A TRILOGIA “RE” DE E A ABERTURA POLÍTICA DO BRASIL NOS ANOS 1970

RESUMO: O trabalho apresenta uma análise de três discos de Gilberto Gil da segunda metade da década de 1970, Refazenda (1972), Refavela (1975) e Realce (1979). Os álbuns formam a trilogia “Re” e podem ser ouvidos como uma unidade que tematiza tanto as transformações sócio-políticas da referida década quanto a formação musical do artista. Em Refazenda o rural é retratado pela ótica do impacto da modernização e da chegada da sociedade de consumo naquele espaço, mas também numa perspectiva contracultural de conexão do homem com a natureza. Já Refavela, as orientações afro-americanas do compositor. O disco apresenta uma conexão internacional com o movimento terceiro mundista e com a luta por reconhecimento negro dos anos 1970. Já Realce, que fecha a trilogia, assimila a abertura política do Brasil e a utopia da festa, assim, como os outros discos a temática comportamental está presente em um momento de pulsão da esfera pública brasileira em torno do almejado restabelecimento da democracia.

Durante a segunda metade da década de 1970 Gilberto Gil gravou três importantes discos: Refazenda (1975), Refavela (1977) e Realce (1979), os três álbuns formam uma trilogia. Conectados pelo sufixo RE, os discos refletem uma fase de consolidação da obra do autor por meio de um retorno aos fundamentos de sua formação. A trilogia também pode ser ouvida como trilha sonora das transformações sócio-política dos anos 1970, problematizando questões político sociais da década como o processo de urbanização, a ascensão de uma cultura negra/black no Brasil, as tensões políticas da ditadura e a luta pela reabertura política no país. Embora cada disco foque em uma temática, a trilogia pode ser ouvida como uma unidade que permite compreender como o compositor tratou as transformações de seu tempo, bem como, sua obra adentra na memória dos anos 1970. Partimos da ideia de que o compositor/autor representa é um organizador cultural do seu tempo, não se trata de compreender como a obra reflete a realidade social, mas de buscar o social dentro na estrutura da própria obra. Nesta perspectiva o compositor tem a capacidade de incorporar o dado social na obra, e com isso, objetivar esteticamente seu tempo. A configuração da obra sedimenta a estrutura social revelando as transformações e ritmos da sociedade. Para Napolitano (2001), a MPB, que se consolida nos anos 1970, revela as marcas ambíguas da classe média, herdeiros de uma ideologia nacionalista no campo político e ao mesmo tempo abertos a uma cultura de consumo cosmopolita. Assim, imagens de modernidade, liberdade e justiça social impregnam as canções, sobretudo no momento mais autoritário do regime civil militar. O ouvinte padrão de MPB, jovem de classe média projetou no consumo da canção os valores de sua classe. A MPB, mais do que reflexo das estruturas sociais, foi um ponto fundamental na configuração do imaginário sócio-politico da classe média progressista submetida ao controle do Regime Militar. Tal perspectiva é compartilhada por José Miguel Wisnik(2005). Conforme demonstra o crítico, os principais nomes da música popular brasileira dos anos 1970 formaram sua carreira na década anterior, assim, seriam artistas que vivenciaram o AI-5 como um trauma. Neste sentido, suas canções possuem um comentário sobre o regime, expressam assim uma resistência ao poder. É importante salientar que a ideia de resistência poderia funcionar inclusive como valor agregado a determinados discos da época. Mesmo parecendo menos vendável que os chamados artistas comerciais, a MPB oferecia prestígio às gravadoras, entrando em um círculo de consumo próprio do capitalismo brasileiro, um mercado relativamente restrito com produtos de alta capitalização e valor agregado. Isto possibilitou uma maior liberdade criativa aos músicos, como observaremos na presente trilogia. A trilogia Re, gravada logo após o retorno do exílio do artista, apresenta uma perspectiva pós-tropicalista. Pode-se observar um assentamento das conquistas estéticas do tropicalismo, bem como uma reflexão sobre a própria carreira artística do músico, um dos grandes expoentes do movimento. Gil conecta o seu processo de amadurecimento artístico aos processos de transformação histórico sociais pelos quais passava o país, assim, a experiência individual do artista se amalgama a uma memória histórico social conectando sua trajetória a uma história pública. Como se sabe, o tropicalismo retomou de maneira singular a relação entre Brasil arcaico e o Brasil urbano. O eixo do movimento buscava uma reelaboração das relíquias do Brasil de maneira paródica e fragmentada, de maneira a construir uma ideia de nação onde o arcaico e o moderno se entrelaçam e se retroalimentam. Assim, embora de continuidade ao gesto tropicalista os discos não se incorporam totalmente os princípios do movimento. Como já referido, há um assentamento das posturas tropicalistas expresso numa contensão do excesso sonoro, bem como numa perspectiva menos fragmentada de Brasil. É como se Gil buscasse dar ordem e sentido aos fragmentos das “relíquias do Brasil” já anunciadas no Tropicalismo. É importante atentar que o prefixo Re, que conecta os três álbuns, apresenta uma reflexão sobre a relação entre a modernização do país e determinada tradição popular. Há nos discos uma perspectiva crítica ao processo de modernização conservadora operada pela ditadura militar, mas também uma aposta em um novo processo de modernização democrático ancorado numa tradição popular rural e negra. Com isso, Gilberto laça um olhar sobre as transformações da sociedade brasileira, apresentando o outro lado da modernização em consonância com uma visão popular otimista. As tradições populares seriam, por assim dizer, um remédio ao conservadorismo das classes dominantes tradicionais. Comentando seu disco Refazenda, Gil afirmava que o Re significava uma “marcha ré”, (GIL, 2018) porém a ideia não se confunde com uma perspectiva retrograda, mas sim de retomada. O compositor buscava se conectar com sua formação musical primária, fundamentada na cultura sertaneja rural, para explorar temas interrompidos com o final do movimento Tropicalista. A relação entre tradição rural e modernidade urbana é o tema do primeiro álbum da trilogia. Como diria o compositor em entrevista ao Canal Brasil:

Há vários elementos que convergem para o desejo e o gesto do Refazenda, primeiro as minhas origens propriamente ditas lá na infância, no sertão da Bahia, na região da catinga, vivendo profundamente essa cultura do homem sertanejo , do coro da vida catingueira, do folk nordestino, tudo isso está lá minha grande admiração e encantamento com Luiz Gonzaga e pelos mestres da música nordestina. Depois o desembocar disso tudo no tropicalismo, o tropicalismo teve uma vertente (...) Torquato era de origem nordestina, Capinan, todo mundo catingueiro, tudo sertanejo. Já no meu primeiro trabalho pré-tropicalista isso está muito claro (...) Louvação, Procissão. Havia portanto, uma vontade, nesse disco Refazenda, de retomar o tropicalismo interrompido e contribuir com as novidades todas do mundo rock, do mundo pop, pra uma visão renovada da música nordestina. (GIL, 2018)

Refazenda faz alusões as canções nordestinas, a cultura sertaneja é apresentada com arranjos contemporâneos da época. Foi neste disco que Gil consolidou sua parceria com Dominguinhos, reconhecido sanfoneiro e continuador da tradição de Luiz Gonzaga. É importante notar que Dominguinhos também possui uma perspectiva moderna da tradição, o sanfoneiro é reconhecido como um modernizador da linguagem do forró e no uso da sanfona no Brasil. Em seus arranjos, Dominguinhos usa acordes jazzísticos pontuados por sétimas e nonas, além de dissonâncias e escalas de blues, apresentando assim, uma linguagem afinada com certa ideia de modernidade musical da época. A influência de Luiz Gonzaga é clara na formação musical de Gil como afirma no seguinte relato:

O primeiro fenômeno musical que deixou um lastro muito grande em mim foi Luís Gonzaga [sic]. Em grande parte pela intimidade que a música de LG teve comigo. Eu fui criado no interior do sertão da Bahia, naquele tipo de cultura e de ambiente que forneceu todo o material para o trabalho dele em relação a música nordestina. Uma outra coisa bacana no Luís Gonzaga – e a consciência disso realmente só veio depois, quando eu já especulava em torno dos problemas da MPB – foi o reconhecimento de que LG foi também, possivelmente, a primeira grande coisa significativa do ponto de vista da cultura de massa no Brasil. Talvez o primeiro grande artista ligado à cultura de massa, tendo sua música e sua atuação vinculadas a um trabalho de propaganda, de promoção [...] Era o porta-voz. O primeiro porta-voz da cultura marginalizada do Nordeste. Antes dele, o baião não existia. Era um ritmo do folclore longínquo do Nordeste [...]. LG fez com a música nordestina – que era até então apenas folclore, coisas das feiras, dos cantadores, ao nível da cultura popular não massificada, não industrializada – exatamente o que João Gilberto fez com o samba (CAMPOS, 1968, p. 179-180).

A alusão a Luiz Gonzaga como o primeiro fenômeno de massas apresenta a visão do artista sobre o rei do Baião. As transformações na música nordestina operadas por Luiz Gonzaga não só criaram o gênero baião, como também possibilitaram a difusão desse gênero pelos meios de comunicação dos anos 1950. Assim como João Gilberto modernizou o samba com a Bossa Nova, Luiz Gonzaga modernizava os gêneros nordestinos, popularizando a cultura nordestina. Como nos lembra Gilberto Freyre (1989), há pelo menos dois nordestes, um é o nordeste litorâneo, dos pescadores, da vegetação atlântica, do canavial e das religiões afro-brasileiras, um nordeste bem retratado nas obras de Dorival Caymmi e Jorge Amado. Outro, é o nordeste da seca, da cultura sertaneja, do couro. “Os sertões de areia seca rangendo debaixo dos pés.’ (FREYRE, 1989, p.41). É este segundo nordeste que é retratado em Refazenda. Há duas canções no disco em parceria com Dominguinhos, Tenho Sede e Lamento Sertanejo. As canções, embora representativas dos gêneros musicais nordestino, não se enquadram diretamente no Baião ou Xote. Os arranjos rítmicos não utilizam a síncopa característica do ritmo destes gêneros musicais. Entretanto, as temáticas e os arranjos da sanfona remetem a temática nordestina. O uso da sanfona também é representativo da “marcha ré” que se refere o autor. Tanto no Sul quanto no Nordeste a gaita, acordeom ou sanfona (diferentes nomes do mesmo instrumento), é associada as expressões tradicionais musicais. Até a década de 1950, a sanfona era instrumento central nos grupos musicais no Brasil. Foi com a chegada da Bossa Nova, que a sanfona perde sua hegemonia para o violão, passando a ser associada à música regional ou tradicional. Vale lembrar que Gil viveu esse processo, o primeiro instrumento do compositor foi o acordeon, mais tarde substituído pelo violão. Outra imagem de Brasil presente no disco é a do caipira, representante do brasileiro interiorano rural do Sudeste e Centro Oeste brasileiro. Na canção Jeca Total Gilberto apresenta sua visão do caipira e do sertanejo como representante do povo brasileiro. Jeca total seria o real representante de uma mitologia brasileira, de um tempo perdido, mas que permanece no imaginário da população. É o Jeca Tatu, personagem criado por Monteiro Lobato e imortalizado no cinema por Mazzaropi. O personagem apresentas os vícios e virtudes do homem rural, na perspectiva de Lobato é o homem abandonado no campo, não adepto ao mundo do trabalho e sujeito às mazelas da natureza, principalmente, às doenças decorrentes da falta de saneamento básico. Nesta perspectiva, Jeca Tatu representaria o atraso, o não civilizado. Por outro lado, na imagem criada por Mazzaropi, o personagem carrega valores do mundo rural, uma ideia de honradez marcada por uma cultura dos mínimos vitais, de uma cultura rústica, como bem definiu Antônio Candido em Os Parceiros do Rio Bonito. A canção é acompanhada por uma linha de baixo executado no trombone e arranjos melódicos de flautas, o que remete às músicas de fanfarra dos coretos das cidades interiorianas. Mas, o Jeca total é aquele que assiste a televisão, e que, portanto, já possuiria um contato com os símbolos da modernização via indústria cultura brasileira. Assim, o mundo rural é retratado pelo contato do seu outro, o mundo urbano e a chegada da indústria cultural. A canção retrata um rural passado por um processo de esfacelamento, mas também por uma recriação. O retorno a certa ruralidade em Refazenda é retratado também pela relação homem e natureza. Na perspectiva do disco, essa aproximação se dá pela chave da contracultura, principalmente na canção homônima do álbum, Refazenda, e em Meditação, bem como em Aqui e Agora do álbum Refavela. Na época Gil se aproximava de um estilo de vida contracultural que remetia à busca de uma interioridade inspirada nas religiões orientais, já retratadas na canção Oriente do disco (1972). Na canção Refazenda a perspectiva da contracultura aponta para uma visão utópica de natureza. O retorno a um mundo não artificial significa também a tentativa de reformulação da temporalidade do campo frente ao avanço industrial. Gil explica a canção da seguinte maneira: Abacateiro, acataremos seu ato – Na época pensaram que eu me referia à ditadura militar (o verde da farda) e o ato institucional, o que nem passou pela minha cabeça. O que me veio mesmo foi a natureza em seu contexto doméstico, amansada, a serviço da fruição - daí a ideia de pomar e das estações. Refazenda é rememoração do interior, do convívio com a natureza; reiteração do diálogo com ela e da aprendizagem do seu ritmo. (GIL, s/d)

A contracultura em Refazenda se aproxima da busca por uma interioridade embasada em outra relação com o tempo, um tempo rural. O termo contracultura, criado pela imprensa norte americano nos anos 1960, buscava explicar a rejeição a certos valores estabelecidos pela cultura hegemônica. Suas manifestações – a filosofia hippie, o Flower Power, o Black Power, o orientalismo, as experiências místicas, psicodélicas e a psicanálise – refletiam uma revolta contra a sociedade capitalista ocidental, bem como uma busca individual por autoconhecimento. No Brasil, a contracultura emerge em meio ao regime militar, o que auxiliou para sua classificação como forma de escapismo individualista da juventude frente à repressão ditatorial. Porém, é importante assinalar que essa contracultura também ofereceu novas coordenadas as ações políticas. Um ponto recorrente nas contraculturas foi a aproximação das chamadas minorias étnicas e da luta pelo reconhecimento. Heloísa Buarque de Hollanda, chama atenção para o fato de que a contracultura nos anos 1970, se identificou mais com as minorias do que com a ideia de povo. : “A identificação não é mais imediatamente com o povo ou com o proletariado revolucionário, mas com as minorias: negros, homossexuais, freaks, marginal de morro, pivete, Madame Satã, cultos afro-brasileiros e escola de samba” (HOLLANDA, 2004, p. 75). A contracultura, especificamente a contracultura negra, é o eixo temático do segundo álbum da trilogia “Re”, Refavela, lançado em 1977. Se em Refazenda, o cantor buscava apresentar suas raízes rurais, em Refavela a contracultura se aproxima do afrocentrismo e da luta por reconhecimento negra. Em contraposição a Refazenda, Refavela é um disco urbano, Gil faz uma homenagem a juventude negra dos centros metropolitanos, principalmente Salvador e Rio de Janeiro. As canções do disco se aproximam de gêneros afrodiaspóricos que representam a experiência musical negra dos dos grandes centros metropolitanos: o afoxé, o samba, o funk e o soul. Embora o projeto de fazer uma trilogia já estivesse presente desde o primeiro disco, a ideia de Refavela surgiu em uma viagem para Lagos, Nigéria. Gil, junto com uma delegação de artistas brasileiros, participou do II Festac, Festival Mundial de Artes e Culturas Negras Africanas. Segundo relato do compositor foi a partir da experiência de encontro com a África que motivou o disco. A música de abertura e homônoma do disco, Refavela, foi inspirada na vila de artistas onde a delegação se hospedou, muito semelhante aos blocos de BNH. Refavela é uma canção manifesto que congrega a intensão musical do álbum. Nas palavras de Gilberto, é um “baiãozinho” que discorre sobre a nova condição do negro no contexto de urbanização. (GIL, 2018) Os versos “A refaleva revela o salto/ que o preto pobre tem pra dar/ quando se arranca/ do seu barraco/ prum bloco do BNH” apresenta a busca pela ascensão social no contexto da pobreza urbana, mas também a luta por reconhecimento e uma nova perspectiva sobre a negritude no Brasil. Nos versos “A refavela revela o salto de samba paradoxal/ Brasileirinho pelo sotaque, mas de língua internacional./ A refavela revela o passo com que caminha a geração/ do black jovem, do Black Rio, da nova dança no salão” a referência ao movimento da Black Rio nos oferece a imagem de uma juventude negra carioca influenciada pela soul music e funk, gêneros negros norte americanos. A ideia de brasileirinho pelo sotaque, mas de ritmo internacional, reflete o processo o diálogo da negritude brasileira com o movimento negro internacional. A canção, assim como o disco, estabelece um diálogo com as chamadas expressões culturais do Atlântico Negro. Em sua obra, O Atlântico Negro, o sociólogo Paul Gilroy destaca o processo de formação de uma cultura atlântica negra internacional, formada na diáspora dos africanos escravizados no novo mundo. Trata-se da formação de uma comunidade imaginada negra transatlântica que tem nas expressões musicais negras um de seus principais meios de comunicação. Para o autor, a experiência transatlântica diaspórica formulou uma verdadeira contracultura negra presente nas expressões corporais, artísticas e intelectuais dos negros nas Américas, contestando a própria ideia de cultura ocidental. Na explicação de Sérgio Costa (2006,p.119):

A sugestão de Gilroy é que se tome a contracultura do Atlântico Negro não simplesmente como mais um repertório de manifestações artísticas e culturais, dissociadas da política, mas como um discurso filosófico que reinterpreta a modernidade e reconta sua história, a partir da perspectiva de quem sempre esteve fora das narrativas nacionais com seus heróis brancos. Isso não implica, vale insistir, reificar a pertença à diáspora nem uniformizar as experiências múltiplas que as constituem. O que há de singular e comum no Atlântico Negro, para Gilroy, não é qualquer vínculo primordial ou biológico entre os membros da diáspora negra. Não é o corpo negro, em seu sentido físico, absoluto, que aproxima as vidas na diáspora, mas formas similares de tradução dos processos de exclusão e discriminação aos quais os possuidores de um corpo negro estiveram e estão submetidos nas sociedades modernas.

A experiência negra da escravidão nas Américas trouxe manifestações e práticas culturais não limitadas à esfera das nações, a experiência da escravidão criou uma comunidade imaginada na diáspora em constante tensão com a comunidade imaginada nacional. É o que Gilroy chama de “dupla consciência negra”, a consciência de pertencer à história da nação em conflito com uma consciência de povo escravizado no Novo Mundo. A homenagem a uma nova experiência da juventude negra no brasil continua na canção Yle Ayle, de Paulinho Camafeu. Ali, Gil faz uma referência aos blocos de Afoxé da Bahia, referindo-se ao mundo negro. O cantor usa a expressão Black Pau, onde a palavra Pau torna-se uma corruptela de Power, referido-se ao movimento Black Power e apresentando também o dado internacional na organização da negritude baiana. Em Baba Apala o compositor faz uma referencia ao afrocentrismo e a ancestralidade. A canção traça um retorno geracional até chegar a Xango, orixá e pai e fundador de uma linhagem. Conforme explica Gil, a canção foi influenciada pela sua ida à África e a busca de certa ideia de ancestralidade. A relação África e América é também explorada na canção Balafon, onde o compositor nos apresenta o instrumento que da o nome a canção, que havia conhecido na Nigéria. Na canção, acompanhada por um Balafon, Gil narra a aproximação do instrumento africano com a Marimba, instrumento latino americano. Outro destaque é a releitura funk do clássico da bossa nova Samba do Avião. Para Gil, este samba representaria o último samba exaltação feito no Brasil. A regravação do clássico de Tom Jobim em versão funk traz certo estranhamento. A letra remete ao mundo do samba e da classe média carioca, a um Rio de Janeiro moderno e bossanovista. Porém, os arranjos rítmicos e harmônicos funkeados parecem se dissociar dessa imagem criada pelo conteúdo. O efeito não é de mera incompatibilidade entre letra e arranjos, o artista cria um ambiente sonoro internacional para inserção de um clássico nacional, trazendo a intensão de seu disco, qual seja, dialogo entre o local e global, entre certa visão de musicalidade brasileira da classe média e expressões culturais do Atlântico Negro. Com isso Gil buscava criticar certa ideia de brasilidade que vigorou até meados dos anos 1960, embasada no samba e na mestiçagem brasileira. A releitura funkeada de um clássico da Bossa possui uma postura iconoclasta de provocação, mas também de possibilidade de abertura da música brasileira para novas influencias e experiências internacionais. Embora influenciado pelo afrocentrismo, o disco de Gil não é essencialista, o compositor compreendia a necessidade de se construir uma negritude fora da África. Em entrevista ao Jornegro, o compositor apresentava sua visão de África negra:

Eu queria mesmo que ficasse uma coisa assim. Uma intenção, um sonho, uma necessidade de tornar minha música cada vez mais tribal, comunizante, negra, no sentido de incorporar elementos desse modo alegre e típico das expressões africanas de artes. ... Eu não sou só negro, não sou africano. Fora da África toda a negritude é coisa conseguida com muito esforço, empenho. Não há mais o ser negro naturalmente, sem pensar nisso, Quer dizer, o problema da negritude fora da África é um problema de cuca. E através da cuca já fica muito complicado; é através do empenho, pelo econômico, politico e social. Não é como se dissesse: de agora em diante sou preto e acabou. É difícil porque a sociedade não é preta, tá entendendo? (GILBERTO GIL, 1979)

O disco dialogava com o desenvolvimento dos movimentos negros no Brasil dos anos 1970, que viria a desembocar na fundação do MNU (Movimento Negro Unificado) em 1979. A referência a uma ancestralidade africana bem como a luta por reconhecimento étnico afastava a ideia de cultura negra construída no país durante a primeira metade do século XX. Refavela buscou refletir a negritude brasileira em uma chave diferente da miscigenação, apontando para formação de uma experiência africana e diaspórica. Enquanto Refazenda se configura como um disco rural do nordeste sertanejo, Refavela é um disco urbano que se aproxima de um outro nordeste, o nordeste litorâneo influenciado pela cultura negra. A homenagem aos afoxés e a referencia ao candomblé aproxima Gil de uma negritude, que nos anos 1970 também se reinventava a partir de dois eixos complementares: O afrocentrismo que se expandia na referida década e a cultura black norte americana. Com isso, o álbum explorava uma nova forma de experiência da negritude a partir de uma ideia de difusa de raízes e modernidade capitalista. Não mais o Jeca, mas o Zeca total, como diria Gil em seu manifesto Refavela. É importante notar que o disco trazia uma transformação fundamental na forma de representação da nação e de povo. A assunção de uma identidade étnica, conforme demonstra Jameson (1991), esteve intimamente vinculada a luta de libertação dos países africanos colonizados pela Inglaterra e França nos anos 1950, bem como dos países colonizados por Portugal nos anos 1970. Estes conflitos fizeram emergir um terceiro mundismo, onde a luta por reconhecimento pendia mais para um discurso em torno das identidades étnicas do que propriamente de classes sociais. A expansão do capitalismo no chamado terceiro mundo fez eclodir uma série de tensões e revoltas onde as formas de reconhecimento dos sujeitos não se limitavam à classe. Novos grupos racializados e sexualizados tornam-se mão de obra explorada, e suas lutas são objetivadas não apenas pela retórica da classe, mas também pela luta contra o racismo e contra a exploração de gênero. Esta assunção de movimentos sociais nos anos 1960 chegou ao Brasil no contexto da ditadura, e, junto às organizações de classe auxiliaram na construção de uma esfera civil organizada contra o regime civil militar. Este é o tema que perpassa de maneira subliminar o terceiro disco da trilogia: Realce, lançado em 1978. O disco parece se afastar dos dois primeiros por não ter uma temática mais aparente. Porém, como fechamento do ciclo, carrega os temas desenvolvidos nos dois álbuns anteriores e foca em uma linguagem da festa para construir uma perspectiva antiautoritária do processo de modernização brasileira. O álbum marca a saída de Gil da Phillips e sua entrada na Waner, e é o mais produzido da trilogia. Gravado em Los Angeles durante sua turnê do Refavela, os produtores da Waner tinham como meta conquistar um disco de ouro para o cantor. É notório e audível a mudança qualitativa na produção sonora. A canção Realce, que abre o disco, é uma música de excesso sonoro. Influenciada pela disco music, Realce abusa do uso de sintetizadores de teclados e batida eletrônicas, típicas do gênero disco music. O uso dos sintetizadores, embora soem artificiais, criam um cenário futurista de sons elétricos capitando certo ambiente sonoro em consonância com a ideia de modernidade pré anos 1980. A festa anunciada em Realce não é mera alienação da sociedade massa. Para Gil, a festa é um direito do trabalhador, como definiria em seu manifesto: Realce, uma maneira de dizer/ denominar o brilho anônimo/ como um salario mínimo de cintilância/ a que todos tem direito/ como a noite de discoteque/ após o dia de trabalho”. Os indivíduos exercendo seu direito à festa. Como explicaria o compositor:

Era o momento auge da música disco -aquela linfa, aquela liquefação pop depois da época rock, da época hippie, conceitualmente mais densa. Iniciando o processo de expansão geográfica das minhas atividades e vivenciando o cotidiano das pessoas comuns de vários lugares do mundo, eu desejava conciliar os lugares – comuns das pessoas desses lugares e trazer os elementos da cultura de massa contemporânea internacional e sua complexidade. (GIL, 2018)

A cultura de massa e o pop internacional são retomados como elementos de criação. Para além da ideia de massificação alienante e estardadizante, Gil segue sua herança tropicalista, de pensar a cultura de massa como manifestação de um popular que se urbaniza. Sem deixar de lado o idealismo desse tratamento da cultura massificada, é importante notar que para o compositor essa cultura urbana possuía uma potência. A potência da dança, da festa e do corpo, capaz de desafiar uma cultura oficial repressiva. A canção nos apresenta uma força advinda do prazer e que se configura como resistência à repressão econômica e política. Como diria Wisnik (2005) sobre a linguagem musical no Brasil: Aqui se formou uma linguagem capaz de cantar o amor, de surpreender o quotidiano em flagrantes lírico-irônicos, de celebrar o trabalho coletivo ou de fugir à sua imposição, de portar a embriaguez da dança, de jogar com as palavras em lúdicas configurações sem sentido, e de carnavalizar na maior (subvertendo-a em paródia) a imagem dos poderosos.

Nesta perspectiva Realce é representativo do processo de abertura política da segunda metade da década de 1970. O álbum apresenta de maneira ainda mais pungente as transformações sócio políticas que o país vinha passando. Duas canções são paradigmáticas, Realce e Rebento, as canções, que não por acaso trazem o sufixo Re, apresentam uma aposta no futuro numa perspectiva do inadiável e inevitável. Realce ressalta a linguagem da festa, o entretenimento e as mudanças comportamentais da juventude. Há uma mensagem otimista de não abatimento : “não se incomode com o que a gente pode pode, o que não pode explodirá”. Gil retrata a inevitabilidade da mudança, bem como um anuncio de novos tempos que vinham com o processo de abertura democrática. Já a canção Rebento, como o próprio nome diz, explora o nascimento de algo novo, uma promessa de renovação inevitável. Os signos da canção revelam certa ideia de esperança. “Rebento”, “criação”, “brota”, “vinga”, “flor na pedra”, “trigo ao vento”, criam um ambiente poético que se opõe e supera os signos “bofetão do sofrimento” e “abatimento”. Há na canção uma consciência nada ingênua das forças do fechamento de um ciclo e do surgimento de algo novo. Essa mudança é também expressa nos arranjos musicais. A primeira parte da canção, cujo arranjo ritmo é em forma de samba, é acompanha apenas por um violão, um tamborim e um sintetizador difuso, segue-se a entrada da bateria e baixo, e finalmente, no refrão, a música toma forma de um samba carnavalesco que por assim dizer, arrebenta na canção nos versos “a imensidão do som nesse momento”. Assim como em Refavela, Gil explora os múltiplos gêneros afro, disco, funk, afoxé, reggae e samba, concretizando seu espaço como símbolo da música negra internacional e brasileira. Realce é o disco com mais referencias e homenagens a Bahia com as canções Tradição, Toda Menina Baiana e a releitura de Marina de Dorival Caymmi. Tradição é uma canção de memória, o compositor apresenta lugares de Salvador do fim dos anos 1960 trabalhando a ideia de fim de determinados comportamentos aristocratizantes e a transformação de hábitos no uso dos lugares de Salvador que marcaram sua memória. A releitura de Marina, de Dorival Caymmi dá continuidade às posturas iconoclastas do músico. Assim como em Samba do Avião, Gil apresenta uma releitura funkeada de outro clássico do cancioneiro nacional, dessa vez, homenageando o nordeste litorâneo e novamente experienciando as possibilidades de conexão entre expressões da musicalidade popular brasileira e experiências sonoras internacionais negras. Por fim, a canção Não chores mais, tradução livre de No woman, no cry de Bob Marley oferece um sentido geral do disco. A canção foi associada ao movimento de anistia de 1979, principalmente pelos versos “amigos presos/ amigos sumindo assim /pra nunca mais/ as recordações, retratos de um mal em si/ melhor deixar pra trás”. O sentido político dos versos é obvio, retrata o processo de abertura, o luto das vítimas da ditadura e certa esperança, principalmente nos versos finais “tudo, tudo vai dar pé” Muito embora seja ouvida como uma canção de resistência, essa não foi a intenção de Gilberto Gil. O cantor dizia: “O passado tem um débito conosco, mas vamos dar um crédito ao futuro. Uma posição típica da minha ideologia interna, do meu otimismo, do meu gosto pela conciliação, do traço tolerante de minha personalidade.” (GIL, S/D) A canção possui uma letra conciliadora, embora não endosse o discurso oficial, parece se aproximar com a perspectiva da anistia ampla, geral e irrestrita. Marcado pelos imperativos comerciais de uma Indústria Cultural, já consolidada nos anos 1970, o disco Realce carregou uma visão mais conciliadora e otimista. A retomada de uma temática da MPB dos anos 1960, a do “o dia que virá” tornava-se agora paródia de um futuro mais próximo, porém não mais revolucionário. A ideia de concórdia pode explicar o enorme sucesso da canção que, inclusive levou Gilberto a alcançar o almejado disco de ouro. A tradução de uma música de Bob Marley, ícone musical do terceiro mundismo e da luta anticolonialista, colocava a questão do fim do regime opressivo no Brasil em consonância com a luta anti-imperialista internacional. Porém, no caso de Não chores mais, certo otimismo vendável superava símbolos de resistência que o gênero reggae poderia carregar.

O sentido de uma tradição e a tradição de um sentido

Como viemos discutindo a trilogia Re elabora determinada ideia de tradição em conexão com transformações do país nos anos 1970. Destacamos que o compositor busca apresentar um Brasil popular, urbano e ao mesmo tempo marginalizado, em consonância com movimento de modernização da referida época. O passado é modificado pelo presente tanto quanto este esteja orientado por um passado. O sentido da tradição em Gilberto Gil se afasta de uma perspectiva essencialista e também de uma ideia conservadora de tradicional. Como já nos referimos, há uma intenção de retomada de tradições marginalizadas e reinvenção de tradições relativamente homogêneas, porém a postura se aproxima muito mais da iconoclastia do que da pura reverência. Assim, as tradições retomadas na trilogia, não são as tradições canônicas, o compositor seleciona elementos residuais para construção de uma cultura emergente, para usarmos a famosa conceituação de Raymond Williams. Gil parte de uma tradição seletiva das formas residuais de cultura para construir manifestações de uma cultura emergente. O compositor manipula o passado em busca de uma sensibilidade recalcada pela cultura oficial, dando um novo sentido às expressões negras e rurais da música popular brasileira. É pela perspectiva da contracultura que Gil congrega ícones da cultura de massa com elementos populares, retomando, agora de maneira menos fragmentada, a intenção tropicalista. O sentido da tradição na trilogia Re aponta para uma visão de futuro ancorada em uma visão antiautoritária da cultura popular rural e das experiências negras no novo mundo, ampliando os comportamentos e grupo sociais que viriam a congregar os novos valores da sociedade brasileira no processo de redemocratização. Evelina Dagnino (2000) assinala que a reconstrução da sociedade civil brasileira trazia uma luta pela ampliação da ideia de politica, a entrada de novos sujeitos na esfera pública e o combate a cultura autoritária: Nesse sentido, a luta por direitos a ter direitos, revelou o que, de fato, tinha que ser uma luta política contra uma cultura difusa do autoritarismo social, estabelecendo a base para que os movimentos populares urbanos estabelecessem uma conexão entre cultura e política como constitutiva de sua ação coletiva. Essa conexão foi um elemento fundamental para o estabelecimento de um campo comum de articulação com outros movimentos sociais mais obviamente culturais, tais como os étnicos de mulheres, de homossexuais, ecológicos e de direitos humanos, na busca de relações mais igualitárias em todos os níveis, ajudando a demarcar uma visão distintiva, ampliada, de democracia. (2000, p.83)

Gilberto Gil representou em sua voz comportamentos e grupos sociais que começavam a emergir na esfera pública ainda dominada pela cultura autoritária ditatorial. O autor ofereceu um ponto de vista não conservador sobre a tradição, o que significou reinventar a própria ideia de tradição na música popular brasileira.

BIBLIOGRAFIA:

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