros da noite, lavadores 168 • Renard Perez de carro, tem umas empregadas. Também e do ruim, tem PM pilantra e garçom joia, passa gente às pampas, tu sabe, banca operário que chegou do cu da mãe e parece aberta de noite, zona de boemia. Gente criança, depois é que conhece o Rio e entra que mora por perto e dá uma encostadi- na pilantragem. Tem uns caras com pinta nha antes de ir para casa ou tomar condu- de bacana e eu sei que é o maior marginal, ção, fica folheando umas revistas. Gente umas madames com jeitão de séria, o ma- de boîte – músico, garçom, caras de jornal, rido viaja e elas ficam na paquera, eu sei tu és de jornal, tu conhece Fulano? Tem o porque elas moram aqui perto. Almirante que de madrugada vem comprar Também só vejo. Atendo igual, só estou O Globo e senta aí no banquinho espe- olhando o freguês. Quero é fazer o meu rando, às vezes encostam umas piranhas, serviço, se houver uma confusão e a polí- oquei, agora eu aceito o cigarro. cia perguntar não vi nada. Também a turma Tem gente de todo tipo, madame, vaga- sabe que eu sei, ninguém mexe comigo, bundo, conheço essa raça toda que passa respeita. Vagabundo, marginal, me res- por aqui, pelo jeito já sei – estou curtido. Às peita, sabe que eu estou trabalhando, sou vezes vejo um cara no jornal, o nome joga- amigo, garanto a noite, o cara passa e me dor de futebol, cara do society, mesmo aqui cumprimenta. Aguenta um pouco, chegou em frente mora a Miss Brasil, eu vejo o re- não senhor, só veio o segundo caderno. trato e digo esse cara já comprou na banca. Eu estou dizendo essas coisas porque é Vésperas de eleição, um cara encostou aqui um negócio que fica aqui dentro, não falo no maior porre, pagou o jornal com um flo- disso com ninguém, mesmo você nem vai se riano e não quis troco, era um candidato lembrar que eu falei. Mas a gente vê cada conhecido, um dia um pinta ficou mijando uma. Também tem coisa que não se pode aqui juntinho da banca, eu falei que é que fazer nada. Um dia, ouve essa, estava tudo há, meu amigo, quando ele olhou, era um vazio e eu escutei um barulhinho esquisito, cara de novela da TV Globo. saí para ver, tinha um pinta bem ao lado fa- Gente boa e gente para não se dar zendo ligação direta no carro do morador confiança, tem uns caras que encostam do 801, eu fiquei só olhando. De repente a e ficam duas horas lendo ou enchendo o voz, tinha outro sujeito na sombra, o revólver saco, não tou falando de ti não, uns caras apontado bem na minha cara, “tu não está que ficam de aproveitando a luz vendo nada”, eu disse estou até cego, voltei da banca, jogando porrinha, dizendo o que para a banca. Dá cada coisa. Uma madruga- iam fazer se ganhassem na Loteria Esporti- da teve um tiroteio para as bandas do Lido, va, eu acabo dizendo como é meus chapas. barulho, sirena, o escambau, todo mundo Aparecem uns pintas cheios de fumo, um correu para ver, lá para as tantas apareceu o papo diferente, aí eu também corto logo, crioulão todo suado, foi pegando um jornal, dou jeito de mandar embora. Umas bichas tirou a máquina ainda com cheiro de pólvo- fazendo onda. Agora tem uns cachaças que ra, começou a enrolar, eu fiquei olhando, dormem aqui embaixo, eu deixo, o cara “mas logo aqui, cara”. Tem coisas que você não tem onde dormir, sabe que aqui está fica besta, outras até acha graça, teve dois seguro, a banca é garantida. Tem do bom caras que passaram outro dia, umas pintas Banca de jornal • 169 lá do Norte, devia ser Ceará, pararam perto empregos. Pegava amizade nos prédios, da banca e ficaram olhando a pilha do Glo- um cara falava de um serviço melhor, ia bo, um falou “eu acho que jornal é aquilo mudando. Trabalhei numa Embaixada, a da ali”, foi mesmo, cara. Perguntei se queriam Rumênia. Na Embaixada foi legal, entregava ver anúncio de emprego, dei o caderno dos a correspondência, davam dinheiro pro táxi, classificados, ficaram olhando meio sem jei- ia de ônibus, economizei uma nota, pedi as to, eles não sabiam ler, conterrâneo. Li uns contas, dei uma ida em Natal. anúncios para eles, dei o caderno de graça, Cinco anos, te falei, que estou nesse ne- saíram todos contentes – aquele coroa que gócio de banca. Um dia encontrei um ami- vem chegando ali é que é o Almirante. go de infância numa festinha, ele contou Oi, conterrâneo, pensei que hoje tu nem que trabalhava na banca de um italiano em vinha mais. Tá todo bacana, estava numa Copacabana, o cara tinha três, uma vagou, festa? Obrigado, mas precisava não. O ban- precisava de um sujeito de confiança. Ia ga- quinho está com o jornal, se quiser a gen- nhar o dobro do que eu estava recebendo te senta no gradil. Agora esconde esse teu nesse tempo, eu fui. A banca era na Conse- troço no jardinzinho, o patrão ainda pode lheiro Lafayete, trabalho de dia. aparecer. O primeiro dia foi do cacete. Errava Posso beber não, cara, já te disse, eu tudo, dizia que não tinha o jornal, depois gostaria mas não dá. Fico só com a água que o sujeito ia embora é que eu via, os tônica. Além do flagra, também tenho de poucos que eu vendi foi porque o freguês estar bom para atender o freguês, já te falei mesmo puxou, o dono da banca nem con- uma porrada de vezes, mesmo logo mais à seguiu entender. Mas deu colher de chá, noite ia estar estourado. Fico aqui a semana eu fui acostumando. Depois mudei para toda, não tenho folga, no domingo tam- outra banca, mais movimentada, já tinha bém, no Natal, no Carnaval, no Ano Novo. experiência. No Carnaval é fogo, um dia eu bebi e foi Nesse tempo comecei a entrar na vida uma desgraça, encartei os jornais todos er- do Rio. Vida agitada, fumo, bebida, mui- rados, do cacete, essa água está joia. ta extravagância, acho que foi aí que eu Que eu trabalho em banca? Faz coisa de peguei minha úlcera. Depois o dono das cinco anos, em janeiro completa. Eu fazia bancas entrou numa boa e passou adiante antes? Porra, conterrâneo, tu pergunta pra o negócio, eu aproveitei para passar umas cacete. Já trabalhei em tudo, estou no Rio férias em Natal, estava precisando. desde os onze anos, tenho treze de Rio. Um Na volta eu recebi uma proposta para primo me trouxe para estudar, mas briguei trabalhar de noite. Ganhava mais, dava co- com a mulher do primo, me mandei. Mora- missão, eu topei, é essa banca aqui. O dono va na Penha, perto do ponto final do Cos- no começo era legal, ficou rico, virou filho me-Penha, arranjei lugar de trocador. Vivia da puta. num barraco na ladeira do Cosme Velho, Isso, conterrâneo. É, essa onda entra fim do ponto de ônibus, não tinha nem luz. noite e sai noite. A gente nunca pode beber, Depois trabalhei numa farmácia, fa- e esses bares todos aí. Às vezes o porteiro zia serviço de entrega, tive mais uns três daí da frente fica no meu lugar e eu vou no 170 • Renard Perez bar tomar um café. Mas não se pode abu- Dentro da banca, uma euforia, o jorna- sar, é perigoso, pode dar ingresia. leiro foi comer um sanduíche no bar. “Deixa Tem horas que isso aqui está uma triste- eu tomar conta meu chapa, pode ficar tran- za, depois que o bar da esquina fecha fica quilo, faz de conta que eu sou o porteiro”, tudo vazio, só os carros passando. Já li toda o conterrâneo sorrindo. “Deixa, é até um a parte policial do Dia, as histórias em qua- favor.” “Está bom, é só o tempo de eu ir no drinhos. Aquele frio, só o radiozinho. Estou banheiro.” “Pode ir com calma, pode tomar cansado da posição, vontade de um café, o seu copo de leite.” fico esperando Antonio aparecer. Vem o ga- Aquela emoção. As pilhas de revistas roto da Gazeta, dá um pIá, vai embora. Até agora em posição inversa, o caixote de charu- que pelas quatro chega a pilha do Globo, tos sob o balcão. O rádio de pilha preso pela do JB, eu vou para a esquina apanhar a pi- alça no prego, o espelhinho redondo perto. lha, fico encartando os cadernos, continuo O banco, pela abertura a visão do gradil, o na espera do substituto. pequeno jardim, as janelas do prédio. O chato é que eu moro longe. Antes vivia Uma sensação macia, parece a realiza- na Ladeira dos Tabajaras, lá em cima, era joia, ção de alguma coisa remota. Não está alto, em vinte minutos estava na banca. Mas eu tinha tomado apenas umas duas cervejas, briguei com a garota, o apartamento estava apenas o suficiente para aquele bem-estar. no nome dela, uma porra. Quis arranjar um O radiozinho com uma música suave, outro aqui perto, com um colega o dinheiro aquelas lembranças longínquas. O menino dava, escolhi uns dois lugares legais, só atra- de calça cáqui saltando do bonde, as moe- vessar a rua e estava em casa. Não aceitaram das no bolso, de longe já ia vendo o quios- a fiança do proprietário da banca, falei com que. Só que era diferente, uma caixa de gra- o espanhol do botequim, com o Almirante. des oitavada em torno do tronco de ficus. Não deu pé, estou em Jacarepaguá. Este parecia mais as casinhas de cartolina É longe, no ônibus já vou dormindo, o que armava com as páginas do Tico-Tico, trocador me acorda para saltar. A merda é era como se estivesse no interior da própria que quando chego em casa o sono desapa- bomba de gasolina, do hangar, do presé- receu, quando consigo pegar no sono outra pio que saía pelo Natal. Ou na caverna do vez já está em cima da hora de voltar para pirata e de seus leais companheiros. Com a banca. Estou sempre com sono, a banca todos os seus tesouros; Gibi, Mirim, Globo não dá para botar mais um cara. Às vezes Juvenil, Suplemento Juvenil, as revistas para fico nervoso, e essas dores no estômago, a gente miúda. O que queria dizer gente um freguês que é médico foi que disse que miúda? Gente pequena ou gentinha, gente era úlcera. Se eu pegasse uma moto. Falei vagabunda? Não gostava da denominação, num empréstimo pro patrão, quando expli- o sorriso, a mãe chamava de miúda a ralé quei pra que era disse que pra moto não que morava nos pardieiros da praça Cristo dava, eu ia dormir na direção, me estrepa- Redentor. “– Tem o Globo Juvenil?” O cara va todo. Oi, conterrâneo, está chegando o de barba por fazer entregando o jornal, o Cassimiro, tá na hora de me mandar. O bar cheiro bom de tinta, de papel, às vezes até abriu, uma boa tomar um café. sujava os dedos com o vermelho da capa Banca de jornal • 171 do Príncipe Valente, as labaredas do Tocha Os dois no gradilzinho à frente do jar- Humana. Abria excitado a página do cen- dim, a rua sossegada, a fumaça do cigarro. tro, a bonita página dupla colorida, o que – Pois é, cara, tu passou esses três sába- teria acontecido a Dale Arden? Um respeito dos sem aparecer, eu fiquei sentindo uma pelo moço de barba de quatro dias, ele não falta, quando chegava tua hora no sábado precisava de duzentos réis para saber como eu sentava no gradil, dizia daqui a pouco Flash Gordon salvara a namorada. Uma bar- chega o conterrâneo. Ficava ouvindo o rá- ba escura, parecia a barba do conterrâneo. dio de pilha, lendo o Recruta Zero tu não A música dos Novos Baianos descendo chegava, eu dizia onde anda o conterrâneo. do radiozinho, a voz que o sobressalta, “me Ficava sentindo a tua falta até em casa, tu dá aí O Dia”, o freguês o olhando meio sur- mexeu com o que estava quieto. preendido. As pilhas todas, o estonteamen- Os dois no gradilzinho, o litro escondido to, só vê revistas, acaba descobrindo a pilha entre as plantas atrás. amarrada sobre a prateleira interna. Recebe – É isso, cara. Agora tu tá aí – o sorriso a cédula, tira o troco do caixote, “obrigado, dos dois. amigo”. Na longa espera vende mais dois. – Sabe, conterrâneo, o que me fez sim- Os cabeçalhos de Última Hora, do Jornal patizar contigo foi você nunca insistir para do Brasil. “Antifranquistas só reconhecem eu beber, de tu aparecer com uma garrafa rei pelo voto”, “CIA conspirou oito vezes de guaraná, não é como esses caras que para matar Fidel Castro”, “Geisel pede à chegam com umas cervejas, com cana e até Arena que ganhe eleição”. Na revista, a com fumo e ficarem insistindo, no perigo notícia do voo espacial para Marte de uma de aparecer o fiscal, a PM, e dar o flagra, nave russa, recorda-se do comentário para e reclamações para o patrão do síndico do o conterrâneo, “esses russos são de mor- prédio, que a turma fica na banca fazen- te”. Conterrâneo balançando a cabeça, do chacrinha, eu manjei logo que tu era olhando-o, de repente a pergunta, “Con- um cara cem por cento. Tu chegava e dava terrâneo, que é que é mesmo esse tal de um alô, também não ficava escorado duas Marte?” De outra vez: “– Eu vi o teu artigo horas folheando revista, eu vi logo que tu no jornal, li ele inteiro, porra, não entendi era da noite, só queria companhia, igual a nada”, seu sorriso amolecido. mim. E chegou uma noite que eu fiquei te O som de passos, a presença já familiar. esperando, olhava o relógio, o conterrâneo “Cheguei, conterrâneo”. A fisionomia pre- daqui a pouco aparece, e vinha me sentar ocupada, o jeito de avaliação, o sorriso no no gradil. Este negócio está bom. rosto desanuviado. Te falei, dá gente aqui às pampas, gen- – Ei, conterrâneo, essa foi legal, eu ven- te legal, batemos um papo. Tem uns caras di três jornais, um freguês até se espantou joia. Mas é tudo amigo da banca, a gente que já tivesse chegado O Dia. – A cara sur- da banca, gosta de mim porque eu estou preendida do jornaleiro, “caramba, O Dia aqui, se distraem lendo revistinhas, não vão chegou ainda não, tu vendeu o jornal de pagar, nem eu quero, é tudo gente nossa. ontem, essa pilha amarrada aí dentro é a Também tenho amigos em Jacarepaguá, lá do encalhe”. eu sou igual a eles, com um trabalho como 172 • Renard Perez outro qualquer, não interessa se é banca. eu recebi o cartão de Natal, o Forte-dos-Reis- Mas tu se amarrava era no jornaleiro, na -Magos, aí eu entendi, fiquei todo contente profissão, ficava perguntando uns negó- com o cartão, mostrei pro Almirante, mostrei cios, eu vi que tu entendia. Me amarro em pro Né, olha ele ali perto do rádio de pilha. banca, me dava um troço. Por isso naquela Então eu só ficava imaginando no sábado noite eu deixei tu ficar tomando conta, tá o conterrâneo está aqui, ficava contando o morando? Prepara uma nova dose, eu pego tempo, não vou vender o uísque coisa nenhu- o isopor no meio das plantas. ma, esse uísque vou beber é com meu chapa Então tu sumiu da banca. Uma noite pas- no sábado. A gente vai beber, a gente tem de sou um cara me oferecendo uísque para ven- fazer um brinde, tomar um big porre, a minha der, me dava comissão, ia ser joia. Todo dia úlcera que se foda, o patrão que se foda. eu ficava vendo aquele rótulo bacana, uísque Eu gosto de você, conterrâneo, eu gosto escocês, pensei quem ia querer esse uísque de você de graça – vamos fazer um brinde era o conterrâneo, tu não aparecia. Um dia novamente, o som do encontro dos copos. Sorte canina

Paulo Veras Poeta brasileiro, contista e professor.

le saiu ainda com o escuro. Veio só calmo, só o ruído da água no casco na ca- passar a noite. Ela preparou café forte noa e os bichos no mato piando. Deu von- E e serviu com pão de milho. Ele engo- tade de acender um cigarro, mas podia cha- liu rápido e saiu pelo mato com a lanterna mar a atenção. Pensou na mulher, nos filhos na mão clareando o caminho. Levou o ca- pequenos, será que ainda os tornaria a ver? chorro pra botar sentido numa tocaia. Ela Deus era grande. Fez o sinal da cruz. Gen- ficou na porta espiando o vulto do marido te inocente tem sempre uma recompensa, até se sumir na escuridão. Fechou a porta era a sua esperança. Na cadeia, quantos com o ferrolho e passou a tranca. Os me- interrogatórios, quanta porrada no lom- ninos dormiam nas redes. Sentiu o coração bo, quantos fios descascados debaixo dos apertado. Fez uma oração para que tudo culhões. Foi muita sorte ter fugido de lá. Ele corresse bem e que a polícia não o alcan- e mais outros deram cachaça pros guardas çasse. Nessas horas é que sabia o valor que e quando pensaram que não, estavam com tem um homem. Casa sem homem é como a chave da cela nas mãos. Agora, parece gente sem cabeça. Sabia que ele não era que era pior, andava o tempo todo se es- culpado, mas quem é que pode desmentir condendo. Não podia parar sossegado em palavra de gente graúda. Enquanto o dia casa como dantes. Via a mulher e os filhos não nascia ela foi pro canto da cozinha de- uma vez ou outra. Tinha até pensado em se bulhar o feijão. Apanhou a cuia em cima entregar, mas alguma coisa dizia que se o da mesa e tirou o feijão de dentro da lata. fizesse era só a conta de ir buscar a morte De cócoras acendeu o cachimbo na brasa mais ligeiro. Ofício que era bom não podia do fogão e se entregou ao trabalho. O pen- ter. A família ia passando da roupa que a samento foi pra perto do marido. Na beira mulher lavava pra fora. Quando o tempo d’água ele desamarrou a canoa do toco e permitia ela pegava uns peixinhos no rio. passou pra dentro. O cachorro saltou atrás. O sol começou a aparecer pálido, botando Saiu deslizando rio abaixo com o remo ca- a paisagem pra fora, a água amarelada do vando de leve a água. Tava tudo escuro e rio, os morros cobertos de verde, os pés de 174 • Paulo Veras paus pintados de branco. Um bando de as balas batiam na água e resvalavam. De marrecas cruzou por cima. Pensou na sua repente um tiro acertou o cachorro em última caçada. A tocaia armada no ponto cheio. O bicho não ganiu muito, estirou em que elas costumavam passar. Quinze as perninhas e parou de sacudir o corpo. marrecas e oito paturis. O sol subia. Tirou o O sangue ia escorrendo e empoçando no casaco de lã e a camisa. Apanhou água na fundo da canoa. Ele ergueu para o alto a cuia, fez bochecho e lavou o rosto. Pegou mão suja de sangue berrando “fui alvejado o maço de cigarros no bolso das calças e bando de filhos da puta”, e deitou-se sobre acendeu um. A primeira pitada da manhã o corpo do animal fingindo-se de morto. As era a melhor. Já não remava. A canoa descia balas cessaram. A canoa continuou descen- na correnteza. O cachorro começou a gru- do sem rumo. Depois de bom pedaço, os nhir quando iam-se aproximando da curva. soldados foram embora dando o caso como Adiante, como num susto, apareceram os liquidado. Quando sentiu que estavam lon- soldados de arma em punho. Fizeram sinal ge, tomou o remo e deu a volta. Encostou pra ele encostar a canoa na beira e se en- a canoa na margem, retirou o corpo do ca- tregar que era melhor. Não quis saber de chorro e cavou com o remo uma cova de acordo e começou a atirar. Eles mandaram pouco mais de um metro. Fez o pelo-sinal bala também e se atocaiaram nos matos. A e pensou que se bicho tivesse alma aquele canoa corria na correnteza favorecendo-o, dali ia diretinho pro céu. Um poço de grosso calibre

Roberto Gomes Escritor, contista e professor.

omadas, quantas horas diante da fo- Coloca o copo de leite sobre a mesa. Olha a lha em branco? Olhos perdidos atra- folha em branco, sorri, passa em seus cabe- S vés da mesa, a nuvem de fantasias los a mão indesejada. embaralhando o chão. A cena de um filme – Tenho uma coisa para te mostrar. antigo, a vizinha entrando furtiva – medo Sai no passo ligeirinho. Outro dos con- de ser violentada? – no apartamento ao tentamentos pelo filho. Um recorte de jor- lado, o colega de escola, anos atrás, denun- nal, uma carta de parente distante pergun- ciando ao professor: foi ele. tando como vai o escritor. Tudo previsível. Em outra época a folha em branco O álbum onde a mãe coleciona tudo que fora um insulto. Desafio ao qual respondia é publicado a seu respeito, desde os quin- enegrecendo-a com palavras. Agora, horas ze anos, quando ganhou um concurso no perdidas, sem nada escrever, o leve tremor colégio, corre de mão em mão na sala de nas pernas, a dorzinha fina circulando por visitas. dentro dos ossos. Nos dentes roçando uma – Que alegria um filho assim, dona insistente nevralgia. Cotinha! Os truques mais ridículos. Escrever em – Este recorte é de um jornal do Rio. pé, como Hemingway. Na tensão desespe- – Do Rio? a surpresa alvoroça duas ou rada de Simenon. Com a letrinha miúda e três solteironas, uma que outra viúva. exata de Drummond de Andrade. Nada. O pequeno canalha se prestava ao jogo. Horas limpando os tipos da máquina, tro- As primeiras redações na escola, lidas dian- cando a fita poucas vezes usada, ajustando te da classe pelo professor, um ex-padre a folha de papel ao rolo da máquina. Não cheirando a marcela. Encolhido no fundo mais um desafio. Poço sem começo nem da carteira, o canalha baixava os olhos. fim, sem eco nem fundo. Crônicas no quadro de editais. Convidado – Escrevendo? a redigir as notas do jornal do grêmio, corri- A mãe abre a porta no maior cuidado. gia com segurança e desprezo as colabora- Não prejudicar a inspiração do escritor. ções dos colegas. O prêmio municipal: num 176 • Roberto Gomes concurso da prefeitura, o primeiro lugar há seis anos e desde então publicado em com um conto, plágio descarado de Trevi- vários jornais graças ao empenho da mãe. san. O menino dos olhos, o talento da fa- Tio Germano, obtuso e grosso, era o mília. Livros largados na sala de visitas para único a discordar do festival de confetes: a admiração de senhoras fartas e senhores – O país precisa de técnicos – o nariz ofegantes. ranzinza inspecionando as lombadas dos Seu Olegário, solene, o desembargador: livros que cobriam duas paredes. – Antes, – Fosse vivo, seu pai sentiria orgulho de resolver as questões técnicas. Depois, cui- você. damos das frescuras do estilo. – Tem o talento do pai. A literatura não passava de uma merda – Verdade. Mariano escrevia muito bem qualquer, de grosso calibre. Quando o tio – Olegário empina o dedo categórico, o aparecia, levantava em armas as senho- mesmo que fazia citações em latim. – Era ras protetoras, elas mal desconfiando que uma pluma delicada. o protegido se bandeara para os lados do Só faltava isso. Uma pluma delicada! O inimigo. O caos se instalava quando o tio, pai, há dez anos fulminado por um enfarte acuado por mil velhas furiosas, dizia que li- e sempre presente. Metido no meio das pol- teratura era coisa de afrescalhados. tronas, por detrás dos armários, na mesa de – Vê lá, garotão! Nunca tivemos veado estudos, o paletó dependurado no mesmo na família! prego em que o colocara dez minutos antes Olhos pregados no copo de leite. Saco- de morrer. O eterno fantasma roubava seu de a cabeça, esfrega as pálpebras e volta à lugar, seus gestos, suas manias. página em branco. Escrever o quê? Se nun- – Incrível! Seu pai me disse isso uma ca mais escrevesse, alguém notaria falta? ocasião. Tomou um pouco de leite. Fedia a remédio, – É a cópia do Mariano – a mãe, as mãos urina, algo lambuzado como os dedos da gordurosas emaranhando seus cabelos. mãe nos seus cabelos. Acendeu um cigarro. – Já reparou no modo de sentar? Há anos não escrevia nada, vivendo de refe- A mãe volta toda contente. Nas mãos, rências cavadas pela mãe e pelas tias junto como estava previsto, o recorte de jornal. aos jornais. A glória familiar. Elogiava um conto seu e perguntava pela A fumaça do cigarro escapa pela janela editora que reuniria seus trabalhos no volu- e sobe em direção do céu amarrado, ame- me esperado. açando chuva. Dez andares abaixo, a rua – Estou tentando escrever, mãe. se agitava. Lá na esquina, o açougueiro – Claro, claro – sai na ponta dos pas- estaria, como sempre, enfiando o dedo no sos ligeirinhos, dando um adeus cúmplice. nariz e rosnando contra a carestia da vida. – Não esqueça do leite, viu? O mundo, dez andares abaixo, se reduzia a Olhou o copo de leite. Branco como a uma zoeira monótona e continuada, como folha de papel. Desejou jogá-lo na cabeça o barulho do mar à distância. de alguém, dez andares abaixo. Talvez es- Dez andares abaixo, a folha em bran- picaçar a nota do jornal e atirar tudo pela co: um poço sem fim, sem eco nem fundo. janela. A nota comentava um conto escrito Não mais um desafio, mas uma espécie de Um poço de grosso calibre • 177 obsessão. O mesmo fascínio que o obrigava de intelectuais num mundo enlouquecido. a ficar de olhos presos na rua. Mas sem ver Fossem para o inferno. Bastaria um salto e a rua. Sem descobrir segredo algum. Sem na calçada ficaria a afronta da poça de san- encontrar mais do que barulho e confu- gue – uma banana para o mundo. E talvez são. Como a folha na máquina: em branco, aquela mancha de sangue resistisse à lim- limpa, clara, doendo nas vistas fixas. Difícil peza, à chuva, aos automóveis, começando mover um braço, uma perna, apertar qual- a crescer, expandindo-se, invadindo a cal- quer das teclas. No entanto, todos os dias çada, as paredes dos prédios, o interior das cumpria o ritual do forçado: trancava-se no lojas e apartamentos, até que todos fossem quarto, punha o papel na máquina, acendia obrigados a fugir da cidade. Bastaria um o cigarro. E ficava na expectativa das entra- salto. das da mãe no quarto, jamais se decidindo – Tão sério na janela, meu filho. chavear a porta. A mãe terminara de fazer um docinho Assim nos últimos três anos, se pres- de sua especialidade. tando ao jogo. Não roubar aquela alegria – Experimenta. à mãe e às tias, ao professor que vivia ame- Mordeu o doce e sentiu o sabor de fundo açando reunir seus escritos em livro, a ridí- de quintal, pés de tangerina, cacho de uva cula ideia de fazer com que ex-colegas de escorrendo sereno, o galinheiro agitado. classe se cotizassem para a edição. Já não – Está ótimo. escrevia. Mas cumpria o ritual da espera. – Quer mais um? Impedia que o mundo desabasse. – Não, obrigado. Outro cigarro. Acontecesse algo que pu- – Escreveu muito? desse tirá-lo daquele torpor, alguma coisa Não respondeu. Ela olhou a folha em que fizesse explodir sua cabeça. Mas havia branco e sorriu. Se alguém rompesse com a tortura, o medo de que, eliminada a ten- a farsa. são, as coisas escapassem de seu controle. – Tem dias que não vai, nê? Levantou-se e foi à janela. O abismo, – É. como a folha em branco, não era um desa- Ela fechou a porta com cuidado. Os fio. Era o quê? Não sabia. No entanto, bas- passos ligeirinhos pelo corredor. Olhou ou- taria um salto. Erguer uma perna, dar um tra vez para a rua, dez andares abaixo. A pequeno impulso – lá embaixo se espatifa- imagem da gigantesca bolha de sangue ria a grande promessa. Ao diabo com a mãe crescendo sobre a cidade tinha gosto de e a mão melosa em seus cabelos. Ao infer- riso manso, de coisa usufruída no silêncio. no com todas as tias do mundo, juntamen- Morto, ficaria para sempre a rir da multidão te com os professores de português. Nada de tias fugindo da cidade ameaçada. a dizer. Mero fazedor de frescuras de estilo, O imbecil do tio Germano estaria certo? a literatura sendo uma merda qualquer e Sentou-se à máquina e escreveu: de grosso calibre. Que se danassem tam- “– Uma merda de grosso calibre! – o pai bufava bém os amigos, as cabeças entupidas de de ódio, folheando as páginas do livro como se teorias e pretensões – nenhum deles escre- distribuísse bofetões – Frescuras de estilo! vendo nada, contentes com suas fantasias Sem se virar, respondeu que...” 178 • Roberto Gomes

Respondeu o quê? O suor gelado bro- Os pontos luminosos aparecem agora. tou de todo o corpo. A velha taquicardia ia Tudo previsível como os docinhos e as ale- disparar. Logo a testa suaria frio e os olhos grias de sua mãe. Faltava pouco para a dor voltariam a esbugalhar, presos ao branco do começar a roer o seu cérebro com os mil papel. Depois viria a dor de cabeça, fina, in- dentes de ratazana pestiada. Largou os bra- sistente, do lado direito. ços e esperou, o olhar preso ao poço vazio “Enxaqueca! – acusava tio Germano – de dez andares de folhas em branco. Basta- Isso é coisa de mulher malcomida, rapaz!” ria um salto. Requiescat in pacem

Eglê Malheiros Escritora, professora e tradutora.

esmo um velório é melhor do próprio para a ocasião; aqui temos de ter que ficar em casa tendo apenas muito cuidado, estão sempre reparando, M livros e discos por companhia. se a gente se arruma de mais é metida a Assim, toquei-me mais a Lourdes para o besta, se de menos é desleixada. Refeitas Hospital de Caridade, pois o falecido, irmão retocamos a pintura, ajeitamos o penteado da ordem do Senhor dos Passos, lá estava e quando soavam as dez horas adentramos sendo velado. Meu fusca negou-se a subir o velório. ladeira e penamos as duas morro acima, No meio do recinto, quatro grandes to- numa penitência inesperada. A Lourdes vie- cheiros ardentes e o caixão de madeira e ra com uns sapatões de incrível altura e eu prata. Lá dentro mais encolhidinho do que quase a arrastei até o alto, maldizendo as nunca, numa opa roxa, Seo Andrezinho. ideias sanitárias do irmão Joaquim, sempre Sentados nos bancos junto às paredes, vá- construindo Santas Casas a cavaleiro das rias pessoas, vagamente conhecidas poucas cidades. E ela o tempo de todo “Ai, Creu- ainda, mais tarde a animação cresceria. sa, não aguento mais! Ai, Creusa, vamos À cabeceira do morto uma montanha descer”. Eu nem água, quem inventou de envolta em seda preta, tendo por escudeiro velar Seo Andrezinho da “Casa Löffell” foi um indivíduo bem magro e bem alto, com ela, portanto aguentasse. A noite estava a cara que teria tido Seo Andrezinho uns fria e clara; lá de cima a cidade era bonita, trinta anos atrás. A presença de D. Felicinha tranquila, um calor de luzes assinalando a ali causou-me o maior espanto e explicava o terra dos homens, lembrança literária muito ar contrafeito e desarvorado dos presentes. oportuna, pois o Saint-Exupéry referiu-se a Há trinta anos ela tinha sido a cara-me- estas plagas em seu Voo noturno. Esbofa- tade do morto que, pelo que se sabia, tudo das paramos no adro da igreja, arranjando fizera pela vida em fora para se esquecer do coragem para enfrentar mais uns lances de episódio. escada até a capela mortuária. Meu tail- Os murmúrios cresciam e já se delinea- leur verde-petróleo era elegante e discreto, vam, nítidos, dois partidos. O de D. Felicinha, 180 • Eglê Malheiros com poucos seguidores, embora contando Guedes, tomadas de surpresa faziam a en- figuras tais como a D. Frinéia, presidente trega aos poucos. Quem iria imaginar que do Apostolado da Oração, a Josefina, das Seo Andrezinho, ainda na semana passada Filhas de Maria, o dr. Redonildes Soares Fi- segurando a alça do caixão do Desembar- lho, mais conhecido por Rosa do Adro, e gador Aristófanes, se fosse para melhor tão o Professor Costa Schramm que, segundo de repente, não mais que de repente. Aten- apregoava, tinha como cabo eleitoral em dia a chata da Emília, em sua décima visita à suas até agora malogradas investidas polí- loja para escolher um televisor, quando pôs ticas a Santíssima Virgem. E o partido de D. a mão no peito, murmurou um “desculpe- Madalena que, mesmo ausente, arregimen- -me”, tentou sentar-se e caiu morto. Prova tara adeptos destemidos. Esses vieram ca- provada que chatice é letal. Isso no fim da balar a mim e à Lourdes, animados porque tarde, foi aquele corre-corre. D. Madalena não faláramos com a viúva. Esclareci: não ausente, os chefes e amigos é que tomaram pretendia me definir por ninguém, cansada as providências. de enfrentar bipartidarismos compulsórios, O velório corria bem, muito frequenta- tão só vinha render minha homenagem ao do, gente importante, altos funcionários, morto, homem bom, pacato, atarefado ge- chegaram até a dizer que o governador rente da principal loja de eletrodomésticos mandaria o Oficial de Gabinete representá- da cidade e que sempre me atendera bem, -lo no enterro. Achei difícil. O morto, embo- não hesitando em dar-me crédito imediato ra sem falar muito, sempre foi da oposição para qualquer compra que a compulsão e bom contador de anedotas. Em todo o consumista me induzia a fazer. Menearam caso, de manobras políticas eu pouco en- a cabeça: “Essa Creusa, essa Creusa”, re- tendo, a menos que se considere como tal forçando a convicção de que tenho um pa- ter dois empregos no mesmo horário e não rafuso meio solto. A Lourdes saiu a explorar comparecer a nenhum. Afinal eu trabalho o ambiente, conversou aqui e ali, e voltou por gosto, não preciso disso para viver, se indignada pois a Josefina lhe adiantara que quiserem me demitir me demitam, e vão se “não admira certas pessoas não abraçarem entender com meu pai lá no oeste. Sou a D. Felicinha, vivem à espera de lares desfei- primeira da família a ocupar cargo público, tos para ver se sobra alguém”; quase lhe achei bom me garantir depois de falarem passei uma descompostura por estar jul- tanto em reforma agrária. Mas voltando gando que a carapuça me servia. à vaca-fria, lá pelas três da madrugada a Correu um cafezinho, da marca três sala fervia, os colegas da “Casa Löffell”, os efes, o ambiente estava em tal efervescên- patrões, os irmãos da opa, a turminha do cia que ninguém reclamou. Uma prima de dominó aos domingos, parentes de D. Fe- Madalena revelou estar “aquela santa” já licinha e D. Madalena. Dois territórios bem a caminho, inconsolável, e não se perdoan- definidos, separados por diplomática barrei- do ter ido visitar uma sobrinha em Laguna ra de indiferentes ou conciliadores. deixando sozinho o falecido, então vivo e A Lourdes se grudou em meu braço “Es- sem moléstia aparente. Coroas se amontoa- tou tão nervosa, disseram que D. Madale- vam perto da essa e mais chegariam, pois as na está vindo de automóvel, vai chegar a Requiesc at in pacem • 181 qualquer momento.” Incrível esse Seo An- escândalo. Não sei o que Madalena viu em drezinho, tão quieto e sereno e tão criador Seo Andrezinho, magro, mirrado, sem en- de caso. Há trinta anos, certa manhã, de- cantos, talvez o fato de representar o fim de pois de ouvir mais uma vez a mulher recla- suposições; com ele não se lembrariam dela mar, brigar, com ele, e com o filho recém- a cada briga de casal mais violenta, nem se -nascido (que aos três meses já apanhava interessariam tanto em lhe seguir os passos suas palmadas), além de encrencas laterais para verificar se de fato a freguesa estava com o padeiro, o leiteiro e a empregada, em casa. Acho que ele foi um sossego, um ele disse: “Olha Felicinha, assim não dá, eu porto, uma proteção. E o caso durou a pon- não aguento”, pôs o chapéu na cabeça e to da cidade se acostumar e eles irem sendo não voltou. Rogos, ameaças, pressões de aceitos, convidados primeiro pelos parentes todo o tipo e ele inflexível. Perdeu o em- dos dois lados, depois pelos amigos; ela prego no armazém do sogro, deixou com deixou de ser a “moça” de Seo Andrezinho cara de engradado de galinha os que o para virar D. Madalena. Hoje serviam até de acusaram de golpe do baú nada queren- exemplo, com esse casa e descasa que anda do de herança quando a sogra morreu. Foi por aí. viver no seu cantinho. Refez a vida, outro Quatro horas da manhã, D. Felicinha emprego, outra casa e com o tempo outro escudada pelo filho não se afastou de seu amor. Que fora amor o que o levara a casar posto. Nem para ir ao banheiro. Chora a in- com uma Felicinha roliça e risonha, garras tervalos regulamentares, agrada a mão do sabiamente escondidas e enxúndias esca- morto, chega a murmurar “o que vai ser moteadas. Qualquer pessoa entendia que de mim”. A Lourdes me disse que a Marly, Seo Andrezinho se interessasse por Mada- namorada do filho, disse que D. Felicinha lena, viçosa, tranquila, e, segundo o pare- lhe disse um dia que, desde o abandono, cer do júri masculino que se reunia na porta jamais deixara de sonhar com o marido e do Pérola, uma gostosona. Moça feita, era chegando mesmo ele, em certas ocasiões, a manicure e cabeleireira. Falava-se de um pegá-la no colo, o que por si só demonstra noivado desfeito, de um noivo que abusara o absurdo dos sonhos. A fidelidade onírica dela, outros desmentiam, fora um padrinho não impediu que D. Felicinha exercitasse, no rico em cuja casa passara a adolescência. curso de três décadas, sua língua contra o Seja como for, era questão mansa e pacífica infiel e sua cúmplice, a quem ela dispensa- que não teria condições de se casar de véu va adjetivos e considerações impublicáveis. e grinalda. Imagine há trinta anos, se ain- Quando o Salão Elite estava muito cheio da hoje aqui se fazem apostas em torno de e D. Mulata, às sextas-feiras, tardava em quais crianças vão esperar os nove meses atender, era uma glória a presença de D. Fe- regulamentares para nascer. Pra encurtar licinha, bastava uma cutucada, falar a meia conversa, Madalena passou a ser a “moça” voz em Ielena que se abria o reservatório. do Seo Andrezinho. Discreta, não saíam Nos dias de maior indignação ela se esten- juntos, a irmandade nada teve a objetar, dia, apresentando inclusive as suposições continuou ele a conduzir o pálio nas pro- de tais ou quais práticas a que por certo a cissões do Senhor Morto, o pernicioso é o outra se entregava no leito, deixando sem 182 • Eglê Malheiros defesa as mulheres honestas e castas, cria- ergueu-se e gritou um esganiçado e dramá- das para serem esposas e não marafonas. tico: “Como ousas!” ao mesmo tempo em Pelas cinco da manhã correu a notícia, que pegava a coroa mais próxima e a atira- Madalena estava para chegar. O carro se va na rival. Madalena, atônita, não reagiu quebrara na estrada, por isso a demora, à agressão, porém o mesmo não ocorreu a tinham-na levado até a casa do irmão, para seus partidários, que céleres se apossaram que se arrumasse, tomasse café, mas a po- da munição perto da porta e sentaram uma bre não queria, quase à força engolia qual- coroa bem na cara da ex-cara-metade. Foi quer coisa. O dr. Alceu, um médico novo, o sinal. Os dois partidos se alinharam en- cobiçado e boa-pinta tinha ido dar-lhe um quanto os neutros se punham de gatinhas. calmante, mais um pouco estaria aqui. Pa- Eu só gritava para a Lourdes: “Lá vai a coroa recia filme de suspense, todos com um olho da ‘Casa Löffell’” e passava uma fita roxa na porta e outro em D. Felicinha, enquanto “teado amigo”, mais outra e choviam péta- simulavam uma conversa chocha para des- las de rosas, outro bólido “... ado esposo”, pistar. O enterro seria cedo, às sete e meia, seria de Felicinha ou Madalena? Um ramo no cemitério do hospital, a poucos metros de saudades apagou um dos círios e numa do velório. Frei José, um franciscano antigo evidente falta de respeito pela convicção missionário no Amazonas, encomendaria dos outros, preitos florais de partidários de o corpo. D. Felicinha insistia com ele para Felicinha eram usados pelos partidários de que rezasse logo, antes da lambisgoia che- Madalena e vice-versa. De início a luta era gar, no que fora secundada por seu quar- quase silenciosa, apenas Felicinha invectiva- tel general. Mas Frei José, desses padres va, mas com o calor da refrega mais bocas modernos que corria das beatas como o se abriram a lançar opiniões nada elogio- diabo da cruz, e de quem elas murmura- sas, não só sobre as viúvas, mas também vam coisas incríveis, negou-se. Só perto da sobre suas respectivas tropas. Quase morri hora do enterro; sua firmeza provocou no de rir, não fosse sobrar alguma coisa para dr. Costa Schramm um preito de saudade mim, que entrara ali como Pilatos no Credo. a frei Belarmino, que fazia do púlpito uma Realmente, não tenho palavras para descre- tribuna contra Satanás e suas tentações, ver, faltava ali um Homero ou um Fielding. ainda bem que o Santo, no paz do Senhor, Súbito ouviu-se o vozeirão do Des. Arco- não era obrigado a suportar essas abomina- verde, provedor do Hospital, e que mora ções, pois todo mundo sabia que frei José ali mesmo. Acordado pelo bruaá vestiu-se era confessor da amásia do Andrezinho. Eu às pressas e parou apoplético à porta da estava me pondo a par da última briga do capela. Seu grito foi água na fervura, não chefe do cerimonial do Palácio com o chefe se dispararam os projetis já assestados, mu- da casa militar quando percebi que meu in- lheres ajeitaram os cabelos e puxaram as terlocutor se calara, olhos grudados na por- saias, homens enfiaram camisas dentro das ta. Todos se haviam calado. No umbral Ma- calças enquanto o provedor prosseguia es- dalena, de negro, face desfeita, meio que tentórico. Silêncio, em ordem cada um para se amparava no irmão, pronta a entrar na seu lugar, e os diligentes alunos obedeciam capela. Quando adiantou um pé Felicinha na medida do possível. Frei José, que saíra Requiesc at in pacem • 183 para uma extrema-unção (de um indigente pelo filho ressurgido das cinzas, pois nin- da enfermaria, velório sem graça, nada que guém soube dele durante a contenda. Com interessasse), chegou a tempo de ajudar, mais uma meia dúzia de palmas o provedor encarregando-se de livrar Seo Andrezinho organizou o cortejo, os coveiros avisados fa- dos restos de coroas e ramalhetes. Os ele- riam logo o enterro do pomo da discórdia. mentos neutros se levantaram e eu corri a Seguimos para o cemitério, enfrentando o buscar água com açúcar para as viúvas, que friozinho da manhã hibernal, nossas pala- exânimes e chorosas se derreavam lado a vras se condensando em vapor. Felicinha e lado num banco lateral. O provedor bateu Madalena cercadas cada uma por seu pe- palmas, pediu silêncio completo que frei lotão pranteavam um indeferente Andre- José ia encomendar o corpo, D. Felicinha zinho. Logo chegamos à beira da cova, o tentou reconquistar o posto à cabeceira caixão desceu e quando primeiras pás de do féretro, o provedor obstou: “A senho- terra soaram sobre a madeira, da garganta ra esteve aí a noite toda”, ela exausta não de cada uma das mulheres de Seo Andrezi- conseguiu falar e D. Madalena chegou-se nho partiu um grito soluçado, estenderam de manso e ali ficou. Terminadas as orações os braços e para espanto e gáudio eterno frei José pegou D. Madalena pelo braço, dos fofoqueiros desterrenses, o colo imenso como quem não quer nada, o que permitiu de Felicinha acolheu a cabeça grisalha da que D. Felicinha depusesse na testa do mor- outrora fulgurante Madalena. to um demorado beijo, no que foi imitada Requiescat in pacem. Petit Trianon – Doado pelo governo francês em 1923. Sede da Academia Brasileira de Letras, Av. Presidente Wilson, 203 Castelo – Rio de Janeiro – RJ PATRONOS, FUNDADORES E MEMBROS EFETIVOS DA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS

(Fundada em 20 de julho de 1897) As sessões preparatórias para a criação da Academia Brasileira de Letras realizaram-se na sala de redação da Revista Brasileira, fase III (1895-1899), sob a direção de José Veríssimo. Na primeira sessão, em 15 de dezembro de 1896, foi aclamado presidente Machado de Assis. Outras sessões realizaram-se na redação da Revista, na Travessa do Ouvidor, n.o 31, Rio de Janeiro. A primeira sessão plenária da Instituição realizou-se numa sala do Pedagogium, na Rua do Passeio, em 20 de julho de 1897.

C a d e i r a P at r o n o s F u n d a d o r e s M e m b r o s E f e t i v o s 01 Luís Murat Ana Maria Machado 02 Álvares de Azevedo Tarcísio Padilha 03 artur de Oliveira Filinto de Almeida Joaquim Falcão 04 Basílio da Gama Aluísio Azevedo Carlos Nejar 05 Bernardo Guimarães José Murilo de Carvalho 06 Cicero Sandroni 07 Castro Alves Valentim Magalhães 08 Cláudio Manuel da Costa Cleonice Serôa da Motta Berardinelli 09 Domingos Gonçalves de Magalhães Magalhães de Azeredo alberto da Costa e Silva 10 Rui Barbosa Rosiska Darcy de Oliveira 11 fagundes Varela Lúcio de Mendonça ignácio de Loyola Brandão 12 frança Júnior Urbano Duarte Alfredo Bosi 13 Visconde de Taunay sergio Paulo Rouanet 14 franklin Távora Clóvis Beviláqua Celso Lafer 15 Gonçalves Dias Marco Lucchesi 16 Gregório de Matos Araripe Júnior Lygia Fagundes Telles 17 Hipólito da Costa Sílvio Romero Affonso Arinos de Mello Franco 18 João Francisco Lisboa José Veríssimo Arnaldo Niskier 19 Joaquim Caetano Alcindo Guanabara antonio Carlos Secchin 20 Joaquim Manuel de Macedo salvador de Mendonça Murilo Melo Filho 21 Joaquim Serra José do Patrocínio Paulo Coelho 22 José Bonifácio, o Moço João Almino 23 José de Alencar Machado de Assis antônio Torres 24 Júlio Ribeiro Garcia Redondo Geraldo Carneiro 25 Barão de Loreto alberto Venancio Filho 26 Guimarães Passos Marcos Vinicios Vilaça 27 Maciel Monteiro antonio Cicero 28 Manuel Antônio de Almeida inglês de Sousa Domicio Proença Filho 29 Geraldo Holanda Cavalcanti 30 Pedro Rabelo Nélida Piñon 31 Pedro Luís Luís Guimarães Júnior Merval Pereira 32 araújo Porto-Alegre Zuenir Ventura 33 Domício da Gama evanildo Bechara 34 J.M. Pereira da Silva evaldo Cabral de Mello 35 Tavares Bastos Rodrigo Octavio Candido Mendes de Almeida 36 Teófilo Dias Afonso Celso Fernando Henrique Cardoso 37 Tomás Antônio Gonzaga Silva Ramos Arno Wehling 38 Graça Aranha José Sarney 39 f.A. de Varnhagen Oliveira Lima Marco Maciel 40 Visconde do Rio Branco Eduardo Prado Edmar Lisboa Bacha C o mp o s t o e m F r u t i g e r L i g h t 9,5/13,5 p t ; C i ta ç õ e s , 9/12 p t