Stela Guedes Caputo

DOI: http://dx.doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2020.v30.n61.p365-373 ENTREVISTA COM O FÍSICO MARCELO GLEISER

Stela Guedes Caputo (UERJ)* http://orcid.org/0000-0003-0133-3301

RESUMO O governo do presidente brasileiro Jair Bolsonaro aprofunda cada vez mais o desprezo pelo conhecimento, que ele já manifestava desde a campanha eleitoral. Em plena pandemia da Covid-19, enquanto o mundo aposta nas pesquisas

científicas, na esperança da descoberta de vacinas (o que já aconteceu), Bolsonaro intensifica sua cruzada contra as universidades e a ciência, rejeitando gruposdados analisados econômicos, com obscurantismo métodos e protocolos, religioso, ignorando imensa desigualdade pesquisas e orientações social, um profundomédicas mundiais, descaso oupela seja, vida sendo e o negacionista. negacionismo, Interesses já mencionado, financeiros são de algumas grandes características do bolsonarismo que faz o Brasil agonizar nesse momento. Para

conversar sobre esse ataque à ciência e aos cientistas, entrevistamos o físico e astrônomo brasileiro Marcelo Gleiser, professor titular de filosofia natural e de física e astronomia na Dartmouth College, em Hanover, Estados Unidos, vencedor do Prêmio Templeton de 2019. Na entrevista, Gleiser fala sobre a importância do diálogo entre fé e ciência; sobre o papel das associações de pesquisas nesse momento; sustenta que o modelo cultural científico precisa mudar e se tornar menos eurocêntrico e mais pluralista; diz que o Brasil vive uma tragédia Palavras-chave:provocada pelo obscurantismo religioso e afirma que as novas gerações vão rir Bolsonarismo.muito da nossa, em que muita gente ainda acredita que a Terra é plana. Covid-19. Fé e ciência. Obscurantismo religioso. Pandemia.

[email protected] * Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade católica do (PUC-RIO). Professora do Programa de Pós- Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). E-mail: Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 30, n. 61, p. 365-373, jan./mar. 2021 365 Entrevista com o físico Marcelo Gleiser ABSTRACT INTERVIEW WITH THE MARCELO GLEISER Brazilian president Jair Bolsonaro´s government deepens even more the disdain for knowledge, which has been manifested since the election campaign. In

histhe crusademiddle ofagainst the Covid-19 universities pandemic, and science while by the rejecting world isdata relying analysed on scientific through methodsresearch inand the protocols hope to find and aignoring cure, Bolsonaro, worldwide as medicala typical researchnegationist, and intensifies guidance. Financial interests of large economic groups, religious obscurantism, the country´s vast social inequality, a profound disregard for life and negationism are some of the characteristics of “bolsonarism”, which is currently making agonize. In order to discuss the attack on science and scientists, we interviewed

Brazilian physicist and astronomer, Marcelo Gleiser, full professor of Natural Philosophy, Physics and Astronomy at Dartmouth College in Hanover, United States, and winner of the 2019 Templeton Award. In the interview, Gleiser speaks about the importance of the dialogue between faith and science; about declaresthe role ofthat research Brazil is associations experiencing at a the tragedy present caused time; by states religious that obscurantism the scientific cultural model must change and become less Eurocentric and more pluralistic;

Keywords:and affirms that the new generations will laugh a lot at ours, in which many Bolsonarism.people still believe that the Earth is flat. Covid-19. Faith and science. Religious obscurantism. Pandemic. resumen ENTREVISTA REALIZADA AL FÍSICO MARCELO GLEISER

en el desprecio por el conocimiento que ya manifestaba desde la campaña electoral.El gobierno En del plena presidente pandemia brasileño del Covid-19, Jair Bolsonaro mientras profundizó el mundo cada apuesta vez máspor

ciencia,las investigaciones rechazando científicas,los datos analizados por la esperanza con métodos del descubrimientoy protocolos, ignorando de una lascura, investigaciones Bolsonaro intensifica y las orientaciones su enfrentamiento médicas contra mundiales, las universidades o sea, siendo y la

oscurantismo religioso, la desigualdad social inmensa, un gran descarte por la negacionista. Los intereses financieros de grandes grupos económicos, el características del bolsonarismo que hace a Brasil agonizar en este momento. preservación de la vida y el negacionismo, ya mencionado, son algunas de las

Para conversar sobre este ataque a la ciencia y a los científicos, entrevistamos al físico y astrónomo brasileño, Marcelo Gleiser, profesor titular de filosofía natural y de física y astronomía en la Dartmouth College, en Hanover, Estados Unidos, ganador del Premio Templeton, de 2019. En la entrevista, Gleiser habla sobre la importancia del diálogo entre la fe y la ciencia; sobre el papel de las asociaciones de investigación en este momento; sostiene que el modelo cultural científico necesita cambiar y tornarse menos eurocéntrico y más plural; comenta que Brasil vive una tragedia provocada por el oscurantismo religioso y afirma 366

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que las nuevas generaciones se reirán mucho de la nuestra, en la que mucha

Palabras clave: Covid-19. Fe y ciencia. Oscurantismo religioso. Pandemia. Bolsonarismo.gente aún cree que la Tierra es plana. Apresentação - também um dos cientistas que mais defende a - Fé e ciência sempre disputaram explica comoções fundamentais para o cientista para italiano o mundo Giordano ao longo Bru- ouposição outra de é ignorar que ciência que o e homem fé são caminhos é tanto um com ser da História. Conflito com desfechos trágicos, espiritualplementares quanto para racional”, a humanidade. escreveu “Negar em artigo uma religiososno, julgado e emanter queimado sua vivodefesa pela da Inquisição teoria do - em 1600. Seu “crime” foi combater dogmas depublicado de uma posturana Folha menos de São binarista Paulo entre(GLEISER, esses dois2006). aspectos Ele também do humano, está convicto que possibilite da necessida uma astrônomo e matemático Nicolau Copérnico: menosera a Terra trágico que giravateve o em astrônomo, torno do sol também e não o lado entenda e ocupe seu papel social. italiano,contrário, Galileu como queriaGalilei. aJulgado Igreja. Umem 1633,desfecho foi convivência mais harmônica, desde que cada obrigado a negar suas ideias, entre elas a mes- ma teoria copernicana, e condenado a passar Não existe nenhum conflito em uma justificativa o resto da vida em prisão domiciliar. Morreu religiosa ou espiritual para o trabalho científico, contanto que o produto desse trabalho satisfaça- vivo, mas muitos outros pensadores foram teàs regrassubjetiva impostas e varia pela de comunidadecientista para científica. cientista. A em casa, em 1642, ao menos não foi queimado Masinspiração o produto para de se suasfazer pesquisas ciência é completamen tem um valor julgados e executados pela Inquisição. Para o universal, fato que separa claramente a ciência físico e astrônomo brasileiro Marcelo Gleiser da religião. (GLEISER, 1999, p. 47). (1997), dos inúmeros conflitos entre ciência- e religião, nenhum teve mais atenção do que a Por todo seu trabalho, o físico brasileiro batalha entre Galileu e a Igreja Católica. A im- foi o vencedor do Prêmio Templeton de 2019. deuportância em discurso desse episódioa necessidade é tamanha de um que, estudo em Estabelecida em 1972, a distinção é uma mais1982, profundo diz Gleiser, sobre o Papa esse João caso Paulo para removerII defen vivacondecoração que, na opinião anual dosatribuída juízes, pela “[...] Fundaçãoteve uma John Templeton e entregue a uma pessoa dimensão espiritual da vida, seja através de possíveis obstruções a uma relação frutífera contribuição excepcional para a afirmação da entre ciência e fé. No mesmo discurso, João Paulo II afirma a existência de dois reinos do uma introspecção, descoberta ou trabalhos- conhecimento. Um seria a fé, cuja fonte é a práticos” (JOHN TEMPLETON FOUNDATION, revelação divina, outro a razão, sustentada 2019). Grandes cientistas estão entre os pre- depelas conhecimento ciências experimentais não precisa e aser filosofia. entendida Para miados: , em 1995; , João Paulo II, a distinção entre os dois modos geneticistaem 2000; John Francis David Collins, Barrow, comprometido em 2006; Mar na anos depois de sentenciado, Galileu teve sua lutatin Rees, contra em a Covid-19,2011. O vencedor líder do Projetode 2020 Geno foi o- como oposição. Finalmente, em 1992, 360 - condenação revogada pela Igreja. - ma Humano nos Estados Unidos. Importantes Marcelo Gleiser é professor titular de filo líderes religiosos também já venceram: Madre sofia natural e de física e astronomia na Dart Teresa de Calcutá, em 1973; Dalai Lama, em mouth College, em Hanover, Estados Unidos.Rev. FAEEBA É – Ed.2012; e Contemp., Reverendo Salvador, v. Desmon 30, n. 61, p. 365-373,Tutu, emjan./mar. 2013. 2021 367 Entrevista com o físico Marcelo Gleiser

Natural do Rio de Janeiro, Marcelo Gleiser se- inspirado, no Brasil, pela atual Presidência da formou em física pela Pontifícia Universidade verRepública. com os O dois mesmo maiores ocorre índices nos Estados de casos Unidos de Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), fez mestra Covid-19com Trump do emundo, os resultados, são devastadores. como podemos Com Collegedo na Universidade London, na Inglaterra.Federal do Suas Rio deprincipais Janeiro a explosão da internet, onde todo mundo tem (UFRJ) e doutorado em cosmologia no King’s charlatães e oportunistas usarem esse mo- questões de pesquisa envolvem a cosmologia,A dança e uma voz, ficou infinitamente mais fácil para doa esse Universo respeito já publicou maisRetalhos de 100 artigoscósmi- como os novos profetas do não-saber. “Vamos coscientíficos e diversos livros,O fim entre da Terra eles: e do céu mento de falta de liderança para se lançarem- (GLEISER,Criação 1997); imperfeita - (GLEISER,A ilha do 1999); conhecimento truirdestruir a credibilidade o meio-ambiente, dos cientistas vamos destruir para então o fi (GLEISER,A simples beleza 2001); do inesperado (GLEISER, nanciamento da pesquisa científica, vamos des 2009);Preocupado com o obscurantismo (GLEISER, que 2014); a so- possível”. O que eles não entendem é que estão ciedade brasileira atravessa, em (GLEISER, especial 2016). nesse tomar conta do país da forma mais predatória momento de pandemia, Marcelo Gleiser conce- corporal, certamente intelectual – e, com eles, deu a entrevista que publicamos a seguir. Por oassinando país todo a afunda.própria sentença de morte – se não e-mail, o cientista e escritor, além de retomar o No dia 16 de maio, apoiadores de Bolsonaro obscurantismo brasileiro, protagonizado pelo cantaram uma paródia da música “Florentina tema do papel da ciência e da fé, afirmou que o presidente da república Jair Bolsonaro, trará de Jesus”, do palhaço Tiririca, em frente ao Palácio da Alvorada. A versão dos fanáticos - viralizou na internet e ficou assim: “Cloroqui- efeitos devastadores para o Brasil. Defendeu a na, Cloroquina. Cloroquina lá do SUS. Eu sei importância do papel dos cientistas e da urgên que tu me curas, em nome de Jesus.” Como cia de uma mobilização e unidade maior entre você acha que chegamos a esse ponto? É as várias associações de pesquisa e disse que possível mensurar as consequências nacionais o modelo cultural científico precisa mudar, se Gleiser também falou de um novo Iluminismo e internacionais para o Brasil diante disso? E tornar menos eurocêntrico e mais pluralista. como podemos reverter essa tragédia?

em que a justiça social seja o foco, anunciando, Gleiser – inclusive, que esse será o tema de seu próximo fanatismo religioso, e é mesmo uma forma de livro, escrito com o filósofo Evan Thompson e fanatismo religioso,Tragédia historicamente mesmo. Porque tem esse um Como astrofísico certeza, Adam você Frank. deve acompanhar a luta é uma ponte direta ao obscurantismo, é optar que travamos hoje, no Brasil, contra o obs- enorme poder destruidor. A negação da ciência curantismo religioso. Não só um obscuran- tismo que, já há tempos, violenta o Estado por voltar no tempo. De onde vem isso? Do laico e outras religiões minoritárias, mas um paradesespero trás, semsocial, líderes da percepção capazes dade perdainspirar de obscurantismo que, em plena pandemia de poder pela população, que se sente deixada coronavírus, produz uma cruzada contra a Ciência. Como você define o obscurantismo e desespero da falta de recursos, sem visão de comoum crescimento vão prosperar econômico nas suas evidas, cultural. aderem No de onde ele vem? Como se espalha? a esse tipo de anarquia cega. “Se eu afundo, Gleiser – O obscurantismo faz parte de um afundam todos comigo”. Para reverter isso, movimento para abalar estruturas de poder,

os diversos cientistas e intelectuais têm que 368

Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 30, n. 61, p. 365-373, jan./mar. 2021 Stela Guedes Caputo se mobilizar e criar um contra-movimento, levantar o país da ruína atual. Os cientistas uma chamada a um novo Iluminismo em que se mobilizar, criar uma voz pública bem mais amplatêm um do papel que social a atual. enorme Sociedade aqui, e Brasileira precisam Sim,a justiça o Iluminismo social seja lutou o foco. contra o dogmatismo religioso, o obscurantismo. Mas você mesmo - para o Progresso da Ciência (SBPC), Academia já disse em artigos que, ao ter como projeto Brasileira de Ciências (ABC), Medicina, Enge uma civilização com “valores universais com- nharia, Filosofia, Academia Brasileira de Letras partilhados por todos”, o Iluminismo colocou (ABL), Associação Nacional de Pós-Graduação e o homem branco no ápice da sociedade. Que Pesquisa e Educação (ANPEd), enfim, todas as autocríticas a própria ciência e o projeto entidades e associações nacionais de pesquisas iluminista precisam fazer para que esse novo do Brasil. devem trabalhar juntas para redefinir o futuro Iluminismo seja, de fato, mais humano e plu- ral, e consiga ter a justiça social como foco? Fanatismo religioso, ultra direita, militarismo e extrema desigualdade. Elementos amalga- Gleiser – Excelente pergunta. O modelo mados na realidade brasileira hoje. Quais os perigos dessa mistura? - tendercultural algo científico essencial, precisa que, aliás,mudar, será se otornar tema Gleiser – Essa mistura está levando o país à menos eurocêntrico e mais pluralista; e en - mos continuar assim. de meu próximo livro, escrito com o filósofo ruína econômica, cultural e social. Não pode humanaEvan Thompson como ponto e o deastrofísico partida deAdam tudo Frank: o que Na pandemia que o mundo atravessa, certa- que nunca podemos eliminar a experiência- mente a fé desempenha um papel e a ciência outro. Qual o papel de uma e de outra em dofazemos, observador. inclusive O “novo a construção iluminismo” de uma é o narque crises como essa? rativa científica. Não existe uma visão “divina” uma doutrina que também pretendo expandir Gleiser – - chamo de Humanocentrismo em meus livros, te e complementar. Mas apenas a fé iluminada - Ciência e fé têm um papel importan mos a centralidade da humanidade e da vida pelo saber e não a fé cega e obscurantista de em publicações futuras. Só quando entender papel mais essencial, pois apenas ela pode certos movimentos atuais. A ciência tem o podemos(biocentrismo transformar talvez seja de melhor), fato nossa e a narrativa raridade cansadada Terra docomo Iluminism planetao. que abriga a vida, é que parasalvar todos. vidas Mas com não tratamentos, é. As pessoas com acham vacinas. que É aabsolutamente medicina, a tecnologia incrível que cai issodos nãocéus, seja feito óbvio um As universidades brasileiras estão sob ataque maná sagrado. Mas não é nada disso e cabe aos do governo Bolsonaro. Como você vê esse cientistas, aos médicos explicarem isso para a momento para as pesquisas brasileiras e o que fazer quando temos um presidente e um ministro da Educação que são inimigos do Tarefapopulação. difícil essa a de explicar, em um país conhecimento? em que seu presidente, Jair Bolsonaro, tem Gleiser – A única saída é um contra-movi- por guru o terraplanista Olavo de Carvalho. mento organizado, centrado numa nova visão Sabemos que nem a História e nem a Ciência seguem uma linha reta, em direção cumulati- Apenas com um novo governo poderemos va, progressista, sem retrocessos ou revezes. de mundo em que o foco é a justiça social.

Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 30, n. 61, p. 365-373, jan./mar. 2021 369 Entrevista com o físico Marcelo Gleiser Mas em pleno século 21, como entender quem Gleiser – acredite e defenda que a Terra é plana? O maior desafio dessa integração - Gleiser – nãodos saberesquer um é médico o não conhecimento pilotando o avião e aceitação em que do papel de cada um. Da mesma forma que você- em mente éRealmente, que esse é umaum movimento mistura de misté anár- - quico,rio e tragédia. cujo objetivo A única é explicaçãoabalar a credibilidade que me vem dasvocê e voaesse e saber o piloto deve fazendo ser respeitado. sua cirurgia, Por outro exis tem classes profissionais que são especializa e obediente. Ou seja, uma espécie de escravidão científica, criando uma comunidade ignorante de vista plurais, modos de pensar complemen- intelectual, uma massa de gente cega, que nem lado, muitos desafios atuais requerem pontos médica implementa tratamentos, enquanto os tares. No caso da pandemia, é claro que a classe sabe em que mundo vive. Perdidos, não têm cientistas tentam desenvolver curas e os epide- outra opção que a de seguir os líderes que se miologistas desenvolvem modelos para enten- mostram “poderosos”, capazes degente. desafiar a tudo e a todos, até mesmo o saber científico. As eder laicas como deveriam a doença fazer se espalha, sua parte o que mantendo nos ajuda oa gerações futuras vão rir muito da Em seu livro A ilha do conhecimento (GLEISER, equilíbriocombatê-la. socioeconômico O governo, as lideranças e emocional religiosas das 2014), você diz que a ciência é mais do que o conhecimento acumulado do mundo e que, mesmas necessidades de complementaridades se usada tanto para o bem como para o mal, dospessoas. saberes No caso e dos da especialistas,pós-pandemia, como teremos numa as não diz respeito à ciência em si, mas à preca- colmeia de abelhas em que cada um tem sua riedade da natureza humana, à tendência que foco, como disse temos tanto para criar quanto para destruir. O mundo pós-pandemia aprenderá mais a esse função para o bem comum. O respeito sobre a ciência? Emantes, seu deve livro ser Criaçãoa justiça imperfeita social. (GLEISER, Gleiser – Espero que sim. Se há algo que 2009), você diz que a ciência é uma cons- esta pandemia está nos ensinando é a ter hu- trução humana criada por nós para explicar o mundo a nossa volta, mas que “verdades” pode ser uma luta entre várias criaturas sem como a lei da gravitação universal de New- umamildade dimensão com relação moral, àna Natureza. qual o que A vidaimporta não ton ou a teoria da relatividade especial de é sobreviver. Ficamos muito arrogantes com Einstein, apesar de brilhantes, funcionam nossos sucessos, e a pandemia nos mostrou apenas dentro de certos limites e que sem- que, apesar de sabermos muito, temos muito pre existirão fenômenos que não poderão ser o que aprender. E, algo essencial, é aprender a explicados. Isso tira os méritos e a beleza da conviver com o planeta e seus ecossistemas de ciência? forma construtiva e não parasítica. Gleiser – Pelo contrário! Apenas quando en-

No mesmo livro, você diz que a ciência é ape- e, portanto, limitada é que podemos valorizar nas um dos modos de conhecer o mundo e que tendemos que a ciência é uma criação humana existem muitos modos de saber, e que estes podem e devem complementar-se e inspirar-se seus feitos. Transformá-la em dona de uma mutuamente. Quais já eram os desafios dessa everdade expressa absoluta um triunfalismo é filosoficamente que apenas incorreto leva complementação mútua de vários saberes (a ciência avança e visões de mundo também) e quais são esses desafios ainda durante a pandemia e pós-pandemia? baseadaa uma arrogância em nossos injustificada. instrumentos É justamentee teorias, é quando entendemos como a ciência avança, 370

Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 30, n. 61, p. 365-373, jan./mar. 2021 Stela Guedes Caputo que podemos celebrar os seus grandes feitos.

Sãoa ciência processos e a religião completamente não visa diferentes desmerecer de se a Ninguém deve querer transformar ciência em verciência o mundo ou transformá-la e que não devem em subproduto ser confundidos. da fé. Noreligião, mesmo no livro,sentido você de afirmater omnisciência. que, após cinco milênios de buscas, é hora de deixar para trás dado a grandes cientistas, dentre eles Freeman Devo dizer que o prêmio Templeton também foi a expectativa de achar explicações finais so- bre o mundo, sejam científicas ou religiosas. Dyson, (o astrônomo real do Reino Diz que sim, somos e sempre seremos criaturas Unido), John Barrow, Paul Davies, todos eles criadoras, mas que nosso foco precisa mudar ano, ganhou o , líder do Proje- cosmólogos e teóricos de primeira linha. Esse e que a Natureza está nos dizendo algo de diferente. O que a Natureza está nos dizendo sinto profundamente honrado de fazer parte to Genoma Humano nos Estados Unidos. Me agora? Como ouvi-la? em parte da mídia brasileira, que falou apenas Gleiser – desse grupo tão distinto. Talvez a culpa seja

A Natureza está nos dizendo algo de acharmos que somos donos dela, que pode- nadados líderes dos cientistas. religiosos que ganharam o prêmio: mosmuito fazer claro: o que precisamos bem quisermos mudar comnossa o atitudemundo Madre Teresa, Dalai Lama, ... e - Em seu livro A simples beleza do inesperado tando dezenas de milhares de vidas no Brasil (GLEISER, 2016), você, entre outras questões, natural. Nossa fragilidade é óbvia, e está cus e centenas de milhares no mundo. Era certo manifesta imensa preocupação com as mu- que teríamos uma nova onda, como ocorreu danças climáticas nas últimas décadas. Nele, com a gripe espanhola de 1918, justamente você reafirma que a maioria absoluta dos - cientistas concorda que o aumento da tem- tra o isolamento social. Precisamos repensar peratura global ocorre em função do aumento devido a pressões econômicas que vão con como comemos, como moramos, como usamos na poluição atmosférica, consequência do desmatamento e da queima de combustíveis relacionamos com as outras criaturas com fósseis. A resposta ao problema é de ordem energia, como fazemos negócios e como nos política, econômica, científica, mas não só. Qual a principal dificuldade para o mundo quem dividimos o planeta. A Terra existiu por - oferecer essa resposta ao problema? bilhões de anos e continuará a existir sem a totalmentegente. Mas erradnós precisamosa. dela. Essa hierar Gleiser – quia verticalizada de nós sobre a Natureza está opinião pública, convencer as pessoas de que A maior dificuldade é mudar a Quando você ganhou o prêmio Templeton, o aquecimento global é um risco existencial houve algumas críticas de parte da comuni- para a humanidade. As pessoas, até as que dade científica, justamente por ser um prêmio acham que o aquecimento global está ocorren- com ênfase na espiritualidade. Críticas que do, pouco fazem no seu dia a dia para mudar vão na mesma direção de quem já critica seu seus hábitos. Acham que o ônus é apenas dos ativismo por mais diálogo entre ciência e reli- governos, das empresas. Embora a responsa- gião. Poderia falar um pouco mais a respeito? bilidade seja de governos e empresas, essas - Gleiser – Quem diz isso nunca leu meus li- sumidores. Quando os consumidores mudam vros e ensaios ou, se leu, não entendeu nada. seusinstituições hábitos respondem e passam a consumiraos eleitores menos e aos carne, con Certamente, não devem ter lido os meus mais

usar menos combustíveis fósseis, menos água, de 100 artigos científicos. O diálogo entre comprar produtos de empresas que têm uma Rev. FAEEBA – Ed. e Contemp., Salvador, v. 30, n. 61, p. 365-373, jan./mar. 2021 371 Entrevista com o físico Marcelo Gleiser ética corporativa que se alinha com o futuro Mas não há dúvida de que pode ser extrapolada de um planeta saudável e habitável, governos marca o processo criativo, seja de um escritor oupara de outras um cientista atividades buscando criativas por – uma afinal, vacina, o que é e empresas irão responder. Como fazer isso? queEducação, divulguem disseminação, o conhecimento conversas de forma públicas, aces- sempre com o objetivo de aprimorar a obra ações comunitárias, programas de TV aberta criativa.a persistência, O resultado, a repetição, na pescaria as novas o tentativas, peixe tão desejado, seria o resultado da pesquisa, o texto Vocêsível etambém com urgência. deve ter tomado conhecimento que, durante a reunião ministerial do dia 22 de abril de 2020, o ministro do Meio Ambiente, valioso,No mesmo a cura livro, de você uma diznova que doença. o valor de uma Ricardo Salles, disse que o governo brasileiro geração é o seu legado para as próximas e devia aproveitar a oportunidade trazida pela que pelas crianças você espera que o legado pandemia, já que o foco da sociedade e da de sua geração (da nossa) seja um planeta mídia está voltada para o novo coronavírus, melhor, habitado por seres humanos mais e “passar a boiada” e fazer uma “baciada” espiritualizados, cientes de seu dever moral de mudanças nas regras ligadas à proteção de preservar a vida a todo custo. Como está ambiental. Sabemos da importância do Brasil essa sua esperança hoje? para a questão ambiental. A fala do ministro, Sou um otimista, pois pessimistas portanto, significa um desastre não só para Gleiser – essa política ambiental, mas para a imagem do Brasil no exterior também. Como você avalia? já perderam antes de começarem a luta. Vejo Gleiser – aque, iluminar apesar o de caminho todas as do dificuldades respeito ao óbviasoutro, daque diversidade enfrentamos, e escolhas uma luz que diferente fazemos, começa uma De forma trágica. É inacreditável - que em pleno século 21, sabendo tudo o que turo do planeta. Os passos são mais lentos do interessessabemos hoje oportunistas sobre mudanças do setor climáticas agropecuário como quepreocupação gostaria, emaior talvez com acabe a justiça funcionando social e como o fu que,resultado em vez da deação se humana,reinventar líderes e investir sirvam numa aos agricultura sustentável e limpa, pouco se im- perder. porta com o que está ocorrendo no mundo e um catalizador. Não temos nenhum minuto a - Em um artigo publicado na Folha de São Paulo, em 25 de junho de 2006 (GLEISER, 2006), comlucros a destruiçãorápidos e não ambiental planos queque projetamestão perpe um você afirma que é extremamente ingênuo e futurotrando. planetário É o pensamento em que imediatista,todos ganham. visando desnecessário imaginar ser possível um mundo sem religião e que a função da ciência não Ainda em A simples beleza do inesperado é tirar Deus das pessoas. Mas e quando a fé (GLEISER, 2016), você compara ciência e obscurantista deseja tirar a ciência do mundo, pescaria. Diz que ambas requerem paciência, o que fazer? tolerância, humildade. A pandemia que o mundo enfrenta hoje reforça essa compara- Gleiser – Esse é o problema do fanatismo, que é uma forma de cegueira. Os que querem ção? E a comparação poderia ser adequada a - outras áreas?

Gleiser – tirar a ciência do mundo são, no mínimo, pro Oufundamente seja, usando hipócritas. todas as Fazemgrandes isso conquistas usando Nessa analogia entre ciência e a seus celulares, GPSs, tomando antibióticos etc. pesca, falo mais do processo criativo científico. 372

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da ciência e suas aplicações tecnológicas sem- Panum dosda sociedade, grandes físicossempre do perguntando século passado, sobre a menor autocrítica. De onde eles acham que costumava dizer que os físicos são os Peter essastenhamos tecnologias que lidar todas com essevêm? tipo É realmente de problema. la curiosidade, morremos um pouco. mentável que hoje, em pleno século 21, ainda o porquê das coisas. Quando perdemos nossa

Temos outros muito mais importantes para REFERÊNCIAS comprometemenfrentar, e essas o progresso pessoas sãodo país. um atraso, só A dança do universo – dos mitos da atrapalham o avanço moral da humanidade. E GLEISER, M. – os limites No prólogo de seu livro A simples beleza do criação ao big-bang.A ilha do São conhecimento Paulo: Schwarcz, 1997. inesperado (GLEISER, 2016), você traz uma GLEISER, M. epígrafe de Heráclito: “Um homem só se da Ciência e a busca por sentido. São Paulo: Record, – um aproxima do seu eu verdadeiro quando atinge 2014. A simples beleza do inesperado a seriedade duma criança que brinca”. É um GLEISER, M. livro em que você conversa com o menino que filósofo natural em busca de trutas e do sentido da foi e fala da determinação, ousadia e coragem vida. São Paulo: Record, 2016. Folha de S.Paulo desse menino. Em outro livro seu, A dança GLEISER, M. Conciliando ciência e religião. do Universo (GLEISER, 1997), você também , São Paulo, 25 de junho de 2006. Disponível fala da infância, referindo-se a um de seus em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ciencia/ Criação imperfeita – cosmo, vida e o filhos. As crianças são fascinadas pela ciên- fe2506200601.htm. Acesso em: 16 jul. 2020. cia, já que, gostem ou não da ciência como GLEISER, M. O fim da Terra e do Céu – o apocalipse disciplina, são impregnadas pelo prazer de código oculto da natureza. São Paulo: Record, 2009. buscar conhecer. Poderíamos encerrar nossa GLEISER, M. na ciência e na religião.Retalhos São cósmicos Paulo: Schwarcz, 2001. conversa falando disso? Schwarcz, 1999. GLEISER, M. . São Paulo: Gleiser – Marcelo Gleiser - recebe o prêmio Templeton 2019 pre tentandoClaro. aprender Temos algo muito de novo, a aprender com um JOHN TEMPLETON FOUNDATION. com as crianças. São exploradoras natas, sem . Pensilvânia, 2019. Disponível em: https://www.templeton.org/ pt/news/. Acesso em: 16 jul. 2020. espírito lúdico e feliz. Nós crescemos e nos umaesquecemos prisão quedisso, pouco ficamos nos casmurros, permite explorar presos a Recebido em: 11/03/2021 uma rotina que nos impõe e que nos impomos, Aprovado em: 11/03/2021 e aprender o novo. Por isso que Isidor Rabi,

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