Nº 534 | Ano XIX | 15/4/2019

Etty Hillesum O colorido do amor no cinza da Shoá

Eduardo Guerreiro Brito Losso Beatrice Iacopini Faustino Teixeira Ceci Maria Costa Baptista Mariani Ricardo Fenati Gabriela Acerbi Thiago Amud

Leia também ■ Francisco Orofino ■ Zeca Oliveira ■ Ricardo Timm ■ João Ladeira EDITORIAL

Etty Hillesum A resistência alegre contra o mal revista IHU On-Line retoma o pensa- Etty Hillesum são um apelo a essa criação e uma mento e a inspiração mística de Etty Hille- recusa a condicionar-se ao adverso. sum, publicados na última edição de 2018, Mariana Ianelli, poeta, ensaísta, cronista e Ano número especial de Páscoa deste ano. Fazer crítica literária brasileira, chama atenção para memória, sobretudo nos tempos presentes, toma a capacidade da jovem de encontrar Deus não a dimensão de um projeto ético de defesa à vida apenas em seu interior, pois “desenterra Deus do e às formas de vida. Ao fazer memória de Etty fundo do coração dos outros”, livre de qualquer Hillesum, retomamos sua experiência nos cam- amarra ou preconceito. pos de concentração da Segunda Guerra, quando a jovem judia não se entrega à dor e tão pouco Eduardo Guerreiro Brito Losso, professor responde ao ódio na mesma potência. Sua arma é de Teoria da Literatura do Departamento de Ci- o canto de alegria em meio as dificuldades, como ência da Literatura da Universidade Federal do uma flor que irradia calor na resistência gélida e , reflete, a partir da experiência de tétrica do inverno totalitário do nazi-fascismo. Etty, sobre as inquietudes que afligem o nosso tempo, perversidades que, se não forem apreen- É nesse sentido que Faustino Teixeira, pro- didas nas pequenas ações, acabam personifican- fessor e pesquisador do Programa de Pós-Gra- do o pior da humanidade. duação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora, observa nessa jovem Thiago Amud, compositor, arranjador, cantor mística a arte de encontrar o Deus interior capaz e violonista carioca, também destaca a importân- de fortalecer contra todo o mal que a cerca, sem cia da resistência alegre. Assim, olha para a for- ma como as Marchas de 2013 foram apreendidas 2 ceder em nada a sentimentos malignos e ainda ir- radiar amor. “Com todas as condições para dizer pelo “neofascismo” e vê na arte uma forma de o contrário, Etty rechaça em sua reflexão qual- ativar sentimentos que mobilizam sentimentos quer possibilidade de adesão ao ódio”, sintetiza. positivos como reação. Beatrice Iacopini, formada em Filosofia e em A edição ainda traz entrevistas com o teólogo Teologia e é professora no ITCS Filippo Pacini - Francisco Orofino, em que aborda a mística Pistoia e colabora com a Escola de Teologia da da leitura da Bíblia em tempos pascais; com a ju- Diocese de Pistoia, lembra que é necessário de- íza do Trabalho Valdete Souto Severo, em que senterrar Deus dos corações martirizados. “Etty reflete acerca dos efeitos da Reforma Trabalhista Hillesum nos ensina a perceber a profunda uni- e da Reforma da Previdência; e com Ricardo dade de tudo, razão pela qual quem se empenha a Timm de Souza, professor da PUCRS. Com- melhorar a si mesmo, na realidade, muda o mun- pletando o número 534 da IHU On-Line, o texto do”, pondera. de Zeca Oliveira e crítica de cinema de João Ladeira. Ceci Maria Costa Baptista Mariani, pro- fessora do Programa de Pós-graduação em Ciên- A todas e a todos uma boa leitura e uma exce- cias da Religião na Pontifícia Universidade Ca- lente semana! tólica de e da Faculdade de Teologia, foca sua análise no amor que Etty é capaz de mo- bilizar. Segundo a professora, pela entrega amo- rosa, a jovem chega a um Deus que habita nela e reconhece nele a face daqueles que a cercam. Para Ricardo Fenati, mestre em Filosofia e integrante do Centro Loyola, de , a experiência mística de Etty Hillesum é espiri- tual, e não psíquica, segundo revela em registros das primeiras anotações de seu diário. Gabriela Acerbi, socióloga e mestranda em Ciências Sociais, descobriu Etty recentemente e não esconde seu encanto. Para ela, a experiência da jovem judia revela que é possível se criar mes- Foto: Scott Hart / Flickr Creative Commons mo diante de um abismo. Para ela, os diários de

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Sumário

4 ■ Temas em destaque 6 ■ Agenda 9 ■ Zeca Oliveira | Sonho marxista de verão 10 ■ Cinema | João Martins Ladeira: Um pouco além das fronteiras 13 ■ Tema de capa | João Vitor Santos: Etty Hillesum, a voz que se ergue das sombras como brasa e reinventa a esperança 17 ■ Tema de capa | Eduardo Guerreiro Brito Losso: A necessidade de reconhecer o mal no humano para enfrentá-lo 27 ■ Tema de capa | Beatrice Iacopini: Trabalhar sobre si mesmo é a única solução para o mal 34 ■ Tema de capa | Faustino Teixeira: Etty Hillesum canta a alegria contra o ódio 42 ■ Tema de capa | Mariana Ianelli: A jovem mística que “desenterra Deus do fundo do coração dos outros” 48 ■ Tema de capa | Ceci Maria Costa Baptista Mariani: O amor é central na mística feminina de Etty Hillesum 54 ■ Tema de capa | Ricardo Fenati: A mística, uma vivência psíquica? Não, uma experiência espiritual 58 ■ Tema de capa | Gabriela Acerbi: Etty Hillesum e a criação diante do abismo 66 ■ Tema de capa | Thiago Amud: Contra os ressentidos de 2013 é preciso alegria como substância para resistência 3 72 ■ Francisco Orofino | Em tempos de “fake news”, mentiras também alimentam leituras fundamentalistas da Bíblia 77 ■ Ricardo Timm de Souza | Diante da cegueira idólatra, um novo Brasil a ser reconstruído 82 ■ Publicações | Andrea Grillo: A liturgia, 50 anos depois do Concílio Vaticano II: marcos, desafios, perspectivas 83 ■ Outras edições

Diretor de Redação Juliana Borgmann, Amanda Bier e Inácio Neutzling Liege Barcelos. (inacio@.br) Coordenador de Comunicação - IHU Ricardo Machado – MTB 15.598/RS ([email protected]) Jornalistas João Vitor Santos – MTB 13.051/RS ([email protected]) ISSN 1981-8769 (impresso) Patricia Fachin – MTB 13.062/RS ISSN 1981-8793 (on-line) ([email protected]) Revisão Carla Bigliardi A IHU On-Line é a revista do Institu- to Humanitas Unisinos - IHU. Esta Projeto Gráfico Instituto Humanitas Unisinos - IHU publicação pode ser acessada às segun- Ricardo Machado das-feiras no sítio www.ihu.unisinos.br e Av. Unisinos, 950 | São Leopoldo / RS no endereço www.ihuonline.unisinos.br. Editoração CEP: 93022-000 Gustavo Guedes Weber Telefone: 51 3591 1122 | Ramal 4128 e-mail: [email protected] Atualização diária do sítio A versão impressa circula às terças-fei- Inácio Neutzling, César Sanson, ras, a partir das 8 horas, na Unisinos. O Patrícia Fachin, Cristina Guerini, Diretor: Inácio Neutzling conteúdo da IHU On-Line é copyleft. Evlyn Zilch, Stefany de Jesus Rocha, Gerente Administrativo: Nestor Pilz Wagner Fernandes de Azevedo, ([email protected])

EDIÇÃO 534 TEMAS EM DESTAQUE

Entrevistas completas em www.ihu.unisinos.br/maisnoticias/noticias Confira algumas entrevistas publicadas no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU na última semana. “’Comprar’ a agenda internacional dos EUA é uma das iniciativas mais despropositadas” “A política de Bolsonaro privilegia, como se afirma no discurso de posse de Araújo (um dos raros trechos pertinentes), os EUA de Trump, Israel de Netanyahu, a “nova” Itália de Salvini, a Hungria de Orban e a Polônia”. Rubens Ricupero, diplomata, foi assessor do presidente Tancredo Neves (1984/1985) e do presidente José Sarney (1985/1987), representante permanente do Brasil junto aos órgãos da ONU sediados em Genebra (1987-1991) e embaixador nos Estados Unidos (1991-1993).

A crise sistêmica e a ascensão chinesa

“O capitalismo é que foi enquadrado por um projeto chinês de desen- volvimento de mercado no longo prazo”, Bruno Hendler, professor subs- tituto do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de Goiás – UFG.

4 O retorno da indústria da loucura

“A nota técnica 11/2019 do Ministério da Saúde propõe o oposto do que a Reforma Psiquiátrica brasileira vem há 40 anos instituindo no país”, Maria de Fátima Bueno Fischer, professora da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos e psicóloga da Secretaria da Saúde do Estado do Rio Grande do Sul.

“Não encontraremos na história momentos de forte correlação com o que viveremos” “Os trabalhadores do conhecimento hoje se dispõem a jornadas de trabalho que não são as ideais, e temos uma distribuição das horas úteis da vida de um profissional excessivamente dedicadas ao trabalho corporativo”, João Roncati, diretor da People+Strategy Consultoria Empresarial, mestre em Planejamento Estratégico pela Universidade de São Paulo – USP.

Neoconservadores e neoliberais disputam o comando do governo Bolsonaro “Ou encontramos uma saída organizatória (digo, em termos de uma “fren- te”, já seria bastante), ou estamos perdidos. Mas isso só se fará, insisto, refor- mulando as bandeiras da esquerda”, Ruy Fausto, graduado em Filosofia e em Direito pela pela Universidade de São Paulo - USP e doutor em Filosofia pela Université Paris 1 Pantheon-Sorbonne, professor titular da USP.

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Textos na íntegra em www.ihu.unisinos.br/maisnoticias/noticias Confira algumas notícias públicas recentemente no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU

Lula e Marielle, símbolos Papa denuncia que “a Bolsonaro quer explorar de duas esquerdas rica Europa e a América Amazônia com os separadas nas ruas vendem armas para Estados Unidos matar as crianças”

Ato da campanha Lula Foi forte a denúncia feita hoje Em entrevista a emissora Livre, semanas depois das pelo Papa contra o tráfico de de rádio, presidente conta homenagens à vereadora armas e o “sistema econômico que propôs a Donald Trump assassinada, marcam as injusto” que atualmente impera parceria para exploração da diferenças de idade e priori- no mundo. “Somos artífices das região. Bolsonaro promete dades temáticas das mobili- diferenças, da dor e da pobreza. ainda rever demarcação de zações progressistas. Por que hoje no mundo há tan- terras indígenas. tas crianças com fome? É Deus Reportagem de El País, reproduzida Reportagem é publicada por Deuts- nas Notícias do dia de 08-04-2019, que cria essa diferença? Não, é che Welle, reproduzida nas Notícias disponível em http://bit.ly/2Vz7JGR. este sistema econômico injusto, do Dia de 09-04-2019, disponível em onde a cada dia há menos ricos http://bit.ly/2Icev28. com mais dinheiro e mais po- bres sem nada”, criticou Fran- cisco, ao receber, em audiência, docentes e estudantes do Insti- tuto São Carlos de Milão.

Reportagem de Religión Digital, reprodu- 5 zida nas Notícias do Dia de 08-04-2019, disponível em http://bit.ly/2KpHsd4.

Essas mães Corte orçamentário “A Amazônia é nossa” – repudiam o pacote anunciado pelo governo Um Sínodo para anticrime de Moro pode provocar paralisia e a Pan-Amazônia morte de políticas sociais

Marcia, Glaucia, Janaína e Ministério da Educação “A Amazônia é nossa”. O Laura têm uma luta em co- sofreu bloqueio de R$ 5,83 mote governamental para mum: provar que os filhos bilhões, o equivalente a 25% justificar a chamada inte- foram mortos ilegalmente do valor previsto no Orça- gração da região amazônica em ações policiais. Casos vão mento. Já a Saúde teve o e a sua exploração a partir de execução por causa de um congelamento de R$ 599 do discurso de desenvolvi- pacote de pipoca a tiro no milhões, 3% do que foi orça- mento foi o fio condutor da rosto dentro do camburão. do para 2019. exposição do bispo emérito da prelazia do Xingu/PA e Reportagem publicada por Deutsche A reportagem publicado por EPSJV/ Welle, reproduzida nas Notícias do Fiocruz, reproduzida nas Notícias coordenador da Rede Ecle- Dia de 09-04-2019, disponível em do Dia de 08-04-2019, disponível em sial Pan-Amazônica/REPAM http://bit.ly/2Vxs5A9. http://bit.ly/2G2wdln. -Brasil, dom Erwin Kräutler, na aula inaugural da Facul- dade Jesuíta de Filosofia e Teologia de Belo Horizonte/ MG, no último mês de março. A reportagem publicada por REPAM, reproduzida nas Notícias do Dia de 09-04-2019, disponível em http://bit. ly/2G1qxrQ.

EDIÇÃO 534 AGENDA

Programação completa em ihu.unisinos.br/eventos

EAD - Ciclo de Estudos EAD - Ciclo de Filmes Oficina de Dados sobre o livro “O capital no e Debates: Crise do e análises sobre a Século XXI“ – A estrutura Capitalismo - dez anos Região Metropolitana da desigualdade - depois - 2ª edição de Porto Alegre 2ª. EDIÇÃO Semana 1 de 6 - De 15/04 à 27/04

15/Abr 15/Abr 16/Abr

Renda, capital, produção Wall Street: o dinheiro Horário e crescimento econômico nunca dorme (Wall Street: 14h30min às 17h mundial desde o século money never sleeps, Oliver XVIII Stone, EUA, 2010, 133min.) Palestrante Profa. Dra. Marilene Maia Leitura: “Primeira Parte: renda e capital”, do livro O Local capital no Século XXI, de Sala TEDU 211| Campus Thomas Piketty Unisinos Porto Alegre

6 Uma introdução ao Exibição do filme: Ecofeira Unisinos

Filme Coragem! As Coragem! As Muitas Venda e comercialização de produtos Muitas Vidas Vidas do Cardeal Paulo do Cardeal Evaristo Arns

16/Abr 16/Abr 17/Abr

Horário Horário Horário 17h às 17h20min 17h30min às 19h 9h às 17h Conferencista Local Local Jornalista Ricardo Sala Ignacio Ellacuría e Corredor Central da Carvalho Companheiros – IHU | Unisinos – Campus Unisinos Campus São São Leopoldo (em frente Local Leopoldo ao IHU) Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU | Unisinos Campus São Leopoldo

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Atividades Culturais EAD - Paixão, Morte e Juventudes e Ecofeira Unisinos Ressurreição de Jesus religiões: relações – Oficina Plantas Cristo. Uma análise da complexas Alimentícias Não narrativa de Marcos Convencionais Julgamento e condenação de Jesus 17/Abr 22/Abr 23/Abr

Horário Sexta Semana (22 a 28/04) Horário 12h30min às 13h30min A traição de Judas e o 19h30min às 22h abandono dos discípulos Conferencista (Mc 14, 43-14, 52). Conferencista Daiani Fraporti dos Santos, - Entrega de Judas Profa. Dra. Brenda Carran- Gelson Luiz Fiorentin e - Fuga dos discípulos. za – PUC-Campinas Marcos Augusto Mendes Rocha – PASEC – Unisinos Sétima Semana (29/04 a Local 05/05) Sala Ignacio Ellacuría e Local Fracasso da causa de Je- Companheiros – IHU Sala Ignacio Ellacuría e sus (Mc 14, 53-15, 33). Campus Unisinos Companheiros – IHU | São Leopoldo Unisinos Campus São Leopoldo

7 Ecofeira Unisinos A reforma trabalhista Políticas públicas,

Venda e comercialização de produtos um ano após sua tributos e renda básica primeira aprovação. cidadã por ‘Renda Impactos nas relações básica em de trabalho tempos difíceis’

24/Abr 25/Abr 25/Abr

Horário Horário Horário 9h às 17h 17h30min às 19h 19h30min às 22h Local Conferencista Conferencista Corredor Central da Profa. Dra. Valdete Souto Prof. Dr. Josué Pereira da Unisinos – Campus Severo – Tribunal Regional Silva – Unicamp São Leopoldo (em frente do Trabalho da Quarta ao IHU) Região – TRT4 Local Sala Ignacio Ellacuría e Local Companheiros – IHU | Sala Ignacio Ellacuría e Campus Unisinos São Companheiros – IHU | Leopoldo Unisinos Campus São Leopoldo

EDIÇÃO 534 AGENDA

Programação completa em ihu.unisinos.br/eventos

EAD - Ciclo de Estudos EAD - Ciclo de Filmes A procissão do livro “O Capital no e Debates: Crise do antropofágica contra século XXI” – A Estrutura da Capitalismo - dez anos a moral enlatada desigualdade - 2ª. Edição depois - 2ª edição

Semana 2 de 6 - De 29/04 à 11/05 29/04 à 11/05

29/Abr 29/Abr 30/Abr

A dinâmica da relação ca- O lobo de Wall Street (The Horário pital/renda e a distribuição wolf of Wall Street, Mar- 19h30min às 22h da renda tin Scorsese, EUA, 2013, 179min.) Conferencista Leitura: “Segunda Parte: Prof. Dra. Verônica Anto- a dinâmica da relação nine Stigger – Fundação capital/renda”, do livro O Armando Alvares Pentea- capital no Século XXI, de do – FAAP – São Paulo Thomas Piketty Local Salas TEDU 803 e 804 | Campus Unisinos Porto Alegre

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Sonho marxista de verão

Zeca Oliveira

atéria-prima possível pela exploração de braços operários e forjada pelo enlevo artístico burguês, a estátua sustenta exatamente aquilo sem o qual nãoM teria sido possível erguer-se e que não lhe cabe dar um alento maior do que um momentâneo descanso na frieza dos seus braços de pedra”, escreve Zeca Oliveira, geólogo, pesquisador da Unisinos. Jose Manoel Marques Teixeira de Oliveira, o “Zeca Oliveira, é graduado em Geologia pela Universida- de Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS e mestre em Geociências pelo Convênio UFRGS/PETROBRAS. Ainda possui pós-graduação em Regulação de Mercados de Pe- tróleo e Gás Natural pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e Especialização em Geologia do Petróleo pela Universidade Corporativa da Petrobras. Atualmente é pesquisador na Unisinos, participando do projeto Siste- mas Continentais: Desenvolvimento de Rotinas Numéricas para Simulação de Sedimentação e Diagênese Siliciclástica 9 e Carbonática. Eis a reflexão.

A convivência perturbadora e ilusoriamente pacífica entre opressor e oprimido. Tal é a minha impressão imediata da criança dormente aos braços da estátua. Aquela, envolta na ilusão con- fortadora do abraço impessoal e momentâneo; esta, em sua maternidade pétrea e figurativa, insensível a um provável sonho libertário. Matéria-prima possível pela exploração de braços operários e forjada pelo enlevo artístico burguês, a estátua sustenta exatamente aquilo sem o qual não teria sido possível erguer-se e que não lhe cabe dar um alento maior do que um momentâneo descanso na frieza dos seus braços de pedra. Visto assim, o repouso tímido da criança contém em si toda uma prá- xis revolucionária, uma crítica velada das contradições do capital. Verdadeiro monumento dialético, a serenidade do cenário deixa transparecer, contudo, um fervilhante deba- te de opostos. A estátua e a criança. O Burguês e o operá- rio. A inconsciência e o sonho. A tese e a antítese. Dorme, pequena suja, dorme. Dorme como dormem aqueles que te oprimem, alheios ao colapso que se avizinha. O teu des- pertar haverá de ser o prenúncio do levante dos oprimi- dos para a construção de um socialismo fraterno e de um mundo de irmandade solidária. Inebriado por este sonho possível detenho-me por uma última vez na imagem da criança em seu insólito berço e na penumbra da tarde que se esvai quase posso ver a estátua beijar-lhe a fronte ene- grecida de carvão.■ Filme (ano), autor

EDIÇÃO 534 CINEMA

Cena do filme As Boas Maneiras, dirigido por Juliana Rojas e Marco Dutra (Foto: Divulgação)

10 Um pouco além das fronteiras As Boas Maneiras segue um caminho difícil e termina por produzir um filme B tropical, como um Tourneur passeando pelos trópicos

João Martins Ladeira1

Ninguém duvidou que As Boas Maneiras (2017, de Marco Dutra e Juliana Rojas) fosse um “filme de gênero”. Nele, percebe-se uma conexão muito clara com o horror. Mas não apenas. Há uma curiosa mistura entre traços deste estilo – em especial nas citações a alguns trabalhos dos anos 1970 – com algo que os ultrapassa. Pois existe também uma reflexão sobre contradições sociais das mais diversas, tema caro ao cinema brasileiro. 1 Neste exercício com o horror, os elos se mostram mais conscientes e menos literais. Dutra e Rojas recuperam não apenas tramas, enredos ou personagens, mas problemas fundamentais de certa vertente deste estilo, apropriando-os numa mescla bem própria. Como usualmente ocorre neste gênero, As Boas Maneiras versa sobre famílias, na reflexão sobre a ruptura com a norma- lidade que tal gênero introduziu.

O monstro na sala de estar

Em sua inteligente leitura sobre tal conjunto de obras, Robin Wood propôs, em Hollywood from Vietnam to Reagan, que a alegoria central a motivá-las reside na figura do monstro. O horror se debruça sobre uma ideia de normalidade perturbada por esta criatura, indício de uma

1 João Martins Ladeira é professor no Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Unisinos, possui doutorado em Sociologia pelo Iuperj, mestrado e graduação em Comunicação pela UFF. (Nota da IHU On-Line)

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“Como usualmente ocorre neste gênero, As Boas Maneiras versa sobre famílias, na reflexão sobre a ruptura com a normalidade que tal gênero introduziu”

repressão indizível que, nestes filmes, a narrativa consegue elaborar graças a seu tom despropo- sitado. Em alguns trabalhos caros aos anos 70, esta ruptura atinge o lar. Como se espera, As Boas Maneiras gira em torno desta criatura. Logo após as apresentações usuais, a gravidez ocupa papel de destaque. Assim que entendemos quem são Clara (Isabél Zuaa) e Ana (Marjorie Estiano) e compreendemos a tensão sexual entre ambas, o foco passa para o bebê que vai nascer. Mas, sua chegada nos apresenta não uma besta a ser destruída, mas uma criança impossível de ignorar. Desde Psicose (Psycho, 1960, de Alfred Hitchcock), abriu-se uma brecha no horror, permi- tindo-lhe se ater não só a criaturas alienígenas ou demoníacas, mas a um monstro doméstico. Seguiram nesta trilha muitos outros filmes, que confortavelmente nos acostumamos a chamar de “B” para não nos arriscarmos muito numa reflexão sobre eles. O Massacre da Serra Elétrica (The Texas Chain Saw Massacre, 1974, de Tobe Hooper) se re- fere a um clã canibal que aprendeu seu ofício no matadouro cuja desativação conduziu a cidade à decadência. Em Halloween: A Noite do Terror (Halloween, 1978, de John Carpenter), Mike era apenas uma criança num lar de classe média antes de seu primeiro assassinato, este que dá início à sua interminável rebelião contra a vida no subúrbio. 11 Mas é Nasce um Monstro (It’s Alive, 1974, de Larry Cohen) que merece maior atenção, na sua fantasia sobre um ser oriundo de uma tragédia ecológica, e não sobrenatural. Quando o parto destrói a mãe e revela a coisa cujo problema será decidir se cabe ou não no lar, a comparação entre ambos os filmes parece indispensável. Mas o toque de As Boas Maneiras está em se optar por cuidar da criatura, ao invés de destruí-la. Eis que surge uma referência a Jacques Tourneur, de quem Dutra e Rojas se declararam ad- miradores. Como em A Morta-Viva (I Walked with a Zombie, 1943), as barreiras em relação à criatura serão abolidas. Relacionamentos inviáveis na chave do convencional se tornam pos- síveis. Pois Tourneur se debruça exatamente sobre esta fronteira borrada entre morto/vivo, médico/mágico, selvagem/civilizado, sagrado/profano, branco/negro.

De volta ao Brasil

Se este filme de 2017 compartilha tal desejo por expandir tal limite, convive também com uma análise sobre temas caros a nosso cinema. Debruça-se sobre a vida doméstica, a sexualidade, as desigualdades, o racismo, recuperando uma leva bem distinta de obras. Mantendo todas as dis- tâncias, poderíamos estar assistindo às análises de um São Paulo, Sociedade Anônima (1965, de Luís Sérgio Person) ou O Desafio (1965, de Paulo César Saraceni). Interessante: tais filmes do passado se debruçavam so- bre uma classe média atada a uma vida com horizontes bem limitados, vivendo numa sociedade que nada tinha de afluente. Narrados num estilo realista, permitiam-nos acompanhar os atos de personagens sempre fadados ao fracasso, em sua tentativa de lidar com a precariedade. As Boas Maneiras tem outro toque, concedido pelo fantásti- co, terminando de modo bem mais afirmativo. Filme (ano), autor

EDIÇÃO 534 CINEMA

Na segunda parte, vemos Clara, já sozinha com Joel (Miguel Lobo), construir outra família com bastante sucesso, até o dia em que a relação entre ambos se depara com o mundo externo. A atração exercida pela cidade revela a verdadeira condição do menino, culminando na vingança do povo. Contudo, parece emblemático que o desfecho seja tão positivo, na determinação de mãe e filho em se manter unidos. Nada impediria que a fantasia pequeno-burguesa sobrenatural terminasse com o fracasso dos personagens, colocando As Boas Maneiras bem perto de outras reflexões sobre nossa crise cons- tante. Mas Dutra e Rojas encerram o trabalho com outro ar. De pé, prontos a reagir, Clara e Joel parecem o oposto de alguém engolido pela engrenagem. Difícil decidir se a conclusão consiste numa estranha expectativa de esperança ou noutro tipo de alienação. ■

Ficha técnica

Título original: As Boas Maneiras Ano: 2018 Direção: Juliana Rojas, Marco Dutra Elenco: Isabél Zuaa, Marjorie Estiano, Eduardo Gomes Gêneros: Fantasia, Drama Nacionalidade: Brasil, França

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Etty Hillesum | Foto: Wikimedia Communs

Etty Hillesum, a voz que se ergue 13 das sombras como brasa e reinventa a esperança

João Vitor Santos

magine viver a dor da guerra na própria da Universidade Federal de Juiz de Fora pele, a qual é rasgada pelo sofrimento - PPCIR-UFJF, “uma das personalidades que transpassa a todos que são redu- mais luminosas do século XX”. zidosI a um campo de concentração, mas De acordo com informações da Cruz Ver- sem perder a potência da vida e a capaci- melha, Etty morreu em Auschwitz, na Po- dade de olhar além de todo o mal ao redor lônia, em 30 de novembro de 1943, aos 29 e encontrar amor. Essa é Etty Hillesum, anos de idade. Nasceu em 25 de janeiro de a judia que, depois de viver confinada no 1914, em Middelburg, nos Países Baixos, campo de Westerbork, na região onde hoje atual Holanda. Aos dez anos de idade, vai é a Holanda, é transferida de trem, jun- com os pais e dois irmãos viver na cidade to com toda a família, para ser morta em de Deventer. Sua família era de judeus não Auschwitz, jornada em que muito prova- praticantes. O pai, Louis Hillesum, era velmente já perde os pais, sobrando ape- professor com formação em línguas clás- nas ela e o irmão. Nos seus últimos relatos, sicas. Junto com a esposa, a russa Riva diz que todos estavam “calmos e fortes” e Hillesum-Bernstein, além de Etty, tiveram que teriam “deixado o campo cantando”. ainda dois filhos, Jaap Hillesum, que se Essa cena revela por que Etty Hillesum é torna médico, e Mischa Hillesum, reco- considerada uma das místicas mais desta- nhecido pelo talento musical. cadas de nosso tempo, ou, como descreve Faustino Teixeira, professor do Programa Quando Etty completa 18 anos, os pais de Pós-Graduação em Ciência da Religião a enviam para estudar línguas eslavas em

EDIÇÃO 534 TEMA DE CAPA

“Quão grandes são as necessidades de suas criaturas terrestres, Deus meu. Agradeço- lhe porque permite que tantas pessoas venham a mim com suas tristezas” – Etty Hillesum

Amsterdã. Ali, gradua-se em Jurisprudên- e a escritos de Santo Agostinho, além de cia, além de seguir os estudos de línguas Rilke e Dostoiévski. Mais tarde, os dois e dar aulas de russo, idioma que aprende vão viver um relacionamento amoroso. 14 com a mãe. Descrita por muitos biógrafos Ela será sempre grata pelos ensinamentos e pesquisadores como uma jovem culta, de seu mentor, a quem denominava como animada, curiosa e inquieta, nunca escon- seu “obstetra da alma”. “Você me ensinou dera sua grande capacidade de introspec- a pronunciar com propriedade o nome de ção. Ela mesma se reconhece assim, como Deus. Você tem sido o intermediário entre descreve em um de seus diários em 1941: Deus e eu [...] Agora eu serei o intermedi- ário para todos aqueles a quem eu possa “Quero algo e não sei o quê. Mais uma chegar”, escreveu ela depois da morte de vez me sinto presa a grande ansieda- de e desejo de busca; tudo está em ten- seu parceiro. são dentro da minha cabeça [...] No Na mesma medida em que Etty avançava fundo de mim mesma, sou como uma no conhecimento interior, a guerra recru- prisioneira de um novelo de fios e com absoluta clareza nos pensamentos. Às descia e tornava a vida cada vez mais difícil vezes não sou mais que um pobre dia- para os judeus. Nesta altura, a jovem já es- bo com medo. [...] Às vezes me sinto tabelecera uma relação bem próxima com como uma lata de lixo; sou tão turva, Deus. Aliás, um Deus que descreve como cheia de vaidade, de irresolução, de habitando o seu “eu” interior. E é nesse sentimento de inferioridade. Mas em interior e com apoio desse Deus que vai mim também há honestidade e um de- sejo apaixonado, quase elementar de buscar resistência às atrocidades impostas clareza e harmonia entre o exterior e pelo regime nazista. o interior” “Meu Deus, toma-me pela mão, vou É para conhecer mais o seu interior e segui-lo como uma boa menina, não atender esses desejos de harmonia que a vou opor muita resistência. Não me jovem vai procurar Julius Spier, um judeu afastarei de nenhuma das coisas que alemão refugiado na Holanda, psicotera- me acontecerem nesta vida, tentarei peuta, discípulo de Jung e que trabalha aceitar tudo da melhor maneira. Gos- com a nova ciência da psicoquirologia, que to do aconchego e da segurança, mas não vou me rebelar se for a minha vez estuda o comportamento humano a partir de estar no frio, enquanto segurar a da análise das mãos. É ele quem vai mo- minha mão, eu vou a qualquer lugar e tivar Etty a escrever como forma de bus- tentarei não ter medo. E onde quer que car o seu mundo interior. Sob sua batuta eu esteja, procurarei irradiar um pou- também vai se dedicar à leitura da Bíblia co desse amor, desse amor verdadeiro

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pelos homens que eu carrego dentro criatura desesperada que não sabe de mim [...] Uma vez que se começa a como viver. Então, começam os meus caminhar com Deus, simplesmente se problemas. Não basta pregá-lo, Deus continua a caminhar e a vida se trans- meu, não basta desenterrá-lo dos co- forma em um único e longo passeio.” rações dos outros. É preciso abrir-lhe o caminho, Deus meu, e para fazer isso E assim ela fez. Em julho de 1942 come- é preciso ser um grande conhecedor do çou a trabalhar como datilógrafa no Conse- espírito humano. Meus instrumentos lho Hebraico, um órgão burocrático criado para isso são limitados. Mas já exis- pelos alemães para fazer a mediação com tem, até certo ponto: vou melhorá-los a comunidade judaica. No entanto, ela não pouco a pouco, com muita paciência.” se encontrava feliz e seguia sua busca até E assim ela vai trabalhando junto a es- que, estimulada por outros funcionários sas pessoas dilaceradas pela guerra. Mas do departamento burocrático, decidiu a escuta exercida por Etty Hillesum não é se tornar voluntária no campo de Wes- apenas no sentido de confortar os sofridos. terbork. Originalmente criado como um Ela se nega a entregar suas forças ao ódio acampamento para refugiados judeus por que se espalha como rastilho de pólvora e autoridades locais no verão de 1939, vai se vê na alegria e na punção de vida a maior tornar um campo de concentração também de todas as formas de resistência, como é em julho de 1942, quando as autoridades possível perceber em sua anotação: alemãs tomam o espaço. Etty chega ao campo em agosto do mesmo ano, depois “A ausência de ódio não significa, por si da dominação germânica. Como esse era só, a ausência de um desdém moral ele- mentar. Eu sei que quem odeia tem boas um local de refugiados, havia antes escolas razões para isso. Mas por que devemos e muitos judeus trabalhavam e produziam sempre escolher o caminho mais bara- nesse espaço. Mais tarde, quando todos fo- to? Lá [em Westerbork] eu pude tocar ram levados para Polônia, havia ainda os com a mão como cada átomo de ódio que nutriam a esperança de viver como no que se soma ao mundo torna-o mais antigo abrigo. inóspito. E creio que, talvez ingênua, 15 mas teimosamente, esta terra poderia Quando os nazistas recrudescem sobre ser um pouco mais habitável, graças ao os judeus de Westerbork, as autoridades amor sobre o qual o judeu Paulo escre- determinam que parte dos servidores do veu aos habitantes de Corinto”. Conselho Hebraico retornem para Amster- O professor Faustino Teixeira recorda que, dã. Etty decide ficar, pois considerava fun- dentre os confinados no campo de Wester- damental cuidar daquelas pessoas feridas bork, “Etty era reconhecida como o ‘coração e assustadas. Conforme relata em um de pensante’, a ‘personalidade luminosa’”. “Foi seus diários: um testemunho de fé, esperança e amor entre aqueles deserdados. O seu trabalho “Quão grandes são as necessidades de essencial foi o de erigir uma ‘barreira inte- suas criaturas terrestres, Deus meu. rior’ para evitar que a apatia ou o desânimo Agradeço-lhe porque permite que tantas pessoas venham a mim com tomassem conta de seus companheiros”, suas tristezas: falam tranquilas e sem aponta. Para Faustino, a voz de Etty Hille- suspeitas e, de repente, saem todas as sum se erguia “das sombras como brasa nas suas tristezas e se descobre uma pobre cinzas e reinventava a esperança”. ■

Veja as principais publicações com os escritos de Etty Hillesum - Diário. Lisboa: As- -Cartas 1941-1943. sírio & Alvim, 2008. Lisboa: Assírio & Al- vim, 2008.

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Confira algumas obras sobre Etty Hillesum

- 15 dias de oração com Etty Hillesum, de Pierre Ferrière. Paulinas, 2016. - Etty Hillesum: Interioridad y transformación social. Una lectura desde la ladera sur, de Manuel de Jesús Corral Corral - Etty Hillesum - Um Itinerario Espiritual, de Lebeau- Paul. Editorial Ao Braga, 2014 - Reading Etty Hillesum in Context: Writings, Life, and Influences of a Visionary Author, de Klaas Smelik, Gerrit van Oord e Jurjen Wiersma. Amsterdam University Press, 2018. - Etty Hillesum in facetten, de Brandt van den. Damon Educatie, 2003. - Anne Frank en Etty Hillesum, de Denise de Costa. Balans, Uitgeverij, 1996. - Siamo partiti cantando. Etty Hillesum, un treno, dieci canzoni, de Matteo Corradini. Rue- ballu, 2017. - Etty Hillesum: Dio matura. Un viaggio in quaranta tappe, de MichaelDavide Semeraro. la meridiana, 2005.

O IHU também publicou uma série de textos sobre Etty Hillesum

- Etty Hillesum: o canto da vida. Publicado nas Notícias do Dia de 20-1-2014, disponível em 16 http://bit.ly/2Skyvkr. - Etty Hillesum, a jovem que encontrou Deus durante a Shoah. Publicado nas Notícias do Dia de 27-11-2018, disponível em http://bit.ly/2KE3l4J. - Etty Hillesum: reencontrar a vida no turbilhão do Holocausto. Publicado nas Notícias do Dia de 22-2-2013, disponível em http://bit.ly/2zvoeux. - Etty Hillesum rumo a Auschwitz, com radiosa esperança. Publicado nas Notícias do Dia de 19-11-2013, disponível em http://bit.ly/2P8bu21. - No arco-íris de Etty Hillesum. Publicado nas Notícias do Dia de 22-4-2013, disponível em http://bit.ly/2PYFa6Z. - O renascimento de Etty Hillesum. Publicado nas Notícias do Dia de 8-1-2014, disponível em http://bit.ly/2AvXbyR. - No fim, permanecerá apenas o grande amor. Em memória de Edith Stein. Publicado nas Notícias do Dia de 9-8-2018, disponível em http://bit.ly/2QkPdCT. - Etty Hillesum, o abandono do sujeito. Publicado nas Notícias do Dia de 16-8-2018, dispo- nível em http://bit.ly/2KGk7Ae. - Etty Hillesum na oração inter-religiosa desta semana. Publicado nas Notícias do Dia de 23-11-2018, disponível em http://bit.ly/2DNrzbs. - Etty Hillesum na oração inter-religiosa desta semana. Publicado nas Notícias do Dia de 14-9-2018, disponível em http://bit.ly/2P92WI3.

Documentário Veja mais sobre a vida e os escritos de Etty Hillesum no documentário O Amor como única solução - Etty Hillesum, dublado em português, disponível em http://bit.ly/2SlAghj.

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A necessidade de reconhecer o mal no humano para enfrentá-lo Eduardo Losso reflete sobre as inquietudes que afligem o nosso tempo, perversidades que, se não forem apreendidas nas pequenas ações, acabam personificando o pior da humanidade

João Vitor Santos

m geral, quando se fala que Etty livre, “nosso corpo deseja ambientes na- Hillesum esteve diante da face do turais, não cubículos emparedados, nem mal por ter vivido a Shoá, a afir- prédios gigantescos, luzes ofuscantes, ba- maçãoE é aceita. Entretanto, quando se rulhos gritantes, ruas apinhadas e carros diz que esse mal que nutriu uma guerra é numerosos”. Ou seja, é na natureza que o composto de sentimentos presentes ain- ser humano se completa. Mas, no nosso da hoje, um estranhamento pode se esta- tempo, nos movemos para cada vez mais belecer. “Se não estamos pensando radi- longe desses ambientes naturais. “O mer- calmente o nosso mal, é porque ele está cado, essa mão invisível, inquestionável e vencendo. Bem, diante dos fatos recentes, soberana, quer eliminar as poucas reser- isso é uma evidência”, aponta o professor vas naturais que sobram, multiplicar mais Eduardo Losso, que quer chamar aten- seres como nós retirando todos os seus ção justamente para esse ponto. Afinal, direitos mínimos e engordar cidades: isso 17 a maldade da Shoá não surge do nada, não tem como dar certo”, analisa. Assim, mas de sentimentos bem humanos que das muitas possibilidades de buscar essa se convertem em ações perversas. “Hoje, reconexão, está o silêncio. Aquele mesmo contudo, temos bons motivos para dizer que faz Etty encontrar a paz dentro de si que o abismo de nosso niilismo é bem num ambiente tão inóspito. Para Losso, o mais grave que o de nossos antecessores desafio é buscar essa conexão. “O silêncio modernos, mas não vejo ninguém enca- diz mais do que todos os sons que inces- rando o assombroso alcance dele, isto é, santemente nos perseguem, e é e será o nosso mal”, observa. “Isso significa que, cada vez mais, sem dúvida, um dos maio- por mais que tenhamos lido Nietzsche, res luxos da contemporaneidade”. Kierkegaard, Benjamin, Adorno, Cruz e Sousa, Augusto do Anjos, Machado de Eduardo Guerreiro Brito Losso Assis, Drummond, não estamos à altura é professor adjunto de Teoria da Litera- dos abismos de nosso tempo como eles, tura do Departamento de Ciência da Li- no seu tempo, estiveram, talvez preci- teratura da Universidade Federal do Rio samente porque o nosso é bem maior”, de Janeiro - UFRJ, membro permanente completa. do Programa de Pós-Graduação em Ci- ência da Literatura da UFRJ e coeditor Na entrevista a seguir, concedida por da Revista Terceira Margem, do PPG-CL e-mail à IHU On-Line, Losso se propõe a da UFRJ. É graduado em Letras, mestre refletir acerca de formas de fazer resistên- e doutor em Ciência da Literatura pela cia ao mal de nosso tempo. Para tanto, rei- UFRJ, com estágio na Universität Leip- tera, é preciso conhecer esse mal. “Todo zig, Alemanha. Entre os livros que orga- ser humano é um nazista diante de outros nizou, destacamos Diferencia minoritaria animais, dito famoso de Isaac Bashevis en Latinoamérica (Georg Olms, 2008), Singer. Nunca houve tantos corpos dó- O carnaval carioca de Mário de Andrade ceis, tantos trabalhadores produtivos, (Azougue, 2011) e Música Chama (Cir- logo, tanta riqueza detida por tão poucos, proporcionalmente, e nunca houve uma cuito, 2016). Ainda é autor de Renato nobreza tão poderosa e intocável quanto Rezende por Eduardo Guerreiro B. Losso a atual elite financeira global”, reconhe- (EdUERJ, 2014). ce.Segundo o professor, o ser humano é Confira a entrevista.

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IHU On-Line – Etty Hillesum Benjamin3, Adorno4, Cruz e Sousa5, encarou de frente as faces mais Augusto do Anjos6, Machado de As- perversas do mal. O que é o mal sis7, Drummond8, não estamos à “O abismo de do nosso tempo? E como resis- altura dos abismos de nosso tempo tir a ele? como eles, no seu tempo, estiveram, nosso niilismo talvez precisamente porque o nosso Eduardo Losso – Ao longo da histó- é bem mais é bem maior. Se não estamos pen- ria de diferentes civilizações dominan- sando radicalmente o nosso mal, tes, a humanidade desenvolveu orgu- grave que o é porque ele está vencendo. Bem, lho por suas habilidades e conquistas, diante dos fatos recentes, isso é uma que levaram, no período moderno, à de nossos evidência. crença no progresso: social, tecnológi- co e espiritual. O capitalismo é um sis- Não estamos mais diante do niilis- antecessores tema que se alimenta de suas próprias mo nietzschiano, que serve de base crises. Houve muitos questionamentos para a afirmação trágica da vida e a modernos, a respeito de seus perigos, houve mui- descoberta libertadora da vontade ta luta contra seus princípios, houve a mas não vejo crise dos mais caros valores ocidentais, edição 175, de 10-4-2006, da IHU On-Line, disponível em http://bit.ly/ihuon175. A edição 314 da IHU On-Li- ninguém cristãos e iluministas, mas mesmo tal ne, de 9-11-2009, tem como tema de capa A atualidade crise engendrou uma eufórica transva- de Soren Kierkeggard, disponível em https://goo.gl/ kZW87Z. Leia, também, uma entrevista da edição 339 encarando o loração de todos os valores. da IHU On-Line, de 16-8-2010, intitulada Kierkegaard e Dogville: a desumanização do humano, concedida pelo Hoje, contudo, temos bons motivos filósofo Fransmar Barreira Costa Lima, disponível em ht- assombroso tps://goo.gl/cr4qoE. (Nota da IHU On-Line) para dizer que o abismo de nosso nii- 3 Walter Benjamin (1892-1940): filósofo alemão. Foi re- fugiado judeu e, diante da perspectiva de ser capturado alcance lismo é bem mais grave que o de nos- pelos nazistas, preferiu o suicídio. Associado à Escola sos antecessores modernos, mas não de Frankfurt e à Teoria Crítica, foi fortemente inspirado tanto por autores marxistas, como Bertolt Brecht, como dele, isto é, o vejo ninguém encarando o assombro- pelo místico judaico Gershom Scholem. Conhecedor so alcance dele, isto é, o nosso mal. profundo da língua e cultura francesas, traduziu para o alemão importantes obras como Quadros parisienses, nosso mal” 18 Isso significa que, por mais que tenha- de Charles Baudelaire, e Em busca do tempo perdido, de 1 2 Marcel Proust. O seu trabalho, combinando ideias apa- mos lido Nietzsche , Kierkegaard , rentemente antagônicas do idealismo alemão, do mate- rialismo dialético e do misticismo judaico, constitui um contributo original para a teoria estética. Entre as suas 1 Friedrich Nietzsche (1844-1900): filósofo alemão, obras mais conhecidas, estão A obra de arte na era da de poder. Não estamos mais dian- conhecido por seus conceitos além-do-homem, trans- sua reprodutibilidade técnica (1936), Teses sobre o con- te da crítica da burguesia que re- valoração dos valores, niilismo, vontade de poder ceito de história (1940) e a monumental e inacabada Pa- e eterno retorno. Entre suas obras, figuram como as ris, capital do século XIX, enquanto A tarefa do tradutor sulta numa utopia revolucionária. mais importantes Assim falou Zaratustra (Rio de Ja- constitui referência incontornável dos estudos literários. neiro: Civilização Brasileira, 1998), O anticristo (Lisboa: Sobre Benjamin, confira a entrevista Walter Benjamin e Não estamos mais diante da desco- Guimarães, 1916) e A genealogia da moral (São Paulo: o império do instante, concedida pelo filósofo espanhol Centauro, 2004). Escreveu até 1888, quando foi acome- José Antonio Zamora à IHU On-Line nº 313, disponível berta abissal do inconsciente e do tido por um colapso nervoso que nunca o abandonou em http://bit.ly/zamora313. (Nota da IHU On-Line) entusiasmo modernista diante de até o dia de sua morte. A Nietzsche, foi dedicado o 4 Theodor Wiesengrund Adorno (1903-1969): sociólo- tema de capa da edição número 127 da IHU On-Li- go, filósofo, musicólogo e compositor, definiu o perfil do mundos desconhecidos a serem re- ne, de 13-12-2004, intitulado Nietzsche: filósofo do pensamento alemão das últimas décadas. Adorno ficou martelo e do crepúsculo, disponível para download conhecido no mundo intelectual, em todos os países, em velados pela inovação artística da em http://bit.ly/Hl7xwP. A edição 15 dos Cadernos especial pelo seu clássico Dialética do Iluminismo, escri- forma, de uma autodestruição cria- IHU em formação é intitulada O pensamento de Frie- to junto com Max Horkheimer, primeiro diretor do Insti- drich Nietzsche, e pode ser acessada em http://bit.ly/ tuto de Pesquisa Social, que deu origem ao movimento tiva e radicalmente renovadora da HdcqOB. Confira, também, a entrevista concedida por de ideias em filosofia e sociologia que conhecemos hoje Ernildo Stein à edição 328 da revista IHU On-Line, de como Escola de Frankfurt. (Nota da IHU On-Line) arte. Tampouco estamos no perío- 10-5-2010, disponível em http://bit.ly/162F4rH, intitu- 5 João da Cruz e Sousa (1861-1898): foi um poeta bra- do de revolta dos jovens diante das lada O biologismo radical de Nietzsche não pode ser sileiro. Com a alcunha de Dante Negro ou Cisne Negro, minimizado, na qual discute ideias de sua conferência foi um dos precursores do simbolismo no Brasil. Segundo inúteis mortes da guerra do Vietnã, A crítica de Heidegger ao biologismo de Nietzsche e Antonio Candido, Cruz e Sousa foi o “único escritor emi- a questão da biopolítica, parte integrante do Ciclo de nente de pura raça negra na literatura brasileira, onde são nos EUA, que levou à descoberta Estudos Filosofias da diferença – Pré-evento do XI Sim- numerosos os mestiços”. (Nota da IHU On-Line) de toda uma geração do pacifismo, pósio Internacional IHU: O (des)governo biopolítico da 6 Augusto de Carvalho Rodrigues dos Anjos [Augusto vida humana. Na edição 330 da revista IHU On-Line, de dos Anjos] (1884-1914): poeta paraibano, identificado da liberação sexual, da alteração da 24-5-2010, leia a entrevista Nietzsche, o pensamento muitas vezes como simbolista ou parnasiano, mas muitos trágico e a afirmação da totalidade da existência, con- críticos, como o poeta , concordam em situá percepção, motivando o projeto de cedida pelo professor Oswaldo Giacoia e disponível em -lo como pré-moderno. Entre seus autoepítetos, se desta- colocar a “imaginação no poder”, no https://goo.gl/zuXC4n. Na edição 388, de 9-4-2012, cam “Poeta da morte”, “Poeta do hediondo” e “Poeta da leia a entrevista O amor fati como resposta à tirania do Anti-Hipocrisia”. (Nota da IHU On-Line) maio de 68 francês, assim como na sentido, com Danilo Bilate, disponível em http://bit.ly/ 7 Machado de Assis [Joaquim Maria Machado de As- HzaJpJ. (Nota da IHU On-Line) sis] (1839-1908): escritor brasileiro, considerado o pai do possibilidade de transformar antro- 2 Soren Kierkegaard (1813-1855): filósofo existencia- realismo no Brasil, escreveu obras importantes como Me- pofagicamente a cultura de massa lista dinamarquês. Alguns de seus livros foram publi- mórias póstumas de Brás Cubas, Dom Casmurro, Quincas cados sob pseudônimos: Víctor Eremita, Johannes de Borba e vários livros de contos. Também escreveu poesia e internacional numa modernização Silentio, Constantín Constantius, Johannes Climacus, foi um ativo crítico literário, além de ser um dos criadores Vigilius Haufniensis, Nicolás Notabene, Hilarius Bogbin- da crônica no país. Fundador da Academia Brasileira de Le- complexa em que o local só enrique- der, Frater Taciturnus e Anticlimacus. Filosoficamente, tras. Sobre o escritor, há duas edições da IHU On-Line: 262, faz uma ponte entre a filosofia de Hegel e o que viria a de 16-6-2008, intitulada Machado de Assis: um conhece- ce uma perspectiva global, no tropi- ser posteriormente o existencialismo. Boa parte de sua dor da alma humana, disponível em http://bit.ly/ihuon262, calismo brasileiro. obra dedica-se à discussão de questões religiosas como e 275, de 29-9-2008, intitulada Machado de Assis e Gui- a natureza da fé, a instituição da igreja cristã, a ética marães Rosa: intérpretes do Brasil, disponível em https:// cristã e a teologia. Autor de O Conceito de Ironia (1841), bit.ly/2oHHiQt. (Nota da IHU On-Line) Não temos mais motivo de nenhum Temor e Tremor (1843) e O Desespero Humano (1849). 8 Carlos Drummond de Andrade (1902-1987): poeta bra- grande entusiasmo metafísico, pós- A respeito de Kierkegaard, confira a entrevista Paulo e sileiro, nascido em Minas Gerais. Além de poesia, produziu Kierkegaard, realizada com Álvaro Valls, da Unisinos, na livros infantis, contos e crônicas. (Nota da IHU On-Line) metafísico, existencial, artístico e

15 DE ABRIL | 2019 REVISTA IHU ON-LINE político. Todo ser humano é um na- de orgulho em vergonha de ser ho- ternativas oportunistas e Facebook, zista diante de outros animais, dito mem. Homem: nos dois execráveis banaliza tais pautas, para, como res- famoso de Isaac Bashevis Singer9. e interligados sentidos da palavra. posta, propagar a ascensão das men- Nunca houve tantos corpos dóceis, Nunca na história chegamos à con- tiras que a contrariam, das ilusões tantos trabalhadores produtivos, clusão de que era melhor não termos favoráveis ao sistema, e desagregam logo, tanta riqueza detida por tão existido. Somos baratas mamíferas o árduo trabalho formativo, prático e poucos, proporcionalmente, e nunca fazendo porcarias no único plane- crítico que deveríamos ter nelas. As houve uma nobreza tão poderosa e ta que temos. Uma certa leitura da pautas da esquerda viram pequenas intocável quanto a atual elite finan- metamorfose de Kafka11 se tornou o crenças, uma separada da outra, bri- ceira global. nosso retrato. Os poucos índios que gando por espaço. ainda e sempre resistem têm toda Talvez os evangélicos sejam mais Morte de Deus e do homem razão em sentirem nojo de nós. Se sinceros em sua fé do que a fé dos pro- o homem branco via-se a si mesmo gressistas. As diferentes modalidades Nunca na história da humanidade como o paladino da racionalidade e, de culto ao escândalo se tornam, en- setores progressistas tiveram uma consequentemente, da responsabili- tão, manifestações de nossa cegueira consciência tão clara das ilusões dade, que fazer diante da descoberta fundamental: estampa-se o nosso de sua superioridade frente a ou- de que sua racionalidade instrumen- fracasso, mas ele é tão definitivo e tros seres. O ser humano escraviza tal é a destruidora da vida no plane- gritante que, justamente, não somos animais, extingue várias espécies, ta, incapaz de frear a ânsia extermi- capazes de assumi-lo, aí podemos in- desequilibra profundamente a bios- nadora de gerar lucro a todo custo? fera e multiplica a sua população – ventar o simulacro substitutivo que para quê, afinal? Para emburrecer quisermos para tampar o vazio. passando horas na timeline das re- A revolta progressista, que conti- des? Para assistir insultos e piadi- nuamente conclama um novo slo- nhas de youtubers? Para aumentar gan, retira uma nova hashtag do a desigualdade dentro de sua pró- “Todo ser bolso para reivindicar suas pautas, pria espécie, para manter o bem só responde à agenda prévia de no- -estar de cada vez menos pessoas e humano é um tícias do dia ditadas pela mídia e im- 19 agravar o estresse e o sofrimento de postas pela estrutura programática uma maioria crescente? nazista diante das redes sociais. Em suma, ela é tão Se todo o polo progressista sabe niilista quanto o desejo de grandeza muito bem aonde esse monumen- de outros nacional da extrema direita. Uma tal empreendimento levará – para reage impotente diante da catástro- o fim dos recursos naturais, o fim animais” fe, outra alucina, potente, e torna a das grandes florestas, o completo catástrofe o seu triunfo. Essa sede desequilíbrio ecológico e, por con- de grandeza, tanto dos ideólogos de 12 seguinte, o aquecimento global, a Trump quanto do atual ministro tragédia anunciada das mais terrí- das Relações Exteriores do novo pre- sidente, é uma reação compreensível veis catástrofes –, não estamos mais Banalização das pautas somente diante da morte de Deus e à derrocada de todos os valores pas- da consequente morte do homem, Podemos afirmar aqui e ali que sados que a esquerda hoje só pode da qual falava Foucault10. Estamos temos novos projetos pela frente: entender como mentira, e não con- diante da inversão de todo motivo sustentabilidade, movimentos iden- segue encontrar outro valor senão titários, democratização das mídias. nos oprimidos por essa mentira, na- Apesar de serem pautas urgentes e queles tidos como fracos, que agora 9 Isaac Bashevis Singer (1902-1991): escritor judeu-a- mericano. Nasceu na Polônia, mas viveu muitos anos nos extremamente necessárias, a própria devem se tornar fortes. Estados Unidos, onde escreveu e publicou sua obra. (Nota da IHU On-Line) lógica propagandística do escânda- 10 Michel Foucault (1926-1984): filósofo francês. Suas lo do dia, perpetrada pela estrutura obras, desde a História da Loucura até a História da sexua- lidade (a qual não pôde completar devido a sua morte), conjunta da grande mídia, mídias al- situam-se dentro de uma filosofia do conhecimento. Fou- cault trata principalmente do tema do poder, rompendo com as concepções clássicas do termo. Em várias edições, 12 Donald Trump (1946): Donald John Trump é um em- a IHU On-Line dedicou matéria de capa a Foucault: edição 11 Franz Kafka (1883-1924): escritor tcheco, de língua presário, ex-apresentador de reality show e atual pre- 119, de 18-10-2004, disponível em http://bit.ly/ihuon119; alemã. Considerado pela crítica um dos escritores mais sidente dos Estados Unidos. Na eleição de 2016, Trump edição 203, de 6-11-2006, disponível em https://goo.gl/ influentes do século 20. A maior parte de sua obra, como foi eleito o 45º presidente norte-americano pelo Partido C2rx2k; edição 364, de 6-6-2011, intitulada ‘História da A metamorfose, O processo e O castelo, está repleta de Republicano, ao derrotar a candidata democrata Hillary loucura’ e o discurso racional em debate, disponível em temas e arquétipos de alienação e brutalidade física e Clinton no número de delegados do colégio eleitoral; no https://goo.gl/wjqFL3; edição 343, O (des)governo bio- psicológica, conflito entre pais e filhos, personagens com entanto, perdeu no voto popular. Entre suas bandeiras es- político da vida humana, de 13-9-2010, disponível em ht- missões aterrorizantes, labirintos burocráticos e transfor- tão o protecionismo norte-americano, por onde passam tps://goo.gl/M95yPv, e edição 344, Biopolítica, estado de mações místicas. Albert Camus, Gabriel García Márquez questões econômicas e sociais, como a relação com imi- exceção e vida nua. Um debate, disponível em https://goo. e Jean-Paul Sartre estão entre os escritores influenciados grantes nos Estados Unidos. Trump é presidente do con- gl/RX62qN. Confira ainda a edição nº 13 dos Cadernos pela obra de Kafka. O termo “kafkiano” popularizou-se glomerado The Trump Organization e fundador da Trump IHU em formação, disponível em http://bit.ly/ihuem13, em português como algo complicado, labiríntico e sur- Entertainment Resorts. Sua carreira, exposição de marcas, Michel Foucault – Sua Contribuição para a Educação, a real, como as situações encontradas em sua obra. (Nota vida pessoal, riqueza e modo de se pronunciar contribuí- Política e a Ética. (Nota da IHU On-Line) da IHU On-Line) ram para torná-lo famoso. (Nota da IHU On-Line)

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O mal quer apontar os defeitos dos outros, Para alienar-se de suas necessi- as qualidades perderam o atrativo. dades reais, as pessoas se deixam Um é o fundamentalista da gran- Manipuladores de opinião percebe- atrair não pelo remédio, mas pelo deza, outro não deixa de idolatrar o ram que o ódio deve ser estimulado e veneno. A lógica dispersiva da no- oprimido. Ambos fogem, do mesmo direcionado para os seus interesses. tícia e da propaganda, que já era modo, do niilismo, isto é, do mal de parte integrante da grande mídia, Contudo, essencialmente, esse im- nosso tempo. Entendo o mal não é agravada mil vezes com as pos- pério do ódio, essa impossibilidade como a força de atração do pecado, tagens e os encaminhamentos das de admiração substancial, vem de mas como a consequência da fragi- redes sociais. Muitos acreditaram uma vergonha de toda a espécie, lidade diante da poderosa treva da piamente no potencial de informa- que não está sendo nem pode ser falta de sentido. Tal abismo leva à ção e democratização da internet, dita. Mas, na prática, a sensação de proliferação de culpas e dívidas in- que, de fato, seria enorme, se o asco do ser humano por outros seres finitas, concretas ou imaginárias, seu potencial destrutivo não fosse humanos existe, especialmente nas monetárias ou morais, que se pode maior, se o último pudesse ser aler- cidades cada vez mais numerosas, e atribuir aos dominantes, por seus tado, aplacado, e não estimulado, vai aumentar, e vai buscar justificati- privilégios, ou aos dominados, por como é o caso. sua suposta incapacidade merito- vas ideológicas advindas de orgulho ferido, preconceito, bolhas, polariza- crática, mas que não serve a outro Renovação bem-sucedida ção, moralismo, do que seja, para se motivo senão dar sentido ao que do totalitarismo não tem. expressar e agir. Enquanto os técnicos da internet Só ganhamos força diante do va- estavam testando e sofisticando no- zio, primeiro, descobrindo que ele vas modalidades de controle com faz parte de nós; segundo, o quanto seus complexos algoritmos, inte- somos pequenos diante dele, sendo “Nunca lectuais progressistas vips estavam partes dele; terceiro, o quanto tal pe- rebatendo alegremente os teóricos quenez tem sua grandeza. Uma lição na história da manipulação de cinquenta anos dos grandes pensadores do niilismo chegamos à atrás com sorriso no rosto. Enquanto 20 foi sempre a seguinte: não existe a argumentos da teoria pós-moderna mínima perspectiva de resposta a conclusão de estavam se regalando com relativis- ele senão reconhecendo e assumindo mos, o cinismo dos manipuladores toda a extensão de seu alcance. An- que era melhor atuais estava se servindo deles para tes de passar para qualquer proposta uma renovação muito bem-sucedida de solução, que já deve ser entendida não termos do totalitarismo. de saída como parcial, é preciso de- morar-se mais tempo no insolúvel. existido” Sabe aquela tese de Lyotard1 de Ora, é precisamente isso que não es- que as metanarrativas dominan- tamos fazendo. tes deram lugar a micronarrativas Nosso corpo deseja ambientes fragmentadas, e cujo conceito de naturais, não cubículos empareda- “narrativa” se tornou tão onipre- dos, nem prédios gigantescos, luzes IHU On-Line – Como o mal sente? Bem, talvez estejamos ven- ofuscantes, barulhos gritantes, ruas se perfaz no totalitarismo? E do justamente o avanço de meta- apinhadas e carros numerosos. Nos- como ele se revela no tecido narrativas que se alimentam de sos olhos desejam olhar paisagens social em nosso tempo, em que polarização recíproca. O mais con- de verdade, não telas durante horas também somos atravessados fortável é sempre estar, inclusive, por dia. Nosso olfato deseja respirar pelas tecnologias? do lado de uma vituperando outra. o ar de vegetação exuberante, não Quem critica ambas e busca algo Eduardo Losso – Nunca setores cheiros de comida por todo lado só genuinamente diferente vive no dominantes, como celebridades da para atrair clientes, perfumes arti- meio do tiroteio, desprotegido. A política e do entretenimento, foram ficiais, poluição. Não preciso dizer hipótese das micronarrativas, nos tão atacados e injuriados. Toda e que nosso sistema nervoso deseja locais mais globalizados, não é se- qualquer pessoa, por mais respeita- andar tranquilo e não com medo de não mais uma metanarrativa. da ou querida que seja ou tenha sido, agressores e assaltantes. Mas o mer- pode ser vítima de escracho nas re- cado, essa mão invisível, inquestio- des sociais. Esse fenômeno não está nável e soberana, quer eliminar as 1 Jean-François Lyotard (1924-1998): filósofo francês, au- desligado daquele, da vergonha de poucas reservas naturais que so- tor de uma filosofia do desejo e significado representante ser homem. O destronamento da hu- bram, multiplicar mais seres como do pós-modernismo. Escreveu, entre outros, A fenomeno- logia (Lisboa: Edições 70, 1954), O inumano: considerações manidade e de suas personalidades nós retirando todos os seus direitos sobre o tempo (Lisboa: Estampa, 1990), Heidegger e ‘os modelares cria, naturalmente, uma mínimos e engordar cidades: isso judeus’ (Lisboa: Instituto Piaget, 1999) e A condição pós- moderna (8ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2004). (Nota histeria moral, pois todo mundo não tem como dar certo. da IHU On-Line)

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IHU On-Line – Em meio à dor escrita é capaz de fornecer um silêncio e da contemplação na do campo de concentração, Etty caminho para o transcendente? mística moderna? Hillesum encontra espaço para Eduardo Losso – Não há nada Eduardo Losso – “O silêncio me agradecer a vida e enxerga o transcendente sem que não ganhe diz muito mais, muito mais/ do que céu azul em meio ao cinza. Po- existência no imanente, assim como todos os sons: diz-me aos ouvidos deria esse ser um exemplo da não há nada espiritual que não se dê da alma”, afirma a poeta simbolista, poesia como exercício espiritu- senão a partir e por meio do mate- feminista e negra e ainda hoje infe- al que valoriza a arte do viver, rial, daí o conceito de Hadot se in- lizmente pouco conhecida Gilka Ma- apesar de toda adversidade? titular prática espiritual. De fato, o chado2, em 1917, no fabuloso livro Eduardo Losso – O que não fal- ato de escrever é uma das principais Estados da alma. tam são exemplos da poesia como atividades da história da ascese, isto Quando alguém vive na cidade uma forma moderna de prática é, da prática de si, cuja meditação grande, mesmo num bairro residen- espiritual, por mais que críticos li- demorada e registrada se dá nas cial relativamente tranquilo, quando terários pós-modernos impliquem anotações pessoais, quando a escrita se mora num prédio de sete andares com a palavra “espiritual” e não serve ao desenvolvimento espiritual ao lado de outros de dez, ouvirá inin- saibam como um Pierre Hadot1 a do sujeito, e não a trabalhos mera- terruptamente ruídos de obras, mú- utilizou em relação à filosofia an- mente burocráticos. A escrita sai do sicas de alto-falantes estridentes de tiga. A poesia moderna, especial- âmbito utilitário e entra no terreno pessoas que não sabem escutar sem mente desde o simbolismo, não da autotransformação e, sempre incomodar os outros, latidos de cães foge do niilismo, pelo contrário, ela quando imerge em si mesmo, neces- infelizes porque vivem dentro de dedica boa parte de suas energias a sariamente serve para outros que es- apartamento, festas, brigas, TVs no ele e, ao mesmo tempo, exercita a tejam numa busca, numa quête. máximo volume. Dificilmente tere- fundo vias sutis de reencantamen- mos a perspectiva social de uma re- to do mundo, através de experiên- educação para o respeito ao espaço cias embriagadoras que ela mesma acústico do outro e para a apreciação pode originar, sem apelar nem para do silêncio. Tenho insistido muito drogas, nem para grandes rituais “Os poucos nesse ponto. 21 ou festas. índios que O que poetas e místicos mais fize- Do mesmo modo, em vários ca- ram ao longo da história foi eviden- sos ela se propõe a estabelecer um ainda e sempre ciar uma verdadeira recherche do novo tipo de prática de vida mate- silêncio, interior e exterior, inclu- rial e espiritual em meio à apoteo- resistem têm sive da complexa interpenetração se da produtividade, do consumo espacial entre o material e o espi- e da desigualdade. Um traço ca- toda razão ritual que se dá na ambiência, na racterístico da poesia moderna é, Stimmung, dentro do fora e fora do antes de mais nada, ser uma nova em sentirem dentro. O silêncio diz mais do que medida de sobrevivência ascética, todos os sons que incessantemente nunca fuga ou passatempo inti- nojo de nós” nos perseguem, e é e será cada vez mista. É a resistência da experiên- mais, sem dúvida, um dos maiores cia que deseja se tornar uma ree- Evidentemente, a investigação es- luxos da contemporaneidade. Fe- xistência do encantamento. piritual que ocorreu no terreno da liz de quem possui a dádiva rara filosofia antiga, do monasticismo e, de algum tempo de silêncio em sua no renascimento, dos filósofos her- residência. Alceu Amoroso Lima3, IHU On-Line – A mística de méticos da natureza, influenciou no livro Meditações sobre o mundo Etty Hillesum é revelada nos es- profundamente a imersão subjetiva interior, de 1953, reflete já naquele critos de seus diários e cartas. da poesia nos mesmos períodos até a tempo sobre a dificuldade do aman- De que forma a relação com a modernidade, bem como vice-versa. te do silêncio viver na cidade gran- Isto é, a poesia também influenciou de, no caso, no Rio de Janeiro. Ima- tais movimentos. A conexão entre os 1 Pierre Hadot (1922-2010): filósofo francês, é um dos gine então o que ele não diria hoje, coautores do livro Dicionário de ética e Filosofia Moral dois é uma das pesquisas compara- (São Leopoldo: Unisinos, 2003). Suas pesquisas concen- traram-se primeiramente nas relações entre helenismo tistas mais importantes de se fazer e cristianismo, em seguida, na mística neoplatônica e na hoje em dia, e esse é um foco central 2 Gilka Machado (1893-1980): foi uma poetisa brasileira. filosofia da época helenística. Elas se orientam atualmente Seu trabalho geralmente é classificado como simbolista. para uma descrição geral do fenômeno espiritual que a do meu trabalho. Machado ficou conhecida como uma das primeiras mu- filosofia representa. Em português, pode ser lido o livro de lheres a escrever poesia erótica no Brasil; também foi uma sua autoria O que é a filosofia antiga? (São Paulo: Loyola, das fundadoras do Partido Republicano Feminino (em 1999). Para uma resenha da obra, confira a revista Sínte- 1910), que defendia o direito das mulheres ao voto. (Nota se 75 (1996), p. 547-551. A resenha do original francês é da IHU On-Line) de Henrique C. de Lima Vaz. Em português, foi publicado, IHU On-Line – Etty Hillesum 3 Alceu Amoroso Lima (1893-1983): nascido no Rio de em novembro de 2014, o seu livro Exercícios Espirituais também fala da necessidade Janeiro, crítico literário, professor, pensador, escritor e líder e Filosofia Antiga (É Realizações Editora). (Nota da IHU católico. Adotou o pseudônimo de Tristão de Ataíde. (Nota On-Line) dos silêncios. Qual o espaço do da IHU On-Line)

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já que a maioria da população vive de prática de si, tanto de disciplina conflito interior muito intenso com em cidades e não mais no campo, quanto de indisciplina extática. Re- seu destino de pecadores. Lautréa- estando os centros urbanos brasilei- comendo a audição da canção “In- mont7 assume a maldição, Huys- ros certamente entre os mais baru- discipline”, do King Crimson4 dos mans8 produziu um decadentismo lhentos e hostis do mundo? anos 80, um bom exemplo de peso maldito para depois se converter dionisíaco pós-psicodélico, feita de de novo ao catolicismo. Depois, Poesia e espaço para quie- uma estrutura contrastiva, cheia de muitos escritores católicos defen- tude jogos rítmicos internos, que ilustra dem o catolicismo de Baudelaire musicalmente o assunto. e Rimbaud; outros, especialmente A violência social não está só no A outra questão que a sua pergunta os surrealistas, defendem seu ca- âmbito mais grosseiro da ameaça à ráter anticlerical. Essa briga fica integridade física, ela também se dá toca é o que seria, afinal, uma mística da própria poesia moderna, não é? evidente, aqui no Brasil, nas dife- no estresse ininterrupto do descon- rentes leituras que Mário9 e Oswald forto físico e psíquico, que poderí- de Andrade10, de um lado, e Murilo amos chamar de tortura suave, soft Mendes11, Jorge de Lima12 e Alceu torture. A poesia, nesse sentido, é Amoroso Lima13, de outro, fazem mais, repito, do que um passatempo “As pautas da dos precursores, e como os desdo- de pessoas instruídas, ela pratica um bram em suas poéticas. modo de vida que já é uma forma de esquerda viram sobrevivência. Ela abre um espaço 7 Isidore Lucien Ducasse, mais conhecido pelo pseudô- pequenas nimo literário de Conde de Lautréamont (1846-1870): de quietude que permite observar a foi um poeta uruguaio que viveu na França. É o autor dos ansiedade exterior e interior de lon- Cantos de Maldoror. Sua poesia também era apreciada por crenças, uma André Breton, que o considerava, de certa forma, como um ge, de modo semelhante a medita- dos precursores do surrealismo. (Nota da IHU On-Line) ções budistas. 8 Joris-Karl Huysmans (1848-1907): foi um escritor e separada da crítico de arte francês, primeiramente associado a Émi- le Zola e ao grupo de naturalistas. Depois, juntou-se ao Tenho escrito frequentemente so- Movimento Decadente Francês. Huysmans era “um artista maior do que Zola”, segundo o crítico Ford Maddox Ford, bre essa questão, justamente porque outra, brigando no Marchas da literatura (1938): “deixou as catedrais e quase ninguém reflete sobre isso em as estradas deste mundo em 1907, e não suponho que 22 se ouvirá, ao menos uma vez, em qualquer época, seu termos históricos, concretos e con- por espaço” nome mencionado em reuniões literárias.” A conversão de Huysmans, do Satanismo ao Catolicismo, da obsessão temporâneos. Louvar o silêncio abs- por sensações bizarras à busca da vida espiritual, pode ser tratamente, sem ter em mente essa seguida em livros como A rebours (1884), Là-bas (1891) e La cathèdrale (1898). (Nota da IHU On-Line) dimensão concreta, é insatisfatório. IHU On-Line – O senhor tra- 9 Mário de Andrade (1893-1945): nascido em São Paulo, balhou a secularização da mís- poeta, romancista, musicólogo, historiador, crítico de arte e fotógrafo brasileiro. Um dos fundadores do modernis- tica na arte moderna. No que mo brasileiro, praticamente criou a poesia moderna bra- sileira com a publicação de seu livro Pauliceia desvairada, IHU On-Line – De que forma consiste essa secularização? em 1922. Foi a força motriz por trás da Semana de Arte Podemos considerar que o Moderna, evento ocorrido em 1922 que reformulou a lite- a Modernidade reconfigura a ratura e as artes visuais no Brasil. Exerceu uma influência poesia e como isso impacta no transcendente foi esvaziado? enorme na literatura moderna brasileira e, como ensaísta e estudioso (foi um pioneiro do campo da etnomusicolo- místico, no transcendente? Por quê? gia), sua notoriedade transcendeu as fronteiras do Brasil. Andrade foi a figura central do movimento de vanguarda Eduardo Losso – Foi. A cren- de São Paulo por vinte anos. Seu romance Macunaíma foi Eduardo Losso – A Moderni- publicado em 1928. (Nota da IHU On-Line) dade deu à poesia a possibilidade ça numa transcendência eterna foi 10 Oswaldo de Camargo: poeta e escritor brasileiro, es- completamente abalada, sim, no se- tudou no Seminário Menor Nossa Senhora da Paz, em São de sua autonomia, de seu destaque José do Rio Preto. Ainda aprendeu a tocar piano e harmo- tor mais avançado da poesia moder- nia no Conservatório Santa Cecília, em São Paulo. Intitula- de ideologias e doutrinas religiosas. se herdeiro de buscas culturais de negros do País que, no Como a mística, inclusive a poesia na, mas isso não se deu sem muitas início do século XX, começaram a reavaliação da situação perturbações coletivas e pessoais. do elemento afro-brasileiro e partiram para uma tentativa mística, especialmente desde o sé- de inseri-lo social e culturalmente, tendo como armas so- 5 6 Baudelaire e Rimbaud expõem um bretudo agremiações de cultura, jornais alternativos para a culo XII, tinha sido uma ameaça ao coletividade, teatro negro, a literatura, sobretudo a escrita controle eclesiástico, a mística deu por poetas de temática afro-brasileira, como Lino Guedes e . (Nota da IHU On-Line) à poesia moderna a chave de como 4 King Crimson: é um grupo musical inglês formado pelo 11 Murilo Mendes (1901-1975): um dos mais importantes guitarrista Robert Fripp e pelo baterista Michael Giles em poetas brasileiros, nasceu em Juiz de Fora, Minas Gerais. perseguir o reencantamento do 1969. O estilo musical da banda costuma ser categoriza- Publicou seu primeiro livro, Poemas, em 1930, ano em que mundo num mundo desencantado, do como rock progressivo, mas a sua sonoridade carrega também estreia o poeta Carlos Drummond de Andrade. vários estilos, como jazz, música erudita, new wave, heavy Recebeu, em 1972, o prêmio internacional de poesia Etna- sem ignorar o abalo dos valores dou- metal e folk. (Nota da IHU On-Line) Taormina. Nesse ano veio ao Brasil pela última vez. Ao lado 5 Charles-Pierre Baudelaire (1821-1867): poeta e teó- de seus livros, Murilo Mendes também publicou muito na trinários e, mesmo que a mística tra- rico da arte francês. É considerado um dos precursores imprensa, em especial artigos sobre artes plásticas, tendo dicional não pretenda romper com do Simbolismo e reconhecido internacionalmente como ainda escrito muitos textos para catálogos de exposições o fundador da tradição moderna em poesia, juntamente de arte. (Nota do IHU On-Line) autoridades doutrinais, são elas que com Walt Whitman, embora tenha se relacionado com 12 Jorge de Lima (1893-1953): escritor brasileiro, alagoa- diversas escolas artísticas. Sua obra teórica também in- no. Suas obras se dividem em três fases mais notórias: a rompem com a mística, devido a sua fluenciou profundamente as artes plásticas do século XIX. primeira, de cunho parnasianista/simbolista; a segunda, incorrigível ousadia. Em 1857 lança As flores do mal, contendo 100 poemas. quando aderiu ao movimento modernista; e a terceira, O livro é acusado de ultrajar a moral pública. (Nota da quando seus livros exibiam um profundo traço surreal e IHU On-Line) religioso, notadamente católico. (Nota da IHU On-Line) As variadas místicas do século XII 6 Jean-Nicolas Arthur Rimbaud (1854-1891): poeta 13 Alceu Amoroso Lima (1893-1983): nascido no Rio de ao XVII deram à poesia moderna francês. Produziu suas obras mais famosas quando ainda Janeiro, crítico literário, professor, pensador, escritor e líder era adolescente, sendo descrito por Paul James, à época, católico. Adotou o pseudônimo de Tristão de Ataíde. (Nota tanto uma lição de rebeldia quanto como “um jovem Shakespeare”. (Nota da IHU On-Line) da IHU On-Line)

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Uma coisa é a rebeldia anticlerical de Hugo5, Baudelaire, Rimbaud, – o abismo do niilismo – que foi que é explícita nos movimentos sim- Mallarmé6, Nerval7, Breton8, entre experimentado intensamente por bolista e surrealista, outra é a proxi- tantos outros), ou foram quase apa- todos esses nomes que citei aqui e midade de ambos com o esoterismo. gados da história (é o caso do grande que motivou idas e vindas de todos A presença constante do esoterismo poeta e intelectual simbolista bra- eles entre os três territórios que eu no século XIX e em boa parte do sé- sileiro Dario Vellozo9). O que nossa mencionei: cristianismo, ateísmo culo XX nos movimentos artísticos academia pós-moderna não quer ver e esoterismo, e que, inclusive, deu sempre foi vista com extrema repul- é que o esoterismo pode ter tanto margem a incursões em religiões sa tanto por católicos e protestantes tentáculos progressistas quanto os orientais, hinduísmos e budismos, quanto por ateus anarquistas, comu- mais temerariamente conservado- especialmente. nistas, socialistas e liberais. Tal eso- res. Se você não reconhece os pro- terismo tem raízes antigas, mas suas gressistas, se você teima em manter Não podemos desconsiderar o fato bases floresceram no hermetismo o tabu de não falar dele, de não es- de que a política se tornou, estrutu- renascentista e ele explodiu, tornan- tudá-lo, o resultado é lógico: ele vai ralmente, a verdadeira religião, com do-se moda, na segunda metade do prosperar lá no outro lado. direito a fidelizações inabaláveis ou século XIX, e não se entende o sim- conversões extremas, demonizações Tudo isso para dizer que existe uma bolismo sem ele. No modernismo, o do lado oposto, cismas, projetos problemática nessa questão que está esoterismo foi uma presença central messiânicos, e a maior prova disso puramente atrelada a meros confli- em todas as suas vertentes, especial- é, justamente, como a importância tos de influência política, em que os mente em figuras como Kandinsky1 e da religião na política só tem cres- terrenos de saber e poder se digla- Breton2; em seguida, todo um espiri- cido. Deveríamos pensar num outro diam e criam forças de atuação no tualismo da vida alternativa, fora da fenômeno: escolas de pensamento reconhecimento de escritores mo- cidade, vai mobilizar beatniks e hi- dentro de formações profissionais, dernos. Quando se fala levianamente ppies. O belo filme pede tanto na universidade como fora de “cânone”, dever-se-ia pensar nes- contato (2018)3, de Gabriela Greeb4, dela, contêm uma estrutura que tem sas relações de força mais específicas deste ano, exemplifica o lado para- suas modalidades de conversão, ini- de sua configuração. normal dessa vertente. ciação e sacerdócio secular. Certa- mente que elas convivem entre si, Na briga entre ateus e cristãos, es- 23 seja com discussões amigáveis, seja critores ateus ou supostamente ateus O abismo do niilismo com formas de blindagem e tipifi- ou disfarçadamente ou discretamen- cação recíprocas. Pessoas podem te religiosos são bem aceitos para O outro lado da questão é o drama pertencer a uma, ou a duas escolas, críticos literários laicos, enquanto do sujeito diante da morte de Deus ou áreas de conhecimento, ou de es- escritores orgulhosamente cristãos tudo (studies), podem criar espaços são bem aceitos em terrenos teológi- 5 Hugo von Hofmannsthal (1874-1929): foi um escritor e cos, e menos aceitos do outro lado. dramaturgo austríaco e um dos instituidores do Festival de de mediação metodológica ou “in- Salzburgo. Hofmannsthal alcançou prestígio internacional terdisciplinar”, ou mesmo podem Muitos escritores que flertaram com graças a sua colaboração com o compositor e maestro alemão Richard Strauss e foi um dos mais importantes re- existir pessoas híbridas, “contem- o esoterismo ou tiveram esse seu presentantes do movimento Fin de Siècle da língua alemã. lado menosprezado (como é o caso (Nota da IHU On-Line) porâneas”, perdidas ou não, mas es- 6 Stéphane Mallarmé (1842-1898): poeta e crítico li- sas possibilidades de afrouxamento terário francês. Mallarmé se utilizava dos símbolos para expressar a verdade através da sugestão, mais que da não diminuem seu poder de estabe- narração. Sua poesia e sua prosa se caracterizam pela mu- 1 Wassily Kandinsky (1866-1944): artista russo, naciona- sicalidade, a experimentação gramatical e um pensamento lecimento não só no plano mental, lizado francês, professor da Bauhaus e introdutor da abs- refinado e repleto de alusões que pode resultar em um tração no campo das artes visuais. (Nota da IHU On-Line) texto às vezes obscuro. Seus poemas mais conhecidos são mas no âmbito de todo um modo 2 André Breton: criador do movimento artístico e literário L’aprés-midi d’un faune (1876), Herodias (1869) e Un coup de vida. Uma pode estar em baixa e conhecido como Surrealismo, surgido na França, no início de dês (1897). Outras obras importantes de Mallarmé são do século XX. Em 1924, André Breton publica o Primeiro a antologia Verso e prosa (1893) e o volume de ensaios diminuir sua influência e voz, outra Manifesto Surrealista. A sua pretensão é conseguir a escri- em prosa Divagações (1897). Mallarmé destacou-se por ta automática, o fluxo do subconsciente liberado de todas uma literatura que se mostra ao mesmo tempo lúcida e pode estar em alta e obrigar todas as pressões sociais e culturais. A influência da psicanálise e obscura. É, por isso, considerado um poeta difícil e hermé- a ser levada em consideração. Che- das obras de Freud é evidente, e na sua base reside a ideia tico. Sobre Mallarmé, confira a entrevista A quase-arte de de conseguir mudar a sociedade. Para isso, a escrita deve Mallarmé, concedida por André Dick, doutor em Literatura gando a esse ponto, ela vai incidir ser pura, refletindo unicamente aquilo que pensamos, sem Comparada pela UFRGS. O material pode ser acessado em correções nem retificações impostas pela “autocensura” www.ihu.unisinos.br. (Nota da IHU On-Line) em costumes, comportamentos, que todos exercemos. (Nota da IHU On-Line) 7 Gérard de Nerval (1808-1855): poeta francês. Desde modos de existência. 3 Documentário sobre a escritora, poeta e dramaturga Hil- cedo foi atraído pela literatura alemã, em especial “Contos da Hilst, considerada uma das mais importantes vozes da Fantásticos”, de Hoffmann, e “Fausto”, de Goethe, que co- língua portuguesa do século 20. Com arquivos pessoais, meçou a traduzir em 1828. (Nota da IHU On-Line) Recentemente, no plano político, depoimentos, encontros e intervenções, o filme revela sua 8 André Breton: criador do movimento artístico e literário houve, para um grande número de memória e presença na Casa do Sol, chácara onde vivia em conhecido como Surrealismo, surgido na França, no início Campinas. (Nota da IHU On-Line) do século XX. Em 1924, André Breton publica o Primeiro pessoas, uma experiência radical de 4 Gabriela Greeb: diretora e roteirista de cinema, estu- Manifesto Surrealista. A sua pretensão é conseguir a escri- dou Filosofia, Letras e Ciências Humanas na PUC e na USP. ta automática, o fluxo do subconsciente liberado de todas conversão ao feminismo, ou ao ati- Deixou o Brasil em 1989 para estudar línguas na Europa, as pressões sociais e culturais. A influência da psicanálise e vismo ecológico, ou ao veganismo, onde ficou por 12 anos entre Londres, Barcelona e Paris. das obras de Freud é evidente, e na sua base reside a ideia Autora de curtas de ficção, documentários e vídeo instala- de conseguir mudar a sociedade. Para isso, a escrita deve em que o mundo se revelou comple- ções, Greeb realizou seu primeiro documentário em 1996, ser pura, refletindo unicamente aquilo que pensamos, sem Le Baiser, que foi exibido em mais de mil salas de cinema correções nem retificações impostas pela “autocensura” tamente diferente do que havia sido da França. Em 2003, fundou o estúdio independente Ho- que todos exercemos. (Nota da IHU On-Line) outrora. Essa capacidade de trans- memadefilms, com o objetivo de produzir documentários 9 Dario Persiano de Castro Vellozo (1869-1937): poeta e autorais e instalações audiovisuais. (Nota da IHU On-Line) escritor brasileiro. (Nota da IHU On-Line) formação profunda de subjetividades

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que movimentos políticos, intelectu- cultura do déficit de atenção, sobre trabalho de incursão na Amazônia ais, ideológicos e culturais possuem a qual filosofa o grande teórico crí- profunda de Thiago de Mello6, na molda a visão de mundo dos envolvi- tico Christoph Türcke1, cujo último voz da divina cantora Ilessi, também dos. No elevado nível de promessa e livro lançado no Brasil José Pedro me entusiasma. O livro que organizei potencial de autotransformação, es- Antunes2 traduziu e eu revisei: ela com Pedro Sá Moraes, Música cha- colas de pensamento laicas e ordens leva a um empobrecimento inédito ma, fala sobre essa produção. esotéricas não estão nada distantes da percepção, uma tremenda ceguei- umas das outras. ra para sutilezas. Francisco Bosco3, importante figura da política cultural Os conservadores reagem religiosa- Além da MPB de hoje, é um dos poucos pensadores mente a um fenômeno que, de fato, conscientes desse problema. não pode ser excluído do âmbito re- Já não sei se seria fora da MPB, mas ligioso, mesmo que advindo de um Então, se artistas, críticos e pro- de qualquer modo mais dentro do rock terreno tido como secular. O que ge- dutores culturais de alto nível não alternativo, as composições solos de ralmente é trabalhado no plano dis- param de trabalhar, devemos é dar ex-integrantes da histórica banda dos cursivo, em cursos, palestras, artigos espaço a eles, e não duvido que, jun- anos 90 de “rock regressivo”, Zumbi e livros, tendo um projeto de expan- to com o árduo esforço de educado- do Mato, refiro-me a Löis Lancaster e são ideológica, depois pode chegar res, essa é a melhor coisa que pode- Marlos Salustiano, estão simplesmen- em notícias, memes, posts, vídeos, mos fazer para lidar com os terrores te no auge de sua criatividade e pro- compartilhamentos e encaminha- contemporâneos, por isso vou aqui dutividade e revelam-se a fina flor do mentos de WhatsApp e Facebook. Vi- citar alguns nomes. Thiago Amud4 melhor que o rock brasileiro produziu vemos hoje uma espécie de hiperpe- acabou de lançar o CD O cinema em toda sua história, motivo pelo qual netração de ideologias na vida virtual que o sol não apaga. Junto com os eu os considero, junto com Amud, os dos usuários. O nível de constância e dois outros, a obra de Amud tem se principais nomes de uma construtiva intensidade de informação, advinda revelado como a melhor coisa que já ousadia artística na música popular. de diversas mídias e interatividades, ouvi da MPB nos últimos 30 anos, A banda Dos Cafundós foi, a meu ver, pode compor um indivíduo tão pre- não é à toa que Caetano tem falado a grande revelação de 2012, mas, por enchido por uma visão de mundo dele em quase toda entrevista que 24 ser um trabalho sofisticado demais quanto o monge mais devoto e o ati- dá recentemente. para atrair um público mais extenso (é vista mais empenhado. Ainda insisto no CD do Pedro o que sempre lamento na vida…), um 7 Sá Moraes5, Além do princípio do de seus integrantes, Pedro Carneiro , prazer, de 2013, que merece mais por vezes com o nome artístico “Vovô IHU On-Line – No Brasil de atenção do que teve. Tanto o CD de Bebê”, passou para o terreno da MPB e hoje, há espaço para a arte em Amud quanto o do Pedro tiveram a aí tem sido mais reconhecido, e nos úl- meio a tantas crises? Por quê? inventiva produção de Ivo Senra. O timos dias fez um quarteto com Amud, 8 Eduardo Losso – Deve haver, Sylvio Fraga e Luiza Brina, cujo show não tem como não haver. Depen- recente foi lindo de se ver, aliás, o tra- 1 Christoph Türcke: filósofo alemão, professor de filoso- balho poético, musical e cancional de de de nossa saúde mental, de nossa fia na Hochschule für Grafik und Buchkunst em Leipzig. medida de sobrevivência, hoje, não Dentre suas principais publicações, destacam-se: Der tolle Sylvio Fraga é especial. Nos últimos Mensch. Nietzsche und der Wahnsinn der Vernunft (4a ed., anos também se sobressaíram as be- ficar só dando importância a eternas 2000), livro que foi traduzido para a língua portuguesa discussões sobre política partidária, com o seguinte título: O louco: Nietzsche e a mania da líssimas composições mineiras de razão (Rio de Janeiro: Vozes, 1993); Sexus und Geist: Phi- que geralmente nos tornam reféns de losophie im Geschlechterkampf (3a ed., 2001); e Rückblick Kristoff Silva, que recomendo expres- projetos de poder dos políticos e dos aufs Kommende: Altlasten der neuen Weltordnung. (Nota samente. Gosto também de Rômulo da IHU On-Line) 9 10 partidos, e destituem nossa própria 2 José Pedro Antunes: possui graduação em Letras pela Fróes e Bruno Cosentino . Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho autonomia e espaço de circulação (1972), mestrado em Teoria Literária pela Universidade Estadual de Campinas (1989) e doutorado em Teoria Li- 6 Thiago de Mello (1926): poeta brasileiro, ícone da litera- enquanto produtores culturais, isto terária pela Universidade Estadual de Campinas (2001). tura do Amazonas. Tem obras traduzidas para mais de trin- é, ofuscam a nossa política. O holofo- Atualmente é professor assistente doutor da Universidade ta idiomas. Preso durante a ditadura, exilou-se no Chile, Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Temas de inte- encontrando em Pablo Neruda um amigo e companhei- te constante na polarização apagou a resse: tradução literária, teoria literária, vanguardas histó- ro por toda a vida. Com o fim do regime militar voltou à ricas, literatura alemã do século XX, teatro, cinema, poesia, sua pequena cidade natal, Barreirinha, onde vive até hoje. cena artística de tal forma que geral- língua alemã, entre outros. (Nota da IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line) mente as únicas manifestações cultu- 3 Francisco de Castro Mucci (1976): conhecido como 7 Pedro Carneiro: músico, percussionista, compositor e Francisco Bosco, é um poeta, compositor e filósofo bra- maestro. Pedro Carneiro é um dos poucos músicos de per- rais que se destacam são aquelas que sileiro. Em 2015, foi nomeado presidente da Funarte. Em cussão que fez carreira internacional como solista e se es- 2016 foi exonerado. Filho do músico João Bosco, fez dou- tabeleceu como um dos principais percussionistas solo do se referem a ele. Isso já é um certo torado em Teoria Literária pela UFRJ. Foi coordenador da mundo, apresentando-se regularmente por toda a Europa, silenciamento da cultura, justamente Rádio Batuta e colunista do jornal O Globo. Suas primeiras Ásia e Estados Unidos. (Nota da IHU On-Line) composições em parceria com o pai foram registradas por 8 Sylvio Fraga: poeta e compositor carioca, formado em na sua capacidade única de singula- este no CD As mil e uma aldeias, de 1997. A dupla voltou Economia pela PUC-Rio, diretor do Museu Antônio Parrei- rização de vozes. A espetacularização a funcionar nos álbuns Na esquina (2000) e Malabaristas ras, em Niterói. Também é mestre em poesia na New York do sinal vermelho (2003). Também compôs com Guinga University. (Nota da IHU On-Line) da guerra moral (que é chamada, (Noturno Copacabana) e Fred Martins (Sem aviso, gravado 9 Romulo Fróes (1971): cantor e compositor brasileiro, por Maria Rita). (Nota da IHU On-Line) iniciou sua carreira na banda Losango Cáqui, com quem ironicamente, de “cultural”) retira 4 Thiago Amud (1980): cantor, compositor, arranjador e lançou de forma independente, dois discos: Losango Cá- a atenção para outras dimensões do violinista brasileiro. (Nota da IHU On-Line) qui_1997 e Losango Cáqui #2_1999. (Nota da IHU On-Line) 5 Pedro Sá Moraes: cantor e compositor carioca de MPB. 10 Bruno Cosentino: é cantor e compositor brasileiro. olhar. Trata-se de um dos efeitos da (Nota da IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line)

15 DE ABRIL | 2019 REVISTA IHU ON-LINE

Poesia Cohn9 e sua Azougue Editorial, cujo Agora cito novos poetas que têm trabalho crítico é imprescindível, re- me chamado atenção. Em primeiro Poetas em atividade não faltam: vigorador de um viés do pensamento lugar, uma explosão de mulheres, o merecem especial louvor os vete- poético pouco visível antes dele e do que todos estão comemorando com ranos que sempre aparecem com qual sinto fazer parte. Sua produção razão: Ana Paula Simonaci, Danielle grandes surpresas, como Afonso encantadora tenho estudado como o Magalhães, Gab Marcondes, Maria- Henriques Neto, o verdadeiro mago ponto de chegada daquilo que cha- na Basílio e Bruna Mitrano; além surreal da geração marginal, que em mamos de tradição delirante na po- delas, Nuno Rau, Rafael Zacca e o breve vai lançar seu primeiro épico; esia brasileira, bem como o trabalho jovem monge Tito Leite, cujo livro a vida no estranho mundo natural de editorial e poético de Renato Rezen- Digitais do caos, me surpreendeu. Leonardo Fróes1 e seu último livro, de10, sobre o qual já escrevi um livro. Na prosa, gosto especialmente dos Trilha; a incansável e ininterrupta Da minha geração, também desta- romances de Marcia Tiburi14 e os produção de Armando Freitas Fi- co a produção de André Luiz Pinto, 2 contos de Evando Nascimento. lho ; impressionam também os últi- Tarso de Melo11, Rodrigo Petronio12 e mos livros de Salgado Maranhão. Mariana Ianelli13. Por que não lembrar do meu recém O trabalho crítico e poético de Al- -lançado livro, Sublime e violência. berto Pucheu3, também intenso e nu- Ensaios sobre poesia brasileira con- meroso, tem sido uma voz singular temporânea, em que reflito sobre ao pensar sobre política a partir de “Louvar o todas essas questões e analiso a obra seu desguarnecimento poético-filo- de alguns dos autores que citei? sófico. Também impressiona o nosso silêncio acadêmico Marco Lucchesi4, um dos maiores pensadores e praticantes da abstratamente, IHU On-Line – Depois da ex- contemporaneidade da mística na periência de 2013, o Brasil vive poesia hoje. Dessa geração, sempre sem ter em um avanço da extrema direita. acompanho Claudia Roquette Pinto5, Como o senhor vê esse atual ce- Carlito Azevedo6 e Eucanaã Ferraz7; mente essa nário? O que ficou das resistên- vale destacar a extravagante poesia cias e dos sonhos de 2013? 25 8 de Waldo Motta . dimensão Eduardo Losso – Acho que a es- A mais incansável e ativa de todas concreta, é querda (não somente o PT, a esquer- as pessoas que conheço é Sergio da como um todo) deve fazer uma insatisfatório”. profunda autocrítica de todos os er- ros que levaram a dar de mão beija-

1 Leonardo Fróes (1941): é um poeta, tradutor, jornalista, da a vitória a eles. A meu ver, ela se naturalista e crítico literário brasileiro. (Nota da IHU On enganou gravemente em quatro as- -Line) 9 Sergio Cohn (1974): poeta e editor. Dirige a revista 2 Armando Martins de Freitas Filho (1940): é um poeta Azougue desde 1994 e coordena a Azougue Editorial des- pectos: desprezo pela classe média, brasileiro. Foi pesquisador na Fundação Casa de Rui Bar- de 2001. (Nota da IHU On-Line) bosa, secretário da Câmara de Artes no Conselho Federal 10 Renato Rezende (1964): escritor, tradutor e artista desprezo pela religião (dos setores de Cultura, assessor do Instituto Nacional do Livro, no Rio visual. Graduou-se em Estudos Hispânicos pela Universi- mais culturais e intelectualizados), de Janeiro, pesquisador na Fundação Biblioteca Nacional, dade de Massachusetts, Estados Unidos. Sua obra Ímpar assessor no gabinete da presidência da Funarte, onde se venceu o Prêmio Alphonsus de Guimaraens da Biblioteca desconsideração pelas preocupações aposentou. (Nota da IHU On-Line) Nacional como melhor livro de poesia de 2005. (Nota da 3 Alberto Pucheu (1966): filósofo, poeta e ensaísta bra- IHU On-Line) morais da população e fragmentação sileiro, professor doutor do curso de Teoria Literária da 11 Tarso de Melo (1976): é um advogado e poeta brasilei- dos movimentos identitários. Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de ro. (Nota da IHU On-Line) Janeiro. (Nota da IHU On-Line) 12 Rodrigo Petronio (1975): escritor e filósofo brasileiro. 4 Marco Lucchesi: mestre em História pela Universidade Doutor em Literatura Comparada pela UERJ, com uma tese Por tudo isso, eu poderia ficar aqui Federal Fluminense e em Letras (Ciência da Literatura) pela sobre mesologia, uma teoria geral dos meios situada na falando do pavor que todos sentem Universidade Federal do Rio de Janeiro. Doutor em Letras fronteira entre a cosmologia, a filosofia, a arte e a antro- (Ciência da Literatura) pela Universidade Federal do Rio de pologia. Desenvolveu doutorado sanduíche na Stanford pela ascensão de um pensamento Janeiro. Atualmente é professor adjunto da Universidade University, sob orientação de Hans Ulrich Gumbrecht. For- Federal do Rio de Janeiro. (Nota da IHU On-Line) mado em Letras Clássicas (USP), tem dois mestrados: em 5 Claudia Roquette-Pinto (1963): poeta brasileira. (Nota Ciência da Religião (PUC-SP), sobre o filósofo contempo- 14 Marcia Tiburi: filósofa e artista plástica brasileira, es- da IHU On-Line) râneo Peter Sloterdijk, e em Literatura Comparada (UERJ), pecialista em Filosofia pela Universität Gesamthochschule 6 Carlito Azevedo (1961): é um editor, tradutor, crítico e sobre arte e filosofia na Renascença. Foi professor e coor- Kassel, Alemanha, mestra e doutora em Filosofia pela Pon- poeta brasileiro. (Nota da IHU On-Line) denador dos cursos de Literaturas Espanhola e Hispano-A- tifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) 7 Eucanaã Ferraz (1961): poeta brasileiro. Publicou, entre mericana na Universidade Santo André e da Universidade e pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), outros, os livros de poemas Desassombro (7 Letras, 2002 - Anhanguera. É professor da pós-graduação dos cursos de respectivamente, com a tese Dialética negativa: superação Prêmio Alphonsus de Guimaraens, da Fundação Biblioteca Argumento e Roteiro e de História da Arte da FAAP. (Nota negativa e a transformação da Filosofia em Theodor W. Nacional, melhor livro de poesia de 2002), Rua do mundo da IHU On-Line) Adorno. É autora de, entre outros, Filosofia Cinza – a me- (Companhia das Letras, 2004), Cinemateca (Companhia 13 Mariana Ianelli: poeta, ensaísta, cronista e crítica lite- lancolia e o corpo nas dobras da escrita (Porto Alegre: Es- das Letras, 2008), Sentimental (Companhia das Letras, rária brasileira, mestra em Literatura e Crítica Literária pela critos, 2004); Metamorfoses do Conceito – ética e dialética 2012 - Prêmio Portugal Telecom 2013) e Escuta (Compa- Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUCSP. negativa em Theodor Adorno (Porto Alegre: Editora da nhia das Letras, 2015): para o público infanto-juvenil, Poe- Entre suas produções, destacam-se os livros de poesia UFRGS, 2005) e A mulher de costas (Rio de Janeiro: Ber- mas da Iara (Língua Geral, 2008). (Nota da IHU On-Line) Trajetória de antes (1999), Duas chagas (2001), Passagens trand Brasil, 2006). É autora da 11ª edição do Cadernos 8 Edivaldo Motta (1959): é poeta, ator, numerólogo, (2003) e Fazer silêncio (2005), que chegou a finalista dos IHU ideias, intitulado Os 100 anos de Theodor Adorno e curador, místico e agitador cultural brasileiro, comumen- prêmios Jabuti e Bravo! Prime de Cultura 2006, Além de a filosofia depois de Auschwitz, disponível para download te ligado à geração marginal da década de 1980 e, mais Almádena (2007), finalista do prêmio Jabuti 2008, Treva al- no site do Instituto Humanitas Unisinos - IHU, www.ihu. especialmente, à de 1990, apontado como uma das mais vorada (2010) e O amor e depois (2012), todos pela editora unisinos.br. Tiburi fez parte do elenco do programa Saia representativas vozes da poesia brasileira no final do sécu- Iluminuras. Como ensaísta, é autora de Alberto Pucheu por Justa, veiculado pelo canal fechado GNT, ao lado de Moni- lo XX e início do século XXI, ao lado de Fabrício Carpinejar, Mariana Ianelli, (ed. UERJ, 2013). Estreou na prosa com o ca Waldvogel, Betty Lago, Maitê Proença e Soninha Fran- Angélica Freitas, Micheliny Verunschk, Frederico Barbosa, livro de crônicas Breves anotações sobre um tigre (ed. ar- cine. Para mais detalhes, visite www.marciatiburi.com.br. Cláudia Roquette-Pinto e Cuti. (Nota da IHU On-Line) dotempo, 2013). (Nota da IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 534 TEMA DE CAPA

extremista e nada respeitado por to- liam o outro lado, discutiam com Repensando questões dos os nossos critérios. Ao contrário, muitas alteridades epistemológicas e morais o que eu vou dizer é que precisamos sabiam, inclusive, apreciá-las. ouvi-los. Nossas humanidades foram Acho que intelectuais de esquerda Eu sou um ateu que fiz de todo o criando, ao longo do tempo, uma re- precisam repensar questões morais, meu esforço intelectual um espaço de doma em que só se lê mais ou me- precisam ler mais sobre religião, diálogo com estudiosos de religião, e nos as mesmas escolas, as mesmas precisam parar de menosprezar a sinto muita falta desse empenho no tradições e vive-se sempre no mes- classe média e precisam parar de se meu campo. Não é sem motivo que mo espectro ideológico. Um Ben- subdividir, de se magoar uns aos ou- meu grupo de pesquisa seja de estu- jamin, um Adorno, um Foucault1, tros e ter algum horizonte de união, dos interdisciplinares de mística, o um Leandro Konder2, um Antonio para além das disputas partidárias. Apophatiké, e que estejamos sempre Candido3 não tinham esse entrave: E quando digo união, é para expan- publicando e produzindo eventos e dir mesmo: com religiosos, evangé- discussões. Merece menção um de- 1 Michel Foucault (1926-1984): filósofo francês. Suas licos inclusive e, naturalmente, com obras, desde a História da Loucura até a História da sexua- les, organizado por Marcus Reis Pi- a classe média que ridicularizam, lidade (a qual não pôde completar devido a sua morte), nheiro4 e pela direção do Instituto de situam-se dentro de uma filosofia do conhecimento. Fou- enfim, é preciso reconhecer os pro- cault trata principalmente do tema do poder, rompendo Ciências Humanas e Filosofia da Uni- com as concepções clássicas do termo. Em várias edições, gressistas de setores que podem não versidade Federal Fluminense - UFF, a IHU On-Line dedicou matéria de capa a Foucault: edição estar dentro dos tipos ideais que a 119, de 18-10-2004, disponível em http://bit.ly/ihuon119; em que compus a mesa com Maria edição 203, de 6-11-2006, disponível em https://goo.gl/ esquerda passou a cultuar. Eles po- C2rx2k; edição 364, de 6-6-2011, intitulada ‘História da Clara Bingemer5, e falamos sobre a dem ser a ponte para se chegar à loucura’ e o discurso racional em debate, disponível em fundamental relação entre cristianis- https://goo.gl/wjqFL3; edição 343, O (des)governo bio- base perdida. político da vida humana, de 13-9-2010, disponível em ht- mo e universidade hoje. tps://goo.gl/M95yPv, e edição 344, Biopolítica, estado de exceção e vida nua. Um debate, disponível em https://goo. A maior parte do povo brasileiro Este ano houve eventos necessários gl/RX62qN. Confira ainda a edição nº 13 dos Cadernos se considera classe média, mesmo IHU em formação, disponível em http://bit.ly/ihuem13, e produtivos dentro dessa área: parti- Michel Foucault – Sua Contribuição para a Educação, a sendo classe C, então falar mal de Política e a Ética. (Nota da IHU On-Line) cipei do VII Congresso ALALITE Rio 2 Leandro Konder: filósofo e professor da Pontifícia Uni- classe média é um disparate, como 2018. Teopoética: Mística e Poesia, versidade Católica (PUC-RJ) e autor de várias obras, entre já demonstrei em um artigo que elas Marxismo e alienação: contribuição para um estudo que foi organizado por Alex Villas do conceito marxista de alienação (Rio de Janeiro: Civili- teve alguma repercussão. A maior 26 zação Brasileira, 1965); A democracia e os comunistas no Boas, Marcio Capelli e Maria Clara, Brasil (Rio de Janeiro: Graal, 1980) e A derrota da dialética: parte do povo brasileiro gosta de na PUC-Rio; e de outro que destaco: A recepção das ideias de Marx no Brasil, até o começo moral e religião. Se quiser sensi- dos anos trinta (Rio de Janeiro: Campus, 1988). Em maio Teopoética - Presenças do Sagrado de 2002, foi homenageado com o Prêmio bilizá-los, é preciso deixar que eles de Melhor Intelectual do Ano durante a cerimônia de na Literatura, no Sesc São Paulo, or- lançamento do Fórum do Rio de Janeiro. É considerado nos sensibilizem. um dos grandes responsáveis pela divulgação e expansão ganizado por Leandro Garcia. Além dos diálogos sobre o marxismo no Brasil. Filho de Valério desses amigos citados que admiro, Mano Brown6 deu um recado a esse Konder, médico e líder comunista, Leandro teve o primeiro contato com os ideais marxistas durante a infância, em sua o trabalho de mística comparada de respeito, falta seguirmos a sua indica- própria casa, onde intelectuais do Partido Comunista Bra- sileiro (PCB) se reuniam. Tanto que ele militou dos 15 aos Faustino Teixeira, que além do mais ção. Enquanto isso não ocorrer, verei 47 anos no partido. O que era apenas um interesse infantil é um leitor voraz de poesia, confirma- o retumbante fracasso como perfeita- gerou mais de 20 obras publicadas, além de traduções de autores marxistas como o húngaro Georg Lukács. Por cau- se a meu ver como central. mente natural. Se a única esperança sa da luta política, foi obrigado a fugir para a Alemanha, na década de 70, com o regime militar em seu encalço. (Nota da esquerda se reduzir a aguardar o da IHU On-Line) de Resistência. Em 1980, participou da fundação do Parti- fracasso deles, fico com a sensação 3 Antonio Candido de Mello e Souza (1918-2017): nas- do dos Trabalhadores - PT. Em 1959, lançou sua obra mais cido no Rio de Janeiro, na infância sua família mudou-se influente, Formação da Literatura Brasileira. Outros títulos de que ninguém mais sabe aprender para Poços de Caldas, em Minas Gerais. Escritor, ensaísta, importantes que lançou são Literatura e sociedade (1965), sociólogo e professor universitário, era expoente da crítica Educação pela noite e outros ensaios (1987) e O romantis- com as derrotas, isto é, que ninguém literária brasileira e um dos maiores intelectuais da história mo no Brasil (2002). Sobre Candido, conferir as entrevistas mais sabe aprender. do Brasil. Professor emérito da Universidade de São Paulo “A literatura é um direito do cidadão, um usufruto peculiar”, - USP e da Universidade Estadual Paulista - Unesp. Lecio- concedida por Flávio Aguiar à IHU On-Line nº 278, de 20- nou na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas 10-2008, disponível em https://goo.gl/qa95Jy, e “Antonio - FFLCH da USP por 50 anos (1942 a 1992). Candido foi um Candido e a crítica cultural contemporânea”, concedida por dos principais pensadores ligados aos estudos sobre a for- Célia Pedrosa à IHU On-Line nº 283, de 24-11-2008, dis- IHU On-Line – Como nutrir mação do Brasil, inaugurados nos anos 1930 e 1940 por ponível em https://goo.gl/92rizw. (Nota da IHU On-Line) Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado 4 Marcus Reis Pinheiro: graduado em Filosofia pela Uni- esperança através da arte, es- Júnior. Ingressou na Faculdade de Direito e na Faculdade versidade Federal do Rio de Janeiro, possui mestrado, de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP em 1939, doutorado e pós-doutorado em Filosofia pela Pontifícia pecialmente poesia e literatura, tendo abandonado a primeira no quinto ano e se formado Universidade Católica do Rio de Janeiro e doutorado em mobilizando um conhecimen- em Ciências Sociais em 1942. Em 1945, obteve o título de Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de livre-docente com a tese Introdução ao Método Crítico de Janeiro. Atualmente é chefe de departamento de Filosofia to de si mesmo? E como levar Sílvio Romero e, em 1954, o grau de doutor em Ciências da Universidade Federal Fluminense, onde é professor ad- esse conhecimento individual à Sociais com a tese Parceiros do Rio Bonito. Na Universida- junto II. (Nota da IHU On-Line) de Estadual de Campinas - Unicamp, recebeu o título de 5 Maria Clara Bingemer: teóloga e decana do Centro de transformação coletiva? doutor honoris causa. Aposentou-se na USP em 1978, mas Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. É autora de, en- manteve-se como professor do curso de pós-graduação tre outros, A experiência de Deus num corpo de mulher até 1992, ano em que orientou a última tese. Foi crítico da (São Paulo: Loyola, 2002); e Deus amor: graça que habi- Eduardo Losso – Eis a questão.■ revista Clima (1941-4), juntamente com intelectuais como ta em nós. (São Paulo/Valência: Paulinas/ Siquem, 2003). o crítico de cinema Paulo Emílio Salles Gomes, a ensaísta Confira entrevista concedida na edição 84 da IHU On-Line, Gilda de Mello e Souza e o neurocientista Antonio Branco de 17-11-2003, sobre a filósofa Simone Weil; na edição Lefévre. Acadêmica, a revista estabeleceu novos caminhos 103, de 31-5-2004, sobre o Simpósio Internacional O Lu- para a crítica paulistana. Candido também trabalhou como gar da Teologia na Universidade do Século XXI. Na edição 6 Pedro Paulo Soares Pereira (1970): mais conhecido crítico dos jornais Folha da Manhã (1943-5) e Diário de São 121, de 1-11-2004, sobre o sentido cristão da morte. Maria como , é um rapper brasileiro, vocalista dos Paulo (1945-7). Em 1956, idealizou o Suplemento Literário, Clara é autora do segundo número dos Cadernos Teologia Racionais MC’s, grupo de rap formado na capital paulista caderno de crítica que circulava no jornal O Estado de S. Pública, Teologia e Espiritualidade. Uma leitura teológico em 1988 e integrado por Ice Blue (Paulo Eduardo Salva- Paulo até 1966. Na vida política, participou da luta contra -espiritual a partir da realidade do Movimento Ecológico e dor), Edi Rock (Edivaldo Pereira Alves) e KL Jay (Kleber Ge- a ditadura do Estado Novo no grupo clandestino Frente Feminista. (Nota da IHU On-Line) raldo Lelis Simões). (Nota da IHU On-Line)

15 DE ABRIL | 2019 REVISTA IHU ON-LINE

Trabalhar sobre si mesmo é a única solução para o mal Para a filósofa Beatrice Iacopini, Etty quis, acima de tudo, desenterrar Deus dos corações martirizados

João Vitor Santos | Edição: Patricia Fachin | Tradução: Moisés Sbardelotto

as páginas que compõem os assim como ela é e de amar o próximo seus diários, Etty Hillesum “nos sem reservas”. ensina a perceber a profunda Na entrevista a seguir, concedida unidadeN de tudo, razão pela qual quem por e-mail, Beatrice também faz um se empenha a melhorar a si mesmo, na convite aos leitores: “Cada um de nós realidade, muda o mundo”, diz a filósofa pode tentar fazer aquilo que Etty fez: italiana Beatrice Iacopini à IHU On-Li- cultivar e manter a própria ‘posição in- ne. Segundo ela, as maldades que a jo- terior’, porque, sempre como naquela vem judia presenciou em Westerbork fez época, alguém deve sobreviver para com que ela cultivasse uma “riquíssima que ‘mais tarde possa testemunhar vida interior”. Lá, diz, ela “carregou-se que Deus viveu também nessa época’; de primorosa ternura e, pelo menos, de e cada pessoa de fé deveria se fazer a compaixão pelos milhares de rostos da pergunta que ela se fez: ‘Por que eu 27 miséria e da dor que encontrava todos os não deveria ser essa testemunha?’”. dias, incluindo os dos agressores”. Beatrice Iacopini é formada em Apesar de a mística de Etty não ter flo- Filosofia e em Teologia. Atualmente le- rescido dentro de uma tradição religio- ciona no ITCS Filippo Pacini - Pistoia sa, Beatrice explica que, “em essência”, e colabora com a Escola de Teologia da o caminho de Etty foi o mesmo percor- rido por Teresa de Ávila e João da Cruz, Diocese de Pistoia. Estudiosa do pen- “o da superação da dimensão estreita, samento de Etty Hillesum, Beatrice é mesquinha do próprio eu, que favore- autora, juntamente com Sabina Moser, ce o acesso àquela dimensão de nós em de Uno sguardo nuovo. Il problema del que somos a imagem e semelhança de male in Etty Hillesum e Simone Weil Deus, e na qual, ao alcançá-la, somos [Um olhar novo. O problema do mal em capazes de compreender realmente o Etty Hillesum e Simone Weil, em tra- sentido profundo da vida, de amá-la dução livre] (Ed. San Paolo 2009). verdadeiramente por aquilo que ela é, Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais os maio- restaram várias cartas escritas por rado do extraordinário crescimen- res desafios para compreen- ela a amigos. A leitura de um mate- to humano e espiritual que ocorreu dermos o percurso de cresci- rial tão vasto pode assustar muitos, nela em poucos meses, desde que mento humano e espiritual de até porque, como sempre acontece – deprimida, confusa, egocêntrica Etty Hillesum? no gênero diarístico, nas páginas – começou a se tratar com Julius 1 Beatrice Iacopini – Essa jovem de Etty, encontramos reflexões po- Spier , psicoterapeuta dotado de judia holandesa, nascida em 1914 e derosas, misturadas, porém, com 1 Julius Spier (1887-1942): psicólogo e quirologista judeu morta em Auschwitz em 1943, dei- anotações da vida cotidiana ou com alemão. Foi o primeiro gerente de banco do Beer, Son- dheimer & Co, mas em 1925 muda sua vida e funda a xou-nos um volumoso diário que trechos que ela copiava de autores Iris Edition. Segue um treinamento em canto clássico e vai ocupa milhares de páginas impres- particularmente congeniais a ela. para Zurique conhecer Carl Gustav Jung. Entra em análise e treina com ele por dois anos. Jung pediu-lhe que fizesse sas. Além disso, felizmente, também Assim, não é fácil traçar o fio dou- da “psicoquirologia” o seu trabalho, tendo em conta o seu

EDIÇÃO 534 TEMA DE CAPA

“Etty não floresceu dentro de uma tradição religiosa específica: mesmo sendo de família judaica, não tinha sido educada na religião dos seus antepassados, nem jamais se converteu ao cristianismo ou a outra religião”

uma notável profundidade espiritu- de outros místicos medievais, levou uma vida secular, caracteriza- al, até quando tomou a decisão mui- como Teresa de Ávila2, João da da, acima de tudo, por uma liberdade to corajosa de pedir para ser enviada Cruz3, entre outros? de costumes bastante surpreendente para o campo de concentração de para aquele tempo, portanto, muito Beatrice Iacopini – Aparente- Westerbork para ajudar os depor- diferente da de um dominicano como tados como podia e, acima de tudo, mente, é claro, trata-se de autores Eckhart4 ou de uma carmelita como para tentar “desenterrar Deus dos muito distantes de Hillesum. Acima Teresa. Isso a torna particularmente corações devastados dos homens”. de tudo, ao contrário dos místicos contemporânea e próxima do ser hu- citados por você, Etty não floresceu mano de hoje, da qual ela é verdadei- Depois, há uma dificuldade mais dentro de uma tradição religiosa espe- ramente irmã. Seu percurso místico substancial: em uma primeira lei- cífica: mesmo sendo de família judai- tura, a posição que Etty tomou nas – especifiquemos também que ele não ca, não tinha sido educada na religião trágicas circunstâncias em que se tem nada de visionário ou de extático dos seus antepassados, nem jamais se encontrava vivendo pode ser incom- – desenvolve-se todo na dimensão co- 28 converteu ao cristianismo ou a outra preensível, até mesmo inaceitável. tidiana, na prosaicidade de ambientes religião. Portanto, não há nela qual- Os seus escritos são pontilhados por comuns, e a sua ascese, que também quer base dogmática nem uma lingua- uma espécie de refrão, que a vida é está presente (ela também, assim “bela, boa, até mesmo justa”. Ressoa gem teológica específica. Eu também como os grandes mestres do passado, continuamente a determinação de acredito que é importante salientar desenvolveu um caminho de purifica- rejeitar o ódio em relação aos agres- que, enquanto esses místicos ama- ção de si), não tem nada de medieval. dureceram as suas experiências espi- sores e o convite a amar os inimigos, Em essência, porém, o seu caminho precisamente enquanto a Europa rituais dentro de ordens religiosas e, foi o mesmo, ou seja, o da superação era dilacerada pela guerra e enfure- portanto, de uma vida monástica, Etty da dimensão estreita, mesquinha ciam-se as perseguições nazistas. A do próprio eu, que favorece o aces- 2 Teresa de Ávila (1515-1582): freira carmelita espanhola escolha de não se pôr a salvo e, ao nascida em Ávila, Castela, famosa reformadora da ordem so àquela dimensão de nós em que contrário, de ir voluntariamente a das Carmelitas. Canonizada por Gregório XV (1622), é fes- tejada na Espanha em 27 de agosto, e no resto do mundo somos a imagem e semelhança de um campo de concentração também em 15 de outubro. Foi a primeira mulher a receber o título Deus, e na qual, ao alcançá-la, somos de doutora da igreja, por decreto de Paulo VI (1970). Entre pode parecer uma forma de imper- seus livros citam-se Libro de su vida (1601), Libro de las capazes de compreender realmente o doável resignação. A esse propósito, fundaciones (1610), Camino de la perfección (1583) e Cas- tillo interior ou Libro de las siete moradas (1588). Escreveu sentido profundo da vida, de amá-la considero que é mais fácil compre- também poemas, dos quais restam 31 deles, e enorme verdadeiramente por aquilo que ela é, correspondência, com 458 cartas autenticadas. Sobre Te- ender tudo isso se inserirmos Hille- resa, confira Teresa – A Santa Apaixonada (Rio de Janeiro: assim como ela é e de amar o próximo sum na grande tradição mística, não Objetiva, 2005), de autoria de Rosa Amanda Strausz; Obras completas (São Paulo: Loyola, 1995) e Santa Teresa de Je- sem reservas. só cristã. sus – “Livro da vida” (4ª ed., São Paulo: Ed. Paulus, 1983). A edição 460 da revista IHU On-Line, sob o título A mística nupcial. Teresa de Ávila e Thomas Merton, dois centená- rios, analisa a legado de Merton. Confira em https://goo. gl/jOlXOi. (Nota da IHU On-Line) IHU On-Line – No que con- IHU On-Line – O que difere a 3 João de Yepes ou São João da Cruz (1542-1591): in- siste o mal em Etty Hillesum? mística de Etty Hillesum, que gressou na Ordem dos Carmelitas aos 21 anos de idade, em 1563, quando recebe o nome de Frei João de São Como ela concebe a superação vive na chamada Modernidade, Matias, em Medina del Campo. Em setembro de 1567, encontrou-se com Santa Teresa de Jesus, que lhe falou do mal? sobre o projeto de estender a Reforma da Ordem Car- dom de ler nas linhas das mãos as aptidões e o caráter melita também aos padres. Aceitou o desafio e trocou o do povo. Abriu em 1930 um escritório em Berlim, onde se nome para João da Cruz. No dia 28 de novembro de 1568, especializou em estabelecer diagnósticos médicos a par- juntamente com Frei Antônio de Jesús Heredia, iniciou a tir da morfologia e linhas da mão, e desenvolver a partir Reforma. No dia 25 de janeiro de 1675, foi beatificado por 4 Eckhart de Hochheim, O.P. (1260-1328): mais conheci- deles uma abordagem terapêutica inspirada no ensino Clemente X. Canonizado em 27 de dezembro de 1726 e do como Mestre Eckhart, em reconhecimento aos títulos junguiano. Depois de se divorciar de sua primeira esposa declarado Doutor da Igreja em 1926 por Pio XI. Em 1952, acadêmicos obtidos durante sua estadia na Universidade (com quem teve dois filhos, Ruth e Wolfgang), pelas per- foi proclamado Patrono dos Poetas Espanhóis. Sua festa de Paris, foi um frade dominicano, reconhecido por sua seguições nazistas, ele emigra para Amsterdã, onde sua é comemorada no dia 14 de dezembro. Sobre São João obra como teólogo e filósofo e por seu misticismo. Ele é irmã já reside. É ali que vai conhecer Etty Hillesum. (Nota da Cruz, confira As obras completas de São João da Cruz considerado como um dos grandes símbolos do espírito da IHU On-Line) (Petrópolis: Vozes, 2002). (Nota da IHU On-Line) intelectual da idade média. (Nota da IHU On-Line)

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Beatrice Iacopini – A esse pro- de fundar uma teodiceia a vontade o social que foi operária de fábrica pósito, é preciso, acima de tudo, ter mistificadora do eu de impor as pró- e participou da revolução espanho- em mente que Hillesum não é uma prias leis sobre a realidade e encai- la; Hillesum, capaz de não “fazer”, filósofa e não escreveu tratados, mas xá-la em esquemas reconfortantes. como ela mesma dizia, mas apenas sim páginas de diário: portanto, Aquela que se escancara inesperada- de “ser”. nunca encontramos um tratamento mente diante de Etty, em vez disso, é No entanto, a experiência espiritu- sistemático do problema do mal, que uma verdadeira via mística, ou seja, al delas – que floresceu, em ambos é abordado, em vez disso, em chave uma visão das coisas desprovida das os casos, sem ter sido preparada de existencial, como cada um de nós faz projeções do eu. Etty compreende modo algum por qualquer caminho quando é posto contra a parede pela que, ao se renunciar a interpretar de tipo confessional – foi pratica- vida e pelos dramas que ela coloca a realidade com categorias nossas, mente idêntica: o contato vital com diante de nós. Desde a primeira ju- evitando de fazer violência e de criar o eterno permitiu-lhes viver livres ventude, Etty tinha vivido uma pro- sistemas consoladores, mas falsos, e dos limites e da mesquinhez dentro funda desorientação: era afligida por ao se cultivar a paciência e a humil- dos quais tudo o que é “pessoal” nos distúrbios psicossomáticos, passava dade de escutá-la profundamente, força. Ambas consideraram funda- por um opressivo estado de pessi- então se captam o ritmo e as leis, mental trabalhar pela progressiva mismo, de falta de sentido e de ten- as profundas conexões que mantêm separação do eu, para dar lugar ora tações suicidas. Os dois irmãos mais o todo unido, sem, portanto, elimi- à aceitação do vazio, nas palavras de novos, além disso, sofriam de fortes nar o negativo, que encontra, assim, Weil, ora à quietude interior, com distúrbios psiquiátricos, e ela tinha também ele, o seu lugar no todo. uma expressão cara a Hillesum, va- assistido pessoalmente, várias ve- O sentido, que ela mesma define zio/quietude que contribuem para a zes, cenas chocantes que acabaram como “inexplicável”, da beleza de total acolhida e aceitação de tudo o em internações forçadas. Portanto, viver certamente não pode se fun- que é. Assim, o mundo e a vida se es- ela conhecera o mal na forma de so- dar na realidade da crônica – mui- cancararam em toda a sua beleza aos frimento existencial desde a adoles- tas vezes desoladora e angustian- seus olhos e, neles, aprenderam a ler cência. Mais tarde, acrescentou-se o te –, mas no fato de ter afinado os o sinal da presença de Deus. encontro com a guerra, o nazismo, sentidos espirituais que permitem as perseguições. 29 perceber a corrente subterrânea IHU On-Line – Etty Hillesum Percurso espiritual que percorre a vida e que só um ou- vido treinado e finíssimo pode ouvir conserva na essência de seu for- O percurso espiritual que Etty ini- atrás do barulho das bombas e dos talecimento interior uma ideia ciou graças a Spier que a levou a uma tanques, atrás do clamor e do caos de liberdade? Como compreen- conversão do olhar sobre aquilo que dos eventos cotidianos. de esse conceito de liberdade e de que forma, na sua experiên- chamamos de mal: quanto mais ela ia rastreando nas suas profundezas o cia de escuta e acolhimento, ela centro de si, mais ela se enraizava no IHU On-Line – Que conexões revela essa liberdade? Deus que lá havia encontrado, mais podemos estabelecer entre Etty Beatrice Iacopini – Efetivamen- 1 percebia que aquilo que ocorre de Hillesum e Simone Weil ? te, poderíamos ver todo o percurso fora não é tão importante, se apren- Beatrice Iacopini – De certa de Hillesum como uma busca da dermos a viver “à escuta daquilo que forma, é difícil encontrar duas mu- liberdade, como um caminho de li- vem de dentro”. lheres mais diferentes do que Etty bertação: ela entrou na psicoterapia porque se sentia presa de um “nó A sua resposta não é filosófica: o e Simone: a primeira, sensual e ex- emaranhado”, de uma desordem mistério do mal, do sofrimento, da tremamente feminina, “bulímica” interior que lhe tornava quase in- opressão do homem sobre o homem em relação a tudo que encontrava tolerável viver. A terapia com Spier permanece insolúvel; mas nos diz de belo no seu caminho; a segunda, imediatamente fez milagres, e a sua que há um modo de contemplar a ascética, quase acorpórea, que prati- vida começou a decorrer mais flui- realidade mais profundo do que o camente se deixou morrer de fome. damente, a desordem progressiva- intelectual, que permite aceitar as Weil, comprometida a tal ponto com mente cedeu espaço a uma quietu- contradições e inseri-las na “única 1 Simone Weil (1909-1943): filósofa cristã francesa. Cen- de interior cada vez maior, graças à poderosa totalidade”, em que cada trou seus pensamentos sobre um aspecto que preocupa qual foi-lhe possível “repousar em si uma delas tem o seu lugar certo. Ao a sociedade até os dias de hoje: o tormento da injusti- ça. Vítima da tuberculose, recusou-se a se alimentar, para mesma”. Depois, quando começou a olhar iluminado pela luz do espíri- compartilhar o sofrimento de seus irmãos franceses que pôr em prática os ensinamentos es- to, tudo se revela “um bem assim haviam permanecido na França e viviam os dissabores da Segunda Guerra Mundial. Sobre Weil, confira as edições pirituais de Spier, treinando-se para como é”. 84, de 17-11-2003, Simone Weil Palavra Viva, disponí- vel em http://bit.ly/tZSCDr; 168, de 12-12-2005, Hannah extinguir o “pequeno eu”, aquele eu Arendt, Simone Weil e Edith Stein. Três mulheres que mar- Como se vê, Etty não tenta sequer caram o século XX, disponível em http://bit.ly/v0aMxT; “tão obtuso, com os seus desejos que elaborar alguma teodiceia, ao con- 313, de 3-11-2009, Filosofia, mística e espiritualidade. Si- se limitam a perseguir as satisfações mone Weil, cem anos, disponível em http://bit.ly/w374lt. trário, denuncia em cada tentativa (Nota da IHU On-Line) mesquinhas”, ela sentiu que se es-

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cancarava o acesso a regiões de si monia na natureza, algo incerto e in- rio, devemos te ajudar, e é fazen- das quais ela não conhecia a exis- definido, absolutamente irrelevante. do isso que, no fundo, ajudamos a tência. Assim, descobriu que é pos- nós mesmos. Tudo o que podemos Aprendendo a frequentar os seus sível ser pátria para si mesmo, que salvar em tempos como estes e lugares interiores, porém, no fun- dentro de nós existem espaços tão também a única coisa que impor- do de si, escancararam-se para ela vastos que podem hospedar e dei- ta é um pedacinho de ti em nós “vastos panoramas”, amplos es- xar decantar, purificando-o, tudo mesmos, Deus... Há pessoas – não paços acolhedores aos quais ela se aquilo que ocorre lá fora, tão vasto é possível acreditar nisto! – que, assomou timidamente, para depois mesmo no último momento, põem a ponto de ter lugar até mesmo para tomar posse com decisão daquele a salvo aspiradores, garfos e co- Deus. Superar o apego ao próprio Alguém que Etty, no início, custa- lheres de prata, em vez de se pre- eu significou para ela não dar mais va a chamar de Deus. Sempre me ocuparem contigo, meu Deus. E ouvidos às próprias “paixões” (dian- surpreende muito essa espécie de há pessoas que só pensam em as- te das quais, como indica o próprio pudor linguístico: o temor de dizer segurar o próprio corpo, que já se termo, somos “passivos”, portanto, “Deus”. Talvez, ela tivesse medo de tornou um mero recipiente de mil não livres), aos sentimentos mais que ela confundisse essa surpreen- medos e de mil ressentimentos. baixos de inveja, ciúme, rancor, dente Presença interior com aque- ódio – que também ela, assim como le ser mitológico de barba, que é Elas dizem: não me terão em suas todos, sentia e sobre os quais traba- Deus para muitos, ou com qualquer garras! Esquecem-se que nunca lhou muito – e aos medos que fazem imagem que o homem possa fazer estamos nas garras de ninguém perder a bússola. dele. Talvez ela soubesse que esse quando estamos nos teus braços”. Assim, o fato de viver enraizada Alguém é grande demais para po- nas profundezas do eu, onde eu e der ser encerrado em uma palavra. Deus são a mesma coisa, presen- Depois, ela se curvou a usar aquela teou-lhe uma experiência de autên- palavra “Deus”, porque, de algum “Hillesum não tica liberdade, que ela nunca havia modo, tinha que se expressar, mas experimentado antes; uma liberda- especificando que se tratava apenas é uma filósofa de “uma estrutura de serviço”. 30 de tão grande a ponto de lhe permi- tir não odiar os nazistas e não temer O fato é que, de um modo total- e não escreveu as suas opressões: “Não estamos nas mente misterioso também para ela, garras de ninguém quando repousa- a sua vida tornou-se “um ininter- tratados, mas mos nos braços de Deus”, respondia rupto escutar dentro de mim mes- ela aos amigos que lhe imploravam ma, aos outros, a Deus. E, quando sim páginas para se proteger, de algum modo. eu digo que escuto dentro, na rea- de diário” Uma liberdade tão grande a pon- lidade, é Deus quem escuta dentro to de se internar espontaneamen- de mim. A parte mais essencial e te no campo de Westerbork, para profunda de mim que dá ouvidos à compartilhar o destino do seu povo parte mais essencial e profunda do O Deus de Etty e a ponto de poder exclamar, den- outro. Deus a Deus”. tro das restritas fronteiras daquele Trata-se de uma verdadeira re- Etty nos conta aqui uma desco- campo de concentração, que “esta- volução copernicana, que coloca berta: ela encontrou aquilo que mos em casa em todos os lugares no centro não mais a responsabi- os místicos chamam de fundo da sob este céu, quando trazemos tudo lidade de Deus, mas sim a do ser alma, o lugar onde surge a identi- dentro de nós mesmos”. humano: “E Deus também não é dade, a intimidade mais profunda responsável em relação a nós pe- do sujeito, onde Deus habita ou, los absurdos que nós mesmos co- melhor, onde, de modo misterio- IHU On-Line – Que Deus é re- metemos: os responsáveis somos so, Deus e a alma são uma coisa só. velado através da experiência nós!”. O Deus de Etty é um Deus Ela, que de aventuras teve muitas, de Etty Hillesum? que confia a própria presença no dirá, depois, que Deus é “a maior mundo ao ser humano, porque, Beatrice Iacopini – Antes do en- e ininterrupta aventura interior” sem o ser humano, nada pode fa- contro com Spier, Etty era – como do ser humano, e que aquelas, para zer; é uma presença a ser cuida- muitos hoje – essencialmente ag- Deus, são as únicas cartas de amor da e uma fonte jorrante, mas que nóstica: Deus para ela era apenas o que deveriam ser escritas. deve ser limpada continuamente Grande Talvez (roubo a esplêndida No encontro com Deus, Etty para que não se obstrua. E, quan- expressão de Thornton Wilder2), amadureceu uma visão revolu- do se manifesta a tentação de apenas a suspeita fugaz de uma har- cionária, perfeitamente resumida não crer mais, é preciso “recolher nestas linhas esplêndidas: “Tu não Deus”, impedir que ele se afaste e 2 Thornton Niven Wilder (1897-1975): foi um escritor estadunidense. (Nota da IHU On-Line) podes nos ajudar, nós, a contrá- nos abandone, por nossa causa.

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É impressionante como nas páginas mo e saber captar a verdade sem de- “representações convencionais” ou de Etty já está contida grande parte formá-la com as projeções do eu psi- “fossilizadas” da vida e das pessoas, do debate sobre a compreensão de cológico (desejos, ciúmes, medos...); sentimentos apropriativos e divisivos, Deus após Auschwitz: com extraor- é escutar as profundezas de si e do e, assim, estão na origem de toda dinária lucidez, ainda no meio do mundo, invertendo a perspectiva co- insatisfação, infelicidade, pessimismo. grande massacre, ela não só captou mum pela qual nos deixamos guiar Permanecer conectado à corrente a enormidade de todo aquele mal, pelos eventos externos e não por que permeia todas as coisas produz a mas também previu as interrogações “aquilo que sobe de dentro”. Escutar atitude interior de aceitação confiante que, depois, surgiriam. dentro requer um constante exercí- das coisas como elas são, o “abandono cio de silêncio e atenção, retribuído, Etty explora, graças à sua experiên- confiante” (gelatenheid, correspon- no entanto, pelo escancaramento de dente holandês ao eckhartiano Ge- cia espiritual, fronteiras teológicas espaços interiores cada vez mais li- lassenheit), que é uma consequência particularmente atuais: ela nos fala vres e inalienáveis. de um Deus que não é o deus oni- imediata, senão até a mesma coisa, potente da história – no qual, aliás, O outro verbo (literalmente digerir, da fé em Deus. O abandono confian- hoje, não se está mais disposto a crer assimilar) é uma prática consequen- te cria um estado de quietude e torna –, mas sim um Deus que se confia, te à primeira e significa dar espaço e possível repousar em si mesmo, no um Deus a ser cuidado, a ser hospe- amorosa hospitalidade a toda pessoa próprio espaço interior, mas só é pos- dado, a ser mantido vivo, que coinci- e a todas as coisas, também àquilo sível no desapego, que é a tarefa que de com a nossa verdadeira liberdade que parece negativo e provoca dor. cabe ao ser humano e à qual Etty se e que nos salva de dentro de nós, É a habilidade de recolocar também dedicou com os seus exercícios ascéti- mudando não as coisas e os eventos, as circunstâncias e as experiências cos: todo o resto é simplesmente dado mas o nosso olhar sobre as coisas e mais negativas no centro de si, im- a nós, sem que nós devamos fazer sobre os eventos. pedindo-as de permanecer no nível mais nada. superficial e de se apossar da pessoa,

Ao grito nietzschiano “Deus está perturbando a sua emotividade. A dor morto”, com Etty poderíamos res- assim absorvida e resolvida pode se IHU On-Line – Que dimensão ponder que é bom que ele tenha sido transformar em uma peça daquela o amor e a compaixão universal morto, porque ele era apenas um “grande bem-aventurança” que é a assumem em Etty Hillesum? 31 ídolo da nossa imaginação e, com vida interior e desenvolver energias Beatrice Iacopini – Com a exa- ele, não desaparece o horizonte, de insuspeitadas. fato, ao contrário, ele é recolocado cerbação das leis raciais, Etty dedi- no lugar certo: não fora, mas dentro Treinando-se até o ponto de fazer ca muitas reflexões à sua situação de nós, onde na realidade sempre se com que a escuta profunda e a assimi- e, ao contrário do que muitos lhe encontrou – por outro lado, os místi- lação se tornassem verdadeiros hábi- sugerem, sente a precisa responsa- cos de todos os tempos disseram isso tos da alma, Etty aprendeu a sentir e, bilidade pessoal de não poder acei- – e de onde ninguém tem o poder de depois, a permanecer conectada com tar soluções privilegiadas e, assim, apagá-lo. Etty nos entrega, em tem- aquela corrente subterrânea – outra se isentar de um destino comum. pos de grande desorientação e, pelo expressão recorrente e central – que, Aquilo que ela viu acontecendo menos nas minhas latitudes, de ag- como uma música de fundo, permeia com os judeus de toda a Europa, nosticismo generalizado, as coorde- e sustenta a criação, cada criatura hu- em sua opinião, tinha dimensões nadas de uma fé ainda possível. mana e a própria história, e na qual tão assustadoras que constituíam se manifesta a presença de Deus. É uma espécie de “destino de massa” vivendo conectados com essa corrente que ela estava decidida a não evitar, IHU On-Line – Na sua opi- que ganhamos o olhar mesmo de Deus “eliminando todos os infantilismos nião, quais são os conceitos sobre o cosmos e captamos, assim, a pessoais”: tentar proteger a si mes- mais centrais na mística de Etty sua coerência e a sua riqueza de signi- ma parecia-lhe um comportamento Hillesum? Por que e como com- ficado; caso contrário, perdemo-nos fora da história e, além disso, uma preendê-los? atrás dos detalhes e perdemos de vista covardia – como no caso daqueles as “grandes linhas”. Essa corrente uni- judeus que se escondiam – porque Beatrice Iacopini – Vou respon- versal, que é a voz e o poder de Deus “quem quer que queira se salvar der usando alguns termos-chave do no universo, jorra em cada ser huma- deve saber, porém, que, se ele não léxico de Etty. Comecemos com dois no, nas suas fontes interiores que são for, outra pessoa terá que ir em seu verbos, hineinhorchen (alemão) e a própria essência do seu ser, mas, lugar”. É evidente que não se trata verwerken (holandês), que indicam muitas vezes, estão sepultadas por de um fatalismo resignado, mas sim no diário duas atitudes da alma. Hi- detritos e, para liberar o seu acesso, é da convicção que se tem diante de neinhorchen, escutar dentro, signi- preciso um trabalho de escavação e de algo muito maior do que uma ques- fica se habituar a ver o que flui em remoção daquilo que ali depositam o tão pessoal, algo que o indivíduo profundidade, ir além da superfície eu e a mente, que, com o seu incessante não pode mudar de modo algum, dos eventos, das pessoas, de si mes- trabalho, produzem ruminações, senão inserindo-se nisso: “Duvido

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que eu me sentiria bem se soubesse quais, na minha opinião, Hillesum, que me salvaria, enquanto milhares de um modo mais ou menos cons- vão morrer. Acho absurdo e ilógico “Ela conhecera ciente, se vincula. tomar iniciativas [assim]”. o mal na forma Alguns intérpretes da pós-mo- Etty quis compartilhar “o fardo da dernidade, primeiramente R. Pani- dor” e da história, mantendo sem- de sofrimento kkar2, interrogando-se sobre o fu- pre um olhar mais amplo do que turo das religiões, defenderam que as estreitas fronteiras do presente existencial o nosso século “ou será místico ou imediato e levando consigo aque- não será”: eu acho que Etty é uma la que ela sentia como sua tarefa: desde a das respostas mais convincentes “Gostaria de me encontrar em todos adolescência” nesse sentido. aqueles campos que estão espalha- dos por toda a Europa, gostaria de estar em todas as frentes; não que- IHU On-Line – Uma das cenas ro, por assim dizer, ‘estar segura’, IHU On-Line – Tzvetan Todo- mais impactantes de Etty Hille- quero estar lá, quero que haja um rov1 diz que Etty Hillesum rompe sum é a descrição de quando ela pouco de fraternidade entre todos com uma tradição de pensamen- joga do trem que a leva à morte esses chamados ‘inimigos’ onde to ocidental, que enfatiza o su- um bilhete que diz “deixamos o quer que eu me encontre, quero jeito, “que representa os outros campo [de concentração] can- entender o que acontece; e gostaria como os instrumentos eventu- tando”. Como a senhora lê esse que todos aqueles que conseguirei ais das investigações realizadas momento? E que outras cenas encontrar [...] possam entender es- pelo eu”. A senhora concorda? na história dessa mística a se- ses grandes acontecimentos como E a partir do próprio texto dela, nhora destacaria? eu os entendo”. poderia nos demonstrar como Beatrice Iacopini – Certamen- Por isso, ela fez com que fosse propõe esse rompimento de “eu te, o bilhete a que você alude é um enviada para Westerbork, o lugar autocentrado” e exerce esse au- 32 testemunho altíssimo: ter a força e que os judeus tentavam evitar com toconhecimento capaz de aco- o desejo ainda de verter sobre o pa- todas as suas forças. Lá, apesar do lher e escutar o outro a partir de pel palavras como essas, de dentro inferno, ela viveu uma riquíssima si mesma? de um vagão lotado de pessoas que vida interior e de relação: carregou- Beatrice Iacopini – É uma ob- vão morrer, já é, por si só, um sinal se de primorosa ternura e, pelo me- servação bastante pertinente, e eu do profundo amor pela vida e pelos nos, de compaixão pelos milhares acho que esse aspecto é uma das outros que Etty tinha amadurecido. de rostos da miséria e da dor que muitas perspectivas de leitura de Naquele bilhete, que alguns campo- encontrava todos os dias, incluindo Hillesum. A história da filosofia oci- neses piedosos recolheram no cam- os dos agressores. dental foi, principalmente, a desco- po adjacente à ferrovia e enviaram à Bem antes de as deportações se berta e a exaltação progressiva do destinatária, a amiga Christine, Etty desencadearem, Etty escreveu: “A eu e da sua força, enquanto, no pen- escreveu que tinha aberto a Bíblia ao barbárie nazista desperta em nós samento indiano e oriental, em ge- acaso: um dos últimos gestos que co- uma barbárie equivalente, que ope- ral, sempre teve muito mais espaço nhecemos dessa jovem mulher, por- raria com os mesmos métodos se a desconstrução do eu. No entanto, tanto, é um gesto de entrega a Deus, apenas pudéssemos pôr em prática gostaria de salientar que, na nossa através da sua Palavra. Não só isso, hoje aquilo que gostaríamos. Está história, também é rastreável uma o versículo que ela copiou contém em nosso poder rejeitar essa barbá- corrente indubitavelmente mino- um significativo jogo de palavras: “O rie no nosso íntimo: podemos não ritária, que muitas vezes permane- Senhor é o meu refúgio”, em que a cultivar em nós esse ódio, porque, ceu subterrânea, que vai na direção palavra que significa “refúgio”, no caso contrário, o mundo não dará oposta: poderíamos fazê-la partir holandês antigo da Bíblia, é a mesma sequer um passo fora da lama em no neoplatonismo e depois segui-la que, em holandês moderno, significa que se encontra”. nos seus entrelaçamentos com uma “partida”! Etty quer dar a entender certa filosofia cristã. É aquela que aos seus amigos que a sua “partida” No campo, ela se esforçou como floresceu especialmente na místi- está em Deus, como todas as coisas pôde para ajudar, mas, acima de ca renana-flamenga e nos autores que lhe acontecem, como testemu- tudo, para “desenterrar Deus dos que depois se inspiraram nela e aos nho do “abandono confiante” de que corações martirizados”, como ela eu falava acima. dizia. Ela chegou a escrever, com 1 Tzvetan Todorov (1939): filósofo e historiador búlgaro, crítico da linguagem. Confira a entrevista concedida por uma estupefaciente referência ao ele à IHU On-Line, intitulada Os inimigos da democracia e 2 Raimundo Panikkar: teólogo indiano, autor de, entre sacrifício eucarístico: “Parti o meu o perigo das exigências hipertrofiadas, publicada na edi- outros, The Unknown Christ Of Hinduism: Towards An ção número 407, de 05-11-2012, disponível em http://bit. Ecumenical Christophany. Maryknoll, Nova Iorque: Orbis corpo como se fosse pão”. ly/U4r4I4. (Nota da IHU On-Line) Books, 1981. (Nota da IHU On-Line)

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No diário e nas outras cartas, há ce dalle Lettere [O jasmim e a poça. rioridade/compromisso social. Usan- nas que permanecem impressas, não Textos do Diário e das Cartas, do as suas próprias palavras, trabalhar tanto porque são eventos de grande em tradução livre] (Ed. Le Let- sobre si mesmo não é individualismo porte, mas pelo seu significado espiri- tere, 172 páginas). Por que re- mórbido, mas sim a única solução tual: vem-me à mente, por exemplo, publicar os diários agora? O para o mal. Eu acho que Hillesum nos aquela manhã em que – ela conta isso que essa volta ao texto de Etty ensina a perceber a profunda unidade no dia 27 de fevereiro de 1942 – ela Hillesum lhe revelou? de tudo, razão pela qual quem se em- acompanhou Spier à Gestapo. Lá, um penha a melhorar a si mesmo, na re- Beatrice Iacopini – Como eu di- jovem gendarme gritou contra ela não alidade, muda o mundo, e essa lição, zia, os escritos de Hillesum preen- sei o quê, e ela, em vez de se assustar ou com mais razão, deveria ser assumida chem mais de mil páginas, e nem to- se indignar, conta ter sentido uma sin- pelas religiões que, mais do que nunca, dos estão dispostos a fazer o esforço cera compaixão por aquele jovem de ar têm uma grande responsabilidade, a necessário para lê-los na sua inteireza. atormentado e oprimido. Ou quando de ensinar a superar cercas e divisões, Por outro lado, é importante demais fala das flores, particularmente do jas- abandonar todo espírito de proselitis- que essa figura central do século XX mim atrás da casa, que ela tanto amava mo para lançar com uma só voz uma seja conhecida pelo maior número e que continua amando e, sobretudo, mensagem às pessoas de boa vontade, de pessoas possível. A minha antolo- diria, olhando: são o símbolo da beleza mensagem que poderíamos sintetizar gia nasce com a intenção de fornecer da vida, da compaixão, da presença de assim: trabalhar sobre si mesmo para uma escolha de trechos ordenados por Deus no mundo, que sempre existem, abandonar toda perspectiva egocên- temas, de modo que esteja à disposi- mas que é preciso saber percebê-las; e trica e, assim, deixar emergir Deus, ou ção dos leitores uma espécie de mapa ela sabe que é importante que alguém, seja, o amor, no mundo. que possa orientá-los pelas etapas ainda, no meio da degradação e dos fundamentais do seu percurso espiri- desastres da guerra e do ódio, tenha tual. Preparar a tradução dos textos, olhos para elas, porque esse olhar salva IHU On-Line – Deseja acres- por outro lado, permitiu-me entrar e transmite intactas às gerações futuras centar algo? ainda mais no mundo de Etty e fazer beleza, amor, substancialmente, Deus. algumas descobertas iluminadoras: Beatrice Iacopini – Gostaria de Depois, tem esse gesto tão recorren- por exemplo, a presença em algumas concluir com uma reflexão que tam- te no diário, ajoelhar-se: Spier se ajoe- de suas páginas do termo eckhartia- bém é um convite. A barbárie nazis- 33 lhava para rezar, e, assim, ela também no Gelassenheit (na forma holandesa ta foi terrível, mas novas barbáries quis tentar, mas, no início, ela não gelatenheid) que ajuda a demonstrar estão continuamente à espreita no gostava desse gesto, não o sentia como como a experiência espiritual de Hil- nosso planeta (e, não nos esqueça- dela. Um dia, no entanto, de repente, lesum se insere na tradição da grande mos, dentro de nós). Diante de vio- encontrou-se jogada no chão por algo mística cristã. lências, opressões, depredações do maior e, a partir de então, começou a homem contra o homem, assim como se definir como “a moça que não sabia diante das próprias tentações de ce- se ajoelhar e aprendeu a fazê-lo”. Esse IHU On-Line – Quais os maio- der à intolerância, à raiva, à violên- movimento do corpo, que para ela era res desafios para, em nosso cia, cada um de nós pode tentar fazer de recolhimento mais do que de sub- tempo e inspirados em Etty Hil- aquilo que Etty fez: cultivar e manter missão, era o ato de quem está como lesum, salvaguardarmos o jas- a própria “posição interior”, porque, que vencido pela beleza e, ao mesmo mim, símbolo de beleza e vida, sempre como naquela época, alguém tempo, sabe conservar em si o seu se- das poças, do ódio, da guerra e deve sobreviver para que “mais tarde gredo, e tornou-se o gesto sintetizador da intolerância? possa testemunhar que Deus viveu de toda a sua fé. Um gesto que, depois, também nessa época”; e cada pessoa Beatrice Iacopini – Aqui, quero se fez até mesmo interior, a tal ponto de fé deveria se fazer a pergunta que evidenciar principalmente a realiza- que, mais tarde, ela escreveu: “Nos ela se fez: “Por que eu não deveria ser ção em si da unidade que se cumpriu momentos mais inesperados, alguém essa testemunha?”. em Etty: a moça saiu do caos e do de- se ajoelha de repente em um cantinho sespero quando encontrou o centro “Eu gostaria tanto de sobreviver para do meu ser. Às vezes, enquanto estou de si e, então, todas as contradições, transmitir a esta nova era toda a huma- caminhando pela rua ou estou bem no as divisões foram sanadas, porque nidade que conservo em mim, apesar meio de uma conversa. E esse alguém tudo ganhava luz e vida da poderosa dos fatos de que sou testemunha todos que se ajoelha lá sou eu”. autoridade central que reinava nela. os dias. Além disso, o único modo que Então, com ela, poderíamos aprender temos para preparar o tempo novo é a não distinguir e opor – como fize- prepará-lo desde agora em nós mes- IHU On-Line – Recentemen- mos durante séculos e tendemos a fa- mos”: também essas palavras, tão altas, te, a senhora editou uma nova zer sempre – pares de opostos, como podem e devem inspirar cada leitor do publicação acerca dos escritos compromisso consigo mesmo/com- diário, contra todo desencorajamento de Etty Hillesum, Il gelsomino e promisso com os outros, vida ativa/ e contra toda tentação de abdicar das la pozzanghera. Testi dal Diario e vida contemplativa, trabalhar na inte- nossas responsabilidades.■

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Etty Hillesum canta a alegria contra o ódio Faustino Teixeira observa na mística a arte de encontrar o Deus interior capaz de fortalecer contra todo o mal que a cerca, sem ceder em nada a sentimentos malignos e ainda irradiar amor

João Vitor Santos

ma das faculdades mais im- estava para ela dentro do ‘poço’ pro- pressionantes em Etty Hille- fundo de seu mundo interior, mas sum é a de se manter firme, interditado por camadas de pedras e Uresistente em meio ao horror que é detritos, que somente através de um o de estar sufocada em um campo trabalho contínuo poderia ser desen- de concentração. Mas ela ainda vai terrado novamente”, descreve. além, não se resigna apenas a respi- Assim, é por Deus que Etty chega rar para se manter de pé, quer pul- ao amor. “Os dois sentimentos fun- sar, e mais: quer nutrir uma paixão damentais que delineavam o per- alegre em meio à tristeza. “Com to- curso espiritual de Etty foram Deus das as condições para dizer o con- e o Amor”, acrescenta Faustino. São trário, Etty rechaça em sua reflexão sentimentos que a fazem ver o outro qualquer possibilidade de adesão 34 e crer que há nele uma potência de ao ódio”, destaca Faustino Teixeira, resistência alegre. “O amor ao próxi- teólogo e professor na Universidade mo era um desdobramento natural de de Juiz de Fora. “Abrir espaços para sua experiência de Deus”, sintetiza. sentimentos de vingança era para ela ampliar a dinâmica da dor e do sofri- Faustino Teixeira é professor e mento”, avalia. É por isso, segundo o pesquisador do Programa de Pós- professor, que ela vai por outra via. Graduação em Ciência da Religião “A grande lição é a da resistência e da Universidade Federal de Juiz de alegria. Vejo como um de seus lega- Fora, Minas Gerais - PPCIR-UFJF. É dos mais importantes, o desafio de doutor e pós-doutor em Teologia pela alargar sempre mais os espaços de Pontifícia Universidade Gregoriana, alegria e paz nos caminhos de nosso de Roma. Entre suas obras publica- tempo”, aponta. das, destacamos Caminhos da mística Na entrevista a seguir, concedida (São Paulo: Paulinas, 2018), Em que por e-mail à IHU On-Line, Faustino Creio Eu (São Paulo: Terceira Via, detalha como a jovem judia vai se 2017) e Finitude e Mistério. Mística e fortalecer para seguir adiante e levar Literatura Moderna (Rio de Janeiro: a esperança em tempos sombrios. Mauad, 2014). Também organizou, “Com seu finíssimo olho espiritual, entre outros, Nas teias da delicadeza Etty era capaz de amar a todos, sem (São Paulo: Paulinas, 2006), As reli- pensar em reciprocidade. Esse amor giões no Brasil: continuidades e rup- estava firmado em seu mundo inte- turas (Petrópolis: Vozes, 2006), este rior e irradiava como perfume”, anali- em parceria com Renata Menezes, e sa. E é também nesse mundo interior As orações da humanidade (Petró- que ela encontra Deus. Afinal, “Deus, polis: Vozes, 2018), em parceria com para Etty, consistia na ‘parte melhor Volney Berkenbrock. e mais profunda’ de si mesma”. “Deus Confira a entrevista.

15 DE ABRIL | 2019 REVISTA IHU ON-LINE

“Diferentemente dos místicos tradicionais, Etty foi alguém que viveu sua experiência de Deus na dinâmica ordinária do tempo”

IHU On-Line – Quem é Etty formação acadêmica não se mos- menina que não sabia ajoelhar-se2. Hillesum? Qual sua importân- trou assim excepcional. Voltou-se IHU On-Line – No que consis- cia no universo místico? para o Direito, com estudos em te a mística dessa jovem? O que Amsterdã. Encontrou guarida na Faustino Teixeira – Ela talvez a difere de místicas que, como casa de Hendrik (Han) J. Wegerif, seja uma das mais impressionantes Teresa de Ávila3, encontram um viúvo com o qual Etty vai se re- e singulares místicas do século XX. seu “Castelo Interior” através lacionar posteriormente. Permane- Era holandesa. Ela nasceu em Mi- da oração? ceu em Amsterdã até junho de 1943, ddelburg de uma família de judeus quando então foi encaminhada para Faustino Teixeira – Foi uma não praticantes no dia 5 de janeiro o campo de concentração de Wes- mística singular e original. Diferen- de 1914. O seu pai, Levie Hillesum, terbork, no nordeste da Holanda, temente dos místicos tradicionais, era professor de línguas clássicas criado em 1939 pelo governo holan- Etty foi alguém que viveu sua expe- e vivia em Middelburg desde 1911. dês para abrigar os refugiados ju- riência de Deus na dinâmica ordiná- Estudou línguas clássicas na Uni- deus. Durante sua formação univer- ria do tempo, com suas vicissitudes, 35 versidade de Amsterdã, coroando sitária em Amsterdã, Etty conviveu dramas e contradições. Foi uma mís- sua carreira com um doutorado em num clima estudantil de esquerda e tica “anticonvencional”. Tinha como 1908. Sua mãe, Rebeca Bernstein, antifascista, com empenho político traço peculiar uma vida fora do pa- era russa. Os pais se casaram em militante, mesmo não pertencendo drão. Com 27 anos, relacionou-se dezembro de 1912 e tiveram três a nenhum partido político. Estudou simultaneamente com dois homens, filhos: Etty, Jaap e Mischa. Os dois ainda línguas eslavas em Amsterdã o viúvo Han Wegerif4 e o terapeuta meninos tinham formações distin- e Leiden, um trabalho interrompi- dela, Julius Spier5. Viveu também tas. O primeiro, Jaap, formou-se do em razão da intervenção bélica em medicina. Era muito inteligente alemã na Holanda. Chegou, porém 2 Etty Hillesum. Diario. Edizione integrale. Milano: Adel- phi, 2012, p. 794. Utilizei também a tradução portuguesa. mas psicologicamente frágil, ten- a concluir sua formação em língua Etty Hillesum. Diario 1941-1943. 3 ed. Lisboa: Assírio & do-se internado diversas vezes em Alvim, 2009. (Nota do entrevistado) e literatura russa, tendo ensinado a 3 Teresa de Ávila (1515-1582): freira carmelita espanhola instituições psiquiátricas. O outro língua numa Universidade popular nascida em Ávila, Castela, famosa reformadora da ordem das Carmelitas. Canonizada por Gregório XV (1622), é fes- irmão, Mischa, tinha um grande ta- de Amsterdã. Curioso destacar que tejada na Espanha em 27 de agosto, e no resto do mundo lento musical. Tornou-se pianista. em 15 de outubro. Foi a primeira mulher a receber o título quando ela foi deportada para Aus- de doutora da igreja, por decreto de Paulo VI (1970). Entre Mas como seu irmão, tinha proble- chwitz, onde morreu, tinha levado seus livros citam-se Libro de su vida (1601), Libro de las fundaciones (1610), Camino de la perfección (1583) e Cas- mas psiquiátricos que o acompa- consigo uma Bíblia e um livro de tillo interior ou Libro de las siete moradas (1588). Escreveu nharam por toda vida. também poemas, dos quais restam 31 deles, e enorme gramática russa. correspondência, com 458 cartas autenticadas. Sobre Te- resa, confira Teresa – A Santa Apaixonada, (Rio de Janeiro: Etty, como os outros membros de Hoje, Etty vem reconhecida por Objetiva, 2005), de autoria de Rosa Amanda Strausz; Obras completas (São Paulo: Loyola, 1995) e Santa Teresa de Je- sua família, não frequentava a sina- todos estudiosos como uma mística sus – “Livro da vida” (4ª ed., São Paulo: Ed. Paulus, 1983). A goga. Isso significa que a presença singular. O processo de seu cresci- edição 460 da revista IHU On-Line, sob o título A mística nupcial. Teresa de Ávila e Thomas Merton, dois centená- religiosa explícita era rarefeita em mento interior foi, porém, progres- rios, analisa o legado de Merton. Confira em https://goo. gl/jOlXOi. (Nota da IHU On-Line) sua vida, não estando habituada à sivo, com uma dinâmica vital que 4 Han Wegerif: contador, viúvo, pai de quatro filhos e prática religiosa. Deus era “pouco driblou a inquietude que dominava dono de uma casa que abriga outras pessoas. Etty Hille- sum acaba indo viver na casa dele, torna-se sua governan- mais que um sentimento de algo o seu mundo interior. E vários fato- te e tem uma relação com ele, ainda antes de conhecer Julius Spier. (Nota da IHU On-Line) que preside a natureza e tudo o que res contribuíram para isso, entre os 5 Julius Spier (1887-1942): psicólogo e quirologista judeu existe”1. Etty passou sua juventude quais a presença do terapeuta e qui- alemão. Foi o primeiro gerente de banco do Beer, Son- dheimer & Co, mas em 1925 muda sua vida e funda a em Middelburg. Em sua primeira romancista Julius Spier (1887-1942) Iris Edition. Segue um treinamento em canto clássico e vai para Zurique conhecer Carl Gustav Jung. Entra em análise em sua vida, a partir do início de fe- e treina com ele por dois anos. Jung pediu-lhe que fizesse 1 Etty Hillesum. Il gelsomino e la pozzanghera. vereiro de 1941. Foi lindo esse pro- da “psicoquirologia” o seu trabalho, tendo em conta o seu Firenze: Le Lettere, 2018, p. 18 (a cura di Beatrice dom de ler nas linhas das mãos as aptidões e o caráter Iacopini). (Nota do entrevistado) cesso vital que mudou a vida desta do povo. Abriu em 1930 um escritório em Berlim, onde se

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o “trauma” de um aborto voluntá- cimento interior, muito favorecido na “parte melhor e mais profunda” rio, relatado em seu diário, em 8 de pela presença de Spier ao seu redor. de si mesma, aquela a quem chama- dezembro de 19416. O assunto será Sua juventude, como a de outros va Deus17. A jovem holandesa sentia- mencionado em seu diário, com dor, contemporâneos, foi marcada por se “eleita por Deus”, eleita para per- quando assinala a presença do “me- inquietude e impaciência, insegu- manecer atenta e viva num ambiente nino nunca nascido”. A leitura do rança e solidão. Relata em seu diário que se acentuava cada vez mais hos- diário indica que essa “carência” de que chegou em certa ocasião a pen- til e desumano. Dizia em seu diário, instinto materno se deve também à sar em suicídio11. Sofria também de em 12 de julho de 1942, numa de violência com que presenciou a reti- bulimia, mesmo durante o período suas mais lindas orações: rada forçada de seu irmão, Mischa, em que viveu em Westerbork12. Só de casa para uma de suas interna- aos poucos, num trabalho singular “Vou ajudar-te, Deus, a não me ções psiquiátricas. de “higiene espiritual” é que ela foi abandonares, apesar de eu não poder garantir nada com ante- encontrando o caminho da paz em Dizia no diário, impactada com cedência. Mas torna-se-me cada seu coração. Foi um intenso pro- a cena, que jamais portaria em seu vez mais claro o seguinte: que cesso de busca do domínio interior, ventre uma criança que poderia ser tu não nos podes ajudar, que de harmonização de todas as suas nós é que temos de te ajudar, e infeliz. Era o trauma dessa presença contradições e dificuldades13. Não ajudando-te, ajudamo-nos a nós do sofrimento psíquico na família7. foi um caminho fácil até encontrar a próprios. E esta é a única coisa Como mostrou a estudiosa Wanda que podemos preservar nestes intimidade com Deus14. Tomasi8, “nem a sua liberdade sexu- tempos, e também a única que al nem o aborto são obstáculos à sua importa: uma parte de ti em 18 relação com Deus, que prossegue e nós, Deus” . até se intensifica após estes aconte- O que vai presidir a vida de Etty, a cimentos”9. Distintamente de Teresa “Dizia no diário, partir de certo momento, é um co- de Ávila, bem domiciliada no catoli- lóquio ininterrupto com Deus, um cismo, Etty foi uma mística de gran- impactada com contínuo falar com ele, com alegria e de “liberdade do Espírito”, sem estar liberdade. Um passo fundamental de encerrada em nenhum recinto con- a cena, que 36 acolhida gratuita ou reconhecimen- fessional: “não pertence totalmente to de Deus em seu mundo interior. nem ao judaísmo nem ao cristianis- jamais portaria Falava sempre da necessidade de mo”10. Se podemos definir de alguma abrir caminhos para esse Mistério, forma sua santidade, o termo que em seu ventre deixar que ele aflorasse com seus melhor se adapta é o de uma santi- uma criança dons inusitados e benfazejos. Deus dade inter-religiosa. estava para ela dentro do “poço” que poderia profundo de seu mundo interior, mas interditado por camadas de pe- IHU On-Line – Como compre- ser infeliz” dras e detritos, que somente através ender o Deus de que Etty Hille- de um trabalho contínuo poderia ser sum fala? desenterrado novamente19. A experiência de Deus acompanha Faustino Teixeira – Antes de fa- É algo laborioso, que exige paciência, profundamente sua experiência de lar sobre Deus, é necessário indicar que se dá a cada dia, num processo de mergulho no mundo interior, de cui- os passos que marcaram o cenário abrir passagem à fonte original que dado com o “ponto virgem”, com o de sua vida interior. O que ocorreu habita o nosso mundo interior e que seu fundo interior, com a centelha em sua caminhada foi um rico e pa- aprendemos a nomear como Deus20. O florescente e verdejante, para uti- ciente processo pedagógico de cres- acesso a Deus, segundo sua visada, lizar uma expressão cara a Mestre só vem facultado pelo mergulho na Eckhart15. Como diz o místico ale- especializou em estabelecer diagnósticos médicos a par- vital “corrente subterrânea” que pre- tir da morfologia e linhas da mão, e desenvolver a partir mão, “aqui o fundo de Deus é o meu deles uma abordagem terapêutica inspirada no ensino side o mistério da vida. Essa “corren- fundo e o meu fundo é o fundo de junguiano. Depois de se divorciar de sua primeira esposa te” (stroom) “é a alma do mundo, o (com quem teve dois filhos, Ruth e Wolfgang), pelas per- Deus”16. Deus, para Etty, consistia seguições nazistas, ele emigra para Amsterdã, onde sua sentido e a força vital que, como uma irmã já reside. É ali que vai conhecer Etty Hillesum. (Nota da IHU On-Line) música de fundo, permeia e sustenta 6 Ibidem, p. 265. (Nota do entrevistado) 11 Etty Hillesum. Diario, p. 737 e 796. (Nota do entrevis- 7 Ibidem, 260. (Nota do entrevistado) tado) todo o criado: toda criatura humana 8 Wanda Tommasi: professora associada de história da 12 Etty Hillesum. Il gelsomino e la pozzanghera, p. 8 e Etty e a história mesma”21. Diz ainda em filosofia no Departamento de Ciências Humanas na Uni- Hillesum. Cartas 1941-1943. Lisboa: Assírio & Alvim, 2009, versidade de Verona, na Itália. Por muitos anos ela vem p. 199. A edição italiana: Lettere. Edizione integrale. Mila- pesquisando o horizonte da diferença sexual. Sua intenção no: Adelphi, 2013. (Nota do entrevistado) também é aumentar a contribuição de pensadoras femi- 13 Etty Hillesum. Diario, p. 687. (Nota do entrevistado) 17 Etty Hillesum. Diario, p. 141-142. Na edição portugue- ninas, especialmente no contexto contemporâneo. (Nota 14 Etty Hillesum. Il gelsomino e la pozzanghera, p. 92. sa, p. 251-252. (Nota do entrevistado) da IHU On-Line) (Nota do entrevistado) 18 Ibidem, p. 713. (Nota do entrevistado) 9 Wanda Tommasi. A liberdade do Espírito: Etty Hillesum, 15 Mestre Eckhart. Sermões alemães 1. Bragança Paulista/ 19 Etty Hillesum. Cartas, p. 112. (Nota do entrevistado) uma santidade nova. Concilium, v. 351, n. 3, 2013, p. 116. Petrópolis: São Francisco/Vozes, 2006, p. 50 (Sermão 2). 20 Etty Hillesum. Diario, p. 777. (Nota do entrevistado) (Nota do entrevistado) (Nota do entrevistado) 21 Etty Hillesum. Il gelsomino e la pozzanghera, p. 158. 10 Ibidem, p. 117. (Nota do entrevistado) 16 Ibidem, p. 67 (Sermão 5b). (Nota do entrevistado) (Nota do entrevistado)

15 DE ABRIL | 2019 REVISTA IHU ON-LINE seu diário, em 28 de setembro de Não te trago somente as minhas mística apaixonada pelo capítulo 13 1942: lágrimas e pressentimentos da primeira carta aos Coríntios, que temerosos, até te trago, nesta fala do hino à caridade: “Ainda que tempestuosa e parda manhã de “Creio que é justamente o medo eu falasse línguas, as dos homens domingo, jasmim perfumado. E que as pessoas têm de se esfor- e as dos anjos, seu eu não tivesse a çarem demais que lhes retira as hei-de trazer-te todas as flores suas melhores forças. Quando que encontre pelo caminho, meu caridade, seria como um bronze que uma pessoa, ao fim de um pro- Deus, e a sério que são muitas. soa ou como um címbalo que tine” (1 cesso longo e difícil que prosse- Hás-de ficar sinceramente tão Cor 13, 1)31. Etty tinha muita clareza gue diariamente, atingiu as fon- bem instalado em minha casa sobre a urgência da hospitalidade. tes primárias dentro de si, a que quanto é possível. E já ago- Acentuava a importância de “hospe- ra para te dar um exemplo ao eu agora desejo chamar Deus, dar o outro no espaço interior e dei- e quando uma pessoa trata de acaso: se eu estivesse encerra- xar que se expanda”, de buscar con- manter esse caminho até Deus da numa cela acanhada e uma aberto e livre de obstáculos – o nuvem passasse ao longo da mi- servar um lugar para ele, um lugar que acontece ‘trabalhando-se a nha janela gradeada, então eu de destaque, onde possa amadurecer si própria’ –, essa pessoa reno- iria trazer-te essa nuvem, meu e revelar sua potencialidade única32. va-se na fonte e então não ne- Deus, se pelo menos ainda tives- cessita de ter medo de oferecer se forças para isso”24. 22 forças a mais” . Etty sentia-se, verdadeiramente, Foi justamente bebendo nesta cor- nos braços de Deus, em seu acon- “A experiência rente subterrânea que Etty conse- chego misericordioso e hospitalei- guiu dar um significado novo à sua ro25. O mistério de sua resistência de Deus vida e firmar-se na resiliência es- encontrava também na presença de sencial. Anotava em seu diário, em amigos especiais, como Spier, Liesl e acompanha 17 de setembro de 1942: “Estou-te Werner26. Os dois sentimentos fun- profundamente grata, meu Deus, por tornares a mi- damentais que delineavam o per- nha vida tão bonita onde quer que eu curso espiritual de Etty foram Deus sua experiência esteja”23. Daí o toque peculiar de seu e o Amor. O amor ao próximo era mantra vital: “A vida é bela”. um desdobramento natural de sua de mergulho no 37 experiência de Deus27. Dizia com fre- quência que nossa tarefa no tempo mundo interior” IHU On-Line – E se o Deus é a de “aumentar a escolta de amor de Etty Hillesum reside no seu sobre esta terra”, evitando a todo interior, quais os desafios de o custo o acirramento do ódio. O IHU On-Line – A jovem judia encontrar a face de Deus no ou- amor, sim, é o valor essencial que ela é completamente desterrada tro? Como ela atualiza a ideia buscava deixar como herança para e condenada a viver o mun- de hospitalidade? os tempos futuros. do que lhe sufoca a liberda- de. Mas, ao mesmo tempo, ela Faustino Teixeira – A missão le- E assim o fez. Como num belo ges- mergulha em si mesma e alarga vada avante por Etty foi de não dei- to eucarístico, doou o seu corpo, par- seu espaço interior. Quais os xar escapar Deus, daí sua preocupa- tiu-o, para reparti-lo entre os seres desafios para apreender esses ção em agradá-lo de todas as formas humanos28. Etty estava movida pelo movimentos em Etty Hillesum? possíveis. Na bela oração de 12 de sentimento de amor universal, que Como é possível em tanta dor julho de 1942 dizia: envolvia alemães e holandeses, ju- ainda ser capaz de perceber um deus e não judeus29. Com seu finíssi- céu azul? “O jasmim nas traseiras da mi- mo olho espiritual, Etty era capaz de nha casa encontra-se agora amar a todos, sem pensar em reci- Faustino Teixeira – Dentre os completamente destruído pelas chuvas e temporais dos últimos procidade. Esse amor estava firmado diversos místicos que ajudaram a dias. As suas florzinhas bran- em seu mundo interior e irradiava delinear a vida espiritual de Etty cas boiam dispersas nas lama- como perfume. Dizia que o amor ao Hillesum, podemos indicar o poeta centas poças negras do telhado semelhante é como “um brilho ele- Rainer Maria Rilke33. São diversas raso da garagem. Mas, algures mentar que nos sustenta”30. Era uma vezes que ele aparece citado no seu em mim, esse jasmim continua

a florir sem impedimentos, tão 31 Ibidem, p. 98. (Nota do entrevistado) exuberante e delicado como 24 Etty Hillesum. Diario, p. 714-715. Na edição portugue- 32 Etty Hillesum. Diario, p. 416. E também: Etty Hillesum. sempre floriu. E espalha os odo- sa, p. 253. (Nota do entrevistado) Pagine mistiche. Milano: Ancora, 2007, p. 83. (Nota do en- 25 Ibidem, p. 711. (Nota do entrevistado) trevistado) res pela casa onde habitas, meu 26 Etty Hillesum. Il gelsomino e la pozzanghera, p. 16. 33 Rainer Maria Rilke, ou Rainer Maria von Rilke (1875- Deus. Como vês, trato bem de ti. (Nota do entrevistado) 1926): foi um poeta de língua alemã do século XX. Escre- 27 Beatrice Iacopini & Sabina Moser. Uno sguardo nuovo. veu também poemas em francês. Rilke fez seus estudos Il problema del male in Etty Hillesum e Simone Weil. Mila- nas universidades de Praga, Munique e Berlim. Em 1894 no: San Paolo, 2009, p. 117. (Nota do entrevistado) fez sua primeira publicação, uma coleção de versos de 22 Etty Hillesum. Diario, p. 777. Na edição portuguesa, p. 28 Etty Hillesum. Diario, p. 797. (Nota do entrevistado) amor, intitulada Vida e canções (Leben und Lieder). Não 310. (Nota do entrevistado) 29 Etty Hillesum. Cartas, p. 55. (Nota do entrevistado) exerceu nenhuma profissão, tendo vivido, sempre, à custa 23 Ibidem, p. 758. (Nota do entrevistado) 30 Ibidem, p. 190. (Nota do entrevistado) de amigas nobres. (Nota da IHU On-Line)

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diário34. Nas Cartas a um jovem po- descrever o bater do coração: eta, Rilke aconselha o aprendiz de tão lento e regular e tão suave poesia, Franz Kappus35, a “entrar quanto abafado, mas tão fiel, “O que vai como se nunca mais findasse, em si mesmo”, como condição es- e também tão bondoso e com- presidir a sencial de iniciação ao mundo des- passivo”38. sa arte. Igualmente nas Elegias de vida de Etty, a Duíno, Rilke assinala que “em parte Animada interiormente ela podia alguma o mundo existirá, senão in- dizer ao final de cada dia, a ple- partir de certo teriormente”36. nos pulmões, que a vida é bela, que “apesar de tudo é muito bela”39. A Etty adentra-se no mundo inte- cada momento que se seguia à sua momento, é rior e busca ouvir o canto da pro- submersão em si, retornava com a um colóquio fundidade, a escuta da paisagem de alegria essencial. Uma escuta lumi- si mesma. Diversas vezes utiliza a nosa que fazia repercutir e irradiar ininterrupto expressão hineinhorchen, ou seja, o o canto do amor e da esperança. Ti- prestar atenção dentro, que envolve nha também o hábito de se recolher com Deus, o mundo de si, dos outros e de Deus, no banheiro, numa esteira de fibra ou, em outras palavras, o canto das de coco, para fazer suas orações, ali um contínuo coisas. Ela seguia à risca o conselho tranquila como Buda40, e participar de reservar um momento especial e vitalmente de sua “hora quieta”, fa- falar com Ele, garantido para o devido tempo inte- zer sua “higiene da alma”41. Apren- rior, a hora de quietação (stille stun- deu a escutar o mundo da profun- com alegria de), o repousar em si mesma (ruhen didade, a estar atenta no aqui e no in sich). Ali naquele espaço interior agora, com as marcas do despoja- e liberdade” é que ela podia acessar com alegria a mento e da simplicidade. Era uma jovem mulher ensolarada. “corrente subterrânea da vida”, que Tinha dentro de si uma porção da aquece os dias e fornece o significa- Quanto mais equilibrada se sentia, eternidade. Dizia: “Os céus dentro do essencial da dinâmica existencial. tanto mais forte e solidificada para de mim são tão vastos como os que 38 Ali ela encontrou a força necessária enfrentar os desafios. Dizia em carta estão por cima de mim”44; ou ainda: para manter acesa a sua resistência ao seu terapeuta e amante Spier, tam- “Através de mim correm os largos contra a dor e a perseguição. Ela di- bém nomeado amorosamente como rios e situam-se as altas montanhas. zia em seu diário, em 12 de março de Tide: “Mesmo se estivesse numa cela E por detrás dos matagais do meu 1942: “Quando uma pessoa leva uma subterrânea, aquele pedacinho de desassossego e confusão estendem- vida interior, talvez nem haja assim céu se estenderia dentro de mim e o se as largas planícies do meu sossego tanta diferença entre estar fora ou meu coração voaria até ele como um e entrega. Todas as paisagens estão dentro dos muros de um campo”37. pássaro, e é por isto que tudo é assim dentro de mim”45. Tinha a viva cons- Com o olhar iluminado do mundo simples, extraordinariamente sim- 42 ciência de que a construção da paz interior ela era capaz de ver jardins ples e belo, e rico de significado” . interior repercutiria na paz univer- nas paisagens mais sombrias e ir- Seu desejo mais forte era o de viver sal46. Chegou a cunhar uma palavra, radiar o toque da alegria. Em pági- a simplicidade dos lírios do campo com base em Eckhart, Gelatenhaid, na de seu diário, em 30 de maio de e poder “tocar com a ponta dos de- que poderia ser definida como aban- 1942, afirmou: dos os contornos da época”, ou então ser como o pequeno pastor que guia dono fiducioso. “Num momento inesperado, suas ovelhas tocando alegremente a abandonada a mim própria – sua flauta e olhando o céu43. encontro-me de repente encos- IHU On-Line – Qual o papel de tada ao peito nu da Vida e os 38 Ibidem, p. 568. Na edição portuguesa, p. 187-188. Julius Spier nas descobertas de braços dela são muito macios (Nota do entrevistado) Etty Hillesum? A partir dessa e envolvem-me de modo muito 39 Ibidem, p. 414. (Nota do entrevistado) 40 Buda: é um título dado na religião budista àqueles relação, como “experiencia” o protetor, e nem sequer consigo que despertaram plenamente para a verdadeira natureza dos fenômenos e se puseram a divulgar tal redescoberta amor? aos demais seres. “A verdadeira natureza dos fenôme- 34Etty Hillesum. Diario, p. 363, 368-369, 450, 464,466,592- nos”, aqui, quer dizer o entendimento de que todos os Faustino Teixeira – Foi Julius 593, 730. (Nota do entrevistado) fenômenos são impermanentes, insatisfatórios e impes- 35 Franz Xaver Kappus (1883-1966): oficial militar aus- soais. Tornando-se consciente dessas características da Spier um dos personagens mais im- tríaco, jornalista, editor e escritor que escreveu poesias, realidade, seria possível viver de maneira plena, livre dos portantes na tessitura do mundo in- contos, romances e roteiros. Kappus é conhecido princi- condicionamentos mentais que causam a insatisfação, o palmente como o cadete da academia militar que escre- descontentamento, o sofrimento. O primeiro buda Sidarta terior de Etty Hillesum. O primeiro veu para o poeta austríaco Rainer Maria Rilke (1875-1926) Gautama. Foi um príncipe da região do atual Nepal que em uma série de cartas de 1902 a 1908 que foram reuni- se tornou professor espiritual, fundando o budismo. Na contato aconteceu em 3 de fevereiro das e publicadas no best-seller Letters to a Young Poet. maioria das tradições budistas, é considerado como o “Su- de 1941, quando ela o procurou para (Nota da IHU On-Line) premo Buda” de nossa era, Buda significando “o desperto”. 36 Rainer Maria Rilke. Cartas a um jovem poeta. 4 ed. São (Nota da IHU On-Line) Paulo: Globo, 2013, p. 22 e 33; Id. Elegias de Duíno. 6 ed. 41 Etty Hillesum. Il gelsomino e la pozzanghera, p. 12. São Paulo: Globo, 2013, p. 63 (sétima elegia). (Nota do (Nota do entrevistado) 44 Ibidem, p. 638. (Nota do entrevistado) entrevistado) 42 Etty Hillesum. Diario, p. 752. (Nota do entrevistado) 45 Ibidem, p. 792-793. (Nota do entrevistado) 37 Etty Hillesum. Diario, p. 413. (Nota do entrevistado) 43 Ibidem, p. 766. (Nota do entrevistado) 46 Ibidem, p. 778. (Nota do entrevistado)

15 DE ABRIL | 2019 REVISTA IHU ON-LINE fazer terapia. Era grande a diferença de Deus53. Foi também com Spier Rilke. Com ele, alguns conselhos es- de idade entre os dois: ele tinha 54 que Etty deu-se conta da centrali- senciais para o processo formativo, anos e ela 26. Era um judeu alemão dade do amor universal. Em carta que incidiu na sua redação, como os que veio para a Alemanha em razão a Spier, datada de 5 de agosto de traços da paciência e da humildade, da perseguição nazista. Incentivado 1941, reconhece que foi ele quem bem como uma porta de entrada sig- por Jung47, desenvolveu uma técnica ensinou a ela “que o amor por todas nificativa para adentrar-se nos mis- terapêutica que se utilizava da leitu- as coisas é mais belo do que o amor térios de Deus. De forma semelhante ra das formas e linhas das mãos para por uma só pessoa”54. Foi por incen- ao que ocorreu com Thomas Mer- abordar o tratamento e cura das tivo de Spier que Etty deu início à ton57, Rilke teve um lugar de desta- pessoas. Era um profissional compe- redação de seu diário. que na vida de Etty. Dizia no seu diá- tente, muito amado pelas mulheres, rio que ele é alguém que se leva junto com uma vida espiritual destacada48. a vida inteira, um marco referencial para a existência58. Assim ocorreu com Etty, que foi to- mada de encanto por ele. Em várias “Etty sentia-se páginas de seu diário relata o traço IHU On-Line – Etty Hillesum sedutor de sua personalidade, o fas- nos braços de fala em abrir o espaço interior cínio causado por ele. Dizia que dez todas as manhãs. Podemos as- minutos com ele valiam um dia in- Deus, em seu sociar essa perspectiva à ideia teiro. Em página de seu diário, em 9 cristã de que os valores evangé- de março de 1941, fala sobre ele: “Os aconchego licos devem ser vividos a cada seus olhos límpidos e puros, a gran- dia e em todos os atos, por mais de boca sensual, a corporalidade misericordioso insignificantes que possam pa- maciça, quase taurina, os movimen- recer? Por quê? tos livres e ligeiros como pluma”49. e hospitaleiro” Diante dele conseguia recuperar Faustino Teixeira – Foi também suas forças. um conselho dado por Spier a Etty no processo terapêutico, o de levar Ocorria também, na dinâmica te- IHU On-Line – De que forma ao coração aquilo que se encerra na 39 rapêutica, lutas corporais entre os o exercício da escrita contribui cabeça. Ou seja, o caminho de bus- dois, onde muitas vezes ela saía para a constituição de um ca- ca essencial do mundo interior e da exaurida50. Ao longo do processo, minho que leva ao conhecimen- prática da oração continuada. Acon- ela acabou apaixonando-se por ele. to e fortalecimento interior? selhou Etty a dedicar-se pelo menos Foi também uma relação que abriu Faustino Teixeira – O processo meia hora por dia à prática da me- novos caminhos espirituais na vida da escrita em Etty Hillesum ocor- ditação, e também a ajoelhar-se59. de Etty, com conselhos importan- reu como passo de seu tratamento Tudo isso fazia parte de um progra- tes dados por ele a ela em torno de terapêutico. Foi Spier quem, prova- ma de “higiene da alma”, mesmo re- sua formação espiritual, indicando velmente, a incentivou a começar a conhecendo que já antes Etty tinha autores que foram fundamentais escrever o seu diário55. Foi quando feito contato com a obra de Rilke, para o seu aprimoramento pessoal: então ela pôde expressar com sen- que também aconselha esse exercí- a leitura da Bíblia e de Agostinho51, timento vivo os traços de sua vida, cio interior. por exemplo52. seus temores, alegrias e esperan- É evidente a associação com a prática Etty assinala em seu diário que foi ças. Não há dúvida alguma sobre a cristã, cujos livros inspiradores foram ele, Spier, quem libertou suas forças importância desta arte de escrever também indicados para leitura de Etty, interiores e quem a ensinou a pro- na conformação do pensamento de como a Bíblia e Santo Agostinho. Aos nunciar com naturalidade o nome Etty, bem como de seu equilíbrio in- poucos, Etty foi acordada para o valor terior e de sua espiritualidade. Dizia, capital da oração, do ajoelhar-se, de 47 Carl Gustav Jung (1875-1961): psiquiatra suíço. Colega em página de seu diário, que não ti- de Freud, estudou medicina e elaborou estudos no campo se entregar humildemente ao Mistério nha acesso ao significado profundo da psicologia, discutindo os conceitos de introversão e ex- Maior. Dizia em página de seu diário troversão. (Nota da IHU On-Line) da dinâmica de sua escrita56. Mas 48 Etty Hillesum. Il gelsomino e la pozzanghera, p. 10. que queria ser “uma única, grande (Nota do entrevistado) certamente era algo que marcou e 60 49 Etty Hillesum. Diario, p. 31 e 599. (Nota do entrevis- oração. Uma única, grande paz” . Dizia tado) firmou o seu itinerário. 50 Ibidem, p. 42 e 71. (Nota do entrevistado) ainda: “Ainda me restam duas mãos 51 Agostinho de Hipona (354-430): conhecido como No processo de sua criação, deve- Santo Agostinho, foi um dos mais importantes teólo- gos e filósofos dos primeiros anos do cristianismo, cujas se destacar o influxo importante de obras foram muito influentes no desenvolvimento do 57 Veja Patrick Hart & Jonathan Montaldo. Merton na in- cristianismo e da filosofia ocidental. Escrevendo na era timidade. Sua vida em seus diários. Rio de Janeiro: Fisus, patrística, ele é amplamente considerado como sendo o 2001, p. 302. (Nota do entrevistado) mais importante dos padres da Igreja no Ocidente. Suas 53 Etty Hillesum. Diario, p. 752. (Nota do entrevistado) 58 Etty Hillesum. Diario, p. 368-369 e 592-593. (Nota do obras-primas são A cidade de Deus e Confissões. (Nota 54 Etty Hillesum. Cartas, p. 23. (Nota do entrevistado) entrevistado) da IHU On-Line) 55 Etty Hillesum. Diario, p. 22 (palavras do editor do diário: 59 Etty Hillesum. Il gelsomino e la pozzanghera, p. 11. 52 Etty Hillesum. Il gelsomino e la pozzanghera, p. 11. Klaas A.D. Smelik). (Nota do entrevistado) (Nota do entrevistado) (Nota do entrevistado) 56 Etty Hillesum. Diario, p. 452. (Nota do entrevistado) 60 Etty Hillesum. Diario, p. 786. (Nota do entrevistado)

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juntas e um joelho dobrado”, algo no desabrochar da espontaneidade. milhação. Naquele local, como assi- que aprendeu com dificuldade61. Dizia com razão a teóloga Wanda nalou em carta, “não se podia fazer Tommasi, a liberdade do Espírito é muito com palavras, e por vezes, Em momentos ainda mais som- o que caracteriza a mística de Etty uma mão sobre o ombro era dema- brios, quando os apuros se acirra- Hillesum. Ela trouxe consigo e ins- siado pesada”66. ram, dizia: “Há de haver sempre uma pirou para o mundo uma santidade nesga de céu visível em alguma parte Duras são suas palavras sobre as colada no tempo, aberta aos ventos e tanto espaço em meu redor, que condições vividas ali no campo de da espontaneidade, ancorada na cer- as minhas mãos sempre se poderão Westerbork67. Mas não se deixou teza da Presença de um Mistério que juntar em oração”62. Quanto mais o tomar pelo ódio, ao contrário, con- é sempre maior, e que não se confor- cerco se apertava no campo de Wes- tinuou celebrando a alegria da vida, ma exclusivamente a nenhum recin- terbork, mais significado alcançava num abandono fiducioso e arreba- to confessional. a oração na vida de Etty, formando tador ao Deus misericordioso. Com como que uma “cela monástica” pro- todas as condições para dizer o con- tetora, onde podia encontrar a paz63. trário, Etty rechaça em sua reflexão “O amor, qualquer possibilidade de adesão ao ódio. Abrir espaços para sentimen- IHU On-Line – A jovem judia sim, é o valor tos de vingança era para ela ampliar também fala em “respeitar as a dinâmica da dor e do sofrimento68. pausas”. No que consiste isso? essencial que Assinalou em carta de dezembro de E como difere a ideia de “pau- 1942: “Lá (em Westerbork), experi- sa” da de “paralisia” e “medo”? ela buscava mentei com vigor como cada átomo de ódio que se introduz neste mundo Faustino Teixeira – As pausas deixar como torna-o ainda menos acolhedor”69. foram sendo fundamentais na vida Etty, com seu exemplo e sua prática, espiritual de Etty, como já falei ante- herança para não nega a existência do mal, mas o riormente. Trata-se do cuidado com desarma, “subtraindo-o do poder de o mundo interior e com o repousar os tempos definir em última instância o que é a em si mesmo para poder escutar o 40 vida”70. Há que alargar, sim, os espa- canto das coisas. É nesses momentos futuros” ços e sentimentos de amor. de calma, tranquilidade e atenção que se consegue captar o rumor da IHU On-Line – Etty Hillesum corrente subterrânea da vida. manifesta claramente a potên- IHU On-Line – Na sua opi- Para que isso ocorra é necessá- cia do amor e da alegria, mas nião, qual a grande lição de rio todo um trabalho para vencer chega a refletir acerca de - sen Etty Hillesum? as barreiras do pequeno eu (kleine timentos contrários a esses, Faustino Teixeira – Para mim, ik). Essa dinâmica de quietação não como o ódio? a grande lição é a da resistência e significa, em hipótese alguma, em Faustino Teixeira – O amor é a alegria. Vejo como um de seus le- fuga do mundo ou temor da dinâ- chave de compreensão da espiritua- gados mais importantes o desafio mica do tempo, mas um processo de lidade de Etty Hillesum. Dizia com de alargar sempre mais os espaços “equilibração” interior para poder vigor em suas cartas e em seu diário de alegria e paz nos caminhos de adentrar-se no tempo e nas suas lu- que é tarefa nossa contribuir para nosso tempo. E também de acender tas com mais empenho e eficácia. É que a “escolta de amor” cresça so- sempre os meandros da resistência, o que também dizia Teresa de Ávila bre a terra. A seu ver, “cada migalha encontrando brechas para apontar em suas Moradas: “O amor ao pró- de ódio que se acrescenta ao ódio já caminhos alternativos em favor de ximo nunca desabrochará perfeita- exorbitante torna esse mundo ina- um mundo melhor. mente em nós se não brotar da raiz bitável e insustentável”64. Etty tinha do amor de Deus” (V M 3,9). Apesar de todas as opressões, ex- todos os ingredientes para deixar- clusões e marginalizações a que nós IHU On-Line – O que é a liber- se tomar pelo ódio ali no campo de humanos, e também as outras espé- dade em Etty Hillesum? concentração, em Westerbork. Ali cies companheiras, sofrem, faz-se viveu num pedacinho “terrivelmen- Faustino Teixeira – A liberda- necessário criar novos espaços de te triste e vergonhoso” da história de para ela é algo de essencial, que acolhida, cuidado, ternura e hospi- da humanidade65. Um motivo de vem coroar uma dinâmica de vida vergonha. Ali visualizou o potencial pautada pela gratuidade e pelo ple- de sofrimento que um ser humano é 66 Ibidem, p. 93. (Nota do entrevistado) 67 Etty Hillesum. Due lettere da Wesberbork. Roma: Srl, capaz de enfrentar, da dor e da hu- 2014. (Nota do entrevistado) 61 Etty Hillesum. Diario, p. 793. (Nota do entrevistado) 68 Etty Hillesum. Il gelsomino e la pozzanghera, p. 110. 62 Ibidem, p. 718. Na edição portuguesa, p. 256. (Nota (Nota do entrevistado) do entrevistado) 69 Ibidem, p. 147. (Nota do entrevistado) 63 Etty Hillesum. Il gelsomino e la pozzanghera, p. 20. 64 Etty Hillesum. Diario, p. 688. (Nota do entrevistado) 70 Beatrice Iacopini & Sabina Moser. Uno sguardo nuovo, (Nota do entrevistado) 65 Etty Hillesum. Cartas, p. 92. (Nota do entrevistado) p. 35 (citando P. King). (Nota do entrevistado)

15 DE ABRIL | 2019 REVISTA IHU ON-LINE talidade. São valores essenciais que te o medo e o desespero de tantos centro de si mesma. Sabia aceitar aprendemos com práticas como as companheiros e companheiras não com honradez os momentos “não de Etty Hillesum. Uma jovem pro- foi nada fácil. Tudo muito difícil. criativos” e mais vazios que às vezes vada, que em situações de extrema Apontava em seu diário – citando “distraíam” o seu coração, e tudo opressão conseguiu manter acesa a Mechanicus – que se sobrevivesse enfrentado com muito garbo e pa- chama da alegria e partiu cantando naqueles tempos difíceis, sairia mais ciência78. Sabia que tinha uma mis- para Auschwitz71. É um exemplo que madura, mas se morresse, também são essencial naquele campo de dor: deixa rastros na nossa memória e sairia mais madura e profunda73. “Desenterrar Deus no coração dos que nos anima a irradiar algo seme- atormentados”, resguardando neles lhante em nosso tempo sombrio. o sentido da própria dignidade”79, o desafio de despertar para a vida aquilo que já morreu nos vivos80. IHU On-Line – De que forma, “Com seu Desde aquela data central de sua inspirados na mística de Etty vida, em 3 de julho de 1942, com- Hillesum, podemos encarar finíssimo olho preendeu o plano dos alemães e os desafios de nosso tempo er- se deu conta da proximidade de guendo uma barreira interior espiritual, Etty sua morte81. Começa a falar so- para evitar que a apatia e o de- bre a morte com tranquilidade e a sânimo tomem conta de nosso era capaz de aceita em seu itinerário. Diz numa ser? Como, diante da afronta e carta: “A possibilidade da morte da intolerância, responder com amar a todos, é um dado tão absoluto na minha alegria e amor? sem pensar em vida, como se a morte, por assim Faustino Teixeira – Sem dúvi- dizer, a tivesse ampliado tanto da, esse é um desafio essencial. Am- reciprocidade” que o enfrentar e aceitar a morte, pliar o campo energético de nosso a destruição, qualquer espécie de mundo interior. Já dizia um grande destruição, passou a fazer parte humanista, “revolucionários tristes Tão duro ver a cada semana o desta vida”82. Mas foi adiante com só fazem uma triste revolução”. É trem partir levando seus amigos segurança e fé, pois sabia que tinha 41 cuidando de nosso mundo interior e para Auschwitz; tão difícil acompa- um destino a cumprir e que estava ajudando os nossos amigos a fortale- nhar o sofrimento de seus pais, e se amparada por Deus. Sabia como cerem o seu mundo, que poderemos maravilhar ao ver seu pai dizer que se colocar diante das circunstân- manter acesa a chama da esperan- estava pronto para suportar viver cias adversas, e de forma otimista. ça. Em nosso tempo, a doença mais o que tantos outros passaram an- Estava ali para poder testemunhar terrível e quantitativamente mais tes dele74. Tudo isso se explica pela que Deus viveu também naquele presente é a depressão. Exemplos e presença de um brilho incomum tempo83. Daí ser reconhecida no testemunhos como os experimenta- em seu coração, de potencialização campo de Westerbork como o “co- dos por Etty são alvissareiros. Daí a vital. Uma força dinamogênica que ração pensante”, que mantinha a importância de resgatar e alimentar a fazia manter acesa a alegria em chama da esperança sempre acesa. o seu fantástico legado. seu coração. Dizia numa clássica E concluo com um lindo pensa- carta que era fundamental manter mento tirado de seu diário: “Dá- “uma grande dose de sol dentro de me um pequeno verso por dia, meu IHU On-Line – Deseja acres- si” para evitar o choque psicológi- Deus. E se eu nem sempre o puder centar algo? co75. Permaneceu aquecida sob o copiar por não haver papel ou luz, mote central de sua vida: “A vida Faustino Teixeira – Gostaria então hei-de declamá-lo baixinho é bela!”, apesar de tudo. Em outra ainda de dizer algo a respeito de para o teu grande céu, à noite, mas passagem de seu diário, sublinha: como Etty Hillesum encarou a pro- dá-me um pequeno verso de vez em “Quero estar lá no meio daquilo a ximidade de sua morte. É impres- quando”84. Esse pode ser, sem dú- que as pessoas chamam ‘terrores’ e sionante a serenidade com que ela vida, o mantra de todos nós nesses ainda dizer que a vida é bela”76. enfrentou a dura situação no campo momentos sombrios em que tam- de Westerbork. O sofrimento esta- Sabia como enfrentar suas “de- bém vivemos.■ va presente. Ela dizia: “A cada dia pressões”, encarando-as como se envelhece dez anos”72. Tão difícil “pausas criativas”77, sempre com o 78 Etty Hillesum. Diario, p. 796. (Nota do entrevistado) verificar que diariamente morriam olhar voltado para o alto e para o 79 Etty Hillesum. Il gelsomino e la pozzanghera, p. 30. duas a três crianças naquele campo, (Nota do entrevistado) 80 Etty Hillesum. Diario, p. 755. (Nota do entrevistado) e ter que testemunhar continuamen- 73 Etty Hillesum. Cartas, p. 159. (Nota do entrevistado) 81 Beatrice Iacopini & Sabina Moser. Uno sguardo nuovo, 74 Ibidem, p. 171. (Nota do entrevistado) p. 39. (Nota do entrevistado) 75 Etty Hillesum. Due lettere da Wesberbork, p. 29. (Nota 82 Etty Hillesum. Cartas, p. 219. (Nota do entrevistado) 71 Etty Hillesum. Cartas, p. 238 e 261. (Nota do entrevis- do entrevistado) 83 Etty Hillesum. Diario, p. 738. (Nota do entrevistado) tado) 76 Etty Hillesum. Diario, p. 791. (Nota do entrevistado) 84 Ibidem, p. 773. Na edição portuguesa, p. 305. (Nota 72 Etty Hillesum. Diario, p. 715. (Nota do entrevistado) 77 Etty Hillesum. Cartas, p. 28-29. (Nota do entrevistado) do entrevistado)

EDIÇÃO 534 TEMA DE CAPA

A jovem mística que “desenterra Deus do fundo do coração dos outros” Mariana Ianelli reconstrói a Etty Hillesum livre de qualquer amarra, que é capaz de encontrar o divino até mesmo entre os perversos

João Vitor Santos

la não se sentia nas garras de exatamente nesses termos”, pontua. ninguém. A maneira como essa Ainda sobre sofrimento, Mariana ain- mulher age coincide com o que da destaca que “Etty insiste que ainda Eela sente, pensa e escreve.” É assim nos falta, aos ocidentais, aprender a que a poeta Mariana Ianelli define Etty sofrer, aprender a não repudiar a ex- Hillesum, a jovem holandesa que de- periência da dor, porque a energia que cide viver entre judeus no campo de alguém empenha em resistir ao sofri- concentração. Mas essa mulher não mento poderia estar sendo empenhada “escolhe apenas sentir a dor. Ela busca em algo mais fecundo”. Assim, deixa conhecer o seu interior. “Etty como que claro que não é necessário “remoer” o faz as pazes com seu próprio sofrimen- sofrimento, ainda mais em tempos de to, com a saúde fraca, as dores de ca- penúrias. A lição da jovem mística é a beça, um aborto, ela vai se unificando, de que “é urgente cultivar um espaço 42 criando um espaço interno de silêncio, de calma para restauração das nossas conseguindo um equilíbrio entre fora forças”. “A lição que Etty depreende da e dentro”, observa, na entrevista con- guerra, e que transcende circunstâncias cedida por e-mail à IHU On-Line. E, históricas, é uma lição espiritual”, sin- uma vez encontrando esse equilíbrio, tetiza Mariana. é dele que espalha o sorriso em meio a tanto desespero. “A partir daí, bem no Mariana Ianelli é poeta, ensaísta, meio do inferno de sua época, no meio cronista e crítica literária brasileira, de gente que se desesperava ou desistia com mestrado em Literatura e Crítica ou negociava a vida a qualquer preço, Literária pela Pontifícia Universidade ela pôde estender a mão para o outro”, Católica de São Paulo - PUC-SP. Entre completa. suas produções, destacam-se os livros de poesia Trajetória de antes (1999), Entretanto, se engana quem pensa que a jovem buscava dar alento apenas aos Duas chagas (2001), Passagens (2003) menores. O Deus que ela alcança através e Fazer silêncio (2005), finalista dos de cultivo de seu “eu interior” lhe gera prêmios Jabuti e Bravo! Prime de Cul- um brilho e esse brilho, segundo Ma- tura 2006, além de Almádena (2007), riana, a faz capaz de perceber Deus até finalista do prêmio Jabuti 2008, Tre- mesmo entre aqueles que promovem o va alvorada (2010) e O amor e depois sofrimento. “Era esse brilho que impor- (2012), todos pela editora Iluminuras. tava defender até as últimas, e fazia Etty Como ensaísta, é autora de Alberto Pu- observar com interesse todo tipo de gen- cheu por Mariana Ianelli (ed. UERJ, te, inclusive o comandante do campo, os 2013). Estreou na prosa com o livro de guardas, os dirigentes judeus, os judeus crônicas Breves anotações sobre um ti- alemães. Etty queria desenterrar Deus gre (ed. ardotempo, 2013). do fundo do coração dos outros, assim, Confira a entrevista.

15 DE ABRIL | 2019 REVISTA IHU ON-LINE

IHU On-Line – Entre tantas rava ou desistia ou negociava a vida ção”, frase que se tornou famosa. E, imagens fortes de Etty Hille- a qualquer preço, ela pôde estender finalmente, a última frase, do último sum está aquela em que, do a mão para o outro, pôde se dar para caderno dos diários de Etty de que trem que vai levá-la do campo o outro, viver o dia a dia num cam- se tem notícia (o caderno que Etty de concentração para a morte, po de trânsito e escrever sobre o que manteve no campo de Westerbork se ela joga para a amiga um cartão via sem submergir. Etty preparava a perdeu): “Gostaria de ser um bálsa- em que diz “deixamos o campo bagagem dos que eram convocados mo para muitas feridas”. Essa frase cantando”. O que essa passa- para o transporte e não submergia. está gravada num monumento à bei- gem revela sobre essa mulher? Depois foi ela mesma com seus pais ra do rio Ijssel, em Deventer, cidade e seu irmão, cantando. Isso revela onde Etty passou sua adolescência. Mariana Ianelli – Essa partida que sua alma continuava viva. Representa, espiritualmente, com de Etty Hillesum, cantando, é real- seu característico acento cristão, o mente impressionante, lembrando ápice da entrega amorosa de Etty, que, no mesmo trem, uns vagões à IHU On-Line – Como compre- sua máxima abertura para o outro. frente, iam seus pais e o irmão mais ender a dinâmica do silêncio e novo. Isso revela exatamente o que da escuta em Etty Hillesum? a própria Etty expressou nos seus IHU On-Line – De que amor cadernos, um ano antes: que ela não Mariana Ianelli – Há uma ima- fala Etty Hillesum em seus es- se sentia nas garras de ninguém. gem à qual Etty recorre frequente- critos? A maneira como essa mulher age mente em seus diários para descre- coincide com o que ela sente, pensa ver sua paisagem interior. Ela sega o Mariana Ianelli – Etty fala de e escreve. Quando passa a frequen- matagal que esconde a vista, depois um amor que é refúgio, confiança, tar, ainda voluntariamente, o campo capina a terra, até que pouco a pouco proteção. Ela começa a cultivar esse de Westerbork1, é como se estivesse o exercício da meditação vai abrindo amor rezando, o que exige dela a pronta para aceitar Auschwitz2 como uma planície imensa e impertur- quebra de um primeiro bloqueio, qualquer outra coisa terrível, porque bável dentro dela. Essa planície a porque até então, com 27 anos, Etty àquela altura já nada podia quebrá acompanha aonde ela vai, uma pai- nunca tinha pronunciado o nome de -la por dentro. Sua alma não estava sagem cultivada nos momentos de Deus, nem se ajoelhado. O que ela em jogo nessa partida. oração, meditação, silêncio. É nesse passa a cultivar, na medida em que 43 lugar que Etty se põe à escuta. esse exercício da oração vai ganhan- Para isso, Etty esteve se preparan- do espaço e importância, é uma par- do durante dois anos, lutando inte- Se pudéssemos recorrer a outra te de Deus dentro dela. riormente, e escrevendo sobre essa imagem, agora, para sintetizar a na- luta interna em seus diários, se lim- tureza espiritual dessa escuta, seria Quando, mais adiante, Etty con- pando do ódio, do rancor, do medo, aquela dos anjos de Wim Wenders3 segue canalizar esse amor para os cuidando da alma. Etty como que faz sobre os nossos ombros, ouvindo e gestos mais simples, é sua parte de as pazes com seu próprio sofrimento, sofrendo nossas angústias, nossos Deus vindo à tona, buscando a parte com a saúde fraca, as dores de cabe- traumas, nossas pequenas ternuras. de Deus que existe no outro. O amor ça, um aborto, ela vai se unificando, Etty se abre para essa compaixão pelo outro passa a ser uma extensão criando um espaço interno de silên- quase sobre-humana e vai em busca desse amor maior. Numa carta de cio, conseguindo um equilíbrio entre do que se passa no mais íntimo do agosto de 1943 à amiga Maria Tuin- fora e dentro. E então, a partir daí, outro. Numa das entradas dos di- zing4, Etty fala desse sentimento, ra- bem no meio do inferno de sua épo- ários, em 16 de setembro de 1942, dicalmente místico e poético ao mes- ca, no meio de gente que se desespe- percebemos bem essa dinâmica do mo tempo, quando diz que “o amor silêncio e da escuta numa espécie de pelo nosso semelhante é como um oração, que é dirigida, dessa vez, não brilho elementar que nos sustenta” 1 Campo de Westerbork: foi um campo de concentração situado a cerca de 15 km da vila de Westerbork, Países a Deus, mas aos homens que Etty e que o “nosso semelhante por si só Baixos, onde hoje é a Holanda. Este acampamento tinha observa em Westerbork, indo e vin- quase não tem nada a ver com isso”. sido iniciado pelas autoridades neerlandesas durante o verão de 1939, a fim de receber os refugiados provenien- do, sempre atarefados. Ela pede inti- Era esse brilho que importava de- tes de origem judaica na Alemanha. Os primeiros refugia- mamente para ser a guardiã da alma dos chegaram em Westerbork. Quando o exército alemão fender até as últimas, e fazia Etty invadiu a Holanda, havia 750 refugiados no acampamento. desses homens. Em 1 de julho de 1942, as autoridades alemãs tomaram o observar com interesse todo tipo de controle do acampamento. Westerbork se tornou oficial- mente um “campo de trânsito”, ou campo de passagem, Mais adiante, Etty formula o desejo gente, inclusive o comandante do antes do envio de judeus para outros locais, como Aus- místico de ser “o coração pensante campo, os guardas, os dirigentes ju- chwitz, na Polônia. (Nota da IHU On-Line) 2 Auschwitz-Birkenau: nome de um grupo de campos de todo um campo de concentra- deus, os judeus alemães. Etty queria de concentração localizados no sul da Polônia, símbolos do Holocausto perpetrado pelo nazismo. A partir de 1940, o governo alemão comandado por Hitler construiu vários 3 Ernst Wilhelm “Wim” Wenders (1945): cineasta, dra- 4 Maria Tuinzing: foi uma das melhores amigas de Etty. campos de concentração e um campo de extermínio nes- maturgo, fotógrafo e produtor alemão, além de uma das Foi ela que indicou Etty para trabalhar na casa de Han We- ta área, então na Polônia ocupada. Houve três campos mais importantes figuras do Novo Cinema Alemão. Des- gerif, um viúvo de quem ela foi uma espécie de governan- principais e 39 auxiliares. Como todos os outros campos de 1996, Wenders é presidente da Academia de Cinema ta, em Amsterdã. Antes de deixar Westerbork pela última de concentração, os campos de Auschwitz eram dirigidos Europeu em Berlim. Entre suas obras, destacamos Der vez, Etty deu a Maria seus diários que, por sua vez, pas- pela SS comandada por Heinrich Himmler. (Nota da IHU Himmel über Berlin (Asas do Desejo, de 1987). (Nota da sou os diários de Etty para Klaas Smelik e sua filha Jopie On-Line) IHU On-Line) (Johanna). (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 534 TEMA DE CAPA

desenterrar Deus do fundo do cora- coração a coração, que Etty inspira, a todos. Sem deixar de mencionar ção dos outros, assim, exatamente é sem dúvida uma das chaves para se a riqueza de leituras cruzadas que nesses termos. Achava que só indi- compreender a admiração e o entu- há nas cartas e nos diários, Mestre vidualmente, cada um trabalhando siasmo dos seus leitores. Eckhart10, Santo Agostinho11, Dos- por dentro esse refúgio comum, toievski12, Freud13, Jung14, Rilke15, Uma bibliografia atualizada, so- uma nova geração mais huma- mente em francês, já reúne mais de na poderia começar a ser gestada. quarenta títulos sobre Etty Hille- Quando as pessoas elas mesmas se sum, sem contar dezenas de artigos 10 Mestre Eckhart (1260-1327): nasceu em Hochheim, permitissem emanar algo além de em coletâneas e outros estudos. Os na Turíngia. Ingressando no convento dos dominicanos ressentimento, quando interrom- de Erfurt, estudou em Estrasburgo e em Colônia. Tornou- leitores de Etty são, de fato, amigos se mestre em Teologia e ensinou em Paris. Em sua obra, pessem o ciclo do ódio. Para Etty, está muito presente a unidade entre Deus e o homem, de Etty. entre o que consideramos sobrenatural e o que achamos não era Deus que devia acudir a hu- ser natural. É um pensamento holístico, pois para Eckhart manidade, mas o contrário. Outro aspecto a considerar é o devemos reconhecer Deus em nós, mas este caminho não é fácil. O homem deve se “exercitar nas obras, que são meio intelectualmente fecundo, em- seus frutos”, mas, ao mesmo tempo, “deve aprender a ser livre mesmo em meio às nossas obras”. Eckhart morreu bora psicologicamente difícil, em em 1327. Em 27 de março de 1329, foi dado ao público IHU On-Line – Etty Hillesum que essa mulher se criou, o talento a bula In agro dominico, através da qual o Papa João XXII condenou vinte e oito proposições do Mestre Eckhart. tem admiradores em todos os para o estudo das línguas (o pai, ju- Das vinte e oito, dezessete foram consideradas heréticas e onze, escabrosas e temerárias. Entre estas, estava a de campos, superando a ideia de deu holandês, foi diretor do liceu de que nos transformamos em Deus. Mas esta condenação fronteiras entre Oriente e Oci- Deventer), a presença da música (o papal justifica-se, na medida que as ideias de Eckhart ti- nham uma dimensão revolucionária. Elas foram acolhidas dente. Como observa essa gran- irmão mais novo era pianista e com- pelas camadas populares e burguesas, que interpretavam o apelo eckhartiano à interioridade da fé e à união divina de adesão dos leitores aos seus positor), a intimidade com a língua e como uma rebelião implícita à exterioridade “farisaica” de escritos? a literatura russas (a mãe era russa). uma hierarquia e de um clero moralmente decadente (pa- rece que a coisa nunca mudou muito mesmo). Sua heran- Além disso, o entorno sempre cheio Mariana Ianelli – Podemos pen- ça influenciou, entre outros, significativamente, Martinho de pessoas, todas muito diferentes, é Lutero. Sobre o tema Místicas, conferir tema de capa da sar a universalidade de Etty, e o en- IHU On-Line, edição 133. (Nota da IHU On-Line) outro aspecto igualmente relevante. 11 Agostinho de Hipona (354-430): conhecido como tusiasmo de seus leitores, sob vários Santo Agostinho, foi um dos mais importantes teólo- Em Amsterdã, Etty foi governanta aspectos. Do ponto de vista da lin- gos e filósofos dos primeiros anos do cristianismo, cujas na casa de Han Wegerif8, e ali con- obras foram muito influentes no desenvolvimento do guagem, a metáfora de um “coração cristianismo e da filosofia ocidental. Escrevendo na era vivia diariamente com uma família patrística, ele é amplamente considerado como sendo o 44 pensante” talvez seja o que melhor bastante heterogênea (a descrição a mais importante dos padres da Igreja no Ocidente. Suas simboliza o caráter universal dessa obras-primas são A cidade de Deus e Confissões. (Nota seguir é dela): uma alemã cristã, uma da IHU On-Line) interlocução, que não se dá (ou não 12 Fiódor Mikhailovich Dostoievski (1821-1881): um dos estudante judia, um pequeno-bur- maiores escritores russos e tido como um dos fundadores se basta) no plano das ideias, mas no guês social-democrata e um jovem do existencialismo. De sua vasta obra, destaca-se Crime e fundo de um coração. Essa lingua- castigo, O Idiota, Os Demônios e Os Irmãos Karamázov. Ao estudante cristão. Ela considerava autor, a IHU On-Line edição 195, de 11-9-2006, dedicou a gem, que irradia de um ponto cen- matéria de capa intitulada Dostoiévski. Pelos subterrâneos uma “tarefa” manter todos unidos, do ser humano, disponível em http://bit.ly/ihuon195. Con- tral, tem ressonância em diferentes ainda que os conflitos da época -va fira, também, as seguintes entrevistas sobre o autor russo: culturas, filosofias e religiões. Dostoiévski e Tolstoi: exacerbação e estranhamento, com zassem cada vez mais para dentro Aurora Bernardini, na edição 384, de 12-12-2011, dispo- 5 nível em https://goo.gl/xzfwFD; Polifonia atual: 130 anos Vale citar Karima Berger , e seu de casa. Depois, o convívio com o de Os Irmãos Karamazov, de Dostoiévski, na edição 288, livro Les Attentives6, de 2014. Esse 9 de 6-4-2009, disponível em https://goo.gl/VvqQSt; Dos- círculo de Julius Spier , o Conselho toiévski chorou com Hegel, entrevista com Lázló Földényi, ensaio tem o espírito de uma imensa Judaico e, por fim, o campo de Wes- edição nº 226, de 2-7-2007, disponível em https://goo.gl/ Uap1Sb. (Nota da IHU On-Line) carta de amor assinada por uma lei- terbork, onde literalmente um mun- 13 Sigmund Freud (1856-1939): neurologista nascido em tora de Etty. Argelina, muçulmana, do em miniatura se concentrava. Freiberg, Tchecoslováquia. É o fundador da psicanálise. In- teressou-se, inicialmente, pela histeria e, tendo como mé- Karima se identifica com a menina todo a hipnose, estudou pessoas que apresentavam esse Toda essa multidão de pessoas in- de uma fotografia (de um recorte de quadro. Mais tarde, interessado pelo inconsciente e pelas teressava a Etty, ela buscava ouvir pulsões, foi influenciado por Charcot e Leibniz, abando- jornal) que Etty mantém perto da nando a hipnose em favor da associação livre. Estes ele- mentos tornaram-se bases da psicanálise. Desenvolveu a sua escrivaninha, a quem ela chama ideia de que as pessoas são movidas pelo inconsciente. Freud, suas teorias e o tratamento com seus pacientes de “pequena marroquina” em seus 8 Han Wegerif: contador, viúvo, pai de quatro filhos e foram controversos na Viena do século 19 e continuam diários. Karima reconhece, também, dono de uma casa que abriga outras pessoas. Etty Hille- ainda muito debatidos. A edição 179 da IHU On-Line, de sum acaba indo viver na sua casa, torna-se sua governante 8-5-2006, dedicou-lhe o tema de capa sob o título Sig- no recinto de silêncio dentro de Etty, e tem uma relação com ele, ainda antes de conhecer Julius mund Freud. Mestre da suspeita, disponível em http://bit. 7 Spier. (Nota da IHU On-Line) ly/ihuon179. A edição 207, de 4-12-2006, tem como tema o mihrab das mesquitas. Essa ami- 9 Julius Spier (1887-1942 ): psicólogo e quirologista ju- de capa Freud e a religião, disponível em https://goo.gl/ zade profunda, inter-religiosa, de deu alemão. Foi o primeiro gerente de banco do Beer, wL1FIU. A edição 16 dos Cadernos IHU em formação tem Sondheimer & Co, mas em 1925 muda sua vida e funda como título Quer entender a modernidade? Freud explica, a Iris Edition. Seguiu um treinamento em canto clássico e disponível em http://bit.ly/ihuem16. (Nota da IHU On-Li- foi para Zurique conhecer Carl Gustav Jung. Ele entra em ne) 5 Karima Berger: escritora argelina, autora de vários ro- análise e treina com ele por dois anos. Jung pediu-lhe que 14 Carl Gustav Jung (1875-1961): psiquiatra suíço. Colega mances e ensaios que têm como tema culturas árabe e fizesse “psico-quirologia” o seu trabalho, tendo em conta de Freud, estudou medicina e elaborou estudos no campo francesa e o questionamento de suas raízes espirituais. o seu dom de ler nas linhas das suas mãos as aptidões e o da psicologia, discutindo os conceitos de introversão e ex- Entre suas obras, destacamos Éclats d›islam (2009) et Les caráter do povo. Abriu em 1930 um escritório em Berlim, troversão. (Nota da IHU On-Line) attentives. Un dialogue avec Etty Hillesum (2014). (Nota onde se especializou em estabelecer diagnósticos médi- 15 Rainer Maria Rilke por vezes também Rainer Maria da IHU On-Line) cos a partir da morfologia e linhas da mão, e desenvolver von Rilke (1875-1926): foi um poeta de língua alemã do 6 Albin Michel Littérature, 2014. (Nota da IHU On-Line) deles uma abordagem terapêutica inspirada no ensino século XX. Escreveu também poemas em francês. Rilke 7 Mirabe ou mirabi é um termo que designa um nicho junguiano. Depois de se divorciar de sua primeira esposa fez seus estudos nas universidades de Praga, Munique e em forma de abside numa mesquita. Tem como função (com quem ele teve dois filhos, Ruth e Wolfgang), pelas Berlim. Em 1894 fez sua primeira publicação, uma coleção indicar a direção da cidade de Meca, para qual os mu- perseguições nazistas, ele emigra para Amsterdã, onde de versos de amor, intitulados Vida e canções (Leben und çulmanos se orientam quando realizam as cinco orações sua irmã já reside. É lá que vai conhecer Etty Hillesum. Lieder). Não exerceu nenhuma profissão, tendo vivido, diárias. (Nota da IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line) sempre, à custa de amigas nobres. (Nota da IHU On-Line)

15 DE ABRIL | 2019 REVISTA IHU ON-LINE

Kierkegaard16, Nietzsche17, Tolstoi18, o trágico se mistura com o cômico, estetismo e buscar uma “sinceridade a Bíblia, e tantos outros. Tudo isso o maravilhoso com o banal, o ba- cristalina”, essa na qual toda mística, atesta uma amplitude de afinida- nal com o terrível, igual à vida. Por segundo ela, deveria se basear. des e conexões, uma empatia, uma exemplo, nem tudo era pesadelo no Há um episódio que ocorre com abertura, que possivelmente se des- dia a dia em Westerbork, havia tam- Etty em Westerbork que lembra o dobra hoje numa multidão de lei- bém momentos dignos de beleza, e ocorrido com Anna Akhmátova19 nas tores. Acrescentando, finalmente, Etty mostra isso maravilhosamente filas das prisões de Leningrado20. nosso contexto de época, de cora- nas suas cartas. Ela não se contenta Etty pergunta a alguém, na plata- ções aflitos, um contexto mais que com esquemas nem maniqueísmos, forma dos transportes, enquanto propício para receber o que Etty está sempre procurando ver mais observa os vagões serem carregados tem a nos dizer. fundo e sob outras perspectivas. Sua de gente: “Conseguirá alguma vez visão de mundo não é só feita de pa- alguém descrever ao mundo exterior lavras e pensamento, é também uma o que aconteceu aqui?” Porque seria IHU On-Line – Que narrativa visão de mundo que nasce da experi- preciso discernir, no meio daqueles Etty Hillesum tece do mundo ência do corpo e do sentimento, e aí trens e barracões lotados, as pesso- que a cerca? é que reside a potência da escrita de as, cada uma com suas contradições, Etty: ela coloca à prova a linguagem Mariana Ianelli – Etty tece uma seus sonhos, seus medos. e, para isso, seu meio de exercício é a narrativa cheia de nuances, em que própria vida, as pessoas à sua volta, sua época. 16 Soren Kierkegaard (1813-1855): filósofo existencialista IHU On-Line – Que grande dinamarquês. Alguns de seus livros foram publicados sob Ela tece realidades matizadas, por experiência reside e é relatada pseudônimos: Víctor Eremita, Johannes de Silentio, Cons- tantín Constantius, Johannes Climacus, Vigilius Haufnien- assim dizer, em que paisagens do nos diários de Etty Hillesum? sis, Nicolás Notabene, Hilarius Bogbinder, Frater Tacitur- espírito coexistem com paisagens nus e Anticlimacus. Filosoficamente, faz uma ponte entre a Mariana Ianelli – A experiên- filosofia de Hegel e o que viria a ser posteriormente o exis- humanas. Se o cerco vai se fechan- tencialismo. Boa parte de sua obra dedica-se à discussão cia de um destino construído desde de questões religiosas como a natureza da fé, a instituição do com interdições, confiscos, con- dentro, sem autoboicotes. A arquite- da igreja cristã, a ética cristã e a teologia. Autor de O Con- vocatórias, Etty continua a sentir ceito de Ironia (1841), Temor e Tremor (1843) e O Deses- tura de um espaço íntimo de silêncio pero Humano (1849). A respeito de Kierkegaard, confira a que respira um “ar não racionado” e entrevista Paulo e Kierkegaard, realizada com Álvaro Valls, desde onde a relação com o mundo e 45 da Unisinos, na edição 175, de 10-4-2006, da IHU On-Li- que o céu sobre ela é sem fronteiras. as pessoas se transforma. Ninguém ne, disponível em http://bit.ly/ihuon175. A edição 314 da Prisioneiro, para Etty, era o soldado IHU On-Line, de 9-11-2009, tem como tema de capa A nos pode fazer mal, Etty insiste em atualidade de Soren Kierkeggard, disponível em https:// para lá do arame farpado. O terrível goo.gl/kZW87Z. Leia, também, uma entrevista da edição dizer. Pode não restar mais nada, ela de sua época era Auschwitz, mas em 339 da IHU On-Line, de 16-8-2010, intitulada Kierkegaard continua a se sentir em casa debai- e Dogville: a desumanização do humano, concedida pelo outras circunstâncias, outra época, filósofo Fransmar Barreira Costa Lima, disponível em ht- xo do céu. O jasmineiro nos fundos tps://goo.gl/cr4qoE. (Nota da IHU On-Line) podia ser a Sibéria. Essa compreen- 17 Friedrich Nietzsche (1844-1900): filósofo alemão, da sua casa pode ser completamente são maior das coisas, de ver mudar a conhecido por seus conceitos além-do-homem, transva- destruído por um temporal, porque, loração dos valores, niilismo, vontade de poder e eterno roupagem, o cenário da história, sem retorno. Entre suas obras, figuram como as mais impor- em algum lugar dentro de Etty, esse tantes Assim falou Zaratustra (Rio de Janeiro: Civilização mudarem os sentimentos, alimenta- Brasileira, 1998), O anticristo (Lisboa: Guimarães, 1916) e A jasmineiro continua a dar flor. genealogia da moral (São Paulo: Centauro, 2004). Escreveu va em Etty o interesse pelas pessoas, até 1888, quando foi acometido por um colapso nervoso que afinal estão sempre a misturar, Portanto, é também a experiên- que nunca o abandonou até o dia de sua morte. A Nietzs- che, foi dedicado o tema de capa da edição número 127 nelas mesmas, o bem e o mal. cia de uma liberdade inviolável, da IHU On-Line, de 13-12-2004, intitulado Nietzsche: filó- sofo do martelo e do crepúsculo, disponível para down- que vai se fortalecendo ao longo load em http://bit.ly/Hl7xwP. A edição 15 dos Cadernos dos diários, transformando o âni- IHU em formação é intitulada O pensamento de Friedrich Nietzsche, e pode ser acessada em http://bit.ly/HdcqOB. Uma vida sem esquemas mo dessa mulher, desbloqueando-a Confira, também, a entrevista concedida por Ernildo Stein para certas palavras, como amor e à edição 328 da revista IHU On-Line, de 10-5-2010, dis- Sabendo que a vida não cabe em ponível em http://bit.ly/162F4rH, intitulada O biologismo Deus, que antes ela evitava por so- radical de Nietzsche não pode ser minimizado, na qual esquemas, ela procura um rosto hu- arem pretensiosas, até que passa a discute ideias de sua conferência A crítica de Heidegger mano no soldado, ou percebe, além ao biologismo de Nietzsche e a questão da biopolítica, vivê-las na prática. É também a ex- parte integrante do Ciclo de Estudos Filosofias da diferen- do ódio evidente dos nazistas, o ódio ça – Pré-evento do XI Simpósio Internacional IHU: O (des) periência de uma repotencialização governo biopolítico da vida humana. Na edição 330 da menos óbvio, mas igualmente des- dessas palavras, como amor e Deus, revista IHU On-Line, de 24-5-2010, leia a entrevista Niet- truidor, entre os seus. De maneira zsche, o pensamento trágico e a afirmação da totalidade num contexto que as mesmas pare- da existência, concedida pelo professor Oswaldo Giacoia que Etty está sempre a buscar o que e disponível em https://goo.gl/zuXC4n. Na edição 388, de cem perder sentido. 9-4-2012, leia a entrevista O amor fati como resposta à ela chama de uma nova linguagem tirania do sentido, com Danilo Bilate, disponível em http:// bit.ly/HzaJpJ. (Nota da IHU On-Line) para dar conta dessas nuances. Aqui- 18 Liev Tolstoi (1828-1910): escritor russo de grande in- lo que ela descreve como paisagem 19 Anna Akhmátova (1889-1966): pseudônimo de Anna fluência na literatura e na política do seu país, teve uma Andreevna Gorenko, foi uma das mais importantes poeti- importante influência no desenvolvimento do pensamen- do espírito ou vida interior é algo sas acmeístas russas. (Nota da IHU On-Line) to anarquista, concretamente, considera-se que era um que precisa se misturar à vida coti- 20 Cerco a Leningrado: foi um cerco militar à então ci- cristão libertário. Suas obras mais famosas são Guerra e dade de Leningrado (atualmente, São Petersburgo), na Paz, de 1865, onde ele descreve dezenas de diferentes diana, emanar do corpo e agir sobre então União Soviética (atualmente, Rússia), pelas tropas personagens durante a invasão napoleônica de 1812; e da Alemanha Nazista, Itália e Finlândia durante a Segunda Anna Karenina, de 1875, que traz a história de uma mulher a realidade. Quando a linguagem de Guerra Mundial. Durou cerca de 900 dias, de 8 de setem- presa nas convenções sociais e um proprietário de terras Etty se põe à prova desse modo, é bro de 1941 a 27 de janeiro de 1944. Foi um dos cercos (reflexo do próprio Tolstoi), que tenta melhorar a vida de mais longos e destrutivos da história das guerras. (Nota seus servos. (Nota da IHU On-Line) para abandonar qualquer espécie de da IHU On-Line)

EDIÇÃO 534 TEMA DE CAPA

Etty denomina Julius Spier, que ninos doentes. São “porções de eter- de beleza que coexistem com o hor- aparece citado logo nas primeiras li- nidade”, na pintura de Etty. ror. Se alguém não experimenta essa nhas dos diários, o “parteiro da sua outra duração, se alguém vai levado Tudo acontece no presente e é alma”, o que “desenterrou Deus do de cá para lá, de estímulo em estí- também atemporal. Naquele lugar, seu interior”. Os diários, justamente, mulo, a alma pode enfartar, como árido em tantos aspectos, a vida (ao todo onze cadernos preservados diz Byung-Chul Han23 em A socieda- continua cheia de sentido para Etty. entre 1941 e 1943) como que dão de do cansaço24, pensando nos nos- Nem tudo é melancolia e cansaço, o conta desse desabrochar da alma sos dias. Era contra esse colapso da sofrimento é um componente entre de Etty. Entre os escritores mais alma que Etty trabalhava dentro de outros, só um dos tons, de uma pai- citados (e são muitos), há um que si mesma e na sua relação com o ou- sagem riquíssima em matizes. Cada ela denomina seu mestre: Rainer tro, sempre buscando despertar para dia em Westerbork, para Etty, é uma Maria Rilke. Vale a pena lembrar a vida essa interioridade com a qual a vida. O que importa para ela é “cem importância de Rilke nessa jornada poesia, em geral, se comunica. por cento ser”, esteja onde estiver, espiritual de Etty, tanto quanto a de dure o tempo que durar. Podem ex- Julius Spier, porque o que os diários propriá-la de tudo, ela não se sente relatam é também a experiência ex- IHU On-Line – Qual a potên- expropriada. A semente de esperan- traliterária de uma poesia possível, cia de Etty Hillesum para se ça, nesse caso, depende de um novo hoje, agora. compreender e encarar os de- tempo ir se preparando, humana- safios de nosso mundo/tempo mente, dentro de cada um. com o amor e a alegria? IHU On-Line – Etty Hille- Mariana Ianelli – Etty nos faz sum faz da sua experiência em IHU On-Line – Num mundo ver uma dupla vida que todos leva- Westerbork, região próxima que não para, numa sociedade mos, mas de que nem todos se dão de onde hoje é a Holanda, a da informação e do estresse, conta: a vida ao redor, que a toda busca pela esperança. Quais como o silêncio e a poesia po- hora nos enreda em circunstâncias os desafios para compreender dem nos abrir caminhos para diferentes, e a vida que cada um vive essa mística que é capaz de ver a busca interior, daquilo que é em si mesmo, espiritualmente. Essas cor no cinza da dor? Como nu- 46 essencial? vidas coexistem, se comunicam, atu- trir a esperança em meio ao am juntas, e Etty dá expressão a esse desterro? Mariana Ianelli – O silêncio per- movimento, diga-se, nem sempre mite uma abertura, uma brecha para Mariana Ianelli – Cento e qua- harmonioso. Quando por fora tudo sentir uma outra duração, um outro renta anos antes de Etty frequentar desmorona e o que está em jogo é o ritmo, que não se afina com essa vida a província de Drenthe, onde fica que alguém tem por dentro, é então alucinada de estímulos por minuto, Westerbork, no norte da Holanda, que esta segunda vida é chamada a mas se afina com a experiência da Van Gogh21 esteve ali, e, durante mostrar a sua força. poesia, no que nela há de profunda- três meses, pintou alguns quadros e mente pessoal. Porque Etty pratica- Etty insiste que ainda nos falta, aos aquarelas de uma paisagem verde- va essa abertura, porque exercitava ocidentais, aprender a sofrer, apren- terrosa, de horizonte aberto, com um cotidianamente a leitura de poesia der a não repudiar a experiência da grande céu predominando sobre os (entre outras leituras), em especial dor, porque a energia que alguém campos. O que Etty acrescenta a essa a poesia de Rilke, quando chegou o empenha em resistir ao sofrimen- paisagem, quando ela chega ali, pri- momento de ela deixar o conforto da to poderia estar sendo empenhada meiro como voluntária, depois como sua escrivaninha em Amsterdã para em algo mais fecundo. O que Etty interna do campo, é, por exemplo, a viver num dos barracões lotados de aponta, em outros termos, é que não surpresa de um tremoceiro-roxo, um Westerbork, esse refúgio de silêncio, há necessidade de enfatizarmos o pôr do sol que ela vê sentada num fortalecido na prática, foi também sofrimento, sobretudo em tempos caixote ou o retrato de um momento com ela. de sofrimento evidente, mas sim é de seu pai lendo Homero22 para me- urgente cultivar um espaço de calma Enquanto chegavam e partiam os trens para o Leste, Etty abria uma 21 Vincent Willem Van Gogh (1853-1890): pintor neer- 23 Byung-Chul Han (1959): pensador sul-coreano, teórico landês, considerado o maior de todos os tempos desde brecha naquele cotidiano cinzento cultural e professor da Universidade de Artes de Berlim. É Rembrandt, apesar de durante a sua vida ter sido mar- o autor de dezesseis livros, dos quais os mais recentes são ginalizado pela sociedade. Sua influência no expressio- para, de repente, olhar gaivotas. É tratados sobre o que ele chama de “sociedade do cansaço” nismo, fauvismo e abstracionismo foi notória e pode ser como se a poesia a ajudasse a ler me- (Müdigkeitsgesellschaft), uma “sociedade da transparên- reconhecida em variadas frentes da arte do século XX. Van cia” (Transparenzgesellschaft) e seu conceito neologista de Gogh foi pioneiro na ligação das tendências impressio- lhor a própria vida nessas filigranas shanzhai, que procura identificar modos de desconstrução nistas com as aspirações modernistas. Hoje em dia várias nas práticas contemporâneas do capitalismo chinês. O tra- das suas pinturas, entre elas Doze girassóis numa jarra, A balho atual de Han se concentra na transparência como casa amarela, Quarto em Arles, Os comedores de batas e com as suas grandiosas obras: A Ilíada e a Odisseia. Nada uma norma cultural criada pelas forças do mercado neo- Auto-retrato encontram-se entre os objetos mais caros do se sabe seguramente da sua existência; mas a crítica mo- liberal, que ele entende como o impulso insaciável para a mundo, sendo superados apenas por Pablo Picasso. Era derna inclina-se a crer que ele terá vivido no século VIII divulgação voluntária que beira o pornográfico. Segundo portador de epilepsia e também de distúrbio bipolar (psi- a.C., embora sem poder indicar onde nasceu nem confir- Han, os ditames da transparência impõem um sistema cose maníaco-depressiva). (Nota da IHU On-Line) mar a sua pobreza, cegueira e afã de viajante, caracteres totalitário de abertura à custa de outros valores sociais, 22 Homero: primeiro grande poeta grego, que teria vivi- que tradicionalmente lhe têm sido atribuídos. (Nota da como vergonha, sigilo e confiança. (Nota da IHU On-Line) do há cerca de 3500 anos e consagrado o gênero épico IHU On-Line) 24 Vozes, 2015. (Nota da IHU On-Line)

15 DE ABRIL | 2019 REVISTA IHU ON-LINE para restauração das nossas forças, Etty Hillesum. A lição que Etty de- IHU On-Line – Deseja acres- um refúgio de silêncio, um momento preende da guerra, e que transcen- centar algo? de repouso. de circunstâncias históricas, é uma Mariana Ianelli – Escrevi alguns Preparar a vida nova requer um lição espiritual. Cada um deve “re- artigos e crônicas sobre Etty Hillesum trabalho justamente em favor da tornar ao próprio centro” e trabalhar e o campo de Westerbork. Também um vida e do que dá sentido a ela. “A dentro de si a vida nova. ensaio, “O livro de horas de Etty Hille- dor é imperativa, mas não a dor / da sum”, publicado na coletânea Mística e dor”, diz um poema de Adriana Lis- Literatura (Fonte Editorial, 2015) or- 25 boa , e esses versos poderiam ser de ganizada pelo prof. Faustino Teixeira. cou também grandes obras para crianças, como Língua de trapos (Prêmio de autor revelação da FNLIJ) e Um rei 25 Adriana Lisboa: poeta e contista, autora, entre outros sem majestade. Seus livros foram traduzidos em mais de Tomo a liberdade de transcrever livros, dos poemas de Parte da Paisagem e Pequena mú- vinte países. Seus poemas e contos saíram em publicações sica, e dos romances Sinfonia em branco (Prêmio José Sa- como Modern Poetry in Translation, Granta, Asymptote e aqui dois poemas, também escritos ramago), Um beijo de colombina, Rakushisha, Azul-corvo revista Casa de las Américas. É mestra em literatura brasi- a partir da leitura das cartas e dos (um dos livros do ano do jornal inglês The Independent) leira e doutora em literatura comparada pela UERJ. (Nota e Hanói (um dos Livros do ano do jornal O Globo). Publi- da IHU On-Line) diários. ■

UMA FLOR ENTRE AS PÁGINAS E espalha os odores pela casa onde habitas, meu Deus.

Etty Hillesum

Olhai o jasmim como cresce

Entre o muro lamacento e o telhado,

Como continua a florir no meio dos campos gelados – 47 Nem o lírio dos Evangelhos

Nem a rosa branca de Rilke

Em todo o seu esplendor se vestiu como um deles.

[Do livro O amor e depois, Editora Iluminuras, 2012]

UMA ESTRELA NOS CAMPOS

Com Etty Hillesum seus crimes). o sorriso de Buda, um terreno baldio. E trabalhava mais: era uma estaca no mar, E já havia partido, muito antes Trabalhava. Trabalhava numa de partir, debaixo primavera fria era um pedaço de granito, era o próprio mundo de um céu sem palavras: era esperando ser como a lua, ser uma estrela nos campos, como um pasto: prestes a ser destruído. E tra- balhava mais: era a mulher já sem nome do uma vasta paisagem tranquila vagão número 12, – estava com os deportados, com os desaparecidos, na direção do Leste, cantando e desenterrava Deus de sob pe- com alegria. dras e cascalhos. estava com uma flor num re- tângulo de jardim. O caminho até o cais era feito entre soldados De minuto a minuto, forjando a [Do livro Tempo de voltar, Edi- calma em pessoa, ções Ardotempo, 2016] (todos tão pequenos por trás de

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O amor é central na mística feminina de Etty Hillesum Ceci Mariani observa como, pela entrega amorosa, a jovem chega a um Deus que habita nela e reconhece nele a face do outro

João Vitor Santos

e uma forma muito simplifi- mundo que recebe em seu corpo. Com cada, podemos afirmar que os seu seio aberto, deixa-se penetrar pela místicos, segundo a teóloga vida”, constata. Para ela, a jovem judia CeciD Maria Costa Baptista Mariani, são vive não só o encontro consigo. Parte de aqueles que por uma experiência subje- si, mas busca uma relação com o mun- tiva alcançam o divino. Mas esse não é do. “A mística de Etty Hillesum é uma apenas um divino celestial, distante. É mística relacional, ela chega a Deus na algo próximo, capaz de habitar em si e relação com o mundo e com o outro, li- nos que estão em nosso entorno, como dando com a realidade que recebe em si apreende Etty Hillesum na sua experi- e a inquieta. Não é apenas autoconheci- ência mística. “Essa mulher descobre, mento, um conhecimento de si para si no silêncio atento aos seus movimentos mesma. É um trabalho interior, um co- 48 interiores, os caminhos para o encontro nhecimento de si para o outro”, explica. com Deus que vai inspirar uma vivên- Ceci Maria Costa Baptista Ma- cia profunda do amor no cotidiano da riani é professora do Programa de vida”, destaca a professora. Sem pro- Pós-graduação em Ciências da Religião mover separações polares, Ceci destaca na Pontifícia Universidade Católica de que essa mística em Etty é ainda carre- Campinas e da faculdade de Teologia. gada de nuances femininas. “Quando Ainda integra a Sociedade de Teologia nos atemos aos testemunhos femininos, e Ciências da Religião - Soter. Possui percebemos que eles refletem uma for- bacharelado e Licenciatura em Filoso- ma própria de relação com a realidade”, fia pela Faculdade de Filosofia Nossa aponta. E explica: “o corpo feminino é Senhora de Medianeira, graduação em marcado por uma dinâmica centrípeta, Teologia Dogmática pela Pontifícia Fa- movimento de atração, sedução, dese- culdade de Teologia Nossa Senhora de jo de ser penetrada, tornar-se fecunda; Assunção, mestrado em Teologia Dog- diferente do corpo masculino, que tem mática pela Pontifícia Faculdade de uma dinâmica centrífuga que corres- Teologia Nossa Senhora de Assunção ponde ao movimento de penetração em e doutorado em Ciências da Religião relação ao objeto desejado”. pela Pontifícia Universidade Católica Assim, na entrevista concedida por de São Paulo. Entre suas publicações, e-mail à IHU On-Line, Ceci detalha em destacamos Mística e Teologia: Desa- que consistem esses movimentos de fios contemporâneos e contribuições. amor. “Os relatos místicos femininos Atualidade Teológica (PUCRJ, 2009, refletem, em geral, uma forma de en- v. 33) e Teologia e Arte: expressões de trega amorosa própria. Lendo os escri- transcendência, caminhos de renova- tos de Etty Hillesum, temos a sensação ção (São Paulo: Paulinas, 2011). de que ela vai trabalhando a cada dia o Confira a entrevista.

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IHU On-Line – Como o místico ria, essa mulher descobre, no silêncio liberdade. Em muitas narrativas con- e o feminino se revelam na ex- atento aos seus movimentos interio- sideradas místicas se observa uma re- periência de Etty Hillesum? res, os caminhos para o encontro com lação íntima entre o descentramento Deus que vai inspirar uma vivência e a liberdade. Dentro da tradição cris- Ceci Maria Costa Baptista Ma- profunda do amor no cotidiano da tã isso é muito presente. riani – Eu tenho como referência vida. A meditação, lemos no diário de para a compreensão do místico, a ca- Etty Hillesum, em registro de 8 de ju- Mística feminina racterização do fenômeno proposto nho de 1941, tem como objetivo con- por Velasco1. Esse autor vai distinguir verter o mais íntimo do próprio ser Esses traços que Velasco distingue, na experiência mística os seguintes em uma vasta planície vazia para que em princípio não oferecem elementos traços essenciais: (1) é uma experi- Deus e o amor possam entrar. Não o para falar de uma mística feminina, ência subjetiva que afeta o humano amor exclusivista que produz deleite pois são características essenciais que como um todo e tem lugar no centro indescritível e faz orgulhar-se do su- se percebe nos vários relatos místicos da pessoa; (2) é vivida de forma insu- blime que se sente, mas o amor que independentemente de gênero, atra- peravelmente obscura e sumamente se pode dedicar às pequenas coisas de vés de uma abordagem fenomenoló- certa; (3) é uma experiência passiva, cada dia4. gica. No entanto, quando nos atemos recebida como dom; (3) tem caráter aos testemunhos femininos, perce- extático, supõe descentramento; (4) bemos que eles refletem uma forma impõe uma forma específica de uso própria de relação com a realidade. das faculdades: a razão não atua ex- “Quando nos Do ponto de vista simbólico, esclarece plicando, compreendendo, mas escu- F. Dolto5, o corpo feminino é marcado tando, e a vontade não intervém do- atemos aos por uma dinâmica centrípeta, movi- minando, mas fazendo-se disponível mento de atração, sedução, desejo de e acolhendo; (5) impõe nesse sentido testemunhos ser penetrada, tornar-se fecunda; di- uma nova forma de ser que não se ferente do corpo masculino, que tem opera com base em possuir ou domi- femininos, uma dinâmica centrífuga que corres- nar, mas na disposição para entregar- percebemos ponde ao movimento de penetração se e acolher, é uma experiência que em relação ao objeto desejado6. Sendo 2 49 tem caráter oblativo . que eles o relato místico, expressão de uma É certo que encontramos no diário busca pessoal, ele carrega as marcas de Etty Hillesum (escritos entre refletem uma da corporeidade. os anos 1941 e 1943), esses traços Os relatos místicos femininos refle- apontados por Velasco. Tendo forma própria tem, em geral, uma forma de entrega inicialmente objetivos terapêuticos, amorosa própria. Lendo os escritos de esses cadernos vão narrar o processo de relação com Etty Hillesum, temos a sensação de que a leva ao encontro com Deus a realidade” que ela vai trabalhando a cada dia o a partir do mergulho ao fundo de mundo que recebe em seu corpo. Com si mesma. Aconselhada por Julius Saindo da dispersão em busca do seu seio aberto, deixa-se penetrar pela Spier3 – psicoquirólogo com quem centro no interior de si, para além vida. Isso é simbolicamente feminino. começa um acompanhamento – a das aparências, se descobre a paz que Percebemos, em sua narrativa, que ela realizar meia hora de meditação diá- vem do descentramento. No diário encontra o mistério de Deus – faz a ex- ela diz, o importante é deixar de lado periência da totalidade – trabalhando a vida que recebe em si, com suas ten- 1 Juan Martín Velasco (1934): teólogo espanhol, sacerdo- o pequeno ego na relação com o tra- te, doutor em filosofia de Leuven, lecionou no seminário balho e com as outras pessoas (posi- sões e seus conflitos. de Madrid (1960) e, desde 1970, é professor de fenome- nologia na história da religião na Pontifícia Universidade ção 337), passar do pessoal ao supra- O seu itinerário espiritual inclui tam- de Salamanca. Suas obras incluem El encuentro con Dios. Una interpretación personalista de la religión (1976) e Len- pessoal, o mais importante é o todo. bém a valorização da intuição, um guaje científico, mítico y religioso (1980). (Nota da IHU Dirigindo-se a si mesma, aconselha: On-Line) aspecto associado à experiência fe- 2 VELASCO, 1994, p. 79. (Nota da entrevistada) “Hás de permanecer distanciada de minina, no sentido que descreve, por 3 Julius Spier (1887-1942): psicólogo e quirologista judeu tudo aquilo que atrai teu interesse. 7 alemão. Foi o primeiro gerente de banco do Beer, Son- exemplo, Edith Stein , quando se refe- dheimer & Co, mas em 1925 muda sua vida e funda a Não deves aliar tuas forças interiores Iris Edition. Segue um treinamento em canto clássico e vai para Zurique conhecer Carl Gustav Jung. Entra em análise a nenhuma outra coisa, não deves in- 5 Françoise Dolto (1908-1988): foi uma pediatra e psica- e treina com ele por dois anos. Jung pediu-lhe que fizesse vestir nelas, mas reservá-las para ti nalista francesa. Foi nomeada por Michel Foucault como da “psicoquirologia” o seu trabalho, tendo em conta o seu um dos signatários proeminentes da petição francesa de dom de ler nas linhas das mãos as aptidões e o caráter mesma. (...) não deves desejar pos- 1977 contra as leis de idade de consentimento. (Nota da do povo. Abriu em 1930 um escritório em Berlim, onde se IHU On-Line) especializou em estabelecer diagnósticos médicos a par- suir o outro, não exijas dele nada” 6 cf. DOLTO, Françoise. No jogo do desejo. Rio de Janeiro: tir da morfologia e linhas da mão, e desenvolver a partir (posição 343, registro de junho de Zahar Editores, 1984, pp. 260-26. (Nota da entrevistada) deles uma abordagem terapêutica inspirada no ensino 7 Edith Theresa Hedwing Stein [Edith Stein] (1891-1942): junguiano. Depois de se divorciar de sua primeira esposa 1941). Isso proporciona uma grande religiosa alemã, a última de onze irmãos de uma família (com quem teve dois filhos, Ruth e Wolfgang), pelas per- judia que professava o judaísmo. Faleceu, aos 51 anos, seguições nazistas, ele emigra para Amsterdã, onde sua asfixiada numa câmara de gás, no campo de concentra- irmã já reside. É ali que vai conhecer Etty Hillesum. (Nota ção de Auschwitz, na Polônia. Foi professora de Filosofia, da IHU On-Line) 4 (HILLESUM, 2011, posição 308). (Nota da entrevistada) discípula de Edmund Husserl. Para conhecer mais sobre

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re a uma natureza própria da mulher minha pequena cabeça. E isso signi- que forma isso se reverte na re- voltada para o cuidado. Na mulher, fica ser ativa”. lação com o outro? ela afirma, existe uma tendência natu- Essa síntese a partir da vivência Ceci Maria Costa Baptista Ma- ral à totalidade e integridade em dois feminina da passividade que Etty riani – A mística de Etty Hillesum sentidos: ela própria gostaria de trans- Hillesum percebe tão bem, talvez é uma mística relacional, ela chega a formar-se num ser humano completo, seja uma das melhores contribuições Deus na relação com o mundo e com total e universalmente desenvolvido, que a mulher possa dar no resgate o outro, lidando com a realidade que além de querer ajudar também aos da possibilidade de uma atuação no recebe em si e a inquieta. Não é ape- outros a serem assim e de ter em vista mundo fundada na comunhão e não nas autoconhecimento, um conheci- sempre o ser humano completo quan- na dominação. mento de si para si mesma. É um tra- do lida com as pessoas8. No seu relato balho interior, um conhecimento de de 7 de outubro de 1941, Etty Hillesum si para o outro. Isso é extremamente escreve: “Não deves viver baseando- IHU On-Line – O que mais o atual e necessário em uma socieda- se unicamente em tua inteligência, encanta da experiência mística de narcisista que entende o conhe- mas em fontes mais profundas, mais de Etty Hillesum? Por quê? cimento de si como autoajuda para permanentes, se bem que deves estar um bem viver superficial e não como agradecida à tua inteligência como Ceci Maria Costa Baptista Ma- duro trabalho de aprofundamento. precioso instrumento para aprofun- riani – O que me toca nos escritos Sua tarefa espiritual é encontrar pa- dar os problemas que sua alma susci- de Etty Hillesum é a transparência. lavras apropriadas que deem sentido ta. Dito mais sobriamente: o que tudo Seu esforço sincero de falar sobre à vida em ebulição – em tensão, em isso quer dizer-me é que, provavel- si mesma, convicta do bem que as contradição – e oferecê-las (sabe que mente, deveria ter mais confiança em suas descobertas espirituais podem o que resolve em si, resolve para mil minha intuição” (posição 500). proporcionar a outras mulheres. O outras mulheres). trabalho de enfrentar-se a si mes- ma buscando palavras apropriadas: É certo que esse seu esforço de “Não há remédio: terei que resolver encontrar palavras apropriadas Dor e amor meus próprios problemas. Sempre que refletem o sentido das coisas 50 Olhando para o profundo de si, Etty tenho a sensação de que se os re- é a melhor dádiva, um grande Hillesum encontra as palavras apro- solvo para mim mesma, também ato de amor que alcança a todos, priadas para falar da passividade que os resolverei para outras mil mu- atravessa o tempo e chega a nós com também marca simbolicamente o fe- lheres. Por isso tenho que enfren- grande poder de atuar em novas minino por estar associada à atitude tar-me a mim mesma. Mas a vida é, sensibilidades. Escrever sobre a sua receptiva própria da corporeidade certamente, muito difícil, sobretudo relação com o mundo é sua missão feminina. Vale ler todo o dolorido re- quando não se encontram as pala- sagrada. Vale destacar a força do 9 gistro de 4 de setembro de 1941 onde vras apropriadas” . que escreve no registro de 26 de agosto de 1941: “Estou sumamente se encontram reflexões em que a dor Sua experiência espiritual é, de incomodada, com um estranho e de amor provocada pela consciência fato, eucarística. O relato de sua infernal desassossego que poderia de não poder ter o homem que ama dura busca pessoal não é apresenta- ser produtivo se soubesse o que fazer se mistura às dores experimentadas do como modelo de superação a ser com ele. Uma inquietude ‘criativa’. no enfrentamento dos desafios da seguido, mas como oferta de si. Vale Não do corpo – nem sequer uma realidade social conflituosa em que destacar esse belo extrato: “Sigo bus- dezena de apaixonadas noites de está imersa. No interior desse relato, cando fora a confirmação do que se amor poderia mitigá-la. É quase ela fala de passividade ativa, uma for- oculta em meu interior, sabendo que uma inquietude ‘sagrada’. ‘Oh, Deus, ma de expressão muito interessante só posso obter claridade empregan- toma-me em tuas grandes mãos e para descrever a síntese operada in- do minhas próprias palavras. Tenho converte-me em seu instrumento, ternamente entre atividade e passi- que acabar com essa preguiça, e em permite-me escrever...’”11. vidade: “Às vezes sinto que estou em particular com minhas inibições e um abrasador purgatório e que estou minhas inseguranças, se quero en- sendo forjada em outra coisa. Mas, contrar a mim mesma e, desse modo, IHU On-Line – Como a Moder- em quê? Somente posso ser passiva, encontrar aos demais. Devo obter nidade impacta na experiência deixar que me suceda. Mas também claridade e aprender a aceitar-me”10. sinto que todos os problemas de nos- mística? sa época e da humanidade em geral Ceci Maria Costa Baptista Ma- têm que ser combatidos dentro de IHU On-Line – Como Etty Hil- riani – Os registros de Etty Hille- lesum chega ao seu Deus e de sum podem ser considerados bons seu pensamento, consulte a edição 168 da revista IHU On exemplos de uma mística que se con- -Line, de 12-12-2005, sob o título Hannah Arendt, Simone Weil e Edith Stein. Três mulheres que marcaram o século 9 HILLESUM, 2011, posição 349, registro de 4 de agosto de XX. (Nota da IHU On-Line) 1941. (Nota da entrevistada) 8 STEIN, 1999, p. 282. (Nota da entrevistada) 10 Ibidem, posição349. (Nota da entrevistada) 11 posição 516. (Nota da entrevistada)

15 DE ABRIL | 2019 REVISTA IHU ON-LINE figurou com as transformações mo- tes e com as forças da natureza (...)”. nu em meio aos restos monstruosos dernas. Ela pode ser caracterizada provocados pelas absurdas ações do Também Moltmann15, resgatando a como uma mística dos olhos abertos, homem”17. tradição judaica do cristianismo, em para usar a expressão de Metz12. Uma sua obra A fonte da vida: O Espírito Em seu diário, ela expressa um mística que conta com o desenvolvi- Santo e a teologia da vida (2002), vai compromisso espiritual com a ação. mento de uma consciência histórica refletir sobre a santidade como teste- Quer ajudar a Deus, pois entende crítica adquirida na modernidade e munho de vida que implica liberdade que Deus só pode nos ajudar se nos que tem no seu centro a compaixão. e justiça. Deus santifica o povo, ele dispomos a ajudá-lo. E ajudar a Deus Uma hermenêutica histórico-crítica afirma, caminhando junto com ele e significa para ela, fundamentalmen- possibilita ver mais claramente que promovendo um aprendizado de li- te, proteger o que há de Deus em nós o olhar messiânico de Jesus que não berdade e justiça: “Como companhei- e nos outros. No registro de julho de se destina aos pecados dos outros, ro de Israel na caminhada e também 1942, anotação intitulada “Oração mas aos seus sofrimentos. Descobre- no sofrimento, Deus santifica o povo matutina de domingo”, podemos se com isso, no olhar de Jesus, “a que elegeu, fazendo dele a ‘luz das na- ler: “E tudo o que podemos fazer paixão por Deus como empatia pelo ções’, porque desse povo hão de vir o nesses dias e o que realmente im- sofrimento alheio, como mística prá- conhecimento de Deus, a liberdade e porta é proteger esse pouco de ti, oh tica de compaixão”13. a justiça, ou seja, a salvação do shalon Deus, em nós. (...) devemos defender Metz fala a partir do cristianismo, para todos os povos” (p. 54). Para os a sua morada em nosso interior até mas podemos observar esse espírito cristãos, ele acrescenta, santificação é o final”18. também em outras tradições. No juda- seguir a Jesus que vivenciou a contra- Podemos dizer que Etty Hillesum é ísmo, por exemplo, temos os escritos dição entre a vontade de santificação de fato contemplativa na ação, pois de Heschel14 que tem um sentido pro- divina e o sentido humano da santida- os seus registros vão mostrar um es- fético muito forte. No livro intitulado de como privilégio. forço cotidiano de concentrar-se no O Schabat. Seu significado para o que é fundamental, fazer com que homem moderno (2002), ele faz uma cada dia seja uma pedra a mais na crítica à civilização técnica que fez do Etty construção do futuro que se mos- trabalho lugar de exploração: “A des- tra tão incerto. No mesmo registro peito de nossos triunfos, caímos ví- 51 A mística expressa nos registros de 12 de julho de 1942, ela escreve: timas do trabalho de nossas mãos; é do diário de Etty Hillesum tem esse “Oh Deus, tenho a suficiente força como se as forças que conquistamos mesmo sentido de uma espirituali- para sofrer em grande escala, mas nos tenham conquistado”, ele escreve. dade engajada na realidade e mar- existem mais de mil preocupações Para ele, o sábado, dia de abstenção do cada pela compaixão e pelo cuidado. diárias que me assaltam sem aviso trabalho, é um dia de resistência, “dia Diante da dura realidade da Shoá que prévio como se fossem pulgas. Assim para estarmos conosco, um dia de se- toca a sua própria pele, Etty Hille- que, por hora me coço e me digo: ‘Já paração do vulgar, de independência sum reza a Deus, dizendo: “Pretendo recebi suficiente atenção neste dia, de obrigações externas, um dia em que enfrentar o seu mundo, oh Deus, não os muros protetores de um lugar nós deixamos de adorar ídolos da ci- fugir da realidade para os meus be- acolhedor ainda me rodeiam como vilização técnica, um dia que não usa- los sonhos – embora eu acredite que uma roupa gasta e familiar, há sufi- mos dinheiro, um dia de armistício na belos sonhos possam coexistir com ciente comida para hoje, e a cama, luta econômica com nossos semelhan- a realidade mais horrível – e conti- com lençóis brancos e cobertores nue a louvar sua criação, oh Deus, quentes, me aguarda essa noite, en- apesar de tudo.”16 Quer olhar tudo 12 Johann Baptist Metz (1928): teólogo católico alemão, tão não permitas que desperdice um professor de Teologia Fundamental, professor emérito na de frente, inclusive os piores delitos, átomo de minha força em mínimas Universidade de Münster, Alemanha. Aluno de Karl Rahner, desfiliou-se da teologia transcendental de Rahner, em tro- e “descobrir o pequeno ser humano preocupações materiais. Faça que ca de uma teologia fundamentada na prática. Metz está no centro de uma escola da teologia política que influenciou eu use cada minuto e o converta em fortemente a Teologia da Libertação. É um dos teólogos um dia proveitoso, uma pedra a mais alemães mais influentes no pós-Concílio Vaticano II. Seus 15 Jürgen Moltmann (1926): professor emérito de Teolo- pensamentos giram ao redor de atenção fundamental ao gia da Faculdade Evangélica da Universidade de Tübingen. nos cimentos sobre os quais cons- sofrimento de outros. As chaves de sua teologia é memó- Um dos mais importantes teólogos vivos da atualidade. 19 ria, solidariedade e narrativa. Dele publicamos uma entre- Foi um dos inspiradores da Teologia Política nos anos 1960 truir nosso futuro tão incerto’” . vista na 13ª edição, de 15-4-2002, disponível em http://bit. e influenciou a Teologia da Libertação. É autor de Teologia ly/ihuon13. (Nota da IHU On-Line) da Esperança (São Paulo: Herder, 1971) e Deus crucificado: 13 METZ, 2013, p. 19. (Nota da entrevistada) a cruz de Cristo como fundamento e crítica da teologia 14 Abraham Joshua Heschel (1907-1972): rabino nas- cristã (Petrópolis: Vozes, 1993), entre outros. Do autor, a cido na Polônia, de origem judaica hassídica (tinha entre Editora Unisinos publicou o livro A vinda de Deus. Escato- IHU On-Line – Podemos com- seus ascendentes várias lideranças ligadas ao movimen- logia cristã (São Leopoldo, 2003). Confira a entrevista de preender a mística como uma to hassídico do leste europeu). Estudou na Universidade Moltmann na IHU On-Line nº 94, de 29-3-2004 em http:// Humboldt, Alemanha, e viveu nos Estados Unidos. Este- bit.ly/ihuon94. Sobre o tema, Frei Luiz Carlos Susin deu crítica ao estado de opressão ve ao lado de Martin Luther King em manifestações pela uma entrevista na edição 72, de 25-8-2003, disponível em que se vive? Por quê? igualdade de direitos entre brancos e negros. É autor de http://bit.ly/ihuon72.A edição 23 dos Cadernos Teologia O Schabat: seu significado para o homem moderno (São Pública, de 26-9-2006, tem como título Da possibilidade Paulo: Editora Perspectiva, 2012), obra que, no contexto da de morte da Terra à afirmação da vida. A teologia ecológi- espiritualidade judaica, introduz a ideia de uma “arquitetu- ca de Jürgen Moltmann, de autoria de Paulo Sérgio Lopes ra da santidade”, surgida não no espaço, mas no tempo: o Gonçalves. (Nota da IHU On-Line) 17 posição 632. (Nota da entrevistada) judaísmo seria uma religião da temporalidade, com signi- 16 registro de 29 de maio de 1942, posição 635. (Nota da 18 posição 645. (Nota da entrevistada) ficações relacionadas à eternidade. (Nota da IHU On-Line) entrevistada) 19 posição 652. (Nota da entrevistada)

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Ceci Maria Costa Baptista Ma- sob o risco da escravidão. O místico ele afirma, sobre um fundo “de enfra- riani – Olhando para as narrativas descobre a quem pertence e a partir quecimento das capacidades organi- místicas, percebe-se muito bem a sua disso ordena a sua vida. zadoras das instituições religiosas, a dimensão crítica. Em vista de uma tendência forte é para a individuali- Nessa medida, é livre, resiste a toda aproximação mais íntima a Deus e zação do crer e do agir, para a afeti- forma de opressão. Uma espirituali- almejando um contato mais direto vização e a relativização das crenças” dade mística, como vemos nos relatos com o Absoluto, o místico, por um (p. 132). Faz parte da última fase do de Etty Hillesum já citados anterior- lado, vislumbra o essencial, central capitalismo de consumo a penetração mente, confere centralidade ao sujeito na existência. Rubem Alves20, um dos princípios do hiperconsumo no porque nutre a partir mesmo da fonte, teólogo brasileiro de quem eu gosto interior da alma religiosa. do Mistério Santo, do “De onde” e do muito, falecido em 2014, fala que na “Para Onde” de nossa existência. Por outro lado, observam-se ainda profundidade do humano habita uma posturas que recorrem a um outro grande ausência, um desejo imenso polo, vemos claramente o crescimen- que indica que não estamos limitados to do fundamentalismo religioso. a essa vivência imanente e que somos “A mística de Num contexto de relativismo pro- destinados à transcendência. movido pela multiplicação de ofertas Vislumbrando o absoluto, o místico Etty Hillesum religiosas, muitos vão buscar socorro capta, por outro lado, a relatividade em propostas em geral dogmáticas e de todas as coisas. Ora, o poder da é uma mística moralistas, que ofereçam respostas opressão está muitas vezes associado relacional, ela claras e seguras. Os caminhos da mís- à idolatria, ao fato de se atribuir valor tica em contraposição a essa onda de absoluto ao que é relativo, transfor- chega a Deus superficialidade ou ao enrijecimento mar o que é mediação em fim último. tradicionalista, é busca de liberdade Esse é o grande debate empreendido na relação com apoiada no encontro com esse Misté- por Paulo21 na Carta ao Romanos em rio Santo com o qual nos deparamos torno do tema da Lei. Absolutizar a o mundo e quando ousamos, na vida, empreen- lei religiosa ou moral, absolutizar um der mergulhos mais profundos, ins- 52 sistema político, absolutizar uma for- com o outro” pirados nos testemunhos desses que, ma de organização social etc. é estar como Etty Hillesum, trilharam esse itinerário e encontraram as palavras IHU On-Line – Qual o espa- apropriadas para comunicar a beleza 20 Rubem Azevedo Alves [Rubem Alves ] (1933-2014): ço da mística numa sociedade foi um psicanalista, educador, teólogo, escritor e pas- das suas descobertas espirituais. tor presbiteriano brasileiro. Foi autor de livros religiosos, pós-moderna? Que caminhos a educacionais, existenciais e infantis. É considerado um dos maiores pedagogos brasileiros de todos os tempos mística pode nos abrir para en- [carece de fontes], um dos fundadores da Teologia da Li- cararmos os desafios de nosso IHU On-Line – Deseja acres- bertação e intelectual polivalente nos debates sociais no Brasil. Foi professor da Universidade Estadual de Campinas tempo? centar algo? - Unicamp. (Nota da IHU On-Line) 21 Paulo de Tarso (3-66 d.C.): nascido em Tarso, na Cilí- cia, hoje Turquia, era originariamente chamado de Saulo. Ceci Maria Costa Baptista Ma- Ceci Maria Costa Baptista Ma- Entretanto, é mais conhecido como São Paulo, o Apóstolo. riani – Estamos caminhando sobre riani – Quero agradecer ao IHU por É considerado por muitos cristãos como o mais impor- tante discípulo de Jesus e, depois de Jesus, a figura mais os escombros da Modernidade e ven- ter me convidado a debruçar sobre a importante no desenvolvimento do Cristianismo nascen- do a religião transformada em um experiência espiritual dessa mulher te. Paulo de Tarso é um apóstolo diferente dos demais. Primeiro porque, ao contrário dos outros, não conheceu conjunto de quinquilharias e sendo nesse momento de celebração do Jesus pessoalmente. Antes de sua conversão, se dedicava à perseguição dos primeiros discípulos de Jesus na região oferecida como mercadoria barata. advento, de contemplação do Misté- de Jerusalém. Em uma dessas missões, quando se dirigia Lipovetsky22, em sua obra A felicida- rio da Encarnação. Seus escritos são a Damasco, teve uma visão de Jesus envolto numa gran- de luz e ficou cego. A visão foi recuperada após três dias de parodoxal (2007), descreve muito realmente inspiradores, frutos de in- por Ananias, que o batizou como cristão. A partir deste encontro, Paulo começou a pregar o Cristianismo. Ele era bem a espiritualidade do consumo. tensa convivência com essa Presença um homem culto, frequentou uma escola em Jerusalém, Na sua interpretação, o retorno do re- amorosa que armou sua tenda nesse fez carreira no Templo (era fariseu), onde foi sacerdote. Era educado em duas culturas: a grega e a judaica. Paulo ligioso é, na verdade, uma reconfigu- mundo. Espero que esse trabalho de fez muito pela difusão do Cristianismo entre os gentios e é considerado uma das principais fontes da doutrina da ração do cristianismo mais adequado vocês contribua muito para tornar Igreja. As suas Epístolas formam uma seção fundamental aos ideais de felicidade hedonista do essas belas palavras mais conhecidas do Novo Testamento. Afirma-se que foi ele quem verda- deiramente transformou o cristianismo em uma nova reli- capitalismo de consumo. Essa espi- entre nós. Lamentavelmente temos gião, superando a anterior condição de seita do Judaísmo. A IHU On-Line 175, de 10-4-2006, dedicou sua capa ao ritualidade de consumo se constitui, apenas uma edição em língua portu- tema Paulo de Tarso e a contemporaneidade, disponível guesa do livro Uma vida interrom- em http://bit.ly/ihuon175, assim como a edição 286, de 22-12-2008, Paulo de Tarso: a sua relevância atual, dispo- 22 Gilles Lipovetsky (1944): filósofo francês, professor pida, publicada em 1981 pela edito- nível em https://goo.gl/bKZcM0. Também são dedicadas de filosofia da Universidade de Grenoble, teórico da hi- ra Record e de muito difícil acesso. ao religioso a edição 32 dos Cadernos IHU em formação, permodernidade, autor dos livros A Era do Vazio, O luxo Paulo de Tarso desafia a Igreja de hoje a um novo sen- eterno, O império do efêmero, entre outros. Sobre o tema, Quem sabe, por conta de uma maior tido de realidade, disponível em http://bit.ly/ihuem32, confira a edição 105 da revista IHU On-Line, edição 105, de e a edição 55 dos Cadernos Teologia Pública, São Paulo 14-6-2004, intitulada Moda. Luxo. Uma sociedade cosmé- divulgação desses escritos, possa- contra as mulheres? Afirmação e declínio da mulher cristã tica, disponível para download em http://www.ihuonline. mos ganhar uma nova edição em no século I, disponível em http://bit.ly/ihuteo55. (Nota da unisinos.br/uploads/edicoes/1158262259.25pdf.pdf. (Nota IHU On-Line) da IHU On-Line) português aqui no Brasil. ■

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REFERÊNCIAS

OLTO, Françoise. No jogo do desejo. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1984. HILLESUM, Etty. Escritos esenciales. Introducción y edición: Annemarie S. Kidder. Santan- der: Sal Terrae, 2011. (Ebook) HESCHEL, Abraham Joschua. O Schabat. Seu significado para o homem moderno, São Paulo, Perspectiva, 2000. LIPOVETSKY, Gilles. A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade do hiperconsumo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. METZ, J. B. Mística de olhos abertos. São Paulo: Paulus, 2013. MOLTMANN. A fonte da vida: O Espírito Santo e a teologia da vida. São Paulo: Loyola (2002). STEIN, Edith. A mulher. Sua missão segundo a natureza e a graça. Bauru, SP: EDUSC, 1999. VELASCO, Juan Martin (org.). La experiência mística. Madrid: Ed. Trotta, 2004.

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A mística, uma vivência psíquica? Não, uma experiência espiritual A vivência mística de Etty Hillesum foi registrada em seu Diário, que nas primeiras anotações demonstra haver alguma coisa que a incomoda, relata Ricardo Fenati

João Vitor Santos | Edição: Patricia Fachin

s desafios para apreender a ex- experiência espiritual, e não de uma vi- periência mística de Etty Hille- vência psíquica”. sum “decorrem da natureza” da Etty Hillesum, menciona o professor, Oprópria experiência mística, que trans- é um exemplo de quem viveu a expe- cende a razão, pontua Ricardo Fenati. riência mística. “Se formos capazes de Segundo ele, numa cultura como a nos- acolher esse desconhecimento a que sa, “marcada pela onipresença do dis- pertencemos, é bem possível que isso curso”, aquelas “experiências que assi- nos aproxime de uma experiência reli- nalam os limites da linguagem tendem giosa. Esse foi o caso de Etty Hillesum. a ser ignoradas ou circular em meios Mas não se trata de um método. Ou muito restritos”. Em relação às experi- como diz ela: ‘A única coisa que uma ências místicas, frisa, “há uma dificul- pessoa pode fazer é pôr-se humilde- dade adicional, dada a deterioração que mente à disposição e deixar-se tornar 54 a expressão mística vem sofrendo”. Na um campo de batalha. As questões têm avaliação do professor, o “uso abusivo” de se albergar nalgum lado, precisam do termo mística tem diluído o seu sig- encontrar um lugar onde possam lutar nificado e é “preciso resgatar o seu uso e descansar, e nós, míseros humanos, mais apropriado que alude seja ao limi- devemos abrir nosso espaço interior a te da racionalidade, seja, sobretudo, à elas e não fugirmos’”. presença de uma Alteridade radical”. Na entrevista a seguir, concedida por Ricardo Fenati graduou-se e fez e-mail para a IHU On-Line, Fenati ex- mestrado em Filosofia na Universidade plica que a experiência mística “assina- Federal de Minas Gerais - UFMG, cuja la os limites do humano, numa civiliza- dissertação debruçou-se sobre o tema ção marcada pela ilusão da saciedade e O mal-estar na epistemologia, a partir da autossuficiência” e implica “um afas- de Gaston Bachelard. Fenati integra o tamento do eu”, “um mergulho no que Centro Loyola, de Belo Horizonte. o excede” e, portanto, “trata-se de uma Confira a entrevista.

IHU On-Line – O senhor situa do houvesse... algo a prender-me”. E nada, num primeiro momento, pare- a experiência de Etty Hillesum como a ela sobram argúcia intelec- ce aplacar. E ela espera que, com o entre o sofrimento e a sede de tual e experiência existencial, o que tempo, tudo isso que, por ora, per- infinito. Por quê? lhe parece faltar não é oferecido pela manece oculto, venha à tona. Tem, então, apenas 27 anos e espera mui- Ricardo Fenati – Se acompa- vida em torno, que ela experimenta to do futuro. nharmos o Diário de Etty Hillesum, intensamente. Ou seja, o mal-estar veremos, já nas primeiras anotações, a que ela se refere excede os recur- o sentimento de que há alguma coisa sos disponíveis no meio à sua volta, IHU On-Line – Quais os maio- que a incomoda, alguma coisa a ser alude a alguma coisa ainda não no- res desafios para apreender a enfrentada, ainda que não se saiba meada, mas que, à maneira de uma experiência mística de Etty Hil- exatamente do que se trata. É ela ausência, permanece presente. Mais lesum? quem diz que “há algo que continua do que sofrimento, talvez devêsse- profundamente encarcerado dentro mos falar de padecimento, de um Ricardo Fenati – Inicialmente, de mim... é como se lá bem no fun- pathos que invade a existência e que os desafios que decorrem da natu-

15 DE ABRIL | 2019 REVISTA IHU ON-LINE reza da experiência mística, sabida- de de nossa singularidade hu- absurda e dolorosa das guerras, ca- mente opaca às investidas de uma mana. Mas como compreender paz de extinguir ou mesmo impossi- razão bem-comportada. Numa cul- esse seu movimento em meio à bilitar a presença de Deus entre nós. tura marcada pela onipresença do dor de uma guerra gerada pelo discurso, experiências que assina- que de pior pode haver na per- lam os limites da linguagem tendem versidade humana? IHU On-Line – Como o senhor a ser ignoradas ou circular em meios apreende a presença do pensa- Ricardo Fenati – Essa é a sin- muito restritos. E, no que se refere mento de Julius Spier1 na místi- gularidade da experiência de Etty a experiências de natureza mística, ca de Etty Hillesum? Hillesum. Se havia, e havia, nela o há uma dificuldade adicional, dada a pressentimento de algo a sua espe- Ricardo Fenati – José Tolentino deterioração que a expressão mística ra, de algo a ser desenterrado em Mendonça2, que prefacia a edição vem sofrendo. O uso abusivo dessa meio a escombros, apenas com a portuguesa do Diário, fala de três expressão – a mística de um time de perseguição dolorosa ao seu povo encontros decisivos na vida de Etty futebol, por exemplo – dilui o seu e a si mesma é que esse pressenti- Hillesum: “o primeiro tem o nome significado. Seria preciso resgatar o mento se torna um acontecimento. de uma pessoa; o segundo tem o seu uso mais apropriado que alude É ela quem diz: “Trabalho e vivo nome de um lugar; o terceiro não seja ao limite da racionalidade, seja, com a mesma convicção e acho a tem nome: é o encontro com o pró- sobretudo, à presença de uma Alteri- vida prenhe de sentido, cheia de prio Inominável”. A pessoa do pri- dade radical. Também devemos lem- sentido apesar de tudo, embora já meiro encontro é Julius Spier, que brar que tradição católica entre nós não me atreva a dizer uma coisa se ocupa da psicoquirologia, leitura é pouca afeita à dimensão mística da dessas em grupo... O viver e o mor- morfológica das mãos. Spier, à ma- experiência religiosa. rer, o sofrimento e a alegria, as bo- neira de um tutor, é o primeiro a lhas nos meus pés gastos e o jasmim indicar uma passagem na selva de atrás do quintal, as perseguições, sentimentos que caracterizava a vida IHU On-Line – Quais são as as incontáveis violências gratuitas, de Etty Hillesum. As palavras dela marcas e características dos tudo e tudo em mim é como se fosse não poderiam ser mais claras: “ele chamados místicos contem- uma forte unidade e começo a en- foi o obstetra de minha alma”. Com porâneos? O que os diferem tender cada vez melhor, espontane- ele, ela aprende a orar, a se referir a 55 da mística medieval, especial- amente por mim, sem que ainda o Deus. Lê a Bíblia, lê Sto. Agostinho3. mente no que diz respeito à consiga explicar a alguém como as É junto a ele que irá descobrir a sin- busca do “eu interior”? coisas são”. gularidade do seu caminho. E é dele Ricardo Fenati – Essa é uma que escuta: “Tenho a impressão de pergunta muito ampla e seria mui- ser um estado preparatório para um to difícil respondê-la. São muitos grande amor teu”. Um pouco mais os místicos contemporâneos, e eles “O campo tarde, Julius Spier morre e ela pros- pertencem a tradições religiosas segue o caminho. muito distintas, o que inviabiliza da mística uma caracterização mais aguda. 1 Julius Spier (1887-1942): psicólogo e quirologista judeu alemão. Foi o primeiro gerente de banco do Beer, Son- Observo apenas dois pontos: o pri- – enquanto dheimer & Co, mas em 1925 muda sua vida e funda a Iris Edition. Segue um treinamento em canto clássico e vai meiro diz respeito à implausibili- para Zurique conhecer Carl Gustav Jung. Entra em análise dade da experiência mística, cuja e treina com ele por dois anos. Jung pediu-lhe que fizesse experiência da “psicoquirologia” o seu trabalho, tendo em conta o seu natureza assinala os limites do hu- dom de ler nas linhas das mãos as aptidões e o caráter do povo. Abriu em 1930 um escritório em Berlim, onde se mano, numa civilização marcada e enquanto especializou em estabelecer diagnósticos médicos a partir pela ilusão da saciedade e da autos- da morfologia e linhas da mão, e desenvolver a partir deles uma abordagem terapêutica inspirada no ensino junguia- suficiência. Nesse sentido, o campo reflexão – é um no. Depois de se divorciar de sua primeira esposa (com quem teve dois filhos, Ruth e Wolfgang), pelas persegui- da mística – enquanto experiência ções nazistas, ele emigra para Amsterdã, onde sua irmã e enquanto reflexão – é um lugar lugar efetivo já reside. É ali que vai conhecer Etty Hillesum. (Nota da IHU On-Line) efetivo de crítica da cultura. E o se- 2 José Tolentino Calaça Mendonça (1965): teólogo gundo ponto é que costumamos nos de crítica da e poeta português. Ordenado padre em 28 de julho de 1990, deslocou-se para Roma, onde terminou o seu mes- esquecer que a experiência mística trado em Ciências Bíblicas. Doutorado em Teologia Bíbli- cultura” ca e escritor de peças de teatro, é igualmente diretor da é um afastamento do eu, é um mer- revista de teologia Didaskalia editada pela Faculdade de gulho no que o excede. Trata-se de Teologia da Universidade Católica Portuguesa, em Lisboa. Atualmente é professor auxiliar na mesma Universidade e uma experiência espiritual, e não de diretor do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura da Conferência Episcopal Portuguesa. (Nota da IHU On-Line) uma vivência psíquica. Talvez estejamos acostumados a 3 Agostinho de Hipona (354-430): conhecido como Santo acolher a presença de Deus apenas Agostinho, foi um dos mais importantes teólogos e filóso- fos dos primeiros anos do cristianismo, cujas obras foram em circunstâncias pouco adversas, muito influentes no desenvolvimento do cristianismo e da filosofia ocidental. Escrevendo na era patrística, ele é IHU On-Line – Etty Hillesum mas convém lembrar que não há amplamente considerado o mais importante dos padres busca um Deus na profundida- gesto humano, nem mesmo a mais da Igreja no Ocidente. Suas obras-primas são A cidade de Deus e Confissões. (Nota da IHU On-Line)

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IHU On-Line – Julius Spier de- bastante próxima de Jules Spier. É Ricardo Fenati –Pausa e silêncio fendia que corpo e alma estão ela quem diz: “Vai ser um momento são formas de combater nossa vora- estreitamente ligados e preci- doloroso e difícil de ultrapassar para cidade. A realidade nunca se oferece sam estar em harmonia. Pode- mim: confiar o meu ânimo reprimido ao nosso primeiro olhar, nunca se mos associar essa perspectiva a um insignificante pedaço de papel esgota nas interpretações habituais, a uma lógica moderna que arti- quadriculado. Os pensamentos são não importa o quão compartilhadas cula fé e razão? Por quê? por vezes muito nítidos e claros na elas sejam. A linguagem, o recurso Ricardo Fenati – Certamente minha mente, os sentimentos extre- à linguagem, é a primeira estratégia que Spier defendia a interação entre mamente profundos, é, porém, difícil de que dispomos para não nos su- corpo e alma. Lembremo-nos que a conseguir escrevê-los. Essencialmen- jeitarmos aos nossos hábitos, aos iniciação espiritual de Etty Hillesum te, acho, tem a ver com um sentimen- nossos costumes e, é claro, à pres- junto a seu mentor foi acompanhada to de vergonha”. são de tudo que é imediato em nós. de exercícios físicos e de um inten- Mais adiante, também a linguagem so convívio amoroso. Essa junção de e as ideias a que recorremos podem corpo e alma não me parece cons- funcionar como um esforço de ple- tituir uma novidade para ela, cuja “Pausa e nitude, como uma recusa do vazio, vida amorosa, desde muito tempo, do inacabado, do incerto. Ora, esses nunca foi separada da inquietação silêncio são elementos são ingredientes inesca- espiritual. Somos nós, uma vez mais, páveis da existência humana. Nas na nossa tradição católica que temos formas de palavras de Etty Hillesum: “Há al- dificuldade com essa aproximação. turas em que gostaria de refugiar- Com relação ao restante da questão, combater nossa me, com tudo o que existe em mim, não concordo. Aqui não se trata da em meia dúzia de palavras, procu- articulação entre fé e razão, mas do voracidade” rar um abrigo para aquilo que há reconhecimento da sacralidade do em mim, em algumas palavras. Mas corpo humano. ainda não há palavras que queiram me abrigar... E eu estou sempre à 56 O Diário, que não foi escrito tendo em vista a publicação, é constitutivo procura de meia dúzia de palavras”. IHU On-Line – Etty Hillesum do itinerário espiritual de Etty Hille- Não importa muito, acredito, que começa sua jornada interior sum. É um exercício de intimidade, o nosso tempo seja esse de mui- através do exercício da escri- uma forma de atenção a si mesma, tas falas e ruído e pouca escuta. ta. Podemos compreender esse um texto que recebemos do desco- como um método para acessar A aventura da existência sempre nhecido que há em nós. Se formos ocorre na singularidade de cada o divino que habita em nós? capazes de acolher esse desconhe- Por quê? um de nós. E como estamos tra- cimento a que pertencemos, é bem tando de Etty Hillesum, convém Ricardo Fenati – Etty Hillesum possível que isso nos aproxime de lembrar que a sua experiência, de é intelectualmente talentosa. Leitora uma experiência religiosa. Esse foi densidade mística insuspeita, ocor- 4 5 o caso de Etty Hillesum. Mas não se de Rilke e Dostoiévski , professora de re em circunstâncias as mais desfa- trata de um método. Ou como diz russo, certamente seguiria a carreira voráveis possíveis, em meio a uma ela: “A única coisa que uma pessoa acadêmica, não fosse o seu assassina- violência estonteante. to tão precoce. Escrever, portanto, es- pode fazer é pôr-se humildemente tava no seu horizonte. Mas a origem à disposição e deixar-se tornar um do Diário é outra, procede da busca campo de batalha. As questões têm IHU On-Line – Como Etty de se albergar nalgum lado, preci- de compreensão de si, quando já está Hillesum compreende o amor sam encontrar um lugar onde pos- e de que forma esse amor a co- sam lutar e descansar, e nós, míseros 4 Rainer Maria Rilke (1875-1926): um dos mais impor- necta ao divino? tantes poetas de língua alemã do século 20 por sua obra humanos, devemos abrir nosso espa- inovadora e seu incomparável estilo lírico. (Nota da IHU Ricardo Fenati – A experiên- On-Line) ço interior a elas e não fugirmos”. 5 Fiódor Mikhailovich Dostoiévski (1821-1881): um dos cia amorosa, nas suas diversas di- maiores escritores russos e tido como um dos fundadores do existencialismo. De sua vasta obra, destaca-se Crime e mensões, sempre esteve presente castigo, O Idiota, Os Demônios e Os Irmãos Karamázov. Ao IHU On-Line – No seu proces- na vida de Etty Hillesum. No seu autor, a IHU On-Line edição 195, de 11-9-2006, dedicou a matéria de capa intitulada Dostoiévski. Pelos subterrâneos so de busca interior, Etty Hille- Diário, ela diz que “Eroticamente do ser humano, disponível em http://bit.ly/ihuon195. Con- fira, também, as seguintes entrevistas sobre o autor russo: sum descobre a necessidade de sou refinada, e quase diria suficien- Dostoiévski e Tolstoi: exacerbação e estranhamento, com respeitar as pausas e os silên- temente experiente para figurar en- Aurora Bernardini, na edição 384, de 12-12-2011, dispo- nível em https://goo.gl/xzfwFD; Polifonia atual: 130 anos cios. O que são essas pausas e tre o número das boas amantes”. E de Os Irmãos Karamazov, de Dostoiévski, na edição 288, de 6-4-2009, disponível em https://goo.gl/VvqQSt; Dos- silêncios? E como os encontrar devemos lembrar que manteve, du- toiévski chorou com Hegel, entrevista com Lázló Földényi, hoje, num tempo de muitas fa- rante muito tempo, uma dupla liga- edição nº 226, de 2-7-2007, disponível em https://goo.gl/ Uap1Sb. (Nota da IHU On-Line) las, ruídos e pouca escuta? ção amorosa, com Jules Spier e com

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Han Wegerif6, em cuja casa morava. sa. Resistimos porque é nosso de- Mais adiante, após a sua aproxima- ver, resistimos porque nada é mais ção mais intensa com a experiência “A história, real do que aquilo que gera nossa religiosa, a disposição amorosa ca- esperança. Para terminar com pa- minhará em mais direções. O seu tão curta, tão lavras de Etty Hillesum: “... a vida trabalho como enfermeira no cam- é grandiosa e boa e interessante e po de Westerbork, o lugar do segun- intensa, de eterna, e quando uma pessoa colo- do encontro a que se referia Tolenti- ca a tônica sobre si própria e se de- no, e o terceiro, o seu encontro com Etty narra uma bate e se enfurece, a pessoa ignora o Inominável. E aí o que ela escreve crescente a grande e eterna corrente que é a e vive é inesquecível: “Vou ajudar- vida... Então aparece de repente, te, Deus, a não me abandonares”. disponibilidade, batendo as asas com grande enver- Mais tarde escreverá: “Às vezes, gadura, um pedaço de eternidade pergunto-me, num momento difícil uma crescente sobre mim”. como esta noite, quais são os planos que tens para mim, tu Deus... Hoje, entrega e, vendo bem, vivi coisas grandiosas IHU On-Line – Deseja acres- e esta noite, também, meu Deus, mesmo, um centar algo? agradeço-te por eu poder suportar Ricardo Fenati – Recomen- tudo e por haver poucas coisas que progressivo não ponhas no meu caminho”. Ou do vivamente a leitura do Diário ainda: “Dentro de mim há um poço repouso e das Cartas de Etty Hillesum. profundo. E lá dentro está Deus. Estão editados em Portugal, pela Às vezes consigo lá chegar. Mas inquieto em Assírio e Alvim. No Diário, há um acontece mais frequentemente ha- prefácio notável de José Tolen- ver pedras e cascalhos no poço, e aí Deus” tino Mendonça. E lamento que Deus fica soterrado. Então é preciso uma mística da grandeza de Etty desenterrá-lo”. A história, tão curta, Hillesum seja, do ponto de vista 57 tão intensa, de Etty narra uma cres- Ricardo Fenati – Etty Hille- editorial, pouco difundida entre cente disponibilidade, uma crescen- sum, mais de uma vez, referin- nós, ausente mesmo das editoras te entrega e, mesmo, um progressivo do-se aos alemães ocupantes do confessionais, o que talvez seja repouso inquieto em Deus. território holandês, diz que não explicado pela quase ausência da deveríamos nos deixar aprisionar tradição mística no catolicismo IHU On-Line – Etty Hillesum pelo ódio. Resistir ao que avilta a brasileiro. Contamos apenas com transforma a dor em potência condição humana, o que procura um volume publicado pelas Pauli- alegre de resistência. O que banalizá-la, será sempre um dever. nas (15 dias de oração com Etty essa sua experiência pode nos Foi o que ela fez em circunstâncias Hillesum). Tenho notícia de uma dizer acerca de nosso tempo? mais do que difíceis. Entretanto, edição do Diário no Brasil, editora nenhuma dor, é ainda com ela que Record, 1981, mas trata-se de um 6 Han Wegerif: contador, viúvo, pai de quatro filhos e aprendemos, deve nos tomar a tal dono de uma casa que abriga outras pessoas. Etty Hille- volume difícil de ser encontrado. sum acaba indo viver na sua casa, torna-se sua governante ponto que nos esqueçamos do que Em sites, é mais fácil encontrar e tem uma relação com ele, ainda antes de conhecer Julius há de infinito na potência amoro- Spier. (Nota da IHU On-Line) material sobre Etty Hillesum. ■

Leia mais - O trânsito da mística no espaço do conhecimento. Entrevista com Ricardo Fenati, pulicada na revista IHU On-Line número 435, disponível em https://bit.ly/2EmRDeA.

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Etty Hillesum e a criação diante do abismo Segundo a socióloga Gabriela Acerbi, os diários de Etty Hillesum são um apelo à criação e uma recusa a condicionar a experiência ao abismo

João Vitor Santos | Edição: Patricia Fachin

catástrofe, seja como condição ciganas da etnia callon na região do de vida ou como mote para a sul de Minas Gerais para o desenvolvi- produção intelectual de Etty Hil- mento de suas pesquisas. “Em uma das Alesum, é o que desperta o interesse da pesquisas que trabalhei direcionada socióloga Gabriela Acerbi para a obra às políticas de financiamento social e dessa jovem judia, que narrou em car- moradia popular, passei bastante tem- tas e diários a sua experiência durante po tentando redimensionar a vida e as a Segunda Guerra Mundial. “Etty é uma formas de resistir nesse campo social descoberta recente para mim e o que eu da habitação que é também financeiro e sei sobre ela, no sentido daquilo que que está imerso num sistema de crédi- me instiga em relação ao seu trabalho to, dívida e estruturações do mercado”, e sua vida, é que ela foi uma escritora observa. “Aos poucos mergulhando em na catástrofe. Na catástrofe, enquanto políticas públicas e lógicas de gestão, se 58 uma condição de vida e de produção in- entende que a vida é feita, sim, a partir telectual, mas também sobre a catástro- do que o Estado oferece, mas também a fe, enquanto um tema a ser abordado, partir de todas as coisas e situações nas que está refletido nos seus escritos de quais ele se ausenta. E nesse sentido, um modo muito particular, por outras a vida é muito criativa. Podemos usar vias. E é por isso que seu trabalho me o mesmo raciocínio para pensar nas afeta tanto”, diz. ocupações indígenas, quem sabe nas Na entrevista a seguir, concedida por ocupações urbanas na cidade, ou nos e-mail à IHU On-Line, Gabriela Acerbi movimentos campesinos. São tantas as menciona que, através dos diários de ausências institucionais (sejam elas de Etty, “somos convidados a um percur- esquerda ou direita), são tantas as der- so onde fronteiras entre o íntimo e a rotas quase corriqueiras – de um pon- noção de humanidade, entre o homem to de vista estrutural – que a vida vai e a natureza, entre nós e a metafísica sendo promovida por outros meios: um divina estão borradas, se atravessam e tal modo de fazer retalhado, também são constantemente redefinidas”. Nos com tudo aquilo que falta. E isso tudo é escritos da jovem judia, que foi “emba- muito produtivo, como eu já falei ante- lada pelo estado de guerra e políticas de riormente, é tecido também a partir dos morte”, também é possível encontrar a abismos colocados”, afirma. sua “crença na criação, de que é possível Gabriela Acerbi é graduada em criar mesmo sem escrever uma palavra Ciências Sociais pela Universidade Fe- ou pintando um quadro, mas moldando deral de Santa Catarina - UFSC. Atu- uma vida interior”, pontua. almente é mestranda em Ciências So- Gabriela também encontra a potên- ciais, com ênfase em Antropologia pela cia criativa dos poemas de Etty na vida Pontifícia Universidade Católica de São cotidiana, ao acompanhar experiências Paulo - PUC-SP. em moradias populares e em ocupações Confira a entrevista.

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IHU On-Line – O que você co- ditando diante de toda barbárie. E gar para tudo. Em mim há a Terra e nhece acerca de Etty Hillesum isso causa bastante estranhamento também o céu”. e sobre a sua forma de resis- e ao mesmo tempo admiração. Etty morreu antes de completar 30 tência à dor, ao sofrimento e à Etty é uma mulher que vai morrer anos, em setembro de 1943. Ela tam- amargura gerados pela guerra? no campo de extermínio e que tem bém teve todos os seus familiares, Gabriela Acerbi – Etty é uma uma escrita embalada pelo estado pais e os dois irmãos exterminados descoberta recente para mim e o de guerra e políticas de morte, mas pelo nazismo e o momento em que que eu sei sobre ela, no sentido da- que ao mesmo tempo está cavando começou a escrever foi exatamente quilo que me instiga em relação ao fugas para o corpo capturado em quando o domínio nazista se inten- seu trabalho e sua vida, é que ela foi Auschwitz. E sua poética vai sendo sificou na Holanda, não muito dis- uma escritora na catástrofe. Na ca- costurada entre esses dilaceramen- tante de onde a pequena Anne Frank tástrofe, enquanto uma condição de tos, de corpos, de subjetividades, de também escrevia. vida e de produção intelectual, mas cidades, de organizações comunitá- Ainda sobre seus diários em tem- também sobre a catástrofe, enquan- rias, de famílias, de relações, da es- pos de guerra, tenho a impressão to um tema a ser abordado, que está piritualidade... Mas diante disso, ela de que somos convidados a um per- refletido nos seus escritos de um está oferecendo algo que é mais do curso onde fronteiras entre o íntimo modo muito particular, por outras que um testemunho diante do horror e a noção de humanidade, entre o vias. E é por isso que seu trabalho e do abismo. homem e a natureza, entre nós e a me afeta tanto. metafísica divina estão borradas, se Etty foi uma jovem judia que vi- atravessam e são constantemente veu intensamente a atmosfera da redefinidas. Lendo alguns trabalhos Segunda Guerra Mundial e seus de análises sobre a produção de Etty, desdobramentos mais violentos e “Ela foi uma enquanto uma tradição também es- íntimos, aqueles que afetaram os piritual e um percurso de resistência corpos durante o avanço das ocupa- escritora na e libertação, há autores que desta- ções nazistas. É nesse contexto do cam o distanciamento de Etty de holocausto, dessa matança de mais catástrofe” um olhar autocentrado, assim como 59 de oito milhões de pessoas conside- o abandono de representações con- radas “indignas de viver” que Etty vencionais da vida e do eu. Tzvetan começou a escrever o primeiro dos Crença na criação Todorov1 (2016) vai defender que seus oito diários, isso em 1941, na Etty se afasta progressivamente da Em um de seus famosos trechos, Holanda, dois anos antes de ir para tradição do pensamento ocidental, Etty reforça sua crença na criação, o campo de concentração. E é nesse do predomínio do sujeito, onde a sua contexto também que ela se produ- de que é possível criar mesmo sem recusa e resistência propõem um ca- ziu enquanto escritora e intelectual. escrever uma palavra ou pintando minho em que não há a prevalência É nesse universo tirânico que ela um quadro, mas moldando uma vida do eu centralizador, nesses termos se formou e se fez enquanto uma interior, o que nos faz pensar muito que estamos eurocentricamente fa- mulher que estava ali elaborando, nessa situação dos campos de con- miliarizados. E também, que ela pro- criando e reformulando os desdo- centração onde há uma paralisação põe um direcionamento outro para bramentos políticos do seu tempo à do corpo, que aprisionado, não pode que a vida pudesse ser salvaguarda- sua maneira. Elaborações éticas, es- fazer muita coisa diante do horror. E da, com novos parâmetros, como um téticas, políticas, poéticas e místicas ela está atenta a essa dimensão me- recomeçar do zero na Europa pós- sobre o caos instaurado, também nor, que é também por onde compar- guerra. Nesse sentido, é mais do que sobre si mesma e dimensões da ex- tilha a sua dor. Quando escreve, Etty uma oposição ao nazismo, mas uma periência e do ser, num sentido mais vai povoando essa vida confinada e recusa de lugares e modos de agir. filosófico e tecidas nesse estado de perseguida com outras forças, como, Desses lugares afogados nos poços guerra total. Um estado de guerra por exemplo, as forças da natureza de ódio – em suas palavras – onde as que refletia a consolidação de uma a quem ela sempre se refere. Lendo retidões não vão vir em benefício de racionalidade científica, totalitária, seus diários, fico com a impressão de um “eu” autocentrado e nem apenas instrumental, que atuou sobre na- que Etty redimensiona sua vida cap- por ele. E nessa dimensão existencial tureza, vidas, territórios e corpos, turada, por exemplo, quando insiste que é outra, Etty estava sempre re- numa realidade de violência tão in- em dizer que em seu corpo correm crutando os elementos da natureza, tensa que dificulta qualquer reflexão largos rios, situam-se altas monta- experimentando árvores enquanto no sentido de reparações. E se você nhas. Ou que nos matagais do seu bosques inteiros, hospedando em si se dedicar aos escritos de Etty, vai desassossego – palavras suas – há encontrar ali forças imponderáveis, largas planícies rasas do seu sossego 1 Resistenti. Storie di donne e uomini che hanno lottato muito sutis, mas também potentes, e entrega. “Todas as paisagens estão per la giustizia [Resistentes. Histórias de mulheres e ho- mens que lutaram pela justiça, em tradução livre], Ed. Gar- de uma capacidade de seguir acre- dentro de mim. Há igualmente lu- zanti, 2016. (Nota da entrevistada)

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as flores, trazendo a terra. Trazen- idioma desses sistemas dominado- teriais e subjetivas que vão fazendo do-as para esse território existencial res, opressivos. a vida ruir a partir desses domínios que afrontava os muros dos campos e referentes. Diante disso, Negri é Quando comecei a ler Etty e pensar de concentração perseverando na bom também porque nos ajuda a sobre essas questões de intolerân- vida pacientemente, de forma reco- pensar a partir das derrotas, com cia e sofrimento, lembrei muito de lhida e até mesmo esvaziada, que era sua análise do sofrimento que é uma um livro do filósofo italiano Anto- chave para resistir. íntegra e criativa. nio Negri2, chamado Jó a força do escravo. Quando escreveu o livro, Voltando a Etty, tenho que ela o autor cumpria seu quarto ano de está produzindo diante do avanço prisão, que aconteceu em 1979 por dos campos de extermínio e há aí “Lendo seus questões políticas associadas ao seu uma experiência ética da dor (tam- diários, envolvimento na causa operária e bém através do corpo), do domínio lutas autônomas italianas. Apesar nazista sobre o existente – a quem fico com a de abordagens e contexto distintos ela responde desmedidamente, em entre Etty e Negri – que também direção ao amor, com sua experiên- impressão perdeu o pai assassinado por fascis- cia mística e religiosa. Etty não está tas – promovi esse encontro, pois recusando falar apenas do horror, de que Etty ambos remontam questões interes- ela está recusando condicionar sua santes sobre tal compartilhamento experiência ao abismo. Ela cria so- redimensiona da dor, as possibilidades da criação e bre ele. Em seus diários, toca Deus, desdobramentos possíveis diante de a humanidade e a si mesma. No livro sua vida condições opressivas. É uma ligação de Negri, ele está retomando a his- imaginária sobre condições de vul- tória bíblica de Jó e sua experiência capturada” nerabilidade que estruturam proces- com Deus também diante do sofri- sos de reinvenção da vida. mento. Jó confronta Deus, mas tam- bém se aproxima dele, depois cons- IHU On-Line – Pensando trói radicalmente um mundo novo. 60 ainda a partir da experiência Um mundo liberto – e é sobre essa de Etty, como compreender o Avanço do individualismo e da intolerância libertação que Negri vai tecer a ideia avanço do individualismo e da de criação, onde a potência forma-se intolerância no mundo de hoje? E se a intenção é falar sobre o avan- na dor, mas se desenvolve na relação E como, em meio à aspereza das ço do individualismo e da intolerân- com o ser. relações cotidianas, acreditar cia no mundo de hoje, a militância na possibilidade de mudança Para mim, todas essas coisas vão e o trabalho de Negri são bom en- tanto através do amor quanto sendo articuladas a nos permiti- contro para reformular as questões da alegria? rem pensar em modos de fazer que desse individualismo, já que o que são políticos, onde as crises vão se Gabriela Acerbi – Entre as várias ele anuncia relaciona-se diretamen- constituindo como caminhos de questões que podemos encontrar te com as condições de desigualda- luta e reconstrução do ser. E nesse nos textos de Etty, vejo seu apelo à de no modo de produção capitalista sentido, gosto muito quando o au- criação como uma estratégia de fuga, (que nos é uma condição e muito tor contrapõe a incomensurabilida- assim como uma forma de recusa à nos têm feito pensar atualmente em de das dores diante daquilo que ele proliferação de práticas de ódio, tira- relação aos seus horizontes neolibe- chama de cultura da medida, um nia e dominação. Etty descreve como rais). Penso que a questão da into- fanatismo instrumental pelo cálculo, a barbárie nazista despertava uma lerância liga-se a tudo que sustenta esse esforço de racionalização que barbárie idêntica, íntima, que se pu- esse modo que nos paralisa e esgo- ao mesmo tempo que se expande, desse, empregaria os mesmos méto- ta, estruturalmente, politicamente, expõe sua decadência e insustenta- dos de poder para fazer o que está economicamente, afetivamente e bilidade; uma ruína das leis. É as- na ordem do seu desejo. De acordo que também tem a ver com dimen- sim que Negri associa sua ânsia por com ela, sobre essa barbárie que se- sões da colonialidade do poder, com libertação à incomensurabilidade de ria nossa, pessoal, talvez corporal, a fabricação da miséria humana do uma dor que não pode ser medida, e deveríamos rejeitar arduamente e modo capitalista e as condições ma- a consequência disso é que só a pai- interiormente, o que seria um com- xão da criação poderia responder à 2 Antonio Negri (1933): filósofo político e moral italiano. bate a qualquer ódio possível de ser Durante a adolescência, foi militante da Juventude Italiana derrocada da medida. “Lá onde as cultivado. Seria necessário manter de Ação Católica, como Umberto Eco e outros intelectuais velhas medidas caíram, era preciso italianos. Em 2000, publicou o livro-manifesto Império (Rio acesa tal combatividade, coloca Etty, de Janeiro: Record), com Michael Hardt. Em seguida, pu- criar novas, e a partir daí a paixão blicou Multidão. Guerra e democracia na era do império mas nunca, em hipótese alguma, ela (Rio de Janeiro/São Paulo: Record), também com Michael residia inteiramente na capacidade poderia passar por um regime de Hardt – sobre esta obra, a edição 125 da IHU On-Line, de de mover-se com alegria para além 29-11-2004, publicou um artigo de Marco Bascetta, dis- ódio e violência, compartilhando o ponível em https://goo.gl/9rjlQw. (Nota da IHU On-Line) da medida.” (Negri, 2002). É a des-

15 DE ABRIL | 2019 REVISTA IHU ON-LINE crição de uma dor ontológica, como genocídio indígena, das populações todos os afetos que a lembrança da- destaca Pelbart3 (2013), o que na ló- pretas e periféricas. Que é um mar quelas manifestações mobiliza, uma gica negriana é também uma recusa de gente, de universos, de corpos e euforia da ordem do caos... Mas as ontológica. Uma forma de pensar de experiências que não se entregou Jornadas de Junho foram tanta coisa as existências por aquilo que dói e diante das derrotas. Mas produziu que nós seguimos aqui falando sobre também por aquilo que elas cons- sobre elas, deu sentido à vida, perpe- elas, retomando os acontecimentos troem recusando, como Etty, que tuou modos de ocupar as cidades, os pra tentar elaborar o que estamos vi- recusa se resignar às condições do campos, aliançadas localmente em vendo agora, já que essas coisas pa- extermínio, trazendo em seus diá- múltiplas experiências produzidas a recem estar entrelaçadas. Cinco anos rios não só dor, mas também aquilo partir das suas dores incomensurá- depois das ruas cheias de gente, de que florir, que pode enunciar uma veis e dos seus mundos, que se man- exigências inegociáveis, múltiplas, nova comunidade. tiveram, que não deixaram de exis- quase incomunicáveis, a gente não sabe bem o que achar daquele emara- E quando vocês me perguntam, tir. Penso que isso é responder com nhado que era muito potente e tam- como, em meio à aspereza das rela- paixão e alegria, ainda que tudo... bém assustador – no sentido daquilo ções cotidianas, acreditar na possi- Serve pra pensar em todas as vidas que sentimos diante do desconheci- bilidade de mudança tanto através matáveis que resistiram... do, como me lembra do amor quanto da alegria, acredito em um de seus poemas: “uma espécie que o caminho seja por aí. Redimen- de pudor que se tem diante do que é sionar a potência da dor e daquilo grande demais”. que ela pode recusar e criar. Dado “Vejo seu apelo ao contexto em que vivemos, o de- Mas quando vocês me perguntam senho desse Brasil que ganhamos à criação como como ficam todos aqueles sonhos agora em outubro de 2018, mas diante desse atual avanço da extre- também a partir de toda nossa tra- uma estratégia ma direita, e o que resiste num Bra- jetória histórica, acredito que pre- sil amargurado pela crise econômica, cisamos redimensionar as criações, de fuga, primeiro gosto de lembrar onde estão a potência da alegria e estar atento enraizadas essas amarguras e também 61 ao que vem sendo produzido. Pode- assim como parte daqueles sonhos. Um dos pes- mos pensar que desde as ocupações quisadores de Junho em que confio portuguesas em nosso território, uma forma bastante é André Fogliano (2018). Em nossas primeiras experiências colo- sua cartografia afetiva dos enuncia- niais e os processos de escravidão, de recusa à dos e imagens do levante brasileiro, paixões, alegrias e formas de resistir ele tratou Junho como um aconteci- estão sempre sendo tecidas diante proliferação mento-problema, experiências-limite das suas derrotas (que são inúmeras que desestabilizaram o atual estado e desiguais, acumuladas historica- de práticas de de coisas e de discursos com o qual a mente). Mas elas estão aí, cotidiana- governamentalidade do capitalismo mente consolidando forças escapá- ódio, tirania e mundial integrado operava no país veis e muitas vezes imperceptíveis, e no mundo. Sua hipótese descreve mas imensamente potentes. dominação” como essas insurreições desarmaram estados de percepções estabelecidos, Penso tudo isso num sentido polí- que se convencionou chamar de An- tico-prático, nos modos cotidianos tropoceno – e então há no seu traba- de levar a vida, nas alianças comuni- IHU On-Line – Você viveu in- lho uma abordagem que chama aten- tárias que seguem as margens e nas tensamente as reivindicações ção para essa crise do referente, em bordas, as lutas diárias e o cultivo do de 2013 e as possibilidades de terras brasileiras e também como um estar junto, principalmente frente transformações sociais profun- problema geral, de mundo, que traz à às desigualdades que se alastram. das implicadas nas marchas e tona o confronto de vários mundos e Podemos pensar nas dimensões co- manifestações populares. Hoje, modos de vida que vinham entrando loniais do racismo, nas forças do cinco anos depois, e com o avan- em confronto com parâmetros da go- patriarcado, no campo de desigual- ço da extrema direita, como fi- vernamentalidade vigente. Como já dades no mundo do trabalho, no cam todos aqueles sonhos? E o vinha sendo colocado por pesquisado- que resiste num Brasil amargu- res como Eduardo Viveiros de Castro4, 3 Peter Pál Pelbart (1956): é um filósofo, ensaísta, profes- sor e tradutor húngaro, residente no Brasil. Graduado em rado pela crise econômica? Filosofia pela Universidade Paris IV (Sorbonne), é mestre 4 Eduardo Viveiros de Castro (1951): antropólogo brasi- pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PU- Gabriela Acerbi – É sempre difícil leiro, professor do Museu Nacional do Rio de Janeiro, na C-SP, doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Concedeu a e livre-docente pela PUC-SP. Vive na cidade de São Paulo, falar de Junho de 2013... Acredito que entrevista O conceito vira grife, e o pensador vira proprie- onde é professor da PUC-SP e coordena a Companhia Tea- chega a ser uma tarefa ingrata, já que tário de grife à edição 161 da IHU On-Line, de 24-10-2005, tral Ueinzz, formada por pacientes psiquiátricos do hospi- disponível em http://bit.ly/ihuon161. Entre outras publi- tal-dia A Casa. (Nota da IHU On-Line) Junho é muita coisa. Isso sem falar de cações, escreveu Arawete: O Povo do Ipixuna (São Paulo:

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Déborah Danowski5... operar. Achille Mbembe6, autor do e de um tempo que ruiu. Que está livro Crítica da Razão Negra, já ruindo faz tempo... Por mais que ele Nesse sentido, Junho de 2013 te- havia anunciado sobre essa bifur- se alastre, nas suas variações, con- ria levantado todo um campo de cação entre democracia e capital tradições, na incoerência dos muitos possíveis experimentações e tam- financeiro, e sobre as ameaças que votos... Ele expressa também o de- bém de incômodos não mais sus- esse modo de subjetivação neoli- sespero de algo em queda. Não é só tentáveis. Experimentações tecidas beral nos traria às nossas frágeis isso, mas tem ali algo que insiste de- também diante dos desdobramen- democracias: uma condição de en- sesperadamente, que esbraveja para tos neoliberais que nos atravessam, dividamento da vida similar à lógi- não deixar outros modos que estão aí enquanto Brasil, e diante dos nos- ca perpetuada na escravização das sos impasses coloniais-capitalistas prevalecerem. Acontece que todas as populações negras, horizontes en- atualizados, dinâmicas neodesen- forças as quais o Bolsonaro se opõe durecidos e mortais, produtores de volvimentistas muito bem instau- seguem existindo, sempre! E se ago- sistemas de regimes de sofrimento radas e todas as tensões produzi- ra estamos vivendo uma dimensão aliados aos modos de governo. das nessa intensificação de modos de derrota, estamos vivendo tam- de exploração e condicionamentos bém uma dimensão de lutas que se da vida na era do capital financei- acirram, que não se dobram diante ro, dos grandes empreendimentos, dos insuportáveis que as assolam. E dos megaeventos, de regimes de “Etty não está isso não é uma situação só de agora, endividamento contemporâneo, isso sobrevive historicamente. expropriações e de uma crise polí- recusando Nesse sentido, eu penso com Ne- tica generalizada, quanto aos seus gri o Brasil de agora e o presidente formatos e modos de operar, o es- falar apenas que ganhamos: criações a partir das gotamento dessas instituições. próprias condições de sofrimento do horror, ela vivenciadas. Acho necessário lem- está recusando brar que o que está ruindo diz mais Necropolítica tropical respeito a eles do que a nós. Como 62 condicionar não pensar nos impactos do femi- E pensando no agora, é claro que nismo que corre a ventos rápidos, estamos todos muito preocupados sua experiência que produz novas coisas em ter- com o que foi consolidado em ou- mos de produção de subjetividade, tubro deste ano no país. Não con- ao abismo. Ela dimensões de família, de relações, sigo ver menos do que uma necro- do mundo do trabalho? Novas so- política tropical alargando passos, cria sobre ele” cialidades implicadas. Ou como não ganhando mais braços. Planos ex- pensar nas vidas aldeadas que não plícitos de morte, de medo e um estão historicamente diminuindo? campo de desmontes que intensi- Dito isso, ainda acredito que nos Pelo contrário, são territórios em ficarão o soterramento de direitos, ajuda a pensar e a respirar, lembrar disputa, aderidos, exigidos, de gen- dos programas e políticas sociais, que esse avanço da extrema direita é te que se dispõe a falar uma língua enfim, tudo sendo arrastado por também a expressão de um mundo institucional no sentido de uma horizontes neoliberais e ultracon- traição político-linguística, para ga- 6 Joseph-Achille Mbembe, conhecido como Achille servadores, a radicalização dessa Mbembe (1957): é um filósofo e cientista político. Natural rantir seu direito de sobrevivência. coisificação da vida, das pessoas, de Otélé, em Camarões Franceses, obteve seu Ph.D. em História na Universidade de Sorbonne, em Paris, França, Também formas de vidas aquilom- do meio ambiente, das relações de em 1989. Referência acadêmica no estudo do pós-colo- badas, pretas, que alicerçam sua nialismo e pensador das grandes questões da história e trabalho, do campo educacional, da da política africana – apesar de, ele próprio, não se definir ancestralidade às novas formas e saúde pública... A política intensi- como “teórico do pós-colonialismo”. É professor de Histó- ria e Ciência Política na Universidade Duke (Virgínia, Esta- caminhos para conquistar direitos, ficando ares empresariais devasta- dos Unidos) e na Universidade Witswatervand (Joanesbur- acessos e redimensionar as violên- go, África do Sul), além de pesquisador no Wits Institute dores, sob a lógica do investimento for Social and Economic Research (WISER) dessa mesma cias vividas... Uma luta que vem a e da resiliência. E isso tem menos universidade. É um autor conhecido, tanto pelos seus arti- gos nas versões em espanhol do Le Monde Diplomatique suor e sangue. Assim, prefiro pensar a ver com quem os escolheu, mas como pelas suas contribuições para os livros coordenados num campo que se cria a partir das mais com as condições que eles vão por Gilles Kepel, As políticas de Deus (A proliferação do divino na África subsaariana); Jérôme Bindé, Para onde vão condições menos favoráveis possí- os valores?: colóquios do século XXI (Do racismo como veis, mas que se opõe à nossa sen- prática da imaginação); Fernando López Castellano, De- CEDI), A inconstância da alma selvagem (e outros ensaios senvolvimento: Crónica de um desafio permanente (Poder, sação atual de desmoronamento. de antropologia) (São Paulo: Cosac & Naify) e Metafísicas violência e acumulação) e Okwui Enwezor, O desacolhedor. canibais (São Paulo: Cosac & Naify). Também é autor do Cenas fantasma na sociedade global (Necropolítica). Em Há vidas não arruinadas. Como não prefácio do livro A queda do céu – Palavras de um xamã Crítica da razão negra (Lisboa: Antígona, 2014), o autor olhar para 2018 sem lembrar das yanomami, de Davi Kopenawa e Bruce Albert (São Paulo: elabora sobre o conceito de “Negro”, sobre a evolução Companhia das Letras). (Nota da IHU On-Line) do pensamento racial europeu que o origina e sobre as candidaturas de mulheres, mulhe- 5 Déborah Danowski: bacharela, mestra e doutora em máscaras usadas para o cobrir com um manto de invisi- Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de bilidade. O texto é profundamente teórico, permeado por res-trans, negras, indígenas e qui- Janeiro - PUC-Rio, onde é professora. Fez estágio pós- uma filosofia política latente: além de ser um acadêmico lombolas eleitas este ano? Bancadas doutoral em Filosofia na Universidade de Paris IV (Paris- de referência, Mbembe é também um acadêmico compro- Sorbonne). (Nota da IHU On-Line) metido com o tema. (Nota da IHU On-Line) populares e coletivas, por exemplo

15 DE ABRIL | 2019 REVISTA IHU ON-LINE como o MUITAS7, a candidata eleita de mundo não cansaram de chegar. está sendo inventado, essas produ- Érica Malunguino que administra o Temos aí Davi Kopenawa11, Ailton ções cotidianas, comunitárias, que quilombo urbano Aparelha Luzia, a Krenak12, Sônia Guajajara13 que saiu talvez sejam “pequenas” demais Bancada Ativista8 no Rio de Janei- como candidata a vice-presidente do para quem concentrou-se apenas ro, Áurea Carolina em Minas Gerais país. A verdade é que nunca foi mui- numa lógica de partidos – ou de anunciando que eles vão aquilombar to favorável e que as dimensões da um determinado lugar da “esquer- as instituições?... Se a gente quiser, dor e da catástrofe sempre estiveram da” nacional. Existem modos de podemos chamar de política menor aí. E nesse sentido, penso que é im- vida, modos de organizações cole- – no sentido minoritário, como bem portante a gente reforçar e lembrar tivas que estão aí constantemente queria Deleuze9, e assim, incrivel- os projetos e iniciativas que estão e se atualizando e que talvez a gente mente potentes, batalhadas diante sempre estiveram sendo produzidos não consiga encaixá-los naquilo que das derrotas históricas e diárias. por aqueles que podem dar nome à esperamos que seja um modo de re- sua própria dor, que podem criar a Ainda sobre esses caminhos não re- sistir ou de agir politicamente. partir dos seus abismos. Isso tudo signados e dores que criam, gosto de são políticas de localização. São polí- Em uma das pesquisas que traba- retomar a pesquisadora bell hooks10 ticas não ressentidas, são expressões lhei direcionada às políticas de fi- (2013), que fala da sua trajetória de amor, de potência, de guerra, de nanciamento social e moradia popu- com a produção de conhecimento e festa e de vida. Também é poético, lar, passei bastante tempo tentando as questões do sofrimento – e que no estético, místico e é político. redimensionar a vida e as formas de seu caso, associam-se diretamente resistir nesse campo social da habi- às violências e desigualdades vividas tação que é também financeiro e que na segregação racial institucionaliza- IHU On-Line – Quais os maio- está imerso num sistema de crédito, da nos Estados Unidos, que, nos ter- res desafios para se conceber dívida e estruturações do mercado. mos de lei, só foi cair depois de 1967. uma reinvenção da política no Após acompanhar experiências co- No livro Ensinando a transgredir, Brasil através da alegria? tidianas em moradias populares e a educação como prática de liber- também em ocupações ciganas da dade, bell hooks elabora sobre os Gabriela Acerbi – Acho que etnia callon na região do sul de Mi- efeitos e os caminhos abertos ao se gostaria de direcionar a intenção da nas Gerais, me esforcei para tentar 63 dar nome à dor. O que abarca tanto reinvenção para a própria pergunta percorrer com mais cuidado as ar- uma dimensão coletiva da dor, quan- em vez de respondê-la. Ainda tenho ticulações e negociações que pro- to uma muito íntima e individual dos dúvidas de se não seria necessário duzem formas de habitar distintas processos de cura ao se nomear os a gente parar de perguntar sobre e também particulares. Aos poucos efeitos do sofrimento e trazê-los ao a reinvenção da política, mas rein- mergulhando em políticas públicas campo educativo, trazê-los ao lugar ventar os olhos de quem olha para e lógicas de gestão, se entende que de elaboração. ela (e também os olhos que definem a vida é feita, sim, a partir do que o o que é política). Às vezes fico com a Quando penso nessas campanhas, Estado oferece, mas também a par- impressão de que não estamos pre- quando olho para o que temos em tir de todas as coisas e situações nas parados parar enxergar aquilo que termos de Brasil, as dinâmicas co- quais ele se ausenta. E nesse sentido, munitárias que se perpetuam e as a vida é muito criativa. Podemos usar 11 (1956): escritor e líder in- amarguras dos processos políticos dígena brasileiro. Ainda criança, viu a população de sua o mesmo raciocínio para pensar nas que passamos, gosto de lembrar terra natal ser dizimada por duas epidemias, ambas tra- ocupações indígenas, quem sabe nas zidas pelo contato com o homem branco. Trabalhou na que historicamente nossas condi- Fundação Nacional do Índio como intérprete. Mudou-se ocupações urbanas na cidade, ou nos para a aldeia Watorik+ na década de 1980. Casou-se com ções nunca foram fáceis. Há anos e a filha do pajé e se tornou chefe do posto indígena Demi- movimentos campesinos. São tantas anos, populações indígenas, xamãs, ni. Foi um dos responsáveis pela demarcação do território as ausências institucionais (sejam Yanomami em 1992. Recebeu o prêmio ambiental Global anunciam que as catástrofes e fins 500 da ONU. Em 2010, viu sua autobiografia La chute du elas de esquerda ou direita), são tan- ciel, escrita em parceria com o antropólogo francês Bruce Albert, foi lançada na França. O livro teve tradução para o tas as derrotas quase corriqueiras 7 https://www.somosmuitas.com.br/ (Nota da entrevista- inglês, francês e italiano e sua edição em português saiu – de um ponto de vista estrutural – da) em 2015 A queda do céu. Palavras de um xamã yanomami 8https://monicadabancada.com.br/ - https://pt-br.face- (São Paulo: Companhia das Letras). (Nota da IHU On-Line) que a vida vai sendo promovida por book.com/bancadaativista/ (Nota da entrevistada) 12 Ailton Alves Lacerda Krenak, mais conhecido como 9 Gilles Deleuze (1925-1995): filósofo francês. Assim (Minas Gerais, 1953): é um líder indígena, outros meios: um tal modo de fazer como Foucault, foi um dos estudiosos de Kant, mas tem ambientalista e escritor brasileiro. É considerado uma das retalhado, também com tudo aquilo em Bergson, Nietzsche e Espinosa, poderosas interseções. maiores lideranças do movimento indígena brasileiro, Professor da Universidade de Paris VIII, Vincennes, Deleuze possuindo reconhecimento internacional. Pertence à etnia que falta. E isso tudo é muito produ- atualizou ideias como as de devir, acontecimentos e singu- indígena crenaque. (Nota da IHU On-Line) tivo, como eu já falei anteriormente, laridades. (Nota da IHU On-Line) 13 Sônia Bone Guajajara (1974): é uma líder indígena 10 Gloria Jean Watkins (1952): mais conhecida pelo brasileira, formada em Letras e em Enfermagem, especia- é tecido também a partir dos abis- pseudônimo bell hooks (escrito em minúsculas), é uma au- lista em Educação especial pela Universidade Estadual do tora feminista e ativista social nascida nos Estados Unidos. Maranhão. Recebeu em 2015 a Ordem do Mérito Cultu- mos colocados. E no nosso contexto O nome bell hooks foi inspirado em sua bisavó materna, ral. Sua militância em ocupações e protestos começou na atual, penso que isso tudo é sobre Bell Blair Hooks. Sua produção trata da interconectividade coordenação das organizações e articulações dos povos de raça, capitalismo e sexo, que ela descreve por sua capa- indígenas no Maranhão - Coapima e levou-a à coordena- criação de condições de sobrevivên- cidade de produzir e perpetuar os sistemas de opressão e ção executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil dominação de classe. Publicou mais de 30 livros e muitos - Apib. Antes disso ainda passou pela Coordenação das cia, como para a pesquisadora Verô- artigos. Aborda raça, classe e gênero na educação, arte, Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira - Coiab. nica Gago (2014) que vai falar de um história, sexualidade, mídia de massa e feminismo. (Nota Foi candidata à vice-presidência na chapa com Guilherme da IHU On-Line) Boulos, pelo Psol. (Nota da IHU On-Line) neoliberalismo desde baixo, que são

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os modos de dar conta da dinâmica que estamos querendo nos referir Gabriela Acerbi – Acho que um social, política e econômica, que re- e enxergar, das reinvenções. Sejam pouco dessa resposta está dissolvida siste à exploração e à despossessão e jornadas do mês de Junho17, sejam em tudo que tenho falado até agora. que se desprega desse espaço do cál- pequenos e estrondosos ganhos no Queria apenas sugerir que a gen- culo, das leis de medida. campo da política institucional, seja te trouxesse para a palavra cultura na amplitude de um quilombo ou uma dimensão de “modo de vida” e Nesse sentido, eu lembro que todas de uma terra ocupada frente as não então me sinto mais à vontade pra as vezes que eu preciso falar sobre demarcações oficiais, é preciso tam- falar, no sentido de perceber, de es- reinvenção política, gosto de usar bém querer enxergar esses lugares tar sensível a captar a inventividade o mesmo trecho de uma poeta que por onde a vida está constantemente gosto muito. Matilde Campilho14, desses modos, aquilo que eles estão produzindo. Essas localizações onde em uma breve entrevista sobre arte, produzindo, em variados aspectos é necessário um fazer particular e música e poesia, insiste que essas que compõem suas “culturas”... Pen- até mesmo táticas de visibilidade, coisas não salvam o mundo, mas so que, diante dos totalitarismos, es- também formas de cuidar da vida e salvam o minuto e isso é suficiente. tão em jogo também os inegociáveis mantê-la vivível, já que, de onde se Depois ela reforça que estamos aqui dos modos de existir, ainda que eles situa, as condições nem sempre ou para “dançar um pouquinho sobre estejam sob ameaça de serem tritu- quase favoreceram. É como uma per- os escombros. Não deixar que a po- rados. Talvez a arte seja sim uma severança ainda que tudo – e que nos eira dê alergia nos olhos”. E nessa dimensão por onde é possível que dias atuais é atravessada, joga junto dança, cada um faz como pode... “A algo escape, mas assim como tantas e dribla modos de fazer neoliberais e gente vai tentando salvar os segun- outras coisas que estão implicadas as condições institucionais que se avi- dinhos — da minha vida, da vida de nas tais culturas. Não sei se falar em vam nesses contextos. todos meus amigos e de alguém que formas de diálogo, mas daquilo que lê uma estrofe. E já é bom.” Fiquei pensando que eu podia en- vai ser mantido, que vai ser comuni- cerrar o trecho dessa pergunta reto- cado de alguma maneira – nem que A dança sobre os escombros de Ma- mando Etty Hillesum e tudo aquilo seja inventando uma maneira nova. tilde me lembra a política cotidiana, que ela fez com as condições de ex- Se for pra pensar a arte, então pen- constantemente reinventada. Me termínio, me perguntar quais as con- sar uma dimensão de perpetuação, lembra que as dimensões do que é 64 dições de resistência e invenção po- de comunicar, de fazer falar aquilo política e resistência são mais largas lítica no contexto do nazismo... E aí, que diz respeito aos modos de vida. do que definem os teóricos. Uma dis- penso que eu teria que tentar focar E isso também tem a ver com formas cussão que vem sendo amplamente no que Etty criou. de se relacionar, de se alimentar, tecida por uma antropóloga em que as práticas religiosas, as dimensões 15 confio e admiro, a Alana Moraes , rituais, afetivas e festivas que são em suas pesquisas a partir da atua- IHU On-Line – De que forma a mantidas, as formas como educamos ção das mulheres no movimento de arte e a cultura podem se con- as crianças, como se cura, como se luta por moradia, o MTST... Alana figurar como alternativas de trata do corpo... me ajudou a retomar os desafios epis- resistência ao totalitarismo, temológicos de uma pesquisadora Penso que a vida – todas essas que sendo capazes de abrir pers- que lemos bastante, e que nos ajuda são negadas pelos regimes que defi- pectivas para o diálogo? a reconfigurar o olhar para o que se- nem os matáveis, os aniquiláveis – ria o campo da ação política. Donna já é em si foco de resistência, e são Haraway16 (1995) enfatiza tal possibi- 17 Junho de 2013: os protestos no Brasil em 2013, tam- vários focos... É claro que podemos bém conhecidos como Manifestações dos 20 centavos, lidade de ver a partir dos abismos, a Manifestações de Junho ou Jornadas de Junho, foram falar em circuitos artísticos, mas po- partir dessa localização que é perifé- várias manifestações populares por todo o país que ini- demos falar em todos os circuitos cialmente surgiram para contestar os aumentos nas tarifas rica. E quando convocou os abismos, de transporte público, sobretudo nas principais capitais. produtivos que propagam modos Inicialmente restrito a pouco milhares de participantes, os a autora me levou automaticamente atos pela redução das passagens nos transportes públicos de estar no mundo e suas formas para experiências que constantemen- ganharam grande apoio popular em meados de junho, em de extravasar e driblar as forças que especial após a forte repressão policial contra os manifes- te atualizam o campo das resistências tantes, cujo ápice se deu no protesto do dia 13 em São os oprimem... E assim eles garan- Paulo. Quatro dias depois, um grande número de popu- lares tomou parte das manifestações nas ruas em novos tem perpetuação... Gosto de pen- diversos protestos por várias cidades brasileiras e até do sar quais são as histórias que estão 14 Matilde Maria d’Orey de Sousa e Holstein Campilho exterior. Em seu ápice, milhões de brasileiros estavam nas (1982): é uma poeta portuguesa. (Nota da IHU On-Line) ruas protestando não apenas pela redução das tarifas e a sendo cantadas num samba de roda, 15 Alana Moraes: é antropologia formada pela Universida- violência policial, mas também por uma grande variedade que histórias estão sendo dançadas, de Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, mestra em Sociologia de temas como os gastos públicos em grandes eventos e Antropologia pela mesma universidade, e atualmente esportivos internacionais, a má qualidade dos serviços por exemplo, por um grupo de afoxé, cursa doutorado no Programa em Antropologia Social do públicos e a indignação com a corrupção política em ge- Museu Nacional da UFRJ. É feminista e integrante do cole- ral. Os protestos geraram grande repercussão nacional no maracatu, no jongo, que mundo tivo Urucum pesquisa-luta. (Nota da IHU On-Line) e internacional. Sobre o tema, confira a edição 193 dos é cantado no rap. Que mundos es- 16 Donna Haraway (1944): bióloga, filósofa, escritora e Cadernos IHU ideias, intitulada #VEMpraRUA: Outono Bra- professora nascida nos Estados Unidos. Escreveu diver- sileiro? Leituras, disponíveis em http://bit.ly/2aVdHxw. A ses gestos, essas letras, esses modos sos livros e artigos sobre ciência e feminismo. Entre seus edição 524 da revista IHU On-Line, Junho de 2013 – Cinco textos mais destacados está o ensaio Manifesto ciborgue. Anos depois. Demanda de uma radicalização democrática de fazer estão convocando? E nesse Ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do sé- nunca realizada, de 18 de junho de 2018, está disponível sentido, de contar histórias que não culo XX, publicado originalmente no periódico Socialist em http://www.ihuonline.unisinos.br/edicao/524. (Nota da Review, em 1985. (Nota da IHU On-Line) IHU On-Line) as narrativas oficiais, de achar mo-

15 DE ABRIL | 2019 REVISTA IHU ON-LINE dos pra fazer vazar uma vida, isso é gem o samba, o rap e outras IHU On-Line – Que histórias sim muito potente, necessário, ur- tantas manifestações culturais você gostaria que sua geração gente! E ao mesmo tempo, isso é o e artísticas. É em momentos-li- narrasse aos que virão? que se faz, há anos e anos... Nessas mite que o ser humano pode Gabriela Acerbi – Se for pra falar horas gosto de pensar a própria vida ser capaz de revelar o seu me- em histórias que deixaremos, gostaria enquanto obra, uma estética da exis- lhor? Por quê? que a gente conseguisse trazer a força tência. Estética, ética, política... Gabriela Acerbi – Acredi- das contranarrativas. Histórias a con- Fico pensando que com Bolsonaro to que a resposta dessa pergunta trapelo, num sentido benjaminiano ou sem Bolsonaro, por exemplo, can- pode ser encontrada em tudo que talvez (para usar as ideias de alguém domblecistas vão seguir guardando falei até agora, e para não me re- que também morreu no colapso da as sextas-feiras, vestindo o branco, petir, chamo atenção apenas para Segunda Guerra Mundial e seus exter- não comendo determinados alimen- essa questão do que “melhor pode mínios, como Etty). Gostaria que dei- tos naquele dia. Ou que a pajelança ser revelado” do ser humano. Não xássemos uma multiplicação de his- indígena vai continuar existindo, que sei se alcança essa condição do tórias do ponto de vista dos vencidos, a congada mineira ocupará as ruas melhor ou do pior, mas aquilo que aquelas que até então existiram, mas em maio pra São Benedito, que é um pode ser feito, produzido frente a não ocuparam as narrativas oficiais. Santo negro. Ou que os Yanomami todas essas dificuldades, as vio- Aquelas que não são encontradas no vão seguir enxergando os espíritos lências vividas e aos problemas idioma institucional, e se estão, foram xapiri, fazendo eles dançarem para o estruturais que assolam. Acredito retorcidas. Contranarrativas, no plu- céu não cair, ainda que a mineração que estamos falando então da ca- ral, que furem as bolhas, as identida- coma seus territórios aceleradamente pacidade de produzir um possível. des, as noções de sujeito dominantes e os contamine com suas epidemias. E frente a todas essas truculências, e também as pretensões modernas de nessa ação artística ou qualquer modos ocidentais, europeus, masculi- outra que seja, há um possível que nos, brancos, da mercadoria de criar, IHU On-Line – A truculência se abre, que vem desse encontro escrever e produzir. da ditadura no Brasil fez aflo- de forças. Um possível esse que se rar movimentos artísticos que liga a uma feitura do mundo, um Na verdade, tenho a impressão de 65 são reconhecidos até hoje, a modo de fazer diante dos escom- que essas contranarrativas não pa- dor da Shoá fez emergir a po- bros, como disse acima, e que está ram de se multiplicar, de ocupar os esia de amor nos escritos de vinculado a um modo de vida e às espaços, e principalmente, sem preci- Etty Hillesum, e nas dificulda- formas que ele encontra para per- sar dobrarem-se à gramática da sujei- des da vida nas periferias das severar suas concepções, seus con- ção, da servidão e da subalternidade grandes cidades do Brasil sur- ceitos, sua ação. instaurada. ■

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Contra os ressentidos de 2013 é preciso alegria como substância para resistência Thiago Amud analisa como as marchas foram apreendidas pelo “neofascismo” e vê na arte uma forma de ativar sentimentos que mobilizam sentimentos positivos como reação

João Vitor Santos

que a França tem vivido nos nesses movimentos que apreende si- últimos tempos com o movi- milaridades com a experiência de Etty mento dos “coletes amarelos” Hillesum. “Etty vai parar no coração pareceO um filme que já foi visto pelo da estrutura mortífera. Ali, dentro do Brasil em Junho de 2013, ou mesmo mundo exausto reencantado artificio- pelo francês Nuit debout de 2016. De samente pelos dispositivos do ocultis- uma onda de protestos desencadea- mo e da técnica, ela nos faz enxergar dos a partir das redes, aparentemente que as qualidades de nosso estar no sem liderança clara e como algo que mundo nunca são atributos concedi- emerge das bases, os confrontos se dos pelos donos do poder”, compara. tornam munição para o sufocamento Amud ainda aponta a arte como uma 66 de ações progressistas, ao passo que chave interessante, que pode ajudar nutrem reações de uma nova extrema nesse processo de resistência alegre. direita. “Até 2013, a direita andava “Os intelectuais acadêmicos da esquer- envergonhada, esgueirando-se fisiolo- da precisam entender algumas coisas gicamente em cantinhos do PSDB, do que artistas já intuem: que o iluminis- DEM. A partir de 2013, a direita bra- mo não pode virar superstição; que a sileira monta no cavalo negro do res- religiosidade do povo brasileiro tende sentimento e começa a agenciar todas ao messianismo; que ser republicano as sombras do país”, observa o músico não é sinônimo de ser democrata; que Thiago Amud, ao falar da realidade a classe média não deve ser entregue brasileira. Para ele, a profusão de 2013 de bandeja à máquina paranoica dos não foi entendida pela esquerda – e ultraconservadores; que é preciso não talvez nem pela direita –, mas desse apenas entender a forma como as re- “não entendimento” se abre uma bre- des (estruturas de natureza não em- cha e “o hype neofascista se alastra a pática) conseguem acicatar todos os partir daí”. desejos reativos, mas também elabo- E como reagir? “Se compreender- rar um programa de ação contra-hip- mos tal processo como um longo en- nótico sob medida para essas mesmas cadeamento entre causas intelectuais redes”, acrescenta. e efeitos anti-intelectuais, melhor entenderemos que a perversão é uma Thiago Amud é compositor, arran- dobra sombria necessária do mundo jador, cantor e violonista carioca, par- dito esclarecido, e não um seu aciden- ceiro de artistas como Guinga, Fran- te”, analisa, na entrevista concedida cis Hime, Edu Kneip, entre outros. por e-mail à IHU On-Line. “Por isso, Na sua discografia, destacamos 78 a alegria deve ser a própria substância rotações (2000), Sacradança (2010) e de toda resistência aos hiper-racio- De ponta a ponta tudo é praia-palma nais, dos catedráticos aos tecnicistas (2013). e aos ocultistas”, completa. Assim, é Confira a entrevista.

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IHU On-Line – Etty Hillesum como Caetano1, Gilberto Gil2, trabalha uma resistência alegre “Os tempos em tempos sombrios, de perso- 1 (1942): músico, produtor, arranjador e escritor nascido em Santo Amaro (BA). Com uma carreira nificação do mal. Qual a potên- que couberam que ultrapassa cinco décadas, Caetano construiu uma obra cia de uma resistência alegre musical marcada pela releitura e renovação, considerada como de grande valor intelectual e poético. Começou sua diante do perverso? carreira profissional em 1965, com o compacto Cavaleiro/ a Etty viver Samba em Paz, enquanto acompanhava a irmã mais nova Maria Bethânia por suas apresentações nacionais do espe- Thiago Amud – Os tempos que táculo Opinião, no Rio de Janeiro. Nessa década, conheceu couberam a Etty viver foram mais foram mais do , e Tom Zé, participou dos festivais de música popular da Rede Record e compôs trilhas de do que sombrios. Foram a própria filmes. Em 1967, saiu seu primeiro LP, Domingo, com Gal que sombrios” Costa, e, no ano seguinte, liderou o movimento chamado Sombra desprendida da busca que Tropicalismo, que renovou o cenário musical brasileiro e o espírito alemão empreendeu no os modos de se apresentar e criar música no Brasil, através do disco Tropicalia ou Panis et Circencis, ao lado de vários sentido de um total esclarecimento músicos. Em 1968, por conta do recrudescimento da dita- racional. A Reforma Protestante, a dura militar no Brasil, compôs É proibido proibir, música IHU On-Line – Durante a re- que foi desclassificada e vaiada durante o 3º Festival In- Crítica da Razão Pura e a dialética pressão da ditadura militar, ternacional da Canção. Em 1969, foi preso pelo regime mi- litar e partiu para exílio político em Londres, onde lançou hegeliana, por exemplo, são sinais a poesia e a música eram oxi- o disco Caetano Veloso (1971), com temática melancólica de um processo autoanalítico multis- e canções compostas em inglês e endereçadas aos que gênio para resistência e para ficaram no Brasil. Transa (1972) representou seu retorno secular que vai exaurindo o espírito quem sonhava com tempos me- ao país e seu experimento com compassos de reggae. Em 1976, uniu-se a Gal Costa, Gilberto Gil e Maria Bethânia alemão, inteiriçando-o. Quando cri- lhores. Quais os desafios para, para formar os Doces Bárbaros, grupo influenciado pela ses econômicas e avanços tecnicistas temática hippie dos anos 1970, lançando um disco, Doces em meio à aspereza de uma Bárbaros, e saindo em turnê. Na década de 1980, apadri- se juntam a isso, temos todos os ele- realidade, conceber escapes nhou e se inspirou nos grupos de rock nacionais, aven- turou-se na produção dos discos Outras Palavras, Cores, mentos de uma ideologia totalizante através de uma arte que anima Nomes, Uns e Velô, e, em 1986, participou de um progra- de guerra. ma de televisão com . Na década de 1990, e não se entregue ao lamento? escreveu o livro Verdade Tropical (1997) e lançou o disco Livro (1998). Ganhou o Prêmio Grammy em 2000, na cate- A Sombra à qual me referi começa Thiago Amud – Sinto que é pre- goria World Music. Com o disco A Foreign Sound, cantou clássicos norte-americanos. Em 2006, lançou o álbum Cê, a ganhar vida própria quando ideó- ciso que todos deem tudo que têm fruto de sua experimentação com o rock e o underground. logos, já sem lastro naquilo que um Unindo estes gêneros ao samba, Zii e Zie, de 2009, man- uns aos outros, menos sua fonte mis- teve a parceria com a Banda Cê, que se encerrou no disco dia fora a vitalidade daquela cultu- teriosa de vida. Porque é claro que Abraçaço, de 2012. É considerado um dos artistas brasi- leiros mais influentes desde a década de 1960. Em 2004, 67 ra, identificam a desorientação da há os que exigem de nós justamente foi considerado um dos mais respeitados e produtivos maioria e conseguem “reorganizar” músicos latino-americanos do mundo, tendo mais de 50 aquilo que não podemos dar. discos lançados. Foi eleito pela revista Rolling Stone o 4º os anseios nacionais lançando mão maior artista da música brasileira de todos os tempos pelo O artista precisa se conhecer, sa- conjunto da obra e pela mesma revista o 8º maior cantor de mitos ocultistas que aparente- brasileiro de todos os tempos. (Nota da IHU On-Line) mente reinterpretam o sentido da ber qual é seu núcleo inegociável. Se 2 Gilberto Gil (1942): cantor, compositor, multi-instru- algo ferir esse núcleo, que deixe vir mentista, escritor, ambientalista e empresário nascido em existência daquela cultura. Os mitos Salvador (BA), um dos criadores do Movimento Tropicalista arianistas galvanizam setores da eli- seu lamento, pois quando o artista nos anos 1960. Conhecido por sua inovação musical e por ser ganhador de prêmios Grammys. Recebeu do governo te e das classes médias e fornecem significa sua dor, mitiga o sofrimen- francês a Ordem Nacional do Mérito (1997) e da Unes- to do mundo. Não-artísticos são os co o título de “artista pela paz” (1999). Gil foi embaixador energia a um partido arrivista, cheio da ONU para agricultura e alimentação e ex-ministro da de ressentidos e alucinados. amuos. Não-artística é a crueza da Cultura (2003-2008). Em mais de 50 álbuns lançados, ele incorpora a gama eclética de suas influências, incluindo dor. Não-artística é a neura irredimi- rock, gêneros tipicamente brasileiros, música africana e Se compreendermos tal processo da. Porque mesmo elegíaca a criação reggae. Sua carreira musical começou em 1964, quando como um longo encadeamento entre cursava Administração na Universidade Federal da , e permanece altiva em relação à mes- participou do show Nós, Por Exemplo, ao lado de Caetano causas intelectuais e efeitos anti-in- Veloso, Tom Zé, Gal Costa e Maria Bethânia, na inaugura- quinhez. E, aí, já está a alegria: es- ção do teatro Vila Velha, em Salvador. Em 1965, mudou- telectuais, melhor entenderemos que boço de triunfo sobre a opressão da se para São Paulo. No ano seguinte, sua música Ensaio a perversão é uma dobra sombria ne- geral, interpretada por Elis Regina, ficou em 5º lugar no sintaxe normativa, no mínimo. 2° Festival de Música Popular Brasileira (FMPB), realizado cessária do mundo dito esclarecido, pela antiga TV Record. Em 1967, a música Domingo no parque, que cantou junto com os Mutantes, ficou em 2º e não um seu acidente. Por isso, a Penso que quem quer que tenha lugar no 3º FMPB. Nesse mesmo ano lançou seu primeiro ajudado qualquer pessoa a recuperar disco, Louvação. O 3º FMPB foi o ponto de partida para alegria deve ser a própria substância o Tropicalismo, de que Gil participou junto com Caetano de toda resistência aos hiper-racio- vontade de vida e alegria é um pou- Veloso, Torquato Neto, Tom Zé e Rogério Duprat, entre ou- tros. Em 1968, lançou Gilberto Gil, com 14 músicas, entre nais, dos catedráticos aos tecnicistas co anjo da guarda. Somente na arte a elas, Procissão e Domingo no parque. Lançou também um tristeza alegra, porque o indizível ga- disco manifesto, intitulado Tropicalia, do qual participa- e aos ocultistas. Etty vai parar no ram também Caetano, Gal Costa, Os Mutantes, Tom Zé e coração da estrutura mortífera. Ali, nha nome sem perder o mistério. Por Torquato Neto. O Movimento Tropicalista foi considerado subversivo pela ditadura militar, e Gil foi preso, junto com dentro do mundo exausto reencan- isso o artista não fabrica escapes: ele Caetano Veloso. Em 1969, ambos se exilaram na Inglaterra. cria o campo simbólico onde todos Nesse mesmo ano, foi lançado Gilberto Gil (1969), onde tado artificiosamente pelos disposi- se destacou a música Aquele abraço. No início de 1972, tivos do ocultismo e da técnica, ela poderemos não sucumbir ao pesade- Gilberto Gil voltou ao Brasil, em seguida lançou Expresso 2222. Em 1976, junto com Caetano, Gal e Betânia, forma- nos faz enxergar que as qualidades lo enlouquecedor da história. ram o conjunto Doces Bárbaros, que rendeu um álbum e de nosso estar no mundo nunca são várias turnês pelo país. Em 1978, se apresentou no Festi- val de Montreux, na Suíça. Nesse mesmo ano ganhou o atributos concedidos pelos donos do Grammy de Melhor Álbum de Word Music com Quanta Gente Veio Ver. Em 1980, lançou uma versão em portu- poder. Alegria é entender que nasce- IHU On-Line – Como observa guês do reggae No Woman, No Cray (Não Chores Mais), mos com nossa morte e que dela só a relação das gerações mais jo- sucesso de Bob Marley. Entre 1989 e 1992, foi vereador na Câmara Municipal de Salvador, pelo Partido Verde. Em nos tira Aquele que nos deu a vida. vens com as músicas de artistas 2003, foi nomeado ministro da Cultura, se desligando em

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Milton Nascimento3, Chico Bu- Quanto aos quatro compositores Sua radical adesão aos ideais da de- arque4 e tantos outros que fa- citados acima, há neles elementos mocracia – e não um seu narcisismo ziam resistência à repressão? mais do que suficientes para todas as – exige que ele interfira o tempo todo. inquietudes. Caetano se diz e se pensa sem parar Thiago Amud – Dou aulas de porque dizer-se e pensar-se é exercí- violão e música e a maioria de meus cio de liberdade, interferir é afirmar alunos tem entre 20 e 30 anos. Eu, as forças da vida. aos 13 anos, já sabia que a músi- ca brasileira seria meu destino. Fui Seja entre concretistas ou funkeiros, crescendo em descompasso com “A alegria deve Caetano é sempre o coração sensível meus colegas de sala de aula que, em do legítimo desejo brasileiro de ori- sua esmagadora maioria, gostavam ser a própria ginalidade. Por isso mesmo – porque apenas de funk, dance music ou he- ele vê que poderíamos ser imensa- avy metal. (Hoje vejo com simpatia substância de mente maiores do que somos – algu- o funk. Aprendi a gostar de tudo que mas de suas canções mais violentas não fere a alteridade. E o funk é uma toda resistência surgem nas décadas da redemocra- bomba de energia brasileira). tização, quando ficou nítido que me- Voltando a meus alunos: se quando aos hiper- canismos opressores nunca deixaram eu tinha aquela idade esses composi- de atuar sobre os mais pobres. tores que você citou já faziam “mú- racionais, dos sica de velho” no entendimento ado- catedráticos lescente de quase todo meu meio, Gil imagine agora que eles têm 75 anos! aos tecnicistas Já a liberdade de Gil é a de quem Então, vou aos poucos percebendo as venceu o medo da morte; portanto, inquietudes de cada aluno meu, suas e aos ocultistas” venceu o desejo. A complexidade de questões existenciais, indignações po- sua obra é tamanha que parece regi- líticas, conflitos amorosos e familia- da por uma heteronímia quase pes- 68 res. Só então eu tento aplicar neles os soana. Mas, pop star ou mestre Zen, grandes nomes da música brasileira, tribal ou intimista, tecnológico ou sempre a partir do que eles me mos- Chico sertanejo, Gil sempre parece extrair tram de si mesmos, e nunca a partir suas canções de embates totais entre de apriorismos meus sobre “forma- A obra de Chico Buarque acompa- o seu coração e o do Ser. Assim, des- ção cultural básica”. Não creio nesse nha toda a formação do Brasil: todos vela dimensões e conexões tão insus- negócio de ter que conhecer uma de- os ciclos, todos os apogeus, todas as terminada quantidade de coisas para decadências. Gostar de Chico é gos- peitadas que não nos dão outra opção virar alguém. Já até fingi que acredita- tar do Brasil: é gostar do samba, é ser senão aceitarmos a vida por inteiro – va nisso, mas sempre achei bobagem bom sujeito, é gostar da sofisticação o que muitas vezes é mal interpretado para aliviar má consciência de bur- oblíqua da civilidade que em nós se como relativismo ou passividade. guês. Ainda mais em se tratando de esboça de modo específico e que vira Movimentando-se constantemen- música, que é fluência, não é cânone. e mexe é solapada por tsunamis de te entre ser ele mesmo o pulso da barbárie. tribo e ser quem a pensa distancia- damente, Gil resulta misterioso. janeiro de 2008, para se dedicar à carreira musical. Depois O enamoramento do Brasil por Chi- de três casamentos, o músico está casado com Flora Gil, co é sinal de nosso ouvido musical, Há nele sempre algo que nos es- que conheceu em 1979. (Nota da IHU On-Line) capa, mas nunca tanto quanto em 3 (1942): cantor e compositor brasi- pois o coração da música de Chico é leiro, reconhecido mundialmente como um dos mais in- Milton Nascimento. fluentes e talentosos cantores e compositores da Música ardiloso, suas tonalidades tendem à Popular Brasileira. Mineiro de coração, tornou-se conheci- do nacionalmente, quando a canção Travessia, composta ambiguidade entre os modos maior por ele e Fernando Brant, ocupou a segunda posição no e menor, entre os afetos em conflito, Festival Internacional da Canção, de 1967. Em 1998, ga- nhou o Grammy de Best World Music Album in 1997. Foi da mesma forma que não sabemos se Milton nomeado novamente para o Grammy em 1991 e 1995. (Nota da IHU On-Line) aqueles olhos ardósia são de zomba- 4 Chico Buarque [Francisco Buarque de Hollanda] (1944): ria ou melancolia. Nunca saberemos Milton talvez escape inteiramente músico, compositor, teatrólogo e escritor carioca. Um dos até de si mesmo. Talvez antes dele mais famosos nomes da música popular brasileira (MPB), o que nele é máscara. cuja discografia tem aproximadamente 80 títulos. Ganhou a música popular brasileira nunca fama por sua música, que comenta o estado social, econô- mico e cultural do Brasil. Começa a ter destaque a partir de Caetano tivesse atingido o cerne inconsciente 1966, quando lançou seu primeiro álbum, Chico Buarque da vontade subjacente às represen- de Hollanda, e venceu o Festival de Música Popular Bra- sileira com a música A banda. Autoexilou-se na Itália em Caetano Veloso não se deixa captu- tações. Por isso, tudo em sua música 1969, devido ao aumento da repressão da ditadura insta- lada em 1964. Venceu três Prêmios Jabuti de literatura: o rar pelas categorias da história e dos é experiência religiosa, chamamen- de melhor romance em 1992, com Estorvo, e o de Livro do mascaramentos teatrais: sua música to, iniciação, sacrifício, epifania, li- Ano com Budapeste, lançado em 2004, e Leite Derramado, em 2010. (Nota da IHU On-Line) se abre a tudo que é vontade de vida. turgia, transe, comunhão. Ele não é

15 DE ABRIL | 2019 REVISTA IHU ON-LINE discursivo, ele é a inteireza de uma situando-o na linha da alquimia e da e começa a agenciar todas as som- intensidade, de uma revelação. simpatia, inscrevendo-o na história bras do país. Adensa-se o caldo onde da singularidade amorosa da música se move: desejo de criminalizar cer- brasileira. tos desejos sexuais, para desentravar IHU On-Line – Na periferia a bestialidade de outros; projetos de O Brasil não pode prescindir do das grandes cidades brasileiras, pauperizar mais ainda os periféricos, samba nem do rap. mesmo apesar de toda a adver- desregulamentando seus direitos sidade, sempre brotou o samba, trabalhistas; avanços neopentecos- o rap e outras manifestações ar- tais sobre a saúde pública; avanços tísticas que buscam uma forma ocultistas sobre a educação; defesa de resistência alegre. Hoje, nas do direito à propriedade acima do periferias do Brasil, a arte ainda “Não-artísticos direito à vida. é uma arma potente contra su- Quase todas as famílias brasileiras pressão? Por quê? são os amuos. racharam. E não creio que tão cedo Thiago Amud – Toda resistên- Não-artística é isso tenha volta. Então, acho que os cia cultural surgida nas periferias coletivos emancipatórios que tam- do Brasil age sobre toda a sociedade a crueza da dor. bém tomaram as ruas em 2013, os brasileira, e pode vir a ajudar a civili- movimentos sociais e os partidos de zação como um todo, na medida em Não-artística oposição, precisam agir coordenada- que entendemos por civilização um mente no sentido da organização da projeto universalizante baseado no é a neura energia política. O movimento não respeito às alteridades. O sofrimen- pode ser de mera reação, o que seria to das periferias, sua experiência de irredimida” aceitar o ressentimento como instân- choque direto com as engrenagens cia política legítima. do Estado, produz os anticorpos da Se as forças da conservação assumi- sociedade. ram a vanguarda da agressividade, IHU On-Line – Em 20137, o O Brasil viveu por muito tempo caberá às forças do progresso assumir Brasil viveu uma explosão de 69 a cultura dos negaceios, da síntese a defesa suprapartidária do projeto narrativas, de inúmeras ações entre os contrários, do entrelugar. O original do amálgama brasileiro. Por de coletivos que tomavam o es- samba é isso: fluidez, síncope, triste- outro lado, os intelectuais acadêmi- paço público. O que ficou dessa za que balança, dialética da malan- cos da esquerda precisam entender experiência hoje? dragem. Já o rap, nascido nas peri- algumas coisas que artistas já intuem: ferias da megalópole pós-industrial Thiago Amud – O hype neofas- que o iluminismo não pode virar su- São Paulo, introduz na cultura brasi- cista se alastra a partir daí. Até 2013, perstição; que a religiosidade do povo leira, pela primeira vez, um discurso a direita andava envergonhada, es- brasileiro tende ao messianismo; que direto não conciliatório. gueirando-se fisiologicamente em ser republicano não é sinônimo de cantinhos do PSDB, do DEM. A par- ser democrata; que a classe média Mas o mero fato de os Racionais5 re- tir de 2013, a direita brasileira mon- não deve ser entregue de bandeja à conhecerem a importância de Jorge ta no cavalo negro do ressentimento máquina paranoica dos ultraconser- Ben6 já particulariza o rap brasileiro, vadores; que é preciso não apenas 7 Junho de 2013: os protestos no Brasil em 2013, tam- entender a forma como as redes (es- 5 Racionais MC’s: grupo brasileiro de rap, fundado em bém conhecidos como Manifestações dos 20 centavos, 1988, e formado pelos MC’s Mano Brown, Edi Rock e Ice Manifestações de Junho ou Jornadas de Junho, foram truturas de natureza não empática) Blue e o DJ KL Jay. É o maior grupo de rap do Brasil e várias manifestações populares por todo o país que ini- conseguem acicatar todos os desejos está entre as bandas mais influentes do país. Suas canções cialmente surgiram para contestar os aumentos nas tarifas demonstram a preocupação em denunciar a destruição da de transporte público, sobretudo nas principais capitais. reativos, mas também elaborar um vida de jovens negros e pobres das periferias brasileiras e Inicialmente restrito a pouco milhares de participantes, os o resultado do racismo e do preconceito, ao sustentarem atos pela redução das passagens nos transportes públicos programa de ação contra-hipnótico a miséria diretamente ligada com a violência e o crime. ganharam grande apoio popular em meados de junho, em sob medida para essas mesmas redes. Temas como a brutalidade da polícia, do crime organizado especial após a forte repressão policial contra os manifes- e do Estado, bem como o preconceito, as drogas e a ex- tantes, cujo ápice se deu no protesto do dia 13 em São clusão social são recorrentes nas letras do grupo. Embora Paulo. Quatro dias depois, um grande número de popu- inicialmente conhecido apenas na capital paulista, o grupo lares tomou parte das manifestações nas ruas em novos conseguiu alcançar sucesso significativo a partir dos ál- diversos protestos por várias cidades brasileiras e até do IHU On-Line – Em tempos buns Raio X Brasil (1993), Sobrevivendo no Inferno (1997) exterior. Em seu ápice, milhões de brasileiros estavam nas e Nada como um Dia após o Outro Dia (2002). (Nota da ruas protestando não apenas pela redução das tarifas e a de ódio e intolerância, ainda IHU On-Line) violência policial, mas também por uma grande variedade 6 (1945): guitarrista, cantor e compositor popu- de temas como os gastos públicos em grandes eventos potencializados pelas redes lar brasileiro. Seu estilo característico possui diversos ele- esportivos internacionais, a má qualidade dos serviços sociais, surgem discursos que mentos, entre eles: rock and roll, samba, samba rock (ter- públicos e a indignação com a corrupção política em ge- mo que gosta de usar), bossa nova, jazz, maracatu, funk, ral. Os protestos geraram grande repercussão nacional questionam o financiamento ska e até mesmo hip hop, com letras que misturam humor e internacional. Sobre o tema, confira a edição 193 dos e sátira, além de temas esotéricos. A obra de Jorge Ben Cadernos IHU ideias, intitulada #VEMpraRUA: Outono Bra- de espetáculos, alegando que tem uma importância singular para a música brasileira, sileiro? Leituras, disponíveis em http://bit.ly/2aVdHxw. A investimento público não deve por incorporar elementos novos no suingue e na maneira edição 524 da revista IHU On-Line, Junho de 2013 – Cinco de tocar violão, com características do rock, soul e funk Anos depois. Demanda de uma radicalização democrática ser destinado para esse setor. norte-americanos. Além disso, trouxe influências árabes e nunca realizada, de 18 de junho de 2018, está disponível Como responder a esses dis- africanas, oriundas de sua mãe, nascida na Etiópia. (Nota em http://www.ihuonline.unisinos.br/edicao/524. (Nota da da IHU On-Line) IHU On-Line) cursos?

EDIÇÃO 534 TEMA DE CAPA

Thiago Amud – Eu penso que e merecerem os tempos melhores; Caí lá do alto, meu tombo foi longo os grandes artistas democráticos para saberem que tal desejo não e muito bem vivido, porque afinal caí brasileiros podem ainda roubar o é alienação, mas, sim, saudade do em mim. Sendo assim, vi de perto e protagonismo dos debates sobre futuro; para saberem que tal mere- posso afirmar que alguns dos avan- arte nas redes. Não basta fazerem cimento nasce de uma reeducação ços mais sinistros da neodireita ainda declarações à imprensa, não basta ética e estética. parecem, a muitos jovens semicul- nada que ainda configure uma co- tos e desorientados, nada mais que

municação vertical de cima para ampliação do debate democrático. baixo entre artista e público. Muitos desses dândis não estão nem perto de intuir que servem de massa Esses grandes artistas precisariam de manobra. horizontalizar sua comunicação, fo- “O sofrimento mentar fóruns de debate, ser peda- Até onde entendo, a esquerda deve gógicos, abrir diálogos diretos em das periferias, primar por sempre fazer que coisas suas páginas para tentar neutralizar e sua experiência contraditórias circulem às claras. Cabe reverter a corrente de desamor geral a ela assumir os riscos da confusão formada por essa enorme quantidade de choque saudável do mundo moderno que ela, de pequenezas blindadas. Penso que num gesto iluminador, pariu. Mas, ao eles deveriam fazer isso não apenas direto com as que me parece, no Brasil a intelectua- para “salvarem suas peles”, mas para lidade progressista está tardando a ver ajudarem a salvar as peles de todos engrenagens a fundura do neomedievalismo jiha- os que chegamos depois deles e que dista que agora está desferindo suces- amamos o Brasil, em grande medida, do Estado, sivos golpes no bom senso e nas bases por causa deles. humanistas da civilização. Esses pequenos ódios covardes es- produz os Se a agenda regressiva está avançan- tão fazendo estragos porque perma- anticorpos da do tão a passos largos é porque um necem expressões de um quantita- neorrelativismo hiper-racional está 70 tivismo tacanho: número de likes e sociedade”. conseguindo inverter sistematicamen- deslikes, “fulano enriqueceu”, “fulano te o sentido de todas as narrativas e é da mamata”. Ora, o mundo da arte convencer um bando de siderados em é o mundo qualitativo. Portanto, pru- IHU On-Line – Que canção re- rede de que as esquerdas são corrup- ridos aristocráticos não devem exi- presenta o Brasil de 2018? E que tas, de que nunca houve ditadura, de mir artistas de cumprir parte de seu música inspira a sonhar e cons- que falar da herança da escravidão é papel civilizatório. Espero que sejam truir um futuro para o país? mimimi, de que não há violência con- radicalmente democráticos, que des- tra mulheres etc. Thiago Amud – Vou começar çam dos tronos e falem com todos essa resposta por uma longa digres- É preciso estudar. É preciso que os diretamente, inclusive com os haters. são. Não me movo seguindo princí- intelectuais progressistas estudem “Ouro, desça do seu trono!”, como pios rígidos de identidade e diferen- os “fundamentos” dessa hiper- disse aquele samba8 divino do Paulo ça. Não deduzo logicamente quase racionalidade neofascista que age às da Portela9. nada a partir dos consensos. Por isso claras invisivelmente, pois a agenda sinto que onde há horror há beleza política regressiva nada mais faz do IHU On-Line – Qual o papel da (Olha a Etty aí de novo!). Estou sem- que traduzir tais “fundamentos”. Os arte numa sociedade em crise? pre em busca do germe de alegria no intelectuais progressistas precisam horror geral. Onde há alastramento se manter maiores do que a direita, Thiago Amud – Preparar o co- do fascismo há anticorpos, em quan- abarcando-a, para antecipar suas ração das pessoas para desejarem tidade ainda maior. movimentações e minimizar os males. A meu ver eles poderiam estudar ao Mas, analogamente, estive sensivel- menos duas fontes que, imagino eu, 8 Ouça a íntegra desse samba em http://bit.ly/2zWptmZ. mente atento aos muitos grãos de em- (Nota da IHU On-Line) ainda desconhecem: o perenialismo 9 Paulo da (1901-1949): foi um sambista brasi- burrecimento geral que germinaram 10 11 leiro. Seu apelido é uma referência à Estrada do Portela, de Guénon e o ocultismo de Evola . uma via que corta os bairros de Madureira e Oswaldo nos tempos de coalizão democrática. Cruz. Foi um dos que mais lutaram para mudar a imagem estereotipada e preconceituosa que se tinha a respeito do Quem me conheceu na década pas- 10 René Guénon (1886-1951): foi um intelectual francês sambista, de malandro e vagabundo, para a de artista de sada deve lembrar que não me esqui- do século XX tido por alguns como ‘inclassificável’. Sua in- respeito. Para isso, ele impôs vestuário próprio para sua fluente obra, não obstante isso, pode ser classificada em agremiação, e defendia que todos os portelenses estives- vei nem mesmo de estudar algumas três vertentes: a exposição da metafísica tradicional, a crí- sem devidamente vestidos com as cores da escola no dia tica ao materialismo e individualismo do mundo moderno do desfile. Foi o primeiro presidente da Portela e sua casa ideias da direita. Certa necessidade e a explicação do simbolismo das civilizações tradicionais, foi a primeira sede da escola, muito embora nesta época de ostentar liberdade já me fez dizer a em especial das civilizações hindu, chinesa, islâmica e cris- a sede não fosse nada além de um lugar para guardar os tã. (Nota da IHU On-Line) instrumentos. Em 1937, Paulo da Portela foi eleito Cidadão colegas coisas injustas, por puro des- 11 Giulio Cesare Andrea Evola (1898-1974): mais conhe- Samba. Ainda neste mesmo ano, participou da primeira fastio, por horror ao tédio. Dandismo cido como Julius Evola, foi um filósofo esotérico, escritor, excursão de sambistas ao exterior, indo ao Uruguai, e re- pintor e poeta italiano do século XX, em cuja obra se têm tornando ao Brasil já no Carnaval. (Nota da IHU On-Line) é sinal de melancolia. inspirado algumas correntes esotéricas contemporâneas e

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O caráter político dessa luta deve ser Esquina13, da Casa da Tia Ciata14 e Jorge Ben, das polirritmias das con- vasto a ponto de incluir a luta pela des- de Villa-Lobos15, da bossa nova e de gadas e das harmonias de Guinga. colonização do imaginário de um país em transe. Sendo assim, afirmo que (o movimento sofreu influências e influenciou o Cinema tenho tentado acompanhar a curvatu- novo de Gláuber Rocha) e o teatro brasileiro (sobretudo nas peças anárquicas de José Celso Martinez Corrêa). Avesso do fascismo ra desses problemas com minha mú- Um dos maiores exemplos do movimento tropicalista foi uma das canções de Caetano Veloso, denominada sica. Mas meu trabalho, que tem sido exatamente de “Tropicália”. Leia a edição 411, intitula- A música brasileira é o avesso de todo da Tropicalismo. O desejo de uma modernidade amo- um teatro barroco de máscaras e uma rosa para o Brasil, disponível em http://bit.ly/ihuon411. fascismo e eu sou um músico brasilei- vontade romântica de interferência na (Nota da IHU On-Line) 13 Clube da Esquina: foi um movimento musical brasilei- ro. Algumas canções que escrevi entre ordem das coisas, já envereda por ca- ro surgido na década de 1960 em Belo Horizonte, Minas 2004 e 2013 já anunciavam muito do Gerais, onde jovens músicos começaram a se reunir. Seu minhos outros. som se fundia com as inovações trazidas pela Bossa Nova que vemos hoje. Depois dali enveredei a elementos do jazz, do rock – principalmente os Beatles –, Faço o que faço porque nasci no música folclórica dos negros mineiros com alguns recursos por caminhos outros, onde estou re- 12 de música erudita e música hispânica. Nos anos 70, esses encontrando o veio original da minha país do tropicalismo e do Clube da artistas tornaram-se referência de qualidade na MPB pelo alto nível de performance e disseminaram suas inovações música. Que venha a alegria.■ e influência a diversos cantos do país e do mundo. (Nota escritores tradicionalistas. De acordo com o pesquisador da IHU On-Line) Franco Ferraresi, “o pensamento de Evola pode ser consi- 14 Casa da Tia Ciata: Hilária Batista da Silva, conhecida derado um dos sistemas anti-igualitários, antiliberais, anti- como Tia Ciata, cozinheira e mãe de santo nascida na democráticos e antipopulares mais radicais e consistentes Bahia, é uma das figuras mais influentes da cultura negra teca Nacional. Ele lhe ensinara a tocar violoncelo usando do século XX”. (Nota da IHU On-Line) carioca do início do século XX. Realizava encontros entre improvisadamente uma viola, devido ao tamanho de 12 Tropicalismo, Movimento tropicalista ou Tropi- os músicos e religiosos filhos de santo, e nessas seções Tuhu (apelido de origem indígena que Villa-Lobos tinha cália: movimento cultural brasileiro que surgiu sob a a música dava o tom. Músicos importantes como na infância). Sozinho, aprendeu violão na adolescência, influência das correntes artísticas de vanguarda e da e Pixinguinha eram frequentadores assíduos das rodas, e em meio às rodas de choro cariocas, às quais prestou tri- cultura pop nacional e estrangeira (como o pop rock e especula-se que Pelo Telefone, primeiro samba gravado buto em sua série de obras mais importantes: Os Choros, o concretismo) misturou manifestações tradicionais da em disco, foi escrito em um desses encontros. A Casa da escritos na década de 1920. Destaca-se por ter sido o cultura brasileira a inovações estéticas radicais. Tinha Tia Ciata é um escritório da Organização dos Remanes- principal responsável pela descoberta de uma linguagem objetivos comportamentais, que encontraram eco em centes da Tia Ciata (ORTC) e espaço cultural para manter peculiarmente brasileira em música, sendo considerado boa parte da sociedade, sob o regime militar, no final da viva a memória da dama do samba. Uma exposição per- o maior expoente da música do modernismo no Brasil, década de 1960. O movimento manifestou-se principal- manente sobre a veterana do samba é a principal atração compondo obras que contém nuances das culturas re- mente na música (cujos maiores representantes foram do espaço. (Nota da IHU On-Line) gionais brasileiras, com os elementos das canções po- Gilberto Gil, Torquato Neto, Os Mutantes e Tom Zé); 15 Heitor Villa-Lobos (1887-1959): compositor nascido pulares e indígenas. No Brasil, sua data de nascimento manifestações artísticas diversas, como as artes plásti- no Rio de Janeiro. Aprendeu as primeiras lições de mú- (5 de março) é celebrada como Dia Nacional da Música cas (destaque para a figura de Hélio Oiticica), o cinema sica com seu pai, Raul Villa-Lobos, funcionário da Biblio- Clássica. (Nota da IHU On-Line)

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EDIÇÃO 534 TEOLOGIA PÚBLICA

Em tempos de “fake news”, mentiras também alimentam leituras fundamentalistas da Bíblia Para Francisco Orofino, é preciso trabalhar nas comunidades a chave central da escritura. Chave que está ligada com a necessidade de ressaltar a humanidade de Jesus Cristo

João Vitor Santos

om certa frequência, somos enfrentar o fundamentalismo. Inclusi- apressadamente levados a con- ve o fundamentalismo dentro da Igreja cluir que o fundamentalista é Católica”, dispara. umC louco, um lunático. Mas essa pers- Assim, para o professor, é em comu- pectiva não corresponde à realidade. nidade e não no individual que se pode Para o biblista Francisco Orofino, fun- achar caminhos. “Não podemos abrir damentalismo pode estar mais perto do mão da proposta de uma leitura comu- que imaginamos. “O fundamentalista é, nitária que desperte a pessoa para suas antes de tudo, um agressor intolerante. responsabilidades cotidianas. É neces- Para um fundamentalista, o ‘demônio’ sário voltar a uma proposta comunitá- se expressa no diferente, no divergen- ria de partilha de opiniões em busca da 72 te, no opositor. Sua segurança está na construção do bem comum, colocando verdade bíblica”, define. E observa: “a na pauta a política como escolhas de certeza desta verdade faz com que um propostas públicas em favor de todos fundamentalista desconfie da ciência ou de uma consciência ecológica que e de todas as formas de saber que não desperte nossas responsabilidades pelo tenham uma referência bíblica”. Ta- cuidado da nossa casa comum e do bem manha desconfiança vai fazer o sujeito viver das pessoas”, defende. criar ilações, interpretações mentirosas Francisco Orofinoé biblista, asses- acerca das escrituras. É como as “fake sor de grupos populares e comunidades news”, que de fatos reais trazem ver- de base nos municípios da Baixada Flu- sões inventadas. “Hoje em dia, a men- minense, doutor em Teologia Bíblica tira reina descaradamente. Devemos pela Pontifícia Universidade Católica trabalhar nas comunidades a chave do Rio de Janeiro - PUC-Rio e professor central da escritura”, acrescenta. de Teologia Bíblica no Instituto Paulo Na entrevista a seguir, concedia por VI, na diocese de Nova Iguaçu, também e-mail à IHU On-Line, Orofino de- na Baixada. Entre seus livros publica- fende o exercício de leitura da Bíblia dos, muitos deles escritos em parceria em comunidade como forma de com- com Carlos Mesters, destacamos Rezar bater essas mentiras. “Vencer o desafio os Salmos hoje: a lei orante do povo do fundamentalismo exige de nós uma de Deus (São Paulo: Paulus Editora, catequese lenta e paciente, a partir da 2017), Lendo o Livro dos Salmos (São prática pedagógica de Jesus”, apon- Paulo: Paulus Editora, 2018) e Atos dos ta. “Ressaltar a humanidade de Jesus Apóstolos (São Paulo: Paulus). Cristo é uma proposta importante para Confira a entrevista.

IHU On-Line – O senhor de- mênica a serviço da vida. Gos- Francisco Orofino –Nosso pon- fende a leitura bíblica como taria que o senhor detalhasse to de partida na leitura bíblica sem- uma prática libertadora e ecu- esta perspectiva. pre deve ser a certeza maior que a fé

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“Ora, uma leitura bíblica que relaciona fé e vida e que faz com que uma ajude a interpretar a outra, é necessariamente libertadora e ecumênica”

nos dá: Deus sempre escuta o clamor para superar a violência, a fome e a Desta forma, a Palavra tornava-se do seu povo esmagado por instru- miséria. A leitura bíblica libertado- nova para qualquer geração, con- mentos de poder e de opressão. Esta ra e ecumênica existe para iluminar tribuindo para a formação do povo, certeza de fé nos leva a afirmar que a vida e defendê-la, para que haja para a animação da fé e para a prá- Deus sempre está presente na vida vida em abundância para toda a tica da justiça. Isso vale para nós e na história do povo, conduzindo-o Criação de Deus. até hoje. em seu processo de libertação. A partir deste princípio, a leitura IHU On-Line – Na narrativa IHU On-Line – Como traba- bíblica se faz a partir da relação en- histórica do Povo de Deus há lhar essa perspectiva de atua- tre certezas de fé e a realidade con- uma “Palavra viva”, sempre lização da experiência judai- flitiva da vida do povo. Ora, uma Nova? Em que medida a leitura co-cristã nas comunidades em leitura bíblica que relaciona fé e vida da história judaico-cristã sem- tempo de questionamento das e que faz com que uma ajude a inter- pre se faz atual? grandes narrativas? 73 pretar a outra, é necessariamente li- Francisco Orofino – De fato a Francisco Orofino – Teríamos bertadora e ecumênica. É libertado- Bíblia traz por escrito uma longa que ver a razão do questionamento ra na medida em que vai revelando a narrativa histórica. Mas é bom lem- das grandes narrativas O que assisti- vida do povo sendo ameaçada pelas brar que a Bíblia, antes de ser escri- mos hoje é uma luta ideológica pela forças da morte. É uma leitura que ta, foi narrada oralmente. E esta nar- narrativa. Principalmente pela nar- denuncia a ausência de condições de rativa oral, antes de ser transmitida rativa bíblica. Em busca de uma he- vida não apenas para o povo, mas em encontros celebrativos, foi vivida gemonia narrativa, os grupos ideoló- para a Criação inteira. Esta leitura é pelo povo fiel de Deus. A Bíblia é, gicos, através de distorcidas revisões libertadora na medida em que ani- portanto, uma narrativa histórica históricas, buscam criar uma narra- ma o povo santo de Deus a se organi- da vida do povo de Deus. Esta dinâ- tiva em que a visão ideológica é mais zar para defender a vida, para lutar mica narrativa, mantida por meio importante que a verdade factual. contra as forças da morte, para se das conversas e das celebrações das Com muita tranquilidade repetem libertar de um sistema que consome, famílias, nasceu da preocupação de afirmações errôneas, sem dar a mí- oprime, esmaga e domina. não perder a memória dos fatos im- nima importância ao fato histórico. portantes na construção da identida- Esta luta pela vida plena é o que Hoje em dia, a mentira reina des- de do povo de Deus. temos de mais ecumênico. Jesus dis- caradamente. Devemos trabalhar se: “eu vim para que todos tenham Na origem da Bíblia temos narrati- nas comunidades a chave central vida!”. Ele não disse “eu vim para vas populares, repetidas e simplifi- da escritura. A narrativa bíblica, do que todos tenham Bíblia, ou Igreja, cadas, sem muita precisão histórica. Gênesis ao Apocalipse, trata da eter- ou religião...”. Esta vontade de viver O objetivo principal da narrativa não na luta entre a Verdade que vem de como gente, de ter uma vida mais era preservar informações exatas, Deus e as mentiras proferidas pelos justa e abundante existe, sobretu- mas animar a fé, a luta e a caminha- diferentes grupos humanos. A Pala- do, na luta cotidiana dos pobres. O da do povo santo de Deus. Através vra de Deus é a Verdade. A mentira povo pobre é ecumênico quando se das celebrações, estes fatos antigos é diabólica. No evangelho de João, reúne, lê a Bíblia e busca caminhos eram revividos e atualizados. Até Jesus chama o demônio de “menti- de superação das agruras trazidas hoje! Nós somos hoje o povo fiel de roso, o pai da mentira” (Jo 8,45). Te- pelo sistema opressor. Neste pro- Deus. Esta contínua releitura dos mos que trabalhar hoje uma leitura cesso se encontram pessoas crentes acontecimentos passados atualiza a que nos ajude a buscar na narrativa de várias confissões, cristãs ou não- Palavra, não permitindo que os fatos bíblica a Verdade que vem de Deus. cristãs, buscando caminhos comuns fundantes caiam no esquecimento. Uma Verdade que liberta (Jo 8,32).

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Jesus mesmo se apresenta como a esperança de um mundo melhor. Francisco Orofino – A Leitura “o Caminho, a Verdade e a Vida” (Jo Fazer a memória é celebrar a vitória Popular da Bíblia é uma prática de 14,6). Ou seja, a narrativa bíblica nos de Jesus Ressuscitado sobre as for- interpretação comunitária do texto ensina que a Verdade é Deus. Esta é ças do mal e da morte e agradecer a bíblico a partir da realidade de vida a porta de entrada para a atualização Deus pelo dom da vida. das pessoas. Creio que o maior de- da narrativa bíblica em nossas co- safio hoje é o individualismo. Hoje, munidades: buscar e viver a Verdade as pessoas, graças às mídias sociais, que é Deus. IHU On-Line – Vivemos mo- estão sozinhas com suas opiniões, mentos conturbados no Brasil divulgadas sem nenhum confron- e no mundo, crises políticas, to com outras ideias ou propostas. IHU On-Line – De que for- econômicas e sociais e até mes- Fechadas em sua arrogância ego- ma podemos compreender o mo do próprio humanismo. Em ísta, as pessoas divulgam mentiras princípio judaico-cristão de que medida a leitura da Bíblia e crendices, menosprezando qual- que “sem memória não há sal- pode nos inspirar para que en- quer proposta ou ideia contrária. vação”? E qual a importância frentemos com coragem esses O individualismo torna as pessoas de se fazer memória, especial- momentos de crise? sectárias, intolerantes, exclusivistas, mente no tempo da Quaresma? Francisco Orofino – Diante discriminando todos os que não pen- Francisco Orofino – A Bíblia do que estamos vivendo hoje aqui sam como ela. traz por escrito a memória da tra- no Brasil, se faz necessário reto- Como vencer este individualismo? vessia do povo de Deus. O livro do mar a espiritualidade profética. São necessários tempo e paciência. Êxodo preserva esta determinação A narrativa bíblica preserva a ca- Não podemos abrir mão da propos- de Deus a Moisés: “escreva tudo minhada histórica do povo fiel de ta de uma leitura comunitária que isto num livro como memória” (Ex Deus. Esta caminhada nunca foi desperte a pessoa para suas respon- 17,14). O texto escrito servia para retilínea, ascendente, uniforme. sabilidades cotidianas. É necessário animar as celebrações do povo. Sempre foi tortuosa, onde o povo voltar a uma proposta comunitária Celebrar é fazer memória. A maior caía e se levantava. Ser o povo de de partilha de opiniões em busca parte das narrativas presentes na Deus é saber superar os limites 74 da construção do bem comum, co- Bíblia começou a ser preservada humanos buscando atingir, para si locando na pauta a política como para ser usada nas celebrações co- e para os outros, os bens da convi- escolhas de propostas públicas em munitárias. Os livros foram escri- vência com Deus. favor de todos ou de uma consciên- tos, selecionados e colecionados Nesta sua busca, o povo viveu in- cia ecológica que desperte nossas pelas pessoas ligadas ao culto, res- responsabilidades pelo cuidado da ponsáveis pela celebração do povo. tensas crises. Muitas vezes, o povo reduziu os planos de Deus a seus nossa casa comum e do bem viver As romarias, os santuários, as pere- das pessoas. Na medida em que aju- planos pessoais interesseiros e mes- grinações para as festas, os ritos e damos as pessoas a vencer o indivi- quinhos, acomodando-se e esque- sacrifícios, a catequese familiar ou dualismo, estaremos transforman- cendo o chamado. Nestes momentos pública, os encontros diários, sema- do também as Igrejas. nais ou anuais, as orações, salmos e de crise e de abatimento apareciam cânticos, tudo isso está presente na os profetas para denunciar os erros Bíblia, do começo ao fim. e anunciar a proposta divina de jus- IHU On-Line – O que distin- tiça, paz e alegria. A espiritualidade gue a Leitura Popular da Bíblia, O coração da Bíblia é o culto pres- profética nos permite perceber os que tem seu núcleo nas Comu- tado pelo povo ao Deus da Vida. Por- sinais de resistência existentes na nidades Eclesiais de Base1, da tanto, não é qualquer culto. Deve ser caminhada do povo. Grupos indíge- Teologia da Prosperidade2, um culto “em espírito e verdade” (Jo nas, as mulheres, os negros, a popu- 4,23)! Um culto ligado ao processo lação LGBT, as periferias urbanas, 1 Comunidades Eclesiais de Base (CEBs): trata-se de de salvação, em que o povo poderia comunidades inclusivistas ligadas principalmente à Igre- a consciência ecológica, as práticas ja Católica que, incentivadas pela Teologia da Libertação fazer a memória da ação libertadora alternativas, são todos sinais de que após o Concílio Vaticano II (1962-1965), espalharam-se principalmente nos anos 1970 e 1980 no Brasil e na Amé- de Deus. Por isso, no tempo litúrgi- existe uma resistência e de que a es- rica Latina. O objetivo é a leitura bíblica em articulação co da Quaresma, temos que fazer a com a vida, com a realidade política e social em que vi- perança do povo nunca será vencida. vem e com as misérias cotidianas com que se deparam memória dos gestos e das palavras na matriz ordinária de suas vidas comunitárias. (Nota da IHU On-Line) de Jesus de Nazaré. Fazer a memó- 2 Teologia da prosperidade: doutrina religiosa cristã ria da ação libertadora de Jesus é ter IHU On-Line – Quais os desa- que defende que a bênção financeira é o desejo de Deus para os cristãos e que a fé, o discurso positivo e as doa- consciência da opressão em que vive fios para a prática da Leitura ções para os ministérios cristãos irão sempre aumentar a o povo, exige mudar de mentalida- Popular da Bíblia? Como esta riqueza material do fiel. Baseada em interpretações não- tradicionais da Bíblia, geralmente com ênfase no Livro de de, renovar o compromisso de viver metodologia pode inserir as es- Malaquias, a doutrina interpreta a Bíblia como um con- trato entre Deus e os humanos; se os humanos tiverem fé como um povo de irmãos e irmãs, crituras no cotidiano das pes- em Deus, Ele irá cumprir suas promessas de segurança e reabastecer a fé necessária para le- soas e em que medida também prosperidade. Reconhecer tais promessas como verdadei- ras é percebido como um ato de fé, o que Deus irá honrar. var adiante a caminhada, alimentar pode transformar a Igreja? Seus defensores ensinam que a doutrina é um aspecto do

15 DE ABRIL | 2019 REVISTA IHU ON-LINE muito forte nas Igrejas neopen- de popular e da amplidão das intui- as formas de saber que não tenham tecostais? Por que a perspecti- ções que vão nascendo do encontro uma referência bíblica. va da Teologia da Prosperidade comunitário. Para vencer este desafio temos que parece ter maior adesão nas pe- aprender de Jesus. O verbo mais pre- riferias hoje? sente na atividade pública de Jesus é Francisco Orofino – O que dis- o verbo “ensinar”. Jesus era um mes- tingue estas duas propostas é jus- “Temos que tre popular que ensinava as pessoas tamente o conflito entre o indivi- seja nas sinagogas, seja ao ar livre, à dualismo e a prática comunitária. trabalhar hoje beira do mar, dentro de uma barca. A Teologia da Prosperidade é uma uma leitura Vencer o desafio do fundamenta- boa fundamentação bíblico-teoló- lismo exige de nós uma catequese gica para meus desejos pessoais e que nos ajude lenta e paciente, a partir da prática imediatos. A proposta desta leitura pedagógica de Jesus. Temos que vol- bíblica nas igrejas neopentecostais a buscar na tar ao mestre Jesus de Nazaré, com fica bem evidente em passagens do um ensinamento capaz de vencer o Antigo Testamento. Nunca se fala de narrativa bíblica sectarismo e o fundamentalismo das Jesus e do Evangelho. a Verdade que autoridades religiosas da época dele. Para as pessoas pobres da perife- ria os desejos são muitos, exacerba- vem de Deus” IHU On-Line – Quais os dos pela propaganda consumista. É maiores desafios de nosso grande a tensão entre desejos con- tempo para a compreensão sumistas e a precariedade financei- IHU On-Line – Atualmen- do Cristo humano que emerge ra destas pessoas. Enriquecer para te, vivem-se arroubos de con- dos evangelhos? consumir é a base da proposta neo- servadorismo e junto dessas liberal. Estas pessoas estão abertas Francisco Orofino – Ressaltar a perspectivas vem a leitura para acolher leituras bíblicas que humanidade de Jesus Cristo é uma fundamentalista da Bíblia, es- digam que Deus quer pessoas ricas e proposta importante para enfrentar 75 pecialmente sobre valores da não pobres miseráveis. O triste é ver o fundamentalismo. Inclusive o fun- família. Quais os desafios para que estas pessoas acabam doando às damentalismo dentro da Igreja Cató- enfrentar essas perspectivas, igrejas o pouco que têm, na esperan- lica. Para os fundamentalistas, Cristo motivando uma hermenêutica ça de que tudo lhes seja retribuído deve ser apresentado unicamente na contemporânea dos textos sa- em abundância por Deus. sua total divindade, em detrimento grados? de sua humanidade. Apresentar um A Leitura Popular da Bíblia vai Francisco Orofino – O funda- Cristo glorioso significa colocar os num caminho oposto. Ela propõe mentalismo é um fenômeno muito milagres como a ação primordial de que para uma boa interpretação do complexo. É mais uma atitude que Jesus. Este Jesus glorioso e milagrei- texto bíblico é muito importante o um movimento organizado. Seria ro está bem presente nos vários pro- ambiente comunitário da fé e da fra- uma mentalidade ideológica fechada gramas de TV, tanto nos pentecostais ternidade. O sentido da Bíblia não é num universo em que a história está como nos católicos. Falam muito no apenas uma ideia ou uma mensagem isenta de mudanças, desenvolvendo Cristo, mas nada falam de sua men- que se capta com a razão individu- uma ética dualista que separa com sagem e do seu Evangelho. alista e utilitária, mas que seja um clareza o bem do mal, produzindo sentir com os outros, um conforto Como já disse acima, o caminho é uma atitude negativista diante dos comunitário oriundo da partilha e voltar para Jesus. Conhecer a pessoa avanços sociais. As transformações do ambiente de convivência. Nesta e a mensagem de Jesus de Nazaré. A históricas e sociais tornam as pessoas proposta de interpretação é muito missão da Igreja, das Igrejas, é apre- inseguras. Isso faz com que estas pes- sentar Jesus de Nazaré e o seu Evan- importante que as pessoas encon- soas, como já vimos acima, se tornem gelho. Ainda hoje, mesmo diante da trem os diversos caminhos de envol- sectárias e intolerantes, agredindo crise da narrativa e dos avanços tec- vimento e de participação do grupo. todos os que não pensam como elas. Aqui aparece a riqueza da criativida- nológicos, a pessoa de Jesus e o seu O fundamentalista é, antes de tudo, Evangelho continuam alimentando caminho à dominação cristã da sociedade, argumentando um agressor intolerante. Para um a fé de milhões de pessoas. Ora, ali- que a promessa divina de dominação sobre as Tribos de Israel se aplica aos cristãos de hoje. A doutrina enfatiza a fundamentalista, o “demônio” se ex- mentar e celebrar a fé no Filho de importância do empoderamento pessoal, propondo que Deus encarnado implica em acolher é da vontade de Deus ver seu povo feliz. A expiação (re- pressa no diferente, no divergente, conciliação com Deus) é interpretada de forma a incluir no opositor. Sua segurança está na a proposta de Jesus, colocar-se a o alívio das doenças e da pobreza, que são vistas como maldições a serem quebradas pela fé. Acredita-se atingir verdade bíblica. A certeza desta ver- serviço na implantação do Reino de isso através da visualização e da confissão positiva, o que dade faz com que um fundamenta- Deus e os seus valores de justiça, de é geralmente professado em termos contratuais e mecâ- nicos. (Nota da IHU On-Line) lista desconfie da ciência e de todas paz e de alegria.

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Por isso mesmo não podemos exal- que totalmente ofuscada pela Cam- justamente os textos evangélicos dos tar o Cristo da glória em detrimento panha da Fraternidade. A Quares- domingos da Quaresma. Meditando do Jesus histórico, de sua inserção ma sempre foi o tempo forte de e aprofundando estes textos nós atu- no meio popular da Galileia no iní- conversão. As leituras quaresmais alizamos uma antiga proposta cate- cio da Era Cristã. Temos que saber têm um sentido catequético, vi- quética, uma proposta importante equilibrar nossa investigação do Je- sando a inserção de uma pessoa na para a tão necessária recuperação sus histórico com as afirmações de fé proposta comunitária cristã. Este do Batismo hoje, em nossa Igreja. que a Igreja foi elaborando ao longo processo se coroaria na celebração As leituras da Quaresma querem nos da Vigília Pascal, onde então os ca- de sua caminhada. propor a verdadeira religião. tecúmenos seriam batizados. O início da Quaresma, a quarta- As leituras quaresmais pedem “me- IHU On-Line – Levando em feira de cinzas, nos oferece o capí- consideração o atual cenário tanoia” aos catecúmenos. A partícu- la “noia” desta palavra vem do grego tulo 6 do Evangelho de Mateus. A de Brasil e mundo, qual o tex- “nous”, que significa “mente”. Ou verdadeira religião se faz através to que o senhor considera mais seja, o processo catequético da Qua- da construção, da manutenção e apropriado para inspirar refle- resma pede uma radical mudança da restauração de relações com os xões nesse tempo de Quares- de mentalidade aos que buscam in- irmãos (esmola ou partilha), com ma? Por quê? serção na comunidade cristã. Nesta Deus (oração) e com as coisas (je- Francisco Orofino – É pena perspectiva, os textos que considero jum). Este é o eixo da reflexão bíbli- que hoje a Quaresma seja quase mais apropriado para este tempo são ca da Quaresma.■

Leia mais 76 - Jesus: um apaixonado por Deus e pelas pessoas. Entrevista com Francisco Orofino, publi- cada na revista IHU On-Line número 336, de 06-07-2010, disponível em http://bit.ly/2YT0DPH. - “A Bíblia é o grande instrumento de libertação dos leigos”. Entrevista com Francisco Orofino, publicada nas Notícias do Dia de 01-09-2016, no sítio do Instituto Humanitas Unisi- nos – IHU, disponível em http://bit.ly/2Kx46jV. - O Ano do Laicato. Artigo de Francisco Orofino, reproduzido nas Notícias do Dia de 06-12- 2017, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2Uo3mCa.

15 DE ABRIL | 2019 REVISTA IHU ON-LINE

Diante da cegueira idólatra, um novo Brasil a ser reconstruído Ricardo Timm de Souza analisa como o ser humano deixa de se servir das imagens em função do mundo e passa a viver em função delas

Ricardo Machado

á uma longa tradição de estu- a uma ideologia do obscurecimento, ou dos a respeito das impressões do obscurantismo, que tem como alvo que as pessoas têm sobre as manter as pretensas ‘mônadas’ [sujei- imagensH do mundo. Do Mito da Caver- tos] rigorosamente separados uns dos na de Platão ao Instagram, a distância outros”, pondera. entre o mundo concreto e as represen- Ao pensar o futuro do país, o profes- tações do mundo em dispositivos mó- sor salienta que “a tarefa de conduzir o veis é sempre menos óbvia do que pa- Brasil à situação em que merece estar rece. Nesse contexto, a idolatria – seja depende de uma ampla e radical tarefa a ideais estéticos, a marcas ou figuras pedagógico-terapêutica. Sem a dimen- humanas – tende a operar quase como são que combate a superficialidade da 77 necessidade básica. Mas a questão, po- lógica do raso, a lugar nenhum chega- rém, é que esse desejo idólatra tende a remos. Sem o enfrentamento de uma transformar a visão em cegueira. “Para situação de doença generalizada e es- Flusser, ‘idolatria [é a] incapacidade de facelamento medroso da sociedade, decifrar os significados da ideia, não igualmente a nenhum lugar chegare- obstante a capacidade de lê-la, por- mos. Há que combinar essas duas di- tanto, adoração da imagem’”, explica o mensões em um projeto de reativação professor doutor Ricardo Timm de dos afetos cognitivo-relacionais”. Souza, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. “O homem ‘existe’, isto é, o Ricardo Timm de Souza é gradua- mundo não lhe é acessível imediata- do em Instrumentos pela Universidade mente. Imagens têm o propósito de lhe Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS representar o mundo. Mas, ao fazê-lo, e em Estudos Sociais e Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio entrepõem-se entre mundo e homem. Grande do Sul - PUCRS. Também cur- Seu propósito é serem mapas do mun- sou mestrado em Filosofia pela PUCRS do, mas passam a ser biombos. O ho- e doutorado em Filosofia pela Univer- mem, ao invés de se servir das imagens sität Freiburg (Albert-Ludwigs). É au- em função do mundo, passa a viver em tor, entre outras obras, de Em torno à função de imagens”, complementa. diferença – Aventuras da alteridade Se o tema parece abstrato em uma na complexidade da cultura contem- olhada rápida, ao ser colocado em con- porânea (Rio de Janeiro: Lumen Juris, traste com o Brasil contemporâneo a 2007). Também é um dos organizado- questão ganha contornos dramáticos. res de Alteridade e Ética – Obra come- “É evidente, portanto, a relevância de morativa dos 100 anos do nascimento uma tal interpretação para compre- de Emmanuel Lévinas (Porto Alegre: ender o Brasil de hoje. O imaginário EDIPUCRS, 2008). social se encontra completamente pe- netrado e saturado de imagens que se A entrevista foi publicado originalmen- multiplicam umas às outras e se espa- te nas Notícias do Dia, na página do IHU, lham sem que haja a possibilidade de disponível em http://bit.ly/2GkjbkJ. sua real compreensão, servindo assim Confira a entrevista.

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“Imagens têm o propósito de lhe representar o mundo. Mas, ao fazê-lo, entrepõem- se entre mundo e homem”

IHU On-Line – De onde vem a quezas diversas, de figuras humanas se sentido, pode-se dizer que hou- noção de idolatrização em seu e outros. Naturalmente permanece ve, de algum modo, uma crescente sentido clássico? como protótipo de idolatria o famo- apropriação, pelo saber crítico não so episódio da adoração do famoso Ricardo Timm de Souza – En- (necessariamente) teológico, de ele- “bezerro de ouro” na época mosaica. tre as muitas heranças e recepções mentos constitutivos da temática No novo testamento, o protótipo é a do termo, a mais utilizada se baseia da idolatria que, na verdade, nunca separação absoluta, no evangelho, na origem etimológica do conceito: foram exclusivamente religiosos. entre Deus e Mammon, denuncian- eidololatreía, de eidolon (eidos > Com o surgimento da sociedade ca- do a adoração a Mammon (lato sen- eídolon: ídolo: imagem, representa- pitalista ao longo dos séculos XVI e so: ouro, dinheiro e bens materiais) 78 ção) + latreía (latria: veneração, ado- XVII, a questão da idolatria passa de como idolatria e estabelecendo, uma questão privada a uma questão ração, reverência) > idolatria. É uma como bem diz José Luis Sicre1, um compreensão básica, da qual muitas paralelo entre a radical advertência 2005), Infância e história: destruição da experiência outras são deriváveis, e permitem de Elias sobre a disjunção absoluta e origem da história (Belo Horizonte: Ed. UFMG, atualizações da questão em termos 2006); Estado de exceção (São Paulo: Boitempo entre Javeh e Baal e sua correspon- Editorial, 2007), Estâncias – A palavra e o fantasma estritamente contemporâneos, em na cultura ocidental (Belo Horizonte: Ed. UFMG, dência muito posterior na interdi- 2007) e Profanações (São Paulo: Boitempo Edito- sentido histórico, sociológico, filosó- ção ao culto de Mammon, através rial, 2007). Em 4-9-2007, o sítio do Instituto Huma- fico e teológico. nitas Unisinos - IHU publicou a entrevista Estado da disjunção absoluta entre Deus e de exceção e biopolítica segundo Giorgio Agam- ben, com o filósofo Jasson da Silva Martins, dispo- Mammon, no Novo Testamento. nível em http://bit.ly/jasson040907. A edição 236 da IHU On-Line, de 17-9-2007, publicou a entre- IHU On-Line – Quais são as ra- vista Agamben e Heidegger: o âmbito originário de uma nova experiência, ética, política e direito, com ízes teológicas da idolatrização? IHU On-Line – Na transição o filósofo Fabrício Carlos Zanin, disponível em ht- tps://goo.gl/zZRChp. A edição 81 da publicação, Ricardo Timm de Souza – É dentro da modernidade houve de 27-10-2003, teve como tema de capa O Estado uma secularização ou profana- de exceção e a vida nua: a lei política moderna, na Bíblia, em seu conjunto de Anti- disponível para acesso em http://bit.ly/ihuon81. go e Novo Testamentos, que se en- ção da idolatrização? Em 30-6-2016, o professor Castor Bartolomé Ruiz proferiu a conferência Foucault e Agamben. Im- contram os elementos chave para a plicações Ético Políticas do Cristianismo, que pode Ricardo Timm de Souza – Não ser assistida em http://bit.ly/29j12pl. De 16-3- compreensão do tema da idolatria utilizo o termo “profanação”, devi- 2016 a 22-6-2016, Ruiz ministrou a disciplina de através dos tempos. Pode-se, por Pós-Graduação em Filosofia e também validada do à visão contemporânea no con- como curso de extensão através do IHU intitula- exemplo, acompanhar essa temática texto biopolítico que nos é trazida da Implicações ético-políticas do cristianismo na filosofia de M. Foucault e G. Agamben. Governa- ao longo de uma série de escritos de por autores como Agamben2. Nes- mentalidade, economia política, messianismo e de- profetas de várias épocas – Oseias, mocracia de massas, que resultou na publicação da edição 241 dos Cadernos IHU ideias, intitu- Isaías, Jeremias, Ezequiel, Amós, 1 SICRE, J. L. Los dioses olvidados – poder y riqueza lado O poder pastoral, as artes de governo e o es- em los profetas preexílicos, Madrid, Ediciones Crsi- tado moderno, que pode ser acessada em http:// Miqueias, Sofonias, por exemplo – tandad, 1978, p. 17. (Nota do entrevistado) bit.ly/1Yy07S7. Em 23 e 24-5-2017, o IHU realizou no que tange a inúmeras formas de 2 Giorgio Agamben (1942): filósofo italia- o VI Colóquio Internacional IHU – Política, Econo- no. É professor da Facolta di Design e arti della mia, Teologia. Contribuições da obra de Giorgio idolatria às quais os israelitas se en- IUAV (Veneza), onde ensina Estética, e do College Agamben, com base sobretudo na obra O reino International de Philosophie de Paris. Formado e a glória. Uma genealogia teológica da economia tregaram ao longo do tempo (o que em Direito, foi professor da Universitá di Macera- e do governo (São Paulo: Boitempo, 2011. Tra- vale, igualmente, para uma série de ta, Universitá di Verona e da New York University, dução de: Il regno e la gloria. Per una genealogia cargo ao qual renunciou em protesto à política do teológica dell’ecconomia e del governo. Publicado outros escritos bíblicos – salmos, es- governo estadunidense. Sua produção centra-se originalmente por Neri Pozza, 2007). Saiba mais nas relações entre filosofia, literatura, poesia e, em http://bit.ly/2hCAore. Em 2017 a revista IHU critos sapienciais etc.): divinização fundamentalmente, política. Entre suas princi- On-Line publicou a edição Giorgio Agamben e a pais obras estão Homo Sacer: o poder soberano impossibilidade de salvação da modernidade e da de reinos poderosos e potências es- e a vida nua (Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002), A política moderna, nº 505, disponível em http://bit. trangeiras, de objetos de culto, de ri- linguagem e a morte (Belo Horizonte: Ed. UFMG, ly/2NXjQwT. (Nota da IHU On-Line)

15 DE ABRIL | 2019 REVISTA IHU ON-LINE social, na qual o “ouro”, na condi- seja, é apenas uma das interpreta- se processa a magicização da vida: ção de símbolo da atração absoluta ções possíveis do fenômeno. as imagens técnicas, atualmente de atitudes de sociedades inteiras, onipresentes, ilustram a inversão transforma-se no novo “deus” da da função imaginística e remagici- modernidade nascente. Tal fato é IHU On-Line – O que é “a era zam a vida”5. historicamente rastreável através da idolatria” nos termos de É evidente, portanto, a relevân- do acompanhamento do desenvolvi- Flusser? Como isso se conecta cia de uma tal interpretação para mento das grandes navegações, das ao Brasil atual? compreender o Brasil de hoje. O novas lógicas comerciais e do esta- Ricardo Timm de Souza – imaginário social se encontra com- belecimento de novas populações e 4 Para Flusser , “idolatria [é a] inca- pletamente penetrado e saturado de de novas configurações da antiga ló- pacidade de decifrar os significados imagens que se multiplicam umas às gica da guerra por territórios, posses da ideia, não obstante a capacidade outras e se espalham sem que haja a ou riquezas. de lê-la, portanto, adoração da ima- possibilidade de sua real compreen- gem”. Ou seja, na sua concepção, são, servindo assim a uma ideologia que assumimos, o conceito de idola- IHU On-Line – Quais são as do obscurecimento, ou do obscuran- tria escapa de uma conotação restri- consequências políticas da ido- tismo, que tem como alvo manter as tiva – imagens, figurações particu- latrização como artifício de po- pretensas “mônadas” – “indivíduos”, lares – e se desdobra em tudo aquilo der do Estado a partir da mo- no sentido moderno de “indivíduo que oculta parte do que mostra, com dernidade? contratante, e não como sujeito de especial foco nas ideias; em sendo sua própria história – rigorosamente Ricardo Timm de Souza – Tal apenas apreendida “a imagem” da separados uns dos outros. Isso é pos- artifício, ou estratégia de aquisi- ideia – sua “visibilidade” plana, sem sível porque a mobilização ao estilo ção de poder e sua manutenção, profundidade, sem história, sem fascista ou protofascista de emoções só aconteceu devido a uma reno- fecundidade – restringe-se a com- mal resolvidas – que traduzem um vação da lógica de estabelecimento preensão a um nível absolutamen- dos grandes males de nossa época: a identificatório entre poder secular te elementar, e, como diz o autor, doença do desejo, as relações doen- e religioso, atualizando momentos acaba por obliterar aquilo que é a tes como sintomas de uma socieda- históricos como aquele do “cesa- função precípua das imagens: facili- de profundamente doente, na qual 79 ropapismo” medieval que vai dar tar-nos o acesso ao mundo. Há uma o medo é uma espécie de princípio origem à cristandade. Os grandes excelente passagem de Flusser na retorcido de realidade, em uma lei- navegadores tinham uma dupla qual isso é bem esclarecido: “Ima- tura psicanalítica – se acopla a uma tarefa: cristianizar os povos e to- gens são mediações entre homem e pretensa necessidade de segurança mar riquezas. Essas tarefas não mundo. O homem “existe”, isto é, o em um mundo que significa, em seus eram mutuamente excludentes; as mundo não lhe é acessível imediata- constitutivos profundos, uma “tota- viagens tinham as bênçãos civis e mente. Imagens têm o propósito de lidade em desagregação”, como es- religiosas. Por mais que esse seja lhe representar o mundo. Mas, ao crevi em um livro com esse título de apenas um exemplo, na verdade a fazê-lo, entrepõem-se entre mun- 1996. Do ponto de vista empírico, a modernidade adapta a inúmeras e do e homem. Seu propósito é serem crise ecológica atual é o testemunho diversas situações essa particular mapas do mundo, mas passam a ser cabal de uma tal desagregação. combinação entre riqueza e reli- biombos. O homem, ao invés de se gião, a ponto de desembocar em servir das imagens em função do sistemas de funcionamento nos mundo, passa a viver em função de IHU On-Line – O tema da pro- quais esses elementos são pratica- imagens. Não mais decifra as cenas fanação de dispositivos teoló- mente indistinguíveis e configuram da imagem como significados do gicos como dispositivos políti- uma visão de mundo e mesmo uma mundo, mas o próprio mundo vai cos modernos foi amplamente “metafísica” particular. O clássico sendo vivenciado como conjunto de discutido na obra de Agamben. intérprete de tal sincretismo, como cenas. Tal inversão da função das Nesse sentido, como o autor sabemos, é Max Weber3. E essa imagens é idolatria. Para o idólatra joga luz sobre esses aspectos e leitura, por ampla e profunda que – o homem que vive magicamente como isso rebate na realidade –, a realidade reflete imagens. Po- contemporânea do Brasil? demos observar, hoje, de que forma 3 Max Weber (1864-1920): sociólogo alemão, Ricardo Timm de Souza – Na considerado um dos fundadores da Sociologia. Ética protestante e o espírito do capitalismo (São minha percepção, nenhum autor Paulo: Companhia das Letras) é uma das suas 4 Vilém Flusser (1920-1992): filósofo tcheco, na- isoladamente dá conta da comple- mais conhecidas e importantes obras. A IHU turalizado brasileiro. Autodidata, durante a Se- On-Line dedicou-lhe a sua edição 101, de 17-5- gunda Guerra, fugindo do nazismo, mudou-se xidade da questão. Nesse sentido, 2004, intitulada Max Weber. A ética protestante e para o Brasil, estabelecendo-se em São Paulo, o espírito do capitalismo 100 anos depois, disponí- onde atuou por cerca de 20 anos como profes- é necessário a meu ver um projeto vel em http://bit.ly/ihuon101. Sobre Max Weber, sor de filosofia, jornalista, conferencista e es- o IHU publicou o Cadernos IHU em Formação critor. Em 2012, a revista IHU On-Line, nº 399, nº 3, de 2005, chamado Max Weber – o espírito do dedicou o tema de capa ao autor, cuja edição capitalismo disponível em http://bit.ly/ihuem03. pode ser acessada em http://bit.ly/2G8mlYp. 5 FLUSSER, V. Filosofia da caixa preta, São Paulo: (Nota da IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line) Annablume, 2011. (Nota do entrevistado)

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amplo e profundo de penetração his- lammert12, Warburg13, Benjamin14, ben, Levinas17, Derrida18, para se poder equacionar o problema à al- tórico-filosófica no tema da idolatria Arendt15, Adorno16, Flusser, Agam- tal como ela se apresenta hoje. Há tura de sua gravidade. Em outros que passar, entre outros autores, por Martin Buber na tradução da Bíblia hebraica para termos, urge, na minha visão, o Spinoza6, Schopenhauer7, Marx8, Ka- o alemão. Confira a entrevista que Ricardo Timm projeto ao qual atualmente me de- de Souza concedeu à IHU On-Line: Rosenzweig e fka9, Freud10, Rosenzweig11, Hinke- uma nova compreensão da ideia de sujeito, disponí- dico: a elaboração de uma “crítica vel em http://bit.ly/GCaglu. (Nota da IHU On-Line) 12 Franz Hinkelammert (1931): economista, in- da razão idolátrica” que penetre no 6 Baruch Spinoza (ou Espinosa, 1632-1677): fi- fluenciado pelo marxista luterano Helmut Gollwitzer, turbilhão de metamorfoses que o lósofo holandês. Sua filosofia é considerada uma obteve doutorado em Economia pela Universidade resposta ao dualismo da filosofia de Descartes. Foi Livre de Berlim. Entre 1963 e 1973, foi professor da tema da idolatria assume na con- considerado um dos grandes racionalistas do sécu- Universidade Católica do Chile e integrante do CE- lo 17 dentro da Filosofia Moderna e o fundador do REN. Entre 1973 e 1976, foi professor da Universida- temporaneidade para compreender criticismo bíblico moderno. Confira a edição 397 da de Livre de Berlim. Entre 1978 e 1982, foi diretor do filosoficamente o sentido que uma IHU On-Line, de 6-8-2012, intitulada Baruch Spino- curso de Pós-Graduação em Política Econômica da za. Um convite à alegria do pensamento, disponível Universidade Autônoma de Honduras e professor desconstrução da idolatria deve as- em https://goo.gl/GEGuI5. (Nota da IHU On-Line) e investigador do Conselho Superior Universitário sumir, aqui e agora, no mundo e – 7 Arthur Schopenhauer (1788-1860): filósofo ale- Centroamericano (CSUCA). Foi fundador, diretor e mão. Sua obra principal é O mundo como vontade docente do Departamento Ecumênico de Investiga- especialmente – no Brasil. e representação, embora o seu livro Parerga e Pa- ções (DEI), em San José (Costa Rica). Como econo- raliponema (1815) seja o mais conhecido. Friedrich mista, tinha especial interesse pela ideologia da eco- Nietzsche foi grandemente influenciado por Scho- nomia. Começou a se interessar por sociologia por penhauer, que introduziu o budismo e a filosofia meio da leitura de textos de Max Weber e de Karl indiana na metafísica alemã. Schopenhauer, en- Marx, e por teologia, por meio da leitura de textos tretanto, ficou conhecido por seu pessimismo. Ele de Helmut Golwitzer. Em 1963, Himkelammert che- entendia o budismo como uma confirmação dessa gou ao Chile, convidado pela Fundação Adenauer. visão. (Nota da IHU On-Line) Na época, era ligada à democracia cristã, que então “O homem, 8 Karl Marx (1818-1883): filósofo, cientista social, contava com correntes reformistas no Chile. Minis- economista, historiador e revolucionário alemão, trou cursos sobre utopia, projetos de transformação, um dos pensadores que exerceram maior influência teorias de desenvolvimento, teoria da dependência ao invés de sobre o pensamento social e sobre os destinos da e outros temas afins na universidade e em movi- humanidade no século 20. A edição 41 dos Cader- mentos sociais. Nesse processo rompeu com a de- nos IHU ideias, de autoria de Leda Maria Paulani, mocracia cristã e com a Fundação Adenauer. (Nota se servir das tem como título A (anti)filosofia de Karl Marx, dispo- da IHU On-Line) nível em http://bit.ly/173lFhO. Também sobre o au- 13 Aby Warburg: alemão, famoso historiador da tor, a edição número 278 da revista IHU On-Line, de arte do início do século XX, que, imbuído de um imagens em 20-10-2008, é intitulada A financeirização do mundo olhar antropológico, descobrira um vínculo entre a e sua crise. Uma leitura a partir de Marx, disponí- cultura dos índios hopis do Novo México e a civi- vel em https://goo.gl/7aYkWZ. A entrevista Marx: lização do Renascimento. (Nota da IHU On-Line) função do os homens não são o que pensam e desejam, mas 14 Walter Benjamin (1892-1940): filósofo alemão. o que fazem, concedida por Pedro de Alcântara Fi- Foi refugiado judeu e, diante da perspectiva de ser 80 gueira, foi publicada na edição 327 da IHU On-Line, capturado pelos nazistas, preferiu o suicídio. As- mundo, passa a de 3-5-2010, disponível em http://bit.ly/2p4vpGS. A sociado à Escola de Frankfurt e à Teoria Crítica, foi IHU On-Line preparou uma edição especial sobre fortemente inspirado tanto por autores marxistas, desigualdade inspirada no livro de Thomas Piketty como Bertolt Brecht, como pelo místico judaico O Capital no Século XXI, que retoma o argumento Gershom Scholem. Conhecedor profundo da língua viver em função central de O Capital, obra de Marx, disponível em e cultura francesas, traduziu para o alemão impor- http://www.ihuonline.unisinos.br/edicao/449. A re- tantes obras como Quadros parisienses, de Charles vista IHU On-Line, edição 525, intitulada Karl Marx, Baudelaire, e Em busca do tempo perdido, de Marcel de imagens” 200 anos - Entre o ambiente fabril e o mundo neural Proust. O seu trabalho, combinando ideias aparen- de redes e conexões, em celebração aos 200 anos do temente antagônicas do idealismo alemão, do ma- nascimento do pensador, está disponível em ihuon- terialismo dialético e do misticismo judaico, constitui line.unisinos.br/edicao/525. (Nota da IHU On-Line) um contributo original para a teoria estética. Entre 9 Franz Kafka (1883-1924): escritor tcheco, de lín- as suas obras mais conhecidas, estão A obra de arte IHU On-Line – Há todo um gua alemã. Considerado pela crítica um dos escri- na era da sua reprodutibilidade técnica (1936), Teses tores mais influentes do século 20. A maior parte sobre o conceito de história (1940) e a monumental vocabulário teológico que aca- de sua obra, como A metamorfose, O processo e e inacabada Paris, capital do século XIX, enquanto A ba sendo utilizado para pen- O castelo, está repleta de temas e arquétipos de tarefa do tradutor constitui referência incontornável alienação e brutalidade física e psicológica, conflito dos estudos literários. Sobre Benjamin, confira a en- sarmos, no limite, questões entre pais e filhos, personagens com missões ater- trevista Walter Benjamin e o império do instante, rorizantes, labirintos burocráticos e transformações concedida pelo filósofo espanhol José Antonio Za- místicas. Albert Camus, Gabriel García Márquez e mora à IHU On-Line nº 313, disponível em http:// fia e sociologia que conhecemos hoje como Escola Jean-Paul Sartre estão entre os escritores influen- bit.ly/zamora313. (Nota da IHU On-Line) de Frankfurt. (Nota da IHU On-Line) ciados pela obra de Kafka. O termo “kafkiano” po- 15 Hannah Arendt (1906-1975): filósofa e soci- 17 Emmanuel Levinas (1906-1995): filósofo e pularizou-se em português como algo complicado, óloga alemã, de origem judaica. Foi influenciada comentador talmúdico lituano, de ascendência labiríntico e surreal, como as situações encontradas por Husserl, Heidegger e Karl Jaspers. Em conse- judaica e naturalizado francês. Foi aluno de Hus- em sua obra. (Nota da IHU On-Line) quência das perseguições nazistas, em 1941, par- serl e conheceu Heidegger, cuja obra Ser e tempo 10 Sigmund Freud (1856-1939): neurologista nas- tiu para os Estados Unidos, onde escreveu gran- o influenciou muito. “A ética precede a ontologia” cido em Freiberg, Tchecoslováquia. É o fundador da de parte das suas obras. Lecionou nas principais é uma frase que caracteriza seu pensamento. Es- psicanálise. Interessou-se, inicialmente, pela histeria universidades deste país. Sua filosofia assenta em creveu, entre outros, Totalidade e Infinito (Lisboa: e, tendo como método a hipnose, estudou pessoas uma crítica à sociedade de massas e à sua ten- Edições 70, 2000). Sobre o filósofo, confira a entre- que apresentavam esse quadro. Mais tarde, interessa- dência para atomizar os indivíduos. Preconiza um vista com Rafael Haddock-Lobo, publicada em 30- do pelo inconsciente e pelas pulsões, foi influenciado regresso a uma concepção política separada da 08-2007 no sítio do Instituto Humanitas Unisinos por Charcot e Leibniz, abandonando a hipnose em esfera econômica, tendo como modelo de inspi- – IHU, intitulada Lévinas: justiça à sua filosofia e a favor da associação livre. Estes elementos tornaram- ração a antiga cidade grega. A edição 438 da IHU relação com Heidegger, Husserl e Derrida, dispo- se bases da psicanálise. Desenvolveu a ideia de que On-Line, A Banalidade do Mal, de 24-3-2014, dis- nível em http://bit.ly/1bZ77kk, e a edição número as pessoas são movidas pelo inconsciente. Freud, ponível em https://goo.gl/QqtQjz, abordou o tra- 277 da IHU On-Line, de 14-10-2008, intitulada Lé- suas teorias e o tratamento com seus pacientes foram balho da filósofa. Sobre Arendt, confira ainda as vinas e a majestade do Outro, disponível em http:// controversos na Viena do século 19 e continuam ain- edições 168 da IHU On-Line, de 12-12- 2005, sob bit.ly/1gsnUOI. (Nota da IHU On-Line) da muito debatidos. A edição 179 da IHU On-Line, o título Hannah Arendt, Simone Weil e Edith Stein. 18 Jacques Derrida (1930-2004): filósofo francês, de 8-5-2006, dedicou-lhe o tema de capa sob o títu- Três mulheres que marcaram o século XX, dispo- criador do método chamado desconstrução. Seu lo Sigmund Freud. Mestre da suspeita, disponível em nível em http://bit.ly/ihuon168, e 206, de 27-11- trabalho é associado, com frequência, ao pós-estru- http://bit.ly/ihuon179. A edição 207, de 4-12-2006, 2006, intitulada O mundo moderno é o mundo sem turalismo e ao pós-modernismo. Entre as principais tem como tema de capa Freud e a religião, disponível política. Hannah Arendt 1906-1975, disponível em influências de Derrida encontram-se Sigmund Freud em https://goo.gl/wL1FIU. A edição 16 dos Cadernos https://goo.gl/uNWy8u. (Nota da IHU On-Line) e Martin Heidegger. Entre sua extensa produção, IHU em formação tem como título Quer entender a 16 Theodor Wiesengrund Adorno (1903-1969): so- figuram os livros Gramatologia (São Paulo: Perspec- modernidade? Freud explica, disponível em http://bit. ciólogo, filósofo, musicólogo e compositor, definiu o tiva), A farmácia de Platão (São Paulo: Iluminuras), O ly/ihuem16. (Nota da IHU On-Line) perfil do pensamento alemão das últimas décadas. animal que logo sou (São Paulo: Unesp), Papel-má- 11 Franz Rosenzweig (1886-1929): filósofo judeu Adorno ficou conhecido no mundo intelectual, em quina (São Paulo: Estação Liberdade) e Força de lei nascido na Alemanha, é autor de uma obra impor- todos os países, em especial pelo seu clássico Dialé- (São Paulo: WMF Martins Fontes). É dedicada a Der- tante na qual se destacam Der Stern der Erlösung tica do Iluminismo, escrito junto com Max Horkhei- rida a editoria Memória, da IHU On-Line nº 119, de (A estrela da redenção) e Judentum und Christen- mer, primeiro diretor do Instituto de Pesquisa Social, 18-10-2004, disponível em http://bit.ly/ihuon119. tum (Judaísmo e Cristianismo). Trabalhou com que deu origem ao movimento de ideias em filoso- (Nota da IHU On-Line)

15 DE ABRIL | 2019 REVISTA IHU ON-LINE sociológicas. Nesse sentido, através do estudo das obras de arte, IHU On-Line – Deseja acres- como a noção de “culto às ima- de seus contextos e significações, das centar algo? gens” é trabalhada por Didi imagens em geral, um aspecto central Ricardo Timm de Souza – do pensamento do próprio Benjamin: -Huberman? Apenas que a tarefa de conduzir trata-se de reler as camadas múltiplas Ricardo Timm de Souza – Di- da realidade e perceber o quanto diz o Brasil à situação em que merece di-Huberman19 é um herdeiro pri- aquilo que aparentemente nada diz. estar depende de uma ampla e ra- vilegiado e talentoso de Walter Ben- Assim, sua obra é, como a do filósofo dical tarefa pedagógico-terapêuti- jamin, no sentido em que desenvolve de Berlim, essencialmente anti-idolá- ca. Sem a dimensão que combate a trica. Evidentemente, o processo crí- superficialidade da lógica do raso, 19 Georges Didi-Huberman (1953): nascido em a lugar nenhum chegaremos. Sem Saint-Étienne, é filósofo, historiador, crítico de arte tico de sua obra, desde pelo menos A e professor da École de Hautes Études em Sciences invenção da histeria (Rio de Janeiro: o enfrentamento de uma situação Sociales, em Paris. Considerado um dos grandes in- telectuais franceses de sua geração. Autor de uma Editora Contraponto, 2015), acutila de doença generalizada e esface- vasta obra ensaística, baseado em autores como lamento medroso da sociedade, Freud, Benjamin, Pasolini e Warburg. Trata de temas qualquer tentação de quietismo inter- que vão da filosofia da imagem à história da arte, pretativo que uma determinada obra igualmente a nenhum lugar che- passando por cinema e literatura. Alguns de seus li- vros: O que vemos, o que nos olha (Editora 34), Dian- ou produção figurativa poderia vir garemos. Há que combinar essas te da imagem (Editora 34), A Imagem Sobrevivente. duas dimensões em um projeto História da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby eventualmente a reivindicar. E, por- Warburg (Contraponto) e Imagens apesar de tudo tanto, não existem questões exclusivas de reativação dos afetos cognitivo (Lisboa, KKYM). Em 2013, a revista IHU On-Line de- dicou o tema de capa As imagens nos olham. Como à história da arte: todas as suas ques- -relacionais. A tarefa é gigantesca, ver o que nos olha? inspirado no pensamento do au- mas, como dizia Franz Rosenzweig, tor, cuja edição pode ser lida na íntegra em http:// tões são, sempre, históricas e antropo- bit.ly/2OWNLn3. (Nota da IHU On-Line) lógicas, e finalmente filosóficas. “o tempo certo está aí”. ■

Leia mais 81 - O fascista não argumenta; rosna. A exclusão de temáticas humanísticas dos currícu- los escolares. Entrevista especial com Ricardo Timm publicada na revista IHU On-Line, nº 490, de 08-08-2016, disponível em http://bit.ly/2G9QpDi. - Rosenzweig e uma nova compreensão da ideia de sujeito. Entrevista especial com Ricardo Timm publicada na revista IHU On-Line, nº 386, de 19-03-2012, disponível em http://bit.ly/2KfcvIf. - O juízo absoluto e a paralisia da linguagem. Entrevista especial com Ricardo Timm pu- blicada na revista IHU On-Line, nº 344, de 21-09-2010, disponível em http://bit.ly/2FVGBva. - A contribuição de Lévinas à humanização da sociedade. Entrevista especial com Ricar- do Timm publicada na revista IHU On-Line, nº 277, de 14-10-2008, disponível em http://bit. ly/2I69Fn8. - A Filosofia mudou depois de Auschwitz. Entrevista especial com Ricardo Timm publi- cada nas Notícias do Dia, de 13-07-2008, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2Ici60v. - Os desafios de uma nova ética. Entrevista especial com Ricardo Timm publicada na re- vista IHU On-Line, nº 244, de 19-11-2007, disponível em http://bit.ly/2YYcJqI. - Nanotecnologia e filosofia. Entrevista especial com Ricardo Timm publicada na revista IHU On-Line, nº 215, de 16-04-2007, http://bit.ly/2UmbnY6.

EDIÇÃO 534 PUBLICAÇÕES

A liturgia, 50 anos depois do Concílio Vaticano II: marcos, desafios, perspectivas

edição 140 dos Cadernos Teologia Pública apresenta o A liturgia, 50 anos depois do Concílio Vaticano II: marcos, desafios, perspectivas, de Andrea Grillo. No artigo o autor italiano faz uma referência histó- Arica ao processo litúrgico desenvolvido pela Comissão Ecclesia Dei a partir do Concílio Vaticano II. Grillo parte da premissa que a Comissão “é incapaz de promover a continuidade da tradição litúrgica posterior ao Concílio, ao contrário, a mina explicitamente”. O teólogo defende a necessidade de uma “virada série e serena que reconheça eficazmente o que é central e o que deve ser descartado”. Ademais, apresentam-se críticas ao que o autor denomina como “apegos nostálgicos e ressentimentos antimo- dernos”, contrapondo o modelo de “Igreja em saída, minimamente inte- ressada no fato de que existe algo fora 82 de si mesma”. Por fim, defende que o “papa Francisco é o melhor teólogo” para pensar o desenvolvimento li- túrgico, pois “é o Bispo de Roma que nasceu eclesialmente com o Concílio”, embora não seja “liturgista especialis- ta”, porém é sua “experiência prática e a ausência de pré-compreensões ideológicas” que lhe permitiram falar e fazer marcos litúrgicos. Andrea Grillo é filósofo e teólogo italiano, leigo, especialista em liturgia e pastoral. Doutor em teologia pelo Instituto de Liturgia Pastoral, de Pá- dua, é professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, de Roma, do Institu- to Teológico Marchigiano, de Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, de Pádua. Também é membro da Associação Te- ológica Italiana e da Associação dos Professores de Liturgia da Itália. A versão completa deste Cadernos Teologia Pública está disponível em http://bit.ly/2FW7DCH. Estas e outras edições dos Cadernos Teologia Pública também podem ser obtidas diretamente no Instituto Humanitas Unisinos - IHU, no campus São Leopoldo da Unisinos (Av. Unisinos, 950), ou solicitadas pelo endereço hu- [email protected]. Informações pelo telefone (51) 3590-8213.

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Outras edições em www.ihuonline.unisinos.br/edicoes-anteriores

Mística, estranha e essencial. Secularização e emancipação.

Edição 435 – Ano XIII – 16-12-2013 Nas palavras de Michel de Certeau, a mística é, ao mesmo tempo, est- ranha e essencial. Por sua vez, Theodor Adorno, na esteira de Gershom Scholem, propunha que a mística é uma secularização que representa um avanço emancipatório. Dotada destas características, a mística volta a ser destaque nesta edição da IHU On-Line, que reúne pesquisadores, professores e professoras de diferentes áreas do conhecimento.

Água, fogo, noite e luz. A Páscoa, hoje 83

Edição 288 – Ano IX – 6-4-2009 Água, Fogo, Noite e Luz são os grandes símbolos pascais. Eles apontam para o “sacramento primordial” que é o cosmos. Cosmos que vibra com a vitória do Cristo, que se levanta da morte, na manhã da Ressurreição. A vitória da vida sobre a morte é a grande mensagem pascal. A intensa e transdisciplinar programação de Páscoa promovida pelo In- stituto Humanitas Unisinos – IHU buscou aprofundar a compreensão do mistério pascal apelando para o cinema, a música, a ciência, a literatu- ra, a reflexão teológico-espiritual. Enfim, uma verdadeira mistagogia.

Creio...

Edição 462 – Ano XV – 30-03-2015 Em que você acredita? O que você espera? Estas duas questões, aparente- mente banais, sem importância, ganham outros contornos quando se abrem os ouvidos somente para ouvir, sem julgamentos. A presente edição da IHU On-Line convidou um conjunto de pessoas para responder a estas duas provo- cações, reunindo depoimentos de um jovem estudante de economia que vive no interior do Rio Grande do Sul, passando pela poesia visual do eixo Rio-São Paulo e chegando ao Norte do país, com a fala do Bispo do Pará.

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