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PROCESSO CRIATIVO E APRECIAÇÃO ESTÉTICA NO GRAFISMO

ARISTÓTELES BARCELOS NETO*

resumo: A idéia de que a criação abstract: The idea that artistic creation artística tem sua origem em mundos não- comes from non-human worlds is a very humanos é um tema bastante difundido na present theme in the lowland South etnologia das terras baixas da América do America ethnology (Taylor, 2003; Viveiros Sul (Taylor, 2003; Viveiros de Castro, 1986). de Castro, 1986). This article offers a Este artigo oferece uma visão a respeito do vision about this subject expanding its assunto estendendo sua descrição a uma description to an analysis of the social análise do lugar social da beleza e da fealdade place of beauty and ugliness in the graphic na arte gráfica dos Índios Wauja do Alto art of the Wauja Indians of the Upper Xingu. Argumenta-se que a paisagem . I argue that the wauja aesthetic estética wauja está emoldurada por idéias paysage is framed by ideas of excellence and de excelência e perfeição que devem atingir perfection which must achieve fullness in plenitude nos grandes rituais feitos em nome the great rituals performed for high rank de indivíduos de alto status sociopolítico. individuals. palavras-chave: grafismo indígena da key words: amazonian graphic art, Amazônia, noções nativas de criatividade native notions of creativity and aesthetics, e estética, objetos para pagamento ritual. artifacts for ritual payment.

Introdução1

* Pós-doutorando no Departamento de Antropologia da A criação, circulação e apreciação de Universidade de São Paulo. desenhos entre os Wauja são experiências que lançam desafios descritivos e analíticos 1 Agradeço à FAPESP, à CAPES, ao FUNPESQUISA/ UFSC, ao CADCT/Governo do Estado da e ao ainda pouco comuns na etnologia da Museu Nacional de Etnologia os apoios concedidos Amazônia, a começar pelos horizontes de para a realização dos trabalhos de campo e das análises dos dados. Sou também grato aos Wauja, reflexão sócio-cosmológica abertos pelo especialmente a Atamai, Kamo, Aulahu, Kalupuku, estudo do grafismo. O campo das artes Yejoku e Katsiparu. Lux Vidal, Maria Rosário Borges, Pedro Agostinho da Silva, Rafael de Menezes Bastos, gráficas wauja é extremamente profícuo, Bruna Franchetto, Michael Heckenberger, Carlos sendo muitos os seus suportes de expressão Fausto e Fabíola Silva contribuíram com valiosos comentários e incentivos à minha pesquisa entre os – seres humanos, animais, monstros, Wauja.

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“roupas” de seres “sobrenaturais” e várias do rio Xingu, Estado do , classes de artefatos –, isso sem contar Brasil. No entanto, a história dos Wauja também a dimensão “imaterial” e criativa no Alto Xingu é bem mais antiga. das artes visuais na vida onírica. Pesquisas arqueológicas recentes apontam Este artigo explicita dois momentos a chegada dos ancestrais dos Wauja à distintos e complementares de um região por volta do século IX d.C. continuum produtivo: a criação e a (Heckenberger, 2001). Ao que indicam os apreciação estética do grafismo pelos estudos etno-históricos mais recentes Wauja. O discurso sobre a criatividade (Franchetto & Heckenberger, 2001) teve artística a aponta como um domínio início, supostamente em meados do século basicamente não-humano. A agência XVIII, a formação de uma sociedade específica dos Wauja é materializar esse regional multiétnica, marcada por um ethos conhecimento criativo não-humano comum, a qual integra, além dos Wauja, através de técnicas muito precisas e outros nove grupos de diferentes filiações meticulosas. A capacidade de processar tal lingüísticas – , , conhecimento através de perfeitas e Nahukwá (Carib), Kamayurá e resoluções plásticas e técnicas é o que os (Tupi) e Trumai (de língua isolada). Wauja vêem como seu domínio particular O grafismo dos povos do Alto Xingu no universo de expressão visual foi inicialmente descrito por Karl von den constituído pelos suportes mencionados Steinen no seu clássico Entre os aborígenes acima. No interior do mundo wauja, o do Brasil Central (1940 [1894]). Mais de material artístico não-humano é renovado um século depois de tal extraordinária por uma estética rigorosamente cultivada inauguração etnográfica, o grafismo sob as éticas do respeito, da vergonha e da xinguano continua sendo um assunto generosidade e sob o desejo da perfeição, pouco conhecido, apesar das descrições a qual é reservada primordialmente para parciais sobre quatro dos dez grupos da as ocasiões mais importantes da vida região3. No conjunto da obra etnológica comunitária: os grandes rituais voltados sobre as sociedades indígenas das terras para a chefia e para as alteridades não- baixas da América do Sul, o trabalho de humanas mais poderosas, especialmente Lévi-Strauss sobre a pintura facial “representadas” por flautas, clarinetes e Kadiwéu (1955) é o primeiro a apresentar, máscaras. de modo decisivo, alguns dos desafios Os Wauja2 são um povo de língua teóricos que os sistemas gráficos dessas arawak que habita as proximidades da sociedades lançam à antropologia. Esse margem direita do baixo rio Batovi, na estudo é o marco inaugural de uma linha região ocidental da bacia dos formadores de pesquisa em etnologia amazônica que começou a tomar visibilidade sobretudo 2 O leitor encontrará na literatura xinguana o termo “Waurá”, que é o etnônimo difundido desde Karl von a partir da década de 1980 com a den Steinen (1886 e 1894). Optei por grafar “Wauja” incorporação das reflexões teóricas sobre por este ser o etnônimo auto-atribuído. Os Wauja somam uma população de aproximadamente 360 pessoas, das quais 312 (dados censitários de outubro de 3 Agostinho (1974); Gregor (1982); Coelho (1981 e 2004) residem em uma única aldeia circular com o 1993); Fénelon Costa (1988); Ribeiro (1993) e sistema de praça central e casa das flautas. Monod-Becquelin (1993).

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as cosmologias e as noções de corpo, alma Essas novas formas de vida correspondem, e pessoa4. em sua maioria, às milhares de “roupas” que os yerupoho inventaram para se proteger dos I - Criatividades não-humanas efeitos deletérios do sol. Ao vesti-las, grande parte deles transformou-se em muitas das O que aqui chamamos de grafismo é espécies animais hoje conhecidas. Há ainda para os Wauja um gigantesco universo de “roupas” de yerupoho de natureza monstruosa. expressões visuais sem fronteiras espaço- Neste caso, elas recebem a simples temporais claramente definidas. O yanaiki denominação de apapaatai. Contudo, essas (termo que também inclui as cores) surgiu “roupas” (máscaras) não são uma no tempo em que os animais eram exclusividade dos apapaatai; os Wauja também “gente” e falavam, isto é, quando seus as fabricam, porém ritualmente, com o aspectos anatômicos eram unicamente objetivo de superar um estado patológico grave antropomorfos ou zooantropomorfos e provocado pelos apapaatai. quando eles estabeleciam comunicação O yanaiki foi o dispositivo básico que direta com os humanos. Porém, uma permitiu a singularização de cada espécie mudança cósmica fez com que esses animal e que impediu o caos ontológico que antigos “animais”, denominados yerupoho, teria irrompido com o surgimento do sol, deixassem de ser exclusivamente “gente”. pois o seu calor era capaz de fixar de maneira O aparecimento do sol colocou em curso irreversível e indistinta os corpos dos processos de transformação dos seres yerupoho que não tivessem a proteção das existentes (com exceção dos humanos) e “roupas”. Se nenhuma espécie animal é igual de criação de novas formas de vida, pelo à outra é porque cada “roupa” foi menos quanto aos seus aspectos etológicos anatomicamente desenhada/trançada de e anatômicos exteriores. Seres com as mais acordo com as capacidades criativas e diferentes morfologias apareceram em expressivas de cada yerupoho individualizado. todos os espaços do cosmo wauja: surgiam A arte, a vida e, conseqüentemente, a os apapaatai 5, entidades xamânicas que ordenação morfológica e etológica dos seres estão na origem tanto da doença quanto não-humanos surgiram, em grande parte, do da cura (Barcelos Neto, 2004). labor meticuloso e personalizado representado pelas “roupas”. Portanto, a 4 Vide por exemplo as contribuições de Gow (1988 e 1999); Guss (1989); Lagrou (1998); Reichel-Dolmatoff maioria dos animais e monstros é (1978); Seeger et alli (1979); Seeger (1981); Velthem resultado da agência específica de seres (2003); Viveiros de Castro (1979 e 1986) e a coletânea de artigos em Vidal (1992 org.). antropomorfos (yerupoho) dotados, segundo os Wauja, de prodigiosa inteligência e 5 A noção de apapaatai está muito além dessa referência ontogênica contida no mito do surgimento do sol. Não criatividade artística. há espaço aqui para analisá-la. De modo sumário, As exegeses sobre a mito-cosmologia podemos dizer que os apapaatai estão compreendidos por uma escala de transformações ontológicas múltiplas dizem que o repertório dos motivos e desiguais que os apreende como animais, monstros, gráficos atuais foram majoritária e artefatos, “espíritos”, “heróis culturais”, e/ou xamãs; essa mesma escala, em sua amplitude máxima, inclui, lentamente transmitidos aos Wauja, pelos contextualmente, os próprios Wauja. Para uma leitura apapaatai, através dos sonhos e transes dos aprofundada da noção de apapaatai vide Barcelos Neto (2004) e Viveiros de Castro (2002).

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II - O repertório gráfico e o discurso da criatividade

Os motivos gráficos reconhecidos pelos Wauja expressam-se em quatro tipos de suporte: 1. no corpo dos animais, 2. no Figura 1 - Arakuni. Autor: Aulahu Wauja, 2000. corpo dos humanos (leia-se xinguanos, pois só eles sabem fazer yanaiki corretamente) 7, doentes e dos xamãs. Os desenhos, imagens 3. no dos yerupoho e apapaatai e 4. na cultura oníricas dos tempos imemoriais, são uma material. dádiva dos contatos, em primeira instância A arte gráfica wauja não possui nenhuma maléficos, entre humanos e apapaatai. Os relação semântica direta com o grafismo dos adoecimentos graves e seus processos de animais. Este último é um sistema fechado cura, estes últimos com abundante uso do e fixo – os desenhos da pele das onças jamais tabaco como psicoativo, são os elos migrariam para a plumagem das araras azuis primordiais desse tipo de contato. O ritual, e vice-versa; tanto uma quanto a outra são situação em que os desenhos surgem em “roupas” de formatos e padrões fixos –, enorme profusão e variedade, é o principal enquanto o grafismo wauja é um sistema de elo criativo e produtivo desses contatos. fronteiras abertas e moventes, como a No ritual, o conhecimento iconográfico é própria sociedade xinguana (Menget, 1993 reafirmado e colocado em movimento e Menezes Bastos, 1995). Entretanto, tal como em seu contexto original, quando as abertura e tal movimento ocorrem “roupas” animalescas e monstruosas foram fundamentalmente em direção às alteridades confeccionadas e se puseram a dançar em monstruosas (apapaatai), que conferem à torno e sob o comando de um trio de arte wauja sua natureza transformativa. flautas de madeira conhecidas como Todo o sistema gráfico wauja está Kawoká. Todos os rituais wauja, com menor estruturado a partir da combinação de ênfase para aqueles de caráter funerário e cinco formas visuais: 1. triângulos pós-funerário, estão intensamente focados (retângulos e isósceles), 2. pontos, 3. sobre as alteridades não-humanas círculos, 4. quadriláteros (losangos, (apapaatai e yerupoho). quadrados, retângulos e trapézios) e 5. Além dos desenhos e cores inventados linhas (retas e curvas), que são os pelos yerupoho, existe um outro conjunto elementos gráficos mínimos dessa arte. de motivos gráficos – dentre o qual figura Como em qualquer sistema de arte o motivo mais importante para os Wauja, ornamental, são as combinações precisas denominado kulupiene e difundido na dos elementos mínimos que determinam literatura como merechu (Steinen, 1940) a formação de um motivo. O grafismo – que foi inventado pelo personagem mítico Arakuni (Figura 1) 6. 7 Devido à sua complexidade formal e conceitual, a pintura corporal wauja merece um artigo à parte. Aqui, faço apenas as menções estritamente necessárias para 6 Vide Barcelos Neto (2000 e 2002) para uma versão elucidar processos nos quais as pinturas do corpo e dos completa desse mito. artefatos possuem uma proximidade analítica.

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Quadro I: Motivos gráficos criados pelo xinguanos, em 18848. Segundo os Wauja, personagem mítico Arakuni esses dezesseis motivos são “muito antigos”, treze (ou catorze, a depender da versão) deles foram inventados pelo personagem mítico Arakuni para recobrir a sua “roupa”-cobra (Quadro I) 9. Enquanto Arakuni trançava a sua “vestimenta” com fibras de taquarinha, ele simultaneamente criava as músicas que mais tarde vieram a ser cantadas no ritual pós-funerário Kaumai (ou Kwarìp, na língua kamayurá). O sistema visual wauja possui uma especial abertura para a interpretação plástica, seja de seus temas tradicionais ou de temas estrangeiros10. Ao longo do tempo11, esse fenômeno é responsável por um aumento/ renovação dos repertórios gráfico e tridimensional. No entanto, na mesma 1 Kulupienê Motivo de peixe 2 Kajujuto otapaka Desenho do rosto da medida em que se observa um movimento 3 Kunye-kunye jutogana Asa de mariposa 4 Kupato onabe Espinha de peixe em direção ao acúmulo de motivos, constata- 5 Kutaho onapula Caminho da formiga saúva 6 Mepinyaku Uma planta aquática se um movimento inverso. Ou seja, o 7 Mitseuenê Dente de piranha 8 Pawã poná ou Kupato Literalmente 1 forma ou peixe repertório torna-se tão extenso que muitos 9 Ogana paakai Literalmente pintura do rosto 10 Sapalaku Peça de indumentária feminina motivos são “esquecidos” (ocultados), mas 11 Temepianá Jibóia 12 Wene-wene sucu Rio Wene-wene podem ser posteriormente recuperados. 13 Walamá oneputaku Cabeça de sucuri

wauja utiliza um repertório de 40 a 45 motivos fixos na ornamentação da cultura 9 Esclareço que os motivos de Arakuni fazem parte de material. Há ainda um repertório flutuante um amplo sistema visual, sobre o qual as possibilidades de variações de motívicas que é resgatado de análise extrapolam os limites deste artigo. O leitor encontrará em Barcelos Neto (2002 e 2004) abordagens em situações de maior liberdade complementares a estas. expressiva. Apesar desse extenso repertório, apenas dezesseis motivos 10 O grafismo wauja incorpora, temporariamente e em contextos restritos, letras do alfabeto latino, algarismos gráficos são empregados com freqüência. e alguns emblemas e insígnias da sociedade nacional – Dentre esses, o motivo kulupiene tem sido o motivo do avião Bandeirante, a bandeira do Brasil, os distintivos da FAB, a logomarca dos filmes Agfa, e desenhado com altíssima freqüência sobre o emblema do São Paulo Futebol Clube – como motivos todos os tipos de suportes desde a gráficos. Conforme Coelho (1993: 624), a “maioria dessas inovações não são escolhidas ao acaso, e sim primeira notícia histórica sobre os devido à semelhança entre seus elementos e a arte alto-xinguana”.

8 Vide em Barcelos Neto (2001) as implicações históricas 11 Para esta análise em particular trabalhei com unidades da manutenção e ênfase produtiva sobre dois diferentes sincrônicas de dez anos em uma profundidade diacrônica conjuntos de repertórios gráficos xinguanos de um século.

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Citarei alguns exemplos desse processo, curiosidade e divertimento, dois aspectos que está apenas parcialmente descrito, relevantes para os padrões wauja de começando por uma observação de Vera aceitabilidade e agradabilidade estéticas. Coelho a propósito de Tawapo12, ceramista A cerâmica wauja corresponde a mais wauja conhecedor de um grande elaborada classe de artefatos do sistema de repertório de motivos de representações objetos do Alto Xingu. Seus tipos variam animais: desde minúsculas panelinhas que cabem na palma da mão até enormes panelas de 115 [ele] sempre demonstrou interesse muito centímetros de diâmetro13. Quando vivo em ampliar os limites desse destinadas aos rituais, as panelas são repertório. Assim sendo, na ocasião de recobertas com pinturas cuidadosas e minha partida pediu-me que lhe desse de refinadas que afirmam a eficácia estética que presente algumas fotografias de vasilhas esses objetos devem ter em tais contextos. pertencentes a coleções de museus. Acedi As elaboradas formas tridimensionais e as ao pedido, mas sugeri que fizesse uma originais interpretações individuais nas seleção das que mais lhe agradavam, pois panelas zoomorfas suscitam especial não poderia fornecer a coleção completa. interesse estético entre os Wauja. Por várias Surpreendentemente, a escolha recaiu vezes pude observar crianças e sobre cinco vasilhas zoomorfas entre as adolescentes contemplando esses objetos quais apenas uma não constava de seu e explorando táctil e visualmente os repertório. Acredito que seu interesse não detalhes anatômicos dos animais era tanto pelo repertório como pela modelados na argila. Esse aspecto lúdico- maneira de representar os animais. Os estético ligado às panelas zoomorfas não escolhidos foram os seguintes: Coleção está presente apenas na infância dos von den Steinen VB 2974 (carrapato), VB indivíduos; um wauja de idade madura, ao 2999 (morcego); Coleção Schultz: RG saber que eu tinha encomendado uma 11608 (mutum), RG 11630 (mutum), RG panela-carrapato para a coleção do Museu 11600 (macaco) (Coelho, 1981: 72-73). de Arqueologia e Etnologia da Bahia, resolveu encomendar uma para ele também, O interesse de Tawapo pelas duas simplesmente porque achou bonita e panelas mutum e pela panela carrapato engraçada uma panela modelada com a reflete dois aspectos importantes da forma desse inseto. dinâmica da arte wauja: a variação Os exemplos de Tawapo e da encomenda interpretativa sobre um mesmo motivo do senhor wauja demonstram simultaneamente e a renovação temática. No entanto, para a descontinuidade temporal do repertório e o nossa discussão, a escolha do inseto é interesse em efetuar resgates sobre ele. A panela mais significativa. Representações de carrapato coletada por Karl von den Steinen insetos na cerâmica wauja são quase em 1887 caiu em um fosso de esquecimento, sempre inusitadas e despertam muita mas ela continua absolutamente original, mais

13 Vide ensaio fotográfico sobre a cerâmica wauja na seção 12 “Tauapã” na grafia de Coelho (1981). Artes da Vida desta edição.

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Quadro II: Variações formais do motivo kulupiene movimentos são em grande parte devedores das redes rituais que integram todas as artes (música, dança, ornamentação corporal e artefatos) e as fazem circular. Ao analisar artefatos de coleções xinguanas produzidos entre 1940 e 1998, registrei 23 variações interpretativas do motivo kulupiene (vide oito exemplos no Quadro II) e três possibilidades composicionais desse motivo, cada uma variando de acordo com os tipos de simetria e ritmo. Mas o que tais variações significam para os Wauja? Segundo eles, elas são ditas surgir através dos contatos oníricos de um século depois, exatamente porque não dos xamãs visionários-divinatórios se esqueceu o mais importante: a “alegria” que (denominados yakapá) e dos doentes graves artefatos desse tipo podem despertar. A minha com os apapaatai. Variações como as experiência em campo sugere que esses fossos exemplificadas no Quadro II teriam sido vistas de esquecimento parecem ter profundidades nas “roupas” ou no corpo dos apapaatai que muito menores do que se tem imaginado, o que atacaram o doente. aponta o problema da análise para outra direção, sendo então mais adequado falar de Quadro III: Exemplos de Motivos Gráficos ocultamento do que de esquecimento14. Os conceitos inerentes aos temas são A. Alguns motivos compostos por elementos mínimos iguais: dificilmente esquecidos. A comicidade do tema “panela-carrapato” seguramente sobreviveu nas representações de tantos outros 1. Aluwa tapa 2. Aiyue jata 3. Pala palala 4. Weri weri (pintura de morcego) (pintura de jabuti) (“pintas”) (“círculos concêntricos”) insetos que os Wauja gostam de modelar: besouros, abelhas, gafanhotos, formigas, etc. B. “Motivos” ainda desconhecidos: Assim como as formas de expressão tridimensional, o grafismo também está incluído nos movimentos mais amplos de 5 6 ocultamento, interpretação e renovação motívicas. No caso do Alto Xingu, esses Durante o levantamento de motivos e padrões compositivos do grafismo wauja em 14 Equívocos históricos dessa natureza podem ser 1998, pedi a um dos meus informantes que facilmente cometidos por estudiosos de coleções de museus e museólogos que limitam suas análises ao que identificasse e comentasse algumas formas já é empiricamente muito limitado, o repertório em si, geométricas. Perguntei se as combinações e que desconhecem o universo conceitual específico dos artefatos que selecionaram para seu estudo. Em de formas (“motivos”) de números 5 e 6 do face às atuais condições e qualidade da documentação Quadro III eram conhecidas. Supus que sim, das coleções etnográficas de museus brasileiros, duvido que os estudos de coleções possam avançar sem novas por serem compostas por elementos mínimos pesquisas de campo especialmente voltadas para bastante difundidos (círculo e quadrado) e elucidar os problemas oriundos da própria natureza das coletas e para compreender a dinâmica dos artefatos devido ao uso de um princípio fundamental em seus respectivos sistemas tecnológicos e artísticos.

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da composição gráfica wauja, a circunscrição. “muito bonito”. Ele resolveu então A resposta do informante foi para mim uma reproduzi-lo num cesto cargueiro trançado surpresa. Ele não apenas disse que os com fibras de buriti. Segundo Kamo, a “motivos” 5 e 6 do Quadro III eram novidade foi apreciada e mais cestos foram desconhecidos pelos Wauja, mas acrescentou feitos com esse mesmo motivo por outras que é possível que os apapaatai os inventem, pessoas. O motivo foi identificado como ou que já os tenham inventado, e que os sendo kajujuto otapaka (“pintura do rosto da yakapá talvez um dia os descubram, podendo arara”). À primeira vista, pereceu-me difícil assim transmitir o conhecimento desses reconhecê-lo enquanto kajujuto otapaka. Mas, “motivos” aos Wauja. O informante depois de analisá-lo mais detidamente, acrescentou que só dessa maneira, através da percebi que se tratava de uma variante visão poderosa de um yakapá, ele poderia me formal do referido motivo. A composição dizer se aqueles motivos existem de fato. Esse de Kamo era uma simplificação da grafismo oculto do sonho e do transe nada tradicional representação do kajujuto otapaka: difere do grafismo constantemente em ao invés de três linhas paralelas e três linhas evidência nas panelas, cestos e corpos desde perpendiculares àquelas, Kamo desenhou tempos imemoriais. De fato, eles só estão (trançou) apenas três linhas paralelas separados pela temporária barreira da emolduradas por um quadrado. Uma materialização física. Os yakapá conhecem variação plástica nesse nível é muitos desenhos que jamais foram considerada uma novidade resultante de reproduzidos ou vistos pelos demais contatos com os apapaatai. No entanto, membros de sua comunidade. Esse grafismo a mesma não permanece por muito oculto está guardado na memória dos seus tempo no circuito produtivo, pois ela sonhos e transes. sofre um desaparecimento virtual, sendo Em vários momentos da pesquisa de logo substituída por outras variações, elas campo pude observar as extensões próprias o resultado de um movimento empíricas da idéia wauja de que o universo conceitual para o exterior, ou seja, para as criativo dos apapaatai é transferido para os alteridades não-humanas. A memória sobre domínios humanos através dos yakapá. as variações formais é vaga e os Wauja Essas dádivas artísticas dos apapaatai, raramente se lembram dos nomes das quando interpretadas e exibidas, tornam- pessoas que “primeiramente” fizeram os se patrimônio coletivo. Assim, todas as desenhos “novos”. Aos Wauja, o que pessoas podem fazer uso dos motivos e importa não é se os motivos ou padrões de elaborar seus desenhos de acordo com as composição são exatamente novos, e sim a preferências compositivas vigentes entre os sua permanente circulação, esta apontando Wauja. para dois processos cognitivos básicos da Alguns meses antes da minha primeira arte wauja: “esquecer” e reinventar. temporada em campo (abril e maio de Considero tais variações como partes de 1998), Kamo, um eminente yakapá, sonhou um conjunto oculto de motivos que podem com um apapaatai cuja “roupa” estava emergir de acordo com preferências repleta de um motivo que ele considerou idiossincráticas, as quais, em sua maioria,

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resultam de experimentações formais sobre III - Padrões estético-formais do o próprio sistema gráfico. Esse interesse grafismo exploratório produz o referido repertório de variantes. Sua base produtiva é Em qualquer expressão artística, o constituída por um conjunto fixo de domínio dos processos técnicos é a motivos que, à primeira vista, corresponde condição essencial para a produção de uma aos motivos inventados por Arakuni. obra. Mais do que isso: o domínio das Como bons artistas gráficos, os Wauja técnicas influi diretamente na percepção da também fazem as suas próprias análises, que qualidade da obra e na sua conseqüente foram apresentadas a mim tanto através dos apreciação ou depreciação estética. Para mitos quanto das imagens de suas uma composição gráfica ser considerada personagens. Ao associar cuidadosamente “bonita” pelos Wauja é necessário que ela as duas análises, pude notar que a “roupa”- expresse absoluta qualidade técnica e que cobra de Arakuni é a matriz de todo o seja preferencialmente de difícil execução sistema gráfico. Para chegar a essa conclusão (ehejuapai). foi necessário coletar dezenas de desenhos e submetê-los aos comentários nativos. De desenho em desenho, a relação que os Wauja faziam entre a amplitude total de seu repertório gráfico e a “roupa”-cobra de Arakuni era esclarecida. Apontando para as representações visuais altamente estandardizadas dessa “roupa”, os melhores conhecedores das artes do desenho e do mito diziam: “todos os desenhos estão aqui”. Para os Wauja, Arakuni inventou o

essencial. Os que o sucedem reinventam a Figura 2 - Lateral e fundo externo de uma panela kamalupo sua arte em uma multiplicidade de variações pintada com uma composição gráfica do motivo kupato onabe (espinha de peixe). Fabricada em 1998-9. 78,6 cm de diâmetro formais. no fundo externo. Em suma, os principais motivos gráficos têm sua origem em Arakuni, mas a sua A qualidade técnica corresponde à intensa circulação entre diferentes mundos nitidez, homogeneidade e firmeza do produz novidades que são conceituadas em traço. A dificuldade de execução é uma termos da idiossincrasia e criatividade dos característica que não só confirma a apapaatai. Assim, de acordo com as destreza técnica, mas também a explicações wauja, os desenhos circulam capacidade interpretativa do desenhista. num sistema bipolar entre humanos e Um desenho difícil é definido por apapaatai, e a passagem de um pólo ao outro quatro características, pelo menos. é feito através dos adoecimentos graves, Entretanto, somente em alguns casos do xamanismo e dos rituais de cura todas surgem simultaneamente numa (Barcelos Neto, 2004). mesma composição. Uma característica

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Ainda que o desenhista tenha optado por elaborar seu desenho com um único motivo, ele pode estar diante de um desafio maior do que aquele que optou por uma composição repleta de motivos diferentes. Embora as simetrias e ritmos sejam simples, alguns motivos são complexos, sobretudo o kulupiene e o kupato onabe (espinha de peixe, Figura 2), que são motivos repletos de linhas retas paralelas e/ou perpendiculares. A grande dificuldade Figura 3 - Lateral e fundo externo de uma panela kamalupo reside exatamente em fazer coincidir pintada com uma composição gráfica dos motivos temepianá simétrica e ritmicamente todas as linhas (motivo de cobra jibóia), kulupienê (“peixe”), kuwajata (escama de curimatá) e weri-weri (pontos). Fabricada em 1998-9. 82,5 retas em uma superfície circular ou cm de diâmetro no fundo externo. cilíndrica respeitando uma distribuição fundamental é a perfeita correspondência hierárquica dos motivos. A dificuldade de entre simetria e ritmo (Figuras 2, 3 e 4). execução do desenho funciona como um Outra característica do desenho difícil é grau superlativo de beleza: quanto mais a composição com, no mínimo, três difícil for a execução, “mais bonito” será motivos gráficos diferentes ocupando considerado o desenho ornamental. Um todo o espaço plástico (Figura 4) e desenho vale o conhecimento e o tempo respeitando a distribuição hierárquica dos investidos para torná-lo “bonito”. motivos do centro para a periferia do As características formais próprias do objeto. Nesse tipo de desenho não pode desenho considerado “feio” (aitsa- haver espaços vazios entre os motivos e awojotopapai, literalmente “não-bonito”) suas seções. pelos Wauja são exatamente opostas ao desenho awojotopapai (“bonito”), com o detalhe de que podem ser feitos com os mesmos motivos gráficos em ambos os casos. A característica mais visível do desenho “feio” é a ausência de simetria e ritmo, o que demonstra que o desenhista não sabia (ou não quis) vencer o desafio do dimensionamento proporcional dos motivos no espaço plástico. Às vezes o desenho é simétrico, mas o motivo escolhido é simples demais para ele ser Figura 4 - Lateral e fundo externo de uma panela considerado um desenho realmente bonito. kamalupo pintada com uma composição gráfica dos Portanto, um desenho aitsa-awojotopapai motivos kulupienê (“peixe”), Atujuwá opaka (rosto da máscara Atujuwá), mitsewenê (dente de piranha), kuwajata (“feio”) é quase sempre considerado aitsa- (escama de curimatá) e walamá oneputaku (cabeça de ehejuapai (“não-difícil”). sucuri). Fabricada em 1998-9. 88,2 cm de diâmetro no fundo externo.

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Estudar o grafismo na cerâmica wauja tendo apenas a ornamentação dos artefatos em circulação como material de investigação impõe uma séria limitação devido à rapidez com que as pinturas desaparecem quando as panelas e os torradores de beiju são levados ao fogo. Outro detalhe importante é que as panelas novas são zelosamente guardadas (escondidas, talvez), encobertas por panos velhos para protegerem as pinturas da poeira. Ademais, algumas panelas permanecem sem pintura (biscoito) até poucos dias antes de serem oferecidas como pagamento ou destinadas ao uso da Figura 5 - Composição gráfica para fundo de panela com os motivos casa. Um estudioso de antropologia da arte kulupienê e mitsewenê. Grafite sobre canson, 23x33 cm, 1998. logo perceberá que, entre os Wauja, muito desenhassem em papel as composições do que ele gostaria de ver desapareceu com gráficas consideradas awojotopapai e aitsa- o uso ou está encoberto, pela fuligem, pela awojotopapai. Elas iniciaram, com muito escuridão ou por panos sujos, ou está na interesse, pelas composições “bonitas” memória dos sonhos e transes. Tais indícios (Figuras 5 e 6). Quando eu solicitei que sugerem que o processo de produção dos fizessem desenhos “feios”, disseram-me de desenhos ocupam um lugar mais central do imediato que não sabiam fazer desenhos que a sua apreciação: trata-se, muito “feios”, quer dizer: não sabiam criá-los. provavelmente, de uma arte menos para Mudei o sentido do meu pedido sugerindo ser vista do que para ser feita, ou melhor, que elas tentassem se lembrar de desenhos para ser vista por um tempo muito curto e/ou em situações apoteóticas. A fim de obter uma documentação mais extensa e precisa sobre as categorias estéticas wauja, solicitei a um grupo de quatro ceramistas do sexo feminino15 que

15 Entre os Wauja, tanto homens quanto mulheres dominam as técnicas de fabricação e pintura da cerâmica. As mulheres iniciam seu aprendizado na reclusão pubertária apenas produzindo pequeninas panelas. Os homens aprendem modelagem depois dos 30 ou 40 anos de idade, quando geralmente já participam de um circuito de prestações rituais que os obriga a produzir panelas-pagamento, ou, mais raramente, quando se interessam espontaneamente pela arte da cerâmica. Mesmo não dominando as técnicas de modelagem, a maioria dos homens é capaz de fazer os Figura 6 - Composição gráfica para fundo de panela com os desenhos geométricos que decoram as panelas, mas motivos kunye kunye jutogana e walamá oneputaku. Grafite sobre segundo competências variadas. canson, 23x33 cm, 1998.

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desenhos, elas não contiveram seus risos: aquilo parecia realmente ridículo aos olhos de um Wauja. Esses dois desenhos, de simetria incipiente e feitos com motivos gráficos bastante incomuns (pojojeká e ahonapu, respectivamente “rabiscos” e “caminho”), diferenciam-se expressivamente dos outros desenhos considerados “bonitos”, feitos por essas mesmas ceramistas. Ao comparar os quatro desenhos (5, 6, 7 e 8), é notável como tal reduzido número de exemplos consegue descrever as bases estéticas sob as quais o sistema gráfico wauja está Figura 7 - Composição gráfica para fundo de panela com o motivo pojojeká. Grafite sobre canson, 23x33 cm, 1998. assentado. Mais exemplos apenas confirmariam que, entre os desenhos “feios” alguma vez vistos e que usassem “bonitos” e os “feios”, há uma sensível suas memórias visuais para reproduzi-los escala de valores que vai da simetria à nos papéis que eu lhes oferecia. Então, com assimetria. menor relutância, mostraram-me, ao longo Volto às minhas informantes- de sessões de desenhos que duraram desenhistas que disseram não saber fazer algumas semanas, aquilo que os Wauja (i.e. criar) desenhos “feios”. Isso talvez seja consideram fora dos limites de a indicação de que a fealdade é algo fora aceitabilidade e agradabilidade estética. do espaço imaginativo que se concebe para As Figuras 7 e 8 são exemplos resultantes a criação artística. A fealdade existiria por desse meu pedido. Terminados os si, seria da ordem do dado, posicionando- se inversamente à beleza, que seria da ordem do construído – do controle e do contato com o mundo extra-humano a partir da doença, do longo aprendizado e do labor meticuloso, portanto. Noto que quando entreguei os papéis às desenhistas elas começaram pela execução de composições consideradas “bonitas” (Figuras 5 e 6), e foram desenho a desenho – em uma seqüência de aproximadamente doze pranchas para cada desenhista – distanciando-se dos padrões de beleza até alcançarem completamente o nível dos desenhos “feios” (Figuras 7 e 8), chegando a uma idéia de ineficácia estética. Figura 8 - Composição gráfica para fundo de panela com o motivo pojojeká. Grafite sobre canson, 23x33 cm, 1998.

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Para entendermos questões de performers). Mais adiante voltaremos socialidade, envolvidas na produção de rapidamente a esse assunto17. objetos graficamente decorados, em De volta às pranchas das informantes- âmbitos rituais ou não, as categorias de desenhistas. Somente alguns dias mais “bonito” e “feio” devem ser transpostas, tarde, quando uma jovem aproximou-se respectivamente, para as noções de eficácia cheia de curiosidade a fim de olhar os e ineficácia estéticas. Ambas as noções, desenhos que eu estava a organizar e tomadas aqui como categorias analíticas, comparar, pude compreender melhor as são emicamente descritas pelos termos suas evitações em produzir desenhos apapalai-iyajo (objetos autênticos, “feios” e, depois, o deboche feito sobre eles. verdadeiros, legítimos) e apapalai-malu~ A jovem ficou espantada diante dos (objetos insuficientes, imprestáveis, desenhos “feios” e, percebendo que não falsos). Os objetos-iyajo e -malu~ havia ninguém por perto, atrevidamente me movimentam-se de modos distintos. Os perguntou quem os tinham feito. Respondi- primeiros migram da periferia da aldeia lhe que não poderia revelar a identidade para o centro (ou em certos casos são das pessoas. Muito segura de si, a jovem feitos aí mesmo) e depois retornam para a disse que não precisava saber, pois aqueles periferia, em geral, para as casas dos desenhos só podiam ser, segundo ela, obras “donos” rituais. Já os objetos objetos-malu~ de pessoas sem qualquer discernimento. raramente saem do lugar (ou seja, são Seu julgamento não se aplica às desenhistas feitos em seu próprio local de uso), e que os fizeram, pois, com cuidado e quando há alguma circulação, eles a fazem inteligência, elas conseguiram traduzir pela linha periférica da aldeia 16. Se graficamente aquilo que está no terreno da acionarmos uma chave stratherniana, ineficácia estética e explicar as relações notaremos os objetos eficazes entre as características formais e as encapsulados por uma “socialidade política” concepções estéticas no âmbito do desenho (Strathern, 1988: 96-97), na qual eles têm decorativo geométrico. uma participação ativa na produção de A dinâmica expressiva idiossincrática imagens de “nobreza” e prestígio político. no sistema gráfico wauja permite notar Todavia, eles também estão encapsulados uma relação mais ou menos “frouxa” por uma “socialidade doméstica”, o que os entre as regras do desenho “bonito” e a coloca numa posição de estreita ação concreta de cada desenhista. Este intersecção entre ambas as “socialidades”. é um sistema de limites expressivos Ou seja, os objetos eficazes são tanto uma razoavelmente extensos e de rigidez questão de ações coletivas (aqui lidas como moderada, digo isso pensando como base objetivos comuns e gerais de produção comparativa o sistema gráfico Kayapó- ritual) quanto de relações particulares (aqui Xikrin, tal qual descrito por Lux Vidal lidas como as trocas, equilibradas ou não, (1992). Ultrapassar os limites do modelo entre um patrocinador ritual e seus tradicional – este sendo precisamente os

16 Há, como veremos a seguir, uma exceção, que é a venda de objetos esteticamente ineficazes para as lojas 17 Para um aprofundamento sobre o mesmo, ver Barcelos de artesanato. Neto (2004: capítulo 7).

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desenhos de Arakuni, o próprio modelo por ventura, tenha feito pinturas “feias”. mítico do sistema gráfico – leva à produção Dificilmente um deles faria um de desenhos muitas vezes distanciados dos julgamento estético explícito sem antes padrões de eficácia estética wauja. É o seu saber exatamente quem executou a obra, enquadramento numa escala gradativo- mesmo se intimamente a considerar contrastiva de valores estéticos que “bonita”. As formações de duas coleções permite criar distinções entre as esferas etnográficas, uma em 1998, para o Museu rituais e domésticas de circulação dos de Arqueologia e Etnologia da Bahia, e a objetos decorados. outra em 2000, para o Museu Nacional Os aspectos plásticos do desenho de Etnologia de Lisboa, ajudaram-me a simétrico e ritmado e do desenho entender essas atitudes e os espaços sociais assimétrico e sem ritmo só podem ser de circulação dos objetos esteticamente tomados em consideração para uma eficazes e ineficazes. etnoestética quando eles passam a marcar Os rituais wauja, por menores que e a afirmar o próprio lugar da beleza na sejam, geram pagamentos que variam socialidade wauja. Esse lugar é preenchido desde o mínimo de três panelas por uma idéia de que a beleza, mais do que grandes (tipo kamalupo) até quarenta produto, é algo que produz relações por panelas de tamanhos menores (tipo meio de uma interação ativa entre a makula) e variados. Poucos são os distribuição de poderes rituais e suas objetos passíveis de compor uma contra-prestações. lista de pagamento, ademais só As diferenças entre os quatro desenhos podem ser incluídos aqueles de acima (Figuras 5, 6, 7 e 8) apontam que as primeira qualidade. Panelas são os características próprias da beleza gráfica principais (ou muitas vezes os expressam-se na simetria e no ritmo, mas únicos) objetos que os Wauja dispõem estes são os aspectos de reconhecimento como pagamento em rituais formal que os Wauja me apontaram depois interaldeões. Soma-se a isso o fato de de muito perguntar e comparar o corpus que os anfitriões de outras aldeias sempre venho reunindo desde 1994. Resta agora esperarem como pagamento dos Wauja explorar os contextos em que beleza e suas kamalupo, pois, conforme já fealdade adquirem saliências sociais. mencionado na literatura (Agostinho, 1974; Heckenberger, 1996) eles são os IV - Os lugares sociais da beleza e únicos que, no Alto Xingu, fabricam as da fealdade grandes panelas usadas para cozinhar o caldo venenoso da mandioca. Os Wauja possuem vivo interesse em Para os Wauja, não constitui um problema observar desenhos e pinturas e avaliá-los se peças-malu~ 18 são destinadas aos museus, à em silêncio, para si próprios. Apreciadores discretos, raramente ofenderiam com seus 18 Os objetos malu~ (falsos, imprestáveis, incapazes, julgamentos alguém que entre eles não ilegítimos) não possuem eficácia estética, portanto possui competência para pintar, ou que, não podem participar de contextos rituais. Eles são também chamados de “paraguai”, em alusão aos objetos de baixa qualidade contrabandeados do Paraguai.

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Artíndia ou às lojas de artesanato19, o que o início, os Wauja sabiam que as panelas elas não podem é servir de pagamento aos destinavam-se a um museu. Como a “donos” de rituais ou aos xamãs visionário- orientação do Museu Nacional de Etnologia divinatórios (neste último caso, a alta de Lisboa era pela coleta de artefatos com qualidade do pagamento tem uma relação marcas de uso, perguntei aos Wauja se eles direta com a efetiva recuperação do doente). podiam vender suas panelas pretas de Aliás, os lugares acima mencionados podem fuligem. Logo percebi que as únicas que eles naturalmente receber peças “feias”, pois, tinham para substituir aquelas eram as suas como me dizia o chefe Atamai, os brancos panelas destinadas a pagamentos rituais. “não entendem nada mesmo do nosso Efetuar tais substituições pareceu-me uma desenho”20. decisão que os Wauja dificilmente tomariam. Na formação da segunda coleção, Assim, na primeira viagem (fevereiro a abril confrontei-me com maior intensidade com de 2000), consegui a compra de apenas duas a questão das fronteiras de circulação dos kamalupo. Uma tinha sido deliberadamente artefatos e da sua valoração estética. Desde feita para a venda, pois a sua dona queria comprar uma máquina de costura. A outra

19 Vale aqui uma breve contextualização das foi encomendada e pude pedir que fosse categorizações do sistema de objetos no âmbito das confeccionada e pintada tal qual as panelas- relações com os brancos. Há, no Alto Xingu, um estilo de mercadorias especialmente inventado para suprir, pagamento para os rituais. por meio de vendas ou trocas, as necessidades dos índios A aquisição de panelas grandes foi uma por bens industrializados. Muitos objetos vagabundos ou descartáveis levados pelas centenas de brancos que tarefa que se tornou mais difícil ao longo passam pelo Parque todos os anos já têm seus da formação da coleção. Na segunda correspondentes no artesanato local. O volume desse comércio tem crescido anualmente, abrangendo uma viagem (junho a agosto de 2000), notei que diversidade cada vez maior de produtos. Recentemente, os Wauja tinham evitado me mostrar suas uma família wauja trocou um conjunto de máscaras “paraguai” – noto que essa categoria, que tem imediata kamalupo remanescentes. As panelas equivalência semântica com o afixo-modificar -malu~, kamalupo esteticamente eficazes, objetos de é extremamente operante – por um gerador usado para assistir televisão. Apesar desse imenso comércio, circula meu enfoque de coleta, já nascem no Alto Xingu a idéia de que as coisas “originais”, “de potencialmente para ser objetos rituais: é verdade” (iyajo), devem ser preservadas do comércio com os brancos. Mas, se forem solicitadas por estes, as no contexto do ritual que elas adquirem, tais coisas “originais” deverão ser pagas “com muito sob a forma de pagamento, a plenitude dinheiro, com barco, motor, Toyota, placa solar, moto- serra”, o que indica que não há nenhuma idéia desse status. Em geral, as panelas hegemônica nesse sentido. Não obstante, os limites esteticamente ineficazes são aquelas que desse comércio são virtual ou, às vezes, concretamente controlados pelos chefes mais tradicionais a fim de não têm um dono previsto, portanto elas preservar, sobretudo, os rituais das flautas Kawoká e as poderão ser usadas na própria casa onde canções xamânicas. foi fabricada – ou seja, elas não percorrem 20 Claro que não são todos os brancos que recebem objetos- o circuito periferia-centro da aldeia- malu~. Atamai refere-se aqui ao branco “médio”, cuja periferia, que caracteriza a circulação dos relação com os índios é mediada por variados agentes, governamentais ou não. Há, obviamente, várias lojas objetos de pagamento ritual –, vendidas com belíssimos objetos wauja, mas isso não quer dizer aos brancos ou trocadas por outros objetos que eles sejam necessariamente de natureza-iyajo (“autênticos” ou de origem ritual). Muitos desses de valor semelhante ao delas. Sua ineficácia objetos são peças de “arte turística” que chegaram a estética não diminui sua funcionalidade, um nível de refinamento insistentemente exigido pelas próprias lojas.

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mas limita sua inserção em contextos mona 21. Do ponto de vista wauja, a solenes, como os rituais interaldeões ou os produção de desenhos “bonitos” gera rituais xamânicos de resgate da alma de um a satisfação estética dos apapaatai. doente em estado grave. Portanto, cabe aos desenhos contribuir Os Wauja têm claramente a para o estado de kotepemonapai (alegria). preocupação de distinguir esteticamente Muito do esforço das festas de os objetos feitos como pagamento ritual apapaatai objetiva produzir esse estado, dos demais objetos. Num contexto como o qual, ao permitir subtrair a o de uma festa de apapaatai, uma panela- agressividade22 originada pela agência pagamento precisa seguir as expectativas patológica dos apapaatai e ao wauja de eficácia estética: motivos direcionar a ação ritual no sentido da complexos dispostos em perfeita simetria domesticação destes, enseja a cura do numa superfície circular-cilíndrica, doente. É a beleza que cura. demonstrando um alto grau de domínio No mundo xinguano, a circulação de objetos do repertório e das técnicas. As panelas belos é um sinal de enobrecimento tanto de quem devem ser pintadas desse modo, oferece quanto de quem recebe. Os Wauja levam sobretudo, em respeito aos apapaatai e ao extremamente a sério essa proposição, a “dono” ritual que as recebe como ponto de lançarem certas coisas “feias” pagamento. Artefatos esteticamente para o campo conceitual da feitiçaria. Eles ineficazes não contribuem para o bem- fazem questão de enfatizar que seus objetos estar do doente (ou do ex-doente, caso de uso cotidiano, recebidos como seu estado já tenha se normalizado) e pagamento ritual, foram “belos” um dia. nem para o contentamento dos apapaatai. Como se pode facilmente notar, passado Produzir coisas-malu~ como pagamento algum tempo de uso, a fuligem apaga por ritual é altamente condenável. completo a pintura das panelas, a poeira e Ao serem indagados sobre o porquê da pintura, os Wauja não oferecem 21 Categoria social de indivíduos que assume a persona muito mais do que lacônicas respostas, dos apapaatai em rituais de cura e se responsabilizam pela produção de “objetos de luxo”, roças, canoas e do tipo: “é pra ficar bonito”. E por que demais artefatos que sustentam a continuidade dos tem que ficar bonito? “Para ficar próprios rituais que eles performatizam. A responsabilidade de um kawoká-mona é tão grande alegre”, respondem. Grande parte da quanto a de um xamã que resgata almas raptadas pelos produção gráfica wauja é, na verdade, apapaatai. Em uma abordagem musicológica, Piedade (2004), mostra que o principal flautista de Kawoká um esforço para gerar o estado de (Kawoká topá) jamais pode errar a melodia, sob o kotepemonapai (alegria), o qual é um risco de “morrer” (i.e. ficar gravemente doente) ou de sofrer graves infortúnios. Errar a melodia pode ainda efeito de tudo o que é belo. Produzir agravar o estado do doente ou, em hipóteses mais desenhos “feios” em contextos como remotas, matá-lo. o dos rituais de apapaatai pode pesar 22 O controle da agressividade tem sido um importante negativamente para o desenhista; por tema da pesquisa antropológica no Alto Xingu, isso, apenas pessoas com reconhecida exatamente por ele ser, no pensamento nativo, objeto das mais refinadas elaborações sociológicas, as quais competência estão aptas a assumir a foram descritas a partir da noção de ifutisu, que engloba responsabilidade de ser kawoká- valores de respeito-generosidade-pacifismo (Basso, 1973; Gregor, 1994 e 2001; Viveiros de Castro, 1977; Barcelos Neto, 2004).

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a terra impregnam nos cestos, e as pinturas patrocínio de Atamai duram desde 1993, das pás de beiju e desenterradores de pelo menos. No ano de 1999, quando a mandioca descascam, dando a impressão grande casa foi concluída, o chefe recebeu de que esses objetos nunca foram pintados. dos seus kawoká-mona cinco panelas e uma Porém, a sua beleza pretérita fica registrada roça como pagamentos rituais. Cada uma na memória de quem ofereceu e de quem das panelas corresponde a um dos cinco recebeu. Sim, a beleza também está ligada tubos que invariavelmente constituem o ao ato. Ninguém está preocupado em conjunto dos clarinetes Tankwara, e cada conservar os objetos porque eles são belos, tubo corresponde a um kawoká-mona, e sim em repetir essa beleza numa produção formando, portanto, um quinteto musical. contínua de objetos. A preocupação maior Os clarinetistas ofereceram ao chefe as é em oferecer belos objetos como panelas-pagamento em ordem decrescente pagamento ritual. de acordo com o tamanho do tubo que cada A dedicação ao ritual pode tomar um tocava. Este exemplo demonstra como mais da metade da vida de um indivíduo a “obsessão formal” wauja integra – isso se ele decidir ter uma vida ritual estruturalmente domínios visuais, musicais intensa, o que é bastante comum entre os e coreográficos a um só tempo. Wauja. A posição social de “dono” Das cinco panelas que mencionei acima, (patrocinador) de rituais de apapaatai três (Figuras 2, 3 e 4) continuavam intactas, implica vários investimentos a médio e guardadas no interior da grande casa de longo prazos, como o plantio de roças e a Atamai, até a minha saída do campo em retenção de genros e filhos em uma mesma outubro de 2000. Elas são objetos da mais unidade residencial. O “dono” de uma alta eficácia estética wauja. Esta qualidade festa de apapaatai, que é sempre um ex- estética das panelas, claramente doente, deverá, durante todo o ciclo da personalizada em torno da figura do chefe festa, alimentar seus kawoká-mona e estes Atamai, relaciona-se a seu contexto: a festa deverão retribuir o alimento recebido com dos clarinetes-apapaatai Tankwara. Apenas artefatos e/ou trabalho, e executar as os artefatos rituais atingem tais níveis de performances rituais específicas dos excepcionalidade gráfica, o trocano (Pulu apapaatai que eles “representam”. Pulu), os grandes pilões de Yamurikumã, os Tankwara, um clarinete-apapaatai, tem troncos funerários do Kaumai (ou Kwarìp, atualmente o chefe Atamai como um dos na língua kamayurá), as máscaras Atujuwá seus “donos” rituais. Tankwara, através dos e as adolescentes recém saídas da kawoká-mona, construiu, para o referido reclusão23, através das pinturas aplicadas chefe, uma casa com todas as insígnias de em seus corpos. chefia: dimensões significativamente As jovens reclusas passam até dois anos superiores às demais casas, frisos preparando-se para o dia em que sairão para decorativos no interior de toda a casa e dançar num ritual interaldeão e, logo em enfeites suspensos (na verdade, troncos com raízes) amarrados na parte superior 23 O leitor encontrará, nas monografias e artigos de externa. As atividades de Tankwara sob o Gregor (1970 e 1982) e Viveiros de Castro (1977 e 1979), descrições e análises detalhadas sobre o complexo xinguano das reclusões.

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seguida, para o casamento. A pintura e os enquadrado como uma noção wauja de adornos são as últimas coisas que elas cultura (Ireland, 2001). recebem no dia da festa. Nenhuma outra Voltando ao domínio da circulação ritual mulher além das adolescentes ostentará o das kamalupo, noto que a minha dificuldade motivo kulupiene, o mais “belo”, segundo em adquiri-las foi uma resposta a minha os Wauja. Aliás, na festa do Yawari condição de estrangeiro. Eu, branco, (caracterizada por duelos rituais com totalmente marginal ao sistema ritual, não dardos), a que serve de objeto para esta partilhava dos laços sociais que me análise, todas as jovens recém saídas da permitiriam adquirir os genuínos artefatos reclusão possuíam perfeitas pinturas do do mais alto valor estético wauja. Embora kulupiene. As mulheres que já passaram por os Wauja reconheçam a equivalência entre essa experiência devem ficar “menos valor monetário e valor/eficácia estética, bonitas” – noto enfaticamente que os e como bons vendedores de artesanato Wauja dificilmente diriam isso –, pois a procuram usá-la da melhor maneira, há beleza das reclusas deve ser incomparável. contextos em que essa lógica é totalmente Tal como entre os Piro (Gow 1999), a falha. Como eu tinha o objetivo de recolher reclusa wauja incorpora as dimensões objetos da alta pintura wauja para a coleção máximas da beleza. do Museu Nacional de Etnologia de Como disse antes, o mais importante Lisboa, consultei o chefe Atamai sobre a para os Wauja em termos de produção possibilidade da venda, de acordo com um gráfica é o conjunto-matriz de motivos preço que ele estipularia, das suas três representado pela “roupa”-cobra de panelas de Tankwara remanescentes. Ele Arakuni. Aliás, é por uma razão explícita disse que não poderia vender nem mesmo que os desenhos de Arakuni são chamados uma só: “isso é pagamento de Tankwara, não de yanaiki-iyajo (“desenhos de verdade”). posso desrespeitar quem está me ajudando, se eu Em se tratando de artefatos e pessoas fizer isso eu morro”. O que estava em questão integradas em solenidades distintas das eram valores éticos muito superiores a uma festas e “brincadeiras”, a utilização do possível equalização monetária, pois a yanaiki-iyajo é indispensável para expressar venda das panelas teria como conseqüência a mais alta eficácia estética segundo o a infração de um sistema moral que sustenta pensamento wauja. Nessas ocasiões, os o próprio status do chefe e a sua reprodução desenhos de Arakuni, especialmente os social. motivos kulupiene e kupato onabe, são Frustrada a tentativa, como tantas reproduzidos com imensa estabilidade outras, resolvi encomendar uma pintura plástica e fidelidade a um pequeno número especial para uma panela nukãi ou makula de padrões compositivos. Neste caso, há ainda totalmente biscoito. Depois de muita um modo de produção dos desenhos que busca, encontrei um indivíduo que tinha uma restringe certas liberdades criativas makula em condição de biscoito, e que é ao individuais. Tal modo produtivo reflete o mesmo tempo um excelente desenhista. conservadorismo estético wauja, ele Pedi que ele reproduzisse o desenho kupato próprio um emblema do que poderia ser onabe da panela de Tankwara de Atamai

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(Figura 2). Fomos até a casa do chefe para Artigo aceito para publicação em 14 que o desenhista “contratado” observasse de dezembro de 2004. o exato padrão composicional que eu queria para o kupato onabe. No dia seguinte, o Bibliografia encontrei, na área de luz da porta frontal da casa de Atamai, a copiar, em um pedaço de AGOSTINHO, Pedro. Kwarìp. Mito e papel, o desenho da panela. Quando ele me ritual no Alto Xingu. São Paulo: EPU, viu por ali, apenas levantou os olhos e me EDUSP, 1974. disse baixinho, em português, que estava “aprendendo” (i.e. estudando) o desenho. BARCELOS NETO, Aristóteles. Panelas Ele próprio parecia estar fascinado com a que cantam e que devoram: a cerâmica qualidade da composição gráfica que tinha Wauja. In: BRITO, J. P. (org.), Os Índios, diante de si. Na tarde do dia posterior, teve Nós. Lisboa: Museu Nacional de lugar, na sua casa, o processo de pintura da Etnologia, 2000. p. 136-153. panela biscoito, delicadamente lisa, uma peça de modelagem e cozimento perfeitos. BARCELOS NETO, Aristóteles. Em duas horas e meia de meticuloso Apontamentos para uma iconografia trabalho, toda a superfície branca externa histórica xinguana. In: FRANCHETTO, converteu-se em uma obra-prima repleta de B. e HECKENBERGER, M. (orgs.). Os um só motivo, e o interior e o lado superior povos do Alto Xingu: história e cultura. Rio da borda achatada, característica típica das de Janeiro: Editora UFRJ, 2001. p. 193- panelas makula, inteiramente pretos. Aliás, 218. essa panela foi pintada com a melhor e a mais difícil das técnicas de pintura, aquela BARCELOS NETO, Aristóteles. A arte que emprega o sumo da casca de uma árvore dos sonhos: uma iconografia ameríndia. chamada mawatã. Ao fim do trabalho, notei Lisboa: Assírio & Alvim, Museu que o desenhista tinha deliberadamente Nacional de Etnologia (Colecção corrigido todos os pequenos defeitos do Coisas de Índios), 2002. desenho que lhe serviu anteriormente de modelo, demonstrando a eficiência do seu BARCELOS NETO, Aristóteles. estudo. Apapaatai: rituais de máscaras no Alto Dois dias antes da minha partida, Xingu. Tese de Doutorado em perguntei se ele embalaria a panela no cesto Antropologia Social, Universidade de cargueiro que eu tinha lhe oferecido São Paulo, 2004. especialmente para isso. Com um certo acanhamento e sem dar qualquer explicação, BASSO, Ellen Becker. The Kalapalo disse-me simplesmente que não venderia Indians of Central . New York: mais a panela para o Museu. Voltei sem a Holt, Rhinehart & Winston, 1973. bela encomenda, que ficou para trás, guardada nas entranhas escuras da casa onde COELHO, Vera Penteado. Alguns ela nasceu, a espera de algum ritual. aspectos da cerâmica dos índios Waurá.

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