UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

MARCO AURÉLIO NAVARRO

DANIEL MUNDURUKU: o índio-autor na Aldeia Global

São Paulo

2014

MARCO AURÉLIO NAVARRO

DANIEL MUNDURUKU: o índio-autor na Aldeia-Global

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras, da Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Letras.

Orientadora: Profª Drª Marlise Vaz Bridi

São Paulo 2014

N322d Navarro, Marco Aurélio. Daniel Munduruku : o índio-autor na Aldeia Global / Marco Aurélio Navarro. – 2014. 208 f. ; 30 cm.

Tese (Doutorado em Letras) - Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2014. Referências bibliográficas: f. 191-201.

1. Literatura Indígena. 2. Hibridismo. 3. Resistência. 4. Aldeia Global. 5. Pós-modernidade. 6. Munduruku, Daniel, 1964-. I. Título.

CDD 398.20981

MARCO AURÉLIO NAVARRO

DANIEL MUNDURUKU: O ÍNDIO-AUTOR NA ALDEIA GLOBAL

Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Letras, da Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Letras.

Aprovado em: 13/02/2014

BANCA EXAMINADORA

______Profª Drª Marlise Vaz Bridi (orientadora)/Universidade Presbiteriana Mackenzie

______Profª. Drª.Marisa Philbert Lajolo/Universidade Presbiteriana Mackenzie

______Profª. Drª. Ana Lucia Trevisan/Universidade Presbiteriana Mackenzie

______Profª. Drª. Maria Andreia de Paula Silva/CES/JF

______Profª. Drª. Maria Helena Fioravante Peixoto/USP

AGRADECIMENTOS

A Deus, o Grande Espírito, que protege e ilumina a vida.

A Daniel Munduruku, por ter me ensinado a entender e a respeitar o mundo indígena, através de sua obra.

Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie que souberam dividir conhecimento e sabedoria.

À Profª Drª Marlise Vaz Bridi que me orientou na pesquisa e na escritura da tese, mostrando-me sempre o melhor caminho a seguir.

Às professoras doutoras Marisa Lajolo e Maria Helena Fioravante Peixoto que participaram da Banca de Qualificação e que trouxeram contribuições valiosas para o enriquecimento da minha tese.

Aos amigos do curso de Doutorado em Letras com quem compartilhei momentos de alegria e de estudo.

Ao Mackpesquisa que financiou, de forma valorosa, o desenvolvimento e a conclusão deste trabalho acadêmico.

À família, aos amigos, que sempre torceram pela minha felicidade.

RESUMO

A Literatura Indígena brasileira pode ser entendida como um esforço de autoafirmação diante de séculos de colonização que deixaram no imaginário da sociedade ocidental estereótipos que desqualificaram a cultura nativa. Como instrumento de resistência, a Literatura Indígena tem conseguido dar visibilidade às minorias étnicas no âmbito nacional, graças ao trabalho incansável de autores indígenas que lutam para que suas lendas e mitos não sejam apenas folclore ou algo pertencente a um passado distante da História brasileira. Dentre eles, destaca-se Daniel Munduruku como uma liderança representativa nesse movimento político e literário que se desenvolveu a partir do final do século XX. Seu esforço é o de mostrar aos leitores a riqueza e a sabedoria da cultura indígena no Brasil, para que possam compreender melhor a sua importância para a formação do país. Daniel Munduruku – culturalmente híbrido - transita entre a aldeia e a cidade, entre o sagrado e o profano, reconhece-se no local, mas sem negar a urgência de conviver com a Aldeia Global, marcadamente tecnológica e capitalista. Dessa forma, o presente trabalho pretende apresentá-lo como um autor de identidade pós-moderna, cuja obra mescla variados gêneros discursivos, o que a torna literariamente híbrida. Para tal, reunimos narrativas que tratam de temas recorrentes em sua obra, como a memória ancestral (os mitos e as lendas), a memória pessoal, a religiosidade indígena e algumas obras que mostram a sua postura crítica diante dos tempos pós-modernos.

Palavras-chave: Literatura Indígena. Hibridismo. Resistência. Aldeia Global. Pós-modernidade. Daniel Munduruku.

ABSTRACT

The Brazilian Indigenous Literature can be understood as an attempt at self realization in the face of centuries of colonization which left in the mind of the western society stereotypes which have disqualified the native culture. As a tool of resistance, the Indigenous Literature has been able to give visibility to minor ethnical groups in a national scope, thanks to the weariless work of indigenous authors who have fought for not letting their legends and myths become just folklore or something belonging to a distant past in the Brazilian History. Among them, Daniel Munduruku stands out as a significant leadership in this political and literary movement which developed at the end of the 20th century. His effort is to show readers the richness and wisdom of the indigenous culture in Brazil, so as they can better understand its importance for the ethnic formation of the country. Daniel Munduruku – culturally hybrid – goes from the village to the city, from the sacred to the profane, recognizes himself locally, however, does not deny the urgency to live with the Global Village, markedly technological and capitalist. Thus, this current work intends to present him as author with a postmodern identity, whose works mix various discursive genres, which makes them literally hybrid. For this, we have selected narratives which deal with recurring themes, like the ancestral memory (myths and legends), the personal memory, the indigenous religiosity and some works which show his critical posture in the face of postmodern times.

Keywords: Indigenous Literature. Hybridism. Resistance. Global Village. Postmodernity. Daniel Munduruku

[...] identidades, utopia, cumplicidade, esperança, resistência, deslocamento, transculturação, mito, história, diáspora e outras palavras andantes configuram alguns termos (possíveis) para designar, a priori, a existência da literatura indígena contemporânea no Brasil.

Graça Graúna

A literatura indígena cumpre o papel de resgate, preservação cultural, fortalecimento das cosmovisões étnicas. O futuro escritor indígena deve ser já incentivado na aprendizagem da educação bilíngue e educação geral desde pequeno. O escritor indígena é o futuro antropólogo: aquele que vê, enxerga e registra. Povos indígenas devem caminhar com os próprios pés.

Olívio Jekupé

O híbrido não está convenientemente circunscrito às margens, aos guetos de imigrantes, aos barrios, aos espaços alternativos, ou apenas aos dias atuais. Híbridos não são os outros: híbridos somos todos nós, são todas as culturas e todas as histórias.

Stelamaris Coser

A resistência é um movimento interno ao foco narrativo, uma luz que ilumina o nó inextricável que ata o sujeito ao seu contexto existencial e histórico.

Alfredo Bosi

SUMÁRIO

Página

INTRODUÇÃO ...... 1

CAPÍTULO I: DANIEL MUNDURUKU E A LITERATURA INDÍGENA

DANIEL MUNDURUKU: O INDÍGENA EM MOVIMENTO...... 14 A EXPERIÊNCIA DE AUTORIA INDÍGENA: A ESCRITURA NATIVA ...... 23

CAPÍTULO II: A REPRESENTAÇÂO LITERÁRIA DO ÌNDIO

A “TURBA AMERICANA” EM VERSO E PROSA ...... 48 O “olhar inaugural” de Caminha ...... 48 O “olhar clássico” em O Uraguai (1769), de Basílio da Gama ...... 51 Caramuru: um olhar local sobre a Bahia ...... 52 A Muhraida: o triunfo da fé ...... 54 Breve menção: os índios nas Cartas Chilenas ...... 57 O índio idealizado no Romantismo ...... 59 A ALDEIA INDÍGENA E OS ÍNDIOS PARA CRIANÇAS E JOVENS ...... 65

CAPÍTULO III: A RAPSÓDIA INDÍGENA – LENDAS E MITOS RECONTADOS

OLHARES MÚLTIPLOS SOBRE AS NARRATIVAS MÍTICAS ...... 71

AS LENDAS: HISTÓRIAS PARA SEREM LIDAS ...... 77 A HARMONIA HÍBRIDA ENTRE A ORALIDADE E A ESCRITA ...... 78 MITOS RECONTADOS: A RAPSÓDIA INDÌGENA ...... 81 Os Apinajé e o surgimento do milho ...... 83 Os Tembé e a origem da mandioca ...... 87 Assim nasceu o povo Munduruku ...... 92 Assim surgiram os Aruá e os Kaiapó ...... 94 Os Guarani e a origem do fogo ...... 98 Os Karajá e o mito do sol ...... 100 Os Kaingang e o dilúvio ...... 102 Os Taulipang: a Onça e o Raio ...... 104 HISTÓRIAS INDÍGENAS DE ASSUSTAR ...... 105 LENDAS RECONTADAS E REVIVIDAS ...... 110 CASOS DO MUNDO INDÍGENA: ENTRE A ALDEIA E A CIDADE ...... 114

CAPÍTULO IV: NO RIO DA MEMÓRIA

AS ESCRITAS DE SI ...... 122 LEMBRANÇAS NA CIDADE GRANDE ...... 127 HISTÓRIAS DO VÔ APOLINÁRIO ...... 131 O “OLHO ARMADO” NA CIDADE DE SÃO PAULO ...... 134 MEMÓRIAS DE UM “CONFESSOR DE SONHOS” ...... 140

CAPÍTULO V: ENTRE DEUSES E PAJÉS – A RELIGIOSIDADE INDÍGENA

A FIGURA SAGRADA DO PAJÉ ...... 146 REFLEXÕES SOBRE A RELIGIOSIDADE INDÍGENA ...... 151

KAXI, O MENINO ESCOLHIDO ...... 155 KARÚ, O PEQUENO PAJÉ ...... 157 O SINAL DO PAJÉ: O VOO DO MUTUM...... 159

CAPÍTULO VI: DANIEL MUNDURUKU NA ALDEIA GLOBAL

A METÁFORA DA GLOBALIZAÇÃO ...... 165 A PÓS-MODERNIDADE: CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS ...... 171 O ROUBO DAS HORAS: O TEMPO COMO DÁDIVA ...... 176 TODAS AS COISAS SÃO PEQUENAS: A NOVELA MUNDURUKU ...... 181

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...... 186

BIBLIOGRAFIA ...... 192 1

INTRODUÇÃO

O título de nossa tese Daniel Munduruku: o índio-autor na Aldeia Global permite-nos uma análise a partir de seus elementos constitutivos. Com esse exercício analítico, pretendemos mostrar a nossa maneira de conceber o autor- indígena e a literatura de autoria indígena brasileira contemporânea, ambos inseridos no mundo globalizado. Ao escrevermos sobre Daniel Munduruku, estamos pensando num autor brasileiro, cujo nome traz a marca cristã (de batismo) e a identidade indígena revelada pelo sobrenome que nos informa a sua origem étnica. Daniel Munduruku é, portanto, um exemplo de “identidade híbrida” apresentada nos estudos da crítica pós-colonial do crítico palestino Edward Said (1935-2003), do indiano Hommi Bhabha (1949) e que passa também pelos Estudos Culturais do jamaicano Stuart Hall (1932), pelos estudos socioculturais de Nestór Canclini (1939), um argentino radicado no México, e pela investigação do professor brasileiro Abdala Júnior. Os quatro primeiros pensadores entendem muito bem a questão do hibridismo cultural, afinal, saíram de seus países e foram assumir outra cidadania, em países como Estados Unidos, Inglaterra e México, respectivamente. Somente Abdala Júnior que é brasileiro (descendente de árabes) e professor da Universidade de São Paulo não fez esse trânsito. De acordo com Said (2011), todas as culturas estão mutuamente imbricadas, nenhuma é pura e única, todas são híbridas, heterogêneas. Trabalha com os conceitos de imperialismo e colonialismo, sendo que o primeiro se refere à prática, à teoria e às atitudes de um centro metropolitano dominante governando um território distante e o segundo termo é entendido como uma consequência do imperialismo. H. Bhabha (2011) entende o hibridismo como um processo em estado constante de negociação. Segundo ele, o hibridismo cultural é compreendido como uma condição do discurso colonial e o concebe como uma ameaça à autoridade cultural e colonial, o que pode subverter o conceito de origem ou identidade pura da autoridade dominante. 2

Para Hall (2006) não há povos etnicamente puros, culturalmente tradicionais. Tudo isso seria uma pensamento ocidental equivocado sobre a alteridade: “é uma fantasia colonial sobre a periferia mantida pelo Ocidente, que tende a gostar de seus nativos apenas como ‘puros’ e de seus lugares exóticos apenas como ‘intocados’”. (HALL, 2006, p. 79). Nos estudos culturais latino-americanos, citamos Canclini (2013) para quem a hibridação é concebida como um processo sociocultural que gera novas estruturas, objetos e práticas. De acordo com o autor, o conceito de hibridação serviu para sair dos discursos essencialistas que entendem a identidade como algo “puro”, sem misturas interculturais. Segundo o antropólogo argentino, a presença tumultuada de vários estilos é que caracteriza o pós-modernismo e nessa mistura arte, folclore cruzam entre si e com as novas tecnologias culturais. No Brasil, nas pesquisas em torno do tema da mestiçagem e do hibridismo cultural, Abdala Júnior (2002) problematiza a questão, uma vez que, para o professor, existem fatores ideológicos que estão indissociáveis na formação das culturas híbridas. Na sua explicação: “[...] a própria ideia de raça é ideológica e surgiu em decorrência da necessidade de se justificar o domínio de um povo sobre outros”. (p. 21). Ser híbrido, finalmente, seria uma condição própria do mundo pós- moderno ou um mundo de “fronteiras múltiplas”, na concepção do professor da USP. Como pensa Coser (2010), a hibridação pode ser entendida como um sintoma do momento pós-moderno, pluralista e mais dinâmico, no qual as minorias étnicas alcançaram o seu direito de expressão. Assim, vivemos o momento em que ecoam vozes pedindo ouvidos para as suas narrativas, no entendimento de Said (2011). Seguindo essas linhas de pensamento, Daniel Munduruku pode ser considerado um autor híbrido, pois representa uma minoria étnica inserida no contexto pós-moderno, no qual as diversidades têm direito de falar por elas mesmas, na sua própria voz e ter aquela voz aceita como legítima. (FERNANDES, 2010). Transitar entre identidades diferentes o torna um “sujeito pós-moderno”, na linha do pensamento de Hall (2002), um sujeito “hifenizado”, que se constitui 3 pela mobilidade e instabilidade, pela pluralização das identidades, um sujeito que passou a assumir não apenas uma, mas diversas identidades ao mesmo tempo. Por isso escolhemos a forma hifenizada “índio-autor” para Daniel Munduruku no título de nosso trabalho, dando-lhe uma identidade pós- moderna, constituída de sua identidade étnica (discriminada e periférica) e de sua nova condição intelectual (autor com formação acadêmica a serviço da reafirmação de sua indianidade, e que hoje está inserido no mercado editorial, com mais de 40 publicações). Se pensarmos nos outros escritores indígenas brasileiros, poderemos reconhecê-los nessa marca hifenizada, ou seja, podemos entendê-los como sujeitos híbridos que transitam entre a aldeia e a cidade, mas sempre se autodenominando índio-descendentes, índio-brasileiros, mestiços ou filhos da terra. Ao tratar da questão dos escritores indígenas contemporâneos, Graça Graúna elenca alguns autores que têm a sua identidade hifenizada ou híbrida:

[...] Darlene Taukane pertence ao povo Kkurâ-Bakairi (MT). Estudou fora da aldeia, desde a adolescência. Vive atualmente no perímetro urbano de Cuiabá (MT). Embora não tenha voltado à aldeia, Taukane nunca esteve separada de seu povo. Eliane Potiguara sofreu a migração. Com o desaparecimento da avó, por questões de terra, a família deslocou-se da Paraíba para o Rio de Janeiro, onde ela vive até hoje. Embora não tenha nascido na aldeia, Eliane nunca deixou de ser Potiguara. Kaká Werá Jecupé, filho de Tapuias, nasceu em São Paulo, onde foi iniciado (batizado) pelos guarani e se autodenomina Txukarramãe, e alusão aos guerreiros sem arma da família Kaiapó, no Alto Xingu. Olívio Jekupé, índio descendente, mora na Aldeia Krukutu, ao sul de São Paulo. Pelo sangue baiano do lado paterno e com o sangue materno de origem Guarani, ele se considera mestiço. Renê Kithãulu nasceu no Município de Comodoro (MT). É Nambikwara e vive entre os Guarani, em São Paulo. Yaguarê Yamã nasceu na fronteira – entre os estados do Amazonas e do Pará. Fez universidade em São Paulo. Continua Saterê-Mawé. (GRAÚNA, 2013, p. 83).

A lista poderia continuar com alguns outros nomes de indígenas que são mestiços e que carregam uma identidade múltipla, mas se afirmando como guardadores da tradição e como agentes de luta pela valorização de sua cultura. 4

Retomando a questão do “hibridismo cultural”, sabe-se que é um termo que está rotulado como mestiçagem, sincretismo, e crioulização o que pode sugerir, para o caldeirão cultural brasileiro, a abolição simbólica das diferenças, como se vivêssemos num país sem preconceitos. Nessa rede de conceitos em que se situa a hibridação, faz-se importante a explicação de cada um. A mestiçagem pode ser utilizada no sentido biológico (atentando-se para os fenótipos) ou no sentido cultural (observando-se as misturas de hábitos, crenças e formas de pensamento europeus). Para Canclini (2013), a mestiçagem estaria ligada a um processo fundacional nas sociedades do Novo Mundo. A definição de sincretismo está relacionada à combinação de práticas religiosas tradicionais e o termo crioulização (GLISSANT, 2003) também serviu para referir-se às misturas interculturais, principalmente aquelas que ocorreram com o francês na América e no Caribe1. Dentre esses termos, optamos pela hibridação que entendemos ser uma palavra mais abrangente, pois envolve não só as combinações de elementos étnicos ou religiosos, mas também a de produtos das tecnologias avançadas e dos processos sociais modernos ou pós-modernos. Dessa forma, a hibridação seria um termo que abrangeria várias mesclas interculturais. Para Canclini (2013), em tempos de globalização, faz-se mister aceitar pluralmente tradições diversas. Mas, nem sempre foi assim... No Brasil do século XIX, reconhecia-se o caldeirão cultural que distinguia o nosso país: africanos, europeus e ameríndios eram elementos que contribuíram para a formação da identidade nacional. Nessa época, o pensamento evolucionista (que valorizava o meio e a raça), positivista e as teorias de Darwin influenciaram muitos intelectuais brasileiros, como Couto de Magalhães (1837-1898) e Sílvio Romero (1851-1914), ambos pioneiros na recolha de lendas indígenas e africanas que foram compiladas e publicadas em livros.

1 O martinicano Édouard Glissant entende as culturas “crioulas” como culturas que justapõem pedaços de outras culturas e são difundidas na oralidade, por meio dos mitos e lendas. 5

Essas ideias naturalistas moldaram o pensamento do etnólogo e linguista Couto de Magalhães2 para quem os indígenas deveriam ser incorporados à civilização, o que equivaleria à conquista de mais terras e à aquisição de mão de obra para o trabalho. Os silvícolas deveriam ser “amansados”, catequizados pelos jesuítas e seus descendentes seriam o principal instrumento de trabalho. E, para serem úteis ao desenvolvimento da nação incipiente, era necessário aprender a língua tupi para inculcar nos “selvagens” a civilização europeia. Reconhecia que os cruzamentos étnicos produziriam uma raça mestiça: mamelucos, cafuzos (ou caborés) seriam benéficos para o progresso do Brasil, porque eram corajosos, tinham espírito de iniciativa e possuíam “a resignação em sofrer trabalhos e privações”. (MAGALHÃES, 1975, p. 63). O general Couto de Magalhães apregoava o desaparecimento da “raça” indígena, pensamento que se confirma no seguinte trecho do seu livro O Selvagem (1876):

Os indígenas, por uma lei de seleção natural, hão de cedo ou tarde desaparecer; mas se formos previdentes e humanos, eles não desaparecerão antes de haver confundido parte de seu sangue com o nosso, comunicando- nos as imunidades para resistirmos à ação deletéria do clima intertropical que predomina no Brasil.(MAGALHÃES, 1975, p. 73).

A ação do meio e a mestiçagem seriam fatores que levariam os ameríndios a um fim contra o qual era impossível lutar. Sílvio Romero também acreditava que os indígenas estavam em vias de desaparecimento e os negros se aliariam ao branco, diluindo-se no processo civilizador. De acordo com a tese de Souza (2007), Romero define o negro como um objeto de estudo em desaparecimento, caminhando para a extinção com o fim do tráfico, mas sempre reconhecendo nele uma influência determinante no processo cultural brasileiro, muito mais que o índio. Por isso, para Sílvio Romero, a mestiçagem representaria uma fase transitória e o branqueamento da população brasileira se consolidaria em um

2 Couto de Magalhães, em O Selvagem, compôs o livro com um curso de língua tupi e com a descrição das origens, costumes e religião dos indígenas. Escreveu o trabalho com o intuito de habilitar aqueles que tivessem interesse em ensinar os selvagens o Português, pois acreditava na ideia de aproveitá-los para o trabalho. 6 prazo de três a quatro séculos, fato que se ratifica na citação de Romero reproduzida por Souza (2007):

O mestiço é a condição desta vitória do branco, fortificando-lhe o sangue para habitá-lo aos rigores do clima. É uma forma de transição necessária e útil que caminha para aproximar-se do tipo superior... Pela seleção natural, todavia, depois de apoderado do auxílio de que necessita, o tipo branco irá tomando a preponderância, até mostrar-se puro e belo como no velho mundo. (p. 62).

Sua visão era a de que todo brasileiro é um mestiço, quando não no sangue, nas ideias. Na base da teoria do branqueamento de Sílvio Romero (e de Couto de Magalhães) estava a crença de que existiria uma raça superior que poderia assimilar as inferiores. Postulava uma escala de raças, onde o mais inferior era representado pelos índios, seguidos dos negros, portugueses, vistos como mestiços de ibéricos e latinos e, no topo, germanos, eslavos e saxões. Uma crítica a essas “teorias pseudocientíficas ocidentais” foi apresentada pelo antropólogo Munanga3 (2008), ao rediscutir a mestiçagem no pensamento brasileiro do século XIX. Como nos explica o pesquisador:

A elite brasileira foi buscar nos quadros de pensamento na ciência europeia ocidental, tido como desenvolvida, para poder não apenas teorizar e explicar a situação racial do seu país, mas também propor caminhos para a construção de sua nacionalidade, tida como problemática por causa da diversidade racial. (p. 47).

Na verdade, o país, no início do século XX, buscou novos caminhos na orientação política e essas teorias raciológicas do fim do século XIX passaram a ser consideradas ultrapassadas. O eixo da discussão não mais era o conceito de “raça”, mas o de “cultura” e defendendo essa linha de pensamento sobre a mestiçagem, destaca-se o nome de Gilberto Freyre (1900-1987), para quem as três raças trouxeram suas heranças culturais paralelamente aos cruzamentos raciais, o que deu origem a outra mestiçagem no campo cultural.

3 Kabengele Munanga escreve sobre a questão do negro no país e elenca muitos teóricos que discutiram a questão da raça, da mestiçagem e da identidade nacional, como Raimundo Nina Rodrigues, Euclides da Cunha, Alberto Torres, Manuel Bonfim, Edgar Roquete Pinto, Francisco Viana e Abdias Nascimento. 7

Influenciado pelas ideias de Silvio Romero, Freyre deu continuidade à reflexão sobre a mestiçagem, mas o fez em novos termos, isto é, segundo uma orientação cultural e dando ao mestiço uma positividade no cenário nacional. De acordo com o sociólogo, o intercâmbio de valores culturais contribuiu muito para a formação cultural do Brasil. Sobre o hibridismo brasileiro, Gilberto Freyre, citado por Souza (2007), comenta:

Híbrida desde o início, a sociedade brasileira é de todas da América a que se constituiu mais harmoniosamente quanto às relações de raça: dentro de um ambiente de quase reciprocidade cultural que resultou no máximo de aproveitamento dos valores e experiências dos povos atrasados pelo adiantado; no máximo de contemporização da cultura adventícia com a nativa, da do conquistador com a do conquistado. (p. 202).

Percebe nesse excerto uma apologia da mestiçagem de Freyre em relação à troca cultural entre brancos, índios e negros, o que acabou desenvolvendo o mito da democracia racial, a partir do seu famoso livro Casa grande e senzala, de 1933. Mesmo com discussões em torno da mestiçagem, seja ela biológica ou cultural, o fato é que o branqueamento do povo brasileiro foi a peça central da ideologia racial em nosso país. (MUNANGA, 2008). Negros e indígenas foram vítimas de uma prática eugenista, um projeto que não alcançou totalmente seus efeitos, graças a um lento crescimento populacional desses segmentos e à resistência cultural que se manifestou em movimentos sociais e políticos, principalmente no século XX (décadas de 1960 e 1970). A minoria étnica indígena - foco do nosso trabalho - é exemplo de resistência. Como ressalta : “A própria duração secular do drama indígena aí está a demonstrar que as etnias são entidades armadas de uma prodigiosa capacidade de resistência”. (RIBEIRO, 2011, p. 100). Nossos “indígenas genéricos” 4 encontraram no uso da literatura uma prática de resistência e uma ação afirmativa na luta pelo reconhecimento de seus direitos como cidadãos brasileiros. Como bem explica Figueiredo (2010), para os grupos minoritários, ser reconhecido é uma necessidade: “É em torno da noção de reconhecimento que

4 A expressão “índios genéricos” é dada por Darcy Ribeiro (2011) para explicar a integração compulsória dos indígenas, mostrando-nos que são, de fato, indígenas com identidade mestiça, híbrida. 8 se formam tanto os movimentos nacionalistas quanto os movimentos identitários das minorias”. (p. 191). Assumem a “identidade híbrida” que as marcam em época de globalização, metaforicamente denominada de Aldeia Global, onde as fronteiras se rompem, as distâncias se encurtam, um fenômeno resultado dos avanços tecnológicos. No mundo globalizado, as etnias ressurgem, reivindicando espaço para falar da aldeia local. Tem-se um mundo em que se vivem os fenômenos de afirmação e reafirmação das identidades étnico-culturais, quase que contrariando os próprios princípios da globalização, que previam a homogeneização das nações. Nessa nova ordem do mundo, a literatura de autoria indígena ocuparia um lugar de sobrevivência, de resistência e de confluência de vozes silenciadas ao longo dos mais de 500 anos de colonização. (GRAÚNA, 2013). Com o domínio da escrita e com um lugar assegurado na Constituição de 1988, os autores indígenas perceberam que a literatura proporcionaria um mergulho nas origens, o que pode ser entendido como resistência a séculos de dissolução da identidade que, nesse processo, ressurgiria como uma nova identidade, fragmentada pelo reconhecimento da alteridade, como convém ao homem pós-moderno. Na Aldeia Global, as identidades locais buscam a afirmação de sua identidade num esforço de valorização cultural. O que vemos nos autores- indígenas é o interesse pelo “local” em tempos de homogeneização global, mas sem etnocentrismo ou radicalismos que impediriam o diálogo com o Outro. Como reforça Nestór Canclini (2013):

A afirmação do regional ou do nacional não tem sentido nem eficácia como condenação geral do exógeno: deve ser concebida agora como a capacidade de interagir com as múltiplas ofertas simbólicas internacionais a partir de posições próprias. (CANCLINI, 2013, p. 354).

Seguindo o raciocínio do antropólogo argentino, o “local” passa a interagir com o “global” e não se opor ao outro. E, se estendermos esse pensamento para os autores-indígenas, haveria um trânsito entre a “aldeia” e a 9

“cidade”, o que faz com que ocupem um “entrelugar” 5 e assumam uma identidade híbrida. Segundo a professora Janice Thiél:

As textualidades indígenas estão abertas às redes de relações que congregam o local e o global e os autores indígenas transitam por espaços tribais, mas também urbanos; ou seja, eles estão localizados em espaços culturais ancestrais, além de dialogarem com culturas cosmopolitas. (THIÉL, 2012). Assim, em nosso trabalho pretendemos apresentar um recorte dentro do conjunto da obra de Daniel Munduruku, um autor “em trânsito”, que traz para sua obra essa experiência cultural híbrida, misturando ficção com os mitos indígenas, memória e lendas, mesclando, assim, os gêneros discursivos, o que torna sua produção literária híbrida, do ponto de vista textual. Em seus livros, encontramos as temáticas da memória, da identidade indígena, dos mitos e lendas a partir do discurso do índio-autor, inserido num mundo globalizado (a aldeia global) com o qual tem que travar lutas ininterruptas para que as tradições de sua aldeia e de outros povos indígenas não se percam. Propomos, então, iniciar nosso trabalho acadêmico com a apresentação, no primeiro capítulo, do índio-autor Daniel Munduruku, seus dados biográficos, sua proposta literária e vamos tratar, em seguida, da literatura indígena, seu contexto histórico, os fatos precursores como o Movimento Indígena Brasileiro, a Constituição de 1988, o papel desempenhado pela escola e pela escrita, tanto no resgate quanto no registro da literatura oral indígena. Passamos, a seguir, a estudar a representação literária do índio feita pelos cronistas do século XVI, pelos árcades e românticos, nos séculos XVIII e XIX. Nesse segundo capítulo, procura-se mostrar a abordagem que se faz do índio, sempre marginalizado, seja quando visto como o “bom selvagem”, ou como um “bárbaro” que precisava ser salvo pela fé católica. Iniciamos o estudo com o olhar inaugural do escrivão Pero Vaz de Caminha (1450-1500) e o do Padre Anchieta (1534-1597) no século XVI. Mostramos, em seguida, a visão dos árcades Basílio da Gama (1741-1795),

5 O termo “entre-lugar” foi cunhado por Silviano Santiago no ensaio O entre-lugar do discurso latino americano, publicado em Uma literatura nos trópicos (1978), para definir o lugar intermediário ocupado pelo discurso literário latino-americano, em relação ao europeu. Essa noção é adaptada por alguns teóricos para explicar modos de inserção do discurso literário de autoria indígena no sistema consolidado da literatura brasileira. Também encontramos outras variantes que expressam a mesma ideia de descentramento: lugar intervalar (E. Glissant), espaço intersticial (H. Bhabha) e zona de contato (Z. Bernd). 10

Frei J. de Santa Rita Durão (1722-1784), de Tomas Antônio Gonzaga (1744- 1810) e de Henrique Wilkens, com o poema épico A Muhraida (1785), revelando-nos uma imagem geralmente negativa do indígena que já vinha sendo construída desde o “achamento” das terras brasileiras. Finalmente, destacamos a exaltação romântica dos ameríndios na prosa de José de Alencar (1829-1877) e nos versos de Gonçalves Dias (1823-1864), autores do Indianismo, movimento literário que idealizava a imagem do índio. Ainda dentro do segundo capítulo, pretendemos mostrar que, desta vez, o índio (assim como sua cultura) continua sendo tema e personagem nas obras no século XXI, mas nos atentando para as obras destinadas ao público infanto- juvenil. Por isso, apresentamos autores e ilustradores simpatizantes da causa indígena que recontam mitos e lendas, organizam vocabulário, misturam ficção e História na tentativa de mostrar a esse público específico o quanto os índios contribuíram para a formação da nossa sociedade. Para o terceiro capítulo, escolhemos sete livros de Daniel Munduruku que trazem para o leitor antologias de mitos, lendas de vários povos indígenas, contando-nos a origem dos homens, do mundo. Reconta-nos algumas histórias assustadoras que povoam o universo indígena, todas sempre mostrando a visão de mundo do ponto de vista dos narradores-índios. Ao analisarmos as narrativas míticas recontadas por Daniel Munduruku, propomos um diálogo com as Ciências Humanas (Sociologia, Psicologia, Antropologia) que fundamentam teoricamente as temáticas do mito, das lendas, do medo, da memória. Dessa forma, reunimos uma verdadeira rapsódia indígena apresentada por Daniel, a partir das seguintes obras: Como surgiu (2011), Contos indígenas brasileiros (2005), Outras tantas histórias indígenas de origem das coisas e do Universo (2008), Histórias que eu ouvi e gosto de contar (2010b), Um estranho sonho de futuro (2004), A Caveira-Rolante, a Mulher-Lesma e outras histórias indígenas de assustar (2010c). Escolhemos, para construir nosso recorte de narrativas indígenas, nove mitos e algumas lendas que são “encaixadas” nas obras ficcionais de Daniel Munduruku. Como são muitas os povos ameríndios no Brasil e muitas as temáticas que as suas histórias abordam, limitamo-nos a esse corpus para análise. 11

O autor-indígena, como um contador de histórias, narra também acontecimentos do seu passado que foram significativos, pois marcaram sua personalidade, sua maneira de ser e agir no mundo. Resgata suas memórias com a finalidade de partilhar sua história e do seu povo, pois escrevendo sobre si mesmo, escreve sobre sua ancestralidade. Assim, para o quarto capítulo, selecionamos as histórias que fazem parte de sua memória individual, reunidas nas seguintes obras: Histórias de Índio (1996), Catando piolhos, contando histórias (2006), nas Crônicas de São Paulo (2009c). São lembranças recontadas com o coração, anotadas inclusive em Meu vô Apolinário: um mergulho no rio da (minha) memória (2009b). Incluímos, nesse capítulo, algumas de suas reminiscências em torno da sua experiência como educador, que estão registradas em Antologia de contos indígenas de ensinamento: tempo de histórias (2005), obra que mescla histórias, reflexões e lembranças. O quinto capítulo aborda outro tema recorrente em sua obra: a religiosidade indígena e o seu representante, o pajé. Para Daniel Munduruku, o pajé é um dos guardiões da memória coletiva, alguém capaz de manter a unidade da aldeia indígena. É uma figura emblemática capaz de falar com os espíritos no mundo dos sonhos, assim como curar doenças com as ervas encontradas na natureza. Por sua importância na vida indígena, esse líder espiritual está sempre presente em muitas obras de Daniel, mas especialmente naquelas em que os protagonistas são escolhidos para tal missão. Estamos falando de um conto retirado de Histórias de Índio (1996), chamado O menino que não sabia sonhar e do livro Karú Tarú, o pequeno pajé (2009d). O líder religioso, enquanto detentor de um saber ancestral e sagrado, é responsável por introduzir jovens indígenas a um rito de passagem que os transformará em adultos capazes de fazer suas próprias escolhas. Os conflitos culturais vividos pelos rapazes da aldeia e os importantes conselhos do pajé fazem parte da narrativa apresentada em O sinal do pajé (2011). O sexto capítulo da nossa tese discute os conceitos de globalização e pós-modernidade que, segundo nossa opinião, configuram o mundo contemporâneo, fragmentado, no qual os grupos étnicos tentam reafirmar suas raízes/identidades anteriormente negadas. 12

São conceitos que nos conduzem a reflexões em torno do tema da identidade porque, sabe-se que no mundo globalizado, ela está sendo formada e transformada continuamente, mas, nem por isso, as identidades étnicas deixam de buscar a sua tradição, numa atitude de resistência a esse processo que elimina fronteiras e reduz o tempo. Diante desse mundo fragmentado, Daniel Munduruku se posiciona criticamente, acreditando nas contribuições que a “aldeia local” pode oferecer para a Aldeia Global, marcadamente capitalista e individualista. Algumas considerações iniciais são o ponto de partida para refletir sobre o “tempo líquido”, globalizado e hipermoderno em que vivemos, apoiando-nos nas teorias de Zygmunt Bauman, Herbert McLuhan e Marc Augé. Selecionamos duas obras ficcionais do autor indígena em que identificamos suas reflexões sobre a sociedade pós-moderna. Daniel Munduruku escreveu O homem que roubava horas (2007), uma alegoria que avalia os males que a falta de tempo acarreta sobre a vida das pessoas que passam umas pelas outras apressadas, sem um momento para olhar e perceber o que está acontecendo ao lado ou para escutar o que elas têm a dizer. Em Todas as coisas são pequenas (2008) tem-se uma narrativa que contrapõe mundos distintos: o da cidade, com pessoas que constroem quadrados para marcar suas diferenças e o da aldeia, com pessoas que aprendem que a vida é circular. Nessa novela, o protagonista (um não-indio) narra a sua experiência numa aldeia indígena da Amazônia, convivendo com uma realidade jamais imaginada. Tem-se, nessa obra, uma crítica do autor ao modelo de vida dominado pelo capital, pela ganância e pelo consumismo. Toda a produção literária de Daniel Munduruku e sua formação acadêmica foram colocadas a serviço do Movimento Indígena que se iniciou nos anos de 1970. Dessa forma, tornou-se um “indígena em movimento”, procurando encontrar seu lugar dentro de um movimento político capaz de responder de forma efetiva aos diversos estereótipos engendrados na mente da sociedade brasileira. (MUNDURUKU, 2012). Para finalizar nossa introdução, é importante destacar que temas como a religião indígena, a sabedoria ancestral, a figura dos mais velhos aparecem e 13 reaparecem em muitas das obras de Daniel Munduruku, provando a “circularidade” do pensamento nativo. Por isso, o que parece repetição ou redundância em sua obra nada mais é que uma expressão da alma indígena que sabe que “o caminho seguro é aquele trilhado várias vezes”, como lhe ensinara seu avô Apolinário. Ou pode ser entendido como um recurso que o índio-autor encontrou para nos mostrar que ideias importantes devem ser permanentemente lembradas para atualizar a compreensão de quem as lê.

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CAPÍTULO I: DANIEL MUNDURUKU E A LITERATURA INDÍGENA

DANIEL MUNDURUKU: O INDÍGENA EM MOVIMENTO

Daniel Monteiro da Costa é o nome de batismo do indígena Daniel Munduruku, ou ainda Derpó Munduruku, nome na sua etnia, cuja população é hoje de aproximadamente 12.000 índios distribuídos em diferentes estados, como o Pará (onde nasceu e cresceu), o Amazonas (onde ocorreu o primeiro contato com a sociedade brasileira) e Mato Grosso (para onde migraram algumas famílias Munduruku, na década de 1980). Os Munduruku autodenominam-se wuyjuyu, que significa gente, povo ou pessoa. E a palavra “munduruku”, por sua vez, significa formiga gigante ou guerreira. Na explicação de Daniel, o fato de os Munduruku serem considerados formigas gigantes é uma alusão ao espírito guerreiro do seu povo. Assim nos explica, em entrevista a Roma Gonçalves Lemos:

Os Munduruku eram um povo terrível no sentido da guerra, ou seja, era um povo muito bem preparado para a guerra. A gente recebia e ainda recebe educação de guerreiro, nesse sentido a postura e disciplina são fundamentais. No passado, tínhamos um hábito guerreiro muito temido pelos outros povos, que era o hábito de cortar a cabeça dos inimigos em guerra, o que era transformado em troféus. Isso tinha um sentido espiritual, mágico, e que fazia com que o nosso povo fosse muito temido naquela região. Isso dava também, ainda somos, como o povo caçador de cabeça.6(LEMOS, 2010).

Sua geração é outra, reconhece que pertence a uma geração nova, que vai sendo criada para a guerra política, uma guerra mais simbólica, contra o preconceito étnico que tem mantido os indígenas “fora da história” e à margem da sociedade. Quanto aos meios de sobrevivência, recorrem à caça, à coleta de frutas, à pesca e tem desenvolvido a agricultura e a criação de animais domésticos. É um povo que tem se preocupado em encontrar outras formas de sustentação a

6 Esse aspecto da cultura Munduruku fora descrito por Henri Coudreau, em 1896, em sua viagem ao rio Tapajós e região. Apresenta detalhes, em seu livro Viagem ao Tapajós, do processo de mumificação da cabeça, transformada pelos Munduruku num troféu chamado de pariná. 15 fim de amenizar a falta de caça e pesca em determinadas épocas do ano. Por isso, tem explorado a seringa e a castanha. (MUNDURUKU, 1996). Acreditam que foram criados por Karu Sakaibô e muitos mitos foram elaborados para narrar as aventuras do Grande Espírito e contar as histórias que explicam a vida e seus mistérios. Daniel Munduruku tornou-se um dos autores indígenas que tem se destacado no cenário da literatura infanto-juvenil brasileira, com mais de 40 obras publicadas, através das quais busca a divulgação da cultura das etnias indígenas que até hoje resistem ao massacre iniciado desde o “achamento” da terrae brasilis. Infelizmente, sua gente tem enfrentado sérios problemas para proteger sua cultura e suas terras: “Há muita gente interessada na riqueza que existe sob o território Munduruku e sob os rios que alimentam esse povo”. (MUNDURUKU, 1996, p. 44). São posseiros, madeireiras, mineradoras e também as hidrelétricas que invadem as terras indígenas, comprometendo o espaço indígena e o seu patrimônio cultural. Daniel Munduruku nasceu em 28 de fevereiro de 1964, numa aldeia da região de Santarém (Pará), onde viveu até os 15 anos. Foi alfabetizado na Escola Salesiana do Trabalho, de onde saiu quando concluiu o primeiro grau, em 1979. Como ele mesmo afirma: “Nasci índio e cresci como índio mesmo, tendo recebido toda a minha formação escolar na própria cidade de Belém”. (MUNDURUKU, 1996, p. 69). Na verdade, nasceu índio, mas reconhece que não nasceu dentro de uma “casa” Munduruku, ou U’ka, como muitos índios de sua aldeia. Em suas memórias, Daniel ressalta: “Eu nasci na cidade. Acho que dentro de um hospital”. (MUNDURUKU, 2009b, p. 9). Continuou seus estudos e formou-se em Filosofia, foi professor da rede estadual e particular de ensino e trabalhou também como educador social de rua pela Pastoral do Menor de São Paulo, onde coordenou o grupo “Missões” que atuava na periferia da capital, no período de 1990 a 1995. Nessa ocasião, casa-se com Tania Mara na catedral de Lorena (SP) em 1990, para onde se muda. Nasceu, três anos depois, sua filha Gabriela e, em 1995, o menino Lucas; ambos com a promessa do pai de conhecerem os parentes indígenas do Pará. 16

Em 1992, ingressou no Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade de São Paulo para desenvolver pesquisa sobre o povo Munduruku. Em 2006, iniciou o doutorado em Educação na mesma instituição, concluindo o curso em 2010. Logo depois, em 2012, prosseguiu os estudos, como pós-doutorando em Literatura, na Universidade Federal de São Carlos, com previsão para terminar em 2014. Tornou-se uma das referências no Movimento Indígena brasileiro que, desde os anos de 1970, vem buscando o reconhecimento da cidadania dos povos indígenas e que, felizmente, tem superado o descenso populacional, chegando atualmente a um total de 817,9 mil índios, distribuídos entre as 305 etnias e os 274 idiomas distintos, na sua maioria derivados do tronco linguístico tupi.7 A apresentação da antropóloga Ceiça Almeida, em Mundurukando (2010c), traz-nos informações sobre a personalidade do autor indígena:

Daniel é um educador bem-humorado, fala manso e sabe rir da vida, talvez porque não tenha perdido completamente a alma de criança. No filme Tainá 2, interpreta um pajé bem atrapalhado. Mesmo assim, ao lado da calma e da harmonia espiritual ensinadas por seu avô Apolinário, ele também expressa, com vigor e sem meias palavras ideias sobre a manutenção e respeito aos saberes milenares dos povos indígenas. (p. 21).

Para divulgar esses saberes indígenas, serve-se da literatura e sua primeira publicação foi em 1996, com Histórias de Índio, um livro que surpreendeu por ser a primeira vez que um indígena publicava um texto para o público infantil não-indígena. A sua produção literária tornou-se um importante instrumento de resistência diante da política oficial (tanto no passado como no presente) de extermínio físico, cultural dos índios que acabaram introjetando um complexo de inferioridade, tornando-os pessoas “fora do lugar”8, estrangeiros na própria terra, sem autoestima, sem identidade. Daniel Munduruku é um dos indígenas (ao lado de guerreiros como Yaguarê Yamã, Marcos Terena, Kaká Werá Jekupé, , Darlene Taukane, Eliane Potiguara, Graça Graúna, Roni Guará, Tiago Hakiy e Cristiano

7 Dados do Censo de 2010. 8 A expressão “fora do lugar” é a mesma do título do livro de memórias de Edward Said (1935-2003), a qual utilizamos aqui para expressar o sentimento de deslocamento dos índios dentro das terras de que eram os guardiões. 17

Wapichana) que escrevem para unir os povos, para combater o preconceito étnico. Todos entendem a literatura como um aliado importante contra o preconceito, já que “o desconhecimento da vida e da cultura dos muitos povos indígenas tem servido de justificativa para a exclusão dos indígenas”. (MUNDURUKU, 2009, p. 11). Esses índios-autores pretendem mostrar a (cosmo)visão indígena, a cultura dos seus antepassados, enfim, usam a literatura como instrumento de luta e resistência a fim de “pacificar os brancos”. Daniel Munduruku organiza o Encontro de Autores Indígenas, desde 2003, um espaço de diálogo e reflexão coletiva dentro do evento anual da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, no Rio de Janeiro. Para esse primeiro encontro, reuniram-se no salão da FNLIJ doze escritores indígenas, entre os mais de trinta identificados inicialmente. (MUNDURUKU, 2010c). Desses encontros já participaram Eliane Potiguara, Marcos Terena, Eli Mucuxi, Cristiano Wapichana, Yguarê Yamã, Graça Graúna, Olívio Jekupé e outros tantos que estão escrevendo para as crianças, para os jovens de todo o país, com o objetivo também de chegar à escola onde os alunos aprenderão que o índio também construiu a nação brasileira, assim como o negro, o caboclo, o mameluco... Nesse ano de 2003, houve o primeiro encontro também organizado pelo INBRAPI (Instituto Brasileiro de Propriedade Intelectual), um evento avaliado por Jekupé (2009) como um importante espaço para a divulgação dos livros escritos pelos indígenas que, só assim, é que poderão ser conhecidos por todos os cantos do Brasil e que passarão a ser vistos pelos editores. Daniel é presidente dessa instituição, que é uma organização não- governamental criada em 2001, cuja missão é proteger os bens e direitos sociais, relativos ao meio ambiente e ao patrimônio intelectual dos povos indígenas, que durante anos pertenceu aos doutores “donos dos índios”. A criação desse instituto, como ele próprio comenta, “[...] nos fez pensar a respeito dos direitos autorais coletivos e, ao mesmo tempo, questionar o uso indevido das histórias tradicionais pela academia”. (MUNDURUKU, 2010c, p. 69). O INBRAPI dividiu-se em núcleos: criou-se o NEARIn, Núcleo de Escritores e Artistas Indígenas, no qual se incluem não só escritores, mas 18 também ilustradores, músicos, artesãos, pois, segundo Daniel Munduruku, todos esses artistas indígenas seriam responsáveis pela propriedade cultural. Em seguida, criou-se o NuMin, Núcleo de Mulheres Indígenas, para discutir as questões relativas às mulheres, tendo como uma das diretoras Eliana Potiguara.9 Há também o NAI, Núcleo de Advogados Indígenas e o mais recente é o NEI, Núcleo de Educação Indígena. Diríamos que, com esse trabalho de atender às várias questões do universo indígena, o escritor Munduruku tece uma teia de relações entre todos aqueles que querem recuperar a voz abafada pela colonização: Bororo, Krenak, Yanomami, Ticuna, Carijó, Tamoio, Potiguara e tantas outras etnias. O esforço é de proteger a cultura indígena, e deixar registradas suas lendas, seus mitos, suas culturas para que sejam reconhecidas como uma das matrizes constituintes da formação do povo brasileiro, além dos portugueses e dos negros. (RIBEIRO, 2006). Como a arma de luta é a literatura, Daniel Munduruku traz em sua obra informações sobre a vida dos índios, seus valores e sua cultura. Assim, divulgando-os, acredita que crianças, jovens e adultos poderão construir um país mais tolerante com a diversidade, onde consigam encarar as tribos e seus índios como parte da História do Brasil e possam (con)viver numa pátria onde os seus direitos sejam reconhecidos e respeitados. Na visão de Daniel Munduruku, a palavra escrita é um instrumento para questionar a sociedade da tecnologia e do egoísmo. Também uma alternativa de leitura do mundo, do tempo e da experiência de estar vivo. E acrescenta: “Questionamos a sociedade que valoriza o esquecimento e a cínica crença deque o indivíduo está acima e pode tudo, até destruir um mundo que ele não fez”. (MUNDURUKU, 2010c, p. 71). Dessa forma, o papel da literatura no contexto do Movimento Indígena brasileiro, na análise de críticos de literatura, é o de:

“[...] escancarar a vergonhosa relação que há entre o Brasil e os indígenas, também brasileiros. Através da ficção, da poesia, do romance, da crônica, da novela, entre outros gêneros literários, podemos esclarecer, educar, motivar e

9 Mas, já em 1987, Elaine Potiguara criara o Grupo de Mulheres Indígenas (GRUMIN) para defendê-las da violência moral, física e étnica. 19

aproximar estas duas sociedades tão próximas e tão distantes.(BAILEY; ZILBERMAN, 2010, p. 222).

A sua proposta é sempre a de estabelecer um diálogo com o outro, visando à desconstrução de preconceitos com relação aos índios que, numa visão simplista, são apresentados, quase sempre, como pessoas que vivem nas matas, que andam nus, que comem pessoas e que cultuam Tupã. Afirmando-se brasileiro-indio, Daniel Munduruku entende que, assim como os negros, os italianos, os japoneses contribuíram de alguma forma para a construção do Brasil, os indígenas também têm algo a oferecer, além de muitas palavras que se incorporaram ao nosso léxico. Ele e todos os indígenas escritores pretendem contar as histórias por eles mesmos, não mais na voz de antropólogos, etnólogos que os viam como objetos de investigação e análise. Para Ceiça Almeida, em Mundurukando (2010), Daniel Munduruku é “alguém que quer manifestar sonhos, dizer desejos e compartilhar esse saber que, por muito tempo, foi esquecido pelo saber acadêmico”. (p. 23). Um saber-objeto que se transforma em um saber-sujeito, capaz de construir uma alternativa de convivência e de vida para as pessoas. Enquanto excluídos, foram muitas vezes, ora objeto da escrita de historiadores de literatura que pesquisavam os modos de figuração das camadas mais pobres na poesia, na prosa e no teatro, ora entendidos como sujeitos do processo simbólico, quando se buscou registrar a sabedoria popular ou o folclore, no início do século XIX. Com a escrita indígena de Daniel Munduruku, temos uma outra postura diante da exclusão social, uma vez que temos nele o sujeito que fala de sua própria cultura indígena. Enfim, temos uma representação da resistência da minoria étnica marginalizada para quem os “atos de ler e escrever podem converter-se em exercícios de educação para a cidadania”. (BOSI, 2002, p. 261). Como a flor de gesta – que vinga nas encostas do Vesúvio cobertas de lavas e cinzas – a literatura de Daniel Munduruku é símbolo de resistência em terras brasileiras cobertas de preconceito e ganância, onde muita luta deverá ser travada para eliminar essas ervas daninhas. 20

O mito de Prometeu, na análise de Bosi (2002), é a alegoria perfeita da revolta do ser humano contra o destino. No nosso entendimento, Daniel Munduruku representa aquele que luta para que sua cultura não seja devorada pela “civilização”, sempre procurando caminhos para o diálogo entre os povos. Ele defende a divulgação da cultura indígena na sua diversidade, porque entende que ela tem um passado, uma ancestralidade (tema tão recorrente em sua obra), uma tradição que precisa ser continuada. Escreve histórias que devem ser recontadas, mesmo que não estejam dentro de uma lógica ocidental, mas acredita que devem “ser escutadas ou lidas com o coração”. (MUNDURUKU, 2009a). Aliás, como sempre ressalta, sua cultura tem uma maneira de ver o mundo, uma cosmovisão que difere bastante daquela que a nossa sociedade conhece. Segundo o autor, há uma sabedoria no modo de viver do indígena:

Para nós não há uma divisão entre as realidades que podem ou não ser percebidas pelo indivíduo pertencente à sociedade indígena. Tudo está no grande círculo e faz parte de uma teia tramada pela vida de cada um e de todos. (MUNDURUKU, 2009a, p. 48).

Tudo é uma coisa só, uma grande teia, da qual somos fios, lembrando a metáfora do Chefe Seattle (1786-1866). Essa metáfora empregada pelo indígena norte-americano aparece em algumas obras de Daniel Munduruku, como em seu livro A palavra do Grande Chefe (2008), uma adaptação livre do discurso do líder indígena dos povos Suquamish e Duwamish ao emissário do governo de Washington (EUA) que pretendia tomar-lhe as terras e transferi-los para reservas indígenas. Outra sabedoria que ele destaca na sociedade indígena é a maneira como encara o tempo presente: este é de fato um presente de Deus, se não fosse bom não teria esse nome. Para ele, o índio não tem crise existencial porque vive o presente, sem esquecer o passado e sem desejar o futuro. (MUNDURUKU, 2009a). No entendimento das sociedades indígenas, a Terra é a grande mãe e precisa ser reverenciada por meio das danças, dos cantos, dos sons dos maracás, e a ela devemos gratidão. 21

Tudo isso é aprendido desde pequeno. As crianças são educadas desde que nascem e “são ensinados a elas os caminhos do espírito, da liberdade, da vida comunitária e da responsabilidade social”. (MUNDURUKU, 2009a, p. 60). Para Daniel Munduruku (2009a), a educação tem uma função primordial na formação do indivíduo: “Educa-se para a compreensão e para a colaboração e não para a disputa de poder; não para a competição e sim para a paz”. (p. 70). Nesse contexto, o professor é detentor do maior instrumento que alguém poder ter: a palavra. Faz uma crítica à educação ocidental que vive uma crise de valores por estar inserida numa “sociedade que transformou a convivência humana numa permanente concorrência, deixando as pessoas à mercê do tempo”. (MUNDURUKU, 2009a, p. 80). Todas essas temáticas vão estar presentes em suas obras. Para falar de sua gente, da cultura indígena, Daniel Munduruku utiliza-se dos mais variados gêneros do discurso do mundo ocidental: conto, crônica, diário, memória, entrevista, novela, enciclopédia, lenda. Dessa forma, a construção de seus textos “decorre da associação de conhecimentos provenientes de uma pluralidade cultural e da interação de textualidades indígenas com gêneros e configurações textuais ocidentais”. (THIÉL, 2012, p. 93). Os gêneros do discurso devem ser entendidos como enunciados de natureza histórica, sócio-interacional, ideológica e linguística, relativamente estáveis, de acordo com as reflexões de M. Bakhtin sobre o tema. Na explicação de Marcuschi (2005), os gêneros: “São entidades sócio- discursivas e formas de ação social incontornáveis em qualquer situação comunicativa nas rotinas sociais de nosso dia a dia”. (p. 24). Para exemplificarmos o trabalho do autor-indígena com os gêneros discursivos em sua obra literária híbrida, podemos citar os mitos e as lendas, recontados no seu livro Contos indígenas brasileiros (2005), em que reúne oito narrativas de diferentes etnias10. Além das narrativas míticas, encontramos também as fábulas que são recontadas no livro As peripécias do jabuti (2007), onde o personagem central

10 Em 2013, temos a publicação em inglês intitulada Amazonia: indigenous tales from Brazil, uma compilação de doze mitos recontados por Daniel Munduruku e traduzidos por Jane Springer. 22 pode ser uma alegoria das relações humanas, em que a esperteza e a sabedoria valem mais que a força. Nessa coletânea, o jabuti vence os seus adversários – a raposa, a onça e o veado-catingueiro – com a inteligência e o pensamento11. Daniel Munduruku escreve sobre a cultura indígena, conta episódios de sua vida na cidade grande e reúne informações sobre os povos indígenas do Brasil (língua, hábitos e costumes) em Histórias de Índio, de 1996. Seu olhar indígena – em Crônicas de São Paulo (2009c) - desvela a capital paulista, onde os nomes dos bairros, dos rios e de muitos lugares da metrópole têm sua origem na ancestralidade nativa. Mergulha também em suas memórias, quando publica Meu avô Apolinário (2009b), cuja narrativa está baseada nas doces lembranças que traz de seu avô, aquele que o ensinou a ser índio. Essa obra foi escolhida pela UNESCO para receber menção honrosa no Prêmio Literatura para Crianças e Jovens na Questão da Tolerância. Em Catando piolho, contando histórias (2006a), as reminiscências do contador de histórias estão recheadas de poesia, ao falar da mãe, do pai e do pajé, todos tidos como verdadeiros educadores, que passavam ensinamentos num momento de afago público, enquanto se catava piolho. Uma publicação bilíngue (Português/Munduruku), Parece que foi ontem (2006b), ensina aos pequenos leitores o valor da tradição para os indígenas que reverenciam o fogo, a água, a terra, enfim, a Mãe-Natureza. Reflexões sobre a educação, sobre os valores da cultura indígena em contraposição aos do mundo capitalista, sobre a história do massacre étnico são apresentadas em forma de diálogo em O banquete dos deuses (2009a). Com o livro Coisas de Índio (2010) consegue apresentar um rico material “enciclopédico” para crianças e jovens, repleto de informações acerca dos povos indígenas do Brasil, uma obra que funciona como material de pesquisa. O gênero discursivo “diário” é explorado por Daniel Munduruku na obra O diário de Kaxi: um curumim descobre o Brasil (2001), ilustrada pelas crianças Munduruku da aldeia Katõ. O pequeno índio de apenas nove anos conta aos

11 Vale lembrar que dez “lendas” com o jabuti foram reunidas por Couto de Magalhães, em O selvagem, de 1876, livro mencionado na introdução da tese. 23 amigos da aldeia as aventuras de sua viagem à cidade grande, do dia 13 ao dia 21 de abril. A “entrevista” de Ceiça Almeida a Daniel Munduruku está registrada no livro Mundurukando (2010), no qual o autor indígena faz reflexões sobre o modo de pensar e agir dos povos indígenas. Podemos citar, por fim, o gênero “novela” presente na obra intitulada Todas as coisas são pequenas (2008), que traz para o leitor questões importantes para se pensar sobre os caminhos que a humanidade tem percorrido, os seus valores e suas crenças, sob o olhar dos indígenas. Todos esses gêneros discursivos explorados por Daniel Munduruku – muitas vezes considerados gêneros menores – são colocados a serviço da causa indígena, refletindo sobre a diversidade cultural e a necessidade de lutar pelo reconhecimento dos povos indígenas.

A EXPERIÊNCIA DE AUTORIA INDÍGENA: A ESCRITURA NATIVA

Ao escrever, dou conta da minha ancestralidade; do caminho de volta, do meu lugar no mundo.

(Graça Graúna)

Sabe-se que cronistas e religiosos do século XVI viam a cultura nativa desprovida da ordem, da religião e os julgavam, portanto, falantes de uma língua da falta: sem “r”, sem “l” e sem “f” em suas palavras. Talvez essa seja a primeira intromissão ideológica na ortografia dos nossos índios feita por Pêro de Magalhães de Gândavo (1540-1580):

Alguns vocábulos há nela se que não usam senão as fêmeas, e outros que não servem senão para os machos: carece de três letras, convém a saber, não se acha nela F, nem L, nem R, coisa de que espanto assim não têm Fé, nem Lei, nem Rei e, desta maneira vivem desordenadamente sem terem além disto conta , nem peso, nem medida. (GÂNDAVO, 1982, p. 34).

Essa observação de Gândavo, formulada em 1576, é considerada por Bastos (2011) “a mais esdrúxula de todas sobre a ausência de um poder formalmente constituído, secular ou sagrado, e ao mesmo tempo a de mais 24 larga difusão”. (p. 37). Repetiram-na Gabriel Soares, Frei Vicente do Salvador, Padre Simão de Vasconcelos, Padre Anchieta e Padre Antônio Vieira. Todos esses religiosos estavam preocupados em catequizar e salvar as almas indígenas. Para realizar tal intento, Padre Anchieta (1534-1597) criou a “língua geral da costa” ou Nheengatu, um instrumento de evangelização, no qual os índios teriam suas próprias línguas reduzidas a um modelo de escrita, baseado no alfabeto e nas regras gramaticais latinas. Como se percebe, as línguas americanas foram gramaticalizadas e dicionarizadas pelos missionários “empenhados que estavam tão somente em erguer com solidez a torre do Evangelho”. (DAHER, 2012, p. 98). O que houve, na verdade, foi o processo de “aculturação linguística” empreendida pelos missionários que enxertavam o vocábulo português no tronco do idioma nativo, com resultados muitas vezes desiguais. (BOSI, 1992). Foram séculos de destruição étnica já conhecida por todos nós. Só no século XX, mais especificamente na década de 1970, tivemos um despertar da consciência indígena para a necessidade de se organizarem com o intuito de defenderem seus direitos, suas terras e suas culturas. Esse período da nossa história:

representou o momento de estruturação de diferentes organizações, com o objetivo de defesa dos territórios e de luta por outros direitos. O movimento ganhou corpo e visibilidade nacional com as grandes reuniões organizadas pela União das Nações Indígenas – UNI – juntando um número expressivo de povos indígenas. (RCN para as Escolas Indígenas, 1988, p. 26).

Organizando-se, os indígenas começaram a cobrar do Estado a promessa de igualdade jurídica, o que fez com que a figura do índio se destacasse no cenário nacional “na busca política de um espaço próprio, que reivindica a diferença e recusa a fatalidade de uma sujeição dissolvida em um tipo único”. (PAOLI, 1983, p. 24). O apoio veio também de organismos religiosos, como o Conselho Indigenista Missionário (CIMI)12, criado em 1972, com a intenção de levar os indígenas ao conhecimento de seus problemas, de seus inimigos e, consequentemente, conduzindo-os à organização para a luta. Com esse novo

12 A proposta de criação do CIMI ocorreu no III Encontro de Estudos sobre a Pastoral Indigenista, realizado no Instituto Anthropos, em Brasília. Podemos entender essa mobilização como uma nova postura da Igreja diante da alteridade cultural. 25 aliado, “a questão indígena no Brasil deixou de ser um fenômeno etnográfico para interessar aqueles que lutam pela transformação da sociedade brasileira”. (SOUZA; BESSA, 1981, p. 38). Em 1974, o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) reuniu, pela primeira vez, um grupo de lideranças indígenas em assembleia realizada em Diamantina, Mato Grosso. É importante destacar que o CIMI é um órgão vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que propõe uma nova prática de evangelização, baseada numa postura de respeito às muitas culturas indígenas existentes no Brasil e de parceria, denunciando as invasões de suas terras por madeireiras, a morosidade do poder judiciário para tratar de temas da demarcação de terras e das reivindicações de emendas na Constituição. Todos esses assuntos são tratados no jornal Porantim13 do CIMI, cuja circulação se faz em todo o país, inclusive dentro das aldeias indígenas. Segundo Barbosa (2011), o que se chamou de Movimento Indígena Brasileiro, articulando-se desde a década de 1970, foi “um esforço conjunto e articulado de lideranças, povos, organizações indígenas objetivando uma agenda comum de luta, como é o compromisso pela terra, pela saúde, pela educação [...]”. (p. 25). Esse ativismo indígena “civil” começa, a rigor, em 1978, quando o governo Geisel ameaçava emancipar os índios, isto é, declará-los não índios perante a lei. Assim, eximia-se da responsabilidade de protegê-los, juntamente com suas tradições, seus usos e costumes e, o mais importante, suas terras. Com o Movimento Indígena Brasileiro nasceu uma visão pan-indígena, fruto do entendimento dos povos nativos de que era preciso lutar pelos interesses de todos e não se voltarem para os interesses locais. Foi uma luta para a recuperação do ethos tribal, ou seja, a recuperação da autoconfiança que dá aos povos indígenas o alento para enfrentar outros povos. (MUNDURUKU, 2012).

13 Na língua Sateré-Mawé, porantim significa remo, arma, memória. 26

Todo esse esforço coletivo também se refletiu na literatura que passou a dar voz às minorias étnicas.14 Vivíamos, neste período, a ditadura militar, “um momento muito triste da nossa história”, como nos conta Daniel Munduruku, ainda muito pequeno nessa época. Os efeitos do desenvolvimento econômico dos governos militares sobre os povos indígenas brasileiros não foram nada positivos, ainda que “protegidos” pela Fundação Nacional do Índio:

Entre 1970 e 1974, a política indigenista brasileira tornou-se cada vez mais comprometida com a política global de desenvolvimento econômico do regime militar brasileiro. Durante esse período, a Fundação Nacional do Índio passou a ser o principal cúmplice nos processos de etnocídio desencadeados contra as tribos da Bacia Amazônica. Para definir a situação nos termos mais simples, pode-se dizer que sua política indigenista “reformada” acelerou, em vez de deter, os processos de destruição étnica que caracterizam tão amargamente a história das frentes de expansão no Brasil. (DAVIS, 1978, p. 104).

Com o intuito de preservar a cultura dos índios e integrá-los progressivamente à nação brasileira, foi criado em 1973, o Estatuto do Índio que previa a garantia aos indígenas da posse permanente de suas terras, uma tarefa que competia à União, aos estados e aos municípios. Garantir a terra e o território para os indígenas é muito mais que ter o espaço físico e geográfico. Há toda a simbologia que carrega como espaço primordial do mundo humano e do mundo dos deuses que povoam a natureza. (BARBOSA, 2011). Para Daniel Munduruku (2009a), devemos reverenciar a natureza, da qual fazemos parte e, para ele, todos os povos indígenas têm em comum um profundo respeito por ela. Na década de 1980, dentro do contexto de redemocratização do país, promulga-se a Constituição de 1988, que “foi o primeiro texto constitucional que explicitou de forma ampla as relações do estado brasileiro com os povos indígenas”. (SANTOS, 2004, p. 91). No capítulo VII, cujo título é Dos Índios, podemos destacar os seguintes artigos:

14 Nesse período, assim como os indígenas, as mulheres, os gays e os negros, a partir de movimentos sociais, buscavam redefinir suas identidades por tantos anos marginalizadas e negadas pelo poder hegemônico. 27

Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças, tradições e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à união demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

§ 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para as suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários ao seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.

[...] Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressarem juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo. (BRASIL, 1997, p. 126-127).

Temos, enfim, o reconhecimento da cultura indígena e seu direito a terra assegurados por lei federal, assim como o direito à defesa jurídica, quando ameaçados por ruralistas, fazendeiros, madeireiros entre outros. Mas, nas mãos do Senado Federal estaria a decisão final, fato que causaria sérios danos para os povos indígenas, pois representou um ataque aos seus direitos territoriais. Ainda assim, de acordo com Marés (1999), a Constituição democrática de 1988 representou um avanço em relação a tudo que tratava do indígena anteriormente. Aliás, o advogado de povos indígenas cita sete avanços, que reproduzimos a seguir:

1) Ampliou os direitos dos índios reconhecendo sua organização social, seus usos, costumes, religiões, línguas e crenças; 2) considerou o direito à terra como originário, isto é, anterior a lei ou ato que assim o declare; 3) conceituou terra indígena, incluindo aquelas necessárias não só à habitação, mas à produção, à preservação do meio ambiente e á sua reprodução física e cultural; 4) pela primeira vez admitiu-se no Brasil, em nível constitucional, que existem direitos indígenas coletivos, seja reconhecendo a organização social indígena, seja concedendo à comunidade o direito de opinar sobre o aproveitamento dos recursos naturais e o de postular em juízo; 5) tratou com mais detalhes, estabelecendo assim melhores garantias, da exploração dos recursos naturais, especialmente os minerais, para que o que exige prévia anuência do Congresso Nacional; 6) proibiu a remoção de grupos indígenas, dando ao Congresso Nacional a possibilidade de estudo das eventuais e estabelecidas exceções; 7) mas acima de tudo chamou os índios de índios e lhes deu o direito de continuarem a sê-lo. (p. 58-9).

Na visão de Munduruku (2012), com a Constituição Federal do Brasil de 1988, inaugurou-se uma nova concepção de política indigenista:

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Assim, deu-se início a uma nova era de interação entre os povos indígenas e o estado brasileiro, agora em situação de igualdade, de horizontalidade, norteada pelo respeito à diversidade, por meio do reconhecimento da pluralidade de culturas e da garantia de proteção especial às minorias indígenas. (p. 36).

No entanto, havia a necessidade de romper a barreira que ainda imperava entre governo e indígenas, estes mantidos numa situação de tutelados, incapazes de gerenciar seu próprio destino. A luta do Movimento Indígena, desta forma, baseou-se na necessidade de autoafirmação, de reconhecimento da sua condição de sujeitos de direito da sociedade brasileira. Na avaliação de Daniel Munduruku, a década de 1980 representou uma fase de afirmação de alianças com muitos segmentos da sociedade civil e com setores populares. Para o autor, novas alianças surgiram fortalecendo a representatividade dos líderes envolvidos com o movimento nacional:

Esta mobilização foi responsável pela aproximação entre indígenas e seringueiros que gerou a ”Aliança dos Povos da Floresta”. Por outro lado, a mobilização social gerada pelo movimento desagradou em muito o governo militar, que passou a perseguir e acusar os líderes de abrir as fronteiras aos estrangeiros. Era tudo, na verdade, uma tentativa de desestabilizar o movimento, acusando-o de ser uma ameaça à integridade nacional. (MUNDURUKU, 2012, p. 55).

Nos anos de 1990, uma nova dinâmica se vislumbra na relação do estado brasileiro com o povo indígena, pois muitos jovens indígenas passaram a frequentar a escola, a ter diploma universitário ou a fazer cursos técnicos. Passaram a ter uma participação cidadã numa sociedade em transformação graças às novas oportunidades de inserção social. Foi um período marcado pela busca do cumprimento das promessas apresentadas na Constituição recém-aprovada, principalmente quanto à demarcação das terras indígenas, o que não foi cumprido. Na visão de Munduruku (2012), a década de 1990 foi um período importante na consolidação de projetos destinados ao atendimento das novas demandas geradas pela política do Estado brasileiro:

Diversos projetos foram desenvolvidos ou propostos por comunidades, especialmente aqueles voltados à proteção dos territórios já demarcados ou em processo de demarcação; projetos de desenvolvimento sustentável; formação de professores bilíngues; implantação de projetos de radiofonia, realização de cursos de formação profissional destinados à capacitação e 29

treinamento de pessoal indígena para assumir serviços e funções dentro de suas próprias organizações, entre outros. (p. 57).

Além de todas essas ações, a mobilização dos povos indígenas também se fez presente no cenário nacional, com o objetivo de ocupar os espaços políticos institucionais. A Marcha Indígena, por exemplo, reuniu 3.600 indígenas que percorreram muitas cidades, realizando reuniões e lançando manifestos “com o objetivo de sensibilizar a sociedade brasileira no sentido dos direitos, não apenas indígenas, mas de todos os cidadãos”. (MUNDURUKU, 2012, p. 58). O grande desfecho dessa caravana foi a Conferência Indígena, em Porto Seguro, em abril de 2000. Reuniu cerca de 6.000 indígenas na aldeia Pataxó de Coroa Vermelha, onde 140 povos de todo o país estavam representados. A avaliação de Daniel Munduruku a respeito do Movimento Indígena é positiva, embora seja divergente da opinião de muitos autores que entendem que houve incompetência gerencial, falta de qualificação profissional por parte dos indígenas. Segundo o autor indígena, o Movimento Indígena mostrou ao mundo e ao Brasil que a política de assimilação, ou seja, da negação étnica não se consolidou, pelo contrário, os indígenas brasileiros construíram uma consciência coletiva, uma memória coletiva. Dessa maneira, reconhece-se o caráter educativo da mobilização dos indígenas, porque trouxe repercussões na vida brasileira, na juventude e nos povos indígenas, uma vez que houve uma “tomada de consciência e a aquisição de instrumentais teóricos por parte das lideranças que disseminavam entre seus pares uma visão nova de participação na história brasileira”. (MUNDURUKU, 2012, p. 211). No âmbito internacional, a Organização das Nações Unidas (ONU) aprova a Declaração das Nações Unidas sobre Direitos dos Povos Indígenas, em setembro de 2007, resultado das reivindicações atuais dos povos em todo o mundo. A declaração tem como principais pontos a autodeterminação (o direito de escolher livremente seu status político, seus sistemas próprios de saúde, educação e financiamento), o direito de povos indígenas serem consultados antes de medidas administrativas ou legislativas, o direito à reparação pelo 30 furto de suas propriedades cultural, intelectual ou espiritual, o direito de manter suas culturas e o direito ao acesso a todos os meios de comunicação. No que se refere à questão da propriedade cultural, a FUNAI aprova a Portaria n. 177/2006, que regulamenta a entrada de pessoas em terras indígenas e a cessão de direitos autorais e de imagem. A luta do Movimento Indígena continuou, uma vez que os direitos dos índios assegurados na Constituição Federal de 1988 não foram respeitados em virtude de interesses de mineradoras, latifundiários e ruralistas que ocupam as terras indígenas e exploram os seus recursos naturais. Podemos lembrar um fato mais recente que foi a mobilização nacional das comunidades indígenas de todo o país, de 30 de setembro a 5 de outubro de 2013, contra projetos de lei e emendas à Constituição que aniquilam os direitos indígenas ao território, como PEC 215/00, PEC 237/13, PL 1610/96, PLP 227/1215. A educação indígena também foi um direito reconhecido por lei, assegurado pelo Estado brasileiro e se constituiu um tema de luta para o reconhecimento e respeito à diversidade dos povos ameríndios. Hoje a escola indígena tem como meta a manutenção dos costumes de cada povo, incluindo o ensino de língua materna. A Constituição Federal de 1988 garante a prática do ensino bilíngue nas escolas para índios. No § 2º do artigo 210, temos: “O ensino regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem”. (BRASIL, 1999, p. 117). De acordo com o censo escolar (MEC/2010), existem 2.817 escolas indígenas de Ensino Fundamental em 26 estados brasileiros, sendo que a maioria delas está concentrada na região Norte. Nelas estudam 175.098 alunos e lecionam 14.715 professores nativos. Reconhece-se o desafio de assumir uma educação escolar que possui tempos e espaços educativos muito próprios e que tem a tradição, a memória

15 A PEC 215/00 pretende tirar do Executivo e transferir ao Congresso a prerrogativa de demarcar as terras indígenas. A PEC 237/13 propõe um acréscimo ao art. 176-A da Constituição Federal que torna possível a posse indireta de terras indígenas a produtores rurais na forma de concessão. A PL 16010/96 regulamenta a mineração em terras indígenas e a PLP 227/12 aponta exceções de uso exclusivo dos indígenas das terras tradicionais, em caso de relevante interesse público da União. 31 coletiva como fundamento. Na opinião de Bonin (2008): “É desafiador colocar sob o controle uma instituição que reproduz relações capitalistas [...] e torná-la adequada a culturas que vivem e pretendem continuar vivendo de acordo com outras racionalidades”. (p. 96). Segundo a pesquisadora Circe Bittencourt, citada por Funari; Piñon (2011), a escola pode exercer um duplo papel:

A escola pode servir como elemento que favorece e acelera a perda da cultura anterior, que é substituída por um saber escolar criado pelos brancos, mas ela pode servir para ampliar suas formas culturais de comunidade, situação que ocorre, principalmente, quando se desenvolve a alfabetização bilíngue. (p.103).

Vale lembrar aqui que, logo no final dos anos de 1970, criava-se a primeira Escola de Formação de Professores Indígenas, no Acre, apoiada pela Comissão Pró-Índio, uma ONG defensora da causa indígena na região. Em 1996, com a aprovação da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação, a oferta do ensino regular para os povos indígenas fica assegurada:

Art. 78 – O sistema de Ensino da União, com a colaboração das agências federais de fomento à cultura e de assistência aos índios, desenvolverá programas integrados de ensino e pesquisa, para oferta de educação escolar bilíngue e intercultural aos povos indígenas, com os seguintes objetivos:

I. proporcionar aos índios, suas comunidades e povos, a recuperação de suas memórias históricas; a reafirmação de suas identidades étnicas; a valorização de suas línguas e ciências;

II. garantir aos índios, suas comunidades e povos, o acesso às informações, conhecimentos técnicos e científicos da sociedade nacional e demais sociedades indígenas e não índias. (CARNEIRO, 2011, p. 519).

Trata-se de valorizar a diversidade cultural, de permitir que os índios sejam reconhecidos nas suas especificidades e que sejam educados de acordo com seus padrões culturais. Seria uma forma de resgatar “o enorme débito que a sociedade brasileira tem para com os índios e para com os afrodescendentes” (CARNEIRO, 2011, p. 205). A Lei de Diretrizes e Bases de 1996 abrange as escolas indígenas e determina:

Art. 26-A – Nos estabelecimentos de Ensino Fundamental e de Ensino Médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro- brasileira e indígena.

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§ 1º - O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil.

§ 2º - Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileiras. (LDB, In: CARNEIRO, 2011, p. 204).

Em 1998, outra lei também foi publicada para estruturar a educação indígena: o Ministério da Educação e do Desporto elaborou o Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas, com o objetivo de dar suporte na elaboração de currículos mais próximos das realidades de cada cultura e colaborar na formação de educadores na sua prática pedagógica. É importante que o contexto cultural seja levado em consideração porque, muitas vezes, as atividades da aldeia e o seu calendário social interferem na frequência dos alunos na escola. Por exemplo, em época de pescaria coletiva ou de colheita, os estudantes vão ajudar seus pais e deixam de ir às aulas. Assim, a educação escolar diferenciada “se manifestaria na organização do tempo, de forma equilibrada entre escola e a rotina cultural das comunidades e dos indivíduos”. (MONTE, 2008, p. 113). Mas, a legislação não se limitou às escolas da floresta. Somou-se à LDB, a aprovação da lei 11.645, sancionada em 2008, que incluía no currículo oficial das escolas públicas e privadas de educação básica o ensino obrigatório do estudo da História e Cultura afro-brasileira e indígena, a fim de resgatar as contribuições do negro e do índio nas áreas social, econômica e política (até então, os indígenas foram negligenciados pela lei 10.639/2003, que tratava apenas de estudos relacionados aos afro-brasileiros). Anos mais tarde, encontraremos no Plano Nacional de Educação (PNE), de 2011, um capítulo dedicado à educação indígena, pois se reconhecia a negação dos costumes e da cultura de todas as etnias que foram forçadas a assimilar os costumes que não eram seus, acabando por negar a sua identidade. 33

Contra essa situação adversa, a vigésima primeira (e última) meta do PNE propõe:

Promover a correta e ampla informação da população brasileira em geral, sobre as comunidades e culturas indígenas, como meio de combater o desconhecimento, a intolerância e o preconceito em relação a essas populações. (PLANO NACIONAL DA EDUCAÇÃO, 2006, p. 147).

Dentro dessa mesma perspectiva, Daniel Munduruku usa a palavra para educar para o respeito à diversidade. Atribui aos detentores da palavra - os educadores - a missão de lutar pela vida, pela paz no campo e na cidade, pela harmonia entre os povos. (MUNDURUKU, 2009a). É uma luta engajada do escritor-indígena que hoje se utiliza da literatura para contar histórias de si e de seu povo. O domínio da escrita serviu para expressar o universo das minorias étnicas e para reconquistar o espaço dos índios na sociedade brasileira. Assim, a literatura passou a ser uma importante ferramenta de luta para os indígenas brasileiros que estão reconstruindo sua história. Surge como uma tentativa de escrevê-la dentro de uma perspectiva dos próprios índios que, por sua vez, sempre foram escritos e conhecidos a partir da visão do outro e talvez nem se reconheçam nas narrativas escritas pelo homem branco. Todo esse aparato legal apresentado acima foi resultado da mobilização dos povos indígenas em defesa da terra e de seus direitos “representando uma ruptura especialmente com o longo passado de dependência do Estado que remonta aos primórdios da colonização portuguesa na América”. (MONTEIRO, 2004, p. 223). Ao falar das mudanças profundas que estavam ocorrendo na sociedade nacional e de uma civilização emergente, Ribeiro (2010) antevia um processo de transfiguração étnica, no qual os índios reconstruiriam suas vidas: “Lavados das feridas da exploração, curados os vexames da opressão, eles se reconstituirão como culturas autênticas para florescer outra vez como civilizações autônomas”. (p. 106). Nesse contexto de transformação social, escola indígena – enquanto espaço da coletividade – passou a ter um papel importante no fortalecimento das identidades étnicas, uma vez que passou a ensinar prioritariamente a 34 língua nativa, além da língua portuguesa, constituindo-se, assim, uma escola bilíngue. Passou a ser uma ponte entre a cultura indígena revelada nos livros escritos por eles e o mundo dos não-índios, ligando saberes diferentes que não se excluem. O livro passa a ser um objeto no qual se faz a “reconstrução da memória indígena no Brasil, embora também se construa sobre os escombros da sua história, sobre o esquecimento do seu passado. (ALMEIDA; QUEIROZ, 2004, p. 201). Neste espaço importante da floresta, aprende-se a escrever e a escrita passa a ser um instrumento para configurar suas identidades: “Os indígenas brasileiros, através da aquisição e do domínio da escrita, passam a fazer história, como produção de sentidos para a própria ressubjetivação”. (ALMEIDA; QUEIROZ, 2004, p. 204). Nasce, então, uma literatura nativa brasileira que se mantém na oralidade, voltada para a desconstrução e a reconstrução de fatos histórico- literários e a construção da imagem do índio real. (FIGUEIREDO, 2010). Desconstrói-se aquela idealização romântica do índio que era uma reencarnação brasileira dos cavaleiros medievais europeus “transplantados para o Novo Mundo na íntegra, com todos os arreios cavalheirescos de comportamento e ética”. (TREECE, 2008, p. 19). Com a escrita e a publicação dos cantos, das narrativas e das poesias os índios passaram a ensaiar uma nova forma de figurar na História, “passando pelo processo de desfiguração, como uma revelação da sua realidade existencial, que obedece a princípios diferentes dos modelos ocidentais. (ALMEIDA; QUEIROZ, 2004, p. 233). Não se esqueceram da oralidade que sempre fez com que a tradição fosse transmitida de geração para geração, na voz dos chefes indígenas que “reuniam-se ao redor das chamas, para discutir a vida da tribo, a marcha dos dias, mudança das malocas, situação dos plantios [...]”. (CASCUDO, 2006, p. 83). Mas, essa reunião era também o momento em que os mais jovens tomavam conhecimento das tradições guerreiras, das ocorrências seculares, dos segredos orais. Essa narrativa indígena – a poranduba – deixava na memória coletiva vivos os mitos, as lendas que seriam passados adiante, tudo 35 isso constituindo a traditio (tradição). Como nos ensina Cascudo (2006), a tradição é a história indígena, que hoje – podemos complementar - é reconstruída nos livros produzidos por autores índios. Para Scheneider (2008), a tradição oral é vital para a preservação da vida tribal: “ela cura a si mesma e toda a teia da tribo através de adaptações aos fluxos do presente, sem abandonar seus vínculos com o passado”. (p. 53). Não há como não reconhecer o poder da oralidade entre os povos muitas vezes chamados de “primitivos”. Segundo Zumthor (2010):

Ninguém sonharia em negar a importância do papel que desempenharam, na historia da humanidade, as tradições orais. As civilizações arcaicas e muitas culturas das margens ainda hoje se mantêm graças a elas. E ainda é mais difícil pensá-las em termos não-históricos, e especialmente nos convencer que nossa própria cultura dela se impregna, não podendo subsistir sem elas. (p. 8).

Muitos cronistas do século XVI, XVII e XVIII referiam-se ao poder que a tradição oral exercia na vida dos chamados “selvagens”, seduzidos pelo encanto da palavra. Como exemplo, Câmara Cascudo cita frei capuchinho Ivo d’Evreux, em sua viagem ao norte do país, encantado com a força da oralidade dos indígenas:

O que mais me admirou foi vê-los narrar tudo quanto se há passado desde tempos imemoriais, somente por tradição, por que têm por costume os velhos contar diante dos moços quem foram seus avós e antepassados, e o que se passou no tempo deles: fazem isso na Casa-grande, algumas vezes nas suas residências particulares, acordando muito cedo, e convidando gente para ouvi- los, e o mesmo fazem quando se visitam [...].(CASCUDO, 2006, p. 86).

Tempos depois, todo esse conhecimento passa para o mundo da escrita e o trabalho com a literatura servirá para abolir aquela imagem do índio como algo do passado, sem história e fadado ao extermínio inevitável, diante do progresso do mundo globalizado. Assim, a importância do domínio da escrita pelas sociedades indígenas pode ser comprovada nas palavras de Meliá (1989):

[...] acreditam que com a escrita poderão se defender do marreteiro, poderão exigir a demarcação de suas terras, poderão conhecer melhor a sociedade dos brancos. Comerciantes e invasores de terras, funcionários do estado, missionários e antropólogos usaram e abusaram da escrita para conquistá-los e reduzi-los. Seria muita ilusão pensar que se poderá reverter o processo só com a conquista da escrita, mas ela está contribuindo, pelos menos em alguns casos, para reforçar a identidades dos povos. Deste modo, a conquista de uma identidade nova pela escrita permite conquistas que a escrita sozinha não 36

conseguiria. Os próprios índios viam o domínio da língua escrita como instrumento adicional para a conscientização e a discussão de problemas em vistas à defesa de suas terras e de suas coisas. (p. 16).

Serve ainda para se diferenciar dos registros de narrativas realizados por folcloristas e etnógrafos, muitas vezes deficientes, pois se limitam “a captar os aspectos principais da trama ou a configuração dos mitos, escamoteando as peculiaridades do estilo narrativo indígena”. (FIGUEIREDO, 2010, p. 453). Muitas publicações de autoria indígena estão associadas aos programas de educação diferenciada desenvolvidos pelo Estado, por instituições religiosas e por ONGs que publicam as narrativas da tradição oral transpostas para a língua escrita por indígenas “muitas vezes recém-letrados, exercendo sua autoria individualmente ou em equipe, criando textualidades escritas contemporâneas”. (FIGUEIREDO, 2010, p. 454). A publicação da literatura indígena, entretanto, não se limitou ao apoio de organizações ou do Estado, pois temos um exemplo notável de Antologia da floresta – literatura selecionada e ilustrada pelos professores indígenas do Acre, publicado em 1995 por uma editora privada, para ser comercializado, o que já apontava o potencial de ampliação do público para esse tipo de literatura. Tratou-se da primeira antologia de literatura indígena no Brasil, sendo que a maioria dos textos está em versos, um trabalho organizado pela professora Cláudia Neiva de Matos. Todas as obras literárias dos índios estão, assim, de acordo com as demandas dos movimentos sociais e a exigência da lei, atendendo aos princípios de uma educação multicultural e democrática. (PAIVA; SOARES, 2008). Ainda que em passos lentos, a literatura indígena vem conquistando espaço no cenário editorial. No final do século XX, o indígena Krenak (1999) já reclamava da pouca divulgação das obras de autoria étnica:

Quase não existe literatura indígena publicada no Brasil. Até parece que a única língua no Brasil é o português e aquela escrita que existe é a escrita feita pelos brancos. É muito importante garantir a diversidade, e isso significa assegurar que mesmo uma pequena tribo ou uma pequena aldeia tenha a mesma oportunidade de ocupar esses espaços culturais [...]. (p. 29).

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De forma literária, apesar das dificuldades, os índios estão percebendo sua entrada na sociedade brasileira, revalorizando o passado, mas sem renunciar ao enriquecimento trazido pelas novas técnicas do mundo moderno. O pensamento indígena resume bem essa percepção: “o passado vive em nós, mas nós não vivemos no passado”. Tudo isso, graças à escrita que permitiu a socialização da memória, a possibilidade de estocar informações cujo caráter fixo pode fornecer referenciais coletivos de maneira bem mais eficaz que a transmissão oral. (CANDAU, 2012). A escrita também reforçou o sentimento de pertencimento muito ameaçado por forças hegemônicas que procuraram enfraquecer as identidades étnicas minoritárias, impondo-lhes rótulos e estereótipos. Os povos indígenas trazem consigo a memória ancestral e utilizam a escrita para reforçar sua identidade coletiva. Assim, a literatura dos nativos tem uma importante função:

O papel da literatura indígena é, portanto, ser portadora da boa notícia do (re)encontro. Ela não destrói a memória na medida em que a reforça e acrescenta ao repertório tradicional outros acontecimentos e fatos que atualizam o pensar ancestral. (MUNDURUKU, 2012, p. 2).

A primeira vez que indígenas escrevem e assinam sua mitologia foi na publicação de Antes o mundo não existia (1980), uma obra que reúne 14 histórias dos Desâna. Pai (Umúsin Kumu) e filho (Talomãn Kenhíri) “decidiram deixar a seus descendentes o legado mítico de sua tribo, convictos de que, de outra forma, se perderia ou seria deturpado”. (RIBEIRO, 1980, p. 9). O pai era um Kumú (ou sábio) que conhecia muito bem o ritual, a mitologia, a cosmogonia, enfim tinha o domínio da cultura tribal Desâna. Suas histórias tratam do comportamento dos indivíduos, do caráter mágico-religioso dos artefatos, da hierarquização dos clãs. Na introdução feita por Berta G. Ribeiro (1980), lemos:

A mitologia desâna reunida neste livro espelha a natureza amazônica pela presença da personificação de elementos naturais como o trovão, o raio, o relâmpago, as tempestades, as enchentes, os igapós, as cachoeiras e os seus caudalosos rios de águas pretas. (p. 39).

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Toda uma crença foi adulterada pela intervenção religiosa que acabou com o centro cerimonial dessa etnia – a maloca – o que inviabilizou a realização dos ritos e contribuiu para “afrouxar os laços de convívio entre clãs e tribos [...]”. (RIBEIRO, 1980, p. 23). Outro exemplo de obra baseada no saber de domínio coletivo é O livro das árvores, organizado pelos Ticuna, a partir das aulas de geografia na aldeia. Tem o objetivo de valorizar as várias espécies, representadas por desenhos individuais dos índios que ilustram um livro de memória das árvores. O livro foi premiado em 1997 pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, mas, na verdade, faz parte de um projeto iniciado em 1987 pelos professores Ticuna bilíngues, no Amazonas, onde mais de 7 mil alunos se dividem em 90 escolas indígenas, com seus 210 professores. Com esse livro prova-se que a floresta é o mundo para os indígenas: provedora da vida, é ela que alimenta o povo indígena, com seus frutos; é dela que retiram a matéria-prima para fabricar os objetos de trabalho e para pintar as máscaras dos ritos religiosos. Os Ticuna acreditam que cada árvore tem um dono; são seres chamados de nanatü que cuidam de tudo que existe na natureza. A seringueira, a samaumeira, o buriti, todos têm espíritos que podem ajudar as pessoas e até no trabalho do pajé, em caso de doença. Dentro da floresta (ou Nainecü) há vida que se transforma sem parar: vento, chuva, sombra e sol traz em cor e movimento para as matas, onde “qualquer vida é muita dentro delas”. (TICUNA, 2000, p. 48). Enfim, é uma obra para todos que queiram aprender com a natureza: “Este livro ajudará a lembrar que cada árvore tem sua importância. Que as árvores formam a floresta. E a floresta é a maior riqueza que deixaremos para nossos filhos”. (TICUNA, 2000, p. 92). A história dos antigos mestres da tradição Kaxinawá (ou Huni Kui, “gente verdadeira”) é registrada no livro Shenipabu Miyui. Na introdução da obra, percebe-se a sua relevância:

Tão importante quanto o resultado histórico, linguístico e estético do livro Shenipabu Miyui, memória viva de uma das duas centenas de culturas indígenas do Brasil atual, é contarmos aqui o processo educativo de sua elaboração coletiva pelos Kaxinawá. (MONTE, 2000, p. 16).

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O trabalho de construção do livro foi iniciado em 1989 (com primeira edição em 1995) por mais de vinte professores Kaxinawá que viajaram para as aldeias para gravar e registrar as narrativas orais dos velhos parentes, visando ao fortalecimento político e à valorização cultural. Vítimas também dos massacres de 1898, quando suas casas foram queimadas e seu povo assassinado, os Kaxinawá conseguiram se reorganizar a partir da década de 1980, período em que retiraram os brancos de seus seringais e começaram uma reestruturação social, política e territorial. E para essa nova ordem, a literatura vem contribuindo para a preservação e para o fortalecimento da identidade dos Huni Kui (ou Kaxinawá) e, além disso, tem estimulado ouros grupos étnicos a escreverem seus próprios livros. Por isso, Shenipabu Miyui tem um potencial educativo, cultural e político multiplicador. São 12 histórias escritas primeiro na língua Hãtxa Kui ou Kaxinawá e, depois, traduzidas para o português. Quanto à decisão de se fazer a tradução para a língua portuguesa, conta-nos Monte (2000): “Após discussões e alguns trabalhosos anos de escrita em língua indígena, entenderam ser importante que os mitos pudessem chegar também às mãos de outras sociedades indígenas e dos leitores brasileiros em geral”. (p. 18). Como se percebe, a escrita e a escola desempenharam (e desempenham) um importante papel nas sociedades indígenas, pois contribuem para a libertação do subjugo capitalista e para a preservação das etnias brasileiras: “Escrita e escola têm sido acionadas para impulsionar um novo ciclo de produção, difusão e transmissão de culturas”. (MONTE, 2000, p. 16). Com a escrita e a escola, desenhou-se um novo momento para as minorias étnicas:

Os escritores indígenas estão descobrindo o Brasil. Se os viajantes europeus dos séculos XVI e XVII descreviam o território, a fauna e a flora, os rios e as gentes aqui encontrados, para com isso apresentar ao público o novo mundo, agora os nativos estão revertendo a história. (ALMEIDA; QUEIROZ, 2004, p. 195).

Finalmente, temos, desde os anos de 1980, a escrita não mais como instrumento de dominação, tradução ou integração dos povos indígenas, mas 40 como uma conquista para a criação e a transformação. Passou a ser um instrumento de luta, contribuindo para o fortalecimento da identidade das etnias. Dominar a escrita trouxe contribuições para as comunidades indígenas, pois com ela:

Os índios constroem elos com a cultura hegemônica como participantes da sociedade brasileira; ao mesmo tempo, representam e defendem – pela língua do outro – valores próprios e marcam sua resistência ao controle pelos não índios. (THIÉL, 2012, p. 122).

Ao tratarmos dessa produção escrita coletiva dos nossos indígenas, podemos dizer que há também outra vertente com um perfil mais individualizado de autor, como é o caso de Daniel Munduruku, um escritor que passeia pela alma indígena ao apresentá-la em suas nuanças e, a partir delas, procura trazer reflexões que possam contribuir para o respeito às diferenças. Com um acervo de obras “coletivas ou “individuais”, o fato é que a literatura indígena brasileira é uma literatura recente que traz um viés particular, por se tratar de textos cujos autores estão interessados em compartilhar as histórias, suas visões e conhecimentos. São indígenas que têm uma percepção de mundo diferente dos ocidentais, assim como o conceito de poder que está relacionado à compreensão das relações que ocorrem entre o mundo humano e não- humano. E, embora estejam contaminados ou híbridos culturalmente, muitas vezes, pela cultura branca, os autores indígenas são capazes de reafirmar e confirmar suas identidades. Ao refletir sobre essa questão, Daniel Munduruku entende que essa produção se trata de:

“uma literatura autenticamente brasileira – no sentido do pertencimento ao lugar onde se vive e no qual se enterra seus mortos. É uma literatura – na falta de um termo melhor – que está além da própria literatura, já que não faz distinção dos jeitos como ela é produzida. (MUNDURUKU, 2012a, p. 2).

Faz questão de classificá-la como literatura indígena, na qual se deve reconhecer o mérito dos esforços empreendidos na construção de um novo status das etnias que buscam, até hoje, o espaço digno na sociedade brasileira: “Os indígenas, com certeza, formam um grupo particularmente 41 interessado em reconstruir uma história diferente daquela que foi apresentada como a história oficial”. (SCHENEIDER, 2008, p. 53). Reconhece-se na produção de livros indígenas um esmero editorial, inclusive com ilustrações que buscam fugir dos estereótipos em relação às culturas indígenas. Além disso, há algum tempo, vem sendo reconhecida nos meios acadêmicos e se difundindo pelo país:

É um bom sinal de fumaça: é um reconhecimento. Reconhecimento que repercutiu pelas universidades brasileiras: há expressivos estudos sendo realizados em níveis de graduação, mestrados e doutorados que têm a literatura indígena como objeto. Importantes revistas deram notícias ou fizeram matérias de capa sobre o fenômeno. Governos adquiriram acervos inteiros ligados à temática. (MUNDURUKU, 2012b, p. 2).

Percebe-se que, aos poucos a literatura indígena tem se expandido, chegando às escolas e às universidades, onde poderá ser lida e estudada. Dessa forma, muitos poderão conhecer ou reconhecer esse novo movimento literário que mostra ao Brasil a rica diversidade nativa, dessa vez contada pelos próprios indígenas. Daniel Munduruku afirma que os textos indígenas são literatura que merece receber o reconhecimento da sociedade para com o esforço que os autores indígenas têm empreendido para romper com preconceitos construídos historicamente. Segundo ele, todos os indígenas que escrevem não devem ser vistos como “índios que deram certo”, mas como autores que realmente lutam para desconstruir tais marcas históricas e buscam a afirmação cultural e identitária por meio dos textos que trazem a história de suas etnias e que versam sobre a arte de criar e narrar histórias. Aliás, uma luta que não é só dos nossos indígenas, mas que começou a buscar caminhos já nos anos de 1960, na América do Norte, onde uma “literatura nativa” ou “literatura aborígene” se formava, questionando os rótulos, as identidades que lhe foram construídas e impostas pelo colonizador ao longo do tempo. Nos séculos XX e XXI, os índios passam a apresentar suas próprias versões do que é a identidade indígena. Portanto, é uma discussão também política que se faz por meio da escritura: “Assim, a escrita e a literatura tornam- 42 se instrumentos de poder e de revisão de identidades individuais e coletivas”. (THIÉL, 2012, p. 31). Dissemos ser uma discussão política porque reordena a coletividade, valendo-se das palavras pronunciadas pelos seus representantes, e porque faz uma revisão do papel que o indígena deve ocupar na sociedade atual. Dessa maneira, de forma literária, os índios estão percebendo sua entrada na sociedade brasileira. É uma inserção que vem se construindo inclusive no meio virtual e aqui podemos citar o lançamento do primeiro e-book, em 2005, uma publicação no mundo da web intitulada Sol do Pensamento, organizada por Eliane Potiguara. Essa obra constituída de onze textos escritos por autores indígenas num suporte tecnológico é resultado de uma demanda urgente de oferecer aos povos indígenas acesso às novas tecnologias de informação (Tics). Esses novos suportes seriam, portanto, importantes instrumentos de divulgação da tradição indígena que poderia circular on line pela Aldeia Global, assim como poderia dar visibilidade a autores e escritores indígenas. Todo esse movimento já estaria indicando o surgimento de uma nova indianidade ou civilização indígena mais preocupada em acompanhar as mudanças do mundo globalizado. Isso confirma o processo descrito por Darcy Ribeiro como “transfiguração étnica”, no qual os povos se fazem e refazem, seja no nível das microetnias tribais, seja no caso das etnias nacionais ou das minorias étnicas. (RIBEIRO, 2010). Ao dar destaque à literatura indígena brasileira, Thiél (2012) corrobora a afirmação de Daniel Munduruku de que há realmente uma literatura escrita por uma minoria étnica, mas que é uma textualidade complexa e de caráter híbrido, o que poderia conduzir “a uma releitura do que o cânone ocidental costuma considerar como texto literário”. (p. 36). No artigo de Daniel Munduruku, publicado em 2012, na Revista Eletrônica Emília, encontramos o seguinte comentário no qual defende a produção literária dos indígenas brasileiros:

A literatura que os autores indígenas estão criando é nova sim. Traz um olhar sobre suas próprias sociedades e culturas. Traz um viés particular – embora, às vezes, contaminado pela cultura branca, europeia – capaz de confirmar e reafirmar suas identidades distanciando-os do conceito cínico do “ser brasileiro com muito orgulho e com muito amor”, cantado nos estádios de futebol. É uma 43

literatura – na falta de um termo melhor – que está além da própria literatura, já que não faz distinção dos jeitos como ela é produzida. (MUNDUUKU, 2012, on line).

A narrativa indígena, segundo Thiél (2102), é complexa. A autora se utiliza da imagem metafórica do cobertor, cujos fios horizontais e verticais que o tecem corresponderiam à tradição textual ocidental e aos elaborados pela tradição ancestral, respectivamente. As textualidades indígenas teriam o índio como agente ou sujeito da enunciação e não mais como referente ou como um mero objeto de curiosidade e “seriam construídas segundo a diversidade cultural das nações indígenas, seus contextos e formas de utilização de multimodalidades discursivas”. (THIÉL, 2012, p. 47). Não teriam o índio enaltecido pelo pitoresco, como faz a mídia sobre a cultura indígena, “sem deixar espaço para a apreensão dos significados mais profundos das manifestações culturais indígenas”. (SANTILLI, 2000, p. 134). Considerando o novo papel assumido pelo índio brasileiro, teríamos uma produção da literatura indígena que pode ser distribuída em três vertentes: obras escritas por autores indígenas bilíngues para escolas indígenas; obras tuteladas por intermediários e obras produzidas por escritores que vêm de comunidades tribais, mas que estão localizados em centros de produção cultural não indígena e dirigem seus textos aos não índios. Essas vertentes – marcadamente indígenas – retiram o índio do anonimato e do silêncio a que esteve submetido pelos desmandos dos colonizadores. Daniel Munduruku exemplificaria a última vertente: um indígena que saiu de sua aldeia para estudar num grande centro urbano e que escreve seus textos para crianças, jovens e adultos, demonstrando uma grande vontade de afirmação cultural e identitária. Como vimos anteriormente ao apresentá-lo, Daniel Munduruku é um autor que assina suas obras com um nome ocidentalizado e um sobrenome (um etnônimo) que identifica sua etnia, o que nos mostra que é um escritor de identidade híbrida, “além de criador de uma produção artística individual e transmissor de uma produção artística coletiva”. (THIÉL, 2012, p. 87). 44

Sua “indianidade” seria resultado da herança étnica e de sua escolha em se afirmar indígena que também reconhece a necessidade de resistir com uma contranarrativa que preenche os vazios deixados pela história contada pelo europeu que relegou o índio a uma vida “sem história”. Ele estaria no “entre-lugar”, aquele espaço híbrido de desconstrução e descentramento caracterizado pela mestiçagem construída graças à abertura às trocas culturais e é nessa “confluência cultural que surge a literatura indígena”. (THIÉL, 2012, p. 78). Entre sua raiz étnica e o mundo ocidental estaria Daniel Munduruku e todos aqueles “índios em trânsito” que pertencem aos dois mundos:

O índio contrapõe identidades autoatribuídas àquelas provenientes do mundo ocidental. Utiliza poéticas canônicas, meios de produção, circulação e divulgação ocidentais para que seus textos alcancem um público-alvo não índio. Assim conduz a uma revisão de conceitos, perspectivas e relações com a alteridade. (THIÉL, 2012, p. 143).

Então, os indígenas acabam construindo uma “leitura em contraponto” (SAID, 1995) que deve considerar ambos os processos, o do imperialismo e o da resistência a ele, o que pode ser feito estendendo nossa leitura nos textos de forma a incluir o que antes era forçosamente excluído. Apropriaram-se, como já vimos anteriormente, dos gêneros textuais que circulam socialmente, como crônicas, cartas, diários, ensaios, novelas e outras modalidades narrativas para expressar sua visão de mundo e contrapô-la à da cultura ocidental, mostrando, assim, que a diversidade deve ser (re)conhecida e valorizada. Em muitas obras encontraríamos uma composição multimodal, onde texto e ilustração/grafismos ficariam lado a lado, “lançando o leitor para uma rede de significados forjados pela palavra e imagem”. (THIÉL, 2012, p. 88). Tamanha é a importância dada à multimodalidade, que Thiél (2012) destaca: A partir da representação visual e gráfica de seu potencial imaginativo, o narrador amplia a latitude e a longitude de seu olhar sobre o mundo e recorre à imaginação como forma de se relacionar com o real, projetando-o ou reformulando-o. As diversas tradições, independentemente de privilegiar o elemento gráfico, oral, visual ou performático, encontram maneiras para que o homem manifeste o seu fazer de si e do outro. Desta forma ele se revela construtor da identidade própria e alheia a partir de observações e de imaginários que se transformam em narrativas. (p. 88).

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A ilustração não tem, assim, apenas uma função de ornamentar a obra e a narrativa que se desenvolve, pois nela há um enredo que leva o leitor à construção de significados. Essa modalidade, aliás, é um recurso semiótico utilizado para a comunicação de sentidos pela literatura infanto-juvenil em geral. No texto indígena, na visão de Thiél (2012), a imagem deve ser lida em conjunto com as palavras do texto, porque traz formas geométricas vinculadas à tradição ancestral e aos conhecimentos ancestrais adquiridos pela tradição oral. Na explicação do professor Lynn Souza (2003), o conceito de multimodalidade é definido por Gunther Kress e Theo van Leeuwen na linguagem como o uso justaposto e simultâneo de linguagem verbais e não- verbais. Os autores propõem modelos de análise de textos multimodais que levam em consideração cada elemento constituinte de uma imagem – esses elementos possuem um significado em si, isoladamente, e juntos produzem o significado que se pretende transmitir. Aplicando-se o conceito semiótico da multimodalidade nas obras escritas pelos indígenas brasileiros, o pesquisador conclui: “Num sentido inter- semiótico, uma narrativa indígena multimodal impressa poderia ser vista como um híbrido ou tradução cultural na perspectiva de Bhabha [...]”. (SOUZA, 2003, p. 2). A opinião de Guesse (2011) reitera as opiniões anteriores, pois entende que, para os indígenas, as ilustrações têm a mesma importância das histórias escritas e, em alguns casos, possuem um significado cultural. Vemos esse diálogo entre as duas linguagens, principalmente nas obras coletivas e, como exemplo, podemos citar Sehaypóri: o livro sagrado do povo Saterê-Mawê (2007). Nessa obra, temos os grafismos feitos por Yguarê Yamã, ilustrando as lendas e as fábulas de animais reunidas no livro, sempre em vermelho e preto, cores do “povo do guaraná”, assim conhecidos por terem sido os primeiros a cultivarem a planta. Também muitas obras de Daniel Munduruku trazem a ilustração como uma recurso multimodal, em reforça-se o trabalho feito por artistas não-índios, que conseguem reproduzir os grafismos indígenas, trazendo a identidade do povo da floresta nas páginas coloridas dos livros. 46

Até as crianças já foram ilustradoras em alguns de seus livros, como em O diário de Kaxi (2001), obra na qual os curumins da aldeia Katõ foram convidados a fazer desenhos que ilustrariam o texto lido para eles por Daniel Munduruku. Foi um trabalho coletivo que pretendia, segundo o autor, mostrar inclusive a maneira que têm de ver a cidade, um lugar desconhecido que desperta muito a curiosidade das crianças indígenas. Nessa obra, as ilustrações acompanham a narrativa de Kaxi, um menino de nove anos que vai visitar o “povo das caixas” e mostram-nos um mundo híbrido, onde animais, árvores da floresta convivem com prédios e carros da cidade grande Reconhece-se, hoje, o trabalho dos índios letrados com a literatura, o que nos leva a concluir que temos autores-indígenas como produtores de conhecimentos que passarão para novas gerações de índios e não- índios. Enfim, a literatura indígena contemporânea pode ser entendida como uma “literatura emergente”, voltada para a consolidação de um projeto identitário, “que vem preencher os vazios da memória coletiva e fornecer pontos de ancoramento do sentimento de identidade, essencial ao ato de autoafimação das comunidades ameaçadas pelo rolo compressor da assimilação”. (BERND, 2011, p. 15). Ao se afirmarem como produtores de uma literatura indígena, estão recusando a classificação de uma literatura periférica ou marginal e acabam reivindicando um estatuto autônomo no interior do campo literário hegemônico.

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CAPÍTULO II: REPRESENTAÇÃO LITERÁRIA DO ÌNDIO BRASILEIRO

A “TURBA AMERICANA” EM PROSA E VERSO

A presença do índio como tema na literatura não se limita ao Indianismo que foi uma das correntes do nosso Romantismo do século XIX. Em obras do século XVI, encontramos o elemento indígena representado nas crônicas de viajantes e de religiosos, compondo a chamada “literatura de informação”. Na composição épica da Arcádia, também se destaca o aborígene retratado por poetas, ora como uma personificação inocente da lei natural, ora como “bárbaro” que precisava ser domado e dominado. No movimento indianista, temos a construção de um índio ficcional como autêntica expressão da nacionalidade. Símbolo da pureza e da inocência, o índio romântico representava o homem não corrompido pela sociedade, além de assemelhar-se aos heróis medievais fortes e éticos. Para exemplificar essa presença do indígena no âmbito literário, escolhemos alguns textos e obras que, na verdade, tratam-no como “objeto de um discurso alheio”, sem que sejam realmente sujeitos da enunciação. (BASTOS, 2011).

O “olhar inaugural” de Caminha

Chegando à Terra de Vera Cruz, os portugueses encontram nas novas terras um gentio de “bons rostos e bons narizes, bem feitos”, descritos pelo escrivão Pero Vaz de Caminha, em sua carta ao rei D. Manuel, cujo texto “reserva espaço privilegiado para as impressões deixadas no escrivão pelo povo de cor avermelhada que habitava a terra”. (BASTOS, 2011, p. 25). Encontra-os sem cobertura alguma, todos nus, com “nada que lhes cobrisse suas vergonhas”. (CAMINHA, 2007, p. 93). 48

Inocentes, aos olhos do escrivão, os indígenas seriam logo cristãos, “porque eles, segundo parece, não têm nem entendem nenhuma crença”. (CAMINHA, 2007, p. 113). Ainda que boa gente e de notória simplicidade, não tinham, segundo o escrivão, nenhuma idolatria ou adoração, não tinham casa nem moradas. Providos de tanta barbárie, tinham, por outro lado, uma terra formosa, muito chã, com água, onde “dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem”. (CAMINHA, 2007, p. 118). Seria preciso ordenar o caos, começando por fincar a cruz e fazê-los beijá-la para que essa gente de vergonhas tão nuas fosse salva: “Na visão portuguesa, ao beijarem a cruz, os indígenas dão prova de acatar o domínio lusitano”. (BRITO, 2000, p. 87). Era a mesma cruz desenhada nas velas portuguesas e que identificava o rei de Portugal como Grão-mestre da Ordem de Cristo: “A cruz de Cristo acompanharia os portugueses, com a espada do rei, na tessitura do império colonial”. (VAINFAS; SOUZA, 2002, p. 8). Desde então, estariam entre a cruz e a espada, entre o projeto religioso, catequista e o projeto mercantilista e depredador da Coroa Portuguesa. (CUNHA, 2006). Como “bom selvagem”, o gentio seria, à primeira vista, de fácil trato e doutrinação, “folhas em branco” onde se escreveriam os valores cristãos. Aos olhos do colonizador, seria uma mão de obra providencial que trabalharia para atender aos seus interesses, “com mui boa vontade”. (CAMINHA, 2007, p. 113). E nesse olhar inaugural de Pero Vaz de Caminha, já se evidencia a visão etnocêntrica, que divide o mundo entre civilizados e bárbaros, que julga inferior tudo o que é diferente da cultura do europeu. Bernd (2011) classifica-o como um “olhar estrangeiro”, que descreve o lado primitivo, ingênuo e natural dos índios. Para Süssekind (1990), o cronista teria um “olhar armado”, pronto para captar todos os detalhes da natureza, dos habitantes do Novo Mundo. Não só o texto de Caminha, mas também as narrativas de viagens de conquistadores (espanhóis e portugueses) sobre as Américas têm um traço em comum que é o de “negar uma identidade dos autóctones, insistindo na negatividade, na carência e cunhando, de certa forma, uma matriz identitária marcada pela falta e pela privação”. (BERND, 2011, p. 22). 49

Aqui cabem os comentários de Cardim (2009) a respeito da carência dos índios brasileiros de qualquer concepção religiosa (pelo menos aos olhos de um padre da Companhia de Jesus):

Este gentio não tem conhecimento algum de seu Criador, nem de cousa do Céu, nem se há pena nem glória depois dessa vida e, portanto, não tem adoração nenhuma nem cerimônias, ou culto divino, mas sabem que têm alma e que esta não morre e depois da morte vão a uns campos onde há muitas figueiras ao longo de um formoso rio [...]. (p. 174).

Parece-nos um arquétipo (no sentido de modelo) da colonização, no qual o colonizador sempre impõe uma imagem negativa do colonizado. Teríamos dois protagonistas do drama colonial (MEMMI, 2007), em que o colonizador desumaniza as qualidades do colonizado (chamando-o de preguiçoso), despersonaliza-o (chamando-os de “eles”, como um coletivo anônimo) e lhes nega o direito mais precioso que é o da liberdade. O colonizador constrói um retrato degradante do colonizado, considerando-o incapaz: “Quando o colonizador afirma, em sua linguagem, que o colonizado é um débil, sugere com isso que essa deficiência demanda proteção”. (MEMMI, 2007, p. 120). Era o mesmo raciocínio do Serviço de Proteção do Índio (SPI) que pregava a tutela - o que Memmi chama de “protetorado” – com o intuito de proteger os indígenas. O olhar inaugural do Padre Anchieta (1534-1597) sobre os índios brasileiros – analisando-se poemas, peças teatrais do jesuíta – faz-nos crer que o indígena era um objeto de uma ação salvadora, “o que já representava, de início, a afirmação de sua inata inferioridade”. (BASTOS, 2011, p. 53). Em seus autos, o Mal é geralmente identificado por nomes indígenas (Anhanguçu, Tatapiera, Cauguaçu etc) que enfrentam o Bem, que está representado na figura dos padres que vem

[...] com boa intenção, A buscar gente perdida, Que possa ser convertida A Iesu de coração E ganhar a eterna vida. (apud BASTOS, 2011, p. 56).

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É esse o espelho destruidor construído pelos jesuítas: gentio de hábitos que desagradam a Deus, como a bebedeira, a dança, o canto, a antropofagia, condutas que deveriam ser rejeitadas:

Repudiemos nossos vícios, Não crendo nos pajés, Nem dançando, girando, Praticando curandeirismo. (apud BASTOS, 2011, p. 60).

Contra essas antigas crenças, todo esforço deveria ser empreendido, sem piedade, como assegura o Apóstolo do Brasil:

Parece-nos agora que estão as portas abertas nesta capitania para a conversão dos gentios, se Deus Nosso Senhor quiser dar maneira com que sejam postos de jugo, porque para este gênero não há melhor pregação do que espada e vara de ferro, na qual mais do que em nenhuma outra é necessária que se cumpra o campelle e o entrare. (apud BASTOS, 2011, p. 63).

O “olhar clássico” em O Uraguai (1769), de Basílio da Gama

Basílio da Gama (1741-1795) ou Termindo Sipílio (seu pseudônimo árcade) foi o primeiro a desbravar a temática do indianismo explorada pelos românticos que “queriam atribuir a si próprios a glória da formação nacional”. (BERND, 2011, p. 48). O poema, segundo críticas, não foi verdadeiramente épico, pois sua natureza seria primeiramente lírica, depois heroica e por fim didática. (CANDIDO, 2009). Outros teóricos, entretanto, entendem que no poema épico de Basílio da Gama “acontece uma indiscutível elevação da figura do índio”. (BASTOS, 2011, p. 86). Há uma certa simpatia em torno da figura do indígena visto como o “bom selvagem”16. O Uraguai tem como traço principal o antijesuitismo e o verdadeiro homenageado foi o Marquês de Pombal: “O desejo de agradar ao Marquês

16 Essa imagem do homem livre, em harmonia com o seu mundo foi criada por Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) em seu Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, de 1754. 51 justificaria a inclusão, no poema já quase concluído, de trechos e notas antijesuíticas, principalmente as notas”. (COUTINHO, 2001, p. 249). Na crítica de Coutinho (2011), no entanto, os índios são os melhores personagens, e entre eles, Cacambo e Lindoia, um par romântico que é separado pela dor: ele por ser um cacique perseguido e morto na expedição empreendida por portugueses e espanhóis contra índios e jesuítas, habitantes da Colônia de Sete Povos das Missões do Uruguai. Ela, uma índia forçada a casar-se com Baldeta, mas que se faz picar por uma cobra e morre. Esse é o momento mais belo do poema, apresentado no Canto IV:

Um frio susto corre pelas veias De Caitutu, que deixa os seus no campo, E a irmã por entre as sombras do arvoredo Busca com a vista, e teme de encontrá-la. Entram enfim na mais remota, e interna Parte de antigo bosque, escuro, e negro, Onde, ao pé de uma lapa cavernosa Cobre uma rouca fonte, que murmura, Curva latada de jasmins, e rosas. Este lugar delicioso, e triste, Cansada de viver, tinha escolhido Para morrer a mísera Lindóia. Lá reclinada, como que dormia, Na branda relva, e nas mimosas flores, Tinha a face na mão, e a mão no tronco De um fúnebre cipreste, que espalhava Melancólica sombra. (GAMA, 2011, p. 115).

No V canto (e último), temos a narração dos crimes da Companhia de Jesus e a vitória final dos conquistadores, com a prisão dos jesuítas.

Caramuru: um olhar local sobre a Bahia

Frei José de Santa Rita Durão (1722-1784) publica em 1781 o poema Caramuru, considerado por Coutinho (2001) “o primeiro poema a tomar como motivo uma lenda local, a falar no índio brasileiro e a descrever seus costumes”. (p. 254). No poema, o nativo é assim descrito:

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A brutal catadura, hórrida e feia: A cor vermelha em si, mostram tingida De outra cor diferente, que os afeia. Pedras e paus de embiras enfiados, Que na face e nariz trazem furados.

Na boca, em carne humana ensanguentada, Anda o beiço inferior todo caído, Porque a tem toda em roda esburacada, E o lábio de vis pedras embutido. Os dentes, que é beleza que lhe agrada Um sobre outro desponta recrescido. Nem se lhe vê nascer na barba o pêlo. Chata a cara e nariz, rijo o cabelo. (DURÃO, 2006, p. 22).

Os adjetivos que caracterizam o índio também nos revelam-no como um “selvagem rude”, agrupado na “turva de seu povo”. Essa “gente bárbara”, que devora a carne humana, “essa infâmia praticada”, recebe nas areias da praia baiana o náufrago Diogo Álvares Correia, o Caramuru, apresentado logo na primeira estrofe do canto I:

De um varão em mil casos agitado, Que as praias discorrendo do ocidente, Descobriu o Recôncavo afamado Da capital brasílica potente; De Filho do Trovão denominado, Que o peito domar soube à fera gente; O valor cantarei na adversa sorte, Pois só conheço o herói quem nela é forte. (DURÃO, 2006, p. 17).

Na análise historicista de Treece (2008), Diogo – enquanto Filho do Trovão – “é elevado ao status da figura do cristo, o Messias, arquétipo da cultura cristã dos colonizadores”. (p. 92). Sua figura também é enaltecida pelos indígenas que se maravilham com sua espingarda (daí a imagem do homem de fogo) e passa a gozar de grande autoridade entre eles, escolhendo como esposa a índia Paraguaçu, que foi levada para a Europa para ser batizada e seu nome cristão passou a ser Catarina. Aqui temos uma imagem idealizada da índia que “em tudo se assemelha às beldades brancas”. (COUTINHO, 2011, p. 256):

Paraguaçu gentil (tal nome teve), Bem diversa de gente tão nojosa, De cor tão alva como a branca neve, E donde não é neve, era de rosa: 53

O nariz natural, boca mui breve, Olhos de bela luz, testa espaçosa, De algodão tudo o mais, com manto espesso, Quanto honesta encobriu, fez ver-lhe o preço. (DURÃO, p. 64).

Na poema de Durão, temos outra personagem feminina – Moema - cuja morte pode representar o obstáculo moral a qualquer união sexual entre o homem branco e a mulher indígena. Ela também foi dada ao Caramuru, mas inveja a índia Paraguaçu, com quem ele se casara. Treece (2008) considera que Frei Santa Rita Durão foi responsável “pela invenção da índia tragicamente abandonada, ciumenta e vingativa que os românticos indianistas do século XIX identificariam como o nome de Moema em tantas ocasiões”. (p. 94). Também foi retratada em tela por Victor Meirelles de Lima e aparece junto a outras heroínas do indianismo, como Coema, Iracema, Iguaçu. (TREECE, 2008, p. 97).

A Muhraida: o triunfo da fé

O poema de Henrique João Wilkens foi escrito em 1785, mas publicado em 1819, em Portugal, é ainda ignorado pelos historiadores da literatura brasileira. Seus versos homenageiam o Governador do Pará, João Pereira Caldas e Mathias Fernandes, então diretor da missão indígena que assentou os Muras (ou Murás) na região amazônica. Esses indígenas eram habitantes da margem direita do rio Madeira e participaram na rebelião da Cabanagem. Com vistas nessas homenagens, pode-se dizer que A Muhraida não vai além da própria narrativa histórica “mas ilumina a atitude contemporânea em relação à política indigenista oficial e a realidade de sua aplicação em nível local”. (TREECE, 2008, p. 98). O poema de Wilkens versa sobre a conversão, espontânea, súbita e surpreendente dos Muras, um verdadeiro triunfo da fé cristã e “o consequente 54 abandono de suas práticas de constante ataque aos colonos brancos e mesmo a índios de outras tribos”. (BASTOS, 2011, p. 107). Na verdade, o abandono da resistência dos Mura deveu-se às guerras violentas contras eles pelos Munduruku, à sequência de epidemias ocasionadas pelo contato crescente com os não-índios. Nenhuma dessas causas foi levada em consideração pelo poeta que optou pela versão popular segundo a qual a conversão dos índios fora fruto não das expedições militares, mas das fervorosas preces do bispo D. Fr. Caetano Brandão. (TREECE, 2008). Assim, o “herói” do poema seria Providência Divina, “responsável última pela conversão dos mura” e pela vitória sobre o Mal. Bastos (2011) cita a primeira estrofe do Canto I:

Canto o sucesso, que faz celebrado Tudo o que a Providência tem disposto Nos impensados meios admiráveis, Que confirmam os fins inescrutáveis. (p. 107).

O “sucesso”, no final das contas, foi do domínio português sobre “as almas obstinadas”, habitantes da floresta, assim descritos, como índios incivilizáveis, gente de “bárbara fereza”, “sem templo, culto ou rito permanente/Parece que esquecidos da Deidade”. Logo em seguida, no mesmo Canto I, o narrador épico descreve os Mura:

Nas densas trevas da gentilidade, Sem templo, culto ou rito permanente, Parece, da noção da divindade, Alheios vivem, dela independente, Abusando da mesma liberdade, Que lhes concede esse Ente Onipotente, Por frívolos motivos vendo a Terra Do sangue tinta, de uma injusta guerra. (WILKENS, 2012, p. 32).

Vemos, nesses versos, que a imagem do índio sem fé, sem rei e sem lei permanece inalterável; é a mesma ideia preconceituosa de Gândavo, no século XVI, presente ainda no discurso do narrador de A Muhraida, no século XVIII, e do poeta que tem “pouco apreço ao elemento indígena”. (BASTOS, 2011, p. 114). 55

Nos versos de Wilkens, os Mura são bárbaros, impiedosos e animalescos e, assim como todos os outros indígenas, estariam sob influência demoníaca. Em seu ensaio, Caldas (2006) afirma não encontrar na narrativa épica de José Wilkens uma cena de batalha, nem um conflito armado ou sequer um duelo físico. O que há é o relato da conversão dos indígenas, espontaneamente, pelo discurso do colonizador que promete aos Mura, “além da previsível libertação das almas e de donativos a partir da aceitação das condições coloniais, alguma participação nas relações comerciais que poderiam se estabelecer por meio do tratado de paz a ser firmado por aqueles gentios”. (CALDAS, 2006, p. 4): É o que lemos nos seguintes versos decassílabos do Canto III:

Tereis nos povos vossos numerosos Abundantes colheitas sazonadas, Vereis nos portos vossos vantajosos Comércios florescer,e procuradas Serão as armas vossas; poderosos Enfim sereis, amadas, invejadas Serão vossas venturas; finalmente Podereis felizes ser eternamente. (WILKENS, 2012, p.48 ).

Convencidos e depois reduzidos a apenas 1300 indivíduos, os Muras não mais representariam um obstáculo às políticas coloniais de desenvolvimento daquela região que seria conhecida depois como a região amazônica. Finalmente, o êxito da conversão se efetiva no Canto VI (e último) com o batismo de vinte indígenas Mura, como nos conta o narrador:

No templo de Maria renascidos, Na graça batismal, os inocentes Vinte infantes, alegres conduzidos Pelos bárbaros pai foram contentes. Se ausentes cumulados de presentes Penhor levando da felicidade, Em cada filho, de anjo a qualidade. (WILKENS, 2012, p. 76).

Nesse clima de happy end, os “bárbaros” e selvagens Mura convertidos passam a ser chamados de “inocentes” e, em seguida, seriam responsáveis pela difusão da fé cristã.

56

Breve menção: os índios nas Cartas Chilenas

O poema satírico de Tomás Antônio Gonzaga trata epístolas que Critilo (estando em Santiago do Chile) remete para Doroteu (na Espanha), criticando Fanfarrão Minésio por conta de seus abusos administrativos. Os personagens são apresentados pelo poeta, antes da dedicatória, já com rasgos de ironia:

Em que se contam os sucessos De todo o Governo de Fanfarrão Minésio, General do Chile. Escritas na língua Castelhana Pelo Poeta Critilo. Traduzidas em Português, E dedicadas Aos Grandes de Portugal Por um Anônimo. (GONZAGA, 2006, p. 23).

Sabe-se que o poema faz referências à administração de d. Luís da Cunha Meneses, governador da capitania de Minas Gerais de 1783 a 1788. Seus “sucessos” (na verdade insucessos) estão ligados aos excessos na construção da Casa de Câmara e Cadeia de Vila Rica, nos festejos de casamento de D. João e a princesa espanhola Carlota Joaquina, na administração das tropas militares. Na introdução de Joaci Pereira Furtado, na edição das Cartas Chilenas, tem-se a seguinte explicação para esses fatos retratados por Critilo: “Na verdade, o poeta utilizou-se de alguns acontecimentos e outros sinais visíveis naquele período apenas como ponto de partida para aplicar uma série de convenções retóricas, previstas nas normas literárias do arcadismo”. (FURTADO, 2006, p. 10). É um poema que, além de seu valor literário, traz intrinsecamente “o valor documentário de costumes da época e de registros de incidentes ilustrativos da corrupção instalada pelo Fanfarrão Minésio”. (COUTINHO, 2000, p. 258). Algo pouco visível – o índio – aparece mencionado na Carta Décima das Cartas Chilenas:

Mas, caro Doroteu, um Chefe destes, Só vem para castigos de pecados. 57

Os deuses não carecem de mandarem Flagelos esquisitos: quase sempre Nos punem com as cousas ordinárias. O mundo inda não viu senão um corpo Em branco sal mudado, e só no Egito Fez novas penas de Moisés a Vara. Perguntarás agora, que torpezas Comete a nossa Chile, que mereça Tão estranho flagelo? não há homem, Que viva de delitos graves; E aonde se amontoam os viventes, Em cidades, ou vilas, aí crescem Os crimes e as desordens aos milhares. Talvez, prezado Amigo, que nós hoje Sintamos os castigos dos insultos, Que nossos Pais fizeram. Estes campos Estão cobertos de insepultos ossos, De inumeráveis homens, que mataram. Aqui os Europeus se divertiam Em andarem à caça dos Gentios, Como à caça de feras, pelos matos. Havia tal, que dava aos seus cachorros Por diário sustento humana carne; Querendo desculpar tão grave culpa Com dizer, que os Gentios, bem que tinham A nossa similhança enquanto aos corpos, Não eram como nós enquanto às almas. Que muito pois que Deus levante o braço, E puna os descendentes de uns tiranos, Que sem razão alguma, e por capricho Espalharam na terra tanto sangue! (GONZAGA, 2006, p. 152).

Critilo faz referência ao massacre que os colonizadores planejaram contra os índios, um genocídio de grandes proporções executado por bandeirantes que viam o gentio como um obstáculo, uma pedra no meio do caminho, pois os impediriam de chegar ao ouro e às pedras preciosas. Mas pondera que tal atitude desumana pode ser castigada por Deus que, levantando o braço, punirá os descendentes dos tiranos. Mesmo não se conhecendo a opinião do autor sobre o tema indígena, temos nessa estrofe um “posicionamento indiscutivelmente condenatório do tratamento dispensado pelos brancos aos índios [...] formulado por um membro destacado dessa comunidade privilegiada”. (BASTOS, 2011, p. 123). Em seus versos decassílabos finais, lê-se o preconceito étnico em relação aos índios que, embora tivessem corpos semelhantes ao do homem branco, suas almas em nada se pareceriam.

58

O índio idealizado no Romantismo

Talvez pouca coisa tenha mudado quanto à situação dos índios na sociedade brasileira do século XIX, uma vez que essa questão ainda não fazia parte da concepção política da elite governante do país. Na Constituição de 1824, a questão indígena foi deixada em aberto durante a formação da nação brasileira e “os índios só estariam dentro da sociedade nacional uma vez que estivessem imbuídos da cultura ocidental, abandonando seus hábitos de origem, como idioma, vestuário, religião”. (SPOSITO, 2012, p. 27). Na busca da identidade nacional, movimentos nativistas passaram a se servir de elementos da cultura indígena para caracterização de grupos políticos brasileiros que queriam ser diferenciados de seus opositores portugueses.

De fato, em termos simbólicos, o que nos fazia diferentes dos portugueses era apenas e tão somente o substrato indígena, nossa única particularidade, já que os africanos, escravizados, não entravam na ordem do discurso da nação. (FUNARI; PIÑON, 2011, p. 83).

Foi um uso retórico de nomes indígenas (Sposito, 2012) do qual usufruíram D. Pedro I (com o codinome Guatimozín, o último imperador asteca), José Bonifácio (com o jornal Tamoio) e o deputado baiano Francisco Gomes Brandão, cujo nome foi recomposto a partir de palavras de origem tupi e asteca: Francisco Gê de Acaiaba Montezuma. Uma verdadeira mania na elite imperial que adotou nomes indígenas como Muriti, Jurema, Baitainga, Canguçu, tal era o prestígio da ancestralidade dos ameríndios, naquela época. (TREECE, 2008, p. 127). Na verdade, essa busca romântica em nomear e renomear pessoas (e até lugares) esteve longe de representar os interesses dos índios, porque foi justamente na segunda metade do século XIX – no Segundo Reinado – “que se promoveu um verdadeiro extermínio dessas populações, sem medidas apaziguadoras, com o suporte, inclusive, do capital inglês em áreas de expansão econômicas”. (SPOSITO, 2012, p. 111). Para a historiadora Sposito (2012), no Romantismo havia uma distância entre a realidade e a idealização do índio:

59

[...] no nível imaginário foram idealizados e valorizados; no plano real, houve uma política prevendo o controle e a gradual extinção de sua identidade autônoma. A idéia de “política do genocídio” aplicada ao movimento indianista é realmente precisa. (p. 46).

A causa indianista foi abraçada pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, fundado em 1838, que tinha como objetivos cuidar dos interesses históricos e geográficos da nação, descobrir grandes heróis da colonização: “foi fundado com a pretensão de tornar-se arquivo e guardião da história brasileira, estabelecendo parâmetros muito definidos relativamente ao que deveria ser ou não ser histórico ou historicizado”. (MELO, 2008, p. 35). Nessa concepção do IHGB, o índio passa a ter um papel importante para a construção da memória nacional. Mas, encontrou oposição em Varnhagen (1816-1878)17, um notório anti-indígena, para quem o conceito de nação estava restrito aos brancos. Era um representante da nova corrente de pensamento racista europeu que, nos trópicos, traduzia-se no seguinte raciocínio:

Como os índios não conheciam o sentido da pátria, que eles se sujeitassem ou que fossem tratados pela força, já que impediam a ação construtora e civilizadora do estado – da criação do todo colonial português, base do estado nacional brasileiro. (MELO, 2008, p. 119).

O país precisava entrar na “marcha da civilização”, assim como os índios que tinham que ser incorporados à sociedade brasileira, desde que deixassem justamente de ser indígenas. Seria uma integração feita a partir “do sequestro das terras indígenas e da destruição da economia coletiva de subsistência da cultura tribal”. (TREECE, 2008, p. 211). Na vertente indianista do Romantismo, o índio passa à condição de “herói da pátria”, mas dividindo sempre o espaço na literatura com os feitos grandiosos dos conquistadores. Ao estudar a presença das populações nativas na invenção do Brasil, Lima (2004) tece críticas ao Romantismo que, de acordo com seu ponto de vista, distanciava o escritor e o elemento nativo:

Quando, por imposição de uma tendência estética de época, o escritor romântico foi em busca da cor local, só pôde manejá-lo como elemento decorativo e exótico. Nosso indianismo não foi muito além das palavras

17 Francisco Adolfo de Varnhagen nasceu em Sorocaba (SP), foi secretário do IHGB, fundador da moderna pesquisa histórica do Brasil. Foi um ferrenho defensor do protagonismo português durante a colonização. 60

pinçadas no léxico indígena, usadas como ornamentos de linguagens que indicavam uma cultura remota e misteriosa para o próprio autor. (p. 50).

Apesar de todas essas críticas ao indianismo, à idealização do indígena, tem-se que ressaltar o novo olhar sobre esse segmento da sociedade que passou a ser valorizado: “O que houve de novo foi a integração do indígena, foi a sua incorporação à literatura com a cosmogonia, a concepção da vida, os hábitos, os gostos, os ideais que lhe são peculiares [...]”. (COUTINHO, apud TREECE, 2008, p. 223). Também Antonio Candido (2009) defende que todos os aspectos do Indianismo (medievalismo, idealismo e etnografia fantasiosa) têm seu lado positivo:

Sendo recurso ideológico e estético, elaborado no seio de um grupo europeizado, o indianismo, longe de ficar desmerecido pela imprecisão etnográfica, vale justamente pelo caráter convencional; pela possibilidade de enriquecer processos literários europeus com um temário e imagens exóticas, incorporados deste modo à nossa sensibilidade. (p. 405).

Para Coutinho (1983), o Romantismo enquanto movimento literário deu à literatura brasileira contribuições definitivas, como a criação dos gêneros literários com feitio brasileiro, a reivindicação de um dialeto brasileiro, a constituição da carreira literária do homem de letras e a ampliação do público leitor. E conclui que “é a partir do Romantismo que começa a existir no Brasil uma literatura própria, no conteúdo e na forma”. (COUTINHO, 1983, p. 177). O índio, como “símbolo da independência espiritual, política social e literária” (COUTINHO, 1983), está bem retratado em O Guarani, de José de Alencar, considerado o primeiro romance do movimento indianista. Em seu enredo, temos o personagem D. Antônio de Mariz, “fidalgo português cota d’armas e um dos fundadores da cidade do Rio de Janeiro” e “afeito a combater os índios”. (ALENCAR, 1999, p. 19). O curioso é que sobre a personagem Isabel – sua sobrinha – recaía a suspeita de ser ela “fruto dos amores do velho fidalgo por uma índia que havia cativado em uma das suas explorações”. (ALENCAR, 1999, p. 24). A menina tinha em seu poder o pó sutil do curau, veneno terrível dos selvagens; era detentora de um saber que pertencia somente a eles. 61

O narrador descreve o par romântico – representantes da Conciliação entre as raças – com traços bem antagônicos: Ceci, moça de grandes olhos azuis, de longos cabelos louros, lábios vermelhos e alvura nos ombros. Peri, por sua vez, “era o tipo brasileiro em toda a sua graça e formosura, com o encantador contraste de languidez e malícia, de indolência e vivacidade”. (ALENCAR, 1999, p. 39). O filho de Ararê era um Goitacá de olhos e cabelos negros, rosto moreno e de sorriso provocador. O amor da menina Cecília era cobiçado por Loredano, “um aventureiro de baixa extração, com uma sede de gozo” (ALENCAR, 1999, p. 65), o dedicado cavalheiro Álvaro e por Peri, o índio que a idolatrava. Na temática amorosa explorada no romance de Alencar, o sentimento que os três nutrem por Ceci é considerado pelo narrador como loucura (no caso de Loredano), como sinônimo de paixão (em relação a Álvaro) e como religião (para Peri o sentimento era mais um culto). Mas, além da questão sentimental que perpassa a narrativa, nossa leitura debruça-se sobre a representação do índio nas vozes dos personagens de O Guarani. Por Isabel, os indígenas são chamados de “fera bravia”, de um povo de “alma inculta”. Para D. Lauriana – esposa de D. Antônio – os índios são comparados a animais, como o cavalo, ou o cão. Na visão do escudeiro do fidalgo, Aires Gomes, os selvagens são vingativos e pela vingança “sacrificam tudo, a vida e a liberdade”. (ALENCAR, 1999, p. 46). D. Antônio, entretanto, tinha um olhar mais condescendente e reconhecia o julgamento tendencioso do homem branco. Diz o narrador:

D. Antônio não se admirava: conhecia o caráter dos nossos selvagens, tão injustamente caluniados pelos historiadores; sabia que fora da guerra e a vingança eram generosos, capazes de uma ação grande, e de um estímulo nobre. (ALENCAR, 1999, p. 124).

Desvela-se a visão generosa do colonizador (o senhor feudal) que vê no colonizado um súdito fiel e um bom selvagem; ambos, reunidos, constituem o mito sacrificial na mitologia romântica de Alencar: “[...] a entrega de Peri ao branco é incondicional e faz-se de corpo e alma, implicando sacrifício e abandono da sua pertença à tribo de origem”. (BOSI, 1992, p. 179). Há uma simbiose entre português e ameríndio (ou entre colonizador e colonizado), no qual o destino do nativo era tratado como sacrifício espontâneo 62 e sublime, chegando ao ponto de converter-se e mudar de nome: “É o senhor colonial que outorga nova identidade religiosa e pessoal ao índio”. (BOSI, 1992, p. 178). Não para todos os índios, pois os aimorés (inimigos da tribo de Peri) são descritos pelo narrador, ressaltando-lhes as características negativas:

Ora, o índio conhecia a ferocidade desse povo sem pátria e sem religião, que se alimentava de carne humana e vivia como feras no chão e pelas grutas e cavernas; estremecia com a ideia de que pudesse vir assaltar a casa de D. Antônio de Mariz. (ALENCAR, 1999, p. 99).

A antropofagia, a ausência de fé, lei e rei nas tribos indígenas estão presentes no discurso do narrador que recria aquela imagem do século XVI que retratava o gentio como selvagem, diabólico, carente da catequese e doente da alma. Mesmo acusado de inventar um selvagem falso (no caso do índio Peri), o crítico (1992) reconhece o valor estético em O Guarani (considerado por ele como uma prosa lírica), cuja beleza está “além da representação do dado empírico”, do “horizonte factual” que o texto busca espelhar. (BOSI, 1992, p. 180). Não só na prosa romântica, mas também nos versos de Gonçalves Dias (1823-1864), os índios são também exaltados, agora de maneira positiva, destacando-se sua bravura para enfrentar até a morte. Assim, ouçamos a palavra do índio na Canção do Tamoio:

I

Não chores, meu filho; Não chores, que a vida É luta renhida: Viver é lutar. A vida é combate, Que os fracos abate, Que os fortes, os bravos, Só pode exaltar. [...]

V

E pois que és meu filho, Meus brios reveste; Tamoio nasceste, Valente serás. Sê duro guerreiro, Robusto, fragueiro, 63

Brasão dos tamoios Na guerra e na paz.

[...]

VIII

Porém se a fortuna, Traindo teus passos, Te arroja nos laços Do inimigo falaz! Na última hora Teus feitos memora, Tranquilo nos gestos, Impávido, audaz. (DIAS, 2008, p.148-149).

Para Treece (2008), no imaginário indianista de Gonçalves Dias, aparecem bravos guerreiros individuais para quem a vida é uma luta sem fim pela autoafirmação e a morte não seria um fim trágico, mas uma extensão da vida que deve ser encarada com vigor e coragem. No poema Os Timbiras (1857), o poeta do exílio denuncia o legado de aniquilação e de escravismo presente no século XIX. No poema, propõe-se a cantar na lira as festas e as batalhas entre os povos americanos Timbiras e Gamelas, representados pela figura destemida de Itajuba ou o , “Acossador das feras, o guerreiro/Fabricador das incansáveis lutas”. (DIAS, 2008, p. 39) e pelo chefe corajoso dos Gamelas “Cioso d’alcançar renome e glória,/Vencendo a fama, que os sertões enchia”. (DIAS, 2008, p. 40). Vemos, nesse poema, a redução do índio aos padrões da cavalaria, um personagem idealizado, mas “uma construção lírica e heroica, de que resulta uma composição nova para sentirmos os velhos temas da poesia ocidental”. (CANDIDO, 2009, p. 404). Encontramos também, na poética de Gonçalves Dias, a figura feminina de Marabá, uma índia condenada a viver sozinha por ter os olhos da cor da safira, a alvura dos lírios e de loiros cabelos. Com todos esses traços físicos, Marabá não corresponde ao modelo de índia desejado pelos guerreiros e, por isso, tem seu destino trágico traçado:

Jamais um guerreiro da minha arazóia Me desprenderá: Eu vivo sozinha, chorando mesquinha, 64

Que sou Marabá! (DIAS, 2008, p. 147).

A palavra “marabá” significa mistura, mas no poema, ironicamente, a beleza da índia é aquela da Virgem clássica européia, pálida e de olhos azuis. (TREECE, 2008). O crítico Antônio Candido vê em Marabá o exemplo lírico da mulher de dois sangues, marcada pela incompreensão amorosa: “A marabá é desses monstros diletos do Romantismo (Quasímodo, Gwynplane), postos pela fatalidade aquém da plenitude afetiva: só que, neste caso, monstro extremamente belo [...]”. (CANDIDO, 2009, p.404, grifo do autor).

A ALDEIA E OS ÍNDIOS PARA CRIANÇAS E JOVENS

O índio, enquanto tema e personagem, esteve também presente na produção literária infanto-juvenil brasileira escrita por não-índios, no século XX e XXI. Escolhemos obras contemporâneas a Daniel Munduruku que visam dar um panorama do Brasil indígena, ora recontando mitos e lendas, ora tratando de aspectos culturais de alguns povos ameríndios, realizando um trabalho semelhante ao do autor-indígena, que tem o objetivo claro de reviver suas tradições, trazendo-as ao conhecimento de crianças e jovens. Encontramos, assim, pesquisadores da cultura indígena que militam a favor de uma minoria étnica e que escrevem a fim de mostrar para o leitor os valores e significados que norteiam a vida daqueles que enxergam o mundo de maneira diferente. Autores e ilustradores não-índios narram as mais variadas histórias dos indígenas brasileiros em seus livros, apresentando a diversidade de povos e tradições existentes em nosso país. Como há um grande número de obras que tratam do assunto, selecionamos o repertório de sete livros publicados a partir do ano de 2000, o que representa um pequeno recorte desse universo, que tem por objetivo 65 mostrar a postura de resgate e de preservação dos escritores no que diz respeito à cultura indígena, um trabalho literário e artístico feito a quatro mãos. O primeiro livro é de Telma Andrade (2000), Uma aldeia perto de casa, uma história narrada em primeira pessoa pelo personagem Marcelo. É uma história simples, mas rica de detalhes relacionados à cultura indígena. Toda a trama da narrativa se desenvolve a partir de uma pesquisa escolar sobre o Dia do Índio proposta pela professora. A pesquisa, na verdade, vai envolver toda a família de Marcelo que, com ele, vai até uma tribo Guarani para entrevistar o indígena Mbaecuapara (ou sábio) e para conhecer a vida nessa aldeia. Chegando lá, constatam que aquilo que imaginavam a respeito dos indígenas era bem diferente da realidade encontrada. Ao final da história, o narrador-personagem deixa claro o que esperava ver:

Não era aquilo também o que eu esperava encontrar. Sempre que pensava em indígenas, imaginava gente sem roupa, com pinturas pelo corpo, cocares, penas nos colares e pulseiras, mulheres com crianças nos cestos, ocas, danças, fogueiras. (ANDRADE, 2000, p. 14).

A imagem estereotipada que Marcelo e seus familiares tinham sobre os índios é desconstruída quando conversam com Mbaecuapara e percebem que na aldeia havia rádio, tevê, água e luz nas ocas de alvenaria. Mas, apesar do contato com o homem branco, os Guarani não perderam sua cultura e sua língua materna que é ensinada na escola da aldeia. O trabalho escolar sobre o Dia do Índio – 19 de abril – remete-nos à história que explica a data comemorativa. Em 1940, realizou-se na cidade de Patzcuaro (México), o I Congresso Indigenista Americano, do qual participaram antropólogos, pesquisadores e poucos índios. Como os indígenas só participaram efetivamente do encontro no dia 19 de abril, essa data passou a ser um dia consagrado a eles. Entretanto, no Brasil, somente em 1943, no governo de Getúlio Vargas, é que se oficializou o Dia do Índio, com o Decreto-lei 5.540. Adaptando um dos temas da cosmologia dos índios Karajá, o professor e ilustrador Rui de Oliveira publica A lenda do dia e da noite (2001), livro em que resgata e transforma a lenda indígena para que crianças conheçam um pouco desse universo indígena. O ilustrador usa cores, linhas e formas circulares, 66 inspiradas no imaginário visual dos Karajá, presentes nas pinturas corporais, como os dois círculos que desenham na face, o omarura. Em outra obra, A terra sem Males (2009), temos o mito Guarani recontado por Jackson de Alencar. A narrativa apresenta a fuga dos índios, a mando do Grande pai Nhanderu para o céu ou Yvymarã, um lugar onde as pessoas “não envelhecem nem morrem: aí não há sofrimento, doença, nem maldade”. (ALENCAR, 2009, p. 14). Além da história mitológica, encontramos no livro uma seção informativa sobre a história e a cultura dos índios brasileiros. Os ritos de passagem de alguns povos indígenas são reunidos por Prezia (2010), em seu livro Virando gente grande, escrito com o propósito de que o leitor conheça o mundo cultural dos povos indígenas do Brasil e descubra como cada povo tem sua própria maneira de viver. Para isso, apresenta os rituais dos Xavante, dos Nambiquara, dos Bororo, dos Guarani- Caiová, dos Tapirapé e do povo indígena amazônico Sateré-Mawé. Narrando uma história ficcional na aldeia Yanomami, as irmãs Daflon (2010) abordam o massacre de Haximu, ocorrido em 1993, em Roraima, um crime de genocídio, no qual garimpeiros mataram dezenas de índios. Daniel Spenser – o narrador de órfãos do Haximu – conta a sua trajetória de vida e de sua irmã gêmea Nape, separados durante anos pela tragédia que matara sua mãe. Ele fora criado na Inglaterra pelo pai, um médico que vivera com a tribo nos anos de 1980, quando conhecera Yarima, mãe dos gêmeos. Ela, por sua vez, fora “encaminhada a uma instituição que abrigava indígena em situação de risco”. (DAFLON, 2010, p. 17). Fora viver no abrigo de Uiramutã. O jovem protagonista tinha uma visão da cultura ameríndia enquanto antropólogo (aos 22 anos já era mestre na área), mas resolve retornar às suas origens – num processo de autoconhecimento – e passa a viver entre os Yanomami. Com o contato mais próximo com os indígenas, Spenser passa a entender o funcionamento da aldeia: “A sociedade endogâmica faz dos membros da aldeia uma grande família, onde todos se preocupam com todos e todos se divertem com todos”. (Daflon, 2010, p. 65). Nesse livro, a complicada questão da Raposa-Serra do Sol também é retomada pelo narrador. Historicamente, a demarcação das terras na região de 67

Roraima só foi realizada em 2005; antes disso, os índios e fazendeiros disputaram 1,7milhão de hectares, uma área considerada como uma das maiores reservas de urânio do mundo. (REBELO, 2010). Depois de um tenso episódio do rapto da senhora Blasser e de Naper, a questão das terras Raposa-Serra do Sol passou para a justiça, com a vitória dos índios que defendiam a reserva em área contínua. A advogada indígena Joênia Batista Wapixana, ao falar para o Supremo Tribunal Federal, inicia seu discurso no idioma de seu povo, dizendo: Waynau bii – em português, Basta de violência! Em 2011, Benedeto Prezia e Emerson Guarani publicam A criação do mundo e outras belas histórias, trazendo em seu conteúdo uma coletânea de mitos, reflexões, poemas e preces do povo ameríndio. Procuram, com esse trabalho, mostrar que os índios têm outra visão de mundo (muitas vezes considerada selvagem) e relembram que os indígenas fizeram parte de um doloroso processo histórico. Em verbetes explicativos sobre a diversidade étnica brasileira, a educadora e antropóloga Kahn (2011) escreve ABC dos povos indígenas no Brasil, uma obra que nos revela aspectos da cultura autóctone, indo de A (como ajuri, ou mutirão) a Z (no registro de zarabatana, um instrumento de caça), como um pequeno dicionário de palavras que nomeiam os ritos, os instrumentos, a religiosidade, a culinária, a arte dos povos de origem indígena, vocábulos esses que muitas vezes nem nos damos conta de sua origem. Assim, temos guaraná, jenipapo, piracema, urucum, xamã ou pajé, palavras muito conhecidas pelos brasileiros e outras de uso pouco conhecido, como quinhapira, wayãpi ou huka-huka. Inclui-se, nesse vocabulário indígena, o nome Nimuendaju ou Curt Unkel (1883-1945), importante pesquisador alemão e que se tornou “o autor do mais completo mapa sobre a distribuição desses povos em território brasileiro”. (KAHN, 2011, p. 25). Baseando-nos nesse pequeno número de livros publicados para crianças e jovens que tratam dos indígenas brasileiros, é fácil perceber o engajamento de não-índios estudiosos da cultura indígenas e que se tornaram divulgadores de um saber pouco explorado. 68

Hoje, é uma luta de todos e, para romper com o passado marcado pela dor da escravidão e do genocídio, é preciso unir forças e raças para construir uma sociedade que saiba conviver com as diferenças.

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CAPÍTULO III: A RAPSÓDIA INDÍGENA – LENDAS E MITOS RECONTADOS

A arte de narrar histórias está entrelaçada à própria história humana. Indispensável à construção de grupos sociais, narrativas de tradição oral, escrita e performática representam práticas de tessitura de imaginários, manutenção de saberes ancestrais, expressão artística, criação e legitimação de identidades. (Janice Thiél)

Daniel Munduruku, ao reunir em antologias os mitos e lendas indígenas, ou “encaixá-los” em muitos de seus livros, consegue apresentar para o público- leitor uma variedade grande de histórias que tratam dos mais temas diversos, tais como a origem do mundo e dos seres, como os sentimentos humanos (o medo e o amor, por exemplo). Enfim, traz ao conhecimento de todos narrativas que fazem parte de uma cultura pouco divulgada e, portanto, pouco conhecida pelas pessoas em geral. Organiza histórias contadas por diferentes etnias brasileiras, pois entende que, ao tratar-se da cultura indígena no Brasil, deve-se lembrar da diversidade de povos que habitam a maioria dos estados brasileiros. Somam- se a essa organização, informações sobre cada povo de onde foram retirados o mito e a lenda. A reunião das narrativas míticas e lendárias em antologias justifica-se por se tratar de um gênero que, de algum modo, “recria a situação da narrativa primordial: pessoas sentadas numa roda, contando histórias umas às outras”. (PRIETO, 2005, p. 8). E, quando vários autores entregam contos agrupados sob um determinado tema, como o amor, o medo, a criação do mundo, “a sensação que se tem, após a leitura, é a mesma de quando estamos numa noite chuvosa, por exemplo”. (PRIETO, 2005, p. 8). Nas suas coletâneas, encontramos mitos e lendas, dos Bororo, dos Munduruku, dos Taulipang, dos Makuxi, dos Karajá, dos Tembé e de tantas outras etnias que têm a sua maneira própria de “narrar o mundo”, muitas vezes seguindo uma lógica que se afasta daquela conhecida pelo mundo ocidental. Esse legado mitológico que Daniel Munduruku resgata da memória dos povos indígenas brasileiros, num trabalho de “reconto” (DÓRIA, 2008), será o 70 conteúdo do nosso terceiro capítulo, o qual será iniciado com uma explanação teórica em torno da conceituação dos mitos e das lendas.

OLHARES MÚLTIPLOS SOBRE AS NARRATIVAS MÍTICAS

O mito é uma realidade cultural extremamente complexa, que pode ser abordada e interpretada através de perspectivas múltiplas e complementares. (Mircea Eliade)

Sabe-se que as culturas indígenas se manifestam em “repertórios narrativos” armazenados na memória e repassados de geração a geração pelas mães e pelos mais velhos. Hoje, toda a tradição oral transformou-se em matéria-prima da literatura para crianças e jovens e fonte de valor para muitos de nossos escritores: povoam as várias edições de literatura atual, abrindo caminho para o jovem compreender o multiculturalismo. Temos a oralidade que passou para o domínio da escrita por mitólogos que fizeram com que os mitos indígenas existissem como signo no mundo impresso, no universo da leitura dos brasileiros. Nesse repertório da tradição, destacamos os mitos, entendidos como histórias verdadeiras que explicam, no plano religioso, as origens do mundo. Entre os índios, essas narrativas passadas in illo tempore têm a função de explicar a origem do mundo, sua organização, “o que seria sempre transmitido às novas gerações em forma de crenças, valores, leis – garantias da vida em comunidade”. (ALMEIDA; QUEIROZ, 2004, p. 251). Vamos começar nossa teorização a partir da etimologia: a palavra mito vem do grego mythos que significa uma fala, um relato, uma narrativa, cujo tema é a origem do mundo, dos homens, dos deuses, das relações dos homens com os deuses e assim por diante. Assim, os mitos contam uma história sagrada, relatam um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do princípio. Narram eventos impregnados do sagrado e devem ser rememorados e comunicados aos neófitos durante a iniciação. Explica como a realidade, graças aos Entes Sobrenaturais, passou a existir “seja uma realidade total, o 71

Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento, uma instituição”. (ELIADE, 1989, p. 11). É sempre a narração de uma “criação”: conta-se como qualquer coisa foi efetuada, começou a ser. Narra-se um acontecimento primordial que teve lugar no começo do Tempo, assim, trata da realidade sagrada, pois “tudo que é profano não participa do ser, visto que o profano não foi fundado ontologicamente pelo mito, não tem modelo exemplar”. (ELIADE, 1992, p. 80). Mircea Eliade (2004), desta forma, defende a funcionalidade social do discurso mítico, afirmando que “a principal função do mito consiste em revelar os modelos exemplares de todos os ritos e atividades humanas significativas: tanto a alimentação, como o casamento, o trabalho, a educação, a arte ou a sabedoria”. (p. 13). Para Zilberman (1994), o mito tem um conteúdo peculiar que identifica a forma onde quer que apareça: trata de contar o surgimento do mundo (no caso dos mitos cosmogônicos) ou de parte dele (nos mitos de origem). De acordo com a conclusão da pesquisadora:

O mito não é, pois, apenas um tipo de relato, mas se compõe de uma rede peculiar de temas – que dizem respeito ao aparecimento de uma instituição ou hábito – e de motivos – no interior dos quais se verificam a magia e o predomínio do mundo natural – que são recorrentes na cultura humana e afiançam a permanência desta modalidade de expressão. (p. 117).

Reiterando essa mesma linha de raciocínio, a antropóloga Ramos (1986) analisa os mitos

como veículos de informação sobre a concepção do Universo, incluindo temas sobre a criação do mundo, a origem da agricultura, as relações ecológicas entre animais, plantas e outros elementos, a metamorfose de seres humanos em animais e vice-versa e de ambos em espíritos de vários tipos e índoles, a razão de ser de certas relações sociais culturalmente importantes e até mesmo o surgimento do “homem branco” e a avalanche de fatores desagregadores que o acompanham. (p. 85).

Na perspectiva estruturalista de Jolles (1976), o mito é uma narrativa de “forma simples” que surge a partir de uma pergunta e uma resposta, ou melhor, recorre-se a ele para explicar o mundo e tudo que nele habita. Por isso, declara que: “[...] a história parte do homem que tenta explicar o que observou, o que lhe despertou curiosidade e que seus conhecimentos não são suficientes para explicar”. (JOLLES, 1976, p. 96). 72

Além disso, o universo do mito é um “universo sólido”. Como o autor exemplifica, o vulcão “não é apenas uma montanha que cospe fogo, mas sim o faz por estar habitada por algo maléfico capaz de cuspir fogo”. (JOLLES, 1976, p. 91). Lévi-Strauss (1989) levanta a hipótese de que os “povos primitivos” são movidos por uma necessidade de compreender o mundo que os envolve, sua natureza e a sociedade em que vivem. Por isso criam os mitos que seriam capazes de dar essa compreensão, pelo menos aparente: “O mito dá ao homem a ilusão de que ele pode entender o universo”. (p. 32). Nos mitos estão presentes seres mágicos ou deidades de todo o mundo e desempenham o papel de intermediários entre os poderes de cima e a Humanidade embaixo [...]”.(LÉVI-STRAUSS, 1989, p. 30). O pensamento mítico possui uma lógica própria, transmitida de geração para geração:

Longe de ser, como muitas vezes se percebeu, obra de uma “função fabulatória”, virando as costas à realidade, os mitos e os ritos oferecem como valor principal, a preservação até nossa época, sob uma forma residual, de modos de observação e de reflexão que foram (e sem dúvida permanecem) exatamente adaptados a descobertas de um certo tipo:aquelas que a natureza autorizava a partir da organização e da exploração especulativas do mundo sensível. Esta ciência do concreto deveria ser, por essência, limitada a outros resultados que àqueles prometidos às ciências exatas e naturais, mas ela não foi menos científica, e seus resultados não foram menos reais. (LÉVI- STRAUSS, 1989, p. 38).

Para o antropólogo inglês Goody (2012), o mito é uma forma particular de literatura oral que pode variar consideravelmente com o passar do tempo: “As pessoas inventam e preenchem as lacunas nos casos em que a lembrança não é perfeita”. (p. 54). O que explicaria, de acordo com a teoria do estudioso, a pluralidade de versões de um mesmo mito. A mitologia, segundo Campbell (2008), desempenha quatro funções fundamentais: mística, cosmológica, sociológica e psicológica. A primeira função seria a de conciliar a nossa consciência com a natureza humana. A função cosmológica visa à apresentação de uma imagem do cosmos, a forma do universo que nos cerca. O mito, em sua função sociológica, serviria para validar e preservar um sistema sociológico: “um conjunto comum daquilo que se considera certo e 73 errado, propriedades e impropriedades, no qual esteja apoiada nossa unidade social particular. (CAMPBELL, 2008, p. 36). A última função da mitologia – a psicológica – seria aquela em que o mito “deve fazer o indivíduo atravessar as etapas da vida”. (CAMPBELL, 2008, p. 37). É a mesma ideia de Carl Gustav Jung (1875-1961), que destaca no mito o poder de expressar o desenvolvimento psicológico, ao qual chamou de “processo de individuação” ou o “tornar-se si mesmo”. Ainda buscando conceituar o mito, Campbell (1990) explica que ele nasce da nossa busca da verdade, de sentido, de significação, através dos tempos e nos oferece modelos de vida que devem ser adaptados à época em que se está vivendo. A Psicanálise também se debruçou sobre as narrativas míticas, entendendo-as como projeções do inconsciente, uma espécie de celeiro onde a mente consciente armazena fantasias sexuais que prefere desconhecer. (RUTHVEN, 2010). Assim, os mitos para Sigmund Freud (1856-1939) estariam repletos de conteúdo sexual. Numa visão discordante, o analista Carl G. Jung (1875-1961) concebe o inconsciente como detentor de imagens primordiais, seja no nível do “inconsciente pessoal” ou no nível do “inconsciente coletivo”, este muito mais profundo, cujo conteúdo é idêntico em todos os seres humanos. Em 1919, pela primeira vez, Jung denominou esse conteúdo do inconsciente coletivo de “arquétipos”. Para C. G. Jung, encontraríamos nos mitos imagens arquetípicas e a mitologia seria a psique coletiva e não individual. Destaca ainda a importância de estudar mitologia para que se possam fazer analogias com as imagens simbólicas do inconsciente. Mesmo com todas as diferenças conceituais em torno dos mitos, Freud e Jung reconhecem a nossa fascinação pelo tema. Em seu ensaio sobre mitos e os ensaístas, Ruthven (2010) mostra-nos em que ponto os estudiosos da mente humana convergem: “Os dois assumem que, de alguma forma, nós sabemos o que o mito está nos dizendo, muito antes de sabermos que sabemos”. (p. 34). Ao tratar de temas da teoria junguiana, Santos (2008) cita a definição de Danielle Pitta: 74

Mito é um relato fundante da cultura: ele vai estabelecer as relações entre as diversas partes do universo, entre os homens e o universo, entre os homens entre si. [...] É ainda a função do mito fornecer modelos de comportamento, ou seja, permitir a construção individual e coletiva da identidade. (p. 31).

Aproximando-se desse conceito, Daniel Munduruku explica-nos que os mitos são sempre formas fantásticas de contar como as coisas aconteceram e “explicam tudo de forma a ordenar a vida das pessoas em comunidade”. (MUNDURUKU, 1996, p. 51). Nessa perspectiva, para as sociedades indígenas o mito é “vivo” no sentido de que fornece os modelos para a conduta humana, conferindo, por isso mesmo, significação e valor à existência. Os mitos formam a consciência social, apresentando as narrativas e os comportamentos desejáveis a um indivíduo. Destaca, assim, a função sociológica da mitologia, conforme apresentou Campbell (2008) que entende que os mitos são histórias autênticas, isentas de crítica, assim como as leis do próprio universo: “Elas não podem ser mudadas; ninguém pode ir contra elas, sob pena de destruir a si mesmo”. (CAMPBELL, 2008, p. 36). Para os índios,

os mitos permeiam a vida cotidiana, não como criação alheia e alienadora, mas como base sobre a qual se desenvolvem as sabedorias, como se houvesse, desde tempos imemoriais, vozes mestras que, hoje, e em português, denominadas tradição, ensinam ou contam como as coisas devem ser. (ALMEIDA; QUEIROZ, 2004, p. 235).

Todas essas teorias são avaliadas por Schaden (1945) como tentativas de descobrir a força criadora dos mitos, mas que falharam por serem exclusivistas, ou seja, generalizaram suas conclusões. Assim, esqueceram-se de “compreender os mitos como produtos da constante interação de um conjunto de forças psíquicas e sociais, atuando ora simultânea, ora sucessivamente”. (SCHADEN, 1945, p. 10). O autor propõe uma sociologia dos mitos que têm, a seu ver, a função de contribuir para a solidariedade social. Segundo o pesquisador, os mitos dão aos membros da tribo o senso de unidade e de oposição aos outros grupos. E acrescenta: “[...] as narrações míticas reforçam a coesão moral do grupo, acentuando, nos membros da comunidade, a atitude etnocêntrica e o senso do destino comum”. (SCHADEN, 1945, p. 16). 75

Nesse sentido, o herói mítico ou civilizador pode ser entendido como a expressão da organização social, da vida religiosa, e das atividades econômicas da tribo. Dessa forma, o herói expressa a cultura do povo e a “recordação” da história da tribo e o ideal de vida a ser realizado pelo indivíduo e pela comunidade. Nas tribos indígenas, o herói mítico pode assumir várias feições, aparecendo como salvador ou redentor, como um ser ordenador e legislador ou até como heróis gêmeos, funcionando como protagonistas da história, na qual empregam ardilosos estratagemas para derrotar os monstros. Nas narrativas indígenas, muitas vezes são atribuídas ao herói tarefas desempenhadas no passado, que se situam no futuro e outras que lhe cumpre realizar no presente ou continuamente. (SCHADEN, 1945). Levando-se em conta essas considerações sobre o mito, é fácil perceber que se trata de um tema controverso, de investigação polêmica que é estudada sob os mais vários ângulos. Etnólogos, estruturalistas, antropólogos, psicanalistas, linguistas e sociólogos, segundo Moisés (2004), todos “têm-se empenhado na elucidação dos aspectos semânticos do mito ou na sua utilização como instrumento de análise dos fenômenos em que está presente”. (p. 299). Ao lado de tantas reflexões em torno do tema, ainda podemos ler os seguintes versos enigmáticos e paradoxais do poeta português Fernando Pessoa (1888-1935), em sua tentativa de explicar o mito:

O mito é o nada que é tudo. O mesmo sol que abre os céus É um mito mais brilhante e mudo – O corpo morto de Deus, Vivo e desnudo.

Este, que por aqui aportou, Foi por não ser existindo. Sem existir nos bastou. Por não ter vindo foi vindo E nos criou.

Assim a lenda se escorre A entrar na realidade, E a fecundá-la decorre. Embaixo, a vida, metade De nada morre.

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AS LENDAS: HISTÓRIAS PARA SEREM LIDAS

Ainda dentro do “repertório narrativo” indígena, destacam-se as lendas, que têm como constante o traço religioso: “Exige igualmente uma ação, um desenrolar, um plano lógico, no utilitarismo tribal. Não há, quase, lendas inúteis e desinteressadas. Todas doaram alguma coisa, material ou abstrata”. (CASCUDO, 2006, p. 105). As lendas estariam envoltas numa atmosfera sobrenatural e explicariam um hábito ou uma romaria religiosa. A própria história do termo “lenda” (do latim legenda, “para ser lido”) nos mostra que era um termo utilizado especialmente para as histórias de santos na Europa Medieval católica, cujas virtudes deveriam ser imitadas. Havia as lendas de mártires, de confessor, de conversão, de visionários, de relíquias, de milagres, de virgens, de salvadores e até antilendas, que eram histórias de pessoas distantes de Deus, como Judas e Pilatos. (LURKER, 2003). A vida dos santos e seus atos foram compilados numa época em que a legenda era quase a única leitura existente. Como nos conta Jolles (1976): “Foi no século XVII, época importante, aliás, para a definição de santidade, que se elaborou a primeira coletânea da vida dos santos reconhecidos pela Igreja Católica”. (p. 31). No final da Idade Média, a legenda perde sua “vitalidade universal” com a Reforma e os santos deixaram de ser “heróis virtuosos”, cuja virtude não mais se confirmava por milagres e não mais se reconhecia o poder individual de personalidades celestes. (JOLLES, 1976). Com o enfraquecimento dessas narrativas, os próprios santos foram, em grande parte, banidos dos países do norte da Europa protestante. Hoje temos modelos imitáveis que ainda trazem consigo “resíduos tradicionais de épocas anteriores”, presentes nas hagiografias católicas. São heróis que têm uma performance ou ótimo desempenho, a ponto de atingir um record. Palavra essa que vem de recordari, que significa “lembrar-se”: os grandes feitos – como dos campeões esportivos - que devem ser lembrados sempre e premiados porque representam um clube ou um país. 77

A lenda é uma narrativa de cunho popular, portanto, sua origem é a oralidade, responsável por sua transmissão de geração para geração. Ensina- nos a valorizar os interesses coletivos mais do que os individuais. Está presente nela um utilitarismo tribal. Não há, quase, lendas inúteis e desinteressadas. Todas doaram alguma coisa, material ou abstrata. Muitas vezes, a lenda é confundida com o mito, mas dele se distancia pela função e pelo confronto. O mito pode ser um sistema de lendas, gravitando ao redor de um sistema central, com área geográfica mais ampla e sem necessária fixação no tempo e no espaço. (CASCUDO, 2006). Os personagens das lendas não são deuses, são seres humanos e o local é indicado com precisão. As lendas explicam a formação das cidades, a origem dos povos, os fenômenos da natureza, os heróis nacionais. No nosso folclore brasileiro aparecem muitas lendas, dentre elas, a do Boitatá, do Caipora, do Boto, do Cobra-Grande. Quando se levam em conta as diferenças entre mitos e lendas, é importante fazer duas observações a respeito da concepção que os povos indígenas fazem de ambos os termos. A primeira é que eles se recusam a aplicar às suas narrativas o termo lenda, pois entendem que a lenda está mais desvinculada do povo, isto é, está menos ligada a um povo específico, enquanto que o mito é um patrimônio cultural de um povo. A segunda observação a ser feita é que, apesar de elementos fantásticos que povoam as narrativas indígenas, o mito é verdade para o povo que o cultiva, está profundamente enraizado no seu tecido social, distinguindo-se, portanto, da lenda e, sobretudo da superstição. (BRANDÃO, 2011). Independente dessa discussão em torno dos termos, o trabalho de Daniel Munduruku de reunir lendas, mitos e recontá-los para leitores de todo o Brasil parece-nos o mesmo dos rapsodos gregos que recitavam fragmentos de poemas épicos, feito declamadores ambulantes, que iam de cidade a cidade, propagando a Ilíada e a Odisseia. (MOISÉS, 2004). É verdade que não é nenhum vendedor ambulante de seus livros, mas vai de cidade em cidade de todo o Brasil contar histórias de sua gente, com orgulho de quem se reconhece índio, um índio-autor que escreve para crianças, jovens e adultos com o intuito de romper barreiras, quebrar preconceitos. 78

Incansável em sua luta pelo respeito à diversidade étnica e cultural que constitui o Brasil, Daniel Munduruku aposta na literatura como veículo de difusão da tradição indígena, de uma memória ancestral que une os povos e dá-lhes sentido de estar no mundo.

A HARMONIA HÍBRIDA ENTRE A ORALIDADE E A ESCRITA

Sabe-se que os mitos, as lendas e as fábulas indígenas constituem, antes de serem registrados pela escrita, um rico material de natureza oral que foi repassado pela tradição. Trata-se da “oratura”, termo retomado por Graúna (2013), ao repetir o conceito registrado no dicionário de Houaiss que o define como um “conjunto de saberes, fazeres e crenças retidos oral e mneumonicamente pelas sociedades primitivas, como se de literatura se tratasse, mas antes do advento das letras e suas decorrências na história do homem”. (apud GRAÚNA, 2013, p. 86). Em muitas sociedades indígenas brasileiras, a “oratura” veio acompanhada pela escrita alfabética recentemente introduzida pela via de uma língua diferente da língua local e há aquelas que conservam a tradição oral, com uma picturalidade muito viva, nas decorações de potes, nas tatuagens. (CALVET, 2011). Para o primeiro grupo, é importante pensar no processo de transcrição das histórias indígenas pela escrita. Nesse processo, deixa-se de fora a dinâmica do processo performativo da narrativa oral, ou seja, deixa-se de mencionar as técnicas do narrador para garantir a atenção do público, como as mudanças de entonação, o uso de repetições e a expressão corporal. Segundo Zumthor (2010), a performance é o principal fator constitutivo do que ele chama de “situação de comunicação”, que seria constituída dos seguintes componentes: o tempo (dos ritos, social, estações), o lugar (a aldeia, o terreiro) e dos participantes ou ouvintes. A performance ainda põe em presença atores (emissor e receptor) e, em jogo, os meios (voz, gesto). 79

Nesse trabalho de transcrição, deixa-se de mencionar também o autor, que, na cultura oral, é coletivo. Assim, o contador que reescreve as narrativas indígenas apenas repete o que foi herdado dos antepassados. Outro dado importante a mencionar é que, quando registradas no papel, as histórias míticas passam a ser padronizadas, congeladas no papel com uma única forma invariável da narrativa, deixando de ser atualizadas. (SOUZA, 2003). Ainda assim, algumas características da oralidade se mantêm, como a condensação dos enredos, a informalidade, a coloquialidade da linguagem e o uso de expressões que marcam o início e o fim das histórias. O fato é que os mitos e lendas indígenas, outrora transmitidos oralmente, são hoje recriados/recontados pelos autores indígenas em obras escritas, dando- lhes uma dimensão estética e conferindo-lhes caráter literário, na medida em que são escritos, editados e publicados em forma de livro, para serem lidos tanto por um público indígena, quanto por um público “branco”, mesmo que seja em menor escala. (GUESSE, 2011). Os autores indígenas conseguem com esse trabalho manter viva a memória social, tornando-a presente num lugar e num tempo do qual ela está distante. Passam a registrar as narrativas míticas contadas pelos pajés, pelos anciãos da aldeia, que são os detentores do saber ancestral. Esses podem ser comparados aos “narradores anônimos” de Walter Benjamin (1892-1940), expressão usada pelo crítico no seu estudo sobre o narrador, ao estudar o escritor russo N. Leskov (1831-1895), autor de uma série de narrativas lendárias a partir de suas viagens a serviço de uma firma inglesa. Com a modernidade, houve mudança na forma pela qual se vive, mudança na qual a humanidade é privada “de uma faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências”. (BENJAMIN, 2012, p. 214). Walter Benjamin lamenta o desaparecimento, na narrativa europeia, da figura artesanal e popular do narrador, considerados pelo teórico alemão como os decanos da arte de narrar. 80

Os narradores arcaicos seriam aqueles que tinham o que contar depois de suas viagens (como os marujos) e aqueles que conheciam bem suas histórias e tradições, sem sair do lugar (como os camponeses). Segundo o crítico alemão, o surgimento do romance (difundido pela invenção da imprensa) e a difusão da informação são causas do declínio da arte de narrar. Entretanto, se pensarmos em termos de literatura indígena brasileira contemporânea, podemos dizer que, desde a década de 1990, tem-se a experiência coletiva e individual de narradores não mais anônimos, que buscam narrar seus mitos e lendas, desta vez contados por eles mesmos. Desde então, houve o esforço dos indígenas em preservar a tradição oral, muitas vezes considerada “primitiva” pelo preconceito ocidental. Com o registro escrito, as histórias puderam ser resgatadas e saírem do anonimato, fato que fortaleceu a cultura e a identidade indígena brasileira. A literatura escrita veio contribuir para reforçar a identidade indígena. Para Guesse (2011): “[...] esse é o maior objetivo dos escritores indígenas brasileiros, quando tiram suas histórias, cantos, mitos e poemas do âmbito da oralidade e eternizam-nos no âmbito literário”. (p. 9). Assim, pode-se falar na estreita relação entre a tradição oral e a escrita presentes na literatura indígena, que consegue unir o antigo com o novo, a escrita com a oralidade, numa harmonia híbrida.

MITOS RECONTADOS: A RAPSÓDIA INDÍGENA

Contar é antes de tudo procurar, instaurar um prazer, o de estar junto.

(Maria Inês de Almeida e Sônia Queiroz)

Explicar a origem do mundo, dos homens e da natureza na voz dos chefes indígenas, dos pajés e das mães sempre foi uma tarefa importante para manter vivas as tradições e os costumes, seja através da poranduba, conversa da ceia, quando se contavam fatos fantásticos ou míticos, seja pela 81 maranduba, histórias que os chefes contavam a tribo, perpetuando os feitos de seus avós, esta última denominada assim especialmente na região amazônica. Em todos os mitos indígenas encontramos indiferenciação entre humanos e animais, que se relacionam como iguais; céu e terra que, de tão próximos, quase se tocam. Encontramos gêmeos primitivos, povos que surgem do mundo subterrâneo, transformações e seres mágicos. Todos esses temas míticos narram aventuras e seres primordiais, em linguagem fabulosa, mas construída com imagens concretas; situadas em um tempo primordial, no entanto referidas ao presente, encerrando perspectiva de futuro e carregando experiências do passado. (SILVA, 1994). A nossa proposta é apresentar mitos de etnias diferentes, fornecendo, após o enredo de cada um, dados do contexto sociocultural em que eles emergiram. Em seguida, procuraremos analisá-los, a partir da estrutura geral que compõe cada mito, com seus elementos narrativos: o tempo fabuloso e linear, os heróis míticos ou civilizadores, o enredo marcado por metamorfoses dos personagens, o narrador em 3ª pessoa. E, para que se conheça melhor a tradição cultural de alguns povos indígenas, apresentamos dados etnográficos que podem ser identificados a partir de informações implícitas no conteúdo narrativo do mito em estudo. Assim, além de se conhecer os mitos, trazemos algumas informações sobre as etnias e se obtêm conhecimentos a respeito da realidade vivida pelos indígenas, tantas vezes ameaçados de extinção e tendo que se submeter às políticas injustas que os ameaçam de perder suas terras e suas identidades. Trata-se de uma maneira de mostrar os “índios de verdade” e a sua maneira de estar no mundo. Com a rapsódia de mitos indígenas brasileiros recontados por Daniel Munduruku, tem-se um trabalho de resgate da cultura dos povos que contribuíram para a formação da identidade nacional. Reconhecem-se, assim, os mais variados universos socioculturais nos quais encontramos os mitos, que podem ser analisados como criações originais de cada grupo com identidade própria. Assim, como são diversos os grupos indígenas, múltiplos são os temas de que tratam as narrativas mitológicas que contam a origem do mundo, da natureza, das tribos, dos alimentos e que falam também sobre a vida social. 82

Por isso, fixamos nosso corpus de mitos indígenas, para que não nos perdêssemos nesse universo narrativo, a algumas histórias que pudessem contemplar temáticas variadas, mesmo sabendo que nossa proposta não conseguisse mostrar, de fato, a diversidade étnica e cultural que marcam as sociedades ameríndias brasileiras. Na análise de Silva (1994), as cosmologias indígenas tratam de temas com que se preocupam todos os homens, em maior ou menor escala, com menor ou maior grau de elaboração, expressão ou consciência: “São temas, como se vê, que remetem à essência mesma do que significa ser humano e estar no mundo”. (p. 82). Começamos, então, a rapsódia indígena apresentando a origem mítica de alguns alimentos. A origem do milho, da mandioca, por exemplo, é recontada por Daniel Munduruku através das narrativas que estão reunidas em Como surgiu? (2011) que reverencia nessa obra os povos Apinajé e Tembé.

Os Apinajé e o surgimento do milho

Os Apinajé habitam as terras localizadas entre a margem esquerda do rio Tocantins e a margem direita do Araguaia, no norte do estado do Tocantins. Hoje ocupam uma área de cento e quarenta mil hectares de terras demarcadas e homologadas. Com uma população de um pouco mais de mil e oitocentas pessoas, os Apinajé habitam quatorze aldeias (FUNASA, 2010). Sofreram um processo de depopulação, desde o início do século XIX, até a década de 1960, quando chegaram a apenas duzentas pessoas. A partir de então, seguem uma tendência de recuperação da população verificada na maior parte dos grupos indígenas que habitam o Brasil. Reconta-nos Daniel Munduruku que, para os Apinaijé, o milho surgiu quando um viúvo, cheio de tristeza, resolveu deixar os cabelos crescerem e decidiu dormir nas moitas do lado de fora da casa. Com pena, uma rã se transforma em uma linda moça – Candiê- Caéi – e trouxe para ele uma cesta de batata e inhame que ele não conhecia. Na 83 verdade, a rã era uma estrela que viera do céu para confortá-lo. Ele teria que voltar para o céu “quando a noite já estivesse para ser despertada”. (MUNDURUKU, 2011, p. 6). Numa outra vinda da estrela à terra dos Apinajé, o moço – assim que amanhecera – coloca a estrela em um cesto de palha e guardou-a para que ninguém a visse. Só que seu irmão mais novo descobre tudo sobre a “estrela em forma de mulher”. Logo em seguida, o homem resolveu assumir publicamente a mulher que tinha uma pele muito clara, bem diferente das mulheres da tribo. Certo dia, a moça, sua sogra foram ao rio se banhar. Lá, transforma-se magicamente em um gambá e pula nos ombros da sogra, que o atira longe. Na terceira vez, tomou a forma humana e revela à que, a partir de então, os parentes deveriam comer o milho que dava numa grande árvore e não mais somente o pau puba. De volta à aldeia, todos ficaram conhecendo o milho e o bolo de milho que a moça ensinara a sua sogra fazer. E, como todos ficaram encantados com o alimento, “decidiram derrubar a árvore que brotava o milho”. (MUNDURUKU, 2011, p. 7). Não conseguiram êxito e mandaram dois meninos até a aldeia para pegar um machado melhor. No caminho encontram um gambá: mataram-no, comeram-no e os curumins envelheceram tanto a ponto de não conseguirem nem andar. Foram encontrados e levados para a aldeia, onde receberam tratamento do pajé, que os transformou de novo em meninos. Com o machado mais forte, os homens conseguem derrubar a árvores e foram aconselhados a abrirem uma roça e plantarem o milho. Assim o fizeram, e até hoje o povo Apinajé gosta de comer milho. No final, Candiê volta para o céu “de onde poderia olhar para todos os Apinajé”. (MUNDURUKU, 2011, p. 10). A história Apinajé recontada por Munduruku (2011) é iniciada num tempo mítico, um “tempo muito antigo”, quando no mundo ainda não se conhecia o milho e a mandioca, e no tempo em que os animais falavam. 84

Não explicitar o tempo é um recurso narrativo que garante a perenidade do gênero mito que atravessa os tempos e faz com que cada geração que o escuta se sinta seu destinatário. (JESUS; BRANDÃO, 2011). Narrado em terceira pessoa, ou seja, por um narrador impessoal, o mito dos Apinajé sobre a origem do milho traz-nos uma situação inicial marcada pela falta, na figura do personagem não nomeado, mas apresentado como um “viúvo” triste. Encontramos o elemento mágico – a estrela Candiê – que vem do céu para confortar o viúvo solitário. O seu intento se realiza através das metamorfoses, transformando-se primeiramente em uma rã e depois num gambá, quando fora ao rio com a sogra. Esse ser mágico e as mutações por que passa a protagonista da história podem ser entendidos como marcas do fantástico e o inverossímil, provocando no leitor não-índio a sensação de estranhamento, assuntos analisados por Todorov (2007) ao estudar a literatura fantástica. Entretanto, as metamorfoses dos personagens são entendidas pelos indígenas como processos imanentes aos mitos. O crítico literário Tzvetan Todorov dedicou-se a estudar o maravilhoso, o fantástico e o estranho como gêneros textuais. Para ele, o fantástico pode ser definido como “a hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis naturais em face de um acontecimento aparentemente sobrenatural” (TODOROV, 2007, p. 31). Explicando com mais detalhes, Todorov (2007) ressalta que:

Num mundo que é exatamente o nosso, aquele que conhecemos, sem diabos, sílfides nem vampiros, produz um acontecimento que não pode ser explicado pelas leis deste mundo familiar. Aquele que o percebe deve optar por uma das duas soluções possíveis: ou se trata de uma ilusão de sentidos, de um produto da imaginação e nesse caso as leis do mundo continuam a ser o que são; ou então o acontecimento realmente ocorreu, é parte integrante da realidade, mas, nesse caso, esta realidade é regida por leis desconhecidas por nós. Ou o diabo é uma ilusão, um ser imaginário; ou então existe realmente, exatamente como os outros. (p. 30-31).

Se os acontecimentos sobrenaturais recebem, ao final da história, uma explicação lógica e racional, desfazendo-se todo o conteúdo extraordinário (como frutos do sonho, da influência de drogas, da loucura), então, estamos entrando no território do estranho. 85

O maravilhoso, ainda que seja um gênero próximo do fantástico, aceita o sobrenatural sem questionamentos. Segundo Todorov (2007):

Relaciona-se geralmente o gênero maravilhoso ao conto de fadas; de fato, o conto de fadas não é senão uma das atividades do maravilhoso e os acontecimentos sobrenaturais aí não provocam qualquer surpresa: nem o sono dos cem anos, nem o lobo que fala, nem os dons mágicos das fadas (para citar apenas alguns elementos dos contos de Perrault). (p. 60).

Também os mitos indígenas são narrativas dos tempos maravilhosos, nos quais se vivia em estado de contemplação do mundo, em um universo marcado pela aura do sagrado. (BASEIO, 2012). No entanto, os indígenas veem suas narrativas míticas não como algo fantástico, mas como portadores da verdadeira história do mundo. No entendimento de Jesus; Brandão (2011):

Apesar dos aspectos fantasiosos, dos elementos fantásticos e aparentemente ilógicos que o povoam, o mito é verdade para o povo que o cultiva, está profundamente enraizado no seu tecido social, distinguindo-se, portanto, da lenda e sobretudo da superstição. (p. 54).

Tais elementos mágicos são encontrados no mito Apinajé, cujo protagonista é o personagem feminino vindo dos céus que vai revelar aos membros da aldeia o milho que, a partir de então, passará a fazer parte da alimentação de todos. Seria, portanto, a heroína mítica, que trouxe um ensinamento para a coletividade. Assim, temos uma heroína vinda do céu personificada na narração mítica em que os astros (o sol, a lua, as estrelas) vão compor os chamados “mitos astrais”, segundo Schaden (1945). Repete-se nessa narrativa indígena a ideia do “eterno retorno” apresentada por Eliade (1992b): os índios saem da aldeia, vencem os obstáculos que os impedem de alcançar os objetivos e voltam à tribo, sempre repartindo coletivamente o conhecimento aprendido. No desfecho da história, depois de cumprida a missão junto dos Apinajé, Candiê volta ao céu, fechando o ciclo narrativo do mito. Além dessa estrutura narrativa canônica (situação inicial, elemento complicador, clímax e desfecho), podemos ler o mito como uma narrativa rica 86 em dados etnográficos, como a divisão das tarefas a serem desempenhadas na aldeia pelo homem e pela mulher. Para os Apinajé é a mulher que vai cuidar do plantio da terra para colher o milho e os homens executam o trabalho braçal de derrubar as árvores com o machado. Outro elemento etnográfico presente nesse mito indígena é a ausência de preocupação de acumular, conforme nosso modelo capitalista. No mito em questão, o conhecimento do novo alimento é compartilhado por todos e é para todos que Candiê distribui o milho.

Os Tembé e a origem da mandioca

Habitantes do nordeste do estado do Pará, noroeste do Maranhão e o estado de Minas Gerais, os Tembé têm hoje uma população de cerca de mil e quinhentas pessoas. Formam um subgrupo dos tenetearas e falam a língua de mesmo nome. Para explicar o surgimento da mandioca, os Tembé recorrem à história mítica que se passa numa época em que os índios dessa etnia só comiam o camapu. Contam os antigos que, certa vez, apareceu na roça dos Tembé um homem que queria plantar mais camapu e foi logo interrogado pelo pajé Maíra que recebe uma resposta não muito agradável. Irritado com a insolência do moço, o pajé usa os seus poderes e faz a floresta escurecer e uma forte chuva caiu sobre a plantação do homem. Sentindo-se prejudicado, resolve matar Maíra para vingar-se. No caminho, encontra uma abóbora e com ela ensaia como matar o pajé, só que acidentalmente “a faca atravessou-lhe a garganta matando-o imediatamente”. (MUNDURUKU, 2011, p. 11). No caminho, encontra um outro homem que estava plantando camapu; este pede a Maíra que queria ter uma grande plantação de mandioca. Usando seus poderes, o pajé “transformou as árvores cortadas da plantação em 87 manivas (ou mandiocas) e ensinou-lhe como deveria plantar”. (MUNDURUKU, 2011, p. 12). Na casa do moço, decidiram fazer uma deliciosa manicuera18 e, para fazê-la, pediu ao homem que fosse buscar mandioca na roça, mas o homem não acreditou que já estariam brotando mandiocas. Pela falta de fé, o pajé amaldiçoou-o a colher mandioca apenas uma vez por ano. Aborrecido, Maíra deixou aquele lugar. O pajé tinha poderes sobre a natureza e transformou uma bela árvore em uma mulher para que ela fosse sua companheira. Viveram juntos algum tempo, até que ele resolve partir novamente, sem saber que sua esposa estava grávida. Tempos depois, o filho em sua barriga mostra-lhe o caminho para reencontrar o pai. No trajeto, encontrou-se com Micura que lhes dá hospedagem, mas “tinha planos para aquela mulher”. (MUNDURUKU, 2011, p. 13). Dormiram juntos e, ao amanhecer, já tinha outro filho em seu ventre. Os dois irmãos brigavam, disputando o mesmo espaço na barriga da mãe. Sem mais mencionar Micura, o narrador continua a história rocambolesca da mulher que sai atrás do marido. Ela caminha até a casa das onças, onde apenas uma velha se encontrava. Fora advertida pela senhora que se escondesse, pois as onças já estavam de volta, sem nada conseguirem caçar. A mulher grávida conseguiu se esconder num cesto, graças à mágica do filho de Micura que a transformou numa garça. No entanto, fora descoberta pelas onças que tentaram de tudo para comê-los, sem sucesso. No dia seguinte, os meninos viram dois papagaios que foram criados pelas onças e, quando crescidos, voltam a ser meninos. Os animais ensinam- lhes a fazer arco e flecha para caçar passarinhos. Certa vez, encontraram-se com um japuaçu que lhes conta que sua mãe fora devorada pelas onças. Magoado, um dos meninos vai para o mato e faz um vespeiro que joga na cara da velha, mãe das onças. Os dois meninos se tornaram homens e dirigiram-se para a floresta, onde trançaram, com palha de arumã, abanadores e tipitis. Os objetos foram

18 Caldo doce feito a partir da mandioca. 88 lançados no rio, e se transformaram em piranhas e arraias, cobras, jacarés e poraquês. No igarapé, construíram uma pinguela, feita de flechas, para atravessar o rio. Para lá foram eles e as onças. Quando as onças estavam atravessando a ponte, os rapazes põem em ação o seu plano, que era de derrubá-las no rio para que fossem devoradas pelos “seres aquáticos”. Decidiram procurar Maíra, mas no caminho encontraram-se com o demônio azã que pescava no rio. Decidiram aprontar com ele, virando surubim para roubar-lhe o anzol, só que apenas o filho de Maíra teve sucesso; o outro, fora pescado e devorado pelo ser demoníaco. Triste, o filho de Maíra transformou-se em uma formiga ticura para entrar na casa de azã. Consegue, com um sopro, ressuscitar o filho de Micura, seu irmão. Finalmente, chegam à casa de Maíra, que já os esperava, pois “ele conseguia ler o futuro”. (MUNDURUKU, 2011, p. 20). Fizeram muitas tarefas para o pai, deixando-o com uma boa herança e resolvem partir novamente, pois como eles mesmos disseram ao pai “em nosso coração mora a vontade de partir”. (MUNDURUKU, 2011, p. 21). O mito contado pelos Tembé é protagonizado por duas crianças gêmeas, porém de pais diferentes: uma do pajé Maíra e a outra de Micura. Ambas, depois de crescidas, vão se aventurar em busca do pai. Nossos “heróis míticos” (SCHADEN, 1945) vão figurar como protagonistas de muitos episódios em que empregam variados estratagemas para superar os obstáculos enfrentados até chegarem à casa de Maíra. Segundo Egon Schaden, esse personagem pode ser entendido como a expressão da organização social, da vida religiosa, e das atividades econômicas da tribo. Dessa forma, o herói expressa a cultura do povo e a “recordação” da história da tribo e o ideal de vida a ser realizado pelo indivíduo e pela comunidade. Nesse mito, encontramos a figura significativa do pajé que está personificada em Maíra, uma autoridade Tembé com poderes mágicos sobre o tempo, as árvores e capaz de ler o futuro. Além disso, é ele que conhece o segredo do plantio da mandioca. 89

Maíra, entretanto, é um personagem extremamente vingativo e capaz de amaldiçoar a todos que o ofendam ou duvidem de seu poder. Encontramos em todo o enredo narrativo transformações que nos parecem fantásticas, ou seja, acompanhamos metamorfoses dos personagens: vemos Maíra que transforma uma linda árvore em mulher, há um dos gêmeos que toma a forma de uma formiga, temos a mulher transformada em garça e objetos que viram peixes, anfíbios e répteis, graças à magia dos meninos. O desfecho do mito Tembé acontece com a chegada dos filhos e de sua rápida despedida, já que estão sempre partindo, num ciclo que se repete ad infinitum, (ELIADE, 1992a). Nesse mito indígena recontado por Daniel Munduruku, a vingança é o sentimento humano que justifica as ações de Maíra contra todos aqueles não acreditassem no seu poder e dos gêmeos contra a velha, mãe das onças, que devoraram sua mãe legítima. As onças que aparecem nessa narrativa indígena falam e ensinam aos meninos a fazerem o arco e a flecha. Esse “parentesco” com os felinos nos mostra a relação próxima entre os homens e o mundo dos animais. Tal aproximação pode ser explicada pela mentalidade dos indígenas de conceber elementos da natureza animados como o próprio homem, num tempo mítico em que homens se confundiam com os animais. (LEVI-STRAUSS, 2010). No pensamento ameríndio, há um estado originário de indiferenciação entre os humanos e os animais. Assim como o próprio homem, os animais pertencem à ordem natural do universo, pois se assemelham ao homem pelo fato de serem dotados de emoção e inteligência. De acordo com os estudos antropológicos de Eduardo Viveiros de Castro, os povos indígenas têm uma visão orientada pelo “perspectivismo ameríndio”, uma concepção que vai marcar “o modo como os seres humanos veem os animais e outras subjetividades que povoam o universo – deuses, espíritos, mortos, plantas, fenômenos meteorológicos, acidentes geográficos, objetos e artefatos”. (VIVEIROS DE CASTRO, 2011, p. 350). O perspectivismo seria uma “teoria indígena” (aliás, uma ideia raptada do vocabulário filosófico ocidental) que explica como os povos indígenas veem os animais, outros seres que vivem no seu mundo que, por sua vez, têm uma maneira diferente de encarar os humanos e a si próprios. 90

Para eles, em suma, os animais são gente, ou se veem como pessoas. Cada espécie teria um envoltório (uma roupagem) que esconderia o espírito do animal, normalmente visível apenas aos olhos dos pajés ou xamãs. Segundo Viveiros de Castro (2011), é como se essa “roupa” escondesse uma “essência” humano-espiritual comum. Trata-se de uma noção comum a muitos povos do continente, segundo a qual o mundo é habitado por diferentes espécies de sujeitos ou pessoas, humanos e não-humanos, que o apreendem segundo pontos de vista distintos. Na visão indígena, todos os seres são capazes de “ver” o seu mundo. Os homens indígenas veem homens como seres humanos, os animais como seres animais, os espíritos como seres espirituais. Mas, como esclarece Viveiros de Castro (2011), o “perspectivismo ameríndio” não se aplica a todos os animais, parece incidir mais sobre espécies como os grandes predadores e carniceiros, tais como o jaguar, macaco, peixe, veado, sucuri, urubu. Para Câmara Cascudo, figura de animais pode também aparecer em narrativas indígenas que contam a sua existência antes dos homens e que foram os responsáveis por várias transformações na história da humanidade. Para os índios, “os animais viviam, literalmente, essa própria ação anímica, dotados de todos os poderes do raciocínio e da inteligência, possuindo o segredo do fogo, do sono, da rede de dormir [...]”. (CASCUDO, 2006, p. 92). Podemos encontrar ainda, nos mitos dos nossos indígenas, animais que vão se inscrever como seres sobrenaturais, não escalonados numa teogonia, distribuídos à onipotência de cada um os deveres de guardar uma espécie, animal ou vegetal: Anhanga, veado branco com olhos de fogo, protege a caça do campo; Uauiara (aparece transformado em boto) guarda os peixes; Mboitatá, uma serpente de fogo, protege os campos contra os incêndios propositais. (CASCUDO, 2006).

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Assim nasceu o povo Munduruku

A origem do povo Munduruku, na mitologia Tupi, é recontada por Daniel num dos oito mitos reunidos em Contos indígenas brasileiros (2005). Contam-nos os mais velhos que os Munduruku surgiram como fruto da criação de Karu-Sakaibê, o criador das rochas, das árvores, dos animais, das aves do céu, dos peixes, dos rios e dos igarapés. O Grande Criador tinha um fiel amigo Rairu que fez um tatu e foi parar no centro da Terra, “onde encontrou gente que morava por lá”. (MUNDURUKU, 2005, p. 9). Decidiu trazer para o mundo de cima todas as pessoas que encontrara: primeiro, subiram os feios e preguiçosos; depois, os bonitos e formosos. No entanto, dentre esse segundo grupo, um grande número permaneceu no fundo da Terra, porque a corda que os trazia para cima se rompera. Os preguiçosos foram transformados por Karú em passarinhos, porcos- do-mato, borboletas e passaram a viver na floresta. Já os não-preguiçosos foram presenteados, por sua lealdade, com o campo, com a semeadura, com a chuva: assim nasceram a mandioca, o milho, o cará, o algodão, as plantas medicinais. Karú ensinou-lhes também a construir fornos para preparar a farinha. Para diferenciar uns dos outros, Karú pintava um a um. Assim, os povos Mura, Munduruku, Arara, Mawé, Panamá, Kaiapó foram sendo separados. Karú-Sakaibê transformou, finalmente, a grande nação Munduruku num povo forte, valente e poderoso. Os Mundurukus estão hoje situados em regiões e territórios diferentes nos estados do Pará (sudoeste e afluentes do rio Tapajós), nos municípios de Santarém, Itaituba e Jacareacanga), Amazonas (leste, rio Carumã, município de Nova Olinda, e próximo à Transamazônica, município de Borba), Mato Grosso (região do rio dos Peixes e Juara). Habitam geralmente regiões de florestas, às margens de rios navegáveis e sua população concentra-se, na sua maioria, na Terra Indígena de mesmo nome, com a maioria das aldeias localizadas no rio Cururu, afluente do Tapajós. 92

Na origem mítica do povo Munduruku, aparece a figura do “herói mítico”, estudado por Egon Schaden em seu trabalho sociológico sobre a mitologia heroica de algumas tribos indígenas brasileiras. Nas tribos indígenas, o herói mítico pode assumir várias feições, aparecendo como salvador ou redentor, como um ser ordenador e legislador ou até como heróis gêmeos. Nas narrativas indígenas, muitas vezes são atribuídas ao herói tarefas desempenhadas no passado, que se situam no futuro e outras que lhe cumpre realizar no presente ou continuamente. (SCHADEN, 1945). Assim, Karu-Sakaibê é o herói civilizador dos Munduruku que teve a missão de reuni-los em tribos e um herói transformador, pois cria a natureza e, ainda, ensina-lhes as atividades econômicas, como a caça, a preparação dos alimentos, a construção de fornos e o preparo da farinha. Mas é, por outro lado, quem assinala com cores diferentes os homens e as mulheres retirados da região subterrânea, estabelecendo, dessa maneira, a distinção e a oposição entre as várias tribos indígenas. Para Schaden (1945), essa atitude do herói dos Munduruku: “É a expressão mítica da coesão social, de um lado, e da oposição às tribos estranhas, do outro”. (p. 169). Com o auxílio de Rairu, traz para a superfície aqueles que povoariam a Terra e ensina-lhes o valor do trabalho, punindo os preguiçosos, pois não contribuiriam para o bem social. Esse é um dos problemas assinalados no mito de Karu-Sakaibê sobre a condição humana em face dos animais: só os indivíduos ativos merecem ser homens, enquanto os preguiçosos são transformados em aves, porcos, morcegos e borboletas. A metamorfose (ou zoomorfização) nesse mito pode ser interpretada como um castigo, uma privação. Esse mito indígena explica também a organização social do povo Munduruku que, ainda hoje, está baseada na existência de duas metades exogâmicas, que são identificadas como a metade vermelha e a branca. Assim, uma pessoa pertencente a uma determinada metade só pode contrair matrimônio com uma pessoa da metade oposta.

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Assim surgiram os Aruá e os Kaiapó

Uma das funções do mito, segundo Campbell (2008), é explicar a origem do universo, do mundo; é o que chamou de “função cosmológica” da mitologia. Para o historiador Le Goff (2012), os mitos de origem são o primeiro domínio no qual se cristaliza a memória coletiva e lhe dá um fundamento. Já Glissant (2005) os chama de “mitos fundadores” que têm como principal função a de “consagrar a presença de uma comunidade em um território, enraizando essa presença, esse presente a uma Gênese, a uma criação do mundo, através da filiação legítima”. (p. 74). O mitólogo Eliade (1989) reconhece que a origem das coisas tem um valor “existencial” que não se limita às sociedades ditas “primitivas”, pois essa busca também caracteriza a cultura ocidental que tem investido em pesquisas (sobretudo no século XIX) ligadas não só à origem do Universo, da vida, das espécies ou do homem, mas também à origem da linguagem, da religião e de todas as instituições humanas. Para recontar os mitos que tratam do surgimento do mundo para algumas de nossas tribos indígenas, Daniel Munduruku escreveu Outras tantas histórias indígenas de origem das coisas e do Universo (2008). São narrativas que foram criadas para dar respostas às perguntas que sempre nos fazemos: de onde viemos? Para onde vamos? Muitas respostas são dadas, mas são muitas as culturas indígenas em nosso país e todas têm um caminho muito próprio e especial para falar de suas origens. Dessa obra, formada de quatro mitos, escolhemos dois que tratam especificamente da questão da origem dos povos indígenas; no caso, das etnias Aruá e Kayapó. De acordo com a etnia Aruá, houve uma época em que no mundo não havia água, só terra e tudo era vazio. Para povoar a Terra, Jia e o Veado- mateiro criaram Deus: “Mas não pensem que ele estava sozinho, porque na verdade Deus eram dois irmãos e uma irmã”. (MUNDURUKU, 2008). Andarob, Antoinká e Paricot foram os três filhos: O primeiro era muito preguiçoso, só vivia deitado. A filha Antoinká casou-se com o beija-flor Kirün, 94 criado por Paricot para desposar sua irmã. Kirün se transforma em pajé e tinha a missão de “ensinar as coisas necessárias para todos os outros seres que Paricot ia criando”. (MUNDURUKU, 2008, p. 13). Um dia, Paricot resolveu se casar e, como não havia mulher na Terra, retira do buraco da casa do cupim uma mulher para desposar. Grávida, a mulher de Paricot dá origem aos diversos povos, cujo pai era um único Deus. O fato era que quem ficou grávida foi a Terra e saíram do seu ventre, por meio de um portal, as pessoas sempre acompanhadas, “formando um casal e trazendo seu nome e um animal. Desta forma, cada casal adotou um ser da floresta para embelezar ainda mais o mundo que agora estavam conhecendo”. (MUNDURUKU, 2008, p. 14). Interessante notar que, nessa história do povo Aruá, o casal de brancos trouxe consigo o mal, Zagapuy. Paricot, depois disso, dividiu índios e brancos, advertindo-os: “- Vai haver guerra entre vocês. Vocês irão se matar. Vocês mesmos vão se prejudicar. Sendo de um mesmo pai, um irmão não vai entender o outro”. (MUNDURUKU, 2008, p. 16). Separou-os em lados diferentes da terra. Mas, Paricot sabia que um dia os brancos voltariam para dominar tudo... E Paricot estava certo em sua premonição: o homem branco faria muito mal (trazia o mal consigo) aos povos indígenas, que seriam massacrados, perseguidos e marginalizados por aqueles que atravessaram os mares e invadiram as terras brasileiras. Habitantes do estado de Rondônia, os Aruá têm uma população de apenas 131 indivíduos, que habitam as aldeias próximas do igarapé Gregório, afluente do alto Rio Branco. A região foi invadida pelos extratores da borracha (por volta de 1920) e pouco depois o povo Aruá foi quase exterminado por doenças, como o sarampo. Os que sobreviveram deixaram o território tradicional, indo viver no seringal São Luís. A cultura Aruá destaca-se pela confecção do marico, que são cestas de fibras de tucum, tecidas em pontos miúdos ou médios, podendo ter vários tamanhos. 95

Outro elemento cultural exclusivo dos Aruá é a aspiração do pó de angico nos rituais xamânicos. Esse mito Aruá tem uma teogonia que difere do pensamento cristão: Deus é criado por dois animais: Jia, uma rã e um veado-mateiro. Ele, por sua vez, é o criador de três filhos, dentre eles, aquele que consideramos o herói mítico da narrativa, Paricot. Este foi o criador, organizador do mundo, e responsável pela separação dos povos, entre eles, brancos e índios. O elemento feminino – a Terra fecunda – é também gerador de seres que povoaram o mundo, num tempo primordial em que só existia o vazio, um tempo em que homens e animais tinham um parentesco e vivam em harmonia. Fica explícito nessa narrativa o mal que o homem branco causou aos povos indígenas, com as epidemias, a escravidão e o extermínio de muitas nações da floresta. A volta do homem branco antevisto por Paricot é um tema recorrente em alguns mitos indígenas de outras etnias brasileiras. Conta-nos Ailton Krenak que esse retorno faz parte da mitologia de seu povo: “Os nossos parentes sempre reconheceram na chegada do homem branco o retorno de um irmão que foi embora há muito tempo e, que indo embora se retirou também no sentido de humanidade, que nós estávamos construindo”. (KRENAK, 1999, p. 27). O outro mito de origem é O buraco no céu de onde saíram os Kayapó. Conta-nos que, nos tempos primordiais, os Kayapó viviam no céu, um verdadeiro paraíso, onde estavam bem servidos de inhame, mandioca, banana e caça em abundância. Certa vez, um guerreiro da classe dos Mebenget descobriu a cova de um tatu-gigante e resolveu, então, caçá-lo, perseguindo o seu rastro por dias. De tanto cavar, furou a abóbada celeste e os dois despencaram do céu, mas foram salvos por um vento forte de tempestade que os devolveu ao seu lugar de origem. O caçador pôde ver que na terra havia uma pequena floresta de buriti, um rio e vastos campos. Foi nessa floresta que o tatu-gigante caíra. Depois de contar tudo para os chefes de sua aldeia, ficou resolvido que o povo Kayapó deveria emigrar para a Terra. Fizeram uma grande corda de cipó bem resistente e começaram a descer. 96

O primeiro a descer foi um homem da classe dos Mebenget, que não tinha medo de altura. Depois de amarrar o cipó no tronco de uma árvore gigante, desceram os jovens, as mulheres com as crianças, os homens e, por fim, os mais velhos. Mas, aparece um menino estranho que corta o cipó, deixando uma parte do povo Kayapó morando no céu e os demais passaram a morar na Terra, tornando-se grandes conhecedores da floresta. Os Kaiapó vivem em aldeias em um grande território no Brasil Central, ao longo do curso dos rios Iriri, Bacajá, Fresco e de outros afluentes do rio Xingu. De acordo com a Funasa (2010), tem uma população de 8.638 indivíduos, ocupando parte do Mato Grosso e do Pará. Tradicionalmente, a economia do Kaiapó é baseada na caça e na prática da coivara. A sociedade conhece uma repartição de tarefas baseadas no sexo: os homens se dedicam à caça, à pesca, à fabricação de ferramentas e à conversa na Casa dos Homens. Às mulheres, cabe a tarefa de cuidarem das roças, das crianças e à preparação dos alimentos. A mídia, nos anos 1980 e 1990, divulgou a imagem dos Kaiapó, quando mostrou para o Brasil e para o mundo a ativa mobilização dessa etnia em favor da demarcação de suas terras, dos direitos políticos no processo da Assembleia Constituinte. Payakã e Raoni foram nomes que se destacaram nesse período por defenderem a floresta e o meio ambiente. Para explicar a origem desse povo indígena Kaiapó, contam os mais velhos que os Kaiapó vieram do Céu povoar a Terra. Esses dois espaços foram ligados por um grande cipó, um elemento de conexão que funciona como imagem do Axis mundi, uma coluna cósmica presente em alguns mitos indígenas. (ELIADE, 1992). No mito Kayapó, o Axis mundi é o cipó que vai trazer os índios habitantes do céu para a Terra, um espaço a ser ocupado e habitado por aqueles que conseguiram descer. O herói mítico, nessa história dos Kaiapó, é um Mebenget, representando parte da sociedade indígena, a dos guerreiros, e foi ele que 97 conduziu a coletividade ao “paraíso terrestre”, repleto de árvores, campos e rios. Identificamos, nessa narrativa mítica, o importante papel desempenhado pelos homens na provisão de alimentos e nas decisões que norteiam o destino do grupo. Conforme pesquisas antropológicas, os Kaiapós constroem no meio da aldeia a Casa dos Homens, que funciona, simbolicamente, como o coração da aldeia: é o lugar das assembleias políticas masculinas. Confirma-se, com a instituição da Casa dos Homens, a ascendência do elemento masculino sobre as mulheres, o que lhe confere um status social dominante na organização da aldeia, uma relação de oposição revelada e justificada pelo mito Kaiapó.

Os Guarani e a origem do fogo

Contam-nos os mais velhos que o fogo estava em poder dos urubus, “pois foram eles que primeiro descobriram um jeito de se apossar das brasas da grande fogueira do sol”. (MUNDURUKU, 2005, p. 15). Nesse tempo imemorial, todos queriam roubar o fogo dos urubus, mas ninguém ousava desafiá-los. Somente o guerreiro Nhanderequeí se atreveu a fazê-lo, elaborando plano com a ajuda de outros animais e homens da floresta: fingiu-se morto por dois dias até ser carregado pelos urubus para perto da fogueira, protegendo-se com uma resina para não se queimar. Convencidos da morte do guerreiro, as aves se aproximam e logo Nhanderequeí se levanta e dá-lhes um grande susto. Mesmo os urubus se afastando, ninguém conseguiu salvar uma brasa sequer. Apenas o pequeno sapo cururu conseguira pegar uma brasinha e colocar na boca. Dado o fogo aos homens, eles passaram a tomar conta e Nhanderequeí ensina-lhes a fazer um pilãozinho onde deveriam guardar as brasas e conservar o fogo para sempre. O povo Guarani está localizado em cinco países sul-americanos: Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai e Bolívia. Em nosso país, a população guarani está em torno de 53.000 índios vivendo em aldeias nas regiões Sul, 98

Sudeste e Centro-oeste.Trata-se de uma das maiores populações indígenas do país, representando quase 9% da população indígena existente em território nacional. Os Guarani que vivem no Brasil dividem-se em três subgrupos: Ñandeva, Kaiowá e Mbya. Essa classificação foi adotada nos anos 1950 pelo antropólogo Egon Schaden e está pautada em suas observações sobre as diferenças no dialeto, nos costumes e nas práticas rituais desses povos. Nas práticas sociais dos Guarani, o que mais chama atenção é a intensa rede de trocas e fluxos populacionais entre as aldeias distribuídas na região sul do continente. Esse comportamento social pode ser entendido como uma expressão de uma maneira própria de conceber a ideia de território, que vai além da lógica da terra indígena estabelecida pelo Estado. Os Guarani consideram o ser humano parte do todo, nem inferior nem superior aos demais seres da natureza, devendo, pois, manter-se em harmonia com a Natureza, utilizando-a de maneira equilibrada. Elementos da natureza estão presentes nesse mito, tais como os animais (urubus, sapo) e o sol que era visto como um grande braseiro. Para Schaden (1945), o fato de os Guarani verem o sol dessa maneira mostra a ideia que eles fazem da natureza do sol. Para não desequilibrar a natureza, o herói mítico Nhanderequeí usa da esperteza (e não da força) para desafiar os urubus que guardavam o segredo do fogo. A trajetória do herói mítico é traçada pela sua saída da aldeia, pela superação dos obstáculos e pela volta a sua comunidade indígena. É uma aventura passada em tempos primordiais em que os animais detinham o conhecimento. O traço importante nas narrativas indígenas é uso coletivo ou social daquilo que foi conquistado pelo herói. Nesse mito Guarani, por exemplo, o herói volta à aldeia, que é o espaço da coletividade, e compartilha com todos o conhecimento sobre o fogo, que servirá para aquecer o corpo ou para cozinhar os alimentos.

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Os Karajá: o mito do sol

O mito Karajá tenta explicar por que o sol anda tão devagar: no início dos tempos, quando a terra era um lugar muito escuro e frio, dominado pelo bicho preguiça. Contra essa situação adversa, todos cobravam do grande herói Karajá Cananxiuê uma atitude. Irritado saiu à procura da luz do sol (Theuú), da lua (Randó) e das estrelas, sem levar nada, pois, para ele, a arma tinha que ser a esperteza. Descobriu, depois de um longo tempo, que o sol, a lua e as estrelas estavam guardados pelo urubu-rei. Para vencê-lo, elabora um plano: finge-se de morto e atrai o urubu-rei, que é aprisionado com um golpe do herói Karajá. Para se libertar, Ranranresá propõe-lhe dar a luz das estrelas, da lua e do sol. Conseguindo o sol, os índios Karajá perceberam que o sol passava tão rápido que o dia ficava curto demais. Para conseguir conversar com o sol:

Canaxiuê foi, então para o topo de uma grande palmeira. Ficou ali aguardando. Quando o sol foi-se aproximando da árvore, o herói saltou sobre ele e agarrou em sua cabeleira. Como estivesse muito quente, escorregou e foi parar em seu pescoço; como ainda estivesse muito quente escorregou e foi parar em sua barriga; ali também estava quente e acabou escorregando para sua cintura; também ali o calor era insuportável, até que se agarrou na batata da perna do sol. Ali ficou firme, não largou. (MUNDURUKU, 2005, p. 34).

Como a passagem do sol sobre a Terra foi diminuindo, os Karajá puderam aproveitar mais o tempo, caçando, pescando, coletando frutos, trançando redes, “[...] Sem necessidade de correr com medo de o dia acabar logo”. (MUNDURKU, 2005, p. 34). Os Karajá são habitantes seculares das margens do rio Araguaia, nos estados de Goiás, Tocantins e Mato Grosso e têm uma longa convivência com o mundo dos brancos. Apesar desse contato com o mundo civilizado, os Karajá mantêm os costumes tradicionais do grupo como a língua, as pescarias familiares, os enfeites plumários, o artesanato e as pinturas corporais. Acreditam que sua origem está no fundo do rio, onde viviam e formavam a comunidade dos Berahatxi Mahadu, ou o povo das águas. Conta-nos o mito 100 que vieram para a superfície conduzidos por um jovem Karajá que ficou fascinado com as praias e riquezas do Araguaia. Seus mitos abordam temas variados como a origem da agricultura, do fumo, da chuva, do sol e a lua, do homem branco, dentre outros. Normalmente, estes mitos estão associados aos rituais e a temas sociais, como casamento, o xamanismo, as doenças, as plantações, as pescarias e o contato com os brancos. A narrativa Karajá desenvolve-se no tempo primordial, quando não havia luz no mundo, quando os animais falavam e dominavam tudo. O herói mítico é Cananxiuê que sabia que para lutar contra eles era preciso esperteza, mais que a força. Nesse mito indígena, encontramos a unidade nuclear do monomito (CAMPBELL, 2007), na qual o herói faz o percurso padrão da separação – iniciação – retorno. Depois de vencer as provas contra o Urubu-rei, Canaxiuê volta para a aldeia, trazendo para todos os membros da comunidade a luz do sol que seguirá seu ciclo natural de nascer e se por, dando tempo de todos usufruírem de seus benefícios na agricultura, nas ocupações domésticas, em todas as atividades importantes para os indígenas Karajá. Na fabulação, aparecem animais que vão participar da trama narrativa como personagens “humanizados”, dotados da capacidade de falar, rivalizando com o herói mítico. Segundo Góes (2005):

Diante da avassaladora presença no mundo de forças que o homem primitivo não conseguia entender, buscou em si próprio, pois não separava o seu ser da natureza, a explicação. Principiou por dar-lhe anima (etapa animista). Atribuiu a cada animal ou coisa que o rodeava, uma vontade, uma vida paralela. (p. 101).

Talvez seja uma forma de dominar as causas da natureza e tudo que nela habita, corporificando, “animando” urubus, bicho-preguiça, afinal, para os indígenas, todos os animais são dotados de alma, o mundo é todo anímico e os seres que o habitam precisam ser reverenciados. Nos seus estudos sobre mitos e fábulas, Cascudo (2006) ensina-nos que os europeus representavam os temperamentos humanos sob a forma de animais. Mas, para os ameríndios, os animais vivem, literalmente, essa função anímica, pois são dotados de poderes como o raciocínio, a inteligência e possuem o segredo do fogo, da rede de dormir, de certos vegetais. 101

E completa: “O homem apenas raptou, pela astúcia, porque não era o mais forte, esses segredos da civilização, privando animais de seu uso”. (CASCUDO, 2006, p. 92). É exatamente isso que vemos no mito Karajá.

Os Kaingang e o mito do dilúvio

Outra narrativa recontada por Daniel Munduruku é a do mito Kaingang, sobre o dilúvio que caíra sobre a Terra. Segundo os velhos desse povo indígena, apenas o pico da serra Crinjijimbê ficou de fora. Assim, os que morreram foram para o centro da serra onde fizeram sua morada. Começaram a abrir caminhos para fora e formaram duas veredas: metade para os “pés pequenos” (Kaiurucré) e metade para os “pés grandes” (Kramé). Os Krumé faziam animais - pumas, cobras e vespas - para combater os animais que a outra metade criava - onças, antas, tamanduás. As duas metades Kaingang chegaram a um local “onde decidiram unir suas forças através do casamento entre seus jovens. [...] Assim aconteceu. Mas foi tudo sem festa porque eles ainda não sabiam cantar ou dançar”. (MUNDURUKU, 2005, p. 48). A música foi descoberta pelos Kaiurucré, quando encontraram, num bosque limpinho, duas varinhas com suas folhas carregando uma pequena cabaça: ouviram suas canções e as decoraram e “foi o início de uma grande festa”. (MUNDURUKU, 2005, p. 48). Tempos depois, os Kaiurucré encontram um tamanduá-mirim, tentam matá-lo, mas descobrem que fora ele que havia lhe ensinado a cantar e a dançar. O animal pegou seu bastão e o devolveu ao homem e prevê:

O filho que tua mulher está esperando é um homem. Fica estabelecido entre nós que quando tu ou os teus parentes encontrarem comigo e me entregarem seu bastão e com ele eu dançar, terão filhos homens e quando eu o largar, sem dançar, terão filhas mulheres. (MUNDURUKU, 2005, p. 49).

Admirado com a sabedoria do tamanduá, voltou à aldeia e contou a todos o que havia acontecido: “A partir daquele dia, todos os Kaingang 102 compreenderam que o tamanduá é um velho sábio, o primeiro habitante do planeta desde os tempos mais antigos”. (MUNDURKU, 2005, p. 49). Os Kaingang estão espalhados entre os estados do Paraná, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo, com uma população de mais de 33 mil indígenas. Mesmo com o contato com o homem branco, desde o final do século XVIII, os Kaingang mantêm sua estrutura social e princípios cosmológicos que continuam vigorando, sempre atualizados pelas diferentes conjunturas pelas quais vêm passando. Continuam compartilhando crenças, rituais, o profundo respeito aos mortos e às terras onde estão enterrados seus umbigos. O mito Kaingang traz a temática do dilúvio muitas vezes recorrente em outras narrativas indígenas. O tempo que marca a história é o “tempo mítico”, em que o tamanduá falava e foi esse animal que ensinou aos Kaingang a dança. Nos estudos de Nimuendajú sobre essa etnia indígena, encontramos registrado o esquema de metades no mito de origem através da trajetória dos irmãos mitológicos Kamé e Kairu. São dois heróis culturais que criaram os seres da natureza, como a onça, a anta, como também as regras de conduta para os homens, definindo a fórmula de recrutamento das metades e estabelecendo a forma como as metades deveriam se relacionar. Assim, o mito Kaingang revela-nos dados etnográficos que explicam a forma como funciona essa sociedade indígena: nela existem a patrilinearidade (a mulher é obrigada a seguir o marido) e a exogamia (casamento dos jovens de uma metade com os da outra metade). O dualismo expresso pelas metades nos faz lembrar que os seres da natureza, incluindo os homens, possuem essa marca que carrega valores a elas associados. Alguns exemplos ilustram a dualidade presente no mito: forte/fraco, alto/baixo, grande/pequeno.

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OsTaulipang: a Onça e o Raio

O mito de origem Taulipang, intitulado A onça valentona e o raio poderoso, narra a história de uma onça que era muito “metida a besta”, quando nada ainda havia sido criado no mundo. Ela gostava de amedrontar todo mundo e queria “convencer a todos que ela era a mais poderosa do lugar”. (MUNDURUKU, 2005, p. 61). Certo dia, encontrou um moço formoso chamado Raio que estava na beira de um rio. Logo a onça quis se impor para o rapaz, mostrando-lhe sua força e habilidade. Ele apenas comentou: “- Não sou forte como você, cunhada. Não tenho a força”. (MUNDURUKU, 2005, p. 62). A onça se exibe e ele apenas agitou seu bastão “produzindo faíscas, trovões, trovoadas, coriscos e toda sorte de barulho” que assustaram muito a onça, que foi atirada para bem longe dali. Raio começou a perseguir a onça em todos os lugares em que tentava se esconder. Depois de muita perseguição, a onça amedrontada recebe uma lição de raio: “- Você viu, minha cunhada? Eu tenho a força muito maior do que a sua e nada pode me parar. É melhor que você não queira se achar toda poderosa antes de conhecer seu adversário”. (MUNDURUKU, 2005, p. 63). Dizem os antigos que é por isso que a onça morre de medo de trovoada: é que dentro dela mora a lembrança da existência do poderoso Raio – eis a conclusão do narrador. A etnia Taulipang (ou Taurepang) vive no estado de Roraima e tem uma população de 673 indivíduos. Mas, no lado da Venezuela, encontramos mais de 27.000 indivíduos. Desde as primeiras décadas do século XX, os Taulipang vêm sendo castigados com a expansão da pecuária na região. O “herói mítico” das narrativas orais dos Taulipang é Macunaíma, um herói criador que protagoniza muitas façanhas. Para Cascudo (1998), a pronúncia correta dada à palavra seria Macunaima e não Macunaíma. É considerada uma entidade divina para os Macuxi, Arecuna, que o veem como o ser responsável pela criação dos animais, vegetais e humanos – à semelhança de Deus – caracterizando-se também pela esperteza, maldade e alegria. 104

Na literatura brasileira, o personagem mítico torna-se protagonista da obra modernista de Mário de Andrade, publicada em 1928: Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. Foi fruto de anos de pesquisas sobre o folclore nacional, mitologias indígenas e profundas observações sobre a linguagem coloquial do povo brasileiro. No mito Taulipang em análise, temos uma narrativa contada in illo tempore, num tempo em que animais e seres da natureza ocupavam um nível superior na escala de valores, bem diferente da de nossa cultura. Temos dois personagens humanizados apenas identificados como Onça e Raio. São seres que se opõem no temperamento: enquanto ela se mostrou um animal forte e arrogante, ele se comportou com cautela e esperteza. Dessa forma, essa narrativa mítica aproxima-se da fábula, pois traz na sua parte implícita uma moral, um ensinamento que vai sugerir aos ouvintes/leitores que a astúcia sempre vence a força bruta.

HISTÓRIA INDÍGENA DE ASSUSTAR: AS AMANTES FEITICEIRAS

Medos traçam um mapa dos valores da sociedade; nós precisamos ter medo para sabermos quem somos e o que não queremos ser. (Marina Warren)

Em A Caveira-Rolante, a Mulher-Lesma e outras histórias indígenas de assustar (2010d) Daniel Munduruku nos apresenta seis narrativas que são contadas pelos adultos ou pelas pessoas mais velhas da aldeia. São histórias narradas não só com a finalidade de amedrontar as crianças, mas para lembrá- las da importância de estarem atentas aos desafios que a natureza lhes impõe. De acordo com o autor: “O medo é bom, o susto também. Eles nos ajudam a compreender que não somos donos de nada e que a vida é frágil e, por isso, tem de ser vivida com alegria”. (MUNDURUKU, 2010d, p. 8). No ponto de vista de Delumeau (2009), o medo é uma defesa essencial, uma garantia contra os perigos, um reflexo indispensável que permite ao organismo escapar provisoriamente à morte: “[...] é uma emoção-choque, frequentemente precedida de surpresa, provocada pela tomada de consciência 105 de um perigo presente e urgente que ameaça, cremos nós, nossa conservação”. (p. 30). Desde a antiguidade, dominar esse sentimento era importante para não fracassar. Com o intuito de se conciliarem com os deuses, os antigos gregos cultuavam Deimos (o Temor) e Fobos (o Medo) e a eles ofereciam sacrifícios antes das batalhas. Para o pensador francês, nos primeiros tempos, os medos eram oriundos, fundamentalmente, das forças da natureza, dos animais selvagens à espreita na selva e de sua vingança depois que o caçador os matou. Acima de tudo, há é o medo do desconhecido, “de tudo que precede e segue a breve existência do homem”. (DELUMEAU, 2009, p. 27). O filósofo Ferry (2008) aponta quatro medos fundamentais. O primeiro seria o medo real, aquele que experimentamos quando tememos um acidente, por exemplo. O segundo diz respeito às inadaptações, à necessidade de fazer parte de um grupo e de não ser excluído. O terceiro funcionaria como um mecanismo de defesa e contém as angústias psíquicas, como o medo de escuro. E o último medo seria o da morte, o grande medo humano. Bauman (2005) cita, ainda, o “medo cósmico” do filósofo da linguagem Mikhail Bakhtin (1895-1975), aquele que é a “trepidação sentida diante do imensuravelmente grande e intenso: diante do céu estrelado, do mar, e o medo de convulsões cósmicas e desastres naturais”. (p. 78). A base do “medo cósmico” está na incapacidade de entender ou apreender o grande poder que se manifesta na grandiosidade do universo, um sentimento de horror do desconhecido e de terror da incerteza, do desamparo. Em pleno processo de globalização, no nosso século XXI vivemos tempo de “medo líquido”, segundo Bauman (2007), do qual nós estamos sempre nos protegendo. Na opinião do sociólogo: “O medo é reconhecidamente o mais sinistro dos demônios que se aninham nas sociedades abertas de nossa época”. (BAUMAN, 2007, p. 32). Ainda acrescenta que no ambiente líquido- moderno, nossa vida está longe de ser livre de perigos e ameaças:

As oportunidades de ter medo estão entre as poucas coisas que não se encontram em falta nesta nossa época, altamente carente em matéria de certeza, segurança e proteção. Os medos são muitos e variados. Pessoas de diferentes categorias sociais, etárias e de gênero são atormentadas por seus próprios medos; há também aqueles que todos nós compartilhamos – seja qual 106

for as parte do planeta em que possamos ter nascido ou que tenhamos escolhido (ou sido forçados a escolher) para viver. (BAUMAN, 2008, p. 31).

Mas, o que é o medo? Bauman (2008) conceitua esse sentimento tão difuso: “Medo é o nome que damos a nossa incerteza: nossa ignorância da ameaça e que dever ser feito – do que pode e do que não pode – para fazê-la parar ou enfrentá-la, se cessá-la estiver além do nosso alcance. (p. 8, grifos do autor). Quanto mais disperso, indistinto, sem motivos claros, mais assustador é o medo. Esse sentimento que pode estar associado à escuridão, o habitat da incerteza e, portanto, do medo. O mito assustador que selecionamos da obra de Daniel Munduruku (2010d) pertence ao povo Karajá (Tocantins, Goiás, Mato Grosso e Pará) intitulado As amantes feiticeiras. Segundo nos contam os mais velhos do povo Karajá, havia um clima de medo na aldeia, porque muitos guerreiros estavam desaparecendo durante a caçada. Um rapaz (não-nomeado) vai em busca de uma explicação para esse sumiço e descobre que os homens estavam sendo atacados pelos ferozes monstros nhaçã rekã, seres de boca enorme e dentes afiados, de pelos longos e negros e que exalam um cheiro de carniça. O pobre rapaz acaba sendo vítima desses “bugios” e morre. Mas, na aldeia Kaiapó, havia uma velha senhora que fazia as vezes do pajé e que tinha dois netos bem diferentes: um era muito doente, com o corpo cheiro de feridas; o outro, valente, com espírito de caçador. O corajoso neto, então, vai atrás das feras e encontra-se, no meio do caminho, com a mulher-sapo que lhe propõe casamento. Recusando a proposta feita pelo ser encantado, o rapaz chega até os monstros e por eles é preso. Enquanto isso na aldeia, o outro irmão resolve “passarinhar” com seu arco e flecha e acaba atingindo o buraco da mulher-cobra, que lhe ajuda a procurar seu irmão perdido e lhe oferece uma pomada negra para as suas feridas. 107

É a mulher-cobra que revela ao jovem o segredo dos nhaçã: eles tinham como ponto fraco os olhos. Sabendo disso, vai até os monstros e senta-se na raiz de uma árvore e finge dormir. As feras, querendo devorá-lo, descem da árvore e são atingidos bem no meio dos olhos. Presos no tronco, o caçador chama o lagarto para desenganchá-los, depois retalha o corpo dos bugios e leva-os para a aldeia onde todos provaram a carne. Nessa história, temos o medo do desconhecido representado por seres monstruosos capazes de devorar aquele que se afasta do seu grupo. Para superar os obstáculos encontrados na busca das feras, os heróis míticos (os dois irmãos) contam com a ajuda de seres encantados femininos zoomorfizados, mencionados no título como feiticeiras. Essas feiticeiras queriam, na verdade, se casar com os rapazes, tentativa que não se concretizou no desenrolar da trama narrativa. O herói mais frágil, depois de curado de sua doença por uma delas, consegue matar os monstros com a esperteza e com a agilidade com o arco e flecha: duas armas importantes para quem vive nas matas. Ele é a superação de suas limitações, o que o torna o grande herói da tribo, porque conseguiu matar os nhaçãs e retornou para a aldeia, trazendo a carne para ser dividida com todos, realizando tarefas importantes para a concepção indígena daquilo que é ser um verdadeiro herói. A partir do mito Karajá, podemos identificar os elementos próprios da cultura desse grupo indígena, como a divisão das tarefas entre homens e mulheres. Aos homens compete cuidar da caça para alimentar todos os membros da tribo, defender o seu território, cuidar das pescarias familiares ou coletivas, construir suas casas para moradia e conduzir as atividades ligadas aos rituais. Às mulheres são reservadas as tarefas ligadas à educação dos filhos, aos afazeres domésticos, à confecção de bonecas de cerâmica e ao preparo dos alimentos das principais festas. (ISA, 2013). Nessa narrativa mítica Karajá, encontramos nas entrelinhas a luta pela sobrevivência, já que nossos personagens-caçadores partiram em busca de alimentos, encontram seres ameaçadores com os quais tiveram que travar uma 108 batalha e, no final, toda a coletividade saiu vitoriosa graças à esperteza e coragem dos heróis míticos que não se deixaram vencer pelo medo.

LENDAS RECONTADAS E REVIVIDAS

Para Munduruku, as histórias indígenas foram “congeladas” sob o nome de folclore, uma maneira de tratar os povos indígenas como algo do passado, povos que vivem de “crendices”. O que traz consequências para a imaginação dos seres humanos: “Quando a gente trata essas histórias como folclore, lendas ou histórias da carochinha, estamos perdendo o medo do desconhecido e apagando em nós a fantasia que dá sentido à nossa existência”. (MUNDURUKU, 2004, p. 54). Confirmando o pensamento de Daniel Munduruku, Scheneider (2008), o interesse despertado para o folclore “tende a congelar a criatividade nativa em algum lugar do passado, como se tal cultura não tivesse sido afetada por séculos de colonização”. (p. 57). Reconta em Histórias que eu ouvi e gosto de contar (2010b) apenas quatro lendas que “aconteceram de verdade”: o Matintaperera, o Boto,o Vira- porco e a Mulher do cemitério. Segundo a avó de Daniel Munduruku, a criatura perversa Matintaperera anuncia-se gritando em noites sem luar. Sua irmã Graça certa vez lhe contara que tinha visto Matintaperera, uma história na qual ele mesmo nem acreditava, mas, como sua irmã lhe advertira: “[...] nunca deixe de acreditar nos seres que estão nos arrondeando toda hora”. (MUNDURKU, 2010b, p. 13). Tudo acontecera com ela numa noite muito escura e de muito vento, quando ela estava se preparando para dormir. Ouvira um assobio “que vinha não sei de onde”. (MUNDURUKU, 2010b, p. 13). Pensara imediatamente em Matinta (como ela a chama) que poderia estar querendo alguma coisa. Nessa parte da narrativa, o narrador se mostra preso à contação da história por sua irmã: “Meus olhos brilhavam de curiosidade. Eu acompanhava a narrativa sem desviar a minha atenção dela”. (MUNDURUKU, 2010b, p. 13). 109

O que oferecer à Matinta? Sozinha, com medo, Graça clama pelos espíritos ancestrais e, num rápido diálogo com a criatura da floresta, pede-lhe que voltasse no outro dia. Quando amanhecia, Graça vai até à janela e, para seu espanto, Matintaperera estava ali, “sentada na beirada, com um sorriso estranho. Ela mirou bem dentro dos meus olhos: “Matinta fumo quer. Matinta veio buscar. Você prometeu. Matinta veio cobrar. Não saio daqui enquanto menina não der”. (MUNDURUKU, 2010b, p. 16). Ela entrega-lhe o fumo e Matinta sai assobiando de volta para seu mundo e, desde então, não mais tivera medo de tal criatura. O narrador confessa que sua irmã conseguira fazê-lo acreditar novamente nos espíritos da floresta, tal a força da tradição passada pela irmã emocionada com a lembrança do caso vivido. A segunda história – O Boto Tucuxi – foi contada pelo amigo Ely da etnia Macuxi. Quando estudaram juntos na universidade de Manaus havia sempre um momento em que contavam “histórias de nossa gente para matar a saudade que sentíamos de casa”. (MUNDURKU, 2010b, p. 19). Ely passa a ser, então, o narrador da história do Boto: Tudo se passa quando o seu povo se preparava para uma grande festa anual para onde todos os rapazes e moças se dirigiam. Assim comenta Ely: “Nessas festas os rapazes querem aparecer bem elegantes e bonitos para as moças a fim de arranjar um bom casamento”. (MUNDURUKU, 2010b, p. 20). Ely se encantara por uma linda moça que, segundo lhe contaram, estava esperando o seu namorado, o Boto. Curioso, Ely fica à espreita durante a noite observando a moça. De repente, ouve um estrondo vindo do rio e vê o Boto, “um golfinho dando seu último mergulho antes de se transformar num elegante jovem todo vestido de branco, trazendo um belo chapéu sobre a cabeça”. (MUNDURUKU, 2010b, p. 21). Nunca tinha visto nem presenciado nada igual; aliás, para um índio que vivia na cidade, isso lhe parecia impossível de ocorrer. Quase já amanhecendo, Ely segue o casal que caminhara para perto da mata e, depois de uma hora, o Boto vai para o rio, onde “se transformou num grande golfinho que mergulhou alegremente nas águas geladas do rio Amazonas”. (MUNDURUKU, 2010b, p. 23). 110

Essa história, para Ely, comprova a veracidade da tradição do homem amazônico e a naturalidade com que as pessoas convivem com esses fatos um tanto “fantásticos” para quem é de fora. Assim conclui Ely, dirigindo-se à Daniel Munduruku: “O que eu presenciei renovou a minha crença nos espíritos da floresta e me fez ainda mais feliz por pertencer a um povo que acredita na magia de nossa Mãe-Terra”. (MUNDURUKU, 2010b, p. 23). A terceira história que Daniel ouviu é contada pelo amigo Yguarê ou Ozias (da etnia Mawé), que conhecera em São Paulo, “uma aldeia feita de grandes prédios e pouco verde”. (MUNDURUKU, 2010b, p. 25). Yguarê lhe conta a história de um homem que virava porco em noites de lua cheia, “uma história que ninguém jamais conseguira provar se era verdadeira ou não”. (MUNDURUKU, 2010b, p. 20). Sabia que muitas histórias só eram contadas para assustar as crianças e que as pessoas que a contam aumentam sempre alguma coisa. Mas a sua versão é a seguinte: Haveria um baile na cidade de Parintins e para lá todos os jovens acorriam, mesmo ele e seus amigos que tinham que remar algumas horas para chegarem ao local. No caminho, viajando de canoa, contavam histórias, recordavam os ensinamentos dos mais velhos e “renovavam seu próprio desejo de levarem a tradição de sua gente para muitos outros lugares”. (MUNDURUKU, 2010b, p. 21). Divertiram-se bastante na festa e, lá pelas tantas da noite, Yguarê, Amarildo e Aroldo resolveram voltar para casa, um caminho de volta até o cais levando uma hora a pé. Voltavam alegres, conversando sobre a festa e sobre um homem que parecia bêbado que esbarrara em um deles. Esse homem estranho parecia dizer alguma coisa e Aroldo levantou a suspeita de ser ele um vira-porco. A propósito dessa história, Yguarê conta aos amigos o que ouvira sobre o assunto: Na época do descobrimento, um português se apaixona por uma índia muito bonita e tenta comprá-la, sem sucesso, pois o dinheiro não significava nada para os índios. Contrariado, o homem tenta conseguir a moça à força. Depois de abusar da pobre índia, os dois são descobertos pelos guerreiros da tribo e levados 111 para a aldeia. O português foi castigado: “O pajé fez com que bebesse uma erva que o transformaria em animal toda vez que se aproximar de alguma mulher e ele jamais voltaria a amar de novo”. (MUNDURUKU, 2010b, p. 30). Transformou-se num Ser Encantado que vira porco e persegue os solteiros por sentir inveja deles. Aroldo, com receio de serem as próximas vítimas, sugere aos amigos que saiam daquela clareia, onde tinham parado para descansar. Depois de algum tempo, chegam ao cais e percebem que estavam sendo seguidos por alguma coisa. Na disparada, o curumim Aroldo fica para trás e é encontrado por Yguarê, abaixado, mostrando-lhe um estranho animal que olhava para a canoa onde estava Amarildo sozinho. Como não tinham tempo a perder, elaboraram um plano que seria o de distrair o monstro até que os dois amigos chegassem com arco e flecha para enfrentar o inimigo. Na tentativa de proteger Yguarê, Amarildo acerta o animal que cai desfalecido no chão: “Seu grito de dor podia ser ouvido por toda a floresta”. (MUNDURUKU, 2010b, p. 33). Mas, o animal se põe de pé novamente e volta para a floresta. Rapidamente voltam para a aldeia e contam aos seus parentes o que havia acontecido: “Todos ficaram extasiados com a história dos aventureiros Mawé. Aventura que é contada nas rodas de histórias da região”. (MUNDURUKU, 2010b, p. 33). E um fato que parece confirmar a história do Vira-porco é que apareceu, no dia seguinte, um homem com a barriga flechada que, depois de medicado, nunca mais foi visto pela região. A última história que Daniel gosta de contar em seu livro, é A mulher do cemitério, que foi narrada pelo seu amigo René ou Khitaulu, um grande contador de casos da tribo Nambikwara e que vive há alguns anos em São Paulo. Encontraram-se no sítio de uma amigas deles, um lugar “cheio de ar puro e do verde da natureza”, chamado de Colina da Serra, localizado em Itapecerica da Serra/SP. Lá, realizavam atividades com crianças de escolas de São Paulo. Segundo Daniel Munduruku, nesse sítio era sempre possível ver 112

“entes encantados passeando pelo restinho de Mata Atlântica que o lugar ainda preserva”. (MUNDURUKU, 2010b, p. 36). René toma a palavra e diz que o que iria contar era verdadeiro e tudo tinha acontecido com ele em um lugar perto de sua aldeia, no Mato Grosso. Acordara cedo para ir ao roçado de mandioca, na companhia de seu filho e, juntos, caminharam cerca de duas horas até lá. Depois de algumas horas de trabalho, resolveram descansar. René foi até o rio se refrescar e seu filho decidiu ficar na cabana improvisada. Lá, perto do igarapé, René ouviu um chamado estranho que vinha do mato. O grito parecia que vinha de várias direções; assim, ficou sem direção, acabando por se embrenhar floresta adentro. Foi parar numa clareira, onde se deparou com uma mulher muito clara: “Tentou fixar o olhar na moça, mas não conseguia devido à claridade que ela irradiava”. (MUNDURKU, 2010b, p. 37). Perguntava querendo saber quem era ela e nada de resposta. Apenas lhe indicou um caminho que o levaria a um cemitério. A mulher fantasma pedia ao guerreiro indígena que a ajudasse a sair desse mundo, enterrando-a numa cova nova. René iria identificar o corpo da mulher por um colar de dentes de macaco. Encontrou-o depois de muitas tentativas colocou-o aos pés da mulher. Em uma guerra muito sangrenta, muitos morreram e não houve ritual funerário para o seu povo, por isso as almas ficavam aprisionadas a este mundo. René cavou outra cova para a mulher e depois adormeceu, dormindo por dois dias, sendo acordado por seus filhos e amigos que o procuravam. Na verdade, ninguém encontrou o tal cemitério de que René falava, mesmo sendo procurado por quase trinta quilômetros de distância. Nessas histórias recontadas por Daniel Munduruku encontramos quatro narradores indígenas que tiveram experiências mágicas que passaram a fazer parte da tradição dos povos da floresta. São verdadeiros guardiões e difusores da memória indígena que precisa ser transmitida às gerações futuras, um trabalho que permitirá unir “aquilo que fomos ao que somos e ao que seremos”. (CANDAU, 2012, p. 59). São contadores de histórias que conhecem também a cultura urbana e alguns deles até vivendo na maior metrópole do país. Transitam entre os dois 113 mundos e não deixam suas raízes serem cortadas pela cultura do homem branco que certamente não acreditaria em Curupira, em Matintaperera, em transformações mágicas que, só quem vive nas matas é capaz de entender e respeitar. Mas, essa ancestralidade é compartilhada com o leitor que é convidado a entrar no mundo indígena, cheio de lendas que, ao serem lidas, acabam “descongeladas”. Com o livro Histórias que eu ouvi e gosto de contar (2010b), o autor indígena propõe resgatar uma memória viva na voz de sua avó, de sua irmã e de seus amigos indígenas. Histórias que passam de avó para neto, de amigo para amigo oralmente e que, agora, são recontadas por Daniel através da escrita. Essa obra expressa, como diria o autor, o desejo de acordar o povo brasileiro para suas raízes ancestrais. (MUNDURUKU, 2010b).

CASOS DO MUNDO INDÍGENA: ENTRE A ALDEIA E A CIDADE

A partir de uma viagem verídica à aldeia Munduruku com o menino Lucas, então com 14 anos, Daniel narra várias lendas indígenas, muitas vezes contadas pelos personagens que participam dessa aventura. A narrativa é linear, mas intercalada pelas várias histórias contadas pelo narrador e pelos personagens que se encaixam, integrando-se ao enredo de Um estranho caso de futuro (2004). Na verdade, cada personagem vai gerar uma nova história contada a Lucas, servindo de pretexto para reflexões do narrador acerca das diferenças entre a sociedade indígena e a não indígena. Esse processo é chamado por Todorov (2011) de “encaixe”. Assim nos explica:

A aparição de uma nova personagem ocasiona infalivelmente a interrupção da história precedente, para que uma nova história, a que explica o “eu estou aqui agora” da nova personagem, nos seja contada. Uma história segunda é englobada na primeira. (p. 123).

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Encaixam-se na narrativa de Um estranho caso de futuro as lendas do Espírito da Noite, do Curupira, do Matintaperera, da Cobra Grande, da Mãe- d’água e as digressões do narrador, as quais buscam refletir sobre os fatos. Fica evidente que não há uma imparcialidade do narrador diante dos acontecimentos – afinal, quem conta a história é um índio. Essa maneira de compor uma antologia de contos é chamada por Pietro (2005) de “técnica do conto moldura”, a mesma empregada, por exemplo, em As mil e uma noites, um clássico da literatura árabe. Na explicação da pesquisadora, a princesa Sherazade enfrenta o desafio de acalmar o sultão enlouquecido contando-lhe histórias. Esse seria o conto moldura:

Composto das narrativas que ela tece durante suas noites ao lado do amado como também dos problemas que a princesa vive de modo a conseguir com a narrativa até seduzi-lo totalmente, temos um livro que é formado por um conto que se insere em outro e cujo resultado final é como uma tela líquida na qual um fio de história mescla-se na tessitura narrativa de outro e mais outro. (PIETRO, 2005, p. 9).

Nessa obra de Daniel, muitas histórias são recontadas pelo narrador, por seus parentes ou por seus amigos, mas o fio condutor de Um estranho caso de futuro (2004) é a viagem do pequeno Lucas a uma aldeia Munduruku. Realidade e ficção se misturam e como o próprio Daniel afirma: “Este livro é uma ficção, mas partiu de um fato verdadeiro”. (MUNDURUKU, 2004, p. 13). O fato é que o filho de Heloísa Pietro, Lucas, fez uma viagem com Daniel para visitar uma aldeia indígena chamada Katõ. Partem de São Paulo para Santarém. De lá foram para Itaituba e depois para Jacareacanga, um município do qual fazem parte todas as aldeias Munduruku do Pará, até, finalmente chegarem ao destino. Foi uma experiência de quase um mês (em setembro de 2001) em Katõ, onde o menino Lucas pode ter contato com a cultura indígena local, seus hábitos e sua rotina de vida e pode comparar a sua realidade de menino de uma cidade grande e a de uma pequena aldeia Munduruku. Tudo começa com o pedido do narrador ao cacique Arnaldo para levar um amigo à aldeia. Arnaldo autoriza e pediu a Daniel que contasse ao garoto a história do pariwat (homem branco) que encontrou a Espírito da Noite e ficou meio maluco, sendo socorrido pelo pajé que explica a Daniel que o Espírito da 115 noite é “quem vem verificar se a noite está cumprindo sua missão de fazer a terra descansar”. (MUNDURUKU, 2004, p. 21). Daniel conta essa lenda para Lucas para lhe mostrar que havia muitos mistérios na cultura indígena. Antes de partirem para a viagem, o narrador reconta a história da Matintaperera, contada por sua avó de 80 anos. Aqui já se percebe a força da oralidade que vai transmitir a tradição de geração a geração. O próprio narrador relembra:

Quando eu era criança, ouvia muitas histórias que meus pais e avós contavam. A gente se reunia no início da noite, após a nossa refeição, e os mais velhos se punham a contar histórias. Muitas delas eram verdadeiras, tinham sido vivenciadas por eles mesmos; outras histórias eram mais antigas, falavam de um mundo que era habitado por seres fantásticos, de um tempo muito anterior ao nosso. E ainda havia as histórias que a gente mesmo vivia em nosso cotidiano na aldeia. (MUNDURUKU, 2004, p. 24).

Trata-se das lendas, dos mitos que formam a memória coletiva que se perpetua via oralidade e, agora, pela escrita que registra a tradição indígena de forma a compor livros que circularão entre brancos e índios. Lucas e Daniel saíram de Jacareacanga para a aldeia Katõ, uma viagem de barco que durou oito horas, guiados pelo piloto Nicolau que lhes conta o seu encontro com a Mãe-d’água, um ser das águas que “nunca desiste quando quer levar alguém consigo”, pois precisa “encontrar um homem para morar com ela no seu lugar de descanso”. (MUNDURUKU, 2004, p. 37). Durante a viagem de barco, eles se aproximaram da aldeia Terra Preta, onde estava havendo um funeral de um homem que fora envenenado pela erva timbó. Em seguida, embarcam quando o sol estava bem alto no céu, pois o caminho até o destino final era longo. Cansado, Daniel teve um sonho: tinha morrido e estava a caminho das terras dos antepassados. Fora um sonho que o deixara pensativo durante algumas horas. Nisso, Nicolau desligou o motor do barco para ver se avistava a Cobra Grande, um animal perigoso sobre o qual muitas histórias eram contatas. Mas, tudo não passara de um susto. Finalmente chegaram a Katõ, onde Lucas – um estranho na aldeia – passou a ser o centro das atenções, sendo cercado pela meninada. Foram 116 recebidos pelos mais velhos que fizeram um “verdadeiro relatório” dos assuntos mais recentes. No dia seguinte, às seis e meia da manhã, levantaram-se, foram ao rio se lavar e voltaram para conversar com o cacique Arnaldo, com o líder Biboy e com o professor Misael. Lucas sai com as crianças para aprender as coisas da aldeia, pois era importante que ele participasse do cotidiano da tribo. Logo depois da conversa com os mais velhos, Daniel, Lucas foram pescar no igarapé, guiados por Tawé e Karú. Algum tempo depois, voltaram para a aldeia e repartiram com os seus amigos a caldeirada de tucunaré. Como é do costume dos índios relaxarem depois do almoço, decidiram então descansar. Daniel nos conta que, nessa hora, conversa com o pequeno Tawé sobre a palavra “futuro” que tem significado para o homem branco, mas nenhum para os índios que entendem que só existe o presente, o agora. Deixando Lucas brincar com os meninos da aldeia, Daniel vai ao encontro do pajé e lhe dá o que precisava “reencontrar-se com os espíritos da floresta” e alimentar seu próprio espírito com a sabedoria deles. O pajé entende o que Daniel queria e o leva até uma clareira, onde realizou um ritual xamânico, através do qual ele se reencontraria com a tradição. Fora uma experiência e tanto para um índio da cidade que voltava as suas raízes. Estava na hora de Lucas e Daniel voltarem para a cidade e todos foram se despedir na beira do igarapé “a fim de desejar um retorno feliz aos visitantes”. (MUNDURUKU, 2004, p. 90). Durante a viagem pelo rio Tapajós, Nicolau conta a Daniel o encontro que teve com o Curupira, aquele que, segundo os mais velhos, confunde os caminhos e faz os incautos se perderem para depois serem devorados pelos espíritos da noite”. (MUNDURUKU, 2004, p. 94). Fora uma experiência que fez com que aumentasse o seu respeito pelas coisas invisíveis da floresta. Chegaram à cidade de Jacareacanga, por volta das três da tarde, e foram para um hotel, onde puderam ver as cenas do atentado ao World Trade Center, em 11 de setembro. Isso motivou conversas entre índios, comerciantes sobre o rumo do mundo dali para frente. Finalmente, chegam a São Paulo, já aguardados pelos pais de Lucas com muita festa. A viagem fizera bem ao garoto que, de acordo com a mãe, 117

“estava mais maduro e seguro sobre sua própria vida” e aprendera a compreender as diferenças entre as sociedades. O livro Um estranho sonho de futuro (2004) é uma viagem pelo mundo indígena protagonizada por um menino branco e narrada em 3ª pessoa, por um índio que vive no centro urbano, mas que retorna às suas origens ancestrais. Traz reflexões (e informações) sobre a maneira como o índio lida com a morte, com o tempo, com a tradição. Em contrapartida, a vida na cidade, a maneira como o homem branco encara tais temas são também apresentados, sempre num exercício de comparação entre esses dois mundos. As histórias encaixadas na narrativa de Um estranho sonho de futuro (2004) – as lendas, os mitos indígenas – parecem ao menino Lucas apenas histórias para amedrontar crianças. Mas, Nicolau dialogando com o garoto, explica-lhe:

Talvez seja assim que as pessoas pensem na cidade porque elas estão rodeadas de claridade por todos os lados. Por isso os espíritos que habitam a cidade não se manifestem e as pessoas acabam tendo medo umas das outras, verdadeiros fantasmas. Aqui nós não temos medo uns dos outros que vemos, temos medo do que não vemos, mas sabemos que existe. (MUNDURUKU, 2004, p. 39).

Para o narrador Daniel, Lucas é de uma cidade grande, “onde as pessoas são criadas quase sem nenhuma fantasia ou preferem esconder suas crenças com medo de parecerem ridículas”. (MUNDURUKU, 2004, p.40). Quanto ao tema da morte, Lucas aprendeu com o cacique Pedrinho, da aldeia Taperebá, que, para os índios: “Morrer é ir encontrar-se com nossos antepassados, que vivem bem longe daqui, na nascente do grande rio Tapajós. Lá, segundo nossa tradição, é a casa dos nossos primeiros pais e é o local onde nos reunimos com eles”. (MUNDURUKU, 2004, p. 48). Com o pajé Argemiro, aprendeu que o morto é enterrado de pé, dentro da própria casa, com seus objetos pessoais e com comida. Segundo o líder religioso, esse ritual se justifica: “Porque a gente acredita que ele irá fazer uma viagem e precisa de alimento para ela. Quanto a ser enterrado assim, é para facilitar sua caminhada”. (MUNDURUKU, 2004, p. 50). Esse rito funerário, para o etnógrafo Gennep (2011), é perfeitamente justificado pelos indígenas porque veem a morte como a viagem do morto para o outro mundo. Tudo deverá ser preparado pelos sobreviventes que tomam o 118 cuidado de muni-lo de todos os objetos necessários, materiais (roupas, alimentos, armas, utensílios) ou mágico-religiosos (amuletos, signos e senhas, etc.), que lhe garantirão, como se fosse um viajante vivo, uma travessia e depois um acolhimento favorável no reino dos antepassados. Além disso, as crianças da aldeia participam desse ritual, já sabendo que faz parte da vida social dos índios. Algo bem diferente da maneira como as pessoas das metrópoles lidam com a morte. O cotidiano da aldeia indígena segue o que a tradição manda: acordar cedo para iniciar as atividades já planejadas no dia anterior. Homens e mulheres desempenham suas tarefas: cuidar da família, da casa, da plantação e coleta de frutas fica a cargo das mulheres e prover o alimento, cuidar da aldeia e da família são tarefas dos homens. As crianças também têm seus afazeres, mas brincam nos arredores da aldeia: “Com isso elas acabam fazendo o reconhecimento dos espaços no entorno de onde vivem”. (MUNDURUKU, 2004, p. 61). O hábito milenar de ouvir histórias faz parte da rotina das crianças, mas em tempos de tecnologia: “É claro que hoje em dia já existe também a televisão, que exerce grande influência sobre as crianças e os jovens, especialmente as novelas e os jogos de futebol. Parte das pessoas vai ouvir histórias e outra vai para a televisão”. (MUNDURUKU, 2004, p. 61). Brancos e índios têm maneiras distintas de pensar o tempo. Na perspectiva do narrador Daniel, as pessoas da cidade vivem em função do relógio que controla as horas: “A mente delas está voltada para o movimento, para fazer as coisas sem pensar direito”. (MUNDURUKU, 2004, p. 70). Para os índios, o importante é viver o presente, cuidar das tarefas do dia, aprender a ouvir os sons da mata, a ler os sinais que os animais deixam, aprender os cantos tradicionais, preparar festas. Enfim, uma vida guiada pela natureza que tem um tempo que independe do relógio. Nas palavras do narrador, para a sociedade indígena “o tempo é deleite, uma bênção, um jeito de estar no mundo”. (MUNDURUKU, 2004, p. 98). Bem diferente da visão capitalista, para a qual o tempo é dinheiro. A curiosidade dos curumins, quanto ao mundo dos brancos também se faz presente e Lucas explica-lhes como é a vida do homem da cidade: 119

- A nossa vida na cidade não segue o mesmo ritmo daqui da floresta porque a preocupação que a gente tem lá é muito diferente. A gente tem obrigações que aqui vocês não têm. Temos cobrança da sociedade, da família, da escola, dos nossos amigos... Temos que aprender milhões de coisas que nunca vão servir pra nada em nossa vida. Aqui pelo menos vocês aprendem o que precisam e nada mais. (MUNDURUKU, 2004, p. 72).

Essa vida em um grande centro, Daniel também conhecia bem – era a sua metade urbana – mas, quando foi de viagem com o menino Lucas para a aldeia Munduruku, sentia que precisava alimentar seu espírito com a sabedoria da tradição. Como ele mesmo comenta: “Era sempre importante voltarmos nossa mente e nosso coração para o nosso povo”. (MUNDURUKU, 2004, p. 85). O reencontro com a tradição – sua experiência xamânica – foi intermediada pelo pajé que o levou para uma clareira, a morada dos espíritos, lugar onde seria realizado o ritual. Dentro de um círculo sagrado traçado pelo pajé, Daniel atravessa o portal do tempo e narra o momento místico:

Minhas lembranças e meu corpo foram transportados para outra dimensão. Encontrava-me num lugar desconhecido para meus olhos, porém muito familiar ao meu espírito. Ali encontrei os meus antepassados, que antes só encontrara em sonhos. Receberam-me como quem estava sendo esperado há muito tempo. Com eles conversei bastante usando a linguagem do sonho. Ensinam- me coisas que eu não conhecia e, acho, não teria tempo de aprender jamais. Tudo era muito rápido [...]. (MUNDURUKU, 2004, p. 86).

Terminado o ritual, o pajé explica ao “neófito” que todos os índios da tribo passaram por essa experiência de “mergulho nos mistérios da tradição” para que ela se mantenha viva. Agora, estava pronto para retornar à cidade. Os contrastes entre as duas realidades culturais são apresentados em Um estranho sonho de futuro (2004) numa linguagem próxima de quem conta histórias, com traços de coloquialismo: “[...] a morte da criança o fizera cair numa bebedeira lascada [...]”. (MUNDURUKU, 2004, p. 44). Também em: “[...] sem dar muita trela para o futuro”. (MUNDURUKU, 2004, p. 98). Um coloquialismo que chega algumas vezes a ferir vezes as regras gramaticais: “Chegamos na cidade por volta das três horas da tarde [...]”. (MUNDURUKU, 2004, p. 96, o grifo é nosso). Mas nada que fira a beleza da narrativa de Um estranho sonho de futuro que nos possibilita conhecer outra maneira de olhar o mundo – diferente, mas não menor – de perceber o tempo, de educar as crianças. Leva-nos a conhecer 120 uma outra sociedade onde os pais sabem acolher seus filhos, onde as mães não têm pressa. O narrador pergunta ao menino Lucas: “- Viu algum tipo de preconceito? Alguém sendo excluído? Criança abandonada? Algum velho sofrendo por estar abandonado?” (MUNDURUKU, 2004, p. 103). Afinal, mesmo só conhecendo nossa vida urbana – agitada, egoísta e às vezes nada humana – é fácil concordar com a conclusão de Daniel: “- A nossa sociedade indígena tem muita coisa a ensinar para as pessoas da cidade”. (MUNDURUKU, 2004, p. 108).

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CAPÍTULO IV: NO RIO DA MEMÓRIA

[...] as lembranças pessoais constituem o último e mais amplo invólucro de nossa memória. (Henri Bergson)

AS ESCRITAS DE SI

A narração da própria vida como afirmação de si mesmo é para Roland Barthes um traço de “caráter universal” e para Philippe Lejeune uma “ilusão de eternidade”. Para outros estudiosos, a lembrança que temos do passado não é o passado em si, mas sim, uma representação dele, uma seleção de detalhes que julgamos importante resguardar do esquecimento. De acordo com Sigmund Freud, a memória seria constituída de lembranças imperfeitas e fragmentadas, mas capazes de se auto-organizar continuamente. Segundo psicanalistas e psicólogos, há manipulações conscientes ou inconscientes que o interesse, a afetividade, o desejo, a inibição, a censura exercem sobre a memória individual. (LE GOFF, 2012). Entretanto, de acordo com os estudos de Arfuch (2010), a aparição do “eu” como biografia está ligada à consolidação do capitalismo e do mundo burguês. É só no século XVIII que começa a se delinear a especificidade do gênero autobiográfico, “na tensão entre a indagação do mundo privado, à luz da incipiente consciência histórica moderna, vivida como inquietude da temporalidade e sua relação com o novo espaço social”. (p. 36). Talvez um dos primeiros a escrever essa “narrativa vivencial” foi Jean Jacques Rousseau, com sua obra Confissões (1781-1788), seguido por tantos outros que usufruíam do gênero discursivo para falar de sua subjetividade. Baseando-nos na classificação antropológica de Candau (2012), a memória pode ser “individual” - um discurso de apresentação de si - ou “geracional”, aquela que nos lembra que nossos antepassados lutaram por nós e nos dá consciência de que somos seus continuadores. 122

Quando se trata de estudar as memórias individuais, Candau (2012) propõe uma classificação (ou uma taxonomia), baseando-se nos estudos antropológicos. Dessa forma, teríamos uma “protomemória”, que seria aquela memória social incorporada na infância, uma “memória” propriamente dita onde guardaríamos nossas lembranças autobiográficas, nossos saberes e crenças e, ainda, uma “metamemória”, aquela representação que cada indivíduo faz de sua própria memória, o conhecimento que tem dela. De acordo com o historiador Le Goff (2012), o estudo da memória abarca a psicologia, a psicofisiologia, a neurofisiologia, a biologia e outras ciências. Mas, a memória também é assunto para as ciências humanas. Ao tratar das sociedades sem escrita, entende que os povos ágrafos possuem o que chama de “memória étnica”, na qual especialistas da memória (sacerdotes, idosos, por exemplo) exercem um importante papel de coesão do grupo. Bergson (2011) entende que nós pensamos apenas com uma parte de nosso passado, já que parte dele se torna representação. A recordação dos fatos e sensações, enfim, o passado “só retorna à consciência na medida em que possa ajudar a compreender o presente e a prever o porvir: é um batedor da ação”. (p. 61). No Brasil, nos anos 1970, houve uma grande produção do memorialismo político (de presos e exilados) que acabou abrindo caminho para as manifestações autobiográficas de grupos socialmente marginalizados. Explica- nos Silviano Santiago, citado por Duque-Estrada (2009):

Se não me engano, é pela via da marginalização que se propaga a frutifica a fórmula do relato autobiográfico, ou memorialista (numa visão não- conservadora) nos anos subsequentes ao retorno dos exilados. Só que o fenômeno da marginalização é compreendido como uma espécie de exílio interno: trata-se de determinados grupos sociais que eram e são desprovidos de voz dentro da sociedade brasileira, cuja voz era e é abafada. (p. 153).

Esse período da História brasileira é para Graúna (2013) o momento de gestação da literatura indígena, no qual autores buscavam ter voz e reconhecimento social, assim como outros grupos minoritários: negros, mulheres e homossexuais. Décadas depois, encontramos a “escrita de si” reaparecendo, enquanto gênero discursivo, quando aparecem alguns autores indígenas 123 relembrando/selecionando momentos da sua infância e de sua fase adulta, como Kaká Werá Jecupé, Eliane Portiguara e o próprio Daniel Munduruku. O índio Txucarramãe Jecupé faz uma narrativa autobiográfica em Todas as vezes que dissemos adeus (1994), obra em que rememora o período de sua infância, quando frequentou a escola. Conta-nos, por exemplo, que sua mãe o proibira de frequentá-la por acreditar que sua alma estava sendo aprisionada em um papel, mas foi o medo que foi sendo derrotado, à medida que sabia que para sobreviver na cidade grande era preciso alfabetizar-se. Como um “guerreiro sem armas”, Kaká Werá conta-nos que assumiu a missão de tradutor intercultural depois de ter conhecido a ambientalista Gike que lhe mostrara, através de uma antena parabólica colocada em sua casa no meio da mata, que era possível conjugar os modos de vida dos indígenas com a tecnologia da civilização. Como crítico do “descobrimento”, faz um diálogo com a Carta de Caminha, onde mostra sua leitura do documento, quando fala da nudez dos índios:

Com o tempo, passei a andar pelas largas trilhas da cidade, chamadas avenidas. Percorri suas florestas de aço e comi de seus frutos artificiais para descobrir os brasis. No asfalto por onde andei, se plantando nada dá. Provei do bom e provei do ruim. Conheci uma qualidade de caciques, que põem gravatas como na minha época de estudante e que, dizia um antiquíssimo e histórico escrivão, andam deveras desavergonhados. (JECUPÉ, 2002, p. 37).

Nesse trecho a abundância e a fertilidade da terra brasilis são substituídas pela dureza e frieza do aço e dos frutos artificiais. Depois, a falta de vergonha dos que andavam nus não é nada quando comparada à vergonhosa corrupção dos nossos políticos. Em Todas as vezes que dissemos adeus, Kaká Werá relembra o importante ritual por que passou, chamado Anhangabaú-Opá, ou o “fim do vale dos velhos anahns”, uma cerimônia concebida como um ato de perdão. A autobiografia da professora e escritora Eliane Potiguara está presente em Metade cara, metade máscara (2004), uma obra que mistura memória e fatos históricos, os quais são colocados em prosa e verso. O livro de Potiguara é uma homenagem a sua bisavó que, depois da perseguição e extermínio de sua tribo no nordeste, deslocou-se para o Rio de 124

Janeiro, onde ela e as mulheres da família foram vítimas da violência, da miséria e até da prostituição. Relembra o seu retorno à ancestralidade, quando visitou a sua família na Paraíba e lá conheceu o Sr. Marujo, o velho índio Potiguara que lhe conta a história de seus antepassados. Foi um encontro marcante para a índia-urbana que buscava fazer “o retorno ao inconsciente coletivo”, como ela mesma declara logo no início da obra. A partir desse reencontro com o seu passado, Eliane Potiguara engaja- se ativamente no movimento indígena e decide escrever denunciando a perseguição violenta às populações indígenas. O tema da memória é também explorado na obra de Daniel Munduruku, seja recordando momentos de sua infância e adolescência, com seus conflitos de identidade, seja relembrando os ensinamentos dos mais velhos, que muito lhe ajudaram a resolver tais crises existenciais. Para esse capítulo, escolhemos cinco obras que apresentam um pouco de suas lembranças “de luxo”, citando Bergson (2011), que atravessaram a consciência e que vieram apresentar um curto período de sua infância, adolescência e de sua fase adulta. A primeira a ser apresentada é Histórias de Índio (1996), seu primeiro livro, onde reúne contos, crônicas e algumas informações sobre os povos indígenas do Brasil, ou seja, utiliza-se de diferentes gêneros do discurso para falar de si e de seu povo. Nosso interesse, nesta obra, está nas crônicas que tratam de fatos que pertencem a sua memória individual. A segunda obra é Catando piolhos, contando histórias (2006), em que relembra momentos felizes, recheados de histórias de sua mãe, de seu pai, da avô e do pajé da aldeia. A outra obra é Meu vô Apolinário (2009b), que traz no título o nome do seu avô paterno na tribo Munduruku, uma figura que marcou a sua vida, apesar do pouco convívio com ele. O quarto livro a ser estudado é Crônicas de São Paulo (2009c), cujo conteúdo revela suas impressões sobre a metrópole e suas lembranças de quando era menino que participava da vida da aldeia Terra Alta. Algumas recordações do “confessor de sonhos” ou do educador Daniel são registradas no livro Antologia de contos indígenas de ensinamento, de 125

2005, no qual fala de sua experiência como professor de Filosofia, numa escola pública. Todo esse trabalho autobiográfico de Daniel Munduruku tem o objetivo de falar de si, de exercitar a criação de uma narrativa de identidade. Para Candau (2012):

O trabalho complexo da memória autobiográfica objetiva construir um mundo relativamente estável, verossímil e previsível, no qual os desejos e projetos de vida adquiram sentido e a sucessão de episódios biográficos perde seu caráter aleatório e desordenado para se integrar em um continuum o mais lógico possível [...]. (p.73).

É uma forma de ordenar as lembranças, de se reapropriar do passado para se chegar a sua própria identidade, porque não há busca identitária sem memória. Para Daniel, assumir sua identidade indígena não foi tarefa fácil, uma experiência um tanto dolorosa, mas que o levou a perceber-se membro de uma coletividade. Fortalecida a identidade, nosso autor indígena transforma a luta pelo reconhecimento da diversidade o seu projeto de vida. Escreve para falar de si e dos seus “parentes” indígenas, de um patrimônio cultural que precisa ser reconhecido e valorizado. Em suas obras autobiográficas, os três autores citados ressaltam que são índios urbanos de identidade híbrida, pois conhecem a aldeia indígena e convivem com a cidade grande e seus valores. Têm um passado que se liga ao presente através da memória, guiada pela deusa Mnemosyne que, para os gregos, seria uma divindade que nos protegeria dos perigos do esquecimento. Assim, a memória se aproxima do sagrado, é como se sofresse uma espécie de divinização:

A memória divinizada, pois, dentro do contexto arcaico grego, cumpre a função de lembrar aos homens dos seus heróis, nobres feitos e peripécias, regendo a lírica poética. Diz-se do poeta estar possuído ao declamar o passado. Possuído pela memória, que o transporta incólume às origens dos tempos, tornando-o sábio. (PEREIRA, 2011, p. 40).

Ainda recorda-se o passado, as origens para que a vida não seja ameaçada por algo devastador, que conhecemos muito bem: o tempo. Graças à memória revivemos o que passou; assim, temos a ilusão de que o fluxo do 126 tempo não é uma ameaça à nossa existência, por isso, a memória seria um antídoto contra a morte. Podemos dizer que memória e identidade estão indissoluvelmente ligadas: “[...] se apoiam uma na outra para produzir uma trajetória de vida, uma história, um mito, uma narrativa”. (CANDAU, 2012, p. 16). A relação de interdependência entre a memória individual e a coletiva também é confirmada por Pereira (2011). Quando os escritores indígenas escrevem de si, estão escrevendo também sobre a sua etnia e sobre todos os povos que têm uma história em comum. Sabe-se que a memória é uma construção social, de certa maneira sempre acontecendo no quadro de uma relação dialógica com o “outro”. Ela é atravessada pela desordem da paixão, das emoções, dos afetos que são revividos a cada esforço de recordação. Essa busca de si é uma reconstrução da própria história, um trabalho que consiste “em percorrer aquilo que acredita ser a totalidade de seu passado para dele se apropriar e, ao mesmo tempo, recompô-lo em uma rapsódia sempre original”. (CANDAU, 2012, p. 76).

LEMBRANÇAS DA CIDADE GRANDE

Daniel Munduruku é um contador de histórias, sejam aquelas das muitas tribos indígenas, com suas lendas, seus mitos e suas fábulas, sejam histórias que falam de si, de um tempo guardado na memória. Nas crônicas que fazem parte do seu primeiro livro Histórias de Índio (1996), as memórias são recontadas por Daniel Munduruku, ou seja, por um narrador adulto, quando já estava vivendo em São Paulo. A primeira crônica chama-se É índio ou não é índio. Trata-se de uma história eivada de humor, graças ao seu estilo descontraído de contá-la. Estava no metrô rumo à praça da Sé. Conta-nos que gostava de se mostrar para sentir a reação das pessoas quando o viam passar: “Queria poder ter a certeza de que as pessoas me identificavam como índio a fim de formar minha autoimagem”. (MUNDURUKU, 1996, p. 34). 127

Pôde perceber como era visto e que imagem duas senhoras fizeram dele, assim que o viram no metrô. O diálogo que ouve das senhoras denominadas A e B gira em torno da dúvida gerada pela imagem de um índio visto pela senhora B: estava com calças jeans, de relógio, usando sapato e camisa, tudo bem diferente daquela ideia de um índio de verdade que “mora na floresta, carrega arco e flecha, caça e pesca e planta mandioca”. (MUNDURUKU, 1996, p. 34). A senhora A descrevera Daniel atentando-se principalmente para os aspectos físicos: o cabelo liso, os olhos puxados, as maçãs do rosto saliente, um colar de dentes no pescoço, tudo isso lembrava um índio. Mas a dúvida quase não se desfaz. Quando resolveram perguntar a Daniel se ele era realmente índio, já estava na hora do desembarque dele. Simplesmente se voltou para as senhoras e disse que sim. A ideia de um índio puro que vive nas matas, anda nu e adora Tupã da senhora B é a que está cristalizada no imaginário de muita gente que ainda não se deu conta de que os tempos são outros; os índios brasileiros fazem parte da diversidade que forma esse país e estão acompanhando as mudanças do mundo, sem se afastarem de suas origens. A citação de Graça Graúna resume muito bem a questão da identidade étnica que não se perde ao entrar em contato com a cultura do homem branco: “A indianidade permanece (mesmo que o índio more na cidade grande, use relógio e calça jenas, ou se comunique no celular) porque o índio e/ou a índia, onde quer que vá, leva dentro de si a aldeia”. (GRAÚNA, 2013, p. 59). Daniel Munduruku recorda-se de outro caso que ocorreu com ele quando foi abordado por um cidadão. O fato está narrado na crônica Japonês, chileno ou índio?. O homem queria saber se Daniel era um japonês, pois parecia com um amigo seu, o Mizaka. Como dissera que não, o homem continuou perguntando se ele era um chileno, um muchacho. Por causa do silêncio de Daniel, insiste na possibilidade de ele ser um índio. Diante do gesto afirmativo de Daniel, o seu interlocutor retoma o diálogo fazendo muitos comentários sobre os índios no Brasil e perguntando a respeito dos índios Raoni e do deputado Mário Juruna. 128

Para Daniel, a ignorância a respeito da situação atual dos índios continua a mesma. É uma visão preconceituosa em relação aos indígenas, como se eles se limitassem a esses dois representantes no meio político. A última crônica Índio come gente? transcorre no ano em que se mudara para o estado de São Paulo e fora morar em Lorena, “uma bela cidadezinha do interior a fim de terminar meu curso de filosofia na Faculdade Salesiana”. (MUNDURUKU, 1996, p. 35). Começou a trabalhar com um grupo de crianças, uma experiência gratificante, pois para ele “as crianças são sempre sinceras e não escondem a própria curiosidade”. (MUNDURUKU, 1996, p. 35). Numa das conversas com a turma, um menino – também chamado Daniel – pergunta-lhe se índio comia gente. Não se devia acreditar em todas as informações, advertiu-lhe Munduruku. Um outro menino, irmão do menino Daniel, chamado Dioclesiano achava errado os índios matarem os animais, mas Daniel Munduruku tentou, de maneira didática, explicar-lhe as várias maneiras de encarar a caça aos animais. Outro aluno, o Andrezinho, ficara impressionado com a presença de um índio na escola. No dia seguinte, viera com a mãe para lhe encorajar a fazer a sua pergunta: “- É verdade que índio come gente?”. (MUNDURUKU, 1996, p. 36). O menino não quis nem ouvir as respostas de Daniel. Saiu correndo, apontando o dedo para ele e repetindo para os colegas que índio comia gente. E a dúvida não se esclareceu. Nessa crônica, vemos que a desinformação a respeito do indígena é que gera um comportamento preconceituoso das crianças que trouxeram para a escola, nesse encontro com Daniel Munduruku, tudo aquilo que ainda está presente no imaginário social quando se trata da história do índio no Brasil. Com certeza, no contato com um indígena de “carne e osso”, uma nova imagem se constrói e o trabalho do autor-indígena de combater os estereótipos com os pequenos se realizou. As três crônicas – narradas em 1ª pessoa – revelam um narrador preocupado em mostrar a visão que crianças, homens e mulheres adultos, brancos e moradores da cidade grande têm do índio. E a imagem é clara: ainda 129 repetem o clichê anacrônico que reduz os indígenas às matas, à antropofagia, o que demonstra a pouca visibilidade que possuem no mundo ocidental. Algumas lembranças do seu tempo de menino na aldeia Munduruku são contadas no livro Catando piolho, contando histórias (2006). Pai, mãe, avó, pajé e amigos são personagens centrais nas memórias de quem faz um flashback de um tempo que não volta mais, entretanto, pode ser revivido e compartilhado com os leitores. Lembra-se de sua avó que contava histórias para ele e os amigos da aldeia, depois de um dia de muita brincadeira e de um delicioso banho no igarapé. Era um momento solene, pois tinham diante de si alguém mais velho que merecia ser ouvido respeitosamente: “Gostamos das pessoas mais velhas e as respeitamos porque acreditamos que elas nos indicam um caminho que podemos seguir com passos seguros”. (MUNDURUKU, 2006, p. 25). Seu avô ensinou-lhes que era preciso ouvir os sinais da natureza, que as palavras tinham um significado e era preciso buscar o sentido de cada uma delas para compreendê-las. Aprendiam a participar do cotidiano da aldeia observando os adultos que caçavam, pescavam, coletavam frutas. Recorda-se dos afagos da mãe, quando deitava-o em seu colo para contar-lhe histórias e catar piolho. Como ele mesmo comenta saudoso: “Nessa hora o mundo para. Ficamos totalmente entregues ao carinho mágico de nossas mães, que não param de nos acariciar a cabeça atrás dos teimosos piolhos”. (MUNDURUKU, 2006, p. 18). A figura do pajé também é apresentada no livro de Daniel Munduruku como alguém mais velho (homem ou mulher), que conhece muito bem a natureza e que passou muitos anos se preparando para falar com o mundo dos espíritos e para tratar das doenças. É inclusive um bom contador de histórias, responsável por transmitir a sabedoria ancestral. De acordo com o narrador, o pajé é quem:

Conta coisas que foram vividas por nossos antepassados e que ajudaram nosso povo a sobreviver até os dias de hoje. Ele gosta de contar histórias que têm a ver com o nosso aprendizado espiritual, pois essa é a função dele em nossa comunidade. (MUNDURUKU, 2006, p. 26).

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Já o aprendizado para as artes da caça e da pesca era dado pelos homens da tribo. Seu pai era um conhecedor dos caminhos da natureza e lhe contava muitas histórias, enquanto matava piolhos. As mulheres mais velhas (todas chamadas de avós, segundo a tradição indígena) estão vivas nas memórias de Daniel Munduruku. Ele as descreve como “pessoas especiais, experientes, bondosas”. (MUNDURUKU, 2006, p. 37). São hábeis no trabalho com as mãos e com as palavras, pois tecem cestos, enquanto “tecem” histórias para a meninada. No último capítulo é que descobrimos que temos um narrador adulto que se recorda (flasback) de pessoas que foram (e são) significativas para a sua história de vida: “Hoje cresci. Conto histórias como quem cata piolhos na cabeça de quem lê meus textos”. (MUNDURUKU, 2006, p. 40). Um hábito que gosta de repetir com seus filhos, pois é um gesto de afago, acompanhado de histórias encantam seus ouvidos. Para Daniel, “catar piolhos” assume hoje uma outra conotação quando conta suas histórias: “[...] me dá uma impressão muito boa de estar sentando as crianças no colo, acariciando cabelos de tantas cores diferentes”. (MUNDURUKU, 2006, p. 41).

HISTÓRIAS DO VÔ APOLINÁRIO

Como imagem metafórica para falar das histórias que ficam guardadas no fundo do coração, o autor escolhe as areias do rio, pois “[...] estão lá, bem tranquilas, e só deixam sua tranquilidade quando alguém as revolve. Aí elas se mostram”. (MUNDURUKU, 2009b, p. 7). Em Meu vô Apolinário: um mergulho no rio da (minha) memória (2009b), Daniel Munduruku revolve as areias do rio e resgata o tempo em que vivera em Belém do Pará, “uma cidade onde a maioria das pessoas se parece com índio”. (MUNDURUKU, 2009b, p. 9). Fora criado pelos pais que, com muito sacrifício, trabalhavam duro para sustentar a família, inclusive ele que desde cedo trabalhara para ajudar nas despesas: 131

Eu mesmo fui vendedor de doces, paçocas. Sacos de feira, amendoim, chopp (é um suco colocado em saquinhos plásticos congelados. Em São Paulo chamam de geladinho). Fazia tudo isso com alegria. Eu era uma criança que gostava de fazer coisas novas. (MUNDURUKU, 2009b, p. 10).

Só não gostava de ser chamado de índio, por conta de todo o estigma que a palavra carregava, índio era alguém atrasado, selvagem e preguiçoso, esses estereótipos que estão disseminados no imaginário social. E por receber vários apelidos por causa de sua condição étnica, envolveu-se em muitas brigas de rua. Recorda-se das crises na escola em que estudava na cidade: “Era uma escola religiosa com bastante espaço para brincadeiras e jogos, comuns nas obras salesianas”. (MUNDURUKU, 2009b, p. 22). Queixa-se dos apelidos que lhe colocavam e da rejeição de algumas meninas porque era índio. Já estava com quase nove anos, quando se declara para Lindalva, sua paixão secreta, que não aceita o seu pedido de namoro. Para se refugiar de suas inquietações e decepções, gostava de ir para o quintal de sua casa para brincar com os irmãos e os colegas. Mas havia também a aldeia familiar Terra Alta, no município Maracanã: “lá eu passei os melhores anos de minha vida”. (MUNDURUKU, 2009b, p. 13). Iam para a aldeia no período das férias escolares e, como era um período muito feliz para as crianças, todas torciam para que as férias nunca acabassem. Uma época de sua vida, em que ficava ouvindo histórias, em noites iluminadas pelas fogueiras e lamparinas. Como ele mesmo lembra:

A gente se sentava diante das casas dos parentes e ficava horas a ouvir histórias contadas pelos velhos e velhas da aldeia. Algumas histórias eram horripilantes e davam medo de ouvir. Elas falavam de seres da floresta que gostam de brincar com os humanos. Essas criaturinhas apareciam de vez em quando para amedrontar as criancinhas. (MUNDURUKU, 2009b, p. 13).

Tawé, Korú, Arô, Kaxi, Kabá, Tonhã (nomes que vão aparecer em outras obras de Daniel) eram amigos de infância de Daniel, com quem brincava. E também iam juntos para a roça ajudar suas mães na lida. Daniel relembra que, quando tinha oito anos, fora levado pelo tio a um manguezal. Era como se fosse um “rito de passagem”, pois era sinal de que já estava crescendo. 132

Eram horas de caminhada até lá e só voltavam quando estava escurecendo. Na aldeia Terra Alta morava também seu avô Apolinário, já com seus oitenta anos, mas que ainda “caçava, pescava, ia para roça, preparava belíssimos paneiros de buriti”. (MUNDURUKU, 2009b, p. 26). As pessoas da aldeia sempre recorriam a ele para pedir conselhos, remédios e a cura de doentes. Com seu avô, Daniel aprendeu que devemos ter paciência e coragem como o rio que segue seu caminho sem nunca apressar seu curso e não desiste de superar os obstáculos que surjam no caminho. O avô Apolinário continua seus ensinamentos, banhados de metáforas:

Temos que acreditar que somos parte deste rio e que nossa vida vai se juntar a ele quando já tivermos partido desta vida. Temos de acreditar que somos apenas um fio na grande teia da vida, mas um fio importante, sem o qual a teia desmorona. (MUNDURUKU, 2009b, p. 31).

Passou a olhar os pássaros como porta-vozes da mãe-natureza e, nos sonhos, podem significar uma presença ancestral, mostrando sua força. Certa vez, seu avô lhe advertiu: “- Há visitas aladas que trazem bons augúrios e há as que trazem agouros. Preste atenção: toda vez que for tomar uma decisão importante, um ser alado aparecerá”. (MUNDURUKU, 2009b, p. 32). Entendeu também que os remédios para as angústias do homem da cidade estão no ar, no fogo, na água, na terra. Assim, o avô completa:

Nosso mundo está vivo. A terra está viva. Os rios, o fogo, o vento, as árvores, os pássaros, os animais e as pedras, estão todos vivos. São todos nossos parentes. Quem destrói a terra destrói a si mesmo. Quem não revencia os seres da natureza não merece viver. (MUNDURUKU, 2009b, p. 33).

Todos os ensinamentos foram fazendo com que o narrador fosse sentindo orgulho de sua origem, de sua ancestralidade e de seu povo Munduruku. Durante três anos, ele nos conta que ia para a cidade estudar e que queria voltar o mais rápido possível para ouvir as palavras sábias de seu avô, uma pessoa especial que lhe ensinou, dentre muitas coisas, que o tempo presente é uma dádiva de Deus e quer ser índio é motivo de orgulho. 133

No entanto, numa tarde de outubro, seu pai lhe comunicara que Apolinário tinha falecido. Como bem lembra, seu avô já sabia que ia partir: “- Então a minha hora já chegou. Preciso me unir ao Grande Rio. Lembre sempre, porém, que só existem duas coisas importantes para saber na vida: 1) Nunca se preocupe com coisas pequenas; 2) Todas as coisas são pequenas”. (MUNDURUKU, 2009b, p. 37). Desde então, Daniel afirma que, com o aprendizado com o seu avô, passou a enfrentar o mundo com mais serenidade, aprendeu a esperar e a perseverar, pois, como o rio, ele irá chegar aonde quiser. Algumas memórias de Daniel Munduruku, em Meu vô Apolinário (2009b) são contadas em O banquete dos deuses (2009a), obra em que nos revela que “foi ouvindo as histórias que meu avô contava que percebi o que os povos tradicionais podiam oferecer à cidade”. (MUNDURUKU, 2009a, p. 14). Tinha apenas 12 anos quando seu avô morreu e acompanhou seu pai durante o velório na aldeia. Desde pequeno teve que aprender a conviver com o que a civilização tem de pior, que é ignorar quem traz em si o diferente, mas soube aproveitar bem os ensinamentos de Apolinário, “homem de poucas palavras, mas de sabedoria infinita”. (MUNDURUKU, 2009b, p. 15). Ouvir histórias de seu avô ajudou Daniel a superar suas crises de identidade e a compreender aquilo que é importante para o seu povo, e desenvolveu em seu interior o sentido de pertencimento.

O “OLHO ARMADO” NA CIDADE DE SÃO PAULO

O que a escritura indígena vai realizar, enquanto autobiografia, é o traço de uma paisagem vista com olhos livres, e não com avidez científica. (Maria Inês Almeida)

Em Crônicas de São Paulo (2009c), Daniel Munduruku utiliza-se do gênero discursivo “crônica” para escrever suas impressões sobre alguns lugares da grande metrópole (Ocaguaçu), que guardam em seus nomes a ancestralidade de seu povo. O narrador-em-trânsito deixa registrada a sua 134 impressão: “Quando ando por Sampa penso que estou caminhando sobre meus ancestrais”. (MUNDURUKU, 2009c, p. 12). Percorre um caminho, com o “olhar armado”19, por alguns lugares da cidade que o levam ao passado, quando vivia perto dos pais, dos irmãos e de sua aldeia Munduruku. É a memória alimentando sua identidade indígena que não se apagou no contato com a civilização. Nessa obra, pretende mostrar o seu modo de olhar para este gigante, uma cidade que o acolheu e onde construiu sua própria história. São Paulo está repleta de nomes indígenas que passam despercebidos pelas pessoas apressadas; nomes que são repetidos pela força do hábito, mas que carregam significados. Para o autor, são “palavras que carregam histórias”. (MUNDURUKU, 2009c, p. 12). Inicia o seu passeio pela cidade, entrando no metrô – o tatu metálico – que leva as pessoas para os seus destinos. Chega a Tatuapé, um nome que o leva a pensar no tatu da floresta, um animal “que desconhece seu destino, mas sabe aonde quer chegar”. (MUNDURUKU, 2009c, p. 15). Pensou no tempo de antigamente, quando o Tatuapé era um lugar de caça ao tatu, mas não vira nenhum por ali. Comparado ao animal, o “tatu metálico” é aquele que transporta muitas pessoas para os lugares onde vão encontrar seu alimento. Seguindo viagem, chega ao Anhangabaú (o rio da assombração), nome dado pelos antigos ao rio onde alguém teve a visão do espírito do mal, afinal, é comum entre os indígenas colocar nomes nos lugares a partir de um episódio ocorrido”. (MUNDURUKU, 2009c, p. 19). Assustado com as sombras das pessoas que se formavam com o por do sol e talvez influenciado com o nome do lugar, pensou: “São os fantasmas dos nossos antepassados”. (MUNDURUKU, 2009c, p. 21). Dali vai para o lugar de árvores, o Ibirapuera, que, para o narrador, era um lugar fascinante: “Não tanto pela beleza da natureza que o circunda, mas pelo fato de ser um lugar circular, como uma aldeia indígena”. (MUNDURUKU,

19 Essa expressão é dada por Süssekind (2008) para se referir ao narrador de ficção na prosa romântica brasileira que se constitui no início do século XIX, na busca da cor local, preocupado com detalhes, num exercício descritivo. Em nossa tese, o “olho armado” do narrador busca reconhecer na cidade de São Paulo resquícios de sua ancestralidade indígena, despertada em alguns lugares que outrora foram povoados pelos ameríndios. 135

2009c, p. 23). Segundo ele, no parque há um lago que simboliza o velho avô que tudo ouve pacientemente e há árvores que lhe mostram que somos parte do planeta. Buscando resquício de sua ancestralidade na cidade de São Paulo, Daniel prossegue sua jornada; agora, de ônibus, passeando pela Praça da Sé, lembra-se do início da cidade com a instalação da Missão de São Paulo de Piratininga, pelos padres jesuítas. Em seguida, vai para Jabaquara – lugar dos escravos fugidos. Todo um ambiente que lhe faz pensar sobre a escravidão dos negros, sobre a saudade que sentiam de sua terra natal, um sentimento que impulsionou o desejo de liberdade. Daniel imagina quantas melodias tristes nasceram em suas margens e lamenta: “Quantas lágrimas foram derramadas em suas águas para que levassem para a terra querida!”. (MUNDURUKU, 2009c, p. 29). Confessa que, como os negros exilados de sua terra, ficou saudoso do seu povo e comenta:

Senti um pouco de saudade também. Estar longe de casa, da minha gente, da terra onde nasci, me fez compreender a saga dos primeiros tempos e me despertou para a necessidade de cantar os cânticos da criação. Fez com que eu me lembrasse da teia que une todos os corações e todos os povos, na tentativa de manter o planeta equilibrado. Fez-me gostar de São Paulo, terra que me dá guarida e acolhe, ainda que de forma trôpega, a todos que aqui chegam. (MUNDURUKU, 2009c, p. 30).

O sentimento de saudade é também despertado ao ver a represa de Guarapiranga, com toda aquela água, uma visão que leva o narrador a ressuscitar da memória suas lembranças do tempo de menino, quando tinha que acordar muito cedo, tomar banho no rio e caminhar horas até chegar à roça de mandioca. Porém, eles e as outras crianças iam felizes “catando coco de tucum, comendo ingaxixica, maracujá do mato ou simplesmente olhando as meninas que vinham logo atrás carregando os paneiros para serem enchidos de gostosuras da floresta”. (MUNDURUKU, 2009c, p. 33). Recorda-se que voltavam no fim da tarde, já cansados, mas felizes por terem aproveitado o dia. Depois, como era de costume, escutavam histórias dos mais velhos. É verdade que às vezes dormiam no meio da narrativa, mas “através dos sonhos também a gente aprendia”. (MUNDURUKU, 2009c, p. 35). 136

Enfim, estar em Guarapiranga era como estar pisando em solo sagrado, onde muitos corpos deveriam estar enterrados. Depois de ter molhado seus pés no local onde as graças se alimentam, resolveu andar pela terra firme, o Butantã, um nome que sempre lhe chamou a atenção por ser a morada das cobras, um lugar onde elas gostam de ficar. Daniel lembra-se de um episódio que aconteceu com ele: Quando menino, havia passado por cima de uma surucucu que estava no meio do caminho onde eles e seus pais percorriam para ir para a roça. Seu pai simplesmente cutucou a cobra e deixou-a ir para a mata. À noite, o pai de Daniel lhe explicou a necessidade de se tomar cuidado com as cobras e contou-lhe que, na mitologia indígena, as serpentes eram as donas da noite, mas “foi preciso usar de várias artimanhas para convencê-los a partilhar a noite com o nosso povo”. (MUNDURUKU, 2009c, p. 38). O Butantã é um lugar que guarda uma memória de sua gente, de índios que habitavam essas terras muito antes das “caravelas chegarem com seus tripulantes gananciosos e covardes”. (MUNDURUKU, 2009c, p. 39). Terra firme que precisa ser reverenciada também pelos paulistanos, um lugar que precisa ser olhado com os olhos do espírito, “coisas que a olho nu não se consegue ver”. (MUNDURUKU, 2009c, p. 39). Do Butantã, o narrador vai para Pirituba, um lugar cheio de taboas que atraem animais rasteiros e serpentes que vêm se alimentar deles. Como as serpentes, o narrador veio a Pirituba, em busca de seu sustento. Foi onde ele encontrou o seu primeiro emprego: “Foi ali que tive minha primeira experiência em sala de aula e minha primeira experiência de vida na cidade grande”. (MUNDURUKU, 2009c, p. 41). Lembra-se de seus momentos de crise por ter receio de estar traindo sua gente e abandonando sua terra natal. Mas, suas súplicas foram ouvidas pelos ancestrais que lhe mostraram o caminho a seguir. A partir desse momento, passou a ter um olhar bem pessoal, indígena, sobre a cidade de São Paulo, transformando o barco em trem, o arco em palavra, a mata em tabual, a escuridão em luz elétrica, a aldeia em cidade. (MUNDURUKU, 2009c). 137

Ao passar perto do rio Tietê, o narrador se sente triste ao vê-lo tão maltratado e seus pensamentos vão para uma época em que esse rio era o centro da vida de muitas aldeias, em tempos muito remotos. Faz menção ao seu povo Munduruku, que também vive às margens de um grande rio, o Tapajós, que alimentou e alimenta os ribeirinhos. Segundo a tradição de seu povo, o Tapajós se tornou “nosso velho e sábio avô, o patriarca que ensina a ter paciência e a esperar”. (MUNDURUKU, 2009c, p. 46). A mesma reverência o narrador espera que se tenha para com o rio Tietê e para a natureza, pois dela não somos donos, nem proprietários, mas guardiões e zeladores da sua beleza. Mesmo não sendo fácil encontrar alguma beleza para quem anda às margens do Tietê, Daniel – esse narrador de olho armado – não se cansa de lembrar que:

“é preciso valorizar o tesouro líquido tão vital para a vida dos homens e das mulheres de nosso mundo, e [...] que não podemos passar por esta vida sem fecundarmos nossas próprias margens, para que outros também tenham vida em abundância”. (MUNDURUKU, 2009c, p. 49).

Não só as águas são vítimas dos maus tratos do bicho homem, mas também o verde que, pouco a pouco, tem sido devorado pelas máquinas, impiedosos gafanhotos de metal. Daniel Munduruku, finalmente, está em Tucuruvi, um lugar que era considerado a morada de muitos gafanhotos, mas que foram fugindo dos invasores que gostavam de comê-los em suas refeições. Hoje, então, nem são encontrados por lá. Recorda-se que seus antepassados também comiam esses insetos durante as guerras, por ser um alimento abundante e leve, bom pra os guerreiros que não podiam deixar pegadas no solo. Ainda em “associação livre”, seu pensamento viaja para o Egito que, de acordo com a narrativa bíblica do Velho Testamento, fora castigado por Deus com a praga de gafanhotos que destruiu toda a plantação. Mas, para algumas pessoas, sonhar com esses insetos é um bom sinal, é um bom presságio. O narrador finaliza sua incursão em Tucuruvi, refletindo sobre a questão do medo que não deixa os moradores da cidade sonharem e conviverem com o fantástico. 138

Uma reflexão, aliás, que não é só dele. O sociólogo polonês Zygmut Bauman (2005) percebe nosso tempo “pós-moderno” marcado pelo medo (que faz as pessoas se isolarem em “espaços sitiados” como os condomínios) e pelo consumismo, duas características dos “tempos líquidos” que afrouxaram os vínculos afetivos, porque as pessoas vivem o efêmero, o transitório. Enfim, o olhar do narrador indígena sobre a cidade de São Paulo leva-o à sua ancestralidade que ainda habita os mais diversos lugares da metrópole, todos topônimos de origem tupi-guarani. Um caminho que percorre procurando encontrar a memória daqueles que foram os seus legítimos e mais ilustres filhos, os Guarani. Traça carinhosamente um pequeno mapa da capital paulista para mostrar que esta terra tinha dono, mas quase ninguém se lembra disso, nem mesmo se dá conta de que os nomes de muitos lugares da cidade têm uma raiz indígena e que carregam em si uma história de sofrimento, dor e resistência. No livro Crônicas de São Paulo (2009c), Daniel Munduruku fala de si e também da cultura indígena, ou seja, de sua identidade coletiva. A identidade cultural ou coletiva é produzida a partir do sentimento de pertencimento entre os indivíduos da mesma aldeia. Tal é a importância dada à memória pelo povo indígena, que Daniel já afirmara em O banquete dos deuses (2009a):

As sociedades tradicionais são filhas da memória e a memória é a base do equilíbrio das tradições. A memória liga os fatos entre si e proporciona a compreensão do todo. Para compreender a sociedade tradicional indígena é preciso entender o papel da memória na organização da trama da vida. (MUNDURUKU, p. 28).

Nas lembranças narradas nas crônicas de Daniel na cidade de São Paulo lê-se o pertencimento a sua etnia, mas reconhece sua ligação à capital paulistana. Pertence aos dois mundos, afinal:

As identidades são produzidas e se modificam no quadro das relações, reações e interações sociossituacionais - situações, contexto, circunstâncias – de onde emergem sentimentos de pertencimento, de “visões de mundo” identitárias ou éticas. (CANDAU, 2012, p. 27).

Justamente interagindo com as pessoas – não só aquelas de sua aldeia – é que sua identidade vai ser reelaborada, já que ela não tem a “solidez de uma rocha”, nem está garantida para toda vida, pois todos nós podemos 139 transgredir fronteiras, temos a capacidade de nos movimentar em vários universos linguísticos diferentes. (BAUMAN, 2005). A sua cultura indígena, como já vimos anteriormente, mescla-se com a cultura urbana, o que acaba constituindo uma “cultura híbrida”, heterogênea, extremamente diferenciada, sem qualquer monolitismo. (SAID, 2011). São as identidades pós-modernas, sempre em trânsito, num constante vir-a-ser. Deslocam-se e se modificam em função do momento vivido, do local de onde o sujeito fala, de sua relação com o outro e de como é visto pelo outro. No entendimento de Thiél (2012), muitos autores indígenas:

[...] estão inseridos nas culturas tribal e ocidental e discutem as múltiplas identidades dos índios em trânsito no mundo contemporâneo. Além disso, estão vinculados a projetos de esclarecimento e afirmação das comunidades tribais. Vale lembrar que muitos autores indígenas compartilham biografias nas quais seu trânsito pelas culturas ocidentais e ancestrais se manifesta. (p. 120).

Por isso, o fato de pertencer aos dois mundos permite que nossos autores indígenas os entendam com facilidade, afinal, é preciso transitar entre os dois lados, já que vivem na Aldeia Global e precisam lutar por um lugar dentro dela. Apresentam-se como indivíduos cosmopolitas, marca de uma nova geografia que se faz na junção do global e do local, o glocal:

O termo glocal sugere o cruzamento de mundos e a criação de uma nova realidade, na qual as fronteiras anteriormente demarcadas caem. O espaço contemporâneo é revitalizado pelo trânsito e pela justaposição dos espaços de pertencimento e circulação. (THIÉL, 2012, p. 123).

Nada que abale a “sensação de pertença” (SAID, 2011), que pode ser fortalecida pelas narrativas escritas pelos indígenas, visando à integração e não à separação.

MEMÓRIAS DE UM “CONFESSOR DE SONHOS”

Em seu livro Antologia de contos indígenas de ensinamento: tempo de histórias (2005), Daniel Munduruku relembra momentos de sua experiência de 140 professor no Ensino Médio de uma escola paulistana. Suas memórias são apresentadas numa ordem cronológica inversa, mencionando apenas o último dia como professor nessa escola e o primeiro dia, encaixando em cada capítulo mitos, lendas e suas reflexões sobre o modo de vida urbano. O livro está dividido em sete capítulos que tratam de sua volta ao passado, um tempo considerado por ele sagrado, interno. Daí os títulos de cada uma das partes: Tempo de mudar, Tempo de infância, Tempo de aprender, Tempo de escolher, Tempo de observar, Tempo de ousar e Tempo de ensinar. Insere no primeiro e no último capítulo da obra uma epígrafe que reproduz um esquema de plano de aula, com os itens convencionais: dia, tema, objetivo, desenvolvimento, duração, resultado. No entanto, o que preenche cada item não é nada convencional, são dados bem subjetivos, como se lê no primeiro capítulo:

Sexta-feira: Meu último dia na escola Tema: Tempo de ousadia Objetivo: Fazer da despedida um recomeço Desenvolvimento: Vai de improviso Duração: Uma aula Resultado esperado: Nenhum (talvez tristeza de parte a parte). (MUNDURUKU, 2005, p. 13).

A partir desse trecho, já podemos perceber que o narrador vai nos apresentar as recordações do seu último dia de aula na escola, aliás, uma despedida anunciada há um mês. Fora um dia muito especial para o narrador, que rememora a homenagem prestada a ele por seus alunos, na hora do intervalo:

E o que eu vejo ao longe, quando estou me encaminhando para a sala dos professores? Todos os meus alunos estavam pintados, uns no rosto, outros nos braços, meninas com saias de palha, rapazes com maracás em punho, cocares nas cabeças. Chegaram entoando um canto, um lamento. Dirigiram-se ao centro da escola, um pátio circular. Um dos jovens trazia escoltada a diretora. (MUNDURUKU, 2005, p. 15).

Uma homenagem com direito a discurso do aluno Helder e à entoação de um canto de saudade cantado por todos os alunos. Nesse momento, o narrador se deixa levar por seus pensamentos que o levam às reflexões sobre como seu povo entende o tempo presente e à 141 lembrança de seu avô Apolinário e de suas histórias. Assim, encaixam-se uma digressão crítica do narrador e uma fábula contada pelo seu avô sobre o rio que queria ser pássaro, mas que acabou recebendo do Criador a bênção de lembrar a todos que é preciso seguir sempre, mesmo por caminhos difíceis. (MUNDURUKU, 2005). O rio seria a metáfora daquele que precisa seguir seu curso, tal qual o narrador Daniel Munduruku que, ao se despedir de seus alunos, buscava novos caminhos para sua vida. Seu tempo de menino é relembrado no segundo capítulo dedicado à infância, um período da vida comparado a um “grande parque de diversões”, pois ele, seus irmãos e primos brincavam o tempo todo, subindo em árvores, nadando no igarapé, comendo frutas e exercitando a pescaria com arcos e flechas. Recorda-se do tempo em que se sentavam próximo ao fogo para ouvir as histórias contadas pelas avós e as cantigas que embalavam lhe ensinaram “a olhar as estrelas e desejar morar nelas”. (MUNDURUKU, 2005, p. 24). Sua mãe narra-lhe, num desses momentos em que se reuniam velhos e crianças ao redor da fogueira, a lenda de uma índia que se casara com um homem branco e tivera três cachorros como filhos e que foram, no final, aceitos pela aldeia. Um fato que explicaria, no nível mítico, o surgimento dos cães entre o seu povo. Daniel Munduruku nos mostra que era assim que a tradição se passava. Oralmente, de pais para filhos, de avós para netos, as histórias indígenas eram transmitidas, um exercício de aprendizagem que o ligava à memória ancestral, raiz de todo o saber de sua gente. Aos 15 anos, quando deixou a aldeia para morar na cidade grande, Daniel lembra-se do estranhamento que sentiu ao ver tantos prédios, casas uma em cima da outra. Admirou-se com o chuveiro, com o elevador que levava as pessoas para cima e para baixo. Era o momento de crise em sua vida: precisa sair da aldeia para conhecer a cidade e sua forma de ser, por isso o título do terceiro capítulo, “Tempo de aprender”. Nesse espaço urbano que lhe parecia tão diferente, iria continuar seus estudos e poderia cumprir a promessa que fizera a seu avô, por ocasião de sua morte: ser professor, ou melhor, confessor de sonhos. 142

Volta a mencionar a figura de seu avô Apolinário que, a seus olhos, era um homem muito sábio, conhecedor de muitas coisas desse mundo, um homem “cheio de diplomas nas coisas da floresta”. (MUNDURUKU, 2005, p. 38). Era um conhecimento trazido, seguindo o próprio avô, pelo sonho, “um mensageiro dos espíritos de nossos antepassados”. (MUNDURUKU, 2005, p. 35). Ao recordar-se de seu avô, uma história contada por ele “encaixa-se”, ilustrando o tema do sonho, tão relevante para os indígenas que creem que dormimos para falar com os espíritos que habitam o mundo de lá, como lhe ensinou Apolinário. Lembra-se não somente de sua mãe, de seu avô, mas também de seu pai, um conhecedor das matas. Foi ele que o preparou para ir à floresta, onde passaria um tempo afastado da aldeia para cumprir o seu “rito de passagem” para a maioridade. Seu pai, ao ensinar-lhe alguns segredos da floresta, conta-lhe “uma história muito antiga, falando da necessidade de estar o tempo todo voltados para ouvir o que a mãe-terra tem para nos oferecer”. (MUNDURUKU, 2005, p. 45). Tinha feito a sua escolha, era “Tempo de escolher”. Viria para a cidade grande, com a certeza de poder contar com o seu povo. Daniel conta-nos em “Tempo de observar” das dificuldades que enfrentou para estudar e superar as limitações de quem vinha de uma escola da floresta. Lembra-se dos seus estudos na escola profissionalizante, na universidade que, para ele, ensina que quanto mais se sabe, mais se domina. Algo bem diferente do pensamento de sua tribo que lhe ensinou que ninguém pode se considerar melhor que ninguém. (MUNDURUKU, 2005). Ao refletir sobre o ensino e a educação, a fábula da raposa e do jabuti “encaixa-se” nesse momento da narrativa como alegoria de um “conflito milenar” entre a tradição (o jabuti) e a modernidade (a raposa). Suas lembranças continuam sendo revolvidas no rio da memória. Em “Tempo de ousar” recorda-se da primeira vez que saiu de sua aldeia para continuar seus estudos na cidade grande. Foi na escola pública que Daniel teve o contato maior com livros. Passou a ler obras de todo gênero: aventura, suspense, comédia, romances e poesia 143 de Fernando Pessoa. Os livros, segundo o narrador, funcionavam como uma janela para o conhecimento e o ajudaram a compreender o novo mundo. Era preciso ter com os olhos para ler o mundo e as pessoas. Recomendou-lhe seu pai: “- Empreste os olhos para as pessoas, nunca os dê para elas. Conserve seu jeito de olhar o mundo, receba outros olhares, mas nunca perca o que é seu”. (MUNDURUKU, 2005, p. 69). E, a propósito do conselho do pai, o narrador “encaixa” uma história contada por seu avô, chamada O jogo dos olhos. Nesse capítulo, ressalta a importância de ter estudado Filosofia, um curso que o ajudou a compreender o pensamento “quadrado” que o ocidente desenvolveu: “Confesso que foi assim que compreendi melhor o que minha cultura tradicional tinha de tão fundamental e como era importante mantê-la viva. Foi preciso sair e conhecer a cultura do outro para valorizar ainda mais a minha”. (MUNDURUKU, 2005, p. 72). No último capítulo do livro, “Tempo de ensinar”, temos o seu primeiro dia como professor. Repete-se a epígrafe no formato de um plano de aula:

Segunda-feira: Meu primeiro dia na escola. Tema: Meu nome. Objetivo: não considerar uma necessidade ter um objetivo. Desenvolvimento: Acho que vai depender deles. Duração: Uma aula (ou quem sabe um ano inteiro). Resultado: Nenhum. (tenho que achar meu próprio ritmo). (MUNDURUKU, 2005, p. 75)

Conhecia bem a imagem preconceituosa em torno do índio apresentada nos livros didáticos e não sabia como seria a recepção dos alunos, o que lhe causava um desconforto. Em meio à insegurança de professor iniciante, um sonho veio lhe trazer segurança para enfrentar o desafio de ensinar Filosofia para jovens. De frente para os alunos, já em sala de aula, o narrador começa a conversa explicando- lhes a importância que os indígenas dão ao nome, algo tão sagrado que é transmitido por um sonho da mãe, “lá pelos seis meses de gravidez”. (MUNDURUKU, 2005, p. 82). Conta-lhes, então, a origem de seu nome indígena, Derpó, que significa “peixe maluco”. 144

A aula termina com a leitura de um poema de Alberto Caeiro, um dos heterônimos de Fernando Pessoa. Nessa “antologia memorialista” de Daniel Munduruku repete-se a técnica de encaixe” (TODOROV, 2011), presente em outras obras do autor, o que permite que histórias dos mais velhos sejam interpostas à narrativa desenvolvida em cada capítulo do livro. Assim, as narrativas ancestrais da memória coletiva misturam-se a sua memória pessoal, mostrando a estreita relação entre o “eu” e o “nós”. Avô, pai, e mãe são os responsáveis em transmitir a tradição do povo Munduruku ao menino que, um dia, teria que conviver com a tradição urbana. O tempo cronológico e o tempo psicológico se misturam. Ficam marcados apenas os dias da despedida da escola (uma sexta-feira) e o da sua estreia em sala de aula (uma segunda-feira), sem mesmo encontrarmos qualquer outra marca temporal, como mês e ano. No mais, as lembranças dos seus familiares, as histórias contadas por eles e suas reflexões sobre a aldeia e a cidade vão completar esse hiato entre o último e o primeiro dia como “confessor de sonhos”. Talvez porque o mais importante fossem seus pensamentos e sensações experimentados naquele momento de sua vida. Afinal, como bem lembra, era um menino de 15 anos que saíra da aldeia indígena para estudar na cidade grande, onde também concluiria o curso universitário. Daniel Munduruku, o narrador-personagem da obra, deixa algumas marcas da linguagem coloquial, típica do contador de histórias, como podemos ler nos seguintes trechos: “ [...] outros me chamaram de traidor, covarde, de bundão” (p. 14); “Continuou na lengalenga de sempre” (p. 20) e “Fazia um sol de rachar o crânio” (p. 44). São marcas linguísticas que aproximam o leitor daquele que narra histórias que pertencem a sua memória pessoal e também coletiva. São lembranças carregadas de angústia, alegria e saudade de um tempo que não volta mais, entretanto deixou lições para a sua vida de educador.

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CAPÍTULO V: ENTRE DEUSES E PAJÉS - A RELIGIOSIDADE INDÍGENA

Neste capítulo da nossa tese, pretendemos trazer algumas informações sobre a religiosidade dos nossos índios, sempre tão negada pelo colonizador por considerá-la algo pernicioso ao processo da catequização iniciado no século XVI e da figura do pajé ou xamã, um importante elo com o sagrado na vida da aldeia indígena. A temática religiosa é retomada por Daniel Munduruku, no intuito de apresentá-la aos leitores como manifestação do sagrado, ordenado pelo pajé no seio da comunidade indígena. Apresenta o xamã como alguém que tem uma história, uma missão junto aos seus, como podemos ler em muitas de suas narrativas.

A FIGURA SAGRADA DO PAJÉ

Sabe-se que os missionários, nos séculos XVI e XVII, condenavam a religião indígena e o seu maior representante espiritual – o pajé – uma figura emblemática para a harmonização da vida social na aldeia. Daniel Munduruku também o chama de xamã, por considerar um termo mais abrangente e seguro. Para o autor, a palavra “xamanismo” é mais universal, “uma vez que em todas as culturas nativas do mundo há ou houve a presença do xamã, uma pessoa com poder especial de cura e de contato com os espíritos”. (MUNDURUKU, 2010, p. 90). As práticas xamânicas podem ser reportadas no Ocidente desde o quinto século antes de Cristo, no mundo grego, em suas práticas de interpretar o futuro e de revelar a verdade aos homens, sob a inspiração dos deuses. Segundo Santos (2007), o xamanismo é uma das mais antigas formas da expressão religiosa, encontrada nas culturas pré-históricas de caçadores da Sibéria, onde o xamã era o mago, o curandeiro e poeta. A figura do xamã e a representação de suas atividades religiosas, entretanto, sofreram mudanças ao longo do tempo. No século XVII – marcado 146 pelo espírito racional do Iluminismo – o xamanismo era considerado uma superstição, o que contrariava o cientificismo da época. No século XVIII, assumiu a característica do exótico, sendo alvo de interesse e curiosidade pelo oculto, até por aqueles que professavam o espírito racionalista do Iluminismo. O xamanismo só desenvolveu a dimensão artística no movimento romântico, nos séculos XIX e XX, quando houve “a formação de uma poética20 que proclama a sobrevivência do pensamento mágico, contra os assaltos da racionalidade”. (SANTOS, 2007, p. 271). Os estudiosos das Ciências Humanas voltaram a atenção para os textos orais dos xamãs e seus refrães, com toda a sua musicalidade. Na explicação de Santos (2007):

Essas canções são narrativas poéticas que têm sido sussurradas pelos espíritos eternidade afora. Elas descansam na raiz de toda forma narrativa, seja ficcional ou histórica. Elas lidam com o poder mágico das palavras, dando à narrativa poética uma perspectiva diferente, aquela da palavra que cura e que ecoa os sons, há muito esquecidos, da poesia primitiva. (p. 273).

Para os cientistas das religiões, o xamã é o guerreiro do conhecimento, símbolo da sobrevivência étnica de tradições assimiladas pela cultura da razão europeia. Sua presença está entre os nativos americanos da América do Norte, entre os aborígenes da Oceania e entre as tribos da África. Mas, suas práticas podem ser observadas na maior parte das culturas. Esse líder espiritual passa por um êxtase e mergulha em outros níveis de consciência através do voo mágico. Dentro da perspectiva da História Geral das Religiões, Eliade (1960) já afirmava ser o xamã um grande mestre do êxtase, ou “o especialista de um transe o qual sua alma crê abandonar o corpo para empreender ascensões ao Céu ou descimentos ao Inferno”.21 (p. 23,). É alguém que “incorpora a habilidade e o desejo de alcançar um estado de consciência alterada, frequentemente à beira de um ‘colapso psíquico’, para

20 É o que se chama de etnopoética, uma “nova poética” voltada para o antigo e para as culturas autóctones. O termo foi idealizado por Jerome Rothemberg (1931) que propunha uma poesia fora do espaço literário ocidentalizado, centrado na tradição greco-romana. Para Santos (2007), a etnopoética é a poesia da experimentação do potencial humano em todos os tempos e lugares. 21 Tradução livre do trecho: “[...] El especialista de um trance durante el cual su alma se cree abandona el cuerpo para empreender ascensiones al Cielo o descimientos al Inferno”. (ELIADE, 1960, p. 23). 147 uma variedade de propósitos que envolvem o sobrenatural”. (SANTOS, 2007, p. 15). Além desse estado metafísico, o xamã incorpora também a continuidade de identidades étnicas, no mundo globalizado da pós-modernidade. De acordo com Gennep (2011), o conjunto dos atos do xamã, por ocasião de uma cerimônia, compreende a mesma sequência: transes, morte, viagens da alma a outro mundo, a volta e a aplicação dos conhecimentos adquiridos no mundo sagrado. Para Munduruku (1996), o povo indígena atribui ao pajé uma importante função de sonhar e interpretar os sonhos que mostram os caminhos a trilhar nos momentos de dúvida. Tem um poder que não é seu, “mas das forças cósmicas que atuam por meio dos antepassados”. (p. 22). A antropóloga Ramos (1986) acrescenta que outra atribuição do pajé está na responsabilidade de zelar pelo bem-estar geral da comunidade,

protegendo-a contra espíritos malignos, conduzindo recitativos ou cerimônias propiciatórias para boas colheitas, boas caçadas, invocando espíritos benignos para assistir na resolução de certos problemas, como esterilidade e outros distúrbios que podem ser atribuídos aos efeitos de feitiçaria. (p. 83).

Assim, o pajé detém o conhecimento do sagrado e de suas manifestações na natureza. A revelação do sagrado é chamada por Eliade (1992) de “hierofania” que pode se manifestar em pedras e árvores, elementos que acabam adquirindo um novo status para o homo religiosus:

Para aqueles a cujos olhos uma pedra se revela sagrada, sua realidade imediata transmuda-se numa realidade sobrenatural. Em outras palavras, para aqueles que têm uma experiência religiosa, toda a natureza é suscetível de revelar-se como sacralidade cósmica. O Cosmos, na sua totalidade, pode tornar-se uma hierofania. (p. 16).

Para o povo indígena, a natureza é sagrada, as águas, as árvores, os animais, o vento podem estar dotados de sacralidade, por isso, devem ser adorados e respeitados. Como o elemento mágico-religioso permeia a sua vida diária de maneira tão íntima, não faz sentido limitar as atividades religiosas dentro de um templo ou santuário e nem num tempo especificado, como missas ou outros rituais periódicos. (RAMOS, 1986). 148

Os indígenas tendem a viver o mais possível no sagrado ou muito perto dos objetos consagrados. Fazem parte, portanto, de uma sociedade que se organiza sobre bases mágico-religiosas e que a sacralidade predomina sobre o mundo profano. Para o etnólogo germânico Gennep (2011): “Nascer, parir, caçar, etc., são então atos que se prendem ao sagrado pela maioria de seus aspectos”. (p. 23). Esse importante personagem da tribo está sempre presente na obra de Daniel Munduruku. Podemos citar o conto “O menino que não sabia sonhar”, do livro Histórias de Índio (1996). É também protagonista da obra Karú Tarú: o pequeno pajé (2009d) e é quem conduz o rito de passagem dos curumins para a vida adulta em O sinal do pajé (2011). É importante lembrar que a religião dos povos indígenas foi historicamente entendida como uma religião da falta, pois os nativos não tinham fé, nem adoravam a Deus. Para suprir a falta não só religiosa, mas também linguística, foi preciso um esforço dos religiosos católicos, logo no início da colonização das terras brasileiras, de traduzir (traditio) para a língua tupi os ritos, as rezas, os cantos bíblicos, os mandamentos. De acordo com Bosi (1992), houve um trabalho de “aculturação linguística” empreendido pelos missionários (padre Anchieta, por exemplo), uma tarefa nada fácil de realizar porque nem sempre se conseguia uma homologia entre as duas línguas e, às vezes, o resultado não era muito preciso. Por isso, houve muitas adaptações, o que levaria a uma nova representação do sagrado, “uma terceira esfera simbólica, uma espécie de mitologia paralela que só a situação colonial tornara possível”. (BOSI, 1991, p. 65, grifo do autor). A visão eurocêntrica era a de que era preciso modificar o comportamento e os costumes indígenas para que fossem salvos, ainda que por meio de força. Tudo pela glória de Deus – ad majorem Dei gloriam – repetindo aqui o lema dos soldados de Cristo. Como se vê, com todas essas medidas austeras do colonizador, a religião indígena foi negada pelos colonizadores, teve sua voz abafada pelo cristianismo que sempre se mostrou sensível ao pobre, mas implacável e 149 etnocêntrico, diante da alteridade cultural. O “outro” foi sempre considerado como inimigo, pagão, infiel e o pajé não foi poupado. Ainda assim, os pajés resistiram à catequese e “continuaram gozando de grande prestígio, promovendo reuniões de mil pessoas para prever o futuro. Representavam certamente a mais poderosa defesa das tradições indígenas”. (MOREAU, 2003, p. 201). Daniel Munduruku entende o xamã como uma figura comum, mas dotada de dons que o destacam dos demais. Em algumas sociedades indígenas, ele é definido pelos sonhos das pessoas ou de outro xamã. Muitas vezes é preciso que ele receba os conhecimentos dos mais velhos e passe por um processo de iniciação conduzido pelo pajé mais velho do grupo. De acordo com o autor, esse líder religioso da aldeia deve identificar e curar doenças, realizar cerimônias para identificar os espíritos ladrões de almas e causadores de doenças, sonhar e interpretar os sonhos. Os índios acreditam que, no sonho, o pajé pode sair do próprio corpo e viajar milhares de quilômetros pelo cosmo e descobrir o que irá acontecer a seu grupo. (MUNDURUKU, 2009a). Como se vê, o pajé ordena o conhecimento da comunidade e o comportamento que se deve ter diante do sobrenatural. Sua importância para a aldeia é vital:

Sem a presença desse líder espiritual, toda a comunidade estará sujeita ao sofrimento e à morte e terá de buscar novas formas de lidar com o sagrado, entregando-se, muitas vezes, às seitas fundamentalistas e que ela não está acostumada e que jamais lhe trarão respostas de que precisa: agradar ao Grande Espírito e compreender a maravilhosa experiência de viver. (MUNDURUKU, 2009a, p. 53).

Hoje, vemos pentecostais, adventistas e evangélicos que invadem as aldeias, transformando os deuses indígenas em um deus cristão, chegando a eliminá-los. As consequências negativas sobre as sociedades indígenas são lembradas por Ramos (1986):

Proibindo a manifestação de uma cosmologia tradicional não-cristã e incapazes de fornecer substituto coerente, os missionários ortodoxos de seitas ocidentais conseguiram, através dos tempos, criar, para as populações indígenas, mais angústias, inseguranças, incertezas e confusões mentais do que quaisquer outros agentes de desagregação. (p. 87). 150

REFLEXÕES SOBRE A RELIGIOSIDADE INDÍGENA

É fato que a religiosidade indígena é um assunto pouco estudado pela historiografia brasileira “habituada a conceber este grupo como mão de obra, como objeto de catequese ou como bárbaro que obstaculizava o avanço da colonização”. (BRITO, 2000, p. 103). Para Flores (2003), o tema é pouco conhecido também entre os teólogos, mas, apesar dessa lacuna, ressalta que a vida do índio está impregnada de religiosidade que se manifesta nos cultos, nas danças, nos calendários sagrados, na figura do pajé. Possuem formas próprias de adoração à natureza, de respeito às forças sobrenaturais que atuam sobre a terra e de fé no Grande Espírito, que foi nomeado por Tupã22. E, ao nomear Deus apenas como Tupã, só indica o pouco conhecimento da religiosidade dos primeiros habitantes do Brasil. Mas, tem-se uma explicação: “O povo guarani, um dos mais numerosos do Brasil, cujo nome dado para Deus é quase o único conhecido entre os não-índios, chama-o Tupã”. (FLORES, 2003, p. 30). Todavia, por conta da diversidade de povos indígenas no Brasil, com suas línguas e culturas próprias, não é difícil concluirmos que outros nomes existem para denominar o Criador: para os Terena, por exemplo, Itukoóviti é o nome dado a Deus, e significa “quem criou todas as coisas” e entre os Desana, aparece a figura mitológica feminina de Yebá Beló, a avó do universo. Na concepção de Gambini (1988), a dimensão espiritual dos índios está em toda parte:

Os índios do século XVI – como seus sobreviventes de hoje – estavam rodeados pelo espírito de todos os lados: sua manifestação é onipresente, ela habita os alimentos, as emoções, o ar que se respira, afetando o mundo todo [...]. (p. 138).

Acreditam num Deus que, diferente da concepção católica, está para encorajar, aplaudir, chorar junto. Na visão do índio Terena, a religiosidade

22 Tupã, na análise de Treece (2008), é apenas uma força viva da natureza, um daimon, e não um deus civilizador ou paternal. No mito de criação Tupinambá, aparecem os deuses Monan e Maíra. Para Bosi (1992), Tupã era o nome de uma força cósmica identificada como trovão. 151 indígena é uma “experiência do mergulho no sagrado sem estar sobrecarregado de culpas ou enfrentando o olhar ameaçador de Deus”. (FLORES, 2003, p. 14). Sem a ideia de pecado que desequilibra a relação entre Deus e o homem, distanciando um do outro. Na avaliação de Flores (2003), o encontro entre cristãos índios se deu primeiramente numa única via que era cristianizar: os portugueses e os religiosos fizeram com que o gentio beijasse o kurussu (a cruz) numa atitude de submissão e aceitação da nova fé. Um ponto de vista divergente tem Brito (2000) ao tratar da experiência cultural e do tema da identidade cultural: “O Brasil quinhentista assistiu a um complexo processo aculturador de mão dupla: índios assimilando mensagens e símbolos religiosos e jesuítas adaptando sua doutrina e sacramentos às tradições tupis”. (p. 108). É óbvio que converter indígenas à fé cristã não foi tarefa fácil e, resistentes à idolatria cristã, muitos se mostraram hostis ao cristianismo e à exploração colonial, fugindo em massa dos aldeamentos23. Os padres achavam que conseguiriam eliminar os maus hábitos (o corpo nu, o canibalismo, a bebedeira, a libidinagem) dos índios que eram considerados como papel em branco sobre o qual se poderia escrever à vontade (como pensava Padre Manuel da Nóbrega), mas perceberam que talvez não fossem mais uma tábula rasa e que poderiam estar influenciados pelo demônio. Esses excessos indígenas ou “costumes abomináveis” davam uma conotação de que estavam num estágio inferior de humanidade, “revelador de uma profunda desordem social e que dificultava, ao mesmo tempo, o processo de civilização, fundamento irrenunciável para a obra de cristianização”. (AGNOLIN, 2007, p. 276). Como movimento de resistência conduzido pelos pajés (caraíbas), a História destaca as Santidades, festas rebeldes dos tupis que desafiaram a escravidão, o trabalho dos missionários. Eram rituais que, de alguma forma, lutavam contra

23 Instituído por Manuel da Nóbrega, o Aldeamento (também chamado de reduções ou missões) era uma área de reclusão, onde os nativos eram catequizados para viver como cristãos, onde aprendiam a ler e a escrever. Na Aldeia, também trabalhavam na lavoura e na criação de animais. Além disso, os índios aldeados lutavam nas guerras movidas pelos portugueses contra os estrangeiros e índios hostis. 152

o sistema colonial que sugou as populações indígenas através do trabalho e do tráfico de cativos, pelos massacres e pela catequese que culpabilizou e estigmatizou as tradições indígenas, procurando corrigir o ‘corpo’ do gentio. (BRITO, 2000, p. 106).

Toda essa violência que os vitimava era interpretada como um sinal do fim do mundo e nas cerimônias da caraimonhaga (as Santidades) os índios, “em transe místico com os ancestrais e heróis mortos, poderiam estar próximos da Terra sem Mal”. (VAINFAS; SOUZA, 2002, p. 16). Nas Santidades, profetas apregoavam as maravilhas da Terra sem Mal e em seus rituais percebia-se a mistura de ritos cristãos e indígenas, como no momento do rebatismo: “O rebatismo da Santidade, ao combinar a aspersão da água benta (rito católico) à defumação com petu (a erva santa do rito tupi) confirmam, no conteúdo e na forma, o hibridismo cultural insurgente do grupo”. (BRITO, 2000 p. 110).: A Santidade do Jaguaribe, por exemplo, foi um movimento messiânico do sul da Bahia que reuniu um número considerável de índios escravos que fugiam das propriedades dos portugueses. (RAMINELLI, 1996). O messianismo, na abordagem antropológica de Ramos (1986), era uma tentativa dos indígenas brasileiros de renovar o mundo:

[...] a busca da terra prometida, a construção de uma nova era, a tentativa de erradicar da terra o pior dos males conhecidos, que é o homem branco e suas consequências, tem sido uma das armas com as quais as populações indígenas tentam combater os efeitos desastrosos do seu contato com a sociedade ocidental. (p. 89).

Entretanto, a visão que o homem branco tinha diante das festas indígenas não era nada positiva, pois como eram festas marcadas pela embriaguez, pela fumaceira e pelas danças, eram consideradas como uma possessão diabólica, um grande embuste, algo ofensivo a Deus. Entretanto, para Bastos (2011), os cânticos e danças e o cauim são “provas incontestes do impulso lúdico que em grande parte regia a vida do índio brasileiro”. (p. 46). No percurso histórico da dominação portuguesa, a religião indígena foi massacrada tanto quanto sua gente. Seus líderes religiosos – os pajés – eram reconhecidamente detentores do saber tribal e a investida dos jesuítas era contra esses líderes que precisavam ser desmascarados, terem “decifrado o 153 seu código maligno e exibi-lo como mentiroso e falacioso para os indígenas”. (MOREAU, 2003, p. 199). Padre Manuel da Nóbrega sabia da importância dessa conduta de perverter a imagem do pajé para seu trabalho de catequese nas aldeias e “tinha a consciência de que a dominação dos corpos e das almas indígenas passava pela desmoralização de seus líderes espirituais”. (MOREAU, 2003, p. 200). Era como se, vencidos os feiticeiros, derrotava-se o Mal. Os jesuítas acreditavam-se anjos e mensageiros de Deus, com poderes de realizar milagres. Com esse sentimento inflacionado, viam a sua fé como verdade única e a expectativa em relação aos índios era a de que “se portassem como argila mole, permitindo que sua obscura e caótica natureza finalmente se deixasse moldar como algo humano”. (GAMBINI, 1988, p.123). Para o catedrático Holanda (1995), os inacianos queriam fabricar anjos e não homens em suas aldeias, mas “sem conseguir, em regra, nem uma coisa, nem outra”. (p. 127). Imbuídos desse propósito, os religiosos não reconheciam a religiosidade dos índios, sua forma de lidar com o sagrado e representá-lo. Não compreendiam que os indígenas transpiravam religiosidade. Vinham trazer do Velho Mundo a Boa Nova que iria salvar os povos bárbaros e transformá-los em algo melhor. É uma ideia que atravessou os tempos e que ecoa no discurso católico contemporâneo, na voz do papa Bento XVI, em sua visita ao Brasil, em 2007, transcrito por Munduruku (2010):

Porém, o que significou a aceitação da fé cristã para os povos da América Latina e do Caribe? Para eles, significou conhecer e acolher Cristo, o Deus desconhecido que os seus antepassados, sem o saber, buscavam nas suas ricas tradições religiosas. Cristo era o Salvador que esperavam silenciosamente [...]. Ter recebido, outrossim, o Espírito Santo que veio fecundar suas culturas, purificando-as e desenvolvendo os numerosos germes e sementes que o verbo encarnado tinha lançado nelas [...]. Com efeito, o anúncio de Jesus e do seu Evangelho não supôs, em qualquer momento, uma alienação das culturas pré-colombianas, nem foi uma imposição de uma cultura alheia. (p. 83).

Talvez aceitassem a fé cristã por não terem outra opção: ou se convertiam à religião católica ou seriam perseguidos e forçados, de qualquer maneira, a acreditar nas “verdades” do colonizador. 154

Foi uma imposição, uma vez que aos índios não lhes foi outorgada a escolha e sua cultura, sua mitologia, enfim, sua identidade foi minada, num processo de “destruição cultural”. (GAMBINI, 1988). Até hoje, missionários de vários segmentos religiosos tentam penetrar nas aldeias e transformar nossos índios em fiéis pastores, negando sua crença. Esquecem-se de que a Constituição prevê um Estado laico; por isso, não faz sentido nenhum manter instituições que fazem proselitismo religioso que interfere diretamente na cultura indígena, o que caracteriza um etnocídio cultural. (MUNDURUKU, 2010).

KAXI, O MENINO ESCOLHIDO

Daniel Munduruku em suas obras faz questão de destacar a figura do pajé como algo sagrado e importante para o equilíbrio da sociedade indígena. Segundo ele, o pajé pode ser escolhido por um outro mais velho, como no conto “O menino que não sabia sonhar”, do livro Histórias de Índio (1996), que agora apresentamos: Na aldeia Katõ, nascera Kaxi, um menino que fora escolhido pelo pajé Karu Bempô para ser educado na arte da pajelança e, por meio dele, os antepassados falariam ao seu povo: “seria um tutor do povo Munduruku após a morte do pajé”. (MUNDURUKU, 1996, p. 13). A crítica ao homem branco (pariwat, na língua Munduruku) é feita por Karu no dia do batismo de Kaxi ou “a lua que brilha sobre os homens”. A aculturação religiosa já se manifesta nessa cerimônia cristã que está inserida nos costumes dos índios. Ao falar para todos da tribo, o pajé descreve o homem branco como aquele de falsas promessas, que traz o progresso que destrói o rio, a mata e a caça. Na crítica do líder religioso: “Prometem aparelho que mostra cultura do povo deles para a gente acreditar que são melhores que nós”. (MUNDURUKU, 1996, p. 14). No entanto, a resistência ao extermínio os deixa vivos, garantindo-lhes sempre renascer das cinzas. O guardião da memória da tribo seria Kaxi, 155 apresentado pelo pajé à comunidade como seu sucessor, fora escolhido pelos antepassados para defender seu povo da destruição. O escolhido da aldeia crescera aprendendo com os mais velhos os segredos da natureza e sempre ouvia as histórias do contato com os pariwat. À noite, escutava as histórias que o pajé contava sobre o início da civilização. Assim, Kaxi ia sendo iniciado nos costumes tradicionais de sua tribo: caçava, pescava, plantava e colhia junto com os adultos. Ia aprendendo os ritos de purificação, a cura das doenças, os ritos de iniciação dos jovens, tudo isso dirigido pelo pajé mais velho. O menino, agora com 10 anos, se encantava com a sabedoria de seu povo e Karu Bempô já percebera que já estava na hora de iniciar Kaxi para a missão que lhe aguardava e explica-lhe tudo sobre a figura do pajé na aldeia:

- O pajé é um líder religioso. É ele quem preside rituais mais importantes da tribo, pois está investido de um poder que não é dele, mas das forças cósmicas que atuam por meio dos antepassados. Quem ouve o pajé, ouve o próprio Deus, aceita e segue conselhos. O pajé é uma grande energia presente na aldeia. Sem o pajé a tribo se enfraquece, já que não terá o alicerce que mantém o equilíbrio das forças espirituais. Sem o pajé fica faltando a sabedoria dos anciãos e a tribo se divide. (MUNDURUKU, 1996, p. 22).

Dois anos depois, Kaxi passa pelo ritual da maioridade, pois tinha de provar para as pessoas da tribo que já era um homem responsável, corajoso e maduro. Um mês inteiro, ele e outros vinte e quatro rapazes, ficariam recolhidos na casa dos homens, “onde eram iniciados pelos pais e padrinhos na arte da caça, pesca e sobrevivência na mata”. (MUNDURUKU, 1996, p. 23). Depois desse período, como reza a tradição, seriam mandados para o interior da floresta para provarem sua coragem e só depois é que receberiam as honras de um guerreiro. É dentro da mata que o pequeno pajé teve o seu primeiro sonho que lhe mostra homens e máquinas destruindo o solo, as águas, as árvores. Via que o contato com o homem branco traria dor e morte para sua gente, pois seria atropelada pela ganância. Sua viagem onírica pela Terra lhe fez ver que, a partir daquele momento, tinha uma grande missão a cumprir junto ao seu povo. Antes de voltar para a aldeia, Kaxi caça uma anta para servir à comunidade. Sua missão estava cumprida, mas uma outra estava por vir: “ a 156 de conduzir seu povo rumo ao futuro e a sua sobrevivência”. (MUNDURUKU, 1996, p. 32).

KARÚ, O PEQUENO PAJÉ

Em Karú Tarú, o pequeno pajé (2009d), repete-se o mesmo esquema narrativo: um menino é escolhido para ser o substituto do pajé, pois nascera com um poder especial para, um dia, servir à comunidade. A angústia diante dessa condição é que vai levar nosso pequeno pajé à busca de respostas que lhe tragam alívio. O sonho aparece também como um elemento importante para a solução de conflitos. Para a tribo de Tarú, o sonho é que vai mostrar “o melhor caminho a seguir, qual a caça a abater ou qual remédio tomar quando se está doente”. (MUNDURUKU, 2009d, p. 4). Sua mãe explica-lhe que todos nascem com o dom, mesmo as meninas. No entanto, somente os meninos devem ter o dom retirado logo que nascem, para que o usem de forma leviana, como já acontecera em outros tempos. O pajé não lhe retirara o seu dom, talvez porque fosse escolhido para manter viva a tradição de seu povo. O narrador, no terceiro capítulo, tece comentários acerca do que é ser um pajé numa comunidade indígena:

Pajé é um homem especial numa comunidade indígena. Especial porque ele concentra em si a responsabilidade pela cura das pessoas. Isso porque a gente indígena acredita que as doenças são espíritos ruins que habitam a vida das pessoas e que podem ser manipulados por feiticeiros que não gostam dos outros. [...] Por isso é preciso que ele seja muito forte, poderoso e grande conhecedor da sabedoria da floresta, que pode dizer-lhe o que o paciente tem, qual espírito ruim o habita. Sabendo disso, o pajé prepara o remédio que será bom para curar aquela pessoa. (MUNDURUKU, 2009d, p. 12).

Na verdade, passa-se por um grande aprendizado, mas nada que atrapalhe a infância, sua convivência com amigos e familiares. Quando crescer e tornar-se homem é que poderá assumir esse papel social na aldeia. Assim, por volta dos trinta anos, Karú Tarú tornar-se-á um pajé. 157

Ser pajé não é algo imposto, lembra-nos o narrador. Como explicara o mais velho a Karú: “Podemos negar o dom se acharmos que isso não é muito bom pra nossa felicidade. Por outro lado, temos que pensar na comunidade antes de o negarmos”. (MUNDURUKU, 2009d, p. 18). Karú aprendera com seu pai a ler a mensagem que os pássaros escrevem no céu. Certa vez, seu pai o levara para pescar e desceram antes em uma clareira. Deitados no chão, observaram o voo dos pássaros que, segundo o pai de Karú, traziam notícias e mensagens. Era um momento importante para o pequeno pajé que recebera o ensinamento do pai:

- Você precisa saber disso, Karú. Precisa aprender a ler as mensagens de nossos irmãos alados para saber que, para nossa gente, todas as coisas possuem espírito, estão vivas e são nossos parentes. Aprender a linguagem deles é de fundamental importância para continuarmos vivos, porque eles nos avisam a respeito do futuro, do tempo, da cura e da vida. Você precisa saber isso que nós estamos fazendo aqui. Precisa manter o silêncio do coração e da mente para ouvir o que eles querem nos dizer. (MUNDURUKU, 2009d, p. 21).

Karú sabia que era a tradição dos antepassados que estava sendo transmitida por seu pai naquele momento único que se repetiria com outras gerações futuras. Com o pajé da tribo, aprendeu que o trabalho de cura não depende apenas de uma pessoa. Havia o “cantador”, aquele que ajuda a cuidar do equilíbrio de todos os presentes na casa para não deixar que os espíritos ruins entrassem e levassem a alma do doente. O menino tinha uma grande missão pela frente, mas, como diz o narrador da história, por enquanto, queria ser apenas uma criança. Vale ressaltar na trama de Karú Tarú: o pequeno pajé (2009d) o “encaixe’ de uma outra história que traz para o leitor uma nova informação sobre a cultura indígena: o casamento. Karú assistiu a uma discussão de um casal que não se entendia, pois ela estava apaixonada por outro, mas ele sabia que desde pequena lhe fora prometida: “Ele sabia que no seu povo, o casamento é acertado entre os pais quando meninos e meninas são crianças. Isso garante que ninguém se case com os parentes muito próximos e assim nasçam crianças com problemas”. (MUNDURUKU, 2009d, p. 10). 158

De acordo com a tradição é possível que o casal se separe, desde que os dois assim o desejem. O curumim refletiu sobre o que presenciou e sabia que a melhor solução seria que cada um encontrasse o seu caminho. O narrador destaca na história do pequeno pajé a questão da liberdade de escolha na sociedade indígena: é possível optar em seguir um caminho diferente daquele traçado pela comunidade ou pelos mais velhos da aldeia. A voz do velho pajé esclarece: “- Nosso povo ensina que a liberdade é o que nos torna melhores e mais felizes. Liberdade é a capacidade que a gente tem de dizer sim ou não para as coisas”. (MUNDURUKU, 2009d, p. 18). A iniciação xamânica, no entanto, muitas vezes se dá pela herança de poderes mágicos, que passa de geração em geração. Outras vezes, dá-se pela escolha divina, através de sinais de nascença que indicam características especiais de um futuro xamã. Há casos também em que o chamado vem por meio de uma visão ou possessão. (SANTOS, 2007).

O SINAL DO PAJÉ: O VOO DO MUTUM

Os xamãs são pessoas que podem escapar da vida mundana e mergulhar em outros níveis de consciência através do voo mágico. (Marcel de Lima Santos)

O tema da liberdade de escolha é retomado em O sinal do pajé (2011) que apresenta o conflito vivido por jovens indígenas que querem conhecer a vida fora da aldeia, mas não querem abandonar a tradição. Todos são sempre acompanhados pelos olhos do pajé, que consegue enxergar a angústia da dúvida na alma dos curumins. De acordo com Daniel Munduruku (2011), alguns capítulos do livro dialogam com a letra da música de Denílson Chaves, chamada “Memória da Tribo”, que ora reproduzimos:

159

Minha vó me chamou:

“Curumim venha cá Venha ver como é O sinal do pajé

Venha cá curumim Não vá esquecer Essa tribo é um rio O destino é correr

Curumim, essa terra Nunca mais nos pertenceu Não é de ninguém Não tem dono Nem Deus

Curumim venha ver A panela de barro O que há pra comer É um caldo de peixe Com as sobras do tempo Cheiro verde, sentimento”

Minha vó me chamou (apud MUNDURUKU, 2011)

As palavras sábias da avó, dirigidas a Curumim, são repetidas na obra de Daniel Munduruku, O sinal do pajé (2011), funcionando como títulos de alguns de seus capítulos e como mote para algumas partes do livro, como o quarto capítulo que trata exatamente do diálogo da velha avó com Curumim, enquanto ela fabricava uma panela de barro e lhe falava sobre o início de tudo. A avó mostra ao pequeno indígena o valor da tradição tão valorizada pelo seu povo e muito esquecida pelas pessoas da cidade. Em O sinal do pajé (2011), o líder espiritual é quem vai apontar caminhos para os jovens escolherem. Por meio de suas sábias palavras mostra-lhes o poder da tradição que não deve ser esquecida por causa do fascínio da cidade grande. Na história, o protagonista é Curumim, um nome que pode representar genericamente todos que vivem “a angústia do crescimento, do medo de crescer, de dar o salto para a vida”. (MUNDURUKU, 2011, p. 19). Ele está em conflito, talvez o mesmo vivido por outros vinte rapazes da história que estão prestes a entrar para a casa do Conselho dos Homens e iniciar o ritual da maioridade, mas que têm o desejo de conhecer o mundo urbano. 160

Em O sinal do pajé (2011), também temos a mesma narrativa de “encaixe” do livro anterior. Curumim ouve uma discussão de um casal: ela não queria que seu amado fosse para cidade grande, mas ele insistia em conhecer o outro lado da aldeia. Para ela, a decisão do rapaz é uma loucura e Curumim queria saber por que:

- Porque lá não é o nosso mundo. Temos ouvido isso de nossos velhos sábios. Por que duvidar deles? Nossos homens querem ir embora para longe, atrás de riqueza, de coisas que não cabem dentro da gente. A memória de nosso povo está sendo esquecida porque a luz da cidade é mais forte. (MUNDURUKU, 2011, p. 16).

Sua ideia é a de que a tradição está ameaçada pelos costumes urbanos e nem sempre é fácil viver em dois mundos tão distintos. Para ajudar Curumim a resolver os conflitos internos que o atormentavam, aparece primeiro o pajé. O velho deu-lhe uma tarefa: deveria encontrar uma erva no tronco de uma velha árvore, na parte baixa da aldeia, e para ajudá-lo, o pajé lhe enviaria sinais. Na mata, ainda sem encontrar o que o pajé lhe pedira, teve um sonho: estava dentro de um poço escuro e não encontrava a saída, escutava muitas vozes. Acordou assustado e viu um mutum sobrevoar uma árvore e pousar sobre a copa. Era o sinal do pajé indicando-lhe o que tinha que fazer. Quando retorna para a aldeia, encontra muitas pessoas conversando sobre o momento de crise que atravessam e a discussão girou em torno da tradição e da mudança. A conclusão a que chegaram foi que a tradição não deve ser destruída pelos homens da cidade. A segunda pessoa que tenta mostrar caminhos para os conflitos do menino-quase-homem foi a sua avó. Para ela, o que se passa com a tradição é que ela corre o risco de ser levada pelas águas da dúvida, da divisão e a cidade não passa de uma ilusão. Para a avó de Curumim:

- A cidade é bonita e enganosa como são as estrelas no céu. As estrelas são bonitas e enchem nossos olhos de prazer e alegria. Dá vontade de nunca mais o sol aparecer para não as perdermos de vista. Elas são cheias de mistério e nos levam para junto do Criador. Mas também nos enganam, pois suas luzes nem sempre estão no lugar em que as vemos. Assim é a cidade: bonita quando vista de longe. Quando nos aproximamos, ela nos engole. (MUNDURUKU, 2011, p. 27).

161

Ela acredita, ainda, que os jovens que saírem da aldeia saberão manter viva a chama da tradição. Outro personagem importante que conduziu Curumim à reflexão sobre o que é ser índio foi seu pai. Certa vez, foi pescar com seu pai, mas seu motivo principal da viagem era mostrar para o filho o local sagrado que uma vez lhe fora apresentado. Curumim passa por um rito xamânico, conduzido pelo pai:

Pegou-o em seus braços e o rodopiou muitas vezes, até que ele estivesse meio torpe. Em seguida, pediu que sentasse sobre uma pedra e lhe deu uma raiz para mascar. O menino, mesmo sem compreender o que se passava, obedecia às ordens do pai que o direcionava de forma carinhosa. (MUNDURUKU, 2011, p. 35).

Passara por esse ritual para que escutasse a voz da tradição falando em sua alma: “Esta terra nunca nos pertenceu”. Uma experiência que o ajudaria a abrandar seus conflitos e a responder as suas dúvidas. Finalmente, o pajé reaparece com seu grande cachimbo, carregando uma pena branca e faz um discurso para os vinte neófitos que iriam cumprir o rito de passagem, na Casa dos Homens. Alertou-os da necessidade de estarem fortes para uma guerra que é a de lutar contra “a tentação de abandonar tudo o que nossos antepassados nos deixaram para aceitar uma vida que não nos pertence, que não conhecemos, que não amamos”. (MUNDURUKU, 2011, p. 46). Depois de seus corpos pintados pelas mulheres da comunidade, o pajé reinicia a cerimônia, purificando a Casa dos Homens com uma fumaça cheirosa. Dirige-se aos jovens e conta-lhes a decisão do Conselho dos Anciãos:

[...] O mais velhos entre nós disse que o tempo havia chegado e que a hora de fazermos a antiga profecia acontecer; que era hora de enfrentarmos o nosso maior inimigo: o medo. Decidimos, então, preparar esses jovens e enviá-los para o lugar das luzes. Vocês aprenderão os segredos da tradição e ensinarão estes segredos para os homens e mulheres da cidade. (MUNDURUKU, 2011, p. 48).

A profecia a que se refere o pajé está em uma das três epígrafes do livro O sinal do pajé (2011): “Chegará um tempo em que os jovens sairão de suas 162 casas, de suas aldeias, para aprender com os brancos e pacificá-los”. (MUNDURUKU, 2011, p. 7). Antes de cumprirem essa missão, os rapazes entram, um a um, na Casa dos Homens de onde sairão guardiões da memória ancestral. Curumim está entre eles e, emocionado, vê no céu o último sinal do pajé, o voo de um gavião. O pajé deixa o seu sinal escrito no voo das aves que mostra a Curumim o caminho a seguir: a tradição vai ser levada para cidade na voz dos homens que contarão as narrativas indígenas para pacificar aqueles que ainda estejam cheios de preconceito e intolerância. Próximas do céu, o mutum, o gavião são aves que simbolizam a libertação da terra, flutuam sobre as cabeças dos homens e pertencem ao reino do ar e da luz, tornando-se símbolos dos deuses. (LURKER, 2003). Podem ser o sinal de que o pajé está por perto ou podem ser mensageiros do líder espiritual, mostrando a direção a seguir. São “sinais do sagrado”, diria Mircea Eliade (1992), que põem fim à ansiedade alimentada pela desorientação; enfim, servem para ajudar a encontrar um ponto de apoio absoluto. Os jovens recontarão as narrativas legitimadoras da emancipação e do esclarecimento que mostrarão ao homem branco o valor da cultura indígena, tão cheia de sabedoria e esse trabalho contribuirá para mudar a visão estereotipada do índio que se construiu ao longo dos séculos de colonização. Tanto na ficção de Daniel Munduruku quanto na vida real das aldeias indígenas, eles desempenharão importante papel de interlocução. Na avaliação de Gomes (2012):

São os jovens indígenas, em sua maioria, que vivem nas cidades, que hoje comandam o movimento indígena com forte teor político, aos moldes das organizações políticas e não governamentais brasileiras, com demandas por recursos, empregos e oportunidades educacionais, por novos espaços na sociedade brasileira, por mais respeito, pela garantia de direitos já rezados na nossa constituição e por novos direitos. (p. 14).

Em O sinal do pajé (2011), os vinte jovens iniciados passarão do estado infantil para a maturidade, um novo estágio em suas vidas, e serão respeitados pela comunidade. Serão submetidos ao chamado “rito de passagem”, termo cunhado em 1933, pelo etnólogo e folclorista Arnold van Gennep (1873-1957) 163 que se baseou na concepção de que o homem precisa atravessar o estágio da morte para poder renascer de forma nova. Na explicação de Lurker (2003), os candidatos passam por vários estágios, comuns em todas as culturas: “exclusão dos não-iniciados, isolamento dos candidatos, celebração de uma festa, vestidura e unção, atribuição de um novo nome, luta simbólica entre as forças da vida e da morte, etc”. (p. 604). Recolhidos na Casa dos Homens – um espaço sagrado - os iniciados aprenderão a ser homens verdadeiros e, onde estiverem serão autênticos guardiões da tradição. Repetindo a metáfora do narrador, os jovens indígenas entrarão no casulo e sairão transformados em borboletas. (MUNDURUKU, 2011). E, segundo Gennep (2001), os noviços tornam-se homens, instruídos, conscientes dos deveres que lhes incumbem em sua qualidade de membros da comunidade. Seria o renascimento para o mundo sagrado, para o mundo dos deuses, depois do regressum ad uterum (Eliade, 1995), um ritual que se repete em muitas culturas e que pode ser definido como o acesso à vida espiritual. Os jovens indígenas, depois do rito de passagem, enfrentarão “a luta pela vida”, as “provas” e as “dificuldades” na sociedade dos brancos que repetem, de algum modo, as práticas iniciáticas. Por causa desses obstáculos, é que experimentarão a si próprios, conhecerão as suas possibilidades, tomarão consciência de suas forças e acabarão por se tornarem adultos e criadores. Aproveitando a conclusão abrangente de Eliade (1995), podemos ressaltar que: “Toda a existência humana se constitui por uma série de provas, pela experiência reiterada da ‘morte’ e da ‘ressurreição’.” (p. 168).

164

CAPÍTULO VI: DANIEL MUNDURUKU NA ALDEIA GLOBAL

Dissemos, na introdução da nossa tese, que as minorias étnicas (assim como todos os outros “grupos minoritários”) buscam, em tempos de globalização, o reconhecimento e a valorização de suas identidades. Nesses novos tempos, as fronteiras se apagam, dissolvem-se os localismos, mas acirram-se as questões identitárias. Surge algo novo, híbrido, diferente, mestiço nessa situação de passagem. E a nova ordem da Aldeia Global acaba gerando uma produção artística que não retoma apenas o passado, mas o renova, refigurando-o como um “entre-lugar” incerto e indeterminado, que além de inovar, interrompe a atuação do presente. (HANCIAU, 2010). É nesse contexto de busca de identidade no mundo globalizado que vamos situar a produção literária indígena brasileira contemporânea, que busca conciliar tradição e modernidade, aldeia e espaço urbano. Mas, o que vem a ser a Aldeia Global? Que consequências tem sobre as identidades étnicas? O que é a pós-modernidade que fez surgir identidades híbridas e hifenizadas, tal como a de Daniel Munduruku? Qual o futuro da cultura indígena no mundo globalizado? É dessas questões que nos ocuparemos nesse capítulo, buscando apresentar as diferentes perspectivas de abordagem que tratam do processo de globalização e da pós-modernidade para chegarmos a algumas obras de Daniel Munduruku que contrapõem o modo de vida indígena e a maneira como o homem branco da cidade grande lida com a noção do tempo, do dinheiro.

A METÁFORA DA GLOBALIZAÇÃO

Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver o Universo.

Alberto Caeiro (em Fernando Pessoa)

165

Ao tratarmos do tema da globalização, não é difícil encontrarmos metáforas que tentam traduzir uma nova ordem no mundo, consequentemente, uma nova visão de mundo. Assim, temos: Terceira Onda, Nave Espacial, Torre de Babel ou Aldeia Global. Cada uma dessas metáforas tentam explicar o mundo articulado em teias multimídias e revelam a realidade emergente ainda fugidia ao horizonte das ciências sociais. São expressões que trazem em si um novo modo de sentir, de agir, de pensar e de fabular, já que houve uma mudança na ideia de sociedade. Tempo e espaço são recombinados e tomam nova dimensão. “A Terra mundializou- se”, observa Ianni (2010), ao analisar a globalização. Para o cientista social, a noção de aldeia global:

é bem uma expressão da globalidade das ideias, padrões e valores socioculturais, imaginários. Pode ser vista como uma teoria da cultura mundial, entendida como cultura de massa, mercado de bens culturais, universo de signos e símbolos, linguagens e significados que povoam o modo pelo qual uns e outros situam-se no mundo, ou pensam, imaginam, sentem e agem. (IANNI, 2010, p. 119).

A ideia de “aldeia global” foi proposta pelo pensador canadense Hebert Marshall McLuhan (1911-1980) para exprimir uma era marcada pela comunicação intensa, por trocas de mensagens instantâneas e contínuas em todo o globo terrestre. É um processo que está promovendo uma “perturbação nas referências espaço-temporais, subjetivas e culturais”. (PEREIRA, 2011, p. 151). McLuhan, ao apostar na intensificação desse processo, antecipa a grande rede de comunicação, tal como vemos hoje, com a Internet, onde computadores nos possibilitam obter e organizar informações de todo o mundo. Estabelece-se uma nova ordem, uma nova lógica no mundo que, para o pesquisador, traria consigo não apenas êxitos e facilidades. A esse respeito, o comentário de McLuhan, citado por Pereira (2011), é esclarecedor:

A aldeia global é um mundo no qual você não tem necessariamente harmonia; [...] Nós agora partilhamos muito uns dos outros para sermos estranhos [...] todos os muros caem entre grupos etários, entre grupos familiares, grupos nacionais e entre economias. Os muros todos caem. De repente as pessoas têm de se ajustar a essa nova proximidade, esses novos inter-relacionamentos e simplesmente dizer a elas que isso aconteceu não ajuda muito. O que elas precisam saber é, se isso está acontecendo, o que significa? (p. 153).

166

A metáfora da aldeia global nos sugere que a globalização se dá pela técnica, pela eletrônica que rompe os muros da distância. Para Ianni (2010): formou-se uma comunidade mundial e o termo aldeia global:

Sugere que estão em curso a harmonização e a homogeneização progressivas. Baseia-se na convicção de que a organização, o funcionamento e a mudança da vida social, em sentido amplo, compreendendo evidentemente a globalização, são ocasionados pela técnica e, neste caso, pela eletrônica. Em pouco tempo, as províncias, nações e regiões, bem como culturas e civilizações, são atravessadas e articuladas pelos sistemas de informação, comunicação e fabulação agilizados pela eletrônica. (p. 16).

Desse modo, em qualquer momento e lugar, a eletrônica relaciona e prende, ata e desata pessoas, coisas, ideias, palavras, gestos, sons e imagens. Com meios de comunicação de massa mais dinâmicos, as fronteiras se rompem e o mundo passa a ser um verdadeiro caleidoscópio “transfigurando e refigurando os acontecimentos”. (IANNI, 2010, p. 122). Para Hall (2006), o mundo ficou mais interconectado com novas combinações de espaço e tempo. Mesmo conhecendo de perto essa transformação tecnológica no mundo, sabemos que o fenômeno da globalização não é recente. É um processo que vem se desenvolvendo desde a década de 1970, quando a integração global aumentava e quando os fluxos e os laços entre as nações se aceleravam. O mundo estava conectado pelos meios de comunicação de massa e nele profundas transformações econômicas e políticas acabaram por enfraquecer um projeto coletivo de mudança social. Para sociólogos e críticos, a partir dessa década, vivia-se a pós- modernidade nas sociedades mais desenvolvidas. O termo “pós-moderno” designa o estado da cultura após as transformações que afetaram as regras dos jogos da ciência, da literatura e das artes a partir do final do século XIX. (LYOTARD, 1993). A partir dos anos 1970, a noção de pós-moderno ganhou difusão mais ampla e se espalhou por diferentes países. Desde então, as minorias alcançaram o seu direito de expressão. Devido à importância da temática “pós- modernidade”, inserimos algumas considerações teóricas na seção a seguir, a fim de esclarecer alguns traços que caracterizam um assunto tão controverso. 167

Com a presença de trustes e cartéis, no fim do século XX, já era possível prenunciar o que seria a aldeia global. Vivíamos a globalização do capitalismo que ultrapassaria fronteiras geográficas e históricas, pois desde o princípio já carregava consigo a vocação colonialista e imperialista:

Desde que o capitalismo desenvolveu-se na Europa, apresentou sempre conotações internacionais, multinacionais, transnacionais e mundiais, desenvolvidas no interior da acumulação originária do mercantilismo, do colonialismo, do imperialismo, da dependência e da interdependência. (IANNI, 2010, p. 14).

Todas as crenças e opiniões cristalizadas pelo tempo seriam abaladas e dissolvidas. Como diria Marx (2010), no Manifesto do Partido Comunista, de 1848: “Tudo o que é sólido se desmancha no ar”. É a imagem da sociedade burguesa moderna apreendida por Marx que assim expressa as mudanças, na citação de Marshall (2007):

O constante revolucionar da produção, a ininterrupta perturbação de todas as relações sociais, a interminável incerteza e agitação distinguem a época burguesa de todas as épocas anteriores. Todas as relações fixas, imobilizadas, com sua aura de ideias e opiniões veneráveis, são descartadas; todas as novas relações, recém-formadas, se tornam obsoletas antes que se ossifiquem. Tudo que é sólido desmancha no ar, tudo que é sagrado é profanado, e os homens são finalmente forçados a enfrentar com sentidos mais sóbrios suas reais condições de vida e sua relação com outros homens. (p. 118).

Tinha-se uma imagem do indivíduo como sujeito cartesiano, guiado pela razão, situado no centro do conhecimento, mas que foi abalada pelas novas ciências sociais que fizeram duras críticas ao individualismo racional. Ocorreu um descentramento do sujeito, graças aos avanços na teoria social: o pensamento marxista, a descoberta do inconsciente por Freud, os estudos linguísticos de Saussure, o pensamento filosófico de Michel Foucault e o Feminismo. Entendida como uma forma de mudança irreversível, a globalização é percebida por Bauman (2005) como “uma grande transformação que afetou a produção cultural, a vida quotidiana, a subjetividade coletiva, as relações entre o ‘eu’ e o ‘outro’”. (p. 11). Avalia a modernidade líquida como uma época em que os indivíduos são seres flutuantes, desimpedidos em seus relacionamentos pouco 168 duradouros, até mesmo descartáveis e o amor só dura enquanto traz satisfação para ambos, e nem um minuto a mais. Constituem o que chama de “comunidades guarda-roupa”, nas quais as pessoas se reúnem “enquanto dura o espetáculo e prontamente desfeitas quando os espectadores apanham os seus casacos nos cabides”. (BAUMAN, 2005, p. 37). Um comportamento típico de uma sociedade consumista que busca a satisfação instantânea dos desejos nos objetos que passam a ter uma única utilidade, a de proporcionar prazer. Numa sociedade líquida, o sagrado talvez esteja também perdendo espaço, porque a preocupação da mente moderna é com o “agora” e não sobra muito tempo para se pensar ou refletir sobre o eterno, o transcendental. Para o sociólogo polonês Bauman (2005), a globalização tem seu aspecto negativo, pois tornou os vínculos humanos mais frouxos, mais precários. Acrescenta, em seguida, que há contornos nebulosos da globalização negativa, seja o definhamento da solidariedade, o novo individualismo, seja o enfraquecimento dos vínculos humanos já apontado. (BAUMAN, 2007). Para o estudioso da pós-modernidade, vivemos “tempos líquidos”, no qual as pessoas buscam incessantemente a segurança, refugiando-se em “espaços interditados”, como os condomínios existentes nos grandes centros urbanos. Thiél (2012) concebe o mundo contemporâneo caracterizado pela “diáspora”, ou seja, por um processo de desenraizamento e sensação de não pertencimento constantes. Todo esse processo da globalização analisado pelos especialistas das Ciências Humanas, na verdade, é irreversível e com ele percebe-se que as velhas identidades ficaram desestabilizadas e as modernas estão sendo deslocadas ou fragmentadas. (HALL, 2006). Houve um impacto sobre a identidade cultural que não é mais única, porque é atravessada por divisões e diferenças. 169

No entanto, as culturas nacionais 24 têm princípios que regem a sua unidade, ainda que influenciadas por outras identidades, tais como as memórias do passado, o desejo de viver em conjunto e a perpetuação da herança. Segundo Hall (2006), a globalização trouxe três consequências sobre as identidades culturais: a primeira é a desintegração das identidades nacionais; depois, as identidades nacionais e outras identidades locais estão sendo reforçadas pela resistência à globalização e, por fim, identidades híbridas estão tomando seu lugar. Poderíamos incluir dentre essas consequências os movimentos sociais de antiglobalização que ocorreram para fazer valer as identidades locais: “a questão não é desfazer o processo da globalização, mas como domar e controlar os processos ‘selvagens’ e como transformá-los em oportunidade para a humanidade”. (BAUMAN, 2005, p. 94). Entende-se que a globalização acabou, num movimento dialético, levando a um fortalecimento das identidades locais que buscam recuperar a “tradição” e a unidade, as certezas que parecem ter se perdido, num esforço de ressurgimento da etnia: “De um lado, a eliminação de fronteiras; de outro, a combinação dos particularismos locais e das identidades étnicas”. (ESPERANDIO, 2007, p. 77). É dentro desse contexto histórico-político-econômico e no imbricamento de um mundo globalizado é que podemos situar a produção literária indígena que passou a questionar a sua posição marginal na sociedade brasileira, mobilizando-se coletivamente no intuito de dar visibilidade a sua cultura e fazer com que seja reconhecida como parte da nação, como diversidade que precisa ser lida e respeitada. Talvez o futuro da cultura indígena na Aldeia Global seja o de se integrar com responsabilidade aos novos tempos, reconhecendo que podem dar uma grande contribuição, sem precisar abandonar seus conhecimentos tradicionais.

24 A ideia de “nação” aqui usada pode ser entendida como a de uma comunidade local, um domicílio, uma condição de pertencimento (natio) ou de estado-nação. (HALL, 2006). 170

A PÓS-MODERNIDADE: CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS

Não há, evidentemente, necessidade alguma de imaginar um período assim. Trata-se do período que estamos vivendo, e se chama pós-modernismo – embora a sua abrangência e ubiquidade sejam temas de controvérsia. (Terry Eagleton)

Outro tema imbricado ao da Aldeia Global que queremos trazer para nosso estudo é o da “pós-modernidade”, um movimento que atinge os nossos autores-indígenas que acabaram assumindo uma nova identidade híbrida, hifenizada ou pós-moderna. Parece que não se encontrou, ainda, um termo que substitua o controvertido “pós”, um prefixo que significa, conforme Bhabha (2013), estar no “além”, ou melhor, significa habitar um espaço intermediário, nem um novo horizonte, nem um abandono do passado. O termo “pós” vem nos mostrar que nos encontramos exatamente no momento de trânsito em que espaço e tempo, passado e presente se cruzam para produzir figuras complexas de identidade. (HANCIAU, 2010). Mas, afinal, o que vem a ser a pós-modernidade? Já podemos adiantar que a diversidade e a complexidade do tema faz com que os estudiosos empreendem esforços para entendê-lo enquanto configuração do modo de vida contemporâneo. Alguns teóricos a entendem como uma mudança geral na condição humana, como uma interpretação da contemporaneidade que emerge como uma nova forma de pensar e compreender um mundo descentralizado, dinâmico, líquido e globalizado. Veem-na como um movimento excêntrico que traz à tona a valorização de grupos antes marginalizados. Por isso, abre-se espaço para valorizar os referenciais indígenas presentes na cultura brasileira, apesar da desqualificação que o imaginário europeu engendrou. Outros a consideram uma condição histórica, representando uma nova época posterior à modernidade. Eagleton (1998) vai além dessa visão e separa os termos pós-modernismo e pós-modernidade:

171

A palavra pós-modernismo refere-se em geral a uma forma de cultura contemporânea, enquanto o termo pós-modernidade alude a um período histórico específico. Pós-modernidade é uma linha de pensamento que questiona as noções clássicas de verdade, razão, identidade e objetividade, a ideia de progresso ou emancipação universal, os sistemas únicos, as grandes narrativas ou os fundamentos definitivos de explicação. Contrariando essas normas do iluminismo, vê o mundo como contingente, gratuito, diverso, instável, imprevisível, um conjunto de culturas ou interpretações desunificadas gerando um certo grau de ceticismo em relação à objetividade da verdade, da história e das normas, em relação ás idiossincrasias e a coerência das identidades. Essa maneira de ver, como sustentam alguns, baseia-se em circunstâncias concretas: ela emerge da mudança histórica ocorrida no Ocidente para uma nova forma de capitalismo – para o mundo efêmero e descentralizado da tecnologia, do consumismo e da indústria cultural, no qual as indústrias de serviços, finanças e informação triunfam sobre a produção tradicional, e a política clássica de classes cede terreno a uma série difusa de “políticas de identidade”. (p. 7).

A partir dessa extensa definição de Terry Eagleton, podemos dizer que o termo pós-modernismo estaria ligado ao mundo das artes, ao passo que pós- modernidade teria maior conexão com o estilo de vida e pensamento de uma determinada época. Na verdade, o termo “pós-modernismo” surgiu primeiro no mundo interno hispânico dos anos de 1930, uma geração antes de seu aparecimento na Inglaterra ou na América. (FERNANDES, 2010). Para Marshall (2007), o conceito de pós-modernidade começou a ser difundido no final dos anos 1970, a partir da França, “sendo seus principais proponentes os rebeldes de 1968, agora desiludidos, orbitando em torno do pós-estruturalismo: Roland Barthes, Michel Foucault, Jacques Derrida, Jean- François Lyotard, Jean Baudrillard e seus incontáveis seguidores”. (p. 16). Na pós-modernidade, todos os paradigmas serão questionados, todos os discursos universais totalizantes serão olhados com desconfiança. Busca-se romper com o fechamento ideológico da esquerda ocidental, masculina e branca e questões como sexo, etnia passam a ser priorizadas, produzindo um rico conjunto de trabalhos em vários campos do saber – arquitetura, artes, música, ficção e ciências sociais. Para Fernandes (2010), o pós-modernismo trouxe para o debate questões relativas à raça, à classe e ao gênero, uma nítida postura pluralista, na qual as diversidades têm o direito de falar por elas mesmas, na sua própria voz e ter aquela voz aceita como legítima. Assim, nesse contexto, podemos 172 dizer que a literatura indígena se insere, com autores em trânsito, cuja identidade pós-moderna é móvel, em constante vir a ser. A literatura em geral acompanhou essa nova tendência, com a função narrativa sem os grandes heróis, os grandes perigos, o que levou à intensificação do fragmentário nas narrativas contemporâneas. (FERNANDES, 2010). Lampert (2005) cita o pensamento de Compagnon sobre a pós- modernidade:

Novo clichê dos anos 80, que invadiu as Belas-Artes - se ainda pode falar assim -, a literatura, as artes plásticas, talvez a música, mas, artes de tudo, a arquitetura e também a filosofia, etc., cansadas das vanguardas e de suas aporias, decepcionadas com a tradição da ruptura cada vez mais integradas ao fetichismo da mercadoria na sociedade de consumo. (p. 15).

Seu pensamento pode ser entendido, assim, como uma crítica a uma sociedade moderna, consumista. A condição histórica da pós-modernidade é explicada por Harvey, também citado por Lampert (2005):

A crise de supracumulação iniciada no final dos anos 1960, e que chegou ao auge em 1973, gerou exatamente esse resultado. A experiência do tempo e do espaço se transformou, a confiança na associação entre juízos científicos e morais ruiu, a estética triunfou sobre a ética como foco primário de preocupação intelectual e social, as imagens dominaram as narrativas, a efemeridade e a fragmentação assumiram precedência sobre verdades eternas e sobre a política unificada e as explicações deixaram o âmbito dos fundamentos materiais e político-econômicos e passaram para a consideração de práticas políticas e culturais autônomas. (p. 15).

Apreendem-se, a partir desse fragmento, características da pós- modernidade: a queda do sujeito, a indeterminação na ciência, nova concepção de tempo e da história. Nesse contexto, a dúvida é a condição indispensável para a reflexão, já que a solidez das verdades foi abalada pela dúvida, pela incerteza, desmanchando-se no ar. Para os pensadores David Harvey e para o crítico marxista Fredric Jameson, a pós-modernidade pode ser interpretada em termos de desenvolvimento do capitalismo em sua última fase – o capitalismo tardio – que, para seu próprio desenvolvimento, serve-se da cultura como base, “um capitalismo que interpenetra, homogeneíza e fragmenta a cultura planetária, 173 produzindo uma nova experimentação do espaço e do tempo e uma nova subjetividade”. (ESPERANDIO, 2007, p. 28). Há teóricos que entendem que a principal mudança do mundo contemporâneo e globalizado está na forma de soberania, que teria uma “dupla face”, pois ao mesmo tempo em que envolve o globo todo, não tem um exterior, um lado de fora. Ela permanece limitada internamente pela relação entre dominador e dominado. Assim, seria diferente da soberania da época moderna, constituída por um conjunto de potências soberanas nacionais que limitavam reciprocamente a própria soberania e reinavam sobre as nações subordinadas. A pós-modernidade para o sociólogo Zigmunt Bauman seria a modernidade menos a ilusão. Ele se utilizou do termo “pós-modernidade” até construir a noção de “modernidade líquida” que sugere “a incapacidade endêmica de nossa sociedade, e de qualquer parte dela, de manter sua forma por algum período de tempo”. (ESPERANDIO, 2007, p. 28). É a efemeridade, a busca na experiência imediata, alastrando-se na sociedade contemporânea que trata o “outro” como objeto de consumo, adequado para o gozo fugaz. Segundo Esperandio (2007): “O indivíduo contemporâneo criou uma prática de cuidado de si desvinculada do cuidado com o outro, configurando, assim, um estilo de vida voltado para si próprio”. (p. 69). Houve o aumento do individualismo, produzindo uma “cultura do narcisismo”, cujos interesses estão voltados para si mesmo, com baixa consideração pelo outro. Nas palavras de Bauman (2008):

Exortados, instados e pressionados diariamente a perseguirem seus próprios interesses e satisfações, e a só se preocuparem com os interesses dos outros na medida em que afetam os seus, os indivíduos modernos acreditam que os outros à sua volta são guiados por motivos igualmente egoístas – e portanto não podem esperar deles uma compaixão e uma solidariedade mais desinteressadas do que eles próprios são aconselhados, treinados e dispostos a oferecer. (p. 172).

Também vivemos tempos de desconfiança e medo; tempos de massificação da imagem e aqueles que ficam excluídos da sociedade de consumo experimentam a sensação de nada ser: “Ter e ser confundem-se e a 174 ativação do desejo de consumo é a mesma para todo o corpo social”. (ESPERANDIO, 2007, p. 70). Enfim, podemos resumir a modernidade tardia ou pós-modernidade em quatro pontos a saber: o declínio das metanarrativas e a fragmentação da verdade; o presentismo e a contração do tempo e do espaço; a relação entre ética, estética e consumo; capitalismo, globalização e trabalho. O marxismo, o freudismo, o cientificismo são os grandes relatos apoiados no discurso científico, mas não são suficientes para explicar os fenômenos sociais. As metanarrativas legitimam a vida como um todo, incluindo todas as ações e a cultura que aí se desenvolvem. Embora as metanarrativas tenham sido colocadas sob suspeita, não quer dizer que outras histórias não continuem a aparecer. De acordo com Esperandio (2007): “Na contemporaneidade, emergem pequenos relatos específicos, apropriados à ‘tribo’ que é sua detentora. Tribos religiosas, sexuais, culturais, esportivas, musicais, sem primazia de umas sobre as outras”. (p. 54). O presentismo ou o “presente perpétuo” é o novo modo de compreender o tempo, as escolhas de vida, a aposta no futuro. É a ética do instante, presente nas relações amorosas; na comunicação, a internet relativiza as fronteiras do tempo-espaço e possibilita comunicação em tempo real, aproximando os mais diversos pontos do planeta. As escolhas éticas na contemporaneidade estão pautadas na busca da felicidade, da autorrealização e do bem-estar. E como a ética se encontra em harmonia com a estética, essa se expressa por meio do culto ao corpo, pela valorização da aparência, da boa forma física. No entendimento de Esperandio (2007), trata-se de uma estética socialmente produzida pela mídia, pela veiculação de imagens idealizadas, pela economia que produz um desejo de consumo sem limites. Tudo isso gera um mal-estar da subjetividade contemporânea que, por sua vez, relaciona-se com a forma como o novo capitalismo tem se configurado no mundo nas últimas décadas e relaciona-se com a globalização e com as novas formas de organização do trabalho. Temos um mundo marcado pelo individualismo, pelo enfraquecimento do laço social e por uma cultura do narcisismo. 175

No novo capitalismo, tem-se que pensar em fabricar o desejo e a crença, e não apenas o objeto. Tem-se que investir em marketing, design, publicidade que muitas vezes são feitos em outra parte do mundo. Assim, o capitalismo globalizado convive com o capitalismo clássico, a fábrica, o serviço. (ESPERANDIO, 2007). A globalização, como já sabemos, eliminou fronteiras, trouxe a ideia de abertura de territórios/espaço e de tempo. E, se pensarmos em nosso país, onde vivem várias etnias e nesse contexto de encurtamento das distâncias e dos espaços que as separam, a convivência respeitosa com o multicutural se impõe.

O ROUBO DAS HORAS: REFLEXÕES SOBRE O TEMPO

Diante do mundo globalizado, pós-moderno e capitalista, para o qual o “tempo é dinheiro”, Daniel Munduruku mostra-se crítico e procura mostrar aos leitores que os povos da floresta estão atentos ao que se passa na Aldeia Global. Reconhece que a cosmovisão indígena difere, e muito, daquela que se desenha em “tempos líquidos”, marcados pelos relacionamentos frouxos que nos mostram que, infelizmente: “Estamos deixando de praticar nosso sentido de pertencimento”. (MUNDURUKU, 2009b, p. 32). O autor entende também que os povos indígenas têm muita contribuição a dar para essa sociedade de pessoas apressadas, de pais que educam seus filhos apenas para ser alguém na vida. Uma delas é a maneira como o povo indígena encara a educação, aliás, um tema sobre o qual o autor gosta de discutir25. Para Daniel Munduruku, o trabalho educativo dos índios é holístico: educa-se o corpo, a mente e o espírito.

25 Vale lembrar que a tese de doutorado de Daniel Munduruku foi desenvolvida na área de Educação, intitulada O caráter educativo do movimento indígena brasileiro (1970-1990). 176

Para o povo indígena, o corpo é sagrado e todos os sentidos devem ser desenvolvidos: “Aprendemos que nosso corpo tem ausências que precisam ser preenchidas com nossos sentidos”. (MUNDURUKU, 2012, p. 69). O curumim, à medida que cresce, desenvolve a consciência de que andar pela mata é mais que um passeio de distração ou diversão. É um aprendizado que o ensinará a ler as pegadas dos animais, o voo dos pássaros, as mensagens trazidas pelo vento; na verdade, é um “processo de aprendizagem que passa pela leitura do entorno ambiental”. (MUNDURUKU, 2012, p. 69). Educa-se a mente através do ato de ouvir histórias contadas pelos mais velhos, aqueles que trazem para o presente o passado memorial e são os guardiões da memória que leem e releem o tempo tornando-o circular. (MUNDURUKU, 2012). Finalmente, educa-se o espírito quando se reconhece o sonho como “a linguagem do universo para nos lembrar que somos parentes de todos os seres vivos que coabitam conosco este planeta”. (MUNDURUKU, 2012, p. 72). Todo o processo de educação indígena passa pelo coletivo, uma vez que pais, avós e vizinhos são responsáveis por essa tarefa. De acordo com Daniel Munduruku: “Tudo está no grande círculo e faz parte de uma teia tramada pela vida de cada um e de todos”. (MUNDURUKU, 209b, p. 48). Ao tratar da educação e da disciplina nas comunidades indígenas, Flores (2003) reitera o pensamento de Daniel Munduruku, lembrando que:

[...] na comunidade indígena os filhos não são só dos pais: são da comunidade toda, todos são responsáveis pelo cuidado com educação porque, quando adulto, vai conviver com todos. A infância na aldeia é o que se pode chamar de liberdade. (p. 36).

A sociedade indígena descrita pelos indígenas é aquela que educa para a liberdade, e ainda, como acrescenta Munduruku (2009b): “educa-se para compreensão e para a colaboração e não para a disputa de poder; não para a competição e sim para a paz”. (p. 70). É uma sociedade que trabalha para o bem coletivo e não para o acúmulo de bens, que entende o tempo presente como uma dádiva, não se esquecendo do passado e nem desejando o futuro. Como nos esclarece Munduruku (2012): “[...] a ideia de futuro não se realiza pela produção e pelo acúmulo de produtos 177 tal qual no Ocidente, mas por uma compreensão baseada numa estratégia de sobrevivência equacionada pela economia solidária [...]”. (p. 186). Dessa forma, as concepções dos indígenas contrastam com a lógica capitalista, de uma sociedade que visa ao lucro, que entende o presente como apenas o instante a ser vivido, sozinho ou em redes sociais da internet. Daniel fala de uma outra rede que se tece com a colaboração de todos e que não se constrói virtualmente, que pode ser apagada com um simples toque na tecla delete. O tempo – na visão capitalista – é dinheiro e escraviza o ser humano, roubando-lhe a possibilidade de estar em contato com o “outro”. Em O homem que roubava horas (2007), temos uma narrativa alegórica26, uma reflexão sobre a maneira como o mundo ocidental lida com essa questão. O homem que roubava horas (2007) é a história de um andarilho, sem nome, seguido por muitos cachorros tão magros quanto ele. Tinha um comportamento que dividia opiniões, pois para algumas pessoas ele representava um perigo à segurança, já outros achavam que deveria ser levado para um asilo. Na verdade, toda a polêmica causada pelo velhinho vinha do fato de ele ter o estranho o hábito de roubar as horas. Como nos conta o narrador: “Ele roubava a pressa das pessoas”. (MUNDURUKU, 2007, p. 8). Sempre que perguntava a alguém as horas e era informado, o homem saía gritando: “- Roubei sua hora, ganhei um sorriso!”. (MUNDURUKU, 2007, p. 12). Por isso, as pessoas passaram a se referir a ele como o “ladrão de horas”. Aos poucos, o mendigo passou a fazer parte do dia a dia das pessoas e muitas delas até traziam alimentos e roupas para ele. Com a mudança de comportamento das pessoas em relação ao velhinho maltrapilho, a praça da cidade por onde as pessoas transitavam todos os dias também passou por uma transformação. Conta-nos o narrador:

Assim, aquela praça já não era mais o lugar de gente correndo, mas de pessoas que se cumprimentavam, que se olhavam nos olhos, que se sentavam nos bancos para contar suas vidas; de filhos que brincavam com os pais; de namorados que faziam juras de amor. Todos os dias a praça ficava cheia de transeuntes não mais preocupados em chegar a algum lugar, mas em estar ali, fazendo parte da família do homem. (MUNDURUKU, 2007, p. 16).

26 Alegoria é uma espécie de discurso inicialmente apresentado com um sentido próprio e que serve de comparação para tornar inteligível um outro sentido que não é expresso. (MOISÉS, 2004) 178

As pessoas passaram a ficar mais voltadas para o seu bem-estar, sem serem escravas do relógio. O mendigo conseguira fazer as pessoas refletirem sobre o tempo escravizador que as impedia de conviver. Certa vez, o mendigo reapareceu na praça e todos se mostraram felizes, ao ouvirem os seus ensinamentos. Para o velhinho nós tocamos a vida, preocupados com os relógios e nos esquecemos de marcar nossas vidas no tempo. Na voz do velho maltrapilho: “- Viva o tempo, não viva as horas. Só há um tempo: o agora. Tempo de chegar, tempo de ir embora. Quem vive seu tempo, faz história”. (MUNDURUKU, 2007, p. 27). No final da narrativa, o “ladrão de horas” sumiu e ninguém mais o encontrou, mas a lição ficou guardada na memória das pessoas. Nas entrelinhas do enredo de O homem que roubava horas (2007) podemos ler a alegoria que o autor nos apresenta como crítica à “sociedade ocidental que transformou a convivência humana numa permanente concorrência, deixando as pessoas à mercê do tempo”. (MUNDURUKU, 2009b, p. 80). O protagonista – um homem simples, anônimo – é um grande observador do comportamento humano e percebe que as pessoas não têm tempo para o diálogo, para observar as pequenas coisas da vida, ou seja, não têm tempo nem para olhar o tempo. Então, o sábio maltrapilho pergunta e faz os transeuntes pensarem nas coisas “banais”, nas quais não prestam atenção porque estão sempre apressadas: “Será que vai chover? Será que as flores já abriram? Como será o arco-íris? Qual a cor dos olhos dos meus amados? Temos tempo para isso? Não! Isso ocupa muitas horas”. (MUNDURUKU, 2007, p. 25). Na história de Daniel Munduruku, a praça é o lugar por onde todas as pessoas passavam sem olharem uma nas outras. Mas, passou a ser o espaço do encontro, da interação. A praça seria, na visão de Augé (2010), um “não-lugar”, um espaço do transitório. De acordo com o pensamento antropológico do estudioso francês, o “não-lugar” é o espaço do provisório, do efêmero, marcado por locais de passagem (como os shopping centers, os aeroportos), de rápida circulação, onde as pessoas não praticam sua identidade, mas a comprovam nos bilhetes de metrô, nos cartões de crédito ou passaportes. 179

Na análise de Augé (2010), os tempos hipermodernos exigem hipermercados e shopping centers que atendam às necessidades de uma clientela hiperindividualista, pragmática, que vê o consumismo como forma de compensação, como saída para a angústia existencial, para preencher a vacuidade do presente e do futuro, bem como o prazer associado às mudanças. O antropólogo entende os “não-lugares” como sinais da supermodernidade, considerado por ele como um espaço de deslocamentos impessoais. Assim nos explica:

Os não lugares são tanto as instalações necessárias à circulação acelerada das pessoas e bens (vias expressas, trevos rodoviários, aeroportos) quanto os próprios meios de transporte ou os grandes centros comerciais, ou ainda os campos de trânsito prolongado onde são alojados os refugiados do planeta. (AUGÉ, 2010, p. 36).

Assim, seriam espaços do encontro passageiro e para os estudos sociológicos, representam a imagem do instante, do lugar fugidio. Daniel Munduruku, por sua vez, propõe um “lugar” de encontro menos fugaz. Lembra-nos do mundo grego, onde havia a Ágora, a praça principal da “pólis”, para onde os cidadãos costumavam ir. Esse espaço, enfim, era a expressão máxima da esfera pública, da democracia, pois era onde todos tinham voz e voto. A Ágora, de acordo com Bauman (2005), seria o lugar onde se afirma a verdade, onde é possível experimentar o princípio de responsabilidade próprio de cada um. O mundo, segundo a visão de Daniel, deve ser uma grande Ágora, um lugar de encontro, mais que uma Aldeia Global. Ainda dentro dessa temática, temos o comentário de Zumthor, (2010) que entende que já é tempo de na grande praça da Aldeia Global de McLuhan restabelecer um equilíbrio entre o olho e o ouvido, afinal o ocidental “parece habitado pela nostalgia de um mundo do toque e do ouvido”. (p. 318). Talvez, a mensagem que essa narrativa de Daniel Munduruku seja a de justamente educar o olhar para enxergar o outro, educar também o ouvido para escutar o que o outro/o diferente tem a dizer.

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TODAS AS COISAS SÃO PEQUENAS: A NOVELA MUNDURUKU

Outra obra de Daniel Munduruku que vai trazer reflexões acerca dos caminhos que a humanidade tem seguido em tempos pós-modernos é a novela Todas as coisas são pequenas (2008b). Narrada em primeira pessoa, trata da história do personagem Carlos (um não-índio) que acaba – depois do contato com uma aldeia indígena - criticando o modelo de vida capitalista, para o qual o dinheiro é o grande ídolo, uma coisa mágica capaz de comprar tudo, menos a sua paz interior. Um capitalismo que destrói as florestas e aqueles que dela dependem para sobreviver, tudo em nome do lucro e do progresso. Como denuncia o narrador: “A sociedade global está invadindo nossas florestas e destruindo toda a riqueza mineral, vegetal e animal”. (MUNDURUKU, 2008b, p. 145). Entretanto, para enxergar o mundo dessa forma, foi preciso que Carlos conhecesse o “coração da mãe-terra”, bem no meio da floresta amazônica, uma aventura singular para um empresário bem-sucedido e individualista da cidade grande. Um acidente de avião, do qual Carlos e o piloto saem vivos, vai ser o ponto de partida para que ele transforme a sua visão de mundo a partir da experiência ímpar que terá com os indígenas e com sua maneira de olhar o mundo, muito diferente da que conhecia até então. O protagonista era um workaholic, mas, ao mesmo tempo, um homem incomodado por um sentimento de vazio, por uma sensação de saudade inexplicável. Transformara-se, como ele mesmo diz, num “monge urbano”, isolado no seu mundo particular. Seus laços afetivos eram frágeis, próprio de quem vive em “tempos líquidos”, tema muito bem investigado por Bauman (2007), o sociólogo polonês que apresenta nossa época, na qual: “Os vínculos humanos são confortavelmente frouxos, mas, por isso mesmo, terrivelmente precários, e é tão difícil praticar a solidariedade quanto compreender seus benefícios [...]”. (p. 30). O narrador-personagem de Todas as coisas são pequenas (2008) era de origem humilde, uma família de cinco irmãos que viviam na roça com seus 181 pais. Fora mandado para o seminário contra a vontade para ser padre e lá permaneceu por oito anos, estudando filosofia, religião; um período de sua vida marcado pela revolta por estar num ambiente cheio de hipocrisia. Ele mesmo denuncia:

Vi meus superiores cometendo pecados, via meus amigos violando seus votos e violentando as moças da comunidade cristã vizinha do mosteiro. Via a própria comunidade gostando de ser iludida por falsas promessas de felicidade celestial. (MUNDURUKU, 2008b, p. 31).

Depois de sair da escola religiosa, Carlos foi buscar novos horizontes. Tornou-se um rico empresário e aprendeu rápido a acumular bens, construindo uma fortuna que acabou transformando-o em uma pessoa muito arrogante, ignorando a própria família, agora formada só pelos irmãos, pois perdera o pai e a mãe. O espaço da floresta passa a ser o outro locus da narrativa de Munduruku, onde o narrador-personagem sempre estabelecerá comparações entre o mundo dos brancos e o mundo dos índios. Na aldeia, Carlos percebe que a vida dos indígenas se baseava na vivência do dia a dia, do hoje, do agora. A realidade que conhecia, por sua vez, era outra: “uma realidade acostumada a planejar, a projetar, a programar cada segundo do dia”. (MUNDURUKU, 2008b, p. 122). Ao observar os hábitos das pessoas da aldeia, o narrador-personagem notou que conversavam muito, riam muito, brincavam muito, como se estivessem sempre de bem com a vida. Na cidade, no entanto, as pessoas parecem mais infelizes “ou esperando a felicidade chegar no dia seguinte, nas férias seguintes, no dia da aposentadoria. É uma carga pesada viver”. (MUNDURUKU, 2008b, p. 92). Na visão dos indígenas, o homem branco não compreende a vida e trouxe da “aldeia gigante” a violência da ganância e a destruição das florestas de que dependem os povos indígenas para sobreviver e destruí-las é arrancar o bem mais precioso que lhes garante o sentido da existência. Não se trata de idealizar as sociedades indígenas que, diferente do mundo urbano, valorizam muito suas tradições e seus costumes. Na voz do narrador-personagem, podemos ler suas considerações sobre os povos da floresta: 182

É claro que não são perfeitos e têm seus problemas políticos e sociais, espirituais e humanos, brigas e ciúmes. Mas conseguem resolver as dificuldades abrindo mão, sendo tolerantes uns com os outros, sendo verdadeiros e tratando-se com dignidade. (MUNDURUKU, 1008b, p. 148).

No enredo da narrativa Todas as coisas são pequenas (2008b), percebe- se a importância do personagem Aximã, o pajé indígena, pois foi ele quem salvou Carlos do acidente e o transformou em um “parente” indígena, depois de iniciá-lo no “rito de passagem”, um episódio que consideramos o clímax da narrativa. O encontro de Carlos consigo mesmo ocorreu dentro de uma gruta, lugar onde esteve só, voltado para si, em meio às recordações, tormentos infantis, mágoas, raiva, ódio, tristeza, tudo se acumulando dele. (MUNDURUKU, 2008b). Foi uma experiência mística que lhe trouxe a presença de seus pais que lhe pediam que cuidasse de seus irmãos, que recomeçasse a vida de maneira diferente. Atordoado pelos pensamentos, Carlos, numa linguagem coloquial e até divertida, comenta: “Parecia que eu tinha cheirado uma carreira inteira de cocaína e entrado em delírio permanente”. (MUNDURUKU, 2008b, p. 139). Toda essa vivência levou-o a reconhecer que negara a sua família, seus amores e que ferira muitas pessoas. Como lhe dizia uma voz interior:

- Você está nascendo de novo sem precisar entrar na barriga de sua mãe biológica. Você sairá do útero da Mãe Vermelha como um homem novo, mas com a consciência do presente. Caberá a você ser criativo e encontrar um caminho para responder a suas perguntas. (MUNDURUKU, 2008b, p. 140).

O novo caminho, finalmente, é traçado para Carlos (ou Irihi, seu nome indígena que significa “teimoso”) que decidira colocar seus bens a serviço da educação. Resolvera seguir a orientação do conselheiro mais velho da tribo:

- Irihi vai ensinar os jovens a conhecerem o pensamento da aldeia-cidade. Você pode aproveitar riqueza que tem para dar chance para nossos jovens e para o povo de lá. Nossos jovens precisam aprender coisas novas para saberem defender nosso povo. (MUNDURUKU, 2008b, p. 147).

Carlos, ou Irihi, passa a ser um deles, renascido e recebe outro nome indígena, revelado pelo sonho: Idibi, que significa “água, rio”, um nome carregado de significado. Para Aximã, seu mentor, a explicação é clara: “O rio 183 vem de dentro do coração da Mãe Vermelha e por isso ele sai distribuindo notícias pelo mundo todo para as pessoas que sabem ouvi-lo”. (MUNDURUKU, 2088b, p. 153). No final da narrativa, ficamos sabendo que Carlos passara sete dias no seio da floresta amazônica, um lugar distante, a mil quilômetros de Manaus. Voltam – ele e o piloto salvos – para o Mato Grosso, onde Carlos visitaria o cemitério e levaria flores para seus pais: “Pedi perdão e os perdoei. Tinha, finalmente, feito a paz com meu passado”. (MUNDURUKU, 2008b, p. 157). Carlos retoma sua vida em São Paulo, não mais como empresário, mas como um empreendedor. Constrói uma escola-universidade para pessoas de baixa renda, com um trabalho voltado para o ensino de práticas alternativas de convivência entre homem e natureza. Mesmo não tendo mais contato com Aximã, Carlos traz na memória o grande ensinamento de seu mestre: nunca se preocupar com as coisas pequenas, pois todas as coisas são pequenas. Em Todas as coisas são pequenas (2008b), temos personagens que transitam entre duas culturas: o pajé Aximã que tivera uma experiência infeliz na cidade grande, pois fora ludibriado por um homem branco que estava interessado apenas no ouro das terras indígenas. Temos Carlos que sai de um grande centro urbano e acaba conhecendo a aldeia indígena e seus valores, levando consigo um aprendizado para a vida toda. Culturalmente seriam “híbridos”, conhecendo dois mundos diferentes, mas que não precisam se excluir. Carlos tivera uma boa formação filosófica, conhecera os pensadores gregos, com os quais simpatizara e acaba por conhecer também a sabedoria dos índios, que pensa sobre a vida, sobre o tempo, sobre o mundo. Na aldeia indígena, como se vê, o conhecimento é outro, assim como o modo de pensar a vida: para os índios, viver e acreditar, aprender e brincar é tudo uma coisa só; sentem uma profunda gratidão pela terra que os acolhe e alimenta. Lá todos trabalham e se revezam na tarefa de comandar o grupo, um trabalho realmente de equipe. A imagem da grande teia é retomada nessa passagem e resumida na afirmação de Carlos: “Aqui aprendi que precisamos existir para todos”. (MUNDURUKU, 2008b, p. 126). 184

Na convivência com os indígenas, Carlos aprendeu que os nomes são presentes ofertados pelos ancestrais. Na voz do velho pajé, ouviu: “- [...] Cada letra tem um som que forma uma música, e essa melodia dá o tom que nos energiza e nos coloca em sintonia com o cosmos”. (MUNDURUKU, 2008b, p. 151). Os nomes não devem ser revelados de imediato; talvez por isso os nomes dos personagens principais só apareceram no final da história: Idibi e Aximã, água e peixe, respectivamente, formam a imagem perfeita do equilíbrio da natureza. Enfim, o pouco tempo em que esteve com os índios, Carlos pôde aprender muito sobre a maneira de eles estarem no mundo, de entenderem a sua participação na teia da vida. Teve um saldo positivo, pois foi uma experiência que transformou a sua maneira pensar e de se relacionar com tudo ao seu redor. Nesta narrativa ficcional de Munduruku (2007), a noção do tempo cronologicamente marcado nem é tão importante, porque o que foi relevante foi a intensidade da experiência de Carlos vivida entre os indígenas. Apenas no desfecho da história é que se conhece, de fato, o tempo que o protagonista permaneceu na selva. Na análise de Schneider (2008), esse tipo de postura de autores indígenas diante do tempo cronológico não significa que estão adotando uma postura pós-moderna de questionamento da organização do pensamento ocidental. No seu entender, os autores indígenas estão simplesmente reconstruindo suas percepções de mundo, que já existiam antes mesmo que sinais da modernidade, tais como o uso disseminado dos relógios e a imposição de horários fixos de trabalho, passassem a fazer parte do dia a dia da maioria das pessoas.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Historicamente, sabemos que os indígenas sofreram, desde o século XVI, com a escravização, com as doenças trazidas pelo homem branco, com anulação de sua cultura e com políticas indigenistas ineficazes e contraditórias. Sabemos também que os colonizadores e missionários religiosos desprezaram a identidade indígena e impuseram aos nativos a fé católica e a visão de mundo europeizante. Estigmas e estereótipos sobre os índios atravessaram os tempos e, durante séculos, foram chamados de preguiçosos, selvagens e acusados de atravancarem o progresso do Brasil. O colonizador acabou formando um retrato degradante do colonizado, negando-lhe as qualidades e aquilo que é mais precioso para os seres humanos: a liberdade. Seus deuses foram transformados e sua tradição oral menosprezada, mas não eliminada totalmente, resistindo às pressões do colonizador que procurou sempre assimilá-los ou integrá-los ao modus vivendi da sociedade dominante. Em meio à desintegração sociocultural e ao esfacelamento da identidade coletiva das comunidades tribais, os indígenas tiveram sua história e tradições celebradas pelo Indianismo, no fim do século XVIII e último quarto do século XIX. Entretanto, construiu-se uma imagem idealizada pelos escritores românticos que foram influenciados pelo Romantismo europeu e pela ideologia liberal da época. Na verdade, no Romantismo havia uma distância entre a realidade e a imagem que se construiu em torno dos índios, porque no nível imaginário foram idealizados e valorizados; no plano real, houve uma política prevendo o controle e a gradual extinção de sua identidade autônoma. Dessa forma, a ideia de “política do genocídio” aplicada ao movimento indianista é realmente precisa. De acordo com a vertente indianista do Romantismo, o índio passa à condição de “herói da pátria”, mas dividindo sempre o espaço na literatura com os feitos grandiosos dos conquistadores. Antonio Candido (2009) realça a 186 ambivalência de nossos românticos: o amor à liberdade e a fidelidade à dinastia. Mesmo com todas as críticas ao indianismo, à idealização do indígena, tem-se que ressaltar o novo olhar sobre esse segmento da sociedade que passou a ser valorizado. O que houve de novo foi a integração do indígena, foi a sua incorporação à literatura com a cosmogonia, a concepção da vida, os hábitos, os gostos, os ideais que lhes são próprios de sua cultura. Apesar de viverem em condições tão adversas, de serem quase esquecidos pelos governantes durante os séculos XVIII e XIX, os povos indígenas continuaram mantendo uma noção profunda e arraigada de que são, eles próprios, diferentes de todos os outros povos. Essa postura orgulhosa e afirmativa foi a grande mudança para a superação de um sentimento de inferioridade que os impedia de se verem vistos como povo, de cuidarem de sua própria cultura e tradição, sem o instituto da tutela. Vimos, no capítulo inicial, que uma mobilização dos povos indígenas brasileiros só foi ocorrer no final do século XX, quando perceberam que era preciso se organizar para lutar juntos e não cada tribo defendendo seus próprios interesses. Com essa articulação, os índios mostraram que poderiam se constituir numa força bastante poderosa e coesa de representação, francamente capaz de levar aos seus atuais responsáveis as sugestões que tornariam possível a execução de um debate mais amplo, mais aberto, sobre a sua emancipação. Foi uma luta política de um grupo étnico minoritário por seus direitos, pelo reconhecimento de sua identidade e de sua visão de mundo. A partir de então, os indígenas passaram a questionar os estereótipos que lhes foram impostos pelo colonizador. Encontraram na escrita e na literatura um espaço para mostrar seus mitos, sua cultura, seu modo de estar no mundo e de se relacionar com ele. São, de fato, duas ferramentas que vão favorecer a construção de uma nova imagem do índio, bem diferente daquela que foi construída ao longo dos séculos, marcada por preconceitos e rótulos degradantes. Os indígenas apropriaram-se da palavra escrita para que a oralidade de seus textos não se perdesse no tempo, preservando, assim, a memória de um 187 povo. Também era a forma de fazer com que a tradição discursiva milenar fosse conhecida e reconhecida através de uma literatura dita muitas vezes como inferior ou primitiva. Na avaliação dos estudiosos da literatura indígena, as culturas indígenas americanas têm narrado e lavrado sua história por meio de recursos discursivos pertencentes a poéticas diversas da poética ocidental, mas, nem por isso, menos complexa. Nos Estados Unidos, por exemplo, desde o século XVIII há registro de textos escritos por nativos em língua inglesa. Textos autobiográficos, de ficção e poesia são publicados a partir do século XIX e, no século XX, há um aumento de romances escritos por autores indígenas, que passam a ser percebidos como agentes produtores de literatura inserida no espaço mercadológico ocidental, mas com características próprias de cada comunidade ancestral. No Brasil, sabemos que, nos anos de 1980, toda uma tradição oral indígena (que guardava o registro dos feitos ilustres da tribo, as fábulas, os contos e a teogonia contada pelos pajés) já estava sendo publicada por autores bilíngues para ser usada nas escolas indígenas, assim como tivemos algumas publicações tuteladas por ONGs, com o mesmo objetivo. Entretanto, com a Constituição de 1988 é que os direitos dos indígenas foram reconhecidos e, com a LDB, de 1996, criaram-se algumas condições educacionais para a formação de professores e para a alfabetização dos índios que passaram a reconhecer na escrita uma ferramenta de resistência e de divulgação da cultura indígena. Além desses avanços na legislação a favor dos povos indígenas, tivemos, no início do século XXI, a incorporação da temática indígena nos currículos escolares; aliás, um trabalho que deve ser reconhecido como resultado do engajamento persistente dos movimentos indígenas na política do nosso país. Realmente, foi uma conquista que favoreceu o acesso de crianças, jovens e adultos brasileiros aos conhecimentos e informações que contribuirão para o reconhecimento da pluralidade cultural e para o respeito às diferenças. Cerca de 35 autores indígenas brasileiros, atualmente, têm publicado regularmente suas obras, atendendo a uma nova demanda do mercado de livros que foi impulsionada pelas novas leis federais. Acredita-se que, com uma produção literária individual, iniciada a partir da década de 1990, uma maior 188 divulgação da cultura indígena tem sido conquistada. Temos, assim, autores que se engajam num trabalho que propõe a revisão da história oficial do Brasil (dando a sua versão dos fatos) e dos estereótipos construídos pelo homem branco. Para isso, vão escrever uma literatura indígena que não se limitará apenas a narrar os mitos, mas essas narrativas aparecerão em textos que se utilizam dos diversos gêneros do discurso, como crônicas, cartas, antologias, diários, memórias e outros tantos. Encontraremos obras ricamente ilustradas e, por suas imagens, os livros escritos pelos indígenas são classificadas como obras pertencentes apenas ao universo infanto-juvenil, sinal dos prejulgamentos e estereótipos literários e editoriais. Em suma, os autores indígenas contemporâneos recorrem aos gêneros do discurso, transitam por tradições tribais e ocidentais, produzem obras destinadas às próprias comunidades tribais, aos seus “parentes” e também ao leitor não-índio. Podemos entendê-los como autores “em trânsito”, porque circulam entre a cidade e a aldeia e/ou como autores “em movimento”, porque se mobilizam coletiva e individualmente a fim de reivindicar seus direitos e o reconhecimento de sua identidade indígena. E, quando nos referimos à identidade dos nossos autores indígenas, não estamos falamos de um discurso essencialista da cultura, porque reconhecemos que eles passaram pelo processo da hibridação ou da transculturação, assumindo uma identidade plural, própria dos tempos pós- modernos e do mundo globalizado. Dentre eles, escolhemos como tema da nossa tese, o índio-autor Daniel Munduruku e sua obra; um educador que acredita no poder da palavra para transformar a sociedade e a maneira como olha para os povos indígenas, um olhar de desconfiança e indiferença à cultura dos povos que já habitavam o território brasileiro, antes de seu “descobrimento”. Diríamos que propõe uma reconciliação com o mundo, com a história e propõe uma chance de compreensão da diferença. A “alteridade”, no imaginário social, ficou marcada por caricaturas, idealizações e clichês, que contribuíram para a exclusão dos povos indígenas do processo histórico. 189

Ainda que seja um indígena imerso na cultura ocidental marcada por históricos processos de colonização, Daniel Munduruku preserva a sua identidade étnica, fato que o torna, a nosso ver, um autor de identidade híbrida ou pós-moderna que consegue se mover entre os vários estilos, gêneros e discursos. O autor-indígena, através da literatura, busca valorizar a diversidade da cultural brasileira e divulgá-la para que a imagem preconceituosa formada em torno do indígena ao longo da História se desfaça. Assim, seus livros contribuem para a afirmação da cidadania, para a valorização da alteridade e para o reconhecimento dos direitos das diversas etnias brasileiras, assumindo o papel importante na construção de uma imagem mais positiva do sujeito indígena. Sua literatura teria, dessa forma, um “caráter educativo” já que visa à divulgação da cultura indígena e de suas manifestações para eliminar o preconceito étnico que ainda insiste em deixar cicatrizes na imagem em torno do indígena. Utilizando-se dos variados gêneros do discurso do mundo ocidental, Daniel Munduruku muitas vezes, em suas narrativas ficcionais, “encaixa” as lendas e os mitos da cultura indígena, o que torna sua obra também híbrida, do ponto de vista textual e literário. Como um rapsodo, Daniel Munduruku reúne/reconta muitas narrativas míticas das mais variadas etnias em antologias que visam apresentar ao leitor (crianças, jovens e adultos) o universo heterogêneo de mitos e lendas indígenas que, por muito tempo, foram transmitidos oralmente pelos mais velhos da tribo. Vimos que, em sua obra, Daniel Munduruku escreve também sobre fatos que fizeram parte de sua memória pessoal, mas sempre dialogando com a memória coletiva, seja do povo de sua etnia, seja dos outros grupos indígenas do Brasil. Escreve sobre a religiosidade indígena, mostrando-nos que esse sentimento permeia a vida da aldeia de maneira muito íntima e é conduzido pelo pajé ou xamã, considerado uma figura importante capaz de funcionar como um intermediário entre o social e o sobrenatural. 190

E, diante do mundo globalizado e pós-moderno, que suscita questões em torno da identidade étnica, Daniel Munduruku traz ao público-leitor alguns livros que fazem uma leitura da realidade urbana e que mostram a maneira de ver o mundo dos indígenas, uma cosmovisão pouco valorizada, mas não menos importante que a do mundo ocidental. Vimos que, por meio de sua obra, vem sempre lembrar ao leitor que somos fios da grande teia da vida e o Globo é o território no qual todos nós nos encontramos relacionados e atrelados. Dessa forma, com todo o seu esforço em dar voz legítima aos povos indígenas, a literatura pode ser entendida como um instrumento de resistência, um meio de fazer valer a vez desse grupo minoritário que, neste mundo fragmentado em que vivemos, busca fortalecer a sua identidade, preservando a indianidade. Assim, a literatura dá visibilidade aos ameríndios que necessitam ser reconhecidos como cidadãos brasileiros plenos, que trazem consigo a tradição - seus valores, crenças e saberes - que é continuamente revivida pela oralidade e pela escrita.

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