HOMENS, BRANCOS E JOVENS: UM PANORAMA DAS (IN) VISIBILIDADES NAS REPRESENTAÇÕES DE LGBTS EM TELENOVELAS DA REDE GLOBO, ENTRE 1970 E 2013

Fernanda Nascimento1

Resumo: As representações de lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e travestis (LGBTs) nas telenovelas da emissora Rede Globo têm se ampliado nos últimos anos, contribuindo para o aumento da discussão social a respeito de sujeitos e grupos sociais historicamente oprimidos. Ainda que crescente esta visibilidade mantém determinados padrões de regulação dos corpos, ao apresentar personagens LGBTs com marcadores identitários próximos às normas de gênero, sexualidade, raça, classe social e geração estabelecidas socialmente. No presente artigo, analisam-se as representações das 126 personagens LGBTs presentes em 62 narrativas, exibidas pela emissora, entre 1970 e 2013. Entre as conclusões deste levantamento está a pouca diversidade de gênero, sexualidade e raça destas representações, o que contribui para a hierarquização das formas de ser e estar no mundo. As análises apontam para o fato de que, ainda que os LGBTs tenham tido suas vivências tematizadas de forma mais acentuada, outras formas de opressão continuam sendo reproduzidas nestas representações, que privilegiam a visibilidade identidade de homens cisgêneros gays, brancos e jovens em detrimento das demais. Palavras-chave: Mídia. Gênero. Sexualidade. Telenovelas. LGBTs.

Introdução

As reflexões acerca dos sentidos produzidos pelas narrativas midiáticas sobre a população LGBT buscam compreender, mais do que as representações em si, como estes textos contribuem na construção de identidades e nas percepções sociais sobre sujeitos historicamente marginalizados. Neste artigo, extrato de minha pesquisa de mestrado (NASCIMENTO, 2015), apresento reflexões sobre as características destas representações ao longo de 43 anos, nas telenovelas da Rede Globo, emissora de maior audiência do País. Alinhada aos Estudos Culturais, compreendo que a mídia integra a construção social da realidade e atua como mediadora entre sujeitos e culturas, em um processo contínuo de ressignificação (KELLNER, 2001). Como esfera de mediação, a mídia “conforma a visão de mundo, a opinião pública, valores e comportamentos” e, como tal, é um espaço onde se “travam batalhas pelo controle da sociedade” (KELLNER, 2001, p. 54). Estas disputas são associadas ao poder histórico, exercido por grupos dominantes, o que faz com que setores marginais pressionem

1 Jornalista (PUCRS), Mestra em Comunicação Social (PPGCOM/PUCRS) e doutoranda no Programa Interdisciplinar em Ciências Humanas (PPGICH/UFSC), em Florianópolis, Santa Catarina, Brasil. Bolsista da CAPES.

1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

por maior visibilidade dentro deste espaço de poder. Neste jogo de tensionamentos, a mídia serve tanto para promover a dominação, quanto para a resistência (KELLNER, 2001, p. 64). Neste sentido, compreendo que as representações de LGBTs das telenovelas não são simples reproduções das lógicas de dominação e opressão históricas contra os sujeitos que integram essas minorias. Tampouco acredito que os espaços conquistados por LGBTs nos últimos anos tenham sido capazes de modificar sobremaneira as representações midiáticas. Há na mídia, assim como na cultura, um permanente jogo de tensionamentos entre grupos hegemônicos e subalternos. No que tange os estudos de gênero, destaco que compreendo o gênero como uma construção social, que perpassa não somente corpos, como instituições, regulando as atividades humanas (SCOTT, 1990; LOURO, 2001; BUTLER, 2013). Realizo a análise estabelecendo um diálogo com os Estudos Queer, por entender a necessidade de subversão da lógica binária, que regula as fronteiras sexuais e de contestação, submetendo sujeitos e enquadrando comportamentos em um regime heteronormativo. Compreendendo também que as identidades são complexas e atravessadas por diversos marcadores, sendo necessário pensar sobre LGBTs para além da esfera de gênero e sexualidade.

Metodologia

Para mapear e analisar as personagens foi necessário, inicialmente, percorrer os caminhos das pesquisas anteriores sobre LGBTs e telenovelas2. Um primeiro movimento foi realizar o cruzamento dos dados oriundos das pesquisas que apresentavam listas de personagens LGBTs. Os dados foram confrontados com o site de memória da Rede Globo e periódicos do momento de exibição das narrativas. Às informações genéricas sobre LGBTs foram incluídos dados sobre as características de cada personagem, utilizando conceitos como a classe social (SOUZA, 2012), geração, raça, performatividade de gênero (BUTLER, 2013), além da análise da forma como vivenciam sua sexualidade (RUBIN, 2003). Também foram acrescentadas informações sobre as temáticas abordadas nas telenovelas, como os direitos sexuais e o preconceito e/ou discriminação.

LGBTs em telenovelas: quem são?

2 Ver descrições e análises das pesquisas em NASCIMENTO, 2015.

2 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

O mapeamento identificou 126 personagens, em 62 novelas, entre 1970 e 20133. É possível analisar que os anos 1970 foram marcados pela presença de homens homossexuais, de classes populares e performatividade de gênero camp. A maioria integrava núcleos cômicos e posições subalternas. Há exceções, como as lésbicas de (1974)3, pioneira também na apresentação de um vilão gay. Outro destaque são as tematizações sobre o preconceito e/ou discriminação, ainda que de forma mais sutil que as atuais. De forma geral, a década tem uma presença restrita de LGBTs, que se resume aos homossexuais, em sua maioria com pouca participação nas tramas. Nos anos 1980, segue a predominância das características da década anterior. No período, acontece a primeira discussão sobre as relações familiares e a discriminação, em Brilhante (1981) e a exibição de Roda de Fogo (1986) – apresentando sexualidades diversas das estabelecidas pela norma e mais abaixo na hierarquia das sexualidades, como uma relação com o uso de objetos manufaturados. A década também marca a primeira participação de um homossexual negro nas telenovelas, em Sassaricando (1987). As lésbicas têm representações ampliadas, mas ainda com a sexualidade regulada: as homossexuais com direito a vivenciarem a sexualidade são as enquadradas no modelo heteronormativo. As vivências trans começam a adquirir visibilidade, em tom de comicidade em Um Sonho A Mais (1985) e com uma discussão sobre discriminação em Tieta (1989). Os anos 1990 demonstraram que a tendência de maior visibilidade de LGBTs se confirma e os padrões de representações se mantêm. Há a ampliação de debates e o primeiro casal inter-racial de homossexuais, discutindo duas opressões: a de sexualidade e a de raça. O destaque foi a narrativa de Torre de Babel (1998), com a exclusão de um casal lésbico – sob alegada rejeição do público – que se tornou emblemático nos estudos do tema. Padrões foram desestabilizados em Explode Coração (1995), com uma personagem que não definiu sua identidade de gênero e orientação sexual. Destaca-se ainda a tematização da bissexualidade, em Por Amor (1998), através de uma relação intergeracional. Nos anos 2000, são 22 narrativas com a participação de LGBTs. Há uma mudança do comportamento majoritariamente camp para padrões heteronormativos, no que se refere às personagens gays. Casais de Páginas da Vida (2006) e Paraíso Tropical (2006) são emblemáticos neste sentido, por serem formados por homens brancos, em relações monogâmicas e de classe média. Alguns pesquisadores criticam a higienização das sexualidades ao se retratarem personagens com performatividade de gênero mais adequada à norma (COLLING, 2007). Acredito que, a priori,

2 3 O levantamento inclui novelas exibidas até maio de 2013.

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a diversidade da sexualidade não pode ser taxada como negativa. De forma que gays com comportamento camp não são superiores aos demais pela transgressão da norma. As críticas de silenciamento de identidades se tornam pertinentes quando se observa que as discussões sobre LGBTs são realizadas, preferencialmente, por sujeitos com a sexualidade mais regulada. Mas se mostram parciais quando acusam uma tendência de heteronormatização da sexualidade das personagens. Ainda que se tenha um crescimento de personagens mais normativos, os gays camp não deixaram de participar das tramas e de, por outro lado, tematizar aspectos, inclusive, mais marginais do que os heteronormativos. É o caso de (2007), e da tematização da não-monogamia. As lésbicas continuam com representações hegemonicamente normativas e foram responsáveis por trazer à tona debates nas tramas de (2003) e (2004). As novelas abordaram a descoberta da sexualidade de mulheres jovens, os conflitos familiares, e a consolidação dos relacionamentos – monogâmicos. As personagens transexuais aparecem em quatro novelas e o destaque é a discussão de As Filhas da Mãe (2001). Os bissexuais estão em apenas quatro narrativas. Entre 2010 e 2013, são 12 as narrativas com LGBTs. As principais discutições da temática acontecem em Ti-Ti-Ti (2010) e Insensato Coração (2011) – novela com um núcleo LGBT específico. No que se refere aos deslocamentos da norma, (2010) é uma exceção, ao apresentar uma relação com homens bissexuais não monogâmicos e em grupo. Outro desvio acontece está em (2011), com um relacionamento intergeracional. A transexualidade é discutida com destaque em (2012), com os debates sobre a realização de procedimentos cirúrgicos e a discriminação, que podem levar a prostituição como forma de obter recursos financeiros. Analisando a categoria geração, destaco que somente em Mulheres Apaixonadas (2003) e Insensato Coração (2011), há a presença de personagens LGBTs com menos de 20 anos. Personagens de 21 e 30 anos, tiveram acentuado crescimento ao longo das décadas, especialmente nos anos 2000. Já a faixa etária dos 31 aos 40 anos é predominante desde os anos 70, apesar de ter perdido espaço. As personagens acima de 41 anos são poucas e ainda mais raras as que ultrapassam os 61 anos. Em 62 narrativas, apenas seis apresentam LGBTs com idade acima dos 60 anos. No que se refere à raça, das 126 personagens, apenas quatro são negras. Destas, destaca-se que três personagens eram oriundas das classes populares – a exceção aconteceu em A Próxima Vítima (1995) – e a maioria foi coadjuvante nas tramas. Cabe ressaltar que o pequeno número de

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negros nas telenovelas não é observado apenas no que se refere às personagens LGBTs, mas que, de forma geral, esta parcela da população é pouco representada. Em outra categoria, a da classe social, é possível analisar que, ao longo das décadas, o número de personagens em classes populares foi levemente superior em relação à média, mas após os anos 2000 houve uma ampliação destas últimas. Personagens de classe alta aparecem em menor número. A característica de comportamento camp é percebida de forma marcante em várias décadas. São 35 narrativas com 43 homens homossexuais dentro de uma performatividade de gênero camp. Os gays dentro de um padrão heteronormativo são 27 e aparecem em 16 novelas, outras quatro personagens transitam entre os dois padrões. Enquanto os gays totalizam 76 personagens, o número de lésbicas é bastante inferior e chega apenas a 24 personagens. Ao observar sua performatividade, verifica-se a participação de 20 personagens dentro do padrão heteronormativo, e somente quatro com performatividade de gênero butch. Destaca-se que, enquanto diversas personagens gays camp e heteronormativas estabelecem relacionamentos afetivos/sexuais, entre as lésbicas as relações estão ligadas somente ao comportamento heteronormativo. A diferença de gênero também aparece entre os bissexuais. Os homens aparecem em 11 novelas: seis dentro de um padrão heteronormativo; cinco camp e dois transitam entre os dois padrões. Há apenas três mulheres bissexuais, duas em um padrão heteronormativo e uma que transita entre butch e heteronormativa. Ressalta-se a presença de uma travesti e oito mulheres transexuais, sem registro de homens transexuais representados nas novelas. Houve ainda a participação de uma personagem, em Explode Coração (1995), que não tinha a identidade de gênero e orientação sexual definidas. E em (1993) uma intersexual e confundida com transexual pelas demais personagens. As personagens LGBTs pouco diferem das personagens heterossexuais em relação à constituição de seus relacionamentos. A maioria tem relações monogâmicas, casadas, não- comerciais, em dupla, com pessoas da mesma geração, privadas, sem pornografia e utilizando apenas corpos. Algumas exceções aparecem como em Roda de Fogo (1986) com o sadomasoquismo, em Viver a Vida (2009) com uma relação não-monogâmica e em grupo, ou ainda em Insensato Coração (2011) com o cruzamento geracional. Além de não se diferir dos relacionamentos heterossexuais, muitas das personagens nem chegam a ter sua sexualidade explorada.

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Importante destacar que outra linha abaixo da hierarquia são as relações procriativas. É provável que o grande preconceito com relação à socialização de crianças em famílias formadas por LGBTs tenha contribuído para que demorasse mais de 30 anos para que a temática fosse abordada nas telenovelas. Somente em 2004, na trama de Senhora do Destino, um casal lésbico adotou uma criança. E, ao contrário do que se possa supor, a prática não se tornou comum nas novelas, sendo repetida apenas em 2006, em Páginas da Vida.

Considerações finais

O panorama permite destacar que as personagens LGBTs em telenovelas da Rede Globo tiveram sua participação ampliada nas últimas décadas. No leque das identidades LGBTs, a presença majoritária das narrativas é de gays. Os dados explicitam ainda a menor visibilidade da sexualidade feminina em relação à masculina, fator apontado como uma das formas de demarcação de gênero utilizada pela heteronormatividade: o apagamento das identidades. Menos visíveis, as lésbicas têm também suas sexualidades mais reguladas, enquadrando-se dentro de um padrão de gênero com características atribuídas ao feminino, na qual a única diferença é a orientação sexual. As análises apontam para o fato de que, ainda que os LGBTs tenham tido suas vivências tematizadas de forma mais acentuada nos últimos anos, outras formas de opressão continuam sendo reproduzidas nestas representações. Ao apresentar lésbicas dentro de um modelo heteronormativo, as novelas reproduzem uma regulação da sexualidade feminina, questionada desde as primeiras conceituações sobre a temática de gênero. Ao silenciar outras identidades, como butch, que questiona a ordem social de forma mais explícita, as telenovelas mantêm um padrão de representação no qual, mesmo dentro de um grupo estigmatizado como de LGBTs, o sexismo, o racismo e a misoginia, por exemplo, operam de forma praticamente invisível. O silenciamento de identidades se estende à presença pequena de personagens bissexuais e se acentua ainda mais com a pouca participação de transexuais. O panorama indica que, ainda que a visibilidade tenha se acentuado, mantém-se sob determinados padrões, nos termos de Stuart Hall, uma “visibilidade regulada” (HALL, 2013).

Referências

6 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

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Men, whute and young: an overview of the (in)visibilities of LGBT representations in soap operas of Globo Network, between 1970 e 2013

Astract: Representations of lesbians, gays, bissexuals, transexuals and transgenders (LGBTs) in Rede Globo's soap operas have grown within the past few years, contributing for the growing social discussion about subjects and social groups who have been historically oppressed. Even though it has been growing, this visibility mantains certain patterns of body regulations, when it presents LGBT characters with identitity markers related to social established norms of gender, sexuality, race, social class, and generation. In the present article, there have been analyzed 126 LGBT characters in 62 narratives, which were shown in the network between 1970 and 2013. Among the contribuitions of this research is a realization of the restrict diversity of gender, sexuality and race, which contribuites to the hierarchy of ways of being in the world. The analysis point that, even though the lives of LGBT people have been used as themes in a more frequent way, other forms of opression are still reproduced in these representations, which privileges the visibility of identities such as cisgender gay males, white and young, in prejudice of the others. Keywords: Media. Gender. Sexuality. Soap Operas. LGBTs

7 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X