número 13 | novembro | 2015 | ¤7,5

celebrando a música clássica dos países de língua portuguesa glosasedições  Gilberto Mendes homenagem Com a colaboração de Antonio Eduardo Santos, Edward Ayres d’Abreu, José Eduardo Martins, José Lopes e Silva e Luís Salgueiro

madalena sá e costa 100 anos Entrevista de Nuno M. Cardoso e José Carlos Araújo

bernardo sassetti in memoriam Maria João Neves

nuno da rocha na casa da música Entrevista de Luís Salgueiro

compositores a descobrir os quatro napoleão Gonçalves Guimarães , movimento patrimonial pela música portuguesa  3 Editorial 5 No som das vibrações ultra-sónicas… | José Lopes e Silva 6 Gilberto Mendes na crista da onda | entrevista de Edward Luiz Ayres d’Abreu 9 Largo do Chiado | Gilberto Mendes 10 Veios de uma transmodernidade | Antonio Eduardo Santos 14 Um outro gesto sonoro: O tEAtRo MusiCaL de Gilberto Mendes | Antonio Eduardo Santos 17 Ecos d’além-mar: A mente aberta de Gilberto Mendes | José Eduardo Martins 19 Gilberto Mendes 90 – Alegres Trópicos | Luís Salgueiro 20 Ascent | Bernardo Sassetti 23 A fenomenologia do sonho de María Zambrano na música de Bernardo Sassetti | Maria João Neves 31 A propósito do Fado Burnay | Madalena Moreira de Sá e Costa 32 Homenagem a Madalena de Sá e Costa no centenário do seu nascimento | Nuno M. Cardoso e José Carlos Araújo 43 Entrevista a Nuno da Rocha | Luís Salgueiro 49 Cadernos de musicologia: Fernando Corrêa de Oliveira e o ensino do Piano | Carla Nogueira e Helena Santana 56 Os quatro músicos Napoleão | J. A. Gonçalves Guimarães 65 Irmandades e ritual em Minas Gerais durante o Período Colonial (continuação) | Maria Alice Volpe 76 Lembrança(s) de Suggia: notas sobre um espólio | Luís Cabral 78 Em torno do Festival de la Canción Gallega | José Luís do Pico Orjais 80 Os Cantos sefardins para voz e piano de Fernando Lopes-Graça | José Maria Pedrosa Cardoso

82 Laboratório de iconografia musical | uma rubrica de Luzia Rocha 85 (des)encontros com o jazz | uma rubrica de Pedro Cravinho 89 Lusitana Música: Clássicos da discografia portuguesa | uma rubrica de Tiago Hora 92 Tesouros instrumentais | uma rubrica do Museu Nacional da Música 93 Evocação de Santos Pinto no bicentenário do seu nascimento | Maria José Borges 96 Coisas em que tropeço… | uma rubrica de Sílvia Sequeira (Biblioteca Nacional de ) Número 13 | Novembro de 2015 | Gilberto Mendes Próximo número: António Pinho Vargas (Maio de 2016)

direcção-geral Edward Luiz Ayres d’Abreu | [email protected]

GLOSAS África e Ásia Director | Jorge Castro Ribeiro

GLOSAS Brasil Academia Brasileira de Música R. da Lapa, 120, Centro, Rio de Janeiro, Brasil Directora | Maria Alice Volpe

GLOSAS Portugal Co-directora | Luzia Rocha | [email protected] Co-director | José Carlos Araújo| [email protected]

Correspondente nos Açores | Duarte Gonçalves da Rosa Correspondente no Algarve | Maria João Neves Correspondente em Castelo Branco | José Carlos Oliveira Correspondente em Évora | Luís Henriques Correspondentes na Madeira | Carlos Gonçalves e Paulo Esteireiro Correspondente no Porto | Tiago Hora

Coordenador do Núcleo de Jazz | Pedro Cravinho | [email protected]

conselho científico lusófono [email protected]

Gabriela Cruz, Jorge Castro Ribeiro, Manuel Pedro Ferreira, Paula Gomes Ribeiro, Paulo Castagna, Ricardo Tacuchian, São José Côrte-Real, Susana Igayara, Susana Sardo

redacção e edição Ana Catarina Tomás, Ana Lúcia Carvalho, Beatriz Noronha Dilão, Catarina Furtado, Duarte Pereira Martins, Filipe Gaspar, Isabel Pina, Luís Salgueiro, Mariana Calado, Nuno M. Cardoso, Sofia Lopes, Sofia Teixeira, Tânia Valente

revisão José Carlos Araújo

multimédia Rui Geada | [email protected] Tatiana Bina

distribuição e assinaturas Philippe Marques | [email protected]

publicidade Mafalda Marques | [email protected]

design de comunicação DDLX [www.ddlx.pt] José Teófilo Duarte [Direcção de Arte] Gonçalo Duarte [Design e Paginação] Fotografia de capa: Alessandra Fratus

impressão e acabamento Sersilito

, movimento patrimonial pela música portuguesa | www.mpmp.pt edição  depósito legal 310097/10

ISSN 2182-1380

tiragem 400 exemplares ______A revista glosas é ortograficamente liberal: os artigos são publicados de acordo com a norma escolhida pelos respectivos autores.

4 | glosas | número 13 | novembro | 2015 editorial

neidade: Carlos Gomes, Heitor Villa-Lobos, César Guerra- EDWARD LUIZ AYRES D’ABREU -Peixe, José Siqueira, Claudio Santoro, Oscar Lorenzo Fernan- dez, José Antônio de Almeida Prado, Edino Krieger, Jocy de Oliveira, Camargo Guarnieri, Alceo Bocchino, Radamés Gna- Gilberto Mendes é o quarto compositor brasileiro talli, Alberto Nepomuceno, Francisco Mignone, Osvaldo (contando com o luso-brasileiro Marcos Portugal) e o quarto Lacerda, José Vieira Brandão, Guilherme Bauer, Raul do Valle, compositor vivo a figurar como capa da revistaglosas . Se se pro- Jorge Antunes, Ilza Nogueira, Ricardo Tacuchian, Edmundo curasse homenagear um criador da sua geração no panorama Villani-Côrtes, Ernani Aguiar, Ney Rosauro, João Guilherme lusófono contemporâneo, outro nome seria actualmente difícil Ripper, Ronaldo Miranda, Ernst Widmer, Lindenbergue Car- de se lhe equiparar. O leitor deixar-se-á certamente instigar doso, Sérgio Vasconcellos-Corrêa, Aylton Escobar, Ernst Mahle, pela liberdade, generosidade, simplicidade e desprendimento Marlos Nobre, Rodrigo Lima, Maurício de Bonis, Beetholven que de forma tão transparente se desvelam das suas palavras e Cunha, Ernesto Nazareth, Ralph Manuel, Mario Ficarelli, nas suas obras. A sua música, hoje, no Brasil não tão reconhe- Jamary Oliveira, Kilza Setti, Dimitri Cervo, Paulo Costa Lima, cida como seria nosso desejo e em Portugal confrangedora- José Carlos Amaral Vieira e até, inclusivamente, o português mente ignorada em absoluto, encontra-se aqui e ali com alguma João Pedro Oliveira… Belíssima e inspiradora iniciativa! facilidade, muito graças ao mundo digital que tem tornado mais Sobre o que mais se poderá encontrar nesta décima- fácil a difusão de registos discográficos (leia-se a este respeito a -terceira glosas, destaco o dossiê de homenagem a Bernardo recensão de Luís Salgueiro acerca do notável projecto da Sassetti, que continuará no próximo número com mais textos Orquestra Sinfónica do Estado de São Paulo). As páginas deste do (e sobre o) compositor, bem como um estudo iconográfico número que dedicamos a tão augusta personalidade só se com- de Luzia Rocha a partir de cinco fotografias de sua autoria. pletam, de facto, com a audição da sua música, e estou certo de Devemos à Casa Bernardo Sassetti, aos familiares do homena- que os nossos leitores não deixarão de a apreciar e de a partilhar geado e a Maria João Neves o nosso mais profundo agradeci- — missão por enquanto pouco incentivada pelas nossas insti- mento pela colaboração oferecida na preparação destes conte- tuições maiores: até quando a fatalidade da ignorância geral e údos, e aos alunos da licenciatura em Jazz da Universidade do emudecimento persistirá na política diplomática das enti- Lusíada de Lisboa a nossa gratidão pela disponibilidade com dades culturais de língua portuguesa? que aceitaram participar no concerto de lançamento. Por falar em Brasil, e a propósito de divulgação e de políti- Sublinho também o centenário de Madalena Sá e Costa, cas culturais, há um projecto que não pode deixar de ser aqui efeméride inultrapassável para a qual procurámos reunir lembrado e celebrado: o recente restauro da magnífica Sala vários testemunhos de seus ex-alunos e admiradores e a pro- Cecília Meireles, no Rio de Janeiro. O que mais me chamou a pósito da qual tivemos a inestimável oportunidade de preparar atenção quando a visitei não foi, contudo, o estado impecável uma entrevista, bem como de contar com a publicação de um dos seus elegantes espaços, mas antes a programação dos meses texto da sua própria autoria. Para esta ocasião, seleccionou de Junho a Agosto, em que o espaço, actualmente dirigido pelo especialmente Madalena Sá e Costa um autógrafo inédito de compositor João Guilherme Ripper, acolheu o Festival Brasilia- Guilhermina Suggia, que muito nos honra dar a conhecer pela nas em parceria com a Academia Brasileira de Música, para primeira vez. E através destas páginas será ainda possível des- comemorar os setenta anos da fundação desta instituição. cobrir vários Napoleão, ler uma entrevista a Nuno da Rocha — A Orquestra Petrobras Sinfónica, a Orquestra Sinfónica compositor em fulgurante ascensão —, festejar o regresso da da UFRJ, a Orquestra Sinfónica de Barra Mansa, a Banda Filar- secção “Cadernos de musicologia” com um estudo sobre o tão mónica do Rio de Janeiro, o Quinteto Lorenzo Fernandez (resi- esquecido Fernando Corrêa de Oliveira e viajar pelas habituais dente na Academia Brasileira de Música) e o Quarteto Radamés rubricas e breves mas pertinentes contribuições sobre os mais Gnattali, entre muitos outros agrupamentos, apresentaram diversos assuntos, dentre os quais, como não poderia deixar música sinfónica e camerística de alguns dos mais importantes de ser, se acha a evocação de Francisco Norberto dos Santos compositores brasileiros do século XX e da nossa contempora- Pinto, cujo bicentenário celebramos no ano corrente.

glosas | número 13 | novembro | 2015 | 5 gilberto mendes

Fotografia:6 |Alessandra glosas | número Fratus 13 | novembro | 2015 no som das vibrações ultra-sónicas...

sor assistente do maestro e compositor Isaías Sávio, acompa- José Lopes e Silva | TEXTO nhei de perto todos estes movimentos modernistas e vanguar- distas brasileiros. Nessa época, estudei composição com Osvaldo Lacerda, Mário Girotti e Edino Krieger, regência Gilberto Mendes. 13 de Outubro de 1922, Santos, Brasil. orquestral com Simon Blech, piano com Ida Girotti e Guitarra Artista múltiplo: compositor, professor na Escola Superior de com Isaías Sávio. Diplomei-me na Academia Menotti Del Pic- Comunicação e Artes de São Paulo e em várias universidades dos chia com as mais altas classificações e condecorações. Parale- Estados Unidos da América. Mundialmente conceituado como lamente actuava como concertista e músico de câmara. Fre- grande pioneiro da música contemporânea e vanguardista do quentei os Cursos Internacionais de Música de Curitiba, onde século XX no Brasil. O seu nome é mencionado nas mais impor- estudei música sacra, canto coral, regência coral e composi- tantes enciclopédias e dicionários internacionais. Desenvolveu ção. Nesse período tive alguns contactos com Gilberto Mendes a sua intensa actividade como intelectual, músico, pianista, e com alguns dos seus discípulos, que se tornaram grandes regente orquestral, pedagogo e jornalista. Como um apaixonado compositores. Também contactei com grandes intérpretes: o pelo cinema participou nos filmes O último vôo do flamingo e pianista Paulo Afonso e o barítono Eládio Perez-González. Quero ser uma estrela. Gilberto Mendes foi um dos principais Nesse período apresentei a minha primeira obra musical, para signatários do Manifesto Música Nova de 1963. E porta-voz do barítono e guitarra, em primeira audição mundial. movimento de poesia concreta paulista do grupo Noigandres. Regressei a Portugal no início de 1970 e logo contactei o Obteve o grau de Doutor pela Universidade de São Paulo. É autor Jorge Peixinho e com ele iniciei estudos de composição. do importante livro Uma Odisseia musical. É membro honorário Conjuntamente criámos o Grupo de Música Contemporânea da Academia Brasileira de Música. Foi também o criador do já de Lisboa (GMCL). Jorge Peixinho era amigo íntimo de Gil- mundialmente famoso Festival Música Nova de Santos. Foi berto Mendes e logo me falou da sua tão importante persona- também um dos pioneiros no Brasil da música concreta, do tea- lidade na cultura musical brasileira... Alguns anos depois, tro musical, da música aleatória, serial integral, mixed media, executámos com o GMCL, em Lisboa, Blirium C9 de Gilberto novas sonoridades e happening. Recebeu as mais altas condeco- Mendes em primeira audição europeia — e com muito êxito. rações e prémios de governos estaduais, entre eles o Prémio Posteriormente, no decorrer dos Encontros Gulbenkian de Carlos Gomes pelo Governo Estadual de São Paulo. E a Insígnia Música Contemporânea e na presença de Gilberto Mendes, de Mérito Cultural como Comendador do Governo Federal. De executámos com o GMCL a sua recente obra musical (em entre a sua imensa obra musical destaco Santos Football Music, segunda audição mundial) Ulisses em Copacabana surfando Último tango em Vila Parisi e Concerto para piano e orquestra. Para com James Joyce e Dorothy Lamoura, também com muito êxito grupos instrumentais e para coros destacam-se Beba Coca-Cola, (eu quase ficava sem dedos!)... Rimsky Piano Quintet, Ashmatour, O Anjo Esquerdo da História, A partir deste lindo encontro tornámo-nos todos bons Vila Sócó meu amor, Blirium C9, Ulisses em Copacabana surfando amigos. Gilberto Mendes adorou Lisboa e convidou o GMCL a com James Joyce e Dorothy Lamoura… participar no Festival Música Nova de Santos, onde obtivemos Apesar de Gilberto Mendes ter iniciado os seus estudos um grande sucesso. Continuo a ter contacto com o compositor musicais aos dezoito anos, deixa-nos uma fecunda e multifa- Gilberto Mendes através dos compositores brasileiros meus cetada obra musical. Com os seus noventa e três continua amigos Jorge Antunes e Willy Corrêa de Oliveira (também dois compondo e criando jovialmente!... Para além de tudo isto grandes pioneiros da música contemporânea do Brasil actual). Gilberto Mendes é um grande humanista e um muito cordial Considero-me um privilegiado por ter conhecido e convi- amigo do seu amigo!... Durante a minha estadia no Brasil, em vido com estes tão grandes artistas e compositores brasileiros... São Paulo, na década de 1960, onde me diplomei e leccionei Obrigado, Gilberto Mendes. Um abraço do José Lopes e Silva... nos principais conservatórios e onde trabalhei como profes- SER-SE no deixar-se SER...

glosas | número 13 | novembro | 2015 | 7 Gilberto Mendes na crista da onda Gilberto Mendes, uma das mais destacadas personalidades da música brasileira contemporânea, hoje com 93 anos, continua em plena forma e mantém-se em actividade. Auto-retratando-se como um compositor clássico-romântico cosmopolita e cinematográfico “que fez vanguarda nas horas vagas”, prossegue com energia uma carreira musical em que humor e liberdade constituem não um meio, não um fim, mas a essência matricial que anima imperturbável todas as suas partituras. No ano passado a glosas visitou-o em sua residência, na cidade de Santos, estado de São Paulo, para uma conversa a três com a companhia do seu amigo e dedicado intérprete José Eduardo Martins. Este texto é um singelo registo e uma breve memória do que se discutiu em tão memorável encontro.

quem fiquei amigo e que me ajudou muito (e foi a primeira pes- Edward Luiz Ayres d’Abreu | Entrevista soa que fez tocar algo meu em público, uma pecinha para canto e piano que ela orquestrou!), e conheci Guerra-Peixe; estes três Tem uma obra imensa e continua a compor. Continuo a foram os alunos famosos de Koellreutter. Mas Guerra-Peixe compor mas mais devagar, que estou muito velho, preguiçoso… desistiu depois do dodecafonismo… Todos eles! Eles bri- [risos] Mantém algum catálogo organizado? Ah, não… garam porque eram comunistas e acharam que era uma música Tenho uns antigos, mas nenhum actualizado. A sua lingua- decadentista. Nesse momento como é que você se situou? gem musical de hoje é muito diferente da de há dez Bom, nesse momento eu nem era conhecido! Estava come- anos? A minha linguagem musical é muito misturada. Passei çando, mas compondo muito… Nesse momento eu queria por várias fases: inicialmente uma “brasileira” sob influência aprender mais sobre aquilo que eles tinham abandonado, a do Mário de Andrade, por causa do Villa-Lobos também, do linha alemã… Senti que Eunice Katunga queria ser minha pro- Camargo Guarnieri… Inclusive a OSESP [Orquestra Sinfónica fessora mas eu não quis; acho até que ficou um pouco sentida… do Estado de São Paulo] vai editar agora o meu Ponteio… Mas eu mas, felizmente, anos depois, apresentei Katunga no Festival gostava também das novidades, estava interessado no dodecafo- Música Nova, fiz grandes honrarias. Ela foi muito legal comigo, nismo, no Schoenberg… e tinha um professor alemão aqui, era uma grande figura. O José Eduardo Martins falou de [Hans-Joachim] Koellreutter, que lançou os primeiros dodeca- um baú de partituras antigas dessa época e de uma fonistas brasileiros, que falava sobre Schoenberg e sobre Hin- Sonatina “que queria jogar fora”. Essa Sonatina foi uma demith… Eu sou, basicamente, na verdade, autodidacta. A brincadeira que fiz a partir de uma sonatina de Mozart [Sonata única pessoa com quem tive contacto mais regular foi o [George em dó maior, n.º 16, KV. 545] [risos] e entretanto tem sido muito Olivier] Toni, e ele não ensinava: eu fazia umas coisas, mos- tocada pelo mundo fora… E o que significou Darmstadt trava, ele apenas dava os seus palpites… No Conservatório na sua carreira? Na verdade nada, porque tudo aquilo já eu [Musical de Santos], naturalmente, estudei Teoria Musical… e sabia. Fomos atrás do que os jornais diziam, de Boulez, de Sto- Harmonia, que fazia com o Savino de Benedictis, que era um ckhausen, Berio, Nono, Ligeti… Quando tive uma oportuni- óptimo professor. Claro que ensinava a Harmonia do século dade, em 1962, quis ir para lá. (Em 1959 já tinha ido à Europa, XIX, mas era muito bem feita…! Deu-me uma base muito sólida. para um Festival da Juventude Comunista em Viena – a terceira Até acho que sou bom em Harmonia… Mas no dia em que fui edição do festival depois de Moscovo e Varsóvia!)… Mas, na ver- estudar mesmo Composição com ele…, aí não deu certo… Cor- dade, em Darmstadt não havia aulas, eram apenas conferências. rigiu numa peça minha o que para mim era o básico de achar ela E era muito num jogo assim: Ligeti fala sobre Boulez, Boulez fala bonita: escrevi uma melodia modal e ele queria alteração tonal. sobre Berio… – uma panelinha muito bem urdida. Era muito Achei tão banal, tão babaca…! [risos]. Ah, e tive meia-dúzia de bom, claro, conhecer estas personalidades, ouvir as palestras, aulas com [Claudio] Santoro, que era muito perseguido por ser havia muito material para comprar, discos, revistas… Mas nos comunista. Tive contacto também com Eunice Katunga, de anos 50 já havia tudo isso em São Paulo: na casa Bevilacqua um

8 | glosas | número 13 | novembro | 2015 Vista geral da Praia de Santos, algumas décadas atrás | DR

balconista mandava buscar Stockhausen, Boulez, telefonava a Conheceu também Clotilde Rosa? Claro, conheci todos avisar e nós íamos lá comprar. Comprei Le marteau sans maître eles, os membros do Grupo de Música Contemporânea de Lis- acho que em 1954…! Quase dez anos antes de eu ir à Europa! E boa. E quando é que se interessou por teatro musical? havia uma outra casa que vendia os discos. Comenta José Edu- Influência de Mauricio Kagel? É, eu sou muito comparado ardo Martins: Hoje você não compra nem L’après-midi d’un com Kagel, um “Kagel barato”, de “segunda-mão”… Mas, sabe, faune!” [risos]… Volta Gilberto: Tanto que Koelreutter na verdade só conheço uma obra dele, o filme Ludwig van, feito quando me conheceu ficou admirado, pensava que eu já tinha aquando de uma efeméride de Beethoven [os 200 anos do seu feito um curso na Europa. Recusa alguma das suas peças nascimento: 1970], quando todo o mundo compôs alguma brin- escritas nessa época? Nenhuma, estão todas editadas e gra- cadeirinha em torno dele (eu compus uma, também… na ver- vadas! Tem preferência por alguma delas? Não… É o dade um teatro!). E ele fez um filme, esse filme, muito interes- meu momento dodecafónico, embora eu gostasse sempre de pôr sante! Mas é só isso, não tenho ideia do que seja a restante obra algo “fora do normal”. Numa dessas peças incluí um berimbau, de Kagel. E no entanto “ele é a minha praia”: toda a gente acha com umas batidinhas (não folclóricas mas com o sonzinho dele que eu estudei com ele… Qual a sua obra de teatro musi- tradicional), o que deu um clima novo. A sua música tinha cal mais significativa? Há uma, Ópera aberta [1976], em que intenção ou alguma mensagem política? Curiosamente fiz um jogo entre um halterofilista e uma cantora de ópera: foi poucas peças minhas têm intenção política. Tem Vila Socó meu uma brincadeira de que todo o mundo gostou… Mas a que acho amor… Comenta José Eduardo: Sim, quando houve um mais legal foi Actualidades: Kreutzer 70, escrita para o bicentená- grande incêndio em Cubatão [em 1984]. Incúria administrativa, rio de Beethoven, em que parti de uma novela de Tolstoi, Sonata um descaso, estourou tudo… Morreram dezenas e dezenas de Kreutzer. “Actualidades” como as “actualités” francesas, lem- pessoas. A peça dele foi um protesto político! Mas, Gilberto brando um jornal cinematográfico que havia na época… Fiz Mendes, há também obras de protesto irónico con- uma história de um pianista e de uma violinista, um drama que tra, por exemplo, o capitalismo, como em Beba Coca- termina com um beijo cinematográfico… A música, sabe o que é -cola…? É, coisas assim eu fiz! Naquele grupo de poesia con- que eu fiz? Peguei um excerto da novela de Tolstoi, em que ele creta em que participava [Noigandres1] eram todos de esquerda, basicamente diz o que acha que a música é... Esse texto era dito marcavam uma posição. Foi em Darmstadt que conheceu por cinco pessoas, em contraponto, em francês, espanhol, por- Jorge Peixinho? Sim, mas já o conhecia de nome. A gente já tuguês, alemão e russo: fui buscar um professor da USP [Uni- se descobriu antes de se conhecer. Comenta José Eduardo: versidade de São Paulo] para me ajudar nas traduções e ele foi Quando eu liguei para o Gilberto a comunicar a morte de Peixi- muito gentil… Quanto tempo durava a peça? Entre nho, ele teve de desligar o telefone! Volta Gilberto: Peixi- quinze a vinte minutos. Alguma vez escreveu uma ópera? nho era como um irmão, quando vinha aqui ficava em minha Não… Tenho tido vontade, até. E já me consultaram duas casa, quando eu ia lá [a Lisboa] ficava no apartamento dele, na vezes, viu? Já me consultaram para fazer uma ópera sobre Rua de São Bento. Ele estreou umas duas ou três obras minhas. Mário Schenberg, aquele físico brasileiro, que era do partido

glosas | número 13 | novembro | 2015 | 9 comunista, mas esse projecto está parado… E bossa nova? Utilizei-a em várias obras. O clima, a harmonia… Mas a harmo- nia da bossa nova é Debussy, não tem nada de novo. O que eu uso às vezes é o jeito, a batidinha rítmica – ela é gostosinha, não é?, meio mar, e eu sou muito ligado ao mar… Bossa nova é uma coisa essencialmente carioca, de praia, e eu também sou de praia. Nasceu em Santos e sempre viveu nesta cidade? Sim, inclusivamente por motivos de saúde: sofro de asma. Eu passo bem aqui. Nunca pude morar em São Paulo; morei dois anos em pequeno, mas passei mal. Voltei por volta dos dezassete anos para estudar Direito, fiz o pré-jurídico. Era colega de classe de Lígia Fagundes Telles; a gente não se conhecia e nunca conversei com ela, mas ela já tinha fama. E desistiu de Direito? Desisti. Nunca pensei em ser músico, sonhei ser escritor, advogado – e tinha um cunhado advogado que um dia me perguntou porque estudava Direito: “Você é músico! Volta para Santos, vai estudar no Conservatório que é muito bom!”. Realmente o Conservató- rio tinha muitos professores magníficos, como Antonieta Rudge, uma grande pianista. E assim ganhámos um magní- fico compositor! O que está a escrever neste momento? Estou com vários pedidos, uma meia-dúzia, e um deles da minha neta. E uma encomenda de Cubatão para banda e coral. Para ver e ouvir: A Odisséia Musical de Gilberto Vamos ver o que é que sai daí… Estou compondo muitas peças Mendes, documentário de Carlos de Moura Ribeiro pequenas. Cançõezinhas… Mendes, com duração total de 117 minutos, lançado em 2005. Uma viagem maravilhosa e surpreen- notas 1 Grupo de poetas formado em 1952, em São Paulo, reunindo nomes como dente pela vida e obra do compositor. Disponível Haroldo de Campos, Décio Pignatari, Augusto de Campos e, posteriormente, em DVD e, à data da edição deste número da glosas, Ronaldo Azevedo e José Lino Grünewald. Publicaram revista homónima entre 1952 e 1962. no Youtube (cf. https://goo.gl/dZ5G19, https://goo.gl/ xWw3Oa e https://goo.gl/QohpuY).

10 | glosas | número 13 | novembro | 2015 glosas | número 13 | novembro | 2015 | 11 Veios de uma transmodernidade

brasileira a partir da década de 1960, criando obras experimen- Antonio Eduardo Santos | TEXTO tais, concretas, de mixed media e teatro musical, o que o tornaria conhecido no Brasil e no exterior. Segue-se a transcrição livre de uma conversa com o compo- A linguagem vai além do verbo, o que se pode vivenciar sitor em 2008, na Livraria Pagu, em Santos, onde estavam pre- no discurso musical de Gilberto Mendes, que, em seus diversos sentes os compositores José Antônio Almeida Prado, Roberto momentos composicionais produz uma linguagem comovente e Martins e o Maestro Lutero Rodrigues. A propósito do título deste provocadora, instigando o receptor a desautomatizar a sua sen- artigo, ao dizer-se um transmoderno, Gilberto Mendes quer refe- sibilidade. A partir de modelos como Schumann, Chopin, rir-se à sua caminhada por diversas fases da música do século XX, Prokofief ou Chostakovich, que influenciaram sua produção à sua maneira individual de percebê-las e criar a partir destas para piano, Gilberto Mendes chega a resultados pessoais conse- propostas estéticas, num constante experimentalismo, formando guindo novos acordes e novas relações acordais, combinando a e transformando todo esse material, com evasão para a intuição harmonia dos clássico-românticos com o jazz, com o fox-trot, pura e para a possibilidade de uma revolução permanente. Uma tudo singularizado por um processo muito particular desse literatura musical em “revolução permanente, fundindo e fazendo material. Traz ainda para a sua obra todo aquele universo de uma geléia de tudo, uma literatura de estética universal.” informações colhidas nos cursos de Darmstadt, cujas lições seriam aplicadas a seu modo, no sentido de uma “linguagem é sal, é sol, é Sul... musical particular” (e não simplesmente no sentido de seguir as pegadas das novas tendências do Velho Mundo), procurando, Quase sempre se começa a escrever para piano, pois quando dessa maneira, criar obras que pudessem ser “o primeiro exem- começamos a estudar música o piano é o primeiro instrumento, plo conhecido de um novo processo”, como ele próprio afirma, com um repertório “à mão”, com músicas de Chopin, Schu- e perseguindo tudo o que estivesse ao seu alcance, dando em mann, Bártok. Principalmente no meu tempo, em que estudá- troca dessa assimilação o nosso produto, seja pela transcrição, vamos este repertório e, como compositor, acabava-se sendo pelo desenvolvimento da tradição, pela inovação, ou ainda pela influenciado por ele, mesmo porque todos são também compo- renovação da tradição, como queria dizer Ezra Pound através de sitores. Naturalmente começamos a compor para piano influen- uma versão de Confúcio “As the sun makes it new / Day by day ciados pelos autores que estamos estudando. No meu caso, make it new”.1 comecei a estudar música com dezanove anos, pois iria ser Espírito visceralmente questionador, Gilberto Mendes, advogado, cursava Direito naquele momento. Na época, meu durante sua fase de vanguarda, ligada ao Movimento Música cunhado Miroel da Silveira disse-me que eu era um músico nato Nova, foi um dos pioneiros da renovação da linguagem musical e não tinha nada que ficar estudando Direito, vivendo em São

12 | glosas | número 13 | novembro | 2015 Gosto de todo tipo de música, confessa o compositor, mas jamais morrerei por uma estética, quero estar vivo para poder ir à praia. Gilberto Mendes

Fotografia: Alessandra Fratus

Paulo, passando mal e com asma. Então, convidou-me para pas- Eu tinha uma índole muito moderna, o novo sempre me sar uma temporada em Santos, entrar para o Conservatório encantou. Mas exatamente no momento em que quis enveredar Musical de Santos, propriedade de Antonieta Rudge, uma das para o caminho da Composição deparei com uma polêmica mais prestigiadas pianistas do Brasil, na opinião de Mário de muito séria entre os nacionalistas e a turma da vanguarda, que Andrade, e ao mesmo tempo praticar esportes náuticos no fazia música dodecafônica, música atonal, politonal... e eu, no Clube Saldanha da Gama. Ofereceu-me esta nova perspectiva de meio dessa briga, por razões até políticas, optei por um momento morar no Bairro da Ponta da Praia, aquele paraíso, um Havaí, pela coisa nacionalista, pois eu era bastante chegado ao Partido isso em 1940. Imagine-se o que era a Ponta da Praia em 1940, Comunista, que exigia isso da música brasileira, um caráter bem com aquela beleza natural! brasileiro. Na verdade, não era minha índole, mas fiz e não me Aí comecei a estudar, brincar um pouco ao piano e dois anos arrependo. Tenho muitas obras no estilo brasileiro. Entre elas o depois começou a se esboçar o compositor dentro de mim. Álbum para a Infância, para piano, que não foram escritas para Comecei a compor peças para piano, que era mais fácil, sem crianças, mas que são peças fáceis. saber o que queria da Música. Na verdade, eu queria ser pianista Então, durante toda essa fase inicial fui influenciado e acabei não me tornando. Comecei a compor sempre influen- pelo moderno, mas um moderno ligado aos clássico-românti- ciado em Liszt, Chopin e sobretudo em Schumann, um compo- cos, Robert Schumann e mesmo Heitor Villa-Lobos. Eu estava sitor pouco tocado até hoje. Fiquei abismado com a beleza deste querendo Stravinsky, Schoenberg, os grandes compositores compositor e minhas primeiras músicas reflectem esta forte modernos. Também nesse período foi o momento da Grande influência. O primeiro da série de 5 Prelúdios, para piano, foi de Guerra Mundial. Naquela época, não tinha informação de fato a primeira peça que eu salvei, minha primeira música. O quase nada. Não havia partitura, não se encontrava nada des- Álbum para a Infância escrevi quando estava no curso de Harmo- tes compositores. Por vezes encontrava algum livro com uma nia do Prof. Savino de Benedictis, um maestro italiano que dava página sobre Stravinsky, uma página sobre Schoenberg: cada aulas no Conservatório Musical de Santos, instituição que tinha uma delas servia de um impulso para nós, que não dispúnha- vários nomes de destaque no cenário musical de São Paulo mos de nada para desenvolver uma música. Até pensei numa naquela época, como Mário de Andrade ou Ângelo Camin. Ensi- coisa interessante: quando a gente não tem muita informação, nou-me uma harmonia muito tradicional (hoje, moderna- às vezes é bom, pois acabamos inventando. Se temos ótimos mente, fala-se em harmonia funcional). Mas acabei por tornar- professores, acabamos fazendo exactamente igual ao que nos -me um compositor de vanguarda. Tive umas seis “entrevistas” ensinavam. A gente não tem isso, acaba inventando, acaba com Cláudio Santoro, mesmo com Eunice Katunga, mas não fazendo uma música mais pessoal. Claro que exagero, pois “engatei” com professor algum. Quero entretanto afirmar que aquele que é bom vai ser bom de qualquer maneira, indepen- em termos de Composição sou completamente autodidata. dente de sua orientação.

glosas | número 13 | novembro | 2015 | 13 certo momento da música, que se tornou muito estrutural, muito abstrata, com Boulez, Stockhausen, embora eu mesmo tenha obras assim. Nessa fase, não tive nada a ver com estes movimentos na Europa, ou como um cidadão que participasse das atividades por lá ou nos Estados Unidos, embora já tenha dado aulas por lá duas vezes, mas minha vida mesmo (estetica- mente falando) é no Brasil. A linguagem aqui é mais uma mistura, nada mais de radicalismos, de que a música contemporânea tem de ser só absolutamente estrutural, abstracta, difícil. A vanguarda foi um momento muito forte da Música, muito interessante, mas foi muito prejudicial ao compositor, no sentido de que ele perdeu muito público e que o freqüentador normal de música de con- certo não entende o que está ouvindo. É o mesmo que ouvir um discurso em japonês para uma platéia que só fala português, porque a comunicação só é possível à base de um sistema comum de referência. O grande sistema comum de referência na Música é o Sistema Tonal. No mais do que isso, ainda uma música que Poema de Décio Pignatari, 1957 tinha uma outra concepção de forma de estrutura que não batia com nada com a música que foi feita durante três mil anos. Nesse momento, morando em Santos, estava isolado das Então, as obras que venho fazendo de uns tempos para cá, capitais. Poderia ter morado no Rio de Janeiro, mas não em São sobretudo na parte de piano, pois componho para orquestra e Paulo, pois tinha asma. Acabei por ficar limitado a Santos e a outras formações, que são outros problemas e outras experi- Guerra atrapalhando tudo. Mas logo que enveredei para São mentações, o piano se definiu para este carácter pós-moderno, Paulo, comecei a entrar em contacto com o pessoal da Orquestra que sem querer a minha música tem. Outro detalhe também é de Câmara de São Paulo, com Olivier Toni, quando me liguei ao que sempre gostei da repetição. Nas minhas antigas músicas Rogério Duprat e seu irmão Régis, ao Júlio Medaglia. Foi aí que não tenho exemplo disso, mas tenho momentos de repetição encontrei meu verdadeiro caminho, razão por que mais tarde que são influências da música concreta. Como a música con- lançámos um manifesto, o Manifesto Música Nova, abrigados que creta era feita em fita, montada, era cortada, enfim, jogava muito estávamos pela Poesia Concreta, que nos abriu a revista Invenção com a repetição, como aqueles discos antigos em que a agulha para publicarmos nosso texto. E aí vieram aqueles radicalismos “encalhava” num determinado lugar e ficava repetindo, a de alguns companheiros que renegaram seu passado estético. música concreta explorava isso e eu gostava. A música de Philip Eu também o escondi durante muitos anos, para não criar con- Glass se popularizou em função de um melodismo agradável: fusão. Alguns compositores chegaram até a rasgar suas compo- antes fazia-se música com coisas “desagradáveis” e a partir dele sições. Eu preferi guardá-las. introduziu um aspecto melódico um pouco barroco-clássico, Anos depois, fui dar aulas na Universidade de São Paulo e um típico da música americana. Minha música já era um pouco colega meu, o pianista José Eduardo Martins, quis conhecer disso aí há algum tempo. Tomo como exemplo a peça Il neige... de minhas músicas antigas. Foi ele quem descobriu estas músicas e nouveau, que tocou o pianista José Eduardo Martins, para quem acabou tocando na Europa. Eu aceitei este momento de minha eu dediquei grande parte de minhas peças para piano. Sobre os vida como compositor, pois via que também estavam aceitando. elementos da repetição, diferente dos compositores da escola Mesmo porque já tinha afirmado meu nome no campo da americana, eu faço uma repetição estendida, eu repito aquela modernidade e acreditei que não iriam pesar na balança os estrutura e vou aumentando, repetindo umas três vezes e numa caminhos daqueles tempos. quarta vez introduzo mais umas três notas, e assim por diante, e vai se tornando maior. A peça Il neige... de noveau, dedicada a cidade cité city Henrique Oswald, inicialmente foi publicada num álbum com todas essas peças em homenagem a este compositor, como A minha vanguarda foi muito ligada à encenação, ao visual, encomenda do pianista José Eduardo Martins. Na minha, peguei a obras como Santos Football Music, que envolve orquestra sinfô- uma de suas peças chamada Il neige, e eu coloquei de nouveau. nica, jogo de futebol com a orquestra, o público entrando na Francisco Mignone também escreveu uma peça para este álbum música, coisas altamente experimentais. Sobretudo com a poe- sobre a mesma peça e chamou-a de Il neige... encore. sia concreta, músicas em que nem entram notas, entram ruídos, O que fiz de experimental a partir deste momento, no que sons, fonemas, a música dos próprios fonemas, dos poemas. A chamam pós-moderno, embora eu não me considere um com- música de vanguarda que fiz foi mais nesse sentido. Aí parei positor pós-moderno, eu diria que é mais até por estas caracte- com o piano, fiquei vinte anos sem compor para piano, porque rísticas do que eu fiz para piano, sobretudo este minimalismo, não se prestava muito ao que eu estava experimentando. Voltei que é um dado que percebi em Carles Santos ao escrever Buda- ao piano vinte anos depois, em 1982, com o pianista Caio jaloz by night, na repetição aumentada, que me disse ter “sacado” Pagano, que era meu colega na USP e me pediu uma peça para isso do folclore escocês. estrear num concerto que iria dar em Miami, num Festival de Eu também decidi introduzir um corte, pois a maioria Música, e comecei com ele uma nova fase de minha vida como destes compositores repetem constantemente, e assim fica. Eu compositor. Essa peça foi o Vento Noroeste, que eu considero introduzo num determinado momento um outro assunto musi- uma peça em que recupero de certas coisas banidas pela van- cal, num jogo mais ou menos como num primeiro momento guarda, como a emoção, a beleza, por algum tempo evitadas em devesse ser (modo) maior e num outro menor e finalizar no

14 | glosas | número 13 | novembro | 2015 desenvolvo, lembrando o espelho dodecafônico, constante na obra de Webern. Por isso ela tem o título Eisler e Webern cami- nham nos mares do Sul, lembrando uma caminhada dos dois compositores juntos, passo a passo. Curiosamente esta peça foi estreada por José Eduardo Mar- tins, em Potsdam, no Palácio do Rei da Prússia. Naquele momento acontecia a queda do muro de Berlim, unindo as duas Alemanhas, ou seja, a união de Eisler e Webern que pretendi nessa música, que simbolizaram muito a Alemanha Ocidental e a Oriental. Simplesmente uma Valsa foi uma encomenda do meu editor na Bélgica, que desejou fazer uma homenagem à pianista belga Mireille Gleizes, em que diversos compositores deveriam escrever uma peça para este álbum. Como eu não saberia o que compor recorri a um tema antigo, uma peça escrita há muito tempo e que não consegui acabar. De repente deu um estalo e terminei. Trata-se de uma peça começada cinquenta anos antes e que terminei há poucos anos; é uma grande continuidade do que eu faço, lembra um pouco Chostakovich. Este mesmo editor que vem publicando toda a minha obra para piano editou Recado a Schumann, uma peça que escrevi em 1983, em Austin. Trata-se de uma peça em que aproveito um material antigo, de um velho caderno de notas. É um tema com variações (no caso, duas variações) que se desenvolvem num espírito não convencional. O tema vai-se desvanecendo grada- tivamente e a tonalidade vai perdendo sua função, com os sons se misturando, distanciando-se de tal maneira que se perde a referência melódica original. A fase de vanguarda não morreu totalmente, até mesmo a música que está aí continua, porque nestes meus rompimentos, muito ao contrário de meus colegas que rompem de verdade, jogam até fora que fizeram, eu me mantive. Posso passar por uma fase inteiramente outra, mas continua válido tudo aquilo que realizei anteriormente. Posso usar de novo. Como em Beba Coca-Cola, em que mantenho o “pulso clássico”. Trata-se de uma peça de um acorde só, mudando a posição das vozes, sem- pre com o mesmo acorde, mas com muito ruído. Fotografia: Alessandra Fratus Como compositor, eu vou acumulando, não vou cortando uma fase; posso passar para outra, explorar novos caminhos, modo maior; então em forma musical seria como A-B-A. mas mantenho aquela. Num constante vai-e-vem, como as ondas do mar e seu fluxo e refluxo. ouviver a música… 1 Ezra Pound, Confucius, Digest of the Analects, 1937, §36; cf. e.g. The Cantos LIII/265, XCIII/649, CXIV/662. Assim larguei aquela experimentação da música estru- tural dodecafônica, muito embora eu tenha escrito uma única peça para piano para um concurso de A Tribuna. As experimen- tações que eu faço no piano são mais de carácter romântico. Antonio Eduardo Santos | Participando com fre- Quando escrevo para outras formações a música fica mais árida. qüência de festivais, encontros de música contemporâ- As experimentações que fiz novamente em forma de estudo, nea e congressos nacionais e internacionais em Musico- pedida pelo José Eduardo Martins, estão distantes daquelas de logia, Antonio Eduardo vem se destacando como pianista Darmstadt, que teve em Boulez o seu compositor mais emble- e pesquisador voltado para a música de seu tempo. Escre- mático. Escrevi o estudo Eisler e Webern caminham nos mares do veu O Antropofagismo na obra pianística de Gilberto Mendes Sul… A expressão mares do Sul, que está no título, traz toda a (AnnaBlume/FAPESP), além de diversos artigos para evocação da música de mar, fox-trot antigo que segue em meu periódicos sobre Música Contemporânea. É Doutor pela ouvido. A novidade aqui é que é só melodia, escrita em semíni- Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Atual- mas, uma nota atrás da outra. Só no final coloco três acordes de mente dirige uma coleção voltada para a música contem- uma música norte-americana chamada Blue Hawai. Deve-se porânea brasileira, Antonio Eduardo Collection, constando notar a notação de pedal, pois a ressonância nesta peça é de fun- em seu catálogo obras de Gilberto Mendes, Silvia Berg, damental importância. A alusão a Eisler ocorre quando cito sua Sergio Vasconcelos Correa, Rodolfo Coelho de Souza e canção Von sprengen des gartens e modifico o ritmo para notas de Almeida Prado. É coordenador do Curso de Música da valores iguais. De Webern, eu não cito nenhuma peça em espe- Universidade Católica de Santos. cial, apenas faço uma alusão à série de doze notas que não

glosas | número 13 | novembro | 2015 | 15 um outro gesto sonoro O tEAtRo MusiCaL na obra de Gilberto Mendes

momento inovador, “marcado por grandes agitações políticas, Antonio Eduardo Santos | TEXTO compartilhado por uma perspectiva de cultura popular e um tipo de mentalidade nacional que tiveram como requisito básico a disponibilidade para superar o cerceamento dos direitos do vem navio cidadão, a invasão imperialista e os interesses da burguesia.”3 Em 1962, logo após voltar da primeira viagem a Darmstadt, vai navio Gilberto Mendes estava determinado a não fazer música euro- vir navio péia. Ele usufruiu dos conhecimentos e experiências, mas ver navio tinha plena consciência de que deveria buscar caminhos pró- ver não ver prios: “A gente bebeu toda aquela informação, absorveu, mas vir não vir viemos, pelo menos eu vim, com o firme propósito de não vir não ver fazer aquela música.”4 ver não vir Já no Brasil, Gilberto Mendes percebeu que definitiva- ver navios mente não era a música de vanguarda européia que queria fazer: “Aquilo somente abriu a nossa cabeça para novas possibilida- Haroldo de Campos, Fome de Forma, 1958 des, novos caminhos para a música. (…) a gente queria fazer uma música que estivesse naquele nível de invenção, porém que Gilberto Ambrósio Garcia Mendes, músico nascido na não fosse uma cópia daquilo.” Praia do Boqueirão, cidade de Santos, no dia 13 de outubro de Gilberto Mendes assume, a partir deste contexto, uma pos- 1922, filho do médico Odorico Mendes e da professora Ana tura vanguardista na produção musical brasileira, refletindo Garcia Mendes, como afirma em seu livro Odisséia Musical, com sua obra experimental a contemporaneidade, marcada pela nasceu quando ainda nem mesmo rádio havia, e música só ao geração de uma nova técnica, assim como de uma nova grafia vivo, em casa ou na casa de amigos, com um repertório tradi- musical, em razão mesmo dos procedimentos por ele utilizados: cional que variava entre Mozart, Chopin, Liszt e Schumann1. aleatórios, neodadaístas, concretos, além do teatro musical. Parecendo vir de um ventre paralelo2, Gilberto Mendes che- Nesse período freqüenta, como bolsista, os cursos de férias de gou ao mundo nove meses depois da Semana de Arte Moderna, Darmstadt, onde assiste aulas-conferências de Henri Pousseur, no mesmo ano da publicação de Ulysses de James Joyce. Esse Pierre Boulez e Karlheinz Stockhausen. foi também o ano da estréia do Pierrot Lunaire de Arnold Scho- A obra de Gilberto Mendes, com suas problemáticas sobre enberg, uma época marcada pelo desenvolvimento do método a natureza do som e da percepção, abarca uma grande variedade composicional baseado no sistema de doze sons. No Brasil de gêneros musicais. Com partituras indo da rigorosa e tradi- acontecia a fundação do Partido Comunista; no mundo, a efer- cional notação até obras com instruções comportamentais para vescência industrial tentando cicatrizar as feridas da Primeira a interpretação, como no teatro musical, sua produção põe-nos Guerra Mundial. A mecanização da vida urbana era acompa- à disposição todo o material e meios de expressão e informação nhada no Brasil por uma crescente classe média com caracte- de criação artística: rísticas peculiares de um país latino-americano, ou seja, com itens diferenciados daqueles que mobilizavam a sociedade Foi um período realmente mais vanguardístico meu e do Willy [Corrêa européia. Esses fatos irão emergir e refletir-se na produção de Oliveira], também nesta época, fazendo uma música que não era o posterior do mestre santista, formando sua personalidade serialismo, era outra coisa... a gente não imitava mais o europeu. Os humana e artística e tornando-se registros indispensáveis e europeus nunca fizeram este tipo de música, de pesquisa, porque eles fundamentais no traço de sua produção musical inovadora no tinham bons instrumentistas para tocar as músicas deles: então eles cenário da música contemporânea brasileira. ficavam na música instrumental e nós tínhamos uma poesia muito 5 Santos, cidade portuária, recebendo muitos visitantes, boa aqui, a poesia concreta. Então ficávamos nisto... cheia de estrangeiros, cidade com características de internacio- nalismos, vai alimentar a inspiração de Gilberto Mendes desde Ao mesmo tempo dribla os anos militares, período trá- sua formação musical, iniciada no Conservatório Musical de gico de nossa história, através de comentários sobre a vida besti- Santos. Sua bagagem musical seria eclética, vinda sobretudo das ficada das pessoas atrás de um liqüidificador e de um aspirador de ondas da rádio Gazeta de São Paulo e das rádios argentinas e pó. Ou mesmo brincando com sua própria asma e rindo do lado uruguaias, captadas por ondas longas de rádio em Santos. Um trágico dela. Sem ser um cético cujo lirismo é atingido na noção aspecto de sua formação que assume definitiva importância foi o de bem-estar das pessoas, ele é um socialista que vê as pessoas cinema, visceralmente ligado à sua música, inspirando-o e sem privilégios nem privilegiados.6 Seu lirismo pode até ser afe- injetando-o de estímulos expressivos e sonoros com seus heróis tado, sim, mas ele não perde nunca a esperança. Sua fé perma- atores, diretores, músicos, cenários, discursos e poética. nece tranqüila em meio aos desastres do mundo. O socialismo de Entretanto, as atividades artísticas que se desenvolve- Gilberto é inteligente, sem paixões. Essa é a Poética do mestre. ram nos anos sessenta representam para o compositor um Sua música dos anos setenta, anos de intensa atividade, é

16 | glosas | número 13 | novembro | 2015 Gilberto Mendes com as maestrinas Alondra de la Parra (à esquerda) e Naomi Munakata (à direita) durante as gravações deGilberto Mendes 90 - Alegres Trópicos (Orquestra Sinfónica do Estado de São Paulo e coro da OSESP) Fotografia: Alessandra Fratus de caráter experimental, havendo pouquíssimas partituras con- halterofilista é, antes de tudo, um enamorado do próprio corpo. De vencionais em seu catálogo, com os antigos sucessos de Gilberto um lado e fazendo parte da cena, uma pequena “platéia” aplaude Mendes se tornando acessíveis a um maior número de pessoas, entusiasmada ora a cantora, ora o pugilista! Dois momentos, duas calorosamente acolhidos pelo público, principalmente Santos vivências, a música agindo como ligação.8 [i.e., como um espe- Football Music, de 1969, para orquestra e participação da platéia, lho duplo de cada personagem]. e Beba Coca-Cola, para coro a cappella. Escrita em 1977, Ópera Aberta foi estreada no XIII Festival O público, desconcertado com o ineditismo, entrega-se Música Nova de Santos. Aliás, aquando da abertura deste Festi- à hilaridade que a cena provoca. A cantora, indiferente, conti- val, o compositor Hans-Joachim Koellreutter falava sobre a nua solfejando, fazendo vocalizos, cantando e imitando os ges- “falta de comunicabilidade” dos compositores contemporâ- tos do atleta. O halterofilista, impassível, executa exercícios neos, afirmando que: com pesos e aparelhos, imita os gestos da cantora, faz demons- trações de músculos. Por vezes seus gestos são absolutamente (...) na sociedade que agora se inicia, a música voltará a ser funcio- sincrônicos aos da cantora, e, guiados os dois pela música, esta- nal e seu critério será a comunicabilidade, uma música integrada na belecem um contraponto visual até o final, quando então o hal- vida, como toda a arte. O auditório que o ouvia compunha-se de terofilista sai de cena carregando a cantora atônita sobre seus pouco mais de 30 pessoas e ironicamente [escreve ainda Souza], na ombros e sempre cantando.9 mesma hora Pelé se despedia do futebol diante de 300 milhões de Esse teatro musical é articulado analogicamente, gerando espectadores. 7 situações absurdas. Há um jogo de similaridades e contrastes (que acontece entre a cantora e o halterofilista), onde a seme- No teatro musical Ópera Aberta, Gilberto Mendes, ao lhança de gestos é explorada com os recursos da música, dos mesmo tempo em que explora outras expressões artísticas, tem conteúdos por eles representados, aliados a outros extraídos da na Música seu fio condutor. É uma “curtição” de voz e músculos música, cena, voz e luz, criando um clima onírico de humor e de (contraponto a duas partes) para uma cantora e um halterofi- sátira, prescindindo mesmo de enredo literário. Guardando um lista. O enredo é o seguinte: parentesco com a Música e com o Teatro, aproveitando da Música a sintaxe do discurso analógico e do Teatro o suporte Uma cantora lírica entra no palco. Ela está vestida como persona- cênico gestual, como lembra Rodolfo Coelho de Souza, Ópera gem de ópera. Vestido longo, cabelo penteado a caráter. No palco, Aberta sugere uma paródia à Obra Aberta (1962) de Umberto Eco, solfeja escalas e faz vocalizos. O desempenho teatral da cantora em que o humor é veículo de crítica e sátira. destaca seu encantamento, seu enlevo com a própria voz que ela, Com tendência à compressão e à economia, e com o com as mãos, deverá acariciar, embalar e moldar como se a visse humor dominando a obra, percebe-se que “a hilaridade pro- materializada à sua frente, pois a cantora de ópera é, antes de vocada no público pela cena esconde uma tendência do autor tudo, uma enamorada de sua voz. Inesperadamente entra um hal- contra a mesmice da ópera tradicional, mofada”10, contra a terofilista pulando corda e vestindo apenas um calção, entreme- exibição vocal das cantoras de ópera, com o desnudamento da ando exibições de seus músculos, de seu peitoral e dorsal. Porque o vaidade humana.

glosas | número 13 | novembro | 2015 | 17 Com a mesma abordagem irônica, em Asthmatour, outra - Asthmatour, para vozes e percussão, maracas, crótalos e ação obra sua, o compositor ironiza consigo próprio, já que, sofrendo teatral (texto de Antônio José Mendes). 1971 de asma, pensa este trabalho para coro em meio a gargarejos, - O Objeto Muscial – Homenagem a Marcel Duchamp, para ven- roncos, sibilos e estertores, promovendo musicalmente uma tilador e barbeador elétrico, com ação teatral. 1972 agência de turismo, através da qual se chega a um país sem asma. - Gota e Contagota, para dois intérpretes, com ação teatral. 1973 A asma constitui sua temática central, em que o compositor - Ponto e Contraponto – Homenagem a J. S. Bach, para dois intér- procurou transcrever sonoramente as dificuldades, angústias pretes, com ação teatral. 1973 resultantes das crises e sofrimentos que os asmáticos passam. - Pausa e Menopausa, para três intérpretes, xícaras de café, proje- “As vozes vão procurando reproduzir esses sons, chegando a ção de slides, com ação teatral (texto de Ronaldo Azeredo). 1973 usar as famosas bombinhas de ar.”11 - Poema de Ronaldo Azeredo, para slides e pessoas, com ação tea- Utilizando texto de seu filho Antônio José Mendes, o com- tral (texto de Ronaldo Azeredo). 1973 positor ironiza seus tratamentos contra a asma: - Música para Eliane. Página musical para ser olhada (participa- No final, o coro envolve-se numa cena teatral que culmina ção num poema de Ronaldo Azeredo). 1974 com a repetição do texto em forma de um jingle comercial e uma - In Memorian Klaus-Dieter Wolff, para vozes e ação teatral. 1975 cantora convidando a platéia (como uma garota de propaganda): - Der Kuss. Homenagem a Gustav Klimt. Beijos amplificados entre “Reservem suas passagens com Asthmatour.” um homem e uma mulher, com ação teatral. Composta em 1976 Essa abordagem estética é também uma nova visão do pró- e estreada em 1985 prio fato musical, que não será mais visto como um passatempo - Ópera Aberta. Ação teatral para voz operística, halterofilista e de uma determinada elite cultural. É arte, livre de barreiras, três ou mais pessoas aplaudindo. 1976 uma volta ao dionisíaco, ao puro jogo lúdico, como observa - Anatomina da Musa, para voz, piano, projeção de um slide e Bakhtin ao refletir sobre a cultura popular, mencionando que ação teatral (texto de José Paulo Paes). 1970, revista em 1993 “os bufões e os bobos assistiam sempre às funções do cerimo- - Grafito, ação teatral para um solista e fita gravada (sobre poema nial sério, parodiando seus atos”.12 de José Paulo Paes). Composição coletiva com Gil Nuno Vaz e O ouvinte, envolvido pela música, gesto, ação, luz, Roberto Martins. 1985 enredo, assimila uma representação que parece absurda, aco- modando-a às analogias das formas sígnicas. É esta ironia que notas pressupõe um falso sorriso, um sorriso de Gioconda, um sorrir 1 Gilberto Mendes, Uma Odisséia musical, São Paulo, Giordano/EDUSP, 2002, p. 7. 2 Aylton Escobar, Gilberto Mendes: Geometria e emoção (Pesquisa, 1989-1991), Escola para dentro, que pode ou não ser compreendido pelo receptor de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (texto policopiado), vol. (tudo vai depender de sua sensibilidade e de seu repertório). I, p. 9. Nos teatros musicais, Gilberto Mendes desmitifica o ato cria- 3 Antonio E. Santos, Os (Des)Caminhos do Festival Música Nova. FMN – um veículo dor e a vivência artística em conjunto, mostrando que todos os de comunicação dos caminhos da música contemporânea (diss.), Pontifícia Uni- versidade Católica de São Paulo (texto policopiado), 2003, p. 76. atos da vida quotidiana podem e devem ser vistos como manifes- 4 Luiz Celso Rizzo, A Influência da Poesia Concreta na Música Vocal dos composito- tações da criatividade individual e colectiva. Como resultado, atos res Gilberto Mendes e Willy Correa de Oliveira (diss.), Universidade do Estado de tradicionalmente definidos como atividades musicais são apenas São Paulo (texto policopiado), 2002, p. 81. uma maneira, a mais teatral, de viver o fenômeno musical, onde o 5 Cibele Palopoli, Retrato I e Retrato II de Gilberto Mendes: Análise e interpretação musical, Universidade de São Paulo, 2010. humor e a sátira parecem tomar corpo. 6 Como observa Luiz Celso Rizzo (op. cit., p. 24), “Gilberto Mendes, além de ter Dentro do sentido de ação teatral, Gilberto Mendes comporia começado tarde a aprender música, tinha se engajado no Partido Comunista uma grande número de obras. Entre estas, contam-se: Brasileiro com a efervescência da época, notada em Santos, como ele mesmo - Nascemorre, para SATB em microtons, duas máquinas de reconhece: Santos foi uma cidade vermelha no passado.” 7 A. Santos, op. cit., p. 120. escrever e tape recording (texto de Haroldo de Campos). 1963 8 G. Mendes, op. cit., p. 119. - Cidade, para três vozes mistas, piano, caixa, prato, contra- 9 Rodolfo Coelho de Souza, Música, São Paulo, Novas Metas, 1977, p. 106. baixo, três tocadiscos, um gravador, um televisor, máquinas de 10 G. Mendes, op. cit., p. 120. escrever, calculadoras, um projetor de slides, um aspirador de 11 Luiz C. Rizzo, op. cit., p. 112. 12 Mikhail Bakhtin, A Cultura Popular na Idade Média e Renascimento. O Contexto pó, um liqüidificador, enceradeira, ventiladores; com um de François Rabelais (1968), apud Mônica Éboli de Nigris, “Rir, satirizar, paro- happening final (texto de Augusto de Campos). 1964 diar, ironizar”, Ângulo LXXIX (1999) - Blirium A-9, para doze cordas. 1965 - Blirium B-9, para doze instrumentos diferentes, sem cordas. referências bibliográficas 1965 CALVINO, Ítalo. Seis Propostas para o próximo milênio, São Paulo, Cia. das Letras, 1997 - Blirium C-9, para um, dois ou três teclados; ou três a cinco ins- MENDES, Gilberto. Dos Mares do Sul à elegância Pop Arte Deco. Uma Odisséia trumentos da mesma família; ou para uma dessas possibilida- Musical, São Paulo, Giordano/EDUSP, 2002 des, mais percussão – no máximo seis instrumentos de timbres NEVES, José Maria, A Música Contemporânea Brasileira, São Paulo, Ricordi, 1991 diferentes. 1965 NIGRIS, Mônica Éboli de, “Rir, satirizar, parodiar, ironizar”, Ângulo LXXIX (1999) RIZZO, Luiz Celso, A Influência da Poesia Concreta na música vocal dos compo- - Blirium D-9, para doze vozes solistas e piano (sobre poemas con- sitores Gilberto Mendes e Willy Correa de Oliveira, (diss), Universidade do cretos do Grupo Noigadres e um poema de Ezra Pound). 1973 Estado de São Paulo, 2002 - Blirium Total, a execução simultânea das possibilidades A, B, C PALOPOLI, Cibele, Retrato I e Retrato II de Gilberto Mendes: Análise e interpreta- e D em pontos diferentes do teatro ou sala ção musical, São Paulo, Universidade de São Paulo, 2010 SANTOS, Antonio E., O Antropofagismo na obra pianística de Gilberto Mendes, - Son et Lumière, para tape recording, pianista-manequim e dois São Paulo, Annablume, 1997 fotógrafos, com ação teatral. 1968 ______, Os (Des)Caminhos do Festival Musica Nova. FMN – um veículo - Vai e Vem, para SATB, tape recording e um toca-discos, com de comunicação dos caminhos da musica contemporânea (diss.), Pontifícia Uni- ação teatral (texto de José Lino Grunewald). 1969 versidade Católica de São Paulo, 2003 SEKEFF, M. L., Curso e Discurso do Sistema Musical, São Paulo, Annablume, - Atualidades: Kreutzer 70 – Homenagem a Beethoven, para tape 1996 recording e ação teatral de um violinista e um pianista. 1970 SOUZA, Rodolfo Coelho de, Música, São Paulo, Novas Metas, 1981

18 | glosas | número 13 | novembro | 2015 Ecos d’Além-mar uma rubrica de José Eduardo Martins

a mente aberta de gilberto mendes

A entidade musical apresenta, pois, essa estranha singularidade de conter dois aspectos de exis- tir simultânea e distintamente sob duas formas, separadas uma da outra pelo silêncio do vazio. Essa natureza particular da música comanda a sua vida própria e suas repercussões na ordem social, pois ela supõe duas espécies de músicos: o criador e o executante. Igor Stravinsky

Um dos mistérios da criação seria a ideia que leva à com- diversas na Bulgária e na Bélgica. À guisa de registo, menciono posição e à provável divulgação. Qual a origem do pensamento seguidamente a lista, toda ela originária desse entendimento primeiro que possibilita a elaboração? Estimulada ou autoge- entre compositor e intérprete. rada, a ideia, à maneira de um leque, abre-se para a criação que Il neige... de nouveau! (1985), alusão à célebre Il neige! de é destinada ao papel pautado, manuscrita ou eletronicamente. O Henrique Oswald (vide Glosas n.º 9 – com núcleo temático dedi- mistério em torno desse infinitesimal instante que precede a cado a este compositor); Viva-Villa, homenagem a Villa-Lobos ideia teria basicamente três vertentes: o estímulo externo, o (1987) no ano de seu centenário. Trata-se de peça minimalista e acervo cultural do compositor ou, ainda, o acaso. uma das mais festejadas criações de Mendes pelo mundo; Um Conheci Gilberto Mendes na década de 1970, quando descia Estudo? Eisler e Webern caminham nos mares do Sul... (1989), de São Paulo à sua cidade natal, Santos, para recitais de piano. composta para apresentações que realizei em Potsdam e Berlim, Encontros apenas casuais, sem consequências maiores. Nosso na antiga DDR, seis meses antes da queda do muro; Outro relacionamento estreitou-se quando ingressei na Universidade Estudo? Ainda Ulysses (1990), versão para piano solo de Ulysses de São Paulo em 1982, onde fomos colegas desse ano até a sua em Copacabana surfando com James Joyce e Dorothy Lamour para reforma em 1992. Período de grande riqueza de entendimento, dez instrumentos; Lenda do Caboclo. A Outra (1992), como lem- pois éramos os únicos que trazíamos marmitas para o almoço às brança de A Lenda do Caboclo, de Villa-Lobos; Estudo Magno quintas-feiras, dia das aulas de Gilberto. À mesa estreitámos (1993), criação apresentada em minha Aula Magna na Universi- laços amistosos e musicais, temas recorrentes em todas nossas dade de São Paulo. Escreve Gilberto Mendes: “José Eduardo, conversas. Durante o dia, em momentos de descontração, Gil- como sempre, queria um estudo para sua coleção de estudos. berto ia à minha sala e continuávamos a falar sobre Música. Compus então um Estudo Magno, procurando certa magnitude, Gostava de me ouvir tocar Fauré, Scriabine, Debussy e Albeniz. como pedia o título, do mais simples ao mais complexo, do bem “Daria toda minha obra para ser o autor do quarto Nocturno de tonal para o totalmente atonal, sempre no mesmo andamento, Gabriel Fauré”, confessou-me. mas aumentando gradativamente a velocidade pelo valor das Composições nasceram de nosso congraçamento. À medida notas.”1 A seguir compôs O pente de Istambul. Um Outro (Estudo?) que nos aprofundávamos na enriquecedora relação, Gilberto, (1995), versão para piano solo de O pente de Istambul para per- sempre atento aos meus pedidos, passado algum tempo trazia- cussão. Esta e a de Ulysses em Copacabana... surgiram pois -me cópia de nova partitura. Apresentei-as em público e gravei entendi serem as duas propícias ao piano solo, sendo que o

glosas | número 13 | novembro | 2015 | 19 dileto amigo assim também entendeu. Depois nasce Estudo, Ex- antes que alguém pudesse tocá-las, mas acabei não tendo tempo -Tudo, Eis Tudo pois – In Memoriam Jorge Peixinho (1997), compo- e José Eduardo acabou tocando-as em seu estado primitivo. sição gerada a partir do Étude Die Reihe – Courante, de Peixinho Para surpresa minha verifiquei que elas não precisavam de (1992). Gilberto Mendes, ao mencionar gravações de suas obras nenhuma revisão.” Continua, com uma ponta de ironia: que realizei na Bélgica e lançadas em CD pela Academia Brasi- “Quando jovens e desconhecidos, podemos levar a maior obra- leira de Música, comenta: “esse CD inclui ainda Estudo, Ex- -prima a um intérprete, que ele nem se dignará a olhá-la (a não -tudo, Eis tudo pois, também pedido por José Eduardo, com o ser que seja um do tipo do José Eduardo Martins). Na minha qual homenageamos um grande amigo comum, o compositor idade tenho que cuidar muito do que apresento, porque qual- português Jorge Peixinho.”2 Ao leitor, diria que nesse estudo quer porcaria que compuser será tocada.”5 Todo esse passado Gilberto Mendes se utiliza de elementos a gosto de Peixinho – compôs um recital inteiro que apresentei em várias cidades: reminiscências de Darmstadt? –, dialogando com os seus: coral Pequeno álbum para crianças (1945-1952), Sonatina Mozartiana a privilegiar acordes que fazem parte do idiomático do compo- (1951), Sonata (1953), Cinco prelúdios (1945-1953), Dezasseis sitor santista, citações tão ao seu agrado, entre as quais lem- peças para piano (1949-1959). Há verdadeiras jóias nessa pri- branças dos Funerais de Liszt, obra que apresentei em recital na meira fase gilbertiana. Dessas partituras apresentadas gravei a cidade de Santos dias antes da criação do In memoriam ao músico Sonatina Mozartiana em Sófia, na Bulgária, apresentando-a nascido em Montijo, e determinadas nonchalances jazzísticas. regularmente em recitais. Já há várias outras gravações dessa Gilberto Mendes comporia ainda Étude de Synthèse (2004). deliciosa Sonatina Mozartiana realizadas por outros pianistas Comenta o autor: “José Eduardo curte bastante o que ele chama nos Estados Unidos da América, Europa e Japão. de os seus acordes quando fala comigo, e me pediu um estudo Nosso relacionamento estendeu-se pelo repertório came- novo para tocar em concertos na Europa, mas queria que fosse rístico e piano e orquestra, pois apresentaria em público ao longo feito só com os tais de “meus acordes”, uma sequência deles. dos anos Saudades do Parque Balneário Hotel (piano e saxofone Tive dificuldades, a princípio, pois os meus acordes, afinal, são alto), Longhorn (piano, trompete e trombone), Ulysses em Copaca- aqueles de todas as músicas modernas, as sétimas, as nonas, da bana surfando com James Joyce e Dorothy Lamour (flauta, clarinete, música francesa, do jazz. Mas, como sempre, obedeci, e o pró- trompete, saxofone alto, dois violinos, violeta, violão, contra- prio José Eduardo deu o título, Étude de Synthèse. Uma síntese de baixo e piano); Cinco canções para canto e piano; Concerto para meus acordes, pinçados das muitas músicas que lhe dediquei, piano e orquestra; Rimsky (quarteto de arcos e piano), obra apre- equalizados numa sequência em que se ligam abruptamente, sentada em tournée por várias cidades da Bélgica em 2004 (Rubio massacrados pelo implacável compasso de 9 por 8, como se strijkkwartet)… Ótimos músicos participaram das apresenta- todos constituíssem uma só linha muito longa. Um passeio pelo ções no Brasil de todas as obras precedentes. meu mundo harmônico.”3 Largo do Chiado (2008) é uma Nos estertores da vida acadêmica de Gilberto Mendes pequena peça com citações temáticas do fado A Severa, escrita incentivei-o a fazer o Doutorado direto, uma das possibilidades para comemoração do cinquentenário de meu primeiro recital para a obtenção do título e que faz parte da legislação da Univer- em Portugal (14/07/1959), na Academia de Amadores de Música sidade de São Paulo. Hesitou por várias vezes, mas aquiesceu e em Lisboa, a convite do insigne Fernando Lopes-Graça. Apre- realizou uma tese extraordinária, que foi saudada pelo júri que sentei Largo do Chiado na mesma sala da AAM no dia 26 de maio tive a honra de integrar. Logo após Gilberto completaria setenta de 2009. anos e estaria reformado. Sua tese, modificada, foi publicada Parte considerável das obras foi destinada ao meu projeto pela editora da Universidade em 1994 em primorosa formata- de estudos para piano iniciado em 1985 e que conta até o pre- ção como livro, Uma odisséia musical – Dos mares do Sul à elegân- sente com mais de oitenta criações específicas vindas de todos cia pop/art déco. os quadrantes. Jocosamente, Mendes escreve: “Já compus Em 2013, Gilberto Mendes, compositor que teve sempre em vários estudos para o José Eduardo Martins, que não me deixa mente títulos curiosos, quiçá desconcertantes para suas cria- em paz, é insaciável, sempre quer mais um.”4 Só não escreveu ções, mas que levam à reflexão, escreveu uma novela curta e ins- que a ideia original partiu dele ao elogiar o projeto de seu amigo, tigante: Danielle em surdina, langsam (São Paulo, Algol, 2013). pianista e compositor Yvar Mikhashoff (1941-1993), que solici- Na rubrica Ecos d’Além-mar de Glosas n.º 11 escolhi como tema o tou e recebeu cerca de cem tangos, entre os quais The Three pequeno livro de Gilberto em que há a presença do autor, cons- Fathers (1984) de Gilberto. Sem esses meus apelos para que ciente ou inconscientemente, como observador sempre atento a compusesse estudos, a música estaria certamente privada de reter lembranças... algumas obras-primas que nasceram a partir de nosso convívio. Neste número dedicado ao notável Gilberto Mendes, fica Certo dia, almoçando no apartamento de Gilberto Mendes, neste texto meu tributo carinhoso ao grande compositor que em Santos, indaguei-lhe sobre suas composições para piano sempre compôs pelo prazer de compor e que se libertaria a escritas no passado. Disse-me que eram sem importância e que tempo de amarras esterilizantes, criando um estilo rigorosa- estavam todas em um baú, mas que por elas não se interessava. mente pessoal, e ao crítico competente, degustador do momento Após insistência, sua dedicada esposa Eliane abriu a grande presente da existência, escritor amoroso e diletíssimo amigo. caixa de madeira e retirou de seu fundo um pacote cuidadosa- mente embalado. A primeira obra que abri foi a Sonatina Mozar- notas tiana (1951). Sentei-me ao piano e toquei para Gilberto. Ao 1 MENDES, Gilberto, Viver sua música – Com Stravinsky em meus ouvidos, rumo à final, ele disse: “Não é que ela é bonita!...!”. Gilberto Mendes avenida Nevsky, São Paulo, Edusp, Realejo, 2008, p. 148. 2 Idem, ibidem, p.152. relata essa prospecção arqueológica: “...sou-lhe grato por haver 3 Idem, ibidem, p. 149 e 152. tocado toda a minha obra inicial, do período de minha formação 4 Idem, ibidem, p. 149. praticamente autodidata, que estava esquecida nas gavetas. 5 MENDES, Gilberto, Uma odisséia musical – Dos mares do Sul à elegância pop/art Cheguei, muitas vezes, a pensar em jogá-la fora... Sempre pen- Déco, São Paulo, Giordano-Edusp, 1994, pp. 215-216. sei em fazer uma revisão de todas essas peças muito antigas

20 | glosas | número 13 | novembro | 2015 Gilberto Mendes 90 – Alegres Trópicos

de Schoenberg) e o jazz e música popular do início do século XX luis salgueiro | TEXTO (de Cole Porter e Hanns Eisler). Tudo isto é mediado pela mais expansiva imediatez de empa- tia e de vitalidade expressiva. A peça que empresta o nome ao Gilberto Mendes será, talvez, o decano dos compositores álbum, por exemplo, avisa logo ao que vem: “Vamos dançar, (…) brasileiros. Mas será um mestre relutante: no final de contas, shall we dance, shall we?”. Alegres trópicos – Um baile na mata um iconoclasta deve resistir a tornar-se instituição (como Gil- atlântica (2006) parece querer animar a tristeza de Lévi-Strauss. berto resistiu a juntar-se à Academia). Com a mesma candura A peça abre com uma fanfarra como a que anunciaria um dos pri- desarmante com que escreve, confessa-nos que não “sabe meiros grandes talkies. Ambiciosos gestos melódicos, com o sequer que tipo de compositor” é – sendo, no mínimo, três peso e densidade que lhes confere a harmonia em bloco estilo big diferentes, divididos entre as várias músicas que ama. Por deli- band, metamorfoseiam-se em passagens dodecafónicas, que por cioso que seja ouvi-lo falar, quem quiser saber quem é afinal sua vez se dissolvem de novo para coalescer no piano e vibrafone Gilberto Mendes fará melhor em enlevar-se antes na sua à la George Shearing. Tudo isto acontece à mesma velocidade das música. A OSESP, com o álbum que lhe dedicou pelos seus 90 alucinantes montagens cinematográficas de Ruttmann – ou dos anos, dar-lhe-á uma valiosa ajuda. Jeux de Debussy. É uma peça fragmentada, mas nunca partida. A O álbum principia com o Motet em ré menor (1967), paleta de associações e auras é riquíssima, mas nem por um Beba Coca-Cola, sobre o poema concreto de Décio Pignatari, momento atravessa a fronteira em direcção ao kitsch. Nada tornou-se na obra mais difundida do compositor. Espantosa- ocorre como esperamos: as forças capturadas na música compe- mente, fê-lo a arrepio de todas as contrariedades: o acorde da lem o corpo e a expectativa a readaptarem-se constantemente. (alegada) tonalidade é imediatamente destroçado por disso- Gilberto bem nos havia prometido dança. Despede-se gentil- nâncias; põe às costas massas de clusters e ruídos, dos quais se mente, de novo através do coro: “adeus, goodbye, adieu adieu”. livra com o mesmo ritmo pulsado incessante; a peça culmina, A fechar, Rastro harmônico (2003-2004), outra peça notavelmente, com aquele que será o único arroto registado na referencial na obra do compositor. Na base da sua concepção História da Música. O humor é imediatamente saliente e, no está um procedimento adoptado pela primeira vez em Um estudo? entanto, esta é uma peça angular, com arestas. Beba Coca-Cola é – Eisler e Webern caminham nos mares do Sul, para piano, uns mais do que uma showpiece ou um gimmick: é uma síntese ele- quinze anos antes (1989). Um fio melódico desenrola-se, em gantíssima — como pode ser uma equação ou um vestido, algo sucessivas notas de duração igual, deixando o ouvido num estado que revele muito com muito pouco — da alma de Gilberto Men- de constante reavaliação das consequências melódicas e harmó- des. O que há de secreto, de pessoal, de emotivo e de genuíno é nicas de tal remoinho. Num intervalo de segundos, é-nos suge- aberto ao mundo e por ele se deixa permear, com a maior das rido ora um, ora o outro dos santos do seu altar particular. Aqui graças e com humor. Eisler, aqui Webern; aqui Weill, aqui Berg. Em Rastro, no entanto, Segue-se a Abertura da ópera Issa (1995), um projecto o exercício ganha outra dimensão: tendo quinze anos de experi- ainda por terminar, partilhado com Pignatari e inspirado na mentação com a técnica e uma orquestra à disposição, Mendes figura de Kobayashi Issa, um dos mais célebres cultivadores do presta-se a um trabalho admirável sobre a filigrana da orques- haiku. Talvez seja por isso que, como num bom haiku, a música tração, do qual resultam brilhantes melodias de timbres e – como viva não do conflito e das tensões ocidentais mas antes através da o próprio nome da obra sugere imediatamente – hábeis jogos de justaposição. A textura global, sempre feérica, caminha — virada ressonâncias. A obra exibe a cada momento o impecável sentido para si mesma, ora mais ora menos pacificamente — através de de melodia do compositor, mesmo quando se trata de um solo de ostinatos. Quando lhe é adicionada energia suficiente, revela uma tímpanos. Mesmo quando trabalha em terrenos (julgávamos verdade e vira a sua atenção para outro lado. A peça termina com nós) bem cartografados, a sua invenção não se esgota. um final quase pastoral, imbuído de pentatonicismo. Este registo de 2011 captura Alondra de la Parra, uma das mais Partitura: Um quadro de Gastão Z. Frazão (1985), pelo empolgantes maestrinas da actualidade, a liderar sem mácula uma contrário, é uma peça de contradições. Como num prisma, os orquestra em grande forma. Aliado às comemorações do 90.º ani- materiais que servem de ponto de partida são cindidos e envia- versário de Gilberto Mendes, o álbum inaugurou também, em dos em direcções díspares e surpreendentes, num espectáculo 2013, a iniciativa “Selo Digital OSESP”, que disponibiliza gratuita- caleidoscópico de cor. Mendes explora inspiradamente um mente ao público gravações da orquestra, contribuindo para a difu- contínuo entre as mais profusas paisagens tonais e morfologias são da música brasileira, para a valorização do património e da plasmadas microtonais, encontrando pelo meio hábeis refe- marca OSESP e para a democratização do acesso à música. rências quer ao jazz de Billy Strayhorn, quer aos gestos hetero- géneos de Schoenberg e à melodia de timbres de Webern; ao centro, o inclassificável peso do uso bem medido do silêncio. Gilberto Mendes 90 Partitura reúne todas as paixões de Gilberto, numa síntese Alegres Trópicos ecléctica que viria a ser amplamente justificada pelo próprio uma década depois, em Uma Odisséia musical – dos mares do Sul Selo Digital OSESP: Orquestra à elegância da pop / art déco (1994). O compositor dedica parte da Sinfónica do Estado de São Paulo, Coro da OSESP, dir. Alondra de la sua principal monografia — um livro altamente auto-reflexivo, Parra, 2013. que nasce da sua teoria e prática pessoais — à análise das várias Disponível em http://goo.gl/sBceH4 trocas entre a música erudita romântica e moderna (de Wagner,

glosas | número 13 | novembro | 2015 | 21 Ascent

mento, a melodia assuma uma direcção totalmente oposta rela- bernardo sassetTi | TEXTO tivamente ao motivo original. Este pode ser um exemplo de inquietação musical e o meu objectivo acaba sempre por ser a procura de uma saída, ou melhor, de uma resolução do estádio anterior. Este modo de acção pode ser comparado a uma ima- gem recorrente de inspiração, suspensão (reticência/incógnita) Sobre a música composta e expiração do ar que respiramos. Estes são, portanto, os principais processos simples e os Como muitos compositores e intérpretes, não me é fácil modelos que utilizo com maior frequência de forma a relevar traduzir por palavras a música que imagino interiormente. essa imensidade de cores e gestos musicais; e da ambiguidade, Posso, no entanto, referir o meu método de composição e inter- neles inerente, nasce o primeiro tema, desenvolvendo-se o pretação, baseado essencialmente na construção de ostinatos – raciocínio e, mais tarde, o discurso improvisado. Posso também ideias obsessivas e linhas melódicas que me “perseguem”, referir que o cinema, a fotografia e a pintura, assim como a acti- mesmo que eu esteja longe do piano; estas surgem como deter- vidade de composição original para cinema – à qual me dedico minação da estrutura e do desenvolvimento de cada uma das com assiduidade – se manifestam, directa ou indirectamente, peças, podendo ser (ou não) objecto de infindas variações. Ao tanto em Ascent como nas gravações que o antecedem, desde mesmo tempo, gosto de iniciar o processo de composição 2002 com o CD Nocturno. (...) usando progressões harmónicas no seu estado mais simples e, a partir do momento em que o mote principal está definido, começo então por introduzir notas fora da escala ou acordes Sobre a música interpretada compostos, assim como linhas de constante tensão e resolução de maneira a poder dar a ideia de dinâmica e movimento. Mui- Todos sabem (ou imaginam) que o desafio de comunicar, a tas vezes, recorro também a intervalos de quintas perfeitas, espontaneidade, a harmonia, o conflito de sons e ideias, assim paralelas e suas variantes (passe a teoria), como exemplo desse como a energia sob várias formas e feitios, serão sempre lugares mesmo movimento, tanto na mão esquerda como na direita. comuns quando falamos de música, escrita ou improvisada. Em muitas circunstâncias, surge apenas uma melodia, Interpretá-la no momento é a expressão máxima do nosso geralmente na mão direita e de 4 ou 8 compassos, que vou expe- caminho e a constante procura de caminhos outros. Será possí- rimentando na procura de um caminho concreto, quase até ao vel traduzir por palavras a música (ou a arte) que imaginamos limite das suas possibilidades – mesmo que, no seu desenvolvi- interiormente?

22 | glosas | número 13 | novembro | 2015 Eu gosto de pensar que talvez seja a vontade de olhar para Biografia de Bernardo Sassetti dentro e, do silêncio interior, dar sequência a algumas (possí- (pianista, compositor e fotógrafo) veis) imagens da nossa memória e, ao mesmo tempo, do preciso momento em que o som e a ideia são lançados; mas o maior Nasceu em Lisboa a 24 de Junho de 1970, oitavo filho de desafio de todos é, para mim, a incerteza na procura de outros Maria de Lourdes da Costa de Sousa de Macedo Sassetti Paes e lugares, indefinidos e muito longe daquele onde vivemos – Sidónio de Freitas Branco Paes. Foi casado com a actriz Beatriz quando deixamos para trás os nossos instrumentos. Batarda, com quem teve duas filhas, Maria Sassetti Paes e Leo- Hoje, parece-me evidente que o jazz é o centro da música que nor Sassetti Paes. faço, independentemente de muitas outras referências funda- Bernardo Sassetti iniciou os seus estudos de Piano clássico mentais; por outro lado, a determinação musical encerra em si aos nove anos com a professora Maria Fernanda Costa e, mais um sem número de interrogações: quando o improviso começa, tarde, com o professor António Menéres Barbosa, tendo fre- encontro-me sempre perante uma incógnita, mesmo que a quentado também a Academia dos Amadores de Música. Dedi- estrutura seja bem precisa. Sinto sempre uma inquietacão no cou-se ao jazz, estudando com Bernardo Moreira, Zé Eduardo, movimento das invenções e inversões que surgem, experimen- Horace Parlan e Sir Roland Hanna. Em 1987, começou a sua car- talmente, no instante de tocar. Só tenho certezas quando o ins- reira profissional, em concertos e clubes locais, com o quarteto tinto me diz que não existe muito tempo para pensar e a sequên- de Carlos Martins e o Moreiras Jazztet; participou em inúmeros cia dos sons deve ser, com igual valor, um espaço de festivais com músicos como Al Grey, John Stubblefield, Frank espontaneidade criativa e uma constante entrega ao prazer de Lacy e Andy Sheppard. Desde então, apresentou-se por todo o tocar – dito assim, parece fácil; mas, muito pelo contrário, mundo ao lado de músicos como Art Farmer, Kenny Wheeler, trata-se de um processo de aprendizagem lento e que vive de Freddie Hubbard, Paquito D’Rivera, Benny Golson, Curtis Ful- uma prática constante, a sós ou em grupo e, principalmente, ler, Eddie Henderson, Charles McPherson, Steve Nelson, Guy diante de um público. Reconheço também que qualquer forma Barker, Mário Laginha, Pedro Burmester, Maria João Pires, de arte deve ser um meio de exploração das nossas convicções João Paulo Esteves da Silva, Alexandre Frazão, Carlos Barretto, pessoais, ainda que possa ser um exemplo vivo de fragilidades e Demian Cabaud, Carlos Bica, Laurent Filipe, Jean François indecisões, tanto humanas como artísticas. Lezé, Bernardo Moreira, José Salgueiro, Marco Miralta, Guil- Muitas vezes, penso em música como uma forma de des- lermoMcGill, Perico Sambeat, Pedro Moreira, João Moreira, construção, e consequente construção, do discurso musical, e Nelson Cascais, Ajda Zupančič, André Fernandes ou Drumming também como representação de imagens abstractas, presentes Grupo de Percussão, entre outros, destacando-se a colaboração na consciência imediata. Estes ganham ainda maior dimensão estreita e regular com a Sinfonietta de Lisboa e o Maestro Vasco quando, em conjunto com outros músicos, surgem como “movi- Pearce de Azevedo. mentos” dramáticos, objectivos mas também indefinidos, das Em 1994, integrou a United Nations Orchestra, fundada por “histórias” que nos propomos contar. Imaginemos um ser em Dizzy Gillespie, tocando ao lado de vários músicos latinos e pleno acto de levitação, suspenso no ar, sem consciência do tra- influenciando de forma evidente o seu primeiro álbum,Salsetti . jecto nem a certeza do seu destino... No mesmo ano, gravou com o quinteto de Guy Barker o CD Into Seguindo estas ideias, vem-me à memória uma frase que The Blue (Verve), nomeado para os Mercury Music Prize 95 – Ten nunca esqueci de Bernard Herrmann, um compositor que muito albums of the year. Em 1997, também com Guy Barker, gravou admiro: Everybody’s life has some rain in it. Esta observação vem What Love is, acompanhado pela London Philharmonic Orches- reforçar a ideia de que a música que procuro transmitir é tam- tra e com a participação especial do cantor Sting. bém um meio de expressão enigmático, mais intuitivo do que Como compositor, destacam-se as composições Ecos de pensado (entenda-se bem, já que existe sempre um raciocínio), África (1994), Sons do Brasil (1994), Mundos (1995), Entropé harmonicamente ambíguo e longe de qualquer análise concreta. (para piano e orquestra) (2001), 4 Movimentos Soltos (para piano, De um instante a outro, sem razão aparente, o sol desaparece e a vibrafone, marimba e orquestra) (2003), Fragments (of Cinema- chuva cai; ou fica à espreita e a paisagem transforma-se, ou tal- tic Illusion) (2004/2005), Concerto Dinâmico (2005), Suite para vez não; não se sabe o que poderá acontecer, nem quando vol- Dom Roberto (2007) e entre muitas outras peças para pequenas tará o sol... formações. Partindo do princípio de que estas razões são suficiente- O seu primeiro trabalho discográfico como director, mente válidas, e ainda, por muito que me esforce, poderei eu Salsetti (Groove/Movieplay) foi gravado em Abril de 1994, com a fazer uma análise consistente e fiel da minha música? E poderá participação de Paquito D’Rivera, seguido de Mundos (Emarcy/ essa análise, ao mesmo tempo, trazer alguma novidade ou inte- Polygram), em Janeiro de 1996. Em 2002, gravou Nocturno resse particulares? Sinceramente, acho que não. Tenho, no (Clean Feed), o primeiro disco do Bernardo Sassetti Trio, com entanto, uma noção exacta do meu conhecimento teórico e do Carlos Barretto e Alexandre Frazão, distinguido com o Prémio que sou (ou não) capaz de fazer com o piano; mas esse é apenas Carlos Paredes, e no mesmo ano iniciou a colaboração com Olga um meio para atingir, na prática, os meus principais objectivos Neves Carneiro, que o representou ao longo da década seguinte. e poder eventualmente sonhar com a ilusão de outras paragens. Em 2004, gravou dois discos para piano solo, Indigo e Livre E não será assim com a maioria dos músicos? (Clean Feed). No ano seguinte, lançou o segundo disco do Ber- Música composta ou improvisada, condicionada ou abso- nardo Sassetti Trio, Ascent (Clean Feed), com a participação de luta, é uma questão cada vez mais sem limites. Talvez seja o Ajda Zupančič e François Lezé, um fruto da comunhão entre a reflexo da nossa vida; talvez seja a realidade juntamente com o música e as artes visuais derivadas da sua dedicação ao cinema e universo dos sentidos. Porém, mais do que a própria realidade, à fotografia. Em Dezembro de 2006, também dentro do con- é o espelho das coisas que dela imaginamos: do silêncio e de texto audiovisual, Bernardo Sassetti editou Unreal: Sidewalk regresso a ele, as imagens em forma de música terão sempre um Cartoon (Clean Feed), materializado em espectáculo e contando carácter abstracto, suspenso, inacabado... com a participação de vinte e oito músicos e uma actriz, um

glosas | número 13 | novembro | 2015 | 23 disco que recebeu o melhor acolhimento da crítica nacional e Como concertista, apresentou-se em piano solo, em trio internacional. Em 2007, foi editada a banda sonora da peça de com Carlos Barretto e Alexandre Frazão, em duo com o pianista teatro Dúvida (Clean Feed), com encenação de Ana Luísa Gui- Mário Laginha, com quem gravou os CDs Mário Laginha e Ber- marães. Em Outubro de 2006, apresentou-se no Grande Audi- nardo Sassetti, Grândolas, Trago Fado nos Sentidos e Dias da Música tório do Centro Cultural de Belém com Mário Laginha e Pedro 2011, e ainda em trio de pianos com Mário Laginha e Pedro Bur- Burmester no concerto 3 Pianos, editado em CD e DVD no ano mester. Em 2007, integrou o grupo Art Impressions, ao lado de seguinte. Em 2010, gravou o terceiro e último disco do Trio de Maria João Pires, no espectáculo Schubertíade. Em 2008, Ber- Bernardo Sassetti, com o título Motion (Clean Feed) e também, nardo Sassetti reuniu Perico Sambeat, André Fernandes, Paco em parceria com Carlos do Carmo, Bernardo Sassetti & Carlos do Charlín e Alexandre Frazão no concerto Bebop, Bird and Beyond Carmo (Universal). na Casa da Música, num tributo a Charlie Parker, Thelonious De entre muitos discos gravados (como acompanhador e Monk e Charles Mingus. Em 2008, tocou com Mário Laginha, compositor) podem destacar-se os seguintes: Conrad Herwing Camané e Carlos Bica no espectáculo Vadios, no CCB, que juntou e Trio de Bernardo Sassetti – Ao vivo no Guimarães Jazz; Orques- o jazz e o fado. Em 2009, realizou no Teatro Maria Matos o con- tra Cubana Sierra Maestra – Dundumbanza e Tibiri tabara; Carlos certo Music Around Circles, juntando-se a João Paulo Esteves da Barretto – Impressões e Olhar; Carlos Martins com Cindy Black- Silva, Mário Laginha e Filipe Quaresma, num concerto que nas- man – Passagem; Luís Represas – Cumplicidades; Carlos do ceu da colaboração criativa com o realizador Marco Martins para Carmo – Carlos do Carmo ao vivo no Coliseu; Guy Barker – Into the a criação da banda sonora original de Como desenhar um círculo blue, Timeswing eWhat love is; Perico Sambeat – Perico; Guillermo perfeito. Em 2010, realiza o espectáculo Histórias do Castelo, uma McGill – Cielo e Oración; Tetvocal – Desafinados; Djurumani – viagem musical, visual e literária, à propósito da comemoração Reencontro; Andy Hamilton – Jamaica by night; Da Weasel – Amor, dos 100 anos da classificação do Castelo de S. Jorge como Monu- Escárnio e Maldizer; Rui Veloso – Rui Veloso e Amigos; Sérgio mento Nacional, com textos de Nuno Júdice, imagem de Antó- Godinho – Dias Consecutivos; entre outros. nio Jorge Gonçalves, fotografia, vídeo e música de Bernardo Bernardo Sassetti dedicou 18 anos da sua vida à composição Sassetti, com a interpretação da Sinfonietta de Lisboa e um de música para cinema, uma paixão que o acompanhou desde os elenco de oito actores. Em 2011, Bernardo Sassetti compôs e 12 anos de idade. Destaca-se a participação no filme The Talen- interpretou a música para o espectáculo Uma coisa em forma de ted Mr. Ripley (Paramount/Miramax), do realizador Anthony assim, obra co-criada pelos coreógrafos Clara Andermatt, Fran- Minguella, em 1999. Para este projecto, gravou My Funny Valen- cisco Camacho, Benvindo Fonseca, Rui Lopes Graça, Rui Horta, tine com o actor Matt Damon, entre outras peças. Compôs igual- Paulo Ribeiro, Olga Roriz, Madalena Victorino e Vasco Wel- mente, em parceria com o trompetista Guy Barker, uma série de lenkamp, numa produção da Companhia Nacional de Bailado. A peças para apresentação na première deste filme em Los Angeles, última apresentação de Bernardo Sassetti foi a solo, no Fórum Nova Iorque, Chicago, Berlim, Paris, Londres e Roma. Dos seus Cultural Alcochete, no dia 28 de Abril de 2012. trabalhos de composição para cinema destacam-se Maria do Bernardo Sassetti faleceu em Cascais, no dia 10 de Maio Mar, de Leitão de Barros, Facas e Anjos, de Eduardo Guedes, de 2012. Quaresma, de José Álvaro Morais, O Milagre Segundo Salomé e Um Amor de Perdição, de Mário Barroso, A Costa dos Murmúrios, de DISCOGRAFIA SELECCIONADA Margarida Cardoso, Alice e Como desenhar um círculo perfeito, de - Bernardo Sassetti – Salsetti, 1994 (Groove/Movieplay) Marco Martins, Second Life, de Miguel Gaudêncio e Alexandre - Conrad Herwig + Trio de Bernardo Sassetti – Ao Vivo no Festival Valente, 98 Octanas, de Fernando Lopes, o documentário Noite de Jazz de Guimarães, 1994 (Groove/Movieplay) em Branco, de Olivier Blanc, e a curta-metragem As Terças da - Bernardo Sassetti – Mundos, 1996 (Emarcy) Bailarina Gorda, de Jeanne Waltz. Como solista, participou tam- - Bernardo Sassetti Trio – Nocturno, 2002 (Clean Feed) bém no filme Pax, de Eduardo Guedes, e na curta-metragem - Mário Laginha e Bernardo Sassetti – Mário Laginha e Bernardo Bloodcount, de Bernard McLoughlan. As bandas sonoras de A Sassetti, 2003 (ONC Produções Culturais) Costa dos Murmúrios e Alice foram distinguidas com o troféu - Bernardo Sassetti – Indigo, 2004 (Clean Feed) internacional Cineport para melhor banda sonora original. - Bernardo Sassetti – Livre, 2004 (Clean Feed) Escreveu e interpretou música também para teatro, desta- - Mário Laginha e Bernardo Sassetti – Grândolas – Seis Canções e cando-se as peças Dúvida e A Casa de Bernarda Alba, encenadas Dois Pianos nos Trinta Anos de Abril, 2004 (Guilda da Música/CNM) por Ana Luísa Guimarães, A Bicicleta de Faulkner, encenada por - Bernardo Sassetti Trio2 – Ascent, 2005 (Clean Feed) Rita Lello, e Azul Longe nas Colinas, encenada por Beatriz - Bernardo Sassetti – Alice, 2005 (Trem Azul) Batarda. - Bernardo Sassetti – Unreal: Sidewalk Cartoon, 2006 (Clean Feed) Em 1994, Bernardo Sassetti intensificou a dedicação à - Bernardo Sassetti – Dúvida, 2007 (Trem Azul) fotografia, movido não apenas pela paixão por esta arte, mas por - Bernardo Sassetti, Mário Laginha & Pedro Burmester – 3 Pia- uma real necessidade de associar a imagem à música que nos, 2007 (Incubadora d’Artes) escreve. Tal como aconteceu com a sua música, a fotografia foi - Bernardo Sassetti – Um Amor de Perdição, 2009 (Clean Feed) para Sassetti, mais do que a própria realidade, o espelho das - Bernardo Sassetti – Second Life, 2009 (Utopia Música) coisas que dela se imaginam. Em 2007 começou a expor o seu - Will Holshouser Trio + Bernardo Sassetti – Palace Ghosts and trabalho, apresentando-se no Museu Nogueira da Silva, em Drunken Hymns, 2009 (Clean Feed) Braga, em Setembro desse ano. De Abril a Julho de 2008 expôs - Mário Laginha e Bernardo Sassetti – Trago Fado nos Sentidos: ao na FNAC do Norte Shopping, em Matosinhos, e no final do vivo na Casa da Música, 2009 (Casa da Música) mesmo ano apresentou-se em Guimarães, no Centro Cultural - Bernardo Sassetti & Carlos do Carmo – Bernardo Sassetti & Car- Vila Flor. Em 2009, a exposição rumou à Madeira, sendo apre- los do Carmo, 2010 (Universal) sentada na Casa das Mudas na Calheta. - Bernardo Sassetti Trio – Motion, 2010 (Clean Feed)

24 | glosas | número 13 | novembro | 2015 A importância dos sonhos e sua influência sobre a vigília o sonho dos outros relacionam-se com o facto de neles se experimentar outros esta- A fenomenologia do sonho de María Zambrano dos de consciência que decorrem de diferentes formas de expe- na música de Bernardo Sassetti rienciar o tempo. Sobre a fenomenologia do sonho de María Zam- brano, no âmbito da sua aplicação à prática filosófica, há vários A partir desse dia passei a ter um sonho estudos já publicados.4 Neste artigo explora-se, pela primeira e uma razão para estudar piano. vez, a sua aplicação à actividade artística, em particular, à Música.5 Bernardo Sassetti Zambrano interessa-se não sobre o conteúdo do sonho, apanágio da Psicanálise, mas sobre a forma e a percepção do tempo em sonhos. Importa ainda referir que Zambrano não estabelece uma fronteira entre vigília e sono. Interessam-lhe os estados percep- Maria joão neves | TEXTO tivos e pode acontecer penetrações de temporalidades caracterís- ticas do sonho em vigília, quando, por exemplo, ficamos abstraí- dos; ou de intromissão de tempo consecutivo no universo do Prelúdio sonho, como o sonho lúcido.6 Existem muito mais formas-tempo Bernardo Sassetti (1970-2012) foi um dos compositores do que aquela mensurável pelo relógio, única que estamos habi- portugueses mais marcantes da actualidade. A palavra foi talvez tuados a considerar. Em suma, estuda o movimento íntimo da nunca tenha custado tanto escrever como neste caso. Creio que temporalidade humana tomando em especial consideração “a qualquer leitor concordará comigo: aquele foi deveria ser um é. tensão que precede a liberdade e a profetiza; a tensão rumo a uma Bernardo Sassetti deixou-nos cedo demais. Não podemos resti- finalidade que se apresenta simbolicamente; o descobrir-se ou tuir-lhe a vida, mas podemos honrar o seu legado artístico, con- mascarar-se do sujeito; o retroceder ante a finalidade ou o avan- tribuir para que a sua memória jamais se desvaneça. çar rumo a ela”.7 Também Langer considerou o tempo do relógio Este artigo constitui uma primeira divulgação de resultados do redutor, incapaz de dar conta do tempo realmente vivido, experi- trabalho experimental desenvolvido no segundo triénio de uma mentado. Em consonância com Zambrano, afirma que a tempo- bolsa de pós-doutoramento concedida pela Fundação para a Ciên- ralidade humana é substancialmente constituída por tensões: cia e Tecnologia. Apenas foi possível levar esta investigação a cabo devido ao empenho dos músicos e musicólogos que durante os últi- The phenomena that fill time are tensions – physical, emotional or mos três anos colaboraram graciosamente neste projecto: Ana Bela intellectual. Time exists because we undergo tensions and their reso- Covão, Ana Freijo, Helena Soares, Luzia Rocha, Nuno Fidalgo, lutions. Their peculiar building-up, and their ways of breaking or Rosário Azevedo, Rui Rosa, Tânia Valente, Tiago Batista e Valter diminishing or merging on to longer and greater tensions, make for a Estevens. Num mundo em que o tempo é o bem que mais escasseia, vast variety of temporal forms.8 é muito raro encontrar tal dedicação. A minha gratidão também ao Pedro Louzeiro pela revisão científica da parte estritamente musi- Não é provável que Bernardo Sassetti conhecesse as teo- cal deste estudo. Quando a investigação cruza áreas de saber diver- rias de María Zambrano ou de Susanne Langer a respeito da tem- sas, só o esforço conjunto de diferentes especialistas a torna possí- poralidade humana e da sua consubstanciação em forma de ten- vel. Um enorme agradecimento a Beatriz Batarda, Francisco sões, distensões e resoluções, passíveis de serem exemplificadas Sassetti, Ajda Zupančič, Carlos Barreto, Mário Laginha, Rui Rosa e musicalmente. No entanto, ouçamos o que nos diz o compositor: à Casa Bernardo Sassetti, pelo apoio inestimável e toda a informa- ção que me concederam. Gosto de iniciar o processo de composição usando progressões harmó- nicas no seu estado mais simples e, a partir do momento em que o mote O Tempo no sonho e na Música principal está definido, começo então por introduzir notas fora da escala ou acordes compostos, assim como linhas de constante tensão e O eco das suas notas transporta-me para outro mundo resolução de maneira a poder dar a ideia de dinâmica e movimento.9 e faz-me sempre sonhar. Bernardo Sassetti A enorme variedade de formas temporais vividas expressa- -se na Música, podendo mesmo afirmar-se que a sua essência é María Zambrano afirma que, ao contrário do que normal- a criação de um tempo virtual: mente pensamos, o sonho é o estado inicial da nossa vida, é do sonho que acordamos para o mundo; a vigília advém depois. Aban- Music unfolds in a virtual time created by sound, a dynamic flow donamos o sonho pela vigília e não o inverso1. Também no célebre given directly and, as a rule, purely to the ear. This virtual time, poema de António Gedeão Pedra Filosofal, mais tarde musicado, se which is an image not of clock-time, but of lived time, is the primary afirma que “o sonho comanda a 2 vida.” Apesar destas intuições illusion of music. In it melodies move and harmonies grow and filosóficas e poéticas, só recentemente, na segunda década do séc. rhythms prevail, with the logic of an organic living structure. Virtual XXI, a neurociência acabou por corroborar esta tese: time is to music what virtual space is to plastic art: its very stuff, organized by the tonal forms that create it.10 Waking consciousness actually depends on dream consciousness rather than the other way around. While dreaming the brain is not only A Música suspende o tempo da consciência, tempo con- anticipating waking but is actually simulating waking. Furthermore, secutivo que dividimos entre passado, presente e futuro, conce- 80% of dream content is not a reproduction of an experience that bido como um contínuo unidimensional e homogéneo. A lin- happened in preceding waking; it might therefore be a prediction, a cre- guagem da Música é som; aliás, como bem observou Hanslick, ative expectation of what might happen in subsequent waking.3 “o único e exclusivo conteúdo e objecto da música são formas sonoras em movimento”.11 No entanto, há dificuldade em as

glosas | número 13 | novembro | 2015 | 25 apreender de uma forma clara; Langer sugere a sua natureza 1.2.2.2 Sonhos de carácter real inefável. Como se poderá falar sobre elas? Este seria, segundo Se se vivem estando acordado, Zambrano chama a esta forma- Langer, o grande desafio filosófico: -tempo sonhos de carácter real: sonhos que presidem ao destino.

(...) find us a symbolism whereby we can conceive and express our 1.2.2.2.1 Sonhos de carácter real degradados - Obsessões firsthand knowledge of time. (...) Philosophy must give up discursive Estes sonhos encerram um enorme perigo, se aquele em quem thought, give up logical conception, and try to grasp intuitively the se manifestam não sabe dar-se conta da sua importância, se não inward sense of duration. 12 exerce, por eles estimulado, uma acção transcendente. Neste caso, estes sonhos podem escravizar aquele a cuja vida se apre- A taxinomia da fenomenologia do sonho13 de Zam- sentam, tornando-o vítima de obsessões. brano poderia constituir a resposta ao desafio de Langer. A feno- menologia do sonho de María Zambrano apresenta três catego- 2. Tempo Consecutivo rias principais – Atemporalidade, Tempo Consecutivo e Tempo Trata-se de um tempo estabelecido pela consciência e divisível em Espiral –, que, por sua vez, se subdividem do seguinte modo: em termos de passado, presente e futuro. Consiste no tempo de que somos maiormente conscientes, meio onde se desenvolve a 1. Atemporalidade vida humana. É um tempo onde é possível a vivência da liber- O fenómeno da atemporalidade corresponde a um tempo dade através do exercício da vontade, da tomada de decisões, da quase-zero: experimenta-se uma suspensão do tempo; uma consciencialização de intenções e do reconhecimento da lógica epoche do tempo consecutivo, característico da consciência em e da continuidade dos acontecimentos ou da falta dele. Este vigília. A atemporalidade dá lugar a uma experiência de padeci- tempo corresponde ao que commumente se entende por vigília. 15 mento, de passividade verdadeiramente intensa, manifes- 2.1. Acontecimento Sensorial Exterior tando-se pela impossibilidade de o sujeito pensar 14, actuar ou Designação atribuída aos sonhos que convertem uma sensação exercer a sua vontade. Por mais absurda que seja a situação exterior numa experiência de sonho instantânea. sonhada, o sujeito nunca se questiona acerca dela. 2.2. Sonho Lúcido 1.1 Sonhos de Obstáculo Designação dos sonhos em que o sujeito sabe que está a sonhar Assim são designados os sonhos em que o obstáculo nunca é e pode até alterar o conteúdo do sonho de acordo com a sua von- superado e o sujeito nunca consegue alcançar os seus objectivos, tade.16 Esta possibilidade decorre precisamente da intromissão pois, ao não dispor de tempo, não possui o mínimo de liberdade do tempo consecutivo característico da vigília no período REM. que lhe permitisse tomar uma decisão. Em consequência, além de nunca se estranhar, tão-pouco se revolta contra a situação 3. Tempo em Espiral que lhe cabe viver durante esse sonho. São sonhos em que há Assim se designa um tempo indefinidamente aberto, mas centrado que ultrapassar um limiar, mas em que se fracassa sempre. e integrador. Esta abertura permite a realização do ser do Homem 1.2 Sonhos Invertidos em constante transcendência e a simultânea integração e centra- Apresenta-se um objecto que é máscara ou símbolo de outra mento proporcionam a visão de uma unidade de sentido da vida de coisa, podendo estes ser de dois tipos diferentes: si próprio. Este tempo experimenta-se em momentos privilegia- 1.2.1 Sonhos Orexis dos de coincidência entre si mesmo e a vida. É uma forma-tempo A importância dos sonhos de Orexis reside em a sua capacidade em que “o princípio está informado pelo fim”.17 Assim sucede revelar um passado que ainda não se converteu totalmente em quando o homem actua em uníssono consigo mesmo, i.e., quando passado, alguma ansiedade abafada, algum desejo reprimido. produz uma acção verdadeira. A pessoa é, existe, mostra o seu ver- Através dos sonhos somos capazes de recuar muito no tempo. O dadeiro rosto, deixando de lado todas as máscaras. Esta acção ver- regresso ao passado permite que o que aconteceu adquira um dadeira que o tempo em espiral proporciona consiste num desper- sentido, convertendo o passado reticente em absoluto. tar do fundo íntimo, onde reside o ser em perpétuo crescimento e 1.2.2 Sonhos Directos transformação, que se opõe à forma estática do soberano Eu, ape- Neste tipo de sonhos, o objecto invertido é um símbolo que estimula nas máscara ou personagem. Os sonhos proporcionam um desper- o desenvolvimento da pessoa. Aparece neles a exigência de uma tar transcendente, por isso são acção poética, criadora. Este poder acção a executar encaminhada para uma finalidade que não se mos- criativo tem duas vertentes: a vocação e a criação artística. tra totalmente, porque é, em princípio, inesgotável. Estes sonhos 3.1. Vocação em que aparece uma finalidade-destino propõem uma acção de No caso da vocação, o indivíduo comunica plenamente consigo carácter ético; são sonhos libertadores que denunciam uma trans- mesmo e com o mundo, recebendo intuitivamente a confirma- formação da pessoa, que já se deu ou está em vias de se dar. ção de que o seu curso de acção é correcto. Normalmente, a 1.2.2.1 Sonhos Monoidéticos vocação é experimentada em vigília. Se este tipo de forma-sonho se experimenta durante o sono, 3.2. Criação Artística Zambrano chama-lhe monoidético. São signos hieroglíficos, não Quando transferimos esta experiência do tempo para a esfera da contam uma história; são imagem total, unitária, que encerra o criação artística é como se o artista já conhecesse antecipada- destino daquele que o sonha como se se tratasse de uma cifra, tal mente a obra que ainda tem em mãos. Ela inspira-o. Este para- como as cifras musicais, que se visualizam num instante. Esta doxo é exactamente como podemos entender o fenómeno da ins- imagem tem um poder propulsor, provoca uma tensão rumo à piração na estética de Zambrano. O acesso a um tempo futuro é o finalidade-destino, de tal forma que suscita naquele que por ela é mediador entre o autor e a sua criação. O tempo em espiral reco- visitado uma acção transcendente, qualquer que seja a forma que lhe a informação do futuro − a obra de arte configurada − e informa esta assuma: pensamento, contemplação ou acção propriamente o presente, o processo de criação. É por este motivo que muitos dita. O impulso no sentido da acção transcendente desvanece o artistas consideram que são guiados. A vivência do tempo em sonho e com ele a atemporalidade; desfaz a personagem. espiral explicaria, assim, o fenómeno da inspiração artística.

26 | glosas | número 13 | novembro | 2015 3.3. Sonhos Prospectivos Considerou-se cada obra como um todo. Neste sentido, a sensação Os sonhos também podem ter um carácter preditivo, no sentido de predominante originou a classificação, embora se possa encontrar que um sonho pode antecipar acontecimentos ou acções futuras. O dentro de uma obra momentos que se subsumiriam noutra catego- poder preditivo do sonho às vezes prova ser mais preciso do que ria. Também por este motivo, não se atendeu à minutagem, salvo conjecturas conscientes. De acordo com Zambrano, esta possibili- raras excepções. Cada obra foi tomada como um sonho. dade ocorre devido ao tempo em espiral, em que o sujeito viaja a um tempo futuro e regressa com informações para o seu presente. Sonho dos Outros 18 – piano solo Álbum Nocturno (2002) Compositor: Bernardo Sassetti A Fenomenologia do Sonho de María Zambrano (disponível para audição através da ligação https://www.youtube. na Música de Bernardo Sassetti com/watch?v=2gFBTYcdw6k)

Como é que se cala um pianista? E um guitarrista? Ao pianista A obra está composta em compasso ternário, ritmo regu- tira-se-lhe a partitura; ao guitarrista põe-se-lhe uma partitura. lar de valsa, ou de embalo. No tema, a acentuação acontece num Bernardo Sassetti tempo fraco do compasso, o acompanhamento acentuando o segundo, o que propicia a retracção da frase musical. A célula rít- Neste estudo privilegiou-se o som. Nunca foram utilizadas mica recorrente é semelhante à de Des Pas sur la neige de Debussy, partituras. Não se pretendeu analisar de forma tradicional deter- que induz ao estatismo, à estagnação. Em termos de energia rítmica minada obra. Se esse tivesse sido o objectivo, partituras, ou, à poderíamos falar de desesperança ou de desalento. Trata-se de uma falta destas, transcrições, teriam sido muito úteis. Porém, o valsa dormente, seguramente uma valsa triste. No entanto, é uma objectivo desta investigação foi diferente. Tendo em conta que a tristeza doce. Há como que uma aceitação daquilo que entristece, temporalidade humana é muito mais complexa do que o tempo do quase um desistir de lutar, numa palavra: melancolia. relógio permite considerar e que a Música exemplifica a tempo- Há no timbre o toque característico de Bernardo Sassetti: doce e ralidade experienciada, o objectivo consistiu em procurar uma cristalino. O ataque do instrumento tão suave e envolvente torna-se possibilidade de falar sobre esta problemática frequentemente quase encantatório. O ambiente é de penumbra e mantém-se uni- tomada como inexprimível. Para isto, cruzaram-se parâmetros forme ao longo de toda a peça. A dinâmica acontece sem grandes musicais com as categorias da fenomenologia do sonho zambra- contrastes, também aqui se poderia falar de uniformidade. niana acima descritas. Os participantes apenas tiveram acesso O acompanhamento mantém-se estável, regular, quase auditivo às obras no máximo três vezes, sendo-lhes permitido metronómico. A sua presença vagarosa e constante contribui para tomar notas. Seleccionaram-se parâmetros musicais que pudes- a sensação de obstáculo. A figuração da melodia é sempre de gestos sem ser facilmente reconhecíveis: em anacruse de colcheia para o tempo forte. No entanto, tocada de - ritmo (energias rítmicas e vitais, tipos de ritmo); forma flutuante, induz instabilidade. Não há sincronização abso- - timbre (gradações de cor, luminosidade e sombra, contrastes luta entre as mãos, as notas da mão direita vêm sempre depois, vs. uniformidade); num intervalo de tempo impreciso: tempo rubato. O carácter repe- - características da frase musical (propulsão e/ou retracção da titivo do desenho melódico e rítmico também contribui para esta frase musical; direcção; fragmentação; fluência; acentos); sensação de obstaculização. Exceptuando ligeiras mudanças na - dinâmica (variação da intensidade do som); harmonia, ouve-se a repetição de uma melodia descendente de - articulação (legato/staccato); pares de notas ascendentes, sem contrastes de dinâmica ou tim- - efeitos-surpresa (o que os provoca); bre. Uma certa probidade circular sugere que a peça poderia con- - textura (planos musicais; rarefacção vs. densidade; repetição; tinuar eternamente. Não se consegue escapar ou encontrar uma fragmentação; continuidade vs. descontinuidade; silêncios). saída. Há uma tensão nunca resolvida, um desespero permanente Uma vez que todos os participantes tinham conhecimen- sem solução. Tudo isto indica o sonho de obstáculo. tos musicais, a familiaridade com os parâmetros seleccionados já existia de antemão. Pelo contrário, a filósofa María Zambrano e a Sonho dos outros – 3 Pianos | Compositor: Bernardo Sassetti sua fenomenologia do sonho era-lhes desconhecida. Foi neces- (disponível para audição através da ligação http://www.youtube. sário um período significativo para que as categorias da taxinomia com/watch?v=BLSPFO4Imvw) do sonho fossem assimiladas. Uma vez atingido este objectivo, passou-se à fase seguinte: durante a audição de uma obra, cruzar Na interpretação em três pianos encontramos bem dife- as categorias do sonho com os parâmetros musicais selecciona- renciados três planos, cada um com uma função, quer do ponto de dos e determinar a sua classificação de acordo com temporalidade vista harmónico, quer da simbologia psíquica ou emocional. Cada virtual que uma determinada obra induziu. plano encarna uma diferença de carácter, bem delimitada pela Durante os dois primeiros anos, realizou-se audições de articulação, sonoridade e figuração. Estas variações aliviam as obras de períodos diferentes e de compositores diversos, por forma características opressivas, de obstáculo, da primeira interpretação a permitir maior contraste e facilitar o processo de reconheci- a solo, introduzindo maior criatividade. O ritmo, sobretudo do solo mento da categoria de sonho exemplificada musicalmente. A des- de Mário Laginha, aponta para uma estrutura menos rígida. Apesar treza entretanto adquirida permitiu que durante o último ano se de o ritmo da melodia no tema inicial ser mais rigoroso do que na avançasse para um maior grau de minúcia: em cada sessão, o estudo primeira versão, nesta segunda interpretação parece existir maior incidiu sobre obras de apenas um compositor, tendo em conta, por liberdade do que na anterior. O facto de haver maior variedade vezes, duas interpretações diferentes da mesma obra. Os critérios torna esta versão menos confinada, conferindo-lhe algo de espe- cruzaram parâmetros musicais enunciados com as categorias do rança, de possibilidade de mudança. O final ascendente contribui sonho descritas. Foram dadas instruções aos participantes para para o indiciar da esperança. O acorde final é tocado de forma mais que não refreassem as emoções ou imagens suscitadas pela Música, afirmativa, conferindo uma certa pacificação ao resto da obra. devendo incluí-las no texto que produziram a partir das audições. A versão para três pianos apresenta três planos distintos:

glosas | número 13 | novembro | 2015 | 27 melodia, acompanhamento em acordes e um terceiro de enrique- a importância do registo grave a apoiar certos momentos de per- cimento textural. Numa primeira fase, há maior semelhança com turbação algo dissonante à superfície, no registo agudo. a interpretação a solo. A certa altura desenha-se uma melodia, e No final acentua-se a calma, a serenidade. A melodia não simplesmente uma sucessão de acordes, que traz mais lumi- suaviza-se e os acordes finais parecem conduzir a uma conclu- nosidade à composição. Num segundo momento, a melodia vai são. No entanto, inesperadamente, as últimas notas deixam- evoluindo, embora o ciclo repetitivo se mantenha. Há na condução -nos em suspenso. A conclusão não é, portanto, definitiva. um impulso para diante, variando a energia e o tempo, acelerando A peça no seu todo induz um ambiente de profundidade e e retardando, embora a repetição dos acordes da mão esquerda dê mistério, aliado a um mergulho na memória antiga (característi- ao todo uma sensação de regularidade. As mãos do pianista correm cas modais a nível melódico e harmónico). O final surge como um suavemente, procurando, mas sem angústia. No final retorna-se à despertar inquietante. As dissonâncias não ferem, antes apontam regularidade inicial, agora pontuada por acordes inesperados, que para a descoberta, o desbravar de um horizonte novo, ou o fazer não destroem a fluidez nem a cor, antes a tornam mais positiva. sentido de algo que há muito se não entendia, que confere a reso- Nesta segunda interpretação aparece o mesmo acompanha- lução do passado reticente em passado absoluto: sonho de orexis. mento, mas apontando já a mudança através da dissonância acen- tuada. Surge, de novo, a melodia de carácter anacrústico, mas uma Musica Callada – Trio nova cor emerge na improvisação de Mário Laginha incremen- Álbum Nocturno (2002) Compositor: Federico Mompou tando a propulsão da frase. A luminosidade aumenta, os contrastes (disponível para audição através de http://goo.gl/G1J5Y7) também. A improvisação permite que se origine um diálogo que transforma a melodia. Esta dilui-se, muda o tipo de notação, agora Nesta segunda interpretação de Musica Callada aparece a mais rápido, para voltar no fim à sua característica essencial de mesma melodia, mas o carácter muda, com a instrumentação instabilidade. É de especial importância destacar o momento em que acrescenta ao piano o contrabaixo e a percussão. A melodia que a melodia sofre esta transformação. A seguir à sucessão de inicia-se no contrabaixo, o conjunto de instrumentos vai vários acordes, já não aparece como voz preponderante, mas passa criando um campo harmónico de ressonância profunda. O con- timidamente a um plano secundário. É neste momento de contra- trabaixo soa com vibrato microtonal que proporciona instabili- ponto que sofrerá essa transformação que propiciará a fluidez que dade ao som, mesmo quando se mantém aparentemente na depois apresenta. A certa altura, a melodia dá um passo atrás para mesma nota. Esta microtonalidade sugere um ambiente orien- retomar com mais força esse primeiro plano que lhe é caracterís- tal, o mesmo acontecendo com as cordas glissantes. Com notas tico. Este passo atrás, o regresso a um passado longínquo que é sustentadas e oscilação, a corda friccionada dá uma predomi- reticente, para o resolver e converter finalmente em passado abso- nância ao todo da melodia. Não se trata de um acontecimento luto, é a característica principal do sonho de orexis. que desencadeia outros associados: pelo contrário, soa uma voz. Há uma omnipresença da nota-pedal em vários registos: Lá- Musica Callada – Piano Solo -Sol-Lá. A melodia no contrabaixo é acompanhada pelo piano e Álbum Nocturno (2002) Federico Mompou percussão, constituindo estes o plano de fundo, adquirindo uma (disponível para audição através da ligação http://goo.gl/EN82Rw) forma quase plástica. Melodia e plano de fundo comunicam de diferentes formas: ora se contradizem, ora concordam. Em anacruse surgem três notas rápidas em ascensão O ambiente é austero, quase ritual, monástico. Transmite para eclodir num acorde que fica suspenso e ecoa sob uma melo- alguma agitação pelo constante marulhar da percussão. A articu- dia simples. Ouvimos uma melodia nítida e recorrente: Dó, Ré, lação no piano é marcada, por vezes dura, como o pizzicato no con- Mi, Mi, Mi, Mi, Fá, Ré, Mi. Há no registo agudo uma insistência trabaixo. A austeridade decorre das sonoridades ásperas, o carác- no Mi. Quase uma declamação de Mi. Vive-se um ambiente de ter ritualístico é omnipresente, talvez pela presença marcada, no mistério com o uso de cadências e escalas que evocam modos início, de determinados timbres explorados na percussão. antigos, como uma memória sonora arcaica. Experimenta-se Desde o início da melodia no contrabaixo que a composição um deambular sonoro que induz um carácter onírico e melancó- se vai tornando mais complexa até ao momento improvisado do lico. O tema de três notas introdutórias repete-se ao longo da piano. A percussão cria um efeito de acompanhamento, faz rolar obra, por vezes com mínimas alterações harmónicas nos acor- o tempo num ambiente em que os acontecimentos harmónicos des que sustentam a melodia desencadeada. e melódicos parecem menos desencadeadores de transforma- Poderíamos distinguir três fases: a primeira de carácter ções do que na primeira versão para piano solo. introspectivo, dado pela forma fragmentada da linha melódica e Existe definição, contorno, estrutura. A cadência final suavizado pelo ataque doce das teclas. Acordes algo estranhos, mas acaba, após a improvisação melismática do piano, na modali- serenos, entrecortam as pequenas frases. No entanto, a melodia é dade esperada. Poderíamos pensar na agitação após o despertar apoiada e impulsionada pelos acordes. Segue-se um trecho mais do sonho (a audição anterior). Do estado de contemplação para enérgico, de maior articulação, velocidade, intensidade e densi- um estado de maior inquietação, ou no contraste entre o inte- dade sonora. A melodia parece ser catapultada para a frente, em rior, ou regresso a um passado longínquo e arcaizante que a pri- direcção ao futuro. Depois da breve ornamentação melódica apa- meira interpretação induz e o exterior que a presente audição rece uma segunda voz, o que propicia um crescendo de dinâmica e sugere. Há como que um estar afogado (na primeira interpreta- uma diluição da figuração. Este movimento expansivo, tanto rít- ção) e emergir. Da interioridade afectiva, memória longínqua e mico como dinâmico, e de extensão de registo, será seguido por doce, à realidade mais dura e marcada. É a mesma melodia que um movimento de contracção onde há um retorno que acaba na regressa sempre, apesar da margem de indeterminação meló- melodia solitária em piano. Embora as mudanças de configuração dica. O som com mais espaço de ressonância e a melodia distor- e de dinâmica sejam radicais, a peça progride num contorno des- cida conferem orientalismo. Sente-se a vontade deliberada de cendente e registos mais sombrios, mas de grande envolvência e sair da afinação ocidental profundidade. Tema ascendente, variações descendentes. Note-se Em síntese, numa primeira parte a espiral ganha novas

28 | glosas | número 13 | novembro | 2015 texturas devido à percussão. A voz passa ao contrabaixo, que cal, os outros instrumentos tiveram como principal função canta a melodia, e o piano, no seu acompanhamento, torna-se expandir a cor e aumentar a diversidade de texturas. mais percussivo, como na primeira interpretação. Num segundo O timbre quente do clarinete, que nos chega como uma voz momento, a melodia passa para o piano, é mais articulada do distante, confere um carácter talvez mais lírico, ou doce, contra- que na primeira interpretação e, de novo, deixa-se que sejam os balançando a natureza repetitiva do piano. Esta versão torna-se outros instrumentos (sobretudo a percussão) a ocupar o lugar mais contemplativa ou distanciada do que a audição anterior. que na primeira interpretação teve o pedal no piano ao provocar Menor insistência no carácter obsessivo, pela exploração e maior ressonâncias. As improvisações no piano contribuem também contraste de timbres e dinâmicas, tornando a escuta mais suave. para este aumento de texturas, timbres e cores. Nesta segunda Esta segunda versão não tem secção introdutória, interpretação aumenta a variedade tímbrica e rítmica, mas apenas uma pequena frase despojada, como um lamento con- mantém-se o carácter intimista e desafiante de descoberta que tido que o clarinete deixou escapar. O andamento é mais rápido já sentimos na primeira. O ambiente de serenidade que per- do que na primeira versão. A melodia veloz, sem pausas, repete meia a obra, apesar da intensificação da ressonância e do incre- o tema. A natureza melódica do clarinete não é explorada nesta mento da liberdade e criatividade, indica o tempo em espiral. primeira secção; só prolonga notas, enriquecendo o timbre, preenchendo espaço, saturando a música. A primeira parte ter- Alice (2005) – Piano Solo | Bernardo Sassetti mina com um acorde breve, surdo, esmagado. Na segunda parte, Banda sonora do filme Alice de Marco Martins embora a repetição constante da melodia continue, o anda- (disponível para audição através de https://goo.gl/JDkPV3) mento é mais lento. Os apontamentos do clarinete acentuam o primeiro acorde, sempre grave, que inicia as diferentes frases Ouvimos primeiro uma introdução que vai desde o baixo da melodia, estabelece-se um diálogo com o vibrafone que por até aos acordes, criando o chão musical sob o qual se erige a melo- vezes polvilha a nota mais aguda do piano. A conjugação dos ins- dia. Depois de uma pequena pausa, inicia-se uma nova secção trumentos permite fazer maiores contrastes dinâmicos. A certo contrastante em termos de métrica e andamento. O início é um momento, a melodia do clarinete, como um voo de pássaro, esboço de melodia acompanhada: poderia ser uma canção, mas aumenta a luminosidade, um raio de Sol num dia escuro e ene- este indício dura pouco; as notas adquirem uma importância igual voado. Mas é um brilho fugaz que rapidamente se desvanece na mão esquerda e direita, que se relacionam num desencontro. A entre as nuvens carregadas. O clarinete regressará ainda uma melodia é melancólica, ritmo calmo, pensativo, numa intensidade segunda e uma terceira vez, num sopro de esperança. Mas a mezzo-piano. O modo menor confere um ambiente geral de tris- esperança é sempre vencida. O horizonte fecha-se. A obsessão teza, há algo que tem de ser resolvido mas não se consegue. A mantém-se. Sonho de carácter real degradado ou obsessão. melodia acaba na terceira menor do acorde, não na fundamental, o Vejamos o que o próprio compositor diz sobre esta obra, que cria uma sensação de inconclusão. Há uma pausa muito tendo em mente que todos os elementos do grupo de trabalho pequena que faz a transição, mas que, devido aos acordes finais desconheciam este texto: que a antecipam, transmite uma sensação de suspensão. Após esta breve pausa ocorre uma mudança do material temático que agora O tema principal, minimalista e obsessivo, só aparece numa fase avan- apresenta uma textura mais densa e de carácter repetitivo. Esta çada da narrativa; foi concebido num compasso de 7/4 (sete tempos num secção é mais enérgica e de tempo mais rápido, criando uma certa compasso/sete dias da semana), sem que eu tivesse prévia consciência tensão ansiosa acentuada pela repetição do tema principal. É um disso. A pontuação do tempo é produzida nos graves lentos de um contra- fio condutor repetitivo, quase minimal, com pequenas variações. baixo e as notas longas de um clarinete sugerem uma voz perdida, a de Não há momentos de quebra de tensão, a composição desenvolve- Alice. Todos os movimentos musicais que se lhe seguiram, assim como -se em círculos de igual intensidade, energia e rapidez que se todos os outros sons pontuais, baseiam-se, sem excepção, em variações repetem sucessivamente, criando uma sensação de ansiedade harmónicas, passionais ou circunstancias, do mesmo tema. obsessiva. Com a insistência na repetição, aquilo que era apenas previsível torna-se quase insuportável: quer-se fugir mas não se Morning Circles19 – Piano Solo | Bernardo Sassetti consegue. Não há desenvolvimento em relação a uma conclusão e a Álbum Motion (2009) obra termina com um acorde surdo, quase esmagado pelo largar (disponível para audição através da ligação https://goo.gl/cbv4at) algo súbito do pedal. Este andar em círculos repisando uma e outra vez o caminho percorrido, sem conseguir sair do mesmo sítio, Em Morning Circles surge, desde o início, um ritmo regular denota o sonho de carácter real degradado, a obsessão. que será o motor de toda a peça. O seu balanço na mão esquerda, sobre uma nota pedal, com pequenos matizes harmónicos, Alice (2005) – Piano, Clarinete, Contrabaixo, Percussão determinará o espaço de acção sobre o qual incidirá a melodia. Bernardo Sassetti | Banda sonora do filmeAlice de Marco Martins Mantém-se a regularidade rítmica que induz, neste caso, um (disponível para audição através da ligação https://goo.gl/9XeWuv) espaço fixo e fechado. Esta dimensão espacial será preenchida, como primeiro ponto de fuga, por uma melodia sincopada de Nesta versão de Alice para quatro instrumentos, o piano direcção intervalar constante, só quebrada por pequenas notas dirige o discurso musical, destacado num primeiro plano, o de transição. Se este ritmo sincopado pode ser percebido como contrabaixo serve de apoio, o clarinete reforça a linha melódica primeiro ponto de fuga, é ainda mais marcante nos pequenos com notas longas (à excepção da duplicação da linha melódica desenhos agudos e nas notas graves que só aparecem de forma do piano) e o vibrafone terá as funções ora de pontuação, ora de fugaz. São pequenos pontos de fuga numa quadratura constante. eco de algumas notas da melodia do piano. No final da peça As frases musicais acabam no tempo fraco, sendo que a desaparecem o contrabaixo, o clarinete e o vibrafone, finali- pulsação no tempo forte é sempre assegurada pela mão esquerda zando a peça só o piano, algo que constata o que ouvimos desde num ostinato não obsessivo. O acompanhamento obedece a o início: o piano esteve quase sempre sozinho no discurso musi- uma lógica de simplicidade, tanto no desenho como na harmo-

glosas | número 13 | novembro | 2015 | 29 nia. Só pequenas variações ornamentam este movimento contí- mais rápido do acompanhamento é de enorme riqueza: há uma nuo, fazendo com que o simples e repetitivo se torne variado. alternância de alturas nas diferentes vozes, a percussão e as cor- Apesar da simplicidade, não é previsível, há sempre algo que das a silvar, sonoridades cruas, timbres guturais e um tremor de pode surgir sem quebrar o movimento contínuo e estável da fundo que tornam a audição angustiante. Chega a ser assusta- peça. Muito luminoso no registo agudo da mão direita, há qual- dor, como o cenário de um mundo perigoso e degradado carac- quer coisa de muito puro, de transparência, de leveza. O mini- terísticos da obsessão ou do sonho de carácter real degradado. malismo da melodia evoca uma canção para crianças: a beleza, a Em certo momento deste marulho sonoro sobressairá de magia, a inocência e a frescura da vida a despontar. novo a voz do piano, que se encaminhará para a repetição de uma O movimento da mão direita é mais circular se comparado nota, depois várias notas, de forma percussiva, para criar uma com o da esquerda, mais linear. A linha melódica em terceiras nova forma de diálogo entre os instrumentos não apenas de maiores recorda o dobrar dos sinos nas igrejas e o som a propagar- carácter melódico, mas também rítmico. A repetição percussiva -se pelo espaço; movimento circular das ondas sonoras, cujas res- da mesma nota levar-nos-á à terceira parte, em que acontece uma sonâncias evocam Avo Pärt. O baixo move-se à semelhança de um retoma do material inicial. No entanto, há uma tensão nunca ate- pêndulo. Este movimento torna-se hipnotizante. A modulação, a nuada, que se intensifica no final da obra sem ser resolvida. determinado momento, é passageira, regressando rapidamente ao Em síntese, o carácter de urgência no sentido da evolução, centro sugerido pela nota-pedal. Esta ideia é reiterada com recurso característico do sonho monoidético, é dado pela figura inicial. a uma oitava mais grave (que indicia uma profundidade ou o reco- Este será um motivo recorrente durante toda a obra. Há um nhecimento profundo do centro) e a maior acentuação dinâmica ambiente de inquietação e, de cada vez que esta figura rítmica e (maior quantidade de som, maior presença ou consciência do melódica se repete, de urgência para a acção. Numa primeira centro). A ordem e a regularidade da composição conferem uma parte trata-se, portanto, de um Sonho Monoidético. sensação de tranquilidade e certeza e não de repetição. A sensação Depois de uma pausa em 1’58, a música retoma, com a figura de serenidade, de paz interior, e não de obstáculo ou obsessão, tal- rítmica e melódica do início parecendo que vai terminar ao vez decorra do facto de que embora a melodia se repita, repete-se minuto 3. No entanto, a partir daqui gera-se um estado de sempre de maneira nova e aberta, e não fechada sobre si mesma; improvisação que pode parecer caótico pelo carácter surpreen- qualquer coisa que, apesar da repetição, flui. dente e não se consegue antecipar o que vai acontecer a seguir. Ambiente de devaneio onírico, calmo e positivo, que Há abertura, mas também angústia e receio, embora não dema- sugere um estado de plenitude; sensação de paz, que se vai man- siadamente pronunciados. Talvez seja mesmo o vislumbrar de tendo ao longo de toda a peça com novos ângulos através das algo novo, a transformação para que o sonho monoidético pequenas variações; interpretação muito doce e cristalina que aponta. No entanto, também há uma possibilidade de queda, de contribui para as sensações já descritas anteriormente; um transformação em sonho de carácter real degradado, sobretudo espraiar da essência, do “ser recebido”, na linguagem de Zam- a partir da insistência numa só nota em torno de 5’50 que se vai brano. Sente-se a espiral na ressonância: tempo em espiral. acentuando até diminuir em 6’50, quando se regressa à figura rítmica e melódica inicial. O sujeito reencontra-se (não se per- Reflexos. Movimento Circular deu de todo, não se degradou) e o carácter de urgência é reto- Bernardo Sassetti | Álbum Motion (2009) mado. O fim ascendente confere um toque de esperança (alter- (disponível para audição através da ligação https://goo.gl/cbv4at) nância: sonho monoidético – obsessão – sonho monoidético).

Enquanto em Morning Circles a existência de um centro e Do Silêncio – Revelação de uma repetição imprimiam uma sensação de tranquilidade e Bernardo Sassetti | Álbum Ascent (2005) certeza, como se a nota-pedal constituísse um espaço de reco- (disponível para audição através da ligação https://goo.gl/7RNKTf) lhimento para o qual se pode sempre voltar, um motivo repeti- tivo imprime uma sensação de inquietude, talvez pela maior A obra começa com uma interrogação: duas notas, a variedade cromática em menor tempo e pela sensação de arrit- segunda mais aguda do que a primeira, seguida de um tempo de mia, de solavanco, de sobressalto, de síncopa constante. Gera- espera, como se se esperasse que a resposta surgisse. Ouvimos -se um ambiente de alerta e inquietação, sublinhado pela repe- sons muito distantes uns dos outros. Lentidão, espaço. Há um tição do tema de forma obsessiva. Esse motivo recorrente no estatismo que só não se estabelece de forma absoluta graças à início converter-se-á em material germinal a partir do qual a ressonância. São quase silêncios: pianíssimos. No entanto, o composição se desenvolve. No entanto, este desenvolvimento silêncio nunca chega a instalar-se, apesar da escassez do som. pode acontecer por oposição: a partir de certa altura as melodias Todas estas características: muito espaço, a redução ao essencial. parecem resistir ao motivo-base a partir do qual nascem, o que O piano apresenta-se como chão fértil sobre o qual o vio- dá a sensação de que se constroem contra o motivo repetitivo. loncelo canta livremente. O canto do violoncelo torna-se, então, o Numa segunda parte, o registo grave do piano dá o apoio dos outros instrumentos. Instala-se um ambiente nostál- impulso necessário para a experimentação melódica do contra- gico e triste, que se vai intensificando com a sucessão de acordes. baixo, efeitos que se misturam com a percussão. Um impulso de Ouve-se o ostinato três vezes, a terceira já com o violoncelo. urgência e evolução característico do sonho monoidético. A Depois, a composição deriva por outro caminho, já não é ostinato, presença destes outros instrumentos cria um ambiente ventoso mas antes repetição da figuração. Os acordes no piano são sempre e agreste. Certos timbres metálicos sobressaem pontualmente e ascendentes, mas a linha no violoncelo é, de forma geral, descen- a sua natureza crua e desprovida de tratamento recorda o som de dente e com cromatismos, o que reforça o ambiente geral de tris- ferramentas (martelos, ferros). O improviso cria uma sensação teza, tensão e irresolução. de indefinição em relação ao que se segue e não se consegue adi- Juntam-se ao diálogo a percussão e o contrabaixo, num jogo de vinhar uma possível evolução, como se alguém andasse deso- texturas e registos, expandindo as coordenadas da paisagem sonora rientado e perdido no caos, de forma angustiante. O movimento que entrevíamos no piano. O violoncelo soa com um certo carácter

30 | glosas | número 13 | novembro | 2015 onírico, enquanto o piano continua a repetir um mesmo motivo, se o próprio Autor já se não encontra entre nós? Com a restrição que funciona como pontuação à voz do violoncelo. Assiste-se a uma da análise musical à música escrita, a música não notada fre- construção progressiva da peça, há um incremento da textura e quentemente não é analisada. Muito do jazz, por exemplo, não maior preenchimento rítmico, com a sensação de que conseguimos está escrito, ou, por vezes, existem apenas cifras. A maioria do observar o processo da sua criação. Por fim, o piano termina a obra, som que realmente ouvimos é improvisado, facto em virtude do já sem as vozes dos outros, novamente só. Inesperadamente qual uma grande parte destas composições não são considera- ouvem-se duas notas, como dois toques de um pequeno sino. Con- das como objectos de estudo. tinua à espera? Um polvilhar metálico da percussão desagua num Existe ainda um problema de outra natureza, com final suspenso, talvez aberto a uma transcendência. implicações sérias: a análise musical formal deixa de lado o som A obra está envolta num ambiente de melancolia, de propriamente dito. E o que é a Música sem som? Música desvi- penumbra. Embora haja espiral nas ressonâncias, é demasiado talizada? O que são partituras? Cadáveres musicais que o intér- triste e não atinge a plenitude. É um sonho de orexis, uma viagem prete porventura ressuscita? Na análise de partituras a inter- a um passado longínquo, algo misterioso. Saudade, nostalgia, tal- pretação fica excluída, a natureza alquímica do som desprezada. vez a promessa de uma revelação que ainda está por acontecer. Se pensarmos que a Música é um modelo da temporalidade humana por excelência21, acaba por ser uma grande falha deixar Da Noite ao silêncio | Álbum Ascent (2005) de atender à temporalidade na interpretação. Bernardo Sassetti (disponível para audição através da ligação http://goo.gl/bxRGg9) considera o momento de interpretação de uma obra como expressão máxima: Da Noite ao silêncio quase poderia considerar-se uma conti- nuação de Do Silêncio – Revelação. As duas obras são semelhantes Todos sabem (ou imaginam) que o desafio de comunicar, a esponta- pelo início difuso e tenso, que desencadeia uma dança criativa. neidade, a harmonia, o conflito de sons e ideias, assim como a ener- Há um carácter fragmentário, embora menos acentuado do que gia sob várias formas e feitios, serão sempre lugares-comuns quando na peça anterior. Os acordes lentos, numa paisagem sonora falamos de música, escrita ou improvisada. Interpretá-la no indefinida, vão tomando forma até dar entrada a um novo ins- momento é a expressão máxima do nosso caminho e a constante pro- trumento, o vibrafone, e logo de seguida ao violoncelo. cura de caminhos outros.22 As primeiras notas do piano caem como gotas de chuva e o violoncelo soa como um canto à Lua. As notas do violoncelo são Já no texto Sobre a música interpretada, o compositor coloca as sempre longas e sustentadas. O legato constante transmite uma seguintes questões: ideia de harmonia e apaziguamento, enquanto a alternância de notas agudas e graves, consonantes e com ritmo regular, cria no Poderei eu fazer uma análise consistente e fiel da minha música? E piano um campo harmónico límpido e redondo que descreve espi- poderá essa análise, ao mesmo tempo, trazer alguma novidade ou rais. É envolvida nesta espiral de som que se desenvolve a melodia interesse particulares? Sinceramente, acho que não. terna e cantabile do violoncelo. Há um lirismo na voz do violon- celo, quente e sonhador; também imbuída de uma certa tristeza, O pudor de um criador em analisar a sua própria obra é fre- como que evocando lembranças agridoces. O violoncelo é o quente e legítimo. A intimidade que experimenta poderia humano, o quente. Os outros timbres, translúcidos, sugerem a impossibilitar o distanciamento que toda a análise requer. pureza de uma noite profunda. O ambiente é nostálgico, sonhador. Quanto à segunda questão, importaria conhecer o interesse da A introdução da percussão provoca como que um acordar. análise musical e saber se esta é susceptível de alcançar um Quando a percussão se silencia a melodia do violoncelo regressa, conhecimento novo. agora mais serena, o acompanhamento do piano mais brilhante, De acordo com Langer e Burrows, a Música simboliza a com acordes menos graves, e a melodia termina em paz: o que temporalidade humana, constitui um acesso a esta esfera com- causava mágoa está agora sarado. O tempo desenvolve-se numa plexa que constantemente tomamos de forma redutora, tendo em espiral que avança recuperando o início da construção musical. conta apenas o tempo do relógio. Langer conscencializou-se do Tempo em espiral. problema de natureza inefável que a Música não resolve, antes mostra, exemplifica. Com a introdução da taxinomia do sonho de María Zambrano criaram-se condições para passar a ser possível Finale falar sobre estes outros tempos vivenciados pelo sujeito humano. Ao contrário do que acontece com a pulsação cardíaca, que é uma Só tenho certezas quando o instinto me diz que não tenho muito experiência particular, a experiência do tempo virtual da Música é tempo para pensar e a sequência dos sons deve ser um espaço de partilhável. A audição conjunta de uma obra traz os ouvintes a um espontaneidade criativa e uma constante entrega ao prazer de tocar. universo comum, um agora colectivo: Bernardo Sassetti Sound spaces are short-lived inflated containers like soap bubbles, 23 Até agora não são conhecidas técnicas para lidar com a defined by the common resonance they contain. música apenas ouvida. As transcrições, por seu lado, criam pro- blemas de vária ordem. A pulsação sente-se de forma tão íntima Neste espaço de ressonância comum, os músicos e musi- que a notação se torna muito discutível20, principalmente cólogos que participaram neste projecto adquiriram ferramen- quando o próprio compositor não a escreveu. Quando a ausên- tas que lhes permitiram expressar-se sobre a experiência tem- cia de escrita foi propositada, que legitimidade existe em aden- poral que uma obra musical específica induziu. A possibilidade trar-se por esse território? Ou, pelo contrário, quando um de falar sobre algo torna-o mais presente, a palavra é reconhe- compositor escreveu muito, variadíssimas versões da mesma cedora de existência. Daqui decorre que a investigação que rea- obra, quem tem autoridade para decidir sobre a versão oficial, lizámos, ao nomear temporalidades virtuais experimentadas,

glosas | número 13 | novembro | 2015 | 31 contribuiu para a sua consciencialização. Passou a ser possível Universidade Nova de Lisboa, 2008, pp. 97-116; EADEM, “Al Encuentro del Ser referir estados temporais do humano que a Música tem o poder recibido: la Fenomenología del Sueño de María Zambrano en el asesoramiento ético y filosófico”, Aurora VIII (2007); EADEM, “Estética y Sueño”, Aurora VI de exemplificar e o ouvido atento a capacidade de reconhecer. (2004), pp. 44-50. Os músicos que formaram parte deste grupo de traba- 5 Os resultados desta investigação foram apresentados pela primeira vez na lho não tiveram acesso a nenhuma partitura nem a nenhum 32nd Annual Conference of the International Association for the Study of Dreams texto de Bernardo Sassetti. No entanto, pudemos constatar (Virgínia, E.U.A.), em Junho de 2015, numa comunicação subordinada ao título “The Depth of dreams in Music and Philosophical Practice”. como encontraram – ouviram – nas suas obras características 6 “In lucid dreams, the frontal lobe comes back into the picture as in waking.” musicais que o compositor enuncia: Hobson, op. cit., p. 32. 7 M. Zambrano, O Sonho criador, Lisboa, Assírio e Alvim, 2006, p. 95. Como muitos compositores e intérpretes, não me é fácil traduzir por 8 S. Langer, Feeling and form, New York, Scribners, 1953, pp. 112-113. 9 Bernardo Sassetti, “Sobre a música composta”, Ascent. palavras a música que imagino interiormente. Posso, no entanto, refe- 10. Langer, Problems of Art, New York, Scribners, 1957, p. 41. rir o meu método de composição e interpretação, baseado essencial- 11 Eduard Hanslick, Do Belo Musical, Lisboa, Edições 70, 2002, p. 42. mente na construção de ostinatos – ideias obsessivas e linhas melódi- 12 Langer, Feeling and form, p. 114. cas que me “perseguem”, mesmo que eu esteja longe do piano; estas 13 Para exemplos oníricos de cada uma destas categorias, vide M. J. Neves, “Phenomenology of dreams in Philosophical practice”. surgem como determinação da estrutura e do desenvolvimento de cada 14 “When the subject goes to sleep and enters REM and starts to dream, the 24 uma das peças, podendo ser (ou não) objecto de infindas variações. frontal lobes are not reactivated. No wonder you can not think, no wonder you can not remember, no wonder you can not recognize that you are dreaming. You de forma alguma esgotar a are completely controlled by the automatic activation of the brain and it is Não pretendemos neste estudo coming from the back of the brain.” (Hobson, op. cit., p. 32). apreciação de uma obra, tarefa impossível por natureza. Os 15 Já Freud, em Die Traumdeutung, publicado em 1900, dedica um capítulo aos objectos artísticos têm vida própria e propiciam infinitas possi- sonhos induzidos por um estímulo sensorial exterior. Compila dados de outros bilidades de acesso. O objectivo foi bem mais modesto: introdu- cientistas que também estudaram este assunto, como G. F. Meier (Versuch einer zir a taxinomia do sonho de Zambrano como uma possibilidade Erklärung des Nachtwandelns, Halle, 1758), R. Macnish (Philosophy of Sleep, Glasgow, 1830), P. Jessen (Versuch einer wissenschaftlichen Begründung der Psychologie, , de categorizar o tempo virtual da Música. Ao privilegiar o som, 1855), A. Garnier (Traité des facultés de l’âme, contenant l’histoire des principales théo- esta técnica poderia permitir o acolhimento de obras cuja nota- ries psychologiques, Paris, 1872), F. W. Hildebrant (Der Traum und seine Verwerthung ção é inexistente. Por outro lado, talvez pudesse vir a ser desen- für’s Leben, Leipzig, 1875) e J. Volket (Die Traum-Phantasie, Stuttgart, 1875). volvida como complemento da análise musical formal, aco- 16 “Because they understand that the dream world is purely mental, lucid drea- mers can exert a remarkable degree of control over what happens in dreams, lhendo as componentes alquímicas do som, que ficam relegadas including powers of transformation (e.g., causing dream figures and objects to para segundo plano com a análise restrita à partitura. appear or disappear at will) and violation of the laws of physics (e.g. flying) that would seem magical, if not impossible, in the physical world.” S. Laberge, Música composta ou improvisada, condicionada ou absoluta, é uma “Exploring the world of lucid dreaming”, Aquém e Além do Cérebro IX (2012), p. 25. 17 “Aparición de una unidad de sentido en que el tiempo sin desaparecer ha questão cada vez mais sem limites. Talvez seja o reflexo da nossa vida; sido transcendido por esta unidad en que el principio está ya informado por el talvez seja a realidade juntamente com o universo dos sentidos. Porém, fin. Este último en cuanto creación y pensamiento es intransferible como los mais do que a própria realidade, é o espelho das coisas que dela imagi- sueños.” Zambrano, El Sueño creador, p. 27. namos: do silêncio e de regresso a ele, as imagens em forma de música 18 O disco foi dedicado por Bernardo Sassetti a sua sobrinha Rita Wemans, que, 25 com apenas 20 anos, faleceu num acidente de viação. Transcrevemos o texto que terão sempre um carácter abstracto, suspenso, inacabado... o compositor partilhou, na altura, na sua página de facebook: Há sempre uma imagem... / Sempre esta imagem de nós / imperfeitos, inacabada- As categorias da fenomenologia do Sonho de María mente longe dos sonhos. / E há sempre sonhos / sonhos doces, tão mágicos, tão desejá- Zambrano, quando cruzadas com uma selecção de parâmetros veis / mas tão longe do que somos e temos. / Há sempre outros / sempre esses outros que nos avaliam/que nos fazem corar, sorrir, amar, chorar. / E há sempre nós... / nós boni- musicais passíveis de serem reconhecidos por qualquer um, sem tos, nós feios, /nós sozinhos, nós amados... / Quem me dera que houvesse / sempre necessidade de conhecimentos musicais específicos, poderiam uma imagem de nós nos / sonhos dos outros! também ser muito benéficas para o amante de Música aprofundar Para a Rita, imagem eterna no SONHO DOS OUTROS. Esta versão é dedicada aos pais, a sua audição. Existem qualidades auditivas, minúcias de atenção Mimi e Luís, e aos irmãos, Tiago e Nuno. A Rita está sempre connosco. Todos os dias... 19 Nas notas que acompanham este CD são citados dois versos do poema A e apreciação estética que se podem desenvolver mesmo sem o Dream within a dream, de Edgar Allen Poe (1849): “All that we see or seem / is ensino formal. Em qualquer caso, o que aqui pretendemos explo- but a dream within a dream”. rar foi a possibilidade de falar sobre a sonoridade da Música, a 20 “Musical time is notated with remarkable imprecision and ambiguity. Com- alquimia do som que se nos oferece na sua virtualidade temporal. posers, more often than not, rely upon qualitative rather than quantitative directives to inform performers of intended tempo. And if the vagaries of such terms as Adagietto (somewhat slow), or Lentissimo (slower than slow) are not ambiguous enough, terms such as Allegro ma non troppo (fast, but not too fast), or terms that connote speed through emotion such as Allegro appassionato, Bravura, or Agitato, or terms that confuse complexity with speed, such as Tempo semplice, oblige the performer to imagine temporality from the composer’s perspective notas through guesswork. My favorite temporal marking is the term Tempo rubato, literally “stolen time,” in which duration is added to one event at the expense of 1 “El estado de su eño es el estado inicial de nuestra vida, del sueño desperta- another. Long after German inventor Johann Maelzel patented the metronome mos; la vigilia adviene, no el sueño. Abandonamos el sueño por la vigilia, no a la in 1815, composers continued to persistently avoid strict measures of time in inversa.” M. Zambrano, El Sueño creador, , Turner, 1986, pp. 14-15. their scores, instead relying primarily on adjectival description.” J. Berger, How 2 “Eles não sabem, nem sonham / que o sonho comanda a vida.” António Music hijacks our perception of time, 2014 (à consulta através da ligação http://goo. Gedeão, “Pedra Filosofal”, Movimento Perpétuo, Coimbra, Atlântida, 1956. gl/OPwjPY). 3 A. Hobson, “Dream consciousness”, Aquém e além do cérebro IX (2012), p. 25. 21 D. Burrows, Time and the warm body: a musical perspective on the construction of 4 Maria João Neves, “Phenomenology of dreams in Philosophical practice”, Time, Boston, Brill, 2007, p. ix. Journal of the American Philosophical Practitioners Association IX (2014), pp. 1475- 22 B. Sassetti, “Sobre a música interpretada”, Ascent. 1486; EADEM, “Método RVP, Raciovitalismo poético. Fenomenologia do sonho 23 D. Burrows, Time, Speech and Music, Massachusetts, University of Massachu- na prática filosófica”, Studia XIV (2011), pp. 266-275; EADEM, Método RVP setts Press, 1990, p. 36. (Raciovitalismo-Poético) – Prática Filosófica no Quotidiano, Lisboa, Instituto Pia- 24 B. Sassetti, op. cit. get, 2009; EADEM, “Fenomenologia do sonho”, in AaVv., Faces de Eva, Lisboa, 25 IDEM, ibidem.

32 | glosas | número 13 | novembro | 2015 A propósito do Fado Burnay

madalena moreira de sá e costa | TEXTO

Sempre estivemos, minha Irmã e eu, empenhadas na divul- gação da Música e dos músicos portugueses. Procurávamos que os nossos programas incluíssem peças de autores muitos deles naturalmente nossos contemporâneos, de quem guardamos tão boa memória: Joly Braga Santos, Armando José Fernandes, Vic- tor Macedo Pinto, Cláudio Carneyro, Corrêa de Oliveira, para além de outros mais modernos ou mais antigos... Já nas nossas estadias na Alemanha, em 1936, 1937, 1938 e 1939, em que a Helena frequentou os Cursos de Edwin Fischer (e eu os de Paul Grümmer), fizemos também audições nas rádios com bastante destaque para autores portugueses. Na Schubert-Saal, em Maio de 1966, Helena fez um concerto preenchido, exclusivamente, com obras de compositores por- tugueses: Sousa Carvalho, Armando José Fernandes, Croner de Vasconcellos, Ivo Cruz, Luiz de Freitas Branco, Luiz Costa, Lopes-Graça, Leon Cassuto e Cláudio Carneyro! Houve, natu- ralmente, um grande empenho quanto às obras de meu Pai. Luiz Costa foi sempre muito tocado. E preocupou-nos muito a edição das suas obras, editadas com muito cuidado, que minha Irmã em particular achava mais importantes (lembro-me de que ainda há pouco tempo, talvez na década de cinquenta, íamos entregar obras para serem passadas por um copista que dese- nhava muito bem todos os caracteres!). Mais tarde, o saudoso Professor Fernando Jorge Azevedo ajudou a preparar, num longo trabalho, a edição de 17 obras de meu Pai na Internet – através da AVA –, muitas delas ainda não publicadas. Isto acon- teceu antes de Janeiro de 2012. Frontispício da edição do Fado Burnay (Renascimento Musical, Porto, 2003) Nessa ocasião, foi organizado um concerto em Espinho, Luiz Costa inédito, onde foram reveladas duas novas obras descobertas pela Doutora Christine Wasserman Beirão, que muito trabalhou lhámos na revisão do texto da compositora Marina Pikoul. para a publicação, pela Universidade Católica do Porto, do catá- Esta peça – que foi também em tempos orquestrada pelo logo completo das obras de meu Pai: uma segunda sonata e um Maestro Pedro Blanch e transcrita para dois pianos por Armando segundo quarteto, maravilhosamente tocados por Paulo Gaio José Fernandes – é, no dizer de Manuel Ivo Cruz, “uma bela Lima, com Pedro Burmester, e pelo Quarteto de Matosinhos. obra”, e tem, na opinião de um dilecto aluno de minha Irmã, um Também já há muitos anos que pensava poder contribuir “estilo delicioso”... para enriquecer o repertório português para violoncelo. Deste modo, pude também relembrar o relevantíssimo tra- Lembro-me de que, em 2004, consegui, com a colaboração balho de Manuel Ivo Cruz na recolha e divulgação do património da Doutora Elisa Lessa, a edição “para os pequenos violoncelis- musical, um acervo do maior interesse devidamente inventa- tas”, pela Universidade do Minho (Centro de Estudos da riado e catalogado, agora disponível para consulta na Universi- Criança), de duas peças de Victor Macedo Pinto – Le Petit Rien e dade Católica do Porto. E, do mesmo passo, pude contribuir Mélodie – e o Arioso e Capricietto de Cláudio Carneyro. para enriquecer o repertório de música portuguesa para violon- Depois, em muitos momentos, fui escolhendo peças de vários celo. O violoncelo, esse companheiro das nossas vidas! compositores, pensando fazer eu mesma as transcrições. Final- Que interessante foi poder ouvir finalmente, graças àqueles mente, no ano passado, decidi que tinha chegado o momento. dois Colegas, depois de uma viva troca de impressões e muito Escolhi, então, o Fado Burnay, peça para piano de Eduardo belas sonoridades, a versão final! A eles muito agradeço o seu Burnay (aluno de Rey Colaço), publicado em 2003 pelo querido esforço, no meio de tantas e tantas ocupações! e saudoso Amigo Manuel Ivo Cruz, numa das preciosas edições Espero que os violoncelistas apreciem esta versão do Fado que me oferecera do ‘Renascimento Musical’. Burnay tanto como eu a apreciei e que, porventura, a achem Assim, encomendei, em Setembro desse ano, a sua transcri- digna de divulgação nos seus concertos. ção para dois violoncelos e, com a preciosa ajuda de dois bons Amigos, os violoncelistas Jed Barahal e Bruno Cardoso, traba- Largo da Paz, 15 de Outubro de 2015

glosas | número 13 | novembro | 2015 | 33 homenagem a madalena moreira de sá e costa no centenário do seu nascimento Através da publicação desta colectânea in honorem Madalena Moreira de Sá e Costa associa-se a Glosas às celebrações do cen- tenário da eminente violoncelista portuense, por quanto o seu percurso biográfico e musical representa para a História da Música em Portugal no século XX, nos domínios da interpretação, da pedagogia musical e da própria composição para violoncelo. Neste ensejo, contou a revista com a colaboração de diversas personalidades de especial significado no percurso da sua longa e rica acti- vidade artística, que desejaram associar-se a esta homenagem através da publicação de testemunhos pessoais. A Direcção e o Conselho Redactorial da Glosas não poderiam agradecer mais reconhecidamente à Senhora Prof.ª D. Madalena de Sá e Costa a generosidade com que acedeu à realização desta entrevista, bem como a cedência dos relevantíssimos testemunhos iconográficos que acompanham o texto aqui impresso, em particular a selecção do autógrafo inédito de Guilhermina Suggia, que a Glosas muito se honra de publicar. Por fim, Catarina Furtado, Nuno M. Cardoso e José Carlos Araújo desejam aqui expressar tam- bém os seus agradecimentos por inumeráveis gentilezas no plano pessoal ao longo da preparação desta homenagem. A entrevista decorreu a 20 de Agosto de 2015, em Fralães, na Quinta da Porta, casa natal de Luiz Costa.

ENTREVISTA somando, aos poucos, e descobrindo que os tempos que passa- ram foram muitos; e, portanto, ela foi descobrindo que, afinal, Nuno M. Cardoso e José Carlos Araújo | entrevista passou muito tempo sobre muita coisa. Isso é um dado que e transcrição denota a cultura que ela absorvera. Catarina Furtado | fotografia Ela falava bem o alemão (o alemão era natural nela), e há uma coisa que eu lhe queria dizer – vou ver se consigo –, que ela não só Senhora D. Madalena, eu começava por agradecer- acompanhava os tempos que já tinham passado, mas tinha cons- -lhe receber-nos nesta casa tão ilustre, que viu nas- ciência de que aquele tempo de que se tratava era um tempo de cer Luiz Costa, em Monte de Fralães. muita importância; e, portanto, ela pedia muita atenção para esse É verdade, é verdade... não tem nada que agradecer, porque foi tempo: era um tempo de muita importância, em que se resolviam assim uma abertura que nos trouxe uma alegria muito grande, assuntos de muita importância para toda a gente: e assim agia. devo dizer-vos isso. E era uma pianista de enormes qualidades... Muito obrigado! Para começarmos, retiraria do Pianista maravilhosa...! livro de memórias e recordações que a Senhora Pro- fessora escreveu uma frase muito curiosa: “Quando Tocou com Casals, com Guilhermina Suggia e com o Pai, nasci, creio que se ouvia música por toda a casa.” Moreira de Sá, e obras de alguma dificuldade, como o Sim! Sim, é verdade, é... ouvia-se mesmo: na época ouvia-se Trio em Si bemol de Schubert, ou o Trio de Alkan... mesmo por toda a casa. Vou explicar bem. Eu nasci em 1915 e, Exactamente, exactamente! Agora tocou um aspecto muito entretanto, deu-se a mudança da nossa casa antiga, que era ao pé importante da sua personalidade: é que ela estava apta a tocar da Capela das Almas, para o Largo da Paz, onde ficámos cinquenta coisas muito difíceis, a ter uma leitura muito boa; punha-se-lhe e tantos anos... porque eram tantos os alunos de Luiz Costa que se um papel com muitas, muitas indicações e ela assimilava. Por- criou uma abertura para a Música – era uma casa maior, uma casa, tanto, essa cultura deu-lhe a possibilidade de abranger rapida- digamos, mais aberta à Música, porque tinha várias salas, e, mente – ela era muito rápida – muita coisa. Muita leitura, muita quando eu nasci, realmente havia muitas salas e mais espaços e dificuldade; é a ideia que eu tenho dela. mais personalidades; foi por isso que eu referi que se ouvia música por toda a casa. Era uma alegria muito grande...! E conseguiu desenvolver uma carreira própria, para- lelamente à vida familiar, e paralelamente também Senhora Professora, permita-nos que façamos uma à carreira tão admirável de Luiz Costa. pergunta talvez mais invulgar, mas sobre um Sim, exactamente. Teve muita importância para todos nós, na assunto de que nos interessava muito pedir-lhe que nossa cultura, na nossa maneira de ver as coisas... é isso mesmo: nos falasse, se assim o desejar, que é da importância acho que definiu muito bem! de sua Mãe, Leonilda Moreira de Sá, na formação da sua personalidade musical. Senhora Professora, podemos aproveitar estar- É uma figura muito especial, e eu gostei muito até de que me mos a falar de sua Mãe, Leonilda Moreira de Sá, tivesse feito essa pergunta, porque era uma mulher fora do para evocarmos uma figura que teve decerto muita comum para a época. Era uma mulher inteligentíssima, cultís- importância nestes anos da sua juventude e que foi sima... Leonilda: Leonilda! Tinha uma cultura muito vasta, por- mestre de ambos – quer de Leonilda, quer de Luiz que era filha de Moreira de Sá, porque viveu muitos anos com Costa –, o grande pianista Vianna da Motta? Moreira de Sá e tinha muito a maneira de pensar do Pai; e essa Exactamente! Sim, acho que minha Mãe, até passando por dife- mulher foi uma mãe e uma mulher extraordinária para a sua rentes personagens, atingiu – atingiu – Vianna da Motta. É inte- época. Para poder caracterizá-la bem, eu tenho de dizer que ela, ressante essa pergunta, porque Vianna da Motta veio muitas mentalmente, acompanhava os tempos que passaram e foi vezes de Lisboa ao Porto; mas era uma viagem grande, era uma

34 | glosas | número 13 | novembro | 2015 E pelo Orpheon Portuense viriam a passar as maiores figuras do mundo da Música de então... É verdade! Wilhelm Backhaus, Edwin Fischer, Wilhelm Kempff… montes, montes de nomes. Maurice Ravel, já no tempo de meu Pai...

E a Senhora Professora recorda ainda a primeira audição em Portugal da Sonata para violino de Ravel, não é verdade? É verdade que me lembro, e do burburinho que isso causou, do burburinho entre o público...! [risos] Porque é muito arrevesado para o ouvido, é muito estranho... e eu lembro-me de como era estranho, estranho o som, os acordes... eu era miúda, tinha nove anos, dava por ela; e, então, começou a ouvir-se aquilo, o público começou a estranhar, começou a mexer-se mais, começou-se a murmurar coisas ao ouvido do próximo, foi muito interessante.

E todas estas figuras ímpares da Música mundial pas- savam pelo Largo da Paz, uma casa sempre cheia deste viagem que se fazia não com muita facilidade, e que se olhava, público impressionante... portanto, como uma grande viagem: não de três horas, mas de Isso é verdade...! muito tempo. E meu Avô convidou Vianna da Motta, logo que ele veio da Alemanha, a vir ao Porto, porque estava muito interes- Que influência tiveram estas visitas do Largo da Paz sado em conhecer a opinião dele, quando estava a fundar o no crescimento das irmãs Sá e Costa? Orpheon, sociedade de concertos, pode-se dizer, única, excep- Pois foi, foi assim... [risos] Parece que não foi verdade, mas foi: cionalmente única – porque consistia em trazer o que se passava mas foi...! E agora dá-me vontade de rir... foi assim, porque lá fora para aqui, o que foi uma novidade que nos espantou a estávamos sempre em contacto com a Música, era por isso... todos. Nós olhávamos muito para o que se passava lá fora: mas porquê? Porque lá fora havia muita coisa, muita coisa impor- E não só figuras do meio musical passavam por lá, tante, e a gente, aqui dentro, num país pequeno, um bocado mas grandes figuras das Artes Plásticas e da Litera- fechado, não sabia o que se passava lá fora; também era um tura: Teixeira Lopes, Correia d’Oliveira... bocado sobre esse aspecto: é que Portugal era fechado, e era Sim, sim: exactamente...! preciso começar a abri-lo e a compreender o que se passava lá fora – e, então, meu Avô mandou vir o que se passava lá fora. Mesmo um pouco antes, no diário conservado de Leo- nilda Moreira de Sá, estão registados os encontros Podemos, assim, quase afirmar que há um Porto com figuras cimeiras da Cultura da época, como Antó- musical anterior a Moreira de Sá e um Porto musi- nio Arroyo... cal posterior a Moreira de Sá, totalmente diferen- António Arroyo é uma figura fundamental... António Arroyo: tes? Foi uma figura de extraordinária importância muito bem dito, muito bem dito! António Arroyo vivia em Lis- no meio musical portuense, com a fundação do boa e era um homem de uma inteligência, de uma cultura, muito Orpheon Portuense, em 1881, e do Conservatório de sabedor do que se passava lá fora... António Arroyo vinha muitas Música do Porto, em 1917. vezes ao Porto para falar com meu Avô – e, então, desabrocha- É isso, exactamente! Ele sabia que o País estava morno – igual, vam: começavam a falar disto, daquilo, daqueloutro... e desa- muito igual... –, e que se passava tanta coisa, ao tempo, na Música, brochavam! E foi assim, e foi assim, foi assim... que era preciso dar um certo encontrão e abrir uma porta: e essa porta foi aberta pelo Orpheon, que era uma experiência musical Senhora Professora, se nos permite uma questão pes- com a voz. Orpheon: Orpheon quer dizer “muita gente junta a can- soal, como era para si e para sua irmã, Helena, conhe- tar”; e, então, pensou – pensou, e bem – que era preciso começar cer estas figuras? Por exemplo, como era, para uma por aí... e falou com os amigos – tinha muitos amigos, era muito menina de nove anos, a sensação de conhecer Mau- bom, o meu Avô Moreira de Sá era uma pessoa muito boa, com um rice Ravel? fundamento muito bom, muito bom, muito bom: a Bondade É verdade; é isso... nós dizíamos assim: “Mas então, então há acima de tudo –, lembrou-se de lhes propor, e a pessoas que até muita gente que a gente não conhece; e a gente conhece tanta nem se interessavam muito pela Música, para abranger esse gente... como é isto? É assim, é assim...”, dizíamos umas para as mundo inteiro, mandar vir artistas estrangeiros a Portugal, para outras; “É assim...” Então, começámos a ver que era um mundo que nos viessem contar como se faz: e foi assim, tal e qual. – era um mundo de coisas ali, era um mundo de coisas aqui, era Veio, primeiro que tudo, um Senhor que era uma espécie de Pre- um mundo de admirar! E as duas – eu falava muito com a minha sidente da República de um país estrangeiro... Paderewski! Era irmã, e a minha irmã comigo... faz-me muita falta... porque dis- um pianista feito, e era muito para a Música. E foi ele, exacta- cutíamos muito, falávamos muito, já por influência, talvez, da mente, que fundou uma sociedade... veio ao Porto, temos a foto- nossa Mãe –, então, sabíamos muita coisa: “Mas, então, como é grafia em grande – não a temos aqui, mas existe em tamanho isso?”, perguntávamos uma à outra, e vivíamos realmente assim grande a fotografia de Paderewski. E foi assim que começou o como um sonho, um sonho, uma coisa imensa. Orpheon Portuense. Há uma coisa importante, que é as revistas: as revistas musicais

glosas | número 13 | novembro | 2015 | 35 que nós recebíamos. Recebíamos Le Monde musical1, que era E que obras eram as mais interpretadas pelo duo Sá e uma preciosidade: trazia os concertos todos que se dava em Costa? Como faziam os seus programas? Paris. E tínhamos o Allgemeine Musikzeitung2, que era alemão; Bem, eram variadas: tocávamos italianos, alemães, isto, aque- portanto, era o francês e o alemão, que nos impressionavam e loutro... porque éramos levadas pela Música, tocávamos um que recebíamos de um lado e de outro. O francês e o alemão: repertório desde Boccherini, Tartini, os italianos... é engra- tudo o que se passava no mundo; era assim muito engraçado, çado, é algo que nos faz agora sorrir... muito engraçado... [risos] E isso mexia connosco: “Em França foi isto assim e assim, e na Bélgica também, ao mesmo tempo: Senhora Professora, podemos pedir que retroceda- mas que meios musicais são esses...?” E discutíamos muito mos um pouco para nos falar de um instrumento estes pormenores. As revistas, assim como a Glosas hoje tem muito importante ligado à figura de Moreira de Sá, muita importância... é uma revista, não é...? que é o violino Guadagnini, e que nos leva a uma his- tória em que participou Pablo de Sarasate? Exactamente. Embora não possamos, naturalmente, Ora bom: um dia veio ao Orpheon um grande violinista e meu comparar a importância da Glosas ao Allgemeine Avô pensou que poderia pedir-lhe que procurasse em Paris, por- Musikzeitung... que Paris era assim como o nome de uma cidade fantasmagórica, Mas é assim, é assim uma coisa que agarra, que imprime, que e uma vez que ele próprio não podia procurá-lo – “Mas talvez ele toma conta das pessoas...! possa”, pensou ele –, um violino que seja muito bom, muito A Senhora Professora diz por vezes que era uma bom, e que lhe fosse útil para poder, aqui, fazer alguma coisa. Ele época em que as pessoas tinham mais tempo... respondeu a meu Avô que iria procurar. E foi: foi mesmo procu- Tinham mais tempo: é verdade isso, é verdade. Temos de reco- rar. Então, encontrou e mandou, na volta do correio, uma carta a nhecer que era verdade. dizer “Já arranjei o violino: é um Guadagnini. É um instrumento solista, para grandes solistas.” E a minha família ficou muito Por exemplo, para visitar o atelier de Mestre Teixeira espantada por saber que tinha um grande, grande violino, indi- Lopes: estou a lembrar-me da mão de Backhaus de Tei- cado para tocar solos! Mas, mais tarde, como não precisasse do xeira Lopes... instrumento, porque não havia ninguém que o pudesse tocar, Isso é verdade. Havia um sossego que pairava entre as pessoas: e pensou em vendê-lo; e, como era bastante valioso, lembrou-se havia tempo para tudo. da Fundação Calouste Gulbenkian. Falou ao Director, que, ao saber o preço, disse: “Não é muito, porque isso é para um grande E a Senhora Professora considera esse tempo, essa violinista. É melhor comprar esse instrumento!” E assim foi: disponibilidade, necessárias – ou, diria mesmo, indis- propôs à família comprar aquele instrumento, que custava, pensáveis – à prática e à reflexão musical e artística? segundo ele, pouco... e assim foi. Por isso se vendeu. Indispensável: indispensável. Eu lembro-me dos primeiros tem- Por um lado, foi bom; por outro, foi mau, porque não havia, pos em que comecei a ensinar – 1940. Fui convidada para dar depois, quem pudesse tocar o instrumento, que assim ficou lições no Conservatório, e lembro-me da sensação de ir para o guardado e sem muita utilidade... mas, bom, ficou mais perto, Conservatório, de dizer assim: “Mas, então, como é: eu vou ensi- mais perto do Porto do que de outro modo. nar? Eu vou ensinar...? O que é que eu vou ensinar? Vou ensinar Música...?” Fui: fui ensinar Música. E o que eu descobri, e desco- Senhora Professora, se nos permite, regressamos bri por mim própria, foi que a Música era desconhecida; o junta- ainda a um episódio que nos conta, e pensando que rem-se as pessoas para fazerem Música, para cantarem, para temos connosco o livro de memórias que publicou em ouvirem O Cravo bem temperado, que anos antes – séculos antes – 2008, mas que gostaríamos muito de o poder lem- tinha composto Bach; todas as notas do cravo eram elementos de brar também a quem, lendo, mais tarde, esta entre- algumas das maiores belezas do mundo. E, portanto, Bach, que vista na Glosas, possa não ter acesso a este livro viveu em 1685, tinha composto O Cravo bem temperado, uma coisa magnífico: que era justamente com esse violino Gua- absolutamente inaudita. O Cravo bem temperado é uma beleza, é dagnini que, muitas vezes, em criança, invertia a uma beleza... todas as notas têm uma concepção de beleza, que é posição e o tocava como se fosse um violoncelo... preciso conhecer bem o cravo para poder compreender. É verdade! [risos]

E ouvindo falar n’O Cravo bem temperado, é impossí- Portanto, desde muito cedo que tinha consciência de vel não lembrarmos a sua grande intérprete portu- que o seu instrumento seria o violoncelo: é verdade? guesa, Helena Sá e Costa. É verdade... neste momento, em que penso que toquei um Gua- É verdade, isso é bem verdade... disse Pedro Burmester que dagnini como se fosse um violoncelo... era uma sonoridade Helena Sá e Costa foi a primeira que tocou, e sabia tudo de cor, extraordinária! Eu, que tinha nove anos, ou dez, sonhei com sabia tudo de cor...! É formidável, as tonalidades; os sons...! aquele som. Eu brincava, por assim dizer – pegava nele, tirava-o da caixa com muito cuidado, porque minha Mãe recomendava E a Senhora D. Madalena manteve durante perto de muito cuidado com aquele instrumento –, e começava a tirar uns cinquenta anos um duo com sua Irmã, que se apresen- sons espantosos...! É verdade isso, é verdade... e isso formou tou pela primeira vez em 1931, no Teatro Gil Vicente: muito a minha concepção do som. Obrigada por essa pergunta. como foi a relação deste duo ao longo de tantas déca- das, percorrendo Portugal de Norte a Sul? Muito obrigado por nos recordar esse episódio! E, Disse agora uma coisa que eu não tinha pensado, mas que assim assim, envereda a Senhora Professora pelo estudo é: são belezas da Música que, assim foi, nos apanharam. Apa- do violoncelo. Gostaríamos de pedir também que nos nharam-nos...! falasse um pouco sobre os mestres que teve em vio-

36 | glosas | número 13 | novembro | 2015 loncelo e a influência que tiveram na sua formação. Tive vários. Todos eles tiveram muita importância na minha formação, porque eu adorei ouvir todos. Creio também ter ouvido todos os que se podia ouvir, que tocavam em público: Pierre Fournier, Casals, Suggia, Paul Grümmer, Maurice Maréchal, enfim, todos os da época de 1900. Todos foram importantes, muito importantes uns como outros; porque, como digo num sítio qualquer – não me recordo onde –, Suggia Dedicatória autógrafa faz lembrar um violoncelista dos maiores, como Casals, porque de Guilhermina Suggia ela foi fenomenal, ela foi fantástica na sua Arte! para Madalena Sá e Costa (Porto, 18-I- 1930): Á minha ami- A Senhora Professora, no seu livro de memórias e guinha Madalena dese- recordações, reconhece-se muito devedora dos ensi- jando um dia ouvil-a namentos de Suggia... em [Brahms, Sonata É verdade. Vinha possuída de um fenómeno raro, e que nos des- para violoncelo e lumbrou, que nos deslumbrou até muito tarde – porque ela tocava piano n.º 2, Op. 99, cc. 195-199] na mesma com meu Pai as duas sonatas de Brahms de uma maneira... foi athmosphera de felici- pena não haver gravações, para que nós pudéssemos ver como dade que hoje temos. tínhamos uma artista que tocava assim as sonatas de Brahms...!

E recorda-se de como se organizavam as aulas de Gui- mina Suggia legara ao Conservatório. A Senhora lhermina Suggia? Professora continuou, durante muitos anos, a Lembro-me perfeitamente: como se fosse hoje. Ela pegava no defender que esse instrumento deveria ser tratado violoncelo e transformava o violoncelo, como se fosse uma com grande dedicação e que lhe deveria ser dado um orquestra! E, depois, eu tenho muita pena de que não tenha papel de elevada dignidade na vida musical portu- havido um instrumento que captasse o duo de piano e violoncelo guesa: não é assim? com meu Pai, porque era uma coisa admirável: era melhor do Exactamente: empenhei-me muito; empenhei-me muito e que uma orquestra! [risos] É verdade isso, é verdade... escrevi até uma carta, assinada por cinquenta – cinquenta! – violoncelistas ao Presidente da Câmara Municipal do Porto. Nós gostaríamos de pedir que partilhasse connosco uma reflexão sobre como os mestres que teve em vio- Que conselhos teria a dar às instituições que têm a loncelo, desde Suggia a Paul Grümmer, a Cassadó, a seu cargo instrumentos de grande valor? Quais são influenciaram, depois, como mestra de tantos discí- os cuidados, por exemplo, de que um violoncelo his- pulos que veio a ter no Conservatório do Porto. tórico necessita? Como foi transpor a sua posição de discípula de Há aspectos instituídos para o cuidado dos instrumentos. Pri- grandes violoncelistas para o ensino que ministrou meiro está o ambiente: tem de haver uma temperatura muito durante tantos anos? igual, que está indicada internacionalmente, é preciso que seja Eu devo dizer, com a verdade da verdade, que tive muitos alunos muito bem tratado, assim como foram o Montagnana e o Stradi- com um talentão extraordinário. O Paulo Gaio Lima é extraordi- varius de Suggia, o que se conseguiu com muito empenho e se nário! São artistas que estão ao nosso lado – ao nosso lado –, que procurou expor ao Senhor Presidente da Câmara. Mas, infeliz- tocam todos os dias connosco, que a gente ouve muitas vezes. mente, passou um ano sem uma resposta. Devo dizer que fiquei Portanto, era uma realização de uma classe que eu considerava muito sentida, muito desgostosa por esse facto, mas não havia extraordinária, e havia vários alunos com muitas qualidades. nada a fazer: o senhor não respondia... [risos] Dava-me vontade de rir, mas era assim: era assim...! A Senhora Professora – podemos lembrar aqui – ensinou no Conservatório de Música do Porto a par- Falando ainda de Guilhermina Suggia, sua profes- tir de 1944. sora de violoncelo – e pensando naqueles que, hoje, Exactamente. apenas podem ouvi-la através de gravações e, enfim, para quem é um nome na História musical portu- E, enfim, todos conhecemos os seus eminentes discí- guesa –, a Senhora Professora lembra-nos, por pulos, hoje eles próprios professores de muitos vezes, uma questão muito importante: que Suggia outros alunos: foi uma actividade que a satisfez saiu já de Portugal, antes dos seus estudos com Klen- enquanto carreira também? gel, como uma grande intérprete, e não foi o Estran- Pois foi. Eu, quando tive de deixar – porque pensava que já tinha geiro que formou a grande violoncelista. É assim bastantes anos –, tive pena, por pensar que haveria mais violon- que devemos ver a primeira actividade de Guilher- celistas que viessem depois, e que eu não os ouvisse. Mas eram mina Suggia, ligada ao Orpheon Portuense? horas: eram horas de deixar... A primeira coisa é dizer que ela foi um fenómeno. Podemos dizer, sem vergonha nenhuma, que ela foi um fenómeno no Podemos lembrar também que, durante a actividade nosso País. Tocava de uma tal maneira, arrebatada, com tal per- da Senhora Professora no Conservatório do Porto, feição e com uma sonoridade extraordinária, que podemos se encarregou dos cuidados que era necessário pres- dizer que ela foi um fenómeno. Esta palavra basta para definir o tar ao grande violoncelo Montagnana que Guilher- que foi Suggia.

glosas | número 13 | novembro | 2015 | 37 Senhora Professora, para terminarmos a nossa con- livro? “A minha irmã não está boa da cabeça...!” Mas comecei a versa, pedíamos-lhe que nos deixasse um conselho pensar que, de facto, podia escrever um livro. Quando a gente que considere importante aos jovens que iniciam o ouve muita coisa ou sabe muita coisa, há, por assim dizer, uma estudo da Música. O que considera mais importante necessidade de escrever, de passar ao papel aquilo que se vai para a aprendizagem, ao longo de tantos anos, de aprendendo. E eu tinha assistido a tantas coisas fenomenais um instrumento – ou, especificamente, do seu instru- que, na verdade, podia escrever! mento: do violoncelo? Então, começando pelo princípio, o processo de escrita demo- O que me pede é uma afirmação que abranja muitos anos... por- rou três anos: lembro-me de, pela manhã, sair, regressar a casa que bons violoncelistas não há assim tantos, não é? A cada ano e ter um momento para escrever. Subia as escadas e ia sentar- aparecem pessoas a tocar muito bem violoncelo – haja em vista -me à secretária para escrever o livro, todos os dias à mesma o que temos aqui –, mas, se pensarmos, muitas vezes, em gran- hora, como um hábito. Naquele tempo eu ainda via. Depois, des violoncelistas, com muita carreira, a tocar obras muito difí- passava-se a computador e eu fazia as minhas correcções. E foi ceis, ficamos perplexos, ficamos sem saber como pensar...! assim, foi assim... Mas, voltando à linguagem normal, eu penso que é sempre difícil saber se um é melhor do que o outro, até porque alguns há que são Muito obrigado, Senhora Professora, por todas realmente extraordinários. Não lhe posso responder de outra estas memórias e por nos ter recebido aqui, na sua maneira. magnífica Quinta da Porta. Muito obrigada por esta conversa, que me deu um grande pra- Muito obrigado, Senhora Professora! E muito obri- zer. Nós, músicos, falamos uma linguagem especial, temos uma gado também por ter redigido o precioso livro de forma própria de conversar sobre as coisas...! memórias que tanto nos ajudou na preparação desta entrevista. 1 A revista Le Monde musical foi fundada por Édouard Mangeot em 1889. Publicada Muito obrigada eu, por ter reconhecido que foi bom tê-lo publi- quinzenalmente, em Paris, sob a direcção de seu filho, Auguste (fundador da École cado. Foi uma sorte...! Tive a sorte de encontrar um Senhor que Normale de Musique, com Alfred Cortot), teve uma primeira suspensão da actividade ficou deslumbrado com o livro e arranjou logo forma de o impri- editorial durante a Primeira Guerra Mundial e, retomando a publicação em 1919, mir. E eu fiquei a olhar para o livro como se fosse uma coisa cessá-la-ia definitivamente após o início da Segunda Guerra, em 1940. (N. do Transcr.) muito boa...! 2 O Allgemeine deutsche Musikzeitung (com o subtítulo Wochenschrift für die Reform E é, de facto, uma coisa muito boa – permita-nos dizer –, des Musiklebens der Gegenwart) foi um importantíssimo jornal musical, de entre as porque é um livro que acompanha pelo menos 150 anos dezenas de congéneres que existiram no mundo germânico a partir de meados do de História musical em Portugal, com tudo o que repre- séc. XVIII, que começou a ser publicado em Leipzig e Kassel em 1874. A partir de senta. Como foi a escrita deste livro? 1885, já sob a direcção do compositor e crítico musical Otto Lessmann, o jornal Ora bem: minha irmã andava sempre a perguntar-me: “Porque alterou o seu nome para Allgemeine Musikzeitung: Wochenschrift für das Musikleben não escreves um livro? Ouviste tanta coisa; porque não escreves der Gegenwart, passando a ser publicado pela casa Breitkopf & Härtel. Assim se um livro?” E eu dizia que ela não devia estar boa da cabeça! manteria durante quase seis décadas, cessando a publicação em Março de 1943, [risos] Como é que eu ia escrever, se nunca tinha escrito um por dificuldades decorrentes da Segunda Guerra Mundial. (N. do Transcr.)

DEPOIMENTOS

Vasco Barbosa | texto bém raras qualidades humanas para com seus alunos, que sem- pre acompanhou com muito carinho e dedicação. É com estima e veneração que me associo à homenagem a Madalena Recordo com saudades esses tempos em que a Professora Costa. Não precisaríamos de ler o seu maravilhoso livro de nos convidava para ir a sua casa no Largo da Paz, para com memórias para sabermos a categoria de artista que é a Madalena. ela fazermos música de câmara. Guardo uma gratíssima recordação de um concerto que fizemos: Parti depois para Paris, onde continuei os meus estudos o Quarteto Concertante para dois violinos, dois violoncelos e com André Navarra, no Conservatório Nacional Superior orquestra de Frederico de Freitas, obra magnífica, que contou de Música de Paris, durante cinco anos. também com a colaboração de Isabel Delerue e Alberto Gaio Dei inúmeros concertos, tanto em Portugal como no Lima. Momentos inefáveis de convivência artística e pessoal. Estrangeiro, mas o contacto com a Prof.ª Madalena Costa Parabéns à cidade do Porto, que tais artistas tem dado ao País! mantém-se até aos dias de hoje.

Isabel Delerue | texto Paulo Gaio Lima | texto

Fui aluna da Prof.ª Madalena de Sá e Costa no Curso Superior de Professora Madalena Costa, Violoncelo do Conservatório de Música do Porto, tendo termi- De vez em quando, olho para a fotografia de um jovem violon- nado o mesmo curso com a classificação de 20 valores. Tive celista, tranquilo, com camisa aos quadrados e calças brancas também, nesse mesmo ano, o Prémio para o melhor aluno, ofe- de boca-de-sino, que se encontra na minha parede das recido pela Fundação Gulbenkian, e o Prémio Suggia, atribuído memórias… e penso que essa imagem de feliz aprendiz existe nessa altura pela Câmara Municipal do Porto. porque o violoncelo lhe foi apresentado como um amigo que A Professora Madalena, além de artista excepcional, tinha tam- falava com voz macia e envolvente… Obrigado, Professora.

38 | glosas | número 13 | novembro | 2015 O Conservatório do Porto foi mudando de pouso. Da Travessa do Carregal fomos para a Rua da Maternidade… as salas de Violoncelo sempre foram soberbas – quadros de Carneiro, a presença de Sug- gia, o Montagnana a olhar para as nossas tentativas de o merecer… Aos quinze anos, Beethoven! Horas com esse som diferente, com aquelas notas já conhecidas e, no entanto, totalmente novas… sempre novas… Obrigado, Professora. E tantos anos depois, quando me encontro em frente à casa das portas verdes, no Largo da Paz, deparo com um passado tão pre- sente que não posso deixar de dizer… Obrigado, Professora.

Gisela Neves | texto

Obrigada, D. Madalena! Com muito tenra idade ouvia falar de D. Madalena; porque meus pais tinham sido alunos de seu pai, Luiz Costa, ou de sua irmã, D. Helena; porque o duo Madalena e Helena Moreira de Sá e Costa realizava um recital todos os anos no Festival de Madalena Sá e Costa com Paulo Gaio Lima após o seu recital no violoncelo Stradivarius Música de Espinho (onde vivia) e por muitas outras situações. de 1725 Chevillard-Rei de Portugal, no Museu Nacional da Música, a 1 de Outubro de 2015 Assim, as idas ao Largo da Paz, para ter aulas, surgiram como evolução normal na minha vida ou no meu percurso académico e comecei, então, a sentir o privilégio de ter aulas com a Luiza Gama Santos | texto Senhora D. Madalena e naquela casa! No momento de começar a escrever estas linhas, que vão com A forma como nos dava a entender o fraseio e o conteúdo de certeza juntar-se às muitas e merecidas manifestações de admi- cada obra que trabalhávamos, fossem pequenas peças de nível ração e amizade por ocasião da celebração do centésimo aniver- básico ou grandes obras de nível superior, ficou para sempre sário do nascimento da Senhora D. Madalena Moreira de Sá e na minha memória. Tudo era importante: cada nota, cada Costa, revejo-me num feliz momento da minha infância: sen- sinal, cada indicação na partitura! E como fazia Suggia, e como tada junto de meus Pais preparo-me para, pela primeira vez, fazia Casals… ouvir ao vivo as duas irmãs Moreira de Sá e Costa num concerto D. Madalena, além de nos transmitir toda uma cultura musical promovido pela Prò-Arte, saudosa instituição que tinha por que herdou de seus Pais, de seu Avô, de Guilhermina Suggia, missão levar Música e artistas portugueses a localidades afasta- Paul Grümmer, Pablo Casals e de uma infindável lista de perso- das dos centros culturais do País. Nessa noite calhou em sorte a nalidades com quem conviveu, entre maestros, grandes solis- cidade de Caldas da Rainha – da qual os 80 km que a separam de tas, instrumentistas e compositores, também nos entusiasmava Lisboa eram, nos anos 50 do século passado, uma temível dis- e apoiava muito nos vários projectos que surgiam (desde as nor- tância para qualquer veleidade cultural levada a efeito na capital mais provas de exame ou de concursos até cursos extra-conser- – poder assistir a um concerto no qual actuavam as irmãs vatório e à formação de grupos de música de câmara). Moreira de Sá e Costa, precedidas dos nomes de Edwin Fischer, Fiz parte do grupo que, com a Senhora D. Madalena, fundou a Pablo Casals e Luiz Costa! Mais uma vez, como já disse atrás, a Camerata Musical do Porto; e que belas recordações temos Prò-Arte contribuía para encurtar distâncias, levando à provín- dessa época (anos oitenta)! cia grandes momentos musicais como aquele a que me refiro. Para mim, D. Madalena foi sempre uma Senhora muito empre- São 21h30 do dia 1 de Março de 1952. Apagam-se as luzes na Sala endedora. Sempre pronta para novos desafios, ajudar a lançar de Festas do Casino. Segue-se um silêncio expectante, logo jovens talentos ou criar estruturas que apoiem a Música. Creio interrompido pelos aplausos que recebem a entrada das duas que, de quantos frequentavam o Conservatório de Música do Artistas. O modo como se apresentam com os seus solenes ves- Porto no ano de 1974, ninguém esquece que D. Madalena inte- tidos de noite, dir-se-ia um prelúdio ao que se vai seguir e que é grou o grupo de alunos e professores que fizeram a “ocupação” a tão solene ocasião de darem vida à música de Bach, Schumann, do palacete na Rua da Maternidade, manifestação pacífica e Saint-Saëns e, como não podia deixar de ser, à música de auto- simbólica para demonstrar a necessidade da mudança do Con- res portugueses, nessa noite representada por obras de Ivo Cruz servatório para instalações dignas de uma escola histórica. e Joly Braga-Santos. Outra faceta tão importante que D. Madalena sempre desen- Tenho aqui comigo o programa. Autografado. Comovida lhe volveu e acarinhou foi a divulgação da Música Portuguesa. pego e torno a sentir a emoção de ter estado tão perto de duas Desde cedo os alunos começavam a ter contacto com obras de Artistas que tinham acabado de dar à criança pequena que eu era Luiz Costa, Cláudio Carneyro, Victor Macedo Pinto, Filipe dois tão maravilhosos presentes: a Música e… os seus respecti- Pires, Fernando Lopes-Graça, Berta Alves de Sousa, Fernando vos nomes, escritos pelas suas próprias mãos no meu programa! Corrêa de Oliveira, Joly Braga Santos e tantos outros, sendo Mal eu sabia que este último, qual presságio, foi como que um que muitas delas lhe eram dedicadas. contrato de promessa de futura protecção! Naturalmente que, quando interpreto no violoncelo, a solo ou Passou muito tempo depois deste primeiro encontro. Pela integrada num grupo, ou quando dou uma aula, sinto que toda rádio, na Emissora 2, tornei a ter ocasião de ouvir várias vezes a essa (in)formação está presente e que tenho a obrigação de a Senhora D. Madalena, assim como, mais tarde, no começo da divulgar. Tão importante que tem sido na minha vida! existência da RTP (no tempo em que a RTP tinha a preocupação Obrigada, D. Madalena de contribuir para a elevação cultural dos portugueses, apresen-

glosas | número 13 | novembro | 2015 | 39 tando, por exemplo, programas com a chamada música clás- Jorge Rodrigues | texto sica), tive a ocasião de tornar a ter o prazer de a ouvir, com sua irmã Helena no piano. Chorai arcadas Quis o Destino que, muitos anos depois destes factos e após mui- Do violoncelo! tas voltas e coincidências, cumprindo a anterior imaginária pro- Convulsionadas, messa, eu tivesse tido o privilégio de ter a Senhora D. Helena Pontes aladas como professora, conselheira e, posso dizê-lo, como amiga, fre- De pesadelo... quentando com assiduidade a casa a que me habituei a chamar relicário – a casa do Largo da Paz –, graças à riqueza e profusão de (Camilo Pessanha, Violoncelo) testemunhos ligados a uma intensíssima vivência cultural de várias gerações. Quantas histórias e recordações nas prateleiras e Há seres humanos que parecem magnificar a dádiva da vida. É nas paredes! Foi o piano que até lá me levou, é certo, mas à hora do esse o claro caso de Madalena Sá e Costa, que para nosso júbilo chá (que saudades!) podia usufruir do convívio com a Senhora D. cumpre a lindíssima idade de cem anos. Madalena. Tal como nessa altura, é admirável ver como hoje ainda Embora o excerto do poema Violoncelo de Camilo Pessanha (um se mantém atenta e cheia de projectos, digna herdeira de Pais e dos mais poderosos textos da nossa poesia) nos transporte de ime- Avós cujos ideais artísticos e humanos, tal como sua irmã Helena diato para um ambiente disfórico, assustador e angustiado, o vio- o fazia, generosamente se empenha em transmitir e partilhar, no loncelo foi e é o instrumento eleito pela luminosa e doce persona- que de mais autêntico e nobre tem o acto pedagógico. lidade que festejamos. Tal contradição não nos pode nem deve Tive recentemente a ocasião de ouvir ao vivo a Senhora D. Mada- espantar, pois a Música tudo transfigura e se nela não há morte, lena num concerto integrado no Festival da XVIII Semana Inter- mas sempre ressurreição, como nos ensinava Furtwaengler, o nacional do Piano de Óbidos, em que se apresentou integrando o contrário também se dá. Assim, fazendo música, algumas das Ensemble de Violoncelos, dando a todos os que assistiram mais mais luminosas e doces personalidades transformam-se, ene- uma grande, enorme lição de Vida e de Música! grecem e arrastam-nos para abismos. É, pois, fácil ligar Mada- A celebração deste centenário reveste-se duma imensa impor- lena Sá e Costa a Pessanha. A escolha do violoncelo para expressar tância para todos aqueles que, tal como eu, gozaram do privilégio o seu íntimo talvez advenha do facto de este instrumento ser fre- que querem agora agradecer: terem-se cruzado na vida com figu- quentemente relacionado com a voz humana. É uma paixão que ras tão extraordinárias. talvez tenha sido cimentada com o estudo do Canto, que praticou Parabéns, Senhora D. Madalena! em Berlim há cerca de 80 anos. É claro que para possuir este poder de nos transportar isto é pre- ciso ter talento, altas capacidades emotivas e técnica. Jed Barahal | texto Madalena Sá e Costa protagonizou uma das grandes aventuras musicais portuguesas. Ela e a irmã, a ilustre pianista Helena Sá e Testemunho de um momento musical inesquecível Costa, nasceram geneticamente fadadas para a arte dos sons. Neta de Moreira de Sá e filha de Luiz Costa e de Leonilda Moreira de Sá, Esta ideia genial só poderia ter surgido da imaginação fértil e Madalena Sá e Costa foi, com o natural e entusiástico apoio dos incansável de Madalena Sá e Costa: juntar alguns dos melhores pais, estudar para Berlim nos Anos trinta, e ali pôde ouvir, con- violoncelistas do Porto num concerto com obras de compositores tactar e aprender com músicos como Edwin Fischer, Wilhelm que tiveram uma ligação a Guilhermina Suggia e construir uma Furtwaengler, Wilhelm Kempff, Arturo Toscanini. Com muitos espécie de ponte entre várias gerações violoncelísticas, desde deles deu-se, com muitos deles estudou, de muitos deles foi Suggia, passando pela própria Madalena, até aos alunos, seus amiga. Os pais desde cedo a habituaram a este contacto regular “netos” e “bisnetos”, para que todos estivessem representados com os maiores, absolutamente maiores, nomes da interpretação em palco. A Senhora D. Madalena fazia questão de tocar, ela pró- da primeira metade do século XX e da História. Hoje, conver- pria, apesar da sua idade já muito avançada. sando com Madalena Sá e Costa vemos passar por nós sob a forma Lancei-me no projecto. E comecei logo a estudar muito, porque de recordações vivas estas ilustres sombras. É um privilégio! ela me confiara a partitura de uma peça de Julius Klengel, profes- Foi discípula de Guilhermina Suggia, uma das maiores intérpre- sor da própria Suggia, diabolicamente difícil, para violoncelo tes de violoncelo – antes, estudara com o pai desta, Augusto Sug- solo. O programa terminaria, em grande, com o Hino, escrito gia. A sua curiosidade fê-la pesquisar outras personalidades também por Klengel, para doze violoncelos. musicais. Madalena Sá e Costa concluiu o curso de Violoncelo Esperançosos de poder levar o projecto a vários cantos do País, foi com Isaura Pavia de Magalhães no Conservatório Nacional, com- com grande desilusão que a nossa proposta recebeu somente res- pletou a sua formação com Paul Grümmer, Gaspar Cassadó, San- postas negativas dos muitos festivais, séries, câmaras e fundações dor Végh, Pablo Casals, Maurice Eisenberg e Antonio Janigro. que contactámos. E foi assim até que, finalmente, tivemos a feli- Tudo isto se poderia ter perdido se Madalena Sá e Costa não se cidade de receber, de Manuela Gouveia, um convite especial para tivesse entregado entusiástica e generosamente ao ensino. Alguns actuar no prestigioso Festival Internacional de Piano de Óbidos, dos melhores violoncelistas que hoje se apresentam no nosso país normalmente reservado a pianistas. Tudo correu da melhor passaram pelo seu ensino. maneira possível e o concerto foi uma verdadeira festa do violon- A vida de Madalena Sá e Costa continua a ser-nos fundamental, celo, tendo como o ponto alto a actuação de D. Madalena. dado que ela é a prova viva da importância da passagem de teste- Foi um momento de verdadeira emoção, para todos, vê-la e ouvi- munho em Música, isto é, da importância da tradição. Tendo con- -la tocar, aos 97 anos, com segurança e sentimento impressio- tactado com os maiores, tendo-se apresentado nos maiores pal- nantes, o Religioso de Goltermann. Transmitiu, naqueles cinco cos do nosso país, ela é herdeira e transmissora de uma forma de minutos de música sublime, o significado de uma vida dedicada à estar musical que se vai perdendo. Quisesse o país apoiar a reco- Música e ao violoncelo. lha das suas memórias!

40 | glosas | número 13 | novembro | 2015 O sorriso mais bonito de Portugal faz cem anos! Não parecerá este apresentado, sempre que possível, novos talentos. o mais óbvio elogio feito a um músico, mas, sempre que penso em Foi uma grande honra para nós, Associação, termos durante dez Madalena Sá e Costa, vem-me invariavelmente à memória esse anos Madalena Sá e Costa à frente da Masterclass de Verão, e não sorriso e não sou capaz de o esconder.´ podíamos deixar de nos associar à homenagem dos seus 100 anos de vida. Parabéns, Senhora D. Madalena, e obrigada. Manuela Gouveia | texto Associação Cultural do Monte de Fralães À querida Senhora. D. Madalena, Com a maior admiração e carinho, muitos parabens pelo seu cen- tésimo aniversário! Uma vida sempre activa em que a Música, a Elvira Archer | texto família, os alunos e amigos sempre tiveram toda a prioridade. Recordo com saudade os meus tempos de criança, em que brincá- A relação da família Archer com a família Moreira de Sá e Costa já vamos no jardim da casa do Largo da Paz com a Lena, o Henrique vai na terceira geração, da qual me sinto representante, sendo inte- ou o Luís Gaspar – normalmente depois das lições de piano com a ressante salientar que, dos 22 netos de minha avó paterna, Maria Senhora. D. Helena – na casa em que se respirava Música e a Elvira Peixoto Archer, fui eu a única neta que recebeu o seu nome e grande simpatia de seus pais – D. Leonilde e Prof. Luiz Costa. que seguiu a carreira musical que ela havia apenas encetado (ela Também desde sempre o som do seu violoncelo me fascinou – o como violinista, mas eu como cantora lírica!), deixando de ir para a “seu” som, expressão de todas as suas interpretações, numa Alemanha e eu tendo feito a minha vida artística por lá. vivência profunda da Música e das suas implicações humanas. Lembro-me de ver, em criança de tenra idade, a pianista e profes- Uma admiração sem limites pelos duos com a Senhora D. Helena, sora Leonilda Moreira de Sá e Costa sentada ao lado de minha avó em que ambas tocavam de cor! no canapé do salão da casa n.º 28 da Rua da Boa-Hora na freguesia A si lhe devo totalmente o meu gosto pela música de conjunto – de Cedofeita no Porto (muito perto do Largo da Paz), a assistir ao nao só ao ouvir tantos concertos do Trio Portugália, como tendo sarau musical em que suas filhas Helena e Madalena tomavam parte recebido os seus preciosos conselhos em trabalho de conjunto, como executantes. no tempo do Conservatório do Porto. Foi para mim um privilégio, A grande violoncelista portuense Madalena Sá e Costa faz, portanto, um enorme enriquecimento e um prazer ter tido a oportunidade parte do meu cenário de infância e adolescência como paradigma de actuar consigo em duo e em agrupamentos de câmara! da actividade de Música de Câmara. A ela me ligam as primeiras A sua presença e participação em Óbidos, com o “Grupo de Vio- vivências musicais, gravadas para sempre na minha memória. loncelos”, no âmbito da Semana Internacional de Piano – SIPO Conservo, até hoje, a maior admiração por esta figura musical que 2011 –, foi igualmente, para todos nós, um grande exemplo, uma se tornou histórica. Considero-a também um exemplo de empe- grande honra e motivo de grande alegria. nhamento para as novas gerações de músicos, de doação de si pró- Muito obrigada – pela sua Amizade e pelo exemplo de uma vida pria na preocupação constante de ajudar e de promover contactos dedicada à Música! entre artistas, além da sua simpatia serena e cativante. Bem haja!

Maria José Figueiredo | texto Piñeiro Nagy | texto Junho de 1999. A Junta de Freguesia de Monte de Fralães e a Casa de Fralães organizaram um concerto de homenagem a Mestre Um Olhar Luiz Costa, nascido na Quinta da Porta, Monte de Fralães, ainda O meu convívio com a Profª. Madalena de Sá e Costa não tem sido hoje pertença da Família. A Câmara Municipal de Barcelos cedeu regular nem frequente. Porém, a nossa longa e duradoura relação para exposição o seu espólio fotográfico e biográfico do Mestre, a vem dos primórdios dos anos 70 do século passado. editora Numérica trouxe CDs com a sua obra, a Junta de Freguesia A sua ligação aos Cursos Internacionais de Música do Estoril, e a Casa de Fralães mandaram cunhar e ofereceram uma medalha muito especialmente através de sua irmã Helena de Sá e Costa, foi comemorativa, a Fundação Arthur Cupertino de Miranda trouxe a o início de uma afinidade, admiração e respeito mútuos que sem- Orquestra do Norte. Estabeleceu-se então o ponto de partida para pre guardei. Artista refinada e professora possuidora de uma afa- o início das actividades culturais no Monte de Fralães. bilidade, bondade e generosidade nata despertaram-me um Sendo desejo de há muitos anos da Senhora D. Madalena organi- especial carinho que perdura. zar Cursos de Música, não foi difícil arrancarmos com este pro- Nos meus encontros regulares com sua irmã, por vezes na acolhe- jecto, uma vez que o ambiente da Freguesia é propício a todas as dora casa do Largo da Paz, no Porto, tive oportunidade de a conhe- actividades culturais. Nesse mesmo ano, na sua casa da Quinta da cer melhor e tomar consciência da sua dimensão como docente e Porta, Madalena Sá e Costa orientou a classe de Violoncelo, intérprete. Um momento marcante que retenho na memória enquanto, na Casa de Fralães, a Prof.ª Christa Ruppert dirigiu a aconteceria em 1975. classe de Violino. Tempo magnífico. Entusiasmo dos alunos. Nessa altura efervescente da vida de todos os dias, cada pessoa Agrado dos professores e organizadores. com mil projectos, o sentido criativo à flor da pele, a iniciativa Em 2000, já com a Associação Cultural do Monte de Fralães, con- brotando espontaneamente, fui desafiado por D. Helena para tinuou Madalena Sá e Costa a dirigir os cursos de Música, sempre orientar um curso de Guitarra nas novas instalações do Conserva- com grande entusiamo, força e alegria. E assim Monte de Fralães tório do Porto, ocupadas corajosamente por professores e alunos. começou a ouvir boa música de piano, viola, violino e violoncelo. Participar num projecto novo em condições tão extraordinárias Mantendo o seu espírito orientador, a Associação Cultural do constituía um estímulo irrecusável para enfrentar algo totalmente Monte de Fralães, na sua programação anual, privilegia a Música, inédito em Portugal.

glosas | número 13 | novembro | 2015 | 41 Desconhecendo em absoluto o que sucedia no Porto em torno à O primeiro aconteceu em Belgais, naquele fabuloso lugar Guitarra, achei mais prudente que se organizasse um encontro outrora propriedade de Maria João Pires, onde tive o privilé- aberto a todas as idades e conhecimento. Um curso pressupunha gio de gravar em 2009 o CD duplo Página Esquecida, inteira- um percurso pedagógico que, realmente, não existia nas escolas mente dedicado à música portuguesa, com a pianista Luísa de música do Porto. Assim, nasceu o I Encontro de Guitarra em Tender. Para minha grande surpresa e alegria, logo à chegada Portugal, que viria a ser peça fundamental para o início da divul- encontro D. Madalena a passear no jardim e a desfrutar de gação e ensino do instrumento em todo o País. umas férias no campo. Coisas do destino, quando o destino é Falar, demonstrar, tocar, explicar, informar, dialogar sobre o maravilhoso! Muito agradável coincidência, sobretudo por- instrumento com a assistência, permitiria tomar o pulso a quem que uma das obras que gravámos foi a Sonata para Violoncelo se sentisse atraído pela guitarra. No programa elaborado para e Piano de Luiz Costa, dedicada às suas filhas Madalena e uma semana, julguei imprescindível ter a colaboração dos meus Helena e estreada por ambas muitas décadas atrás. Foi fan- três melhores alunos da Academia de Amadores de Música, de tástica esta companhia inesperada, como um sinal divino de Lisboa, da altura, para estabelecer uma maior proximidade com que essa nossa missão de gravar e divulgar a música portu- os cerca de 60 participantes com idades entre os 12 e os 60 anos guesa era o caminho certo e nesse caminho iríamos deparar através de diversas demonstrações e ilustrações. com momentos e pessoas extraordinárias. A abertura do encontro teria um recital a solo a meu cargo e O segundo encontro é bem mais recente; aconteceu há ape- encerraria com um concerto de câmara com os três guitarristas de nas poucas semanas, aquando de um concerto do “meu” Lisboa e alunos do Conservatório do Porto. Ensemble Mediterrain no Ateneu Comercial do Porto, pre- Durante a preparação do programa, tive a sempre jovial e entu- cedido de uma tertúlia dedicada à história musical do pró- siasmada colaboração de D. Madalena para que a participação dos prio Ateneu. E quem melhor para nos contar os momentos alunos do Conservatório fosse nas melhores condições. O con- gloriosos desta sala e da vida cultural do Porto em geral certo de encerramento, constituído por dois concertos de Vivaldi durante o século XX? A simples presença de D. Madalena e a versão para guitarra do Concerto para Cravo de Carlos Seixas, teria tornado o evento uma delícia, mas poder ouvir os seus seria, então, algo inédito entre nós, ao juntar estudantes de gui- testemunhos na primeira pessoa foi um absoluto deleite. tarra de Lisboa com os de um quarteto de cordas do Porto. Mas, na verdade, o segundo encontro que me marcou espe- A maior surpresa viria, no entanto, quando após ouvir as inter- cialmente aconteceu horas antes da tertúlia e do concerto, venções dos jovens guitarristas no decorrer do encontro, D. quando tive a oportunidade de visitar D. Madalena em sua Madalena me diz subitamente: “Eles tocam tão bem que seremos casa. E foi em sua casa que tive a felicidade de dar um dos nós, os professores, a tocar no concerto em vez dos alunos”. Creio “concertos” mais bonitos da minha carreira. Um momento que a emoção causada por este acto de generosidade e humildade musical muito breve, mas muito sincero, para uma pessoa foi infinitamente superior ao prazer do elogio vindo de uma per- absolutamente encantadora e a quem desejo muita saúde e sonalidade como a sua. muitos mais anos de vida a contagiar quem a rodeia com Nesses anos de mudança, recordo o seu recital no Estoril com a aquele sorriso tão afável e bonito. pianista Manuela Gouveia na primeira série dos Concertos Popu- Parabéns, Senhora D. Madalena! lares, em 1975, e o inesquecível recital que as irmãs Sá e Costa deram no 1.º Concerto da Primavera, em 1978, no vetusto Pavi- lhão de Congressos do Estoril, de tão boa memória, e marca inde- Bruno Caseirão | texto lével deixada por numerosos concertos dos primeiros festivais do Estoril. Viver respirando Música! Teríamos, ainda, o privilégio de viver as suas memórias, emoções Celebrar um centenário é – ainda hoje – um feito raro. Celebrar e experiências de vida no Centro Cultural de Cascais na noite o centenário de alguém tão activo e dinâmico como Madalena Sá muito especial de 28 de Julho de 2014. A homenagem que o Festi- e Costa é motivo de acrescido júbilo. Estamos perante alguém val de Estoril Lisboa quis prestar à memória da Prof.ª Helena de que possui um conjunto raríssimo de qualidades humanas, Sá e Costa na sua 41.ª edição teve a emotiva presença de sua irmã, morais e de valores associados a um deslumbramento inicial e durante a qual nos transportou às suas vivências nos Cursos paixão pela Música, o qual não só nunca perdeu, como norteou, Internacionais de Música do Estoril dos anos 60 do século pas- serviu e inculcou em todas as acções e em todos aqueles com sado. Foram memórias preciosas para quantos assistimos que quem se encontrou e privou. Por si só, o que se acabou de referir reavivaram a luminosidade e doçura do seu olhar. justificava largamente esta Homenagem. No entanto, a estes teremos de acrescentar ainda uma alegria contagiante e a von- tade modelar com que vive cada novo dia. Bruno Borralhinho | texto Madalena Sá e Costa é a decana da grande tradição musical por- tuguesa iniciada em finais do século XIX, com uma educação Para ser completamente sincero, confesso não me recordar musical completa e aprimorada nos melhores centros europeus, de quando tive o prazer de conhecer D. Madalena Sá e Costa. de uma época em que uma elite musical portuguesa, nomeada- É como se tivesse estado sempre presente e escusado será, mente nos feitos de seu avô Bernardo Moreira de Sá, de José aliás, repetir os largos elogios que certamente outros já Vianna da Motta e Luiz de Freitas Branco, procurou realizar um sublinharam nos seus testemunhos. Primeiro, porque são verdadeiro aggiornamento, como que uma modernização e cria- por demais justos e evidentes, mas sobretudo porque todos ção das bases para um ensino, fruição e vivência da Música como os elogios pecarão sempre por escassos perante uma pessoa algo essencial e integrante da Sociedade. tão especial. Gostaria, no entanto, de recordar dois encon- Essa ambience primordial, de uma grande tradição musical euro- tros que tive com D. Madalena e que me marcaram particu- peia, em que vocação e dedicação são ambas faces da mesma moeda, larmente. Um espontâneo e outro planeado. permaneceu para sempre, quer através do seu instrumento de elei-

42 | glosas | número 13 | novembro | 2015 ção, o violoncelo, da sua execução e leccionação; pelo duo formado com os seus alunos, o amor pelas obras, pelo ensino e pela Música. com sua irmã – a mítica pianista Helena Sá e Costa –, tocando em Por muito sinceras que sejam as palavras eleitas para a consti- público durante mais de meio século; quer através da promoção do tuição desta pequena homenagem, nunca serão suficiente- legado de seu pai, Luiz Costa, em duas vertentes, a divulgação e mente grandiosas e nunca irão expressar com rigor o seu publicação da sua Obra Musical e a difusão do pedagogo através da talento, a sua fonte de inspiração, as suas inigualáveis qualida- organização dos célebres Cursos de Farelães. des profissionais e humanas. Madalena Sá e Costa tem vindo a servir a Música com todas as Madalena Sá e Costa deixa-nos uma herança artística de valor suas forças e de todas as formas ao seu dispor. Pela sua presença incalculável e o forte sentimento do dever que temos de projec- contínua é uma referência incontornável e afectiva de todos tar para os alunos o seu precioso legado. Desdobram-se as res- nós, nesse seu papel inconfundível de transmissora de um ponsabilidades. Resta-me saber se conseguirei fazer perpetuar legado único, plasmado na feliz expressão de Alfred Cortot de os seus ensinamentos e o seu amor pela Música com a mesma passer le flambeau, tal como anteriormente o haviam feito seu magnitude. avô, pai e irmã, dessa vivência intensa e entendimento da À Prof.ª Madalena Sá e Costa, o meu obrigado. Música como a mais bela das Artes e “lugar” único de reunião dos bem-aventurados! Sofia Novo | texto

Ana Filomena Silva | texto Fui aluna de Madalena Moreira de Sá e Costa durante apenas quatro anos, tendo tido as primeiras aulas de Violoncelo com Tive o privilégio e a honra de conhecer esta grande personali- sete anos de idade. Mas se há factos que marcaram profunda- dade ainda em criança. Após ter tocado Bach, em homenagem a mente a minha formação, esta experiência, mesmo quando Guilhermina Suggia, no Conservatório do Porto, veio ter comigo ainda tão criança, é certamente um deles. Tenho imagens uma Senhora de idade, com uma presença notável, dando-me gravadas na memória de infância que nunca esquecerei: a os parabéns pela interpretação e acrescentando que notara um enorme escadaria que dava entrada no número 53 do Largo talento musical especial que, com certeza, através de dedicação da Paz onde a minha Mãe tantas vezes me levou; o quartinho e trabalho, iria chegar longe. O seu olhar e as suas palavras fica- ali mesmo à direita onde tinha aulas; a primeira fotografia ram bem gravadas até ao presente. Só mais tarde tive o privilé- que vi de Guilhermina Suggia na “sala do Piano”... para mim, gio de saber quem era esta Senhora – Madalena Sá e Costa – e de entrar naquela casa era ser de imediato invadida por um a conhecer pessoalmente. misto de sensações, entre imponência e mistério, respeito e Durante todo o meu percurso musical, a Senhora Prof.ª Madalena inspiração; era sem dúvida e desde logo sentir que entrava Sá e Costa foi um incentivo constante, promovendo vários recitais num lugar de Música e de Conhecimento. de violoncelo, eventos musicais e homenagens à grande violonce- Mais tarde integrei a classe da Prof.ª Madalena Sá e Costa no lista Guilhermina Suggia. Esta força de iniciativa, dinamismo e Conservatório de Gaia, onde me lembro de ser sempre a mais persistência durante toda a sua carreira foi imprescindível, em novita! Mas esse facto nunca me impediu de acompanhar a momentos em que a cultura e actividade musical eram menores. classe para todo o lado onde a mão da minha Mestra me Estando eu já na fase adulta, a Senhora D. Madalena tornou-se levava: desde cedo, a apresentar-me regularmente em para mim uma inspiração, agora não só a nível musical e educa- público, a participar em concursos nacionais da Juventude cional, mas também humanístico e social. Com os seus 100 Musical Portuguesa e a conquistar alguns prémios, a fre- anos, o exemplo e legado que tem deixado, bem como os frutos quentar Seminários e Cursos de Violoncelo em diversas da sua contínua proactividade, têm-se manifestado nos dias cidades portuguesas. actuais com crescente intensidade. Apesar de ter sido pouco o tempo em que fui aluna de Madalena O meu agradecimento e reconhecimento são devidos a Mada- Sá e Costa – tive ainda esse privilégio a poucos anos da sua lena Sá e Costa por todo este trabalho que tem vindo a beneficiar reforma –, o modo quase maternal como sempre me tratou é grandemente a Cultura e a educação musical, e cujos valores uma das grandes marcas que esse tempo me deixou. Recordo o com certeza os jovens violoncelistas irão também saber trans- violoncelo pequenino onde iniciei os meus estudos, empres- mitir às gerações vindouras. tado pela minha Professora em mais um gesto de enorme generosidade. Ainda hoje sinto esse carinho quando me é dado o privilégio de estar entre os seis antigos alunos, agora Valter Mateus | texto profissionais, que a Senhora D. Madalena escolheu e convidou para tocar no concerto de homenagem pelos seus 90 anos no É com enorme júbilo e orgulho que ofereço o meu humilde contri- Teatro Rivoli, no Porto, em Novembro de 2005, ou a honra de buto à grande Mestra Madalena Sá e Costa. É sem dúvida uma figura ter sido incluída no livro Memórias e Recordações de sua auto- ímpar na Música Portuguesa e o seu nome é merecedor de ser eter- ria, publicado pelas Edições Gailivro em 2008, ou ainda gestos nizado. Madalena Sá e Costa é detentora de uma alma de artista. para mim carregados de significado como são o poder contar Escrevo, com muito afecto, que foi para mim um privilégio ter com a sua presença no público de recitais meus. sido seu discípulo. Os ideais e o saber que me transmitiu são Ainda hoje, apesar dos seus quase 100 anos, D. Madalena fruto de várias gerações, de vários Mestres. Estes incutiram-me continua a dar-nos exemplos de dinamismo, de trabalho, de o incentivo, a dedicação, a força de vontade, a perseverança, o persistência na luta pelas causas em que acredita – exemplos entusiamo e, sobretudo, a firmeza de ânimo para o espoletar da de vida que não marcam apenas os seus discípulos, mas toda minha carreira artística e pedagógica. a gente que a rodeia. É com gratidão e profundo respeito que relembro os momentos O nome de Madalena Sá e Costa está escrito na História da inesquecíveis para a minha formação, os laços afectivos que criava Cidade do Porto, está escrito na História da Música Portu-

glosas | número 13 | novembro | 2015 | 43 guesa. Para mim, foi e será sempre um enorme privilégio o Madalena, por sentirem a confiança de uma excelente profes- facto de a minha vida se ter cruzado com a sua. sora e conselheira artística. A última vez que tive o prazer de a encontrar foi na homenagem que o Conservatório de Braga lhe prestou. Foram várias gera- Fernando Costa | texto ções de antigos alunos que lhe proporcionaram um belíssimo recital. Fiquei sensibilizado pelo convite para participar nesta O testemunho que aqui deixo, por ocasião do centenário da homenagem a uma grande figura do meio musical e das artes Senhora Prof.ª Madalena Sá e Costa, é uma ínfima fracção de portuguesas e desejo que a Senhora D. Madalena possa conti- uma vida plena de histórias para contar e, nestas breves pala- nuar a legar-nos toda a sua experiência e todo o seu saber, para vras, não poderia deixar de relembrar a sua grandiosidade, o seu que as novas gerações guardem referenciais tão elevados. génio e a sua coragem. Muitos parabéns e muito obrigado, Senhora D. Madalena, por Falar de Madalena Sá e Costa é também falar de uma família, tudo quanto me ensinou e que para mim foi tão importante. rememorar um tempo e um conjunto de acontecimentos artísti- cos e históricos. Sempre que tive a oportunidade de entrar em sua casa, senti como se o tempo passasse noutro tom, sem faltar Guilherme Cancujo | texto a habitual xícara de chá e biscoitos a acompanhá-la, livros e fotografias, tempo para sorrisos, palavras e emoções. Conheci Madalena Sá e Costa no Outono de 2008. Na verdade, Discípula de Guilhermina Suggia, D. Madalena faz 100 anos em desde que me conheço, dos primórdios do meu percurso musical, Novembro e o futuro continua, persistentemente, na sua cabeça. que a conheço, assim como toda a família Sá e Costa. Fátima Mor- Uma grande Senhora que tive a honra de acompanhar no regresso gado, a minha primeira professora de piano, discípula de Helena à sonoridade dos palcos, revivendo o ecoar dos aplausos e uma Sá e Costa, desde cedo me apresentou os fundamentos essenciais vida de virtuosismo musical. Uma figura marcada por uma gene- da escola pianistica que D. Helena criou e que, através dos seus rosidade sem limites, pela paixão e pelo prazer da Música. A deli- discípulos, vem formando continuamente sucessivas gerações de cadeza com que fala, a entrega e a energia que só poderiam real- jovens pianistas e professores: “Rigor na interpretação da parti- mente ser de alguém que viveu intensamente não apenas a Música tura e respeito pela música e pela personalidade do aluno”. e a vida, como, também, o gosto da partilha com os outros. Nesse Outono, pude constatar que estes princípios não se res- tringiam ao piano e ao ensino do Piano. Foram fruto da riquís- sima formação artística e humana vivenciada por toda a família Alberto Campos | texto Sá e Costa e partilhada com toda a comunidade através do Orpheon Portuense. Por lá passaram algumas das mais proemi- Conheci a Senhora D. Madalena de Sá e Costa quando comecei a nentes personalidades da Música, como Maurice Ravel, Edwin frequentar o Conservatório de Música do Porto, em 1962. Não era Fischer, Alfred Cortot, Wilhem Kempff, Wilhelm Backhaus, aluno de violoncelo, mas era o instrumento que mais me fascinava. Gregor Piatigorsky, Guilhermina Suggia, Pablo Casals, Arthur Não começara logo a estudar violoncelo por ser um instrumento Rubinstein, Claudio Arrau ou a Orquestra Filarmónica de Ber- dispendioso demais para as finanças familiares, o que levou a que lim, entre tantos outros. O Facto de Madalena Sá e Costa ter tivessem escolhido por mim um instrumento de sopro, saxofone. estado com todas estas personalidades e – graças a uma memó- Foi o meu professor de instrumento de sopro quem me ajudou a ria e lucidez prodigiosas – recordar cada momento e a história persuadir meu Pai de que o violoncelo seria o instrumento da de cada uma delas e as partilhar foi uma experiência profunda- minha vida. Assim, levou-me um dia à sala da Senhora D. Mada- mente marcante, às vezes quase “irreal”. lena, para que a Professora pudesse avaliar se as minhas poten- Mas Madalena Sá e Costa não vive só do passado. Apresenta cialidades físicas serviriam para abraçar o estudo do instru- regularmente novas ideias e projectos que passam pela divulga- mento. Fui recebido com a maior gentileza, recebi a sua ção de repertório, de jovens músicos promissores e pela asso- aprovação e a disponibilidade para iniciar as aulas, mesmo ciação a eventos de carácter pedagógico e interpretativo. Com a estando já a meio o ano escolar. Conseguiu também o emprés- sua colaboração foi possível compilar, organizar e preparar um timo de um violoncelo da escola e, assim, iniciámos a aprendi- recital único, no Largo da Paz, com obras de Luiz Costa, levado a zagem do violoncelo, em regime livre, até ao final do ano lectivo. cabo por jovens estudantes, no piano onde foram escritas. Ape- Recordo com saudade as aulas dinâmicas e interessantes, com sar dos seus 94 anos de então, estendeu a sua colaboração tam- grande disciplina, sempre na procura das melhores ideias e do bém à preparação musical dos alunos, com indicações precisas desenvolvimento de uma identidade própria. Trabalhei sob a sobre touché e ambiências, respiração e fraseado, agógica e orientação da Prof.ª Madalena durante apenas quatro anos, fin- dinâmica. Seis anos volvidos, alguns desses jovens estão agora a dos os quais tive de me mudar para Lisboa, mas sempre que nos iniciar a sua carreira musical. Os valores, a energia, a entrega e encontrávamos, em qualquer circunstância, havia uma atenção a generosidade da Prof.ª Madalena ainda perduram na sua – especial e um incentivo para que continuasse, sem perder os nossa – memória. objectivos que desejava. Madalena Sá e Costa é o testemunho vivo de um tempo em que a Lembro os preparativos para audições e exames, em que a Prof.ª Música era vivida e partilhada de outra forma. O seu conheci- Madalena se empenhava com o maior carinho e dedicação, mento, experiência e sensibilidade musical estão muito para assim como nos incentivava para que, sempre que possível, além das limitações e fronteiras do(s) instrumento(s), relem- assistíssemos a aulas de colegas, mais adiantados ou não, pois brando-nos o porquê de a Música ser, na essência, linguagem assim teríamos a vivência de outras soluções e melhor conheci- verdadeiramente humana e universal. mento do repertório. Professora Madalena, nesta bonita data, apenas me resta dizer Durante esses anos pude conviver com alunos excelentes, que já obrigado. Obrigado por toda a partilha, inspiração, e pelos pre- tocavam na orquestra, mas que continuavam a estudar com D. ciosos ensinamentos que nos tem deixado!

44 | glosas | número 13 | novembro | 2015 entrevista nuno da rocha António Pinho Vargas –, e permitirem-me desenvolver a minha lúis salgueiro | ENTREVISTA E TRANSCRIÇÃO escrita. Naquele início foi bom ter o Vasco Mendonça, meu pri- meiro professor de Composição, porque realmente percebia cer- tas coisas que eu talvez só mais tarde tenha vindo a compreender, Muito obrigado, Nuno da Rocha, pelo tempo de que e acabou por me proteger. Qualquer compositor sem essa sensi- dipuseste para esta entrevista à Glosas. Permite-me que bilidade olharia para mim, na altura, e teria dito: “Este miúdo das comecemos pela Restart, encomenda da Fundação Gul- bossas novas quer escrever Música. Não pode!” Mas ele não fez benkian. Na apresentação da temporada, ironizavas isso e ajudou-me sempre. Ouviu naturalmente coisas muito más, com as questões que te colocava a apresentação de uma mas ajudou-me a desenvolver-me e acabou por ser um encontro obra ao lado da Sagração da Primavera. Isso influiu muito feliz, porque teve a sensibilidade de me receber num estado directamente sobre a concepção ou sobre a escrita? tão bruto, o que foi um dos primeiros passos para que eu pudesse No princípio, quando recebi a encomenda, ainda não conhecia começar a escrever. Não foi há muito tempo, mas parecem-me já o programa, mas soube pouco depois, o que acabou por consti- coisas muito antigas. Para mim, o Marecos e o Vasco revelaram-se tuir um choque, a par de uma certa alegria por estar junto duas pessoas essenciais, principalmente porque não me fizeram daquelas peças. Creio que nos deixa de algum modo orgulhosos, desistir. Não foi tanto a ligação com a música popular quanto a mas, ao mesmo tempo, se formos lúcidos, extremamente preo- sensibilidade que tiveram de me levar por caminhos que, na cupados; preocupados por vermos o nosso nome ao lado de uma altura, foram bons para mim, e aprendi imensamente com ambos. obra como a Sagração. Foi também interessante perceber que, conhecendo o programa antecipadamente, reconhecia que a Tiveste oportunidade de experimentar esquissos minha peça não poderia ser determinada coisa. Digamos que eu com o grupo do Estágio de Orquestra Gulbenkian. não sabia o que iria a peça ser na altura, mas sabia o que não Que impacte tiveram essas experiências na forma seria: sabia, por exemplo, que não poderia ser frágil. Isto, aliás, final da peça? relaciona-se com o meu passado, o que vejo também na maioria Na forma final da peça… dos compositores que provêm de outras áreas (eu não me consi- dero, de todo, um especialista no cânone da Música Ocidental: Sendo que não existe ainda, talvez…! há tanta coisa em que sou quase completamente analfabeto... às Não: a forma já está concebida agora [Agosto]; na altura, por casu- vezes, quando se fala em repertório clássico, há tanto que des- alidade, não estava. Serviu para experimentar coisas que julgava conheço!). Quando digo que estamos ligados a outras áreas, frágeis, para ter certeza de como resultariam. Na verdade, houve refiro-me à experiência auditiva. Eu nunca toquei rock, mas a coisas que, a meu ver, resultaram bem, enquanto outras houve minha experiência auditiva veio daí, o que acaba por influenciar que ainda pude dizer à Joana [Carneiro] e às secções que queria a nossa escrita quando conhecemos a chamada “música séria”, a mudar e que acabaram por ficar como imaginara; outras simples- música escrita. A nossa base, não obstante, nunca deixa de ser a mente nem vou usar. Acabou por ser importante na forma, por- mesma, e não há nada agora que eu possa fazer em relação a isso: que pelo menos um dos rascunhos que levei tinha definido como boa ou má, é esta, e é interessante percebê-lo em cada composi- o início da peça, mas não sabia que posição viria a ter no resto: e tor de hoje, ouvindo a música que escreve e detectando remis- ali soube o que, por fim, seria e que força iria ter para a forma sões estéticas para fora daquele mundo. Será porventura essa total. Antes do estágio, não saberia se o faria surgir mais tarde, mais uma das razões pelas quais há uma variedade tão grande na qual seria a força daquela frase (é uma frase, com uma melodia música escrita actualmente e em qualquer lado: se virmos, não nos trombones e em duas trompas das quatro): tinha a melodia – há nada que seja unânime em termos estéticos. tinha aquela “pintura” –, mas não sabia até que ponto teria aquilo impacte no resto do que ainda faltava escrever. A partir daquele Como foi a relação, numa fase de infância artística, momento, soube, porque, como naquele trecho a maioria da que mantiveste com compositores como Vasco Men- música não tem alturas definidas, quer queiramos, quer não, será donça, com uma experiência prévia na área do Jazz, ou sempre uma grande surpresa nas cores todas de cada uma daque- Carlos Marecos, de referências igualmente diversas? las colcheias. E será sempre uma surpresa: podemos ter noção da É curioso que mo perguntes, por estarmos ligados de algum densidade, mas surpreender-nos-á inevitavelmente a interacção modo, mas não por isso. Foi mesmo por eles me terem transmi- de todos os timbres. tido, nos tempos, a técnica básica – e mais tarde, na Escola Supe- De resto, hoje em dia é raríssima a possibilidade de experimen- rior de Música de Lisboa, já com o Luís Tinoco, o Carlos Caires e o tar, ainda para mais com uma orquestra excepcional, que tocou,

glosas | número 13 | novembro | 2015 | 45 mesmo numa leitura, com muito ímpeto, força e dinâmica – e eu dera ter escrito este momento tão… mesmo bonito!” E há outros gosto disso. É uma oportunidade de corrigir, o que faz parte do em que foste tu quem escreveu e dizes, ainda assim: “Quem me dera crescimento da nossa técnica, do nosso próprio crescimento ter sido eu a escrever isto!” É interessante, porque acabaste por ser como compositores. Como se diz, “vale mais um ensaio da nossa tu, mas ao mesmo tempo não foste. Musicalmente é muito interes- música do que um ano de aulas de Composição”, e eu sincera- sante e, ao mesmo tempo, para quem está afastado da música, se mente – e com toda a certeza – considero-me ainda um estu- quisermos falar sobre a poética da questão, também é fascinante. dante, um aprendiz. Estamos a começar. Quando estive no Festival de Aix-en-Provence, em fins de Junho e no início de Julho, estavam lá muitos criadores – entre Houve oportunidade de trocar impressões directa- compositores, escritores, encenadores – e houve uma colega mente com os jovens do Estágio? Sabes como foram nossa, alemã, que, não obstante esta questão da ausência de recebidos os esquissos? altura definida não ter para nós, músicos, nada de extraordiná- Houve, sim, e fui até eu próprio quem mais o procurou. Tentei rio, achou poeticamente incrível o facto de um músico criar na perceber o que pensavam e, pelo menos, pareceu-me que obtive altura a música. Gostava do princípio de ausência de rigidez na uma recepção positiva. Naturalmente que, no início, quem relação entre o compositor, a peça e os músicos. Ficou fasci- nunca leu uma clave sem alturas definidas, com apenas gestos e nada, com muitas ideias, mesmo para coisas que nada têm a ver afins, não consegue ver totalmente o que se vai passar – e mesmo com Música. Até poeticamente é notável essa liberdade dentro para quem vai dirigir: será sempre uma surpresa para o próprio de uma prisão: eu defino as durações, intensidades, articula- compositor. Para quem toca e foi sempre habituado a ler apenas ções; tudo, excepto a altura exacta. Digo mais ou menos onde o que está escrito, pode ser como se nos tivessem tirado o chão, quero: que seja uma nota por ali – mas nunca esquecendo que é como ter de nadar numa direcção que só os próprios conhe- isso parte de uma ideia essencialmente musical, porque, como cem. Não o compositor: eu apenas lancei os dados e são eles te disse há pouco, cheguei a um ponto em que pensei que, se era quem tem de fazer a música mesmo; mas nos ensaios senti que, isto que procurava, deveria, então, usar e experimentar. a partir da segunda ou terceira vez, se fez Música, se ouviu uma evolução claríssima da sonoridade de todos. Estavam muito E na reacção dos músicos sentiste diferença entre os mais livres, que é, no fundo, o que aquele tipo de música pede. jovens do Estágio Gulbenkian de Orquestra e os Uma coisa interessante é a clave High-Low, dos registos, que vem músicos da Orquestra Gulbenkian? Sentiste uma cli- de Andriessen. Ele próprio, na partitura do Workers Union, diz que vagem geracional na abordagem à Música? os músicos devem tocar aquela linha (não me lembro agora exac- Pela minha parte, e com a experiência que tenho, tenho visto bons tamente) como uma espécie de posição política: “têm de tocar e maus exemplos em todas as gerações. Acabo por não conseguir como se estivessem a dizer a vossa posição política em relação às dizer-te que os jovens estejam mais predispostos a isto. Há jovens coisas” (não de forma frouxa, é o que ele quer dizer, mesmo que a que não estão: não estão mesmo. Mas, ao mesmo tempo, há pes- música esteja escrita em piano e mezzo-piano). Lembrei-me soas de uma geração anterior, como naquele exemplo de Setembro, entretanto de que a Orquestra de Câmara Portuguesa vai tocar na peça em que Lindberg dirigiu a Orquestra Gulbenkian, que se Workers Union agora em Setembro; isto por falarmos no Workers sentem muito à vontade com aquele tipo de notação, em que têm de Union, em Andriessen, que creio ser uma das perguntas que ias decidir quase tudo o que fazer. Estas orquestras cada vez mais per- fazer, por causa das influências... [risos] É sem dúvida uma influ- cebem que não podem tocar só o passado; e só por aí, já é impor- ência, uma das pessoas que realmente mudaram de forma deci- tante. Não é a resposta à tua pergunta, mas acaba por se relacionar: siva a minha escrita. Creio que é um tipo de notação perigoso, mas pelo menos, têm noção de que não podem tocar só o Cânone, por- depois de estudado e depois de experimentar, soa melhor do que que não é o que vai acontecer no futuro, de certeza absoluta. Mas qualquer coisa que tivesse antes escrito. Foi justamente uma das em termos de aceitação, depende mesmo de pessoa para pessoa, e conversas que eu tive com o [Magnus] Lindberg. há músicos com mesmo muito mais idade que recebem melhor estas coisas do que outros com vinte anos. Não creio que tenha a ver Sim, porque esse tipo de notação já tinha aparecido com a idade das pessoas. Por vezes é até o contrário: as pessoas já em I could not think of thee as piecèd rot, não é ver- viveram tanto que realmente precisam de lavar um pouco... dade? Sim, e noutras. Essa foi já a segunda peça em que a usei. De um estímulo novo...? Claro que sim, e o nosso papel enquanto compositores também Qual foi a primeira? passa por uma experiência sonora nova, por regras diferentes, Foi o Concerto para trompete e acordeão. porque uma partitura é uma coisa muito fechada, muito qua- drada – os nossos compassos –, muito quadrada! Isto falando de A Philippina! música para orquestra, porque está claro que com um ensemble é Sim. Lindberg perguntou-me: “Mas temos mesmo de…?” Porque possível fazer coisas muito bem feitas e fora de uma partitura. ele gostava daquele som experimentado na orquestra, daquele Mas obviamente que, para juntar oitenta pessoas, é muito difícil bloco, e dizia-me que haveríamos de experimentar ainda assim, senão através de uma ligação de compasso. Pode não ser o com- mas com as alturas escritas. E eu, que estava sempre a contrariá-lo, passo, podem ser referências ou chamadas. creio que ele também acabou por acreditar um pouco em mim. Lin- dberg é a melhor pessoa para tentar uma coisa dessas, mas acho que Outro recurso que tens vindo a empregar é o canto não conseguiria, porque o que eu imagino é mesmo isto. A cor de dentro do ensemble (ou da orquestra, neste caso). acaba por ser uma surpresa, mas é mesmo o que eu queria! Até há Como foi que isso surgiu? momentos – e tu, como compositor, sabes – em que estás a ouvir É um recurso inesperado. Tu, que estiveste nos ensaios de Julho da uma peça (e por vezes acontece-me e eu perco a cabeça): “Quem me Restart, apercebeste-te de que assim é realmente. Eu adoro a tran- dera ter escrito isto! Quem me dera ter tido esta ideia. Quem me sição de cordas para a voz, bem como aquele contexto sonoro de um

46 | glosas | número 13 | novembro | 2015 não-cantor, aquela imperfeição na voz de quem não é, de facto, um Reflectindo após este ano particularmente intenso, cantor, efeito (chamemos-lhe assim) que eu tento combinar, como sentes a formação de um projecto artístico emer- uma imagem não rigorosa, nos meus ambientes musicais. Outro gente? Ainda procuras uma direcção – ou é desejável motivo que me faz usar esse recurso é estabelecer uma relação de uma direcção – para apontares o teu foco criativo? intimidade com os instrumentistas, que é uma das coisas mais Uma coisa que aprendi recentemente e que pode até parecer uma importantes que pode existir quando se está a fazer Música: a ligação ideia poética, mas que creio que só a idade traz (a Cristina, minha entre as pessoas. Obviamente não estou à espera de que isso seja mulher, está sempre a dizer-me o mesmo), foi que não devemos logo bem recebido, porque um instrumentista que estudou décadas querer ser mais do que aquilo que somos ou podemos ser; isto é, e chega a um ponto em que, na partitura, tem de cantar o que está a tudo o que façamos deve ser tão honesto quanto possível. Quando tocar creio que tem toda a legitimidade para dizer que não foi aquilo digo isto, refiro-me, por exemplo, à escrita de uma melodia. Por que estudou. Todavia, eu tento, com muita calma, mostrar-lhes que vezes preciso de uma frase, vejo-a e penso que parece a coisa mais é parte daquele mundo sonoro e, quando experimentam, sinto que lírica-chapada-já-inventada-há-duzentos-anos possível, mas ao gostam de o fazer e que acaba por ser confortável, porque eu obvia- mesmo tempo tenho de respeitar isso, não posso fazer alguma mente nunca peço que cantem notas que não estão a tocar e serão coisa com que depois não me identifique. Não se trata de deixar- sempre passagens muito lisas. É, em suma, um contexto de intimi- mos de ser críticos com a nossa música, mas de não criticarmos a dade com o músico e com a Música em si que gosto de explorar. base daquilo que fizemos. De facto, por mais que outros gostem ou não (não é isso que me faz escrever, e creio que ninguém), temos Encontras-te neste momento numa posição privile- o dever de ser o mais honestos possível – sempre críticos com o giada: em diálogo simultâneo com as duas maiores que fazemos, mas sempre honestos e não querermos ser outros. instituições do País neste campo. Como decorrem os Aliás, o próprio ensino da composição incute-nos isso: o estudo trabalhos no Porto e que espaço te é dado como das peças, do repertório... uma das principais coisas que aprendi Jovem Compositor Residente da Casa da Música? Que com o Vasco Mendonça foi não sacralizar: “Não penses nisso como peças vão resultar da residência? se fosse a Bíblia.” Isto foi uma grande lição, que só agora estou a A residência decorre durante este ano de 2015, mas na verdade perceber, ou pelo menos a aplicar, ao mesmo tempo que, eviden- eu começo-a agora, entre Setembro e Outubro. Quando digo temente, é inescapável que tenhamos de aprender com os grandes. que começo, refiro-me a trabalhar no terreno. As peças já foram Agora, todavia, percebo exactamente o que ele queria dizer: não entregues, mas os ensaios começarão só em Setembro, altura podemos olhar para um objecto e querermos ser o mesmo objecto: em que estarei realmente na Casa da Música. Vão resultar daqui nós somos um objecto próprio. Melhoremos o que for possível, três estreias, todas obras encomendadas. Curiosamente, serão tendo em conta observações de outros, mas não pretendamos ser todas em Outubro: três peças na Casa da Música, que com a Res- outro. Eu continuo obviamente a olhar para peças, continuo a tart na Gulbenkian, também em Outubro, perfazem quatro estudar, mas já não da mesma maneira: estudo alguma coisa, mas estreias num mês, o que é algo realmente invulgar nos dias que tento perceber como aquilo que ouço, e no que quero, me vai aju- correm. Creio mesmo que nunca mais me acontecerá! dar, o que creio que é essencial. Sinto muitas vezes, principal- A primeira peça é para o trio que ganhou o Prémio Jovens Músicos mente quando estou a lidar com compositores de outros países, em Música de Câmara de nível superior no ano passado, o Trio ligados aos IRCAMs, às grandes instituições, que vão a Darmstadt, Portucale: flauta, viola e harpa. Eu fiquei feliz quando soube que por exemplo, que quando ouço quatro, ouço um! Quase não é pos- uma das encomendas seria para aquele trio, porque de facto me sível perceber qualquer individualidade, o que creio que é uma agrada a formação: ligará sempre muito bem, não é preciso fazer pena, que é a morte deles, e que tem a ver com isso de se sacralizar. muito para que resulte! A verdade é que, das três peças para a Casa Penso que nós, compositores, somos habituados a querer sempre da Música, foi aquela que maior trabalho criativo me deu, porque – lá está, tem a ver com a Sagração – ver em tudo um monumento, foi difícil sair de uma ideia horizontal de música melódica. Aliás quando às vezes o monumento é aquilo que há dentro de nós e que não saí, tanto que a peça se chama Cinco Melodias em Dó! [risos] É nunca vamos escrever, simplesmente porque nos vemos sempre uma peça que também usa o recurso da voz: começa com um como pobrezinhos à beira de um repertório pesado. Foi essa uma grande solo de harpa, em que ela canta... mas de facto digo que foi das maiores lições que aprendi enquanto estudante do Vasco. a peça que me foi mais difícil escrever das três. Outro dos meus grandes ensinamentos, neste caso do [António] Na semana seguinte, dia 20, estreia a peça para o Remix Ensemble, Pinho Vargas, foi também que “um compositor tem sorte ou tem que foi a segunda encomenda: Passacaglia. Como o nome indica, azar”. É mesmo verdade: e eu também tenho tido consciência tem a forma, ou quase, de uma passacaglia, mas aqui o estranho é disso. Isto, claro, se formos sempre tão honestos quanto possí- que a linha que determina este ostinato melódico grave é feita nos vel. Há sempre coisas que correrão mal, porque não somos per- tímpanos. E portanto serão oito minutos a ouvir tímpanos a fazer feitos... portanto, se lançarmos tudo cá para fora, haverá coisas sempre a mesma coisa! [risos] Eu espero que resulte. Creio que de que não iremos gostar, mas só assim conseguiremos fazer o gosto: vamos ver agora nos ensaios e no concerto. Foi uma ideia melhor daquilo que inicialmente imagináramos. Estas são duas que tive para usar esta forma, que me interessava há muito. ideias que eu guardo sempre. Depois, tenho a sorte também de ter tido uma terceira encomenda Ao mesmo tempo, em termos de objectivos, creio que os composi- para a Orquestra Sinfónica da Casa da Música: uma peça que se tores mais novos devem olhar sempre para cima. Assim: não sacra- chama Pitch, de altura. E, como eu tenho vindo a explorar nas últi- lizar, mas ao mesmo tempo ter sempre objectivos, sobretudo dar a mas peças, praticamente nunca usa alturas definidas. É, portanto, ouvir a nossa música no estrangeiro; e, muito sinceramente, a uma obra para grande orquestra que raramente tem alturas defini- nossa música contemporânea está muito bem representada: uma das. Eu não tenho muito a dizer sobre peças sem texto porque é das provas disso foi esta última Tribuna Internacional de Composi- para mim difícil falar de Música pela Música: eu gosto de sentir tores, em que, dos três compositores que levámos, o único que não esta abstracção; ela não tem de dizer nada, não tem de significar levou uma recomendação fui eu...! [risos] Temos de acreditar nisso, nada – e é por isso que eu a considero a maior das Artes. lançarmo-nos lá fora e conhecermos estes festivais. É um facto que

glosas | número 13 | novembro | 2015 | 47 instituições como a Fundação Gulbenkian e a Casa da Música têm E para além de influências musicais directas, como as de ter esse papel de nos pôr a circular, porque nós também, a partir que já abordaste, há na tua produção artística de casa, não conseguimos fazer esse trabalho. Por aí, tenho a dizer influências extra-musicais explícitas? que estou muito grato para com esta rede ENOA [European Network Lembro-me de inicialmente ser muito poético, de conceptuali- of Opera Academies], porque tenho circulado e feito esse percurso, zar tudo... num espectáculo, durante as Peças Frescas1, dava ao que me deixa contente, por me abrir caminhos para fora. Portugal é público papéis para rasgar – a peça, para dois percussionistas e um país muito pequeno – e então na nossa área...! É como antes um piano, chamava-se Desassossego. Os espectadores tinham dizias: “a Casa da Música e a Gulbenkian constituem uma situação um papel, com uma palavra, que podiam rasgar durante a peça. privilegiada.” Sim, de facto... mas no próximo ano? Tenho de ir Na altura talvez o não quisesse admitir, mas o conceito seria para outros lados, não posso estar parado à espera de que, uma vez tanto ou mais importante do que a própria música; e o que fui mais, a Casa da Música e a Gulbenkian me convidem. Obviamente aprendendo ao longo destes anos é que, por muito interessante quero que aconteça, mas temos de olhar para cima, sempre como que possa ser associar à música outras ideias, o pensamento objectivo e não como miradouro, não como olharmos para cima musical tem de ser o pilar fundamental: nunca o contrário. para os grandes e acharmos que estas peças são magníficas e que Mesmo, por exemplo, aquela peça em Setembro, na Gulbenkian, vamos simplesmente estudá-las. com Lindberg, acabou por ser quase dramática, mas esse peso não Mesmo se pensarmos nos grandes compositores do Cânone, surgiu antes da ideia musical. Nada foi pensado como motivação mesmo no séc. XX, eram sobretudo pessoas livres, honestas. da personagem; foi, sim, o texto, que continha uma história muito Fizeram o melhor que puderam, temos esses nomes todos, que interessante, sobre morte, e todo o peso que a música veio depois são brilhantes, mas creio que também não podemos cair no erro trazer acabou por o transformar quase numa cena de ópera. Em de olhar para essas obras como para um palácio. Não pode ser: primeiro lugar, surgiu a ideia de escrever o solo, depois o texto, temos de estudar, sim, mas não, como disse o Vasco, sacralizar; que reforçou essa ideia, e em seguida a música, acabando por se não olhar para as obras que são objecto do nosso estudo como se tornar um conjunto exponencial, uma combinação de ambos. Não fossem a última coisa a ser feita no mundo, ou então nunca serí- é, todavia, uma questão que me preocupe extraordinariamente. amos compositores! Escrever música pode ser uma de duas coisas, e eu tenho um No entanto, tiveste intenção de lidar com elemento pouco de ambas: algo naïf – porque, ao querermos ser composito- teatrais – teatrais no sentido de uma estratigrafia res, é como se disséssemos que poderíamos ter alguma coisa a de significação – no teu trabalho com a Dança, pelo dizer por entre tudo o que já existe, o que pode, por si só, ser uma que convives bem com a explicitação de elementos ilusão inevitável. Ao mesmo tempo, temos de partir para esse extra-musicais. campo sem sequer percebermos que o mundo é tão vasto que não Quando fui recentemente para Aix-en-Provence, tive oportu- somos mais do que uma migalha. Essa naïveté é, todavia, o que nos nidade de conviver com todos aqueles criadores e o meu objec- faz ir para o campo: se não, acabaremos por nem sequer ir. E tivo foi sobretudo apresentar trabalho, falar sobre Ópera e depois, como Pinho Vargas me dizia, é uma questão de sorte ou de conhecer pessoas do mundo da Ópera (e falamos de Katie azar. Como nestas oportunidades de trabalhar com a Casa da Mitchell, Peter Sellars e de tantas outras pessoas que eu não Música ou com a Gulbenkian, temos de ter alguma consciência e conhecia). Uma das primeiras coisas que lá disse foi que eu devo perceber que é um grande risco. Pode ser quase sempre um jogo estar no fim de uma lista das pessoas no mundo que gostam de sorte ou azar; agora, nós temos, sim, de saber viver com isso. desse género musical. Fundamentalmente, considero a Ópera Não podemos pensar que somos o pior dos compositores se vier a um conjunto de componentes que, uma vez que eu gosto muito correr mal, mas também não podemos pensar que somos o de Música – realmente dos sons –, se perdem excessivamente melhor por termos sido escolhidos para escrever uma peça para a uns por entre os outros, com o texto, etc... tem de ser mesmo Gulbenkian – de todo, porque dentro do grupo que ali estava em alguma coisa muito bem feita. Há, todavia, outras justaposições Setembro, eu admiro quase todos: ouço de facto e gosto de ouvir a de áreas que considero felizes, que é o caso da Dança. Ainda não música deles – não é só dizer que está bem: está bem escrito. Faz a explorei como gostaria, mas no futuro fá-lo-ei seguramente. parte da música que ouço em casa; e é muito raro ouvir em casa Para mim, a Dança é uma espécie de Música impossível: há, a uma peça de um compositor, por exemplo, do Romantismo: em meu ver, demasiados limites impostos à Música, enquanto na primeiro lugar, porque desconheço a maioria do repertório, em Dança há uma expressão mais livre. São absolutamente distin- segundo, porque também não tenho interesse. A minha experi- tas, claro: uma é visual, outra parte da experiência sonora. Eu ência musical é esta. Ali eu era admirador pelo menos de todos os gostaria, não obstante, de que a Música fosse por vezes como o portugueses que conhecia. Assim, acaba por ser uma questão de gesto de um braço... tem tantos pontos no espaço e é algo tão sorte ou azar: não há compositor que não faça peças más. Ouvi livre como a Música nunca conseguirá ser. Nunca poderá ser tão uma vez Martijn Padding dizer que o único compositor que nunca sublime... portanto, eu vejo na Dança uma espécie de Música escreveu uma coisa má foi Ravel. Eu não acredito, mas do reper- sublimada: o corpo tem uma liberdade que um instrumento não tório que nós conhecemos, talvez tivesse razão. Ainda mais pode ter, com uma tão grande quantidade de pontos móveis, de quando somos novos, não é possível... uma maneira tão ligada, articulada. A voz, por seu lado, é já parte do nosso mundo: pode dizer palavras, o que é quase musical. Não há corpo para julgar... Em Setembro, vamos estar outra vez em Aix-en-Provence, com Por amor de Deus! Nós escrevemos meia dúzia de peças: como é Martin Crimp, autor dos libretos para o [George] Benjamin, a que podemos...? Tudo o que é possível é gostarmos do que faze- trabalhar com o Nicholas McNair: eu, o Igor [Silva] e o Pedro mos, sermos honestos e querermos descobrir quem somos Faria Gomes em Gent, no Estúdio de Ópera. Vamos trabalhar realmente, sem copiar outros, o que só se descobre escrevendo, sobre o mito de Orfeu, de forma plural, com vários criadores. escrevendo, escrevendo... é por isso que talvez só agora eu per- Será a minha primeira experiência integrada com encenação, ceba o que o Vasco me disse já há cerca de nove anos. que eu penso sempre – lá está – que fragiliza.

48 | glosas | número 13 | novembro | 2015 E ainda veremos a Philippina dançada? Mas referia-me ao bailado na sua acepção própria. Não sei. Eu imaginei-a coreografada, mas não sei se terei essa Na verdade, não sei como irei começar esse percurso, pelo que oportunidade. Creio que verei a Philippina tocada em Zurique ainda o não imagino... isto é, imagino-me a trabalhar com core- nos próximos tempos, graças aos esforços do Marco [Silva], que ógrafos, mas não consigo perspectivar o primeiro projecto. a estreou. Em nenhuma das nossas conversas, contudo, sobre- veio a ideia de que viesse a ser dançada. Mas mesmo que não A verdade é que os grandes projectos carecem da media- venha a ser, serviu à concepção musical, o que já foi importante. ção de uma instituição, o que é à partida limitador... Naturalmente, mas eu próprio não tenho tido tempo, pelo Consideravas no início, todavia, que não davas pri- menos no último ano, para pensar nesse caminho. Ainda assim, mazia a influências extra-musicais... e mesmo pelos meus meios, da mesma forma como falei acade- No caso desta peça, tenho de mentir, sim... aliás, houve momen- micamente com o coreógrafo e os bailarinos e trabalhei com tos em que imaginei primeiro duas pessoas no palco e só depois eles, conseguirei chegar a apresentar trabalhos meus em a música, como uma coreografia acompanhada. A minha inten- público. Antes disso, preciso, todavia, de perceber o que quero ção não era tanto explorar ideias extra-musicais, mas perceber e de que forma... mas é importante o que dizes a respeito do como o que eu imaginara viria a ser compreendido por alguém anti-bailado. Já em 2017 haverá um projecto que me obrigará a como um coreógrafo, e o que o meu gesto daria ao gesto dele. A reflectir sobre isso, uma espécie de ópera infantil que o Conser- ideia nem era tanto artística, mas antes estudar a ideia de gesto vatório do Montijo vai fazer, com crianças e adultos, mas com musical, que para mim é a única que tem sentido estudar-se em uma história de temática infantil. Como também a Escola de Música. É claro que o gesto musical, como sabes, pode ser inter- Dança do Conservatório do Montijo intervirá no espectáculo, pretado de maneiras diferentes; mas é a primeira coisa que eu será uma oportunidade para pensar essa relação. componho: é a resposta à pergunta “O que é que eu quero?”, o gesto que quero no momento em que escrevo. Muitas vezes digo Como Monster in the Maze, de Jonathan Dove? a colegas do meio musical, e tenho praticamente a certeza de Foi, por acaso, uma das coisas de que falámos em Aix. Esta ideia que é verdade, que é muito fácil encontrar uma melodia bem em 2017 será escrever música para os graus em que as crianças escrita no contexto da música popular, enquanto num contexto estejam, juntando-as aos adultos e associando-lhes um coro de música escrita, do Cânone, é mais difícil. Questiono-me infantil. A encenação estará a cargo do Conservatório de Dança. sempre porque será. Na minha perspectiva, e falando agora da Claro que isto é apenas um projecto de que me lembrei porque se invenção melódica, o gesto de criar uma boa melodia está mais insere na problemática que discutíamos. São coisas que levam próximo da honestidade da música popular do que da música muito tempo e eu tenho algumas a fazer no próximo ano no que se mais pensada e cerebral. Creio que a combinação perfeita seria refere apenas à música instrumental; além disso, também quero a do pensamento horizontal popular com o pensamento ten- lançar o disco do Coro Infantil do Instituto Gregoriano... dencialmente vertical da música escrita. É por vezes difícil, pelo menos para mim, encontrar uma melo- Que já começou a ser gravado, mas resta uma peça dia excepcionalmente bem construída num qualquer composi- por escrever... tor do nosso Cânone. A organicidade e a honestidade do gesto Não uma, mas quatro ou cinco...! É um ciclo de canções. Inter- são essenciais à escrita de uma linha para que faça sentido rompi-o há cerca de meio ano, mas em mais dois meses estará musicalmente, o que é muito natural para a música popular, em pronto. Esse será um grande disco: com o coro da Filipa [Palha- cuja base se encontra já impressa esta construção. Nesse sen- res], e estas últimas peças são para piano preparado e doze tido, as harmonizações de Berio nas Folk Songs são onde encon- vozes. A juntar depois à Missa que escrevi para coro infantil tro algumas das coisas mais bonitas alguma vez feitas em Música! [Assim, do tempo em que me falavas, 2011] e à outra peça de Natal Ali está presente o tratamento horizontal característico do pen- [De novo, um assim, 2012], pretende-se, em Agosto ou Setem- samento popular, a par com a estruturação harmónica do com- bro, lançar o CD. São esses os projectos para o próximo ano. Mas positor, conjugando todos aqueles timbres num grupo e resul- passando esta fase da Casa da Música e da Gulbenkian, acabo tando na melhor das combinações possíveis. por ter mais disponibilidade mental para pensar neste assunto da Dança. Ainda não sei que tempo terei em 2016, mas acredito Regressemos, então, à questão da Dança. A Ópera, que vá pensando, porque me interessa realmente. Como te embora integre uma narrativa no seu âmago, é um disse, sinto que a Dança é tal qual a Música, no expoente máximo trabalho de compositores e pertence-lhes muito mais de liberdade: é o que eu gostava de exprimir. Se fossem sons, enquanto obra artística, geralmente, do que aos seria extraordinário: a melhor música do mundo! libretistas. No bailado é o oposto: há muitos desafios à colaboração, subalternizando-se por vezes o papel Muito obrigado, Nuno! do compositor à concepção da coreografia. Não Obrigado. sendo tão natural a Ópera para ti, já experimentaste abordar a criação de algo teatral no bailado? Mesmo que à semelhança de Andriessen: tendo ele anti-óperas, fazer um anti-bailado, que se expresse através da linguagem no espaço de um corpo com alguma paridade entre a Música e o gesto da Dança? notas Não sei se é exactamente aquilo a que te referes, mas já existem 1 O projecto Peças Frescas foi desenvolvido pela Escola Superior de Música de Lisboa desde 2002, em parceria com o Teatro Municipal de São Luiz, prevendo a algumas experiências nesse sentido, como o recurso a instru- apresentação em concerto de obras de estudantes de Composição da ESML e a mentistas no palco. Para mim é interessante e imagino fazer promoção do estabelecimento de novos vínculos com o público interessado na alguma coisa desse género. criação musical contemporânea. (Nota do transcr.)

glosas | número 13 | novembro | 2015 | 49 50 | glosas | número 13 | novembro | 2015 Cadernos de Musicologia

Fernando Corrêa de Oliveira e o ensino do Piano

partes nucleares: Simetria Sonora e A iniciação pianística pelo CARLA MANUELA MEIRA MACHADO NOGUEIRA1 2 método da Posição Estática. Em primeiro lugar, procuraremos E HELENA MARIA DA SILVA SANTANA | TEXTO descrever brevemente o sistema de composição desenvolvido artigo seleccionado pelo Conselho Científico Lusófono pelo autor (Simetria Sonora), cuja inclusão se nos afigura funda- mental para a compreensão dos princípios pedagógicos aloca- Resumo dos ao seu método de iniciação pianística. Por último, foi nossa intenção debruçarmo-nos especificamente sobre a proposta Com o método da Posição Estática, Fernando Corrêa de pedagógica que o compositor nos legou para o ensino do Piano a Oliveira (1921-2004) pretendeu criar um modelo de ensino do principiantes, o método da Posição Estática, com que abriu Piano para principiantes que contemplasse uma educação ato- caminho a novos campos de acção educativa. nal e que, ao mesmo tempo, levasse o aluno a conseguir ler a Será, neste contexto, ainda importante abordar previa- partitura desde a primeira lição. A característica mais impor- mente alguns dados biográficos do compositor portuense. Nas- tante deste método é a constância de uma só posição da mão cido a 2 de Novembro de 1921, foi também na cidade do Porto sobre um determinado grupo de notas, processo que o autor que faleceu, a 21 de Outubro de 2004. Foi aluno do Conservató- aplicou na obra didáctica 50 Peças para os Cinco Dedos, Op. 7. rio de Música do Porto, onde completou os cursos superiores de Neste ensaio descevê-lo-emos, evidenciando as motivações Composição e Piano sob a orientação de Cláudio Carneyro e que levaram Corrêa de Oliveira a construir um modelo tão ino- Maria Adelaide Diogo de Freitas Gonçalves, respectivamente. vador e diferente, focando a nossa atenção no seu percurso bio- Em Paris, em 1948, tomou conhecimento do sistema de notação gráfico, no sistema de composição que criou (Simetria Sonora) e, de Nikolai Obukhov4, que adoptou e introduziu e divulgou em partindo de manuscritos autógrafos, reflectiremos sobre o con- Portugal. Ainda no mesmo ano, formulou os princípios básicos ceito de Posição Estática e sobre a sua aplicação no ensino do do sistema de composição que designou por Simetria Sonora, e Piano. Na verdade, longos anos de experiência e reflexão leva- em 1949 escreveu a primeira das obras em que utilizou este sis- ram o Autor à perspectiva de que a criança tem um espírito tema, Lugar do Feitiço (1949: fig. 1), para viola solista e orquestra moderno, com vontade de conhecer o futuro, pelo que deve sinfónica. começar por aprender o que de mais moderno se pratica, só posteriormente devendo ser familiarizada com as tradições do passado. Todos os aspectos contemplados por Corrêa de Oli- veira no ensino do Piano resultam, assim, de uma constante tentativa de aliar a modernidade à simplicidade.

Palavras-chave: Posição Estática, Corrêa de Oliveira, Peda- gogia Pianística, Simetria Sonora, 50 Peças para os Cinco Dedos.

Introdução

Neste ensaio pretenderemos estudar o método da Posição fig. 1 – Solo inicial da obra Lugar do Feitiço. (OLIVEIRA 1993: 55) Estática desenvolvido por Corrêa de Oliveira para o ensino do Piano a principiantes, com o intuito de o divulgar e de apresen- Corrêa de Oliveira dedicou-se ainda largamente à pedago- tar informações ainda não disponíveis em edição. O estudo gia musical, escrevendo diversas composições pedagógicas resultou de uma exaustiva e detalhada recolha de informação no onde empregou o sistema de composição referido supra. São de arquivo Parnaso3, pelo que a informação que aqui produzimos destacar, entre outras, 50 Peças para os 5 Dedos, Op. 7 (1952), se baseia num levantamento de fontes primárias, nomeada- destinadas ao ensino do Piano para iniciantes, O Ratinho RÁ-TU- mente fotografias, textos críticos e historiográficos, bibliografia -DI, Op. 8 (1952), destinada à prática do Solfejo para coro infan- específica, programas de concertos, boletins, escritos autógra- til e piano, Trovadores, Op. 9 (1952), para orquestra de cordas, fos, recortes de imprensa, publicações e, entre outros, rascu- Presto, Op. 11 (1955), para flauta, violino, piano a quatro mãos e nhos de discursos proferidos pelo compositor. percussão, e O Cábula, Op. 12 (1956), primeira ópera infantil Uma vez que a herança musical de Corrêa de Oliveira portuguesa. Como o compositor pretendia, estas obras demons- constitui tema abrangente, organiza-se este escrito em duas tram que as crianças são, e empregando palavras suas, “ouvintes

glosas | número 13 | novembro | 2015 | 51 ideais para músicas que muitos adultos julgam ser de difícil dois sentidos. Portanto, estes acordes são simétricos, isto é, a partir compreensão” (OLIVEIRA 1993: 70). Na verdade, a grande pre- do centro há intervalos iguais para cima e para baixo. (OLIVEIRA ocupação do compositor era a formação de um ouvido dodecafó- 1984 c) nico: “Tal como uma criança aprende uma ou várias línguas maternas, aprenderá a linguagem musical que lhe for ensinada, 1.1. Nome das notas de modo natural e sem juízos de valor ou dificuldade” (apud RESENDE 2011: 27). Ao primeiro olhar, a característica que se torna mais evi- Ainda com fins pedagógicos, desenvolveu um aparelho dente é a clara adopção da escrita de Obukhov, que se traduz na constituído por quatro teclados comunicantes com quatro pen- supressão de sustenidos, bemóis e bequadros, abandonando o tagramas translúcidos em que figuravam escalas pentatónicas conceito de “notas alteradas” aplicado no Sistema Tonal. Cada em notação Obukhov chamado Polyphonium, com o objectivo de nota é considerada isoladamente enquanto elemento autó- tornar possíveis improvisos corais dirigidos. Cada tecla estava nomo, à semelhança da escala dodecafónica, fazendo uso de associada a uma nota no pentagrama que se acendia mediante a doze sons que passam a designar-se dó, lo, ré, te, mi, fá, ra, sol, tu, sua activação. A duração das figuras era dada pelo tempo em que lá, di e si (fig. 2). As cinco notas musicais correspondentes às a nota estava iluminada e outras indicações, como a intensidade, teclas pretas do piano são escritas com cruzes oblíquas, eram obtidas através de pedais e manípulos (BORBA 1956: 372). enquanto as restantes sete mantêm a grafia tradicional. Na Em 1955, Oliveira e sua esposa, Maria Feliciana, iniciaram entrevista ao Primeiro de Janeiro, o compositor refere que esta a jornada da criação da escola que denominaram Parnaso. A escrita “por simples ‘cruzinhas’ (…) facilita, extraordinaria- construção do edifício, a cargo do Arq.º José Carlos Loureiro, foi mente, a leitura musical aos iniciados no estudo de qualquer concluída dois anos depois. Nesta escola podia aprender-se instrumento. Por outro lado, a atribuição de um ‘nome’ a um Música, Ballet e Teatro. Possuía ainda um “teatro de bolso” com som que ‘antigamente’ tanto podia ser sustenido como bemol 135 lugares, concebido com preocupações acústicas e frequen- facilita, também, enormemente o reconhecimento auditivo.” temente procurado por editoras de discos, “pois era o melhor (PONTE 1985) estúdio então existente para tal fim” (OLIVEIRA 1993: 80). Sob a orientação de Oliveira, a escola prosseguiu o seu caminho de inovação e de dedicação às crianças, pondo em prática toda a sua obra pedagógica que já referimos. Em 2003, numa entrevista a Sofia Paredes para O Pri- meiro de Janeiro, Corrêa de Oliveira afirmou, com alguma desilu- fig. 2 – nome conferido às notas e respectiva representação simbólica são, “A cidade do Porto não sabe que eu existo. Isto deve-se ao no sistema de composição Simetria Sonora (OLIVEIRA 2001: 3). facto, não de eu estar calado, mas de não ser entendido” (apud RESENDE 2011: 65). 1.2. Classificação de intervalos

1. Simetria Sonora Corrêa de Oliveira completou o sistema de notação de Obukhov desenvolvendo uma nova classificação e organização Foi em 1948 que Fernando Corrêa de Oliveira iniciou a concep- de intervalos, bem como uma nova estruturação de acordes e tualização e escrita de um novo sistema de composição que uma consequentemente criativa forma de cifragem que res- designou por Simetria Sonora (publicado em 1969 e reeditado em ponde às necessidades deste novo sistema. 1990 e 2001), um “sistema de composição que ele próprio uti- liza, estruturado em princípios de carácter filosófico, investi- gado, experimentado e desenvolvido ao longo de quatro déca- Simetria Sonora Sistema Tonal das,” nas palavras de Manuel Ivo Cruz (apud OLIVEIRA 2001: x). Depois de observar um acorde de 5.ª aumentada, Oliveira che- nº de nome do nome do gou à conclusão de que a nota fundamental não seria o baixo, tons intervalo class. intervalo class. mas a nota central, pois “o ouvido fixava-se na nota central por ½ Segunda menor 2.ª m Segunda 2 razões semelhantes às que levavam a vista a procurar os centros 1 Segunda maior 2.ª M Tom 2 de simetria” (FONSECA 1960: 148). Por outras palavras, este 1 ½ Terceira menor 3.ª m Terceira 3 sistema baseia-se na simetria do som, em que o centro do 2 Terceira maior 3.ª M Tercítono 3 acorde funciona como eixo e os intervalos que se formam ascen- 2 ½ Quarta perfeita 4.ª P Quarta 4 dente e descendentemente são reciprocamente iguais e estão 3 Quarta aumentada 4.ª A Quártono 4 inversamente dispostos. Vejamos em seguida a comparação que Quinta diminuta /5.ª D o próprio compositor tece entre o Sistema Tonal e o sistema 3 ½ Quinta perfeita 5.ª P Quinta 5 designado por Simetria Sonora: 4 Sexta menor 6.ª m Quíntono 5 Suponhamos que quando se fala dos acordes tradicionais nós imagi- 4 ½ Sexta maior 6.ª M Sexta 6 namos sempre grupos de notas em sobreposição umas às outras. Por- 5 Sétima menor 7.ª m Sêxtono 6 tanto, um acorde é uma sobreposição de notas e esse grupo de notas 5 ½ Sétima maior 7.ª M Sétima 7 está apoiado na nota mais baixa. O acorde apresenta-se com um 6 Oitava perfeita 8.ª P Séptono 7 carácter de verticalidade; as notas estão umas por cima das outras. No meu sistema de composição esta visão do acorde é modificada. O acorde não está pousado, não está assente na nota mais grave. O acorde está equilibrado em torno da nota do centro e, para que haja equilíbrio, é preciso que haja igualdade de distâncias das notas nos

52 | glosas | número 13 | novembro | 2015 Representação de expoentes

3 sons 4 sons 5 sons 6 sons fig. 3 – Classificação de intervalos (OLIVEIRA 2001: 4) 7 sons 1.3 Classificação de acordes 8 sons 9 sons Oliveira desenvolve o seu sistema de notação baseando-se no conceito de acorde simétrico, que define como um conjunto 10 sons de mais de duas notas com a particularidade de, uma vez dividido 11 sons pelo “centro”, apresentar duas partes com intervalos reciproca- mente iguais e inversamente dispostos (OLIVEIRA 2001: 7). 12 sons

tab. 2 – Representação simbólica de expoentes para acordes homogéneos

O acorde heterogéneo tem como base de cifragem os inter- valos que o constituem, partindo do centro em sentido ascen- fig. 4 – Eixo de simetria na nota-centro: lá (OLIVEIRA 2001: 7) dente. Esta realização prende-se com a simetria do acorde, que permite indicar apenas os intervalos de uma metade, para podermos conhecer os intervalos de todo o acorde. Quando os acordes heterogéneos são constituídos por um número par de sons, o centro é indicado pelo “sinal de intervalo-centro” (Ө) enquanto acordes de número impar de sons são indicados pelo “sinal de nota-centro” ( ) (fig. 7). fig. 5 – Eixo de simetria no intervalo-centro: sol-lá (OLIVEIRA, 2001: 7) •

Como mostram as figuras 4 e 5, o centro do acorde (abre- viadamente “centro”) pode apresentar duas variantes: nota- -centro e intervalo-centro. Constitui o centro o elemento fun- damental para o estabelecimento da simetria do acorde e do seu equilíbrio dentro do sistema de Simetria Sonora. Oliveira agru- pou os acordes em duas secções, acordes homogéneos e hetero- géneos, distinguindo-se os primeiros por serem constituídos por uma única espécie de intervalos e sendo os últimos compos- tos por intervalos de espécies diferentes. fig. 7 – Intervalo-centro e nota-centro no acorde heterogéneo (OLIVEIRA 2001: 15) O acorde homogéneo é cifrado com um algarismo desig- nado por base, que indica a espécie de intervalo de que se com- 2. A iniciação pianística pelo método da Posição Estática põe, e com um expoente determinando o número de notas do acorde (fig. 6). De acordo com esta organização, é possível ela- “A música é uma necessidade humana do intelecto. Não foi borar-se dez combinações para expoentes, o que representa um inventada pelo Homem, foi criada com o Homem” (OLIVEIRA máximo de doze sons por acorde (tabela 2). 1960: 1). Com esta expressão, Fernando Corrêa de Oliveira pre- tende salientar que o Universo possui música própria e que a composição musical, mais do que organizar os sons presentes no Universo, lhes dá um sentido coerente e os integra na vida do ser humano. Por este motivo, Corrêa de Oliveira não aceitou que a eficiência técnica exigida ao estudante de Música pusesse em causa a sua fruição estética e artística. Seguindo esta premissa, o modelo pedagógico criado pelo compositor portuense e apli- cado na escola Parnaso estabelecia que o primeiro conheci- fig. 6 – Cifragem do acorde homogéneo: a base e o expoente (OLIVEIRA 2001: 9) mento a adquirir pelo aluno adviesse da prática instrumental, em lugar de uma exaustiva aprendizagem teórica: por outras Na figura antecedente, o número 2 traçado representa a palavras, o aluno tocaria, por exemplo, uma obra em compasso base, determinando a espécie de intervalos de que é composto o binário antes de ter conhecimento teórico de compasso ou acorde. Os dois pontos dispostos verticalmente representam o interpretaria peças atonais sem antes saber o que é tonalidade. expoente, i.e., indicam que o acorde é constituído por quatro Na verdade, “a compreensão duma teoria tem de ter por base a sons. Seguidamente observemos com maior detalhe as repre- vivência dos factos com que está relacionada” (OLIVEIRA 1985: sentações de expoentes em acordes homogéneos: 4). Assim, Oliveira estabeleceu que o solfejo e a teoria seriam ensinados em função da componente prática, tendo inaugurado

glosas | número 13 | novembro | 2015 | 53 os conceitos de “solfejo relacionado” (i.e., solfejo extraído de “Quando procuramos o Dó temos de encontrar, primeiro, o obras musicais estudadas pelo aluno no seu instrumento) e de grafo de duas teclas pretas que lhe fica contíguo, e assim suces- “teoria relacionada” (a aprendizagem de teoria com base em sivamente. As teclas pretas é que orientam a vida do princi- dados instrumentais já adquiridos). piante” (OLIVEIRA s. d.: 5). Podemos, assim, descrever sucintamente este modelo de No ensino tradicional (i.e., a utilização de repertório ensino como um processo de aquisição de conhecimento tendo escrito utilizando o Sistema Tonal), começar a aprendizagem por base dados já adquiridos através da prática instrumental. pelas teclas pretas implicaria explicar a um principiante, que Pelo que expusemos, este modelo de educação musical coloca ainda ignora as notas naturais, as alterações por sustenido e em primeiro plano a prática, com o objectivo de ajudar o aluno a bemol. No método da Posição Estática as cinco notas corres- compreender mais facilmente a teoria musical e de lhe desper- pondentes às teclas pretas “são consideradas notas naturais tar maior interesse. Em acréscimo, a ânsia de alcançar resulta- com nomes próprios e representáveis na escrita por sinais dos positivos rapidamente e ainda a vontade de conhecer o des- característicos” (OLIVEIRA s. d.: 6). Para além de serem mais conhecido, o moderno, o novo, levam a criança a abandonar facilmente reconhecíveis, as teclas pretas conferem maior facilmente o passado, “o velho”. Partindo desta tese, Oliveira comodidade à posição da mão devido à separação existente tentou delinear um método que conduzisse a criança à moder- entre elas. Neste sentido, a posição mais natural ao piano é nidade, sendo que “a solução [para o] problema da abordagem coincidente com o acorde te-ra-tu-di-lo7 (OLIVEIRA s. d.: 7). rápida do instrumento e da obtenção imediata de resultados A morfologia da mão é, assim, tida em conta pelo autor na ela- práticos está encontrada” (OLIVEIRA 1984a: 61). Corrêa de boração das 50 Peças para os Cinco Dedos, aspecto visível desde a Oliveira refere-se assim à iniciação pianística pelo método da primeira peça, Semibreves (fig. 8), que utiliza a referida sequên- Posição Estática: cia de notas, bem como as dez primeiras obras, à excepção da terceira (com a sequência ra-tu-di-lo-te). Gizei, então, um método em que os principiantes conseguissem ler por música desde a primeira lição de piano, mesmo sem ainda saberem o nome das notas. Foi o método da Posição Estática. As mãos do pianista nunca mudam de lugar, o que lhe permite olhar continua- mente para a música. Esta, por sua vez, está escrita na notação dodecafónica, sem acidentes, o que a torna extraordinariamente simples. (OLIVEIRA 1993: 68-9)

Numa tentativa de criar um modelo que proporcionasse uma educação musical mais completa e eficaz, Corrêa de Oli- veira criou, então, o método que designou por Posição Estática, consistindo na constância de uma única posição da mão sobre um determinado grupo de notas, processo aplicado na obra didáctica de 1952, 50 Peças para os Cinco Dedos, Op. 7: fig. 8 – Semibreves, peça n.º 1 de 50 Peças para os Cinco Dedos.

Imaginemos as mãos de um pianista, colocadas sobre o teclado. Os Conhecer as notas na pauta dedos movem-se, mas as mãos permanecem no lugar. Cada dedo toca sempre a mesma nota. Poderá parecer, em primeira análise, que É necessário ensinar ao aluno a relação entre as notas e o tem de faltar variedade à música composta dentro dos limites da sinal que as representa na pauta. Assim, colocando a mão na Posição Estática. Eu próprio o receava antes de escrever uma série que posição te-ra-tu-di-lo, que servirá para as primeiras lições, o intitulei 50 Peças para os Cinco Dedos. (OLIVEIRA s.d.: 4) aluno poderá observar facilmente que as três notas ra-tu-di estão encostadas umas às outras, enquanto as duas restantes Este método de ensino do Piano resultou de uma longa e ocupam posições mais afastadas. O compositor afirma que desta cuidada reflexão no que concerne aos aspectos problemáticos e forma é possível que o principiante leia desde a primeira lição, ao mesmo tempo fundamentais para uma boa e segura iniciação mesmo ignorando o nome das notas, processo para o qual se ao instrumento: saber o nome das notas, conhecer a sua posição torna essencial o estabelecimento de relações entre as notas, as na pauta, a coordenação das mãos, a leitura nas duas claves, a suas posições no teclado e os símbolos que as representam na execução de notas iguais nas duas mãos, a leitura do ritmo e o partitura (OLIVEIRA s. d.: 7). valor das figuras, a execução de movimentos diferentes em cada mão e a leitura à primeira vista. O discurso subsequente baseia- Coordenação das duas mãos -se num manuscrito redigido por Corrêa de Oliveira em data 5 incerta, A Iniciação pianística de vanguarda pelo método da Posi- Em relação às mãos do pianista, Corrêa de Oliveira tem ção Estática, encontrado no acervo da escola Parnaso. Aquilo de em conta a natureza simétrica da configuração das mãos: “É por que podemos ter certeza é que esta reflexão está na origem do isso que quando toca a escala de Dó em movimento paralelo conceito de Posição Estática e das 50 Peças para os Cinco Dedos. movimenta os dedos diferentemente em cada mão e quando a executa em movimento oposto parece-lhe fazer, com as duas, a Saber o nome das notas mesma coisa. Daqui se conclui que é mais simples tocar duas notas diferentes desde que cada uma corresponda ao mesmo O aluno deverá começar por familiarizar-se com as teclas dedo da mão do que tocar duas notas iguais que tenham de ser pretas do piano.6 Este procedimento deve-se ao facto de as tocadas por dedos diferentes” (OLIVEIRA s. d.: 9). Esta consta- teclas brancas não apresentarem referências que as distingam: tação levou o autor a compor e utilizar nas suas aulas peças em

54 | glosas | número 13 | novembro | 2015 que as mãos tocam simultaneamente com os mesmos dedos, desencadeando movimentos simétricos. Inteiramente em movimento simétrico estão escritas as peças n.º 9 (Movimento Perpétuo), 10 (Coral I), 12 (Brinquedo de Corda), 22 (Dança Arménia), 23 (Conversa de Rãs) e 26 (Tudo vai bem). Outras peças empregam igualmente esta técnica, mas não completamente, como são exemplo as peças n.º 5, À Saída da Escola (compassos 1 a 8, 16 a 24, 32 a 45: fig. 9), ou 31,A Roda dos Cavalinhos (cc. 11 a 27, 42 a 53).

fig. 10 – Semibreves e Mínimas (peça n.º 2 de 50 Peças para os Cinco Dedos)

Leitura de ritmos e valores de figuras

Uma das maiores dificuldades na iniciação pianística é, segundo Oliveira, “tocar a tempo”.8 Sendo a primeira preocupa- ção do principiante ler as notas na pauta e tocá-las correctamente ao piano, ler ainda os valores das figuras parece demasiado, afirma o autor. Para resolver este problema, considerou aconse- lhável dar obras de ritmo uniforme, de que é exemplo a peça n.º fig. 9 – Excerto de À Saída da Escola, peça n.º 5 de 50 Peças para 33, Melodia II (fig. 11). Assim, “se estamos limitados na quanti- os Cinco Dedos. dade, não o estamos tanto na qualidade. É perfeitamente viável que um principiante realize ritmos de curta dificuldade, sob con- A leitura em duas claves dição de ser abordado um de cada vez” (OLIVEIRA s. d.: 13). Por outro lado, considerações sobre a divisão racional dos valores Seguindo esta ideia de simplicidade, nas primeiras aulas deverão ser abordadas posteriormente, com um maior grau de deve ser evitada a leitura em duas claves. Mas, para começar adiantamento. pelo mais fácil, afirma ainda Oliveira, não basta que as duas mãos estejam escritas na clave de Sol; é necessário que notas iguais sejam escritas igualmente. Isto é, se a mão direita toca um Dó no terceiro espaço, na clave de Sol, e a esquerda um Dó da primeira linha suplementar inferior, ainda na clave de Sol, então temos a mesma nota com símbolos diferentes. Será mais simples para o principiante que a mão esquerda esteja escrita com um Dó do terceiro espaço, na clave de Sol, mas acrescentando o sinal de oitava baixa (séptono baixo), o que pode verificar-se nas dez primeiras das 50 Peças para os Cinco Dedos. Este procedimento torna o processo de lei- tura muito mais simples e rápido, pois o aluno encontra uma só forma de escrita para a nota Dó (OLIVEIRA s. d.: 11). Seguindo este raciocínio, a clave de Fá aparece pela primeira vez na peça fig. 11 – Excerto de Melodia II (peça n.º 33 de 50 Peças para os n.º 21, Harpa. Cinco Dedos)

Execução de notas iguais nas duas mãos Execução de movimentos diferentes em cada mão

Para a execução de notas iguais nas duas mãos, Oliveira Depois de superadas as anteriores dificuldades, chega refere que o aluno deverá apoiar-se na audição e na visão, pois a altura de se introduzir a independência das mãos através de vê as mesmas notas e ouve o mesmo som. Nas peças em movi- peças que exijam dificuldades diferentes para cada mão. Nesta mento simétrico vê e ouve notas diferentes, mas toca com os matéria, Corrêa de Oliveira distingue “controlo independente” mesmos dedos. As obras integralmente escritas com notas (fig. 12) de “controlo conjugado” (fig. 13) e “controlo misto”. O iguais para as duas mãos são as peças n.º 1 (Semibreves), 2 (Semi- primeiro é o mais exigente para o pianista, pois “prestar igual breves e Mínimas: fig. 10), 4 (Semibreves Mínimas Semínimas Col- atenção às duas mãos é como atentar em duas conversas sem dar cheias) e 6 (Canon; com a particularidade de fazer uso do pro- preferência a nenhuma” (OLIVEIRA s. d.: 16). Por outras pala- cesso de escrita em cânone). vras, conferir igual importância e eficácia técnica às mãos exige um estudo das mãos em separado e um apreciável grau de desen- voltura técnica. A grande dificuldade no controlo independente das mãos resulta muitas vezes, de acordo com o autor, numa situ- ação intermédia: uma das mãos é alvo de atenção concentrada e a outra de atenção dispersa, modificando-se para “controlo misto”.

glosas | número 13 | novembro | 2015 | 55 No “controlo conjugado” o pianista sabe que as duas mãos tocam diminuir a dificuldade de execução, o andamento deve ser lento, dedos iguais, pelo que lhe é suficiente olhar para a escrita de uma os movimentos simétricos ou paralelos, os ritmos uniformes, as para tocar a outra mão automaticamente. Depois de esclarecer as frases preferencialmente repetidas e de estrutura bem definida formas de controlo das mãos a que é sujeito o pianista e o esforço e, finalmente, o sentido do discurso musical deve ser claro e inerente a cada um, torna-se claro que as primeiras peças a dar a discreto (OLIVEIRA s. d.: 21). Conclui Corrêa de Oliveira a teo- um principiante devem contemplar a execução simétrica que rização do seguinte modo: compreende o “controlo conjugado”. Observando e reflectindo, resumi os elementos que acabo de expor. O fruto desse labor foram as 50 Peças para os Cinco Dedos, obra que expressamente escrevi para todos os que iniciam a difícil cami- nhada da aprendizagem do piano, esperançado em transformar algumas horas de fastidioso trabalho noutras tantas de esperan- çoso e alegre estudo. (OLIVEIRA s. d.: 22)

Conclusões

Durante o século XX, do mesmo modo que por toda a Europa se verificou um surgimento de diversos movimentos artísticos que procuraram novas alternativas ao Sistema Tonal, de que é exemplo o Dodecafonismo de Schoenberg (1874- fig. 12 – “Controlo independente” (excerto de Romanza III, 1951), também em Portugal Fernando Corrêa de Oliveira se n.º 25 de 50 Peças para os Cinco Dedos) dedicou à busca de uma nova linguagem musical9 através da qual pudesse exprimir-se como criador e que ao mesmo tempo fosse ao encontro das necessidades da sociedade moderna. Neste percurso, o compositor portuense desenvolveu um tra- tado próprio de composição, Simetria Sonora, que utilizou nos seus trabalhos musicais, bem como um eficaz modelo de ensino e diversas obras didácticas para as mais variadas for- mações, que pudessem acompanhar os alunos na compreen- são do seu universo musical. Neste ensaio, a nossa atenção recaiu especialmente sobre o método da Posição Estática, que o compositor escreveu para o ensino do Piano a iniciantes. Pelo que expusemos, podemos concluir que a eficácia deste método resulta da cuidada estrutu- ração aplicada à gradação do conhecimento providenciado ao aluno. Não deve ser demasiadamente desafiante, o que poderia fig. 13 – “Controlo conjugado” (excerto de Brinquedo de Corda, tornar-se desmotivador, nem demasiadamente evidente ou n.º 12 de 50 Peças para os Cinco Dedos) fácil, pois poderia levar igualmente ao desinteresse. Assim, a progressão deve ser rápida, mas não vã, preocupada, mas não minuciosamente exaustiva. Leitura à primeira vista Em suma, a maior preocupação de Corrêa de Oliveira foi desenvolver não apenas uma escrita musical mais simples Corrêa de Oliveira conclui as suas reflexões com o que permitisse uma aprendizagem rápida e menos maça- magno problema da leitura à primeira vista. O autor diz-nos que dora, mas também proporcionar aos seus alunos o contacto não é totalmente verdade pensar-se que apenas se será capaz de com a música contemporânea, tentando desenvolver neles ler à primeira vista quando se for detentor de uma grande um ouvido dodecafónico. desenvoltura técnica: “Encontramos bons pianistas que têm menor facilidade de leitura que outros de menor quilate artís- referências bibliográficas tico” (OLIVEIRA s. d.: 18). A facilidade de ler rapidamente ADORNO, Theodor W. (1993). A Filosofia da Nova Música, São depende, em primeiro lugar, da rapidez com que é assimilado Paulo, Perspectiva; pelo cérebro o que os olhos vêem; em segundo plano fica a capa- AGAY, Denes (2011). Learning to Play Piano. Book 1 (Getting cidade motora para realizar a tarefa proposta. Started!), Londres, Wise Publications; Para facilitar a aquisição de leitura à primeira vista no BORBA, Tomás e LOPES-GRAÇA, Fernando (1956/58). Dicio- principiante, Corrêa de Oliveira refere que deve limitar-se a nário de Música, Lisboa, Figueirinhas (reed. Cosmos); cinco o número de notas, teclas e dedos a ler, espacializar e exe- CUNHA, J. P. (2003). Fernando Corrêa de Oliveira. Life, Work, cutar por parte do principiante, sem esquecer de utilizar a clave and Position within the Twentieth Century (Diss.), Manchester de Sol para as duas mãos e escrever as notas no mesmo registo, University; complementando a mão esquerda com o sinal de oitava baixa FONSECA, Manuel Dias da (1960). “Uma entrevista com Fer- (séptono baixo na Simetria Sonora). Em relação à complexidade nando Corrêa de Oliveira”, Vértice XX, nº 198, pp. 148-151; da leitura, afirma o autor que não deve haver mais de uma nota HARPER, Nancy Lee (1999). A Disciplina da Área Específica V de de cada vez em cada mão, em que o movimento simétrico pro- Piano (relatório para Professor Associado), Universidade de porcionará um “controlo conjugado” (OLIVEIRA s. d.: 20). Para Aveiro;

56 | glosas | número 13 | novembro | 2015 KRAMER, Jonathan D. (2002). “The Musical Avant-Garde”, in notas Larry SITSKY (ed.), Music of the Twentieth-Century Avant-Garde: 1Licenciada em Música (variante Piano) pela Universidade de Aveiro, fre- a Biocritical Sourcebook, Westport, Greenwood Press, pp. xi- quenta o Mestrado em Ensino da Música na mesma Universidade. Durante o seu percurso académico participou em vários concursos de Piano, tendo sido -xviii; galardoada em todos. KREADER, Barbara et Alii (1998). Piano Lessons, Book 1. Hal 2 Licenciada em Música pela Escola Superior de Música e Artes do Espectá- Leonard Corporation; culo do Porto, Mestre em Música e Musicologia do Século XX pela École des KOCHEVITSKY, George (1967). The Art of Piano Playing: a Hautes Études en Sciences Sociales de Paris e Doutora em Música e Musico- logia pela Universidade de Paris (1998). Professora Auxiliar da Universi- Scientific Approach. Evanston, Summy-Birchard; dade de Aveiro (2000). LEHMANN, A. C. & MCPHERSON, G. E. (2002). “Sight-rea- 3 Escola fundada por Corrêa de Oliveira em 1957, onde o compositor pôs em ding”, in R. PARNCUTT & G. E. MCPHERSON (edd.), Science & prática o seu sistema de composição e as suas obras didácticas. Situava-se na Psychology of Music Performance: Creative Strategies for Teaching Rua de Nossa Senhora Fátima, n.º 231, Porto. 4 Nikolai Borisovich Obukhov foi uma importante figura da vanguarda musical. and Learning. Nova Iorque, Oxford University Press, pp. 135- Nasceu na Rússia, mas desenvolveu a maior parte do seu trabalho em Paris, para 149; onde se deslocou depois da Revolução Bolchevique. MILLS, J. (2007). Instrumental Teaching. Nova Iorque, Oxford 5 Em diversos manuscritos e artigos, o próprio Corrêa de Oliveira insere-se University Press; no movimento vanguardista musical do século XX, como aponta o título refe- rido supra. No entanto, considerações sobre este movimento artístico e o con- OLIVEIRA, Fernando Corrêa de (s. d.). A Iniciação Pianística tributo do compositor neste contexto não foram aqui incluídas por falta de de Vanguarda pelo Método da Posição Estática (ms.); informação que o possa comprovar e esclarecer efectivamente a nível nacional – (1952). Iniciação da Criança na Atonalidade através da Har- e internacional. monia Simétrica (ms.); 6 De facto, existem já vários métodos que iniciam a aprendizagem ao piano com as teclas pretas. Isto deve-se não só à facilidade de orientação que é proporcio- – (1960). A Música como Equilibrador Psicológico, Individual, nada ao aluno, como também a que a utilização destas teclas permite trabalhar Familiar e Social (ms.); inicialmente os 2.º, 3.º e 4.º dedos, pondo de parte os 1.º e 5.º, mais débeis, e – (1965a). Boletim. Porto, Parnaso; que podem, por isso, ser introduzidos numa fase posterior. Outro aspecto – (1965b). Os Novos Problemas da Técnica Pianística (ms.); importante da utilização das teclas pretas é o facto de ajudar o aluno a adquirir a posição correcta da mão. O método Piano Lessons, Book 1 apresenta a sua pri- – (1984a). “Um método português de iniciação musical e pia- meira unidade inteiramente com teclas pretas, focando-se inicialmente na nística”, in AAVV., Primeiro Colóquio Nacional de Música, aprendizagem do ritmo e da dedilhação. Um outro método que utiliza igual- Abrantes, Ministério da Cultura; mente as teclas pretas para introduzir os primeiros conceitos musicais é o – (1984b). “No 35º aniversário do aparecimento do primeiro manual Learning to Play Piano, Book 1, de Denes Agay. Com menor número de peças em teclas pretas, este último introduz, da mesma maneira, a posição da sistema português de composição: a simetria sonora”, in AAVV., mão, a dedilhação e a orientação ao piano com exercícios em teclas pretas. Actas do II Encontro Nacional de Musicologia, pp. 43-46; 7 Já no século XIX, Chopin desenvolveu uma nova posição para a mão, mais – (1984c). “Entrevista com o Prof. Fernando Corrêa de Oliveira”, confortável e natural, fazendo exercícios que colocavam os cinco dedos numa in Carlos Duarte Silva (prod.), Espaço Aberto. Rio de Janeiro, posição inédita: mi, fá#, sol#, lá# e si. Assim, os dedos polegar e mínimo tocam em teclas brancas e os restantes em teclas pretas (daqui se depreende a predi- Radio MEC; lecção do compositor por tonalidades com muitas alterações: a este propósito, – (1985). “Guia para o professor de educação musical e pianística vide HARPER 1999). de vanguarda”, Boletim da Associação Portuguesa de Educação 8 Para corrigir a imprecisão ou erro inicial na determinação do andamento, Musical, n.º 46, Lisboa; Heinrich Neuhaus (na sua obra clássica Die Kunst des Klavierspiels, publicada em 1958) aconselha o uso do metrónomo e a entoação mental, em especial no início – (1993). Música Minha. Porto, edição de autor; dos andamentos lentos. Para este mestre, a eficiência rítmica é conseguida atra- – (2001). Simetria Sonora. Porto, Gráficos Reunidos; vés de um controlo mental e auditivo (NEUHAUS apud HARPER 1999). PONTE, Maria Nunes (1985). “O abc da Música mais acessível 9 Entenda-se aqui ‘linguagem musical’ como uma sucessão temporal de sons a todos” (texto publicado em O Primeiro de Janeiro, Porto); articulados que expressam algo humano. Reiteramos ainda que a Música é semelhante à linguagem na forma como se organiza e estrutura, nomeadamente RESENDE, Joana de Magalhães (2011). A Escola Parnaso. Con- em períodos, frases e pontuação, não sendo, no entanto, uma linguagem tributos para uma reflexão (diss.), Universidade de Aveiro; (ADORNO 1993: 401). SERRÃO, Maria B. M. V. (2011). Influências da Performance na Música entre 1970 e 90 em Portugal: Jorge Peixinho, Clotilde Rosa, Eduardo Sérgio (diss.), Faculdade de Ciências Sociais e Huma- nas da Universidade Nova de Lisboa; SLOBODA, J. (2005). Exploring the Musical Mind: Cognition, Emotion, Ability, Function. Oxford, Oxford University Press; TEIXEIRA, Cristina Delgado (2006). Música, Estética e Socie- dade nos Escritos de Jorge Peixinho. Lisboa, Colibri

glosas | número 13 | novembro | 2015 | 57 Os quatro músicos Napoleão

Analisaremos aqui, individualizando-os embora parcial- J. A. Gonçalves Guimarães | TEXTO mente, o percurso artístico destes quatro músicos, hoje pouco recordados. Não é nosso propósito comunicar factos inéditos – de que, aliás, não dispomos –, mas apenas alguns muito pouco Em meados do século XIX nasceram na cidade do Porto três conhecidos e dispersos por textos pouco divulgados entre nós, músicos, intérpretes e compositores, Artur (1843-1925), Aní- nomeadamente uma recente biografia académica sobre Artur bal (1845-1880) e Alfredo (1852-1917), filhos do músico ita- Napoleão, contrapondo aspectos históricos do seu trajecto à liano Alessandro Napolleone Vallania – cujo nome foi depois mitologia precoce que sobre a sua carreira foi construída e cha- reduzido e aportuguesado como Alexandre Napoleão (1808- mando a atenção para os catálogos das suas obras e gravações 1886) –, que muito novo se refugiou em Portugal, estabele- fonográficas, de modo a, se possível, entusiasmar pianistas, cendo-se no Porto por volta de 1840 como professor de música cantores, concertistas e orquestras para as executarem – ainda e casando em Vila Nova de Gaia, na Igreja matriz de Santa Mari- que algumas apresentem indeléveis marcas do tempo ou da geo- nha, com Joaquina Amália Pinto dos Santos, daí natural e filha grafia, mas sem deixarem de possuir a universalidade necessá- do lampionista local António Joaquim dos Santos. Deste matri- ria para agradarem a ouvidos modernos sensíveis à música eru- mónio houve estes e outros filhos (fig. 1). dita oitocentista. Além do mais, estamos convencidos de que os Napoleão são parte iniludível da música portuguesa e luso-bra- sileira e da nossa própria História.

I. Alexandre Napoleão, segundo a autobiografia de seu filho Artur, nasceu em Maio de 1808 em Bérgamo e foi baptizado em Milão, devendo o primeiro sobrenome à admiração que a famí- lia nutria pelo Imperador dos Franceses – o que, com a queda definitiva deste como Rei de Itália em 1814, teria motivado a emigração de Alexandre, acompanhado por sua mãe, para Lis- boa e, em seguida, para o Porto. Em 1841 casou, como referimos, com a gaiense Joaquina Amália dos Santos, que lhe deu nove filhos: Angelina (1842), Artur (1843), Aníbal (1845), Maria, Arminda, Sofia, Júlio, José e Alfredo (1852), tendo alguns destes falecido ainda crianças.2 Professor de piano, as suas alunas eram filhas dos grandes comerciantes portuenses, alguns dos quais morreram afogados A cidade do Porto em 1861 (OLIVEIRA 1985, n.º 17) no desastre de 29 de Março de 1852, quando o vapor Porto, que fazia a ligação entre Lisboa e aquela cidade, naufragou à entrada O mais famoso dos três que referimos, Artur, viria a ter da barra, perecendo 55 passageiros e tripulantes, para conster- uma fulgurante carreira internacional, ofuscando a de seu pai e nação da sociedade local.3 Talvez por este motivo, e pela nume- irmãos, e sendo, por isso, privilegiado pelas descrições biográ- rosa família que tinha a seu cargo, Alexandre Napoleão tentará ficas, em que ocorre mesmo por vezes a sua apresentação indi- uma carreira internacional como agente de seu filho Artur, de vidualizada fora do percurso familiar, o que não é absoluta- quem fora professor, e de quem fará, assim, um “menino-pro- mente correcto, uma vez que todos partilham numerosos dígio”.4 Deixando no Porto a esposa, que não mais veria (pois aspectos comuns no que concerne à origem e trajectória de vida. viria a morrer no ano seguinte), em 1852 parte com Artur para Não tanto, todavia, no sucesso ou no reconhecimento.1 Inglaterra e daí para a Europa e América do Sul, dando início a

58 | glosas | número 13 | novembro | 2015 uma carreira itinerante que os levaria aos Estados Unidos da A sua estreia como pianista ocorreu em Novembro de 1849 América, a Cuba e ao Brasil. em casa do negociante portuense Duarte Guimarães, em con- 7 Partindo de novo para Inglaterra com Artur, em junto com o também muito jovem violinista Uguccioni. Seguiu- 1858, Alexandre Napoleão entrega então seu filho José à família -se um concerto na Filarmónica Portuense e outro no Teatro de amiga do escrivão Simões, que morava no Campo de Santo Oví- São João, ambos com estrondoso êxito (cf. BASTO 1945: 321). dio e em cujas noites de música daí a pouco se comentava “as Partem depois pai e filho para Lisboa, onde este daria um con- noticias que dos triumphos do pequeno pianista [Arthur] che- certo no Teatro de São Carlos em Maio de 1850, tendo inspirado gavam todos os dias ao Porto”.5 poemas, sido feito sócio honorário da Sociedade Philarmonica De entre os seus outros filhos, Angelina foi para um colé- Lisbonense e recebido no Paço das Necessidades por D. Maria gio interno em Richmond, Alfredo permaneceu em Lisboa com II, D. Fernando e a Corte. Regressado ao Porto, já com a aura de o casal Wood e Aníbal em Dublin com Sproule, outro velho “menino prodígio”, o pintor Miguel Novaes executou um seu amigo. Dois anos após as digressões com Artur, terminadas em retrato a óleo.8 De novo em Lisboa, encontram a cidade em 1862, fixa residência em Lisboa, tendo casado de novo, com tumulto devido à oposição ao Conde de Tomar, chefe do Josefa Ferreira, e onde viria a falecer em 1886. De Alexandre Governo, que acaba por ser deposto, ao mesmo tempo que no Napoleão conserva-se uma fotografia aos 60 anos de idade, Porto ocorre uma revolução militar chefiada pelo Marechal Sal- impressa nas memórias de Artur, publicadas em 1925.6 Para danha, que entra triunfante em Lisboa por via marítima. Napo- além de ter sido professor de piano e mentor da carreira dos leão pai é então acusado pela imprensa da capital de explorar o seus três filhos músicos – como se verá pela actividade de cada filho em proveito próprio. Com a queda dos Cabrais, quena um –, conviveu com grandes compositores e concertistas seus visita anterior os tinham protegido, regressam ao Porto, onde contemporâneos, subsistindo uma ou outra referência que tam- no ano seguinte viria a ocorrer o naufrágio que já referimos. bém o dá como compositor. Todavia, até à data, ignoramos quaisquer obras da sua autoria (fig. 2).

Alexandre Napoleão em 1868 (Correio da Manhã, 1925; RIGAUD 2009, 45) Artur Napoleão aos 6 anos de idade, Julho de 1850: desenho de M.I.X. Novais, litographia de Pinto, Lisboa (MM 1945: 321) II. Artur Napoleão dos Santos nasceu, então, no Porto, na Face à desesperada situação familiar, em Junho desse ano freguesia de S. Nicolau, a 6 de Março de 1843, e foi naturalmente parte para Inglaterra, levado por seu pai. Em Londres conseguem iniciado no piano e alfabetizado a partir dos quatro anos de idade algumas actuações em salões aristocráticos britânicos e portu- por seu pai, aprendizagem que lhe não deixou saudades, pois gueses, embora não as suficientes, pelo que rumam a Paris, onde incluiu palmatória, por não gostar de estudar técnica pianística. o jovem pianista convive com vários compositores, pianistas e

glosas | número 13 | novembro | 2015 | 59 violinistas, como Ascher, Massart, Thalberg, Goria, Marmontel, doença. Em seguida, visita Rossini e passa um mês em Barmen a Offenbach, Herz e outros. A Princesa Czernicheff presenteou-o estudar Beethoven com Reinecke. Aos 13 anos está em Weimar, com uma jóia-relógio. Acabou por tocar nas Tulherias para onde toca para Liszt, que o convida para uma noite em sua casa Napoleão III e a Imperatriz Eugénia de Montijo, tendo tido uma de que Artur se recordará para sempre. crítica favorável de Berlioz no Jornal des Débats. A 20 de Março de Passam o Natal em casa do banqueiro Oppenheim, seguindo 1853 dá o seu primeiro concerto público, com grande sucesso. depois para Varsóvia, onde Artur toca nos salões da aristocracia Voltando a Inglaterra, associa-se ao influente músico local, nomeadamente nos de Madame Rosen, onde se prestava John Ella, que o compara a Mozart, que ali o precedera meio culto à música de Chopin. Segue-se Cracóvia, onde se encontra século antes. A propósito da sua visita, o jornal The Musical com o violinista Wieniawski, e passa por Viena e por Leipzig, Union Record de Londres imprime o seguinte: fazendo uma visita a Moscheles. Regressando a Londres, conhece Rubinstein, ouvindo Arthur Napoleão – Mosart vizitou a Gram-Bretanha em 1764, e tres ainda o irmão deste, Nicolai, e o violinista Joachim. semanas depois da sua chegada, diz o biographo, foi duas vezes convi- Em 1857 parte com seu pai para o Rio de Janeiro, onde dado para tocar diante do rei, e da rainha d’ Inglaterra. O Joven Arthur visita o Imperador D. Pedro II e dá vários concertos no Teatro acha-se há mais de 12 mezes na Gram-Bretanha, e tem juntado mais Lyrico e no Teatro de São Pedro, suscitando um enorme entu- dinheiro com o producto de seus concertos do que pianista algum conhe- siasmo, sobretudo na colónia portuguesa, que o acompanhava a cido; mas ainda não inspirou bastante interesse á Familia real para ser casa no final dos concertos com bandas de música e archotes. ouvido por ella! Quando o Courier du Brésil lhe tece críticas menos favoráveis, Como genio creador, seria um absurdo o querer comparar qualquer incluindo nelas o seu mau português, os seus adeptos inundam o talento precoce ao joven Mosart; considerando porém as enormes diffi- Jornal do Commercio com comentários calorosos. Mas o certo é culdades, que appresentão os solos para piano forte, tocados por o joven que acaba por ser iniciado por Joaquim Augusto da Cunha Porto Arthur, não hesitamos em o proclamar superior em execução ao proprio na Literatura e Gramática portuguesas através d’Os Lusíadas. Mosart. O Pai d’este joven conta, que seu filho possue desde a idade de 8 Data desta época a edição de uma grande litografia, datada annos os conhecimentos de uma pessoa de 40 annos. Este menino falla de 15 de Outubro de 1857, intitulada Á Arthur Napoleão [home- tres lingoas, e mostra uma intelligencia espantosa sobre qualquer objecto, nagem de] seus compatriotas no Rio de Janeiro, e que, além de uma de que se tracta, e tem por mais de uma vez maravilhado os seus amigos biografia reproduzida a partir do jornal inglês The Atlas (The pela facilidade de improvisar, ou appropriar a musica a qualquer objecto Musical Union Record) de 1854 e completada até à data, apresenta dramatico. Emfim considerado por todos os lados é a maior maravilha um Mappa indicativo dos artigos de periódicos na Europa e no Brasil em musica, que tem apparecido desde a vizita de Mosart a este paiz. relativos á Arthur Napoleão.10 Tanto em Lisboa como em Pariz tem recebido bom acolhimento pelos Monarchas, e em Dublin foi presenteado com um presente de prata do valor de libras 100, e hoje o seu talento será devidamente appreciado pela elite dos artistas, e dilletanti de Londres.9

De forma semelhante se lhe referiram outros grandes jornais da época. Em Londres convive com Wood, com quem estuda obras de Bach, Weber e Dussek, e em Manchester com Hallé, que o inicia nas obras de Beethoven. Partindo depois para a Irlanda, a 9 de Março de 1854, no final do seu concerto de despedida em Dublin, o Lord Mayor oferece-lhe o valioso brinde referido supra, adquirido por subscrição pública entre “o povo da Capital da Irlanda”, afir- mando no seu discurso: “Dizem que o músico, assim como o poeta, nasce e não se faz; e estou certo que todo este auditório concorda que nunca houve artista que mostrasse tão natural talento como Artur Napoleão.” (BASTO 1945: 323). Parte depois para a Escócia, sempre acompanhado por seu pai e pelo sucesso. No início de 1855 parte para a Alemanha, tocando em Berlim para Meyerbeer e assistindo em Hannover a uma ópera de Wagner pela primeira vez – Tannhäuser –, que o deixa “atur- dido e maravilhado” (SERRÃO 2002: 23). Regressa de novo à Grã-Bretanha, integrado numa equipa profissional de músicos que chega a organizar três concertos por dia. Em 1856 junta-se- -lhe seu irmão Aníbal. Partem de novo para a Alemanha, onde toca em Nancy, Metz, Strasbourg, Coblentz, Mannheim e , onde adoe- cem com escarlatina. Voltando a Londres, toca com o pianista Andreoli e assiste a concertos de Clara Schumann e Wilhelmina Clauss. Ainda nesse ano regressa à Alemanha, onde em Aix-la-Chapelle toca para a Princesa da Prússia e na casa dos Rothschild. Em Setem- bro chega a Baden-Baden, onde reencontra o casal Massart, substituindo a esposa do pianista num concerto por motivo de

60 | glosas | número 13 | novembro | 2015 Do Rio de Janeiro seguem em tournée por Santa Catarina, Rio Em Janeiro de 1860 partem para Cuba, onde reencontram Grande do Sul, Pelotas, Porto Alegre e depois Argentina, onde músicos e cantores seus conhecidos e Artur convive com Gotts- toca em Buenos Aires para o Presidente da República, general chalk, que se lhe revelou “um pianista surpreendente e de uma Mitre, a que se segue Montevidéu, no Uruguai. Regressados ao escola para mim inteiramente nova” (SERRÃO 2002: 26), e com Brasil, param no Rio de Janeiro, seguindo depois para a Bahia e quem mais tarde virá a colaborar na organização dos Festivais Pernambuco, de onde retornam a Portugal, chegando ao Porto Gottschalk, no Rio de Janeiro. após 57 dias de viagem. Em Abril seguinte tomam a direcção de S. João de Porto Rico, Na cidade natal, seu pai programa-lhe um concerto para 24 fixando-se em Guayanam, onde Artur foi professor de piano das de Julho de 1858 no Teatro de São João, onde já antes actuara filhas dos fazendeiros, deu concertos e fez serenatas, inte- com grande êxito. Todavia, na abertura do concerto, o jovem grando-se na sociedade local. Quando ali chega uma companhia pianista é recebido com uma estrondosa pateada – pelo facto de, espanhola de teatro de variedades, passa a acompanhar ao piano segundo o jornal O Commercio do Porto, o programa estar a bailarina de boleros e malaguenhas. Aquando da despedida impresso em francês, como, aliás, acontecia em todos os con- desta companhia, organiza um festival que obtém grande certos que dava pelo mundo. Mas passada aquela inesperada sucesso. manifestação patrioteira sem que o artista se desconcertasse, Em Abril de 1861, com seu pai, regressa a Liverpool numa após a sua exibição, o público rompeu em intermináveis aplau- outra longa viagem de veleiro, daí partindo para Londres, onde sos. Camilo Castelo Branco, que o considerava “uma glória constatam uma grande mudança nos gostos musicais face à sua nacional”, cobri-lo-á de frases elogiosas, chamando-lhe “anjo última estadia. Entre Janeiro e Março do ano seguinte, empre- de graça e harmonia”, entre outras da mesma índole.11 ende uma nova tournée em Inglaterra, organiza um concerto com a presença de Thalberg e assiste à abertura da Exposição Universal de Londres, onde são apresentadas em estreia obras de Auber, Bennett, Meyerbeer e Verdi, na presença deste último. Em Agosto de 1862, parte de novo para o Brasil, onde “se sen- tia em casa” (SERRÃO 2002: 26). Além dos concertos, partici- pava nas reuniões musicais e literárias da rua da Quitanda, que contavam com a presença de Moniz Barreto, Mathieu-André Reichert e Machado de Assis. Depois de uma tournée de novo pelo Rio Grande do Sul, repete também uma outra pela Bahia, Pernambuco, Ceará, Maranhão e Pará, completando aí 21 anos de idade. Estando em Pernambuco a aguardar viagem para Lisboa, face à sua maioridade, seu pai apresenta-lhe contas do pecúlio acumulado em todos estes anos de vida musical conjunta, divi- dindo-o pelos dois e selando o acto com um forte abraço entre ambos. Regressados a Portugal, pai e filho passam a levar car- reiras independentes. Em 1865 Artur volta ao Porto para tocar nos Concertos Populares da Exposição Internacional com que abriu ao público o Palácio de Cristal.12 Talvez seja desta época, Teatro de São João, Porto, em 1864 (OLIVEIRA 1985, n.º 146) ou de outra próxima, que dele tenha ficado na sua cidade natal a seguinte memória:

Em 1858, partem de novo para Inglaterra, de onde embarcam em Era elle então o que n’aquelle tempo se chamava um romantico, – o Galway para Nova Iorque, dando Artur alguns concertos no Salão ideal masculino de todas as mulheres. Pallido de uma pallidez Dodsworth com pouco êxito. A falta de solicitações leva-o a estu- suave; com uns bellos olhos cheios de luz meridional; vivíssimo nos dar violino e a praticar desporto numa escola na Broadway. Apai- gestos, como se houvera, a cada momento, uma tarantula que o mor- xonado pelo Xadrez, aí conhece o campeão Paulo Morphy, aca- desse para ter o gosto de ser curada pela música d’elle… Arthur bado de chegar da Europa, onde derrotara os campeões mundiais. Napoleão foi sempre um mólho de nervos em vibração, um corpo frá- Artur aceita jogar com ele uma partida, que perde, ganhando, gil desfazendo-se em centelhas, maioritariamente quando se senta porém, prestígio nesta área em que também se viria a consagrar. ao piano, porque então, muitas vezes, parece querer seguir com os Estando pai e filho hospedados em casa do pianista fran- braços as notas que vão fugindo aladas para o infinito… cês Émile Descombes, Artur aí conhece a cantora italiana Ade- A sua perna esquerda, quando sentado ao piano, é de uma mobili- lina Patti, da sua idade, nascida em Madrid e então em início de dade que dá a impressão de haver sido atacada pela dança de Saint carreira. Tendo sido proposto que fizessem uma tournée juntos, Guy;13 ao passo que a direita se firma no pedal, a perna esquerda os pais de ambos não se entenderam e a proposta gorou-se, par- estira-se, alonga-se, contrae-se, reprime-se, n’uma palavra, vibra tindo Artur para o Sul, com concertos em Charleston, Colum- como o aço, agita-se numa grande excitação nervosa. bus, Mobile e Nova Orleães, sem grande sucesso. Regressado a Foi então que lhe ouvi tocar no Theatro de S. João duas composições Nova Iorque, passou a frequentar os teatros e os concertos, suas, o Turbilhão e a Caprichosa, grande polka de concerto, que sobretudo os Christy’s Minstrels dos negros do Sul, por onde aca- nunca mais pude esquecer. bara de andar em digressão. Como a pensão paterna era curta O Turbilhão era como um simoun14 de harmonia, um tufão que se para tanta actividade, passou a compor sob pseudónimo polcas e desencadeava varrendo na nossa alma todos os pensamentos timi- valsas para os teatros. dos, todas as hesitações de fraquesa, todas as vacillações da vontade.

glosas | número 13 | novembro | 2015 | 61 Dava energia, dava coragem, dava vida ouvir aquella composição, Em 1871, Artur Napoleão casa com Lívia de Avelar e em que elle executava como um cyclope que se houvesse sentado ao piano 1880 participa nas comemorações do tricentenário de Camões para o despedaçar, n’uma explosão de harmonia, entre as suas mãos no Brasil, para as quais compõe a Marcha com o mesmo título, poderosas. passando depois por Lisboa em 1883, onde se demora algum A Caprichosa fazia abalar, na tentação da dança, as paredes do tempo, como nos dá conta uma notícia da época com um seu theatro, que se maneiavam, ouvindo-a, como que ensaiando o pri- retrato desenhado por Rafael Bordallo Pinheiro, numa página meiro passo de uma polka irresistível. Soberbas, essas suas composi- intitulada Hospedes Illustres. Sobre o músico e compositor, existe ções! (PIMENTEL 1893: 143-144) fig. 6 ali a seguinte legenda:

A Arte na Ponta dos dedos; quando corta as unhas caem-lhe no chão fragmentos de melodias de Schubert; quando passa os dedos pelo teclado faz-nos esquecer e perdoar a todos os pianos da rua dos Fan- queiros; seria capaz, se se metesse n’isso, de fazer vibrar a tecla do sentimentalismo no coração empedrenido [sic] d’um senhorio! Infe- lizmente partiu já, não chegando ao menos a aquecer o logar do banco do piano.18

Até ao fim da vida, voltará a Portugal em 1889, quando faz com sua esposa uma nova viagem à Europa, passando por Lisboa, onde dá um concerto no Teatro de São Carlos, e depois pelo Porto (PEREIRA 1909: 254). Os que então dele conserva- vam a memória de um menino ou mesmo de um jovem pianista, se bem que continuando encantados com a sua arte musical, ficavam agora impressionados com as marcas da idade que no seu rosto e corpo iam ficando gravadas:

Não havia difficuldades musicaes que resistissem aos seus dedos saltitantes como gafanhotos. Um artista em plena maturação. Mas, ai d’elle! Doente, avélhado, gasto como homem. Eu, quando o estava ouvindo, lembrava-me da prodigiosa criança de quem tanto se fallava em casa do Simões no Campo de Santo Ovidio. Ai d’elle! E ai de mim! Porque estou capacitado de que elle pensou o mesmo a meu respeito. (PIMENTEL 1893: 144)

O que é certo, todavia, é que Artur Napoleão viveria até aos oitenta e dois anos de idade! Esta sua passagem por Portugal ficou assinalada pelo lápis e prosa de Rafael Bordallo Pinheiro no jornal Pontos nos ii, com uma página inteira com o seu retrato, uma alusão ao Rio de Janeiro e à sua execução pianística, com a seguinte legenda:

Artur Napoleão Arthur Napoleão. Na sexta-feira passada, no theatro de São Carlos, o público de Lisboa teve ocasião de admirar o prodigioso talento do Nesse ano de 1865, visitará ainda em Espanha a Andaluzia, pianista portuguez Arthur Napoleão. É um dos mais notáveis virtu- em especial Sevilha, o que lhe poderá ter levado a compor uma ose do nosso tempo. Sob os seus dedos nervosos, o desacreditado ins- obra publicada com o título Nuit à Seville (Sérénade, Op. 69), trumento das meninas da Baixa attinge as mais extraordinárias mas que por volta de 1880 será dedicada ao comendador perfeições de melodia e rythmo, desafiando todas as orchestras celes- Albino de Oliveira Guimarães e impressa na casa Narciso & tiaes de anjos e seraphins, de que tanto bem nos dizem os pregadores Arthur Napoleão, do Rio de Janeiro, agora com o título Recor- sagrados. – Com o nosso sincero applauso, vae todo o nosso orgulho dações de Fafe.15 nacional, contentes por vermos que ainda rebentam verdadeiros 19 Regressado ao Rio de Janeiro em 1867 para ai se fixar, foi talentos n’este torrão portuguez. ali professor de Música e proprietário de um grande estabeleci- mento comercial para venda de pianos e casa editora de músi- Também um jornal do Porto, o Charivari, menos de um cas, com vários sócios ou apenas com o seu nome.16 Entre as mês depois dedica-lhe uma página com retrato de grande quali- suas discípulas conta-se Francisca Hedwiges Neves Gonzaga, dade gráfica por mão de José António Silva, com a seguinte que haveria de ficar na História do Brasil como Chiquinha Gon- legenda: zaga, participando em campanhas pela abolição dos escravos e pela implantação da República. Foi compositora de marchas e Arthur Napoleão: Honra-se o nosso lápis desenrolando o retrato do modinhas, num total de cerca de 2000, e também de partituras sublime pianista Arthur Napoleão, d’esse grande artista filho do para teatro musicado, num total de 87, algumas das quais publi- Porto, que actualmente se acha entre nós e a quem o Charivari envia cadas na casa editora de Artur Napoleão, numa carreira que se as mais enthusiasticas saudações.20 estendeu por mais de cinquenta anos.17

62 | glosas | número 13 | novembro | 2015 Em 1899, morre sua primeira esposa e três anos depois casa-se -compositor, a que acrescentaríamos o seu contributo para a com Rita de Cássia Carneiro Leão. Em 1907, o Instituto Nacional afirmação da música brasileira, além da sua obra como teórico de Música do Brasil comemora o quinquagésimo aniversário do do Xadrez.24 seu primeiro concerto e pouco depois os Études pour virtuoses, Op. 90 aparecem em Paris, Bruxelas e Londres, bem assim como 84 Nouvelles Études Cramer-Napoleão, Op. 84. Como vimos já, Artur Napoleão, bem como seus irmãos Aníbal e Alfredo, e outros músicos contemporâneos, era exímio praticante de Xadrez, e também nesta actividade se distinguiu logo durante a sua primeira estadia em Nova Iorque. Ainda antes de se fixar no Brasil, aí começou a divulgar este jogo nas suas estadias, tendo sido mais tarde o responsável pela criação de diversos clubes, sendo o primeiro anexo ao Club Polytechnico, na rua da Constituição no Rio de Janeiro, fundado em 1877/78, com uma directoria composta pelo próprio Artur Napoleão, o Visconde de Pirapetinga, pai de Caldas Vianna Neto, um dos maiores xadrezistas brasileiros, e Machado de Assis. O primeiro torneio realizado no Brasil decorreu em 1880 na própria casa de Artur em Botafogo, que o venceu. Em 1883, outro torneio decorre no Club Beethoven, então por ele dirigido, que em 1887 publica o seu livro Problemas, Enigmas, Esphinges e Fantasias, a que se segue, no ano seguinte, Primeiro Torneio de Problemas do Rio de Janeiro e, em 1898, a Caissana Brasileira: Selecção de mais de 500 pro- blemas de autores brasileiros ou residentes no Brasil; incluindo o código das leis do jogo, baseiado nas melhores obras modernas; as annotações do xadrez nos diversos países estrangeiros; código telegraphico, bibliogra- phia, etc.; e precedido de uma introdução contendo o histórico do xadrez no Brasil.21 Sobre Artur Napoleão, teórico e praticante de xadrez, escre- veu Caldas Vianna: “ele foi, de fato, o Revelador, o Iniciador, o incansável Propagandista do xadrez no Brasil.” Por tudo isto, ainda hoje é uma referência para os enxadristas brasileiros.22 Quando não vinha ele próprio à Europa, iam os gran- des pianistas e compositores portugueses e estrangeiros ao Bra- sil, onde Artur Napoleão os recebia e acompanhava em concer- tos e festivais: para além de seu pai e de seus irmãos Aníbal e Alfredo, que, como referimos, com ele tocaram em várias cida- des em diversas ocasiões, em 1896 recebe José Vianna da Motta e Bernardo Moreira de Sá; em 1899, Saint-Säens; em 1904, de novo Vianna da Motta, que aí volta em 1907 e ainda em 1912, O reconhecimento público a que Artur Napoleão se habi- tocando ambos em concertos para dois ou quatro pianos, cola- tuou desde criança não lhe toldou o discernimento sobre si boração de que se preserva registo expresso nas dedicatórias de mesmo; mas, naturalmente, exibia as condecorações e conside- algumas das obras de Artur Napoleão.23 rações de que foi objecto até aos oitenta e dois anos de idade: em 1887 foi feito comendador da Ordem da Rosa do Brasil e, pouco Sobre Artur Napoleão dos Santos existe bibliografia sólida, depois, da Ordem de Isabel a Católica, de Espanha. Em 1899 é nomeadamente a obra de Cazarré (2006), infelizmente cremos que Comendador da portuguesa Ordem de Santiago, e também a ainda por publicar em livro e consultável apenas em versão acadé- Academia Brasileira de Música o tem como patrono da cadeira mica. Como em todas as biografias dos que se distinguem do vulgo, n.º 18, ao lado de outros músicos ainda hoje ali famosos.25 também na deste músico e compositor desde muito cedo se toma- Quando morre, em 1925, a sua vida e obra são lembradas em ram equívocos por factos, que este autor procurou desmontar (cf. vários jornais brasileiros e portugueses, tendo o Correio da Manhã CAZARRÉ, 2006: 20-21, 23-24), e que, para além de pouco certas do Rio de Janeiro publicado a sua autobiografia,26 afinal a vida de ou mesmo inventadas, não têm qualquer utilidade para a compre- um dos três músicos portuenses filhos de mãe gaiense, nascidos na ensão da vida e obra do músico, já de si tão cheia de peripécias e de cidade ribeirinha do Douro, aonde então aportavam barcos vindos talento que os contemporâneos reconheceram e premiaram. O de todos os quadrantes do Mediterrâneo, de onde viera seu pai, do mito não carece aqui de fantasias. Atlântico, por onde seguiriam para a Europa e a América do Norte, Este estudioso divide a vida de Artur Napoleão em três gran- e sobretudo do Brasil, onde Artur haveria de se fixar e morrer, dei- des fases (CAZARRÉ, 2006: 32): xando-nos o abraço universal da sua música, que podemos hoje 1 – The Puck [o duende]; (1849-1862) – o menino prodígio pia- conhecer através do catálogo de CAZARRÉ (2006 II: 315 ssq.) e nista, a que acrescentaríamos o desabrochar do compositor; ouvir em algumas raras gravações e interpretações: no que se refere 2 – Dandy [o janota]; (1863-1883) – o jovem pianista virtuoso, a às primeiras, em repositórios digitais como o YouTube encontramos que acrescentaríamos a procura de afirmação cosmopolita para (de acordo com a consulta em 28.12.2014) a Balada de Gretchen da a sua música. ópera Remorso Vivo, interpretada por Waldelly Mendonça e gravada 3 – O Senhor Comendador (1884-1925) – O consagrado pianista- na série Música do Brasil, assim como, no mesmo canal, a Marcha e

glosas | número 13 | novembro | 2015 | 63 Cortejo, Op. 62, pelas pianistas Clélia Ognibene e Sylvia Maltese, na nirs de jêune age e Je t’aime (GEPB, XVIII: 403). Um seu retrato, série Música Brasileira para piano a 4 mãos, o Romance em Mi maior, feito no Rio de Janeiro em 1874, foi publicado em As Memórias de Op. 71, tocado por Frederico Custódio, e aindaTeus lindos olhos, pelo Artur Napoleão. 28 Duo Maltese. Nos álbuns Gottschalk Piano Music, vol. 3 e 8, da edito- ria Hyperion, e em Louis Moreau Gottschalk (1829-1869): The Com- IV. plete Solo Piano Music, estão gravadas obras e arranjos de Artur Alfredo Napoleão dos Santos nasceu, como seus irmãos, Napoleão tocadas por Philip Martin. É possível ainda que se pos- na cidade do Porto, em 1852. Uma década mais novo do que sam colectar outras raridades. Artur, é criado em Vila Nova de Gaia por sua avó materna e é depois, ainda criança, deixado em Lisboa aos cuidados do casal Wood, que lhe completa a formação musical. Em 1866, aos 14 anos, encontra-se no Rio de Janeiro, onde dá um concerto no Teatro Lyrico perante o Imperador D. Pedro II, daí partindo para uma digressão pelas restantes cidades brasileiras e aca- bando por se fixar durante seis anos na Argentina, em Buenos Aires, e em Montevideu, no Uruguai. Ali foi também professor, regressando depois ao Rio de Janeiro, de onde parte para Per- nambuco, para novamente ensinar durante dois anos. A sua vida cruzar-se-á diversas vezes com a de Artur: em 1879, dão ambos um concerto na Sociedade Filarmónica Fluminense e em 1893, quando Alfredo regressa ao Brasil, tocam no Casino Fluminense e, noutro regresso, cinco anos mais tarde, no Instituto Nacional de Música. (fig. 11)

Regressando a Portugal em 1882, dá uma série de concer- tos em Lisboa e Porto, daí partindo para Londres. Por natureza modesto e apenas músico, cumpriu uma carreira de grande pro- fissionalismo que a imprensa se escusava de destacar, como sempre fizera com seu irmão Artur, por quem, aliás, Alfredo sentia sincera admiração, tocando as suas obras nos seus pró- prios concertos.29 Em 1904 encontra-se na sua cidade natal, e a 27 de Outubro do mesmo ano organiza na Granja, em Vila Nova de Gaia, um con- certo em que actua com Olinda da Rocha Leão, Guilhermina Suggia e Virgínia Suggia, com obras de Beethoven, Dvorj ák, Strauss, Chopin, Liszt e, do próprio Alfredo, o 3.º Concerto para piano e orquestra em Ré, Op. 55, e Pèle-Mèle 4: Suite.30 Fixado no Porto, e tendo-se entretanto dedicado ao ensino, Romance et Habanera de Artur Napoleão, edição de Narciso & Arthur Napoleão, à Granja volta de novo, a 28 de Setembro de 1908, para organizar Rio de Janeiro (Meloteca do Solar Condes de Resende) outro concerto, com a colaboração de Moreira de Sá e de algu- mas solistas e coro, encontrados entre os frequentadores 31 III. daquela praia que se dedicavam à música e ao canto. Aníbal Napoleão dos Santos, dois anos mais velho do que Entretanto, em 1906, deu concertos em Lisboa, que foram seu irmão Artur, nasceu também no Porto em 1845 e terá igual- muito aplaudidos, vindo a falecer nesta cidade em 1917 (RIGAUD mente sido iniciado nas artes musicais pelo pai. Em 1856 está 2009: 52). O catálogo das suas obras estará ainda por fazer, em Inglaterra com ambos e, quando estes partem em tournée tendo algumas sido editadas no Brasil, na casa editora de seu em 1858, permanece em Dublin com o músico Sproule, com irmão Artur, e na Alemanha. Em Portugal, entre outros, foram quem estudou, regressando a Lisboa com Wood, juntamente seus editores a Casa Raymundo de Macedo, no Porto. Pode, com seu irmão Alfredo. Anos depois, dá concertos no Porto, entretanto, ser vista uma relação destas obras na GEPB, para como em 29 de Janeiro de 1867, no teatro Baquet, em seu bene- além daquelas publicadas em revistas da época.32 Do catálogo fício, com a colaboração de Artur, e em Lisboa, onde se estabe- das obras de Alfredo Napoleão constam cerca de 70 peças, algu- lece como professor de Música. Na capital portuguesa actuou em mas das quais apresentam inovações musicais notáveis para o diversos concertos também com seu irmão Artur, em 1864, no tempo. A 29 de Setembro de 2014, o pianista Artur Pizarro gra- Teatro de São Carlos; em 1866, no Casino Lisbonense; em 1868, vou para a etiqueta Hyperion, com a Orquestra Nacional da BBC de novo no São Carlos. de Gales, dirigida por Martyn Brubbins, o Concerto n.º 2 em Mi Em 1869 parte para o Brasil, onde já se encontravam seus bemol menor, Op. 31, provavelmente escrito em 1886, para a irmãos Artur e Alfredo, vindo a actuar no Rio de Janeiro e em colecção discográficaThe Romantic Piano Concerto. É pouco, para Pernambuco, onde casa com uma filha do empresário Amat.27 tão bom músico. 33 Após abrir um curso de Música na capital, por motivos de saúde volta a Lisboa, onde vem a falecer em 1880, com apenas 35 anos. V. Conclusão Não obstante ser de todos os irmãos o que teve a carreira mais Não é nosso propósito zurzir aqui o esquecimento das gló- curta, deixou publicadas vinte e uma peças para piano pela casa rias pátrias musicais e lamentar que só os estrangeiros as lem- editora propriedade de seu irmão Artur, nomeadamente Souve- brem. Afinal, já em vida dos quatro Napoleões assim foi: o pai,

64 | glosas | número 13 | novembro | 2015 Alexandre, teve de sair da sua terra e vir até à cidade do Porto 7 Que mais tarde se radicaria no Uruguai: cf. SERRÃO 2002: 21. fazer vida musical. Os filhos foram aplaudidos em Portugal, mas 8 Que muitos anos depois o retratado oferecerá à Escola de Belas tiveram de ir ao estrangeiro fazer carreira, sobretudo ao Brasil, Artes do Rio de Janeiro: cf. SERRÃO 2002: 21. então promissor país, onde Artur se fixou e onde se revelou 9 Transcrito por SANTOS 1881: 243/244, nos Additamentos à “marcante para a historiografia musical brasileira, como pia- primeira edição (1861). No final da citação, o autor escreve: nista, compositor e mediador cultural” (MEDEIROS 2010: 4). “Eis-ahi o juízo, que há 6 annos se fazia d’Arthur Napoleão.” A Não será, pois, por acaso que a maior parte dos estudos aqui notícia tinha sido publicada em Londres a 13 de Junho de 1854, compulsados sobre o segundo destes Napoleão – artigos, grava- e está analisada em CAZARRÉ 2006: 36 ssq. Mantivemos esta ções, notícias, teses de mestrado e de doutoramento – tenham tradução por apresentar variantes interessantes em relação ao aquela origem. No Rio de Janeiro existem várias ruas com o seu texto original, tendo sido publicada numa obra não citada pelo nome, e também nas cidades portuguesas do Porto, Matosinhos autor acima referido. e Seixal. Mas o mesmo se não passa com seus irmãos Aníbal e 10 Referida por BASTO 1945: 324 e publicada em REAL 1998: Alfredo: em Vila Nova de Gaia, terra de sua mãe, que aqui casou 37. com Alexandre Napoleão e onde viveu Alfredo em criança com 11 Citado por BASTO 1945: 324-330. Camilo refere-se a Artur sua avó materna, não obstante permanecer terra dedicada às Napoleão na obra Cousas leves e pesadas (no capítulo “Uma glória artes musicais, a memória mais recente sobre os Napoleão, nacional”), publicada em 1864 (cf. CAZARRÉ 2006: 418-421). antes do artigo de José Galvão (2004) e de outros da nossa pró- 12 Participação referida, entre outros, por CAZARRÉ & LUCAS pria autoria, fora publicada apenas em 1909.34 2006: 683. Compositores marcantes, mas também marcados pelos 13 O mesmo que coreia ou dança de São Vito, vulgar na Idade gostos de um Romantismo tardio e de uma Belle Époque perdu- Média, na qual os doentes bailavam até que caíam a espumar: cf. rante, a que não faltaram os inevitáveis exotismos e folcloris- GEPB VIII, p. 378. mos (cf. LUCAS & CAZARRÉ 2003), nas suas composições há 14 Simum ou cimume (do árabe semom, segundo FIGUEIREDO sonoridades que estarão certamente para além dessas circuns- 1949 I: 636; II: 1038, vento muito quente que sopra do interior tâncias, e desfrutá-las, ainda que com a curiosidade dos ama- de África). teurs, cremos que valerá bem a pena. 15 cf. o comentário a esta e outras peças em LUCAS & CAZARRÉ Para além de um trabalho biográfico actualizado sobre 2003: (12). estes músicos, falta-nos o corpus das suas obras completas, bem 16 cf. Almanak… 1891, p. 940. A revista Fon-Fon, também como das gravações dos seus intérpretes, não sendo ainda daquela cidade, apresenta muitos anúncios, notícias e fotogra- impossível que existam gravações das suas próprias actuações fias de Artur Napoleão e da sua casa comercial. no Brasil ou na Europa. (fig. 13) 17 Em 1885 regeu uma banda de polícia militar e em 1897 com- Pela nossa parte, cremos bem que as obras destes quatro pôs a célebre marcha Ó Abre-Alas, considerada a primeira Napoleão valeriam bem um festival de memória e homenagem. música do Carnaval carioca. O seu maior êxito foi a modinha Lua Branca, de 1911. A venda destas músicas era destinada às asso- ciações que defendiam a emancipação dos antigos escravos. Em 1933, dois anos antes da morte, ainda compôs a música para a peça Maria, de Viriato Correia: cf. Lexicoteca IX, 1986, p. 165. 18 cf. O António Maria de 28 de Junho de 1883, p. 209, também Notas publicada em ROCHA 2010: 117. Os outros “hóspedes” eram o 1 Vejam-se, por exemplo, as entradas NAPOLEÃO (Alexandre), doutor Sobral, médico, o capitão Salvi, cavaleiro, os irmãos IDEM (Alfredo), IDEM (Aníbal) e IDEM (Artur) em GEPB XVIII, Andrade, tenor e barítono, e Francisco Michel, químico. pp. 402 ssq. Existe outro músico de nome Napoleão Cesi, nas- 19 Pontos nos ii, 28 de Fevereiro de 1889, p. 65. cido em 1867, filho do pianista napolitano Beniamino Cesi 20 Charivari, 23 de Março de 1889, p. 220. (1845-1907), que nada tem a ver com os portugueses. 21 www.xadrezparadv.com.br (consultado em 27.12.2014). 2 Citaram a autobiografia de Artur Napoleão, entre outros, SER- 22 Ibidem. RÃO (2002: 20-27) e CAZARRÉ (2006: 16). Publicada no jornal 23 cf. CAZARRÉ 2006 II: 308. Correio da Manhã do Rio de Janeiro em 1925, a partir do texto 24 cf. CAZARRÉ 2006: 33 ssq. terminado em 1907 pelo próprio, carece de uma edição crítica a 25 Entre eles, D. Pedro I (cadeira n.º 8): cf. http://www.abmu- partir do manuscrito original. Outros autores, como RIGAUD sica.org.br/patron.htm (consultado em 07.05.2008). (2009: 45), seguem a biografia que a partir daquele texto publi- 26 cf. supra, n. 2. cou o Visconde Sanches de Frias em 1913: cf. MEDEIROS 2010. 27 José Amat foi também patrono da cadeira n.º 13 da Academia GALVÃO (2004:30/32) publica a transcrição dos assentos de Brasileira de Música: cf. http://www.abmusica.org.br/patron.htm. baptismo e casamento de Joaquina Amália Pinto dos Santos e os 28 Correio da Manhã, anno XXV, n.º 9, 388 (Rio de Janeiro, 4 de de nascimento de seus filhos Artur, Aníbal [Hannibal], Sofia, Setembro de 1925), p. 3. Arminda, José e Alfredo, dando portanto apenas seis filhos ao 29 cf. GEPB XVIII: 402. casal, em vez de nove. 30 CASTRO 1973: 373. 3 A lista dos náufragos pode ser vista em CORREIA 2012: 442. 31 CASTRO 1973: 399. 4 Sobre os “meninos-prodígio” dos sécs. XVIII e XIX, vide Her- 32 A Ilustração Portugueza n.º 410 (1913), pp. 756-757 publicou bert KUPFERBERG, Amadeus: a Mozart mosaic, New York, de sua autoria Je t’en supplie!, acompanhada de fotografia do McGraw-Hill, 1986 (apud SERRÃO 2002: 26-27). autor. 5 Actual Praça da República: cf. PIMENTAL 1893: 341. 33 http://goo.gl/SdBBVh 6 cf. Correio da Manhã, anno XXV, n.º 9388, Rio de Janeiro, 4 de 34 cf. António ARROYO (1909), “O pianista Arthur Napoleão”, Setembro de 1925, p. 3. Mea Villa de Gaya, Porto, Empreza Editora do Guia Illustrado de

glosas | número 13 | novembro | 2015 | 65 Portugal, pp. 84-88; J. A. GONÇALVES GUIMARÃES, “Música e nísticas na carreira artística de Artur Napoleão”, in AaVv., XVI músicos em Gaia”, Boletim da Associação Cultural Amigos de Gaia Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação n.º 76 (Junho de 2013), pp. 27-31. Em 2008, o Município de Vila em Música, Brasília Nova de Gaia atribuiu o Prémio Nacional Cidade de Gaia-Artur CORREIA, Lívio (2012), “O vapor Porto desde a sua entrada fes- Napoleão ao compositor Luís Tinoco: cf. Casa da Cultura n.º 8 tiva na barra do Douro no ano de 1836 até ao seu dramático nau- (Agosto de 2008), p. 6. Ao título do artigo de GONÇALVES GUI- frágio em 1852”, in Gonçalo de VASCONCELOS E SOUSA (ed.), MARÃES (2008) que aí se publica foi acrescentada a palavra Actas do I Congresso “O Porto Romântico”, Porto, UCE, vol. II, pp. “insuspeitada” pelo editor, facto a que o autor foi alheio. 413-446 FIGUEIREDO, Cândido (1949), Dicionário da Língua Portuguesa, Para a elaboração deste artigo o autor contou com a boa Lisboa, Livraria Bertrand, 1949 colaboração do Centro de Documentação (que inclui uma GALVÃO, José (2004), “Artur Napoleão dos Santos e família”, Meloteca) do Solar Condes de Resende, nomeadamente Boletim da Associação Cultural Amigos de Gaia n.º 59 (Dezembro das funcionárias Mestre Susana Guimarães, Celeste Pinto de 2004), pp. 24-32 e da investigadora Dr.ª Maria de Fátima Teixeira. Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, Lisboa/Rio de Janeiro, Editorial Enciclopédia (GEPB) * Historiador, arqueólogo e professor universitário. Director do Solar GUIMARÃES, J. A. Gonçalves (2008), “Artur Napoleão (1843- Condes de Resende desde 1987. Membro da Academia Eça de Queirós 1925): um grande músico internacional de ascendência gaiense (Portugal) e da Sociedade Eça de Queiroz do Recife (Brasil). [insuspeitada]”, Casa da Cultura n.º 8 (Maio/Agosto de 2008), Endereço de correio electrónico: [email protected] pp. 7-9 GUIMARÃES, J. A. Gonçalves (2013), “Música e músicos em BIBLIOGRAFIA Gaia”, Boletim da Associação Cultural Amigos de Gaia n.º 76 (Junho de 2013), pp. 27-31 Páginas na Internet Lexicoteca. Moderna Enciclopédia Universal, Lisboa, Círculo de - https://hemerotecadigital.bn.br (consultado a 15.01.2015) Leitores, 1986 - http://purl.pt/940 (consultado a 23.05.2011) LUCAS, Maria Elizabeth & CAZARRÉ, Marcelo Macedo (2003), - http://www.abmusica.org.org.br (consultado a 08.05.2008) “Exotismo e Folclorismo na obra de Arthur Napoleão (1843- - https://goo.gl/ptXHGm (consultado a 15.01.2015) 1925)” (Programa de Pós-Graduação em Música), Instituto das - https://www.realgabinete.com.br (consultado a 08.05.2008) Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - https://www.traca.com.br (consultado a 20.05.2008) MEDEIROS, Alexandre Raicevich (2010), “Memórias de Artur - http://goo.gl/aK35WF (consultado a 27.12.2014) Napoleão”, XIV Encontro Regional de ANPVH. Rio, Memória e Patri- mónio, Rio de Janeiro, Associação Nacional de História Publicações periódicas OLIVEIRA, Eduardo Pires (1985), Imagens do Porto Oitocentista, - Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial do Rio de Janeiro Porto, AHCMP/ARPPA para 1891, Companhia Typographica do PEREIRA, Firmino (1909), “Arthur Napoleão dos Santos”, Tri- - O António Maria, Lisboa, 1883 peiro (1.ª série, ano 2: 1909), pp. 253-254 - Boletim da Associação Cultural Amigos de Gaia n.º 76 (Junho de PIMENTAL, Alberto (1893), O Porto ha trinta annos, Porto, 2013) Livraria Universal de Magalhães & Moniz - Brasiliana, Rio de Janeiro, Academia Brasileira de Música REAL, Manuel Luís (ed., 1998), Referências. O Porto na VIII - Casa da Cultura, Vila Nova de Gaia, 2008 Cimeira Ibero-Americana, Porto - Charivari, Porto, 1889 REIS, António (ed.), Portugal Contemporâneo, Lisboa, Alfa - Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 1925-1926 RIGAUD, João-Heitor (2009), “Do Romantismo Portuense”, - Fon-Fon, Rio de Janeiro, 1909-1917 Porto, Meloteca (Porto Musical Histórico) - Ilustração Portuguesa, Lisboa, 1913 ROCHA, Luzia (2010), Ópera & Caricatura. O Teatro de S. Carlos na - Pontos nos ii, Lisboa, 1889 obra de Rafael Bordallo Pinheiro, Lisboa, Colibri - Tripeiro, Porto, 1909 SANTOS, Manoel Rodrigues (1881), Descripção Topographica de Villa Nova de Gaya (2.ª edição), Porto, Imprensa Real Monografas e artigos de revistas SERRÃO, Ruth (2002), “Arthur Napoleão dos Santos (1843- ARROYO, António (1909), “O pianista Arthur Napoleão”, Mea 1925)”, Brasiliana X (Janeiro de 2002), Rio de Janeiro, Acade- Villa de Gaya, Porto, Empreza Editora do Guia Illustrado de Por- mia Brasileira de Música tugal, pp. 84-88 SOUSA, Gonçalo de Vasconcelos (ed., 2012), Actas do I Congresso BASTO, A. de Magalhães (1945), Silva de História e Arte (Notícias O Porto Romântico, Porto, UCE Portucalenses), Porto, Livraria Progredior de Manuel Pereira e TRINDADE, Maria Helena (ed., 1995), Liszt em Lisboa, Lisboa, C.ª Instituto Português de Museus/Museu da Música CARVALHO, Mário Vieira de (1996), “Da oposição ópera-teatro TRINDADE, Helena & Teresa CASCUDO (edd., 1998), José musical ao nacionalismo na música”, in António REIS (ed.), Vianna da Motta, 50 anos depois da sua morte (1948-1998), Lis- Portugal Contemporâneo I, Lisboa, Alfa, pp. 673-688 boa, Instituto Português de Museus CASTRO, António Paes de Sande e (1973), A Granja de todos os tempos, Vila Nova de Gaia, Câmara Municipal CAZARRÉ, Marcelo Macedo (2006), Um virtuose do além-mar em terras de Santa Cruz: a obra pianística de Arthur Napoleão (1843- 1925), Porto Alegre, Universidade Federal do Rio Grande do Sul CAZARRÉ, Marcelo & LUCAS, Elizabeth (2006), “Práticas pia-

66 | glosas | número 13 | novembro | 2015 irmandades e ritual em minas gerais durante o período colonial etnografia histórica do triunfo eucarístico de 1733 (continuação)

não consintais que nas Minas assista frade algum, antes os MARIA ALICE VOLPE | TEXTO lancem fora todos por força ou violência, se por outro modo não quiserem sair”, e que o mesmo execute com “todos os clérigos que não tiverem ministério de párocos nominados As Irmandades pelo ordinário”.33 A reiteração do despacho oficial, em 1715 e 1721, demonstra claramente a sua transgressão. Entretanto, Os diversos grupos emergentes nessa sociedade isso não altera o facto de o clero regular não ter agido de forma heterogênea organizaram-se em torno das irmandades, institucional e oficial nas Minas Gerais e de que a sua função associações religiosas de leigos cuja função extrapolava os sócio-econômica tivesse de ser substituída de alguma forma. propósitos devocionais e que reuniam classes sociais, grupos O clero secular do hábito de São Pedro, ordenado fora étnicos e categorias profissionais que compartilhavam das Ordens e vivendo fora dos mosteiros, no mundo secular preocupações e, sob a devoção de um padroeiro, agiam em das paróquias, era responsável pela vida religiosa das Minas domínios da vida da comunidade – secular e religioso, colectivo Gerais daquele tempo. A proibição de se instalarem conventos e individual – intrínseca e mutuamente relacionados. As e mosteiros nas Minas Gerais eliminou o clero regular e irmandades também tiveram um papel musical decisivo nas estimulou a formação de irmandades. Do ponto de vista Minas Gerais, pois, ao promover e estipendiar rituais musicais, religioso, estas serviram como instrumento de propagação da estabeleceram e organizaram a música em nível profissional. fé católica e educação espiritual. Do ponto de vista secular, sua As irmandades têm origem nas Ordens Terceiras. A Ordem ação preencheu uma série de demandas sociais, econômicas, Primeira é a Regular Masculina, composta por monges, como éticas e ideológicas envolvendo a dinâmica interna daquela Franciscanos, Carmelitas, Beneditinos e Jesuítas, vivendo em comunidade, como também a Coroa. De acordo com Salles34, comunidade e professando votos perpétuos. A Ordem Segunda as irmandades assumiram o apoio financeiro de actividades é a Regular Feminina, composta por freiras que, como os que constituíam responsabilidade formal da Coroa, que para monges, têm uma vida reclusa nos conventos. A Ordem Terceira elas transferiu suas obrigações e, através delas, para a própria é composta por leigos, homens e mulheres, como a Ordem população de cada vila. Inversamente, tais grupos sociais Terceira do Carmo e a de São Francisco. Os Beneditinos e Jesuítas conquistaram um instrumento de defesa de seus interesses: “A nunca tiveram Ordem Terceira. Outras associações de leigos, população (...) encontrava nestas corporações uma estrutura chamadas Irmandades ou, quando “erectas ainda mais para eficiente e legal, uma forma orgânica para expandir suas o incremento do culto público”, Confrarias,31 eram formadas necessidades e reivindicações coletivas.” não sob uma certa Ordem, mas sob a devoção de um santo, As irmandades operavam também como instituições da Virgem ou de Jesus. A hierarquia entre essas associações de previdência social, sendo responsáveis pelo enterro dos seguia os estatutos da Sé Apostólica, em decrescente ordem de membros, sepultura, “sufrágios” (um número de missas, importância: Ordens Terceiras, Arquiconfrarias, Confrarias e variando de 10 a 40, aos membros falecidos), ajuda financeira Irmandades, e Pias Uniões.32 às viúvas e crianças, assistência médica, assistência a crianças As irmandades em Minas Gerais tiveram uma função social desamparadas e empréstimos a membros em dificuldades. A muito diversa das litorâneas, sobretudo pela ausência do clero Irmandade do Santíssimo Sacramento do Pilar de Ouro Preto regular na região mineira, uma vez que conventos e mosteiros enviava uma enfermeira a casa dos seus membros doentes. foram proibidos nas Minas Gerais por motivos religiosos e A Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de Ouro Preto, econômicos. Nas primeiras décadas da exploração do ouro, os fundada em 1730 sob a devoção de N.ª Senhora de Santana, monges dirigiram-se à região das minas para pregar a fé entre as construiu um hospital e actuou como instituição de caridade, “pessoas rudes obcecadas pela promessa do ouro”. No entanto, atendendo a seus membros, a não-membros sob pagamento muitos foram como outros aventureiros e não trabalharam a de taxa diária e a pessoas destituídas de recursos, sem favor da religião. Outros ainda evadiram-se dos mosteiros e discriminação de nacionalidade ou religião. A Ordem Terceira do abandonaram a vida religiosa, com evidente perda para a Igreja. Carmo e a de São Francisco empreenderam actividade bancária, Muitos destes monges caíam numa vida pecaminosa de emprestando dinheiro a juros a seus membros. Ambas tiveram avidez e promiscuidade, criando uma situação que denegria tal poder econômico na segunda metade do séc. XVIII que, em a imagem da Igreja e gerando mesmo problemas para a Coroa certa ocasião, foram implicitamente coagidas a emprestar ao pelo seu envolvimento no contrabando de ouro. Tudo indica governo da capitania “todo o cavedal que tiverem prompto, na que esse comércio ilegal tenha tido uma estratégia estruturada, referida moeda Barra (...) o importe em pó”; a Mesa de Irmãos envolvendo conventos e mosteiros de áreas fluviais, como reuniu-se no mesmo dia e despachou favoravelmente essa Penedo, Alagoas, no Rio São Francisco, e na costa, como Parati, solicitação.35 Alguns estudiosos têm sugerido que a fundação no litoral Sul do Rio de Janeiro. Esses monges desafiaram de certas irmandades tenha sido motivada por propósitos literalmente as Ordenações Filipinas, recusando-se a pagar políticos, como a Arquiconfraria dos Mínimos do Cordão de São o Quinto ao Tesouro Real e frequentemente induzindo outros Francisco, composta basicamente por pardos, tendo aparecido a fazerem o mesmo. A Carta Real de 6 de junho de 1711 proíbe simultaneamente (1760-1761) em diversas vilas, como Ouro a presença de monges na Capitania das Minas Gerais: “que Preto, Mariana, Sabará e São Joao del Rei, mantendo coalizão

glosas | número 13 | novembro | 2015 | 67 regular entre as várias unidades.36 O vasto campo de acção Communitas ideológica e normativa criavam uma dimensão de dessas irmandades mostra quão indispensáveis foram para a homogeneidade entre os diversos segmentos da sociedade, dinâmica social, econômica e política daquela comunidade. polarizados nas irmandades, sem gerar, no entanto, um “espaço Outra importante contribuição das irmandades foi a liminar” no âmbito geral da sociedade, porque a identidade formação de uma mentalidade mais democrática. Segundo étnico-econômico-social procedia da diferenciação mais Salles37, “o poder ou autoridade de uma agremiação religiosa evidente e constituía o parâmetro segundo o qual irmandades se nada tinha a ver, em princípio, com seu sentido social”, i.e., “o agrupavam e interagiam. grupo social, classe, camada ou estamento” que representava, As irmandades eram expressão e reflexo de uma sociedade mas seu “poder econômico e social expresso no número de muito bem estruturada tanto étnica como política, intelectual irmãos arregimentados. (...) Não importava que ela fosse de economicamente. A forma como ocorriam as reuniões em torno brancos, pretos ou mulatos; importava seu poder como expressão das irmandades enfatiza distinções estruturais, o que confirma desses grupos.” A sociedade mineira, em regime monárquico, a ideia de Turner de que “maximização de communitas provoca teve nas irmandades um instrumento mais democrático, que maximização de estrutura”.43 A Irmandade do Santíssimo permitiu aos diversos grupos sociais negociarem seu espaço Sacramento foi pioneira na instalação do clero nas Minas Gerais dentro da comunidade. A mentalidade democrática esteve e geria a Igreja matriz; representava os primeiros reinóis, presente também na organização interna das irmandades, sendo magistrados e bandeirantes e não aceitava judeus e mulatos: as decisões tomadas pela Mesa de Irmãos, constituída através de entretanto, tendia a ser mais tolerante em relação à incorporação eleições periódicas, em que todos os membros votavam.38 Voto de “gente de cor” desde o final da década de 1750. A Ordem Terceira livre e igualdade de oportunidades eram garantidos pelo aparato do Carmo e a de São Francisco de Assis, compostas por altos legal: “A eleição será feita em escrutínio secreto, não só dos segmentos da sociedade, eram as mais radicais no que tange a raça mesários actuais, como de todos aqueles irmãos professos, que e admitiam apenas “pessoas brancas puras”. A Ordem Terceira voluntariamente quiserem concorrer.”39 No entanto, o poder do Carmo reunia sobretudo a classe de comerciantes, na qual econômico era factor importante; quanto mais alta a posição predominavam os emboabas, mas abrigava também intelectuais que se quisesse ocupar na hierarquia, maior seria a contribuição entre seus membros; essa irmandade parece ter sido a mais rica financeira à instituição. O compromisso da Irmandade de São de Minas Gerais. A Ordem Terceira de São Francisco de Assis Benedito, de Mariana, de 1737, dizia: “Cada irmão pagará de teve origem na “raça dos gigantes paulistas”, os bandeirantes, e entrada uma oitava de ouro que se entregará ao tesoureiro e reunia sobretudo intelectuais, magistrados e governantes, mas pagará anualmente outra oitava de ouro” (Capítulo 1.º); e, em também comerciantes. A Ordem Terceira de São Francisco de seguida, “Dará o Juiz, de esmola, no ano de seu juizado, vinte Paula, a Arquiconfraria dos Mínimos do Cordão de São Francisco, oitavas; o escrivão, dez oitavas; o tesoureiro, cinco oitavas; o a Irmandade de São José dos Bem-Casados e de N.ª Senhora do procurador, cinco oitavas; os mordomos ou irmãos da Mesa, Amparo eram compostas por mulatos. As Irmandades de N.ª quatro oitavas cada um” (Capítulo 4.º).40 Fica claro, portanto, Senhora da Conceição, das Dores, São Miguel e Almas, São Pedro que, embora todos os irmãos pudessem concorrer, a soma em dos Clérigos, N.ª Senhora de Santana, Bom Jesus dos Passos, São dinheiro requerida para ocupar posições mais altas poderia Gonçalo, N.ª Senhora da Boa Morte, Bom Jesus dos Matosinhos, ser um obstáculo a membros sem recursos para sustentar essas N.ª Senhora das Dores e N.ª Senhora da Expectação do Ó eram obrigações. A autoridade dependia das qualidades pessoais que compostas por pessoas brancas. As Irmandades de N.ª Senhora levariam membros a votar neste ou naquele candidato, mas, de do Rosário, Santa Efigênia e São Benedito eram compostas por alguma forma, estava também vinculada ao poder econômico. negros escravos ou forros. No entanto, nas irmandades, poder econômico era usado com Os “pretos creoulos”, i.e., negros nascidos no Brasil, propósitos colectivos, pois estas associações funcionavam como reuniam-se na Irmandade de N.ª Senhora das Mercês para cooperativas em que qualquer contribuição era transformada se diferenciarem dos africanos; esta diferenciação envolvia em patrimônio que seria usado em benefício de todos os também status, uma vez que os pretos crioulos eram geralmente membros. Nesse sentido, poder econômico era traduzido em militares e os africanos escravos. A Irmandade de N.ª Senhora solidariedade, visto que todos contribuíam para o bem-estar de das Mercês podia ser também de pardos. Salles44 conclui que, cada um e as contribuições eram proporcionais aos meios. Como enquanto as corporações de brancos tentderam a proibir a Turner propõe, “communitas logo desenvolve uma estrutura” entrada de pessoas originárias de “qualquer infecta nação” justamente vinda da “necessidade de mobilizar e organizar (i.e., judeus, mouros e africanos), as irmandades de negros recursos para a busca de seus objectivos”, e se transforma geralmente permitiram a entrada de qualquer indivíduo, então em “communitas normativa.”41 As irmandades trouxeram inclusive de brancos. A correspondência entre estratificação também o princípio igualitário católico de humanidade, de social e irmandades mostra a complexidade das relações acordo com o qual todos os que abraçam seu sistema de crenças sociais. “Os pés-rapados, por mais brancos e puros de sangue são filhos de Deus e devem ser tratados como tal. Esse sentido que fossem, privavam socialmente com os pardos e os negros estava potencialmente presente, pelo menos, no domínio na convivência e nas Irmandades. Os mais intolerantes eram os interno de cada irmandade, e constituía uma “communitas negros, em cujas confrarias do Rosário não admitiam brancos, ideológica”42 que caracterizou uma dimensão constante de nem pardos.”45 Esta intolerância não foi, no entanto, ostensiva: “liminaridade” compartilhada pelos irmãos. o compromisso de 1761 da Irmandade do Rosário, da matriz Ambas, communitas ideológica e normativa, eram do Pilar, em Ouro Preto, afirmava a aceitação de “toda pessoa extremamente importantes para os segmentos em algum preta ou branca, de um e outro sexo, forro ou cativo, de qualquer tipo de desvantagem, particularmente econômica, étnica nação que seja.”46 e na situação social dos escravos, porque geravam uma Tornar-se membro de uma irmandade previa o democratização de participação na vida colectiva e da expressão preenchimento de requisitos cujo processo e efeito social podem de necessidades, tendendo a compensar diferenças estruturais. ser considerados “ritos de passagem”, no sentido definido por

68 | glosas | número 13 | novembro | 2015 Turner,47 i.e., ritos que têm por consequência uma mudança recuperação de status ocorreu na Ordem Terceira de São Francisco de estado. Quando consumado, o efeito social desse rito de de Ouro Preto em 1775, quando “com a presença de todos foi lida passagem significava uma mudança de status e oferecia uma uma petição em nome do nosso irmão Antônio Dutra, em que série de privilégios (vide supra), dos quais não se usufruía antes. nela expunha que pela Mesa pretérita que servia há vários anos Era, na verdade, um ritual de elevação que, se bem sucedido – fora avisado para não usar mais Nosso Santo Hábito em todas as i.e., preenchendo o candidato todos os requisitos –, “promovia a festas e funções da ordem com o pretexto que se tinha casado com pessoa irreversivelmente de uma posição inferior a uma posição Mulher parda ao depois de ser professo há muito tempo, o que superior num sistema institucionalizado de tais posições”.48 O com efeito está desquitado dela há mais de nove ou dez anos, e que candidato submetia-se a uma comissão, que desenvolvia um nunca mais a viu nem com ela conversara, e assim pedia que pelo processo investigatório sobre sua vida presente e pregressa. amor de Deus o admitissem aos Santos exercícios desta venerável Devoção ao Catolicismo, requerimento comum entre todas ordem; e depois de assim ser lida e à vista das informações que as irmandades, era um senso de humanidade compartilhado dele se havia, foi readmitido.”53 pela comunidade em geral, i.e., a communitas mais universal Um dos papéis mais importantes das irmandades da sociedade mineira, ainda que a imposição deste sistema de relacionava-se com a instalação da Igreja Católica nas Minas crenças tenha ou não sido autoritária. Gerais. Nos primeiros tempos, todas as Igrejas matrizes A adesão ao Catolicismo era comprovada por depoimento pertenciam à Irmandade do Santíssimo Sacramento.54 As verbal ou escrito e envolvia um inquérito para constatar se o irmandades poderiam estar ligadas a Igreja matriz, tendo, dentro candidato vivia de acordo com os princípios católicos. Outros desta, altar dedicado ao seu padroeiro ou padroeira. As ricas parâmetros de communitas eram mais específicos de cada Ordens Terceiras (Carmelitas e Franciscanos) e a maioria das irmandade. Além de religião, etnia parece ter sido o factor Irmandades (entre elas, Nossa Senhora das Mercês e do Rosário) mais importante, embora, por vezes, ambos se sobrepusessem. construíam as suas próprias igrejas e capelas. Isto criou uma A discriminação contra os “cristãos novos” marcava situação singular, uma vez que as irmandades eram responsáveis diferentemente cada irmandade. A Irmandade das Almas, da por todo o apoio financeiro das respectivas igrejas, no que Freguesia de Santo Antônio do Campo de Casa Branca (distrito concerne tanto à fábrica da igreja (contas diárias), quanto às artes de Ouro Preto), não aceitava o grupo étnico heterogêneo de ali construídas (pagamentos a arquitectos, escultores e pintores) pessoas recém-convertidas: “Os irmãos que se houverem de e aos rituais celebrados, inclusivamente pagamentos aos músicos. aceitar nesta nossa Irmandade serão conhecidos por cristãos Os leigos, membros da irmandade, administravam a organização velhos de limpo sangue”.49 Algumas irmandades requeriam eclesiástica, já que havia poucos padres para ministrar cultos em uma communitas que amalgamava raça, status religioso (ou todas as igrejas. Os padres eram pagos pelas irmandades mas não seja, cristão novo ou velho) e social. Como exemplo, o termo pertenciam às suas igrejas, que, assim, não eram paróquias. de erecção (1721) da Irmandade de Nosso Senhor dos Passos, da Freguesia de São José do Rio das Mortes, dizia: “Os Irmãos Festas Maiores e Menores que se receberem hão-de ser sem nenhum escrúpulo, limpos de geração; ou sejam nobres; ou oficiais; e dos que não forem As actividades dos músicos estavam em grande parte associadas nobres ou oficiais, não sejam a sua esfera menos que oficiais, e à Igreja (clérigos, Irmandades e Confrarias) e ao seu calendário assim não [sejam]... raça de judeu, ou de Mouro, ou de mulato, litúrgico (festas maiores e menores), assim como aos eventos ou de novo convertidos de alguma infecta nação”.50 Certas públicos. Festas seculares relacionadas com entretenimentos irmandades vedavam qualquer discriminação, conquanto fosse de carácter privado, como saraus e bailes, certamente provada a adesão ao Catolicismo. O compromisso de 1795 da existiram, mas a documentação é praticamente inexistente. A Irmandade do Rosário, em Tiradentes, afirmava: “É muito organização das festas maiores era legislada pelos governadores conveniente ao serviço de Deus e Nossa Senhora e ao bem das das capitanias, subordinados ao Conselho Ultramarino, e este almas dos fiéis, que nesta Irmandade se aceitem por irmão todas ao Rei de Portugal. Aspectos relacionados directamente com as pessoas que, por devoção, quiserem servir a Nossa Senhora, os rituais religiosos eram regulamentados pelo episcopado tanto eclesiásticas como seculares; homens e mulheres, local. O Senado da Câmara estabelecia o contrato e provia o brancos, pardos e pretos, assim escravos, como forros sem apoio financeiro às actividades musicais nas igrejas referentes determinar número certo de irmãos, senão os mais que puderem às festas maiores. A selecção da corporação de músicos [sic] haver.”51 Nesse caso em particular, communitas residia não encarregada, todo o ano, das festividades oficiais regulares era apenas no sentido unificado de humanidade conferido pela realizada por dispositivo democrático, a arrematação. Segundo adesão ao Catolicismo, mas também em diversidade; em outras Lange55, este dispositivo consistia numa acção pública sob palavras, a origem heterogênea de seus membros era factor de responsabilidade do Senado da Câmara e era aberto a qualquer communitas. Este nível específico de communitas estabelecido músico profissional. Realizava-se na praça principal da vila, por cada irmandade se refere ao que anteriormente dissemos, geralmente a cada 31 de dezembro. Seleccionava-se o melhor quanto a estas instituições consubstanciarem a expressão de serviço, pré-estabelecendo um contrato anual com a corporação uma sociedade estruturada. de músicos ou cantoria (grupo de músicos reunido em torno Depois de se tornar membro de uma irmandade – i.e., de um líder ou mestre, que geralmente acumulava funções uma vez que a passagem é consumada –, o indivíduo “deve se de regente, compositor e executante). O contrato estabelecia comportar de acordo com certas normas costumeiras e padrões também um fiador, que substituiria o “arrematante” em éticos” e, “em virtude disso, tem direitos e obrigações vis-à-vis caso de doença ou impedimento. O contrato para a música de dos outros” membros.52 Todavia, no caso das irmandades de festividades eventuais era feito caso a caso. Minas Gerais, a elevação de status não era irreversível, uma vez As festividades menores eram organizadas e financiadas que mau comportamento poderia resultar em expulsão, que pelas irmandades, pois geralmente se referiam aos dias de acarretava a perda de status. Um exemplo de ascensão, perda e padroeiros. As irmandades tinham também calendário litúrgico

glosas | número 13 | novembro | 2015 | 69 e paralitúrgico, que demandava gêneros musicais como Missa, de setembro), S. Francisco de Assis (4 de outubro), N.ª Senhora Missa de Requiem, Novena, Septenário, Ladainha, Antífona, Te do Rosário (7 de outubro), N.ª Senhora do Terço (7 de outubro), Deum, Invitatório, Jaculatórias, Responsórios, Matinas, Moteto, Santa Cecília (22 de novembro), N.ª Senhora da Conceição (8 de Hino, Ofertório, Responsórios Fúnebres, Salmo, Ofícios de dezembro), N.ª Senhora da Expectação do Ó (18 de dezembro). Semana Santa, Stabat Mater e Gradual. A documentação musical As festas maiores e menores, celebradas de acordo com descoberta até o momento pertence ao período de decadência um calendário regular, construíram, através da repetição da mineração nas Minas Gerais.56 As irmandades tendiam a cíclica, um sentido de estabilidade numa sociedade perturbada estabelecer contratos com seus próprios membros. Em alguns por interesses conflitantes entre os diversos segmentos da casos, o irmão trocava o pagamento de sua anuidade por serviço população e entre estes e a Coroa. Entretanto, é equívoco como músico. No entanto, tudo indica que, na maioria dos casos, considerar que estas festividades fossem apenas um instrumento a sua posição como músico profissional fosse independente da de manipulação social. As festividades cíclicas eram carregadas filiação à irmandade; a anuidade do músico enquanto membro de simbolismo,61 expressando a relação de forças e a negociação e o pagamento por parte da irmandade para profissionais eram entre o forte e o fraco, bem como as expectativas de mudança independentes. O contrato com o mestre músico era feito “uma que aliviavam as tensões sociais. Salles analisa polêmicas só vez, renovando-se automaticamente quando não existisse canônico-judiciais entre irmandades como reflexo de sua queixa de uma das partes contratantes.”57 Não há registo de representatividade dos diversos segmentos da sociedade com que as irmandades, antes do aparecimento da Irmandade de interesses conflitantes: “Tais pleitos, não raro, assumiam Santa Cecília em 1815, operassem como sindicatos. Embora caráter de inegável agressividade de uma corporação contra a tendessem a reunir pessoas que trabalhavam na mesma área, outra, culminando, todos, no desfecho judiciário. Muitas, entre provavelmente por amizade ou camaradagem, nada consta em as batalhas jurídico-canônicas, duraram dezenas de anos e seus estatutos concernente à regulamentação ou à defesa de terminaram pelo extermínio da irmandade derrotada.”62 interesses como categorias profissionais. Segundo Lange,58 No que tange à etnicidade, a fase mais aguda desses “para isso existiam, separadamente, as corporações de ofícios”. processos ocorreu por volta da década de 1770, quando os mulatos A Irmandade de Santa Cecília foi a única que, além das adquiriram força social. O conflito entre a Arquiconfraria dos funções normalmente atribuídas a qualquer irmandade, operou Mínimos do Cordão de São Francisco (mulatos) e a Ordem também como sindicato. Entretanto, em Minas Gerais, foi Terceira de São Francisco (brancos), em Mariana, ilustra como estabelecida apenas no início do séc. XIX: 1815 em Vila Rica; 1817 o simbolismo dos rituais era pleno de sentido. A irmandade em Sabará e 1818 em Mariana.59 Em Minas Gerais, a Irmandade de brancos argumentou sobre a legitimidade de a irmandade de Santa Cecília atendeu à necessidade de maior controle das de mulatos usar a insígnia de São Francisco nas procissões actividades musicais no período de decadência da mineração do e qualificou-o como um “escândalo”, “usurpação de posse”, ouro, quando os recursos se tornaram cada vez mais escassos. É “desaforo grande”, “abuso”, e assim sucessivamente. A Ordem assunto ainda controverso se o período de apogeu musical em Terceira de São Francisco alegou toda sorte de argumentos, Minas Gerais (ca. 1750-90) foi regulamentado pela Irmandade desde problemas relacionados à iniciação do “corpo de noviciado Santa Cecília. A única documentação referente à sua existência de mulatos” até a reputação moral das “pardas meretrizes”. O antes do séc. XIX é o compromisso enviado ao Príncipe Regente poder representativo da irmandade de mulatos se faz evidente D. João, pelos “professores da Arte da Música”, na ocasião de justamente no facto de que o primeiro veredicto foi favorável ao sua fundação, que diz que “eles há anos têm se congregado em Cordão de S. Francisco e o processo durou 15 anos. Esta contenda uma Confraria tomando por sua Protectora a Gloriosa Santa sobre manipulação adequada e uso de objectos simbólicos em Cecília, colocando, entretanto, que não podem fazer uma capela ritual envolve problemas étnico-econômicos e provavelmente própria em um dos Altares da Igreja do Ouro Preto, em cujo conflitos políticos, se é que o Cordão de S. Francisco estava lugar costumam festejar o aniversário da mesma Santa.”60 realmente envolvido em assuntos políticos. Há fortes indícios de frequentes oportunidades de emprego Outro exemplo dado por Salles ilustra a competição de para os músicos. O calendário católico previa dias santos todos prestígio social entre irmandades do mesmo estrato social. A os meses. O ano eclesiástico divide-se em dois grupos: as Ordem Terceira de São Francisco e a Ordem Terceira do Carmo, festividades relacionadas com os episódios da vida de Jesus em Vila Rica, disputaram durante trinta anos a precedência (o Natal, a Semana Santa, que inclui música para o Domingo em procissões e enterros. De acordo com o texto canônico, a de Ramos ou a Procissão dos Passos, Quarta, Quinta e Sexta- sequência seguia a hierarquia entre as irmandades, i.e., Ordens feira Santa, Sábado Santo e Domingo de Páscoa; Pentecostes, Terceiras, Arquiconfrarias, Confrarias e Irmandades, e Pias Santíssima Trindade e Corpus Christi) e os dias de santos. Dias Uniões. Na procissão do Santíssimo Sacramento, a confraria sob dedicados a santos padroeiros das irmandades existentes este nome precede as arquiconfrarias.63 A existência de duas em Minas Gerais preenchiam praticamente todos os meses Ordens Terceiras tornou a decisão sobre a precedência menos e, de entre estes, poderemos citar os de N.ª Senhora do Pilar óbvia e acabou sendo motivo de rivalidade entre duas correntes (2 de janeiro), S. Sebastião (20 de janeiro), S. Gonçalo (5 de da classe dirigente, “cada uma delas a se considerar o organismo fevereiro), S. José (19 de março), S. Francisco de Paula (2 de social de cúpula da sociedade e, portanto, superior à outra.”64 abril), S. Benedito (4 de abril), todo o mês de maio dedicado Salles assinala também que nada indica que a disputa tivesse à Virgem Maria, com festividade especial no dia 24, Santo motivações de diferenciação de conteúdo social; e, entre guerra e Antônio (13 de junho), S. João Baptista (24 de junho), S. Pedro paz, “novamente se destaca a identidade de conteúdo de ambas.”65 (29 de junho), N.ª Senhora do Monte Carmelo (16 de julho), N.ª Eventos religiosos descritos e analisados por Carrato66 Senhora de Santana (26 de junho), N.ª Senhora da Assunção (15 demonstram como divergências de ideologia ou de poder de agosto), N.ª Senhora das Dores (15 de setembro), N.ª Senhora secular e religioso se expressavam em muitos rituais através da Piedade (15 de setembro), Santa Ifigênia (21 de setembro), do comportamento simbólico. Este autor narra um evento em N.ª Senhora das Mercês (24 de setembro), S. Miguel e Almas (29 que a música foi usada como instrumento simbólico de disputa

70 | glosas | número 13 | novembro | 2015 entre autoridades políticas e religiosas: em Arraial do Tejuco Affonso Ávilla escreveu os estudos mais marcantes (Diamantina), o dia de Santo Antônio era geralmente celebrado sobre gêneros literários do Período Colonial, como os Sermões com uma procissão. Em 1799, o promotor da festa, o Intendente de Vieira, as Cartas Chilenas de Tomás Antônio Gonzaga, o João Inácio do Amaral Silveira, substituiu a procissão por um Triunfo Eucarístico, o Áureo Trono Episcopal e os chamados concerto dentro da Igreja Matriz, onde o Santíssimo Sacramento “sermões mineiros”, como o sermão à morte de D. João V, do estava exposto. Esse concerto de música secular para celebrar Pe. Matias Antônio Salgado. Ávilla72 propõe uma interpretação um feriado religioso obteve a assistência do intendente e de totalizadora dos múltiplos aspectos que coordenam histórica seus amigos. Músicos profissionais e um competente cravista e esteticamente o fenômeno barroco, particularmente na sua amador tocaram “uma Orquestra de Sinfonias, quartetos, e manifestação brasileira. A sua linha interpretativa privilegia três outras músicas profanas de Plieal [sic: Pleyel]67 et coetera com categorias expressivas: o lúdico, a ênfase visual e o persuasório, que assentados de perna cruzada se divertiram toda a tarde, caracterizando ainda o “impulso lúdico” da estética e atitude causando este facto escândalo grande nesta povoação.”68 barrocas como “tendência à ruptura ou suspensão da ordem Este comportamento simbólico é analisado por Carrato como séria da vida e da rotina orgânica da natureza.”73 O conceito expressão da “mentalidade regalista das autoridades coloniais, de jogo não é o jogo-entretenimento, o jogo-comprazimento que usavam a Igreja como casa sua e os padres como seus ou o jogo-competitivo, mas o jogo simbólico ou criativo.74 lacaios”69, subestimando a autoridade eclesiástica. Fundamentando-se na obra clássica de Huizinga (1938), Subverter convenções rituais foi uma forma de enunciar “pretende mesmo ver o jogo nos mitos, nos rituais, nas práticas quem tinha poder e ditava as regras, neste caso a hegemonia do colectivas, convertido numa forma de vida, plena de sentido e temporalis sobre o spiritualis. Segundo o mesmo estudioso,70 função, que deve ser considerado em seus múltiplos aspectos essa atitude envolvia também o espírito pombalino, o como uma estrutura social.”75 Esta ideia de jogo simbólico pode sentimento anticlerical impregnado de ideias voltaireanas e ser relacionada com o conceito de símbolos rituais de Turner a simpatia para com o espírito liberal da Revolução Francesa. e suas “propriedades de condensação, unificação de elementos O Catolicismo era usado como instrumento legitimador do disparatados e polarização de significados”, cuja importância poder monárquico e os seus rituais expressavam a parceria varia em contextos diferentes.76 Igreja-Estado, que não ocorria, no entanto, sem conflitos. O jogo simbólico que caracteriza o Triunfo Eucarístico Rituais católicos se tornaram alvo de asserções simbólicas de envolve a criação de um espaço não-ordinário, de hegemonia do poder temporal e de ideologias anti-religiosas, dramatização e persuasão. O aspecto persuasivo da estética liberais e mesmo antimonárquicas. barroca tem sido amplamente discutido em termos da sua forma verbal (Retórica) e espaço-visual (Arquitectura, O Triunfo Eucarístico Pintura, Escultura). Estas formas, com a Música e Dança, mímica e drama, estavam todas presentes no Triunfo O período de 130 anos de mineração em Minas Gerais Eucarístico de 1733: a Retórica no sermão, nas mensagens viu quatro enormes festividades que reflectem o processo de dos pajens e na dramatização de personagens da procissão; o desenvolvimento daquela sociedade: o Triunfo Eucarístico espaço-visual na combinação da topografia da cidade com a (Vila Rica, 1733), o Áureo Trono Episcopal (Mariana, 1748), sua ornamentação, particularmente as luminárias, e também as Núpcias do Príncipe D. João (Vila Rica e Sabará, 1786) e os prédios, em especial a Igreja do Rosário e a Matriz do Pilar, a Coroação de D. João VI (Vila Rica e Sabará, 1817). A maior e o uso do espaço público; a Pintura em muitos elementos da parte dos documentos que descrevem estas festividades são procissão, como bandeiras e carruagens, além do uso global relatórios administrativos ou crônicas escritas na maior parte de cores e materiais reluzentes; a escultura, obviamente, por europeus que a eles assistiram. O Triunfo Eucarístico, nas imagens de santos, cuja função não era decorativa, mas uma das festividades mais sumptuosas em Minas Gerais carregada do significado simbólico da hagiologia católica durante os tempos coloniais, celebrou a trasladação do Divino romana oficial e popular. O impacte visual, constituído como Sacramento da Igreja de N.ª Senhora do Rosário para a nova jogo simbólico, foi um dos mais importantes instrumentos Igreja Matriz de N.ª Senhora do Pilar. Toda a festividade de persuasão e de criação de um espaço não-ordinário. durou aproximadamente dois meses e foi meticulosamente Esse espaço foi entendido como “espaço celestial” e concebido descrita por Simão Ferreira Machado numa obra homônima, de acordo com o sistema religioso católico, no qual a dicotomia publicada em Lisboa em 1734. Este documento tem sido entre Céu e Inferno, Deus e o Diabo, enfatiza a expectativa tratado como histórico, porém com precaução, pois o estilo da vida eterna (post mortem) mais do que da transitória vida literário que caracteriza a narrativa pode conter exageros ou terrestre. Esse espaço não-ordinário, funcionando como local improbabilidades. Entretanto, alguns estudiosos têm rejeitado ritual, trouxe “o paraíso para a terra”, fazendo a ponte entre os ou minimizado as restrições, pois outros testemunhos domínios sagrado e secular. A comunicação com o sobrenatural mostram que outras celebrações foram tão fabulosas quanto estabelece reciprocidade entre o homem e Deus, e a promessa a descrita no Triunfo Eucarístico. Além disso, estudos que de vida eterna no Paraíso está directamente relacionada com abordam o Triunfo Eucarístico como gênero literário, sob a a demonstração de fé, adoração e comportamento adequado. perspectiva de sua retórica e recursos poéticos barrocos, têm A religião implica obrigações e direitos, e o modo como o mostrado que a linguagem figurativa não deturpa a realidade, Catolicismo português cumpriu os seus deveres de adoração foi mas a interpreta através da visão do mundo do século XVIII. muito exteriorizado. “Sua religião, pois, é culto, antes de tudo, Por outras palavras, o gênero é, na verdade, uma interpretação é exteriorização, é a prática devocional externa (...). Assim, não coetânea entre muitas, uma vez que não se pode negar o será o dogma, o ato puro da fé, fruto da razão e do assentimento problema da representatividade do autor,71 cuja figura de racional, que obrigará o culto consequente (...). Não, é o culto, linguagem e metáforas foram construídas no seu próprio através do símbolo, da manifestação sensível, que levará aquele sistema simbólico. [ao dogma] (...). A Eucaristia – esse dogma belíssimo do

glosas | número 13 | novembro | 2015 | 71 Santíssimo Sacramento do altar – será muito mais entendida como indicam dois aspectos descritos por Machado. Um e sentida pelos préstitos monumentais de Corpus Christi do que destes respeitava à ordem do Senado para que as casas de Ouro pelo ensinamento dogmático, hermético no mistério.”77 Toda a Preto acendessem velas por seis dias consecutivos, três dos festividade descrita no Triunfo Eucarístico (Corpus Christi) é cheia quais deveriam ser gerais (i.e., toda a vila). A permissão de de gestos simbólicos, símbolos rituais e figuras alegóricas, desde incluir o bairro de Padre Faria como parte do corpo celestial, o bando de máscaras (de fins de abril até 3 de maio) anunciando considerado então “idôneo para dilatar as luzes o domínio das o evento por vir (programado para durar de 23 a 25 de maio, mas trevas”, envolve um conflito entre autoridades políticas ea por causa do mau tempo, até 26 de maio) até aos eventos finais população daquela vizinhança, composta sobretudo por negros (de 27 de maio a 5 de junho), e sobretudo a procissão de 24 de e mulatos. Outra diferenciação estrutural concerne ao morro maio. Não relatamos essa festividade, disponível em edições Pascoal da Silva, onde moravam os ricos e nobres. A declaração: modernas.78 No entanto, é necessário apresentar uma seleção “no altíssimo morro (...) as luzes mostravam aos juízes o centro sistematizada de dados relevantes para o estudo do evento sob da opulência” mostra que havia espaço para afirmação de poder a perspectiva ritual. Embora extremamente detalhada, algumas pela classe dominante neste espaço não-ordinário. Além disso, descrições da obra de Machado são incompletas sob o ponto de a interpretação de Machado de que as casas do morro Pascoal vista etnográfico. O sumário infra reproduz, portanto, a maior da Silva, “por sua altura, na região das nuvens pareciam aos quantidade de dados disponíveis nesta fonte, complementados olhos luminárias do céu”, mostra que as luminárias, enquanto com informações que ofereçam maior contextualização do espaço não-ordinário, praticamente sacralizaram o poder da sentido associado aos elementos do jogo simbólico. Também classe dominante. A relação de poder é legitimada também pela incluímos considerações analíticas que irão embasar a análise reacção das forças naturais e pelo “juízo comunicado do Céu”: exposta após este sumário. “a claridade dos ares, [e] a serenidade do tempo” eram sinal de que Deus comunicava através da Natureza a sua concordância As Festividades do Triunfo Eucarístico 1733: com a ordem temporal dos homens. O consentimento com a Sumário cronológico-descritivo analítico ordem social se expressa também na “ordem da multidão”. O jogo simbólico de persuasão opera através de estímulos — Desde fins de abril até 3 de maio (domingo): Divulgação. A visuais e sonoros (“estrondosa harmonia dos sinos, melodia solenidade foi anunciada ao povo por máscaras. Jogo simbólico artificiosa das músicas”), acção corporal simbólica (“estrépito enfatiza estímulo sensorial de impacte visual, entendido como das danças”), símbolos visuais (“adorno das figuras”) e recurso “aprazível objecto da vista”, e em gestos simbólicos como barroco da varietas (“formosura da variedade”). O efeito “jocosidade”, “galanteria” e “por diferentes modos”; persuasivo é enunciado por Machado: “influirão nos corações o — 3 de maio (domingo): veneração pública das duas sentimento de júbilo de tão suave alegria”; bandeiras de damasco (tecido de seda com desenhos lavrados) — 23 de maio (Sábado, à tarde) [4.º Sábado do mês]: de cor carmesim: uma com N.ª Senhora do Rosário numa face estava programado para a “solene pompa do Traslado”; com e a custódia do Sacramento na outra; a segunda bandeira com tudo pronto e todos presentes, o tempo sereno desde que N.ª Senhora do Pilar numa face e a custódia do Sacramento na amanhecera, na hora da procissão choveu repentinamente. outra, passando pelas ruas da vila carregadas por duas pessoas Houve um discurso persuadindo que o impedimento fora ricamente vestidas. Finalmente, colocadas cada uma defronte providência divina, “de superior mistério” porque o dia ao respectivo templo. Grande assistência pública; seguinte era dia da Mãe de Deus: o próprio Senhor cedera a — Dia da Ascensão79: o Reverendo Vigário da Vara de Vila sua mãe a apropriada glória que se honraria no seu dia. A Rica, Félix Simões de Paiva, benze a nova igreja. Esse evento chuva foi “a muda voz do Céu, antecipada expressão de agrado consiste num ritual mágico, onde um objecto é sacralizado; a com que via em competência a fé nos entendimentos, nas nova igreja não pode funcionar como templo religioso antes de vontades do amor”, sinal divino de aprovação da concórdia ser limpa das forças do mal e impregnada pelo poder divino. entre os grupos étnico-sociais, na interpretação da classe Benzer a nova igreja é, portanto, um ritual de passagem, uma vez dominante. Todavia, Araújo80 menciona que, desde os que há mudança de estado, de ordinário para sagrado; depois tempos da escravatura, negros e crianças costumavam sair da benção, o prédio da igreja torna-se um espaço sagrado, casa em primeiro lugar nas procissões e que havia uma interdição de Deus. Assistência: todo o clero de ambas as paróquias, vários popular contra a saída de qualquer procissão sem a imagem religiosos e a maior parte do povo da vila e arredores. Danças e de São Benedito ou sem a sua irmandade em primeiro lugar, máscaras de dia; música à noite; pois o santo negro castigaria o desdém com chuva: “Nenhuma — desde a Ascensão até ao dia do Traslado (24 de procissão sai sem que à frente esteja o santo negro. Se não, é maio): Danças e máscaras de dia; música à noite. Eventos chuva na certa”. São Benedito é caso típico da religiosidade extralitúrgicos, i.e., ocorridos fora de contextos litúrgicos ou popular brasileira, Cristandade de tendência antropomórfica paralitúrgicos, indicando, portanto, que as músicas tocadas à que transfere características humanas para os santos, para noite consistiram em gêneros seculares; a Virgem e para Jesus, até mesmo fraquezas: neste caso, a — de 17 (domingo) até 22 de maio (sexta-feira): seis dias vingança. A procissão do Triunfo Eucarístico de 1733 não abriu consecutivos antes do Traslado: luminárias entre os moradores com São Benedito, nem na primeira nem na segunda secção; de Ouro Preto (por ordem do Senado). Velas do lado de fora a não ser que o santo negro tenha aberto a segunda secção da de todas as casas reluzindo à noite causaram impacte especial procissão, onde “várias Irmandades guiadas por suas cruzes naquela paisagem de topografia em colinas. Luminárias criaram de prata... conduzissem os seus Santos padroeiros”. Isto não um espaço não-ordinário, transformando a cidade num corpo se afigura plausível, pois a imagem de São Benedito aparece celestial. Este espaço constituiu, no entanto, uma situação mais tarde na procissão, com a Irmandade de N.ª Senhora do paradoxal, pois não suspendeu a diferenciação social, mas Rosário dos Pretos. Devido à chuva inesperada, a procissão foi continha estrutura e “communitas normativa” superpostas, adiada para a manhã seguinte;

72 | glosas | número 13 | novembro | 2015 — 24 de maio (domingo, manhã): Traslado do Divino — O Vento Sul montava um cavalo castanho, de sela verde bordada Sacramento. Janelas das casas enfeitadas com sedas e damascos em ouro, e sua vestimenta tinha como cores diferenciais o azul nas ruas destinados à procissão expressavam sentimentos e e branco; crenças compartilhadas pela população. Cinco arcos ornavam – Os Ventos Norte e Leste vestiam “as cores que lhe competiam”; as ruas (“triunfo de ouro e diamantes”); num deles “um altar “Depois vinham as figuras mais majestosas de toda a procissão; para o descanso do Divino Sacramento” propiciava a veneração todas a cavalo vestidas à trágica”. pública. Jogo simbólico do cenário, enfatizando estímulo V. A Fama (divindade alegórica representada por “mulher sensorial de impacte visual interpretado por Machado como tocando trombeta”), vestida com plumas brancas, diamantes e “uma vária e agradável perspectiva para a vista, empenhada ouro, montava um cavalo russo pedrês e segurava haste de prata competência de preciosidade e artifício”, além do ambiente rematada em cruz com estandarte branco; numa face, pintada natural de verde dos campos, flores da Primavera, aromas da a Arca do Testamento, na outra a custódia sobre um letreiro: Arábia do Oriente e raios de Sol de luzes douradas e prateadas. Eucharistia in trasladatione victrix (“A Eucaristia vitoriosa na Persuasão advém da criação de espaço não-ordinário, que tende transladação”).83 à êxtase sensorial e “delícia”; — Seguiam dois pajens que proferiam elegantes poemas da — Antes de sair a procissão, foi feito um gesto simbólico Fama em elogio à solenidade; pelo qual o Divino Sacramento foi colocado no braço de Nossa VI. A figura de Ouro Preto, representando a vizinhança da nova Senhora em lugar de Jesus. Em seguida teve lugar a liturgia da Matriz, para onde a procissão se dirigia; missa, oficiada a dois coros e celebrada pelo Reverendo Doutor — A figura era precedida pelo “Alemão”84 os “negros José de Andrade e Moraes, que concluiu a solenidade na Igreja charomeleiros”85 e um pajem principal. O “Alemão” tocava do Rosário proferindo um sermão. Assistiram a estes eventos clarim, estava vestido à castelhana, em veludo roxo bordado de nobres e militares, em gestos galantes e solenes, e o povo em ouro com diamantes e plumas coloridas, montado num cavalo geral. Depois da solenidade na Igreja do Rosário, foi realizada a russo de sela de veludo carmesim bordada a ouro. Os “negros transferência do Divino Sacramento, em procissão monumental, charomeleiros” caminhavam atrás. As “vozes” do clarim desde a igreja até à nova Matriz de N.ª Senhora do Pilar. alternavam com as “vozes” das charomelas. A figura de Ouro Preto vinha montada no melhor cavalo desta secção, russo, — Procissão: Secção I: sela de veludo verde bordada a ouro, ferragens de prata, crinas I. Dança de Turcos e Cristãos: 32 figuras militarmente bordadas a diamantes. Sua vestimenta era de ouro, diamantes vestidas, divididas em dois grupos, cada um com um Imperador e plumas. Na parte frontal estavam bordadas as Arenas Reais e quinze Alferes.81 Conduzem dois carros com excelente pintura sobre a inscrição Viva Ouro Preto. Esta figura segurava na mão e dentro vão os músicos, de suaves vozes e vários instrumentos direita uma pequena bandeja cheia de diamantes, significando (não há indicação sobre a música executada). A dança representa Ouro Preto; a conversão, encenação simbólica de ritual transformador, — Seguiam as figuras de Ouro Fino e Ouro Preto, simbolizando segundo Turner (1969). os dois “morros entre os quais está fundada a Vila”. II. Dança dos Romeiros: gravidade do gesto, variedade da Seguiam dois pajens vestidos à trágica. ordem, diferentes mudanças de arte (princípio barroco da VII. As figuras dos Sete Planetas: varietas). 1. Lua (vestimenta composta de diamantes, cor azul, prata, III. Dança dos Músicos: dois carros de madeira com pintura pérolas, plumas brancas, seda, detalhes em ouro, turbante azul singular, o menor com uma serpente e o maior com uma abóbada com lua cheia no topo), carregando um arco no bravo e uma onde um cavaleiro escondido aparecia de repente, montado flecha na mão, montada num cavalo branco; à cabeça da serpente, encenando (“tudo representação”) “a — Precedida de duas ninfas (cada uma com um cão perdigueiro história humana, ou da Escritura em termos breves e claros”. em coleira de prata em forma de cascavel) e dois pajens; A serpente contém dois significados alegóricos, um relativo 2. Marte (vestimenta composta de branco, diamantes, prata e à mitologia cristã da tentação e pecado capital, outro formado ouro) montado num cavalo russo rosado; localmente como perigo constante naquela região, ilustrado — Precedido por três figuras de Mouros (com plumas carmesim, pelo relato enviado a Lisboa em 1735: “a passagem para as Minas verde, prata e branco): o do meio tocava uma caixa de guerra, o Novas, desde os Currais da Bahia para baixo, é extremamente da direita um pífaro e o da esquerda uma trombeta. Seguido de perigosa neste rio [Jequitinhonha], em respeito às cobras que dois pajens (carmesim, verde, azul, ouro, prata) segurando duas têm em si chamadas sucuriúbas. Estas são algumas de vinte escopetas de lavores de prata; varas de medir, e grossas quase como um homem e comem os 3. Mercúrio86 (de cabeleira branca, vestimenta composta negros que apanham em tais paragens e lançam gados e cavalos de vermelho, azul, rosa, amarelo, prata, ouro e diamantes) e tudo o mais que vai à beira daquele rio. E na passagem deste rio montado num cavalo russo, segurando na mão direita um para as Minas Novas andava uma que tinha feito muito estrago. caduceu87 dourado. Foi morta por um ermitão de São Gonçalo de Sabará, como por — Precedido por duas figuras tocando clarim; milagre do mesmo Santo, vemos colocado em sua capela.”82 — Escoltado por dois pajens; IV. Quatro figuras a cavalo representando os Quatro 4. Sol: o Rei (cabeleira de fios de ouro, vestimenta de ouro, Ventos, “vestidos à trágica” e com plumas brancas, ouro e diamantes e cores de fogo) montado num cavalo castanho diamantes: vestido como unicórnio. Esta era a figura mais majestosa da — O Vento Oeste montava um cavalo castanho escuro mosqueado secção; de branco, com sela de veludo cor de ouro, e sua vestimenta — Precedido por duas figuras: a estrela d’alva (nas costas vinha tinha como cores diferenciais o verde, rosa, branco e prata; o nome “Lúcifer”88 e da tarde. Ambas de vestimenta compostas também duas asas, uma inscrição nas costas com seu nome e de branco e prata; uma trombeta na mão esquerda; — Escoltada por seis pajens, três de cada lado, garotos mulatos

glosas | número 13 | novembro | 2015 | 73 com barretes à mourisca na cabeça (verde, plumas brancas); V. Irmandade Nossa Senhora do Rosário dos Pretos: 5. Júpiter (vestimenta de plumas azuis e brancas, diamantes, três andores com as imagens de Santo Antônio Calatagirona, ouro e prata), segurando um ceptro de ouro na dextra e um S. Benedito e N.ª Senhora do Rosário (numerosos irmãos); escudo dourado com insígnia na esquerda, vinha num carro VI. Irmandade S. Antônio de Lisboa: três andores triunfante (coberto de seda nácar guarnecida de galões de prata; levando as imagens de S. Antônio, S. Vicente Ferreira e S. nas rodas anteriores estava pintado o signo SICSIP e nas rodas Gonçalo do Amarante (numerosos irmãos); posteriores o signo Sagitário; puxavam duas águias coroadas de VII. Nobres que serviram a República do Senado da ouro; Câmara, quatro dos quais com o andor do santo padroeiro — Rodeado por dois pajens representando os satélites; do Senado da Câmara, o mártir São Sebastião (numerosos 6. Vênus (vestida de verde e rosa, pérolas, ouro, diamantes irmãos); e pedras preciosas), com expressões faciais de formosura e VIII. Irmandade de N.ª Senhora do Rosário do Terço compostura; trazia no braço esquerdo um escudo com um dos Brancos: andor levando a imagem de sua santa padroeira coração abrasado em fogo e um ramalhete de flores na direita, e (numerosos irmãos); vinha num carro triunfante em feitio de concha; IX. Irmandade de N.ª Senhora da Conceição: andor — Rodeada por dois pajens representando cupidos (verde e levando a imagem de sua santa padroeira (numerosos rosa), com arcos e setas; irmãos); 7. Saturno: velho homem com aspecto fúnebre e influências X. Irmandade de N.ª Senhora do Pilar: andor levando lúgubres, cabelo e barba natural (vestimenta de plumas azuis e a imagem de sua santa padroeira (numerosos irmãos); brancas, diamantes e ouro), montado num cavalo castanho de XI. Irmandade do Santíssimo Sacramento (numerosos sela verde bordada em prata, segurando um pequeno escudo irmãos); o Provedor desta irmandade teve a honra de levar a com insígnia no braço esquerdo e uma foice de prata na mão vara de prata; um sacerdote levava a cruz; o clérigo numeroso direita; de ambas as paróquias (Antônio Dias e Pilar) e suas anexas — Precedido por duas estrelas vestidas como soldados romanos, levavam velas de livra; quatro sacerdotes levavam a imagem cada uma com uma meia lança nas mãos. do Patriarca S. Pedro rodeado por oito sacerdotes de cada lado “Todas estas majestosas figuras dos Planetas, pela memória da revestidos de ricas casulas, manípulos e estolas, seguidos Divindade que neles adorava o fingimento da antiga Idolatria, por mais oito sacerdotes com dalmáticas, oito vestidos com eram glorioso triunfo do Eucarístico Sacramento: que como capas de asperge e mais quatro segurando turíbulos; outro no feliz século da Redenção humana foi alcançado pelo mesmo que carregava o pedestal para descanso da custódia do Divino Senhor Sacramentado; se via agora na memória, e figura Sacramento; quatro anjos vestidos à trágica levando bandejas renovado para estímulo da pública veneração da Cristandade, e de flores que lançavam pelas ruas; o Divino e Eucarístico maior glória do mesmo Senhor.”89 Sacramento veio nas mãos do Reverendo Vigário da Matriz, VIII. A Figura da nova Igreja Matriz vinha em revestido com rica alva, estola, capa de asperge e véu de formosíssimo cavalo branco, em vestimenta de azul e branco, ombros; vinham mais dois sacerdotes vestidos de ricas alvas diamantes, ouro, plumas brancas e pedras preciosas, a mais e dalmáticas de tela branca; soberba de todas as figuras “punha fim a toda esta ordem de XII. O governador de Minas Gerais, Conde das figuras”. Segurava no braço esquerdo um escudo de ouro com Galveias; uma pintura da Igreja matriz sobre a inscrição Haec est domus XIII. Todos os militares e nobreza literária da vila e outras Domini firmiter aedificata (“Esta é a casa do Senhor, firmemente partes; edificada”)90 e na mão direita um estandarte branco pintado XIV. O nobre Senado da Câmara; numa face a N.ª Senhora do Pilar com a inscrição Ego dilecto XV. Companhia dos Dragões, que deu três cargas de meo (“Eu para o meu amado”) e na outra a custódia da Eucaristia mosquetaria, recolhida a procissão; com a inscrição Et ad me conversio ejus (“E para mim as atenções A última parte do evento da manhã no dia do Traslado dele”).91 foi dentro da Igreja Matriz, onde o Divino Sacramento foi — Rodeada por dois pajens de cada lado (vestimenta azul entronizado. Encerrou o dia a celebração de uma “Missa e branca) levando nas mãos “as insígnias da figura que cantada com música a dous coros: pregou ao Evangelho o acompanhavam”. Dr. Manoel Freire Batalha; e de tarde fez o mesmo do Conde Governador, de toda a Nobreza e Senado da Câmera.” 92 O Dia Secção II: do Traslado e os dois dias seguintes formavam o Tríduo (24, I. Várias irmandades levando a imagem de seus santos 25 e 26 de maio), que consistia numa série de actos litúrgicos padroeiros guiadas por suas cruzes de prata; todos em gesto e paralitúrgicos. grave e solene; A 25 de maio (segunda-feira de manhã) houve Missa cantada — Precedidas por um gaiteiro à castelhana e um “moleque” a dois coros e Evangelho. No mesmo dia à tarde, proferiu tocando tambor; o Dr. José Andrade e Morais. A ambos os eventos assistiu II. Quatro negros montados em cavalos brancos tocando o Conde Governador, toda a Nobreza e Senado da Câmara trombetas donde pendiam estandartes de seda branca com a e povo em geral. A 26 (terça-feira) houve Missa cantada a custódia pintada; dois coros, sermão de manhã e, de tarde, pelo Reverendo III. O guião da Irmandade do Santíssimo Sacramento (de Padre Diogo Soares da Companhia de Jesus. A assistência damasco carmesim franjado de ouro com a custódia bordada) compreendia o Conde Governador, toda a Nobreza e Senado era levado por um irmão vestido de custosa gala e outros dois, da Câmara e povo em geral. A 27 (quarta-feira à noite) ardeu ao lado, levavam tochas; um “artificioso fogo feito num piano perto da Igreja Matriz, IV. Irmandade dos Pardos da Capela do Senhor S. José, fabricado por ideia do Reverendo Padre Diogo Soares, da levando o andor da imagem de S. José (numerosos irmãos); Companhia de Jesus”, visto pelo Conde Governador, toda a

74 | glosas | número 13 | novembro | 2015 Nobreza e Senado da Câmara e povo em geral. de Ouro Fino e à representação da vila como um todo, A festividade do Triunfo Eucarístico encerrou com nove dias entre as duas colinas. O valor material dos metais e pedras de eventos seculares: preciosas encontrados na área tinha de ser transformado em 28 de maio (quinta-feira à tarde): cavalhada; algo religioso. Esses símbolos tinham também um propósito 29 de maio (sexta-feira à noite): comédia; educacional e implicavam analogamente a conversão. Por sua 30 de maio (sábado à tarde): touro; qualidade de expressar ideias abstractas através de formas 31 de maio (domingo à tarde): cavalhada; concretas, as figuras são alegorias. 1 de junho (segunda-feira à noite): comédia; A alegoria dos Sete Planetas simboliza velhas crenças, ou, 2 de junho (terça-feira à tarde): touro; como diz Machado, “a falácia da Idolatria antiga”. O sistema 3 de junho (quarta-feira à tarde): cavalhada; astronômico usado neste segmento é anterior ao sistema 4 de junho (quinta-feira à noite): comédia; de Copérnico, que provara que o Sol é uma estrela e não um 5 de junho (sexta-feira à tarde): touro; planeta. A “estrela d’alva” e a “estrela vespertina”, tomadas Esses nove dias contaram com a assistência do Conde como diferentes, eram na verdade uma só, e não uma estrela, Governador, da nobreza secular e eclesiástica e do povo em mas o planeta Vênus. O século XVIII conhecia seis planetas: geral. Houve serenatas e banquetes todas as noites nas casas da Mercúrio, Vênus, Terra, Marte, Júpiter e Saturno. Essa paróquia de Ouro Preto, promovidos pelo Conde Governador. alegoria implica claramente a contribuição da ciência aos As comédias encenadas foram El Secreto a vozes, El Principe navegadores ibéricos que descobriram o Novo Mundo. No prodigioso e El Amor criado. entanto, não há confronto entre Catolicismo e ciência, mas um ajustamento e reconciliação através do reconhecimento Triunfo Eucarístico: do pagão ao sagrado: de que a verdade católica é superior à científica. A ritual (transformador) e cerimônia (confirmador) efemeridade da verdade da ciência fecha a secção pagã, contrastando com a figura da Igreja Matriz do Pilar, que faz Uma análise da procissão usando o conceito diferencial a transição para a secção sagrada da procissão, culminando de Turner entre ritual e cerimônia, o primeiro como com o triunfo da Verdade Católica. Este é o significado do transformador e o segundo como confirmador, mostra que Triunfo Eucarístico. A natureza transformadora da primeira o Triunfo Eucarístico de 1733 continha ambos. A procissão secção encenada simbolicamente desde o início com a dança dividiu-se em duas partes, a primeira, que poderia ser dos Mouros e Cristãos atinge seu momento mais intenso considerada a secção pagã, e a segunda, que seria a sagrada. quando a figura da Matriz do Pilar aparece no final da secção A primeira abre com a dança dramática dos Turcos e Cristãos pagã, estabelecendo o templo de Deus como espaço para anunciando o tema da procissão, nomeadamente a conversão. conversão. A sentença de Machado expressa uma percepção A dança dos Romeiros que segue representa a prática popular coetânea da natureza transformadora dessa secção, que do Catolicismo, cheia de crenças, actos e objectos mágicos encenou simbolicamente o momento de conversão dos que nem sempre são considerados pela religião oficial um pagãos e o triunfo do Catolicismo. entendimento adequado do Catolicismo, mas tendendo Considerando a procissão uma representação simbólica à superstição. É provável que este seja o motivo de esse de um “rito de passagem”, a primeira secção pode ser vista grupo de devotos estar situado na secção pagã da procissão. como fase “pré-liminar” de distanciamento da realidade Entretanto, a legitimidade religiosa dos romeiros não foi aceite. A figura da Igreja Matriz do Pilar representa o momento completamente negada, já que estavam sujeitos à purificação de transição para uma nova fase e encena simbolicamente o pelo efeito simbólico transformador da secção. O próximo “espaço liminar”, no qual a verdade católica é atemporal e segmento, de músicos, encena o episódio da tentação eterna, e todos os seres humanos convertidos são igualmente da serpente e da expulsão de Adão e Eva do Paraíso. A filhos de Deus e sujeitos às mesmas leis divinas. A segunda apresentação alegórica, combinada com narração dramática, secção pode ser considerada a fase “pós-liminar” de tem propósito educacional e pode ser considerada a forma agregação, depois da conversão, onde apenas convertidos verbal de persuasão mais explícita da secção. A alegoria participam. A secção sagrada é, portanto, o lugar para pessoas dos Quatro Ventos prenuncia o triunfo do Catolicismo nos “autenticamente” religiosas adorarem Deus. quatro cantos do Mundo e é, por analogia (conforme exposto O jogo-simbólico da primeira secção processional é supra, onde discutimos o Padroado e as Festas Maiores), construído com alegorias. Esteticamente, fazem amplo metáfora do espírito conquistador português. Além disso, a uso do ornamento, chamado “adorno” por Machado, e da omnipresença de Deus é uma metáfora do Rei. A alegoria da varietas (“variedade e novidade para os olhos”). A função Fama representa o futuro e prenuncia boa ou má fortuna; o do ornamento na estética barroca não é complementar, letreiro da Fama anunciava a vitória do dogma católico. mas essencial à densidade de expressão, abundância de O triunfo do Catolicismo é reforçado pelos auspiciosos significado, estímulo sensorial e ambiguidade. Varietas, poemas recitados pelos pajens. A música tocada em êxtase sensorial e abundância de significado levam ao alternância entre o “Alemão” e os “negros charameleiros” foi fenômeno de “estremecimento” ou “estranhamento”,93 muito provavelmente secular, dada a natureza pagã da secção. espaço não-ordinário cuja suspensão de tempo e ruptura de Os escravos negros representados pelos charameleiros ordem pode ser relacionada com o conceito de “liminaridade” figuram ali como pagãos que devem ser convertidos. A figura de Turner. Por outro lado, a segunda secção da procissão não de Ouro Preto, representando a vizinhança da nova Igreja usa alegorias, mas símbolos, e reestabelece a ordem normal, Matriz, aparece ali provavelmente pelo valor secular dessa eliminando o êxtase sensorial provocado pelo carácter pedra preciosa, abundante naquelas vizinhanças. A bandeja maravilhoso da precedente. Ao invés do espectacular desfile de diamantes simboliza o seu valor e o poder econômico de tipo carnavalesco da secção pagã, a secção sagrada mostra daquele bairro. Esse simbolismo também se aplica à figura uma sequência de irmandades, pessoas religiosas, o clero e

glosas | número 13 | novembro | 2015 | 75 a nobreza, encenando gesto solene e reverente sem nenhum nas mãos do sacerdote e seguido pelas autoridades políticas, apelo sensorial. Alegorias são substituídas por símbolos simbolizava analogamente o triunfo da ordem colonial. católicos, como imagens de santos, Cruz, bandeiras, velas O tema dessa secção foi o triunfo da Verdade, metáfora e a custódia do Sacramento Eucarístico, objectos rituais da confirmação do poder temporal. O Divino Sacramento carregados de significado, tanto para o sistema mitológico representou simbolicamente o Rei, distante mas reinante. A católico, como para a história local. 94 parte sagrada da procissão superpôs funções transformadora Um ponto interessante da segunda parte da procissão e confirmadora. A aparição de irmandades de grupos de 1733 é a ordem de participantes. Como vimos, o texto sociais inferiores primeiro e, depois, gradativamente, os canônico determinava que a sequência das irmandades superiores; se estivesse isolada da primeira secção (profana) em procissões seguisse a hierarquia: Ordens Terceiras, teria apenas função confirmadora (cerimônia), pois estaria Arquiconfrarias, Confrarias e Irmandades, e Pias Uniões, expondo e legitimando ritualisticamente a hierarquia social. em ordem descendente de importância. Parece claro que Porém (vide supra), o tema da conversão da primeira secção, o procedimento normal é colocar os participantes mais que instituiu um ritual de elevação, contaminou a segunda. importantes no começo. Entretanto, o Triunfo Eucarístico de Portanto, esta sequência hierárquica, ao mesmo tempo 1733 não obedeceu à norma. A sessão sagrada abriu com as que expõe e confirma a ordem social, função principal da irmandades e grupos menos importantes e fechou com os mais segunda secção, repercute num plano secundário o rito de importantes, o que não significa que se tenha estabelecido passagem desde o pagão para o cada vez mais cristão, que um “espaço liminar”, nem tampouco inversão simbólica se iniciara na primeira. A função confirmadora da segunda da ordem social; não se constituiu, portanto, um “ritual de secção se cristaliza com as autoridades religiosas e políticas inversão de status”95 Pelo contrário, nesse contexto ritual encenando o triunfo do Padroado. Enquanto a secção pagã específico, a sequência das irmandades estendeu o tema da da procissão foi alegórica, a sagrada foi simbólica, e ambas conversão da primeira para a segunda secção e estabeleceu combinadas resultaram na grande metáfora da conversão, a ordem social a ser legitimada. A primeira irmandade foi que culminou com a confirmação da ordem social. O Triunfo dos mulatos de São José, grupo étnico ainda sem poder na Eucarístico de 1733 consistiu, portanto, numa superposição década de 1730. Esta foi seguida pela irmandade do Rosário de ritual (simbolicamente transformador) e cerimônia dos Pretos, representando o grupo étnico mais numeroso da (simbolicamente confirmadora). vila de então, e depois a de Santo Antônio, provavelmente Tal ritual-cerimônia legitimou a hegemonia da Igreja e de brancos de classe baixa. A nobreza aposentada apareceu do Rei e, em certa medida, foi uma modalidade de doutrinação numa posição que mostra como o desligamento do poder com e sem palavras, pois envolvia enunciações, alegorias político implicava desprestígio. Depois da irmandade e uma série de objectos e actos rituais, todos parte do jogo do Rosário dos Brancos, apareceu a primeira irmandade simbólico de que fala Ávilla (1971). O Triunfo Eucarístico realmente importante na década de 1730, sob a protecção da constituiu um evento cuja mensagem persuasiva foi, em padroeira do Reino de Portugal, N.ª Senhora da Conceição. A última instância, a sacralização do poder temporal através do irmandade sob a protecção da padroeira da nova Matriz, N.ª divino e a confirmação do religioso através de dogmas além Senhora. do Pilar, veio logo antes da última irmandade do da razão, acima de qualquer explanação; estavam ali e eram Santíssimo Sacramento, que, além de concentrar a nobreza inegáveis, absolutos e verdade última. A natureza dogmática da vila, gozava de preferência nas procissões de Corpus da religião católica, extensiva ao poder monárquico, explica Christi (Triunfo Eucarístico). A secção sagrada culminou porque rituais e cerimônias eram construídos segundo com a custódia da Eucaristia levada pela autoridade religiosa os princípios barrocos de persuasão, com amplo uso de do Reverendo Vigário da Matriz, simbolizando o triunfo da alegorias, símbolos e metáforas, e efectivados através de verdade católica sobre a falsidade. O Divino Sacramento, jogos simbólicos mais do que de raciocínio e razão.

76 | glosas | número 13 | novembro | 2015 notas de Pleyel (DUPRAT & BALTAZAR 1994, respectivamente pp. 8, 34 e 57). 31 SALLES 1963: 16. 68 Texto exarado no “Requerimento do Povo”: Revista do Arquivo Público 32 Para um tratamento mais pormenorizado destas questões, vide SALLES Mineiro II, p. 173, apud CARRATO 1968: 80-1. 1963: 15-19. Daqui em diante, o termo “irmandade”, grafado em minúsculas, 69 CARRATO 1968: 78. refere-se indistintamente a estas quatro categorias. Quando a diferenciação 70 CARRATO 1968: cap. II.3, “As elites na Igreja Mineira”, pp. 73-95. hierárquica for necessária, utilizar-se-á a grafia com maiúscula. 71 Não é possível, no momento, empreender uma discussão consistente sobre 33 VASCONCELLOS 1948: vol. II, 201. a representatividade do autor do Triunfo Eucarístico, pois existe muito pouca 34 1963: 27. informação sobre Simão Ferreira Machado e as circunstâncias e motivações 35 SALLES 1963: 58. específicas para escrever aquela crônica. A única informação biográfica é 36 TRINDADE 1951: 91; SALLES 1963: 37-8, 91. apresentada no frontispício da obra e diz que o autor nascera em Lisboa e 37 1963: 19. residia em Minas Gerais. Existem três hipóteses diferentes concernentes à 38 HOLLANDA 1973: 125. sua identidade: Augusto Lima Júnior afirma que Simão Ferreira Machado foi 39 Capítulo 1.°, artigo 5.º da Ordem Terceira de N.ª Senhora das Mercês dos um homem rico de Minas Gerais que serviu ao governo português na Corte Perdões, de Antônio Dias, Ouro Preto (apud SALLES 1963: 20). de Roma e foi ao Brasil acompanhando D. André de Melo e Castro, o Conde 40 Apud SALLES 1963: 48. de Galveias, então nomeado Governador das Minas Gerais. Feu de Carvalho 41 TURNER 1969: 132. diz que Simão Ferreira Machado pode ter sido o pseudônimo do cartógrafo 42 TURNER 1969: 132 ssq. jesuíta Diogo Soares. Hélio Gravatá encontrou um cirurgião chamado Simão 43 TURNER 1969: 129. Ferreira Machado, vivendo em São Paulo 14 anos depois, mas não há indícios 44 1963: 45. de que fossem a mesma pessoa. Discussão mais ampla sobre a identidade do 45 LIMA JÚNIOR 1940 [1965]: 130. autor do Triunfo Eucarístico se encontra em Ávilla (1967: 295-298). Todas 46 LOPES 1955: 195. A classificação supra baseia-se em SALLES (1963: essas hipóteses mostram, entretanto, que o autor do Triunfo Eucarístico foi 137-141), estudo exaustivo sobre as associações religiosas em Minas Gerais um português letrado que muito provavelmente viveu entre a Nobreza. durante o ciclo do ouro, e HOLLANDA (1973: 124). 72 1971: 12. 47 1969: 94. 73 ÁVILLA 1971: 23. 48 TURNER 1969: 167. 74 ÁVILLA 1971: 26. 49 Capítulo 4.º, 1720, apud SALLES 1963: 38. 75 ÁVILLA 1980: 26. 50 Apud SALLES 1963: 44. 76 TURNER 1969: 52 ssq. 51 Apud SALLES 1963: 40. 77 CARRATO 1968: 31-32. 52 TURNER 1969: 95. 78 O Triunfo Eucarístico foi transcrito em Revista do Arquivo Público Mineiro, 53 Apud SALLES 1963: 42. VI, p. 985-1016. Além dessa transcrição, Ávilla (1967, vol. I) publicou o fac- 54 SALLES 1963: 30. símile da edição princeps. 55 1966: 68-70. 79 O dia da Ascensão é 21 dias antes de Corpus Christi, ou 40 dias depois 56 Cf. os catálogos de BARBOSA (1979); DUPRAT & BALTAZAR (1991); IIDEM do Domingo de Páscoa. Corpus Christi incide na quinta-feira após o oitavo (1991 e 1994). Domingo que se segue à Páscoa. No entanto, a procissão do Triunfo Eucarístico 57 LANGE 1966: 68. de 1733 não foi realizada na quinta-feira e, projetando 21 dias precedentes 58 1966: 63. de 21 ou 23 de maio, o dia da Ascensão seria a 30 de abril ou 2 de maio, 59 A Irmandade de Santa Cecília de Lisboa (Portugal) foi fundada em 1603; a possibilidades que parecem não se coadunar com a narração de Machado. de Olinda (Pernambuco) em 1760; a de Salvador (Bahia) em 1785; a de Recife 80 1964, vol. I: 101, n. 1. (Pernambuco) em 1789. A Irmandade de Santa Cecília do Rio de Janeiro 81 O posto de alferes durante o período colonial e imperial corresponde ao existiu pelo menos desde 1815, mas pode ter sido fundada antes, na época da actual segundo-tenente. chegada da Família Real ao Brasil em 1808, ou até mesmo a partir de 1765, 82 LIMA JÚNIOR 1940 [1965]: 110 ssq. quando o Rio de Janeiro se tornou capital do Brasil. 83 Cf. ÁVILLA 1967, vol. I: 289. 60 LANGE 1966: 65. 84 Sobre o Alemão, vide LANGE 1966: 22-3. 61 Para uma discussão destes conceitos, vide TURNER 1967 e 1969: 52 ssq. 85 Sobre charomeleiros, vide LANGE 1966: 23-5. 62 1963: 95-110. 86 Segundo a Mitologia Clássica, o mensageiro dos deuses (Cf. ÁVILLA 1967, 63 SALLES 1963: 18. vol. I: 294). 64 SALLES 1963: 106. 87 Insígnias de Mercúrio: bastão (poder) com duas serpentes (sabedoria) 65 SALLES 1963: 106-108. entrelaçadas, um elmo (protecção) e duas asas (diligência, presteza) na 66 1968: 76-82. extremidade superior. O caduceu é o “bastão dos heraldos” (mensageiros) e 67 Certamente, o texto refere o compositor austríaco Ignaz Pleyel, então em reconhecido símbolo do comércio e da contabilidade (HOWEY 1955: 77). plena voga na Europa e localizado na documentação de Minas Gerais, o que 88 Lúcifer é a estrela Vênus quando se levanta pela manhã no horizonte (Cf. demonstra como os músicos mineiros estavam atualizados. Francico Curt ÁVILLA 1967, vol. I: 291). Lange, em seu Informe Preliminar (1946), comunica ter encontrado cópias 89 Revista do Arquivo Público Mineiro VI, p. 1009. manuscritas em Minas Gerais de quartetos de Haydn e Pleyel e de quintetos 90 Cf. Ávilla 1967, vol. I: 290. de Boccherini. Conforme o catálogo do acervo de manuscritos musicais da 91 Cf. Ávilla 1967, vol. I: 289. Coleção Francisco Curt Lange do Museu da Inconfidência de Ouro Preto, 92 Revista do Arquivo Público Mineiro VI, p. 1013. realizado por Régis Duprat e Carlos Alberto Baltazar, as obras mencionadas 93 Para uma discussão mais profunda do fenômeno de “estranhamento” ou por Lange são seis Quintetos de cordas (cópia de 1792) e um Trio de cordas “estremecimento”, vide ÁVILLA, 1971, particularmente capítulos 3 e 4. (cópia de ca. 1850) de Boccherini, o Quarteto de cordas Op. III de Haydn 94 Não há espaço neste artigo para detalhar os símbolos de especial relevância (cópia de 1794) e os Quartetos de cordas n.º 19, 20 e 21 (cópia anterior a 1824) local, sobretudo os santos, cujas imagens aparecem na procissão em discussão. 95 TURNER 1969: 167. Cf. cap. V.

glosas | número 13 | novembro | 2015 | 77 lembrança(s) de suggia notas sobre um espólio

instalação condigna, para que, dessa forma, o culto, que eu toda a Luís Cabral | TEXTO minha vida dediquei à arte musical, perdure e sirva de incentivo a todos – Mestres e Discípulos – que à arte se dedicam.

Complexo material e imaterial, a Música vive idêntica na Além destas componentes fundamentais do legado de essência, mas renascida em cada audição, através de um intér- Suggia à cidade do Porto, em 1950, existem cartas, livros, um prete, diante de novo público, em outro e outro espaço. É a vestido de gala, jóias e condecorações. Quanto a documentos Música uma arte de características muito próprias: por isso, (manuscritos, iconografia, livros impressos, programas de con- tanto valorizamos o que sejam fotografias, cartas e outros certos, etc.), parte muito significativa foi adquirida pela Câmara manuscritos, trajes, jóias e variados objectos, em certo sentido Municipal de Matosinhos em 1995, era Vereador da Cultura José tudo o que é quase uma não-música, mas que ajuda a torná-la Manuel Dias da Fonseca. presente, a representá-la no nosso imaginário. Mantêm-se em posse particular numerosas espécies, Guilhermina Suggia é um exemplo típico de artista cujo desde material gráfico à escultura e ao mobiliário. Lembremos espólio foi repartido ou distribuído por muitos sítios. Na Câmara que, de forma geral, as pessoas colaboraram activamente, Municipal do Porto e no Conservatório guardam-se o celebrado mediante a cedência temporária de peças e informações, com a Montagnana e a sua biblioteca. Reza assim o testamento: exposição Suggia, o Violoncelo, realizada em 2006 na Casa- -Museu Guerra Junqueiro. Possuo outro violoncelo, Montagnana, que igualmente será vendido, Repare-se ainda que foi a própria Violoncelista quem pelo melhor preço, quantia essa que lego ao Conservatório de Música do dispôs no sentido de uma certa dispersão do seu espólio. Inte- Porto – através da Câmara Municipal do Porto, se o dito Conservatório ressante seria cruzar o testamento de Suggia com a carta de continuar a pertencer-lhe, ou do Estado, se porventura ele passar a consciência dirigida, em 17 de Novembro de 1948, a seu marido, ser nacional –, a fim de, com o rendimento deste legado, se instituir, José Carteado Mena, para como a sua vontade se foi modifi- também, um prémio designado Guilhermina Suggia, a atribuir, em cada cando, ao longo de apenas dois anos. ano, ao melhor aluno de violoncelo do referido Conservatório… Neste domínio do património material de Suggia surge agora uma boa notícia. A 30 de Junho de 2014, D. Isabel da Sobre o seu arquivo de partituras, diz: Silva Odoul, cidadã portuguesa radicada em França, doou à Câmara Municipal do Porto um conjunto de peças, breve em quantidade, Lego, ainda, ao mesmo Conservatório, a minha biblioteca – material mas de qualidade apreciável. Este núcleo veio enriquecer o que de orquestra e literatura de violoncelo –, objectos esses a que será dada já se encontrava à guarda de instituições públicas. A doadora

78 | glosas | número 13 | novembro | 2015 reconheceu, nobremente, o interesse público da parte do espólio que coubera à sua família e que agora ofereceu ao Porto. Não tanto pela dimensão, mas mais pela diáspora em que se encontra o espólio da Violoncelista, esta doação assume relevância particular. Constituem-na 44 números de inventário, havendo possibilidade de virmos a receber outras peças, como foi o caso muito recente de uma máquina fotográfica. Da lista oportunamente elaborada destaca-se o item n.º 2 (uma folha com o importante testemunho de Suggia sobre o seu derradeiro grande êxito internacional, no Festival de Edimburgo em 1949, que vem completar a carta que existia apenas em parte na Câmara Municipal de Matosinhos. Refira-se também fotografias, várias da Quinta dos Girassóis, na Maia, frequentada por amigos de Suggia como Ernestina da Silva Monteiro, Maria Adelaide Freitas Gonçalves, as Senhoras Tait ou diversas alunas. A doação inclui ainda objectos de uso pessoal, como uma caixa de pó-de-arroz com o nome de Suggia gravado (exposta em 2006), um frasco de bolso com a mesma marca, um relógio de viagem com estojo, algumas jóias (gargantilha, brincos, relógio) que vêm enriquecer o conjunto guardado no Conservatório do Porto; três bolsas, peças de tipo até agora inédito no espólio e que se revela de interesse (sobretudo se conjugado com o vestido de concerto). Este processo exemplar teve origem no amável empréstimo, em 2006, pela agora doadora, de três cartas (uma de Pablo Casals), três fotografias, uma gravura e uma caixa de pó-de-arroz, sub- conjunto agora cedido definitivamente. Conservava a doadora há muito, na expectativa de que surgisse no Porto um espaço que, de modo estável, evocasse a figura da grande Violoncelista, estes objectos que a sua Mãe Suggia deixara. Este gesto revela grande sensibilidade ao valor imaterial do património e constitui uma atitude construtiva e socialmente Gargantilha e brincos (Espólio Suggia, CMP) prestante de quem, guardando no coração memórias e afectos, soube e quis, através de um acto assim, dar um futuro ao passado colectivo. Possa servir de exemplo ao exercício do dever colectivo de preservar o património que é a memória nossa enquanto povo. A custódia desses bens é indeclinável responsabilidade não só das instituições públicas, como também dos próprios cidadãos. É nesses bens, materiais ou imateriais, que encontramos as raízes da nossa identidade, neste caso artística e cultural. Que tudo se encaminhe no sentido de o Porto ter, em breve, um espaço permanente de evocação de Guilhermina Suggia! Como que reconstruindo aos poucos o legado de Suggia, prestamos-lhe perene e renovado tributo. É como se recebesse mais uma vez flores, flores não para depor numa lápide, mas que antes se lhe entregam, no final de um concerto, num palco que tanto poderá ser do Rivoli como outro pela Europa fora. Suggia e o seu violoncelo emocionam-se, transfiguram-se, eternizam-se perante um público que a adorava. Diante de nós e para a geração dos filhos dos nossos filhos. A Isabel da Silva Odoul, o nosso obrigado pelo seu gesto.

Nota: Em 2015, deram entrada, da mesma origem, mais algumas peças do espólio de Guilhermina Suggia. Destaca-se uma máquina fotográfica “Patent Etui”, ca. 1924, um tinteiro de prata, uma pulseira em ouro e algumas gravações históricas, incluindo cinco discos de prova de Suggia e três gravações de Pablo Casals.

Frasco de bolso (Espólio Suggia, CMP)

glosas | número 13 | novembro | 2015 | 79 Em torno do Festival de la Canción Gallega

1980), Victor Macedo Pinto (1917-1964), João de Freitas Branco José Luís do Pico Orjais | TEXTO (1922-1989), Joly Braga Santos (1924-1988) e Jorge Rosado Peixinho (1940-1995). À excepção das Dez Canções Galegas, que, como vimos, foram estreadas em 1966, as restantes obras tive- A 12 de Julho de 1966, integrado no VII Festival de la Canción ram estreias em 1962 e 1963. Gallega, teve lugar no Salão Nobre do Palácio da Deputação de Às 23h00 de 10 de Julho de 1962, tinha início, no teatro Ponte Vedra, na Galiza, um concerto com o soprano Dolores Pérez Principal de Ponte Vedra, o III Festival de la Canción Gallega. Par- e o pianista Miguel Zanetti. O programa constava de duas partes, a ticipam como conferencistas Fernández-Cid e Xosé María Álva- primeira dedicada às Dez Canções Galegas de Frederico de Freitas. rez Blázquez. A interpretação musical foi da soprano Teresa No início de 2012, encontrámos uma brochura deste concerto Tourné e da pianista Carmen Díaz Martín. Nessa noite estreia- e devemos reconhecer que a presença de um compositor portu- -se Soedade de Federico de Freitas, com texto de Emílio Álvarez guês no festival se nos afigurou estranha, porquanto a intenção Blázquez, depois incorporada nas Dez Canções Galegas. do evento consistia em interpretar canções de mestres espa- Nos restantes dias (12, 13 e 14 de Julho), foram estreadas As nhóis sobre textos galegos. Iniciando uma lista de participantes Idades da vida, de João de Freitas Branco (com texto de Gerardo nas oito edições, verificámos que, surpreendentemente, Fre- Álvarez Limeses), Alalá de São João, de Joly Braga Santos (texto derico de Freitas não era o único autor português ali presente. de Juan Bautista Andrade, traduzido do original castelhano para A iniciativa de um festival com a finalidade de estrear can- galego por Álvarez Limeses), e Estrela, de Jorge Peixinho (texto ções galegas compostas por músicos do Estado Espanhol, na sua de Álvarez Blázquez). Nesta primeira relação de nomes da maioria consagrados, foi de António Fernández-Cid, crítico Música Portuguesa destaca-se o muito jovem Jorge Peixinho, de musical ligado ao jornal monárquico madrileno ABC. Para o apenas 22 anos. Dos mais de 60 compositores presentes nas levar a cabo em Ponte Vedra, contou com a colaboração do inte- oito edições, Peixinho é o segundo mais jovem, depois do valen- lectual galeguista José Filgueira Valverde, Presidente da Câmara ciano José Evangelista (n. 1943). Municipal daquela cidade. Nas oito edições, interpretar-se-ia Um ano depois, em 1963, serão escutados mais três compo- mais de um cento de peças de 65 compositores. sitores portugueses. A 10 de Julho, de novo no teatro Principal, A maior parte das partituras têm dedicatórias ao promotor, com a participação das poetisas Maria Elvira Lacaci e Pura Váz- o que nos diz do marcado carácter pessoal que informou a realiza- quez, decorrem conferências-concerto, desta vez com a soprano ção dos concertos, sempre introduzidos por uma palestra do pró- Carmen Pérez Durias e a pianista Carmen Díaz Martín. As obras prio Fernández-Cid ou de outro intelectual galego. Parece que a interpretadas são Campanas de Bastabales, de Cláudio Carneyro intenção de encomendar as canções a compositores não galegos (sobre texto de Rosália de Castro), Nena, neninha, de Victor tinha a finalidade de quebrar a influência da música nacionalista do Macedo Pinto (texto de Xosé María Álvarez Blázquez), e Ponteve- séc. XIX nos compositores galaicos da segunda metade do séc. XX: dra, de Ruy Coelho (texto de Amado Carballo). Pienso en Galicia. En tantos cantores de origen profundamente enxe- Dá-se a circunstância de Cláudio Carneyro vir a morrer bre – los Adalid, Montes, Veiga, Soutullo – y recuerdo cómo, al conjuro apenas três meses depois da apresentação pontevedrina de de quien ahora firma y por impulsos de amistad generosa, másde Campanas de Bastabales, que foi, portanto, uma das últimas rea- setenta compositores de todos los orígenes y filiaciones pusieron su lizadas antes do seu passamento. mirada en poesías galaicas para adornarlas con el nuevo ropaje de su O ciclo Dez Canções Galegas, de Frederico de Freitas, inte- inspiración y crear así un cancionero gallego de concierto muchas veces gra os seguintes títulos: Temas da fonte agachada (texto de Fer- libre de influjos, personal de voz, discutible de autenticidad regional mín Bouza Brey), Temas en corazón (F. Bouza Brey), Amiga (José aunque bello per se, pero otras muchas de honda raigambre popular, ya María Álvarez Blázquez), Muiñeira (Luís Amado Carballo), porque se tomaron temas folklóricos, ya porque el instinto, estimulado Canta, paxariño, canta (Faustino Rey Romero), Cantiga do vento por los versos, llevó a los autores a lograr obritas que, escuchadas en (María do Carmo Kruckenberg), As sete ondas (Ramón Vidal), Galicia, se aceptaron inmediatamente con ilusionado cariño. Tal el Da noite ao dia (Ramón Cabanillas), Soedade (E. Álvarez Bláz- caso de los Mariñeiros del turolense Antón García Abril, que supo dar quez) e Cantiga da tecedeira (Ramón Cabanillas). De entre todos en la diana del triunfo absoluto. Tal, por la conexión espiritual, que no os poetas musicados, apenas María do Carmo Kruckenberg2 por la letra, As froliñas d’os toxos, de Eduardo Toldrá, una de las más continua entre nós, tendo-nos confessado a título pessoal não altas muestras de la sensibilidad del compositor catalán.1 recordar as circunstâncias em que um seu poema chegou a Fre- derico de Freitas, considerando, não obstante, ter-se devido ao Portugal no Festival de la Canción Gallega de Ponte Vedra intermédio de Filgueira Valverde e dos irmãos Álvarez Blázquez. Pelos dados de que dispomos, tudo indica que em fins de 1961 ou princípios do ano seguinte se começou a enviar convites para Frederico de Freitas e a Galiza que compositores portugueses participassem no festival ponteve- O estudo do espólio de Frederico de Freitas, preservado drino. A 25 de Janeiro de 1962, El Pueblo publicava o seguinte: na Universidade de Aveiro, investigações de Helena Marinho e Según ayer nos participaba el alcalde, señor Filgueira Valverde, possíveis novas descobertas em arquivos galegos talvez deitem luz aparte de las obras que resulten premiadas, habrá este año varios sobre os laços que uniam o mestre olisiponense à Galiza. Hoje, estrenos de partituras galegas, pues se sabe que un grupo de composi- com os dados de que dispomos, limitamo-nos a aduzir hipóteses. tores españoles y portugueses están trabajando estos días en diversas Sabe-se que Freitas foi pioneiro no uso do cancioneiro medieval composiciones sobre temas de poetas pontevedreses. galaico-português, como compositor, inspirando-se nos textos de A esta chamada responderam Ruy Coelho (1889-1986), poetas como D. Dinis ou Meogo, e como harmonizador das canti- Cláudio Carneyro (1895-1963), Frederico de Freitas (1902- gas de Martim Codax ou de Santa Maria. Consideramos que este

80 | glosas | número 13 | novembro | 2015 confirmá-lo, mas seria o único caso de um pedido directo de colaboração no Festival. Seria do maior interesse conhecer os meios que levaram sete compositores portugueses a dedicar uma canção a Fernández-Cid, que a maioria não conheceria, pelo que é lícito deduzir que as razões dos peticionários fossem muito convincentes. Peixinho tinha, em 1962, 22 anos, pelo que Estrela era uma das suas primeiras encomendas. O próprio Freitas Branco participa no Festival com As idades da vida, sobre texto de Gerardo Álvarez Limeses. Conhece-se pouquíssimas obras deste notável matemá- Incipit de As Idades da vida de João de Freitas Branco tico e musicólogo, muito menos estreadas além-fronteiras. Reflec- interesse tão prógono pela lírica galaico-portuguesa se relaciona tindo sobre este caso, afigura-se-nos, por isso, ainda mais certo com futuros acontecimentos que o ligam directamente à Galiza. que João de Freitas Branco tivesse fortes razões para enviar uma sua Um exemplo de interesse para a História da Música além e partitura, e mesmo, confirmando-se a suposição sobre Peixinho, aquém do Minho é um concerto da Orquestra de Câmara da para fazer a apologia do Festival entre os seus colegas. Emissora Nacional, em Agosto de 1939, sob a sua regência. Anos antes, em 1934, a Sociedad Coral Polifónica de Ponte Vedra Conclusões passa por Portugal, com um repertório que incluía cantigas de A questão última seria, então, o motivo da presença de Martim Codax e de Afonso X. Do agrupamento, dirigido por compositores portugueses no festival de Ponte Vedra. É possível Antón Blanco Porto, fazia parte Antón Iglesias Vilarelle, músico que nunca o saibamos, após a morte de Fernández-Cid e Fil- amador e director do coro a partir de 1941. Vilarelle, além de gueira Valverde, ou apenas a partir de documentos ainda não compositor de canções para vozes mistas, fez também tentativas exumados. Em nossa opinião, existirá uma confluência de inte- de composições para orquestra de câmara e grande orquestra. resses. Para o galeguismo histórico, a Galiza e Portugal são uma Uma destas tem por título Chucurruchú, nome de uma antiquís- só realidade cultural, nada português sendo alheio aos galegos. sima festa do Corpo de Deus em Ponte Vedra. Composta em O relacionamento da intelectualidade de ambos os países nos 1938, logo a 9 de Agosto do ano seguinte a obra é estreada pela anos anteriores à Guerra Civil é crescente, estando os membros Orquestra de Câmara da Emissora Nacional. No dia anterior, da Geração Nós e do Seminário de Estudos Galegos sempre um jornal pontevedrino anunciava: prontos a construir pontes sobre o Minho. Nesta linha estão La ejecutará la Orquesta de Cámara de la Emisora Nacional Portu- Filgueira Valverde ou Iglesias Vilarelle, galeguistas adaptados ao guesa que dirige el eximio director, gloria de la música portuguesa, novo status quo após a vitória de Franco. Federico (sic) de Freitas Branco (sic). El mundo entero oirá mañana Fernández-Cid está nos antípodas do galeguismo histórico, nuestro Chucurruchú.3 mesmo que fosse, como Filgueira e Vilarelle, de corte conserva- Observamos que o cronista funde os nomes dos dois maes- dor. Era um monárquico adepto do regime, triunfador da Guerra tros da Orquestra da Emissora Nacional, Frederico de Freitas e Civil. Para Franco, como bem sabia Salazar, Portugal era uma Pedro de Freitas Branco, mas tudo faz pensar que tenha sido o anomalia histórica, território que antes ou depois seria incor- primeiro a dirigir Chucurruchú. Uma cópia da partitura está depo- porado no Estado Espanhol. A presença dos portugueses no sitada nos arquivos da RTP e da leitura depreende-se tratar-se de Festival constitui, assim, um lugar-comum na ideologia dos uma obra menor, de autor com certa sensibilidade musical, mas seus dois promotores, se bem que ali tenham chegado por cami- sem a formação ou o ofício necessários à orquestração dos moti- nhos diversos. vos tradicionais que recolheu. Por que razão a obra de um amador Afigura-se descoroçoante que, em 2015, saibamos tão galego seria estreada pela Orquestra de Câmara da Emissora pouco sobre o Festival de la Canción Gallega, tão importante na Nacional, a poucos dias de finda a Guerra Civil Espanhola? Pode- história contemporânea da Música na Galiza, e que em Portugal se ríamos aduzir numerosas hipóteses, mas, antes de terminadas as ignore que compositores seus tenham sido convidados. Por for- nossas investigações, preferimos guardar silêncio. tuna, ultimamente há um crescente interesse por estes pormeno- Para completar as informações de que dispomos sobre a res. Em Abril de 2013, aparecia o vol. II de Opúsculos das Artes, relação de Frederico de Freitas com Ponte Vedra, acrescenta- número monográfico sobre Compositores portugueses no Festival mos que no Museu desta cidade, cujo director foi Filgueira Val- de la Canción Gallega.4 Um ano antes, Helena Marinho e Isabel verde, conserva-se a brochura de um concerto da Orquestra Alcobia gravavam Do Fado à canção erudita,5 disco em que se Sinfónica do Conservatório do Porto, por si dirigido, a 25 de incluíam canções apresentadas por Frederico de Freitas ao Festi- Março de 1953, bem como uma separata de Língua e Cultura val. Actualmente, Helena Marinho encontra-se a preparar a edi- (série 3) III (Set.-Dez. 1973), sobre o Fado, com dedicatória ção das 10 Canções Galegas sobre poetas contemporâneos. autógrafa do maestro: “Ao Exmo. Senhor D. José Filgueira Val- Passo a passo, o caminho se faz. verde, eminente escritor e historiador, homenagem de Frede- rico de Freitas. Lisboa. Março 1974”. notas que no acervo documental do Museu exis- 1 Antonio Fernández-Cid, “España en el paisaje universal del nacionalismo”, Lembramos ainda Revista del Folklore I.8 (1981), pp. 22-26. tiu um documento, hoje desaparecido, com a seguinte descri- 2 Alguns meses após o envio do original deste artigo à revista Glosas, aconteceu ção: “Transcrição a notação moderna de cantigas medievais na cidade de Vigo o passamento de María do Carmo Kruckemberg, a 16 de Maio galego-portuguesas feita por Federico (sic) de Freitas”. de 2015, com a idade de 88 anos. 3 El Pueblo gallego, 8 de Agosto, 1939. 4 Para informações adicionais sobre a presença dos compositores portugueses João de Freitas Branco e Jorge Peixinho no Festival de la Canción Gallega, remetemos à revista digital Opúsculos das Artes, (www.mic.pt), Peixinho com- vol. 2, acessível através da ligação electrónica http://commons.folque.com/. Segundo o catálogo do CIMP 5 Frederico de Freitas, Do Fado à canção erudita. Obras para voz e piano, Numé- pôs Estrela a pedido de João de Freitas Branco. Não pudemos rica, 2012 (NUM 1246).

glosas | número 13 | novembro | 2015 | 81 Laboratório de iconografia musical Oriente e Ocidente a música no Sínodo de Diamper representada nos azulejos do Convento da Graça (Torres Vedras)

lejos ter representado a igreja do Bom Jesus (Goa), uma igreja Luzia Aurora Rocha | TEXTO dos Jesuítas . Tal facto é indicado pelo altar, atrás de Frei Aleixo de Menezes, onde poderá estar representado o cofre das relíquias de S. Francisco Xavier, ainda hoje existente na O claustro do Convento da Graça (Torres Vedras) mencionada igreja. A segunda leitura é a de que se trata da encontra-se decorado com um ciclo de painéis alusivos à vida e representação do cofre oferecido pelo rei de Ormuz a D. Frei obra de Frei Aleixo de Menezes (1559-1617) . Diz-nos Diogo Aleixo de Menezes, enquanto Arcebispo e Governador de Goa. Barbosa Machado, na Bibliotheca Lusitana, que D. Fr. Aleixo de Este cofre foi depois enviado para Lisboa, para o Convento dos Menezes recebeu o hábito dos Eremitas de S. Agostinho em 24 Agostinhos da Graça, onde passou a ser utilizado como taber- de Fevereiro de 1574. Indica também que foi prior no Convento náculo, em 1610. Actualmente encontra-se nas colecções do de Torres Vedras – trata-se do Convento da Graça, facto que jus- Museu Nacional de Arte Antiga. Carla Alferes Pinto refere, a tifica o ciclo pictórico sobre a vida de Frei Aleixo de Menezes propósito deste cofre e de D. Frei Aleixo de Menezes: que decora todo o claustro. Há uma intenção de perpetuar na memória colectiva os feitos ilustres deste homem, que habitou (...) Frei Aleixo terá vivido de acordo com uma imperturbável no Convento, de que foi prior entre 1588 e 1590, e de cuja histó- moral pública, que se coadunava com os votos de pobreza que ria é parte integrante. Sobre o Sínodo de Diamper, Diogo Bar- jurou quando tomou hábito. Mas esta aparentemente tão peremp- bosa Machado (1741: 89) apenas refere: tória suposição tem, todavia, subtilezas que não escaparam ao crivo do tempo. Há dois aspectos fundamentais a ter em conta (...) celebrou Synodo em Diamper, em que estabeleceo determinaço- para compreender a oferta do cofre de cristal: por um lado, o ens necessárias para a administração dos Sacramentos, e reforma xadrez político da altura, por outro, o ajuizar dos factos coevos dos costumes... feito pelo próprio prelado, sujeito a uma estrutura mental que não nos cabe aqui julgar anacronicamente, mas que reflecte um zelo Para além destas referências, Frei Aleixo de Menezes foi excessivamente proselitista e uma inequívoca incapacidade, ou Arcebispo de Goa, Arcebispo de Braga, Governador da Índia, liberalidade, na interpretação de alguns acontecimentos, que Presidente do Conselho Supremo do Reino, Vice-Rei de Por- justificam, por exemplo, as dificuldades de avaliação das acções tugal e Capelão-Mor de Filipe II. Uma figura relevante para a do xá da Pérsia a que as vontades dos agostinhos estiveram sujei- História de Portugal. tas. (…) Nos primeiros anos do século XVII, o arcebispo de Goa No ciclo em questão existe um painel com um magnífico retomou uma série de contactos com a Pérsia, que a ordem agos- conjunto de músicos pintado pelo Mestre P.M.P no ano de tinha via «como sua» no que à evangelização do território sob a 1725. Este painel é uma representação do Sínodo de Diamper alçada do Padroado português dizia respeito. (…) Ormuz, situ- conduzido por Frei Aleixo de Menezes, então arcebispo de ado numa encruzilhada de interesses geográfico-políticos, sofria Goa. O Sínodo foi celebrado a 20 de Junho de 1599 na igreja de as consequências das violentas querelas pelo poder dos reis Habs- Todos-os-Santos, no lugar e reino de Diamper, na Serra de burgos, das cortes europeias (nomeadamente, Roma e Ingla- Malabar (BRAGA 1987: 16). Foi fulcral para a união dos católi- terra), dos Turcos otomanos e do xá da Pérsia, cuja política cos seguidores de S. Tomé à Igreja Católica Romana e para o expansionista ameaçava os reinos fronteiriços. (…) Ou seja, D. seu consequente abandono da Igreja Síria de Leste ; ou seja, Frei Aleixo há muito que cobiçava o cofre (não dizendo para que o teve como consequência a latinização da Igreja de Malabar. queria, então). (…) Os presentes diplomáticos implicavam sem- Aparentemente, a união foi bem sucedida, pois os cristãos de pre, então como agora, reciprocidade, e a melhor maneira de obter S. Tomé chegaram a pedir ao Papa que lhes nomeasse como os resultados desejados era assegurar o interesse do presenteado, primeiro bispo latino D. Frei Aleixo de Menezes, ao que Filipe escolhendo criteriosamente os objectos ofertados. A argúcia do II, Rei de Portugal e Espanha, se opôs. Mas meio século depois, prelado-governador, que certamente ficara feliz com o presente, em 1653, a quase totalidade dos cristãos do Malabar separou- levou-o a desdenhar o que antes cobiçara, ainda que através do -se da obediência a Roma e voltou-se de novo para o Oriente. cofre conseguisse concretizar um desejo que afirmava na mesma Este painel levanta algumas dúvidas de interpretação que nos carta: «des q[ue] soube q[ue] estaua concertada a capelinha do conduzem a duas leituras distintas. A primeira é a de que se Santíssimo Sacramento [do convento dos agostinhos de Lisboa] trata de uma interpretação incorrecta dos contornos históri- trago grandes ancias de fazer hum sacrário bom». O cofre lá foi cos deste evento: o Sínodo decorreu na igreja de Todos-os- enviado para a Graça, na monção de 1610, a bordo da nau Nossa -Santos (Malabar), mas há a possibilidade de o pintor de azu- Senhora da Penha de França, e acolhido com admiração.”

82 | glosas | número 13 | novembro | 2015 ser uma recriação do pintor à luz da música da época em que viveu e não da época em que decorreu o sínodo de Diamper. O que é significativo no estudo de ensembles, em Portugal, é o facto de este conjunto instrumental poder ser usual na música religiosa da época. Na escola de música da Sé de Évora, quando o P.e Pedro Vaz Rego sucedeu ao P.e Diogo Dias Melgás, como Mestre de Capela, em 1704, contava com os seguintes músicos: dois organistas, cinco músicos cantores , dois baixões e charamelas, um harpa, um baixão, um corneta, um fagote e charamela e um sacabuxa (ALE- GRIA, 1973:88). Nos anos de 1703-1704, três novos instrumentos são acrescentados ao conjunto, o cravo, a viola e o rabecão (ALE- Fig. 1. Mestre P.M.P. Sínodo de Diamper. Painel de azulejos, 1725, GRIA, 1973:89). Se bem que o número de músicos não seja coin- antigo Convento da Graça, Torres Vedras cidente com os do painel, existem alguns pontos comuns: o mes- tre de capela, e a mistura dos cantores com o baixão, duas charamelas, uma harpa e uma guitarra . O grupo musical da Sé de Évora é maior e mais diversificado, mas há uma formação nuclear coincidente. Por isso, a ideia de que o pintor de azulejos se terá inspirado nas práticas da época fica reforçada. É importante real- çar que esta é a única representação em azulejo de um mestre de capela, o que a torna raríssima e digna de total atenção e análise .

Fig. 2. Ben Bromley (Fotografia) . Tumba de S. Francisco Xavier na Igreja do Bom Jesus em Goa.

Fig. 4. Mestre P.M.P. Sínodo de Diamper (pormenores dos músicos), antigo Convento da Graça, Torres Vedras

É ainda possível observar a presença de partituras com nota- ção legível, sendo que a hipótese mais provável é a de que se trate de uma disposição aleatória de notas e outros símbolos musicais. Portanto, não estaremos perante a representação uma Fig. 3. Anónimo. Cofre. peça musical em particular do repertório da época. Museu Nacional de Arte Antiga

Observando o painel é possível ver um homem de feições orientais ajoelhado aos pés de D. Aleixo de Menezes. Lê um docu- mento, enquanto a sua mão direita está pousada sobre um livro, possivelmente a Bíblia. Outros homens estão ajoelhados e há uma pequena multidão de orientais que assiste ao evento, enchendo o templo e estendendo-se até ao exterior. A cartela superior tem a Fig. 5. Mestre P.M.P. Sínodo de Diamper (pormenores das partituras), inscrição “Celebra o Arceb. Sínodo na Igreja de DIAMPER” e a antigo Convento da Graça, Torres Vedras inferior “Fas protestação da Fée, e da Obed. ao Sumo Pontifice em nome de da a christandade de S. Thome e o seu Prelado”. São deveras interessantes os encontros histórico-artísticos No interior do templo, numa varanda com balaustrada, entre Oriente e Ocidente registados nesta análise iconográfica. Há vemos um grupo de cantores e instrumentistas ocidentais em uma leitura do Ocidente, pelo painel de azulejos português, de um plena execução musical. A formação é constituída por um mestre facto histórico que ocorreu no Oriente. Cronologicamente, há um de capela, seis cantores e cinco instrumentistas (guitarra, harpa, fosso temporal imenso entre a data do Sínodo (1599) e a data de dulçaina e duas charamelas). Neste conjunto os instrumentos produção do painel de azulejos (1725). Não sendo conhecidos, até à estão bem representados organologicamente e com bastantes data, documentos que descrevam a existência de música no Sínodo detalhes. Não há dados que indiquem que houve música na ceri- de Diamper, classificamos esta representação musical como um mónia. Há ainda a acrescentar o facto de ser muito pouco provável acrescento que o pintor de azulejos considerou necessário e que tal número de músicos e cantores se encontrassem à disposi- imprescindível, totalmente concebido à luz das práticas musicais ção de Frei Aleixo de Menezes. Tal manifestação musical parece do Barroco português.

glosas | número 13 | novembro | 2015 | 83 A autora agradece à Câmara Municipal de Torres Vedras pela cedência das imagens para publicação.

Notas 1 O Convento de Nossa Senhora da Graça foi mandado construir no século culos dos princípios do séc. XVI, seriam aproximadamente 30 000 famí- XVI (1544-1580) pelos frades eremitas calçados de Santo Agostinho (ou lias, dispersas por 1 400 aglomerados populacionais na serra do Malabar gracianos), para substituir o anterior edifício, fundado em 1266. O edifí- (...). Está ainda por esclarecer a origem desta comunidade. Seus membros cio possui uma estrutura conventual quinhentista centrada num amplo consideram-se discípulos do Apóstolo S. Tomé, que teria evangelizado claustro, para o qual se abrem as áreas de culto (igreja conventual, cemité- estas regiões, e veneram o seu túmulo em Meliapor (...)”, J. BRAGA, Actas rio coberto, sacristia e ante-sacristia) e de clausura (portaria, biblioteca, do Sínodo de Diamper, Lisboa, Didaskália, 1987, p. 7. sala do capítulo, ala poente, celas, gafaria, refeitório, cozinha e celeiro). A 6 Gentil indicação do investigador Pedro Luengo (Universidade de Sevi- igreja é precedida por uma ampla galilé, revestida com silhares de azulejos lha). de albarradas, do século XVIII, a que dão acesso arcos de volta perfeita. A 7 Consultar Leonor D’OREY e Conceição BORGES DE SOUSA, «36 – porta principal é datada de 1733. A portaria do antigo convento é decorada Cofre», in Jay A. Levenson et alii ( edd.), Portugal e o Mundo nos Séculos XVI com painéis de azulejos de excelente execução, de 1725, representando e XVII, Lisboa, Instituto dos Museus e da Conservação/Museu Nacional de cenas da vida de S. Gonçalo de Lagos, prior do primeiro convento agosti- Arte Antiga, 2009, pp. 88-89, e Nuno VASSALLO E SILVA, A Ourivesaria niano da vila. Estes azulejos, tal como os do claustro, do cemitério, da entre Portugal e a Índia do Século XVI ao Século XVII, Lisboa, Santander Totta, sacristia e da ante-sacristia, são atribuídos ao notável mestre monogra- 2008. mista P.M.P. No claustro, os azulejos, representativos do ciclo dos mes- 8 Veneza, ca. 1600: cristais de rocha lapidados, madeira pintada a ouro e tres, ilustram a vida de D. Frei Aleixo de Menezes (1559-1617), consti- policromada, prata dourada, cobre prateado, 55x95x68cm. N.º Inv. 576 tuindo provavelmente o maior conjunto de azulejos historiados do século Our. XVIII, com uma narrativa única, de todo o País. Para mais informação 9 Carla ALFERES PINTO, “Traz à memória a excelência de suas obras e virtu- sobre o Convento da Graça, vide Paula Correia da SILVA, O Convento da des. D. Frei Aleixo de Menezes (1559-1617), Mecenas e Patrono”, Anais da Graça de Torres Vedras. A comunidade eremítica e o património, Torres História de Além-Mar XII (2011), pp. 153-181 (a citação encontra-se nas pp. Vedras, Livro do Dia, 2007. 167-171). 2 Na Biblioteca da Academia das Ciências encontra-se a Breve notícia da 10 “Goa-BomJesus-FXavierTomb2” por Ben Bromley, Chapel Hill (ima- vida de D. Aleixo de Menezes (Catálogo de Manuscritos Azul, 398) e a Notícia gem de domínio público). das Cartas do Arcebispo de Goa P. Frei Aleixo de Menezes (Catálogo de Manus- 11 Imagem retirada de http://www.museudearteantiga.pt/colecoes/ourivesa- critos Azul, 921). Nenhuma destas fontes tem informação relevante para a ria/cofre. decifração do painel tratado neste artigo. 12 “Os músicos cantores eram cinco, sendo um deles músico contralto, 3 Diogo BARBOSA MACHADO, Bibliotheca Lusitana. Historica, Critica e recurso antigo usado nas capelas para reforçar as vozes dos moços naquele Cronologica. Na qual se comprehende a noticia dos Authores Portuguezes, e das timbre, dando-lhes mais coesão e força. Não se trata de ver neste contralto Obras, que compuseraõ desde o tempo da promulgaçaõ da Ley da Graça até ao nada que lembre i castrati, mas apenas tenores agudos que cantavam numa tempo prezente (facsimile da edição de Lisboa Occidental, Coimbra Officina tessitura que, normalmente, não ultrapassava o Si bemol agudo (...)”, José de Antonio Isidoro da Fonseca, 1747), Atlântida Editora, 1965, vol. II. Augusto ALEGRIA, História da Escola de Música da Sé de Évora, Lisboa, Fun- 4 Sobre os pintores de azulejo portugueses no Barroco, vide Rosário dação Calouste Gulbenkian, 1973, p. 88. SALEMA DE CARVALHO, A Pintura do Azulejo em Portugal [1675-1725]: auto- 13 Não obstante a terminologia “viola” ser preferida por musicólogos em rias e biografias – um novo paradigma, Dissertação de Doutoramento apre- Portugal, a autora utiliza a forma “guitarra”. sentada à Universidade de Lisboa, 2012. 14 Luzia ROCHA, O Motivo musical na Azulejaria portuguesa da primeira 5 Indica-nos Joaquim Braga: “(...) ao chegar à Índia os Portugueses depa- metade do século XVIII, Dissertação de Doutoramento apresentada à Uni- ram com numerosa comunidade de cristãos de rito oriental. Segundo cál- versidade Nova de Lisboa, 2012.

84 | glosas | número 13 | novembro | 2015 (des)encontros com o jazz uma rubrica de Pedro Cravinho

swing, hot, jazz e trompetes fernando curado ribeiro e o abc do jazz no rádio clube português

Introdução antes do início de Hot Club, Curado Ribeiro fora já responsável pela produção, selecção e locução de um conjunto de programas 7 Fernando Teixeira Curado Ribeiro nasceu em Lis- no RCP inteiramente dedicados ao jazz. boa a 25 de Maio de 1919 e faleceu a 4 de Julho de 1995. Foi uma figura destacada da rádio, do cinema e do teatro nacio- O ABC do Jazz nal. Estudante de Engenharia, começou a cantar nos serões do Instituto Industrial, acabando por abandonar os estudos Transmitido em Novembro de 1944, aos Domingos (en- para prosseguir uma carreira de cantor. 1 Na década de 1940, tre as 12h30 e as 12h45), ABC do Jazz teve por objectivo divulgar paralelamente à sua carreira de cantor, locutor e produtor as principais características do Jazz aos ouvintes do RCP.8 A 12 de programas radiofónicos nas principais emissoras portu- de Novembro de 1944, o periódico Rádio Nacional anunciava o guesas, destacou-se como actor através da participação em O seguinte: Costa do Castelo (1943), A Menina da Rádio (1944), Os Vizinhos «Conversas semanais» do Rés-do-Chão (1947) e O Leão da Estrela (1947). Por motivos Fernando Curado Ribeiro começou a organizar, no RCP, uma série de políticos, supostamente durante a campanha presidencial de programas intitulado «Conversas semanais». O primeiro foi trans- 1948/1949, terá assinado uma lista de apoio a Norton de Ma- mitido no passado domingo e tratou – assim como versarão os três tos, tornando-se persona non grata do Regime e uma das suas seguintes – do «A. B. C. do jazz»9 vítimas: “tiraram-lhe as carteiras profissionais e enviaram- -no para Angola.”2 Regressando a Portugal, em 1954, voltaria a trabalhar na rádio e desenvolveria uma carreira no teatro. Programa 1. Data deste período a sua colaboração nos primeiros festivais de Jazz organizados pelo Hot Clube de Portugal. 3 Pela análise das grelhas de programação do Rádio Nacional constata-se que o primeiro ABC do Jazz se realizou a 5 de No- A ligação de Curado Ribeiro a programas radiofónicos vembro de 1944. No início, Curado Ribeiro alertava os ouvintes: dedicados ao Jazz tem sido referida apenas enquanto locutor O «ABC do Jazz» é uma espécie de cartilha que, em quatro do programa Hot Club, de Luís Villas-Boas, transmitido pelo programas, vai tentar dar-vos as noções elementares do «Jazz». Rádio Clube Português.4 Numa fase inicial (Nov.-Dez. 1945), Temos apenas em vista – sem pretender atingir culminâncias o Hot Club consistiu numa pequena rubrica do Programa da que não sabemos – obter uma mais exacta compreensão deste Manhã da Emissora Nacional, transmitido ao Domingo, com género de música.10 5 locução de Artur Agostinho. Foi, contudo, através do RCP, Após esse esclarecimento, comentou a abundância da cir- inicialmente com a voz de Curado Ribeiro, que o Hot Club de culação da música jazz no espaço radiofónico nacional durante Villas-Boas “desde logo criou um auditório específico, ver- os primeiros anos da década de 1940: dadeiramente interessado e fiel”,6 resultando num progra- Regra geral, todos os actuais programas de Rádio apresentam música ma de culto. de «Jazz» e falam de «Swing», «Hot», músicos de «Jazz» e mú- sica negra... Isto, de há um ou dois para cá... É uma espécie de epi- Não obstante, em Novembro de 1944, exactamente um ano demia radiofónica! Compreende-se fàcilmente: todos os produtores

glosas | número 13 | novembro | 2015 | 85 tico dessa música. No entanto, podemos perfeitamente respeitar o sentimento transcendente que um negro encontra neste cântico.19 O primeiro programa terminaria com a seguinte expli- cação: Mas paremos aqui, estimados ouvintes. Fixemos apenas este ponto, que nos dá continuidade para o programa seguinte: a música ne- gra começou com o «espiritual». O «espiritual», por sua vez, por evolução, originou o que actualmente se chama «Música de Jazz», música de que, a fechar o nosso programa, vamos transmitir um tre- cho simbólico. Das primeiras evoluções falaremos no próximo pro- grama.20

Programa 2.

O segundo programa foi realizado a 12 de Novembro. Cura- do Ribeiro prosseguiu a exploração das origens da “moderna música de Jazz”, introduzindo novos termos, o primeiro dos quais foi blues: O «blues» é uma confissão de tristeza, de melancolia, de amor, de arrependimento; é um grito de alma que os negros cantam, com lágrimas nos olhos, e que hoje se ouve com as modificações duma técnica requintada, menos triste, menos monótono, mas sem ter perdido totalmente o sabor original [...]. Todos eles são tristes chorados...21 Em seguida, prosseguiu até ao rag, que, ao contrário do blues, se tratava de “um ritmo rápido de dança” 22, alegre e com as seguintes características: e locutores vivem neste ambiente musical, que é a imagem sonora de O ritmo, marcado pela bateria e o conjunto barulhento, e domi- uma época de realismo e de simplicidade brutal, que pretende repu- nado pelos instrumentos de sopro. O «rag», na sua forma evolu- diar todo o sentimentalismo piegas e romântico dos anos passados ída actual, raramente é cantado.23 [...] A vida de hoje está na música da época – época rápida, dinâmi- Passa em seguida a explicar que, apesar de o rag e o blues ca, positiva, simples e realmente brutal!... por isto, todos os progra- serem conhecidos desde 1810, “só em 1910, e através das mas musicais, com a marca desta actualidade, falam de «Swing», orquestras de Jazz, se apresentaram ao mundo estas moda- «Hot», «Jazz» e trompetes...11 lidades musicais negras.”24 Aborda depois novos termos, No entanto, apesar dessa abundância, na opinião de Curado como Cake-Walk, One-Step, Black-Bottom, Stomp, Charleston Ribeiro não existiam programas com o propósito de explicar e ou Fox-Trot, que correspondiam “cada um deles a uma for- dar a conhecer as principais características do género:12 ma determinada do Rag”.25 O mais importante era, todavia, Quantos programas se fizeram até hoje com música de «Jazz» ?... o seguinte: 500... 600... 700... 1.000... mais ? Entretanto, já teria dito tudo o O «Blues» – ritmo lento, arrastado e triste – e o «Rag» – ritmo que se sabe, de «Jazz»? – Indiscutìvelmente que não... Supomos, rápido, desconcertante e alegre. Os outros nomes atrás citados são mesmo, que não se disse o principal... Faltam as primeiras coisas... apenas, digamos assim, filiados do «Rag»...26 13 Falta o ABC do «Jazz». Após esta explicação, Curado Ribeiro terminou com duas Em seguida, apresentou os objectivos para a realização do ABC questões: do Jazz: “mostrar o que há mais importante neste género de mú- O que é o «Jazz»?27 sica”,14 tarefa que viria a realizar com uma selecção de exem- O Jazz é um estilo a que anda ligado o nome de «Swing». plos musicais (discos); e ainda “provar que o Jazz tem mais do «Swing»?... O que é o «Swing»?... que força contagiosa e ritmo!... Provar que o Jazz é música!... E É melhor guardar este assunto para o próximo programa. Falaremos recordar que toda a música – toda a boa música – é arte!...”.15 então sobre o significado de «Jazz» e de «Swing». E não se esque- Após estes comentários, colocou a primeira questão aos ouvin- çam: a música negra – o «espiritual» – deu origem ao «Blues» e tes: “De que nasceu o Jazz?”16 ao «Rag».28 O primeiro programa foi dedicado às origens. Curado Ri- beiro começou por referir que “entre 1620 e 1630 (vejam onde a coisa começa) chegavam sucessivamente às costas americanas Programa 3. grupos de europeus ligados a credos diferentes”,17 prosseguin- do depois até ao aparecimento do “Espiritual, o cântico negro A terceira emissão foi realizada a 19 de Novembro, retoman- que desde há séculos caracteriza a religião da raça negra.”18 do as questões da anterior e esclarecendo que ambas as defini- No entanto, devido ao escasso tempo de cada programa, es- ções eram “melindrosas e difíceis”.29 Assim, e tendo em conta clareceu que não seria possível alongar-se, terminando com que os programas “se destinavam apenas aos leigos no assun- considerações sobre os exemplos musicais: to”30, as definições que se propunha dar seriam: Transmitimos há pouco uma miscelênea de espirituais, embora já Puramente práticas e auditivas; isto é, vamos falar para o conjunto modernizada. Para nós, brancos, é difícil compreender o poder mís- ideal de puros leigos em matéria música.

86 | glosas | número 13 | novembro | 2015 Primeiramente: – O que é o «Jazz»?... se apresentou sob dois aspectos irmãos inimigos: o «Straight» Pois muito bem, estimados ouvintes, o «Jazz» é isto: 31 e o «Hot». [...] Expliquemos: straight, do latim strictus, e De imediato apresentou um exemplo através de um “disco depreende-se a sua significação da própria palavra. O executante apropriado”32. Depois, retomou a explicação: de «Jazz» toca «straight» quando segue estrictamente o texto Sim, estimados ouvintes, isto é puro «Jazz»! Mas expliquemos me- musical que tem sob os seus olhos ou na memória. lhor: a música negra evoluiu e firmou-se numa forma musical de O «hot» é o contrário de «straight». [...] No «hot», o executan- interpretação, com as suas particularidades, a sua maneira e a sua te liberta-se do compositor e cria ele próprio. Assim se justifica a linguagem [...] O «Jazz» não é aquilo que se toca, mas sim a ma- luta de sempre entre os adeptos de um e de outro género. 42 neira como se toca [...]. É indiferente o que se interpreta; interessa Esta explicação foi seguida de novos exemplos, primeiro apenas a maneira como essa música é interpretada.33 um “trecho straight (Disco)”43, depois um “trecho Hot”, re- Prosseguia depois com uma explicação sobre a interpretação ferindo, relativamente ao segundo, que o “solista Hot”, para dos diferentes estilos: espiritual, blues e rag, acompanhada pela além de tocar a melodia, também improvisava, porque “cria e audição de novos exemplos. Depois, Curado Ribeiro retomou interpreta, dando à composição de base o seu valor criador e uma das questões que deixara no final do segundo programa: as suas qualidade de improvisação musical.” 44 Em comentá- Partindo deste princípio, é natural que se pergunte qual a principal rio final, referia “o straight – o género calmo, estudado, pre- característica deste estilo. E aqui chegamos à definição anterior- visto... arte pensada – e o Hot – o género improvisado, fruto mente anunciada – o «Swing». O que é o «Swing»?34 duma inspiração momentânea... arte repentina.”45 Finda a Explicava, então, que: explicação, o programa terminava com estes comentários: Ao contrário do que é corrente, o «Swing» não é um género de Acabamos assim, estimados ouvintes, esta série de programas. música como o «quick-step» ou o «fox-trot» – mas sim uma Procuramos meter no apertado espaço de quatro programas as particularidade inerente à música de «Jazz». Aqui para nós, de- principais definições e características da música «Jazz». Ti- finir «Swing» é um pouco complicado, mas vamos tentar, con- vemos a preocupação de usar uma linguagem caseira e total- vencidos, como estamos, de que há muitos meninos [...] que não mente compreensiva, mesmo em detrimento de qualquer ponto sabem o que é o «Swing». 35 importante ou enfeite gramatical. Procuramos, também, não E, logo de seguida, concluía que: tornar estes programas muito densos e sempre que possível O «Swing», etimològicamente, traduz balanço ritmado. É uma ilustramos musicalmente a nossa locução. Resta-nos uma espe- palavra de origem anglo-saxónica que quer dizer compasso- rança: ter-vos agradado, enquanto falávamos das noções preli- -ritmo. O ouvinte atento apercebe-se fàcilmente da ideia de minares do «Jazz».46 «Swing».36 Seguia-se a audição de um exemplo “(Entra disco apro- Concluindo, Curado Ribeiro, em tom de brincadeira, su- priado)”37, continuando com uma explicação sobre a dife- geria ainda “se quiserem saber mais [...] mudem de profes- rença de interpretação e do ataque das notas entre um pia- sor. Talvez Duke Ellington.”47 No entanto, devido ao interesse nista de formação clássica e de Jazz. Segundo Curado Ribeiro, que o programa e a música Jazz em particular despertaram o swing de um pianista de Jazz era a técnica que esse instru- junto dos ouvintes do RCP, mentista utilizava na interpretação, muito diferente da uti- [...] ao reler as cartas que no decorrer desses programas fomos lizada pelo “pianista clássico”, porque “o swing é mais para recebendo, verificamos que o assunto não podia morrer assim... se sentir.”38 As explicações foram seguidas novamente pela muitas dessas cartas levavam problemas que apenas agora po- audição de exemplos. dem ser devolvidos. De maneira que ainda não é hoje que muda- 48 O terceiro programa ABC do Jazz terminaria com o seguinte mos de assunto. aviso: Curado Ribeiro realizaria mais um programa dedicado às E... é isto, estimados ouvintes. origens do Jazz.49 O «Jazz» é um estilo musical; o «Swing» é uma técnica desse estilo. E não tornem a chamar «swings» às músicas rápidas e barulhentas Considerações finais que às vezes pouco mais têm do que isso.39 Apesar de a rádio, à semelhança da imprensa, ter sido um Programa 4. dos principais meios de divulgação do Jazz em Portugal, o es- tudo da sua presença no espaço radiofónico carece ainda de O quarto programa foi realizado a 26 de Novembro. No análise detalhada. Tal como aconteceu com as primeiras gera- início, alertava-se os ouvintes para três novos termos: Break, ções de músicos de Jazz em Portugal, também os primeiros di- Straight e Hot. Sobre o primeiro, Break, explicava-se que era vulgadores, através da imprensa e de programas radiofónicos, um: eram amadores. O ABC do Jazz, de Curado Ribeiro, é exemplo [...] termo demasiado espalhado na linguagem da música mo- disso. Transmitido em Novembro de 1944, um ano antes de derna, nem sempre aplicado na devida acepção. Acontece com ele Luís Villas-Boas iniciar Hot Club, o programa, em “lingua- o mesmo que com o «Swing»... todos o dizem, mas poucos sabem gem caseira e totalmente compreensiva”,50 procurou ajudar o que quer dizer!...40 os ouvintes do RCP a compreender a terminologia associada Na opinião do autor, break consistia numa pausa limitada ao Jazz. O seu discurso permite-nos, hoje, algumas reflexões com origem no blues, tendo em conta que esta representava a no que concerne ao entendimento do género musical à época. pausa que separava os versos, a partir da qual “o solista pre- A história do Jazz em Portugal nos primeiros anos da década parava o improviso seguinte”.41 Em seguida, passa a apre- de 1940 não pode ser analisada sem ter em conta o papel pro- sentar os outros termos: eminente de Curado Ribeiro e das suas emissões no RCP. Entremos, pois, noutro assunto importante: os géneros, melhor, os dois aspectos do «Jazz». Desde a sua origem que o «Jazz»

glosas | número 13 | novembro | 2015 | 87 Notas 1 Raimundo 2005: 39. 23 IDEM: 108. 2 Raimundo 2005: 51. De acordo com a documentação apresentada pela 24 IDEM, ibidem. autora, Curado Ribeiro é referenciado numa carta da PIDE (25/11/1952) 25 IDEM, 109. como “uma pessoa de tendências comunistas” (Raimundo 2005: 123-125). 26 IDEM, ibidem. 3 Relativamente aos primeiros festivais de jazz em Portugal, designados 27 IDEM, ibidem. Note-se que a mesma questão (“O que é o jazz?”) foi tam- “Festival de Música Moderna” e organizados pelo Hot Clube de Portugal, bém colocada por Luís Villas-Boas na abertura da primeira emissão da com o patrocínio do programa Talismã do RCP, destacamos o Primeiro Fes- rubrica radiofónica Hot Club, através da Emissora Nacional, em Novembro tival de Música Moderna, a 27 de Julho de 1954, no Cinema Condes, em Lis- de 1945 (vide L. Villas-Boas, texto do primeiro programa Hot Clube, espólio boa, entre cujos artistas se apresentaram Curado Ribeiro e o seu conjunto. Villas-Boas, HCP, apud Curvelo, 2002: 56). Na segunda edição, a 5 de Abril de 1955, no Cinema Capitólio, apresentou- 28 Curado Ribeiro 1947: 110. -se novamente Curado Ribeiro, numa reaparição sensacional. 29 IDEM, ibidem. 4 Martins 2006: 126; Santos 2007: 28. Assim referem estes autores a ligação 30 IDEM, ibidem. de Curado Ribeiro ao programa radiofónico Hot Club: “A rubrica Hot Club, 31 IDEM, ibidem. com texto e selecção musical de Luís Villas-Boas, passa a ser transmitida 32 O referido exemplo não se encontra explicitado no guião de locução (cf. pelo RCP pelas vozes de Curado Ribeiro e Jaime da Silva Pinto.” (Martins Curado Ribeiro 1947: 111). 2006: 127); “21 de Janeiro – o Hot Club passa a ser transmitido pelo RCP – 33 IDEM, ibidem. tendo como primeiro locutor Curado Ribeiro – onde se mantém ininterrup- 34 IDEM, 112. tamente até 1969.” (Santos 2007: 28). 35 IDEM, ibidem. 5 Cravinho 2015: 84. 36 IDEM: 113. 6 Martins 2006: 127. 37 IDEM, ibidem. 7 Curado Ribeiro nascera, como referimos supra, em 1919. Estudante, de 38 IDEM, ibidem. acordo com o periódico Rádio Nacional, a 16 de Julho de 1944, tinha recen- 39 IDEM: 114. temente alcançado o primeiro prémio no Concurso de Artistas Ligeiros da 40 IDEM: 115. Rádio da EN (Rádio Nacional 364: 1). 41 IDEM, ibidem. 8 Assim se confirma pela consulta dos guiões de locução desses programas 42 IDEM: 116. publicados em 1947: “O ABC do Jazz – Série de quatro programas musicais, 43 IDEM, ibidem. transmitidos em Novembro de 1944, por «Rádio Club Português» (Curado 44 IDEM, ibidem. Ribeiro 1947: 100-118). 45 IDEM: 117. 9 Rádio Nacional 381: 8. 46 IDEM: 117-118. 10 Curado Ribeiro 1947: 101. 47 Curado Ribeiro confessava aos ouvintes que “o locutor que vos acompa- 11 IDEM: 102. nhou durante esta série não sabe mais do aquilo que vos disse”, identifi- 12 De facto, existia certa euforia em determinados sectores da sociedade de cando ainda a fonte consultada para a realização dos programas ABC do Jazz Lisboa em torno do swing e do Jazz, que ultrapassava a rádio. O Século Ilus- como a História Geral do Jazz (Curado Ribeiro 1947: 118). trado, a 19 Agosto de 1944, dava a conhecer a realização de uma festa ameri- 48 IDEM: 120. cana designada “A Noite do Swing” na Feira Popular, que atraíra centenas de 49 “Os pretos do Mississipi”, programa transmitido a 24 de Dezembro de pessoas para dançar ao som de duas orquestras (O Século Ilustrado 1944: 1944, às 12h30, pelo RCP, integrado na rubrica de Curado Ribeiro Conversa 1,13). Semanal. 13 Ao longo do período analisado 1944-1945, foram identificados dois 50 Curado Ribeiro 1947: 117. momentos específicos da programação diária do RCP com transmissão de música Jazz gravada. Um primeiro momento musical, transmitido normal- Referências bibliográficas mente entre as 13h45 e as 14h00, acompanhava o encerramento da emissão, - Cravinho, Pedro (2015), “A Música do nosso tempo é o Jazz: António Lopes às 14h00. Durante esse período eram transmitidas diferentes gravações de Ribeiro e a Orquestra Jazz da Emissora Nacional”, Glosas XII, pp. 84-87 orquestras de Jazz, dirigidas por músicos como Louis Armstrong, Lionel - Curvelo, António (2002), “Notas (muito incompletas) sobre o Jazz em Portu- Hampton, Artie Shaw, Benny Goodmann, entre outros; um segundo gal. Da pré-história aos tempos modernos”, Panorama da Cultura Portuguesa no momento tinha lugar no segundo período de emissão diária, iniciado a par- Século XX. Artes e Letras, Porto, Serralves/Afrontamento, II, pp. 47-95 tir do sinal horário das 19h00 e terminado às 23h30. A presença do Jazz era - Martins, Hélder Bruno (2006), Jazz em Portugal (1920-1956), Coimbra, Alme- igualmente distribuído em blocos de 15 minutos. Durante esse período eram dina transmitidas gravações de orquestras de Jazz dirigidas por músicos como - Moreira, Pedro Russo (2012), Contando espalharei por toda a parte: Programa- Glenn Miller, Louis Armstrong, Benny Goodmann, Duke Ellington, Artie ção, produção musical e o ‘aportuguesamento’ da ‘música ligeira’ na Emissora Nacio- Shaw, Jimmey Dorsey, Woody Herman, juntamente com gravações de Frank nal de Radiodifusão (1934-1949), Diss., FSCH-UNL Sinatra ou Bing Crosby. - Raimundo, Josefina (2005), Fernando Curado Ribeiro: o último galã. Concerto 14 Curado Ribeiro 1947: 103. para dois, CML/Rita Ribeiro 15 IDEM, ibidem. - Ribeiro, Fernando Curado (1947), Diário de uma voz... inconfidências, críticas, 16 IDEM, ibidem. programas, entrevistas, Porto, Progredior 17 IDEM: 104. 18 IDEM: 105. Periódicos 19 IDEM, ibidem. Rádio Nacional 20 Até ao momento, através da consulta da documentação do RCP deposi- tada no Arquivo da RTP, não foi possível encontrar os guiões originais. Por Fundo documental este motivo, não nos foi possível identificar os exemplos musicais utilizados BNP, Arquivo Histórico da RDP (documental e sonoro) na rubrica ABC do Jazz. Nos guiões existentes, publicados por Curado Ribeiro em 1947, as anotações referem apenas “(Entra disco apropriado)” Agradecimentos ou, por exemplo, “Esta série de programas foi ilustrada musicalmente com Prof.ª Doutora Maria do Rosário Pestana (Univ. Aveiro) gravações especiais de Música de Jazz. Os espaços que se encontram ao longo Dr. Manuel Lopes, Sílvia Garriapa (Gabinete de Serviço Público, Ética e Diver- do texto foram preenchidos, quando da apresentação dos programas, com sidade – RTP) transmissões musicais apropriadas.” (Curado Ribeiro 1947: 118). Dr. Eduardo Leite (Direcção e Emissão de Arquivo – RTP) 21 IDEM: 106. 22 IDEM, ibidem.

88 | glosas | número 13 | novembro | 2015 LUSITANA MÚSICA Clássicos da discografia portuguesa Uma rubrica de Tiago Manuel da Hora discografia lopes-graça os discos da década 1970 em a voz do dono

No vasto património que a figura de Fernando Lopes-Graça (1906-1994) nos legou, a sua discografia é sem dúvida um monumento essencial para a Música em Portugal, tratando- se de um universo imenso que não pára de crescer e abarca diferentes momentos na histó- ria do compositor e na própria história da vida cultural e social portuguesa. nesta viagem pelos meandros da melhor discografia produz- to de vista técnico e financeiro) era dificilmente atingível por ida em Portugal que proponho com a rubrica Lusitana Música, qualquer outra editora portuguesa na altura – a empresa não só revisitaremos edições ao cargo da Valentim de Carvalho, pre- editava como também gravava nos então moderníssimos estú- sença constante nos textos anteriores, o que se justifica por ser dios de Paço d’Arcos, tendo sido muitos discos da série Discoteca esta a editora líder nacional no período histórico a que me tenho Básica Nacional gravados nessas instalações. É neste contexto de reportado. Correndo o risco de me repetir, não será demais re- intensa vitalidade que se insere o conjunto de dez edições dis- cordar que a década de 1970 se revelou um ponto de charneira na cográficas (Long Play 331/3 rpm.) de música de Fernando Lopes- indústria fonográfica de música erudita em Portugal, precisa- -Graça, numa série supervisionada pelo próprio compositor, mente através de um impulso significativo dado pela Valentim entre os anos de 1974 e 1979, que aqui revisitamos. Para além de Carvalho (representante da EMI desde 1931), responsável destas, na década de 1970 Lopes-Graça viu pontualmente obras pela edição, prensagem e distribuição da etiqueta A Voz do Dono suas editadas em discos de outras etiquetas, como a Imavox e (His Master’s Voice). Tendo em consideração que esta etiqueta a já mencionada Discoteca Básica Nacional (aqui produzida pela já era editada anteriormente a este período cronológico, é na Diapasão)1. Nas décadas posteriores, o compositor iria ver mais década de 70 do século XX que A Voz do Dono (já em português) obra sua editada na EMI-Valentim de Carvalho, mas sobretudo assume a sua preponderância, através de um maior número de em discos pela Discoteca Básica Nacional, e posteriormente pela edições e, sob diversas perspectivas, ainda mais alargado sobr- Strauss (enquadrada na PortugalSom). etudo após 1974. Na verdade, na década de 1970, e até ao início Em 1974 são editados quatro álbuns, marcando um impor- dos anos 90, no que diz respeito à música erudita produzida em tante impulso para esta série discográfica. Dois desses discos disco em Portugal, o mercado era praticamente abastecido pe- contam com interpretações da Orquestra Sinfónica do Estado los discos de duas etiquetas: A Voz do Dono (Valentim de Car- Húngaro, sob a direcção do maestro Támás Pál: um disco de- valho) e a Discoteca Básica Nacional – um projecto da Secretaria dicado à Sinfonia per Orchestra (composta em 1944), e outro LP de Estado da Cultura iniciado em meados de 1977 e que viria, contemplando Canto de Amor e de Morte (obra composta em 1962 precisamente uma década mais tarde, a configurar a hoje mais a partir da versão original para piano solo de 1961) e Quatro conhecida PortugalSom. Bosquejos para orquestra de arcos (1965). Trata-se de obras fun- Retomando a discografia de Fernando Lopes-Graça, os damentais na produção de Lopes-Graça, que encontram aqui discos que aqui apresento assumem neste período, e no contex- interpretações seguras, creditadas pela supervisão in loco do to supra exposto, um papel fulcral, uma vez que é este o compo- próprio compositor – a Valentim de Carvalho providenciou as sitor gravado com maior regularidade pela Valentim de Carvalho deslocações do compositor e do produtor (Joaquim Simões da para A Voz do Dono e o único a quem é dedicada uma série de Hora) à Hungria para dirigirem essas gravações, sendo a restan- edições no curto espaço de cinco anos, não se limitando a em- te equipa técnica providenciada pelos estúdios locais, parceiros preitada recatada e a solo nacional, como mais adiante teremos da Valentim de Carvalho nestas edições. Támás Pál, para além oportunidade de observar. dos dois discos gravados para a Valentim de Carvalho, voltaria a 2 A vasta discografia de música de Lopes-Graça que hoje co- gravar Lopes-Graça para uma edição de 1981, editada pela EMI. nhecemos tem início cerca de duas décadas antes deste período. A preponderância destas gravações reside não apenas na sua No entanto, os discos que aqui apresento resultam em edições difusão dentro da comunidade musical e melómana, mas tam- de qualidade superior ao que havia sido gravado anteriormen- bém na evolução da própria criação artística de Lopes-Graça e te – o contexto que se vivia na Valentim de Carvalho (do pon- daqueles que absorveram influências na sua música. Como ob-

glosas | número 13 | novembro | 2015 | 89 servou Mário Vieira de Carvalho, a partir destas gravações “F. ca de Lopes-Graça, e em 1976 registava os seus primeiros con- Lopes-Graça confrontou-se assiduamente com a sua música, tributos discográficos através de interpretações que compilam especialmente a orquestral, quase toda então ainda por editar, uma grande diversidade de música coral, onde se destacam: ouvindo-a e testando-a como nunca antes.”3 Três Líricas Castelhanas de Camões, Dois Cantos (sobre texto Ainda do mesmo ano data a edição de Obras para violoncelo, de João José Cochofel, 1919-1982), Dos Romances Viejos, Três com Clélia Vital e Adriano Jordão, um disco onde encontramos Esconjuros, Quatre Rondos. Apesar de não estarmos perante obras de referência na literatura musical portuguesa para o ins- interpretações estonteantes, sobressai uma grande sobriedade trumento: Adagio ed alla danza, Página esquecida, Três canções e fidelidade ao texto musical, que permite promover acima de populares portuguesas, Quatro Invenções para Violoncelo Solo, Três tudo a riqueza da escrita coral de Fernando Lopes-Graça. Inflorescências, composta no final de 1973, poucos meses antes Antes de Obras para Piano, lançado no mercado em 1976, da gravação. À época desta edição (1974), Romeu Pinto da Sil- Olga Prats tinha já assinado um disco a solo com música para va, nas notas ao disco, refere que «conjuntamente com Canto piano de Lopes-Graça e editado pela Guilda da Música em 19734 de Amor e de Morte e Para uma criança que vai nascer, as Quatro – também gravado nos estúdios Valentim de Carvalho, em Paço Invenções podem contar-se entre as obras mais significativas d’Arcos. Também em 1974 tinha sido a pianista responsável que o autor nos lega.» Na verdade, a par com os discos gravados pelo acompanhamento do Coro da Academia de Amadores de na Hungria, interpretados pela Orquestra Sinfónica do Estado Música com as Canções Heróicas e Canções Regionais Portuguesas, Húngaro, este disco de Clélia Vital e Adriano Jordão constitui dando continuidade ao trabalho de grande proximidade com o um dos mais bem conseguidos e sólidos desta série. autor. Este disco a solo, em 1976, assume-se como um veículo Os primeiros volumes das Canções Heróicas e as Canções preponderante para o posicionamento de Olga Prats como uma Regionais Portuguesas, também editadas em 1974, com in- das mais proeminentes intérpretes na música de Lopes-Graça. terpretação do Coro da Academia de Amadores de Música Destaco aqui as interpretações de Glosas e Variações sobre um dirigido pelo compositor, viriam a ter continuidade no ano tema popular português (a primeira composição de Lopes-Graça de 1976, quando uma nova edição pelo mesmo agrupamento ainda enquanto aluno do Conservatório, no ano de 1927), que registou os segundos volumes das respectivas colecções. En- são indubitavelmente o ex-libris do disco, acompanhadas por tretanto, em 1975 é lançado no mercado um disco que celebra Prelúdio, canção e dança e Epitáfios. o diálogo artístico entre Lopes-Graça e o poeta Eugénio de A garantir a diversidade sobejamente reconhecida à obra Andrade (1923-2005), contemplando dois ciclos de canções de Fernando Lopes-Graça, surge em 1977 o disco Obras para sobre poemas deste autor. Contando com excelente inter- flauta e guitarra, com a interpretação de Marianne Clément e pretação do tenor Fernando Serafim e do próprio composi- Raul Sanchez, que nos apresentam uma escrita extremamente tor, ao piano, As Mãos e os Frutos (ciclo composto em 1959) rica do ponto de vista tímbrico e da exploração da simbiose en- via aqui uma segunda edição de qualidade superior – já havia tre a vertente harmónica da guitarra e o discurso persuasivo da sido editado em disco de 25 cm por Arnaldo Trindade para flauta. Este é um repertório pouco conhecido, pouco gravado, a sua etiqueta Orfeu no ano de 1960. Nesta nova gravação é que encontra aqui um justo contributo. acompanhado de Mar de Setembro, escrito por Lopes-Graça Os últimos dois anos deste período cronológico são dedica- em 1961, este em primeiro registo fonográfico. dos à edição das duas Cantatas de Natal (compostas em 1945-50 Obras Corais a Cappella é o título do primeiro de dois dis- e 1960-61), resultando numa gravação pelo Grupo de Música cos que o Grupo de Música Vocal Contemporânea, dirigido por Vocal Contemporânea em 1978 (a Primeira Cantata de Natal) e Mário Mateus, grava neste período. O grupo dedicou parte sig- seguindo-se em 1979 a edição da segunda, na interpretação do nificativa da sua actividade à interpretação e divulgação da músi- Choral Phidellius, dirigido por José Robert. Esta última é sem

90 | glosas | número 13 | novembro | 2015 no percurso dos intérpretes que as registaram, constituindo em alguns casos elementos essenciais no desenvolvimento poste- rior das suas carreiras, bem como para a solidificação de uma maturidade artística unificadora e representativa das interpre- tações apresentadas nestes discos.

Lista de edições - Fernando Lopes-Graça: Canções Heróicas, Canções Regionais Por- tuguesas. Coro da Academia de Amadores de Música, Fernando Lopes-Graça (direcção musical), Olga Prats (piano). A Voz do Dono/Valentim de Carvalho, 1974, 8E 061 40328, LP - Fernando Lopes-Graça: Canto de Amor e de Morte; Quatro Bosque- jos. Orquestra Sinfónica do Estado Húngaro, Támás Pál (di- recção musical). A Voz do Dono/Valentim de Carvalho, 1974, 8E dúvida uma gravação de referência, com um coro muito con- 063 40345, LP hecedor da obra em questão, reflexo do trabalho deste eminente - Fernando Lopes-Graça: Obras para violoncelo. Clélia Vital (vio- intérprete e divulgador da obra coral de Lopes-Graça. loncelo), Adriano Jordão (piano). A Voz do Dono/Valentim de No que concerne ao apetrecho estético e dos elementos co- Carvalho, 1974, 8E 063 40318, LP nexos destas edições, aqui não encontramos a mesma riqueza e - Fernando Lopes-Graça: Sinfonia per Orchestra. Orquestra Sin- quantidade de conteúdos que marcam os primeiros discos dos fónica do Estado Húngaro, Támás Pál (direcção musical). A Voz Segréis de Lisboa e a série Lusitana Música.5 Desse ponto de do Dono/Valentim de Carvalho, 1974, 8E 063 40344, LP vista, as edições que aqui compulsamos têm um carácter mais - Fernando Lopes-Graça: As Mãos e os Frutos; Mar de Setembro. Fer- austero, limitando-se à inclusão de notas ao programa gravado, nando Serafim (tenor), Fernando Lopes-Graça (piano). A Voz bem como de fotografias contemplando o compositor, os intér- do Dono/Valentim de Carvalho, 1975, 8E 063 40394, LP pretes e o momento de gravação. Tudo isto no espaço de duas - Fernando Lopes-Graça: Canções Heróicas, Canções Regionais páginas no interior, os versos da capa e contracapa. Em formato Portuguesas, vol. 2. Coro da Academia de Amadores de Música, bilingue (português e inglês), as notas aos discos eram da auto- Fernando Lopes-Graça (direcção musical), Fernando Gomes ria do próprio compositor ou, na maior parte dos casos, da res- (piano). A Voz do Dono/Valentim de Carvalho, 1976, 8E 065 ponsabilidade de Constança Capdeville (1937-1992) ou Romeu 40429, LP Pinto da Silva – que viria posteriormente a trabalhar com Lo- pes-Graça como produtor e director artístico da série Portugal- - Fernando Lopes-Graça: Obras Corais A Cappella. Grupo de Músi- Som. Menção ainda para a participação de João de Freitas Branco ca Vocal Contemporânea, Mário Mateus (direcção musical). A (1922-1989) com notas ao disco dedicado à Segunda Cantata de Voz do Dono/Valentim de Carvalho, 1976, 8E 063 40413, LP Natal. Merece destaque também, nomeadamente nos primeiros anos (entre 1974 e 1976), o grafismo dos discos, obedecendo a - Fernando Lopes-Graça: Obras para piano. Olga Prats. A Voz do um modelo estabelecido, muito conhecido pelo rebordo ma- Dono/Valentim de Carvalho, 1976, 8E 063 40426, LP genta com a inscrição “A Voz do Dono” à volta da capa, onde sobressaem as capas com desenhos de Henrique Ruivo, artista - Fernando Lopes-Graça: Obras para flauta e guitarra. Marianne plástico de renome no panorama cultural nacional desde a se- Clément, Raul Sanchez. A Voz do Dono/Valentim de Carvalho, gunda metade do século passado. 1977, 8E 073 40456, LP É admirável a regularidade da produção discográfica da Valentim de Carvalho neste período, hoje em dia impensável - Lopes-Graça: Primeira Cantata de Natal. Grupo de Música Vo- que uma editora portuguesa conseguisse atingir. Mais força cal Contemporânea, Mário Mateus (direcção musical). A Voz do ganha esta ideia se pensarmos que, a par da discografia de Dono/Valentim de Carvalho, 1978, 8E 063 40463, LP obras de Lopes-Graça, como já vimos em textos anteriores, a Valentim de Carvalho era então responsável por outras edi- - Fernando Lopes-Graça: Segunda Cantata de Natal. Choral ções no âmbito da música erudita. Simultaneamente, con- Phidellius, José Robert (direcção musical). A Voz do Dono/ tando com um incremento significativo de qualidade téc- EMI-Valentim de Carvalho, 1979, 8E 071 40510, LP nica (colocada à disposição do célebre técnico de som Hugo Ribeiro) e de uma estrutura sólida, a Valentim de Carvalho Notas 1 Choral Poliphónico de Coimbra. Imavox, 1977, IM-30.026, LP. Fernando Lopes- garantia edições que conseguiam equiparar-se a algumas das -Graça, História Trágico-Marítima. José Oliveira Lopes (barítono), Coro da Radiodi- grandes edições internacionais de referência. Já na década fusão Húngara, Orquestra Sinfónica de Budapeste, Gyula Németh (direcção musi- de 1990 e EMI-Valentim de Carvalho viria a remasterizar cal). Discoteca Básica Nacional/Diapasão, DIAP 25001, LP. e editar em CD grande parte destas gravações, sob o nome 2 Fernando Lopes-Graça: Obras Orquestrais. Disco comemorativo dos 75 (excertos). Orquestra Sinfónica do Estado Húngaro, Támás Pál (direcção musical), Orquestra Sinfó- “Discografia Lopes-Graça”. nica do Porto, Silva Pereira (direcção musical), EMI-Valentim de Carvalho, 1981, 11C Nesta dezena de discos contemplamos registos muito apre- 073 40568, LP. ciáveis de uma grande diversidade de repertório, desde música 3 Mário VIEIRA DE CARVALHO, s.v. ‘Lopes-Graça’, in S. Castelo-Branco (ed.), para instrumento solo, música de câmara, passando também Enciclopédia da Música em Portugal no Século XX, Lisboa, Temas e Debates / Círculo de Leitores, 2010, vol. III, p. 713. por títulos emblemáticos da produção orquestral e coral de 4 Fernando Lopes-Graça, Sonata n.º 3, Sonata n.º 5, Três velhos fandangos portugueses. Lopes-Graça. Na sua maioria, estamos perante repertório alvo Olga Prats, Guilda da Música, 1973, PST 50.001, LP. de primeiras edições discográficas, registos fundamentais na 5 Respectivamente os dois núcleos temáticos abordados no primeiro e segundo discografia do compositor, mas que são igualmente marcantes textos desta rubrica (Glosas XI, 2014, e XII, 2015).

glosas | número 13 | novembro | 2015 | 91 os cantos sefardins para voz e piano de Fernando Lopes-Graça

e do maestro português em Nova Iorque, por impedimento da José Maria Pedrosa Cardoso | TEXTO cantora à última hora, em concertos marcados para os dias 14, 15 e 18 de Maio: “Meu caro Lopes-Graça: Queria que estas linhas fossem destinadas a boas notícias: a notícia sobre a maneira Com o título de Cantos sefardins, Op. 181, compôs Fer- como decorreu a estreia dos seus SEIS CANTOS SEFARDINS. nando Lopes-Graça, entre 1969 e 1971, um ciclo de doze peças Porém, as notícias que lhe tenho que dar são péssimas: a canto- para voz e piano, as quais, segundo Romeu Pinto da Silva e ra adoeceu dois dias antes da execução e não foi possível con- outros observadores autorizados, bem como Conceição Correia, vencê-la nem tão pouco arranjar substituta a tão pouca distân- do Museu da Música Portuguesa, ainda não foram executadas cia. [...] Custa-me imenso dar-lhe esta notícia: em primeiro em público. Nos princípios de 1971 o compositor resolveu lugar porque tinha o maior empenho em apresentar aqui esta orquestrar seis desses cantos, os Seis cantos sefardins, Op. 189, sua obra que tão dignamente teria representado a sua música. previsivelmente para serem executados em Nova Iorque, atra- Em segundo lugar porque sei quanto trabalho investiu na or- vés de Álvaro Cassuto, quando maestro da Manhattan Symphony questração da mesma e as imensas horas que perdeu a copiar o Orchestra, mas a primeira audição mundial só foi dada em Lis- material de orquestra...” (Carta de Cassuto a Lopes-Graça, da- boa, no São Luiz Teatro Municipal, a 4 de Dezembro de 1976, em tada de 19 de Maio de 1971, Arquivo do Museu da Música Portu- concerto comemorativo do 70.º aniversário de Fernando Lopes- guesa). -Graça, pelo barítono José de Oliveira Lopes e pela Orquestra da Mais importante do que as vicissitudes da estreia ou não RDP, sob a regência de Silva Pereira. Teve, que conste, uma estreia de Cantos sefardins é a questão de saber-se o motivo que segunda audição a 9 de Setembro de 1977, no 3.º Festival de levou Lopes-Graça a escrever sobre música sefardim, isto é, Música da Costa do Estoril, na Igreja Paroquial de Cascais, com música de tradição judaica hispano-portuguesa. Parece certo José de Oliveira Lopes e a Orquestra Gulbenkian sob a direcção que nunca, ao que parece, o compositor escreveu nada que fosse de Claudio Scimone, e uma nova interpretação em Lisboa, na sobre música tradicional judaica. De onde lhe veio o interesse Aula Magna da Universidade, a 21 de Dezembro de 1979, ainda sobre tais assuntos? Sérgio Azevedo, ao escrever sobre a grava- com Oliveira Lopes e a Orquestra Sinfónica da RDP sob a direc- ção acima mencionada, no livrete do CD, refere apenas que “a ção de Alicja Mounk, sendo esta a versão gravada disponível no música popular dos judeus sefarditas não podia deixar de inte- CD III da caixa Centenário: Fernando Lopes-Graça (1906-1994), ressar Lopes-Graça, nascido (muito próximo da sinagoga local) Arquivos da RDP, 2006. numa terra de grandes tradições judaicas: Tomar”. Por sua vez, Em ambos os casos, trata-se de composições importantes Mário Vieira de Carvalho refere as raízes de uma tradição que vale a pena considerar no seu justo valor. Nada se sabe da hebraica “a que a casa natal do compositor bem como as suas versão para canto e piano, a não ser que foi alguma vez ensaiada origens familiares também se encontram ligadas» (Pensar a pelo próprio compositor na sua casa e diante de Manuel Cadafaz música, mudar o mundo: Fernando Lopes-Graça. Porto, Campo de Matos, que diz ter recebido o autógrafo (!) oferecido pelo das Letras, 2006, 178). compositor: “Quanto às Canções Sefarditas de Lopes-Graça, in- Todavia, e partindo deste pressuposto, poder-se-ia con- formo que o CEHLE é o actual detentor do manuscrito autógrafo jecturar apenas que Lopes-Graça se deixou imbuir de alguma do compositor, que por ele nos foi cedido em retribuição de uma tradição judaica vivida na sua infância ou até que alguma fímbria (que ele entendeu ser) “dádiva de amizade”. Tal ocorreu quando judaizante lhe corresse no sangue das suas veias, o que ele – no Verão de 1979 – eu fui o responsável, entre 5 de Abril e 12 jamais confessou. Nada seria de estranhar que o avô paterno de de Outubro desse ano, na Rádio Comercial, na Rua Sampaio e Lopes-Graça, de nome Elisiário da Graça, para além de sempre Pina, em Lisboa, de um programa semanal (de uma hora cada) ter vivido “na judiaria, mais tarde Rua Nova (actual Rua Dr. Joa- intitulado A linguagem e o mito na música portuguesa” (informa- quim Jacinto)” (cf. António de Sousa, A Construção de uma Iden- ção pessoal, que muito se agradece, prestada pelo Prof. Doutor tidade: Tomar na vida e obra de Fernando Lopes-Graça, Chamusca, Manuel Cadafaz de Matos). Edições Cosmos, 2006), aparentemente na mesma casa onde Outra cópia desta versão foi enviada pelo compositor a Ál- nasceu o compositor, não devesse o seu nome a uma efectiva varo Cassuto em Fevereiro de 1971: «Acabo de receber os Cantos filiação judaica. Sefardins bem como a sua carta. [...] Entreguei a partitura de Para se explicar o interesse de Lopes-Graça pela música canto e piano ao George Schick, Presidente da Manhattan Sym- sefardim poderiam invocar-se ainda amizades com judeus que phony, que por sua vez a entregará à cantora...” (carta de Cassu- lhe marcaram a vida, um dos quais foi Louis Saguer. O que é to a Lopes-Graça, datável de Fevereiro de 1971, Arquivo do Mu- certo é que o compositor, por volta de 1969, interessou-se seu da Música Portuguesa). Por sua vez, a partitura para orques- seriamente pela música tradicional judaica. Como tomou tra com os Seis cantos sefardins foi composta nos princípios de conhecimento daquelas melodias sefardins? Neste momento, é 1971 e entregue também a Álvaro Cassuto: “Espero que me diga possível declarar que foi através de um livro da colecção de Gia- em Março como prefere resolver o assunto do aluguer dos mate- cometti: Chants Sephardis, uma colecção recolhida e notada pelo riais. O material de orquestra prefiro-o levar comigo em Abril”. célebre judeu francês Léon Algazi, e publicada em 1958 pela Sabe-se, todavia, que foram baldados os esforços do compositor World Sephard Federation. Foi ali que foi possível encontrar,

92 | glosas | número 13 | novembro | 2015 nas pp. 27, 45, 48, 52, 55, 56, 57, 65, 66, 74, 75 e 79, as doze banal harmonização, mera roupagem erudita de cantos popula- peças que constituem o cancioneiro sefardim de Lopes-Graça, a res simples. Ao invés, é um ciclo de poderosos Lieder, por vezes saber, pela ordem mencionada: Un Cavritico, Cuando el Rey próximos das vanguardas da época (podemos compará-los com Nimrod, A la Nana, Noches, Noches, Una Noche yo me armi, A la una as obras semelhantes de Berio, ou do último Britten), cujo sabor naci yo, Durmo la Nochada, Arvolera, Arvoles yoran, Morenica sos, oriental e complexa profusão polifónica e orquestral fazem por El s’asento e Si savias gioya mía. Pode ser que Giacometti tenha vezes lembrar Szymanowski na sua fase de fascínio arábico. recomendado estas e não outras canções, razão pela qual Lopes- Fechando o ciclo, o rítmico, obsessivo e quase salmódico el -Graça lhe dedicou as suas composições. cavriti (o cabrito) transforma tudo numa dança popular desen- Talvez o compositor tivesse ouvido canções judaicas. freada, de uma virtuosidade orquestral (e vocal) estonteante”. Manuel Cadafaz de Matos diz que ele, já depois de ter composto E agora que o mundo se preparou para escutar pela pri- o seu ciclo de Cantos sefardins, tencionava acompanhá-lo à sina- meira vez a versão original para canto e piano, tal como se encon- goga de Belmonte, embora nunca o tenha feito. Todavia, nem ele tra depositada no Museu da Música Portuguesa, no dia 15 de se refere a romances judaicos, quando fala do tema (cf. “Sobre Outubro, em São Paulo, na UNIBES Cultural, pela voz de Rita as toadas dos romances populares portugueses” in Alves Redol, Tavares e pelas mãos de José Eduardo Martins, apeteceria passar Romanceiro Geral do Povo Português, Lisboa, 1964), nem ele pode a pente fino o conteúdo musical das melodias eleitas por Lopes- ter conhecido muitas melodias daquela tradição que, aparente- -Graça da tradição sefardim. Foi o que se fez na apresentação que mente, são raras nos nossos cancioneiros. Apenas há uma antecedeu o concerto, no dia 13 de Outubro e no mesmo local, excepção: a harmonização que ele fez do “Romance de D. Fer- pelo signatário deste artigo, em conferência intitulada “Os Cantos nando” (cf. Canções Regionais Portuguesas, op. 39, Série XIX, n.º sefardins de Lopes-Graça: origem e panorâmica analítica”. Aque- 6). Dir-se-ia que Portugal, depois de expulsar os judeus, apagou las melodias, recolhidas maioritariamente em Paris por Léon da sua memória a música que eles tanto cultivaram. De facto, o Algazi, são as que o compositor português, prestando preito aos primeiro grande cancioneiro estruturado, o de César das Neves seus possíveis antepassados e de qualquer modo gloriosos filhos e Gualdino de Campos, apenas transmitem uma cantiga divul- enjeitados de Portugal, revestiu sacralmente de uma arte pianís- gada em Portugal no tempo de D. Manuel, embora de origem tica de eleição. Sem o fazer, por simples premura de espaço, seja espanhola, «A expulsão dos judeus» – «Ea, judios, a enfarde- lícito salientar que, para além do respeito intocável pelas melo- lar, que mandan los reys que passeis la mar» (Cancioneiro de peias, já langorosas e cheias de saudade, já alegres e mesmo Músicas Populares, Porto, Empresa Editora, 1898, vol. III, 49). jocosas, Lopes-Graça colocou nelas o seu estilo inconfundível, O que é certo é que Lopes-Graça se dedicou de alma e cora- que faz das mesmas modelo de virtuosismo e, ao mesmo tempo, ção, escrevendo entre 1969 e 1971 as doze peças de antologia que de um tratamento musical absolutamente ímpar, que o torna constituem o seu Op. 181. merecedor, certamente, de inscrição no quadro dos maiores Segundo Sérgio Azevedo, “nada nestas peças se fica pela compositores de música judaica dos tempos modernos.

glosas | número 13 | novembro | 2015 | 93 Evocação de santos pinto no bicentenário do seu nascimento

os ensinamentos de Manuel Joaquim Botelho, seu mestre e ali MARIA JOSÉ BORGES | TEXTO colega. Será, aliás, no Teatro de São Carlos que verá, em 1838, a apresentação da sua primeira obra dramática, Adoração ao Sol. Em 1839, encontramo-lo nas funções de clarim supranu- Compositor de música dramática e orquestral muito merário na Orquestra da Real Câmara;9 e, mais tarde, assumirá conceituado e até popular no seu tempo, o nome de Francisco funções mais ou menos efectivas como compositor do entretan- António Norberto dos Santos Pinto (1815-1860) é, não obstante, to inaugurado Teatro de D. Maria (1845). nos dias de hoje, pouco menos do que desconhecido, mesmo de Em 1845, aquando da visita do pianista Franz Liszt a Lis- muitos músicos. Apesar de obras de sua autoria terem já recente- boa, Santos Pinto irá dedicar-lhe a sua 8.ª Sinfonia (ou Abertu- mente sido objecto de gravações (ainda que escassas), de inter- ra), fazendo-se inclusivamente retratar com a partitura da obra, pretação em salas de concerto (como na Casa da Música, em 2014) num quadro actualmente preservado nas colecções do Museu e de mesmo algumas terem sido já modernamente editadas,1 cen- Nacional da Música, em Lisboa.10 tenas de manuscritos seus jazem ainda desconhecidos na Biblio- Em 1849, encontramo-lo como Professor de Instru- teca Nacional, em Lisboa, à espera de tomarem vida.2 mentos de Latão no Real Conservatório de Lisboa.12 Menos de Santos Pinto foi um músico multifacetado, excelente uma década depois, em 1857, é nomeado Maestro Director do trompista, violinista e cornetista (dedicando-se especialmente Teatro de São Carlos, coroa de glória da sua carreira, de que in- à “corneta de chaves”), além de prolífero compositor. Nasceu felizmente não viria a poder desfrutar durante muito tempo. em Lisboa, filho de José António dos Santos3 e de D. Mariana do Grande parte da obra que hoje se conhece de Francisco Carmo Gama Pinto Borralho. Iniciou os estudos musicais sob Norberto dos Santos Pinto, e que permanece, todavia, por di- a orientação de Teotónio Rodrigues, cantor da Capela da Bem- vulgar mais amplamente, é dedicada à música para bailado,13 posta, estudando violino com José Maria Morte e trompa com área em que chegou a alcançar alguma notoriedade internacio- Justino José Garcia, mestre de banda das Reais Cavalariças, às nal. Com efeito, o coreógrafo italiano Francisco York, radicado quais Francisco Norberto viria mais tarde também a pertencer. em Portugal, fez executar em teatros estrangeiros alguns baila- Estudou ainda Harmonia com Eleutério Franco Leal e, depois, dos cujas partituras comprara a Santos Pinto e que viriam a ser com Manuel Joaquim Botelho, teórico e flautista da orquestra encontrados, por exemplo, pelo escritor Júlio César Machado do Real Teatro de São Carlos.4 Por sua vez, conta-se entre os em viagens a Itália.14 Entre estes, refira-se O Órfão da aldeia seus discípulos Guilherme Cossoul.5 (Teatro de São Carlos, 1852) e I Zingari (Teatro de São Carlos, Muito jovem, com apenas quinze anos (em 1830), era já 1853). O mesmo se pode dizer da sua música dramática,15 de que trompista da banda das Reais Cavalariças6 e, no início das Guer- se salienta Os Dois Renegados (Teatro da Rua dos Condes, 1839), ras Civis, em 1832, encontramo-lo como primeiro-corneta na em que ficou famosa a “xácara dos dois renegados”, O Alfageme Banda da Guarda Real da Polícia.7 Pela mesma altura, ainda que de Santarém (Teatro da Rua dos Condes, 1842), O Templo de Salo- um pouco depois, ter-se-á tornado músico, primeiro da ban- mão (Teatro D. Maria, 1849) e, acima de todos, A Casa Misteriosa da (trompista) e depois da orquestra do Teatro de São Carlos (Teatro D. Maria, 1850), espécie de ópera cómica segundo texto (inicialmente desempenhando as funções de primeiro clarim e, de José Romano (também ele músico), que Vieira refere como depois, de terceiro trompa), orquestra8 onde aproveitaria muito tendo “uma abertura lindíssima”.16

94 | glosas | número 13 | novembro | 2015 Retrato de Francisco Norberto dos Santos Pinto: óleo sobre tela; 378x305 cm [1845?] Lisboa, Museu Nacional da Música

Santos Pinto foi igualmente um prolífero compositor a sua obra foi sendo progressivamente esquecida, quando o ger- para orquestra: dele se conhecem cerca de 35 Sinfonias ou Aber- manismo e a influência wagneriana invadiram as elites musicais turas, que Vieira considera em geral “muito bem escriptas e de portuguesas, em finais do séc. XIX. Esse culto pela música ope- brilhante effeito, algumas de bem difficil execução”, estan- rática e pelo italianismo na música do séc. XIX tem sido criticado do entre elas a que dedicou a Liszt,17 e variados solos e peças por muitos autores. Não esqueçamos, no entanto, que o mesmo concertantes para diversos instrumentos, salientando-se os de se passou em muitos outros países da Europa, como a França e, sopro (madeiras e metais), como a Fantasia para 2 fagotes, com muito particularmente, a Itália, que, à semelhança de Portugal, acompanhamento de orquestra, tocada em São Carlos em 1847, seguiram preferencialmente um Romantismo mais operático por Augusto Neuparth e Thiago Canongia,18 e as obras para cor- do que instrumental. O suposto atraso de Portugal face ao vasto neta de chaves, consideradas fundamentais para a consolidação movimento romântico que dominou a Europa nas décadas que técnica e divulgação artística deste instrumento na época. Entre se seguiram a 1830 é algo mitificado: deve antes considerar-se estas estão o 1.º Concerto (1834), Tema e Variações (1834; 1835) e que se verificou uma nítida opção por um modelo estético que Pequeno Solo (1849), que foram recentemente objecto de inves- se pretendia importar, o da ópera em estilo italiano, de acordo tigação académica.19 com o gosto predominantemente burguês da época. É também abundante a sua produção religiosa, de Santos Pinto foi, ainda, um músico envolvido nas acti- que Vieira refere 45 peças (sendo em número de 28 até 1850), vidades políticas do seu tempo. Durante as Guerras Civis de e entre as quais sobressaem duas Missas Solenes e um Te Deum, 1832-34, enquanto músico militar, a sua participação nas lu- todas a 4 vozes e orquestra, esta última oferecida a D. Fernando tas partidárias foi nula, o que poderá ter-se devido talvez à sua de Saxe-Coburgo por ocasião do baptismo de seu neto, o futuro juventude. Vieira refere, com efeito, que, “ao contrário de Ca- Rei D. Carlos I.20 simiro, que doidamente se exaltou pelo partido realista, Pinto Igualmente significativa foi a sua produção de modinhas e recolheu tranquillamente para sua casa quando as tropas de D. canções para canto e piano, entre as quais se salientam as resul- Miguel abandonaram Lisboa em 1833”, acrescentando, porém, tantes da colaboração nas Estreias Poetico-musicais de Castilho que “não hesitou depois em acceitar o cargo de mestre em algu- (1853), em que figura como compositor maioritário (9 canções mas bandas dos batalhões constitucionaes que por esse tempo de um total de 12, sendo uma destas Adeus). Conservam-se tam- se organizaram, escrevendo até hum hymno que era ouvido com bém de sua autoria um Hino das Filarmónicas para orquestra, muito enthusiasmo e que se intitulava Marcha dos Voluntários da bem como abundantes paráfrases sobre temas de óperas em Carta.”22 Será, assim, durante as guerras civis subsequentes às voga ao tempo, que muito contribuíram, decerto, para a popula- revoluções da Patuleia e da Maria da Fonte que Santos Pinto se ridade dos próprios originais. virá a manifestar claramente a favor do Partido Cartista; desta A linguagem musical de Francisco Norberto dos Santos época, e enquanto músico da Orquestra do Real Teatro de São Pinto denota a clara influência do estilo italiano de Donizetti Carlos, conhecemos ainda hoje de sua autoria a Marcha do Ba- e Verdi que tanto influenciou Portugal no século XIX, mas, nas talhão dos Voluntários da Carta23, que, como vimos, e segundo palavras de Ernesto Vieira, “extrahindo muito brilho de uma o testemunho de Vieira, “era ouvida com muito enthusiasmo.” pequena orchestra” e “caracterizado por bem distincta indivi- Com efeito, encontrámos uma partitura manuscrita, para ban- dualidade.”21 É, talvez, em razão deste marcado italianismo que da, com este mesmo título, que pertenceu ao próprio Ernesto

glosas | número 13 | novembro | 2015 | 95 Vieira e que, sob uma perspectiva melódica, se poderia inclu- J. J. Garcia Alagarim, entre outros, para além do próprio Santos sivamente encaixar na prosódia deste hino, datado de 1846.24 Pinto), e que, após a sua dissolução, em 1861 (o ano seguinte à Tratar-se-á de uma recuperação de uma obra anterior para o morte do fundador), não teve continuadores. Ocupou Francisco contexto cartista? Teria sido, antes, uma peça exclusivamente Norberto também diversos cargos na Irmandade de Santa Cecí- para banda e depois ajustada a uma letra de ocasião?25 Mais tar- lia e no Montepio Philarmónico, entidades entretanto fundidas de, e composto em 1851,26 conhece-se da autoria de Santos Pin- em 1846.32 to outro hino autógrafo,27 dedicado a Saldanha, após a vitória do Embora menos conhecido como musicógrafo, conhe- Marechal-Duque na conclusão das guerras civis.28 cemos da autoria de Santos Pinto vários textos sobre assuntos Tudo indica, aliás, que, para além de simpatizante do Car- musicais e mesmo diversos artigos sobre História da Música, tismo, Santos Pinto tenha sido também maçon, como parecem cuja publicação foi iniciada em 1856 num jornal de curta dura- comprovar os 4 Hinos maçónicos que dele conhecemos.29 Ade- ção intitulado Rigoletto.33 mais, viria a ser o fundador de duas importantes instituições De excelente carácter, afável, cordato e prestativo, foi, uma musicais paramaçónicas: a Academia Melpomenense30 e a Asso- vez mais segundo o testemunho de Vieira, muito estimado pelos ciação Musica 24 de Junho, grandes impulsionadoras da música colegas e discípulos. Dele disse ainda o grande polígrafo: de concerto entre nós, sobretudo em finais do século XIX. A Academia Melpomenense (transformada em 1854 em Academia Fraco de corpo mas forte de espírito, tranquillo e methodico sem pai- Real dos Professores de Música31) muito incentivou a produção xões, nem arrebatamentos (…). Assim em todas as suas producções instrumental dos compositores portugueses, que escreveram se manifesta um espírito lúcido, (…) dominado por íntimo senti- expressamente para os concertos que esta sociedade organiza- mento que o faz encontrar bellas e espontâneas ideias, technicamen- va (entre estes autores figuram os nomes célebres de Joaquim te trabalhadas.34 Casimiro Júnior, João Guilherme Daddi, Guilherme Cossoul e

notas 1 Nos tempos modernos foi já publicado pela editora AVA um abundante XIX: composições de Santos Pinto, Tese de Mestrado apresentada à Universidade número de composições deste autor. O catálogo é consultável em www.editions- de Aveiro, 2011, onde se transcrevem e editam quatro destas obras. ava.com . 20 VIEIRA, op. cit., vol. II, p. 178. 2 Com efeito, encontram-se actualmente na Biblioteca Nacional de Portugal 21 IDEM, ibidem. 409 registos de obras deste compositor, na sua grande maioria manuscritas, 22 IDEM, vol. II, p. 174. sendo as obras editadas, ao tempo, quase todas libretos, com referência a 23 Marcha do Batalhão dos Voluntários da Carta, cantada no Real Theatro de S. música de sua autoria. Carlos na noite de 20 de Novembro de 1846. (Lisboa): na Imprensa Nacional (1846). 3 Cf. Ernesto VIEIRA, Diccionario biographico de Músicos Portuguezes, Lisboa, 24 BNP, M.M. 340/5. 1900 (s.v. ‘Pinto, F. A. N. Santos’: vol. II, pp. 173 ssq.), e confirmado o nome 25 Carece de um estudo algo aturado a compreensão adequada de uma eventual paterno em A.N.T.T.: Registo Geral de Mercês, D. Maria II, liv. 13, fl. 4v. ligação entre o texto e a música, que nos não foi possível fazer por ignorarmos, 4 Cf. Pedro Miguel SILVA, Da Criação musical à prática interpretativa: um diálogo por exemplo, onde começa a voz, se se inicia com o refrão ou com a estrofe, etc. Consulte-se, a propósito destes hinos, dissertação de mestrado da autora ao encontro da inovação estética e artística do fagote em Portugal, Tese de Mestrado apresentada à Escola Superior de Música e Artes do Espectáculo do Instituto destas linhas: Maria José Borges, A Produção Musical de índole política Politécnico do Porto, 2010. no Período Liberal (1820-1853), Tese de Mestrado em Musicologia Histórica 5 De acordo com uma obra encontrada: Variations de violoncelle: composées et apresentada à Universidade Nova de Lisboa através da Faculdade de Ciências dediées à son maître Mr. F. A. N. dos Santos Pinto / par son élève Guillaume Cossoul Sociais e Humanas, 2008. (BNP, M.M. 70/5). 26 Segundo indicação da própria partitura manuscrita, actualmente preservada 6 De acordo com a sua admissão à Irmandade de Santa Cecília, referida por na Biblioteca Nacional de Portugal (M.M. 341/2). Ernesto Vieira (op. cit., vol. II, p. 173). 27 Cf. Ernesto Vieira, antigo possuidor. 7 IDEM, ibidem. 28 Hymno a Saldanha “Exultai[,] ó Portugueses” [1846-7]: BNP. É apresentado 8 IDEM, ibidem, p. 174. com diversas instrumentações (para orquestra, solista e coro a 3 vozes graves; 9 Cf. A.N.T.T., Registo Geral de Mercês, D. Maria II, liv. 13, fl. 4v.: Alvará para para banda militar; para piano, voz e coro; e ainda para piano solo). A propósito Músico Supranumerário da Real Câmara, na qualidade de clarim. destes hinos, vide Maria José Borges, op. cit. 10 E antes estivera no Conservatório Nacional, tendo pertencido a António 29 Cujos manuscritos se encontram na Biblioteca Nacional e foram já Lamas, “distinto violinista amador”, marido de uma de suas netas e publicados modernamente pela editora AVA (cf. lista em anexo). antepassado da Senhora Prof.ª Elisa Lamas, antiga Professora do Conservatório 30 VIEIRA, op. cit., vol. II, p. 178. Nacional. 31 Igualmente inspirada por João Alberto Rodrigues da Costa, o reformador 11 in M. Helena Trindade (ed.), Liszt em Lisboa (catálogo da exposição), Lisboa, da Irmandade de Santa Cecília e grande associativista da época. Os esforços Instituto Português de Museus/Museu da Música, 1995, p. 75. financeiros desta sociedade fizeram com que J. A. Rodrigues da Costa sugerisse 12 Cf. A.N.T.T., Registo Geral de Mercês, D. Maria II, liv. 33, fl. 128v.-129r.: a fusão desta nova academia com as já criadas Associação Música e Montepio 14/12/1849, Carta. Professor da Cadeira de Instrumentos de Latão, na Escola Philarmónico, o que veio efectivamente a acontecer em 24 de Junho de 1846. de Música do Conservatório Real de Lisboa. Todavia, Joaquim CARMELO Rosa 32 Para uma visão mais completa destas instituições e do panorama musical (“Depois de Bomtempo: a Escola de Música do Conservatório Real de Lisboa do século XIX, vide Maria José Borges, “A Música”, in Joel Serrão & A. H. nos anos de 1842 a 1862”, Revista Portuguesa de Musicologia X (2000), p. 207) de Oliveira Marques (edd.), Nova História de Portugal: vol. IX (Portugal e a refere a data de 1845 e Ernesto VIEIRA (op. cit., vol. II, p. 177) a de 1854. instauração do Liberalismo), Lisboa, Presença, 2000, pp. 475-492; EADEM, 13 Ernesto Vieira, por exemplo, refere 19 obras até 1850. “A Música”, in IIDEM (edd.), Nova História de Portugal: vol. X (Portugal e a 14 VIEIRA, op. cit., vol. II, p. 174. Regeneração), Lisboa, Presença, 2004, pp. 392-410. 15 Vieira refere 52 obras até 1850. 33 VIEIRA, op. cit., vol. II, p. 177. 16 VIEIRA, op. cit., vol. II, p. 175. 34 IDEM, ibidem, p. 178. 17 8.ª Abertura: dedicada ao Insigne artista o Sr. Franz Liszt: com dois violinos, violas (…)/ Por F. A. N. S. (BNP, M.M. 5027). E no antigo fundo do Conservatório Nacional, actualmente conservado na Biblioteca Nacional de Portugal: 8.ème Ouverture a grande orchestre: composée et dediée à L’Insigne Monsieur Franz Liszt / par son admirateur F. A. N. S. Pinto (BNP: C.N. 423). 18 Sobre as suas obras para fagote, vide Pedro M. SILVA, op. cit. 19 A este propósito, vide Paulo Veiga, A Corneta de Chaves em Portugal no séc.

96 | glosas | número 13 | novembro | 2015 Tesouros instrumentais | uma rubrica do Museu Nacional da Música Alfredo Keil e a exposição Memórias Felizes no Museu Nacional da Música

CATARINA SERAFIM | TEXTO

Em Junho de 2014, a Associação de Amigos do Museu Nacio- nal da Música obteve um financiamento da Fundação Calouste Gulbenkian para a recuperação, tratamento, organização e divulgação do arquivo de Alfredo Keil preservado no acervo daquele museu. O legado de Keil encontra-se actualmente dis- perso por algumas entidades de natureza pública e privada. A parte pertencente ao Museu Nacional da Música é composta maioritariamente por documentação musical, doada pela famí- lia (Maria Keil e seu filho) em 1980 à então Direcção-Geral do Património Cultural, transitando para o Museu Nacional da Música à data da sua criação, em 1994. efectuava para se informar sobre as características de determi- O acesso a este arquivo tem sido solicitado com frequência nados instrumentos e às diligências para a sua aquisição. Aqui por parte de músicos, musicólogos e outros investigadores, encontramos, por exemplo, correspondência trocada com tendo desde sempre sido concedido pelo Museu, consciente da luthiers e intermediários, desenhos e fotografias de instrumen- existência de um universo de conteúdos por explorar, assim tos musicais. Por sua vez, o segundo sub-núcleo procura reflec- como da necessidade de melhorar as condições de acesso à tir o passo seguinte à aquisição de instrumentos: a inventaria- informação e aos documentos. Perante estas necessidades tão ção e o estudo. Como tal, integra documentos decorrentes de prementes, a primeira etapa deste projecto passou natural- estudos e de investigação, desta feita sobre Organologia e Histó- mente pela descrição exaustiva da documentação, o que permi- ria da Música, além de algumas fotografias. tiu conhecer com exactidão todas as tipologias de documentos O núcleo dedicado à vertente de coleccionador revelou- que compõem o acervo, observando-se que este é, na sua maio- -se particularmente surpreendente e benéfico para a actividade ria, composto por documentos relativos à actividade de Alfredo do Museu Nacional da Música. A colecção de instrumentos de Keil enquanto músico e coleccionador. Alfredo Keil contava, à data da sua morte, em 1907, 370 objectos Após este processo, o passo seguinte foi a realização de uma inventariados. Até esta colecção chegar à posse do Estado Por- exposição que permitisse dar a conhecer o trabalho desenvol- tuguês, alguns espécimes infelizmente perderam-se. Com a vido neste projecto, mas, acima de tudo, mostrar ao público um documentação agora tratada, foi, todavia, possível conhecer não pouco da documentação que constitui a parte do espólio de só alguns dos instrumentos perdidos, através de fotografias e Alfredo Keil pertencente ao Museu Nacional da Música. descrições presentes na correspondência, como também iden- O guião expositivo que desenvolvemos procurou, neste tificar como pertencentes à colecção Keil alguns outros instru- contexto, reflectir os dois principais conjuntos encontrados no mentos do acervo do Museu Nacional da Música. Também por arquivo, por sua vez subdivididos também em sub-núcleos, estes motivos, considerou-se pertinente incluir na exposição representando os vários tipos de documentação existentes. alguns desses instrumentos retratados na documentação e per- Assim, no núcleo relativo à actividade musical de Alfredo Keil a tencentes ao Museu. exposição contempla quatro sub-núcleos, abordando a compo- Em certa medida, também o núcleo dedicado à actividade sição do hino A Portuguesa, a produção operática, cantatas e sui- musical de Alfredo Keil pode ser entendido como revelador, tes de orquestra e, finalmente, outras composições. pois nele é possível redescobrir o seu trabalho como compositor Nestes sub-núcleos, sempre que a documentação preservada de outro tipo de peças, que não apenas as óperas e cantatas por o permitiu, houve a preocupação de reflectir as diversas fases do que é mais celebrado. A título de exemplo, neste núcleo podem trabalho desenvolvido pelo compositor. Desta forma, os docu- ser apreciadas composições para oboé e piano. mentos seleccionados procuram reflectir as diversas fases da O projecto que aqui apresentamos representou um vida de uma obra: a criação (que considerámos o processo desde momento feliz para o Museu Nacional da Música, uma vez que, que o compositor começa a colocar no papel as primeiras ideias sem o apoio concedido pela Fundação Calouste Gulbenkian, até às versões finais manuscritas), a execução (a documentação teria sido bem mais difícil conhecer com profundidade o uni- produzida para que a obra possa ser levada a palco – desde verso associado à figura de Keil actualmente à guarda do Museu, cópias manuscritas a partituras de orquestra e outros materiais) universo que está, agora, mais próximo dos músicos e amantes e, finalmente, a divulgação (quaisquer tipologias documentais de Música. concebidas para aquisição do público e consumo privado, como Memórias Felizes foi, assim, uma exposição que, socor- reduções e adaptações de obras). rendo-se de uma composição de Alfredo Keil (Souvenirs heu- O segundo núcleo, dedicado à vertente de coleccionador de reux), assinalou o momento feliz a partir do qual o arquivo desta Alfredo Keil, segue a mesma lógica de organização do primeiro personalidade pertencente ao Museu Nacional da Música se no concernente à divisão em sub-núcleos. O primeiro destes é pôde considerar finalmente inventariado e acessível. A exposi- dedicado à negociação ou à aquisição e nele se enquadram docu- ção esteve patente no Museu Nacional da Música, na estação de mentos referentes à concepção e à constituição da colecção de Metropolitano do Alto dos Moinhos, em Lisboa, até 28 de instrumentos de Alfredo Keil, decorrentes da investigação que Novembro de 2015.

glosas | número 13 | novembro | 2015 | 97 coisas em que tropeço… uma rubrica de sílvia sequeira (Área de Música da Biblioteca Nacional de Portugal)

“Trombonico em Acto de memoria!.....” Ao passarmos pelas mãos alguns manuscritos de Francisco Norberto dos Santos Pinto podemos intuir, através de anotações ou até dos títulos dados às peças, que seria uma pessoa bem humorada. Veja-se como exemplo a parte de trombone destes Intervalos (M.M. 1384), compostos para o Teatro do Salitre em 1832.

98 | glosas | número 13 | novembro | 2015 Participe na glosas!

Dedicada à divulgação do património musical de cultura lusófona, com destaque para a música de tradição erudita ocidental, dirige-se a um público diversificado, desde o melómano ao músico profissional, procurando assim reunir todos os cidadãos na redescoberta do passado e na mútua construção do presente.

ARTIGOS DIVERSOS | Gostaria de enviar notícias, informações sobre concertos, artigos de opinião, crítica ou outros textos de carácter não científico?​ Entre em contacto através de [email protected].

CADERNOS DE MUSICOLOGIA | Gostaria de propor artigos de carácter científico? Envie a sua proposta ao Conselho Científico Lusófono através de [email protected]. Torne-se assinante!

Contribua para o desenvolvimento das actividades e projectos do mpmp, usufruindo de inúmeros descontos e recebendo em sua casa a glosas, revista semestral.

Para mais informações, visite www.glosas.mpmp.pt ou contacte-nos através de [email protected]. celebrando a música clássica dos países de língua portuguesa glosasedições 

www.glosas.mpmp.pt