CADERNOS EAV

ENCONTROS COM ARTISTAS

ANNA BELLA GEIGER

CARLOS ZILIO

ERNESTO NETO

IVENS MACHADO

NELSON 20 FELIX 09 TUNGA

Governo do Comissão de Projetos Associação de Amigos da Daniel Senise Governador Escola de Artes Visuais – AMEAV Sérgio Cabral George Kornis Presidente Guilherme Bueno Vice-Governador Paulo Albert Weyland Vieira Luiz Fernando Pezão Coordenadora do Programa 1º Vice-Presidente Aprofundamento 2012 Márcio Botner Secretaria de Estado Anna Bella Geiger 2º Vice-Presidente de Cultura COORDENADORA DO PROJETO Guilherme Gonçalves Secretária de Estado DE PESQUISA 2012 Conselheiros Adriana Rattes Gloria Ferreira Ernesto Neto Subsecretária de Relações Coordenadora do Núcleo Fábio Szwarcwald Institucionais de Arte e Tecnologia Captação e Gestão de Recursos Olga Campista Tina Velho Sandra Caleffi Subsecretária de Ação Cultural Assistentes de Administração Auxiliar Contábil Beatriz Caiado Carmen da Costa Souza Luis Carlos Silva Subsecretário de Planejamento Sergio Bastos e Gestão ASSISTENTES ADMINISTRATIVOS Assistentes de Ensino Mario Cunha Guilherme Segal Cristina de Pádula Hércules Souza Superintendente de Artes Lucas Leuzinger Eva Doris Rosental SecretARIA Estagiária Ana Carolina Santos escola de artes visuais Vanessa Rocha Natália Soares parque lage Assistente de Projetos Thais de Souza Diretora Renan Lima EAV Claudia Saldanha Estagiários Rua Jardim Botânico, 414 Assessor Branca Zuma Jardim Botânico Vitor Zenezi Vitor Coimbra Rio de Janeiro | RJ Assessora editorial Assessoria de Imprensa 22461-000 Joanna Fatorelli Bárbara Chataignier Tel | Fax: 21 3257 1800 www.eavparquelage.rj.gov.br Coordenador Administrativo Biblioteca Herbert Hasselmann Maurício Azevedo Coordenadora de Ensino Olga Alencar Tania Queiroz Supervisão técnica das Oficinas Coordenadora de Projetos de Imagem Gráfica Clarisse Rivera Roberto Tavares Comissão de Ensino Manutenção Glória Ferreira Gerson de Araújo Freitas Luiz Ernesto Moraes Homero Gomes de Moraes Maria Tornaghi Iraci Laurindo de Oliveira Créditos dos Cadernos IMpressão Ultraset ENCONTROS Organização Joanna Fatorelli e Tania Queiroz agradecimentos especiais COM ARTISTAS Carlos Minc, Cristina Bahiense, Guilherme Assistente Gonçalves, Henrique de Aragão, Iole de Vanessa Rocha ANNA BELLA Freitas, José Luis Alqueres, Letícia dell’Orto, Projeto Gráfico, Tratamento de Leticia Verona, Marcos Arzua Barbosa, GEIGER Imagem e Produção Gráfica Tanit Galdeano Dupla Design CARLOS Fotografias Ambroise Tézenas, Ana Stewart, André Morin, ZILIO Cesar Barreto, Eduardo Mattos, Fausto Fleury, Felipe Felizardo, Gabriela Toledo, ERNESTO João Mussolin, Sonia Parma, Lucia Helena Zaremba, Marco Terranova, Pat Kilgore, CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE NETO Pedro Oswaldo, Rubber Seabra, Sérgio Araújo, SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE Vicente de Mello, Wilton Montenegro LIVROS, RJ IVENS Revisão de texto MACHADO Itamar Rigueira, Lilian Zaremba, Janaisa Viscardi, C129 Julia Scamparini, Paulo Serran, Sophie Bernard, Cadernos EAV 2009 : encontros com artistas / Vanessa Rocha, Rachel Valença organização Escola de Artes Visuais do Parque Lage NELSON Transcrição ; Anna Bella Geiger ... [et al.]. ; [organização Joanna Fatorelli e Tania Queiroz] - Rio de Janeiro : EAV, 2012. FELIX Louise D.D. il. Gravação ISBN 978-85-64192-06-5 Bruno Marcus - TOMBA Records TUNGA 1. Arte brasileira - Século XXI. 2. Arte PROJETO DE CAPTAÇÃO contemporânea - Brasil. 3. Instalações (Arte). 4. Coordenação: Lucas Leuzinger Videoarte. 5. Artistas - Brasil. I. Geiger, Anna Bella, Vídeo: Simone Michelin 1933-. II. Fatorelli, Joanna. III. Queiroz, Tania. IV. Escola Com participação de: Aline Besouro de Artes Visuais do Parque Lage. e Lucas Ferraço Gravura: Tina Velho 12-6798. cdd: 709.8 Multidão | Catarse: Pedro Struchiner CDU: 7.038.6(81) e Rodrigo Maia Divulgação: Monocromo 18.09.12 24.09.12 038948 APRESENTAÇÃO

A Escola de Artes Visuais do Parque Lage, vinculada à Secretaria de Ao reunir essas conversas nos Cadernos EAV, optou-se por oferecer Estado de Cultura, lança os dois primeiros volumes da série Cader- uma leitura ágil e dinâmica, capaz de levar o leitor a partilhar da nos EAV: Encontros com Artistas, visando registrar e preservar o qualidade viva e espontânea que marcou aqueles momentos de resultado dos encontros que vem promovendo, desde 2009, entre troca e de experiência. Organizados em volumes anuais, os Cader- artistas consagrados e os alunos do seu Programa Fundamentação. nos EAV tiveram o apoio de diversos colaboradores através do crowd funding viabilizado pela plataforma virtual Multidão | Catarse. Gratuito e semestral, o Programa é etapa inicial de formação do jovem artista, curador, crítico ou mesmo daqueles que preten- Essa nova forma de captação e a ideia de disponibilizar o conteúdo dem trabalhar no campo das artes, combinando aulas de prática desses encontros se alinham ao perfil da Escola de Artes Visuais do artística a cursos de história da arte. Uma vez por mês, nos finais Parque Lage – democrática, livre e transdisciplinar, estabelecendo de semana, a Escola promove os Encontros, exclusivos para os um importante elo com a sociedade civil e possibilitando um espaço alunos do Programa. rico em trocas e diálogos.

O resultado destes encontros vem gerando um precioso acervo, Agradecemos a valiosa colaboração de todos os artistas e professo- único em seu conteúdo e inovador em sua forma, que leva direta- res que participaram dos Encontros, debatendo sobre a sua obra e mente a palavra do artista ao público de jovens estudantes, criando seus processos de criação. um diálogo que enriquece todos os que dele participam.

CLAUDIA SALDANHA - Diretora da EAV Parque Lage ANNA BELLA GEIGER 10

CARLOS ZILIO 34

ERNESTO NETO 54

IVENS machado 102

Nelson Felix 118

TUNGA 162 10 ANNA BELLA GEIGER

“A imagem fictícia possui sua própria verdade.” Giordano Bruno, 1591

Quando a Claudia me apresenta relacionada a uma longa trajetória, isso causa estranheza até a mim mesma. Pois penso que tanta coisa ainda está por ser feita... Eu venho trabalhando nas minhas causas, ou melhor, em defesa delas. De histórias muito longas como a que vai de 1974 a 2009, e refere-se ao meu trabalho em videoarte. E que acabaria sendo a trajetória da própria videoarte no Brasil. Claro que a videoarte não começa no Brasil. Ela começa com Wolf Vostell e Nam June Paik, em meados dos anos 60.

O fato de começar a trabalhar em vídeo ainda nos anos 70 nada tem Flumenpont nº1, 2001/2005 Fotografia, encáustica, vidro e plástico a ver com a questão da novidade do vídeo. E apesar da videoarte 43 x 33 cm Foto: Rubber Seabra 12 13 CADERNOS EAV ANNA BELLA GEIGER

continuar atualíssima, ainda precisamos indagar: o que é a video- Há um vídeo1 de Vito Aconcci, dessa época, em que ele sai aleatoria- arte? Como categoria seria como dizer “pintura”. Não define nada. mente pelas ruas de Nova York, seguindo um transeunte. Já havia A videoarte tomou vários caminhos, assim como a pintura. No seu essa maleabilidade no uso da máquina de vídeo portátil. E havia começo, podemos citar artistas como Nam June Paik, cujo sentido o Super 8 em cor, que eu já vinha usando desde fins dos anos 60. da obra é completamente diverso de um Dennis Oppenheim, que é Primeiro filmando a família, os filhos, quando moramos em Nova completamente diverso de um Bill Viola, como ainda de Gary Hill, York. E essa acaba sendo uma das características não só do Super que esteve há alguns meses atrás na Oi, no Espaço Oi Futuro. A obra 8, como do vídeo nos Estados Unidos. Por ser um pequeno objeto de alguns desses expoentes tem tudo a ver com o que alguns de nós portátil, o seu uso era ligado, por exemplo, à mulher, no sentido aqui, no Rio de Janeiro, nos anos 70, pensávamos sobre o que era de se filmarem situações domésticas. Algumas das mulheres que a videoarte, muito diverso do que tem sido feito em abordagens entram na história do feminismo na arte, principalmente nos EUA, pseudojornalísticas ou de cunho pseudoantropológico. o fazem desse modo.

Porém, o começo da videoarte no Brasil (Rio de Janeiro, 1974), Realizei dois curtas em Super 8 e os editei em 72. Para a sua edição diferentemente do que ocorreu nos Estados Unidos, enfrentou era preciso juntar os vários trechos dos filmes. Então, adquiri uma dificuldades enormes entre querer pensar certos trabalhos em maquininha de colar os trechinhos. Por ser tão precária, resultou vídeo e ter a instrumentação necessária. No começo dos anos 70 depois de alguns anos na sua descolagem e consequente destruição já havia nos EUA uma pequena câmera portátil de vídeo, em p&b, desses filmes. Não havia onde conservá-los. Numa cinemateca? não tão diferente das que existem agora. Acontece que a videoarte Antes de começar a trabalhar com vídeo, o Super 8 me trouxe aqui, além de outras limitações, só era possível lidando com uma grandes retornos, fosse pelo elemento cor ou pela maleabilidade de máquina Sony Portapack que pesava uns quarenta quilos. Se isso se sair filmando por aí. Concomitantemente, havia naquela época me condicionou e limitou, por outro lado me levou a indagar mais uma alternativa, usando a projeção de slides, e acabou criando-se profundamente sobre suas possibilidades, sobre o conceito, a ideia um gênero, o audiovisual. No audiovisual, você, como fotógrafo a ser desenvolvida nesse suporte. ou não, o que era o meu caso, registrava as imagens em slides. 14 15 CADERNOS EAV ANNA BELLA GEIGER

O slide possuía a qualidade de poder ser projetado numa parede ruptura. O “retorno” a uma realidade externa, figurativa, se deu qualquer, ampliando-o, sem perder a nitidez. Isso era o próprio pela necessidade de falar de um momento social, político, histó- Mágico de Oz na época. No audiovisual havia um mecanismo que rico, em que essas imagens vindas da mídia passam a colocar novas permitia introduzir, dentro do ritmo projetado das imagens, o possibilidades para se interpretar aquele momento. Porém, nós som gravado. O Super 8 não gravava o som automaticamente. O não estávamos aqui, nos anos 60, num mesmo momento como o vídeo, porém, apesar de todos os defeitos de imagem, e de ser só em dos Estados Unidos, dentro de uma sociedade de consumo e de p&b, ao registrar a cena, gravava automaticamente todos os sons uma cultura de massa que resultaria na Arte Pop. Aqui, no final possíveis. Até agora, quando se filma com a câmera de tv, mesmo a dos anos 60, surgem artistas, eu inclusive, cuja atitude crítica profissional, tudo em torno tem de ficar em silêncio para não haver leva, em suas obras, a indagações de ordem conceitual. Estava interferência. No caso do audiovisual, as imagens projetadas (sli- acontecendo uma crise maior, no próprio discurso da arte, na des) eram perfeitas, fosse em cor ou em p&b. E podia se interferir na própria natureza, significado e função da obra de arte. Junte-se imagem, como fiz para a instalaçãoCircumambulatio 2 ao queimar a isso a situação política que estávamos atravessando. E que se o centro de algumas das suas imagens em celuloide. Também os acirrara desde1968. apresentei, junto com o Super 8, em 73, na Expo-Projeção-Grife3, em São Paulo. Mas imaginem que havia uma atitude reacionária por parte de certa crítica jornalística e de alguns artistas da época quanto ao O uso experimental de novos meios e suportes seria denominado uso do vídeo. E de que vídeo? Por exemplo, o meu modo de pensar mais tarde de novos mídia. O artista tinha, por vezes, a necessidade a linguagem da videoarte era completamente diverso do de Nam de introduzir na sua obra imagens vindas da mídia publicitária, June Paik ou do de Wolf Vostell. jornalística ou outra. Para uma artista como eu, que passou durante quinze anos pelo rigoroso processo formal do abstracionismo, Então, aqui, nos anos 70, a crise na arte ocorreu motivada, creio, por até meados dos anos 60, e tendo já meu trabalho reconhecido, dois fatores: a mudança radical de paradigmas nas novas formas a busca de uma linguagem própria se fez dentro de uma grande de representação da arte e o caráter político daquele momento. 16 17 CADERNOS EAV ANNA BELLA GEIGER

O Rio de Janeiro sempre foi o core, o centro mais ativo dessas inves- Nos anos 60, acontecera um fato importante para a arte brasileira: tigações, também politicamente. Em 68, com a instituição do AI-5, os a oportunidade de Hélio e Lygia terem seus trabalhos criticados artistas que vinham participando das bienais dos anos 60 reuniram- pelo crítico inglês Guy Brett. Era um crítico de arte interessante, -se no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Vieram também escrevendo em revistas internacionais. O que se conhecia do Brasil alguns artistas de São Paulo e nos decidimos por um boicote. Não lá fora era Tarsila, Di Cavalcanti, Portinari, e a arte abstrata do participaríamos mais de eventos como a Bienal de São Paulo, assim Brasil ainda era uma vanguarda quase desconhecida mesmo aqui como de quaisquer outros do país, tipo salão. O boicote perdurou até dentro. Com o apoio desse crítico, houve crescente informação no 81. Procuramos com muito risco informar aos artistas internacio- exterior de que havia uma arte abstrata concreta e neoconcreta nais, no exterior, participantes das bienais, do que estava ocorrendo brasileira. aqui. Ao se estender até 81, essa situação de isolamento levaria alguns de nós a maior engajamento político no próprio trabalho. Estamos em 2009 e sabemos que o caráter experimental da arte Entendia-se, porém, que não era uma questão de criar panfletos mudou muito também. O que se processou aqui, naquele longo no que se referia à arte. E com isso não estou dizendo que aquele período político entre 64 e 85, cada vez menos forneceria sentido ao longo período nos trouxe qualquer benefício, mas a complexidade artista para lidar de forma significativa na arte através de soluções daquele momento nos levou a aprofundar ainda mais a própria obra. apenas de caráter abstrato e formal. Surgiriam questões ligadas à Penso ser um desses artistas. O Cildo também iria compreender crise do suporte, a interferências como o uso das mídias, à inter- bem aquele momento. Por sinal, ele veio dos cursos do MAM-RJ do -relação entre arte e a apropriação pelos artistas de métodos vindos começo dos anos 70. Cursos que o Frederico Morais e eu criamos, das ciências sociais, da linguística, da antropologia, etc. denominando-os de Unidade Experimental e Arte Crítica. Está- vamos sendo muito visados no MAM-RJ, a ponto de eu convencer Aqui, pelo prolongado boicote conseguiu-se esvaziar a Bienal. os alunos de que a experiência prática dos meus cursos só poderia Porém, o boicote ao vento nos deixou totalmente isolados cultu- ocorrer fora do perímetro urbano, em lugares ermos, praias desertas. ralmente, apesar de uma intensa produção que acontecia aqui na E assim ocorria. A um dos resultados chamei de Circumambulatio. década de 70. 18 19 CADERNOS EAV ANNA BELLA GEIGER

O pensamento acadêmico no campo das Artes Visuais iria se “Objetos, do modo desenvolver na USP e a sua prática no Museu de Arte Contempo- rânea de São Paulo. Uma pessoa essencial naquele momento foi o como nós os captamos então diretor do MAC-USP, Walter Zanini, além de sua assistente Annateresa Fabris, pessoas muito incríveis. Porque, como histo- riadores eles poderiam ficar se dedicando apenas a Portinari, Di e os devolvemos em Cavalcanti, Tarsila, mas entenderam que precisavam apoiar naquele espaço as novas linguagens. forma de arte, serão Em 80, artistas se reúnem com Walter Zanini para pensar numa possível bienal. Isso quantos anos depois? De 69 a 81. Não ima- sempre um testemunho ginávamos que o isolamento perduraria por tanto tempo. O que esse isolamento iria provocar? Um quase total desconhecimento no exterior sobre o que estava acontecendo experimentalmente do tempo.” na obra de vários artistas daqui.

Além da USP, creio que, dos anos 90 em diante, o Departamento de Arte da Universidade Federal do Rio de Janeiro vem publicando o seu pensamento teórico, assim como a revista Concinnitas da UERJ, produzida pela Sheila Cabo. Temos aqui no Rio a Glorinha Ferreira, como em São Paulo a Daria Jaremtchuk, doutora na USP, que vem dando cursos sobre arte contemporânea brasileira em universidades da França e da Espanha. Então, de alguns anos pra cá, 20 21 CADERNOS EAV ANNA BELLA GEIGER

brasilianistas que estudavam só Hélio e Lygia começam a indagar, Vídeos de “monitor”, que são produzidos para serem mostra- com mais cuidado, sobre essa complexa passagem que resultaria dos independentemente, não pertencem às instalações. E nas numa outra produção, a dos artistas dos anos 70. É o caso de um videoinstalações os vídeos pertencem, fazem parte integrante artigo escrito por Maria Iñigo Clavo para a Revista de Occidente, delas. Mostrarei três vídeos, um recentíssimo e outros menos de fevereiro de 2008 (nº 321), em Madri, denominado “Una vez recentes. pensé el proyecto de um país...” É preciso entender esses dois vídeos em p&b no contexto dos Eu falo meio brincando que precisarei esperar mais uns trinta anos anos 70. Naquela época, em Nova York, já havia gente discutindo até tomarem conhecimento do meu trabalho recente. sobre videoarte, uma discussão sobre o que era linguagem de vídeo e o que era linguagem de cinema. E havia o que chamavam Vou lhes mostrar alguns vídeos meus. Um recente e outros dois de de cinema expandido, também experimental. O vídeo levantava 1976: Circa I4 e Mapas elementares 15 e 36. essas especificidades.

Objetos, do modo como nós os captamos e os devolvemos em Vídeos que não se teria como editar precisavam acontecer em forma de arte, serão sempre um testemunho do tempo. Circa tempo real. À minha ação subindo aquelas escadas lentamente, e é um termo usado para determinar uma data em torno da qual num grande esforço, eu chamei de Passagens. Acho que em parte ocorreu um fato histórico, geográfico, arquitetônico, artístico, seu significado é de ordem simbólica. cultural ou antropológico da nossa civilização. Circa pode apre- sentar datas que diferem, em sua imprecisão, até em 100 anos Aluno: Esse vídeo teve edição? É uma única tomada? ou mais; essas imprecisões, porém, não afetam a verdade do fato de que as tais coisas aconteceram dentro daquele período de Não, a filmagem foi em três tempos diversos, e não se pensava ainda tempo. Esse fator me interessa muito, e está bastante incluído na edição, pois não havia hipótese de venda. Depois foi preciso. A na minha obra. história da videoarte no Brasil inicia-se em 74, mas também era 22 23 CADERNOS EAV ANNA BELLA GEIGER

recente nos EUA. Em fevereiro de 75, alguns dos meus vídeos, como Não havia Internet, não havia fax, não se recebiam revistas de Passagens I7, Declaração em retrato I8 e Centerminal9, participaram arte, nada disso. Em Beuys, o sentido de esforço que transmite da Video Art, primeira mostra internacional de videoarte, no Ins- em suas ações se expressa no Eurasia12, por exemplo. Mapas ele- tituto de Arte Contemporânea da Filadélfia. mentares 1 leva três minutos e há uma diferença radical entre os meus vídeos de 74 e esses de 76. Quanto à própria compreensão Nesse museu, encontram-se O grande vidro10 e o Étant donnés11. em passar uma “mensagem” mais veloz e imediata. Passo a uma Neste último, por um buraquinho se vê uma cena onde repousa atuação mais parodiada em Mapas elementares 1 e 3. Ao ritmo de um manequim de nu feminino. Foi o próprio Duchamp que pediu Carta a um amigo, música do , pareço “agir” como que essas obras estivessem nesse espaço. que obedecendo às suas palavras, as da carta que ele escreveu, em cujo refrão repete por quatro vezes que “a coisa aqui está preta”. Na mostra Video Art em 75 nos EUA, não se tratava ainda de uma Eu já vinha utilizando cartografias de caráter geopolítico para falar questão de mercado, do circuito de arte. Creio que isso também da arte também nos desenhos e gravuras. possibilitou o meu acesso a essa mostra junto a Nam June Paik, Bruce Nauman, Dennis Oppenheim, Bill Viola, alguns desses tam- Não havia ainda o videoclipe, uma criação posterior. Acho que bém começando a usar o vídeo naquela época. aquilo se tornaria depois um gênero, o do videoclipe. Relacionei a letra da música e a ação neste vídeo. No próximo vídeo, Mapas O uso do termo performance só irá aparecer no fim dos anos 80. Eu elementares 3, o fundo musical é um bolero argentino daqueles chamava de ação ao que acontecia nos meus vídeos. Esta foi uma mais cafonas, em que a cantora pede sorte e ajuda à Virgem Negra. das razões de ficar emocionada quando conheci o Beuys em 75. Interpretei-os como sendo os mitos da América Latina: juntei as Desconhecia até então quase toda a sua obra, e o uso que ele fazia semelhanças fonéticas entre América Latina, amuleto, a mulata desse termo em sua obra. e a muleta, e semelhanças antropomórficas entre o formato da América do Sul e essas figurações. Por exemplo, enquanto ela canta, Aluno: Pois não havia Internet. “Salva-me, ajuda-me”, desenho uma muleta. Quando mostraram 24 25 CADERNOS EAV ANNA BELLA GEIGER

esse vídeo no MoMA13, em Nova York, essa palavra precisou ser traduzida como crutch, perdendo o sentido fonético original.

Em 78 apresentei esse e um outro vídeo, Local da ação14, com a videoinstalação Pão nosso de cada dia15 na antiga galeria Cândido Mendes em Ipanema, situada ainda no subsolo. Em Ideologia16, também uso esse tom irônico, quando dois jovens de uniforme escolar soletram diante de um mapa do Brasil “dra dre dri dro dru” – Quadro e “bra bre bri bro bru” – Brasil. Ele é o Rodolfo Capeto, atual diretor da Esdi. Ela é a Noni Geiger, professora da Esdi e minha filha.

Aluno: Eu estive na exposição do Oi Futuro e, ao assistir aos vídeos, fiz uma associação do seu trabalho com uma coisa mística, mágica. Queria que você falasse um pouco a respeito disso. Se tem alguma ligação e qual seria.

Você achou isso? Nas videoinstalações?

Aluno: Tanto na instalação, do Circa principalmente, quanto nos vídeos. No vídeo em que você faz um círculo de fogo, no vídeo em que você finca uma madeira (flecha) no centro do Euhropa am.Lat.Bra-sil, 1995 chão de terra e depois a retira. Série Fronteiriços Foto: Rubber Seabra 26 27 CADERNOS EAV ANNA BELLA GEIGER

Eu acho que o que a gente transmite na obra depende muito do que ou não, o de isolar mais do que ligar as pessoas ao criar uma nova cada espectador, o público capta. E a que nível. A obra, principalmente babel de comunicações, mas tem o seu lado positivo. O de podermos de caráter contemporâneo, oferece ou contém uma possibilidade de compartilhar a informação através das novas mídias, e de outros leitura de várias camadas de significado. É da complexidade contempo- modos, através de suas culturas, linguagens e plataformas. Não rânea. Em Passagens, por exemplo, posso passar um sentimento, uma devemos ser maniqueístas ou aceitar teorias da conspiração sem percepção no sentido mais mítico que existe na obra de arte. Que existe discussão. Muito cuidado mesmo. nessa obra. Nos anos 60 eu tinha lido todos os livros de Jung, inclusive aquele “tijolão” Psicologia e alquimia, assim como a Interpretação dos E a utopia existe. Nós não vivemos sem alguma utopia. A nossa sonhos, de Freud, assim como Roger Caillois, entre outros. Pensa-se que poiésis se expressa na arte através das possíveis ferramentas de o mito é uma coisa do passado, da qual não necessitamos, mas vários de trabalho, seja o vídeo, um desenho ou uma pintura. A obra de seus aspectos continuam a se renovar no homem. Nós não existimos Rembrandt nos leva a entender não só a sua pintura, mas a época sem criar mitos. E esse sentido mítico se revela na obra. O ser humano em que ele viveu. Assim como, por exemplo, o sentido da organi- busca se religar de diversos modos, procurando entender o sentido zação do espaço nas telas de Vermeer. Além disso, se observarmos da vida. Gauguin, ao perguntar na sua tela “de onde viemos, para onde em Vermeer aquelas paredes com mapas, que descrevem confli- vamos?17”, não foi demagógico. Tendo abandonado Paris, mesmo com tos locais, o que vinha acontecendo naquela região da Europa. todo o ambiente de arte que já conhecia, iria para uma ilha da Polinésia, A cartografia estava ali exatamente como alta tecnologia, como numa busca existencial. Nossas tentativas, consciente ou inconscien- informação atualizada. temente, nos sugerem caminhos, mas é preciso decifrá-los. Não da ordem das calamidades, das ameaças apocalípticas, não no sentido aluno: Falando em cartografia, Anna, como é que ela do calendário asteca, que diz que em 2012 vai acabar o mundo (risos). aparece no seu trabalho? Além da referência que você faz sempre ao Brasil, América Latina. Procuro estar atenta ao que acontece em nosso vasto mundo, a fenômenos como o da globalização, que apresenta um paradoxo, O meu trabalho em meados dos anos 60 deu uma guinada, primeiro 28 29 CADERNOS EAV ANNA BELLA GEIGER

quando passei a fazer um trabalho visceral, num modo de repre- com elementos topográficos da paisagem. Daí para o mapa do Brasil sentação do corpo, do funcionamento de seu organismo. Porém, o e da América Latina e suas semelhanças formais e possibilidades contexto político da época me levaria a uma outra forma de mani- de comparações antropomórficas. Tive de lidar com o contexto da festação, tornando-se uma questão vital na minha obra. época e quis falar do nosso isolamento cultural. Mas também me interessava, no meu trabalho, experimentar, discutir outras formas Surgem nessa época as primeiras análises topográficas da paisagem de representação. Começo por aí os meus mapas. Os primeiros criadas por computador. Ilustravam uma outra geografia. Aquilo se apresentam como um Brasil e uma América Latina isolados, podia não ser desenho de arte, mas era uma outra possibilidade de mergulhados num vazio abissal. Depois vai surgir fortemente, no representação. Anteriormente, em 66, a editora Delta publicaria meu trabalho, a necessidade de resgate de alguns de seus aspectos uma série de dez volumes sobre a geografia do Brasil. O Pedro históricos, desde a descoberta do Brasil. Nesse sentido as videoins- Geiger, geógrafo, trabalhou nessa publicação. Precisavam de várias talações Circa I e II lidam com esse outro tempo. ilustrações representando desde a esfera do globo terrestre meio transparente à descrição geológica das camadas do solo, e tantas Aluno: Em que a gravura influencia o seu trabalho hoje em dia? outras descrições minuciosas. Eu trabalhara muito com ilustra- ção nos anos 50 e 60. Para o Jornal do Brasil, o Correio da Manhã, Olha, se você reparar, tem artistas que são essencialmente grá- para a editora Civilização Brasileira. Isso eu sabia fazer, mas com ficos. Ser gráfico não quer dizer que você vai trabalhar só com a a geografia era mais difícil, porque essas ilustrações precisaram coisa gráfica, ou apenas em termos restritos da técnica da gravura. ser precisas. Outros são mais pictóricos. Não é que esta seja uma classificação que qualifique o valor desses artistas, mas existem diversas ten- O que foi e continua sendo um desafio é tornar o uso da represen- dências, às vezes inerentes. No meu caso, o uso da gravura e do tação cartográfica significativo na minha obra. Eu não inventei desenho vem desde os primórdios do meu trabalho, passando por a representação cartográfica. Parti de uma representação pré- várias transformações. Mas sempre tive uma atração fatal pela obra -existente. Então, em 69, comecei uns desenhos em tinta guache, gráfica. Mesmo em alguns dos meus vídeos há várias soluções que 30 31 CADERNOS EAV ANNA BELLA GEIGER

são gráficas. EmPassagens I, entre outras coisas, me interessava “E a utopia existe. que aquelas escadas se assemelhassem a uma página de caderno pautado. A imagem bidimensional do vídeo oferecia uma quali- Nós não vivemos sem dade de ordem gráfica. Interessava-me que os degraus por onde eu passava fossem como linhas de um grafismo bidimensional. Notem que vou sempre subindo de lado, para que a minha imagem alguma utopia. A nossa se mantenha bidimensional.

Continua meu interesse no uso da gravura, ao surgirem questões poiésis se expressa que para mim só podem ser traduzidas graficamente. O desenho também sempre vem permeando minha trajetória, assim como a na arte através das gravura. Há dois anos fiz uma edição de cinco gravuras para uma editora de arte de Madri, Arte y naturaleza, e é sempre instigante para mim essa prática do uso da gravura. Acho importantíssimo possíveis ferramentas na formação do artista saber muito bem diversas técnicas. Não importa se vai ser um artista só gravador ou não. E quem tem uma de trabalho, seja o prensa de gravura em metal, que não se desfaça nunca dela. Tem gente que adora carro, não é? Eu adoro a minha prensa. Os recur- sos de que ela dispõe ficaram tão estranhamente ligados aos meus vídeo, um desenho ou trabalhos atuais que não é necessariamente gravura o que sai da prensa. O que não gosto, porém, é do aspecto ideológico que alguns gravadores dão à gravura, relevando a dificuldade do seu fazer, de uma pintura.” sua manipulação, atribuindo-lhe uma qualidade de linguagem. 32 33 CADERNOS EAV ANNA BELLA GEIGER

Notas Saiba mais

1. ACCONCI, Vito. Following Piece. Performance/ vídeo. Série Street Works IV. http://www.annabellageiger.com Nova York, 1969. 2. GEIGER, Anna Bella. Circumambulatio. Instalação / Ambiente parcial. http://www.circa2011.com.br Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 1972. 3. Expo-Projeção. Exposição coletiva realizada no Espaço Grife. São Paulo, 2003. ANNA Bella Geiger. Texto Fernando Cocchiarale. Rio de Janeiro: Funarte, 1978. 40 p., il. 4. GEIGER, Anna Bella. Circa I. Vídeo em cores. Duração: 30’. 2005. ANNA Bella Geiger: constelações. Apresentação Marcus de Lontra Costa; textos Fernando 5. GEIGER, Anna Bella. Mapas elementares I. Vídeo p&b. Duração: 3'. 1976. Cocchiarale, Mário Pedrosa, Tadeu Chiarelli, Paulo Herkenhoff, Luíza Interlenghi, Karin Stempel, Dore Ashton. Rio de Janeiro: MAM, 1996. 88 p., il. Edição bilíngue 6. GEIGER, Anna Bella. Mapas elementares III. Vídeo p&b. Duração: 3' 24''. português-inglês. Coleção Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo. 1977. NAVAS, Adolfo Montejo. Anna Bella Geiger: territórios, passagens, situações. Rio de 7. GEIGER, Anna Bella. Passagens I. Vídeo p&b. Duração: 12'. 1974. Janeiro: Casa da Palavra, 2007. 356 p., il. 8. GEIGER, Anna Bella. Declaração em retrato I. Vídeo p&b. Duração: 7'10''. 1974. 9. GEIGER, Anna Bella. Centerminal. Vídeo p&b. Duração: 3’. 1974. 10. DUCHAMP, Marcel. O grande vidro, 1915-1923. Óleo, verniz, fios metálicos, fios de aço, pó e cacos de vidro sobre duas placas de vidro. 272,5 x 175,8 cm. Instituto de Arte Contemporânea da Filadélfia. 11. DUCHAMP, Marcel. Étant donnés, 1948-1966. Instalação. Instituto de Arte Contemporânea da Filadélfia. 12. BEUYS, Joseph. Siberian Eurasia Symphony 1963, 1966. Painel com desenho de giz, feltro, gordura, lebre e postes pintados. 183 x 230 x 50 cm. 13. Mostra individual no MoMA, Nova York, 1978. 14. GEIGER, Anna Bella. Local da ação. Vídeo p&b. Duração: 5’. 1978. 15. GEIGER, Anna Bella. Pão nosso de cada dia, 1978. Videoinstalação. Galeria Cândido Mendes, Rio de Janeiro. 16. GEIGER, Anna Bella. Ideologia, 1973 / 1983. Vídeo em cores. Duração: 1’. Coleção no MoMA, Nova York. 17. GAUGUIN, Paul. De onde viemos? Quem somos? Para onde vamos?, 1897-1898. Óleo sobre tela. 1,39m x 3,74m. Museu de Belas-Artes de . 34 Carlos Zilio

Aluno: Como foi sua experiência como professor?

Eu fui professor da Escola de Belas Artes por alguns anos. Foi uma experiência bastante difícil, porque a Escola é uma institui- ção secular, mas que não utilizou a experiência para se renovar. Considerando isso, tentei mudar um pouco a situação e propus a criação de uma área na pós-graduação voltada para a formação do artista. Esta é uma solução comum na universidade brasileira: quando a graduação possui resistências institucionais difíceis de superar, busca-se contornar os problemas pela pós-graduação. Mas a coisa não é tão simples assim, porque, mesmo sem querer, você fica sujeito à inércia conservadora. Foi um trabalho que, acho, Memória, 2006 Óleo e bastão de óleo sobre tela ajudou a arejar um pouco a Escola, mas não ainda na dimensão 140 x 188 cm Foto: Vicente de Mello 36 37 CADERNOS EAV CARLOS ZILIO

em que seria preciso. Isso do ponto de vista geral. Do ponto de vista Aluno: Qual a importância da música, já que tem uma pessoal foi uma experiência boa no sentido de que travei contato presença tão forte no DVD? com alunos interessantes. Todo professor diz isso, e é verdade: a única coisa boa de ser professor é que você é obrigado a responder Isso é muito curioso. Durante muito tempo eu trabalhava ouvindo ao questionamento do aluno. Isso cria uma dinâmica produtiva música. Meu ateliê tinha muita música. De um tempo pra cá isso para você, professor, também. parou, não sei por quê. Da mesma maneira espontânea que come- çou, de uns anos pra cá parou. Não tenho escutado muita música. Aluno: Como foi a sua formação de artista? Mas a música está na cabeça. Nem sempre você precisa escutar para ouvir. Realmente, durante grande parte da minha vida foi Eu fiz uma escola que se chamava Instituto de Belas Artes. Como uma coisa muito intensa. Por um problema de geração, ouvia mostrou aquele DVD1, era na Praia Vermelha, onde hoje tem um muito dois tipos de música: bossa nova e jazz. Jazz, sobretudo, clube de militares. Era um lugar privilegiado, à beira-mar. O Ins- beebop. Charlie Parker, Mingus, Coltrane, enfim... Eu tenho algu- tituto de Belas Artes foi depois transferido para cá (Parque Lage). mas manias na vida, mania de alguns artistas plásticos que me É o avô desta Escola. Foi na gestão do Rubens Gerchman que o perseguem, eu sonho com eles. Hoje em dia estou mais curado Instituto de Belas Artes se transformou em Escola de Artes Visuais. disso. Em certas épocas eu ficava, ainda na fase dolong-play , O Instituto era uma escola semelhante à Escola de Belas Artes, com o mesmo disco do João Gilberto um ano na vitrola. Long- com maioria de professores acadêmicos e uns poucos modernos. -play dava muito trabalho de mudar, eram doze ou treze faixas. Acho que tem a ver com vocação. Você acha que gosta de arte, gosta Eu ficava absolutamente obsessivo. Bossa nova pra mim é muito de fazer arte, se interessa por arte e procura um lugar no qual vai João Gilberto. Marcou muito minha geração. Outro dia tive uma encontrar a orientação necessária. Um dos poucos professores discussão – no bom sentido – com um sobrinho. Ele, com ouvido modernos do Instituto era o Iberê Camargo. Minha convivência de outra geração, não sei se a mesma de vocês, dizia que achava com ele foi muito importante para adquirir uma dimensão mais o João Gilberto muito chato. É, pode ser. O sujeito reinventou a precisa do que representava ser um artista. música popular brasileira. Conseguiu criar outra sistemática de 38 39 CADERNOS EAV CARLOS ZILIO

“O importante politicamente tempo, uma batida nova. Pouco tempo depois saiu uma crônica do Veríssimo n’O Globo falando sobre pequenas aquisições que da arte é ser arte. Você mudam a história de determinados comportamentos humanos. Ele falava do estribo. Durante centenas de anos o homem caval- conseguir produzir um gava e o cavalo era tudo: meio de locomoção básico, força de trabalho. Cavalgava sem estribo. Até que na Idade Média criou-se trabalho artístico que traga o estribo, mudou toda a historia da equitação. E o João Gilberto também criou um estribo, uma batida. à sociedade uma inquietação Bom, mas estou falando sobre música. Outro dia eu estava que só a obra de arte pode relendo, ou melhor, “reouvindo” uma citação que, com todos os acontecimentos recentes, me levam a citar o Hélio Oiticica trazer, diferente de outras dizendo que tudo o que ele fazia era música. A música tem essa coisa muito determinante na arte do século XX. Acho que ela formas de cultura, da mostrou para os artistas plásticos uma espécie de liberdade de busca, de possibilidades, sem estar ancorada numa determinação ciência e da filosofia.” pragmática ou sem estar determinada por uma relação muito objetiva com o real. Isso foi muito caro para os artistas plásticos, muito importante na história das artes plásticas. Então, acho que a gente está sempre procurando fazer música de alguma maneira. Em algumas obras, mais diretamente, e em outras, como é meu caso, mais indiretamente. Mas estamos sempre dialogando com a música. 40 41 CADERNOS EAV CARLOS ZILIO

Aluno: Como surgiu o seu interesse em produzir Semana de 22, como por exemplo a de pensar o que seria a arte textos sobre arte? brasileira, a antropofagia, enfim, questões que haviam sido colo- cadas mas ainda pouco pensadas. Neste momento, começa a haver, Ao longo desses anos da minha experiência com a arte deu para tanto aqui quanto nos Estados Unidos e na Europa, essa atitude sentir mudanças importantes no circuito de arte brasileiro. Vocês dos artistas falarem sobre seu trabalho e o de seus colegas, porque podem achar que as coisas estão ruins, e a gente tem tudo para eles não viam na crítica daquele momento uma resposta sobre as achar isso. Porque estamos vivendo ainda o rescaldo do incêndio suas indagações. Embora na época não houvesse a globalização da coleção do Hélio, uma coisa dramática. Mas já foi tudo muito que há hoje e as comunicações não fossem tão rápidas, havia um pior. Teve uma época em que no Brasil os museus eram muito mais sentimento comum, difuso internacionalmente, que era esse dos precários do que são, as galerias, quase inexistentes e a produção artistas começarem a pensar a produção. E eu comecei a fazer isso teórica, muito modesta. Hoje em dia você vai a uma livraria qual- de maneira mais intensa, até porque passei quatro anos morando quer e tem uma ampla bibliografia sobre arte. Quando eu comecei na França nessa época e lá me deparei muito com essa questão de a fazer arte, nos anos 60, você tinha uma ou outra livraria especia- museus, bibliografia, etc. Esse distanciamento, paradoxalmente, lizada, que tinha alguns livros importados, e tinha uma biblioteca permite uma proximidade muito grande de uma maneira mais do Consulado Americano chamada Thomas Jefferson, na Avenida neutra, sem tantas paixões, permite um distanciamento teórico. E Atlântica. A minha geração começou com uma proposta que se aí comecei a pensar o Brasil e escrevi um livro sobre isso chamado A materializou nas exposições Opinião2 e Nova Objetividade Brasi- querela do Brasil4. Quando editado, a primeira vez foi pela Funarte leira3, que traziam alguns elementos novos, lidando já com a crise em 1982, o livro teve uma repercussão que, sem maior pretensão, do moderno, ao mesmo tempo em que estabelecíamos um diálogo foi importante para se repensar o modernismo brasileiro. Eu não muito intenso com a geração anterior à nossa, a da arte neocon- fiz doutorado em História da Arte, sou “metido” em História da creta. Eles eram mais velhos, artistas mais maduros, mas criou-se Arte. Fiz doutorado em Arte. O problema é que a história da arte um vínculo muito intenso entre as duas gerações. Por outro lado, no Brasil era muito empírica, baseada em fatos do tipo quem nas- ainda tínhamos questões que remontavam ao modernismo, à ceu, onde nasceu, foi aluno de quem. Então, mesmo estando no 42 43 CADERNOS EAV CARLOS ZILIO

doutorado de Arte, eu achei que poderia dar uma contribuição mais teórica.

Aluno: Como você escolhe o título dos seus trabalhos?

É uma questão interessante, mas deixa eu pensar melhor... Acho que não houve uma solução única ao longo do tempo para título. Titular um trabalho significa primeiro criar uma identidade mais, digamos assim, objetiva para o trabalho, mais funcional. Você consegue distinguir um trabalho do outro, no arquivo. Esse é um objetivo mais catalográfico. Mas o título pode abrir uma nova questão para a leitura da obra por meio de uma articulação entre o objeto plástico e a sua denominação de modo a produzir um outro elemento que atua na própria significação do trabalho. Ao longo do meu trabalho utilizei diferentes estratégias. Quando eu fico muito sem ideia, me utilizo da solução mais simples e coloco “Sem Título”. Aí a autonomia do espectador com relação ao trabalho é grande. Outras vezes eu faço relações um pouco mais amplas, que podem remeter a episódios e a coisas que não estão imediatamente visíveis na pintura (eu falo pintura porque sou, sobretudo, um pintor, embora não seja exclusivamente um pintor). Por exemplo: tem uma fase minha, que vai de 1992 a 2000 e pouco, muito mar- Tamanduá no outono, 2010 Tinta esmalte sobre tela cada por uma monocromia e uma indagação sobre o repertório 150 x 212 cm Foto: Vicente de Mello 44 45 CADERNOS EAV CARLOS ZILIO

da pintura. Então eu pegava a tela em branco, demarcava dentro possibilidades da arte. O importante politicamente da arte é ser arte. dela um espaço e dentro desse espaço eu trabalhava diversas pos- Você conseguir produzir um trabalho artístico que traga à sociedade sibilidades de ocupação com uma mesma cor, mas de maneiras uma inquietação que só a obra de arte pode trazer, diferente de sucessivamente diferentes. Essa série toda tem o título 794A0. outras formas de cultura, da ciência e da filosofia. Estou falando Depois vem 794A0/1, 794A0/2, esse tipo de coisa. Você pode dizer especificamente de artes plásticas. Tem ali uma especificidade. que isso é uma denominação aparentemente catalográfica, porque Eu acho que se a arte conseguir trazer essa inquietação singular à tenta estabelecer uma relação estreita entre número e forma. Não. sociedade, ela está cumprindo um papel histórico, político e social. 794A0 era o segredo da porta da minha casa quando eu voltei a morar em Paris durante seis meses em 1992. Ou seja, o código Outro dado importante com relação à arte é a possibilidade de para entrar na minha intimidade. experimentação, de investigar as suas formas de comunicação com o mundo. Evidentemente, isso está muito ligado à experiência Então era uma maneira indireta de eu situar uma relação com a de vida do artista e ao seu momento histórico. Vivi um momento pintura. Se você entender o código da pintura, você tem acesso a histórico na minha juventude muito especial. Havia uma sensa- um diálogo comigo. ção nítida de que com determinadas formas de comportamento pessoal e de atuação política se transformaria o mundo. Em dez, Aluno: Você deixou de fazer uma arte mais política. vinte, trinta anos isso se tornaria possível. Eu me lembro que nessa Como foi isso? época a ficção científica chamava-se 2001. Transformar o mundo significava propor um modelo mais generoso de convivência social, A gente nunca deixa de ser político. Impossível. Você vive numa mais solidariedade, mais justiça social. Por outro lado havia uma sociedade e está sempre atuando politicamente. Acho que existem ditadura militar no Brasil, e você não podia ler, não podia ver ou se diversas formas de ser político. No caso específico da arte, você expressar publicamente. A vida era censurada. Então, para minha pode ter no seu trabalho um vínculo político imediato. E você tem geração e para mim pessoalmente, a arte se mostrou um veículo excelentes artistas que fazem isso. Mas eu acho que isso é uma das importante nesse combate. Até que eu vi que a arte tinha suas 46 47 CADERNOS EAV CARLOS ZILIO

limitações nessa militância. E resolvi parar com a arte, em benefí- embate com o espectador, acaba virando uma coisa homogênea, de cio da própria arte, e me transferir para uma prática de militante. uniformização. Então se o espectador médio, o público, tem uma visão de arte extremamente simplória e se dizem para ele que um Acho que o escopo da política mudou muito. Nós achávamos que boneco é uma obra de arte, ele vai se identificar imediatamente de uma maneira difícil, dura, com muito sofrimento, seria viável com aquilo. Vai ser a lógica do senso comum. “Ah, isso é arte?” Não a transformação do mundo. O que demonstrou ser ingenuidade há nenhum conflito, não há nenhum confronto, nenhum questio- política. Nos anos 70, por aí, começou a haver uma revisão desse tipo namento, nenhuma indagação que surja dessa relação. Isso é um de pensamento utópico. Desses grandes sistemas de pensamento problema político. Por outro lado, desde 1980 resolvi, por uma que estavam por trás do pensamento utópico. E uma das possibi- série de fatores, ser também professor. O único lugar que tinha lidades que marcaram muito a minha geração nessa revisão foi a para dar aula como artista era a Escola de Belas Artes. Na época, questão da micropolítica. Esta tem uma eficácia não tão ambiciosa não havia possibilidade de lecionar lá, então eu fui para a PUC, quanto a outra, mas uma eficácia mais direta. O que é micropolí- onde criei um curso de História da Arte. Acho que era um modelo tica na minha vida hoje em dia? Primeiro, algo que demarcou a novo no Brasil e se distinguia por uma visão de história da arte minha geração de artistas, que é a consciência da responsabili- baseada em padrões mais conceituais e teóricos. Procurei reunir dade política com o trabalho produzido. O que você expõe, como uma equipe de professores que tinham essa concepção de história expõe, onde expõe, como aquilo circula. Esse é um compromisso da arte. Além do debate dentro de novas bases, desenvolveu-se um político do artista. Não deixar que seu trabalho seja diluído por um trabalho significativo de pesquisas e publicações como a revista sistema de apropriações que esvazie sua densidade cultural. Esse Gávea, que divulgava os trabalhos de alunos e professores, bem é um dado político importante. Por que nós, por exemplo, há uns como de diversos autores fundamentais para o pensamento sobre dois meses, estávamos aqui no Parque Lage, dezenas de artistas arte, muitos dos quais, até então, inéditos no Brasil. Um legado reunidos brigando por ocupação do espaço público? Porque se concreto deste curso foi a produção de exposições que repensa- você começa a colocar boneco por toda a cidade, o papel da arte, vam a história do modernismo brasileiro, que era calcada em Di que é de questionamento, de criar relação de perplexidade ou de Cavalcanti, Portinari, e nós propusemos Goeldi e Guignard como 48 49 CADERNOS EAV CARLOS ZILIO

alternativas mais pertinentes. Uma nova relação com a história da “Um dia fez-se arte. arte, um novo tipo de abordagem, produzindo diversas pesquisas que eram reunidas em catálogos-livros, e que conseguiu formar Existe um gesto do diversos profissionais que hoje atuam expandindo esses princí- pios. Eu tenho a pretensão de ter ajudado a tornar isso possível. Acho que foi uma militância político-cultural-profissional. Como homem que transforma também política foi minha inserção na Escola de Belas Artes, para a qual fiz concurso em 1994. Eu podia ter chegado lá para ser um professor como faz grande parte dos meus colegas, que cumprem a vida social. E esse seu dever pontualmente. Vão lá, dão boas aulas, corrigem as provas e pronto, terminou. Mas achei que era minha obrigação política gesto nunca parou de trazer alguma inquietação àquele ambiente de tranquilidade con- servadora. E coloquei uma pedra lá no caminho das pessoas. Não sei se a pedra continua lá, mas eu espero que sim. É uma outra ser feito daí em diante maneira de atuar politicamente. porque se tornou algo A arte está no terreno da investigação. Acho que a característica da arte é o fato dela ter duas dimensões: uma dimensão histórica, e a outra é sua relação com o presente. Nós artistas reatualizamos vital para a sociedade.” no nosso ofício o gesto do primeiro homem que criou a arte. Esse primeiro homem criou a arte do nada. Imagina a humanidade: milha- res de anos atrás, digamos, trinta mil anos aproximadamente, não existia arte. Um dia fez-se arte. Existe um gesto do homem que 50 51 CADERNOS EAV CARLOS ZILIO

transforma a vida social. E esse gesto nunca parou de ser feito daí em conseguir uma solução, uma resposta para você mesmo sobre diante porque se tornou algo vital para a sociedade. Mas ele tem duas aquele problema, depois não tem sentido permanecer nele. Daí os características: carrega essa potência de ter feito do nada algo, mas cortes internos no processo global do trabalho. O trabalho pode, ao mesmo tempo se renova porque responde a novos desafios, a uma em alguns momentos, comportar uma subjetividade própria, meus nova realidade, a novos momentos históricos, a um novo arranjo da fantasmas pessoais, mas mesmo eles estão sintonizados em relação sociedade. Para ele se transformar, os agentes dessa transformação, à obra de alguns artistas. Esses artistas vão se sucedendo como que são os artistas, têm que experimentar, têm que buscar esse algo referenciais a serem problematizados, gerando essa aparente que corresponda a essa nova arrumação da sociedade. descontinuidade interna no processo geral do trabalho como uma sucessão de questionamentos que, uma vez enfrentados, se abrem Esse DVD é de 2002. Posteriormente, em 2006, foi editado um para um próximo desafio. livro sobre o conjunto do meu trabalho. O acompanhamento dessas duas iniciativas me motivou a ter uma visão mais global do meu trabalho. Se você pegar o conjunto, tem estes cortes abruptos, uma aparente descontinuidade.

O eixo central que articula esse processo é pensar o que é pintura, ou, em outras palavras, pintar a pintura. Este questionamento adquiriu, com a crise da modernidade e a perda do estatuto da pintura como suporte padrão, uma nova característica destitu- ída da certeza de que a prática pictórica trazia um sentido em si. Optar, portanto, pela pintura no final da década de 1970 impunha se relacionar com ela como um dado externo a ser problematizado. Então você vai pensando determinados problemas pictóricos até 52 53 CADERNOS EAV CARLOS ZILIO

Notas Saiba mais

1. Carlos Zilio. Direção Mario Carneiro, Márcia de Medeiros. Produzido por Trampo http://www.carloszilio.com televisão e cinema. Série Rioarte Vídeo – Arte Contemporânea. Rio de Janeiro: Rioarte, 2002. DVD, 24 min. ZILIO, Carlos. Arte e política: 1966-1976. Curadoria Vanda Mangia Klabin; textos Paulo 2. Exposições coletivas realizadas no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 1965 e Sérgio Duarte, Fernando Cocchiarale, Frederico Morais, Jayme Maurício, Roberto 1966. Pontual; versão em inglês Ricardo Gomes Quintana; Hélio Oiticica, Ronaldo Brito, 3. Exposição coletiva realizada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 1967. Rosa Freire D’Aguiar. Rio de Janeiro: MAM, 1996. 71 p., il. 4. ZILIO, Carlos. A querela do Brasil: a questão da identidade da arte brasileira: a obra de ZILIO, Carlos. Carlos Zilio. Curadoria e texto Paulo Venâncio Filho; textos Cesar Oiticica Tarsila, Di cavalcanti e Portinari, 1922-1945. Rio de Janeiro: Funarte, 1982. 2. ed.: Rio Filho; versão em inglês Carolyn Brisset. Rio de Janeiro: Centro de Arte Hélio Oiticica, de Janeiro: Relume-Dumará, 1997. 2000. 54 p., 35 il. 5. ZILIO, Carlos. Série 794AO, 1992-1998. ZILIO, Carlos. Carlos Zilio. Organização Paulo Venâncio Filho; textos Jorge Guinle, Paulo Sérgio Duarte, Paulo Venâncio Filho, Ronaldo Brito, Wilson Coutinho, Yve-Alain Bois. 6. VENÂNCIO FILHO, Paulo (Org.). Carlos Zilio. São Paulo: Cosac & Nayfy, 2006. 216 p. São Paulo: Cosac Naify, 2006. 216 p., il. 54 ERNESTO NETO

Estudei aqui. Faço escultura, mesmo quando desenho ou fotografo. Às vezes até acho que faço pintura em alguns trabalhos, mas os pintores se chateiam quando falo isso, aí prefiro dizer que faço esculturas com cores. Os pintores labutam muito para misturar as tintas e eu nunca gostei de trabalhar com essa coisa grudenta, não gosto de limpar pincel.

Aos 16 anos tentei entrar na escola no MAM. Na época, não fazia ideia do que era arte, nem sabia onde ficava uma galeria. Matriculei-

-me no curso que tinha um fôlder, desenhado pela Fernanda Gomes, Descaminhos de Lili, 2000 uma artista muito interessante. Ele se desdobrava todo de um Tule de poliamida e areia Dimensões variáveis quadradinho até aparecerem todos os cursos, cada um num qua- Vista da instalação: Museu de Arte dradinho. No primeiro quadrado o texto dizendo: “Para desenvolver Moderna, Rio de Janeiro, 2000 Foto: Ana Stewart 56 57 CADERNOS EAV ERNESTO NETO

o artista em potencial”. Como não era artista, só queria fazer umas muito para isso. Meu pai pirou, minha mãe me dava apoio, meus esculturas, fiquei muito intimidado, com medo que tivesse um irmãos achavam legal e os amigos adoravam. Aos poucos, minha monte de artistas, e não fui. Dois anos mais tarde, depois de aban- mãe ficou preocupada com as finanças, com a sobrevivência, depois donar o curso de engenharia, no meio do segundo período, fiz o meus irmãos começaram a achar estranho e meus amigos acharam vestibular para astronomia. Eram 25 vagas e eu não passei. Acho que eu devia viajar. até engraçado achar que ia passar, mas talvez fosse uma maneira de sair da engenharia, onde meus colegas gostavam de conversar Depois que você aparece no jornal, as coisas começam a mudar. A sobre o funcionamento das máquinas, do micro-ondas, e eu só realidade é muito mediada pela opinião dos outros, pelos resulta- gostava das aulas de matemática e de física. Embora minhas notas dos. Queria fazer escultura e estava numa escola em que a pintura não fossem muito boas, era maravilhoso passar aquelas seis horas era totalmente dominante. Dois anos depois da primeira tentativa, numa segunda-feira estudando matemática. voltei para o MAM e me inscrevi, porque eu já não tinha mais tempo para ter medo. Tem hora que podemos ter medo e outras não, talvez Sem destino certo, fui para a Bahia, e uma namorada carioca me não tivesse mais medo porque amadureci a ideia. Tenho dúvida se disse que fazia aulas de escultura em barro no Parque Lage. A minha a questão é relativa ao amadurecimento ou à falta de alternativa. infância inteira fiz escultura em barro, e vim para o Parque Lage Se você pode pular num abismo ou correr para o outro lado, acho ter aulas com o Jaime, no início da Geração 80. A escultura não era que você tem uma oportunidade. Ninguém pula no abismo, se tiver valorizada, porque era a época da pintura. Mas eu gostava de pegar outra oportunidade e, de alguma forma, talvez na minha situação na matéria e não queria um pincel como intermediário. emocional ou situação real, era só um curso de arte, não precisava ficar com medo das pessoas, dos artistas, até porque já comecei a Fazer arte tem relação com a vida, com o cotidiano, com o que achar que ia virar isso mesmo. tocamos. Caí nisso meio por acaso. Quando fiz minha primeira escultura, fiquei muito feliz e percebi que era aquilo que queria No MAM, tinha aulas com o Moriconi. O fato é que estava fazendo fazer da vida. Nunca tive uma certeza tão grande e tive que lutar esculturas e quis fazer uma conceitual. Não sabia bem o que era 58 59 CADERNOS EAV ERNESTO NETO

isso, não era uma coisa tão seca como acho que é a arte conceitual. o bloco de fórmica, a espuma e o tecido iriam apresentar o peso Umas coisas dos anos 70 apareciam no meu imaginário. dessa bola e a relação desse peso com aquele ambiente.

Fiz a escultura conceitual. Era um quadrado de fórmica, de 60 Cada artista tem uma maneira de desenvolver seu trabalho, uma x 60 cm e 10 de altura, com uma bola em cima, depois o mesmo relação de afeto com o trabalho, não é à toa que fui direto ao tecido quadrado de espuma, e essa bola teria um peso que deformaria e trabalho com isso até hoje. E nessa coisa do relacionamento, essa espuma, e o terceiro trabalho era uma estrutura de madeira tem um artista que acho demais entre os modernistas, e não é o pendurada com um tecido esticado e uma bola sobre esse tecido, Duchamp – é o Brancusi. O Brancusi fez várias versões de O beijo1, essa bola esticaria o tecido. Primeiro, descolei o tecido na casa da discutiu muito a questão da base na escultura, questão que foi quase minha avó, que vivia costurando. Perguntei a ela qual o tecido que eliminada na arte contemporânea. Você faz um desenho e tem a esticava e ela respondeu: “jérsei”. Comprei, descolei a madeira e folha em branco, você tem a sua história, tem a história da arte e fiz uma bainha para entrar a escultura na madeira. Enfiei o tecido tem os seus desejos e a sua própria loucura. Faz uma pintura, tem a na madeira, saía farpa para todo lado, não escorregava, não tinha tela em branco, faz uma escultura, tem a pedra, mas o que acontece nada a ver. Pensei que madeira e tecido sintético não se bicam. hoje é você ter a galeria – ela passou a ser o papel em branco. Um O meu trabalho é muito sobre relacionamento, isso para mim é espaço vazio para o artista ir lá e fazer o trabalho. A galeria cubo muito importante. Tudo na vida é relacionamento, das coisas com branco é uma invenção do século XX, de meados do século para cá, o espaço, da mesa com o chão e do objeto que está sobre ela, e essa que domina o nosso fazer artístico. mesa com esse espaço. Nunca dou uma palestra igual à outra, não preparo uma palestra, acho interessante a coisa acontecer dentro da Quando se começou a falar em instalação, eu fazia escultura e faço atmosfera do momento. A situação e a pergunta alteram a resposta. até hoje. Vocês veem uma instalação minha – ela é uma escultura. Faço escultura assim, como uma coisa que altera a outra. Era isso Até entendo que alguns trabalhos possam parecer mais com uma que queria ver com a bola, o peso da bola ia deformar em relação instalação, mas são esculturas para mim quando não tendem para a ao recipiente que a recebia, o material da bola era constante, mas pintura. Talvez seja tradicionalista, mas a arte hoje tem milhares de 60 61 CADERNOS EAV ERNESTO NETO

opções que não têm nada a ver com o que faço. Você pode fazer arte você, Geração 80?2, mas, a partir de um dado momento, comecei de qualquer maneira e o lugar mais livre hoje é a galeria de arte. Tem a achar os artistas dos anos 70 muito mais interessantes, como gente fazendo cinema inviável no grande circuito que acaba caindo Tunga, Waltercio, Cildo, Antonio Manuel, Barrio, José Resende. numa galeria de arte, crescendo e desenvolvendo novas linguagens, É normal ser crítico ao trabalho anterior, é importante. Todos eles sem falar da Internet. Fui apresentado ao computador com trinta foram muito importantes pra mim, e tenho certeza de que vieram anos de idade. Existe uma renovação do relacionamento social na depois gerações que eram extremamente críticas ao meu trabalho música e na arte através da tecnologia. Quem sabe a arte consiga sair também. Faço esse trabalho aqui, é só o que faço, é a minha vida, um dia do cubo branco, da galeria, e acontecer em outros lugares. onde fui me encontrar, ocupar meu tempo. Às vezes, trabalhar significa ficar deitado na rede até se achando deprimido, é não fazer Antes falava sobre Brancusi, da passagem da base para o espaço. nada e depois conseguir se levantar e fazer alguma coisa. Muitas Vejo uma galeria como uma folha em branco. Qual é a roupa que vou vezes não sabemos para onde ir e não adianta bater pra cá e pra lá, colocar nessa festa? Como vou me comportar ali, quais as relações mas a vida e a arte são assim. Você realiza um dia uma coisa e acha dessa galeria com o espaço em torno dela, é um lugar institucional? que seus problemas estão todos resolvidos, até o momento em que É um museu, uma galeria comercial, quem me convidou? Qual a você cai de novo no vazio e tem que recomeçar. De alguma forma, a relação afetiva que tenho com essa pessoa? Essa já é uma situação arte é algo em que você começa, chega num momento e despenca, quando você vai expor o seu trabalho. e se encontra novamente, como se fosse um eterno retorno. Essa escultura, a pseudoconceitual,­ não a fiz, e só fui perceber a impor- Sobre a situação da escultura que achava conceitual, que tem mui- tância dela na minha vida anos depois. Quando reconheci isso, tas maneiras de se manifestar, a arte sempre tem conceitos por percebi que, de alguma forma, já tinha feito essa escultura várias trás, não basta colocar emoção. Embora a Escola de Artes Visuais vezes, sem reparar que estava fazendo. Embora não tenha feito do Parque Lage tenha sido uma influência muito forte em minha aquela escultura naquele momento, e quando digo aquela, digo a vida, eu fui inclusive influenciado pelos principais escultores da última parte, a de tecido, pois as outras nem comecei, a afetividade Geração 80, Barrão, Venosa e Mauricio Bentes, estava na Como vai me levou para a elasticidade e a gravidade, como se as outras duas 62 63 CADERNOS EAV ERNESTO NETO

partes fossem uma estratégia mental para chegar onde queria, a que se tornou túmulo de pessoas importantes, um templo-túmulo, esfera pendurada na superfície de tecido deformando-a. Enfim, representante da república). E ela queria saber como duas cul- não a realizei naquele momento, mas tinha o material em casa. turas tão diferentes podiam estar em tanta sintonia no mesmo Algumas semanas depois dessa tentativa frustrada, fui ao balé do lugar? Pensei, culturas tão diferentes? E a quinta pergunta dela Nikolais Dance Theater, que tinha uns trabalhos de elasticidade foi: “Como você se sente, expondo em países ocidentais”?” Estra- de tecidos em relação ao corpo. Pensei que era o que queria fazer, nhei a questão e, como já disse, perguntei a todo mundo. Na época fiquei muito impressionado e percebi isso como escultor. Por isso, morava no interior da França, em Saché, na pequena cidade onde quando faço um desenho, uma pintura, me vejo como escultor, fiz residência no ateliê do Calder, novamente cruzando meu des- penso o corpo no sentido tradicional da escultura. Me amarro nas tino, artista americano bem importante, que foi para a França em esculturas egípcias, gregas, me formei assim, lendo a história da meados dos anos 20 e tinha uma ligação muito forte com o circo. arte ocidental. Até três anos atrás achava que era ocidental, não Ele fazia umas esculturas figurativas incríveis de arame. Nas aulas sei o que ensinam nas escolas hoje em dia, mas quando era garoto, do Moriconi, tive acesso a um livro dele, pesquisei, até me tornei me ensinaram na escola que eu era ocidental, estudei a história da bom aluno. Pela primeira vez, o cara dava um dever de casa, sugeria Europa e do Brasil, em paralelo. Mas há uns dois anos, descobri que dois exercícios e eu trazia dez, quinze, o professor ficava feliz da não sou ocidental. Morava fora do Brasil e os ocidentais originais, vida e eu também, era um aluno exemplar. Realmente foi uma os europeus, os que inventaram o Ocidente, disseram que o Brasil mudança radical em minha vida, eu que sempre tive dificuldade não era Ocidente e comecei a pesquisar esse assunto, lá mesmo, em passar de ano... perguntando a todos e finalmente liguei para dois grandes amigos, que conhecem bem o Rio, descobri que, pelo menos para o europeu, Voltando à aula. Fiz essa escultura de arame. Tinha esses arames o Brasil não é considerado Ocidente. Tudo começou quando uma em casa, porque fiz várias esculturas com ele. Eram uns cinco estudante finlandesa me mandou umas perguntas: “Como é esse milímetros, de alumínio, mole, mole de fazer qualquer coisa. No seu trabalho nesse lugar? (fiz um trabalho3 no Panteão na França, dia seguinte do balé Nikolais, foram todos à praia, domingão, eu um lugar feito para ser uma igreja, com uma estrutura neoclássica não fui – caí num vazio, ali de repente. Essa questão da arte foi 64 65 CADERNOS EAV ERNESTO NETO

“Vocês veem uma instalação quando vi aquela primeira escultura, de barro, mais tradicional, e se relaciona com os trabalhos de hoje, se olharmos com atenção. minha – ela é uma escultura. Olhar com atenção é uma questão. Essa atenção, a criança tem muito rápido. O mundo ficou completamente diferente depois que Até entendo que alguns comecei a fazer arte. E o que é difícil de conceber na ideia de, de repente, começar a fazer arte, me parece não ser o ato de fazer, mas trabalhos possam parecer uma tomada de consciência de começar a encontrar a arte pelos cantos do mundo, uma espécie de olhar que adquirimos sobre o mais com uma instalação, cotidiano. Demorei alguns meses para perceber isso, mas o mundo onde vivia e o mundo onde passei a viver se tornaram duas coisas mas são esculturas para completamente diferentes, o olhar das coisas, o espaço entre as coisas, a relação entre as coisas, entre as pessoas, para mim, tudo mim, quando não tendem é escultura. Nós, aqui agora, o aglomerado de vocês, a posição de cada cadeira, a maneira como vocês estão sentados, como um está para a pintura.” posicionado, o microfone, as duas águas em volta, o copo, os fios que se cruzam, ele aqui com headphone, tudo entrando e saindo. O que acontece quando tudo isso entra, sai, vai para outro lugar, se expande, a imagem vira som, as relações sociais, políticas, tudo para mim é passível de ser visto como uma escultura. Em tudo existe uma tridimensionalidade, seja estática ou em movimento, criando uma relação entre as coisas, entre os poderes, entre as forças envolvidas; mesmo que você entre numa questão abstrata de poder, de força, de energia, essas coisas também têm forma, 66 67 CADERNOS EAV ERNESTO NETO

tempo, espaço, peso, volume, cheiro. Comecei a ver o mundo de Tem artista que adora andar, o Tiravanija e o Francis Alÿs, por maneira muito diferente. exemplo. No andar você pensa, oxigena, tem a ideia da viagem, vários escritores falam disso. Você se dá liberdade de parar de A questão do desconforto é também importante, a vida é cheia de trabalhar, o artista é aquele que olha. Como desenhar modelo vivo, pequenos desconfortos, às vezes enormes, uma série de momentos escorço, certas coisas quando você olha de fato e começa a botar em que aparece um vazio gigantesco. Essa situação do “entre”, aquilo no plano para desenhar, pode ser assustador. No nosso coti- não foi mais bem descrita que por Lygia Clark, cujo trabalho, a diano, quando olhamos as pessoas ou as coisas, é o nosso cérebro vida toda, foi em torno do entre. Acho que o meu também, embora que reorganiza tudo, mas se observarmos de fato o olho, a boca, o já veja de outra forma. Essa artista, essencial na história da arte nariz, aquilo é tão presente que pode ser assustador, a realidade brasileira e no entendimento da passagem do modernismo para das formas, das cores do que é olhado, pode ser muito brutal. A o mundo hoje, descobriu a Linha orgânica4. A definição da linha terceira coisa interessante sobre o fato de ser artista é que no vazio orgânica tem muito a ver com Brancusi. Com O beijo, com o entre- se pode ter uma situação de começar a olhar alguma coisa e uma beijo, aquele bloco dividido, aquelas duas caras separadas que se pipa começar a voar, ou um papel, e você começar a ver a poesia unem. Ele fez a Avenida dos heróis, uma rua com a forma de um naquilo, a embarcar dentro dela. Existe essa válvula de escape, esse termômetro: no bulbo fica aMesa do silêncio, depois o Portal lugar onde você pode embarcar numa outra realidade, e pode ser do beijo e a Coluna do infinito5. Era romeno, foi para a França simplesmente um momento trivial. andando. Brancusi estudou na Escola de Belas Artes na Romênia, fez uma escultura tipo esses bonecos de plástico com os múscu- Desenvolvi esculturas, basicamente criando a estrutura de um los aparecendo para estudo de anatomia. Ele fez uma escultura cubo feita daquele arame de alumínio, só as arestas e dentro desse que era só musculatura, sem a pele, na época da academia dele. cubo colocava dois pedaços de tecido em estado de tensão, como Ele queria ser artista e parece que a França era “o lugar”. Ele foi se tivesse um reator, um acontecimento dentro daquele cubo, em andando, não sei se não tinha dinheiro, nem sei se tinha trem seguida comecei a agrupar aqueles cubos e modular a posição dos nessa época. tecidos, das relações e das cores. É um trabalho pictórico. Um dia o 68 69 CADERNOS EAV ERNESTO NETO

Zé Maria, que dava aula ao lado, viu, curtiu e me animou. Isso que se ele quisesse botar aquela escultura no espaço vazio, e ainda não vou narrar para vocês discute essa passagem da escultura para o fosse possível por uma questão cultural, talvez. As questões com que espaço, que é a situação dominante na cultura que vivemos hoje nas lidamos são as possibilidades culturais, sua operação de trabalhar artes plásticas. Queria tirar a estrutura porque, no relacionamento as bases como protagonistas da obra era quase o deslocamento da daqueles elementos modulares, pensava muito no Amílcar, no escultura para o espaço, que veio em seguida, no pós-guerra. Há Sérgio Camargo, queria eliminar a presença daquela estrutura de um livro interessante chamado A história do espaço: de Dante à alumínio, e o Moriconi disse para pintar de preto que ela sumiria. Internet7. A autora fala que o espaço medieval era muito diferente, Fiquei um ano pintando a estrutura de preto, claro que ela não tinha o espaço dos vivos, dos mortos e das pessoas que ficavam no sumiu – ficou discreta, mas ainda lá, e pintada. Para eliminar a meio. Os vivos se comunicavam com os mortos por intermédio do estrutura, comecei a usar a gravidade, comecei a pendurar a estru- padre, dando dinheiro para eles ascenderem. Para o imaginário tura para ver como se comportava no espaço. Basicamente retirei as coletivo daquela época isso era uma realidade e a pintura, que de colunas do cubo utilizando um chassi acima e abaixo do aconteci- alguma forma era conceitual, também era uma realidade. A religião mento, que finalmente evoluiu para duas placas de ferro pintadas de ocupava um espaço na estrutura simbólica do ser humano dando preto. O peso dessa placa de baixo deformava o tecido e achava que sentido à vida. Assim, quando Giotto pintou pessoas tridimensio- a escultura ficava numa situação de suspensão temporal, além do nais, pela primeira vez na história, foi a primeira vez na história espaço tensorial. Um equilíbrio que me interessava muito, porque da humanidade que tinha a pintura naturalista, pelo menos na continuava estudando astronomia e a gravidade, isso me levava cultura ocidental. exatamente para o centro do problema. A ciência, assim como a história e a antropologia, me interessa – uma descrição científica Ainda sobre sermos ocidentais, liguei para meus dois amigos que já para mim é quase um poema. A Mesa do silêncio6, do Brancusi, é estiveram aqui no Brasil e perguntei se eles achavam que o Brasil simplesmente uma base, bem pesada, com um disco maior em é um país ocidental. Eles disseram que não. Perguntei a um deles baixo e um menor em cima, e acima do chão ele podia criar uma se era porque tem o preto, o africano, o índio; ele respondeu que escultura, um espaço no plano para ela existir sobre o plano. Como sim. Perguntei sobre os EUA e disseram que lá era ocidental. Disse 70 71 CADERNOS EAV ERNESTO NETO

que lá tem preto também, tem índio, mas lá não teve essa mistura... lugar para a pureza das esculturas gregas ou aquela introspecção A cultura latino-americana é muito diferente da americana, tal- das esculturas egípcias, é diferente. vez pela miscigenação, primeiro com o índio, depois com o negro. Minha outra amiga falou que não éramos desenvolvidos, perguntei Foi muito importante para mim o entendimento da escultura do Japão, novamente um conflito sem resposta! Bolei uma frase, em desse mundo clássico e acho interessante essa relação orgânica inglês fica melhor:We are not pure, we are poor (não somos puros pela dinâmica com o espaço. Há a noção do espaço como um lugar somos pobres), isso faz a gente ser diferente e acho maravilhoso vazio e muitas vezes o espaço que a gente trabalha hoje é o espaço não ser ocidental, libertador. virtual, é o espaço contemporâneo. Quem faz um microchip para criar relações e transferir imagens, cria uma série de circunstân- Em artes plásticas tem todo um estudo que vem da Europa, quando cias, trabalha num espaço reduzido e extremamente orgânico, estive no México pela primeira vez e vi as esculturas astecas e olme- uma coisa muito ligada à outra. A cada dia, a sociedade tem mais cas, fiquei chocado, inacreditável! A escultura egípcia tem a questão gente, as pessoas vivem em apartamentos menores, tudo é mais da função, parece que uma pirâmide que vem daqui, sai dali e vai apertado. Cada vez mais, temos que lidar com espaço menor. Assim para o céu, e tem uma coisa gasosa, preta, lembra a morte, a escuri- voltamos a Margaret e seu livro, o espaço de Giotto, apesar da figura dão. A escultura grega segue um ideal de movimento, de estética, de volumétrica no entrefiguras, continuava sendo uma massa, pois beleza, a sociedade ideal, parecia que eles queriam que a escultura o vazio ainda era um tabu, o Deus cristão estava em todo lugar. também deixasse de ser pedra. A sensação que tive quando vi essas Assim o vazio não podia ser representado, passaram-se duzentos esculturas olmecas e astecas é que eles queriam que elas fossem anos para se reverter esta estrutura simbólica. mais pesadas que a pedra. Acho que dá para entender um pouco a estética ocidental pela relação da figura com o fundo – a visão Na escultura do Brancusi, na Avenida dos heróis, tem essa mesa, esse de horizonte expandido, a força do espaço vazio, onde o ser está espaço hipotético, a base para uma escultura pousar naquele lugar, isolado por grandes distâncias, até as florestas espaçadas do Cha- porém ela está vazia. Os bancos dessa mesa são esferas cortadas ao peuzinho Vermelho. Há uma violência no trabalho que não deixa meio e viradas uma para cima da outra, fazendo seis banquinhos. 72 73 CADERNOS EAV ERNESTO NETO

Você continua nessa avenida e vê o Portal do beijo8, é um local que representa o beijo. Todo o relacionamento das pessoas, todos os relacionamentos seriam um beijo. O próprio relacionamento que temos aqui seria “um beijo”, porque as circunstâncias das per- guntas que vocês fazem vão definir a minha resposta. E no final tem a Coluna do infinito9, como falei antes, as bases começaram a virar esculturas, as horizontais/mesas e as verticais/colunas. O que acontece nesses dois trabalhos? O trabalho começa com uma base e termina com outra base passando pelo portal, a escultura que dá origem é a mesa e a que termina é a coluna, são duas bases. Já não é mais a escultura, mas a base que virou escultura. Acho que isso tem uma perspectiva de uma entrada no espaço do cubo branco, que seria esse espaço de transição da modernidade para a pós-modernidade, porque ela talvez comece com esse espaço, mas, de alguma forma, a pós-modernidade já saiu desse espaço.

Aluno: Você fala que a pós-modernidade saiu do espaço para a galeria?

BarraBola, 1988 Acho que sim. O espaço do cubo branco se desenvolveu no final Barra de ferro, bola de borracha do modernismo e o começo da pós-modernidade pôde se dar pelo 6 peças _ 175 x 5 x 5 cm cada 1 peça _ 140 x 5 x 5 cm nascimento do cubo branco. Neste mesmo momento, nos anos 60, Vista da Instalação: Espaço Petite Galeire, já tinha um monte de gente fazendo coisas fora da galeria, como o Rio de Janeiro, 1988 Foto: Marco Terranova 74 75 CADERNOS EAV ERNESTO NETO

Yves Klein, o Manzoni e outros artistas. Na verdade, essa entrada se tornando um monumento desta, que ainda é, apesar de voltar na galeria já acontecia, se pensarmos nas esculturas gregas, astecas, a ser igreja e alternar entre templo republicano e igreja até que a mas não tinha a menor relação com o cubo branco. O cubo branco república depois de muitos anos se consolidasse finalmente. Ela é talvez represente o ápice do modernismo. uma representante simbólica da passagem da idade medieval para a moderna, no sentido político. Outra experiência sensacional lá é Aluno: Modernismo ou pós-modernismo? o Pêndulo de Foucault. A cúpula tem 60 metros de altura e no alto tem um cabo com uma bola. A experiência, feita em outro lugar Modernismo, meados do século XX. Estava até falando que ele seria primeiro e depois levada pra lá, é a seguinte: puxamos a bola para a passagem para a modernidade, mas o ápice pode ser a passagem um lado e a liberamos em movimento pendular. Se o pêndulo for ou o fim nos dois sentidos do termo. Quando fiz a escultura no voltar sempre para o mesmo lugar significa que a Terra não gira Panteão, o espaço era o monumento. O Panteão foi realizado na em torno de seu próprio eixo, mas, se ele, a cada movimento de vai época de Luís XV, e a igreja de Santa Genoveva foi destruída pela e vem, for um pouquinho para o lado até dar uma volta completa, guerra, mas as pessoas se uniram ali e alguma coisa se salvou. Então significa que a Terra gira em torno do próprio eixo. A teoria já esse rei resolveu fazer uma igreja no mesmo local. Ele queria fazer existia e a experiência provou a teoria. O que tinha nessa igreja algo para o povo, mas também para mostrar poder – é uma estru- quando fui colocar o trabalho lá? Essa transação política e esse tura enorme, neoclássica, uma arquitetura de poder. Essa igreja objeto da representação da coisa fundamental da modernidade, demorou uns vinte anos para ficar pronta, foi o projeto do arquiteto a ciência. Foi ela quem quebrou a estrutura religiosa: Descartes, Soufflot, que já tinha morrido quando a obra foi inaugurada. E isso Leibniz, Newton, no sentido da razão, causa e consequência. Tem aconteceu no ano da Revolução Francesa, parece piada, ou talvez um livro de um cara muito interessante chamado Bruno Latour seja por isso mesmo, uma coisa impulsionando a outra. A igreja feita da Editora 34, Jamais fomos modernos10, e ele fala a mesma coisa para o rei mostrar poder talvez fosse a determinante para destruir que estava pensando, ele fala do Hobbes com o Leviatã, e é o nome o poder dele. Pois rapidamente deixou de ser igreja, representante dessa escultura que botei lá no Panteão, era para ser uma escultura da monarquia, e passou a abrigar o corpo dos heróis da república, de especiarias... 76 77 CADERNOS EAV ERNESTO NETO

Quando fiz essa escultura no Panteão, era o ano do Brasil na França o Pêndulo. Ia fazer a escultura de especiarias. Acordei, cinco dias e fui convidado pelo Festival de Outono para fazer uma escultura antes da reunião dos curadores com os representantes civis, com numa igreja chamada Salpetrière. Esse festival de arte, música, outra escultura na cabeça, toda de isopor, pendurada, com o nome dança e teatro convida artistas todos os anos. Ocupa espaços na Leviatã. Estava em pânico, tem um monte de gente que não gosta cidade, nas artes plásticas, e o projeto principal é o da Salpetrière, do meu trabalho e outros me acham folgado de chegar e fazer tra- é uma igreja linda, doce, tem uma relação com a mulher, em con- balhos grandes. Tem uma amiga e artista genial, Rosângela Rennó, traste com o Panteão, extremamente masculino, no sentido bruto. que queria fazer um trabalho sobre os negativos do Carandiru. O mundo é feito de homens e mulheres, é tudo uma continuidade, Ela queria ter acesso a esses negativos e entrou numa burocracia uma coisa termina e começa outra, meu trabalho é sobre isso. A enorme para obter isso. Começamos a conversar de trabalho, ela Salpetrière é mais delicada que o Panteão, ela é parte de um hos- reclamou dos problemas e encontrou uma solução por fazer algo pital para onde, até o final do século XIX ou começo do XX, eram que ela ama. É assim comigo também, tenho meus problemas, o enviados os malucos, as histéricas e as putas. que é bom, administro os problemas do meu trabalho.

O projeto já estava pronto, e o trabalho anterior que ocupou o Estava preocupado em fazer uma coisa muito grande com essa espaço era da Nan Goldin. No caso, o trabalho era sobre sua irmã, escultura, sabia que teria uma ressaca. Avisava que faria um mons- sobre sua educação religiosa e repressora, e como essa se matou. tro, uma anomalia, para a ressaca vir menor. E acordei com esse Achei tudo surreal de acontecer numa igreja. Em dezembro, apre- nome, Leviatã, e com essa escultura diferente, tive de correr atrás sentei os projetos aos curadores e a exposição abriu em setembro para desenhar esse projeto também. Apresentei os dois projetos e do ano seguinte. Em janeiro, recebo uma carta dizendo que os felizmente escolheram esse. O trabalho já tinha esse nome, Leviatã, padres se juntaram e fecharam as portas, não queriam mais saber o do Hobbes, no qual Leviatã é o nome do monstro monárquico, o de Festival de Outono e nem de exposição nenhuma ali, pegaram o Estado. Esse nome tem vários significados, mas para mim “perverso trabalho da Nan Goldin como exemplo e romperam. Passaram-se é aquele forno de micro-ondas todo branquinho na vitrine e o cara seis meses e me ofereceram o Panteão. Já tinha ido lá para conhecer babando querendo comprar”. Nunca fomos modernos, voltando ao 78 79 CADERNOS EAV ERNESTO NETO

livro do Latour, ele usa dois elementos para falar da modernidade espessura, fazia dois furos, de 8 mm de largura na parte de cima e depois dizer que nunca fomos modernos – Hobbes, em Leviatã, da placa. Primeiro fazia um furo menor de 5 mm e outro de 10 falando da política. e a experiência Bolha de Boyle, uma experiência mm sobre esse furo e enfiava o tecido por esse buraquinho, dava em que se cria um espaço num vácuo, para fazer uma experiência um nó, escondido pela chapa, e o tecido esticava. Mas depois esse científica, um lugar ideal, livre de “ruído”. A experiência científica tecido rasgava, talvez por causa do corte, hoje até daria para fazer seria o significante maior da modernidade, além da república na sem rasgar. Eu não gostava dessa questão da porquinha, dos dois parte política? Você cria um espaço ideal para, nesse espaço, realizar buracos, achava essa finalização suja. Suja até no sentido de que uma experiência. Acho que o cubo branco é isso, por isso comecei a tinha muitos elementos e no sentido ético também. Então fiz uma pensar o cubo branco como ápice do modernismo. O modernismo escultura. Era apenas um buraco no alto e centro de chapa de ferro se desenvolveu de certa maneira dentro da tela, com Malevitch, de 20 por 50, por este furo passava uma corda e com um nó aparente fazendo o branco sobre branco11, ou Mondrian, ou quando você conectava esta em equilíbrio a um gancho na parede. Tinha uma decupa o máximo possível do espaço e traz a arte conceitual. O perda de sensualidade e carnalidade que era importante para mim, próprio Manzoni, com o pedestal do mundo12, ou com a merda do mas tinha um ganho conceitual. Na minha crítica à arte conceitual, artista13, representa o momento em que se chegou a essa decupação o interessante é que para se apresentar o conceito tem que tirar a total do espaço. Isso sem falar do Duchamp, que me parece mais carne e entrar na questão do Platão. Sou antiplatônico, o que é até ligado à instituição, ao valor do lugar. O mais interessante na con- interessante, porque meu trabalho é muito racionalizado, tenho temporaneidade é a saída do cubo branco. que calcular uma série de coisas, equilibrar, mas a carnalidade é muito importante. Então criei o sistema ABA, chapa/corda/ Depois da escultura que fiz após o balé Nikolais, tirei as estruturas chapa14, eram duas chapas, cada qual com seu furo, e uma corda e trabalhei com a gravidade, foi como cheguei nessas esculturas atravessando-as com um nó de cada lado. Variando a posição do da placa solta no espaço, mas achava que essas esculturas estavam nó, poderia colocar cada elemento de uma maneira diferente. com um problema. Existe uma questão ética. Como fazia essa O nó era importante, segurava aquele universo todo. Fiquei em escultura? Tinha uma placa de mais ou menos meia polegada de contemplação com a escultura, a situação acontecendo no tempo 80 81 CADERNOS EAV ERNESTO NETO

e no espaço, e o nó segurando tudo. É extremamente poético ter o O tempo todo via a bolinha e cada hora em um lugar. Fui comprar nó como elemento construtivo. E para terminar, parei de pintar, já uma chapa de ferro de meia polegada e não tinha na Praça da Ban- que com essas esculturas resolvia o problema estrutural, conectava deira, tive que ir a São Cristóvão, onde vi umas chapas de ferro e a escultura de forma independente e atuante no espaço físico e umas coisas inacreditáveis! Essa é a quarta coisa importante no deixava o peso na carne. mundo da arte, a necessidade de material faz com que você encontre coisas que não acha no cotidiano, descubra possibilidades, porque Quando parei de estudar no MAM e voltei para o Parque Lage, as coisas são feitas de coisas. para um curso de seis meses com o João Carlos Goldberg, conheci o Franklin Cassaro, que, por acaso, tinha um trabalho com meia Vi uma barra de ferro nesse lugar, linda! Comprei, e nem sabia pra e ferro esticado, semelhante ao que eu fazia, pintado de preto. quê. Um belo dia, a barra estava lá, a bola do cachorro cada dia num Outro parceiro nessa época foi o Carlos Bevilacqua. Nessa época a lugar... Peguei a tal bolinha, coloquei a barra de ferro em cima e questão da ‘ética’ se tornou muito importante. Tudo envolvido no achei que era uma escultura. Depois comprei uma barra de ferro trabalho tinha que ser apresentado, fazer uma escultura soldando maior e esmaguei a bolinha na parede. Era muito interessante pra tudo, qual era o sentido disso? Era a ideia de que a coisa não estava mim porque tinha a obra de arte, mas, se tirasse a barra da bolinha, acontecendo e tinha a transparência, tanto Franklin quanto o Car- não tinha mais. Tinha arte, não tinha. Além disso, a bola estava los compartilhavam esta ideia, crescemos na época da ditadura, esmagada, era como se a plasticidade e a dramaticidade elevassem 83/84. Em 82, nas eleições para governador, o Brizola foi eleito no o drama, o momentum a nossos olhos, nessa relação com o espaço Rio, era uma abertura, por mais que não tivesse se realizado ainda. pós-Brancusi que quis dizer. A questão ética era refletida aí – ver as coisas claras, nada escuro, não ter algo hermético ou algum truque escondido. A mostra do BarraBola15 foi a primeira individual que fiz. De acordo com a posição, a bola se deformava e ficava diferente. Depois do Teve uma situação do BarraBola: tinha uma bola de borracha que ABA, queria fazer uma escultura mais orgânica, a bolinha de bor- zanzava pela casa da minha mãe, onde morava, com o cachorro. racha, quando amassada, parecia que queria células, que fosse mais 82 83 CADERNOS EAV ERNESTO NETO

carne. Pensando construtivamente, queria um construtivismo “O mundo ficou biológico, algo que tivesse mais a ver com o corpo. Demorei muito tempo para fazer Peso16, era pequenininha no começo. Para a expo- completamente sição do BarraBola, tinha um mezanino na galeria e queria botar um tecido lá e uma barra de ferro pendurada, como se estivesse flutuando naquele vão da Petite Galerie. Fiz um teste, aprovei- diferente depois que tei um vão em forma de U largo onde ficava a cama, na verdade tinha um colchão que pendurava durante o dia para trabalhar no quarto. Estiquei o tecido com umas estacas fazendo uma quarta comecei a fazer arte.” parede, a uns trinta centímetros do chão, e botei a barra de ferro, mas era muito agressiva com o tecido, os ângulos retos da barra tocavam com violência o tecido. Assim, retirei a barra depois de um tempo e coloquei umas bolinhas de bilha. Achei interessante, tinha a questão mais biológica. Procurava chumbo para pesca, e o Franklin Cassaro me indicou uma loja no Saara. Comprei alguns, em saquinhos de 50 g e 200 g cada.

Fiquei seis meses para fazer essa escultura, colocando o peso em vários suportes, mas em nenhum deles funcionava. E um dia, no ateliê, pensei em colocar numa meia de mulher. Fiz a escultura, tinha 1,5 kg, parecia uma ova, e ela acontecia no que eu chamava de transformação de estado, primeiro quando ela está pendurada e, depois, se deixar cair reta, ela adquire outra forma. Em Colônia17 84 85 CADERNOS EAV ERNESTO NETO

ela já foi jogada de uma maneira mais relaxada. A unidade desses que mais tarde chamei de Labioide19, de meia com cal. Era um trabalhos, os pesos, é muito importante, é a semente de tudo que potinho de meia cheio de cal colocado no chão, com uma boquinha fiz até hoje – fiz essas colônias e comecei a perceber que, com essa para cima, o cal era fino, transpirava pelos poros da pele da meia, unidade, podia fazer, desenvolver vários trabalhos. Isso era muito ficava cheio de pó em volta e uma parte do pó caía fazendo um importante no sentido de pensar como fazer a escultura, dela anel em volta, naturalmente. Gosto de trabalhar com a natureza, existir no espaço. Trabalhei a questão da população, da relação sempre tento utilizar a natureza dos elementos, a propriedade das pessoas umas com as outras, das células. das coisas para carregar a expressividade da obra. Mais uma vez, a escultura estava lá, sem forma definida, mas cheia de açafrão Embora com um pensamento construtivo, realmente rigoroso em e transpirando pó e aroma. Voltei à Casa Pedro, levei cravo e relação a certas coisas, existia algo que não transitava entre mim outras especiarias, e fiz uma escultura de cada. Comecei a ter uma e esse movimento. Resolvi fazer uma escultura para ser expulso paisagem de cheiros, e o aroma pesado do açafrão variou e ficou de sala, quer dizer, do grupo no qual no fundo nunca fui aceito. interessante, não era mais desconfortável, era bom viver ali. A Comecei a ler Freud e a fazer esculturas oníricas. Tirei um molde escultura tinha uns pescoços, ficava em pé ou deitada, ocupava da minha cabeça, de gesso, respirando por um canudinho na bacia, – espaço, sujava tudo, no fim era um saco com a matéria, era diga- foi quando fizM.E.D.I.T. 18 (metamorfose espiritual do inconsciente mos “bonito”, mas não estava legal, não tinha identidade. Um topológico). Esses trabalhos fundamentais me livraram do peso dia peguei uma delas, enrolei a boca, levantei-a no ar e a deixei de minha história, me tornei mais livre, o que é muito importante cair enquanto segurava a boca batendo-a no chão. Aquilo criou para seguir em frente, encontrei soluções e novos problemas. um corpo, uma explosão do pó, ampliando um campo em torno dela e, no meio desse campo odorífico, do perfume, do impacto, Um dia fui à Casa Pedro, no Saara, e mesmo já tendo estado lá, houve uma ação sobre ela. Entendi a escultura, ela adquiriu uma foi especial. Era um sábado de sol, e aquele cheiro, aquelas cores, identidade. A partir daí comecei a desenvolver uma linguagem, me levaram a uma relação existencial. Comprei açafrão, mas em mas, até o momento em que a joguei no chão e compreendi a uma semana estava lá de novo. Uma vez fiz uma esculturinha, linguagem dela, demoraram quatro meses. 86 87 CADERNOS EAV ERNESTO NETO

Comecei a fazer uma relação com os trabalhos antigos e cheguei como se uma representasse a carne e a outra o vegetal. Comecei a essas esculturas que são as Naves, o oposto dos Puffs paffs poffs a achar as coisas muito limpas, puristas e sonhadoras nas naves e piffs20, em relação à densidade. As Naves são totalmente etéreas, ovaloides, de cor marfim, queria ser mais crítico, mais ácido, e enquanto Casa Nave21, são esculturas que você pode tirar o sapato fiquei com raiva de certas situações que aconteciam no meio em e andar sobre elas. No Nude Plasmic22, temos três gotas, uma mais que convivia. As naves são esculturas atmosféricas, filtram a luz branca que a outra. É quase uma situação de pintura também, existe e dão volumetria ao espaço, com o verde e o rosa criei um espaço uma poesia também no fazer, nas escolhas. O público raramente vai de contraste de luminosidade. perceber, talvez poucos, mas isso vai fazer uma diferença quando olharem, mesmo sem que percebam a ação, a escolha – de alguma Quando fiz aGreta gruta25 estava cansado, de certa maneira. Tinha forma esta é a mágica, ter um fiozinho fazendo a conexão entre feito um texto antirreligião para a Bienal de Veneza, em 2001, e uma e outra. dois meses depois houve o ataque às Torres Gêmeas durante o governo Bush, e a consequente guerra que assistimos. Queria fazer Com a Blue Cave23, queria abraçar mais as pessoas por mais que você uma escultura na forma de um cubo de espuma coberto com uma entrasse numa escultura Nave, se deitasse nela, ia dar direto com espécie de veludo cinza lavado, que havia encontrado. Algo bem o chão, aquilo duro e frio. Fiz essa escultura para um chão quente minimalista por fora, e o interior uma caverna vermelha, lasciva, e absorvente, coloquei umas luzes do lado de fora, acho até que ela forte e sexual, opaca, você não veria o que tem dentro. Seria para é um pouco artificial por causa disso. Tenho uma certa dificuldade a Galeria Yvon Lambert, em Paris. Chegamos para cortar os blo- em trabalhar com eletricidade. Comecei a fazer umas esculturas cos de espuma com facas, contrataram um cara para trabalhar equilibradas dessas (Celula Nave24), maior e com um colchão den- comigo, meio negativo, ele dizia que não ia dar certo e eu só tra- tro. Sempre tive essa tendência ao equilíbrio, mostrar ao máximo balhando. Ele disse que era sábado e que não teria nenhuma loja tudo o que acontece. Comecei a trabalhar com cores complemen- aberta, até que começou a cortar também, a querer mostrar serviço, tares, verde e rosa num tom mais leve, que é meio Mangueira, mas finalmente quando já eram três da tarde, ele me disse que tinha não por este dado simbólico, e sim por serem complementares e uma loja que ficava até as cinco, que podia ter material de cortar. 88 89 CADERNOS EAV ERNESTO NETO

Cheguei lá e comprei a serra de fita na qual já vinha pensando. No uma folha de tecido, gotas e ganchos na parede inteira, eu esti- dia seguinte, começamos a cortar. Quando abrimos, encontramos cava o tecido nos ganchos e botava as gotas. Tinham umas meias esse corte facetado e curvo, foi muita emoção, a fita nunca corta que prendíamos no teto também para suspender, o centro era de reto, sempre em curva, e ali fizemos toda a escultura, era um cubo 20 m x 10 m, nessa sala. É um curry, não é uma especiaria, é uma com vários blocos. Chamei o galerista e todo o pessoal, entramos mistura de temperos, cada um pode fazer um curry diferente, isso na peça, começou a entrar transparência, elementos do meu tra- é um curry impressionista, tem vários temperos, não misturados, balho anterior, e eu não queria botar mais o veludo, porque achei cravo, pimenta, açafrão e cominho. Já esta aqui, não podia esticar maravilhoso, tudo se encaixava com a minha história – tentei ser o tecido para a parede, pois esta era tombada, não podia botar perverso e não consegui. Isso aqui (Garden26 e/ou Gate) foi difícil gancho nem na parede e nem no teto, mas tinham várias vigas. de fazer, eram quatro pessoas cortando, dois de cada lado, uma No avião liguei para minha mulher com esse problema, não podia serra de fita de três metros com dois punhos, gente na escada, fazer nada, eram três meses antes da abertura da exposição e ela tipo lenhador, com pé na espuma fazendo força. Tem duas coisas me perguntou como ia resolver isso. Respondi que não sabia, mas que percebi: se você vira a lâmina para um lado, ela faz a curva que ia acordar no dia seguinte com uma ideia. De fato, dormi no para fora, para o outro, ela faz a curva para dentro. Fizemos esse avião e acordei com a ideia: costurar dois tecidos, um em cima e nichozinho (House27), onde a luz entra porque no bico da parte outro em baixo, conectar o tecido de cima com o de baixo e essa cônica a espessura é mais fina para entrar nela e as pessoas tinham peça aqui que está caindo, e colocar contrapesos partindo do tecido que vestir uma roupa para entrar. Além disso, estas obras, tanto de cima passando por um gancho S numa fita na viga e pendendo a House quanto a Greta gruta, são obras que quando entramos novamente para baixo. Sustentando assim o centro da peça, esse temos uma potente pressão acústica, não ouvimos nada de fora e trabalho quase se chamou Arquitetura Animal, mas como achei que o som de dentro é superdenso. ela ia ficar o bicho, ficou É o Bicho. E qual a diferença deste trabalho para este outro? O outro é um céu, um horizonte. Quando fiz essas Outra escultura, chamada Nós pescando o tempo28, e É o Bicho!29, esculturas, a primeira delas é só uma gota tocando no chão e se o trabalho principal para a Bienal de Veneza de 2001. O Nós... tem chama O céu é a anatomia do meu corpo30. Outra que nasceu meio 90 91 CADERNOS EAV ERNESTO NETO

ao acaso. Há vários anos queria fazer um trabalho desse tipo, um escultura em que apareço vestido de roupa branca envolto nela, é trabalho que tivesse a sensação de estar abaixo da linha d’água. Sabe um tubo que fica em volta do meu corpo, tocando totalmente, e da essas pinturas do Dali com o mar boiando? Sempre gostei desse foto cheguei aos Humanoides32. Pensei em como fazer uma roupa lance, nunca consegui fazer, porque tinha dificuldade de costurar, e anexar esse volume de isopor à roupa, não dava certo, mas tive achava que ia tirar a pureza da obra. Um dia, me convidaram para um click em cima da hora. Pensei que, se estudo uma escultura fazer uma individual na feira de Basel pela Camargo Vilaça, isto é, para ser vestida, o primeiro objeto a ser pego é uma roupa para num estande que não tinha teto! Assim nasceu a obra, da ausência. tentar juntá-la com outra. Não deu certo, e então, pensei: o que é o negativo do corpo? Assim, quando temos uma folha de tecido, temos uma relação de paisagem, quando temos duas, uma relação de bicho, animal, corpo Aluno: O espaço em volta. – porque ele é fechado. Quando se tem só um tecido, ele é aberto e temos dois lados de fora, temos um horizonte, uma paisagem. No E o que melhor representa isso? A roupa. Uma camisa é o negativo meu trabalho é importante essa continuidade entre horizonte e do tronco, algo óbvio que nunca pensei. Demorei 15 minutos para paisagem, a figura e o fundo. Quando falei de figura e fundo não chegar à conclusão da camisa. Deitei o tubo de tecido e fiz quatro foi à toa, penso nessa continuidade, nesse trânsito. Em muitos buracos, para cabeça, braços e tronco. Encaixei uma camiseta, e trabalhos, como esses das Naves, a sensação é de como se estivesse pronto. Mas é objetivamente o negativo do corpo, temos a tendência entrando em um corpo. Interesso-me pelo que acontece dentro a “figurativar” tudo, a se ver nas coisas. do corpo, na paisagem que vivemos – composta por outras a que temos acesso e que enriquecem nosso mundo. Ter esse recurso Na exposição33 da Artur Fidalgo, que talvez vocês tenham visto, estimula o meu imaginário, a minha criatividade. ele queria fazer a exposição há muito e eu não tinha tempo. Fiz um trabalho, Papai e mamãe34, e quis fazer esse trabalho com essa fita Na escultura do Panteão, a cúpula é dividida em quatro partes: que são desenhos no papel, mas queria fazê-los tridimensionais. chamo de cabeça, braços e corpo. Outra se chama Arco ventre31, uma Fiz o corte a laser, que, quando corta, deixa a margem preta dando 92 93 CADERNOS EAV ERNESTO NETO

esta vibração ótica. O Artur me convidou e eu disse que não ia dar para ser naquele ano, só no outro. Um dia, em casa, tinha o lance do piano, nunca tive aula, mas toco, me divirto. Tenho os filhos, tenho a sala que não é grande, tem um monte de brinquedo espa- lhado, carrinho, velocípede, aquela bagunça. Um dia, as crianças estavam lá no meio daquilo e chegaram os pais, foi legal. Pelo lance da escola, ficamos amigos de vários pais, de origens diferentes, visões de mundo diferentes, tomamos cerveja, acho essa loucura da convivência em grupo de crianças e adultos muito interessante. Resolvi fazer desta relação a mostra. A ideia era trazer esta sala de convivência para a galeria. Parti de um assoalho para tirar um pouco da neutralidade do cubo branco, talvez isso já seja uma vontade de transformar o cubo branco... Fiz esses vasos tortos, que sempre quis fazer, e botei duas plantas em cada um, fiz essas mesas, os banquinhos, queria fazer uma oficinazinha, um bar, mas todo mundo tomando cerveja lá ia ser um problema, resolvi fazer um café e uma biblioteca. Ainda existe essa biblioteca, até gostaria de dar continuidade, que ela pudesse circular por aí. Tinha que fazer mesa e cadeira, então, desenhei esses móveis, que se encai- xam sem prego nem nada. Tem um garoto genial que trabalha A-B-A, 1987 comigo, o Marcelo, que botou no computador e mandamos cortar Corda e chapa de ferro de 15 mm 2 peças _ 100 x 20 cm cada no laser. Fiz esses móveis, foi genial a abertura, a maior loucura, Vista da Instalação: Atelienave, piano, nego tocando... Rio de Janeiro, 1987 Foto: Gabriela Toledo 94 95 CADERNOS EAV ERNESTO NETO

Aluno: E a respeito do Casamento35 no MAM? bêbado, encontrei o Agnaldo na saída e contei todo o projeto, útero, gravidez, relação mãe/filho, estrutura simbólica social e o cara Sim, O casamento. Muita gente acha que tem uma coisa uterina, adorou! No dia seguinte, no Rio, recebo uma mensagem do Agnaldo de entrar dentro do corpo. Me interesso muito pela coisa do bebê, que disse que não sabia se eu estava muito bêbado, mas que a pro- do espaço infantil. O próprio Picasso disse que, com 15 anos, ele posta da exposição era incrível, tinham adorado e queriam fazer. pintava como Rafael e demorou 50 para pintar como uma criança, Tinha o problema da data, queria o salão grande e demos a sorte acho bem legal. Acho interessante o espaço do bebê, de um a dois de um cancelamento, a exposição aconteceu 16 de dezembro e o anos, quando a criança tateia tudo, uma relação sensorial com o Lito nasceu 18 de janeiro. Lili estava de oito meses, um barrigão espaço das coisas, com o peso, tendo compreensão de seu próprio enorme. Fiz três esculturas grandes e uma de transição, chamamos peso. Enfim, tudo aconteceu meio por acaso. Lili estava grávida. dez amigos que fizeram o papel de padrinhos para a cerimônia, Agnaldo Farias era o diretor do MAM, já havia uma intenção de desenhei a roupa de todo mundo, baseado na personalidade de fazer algo, eu estava ocupado, mas a Lili ficou grávida, primeiro cada um. O rito começava na obra Descaminhos de Lili36. Ela descia filho, loucura total. Liguei para ele, pensei nessa obraCasamento a escada, tinha um garotinho, meu afilhado Manuel, carregando no MAM. A Lili foi modelo várias vezes dos meus trabalhos e pensei um pano, numa bandeja. Eles desciam a escada, a Lili tirava os que ia ficar lindo ela grávida dentro de uma nave e, nesse momento, sapatos e entrava no Descaminhos... que representava o corredor as naves eram um grande acontecimento, estavam fazendo um em que a noiva entra, em direção ao altar, ela atravessava esses puta sucesso mundo afora, tem uns oito anos. Era um momento descaminhos, como se fosse a vida dela, e num desses caminhos muito feliz, a Lili grávida, tinha essa relação da topologia. Não ela encontrava o buquê, saía, seu pai a pegava pelo braço, seguiam somos casados de fato, no papel, mas queríamos demarcar esse andando envolvidos e protegidos por uma corrente circular de território da nossa forma. Houve um desencontro, o Agnaldo estava padrinhos que abriam caminho na multidão em direção à nave saindo do MAM, mas encontrei com ele numa festa no MAM de Útero capela37. Chegavam nessa nave, foi lindo, uma sorte, os deuses São Paulo. Ele disse para eu ligar, que ainda não tinha saído e etc., são muito legais, eles gostam de ver se você está legal, se você está no meio da festa, os caras serviam uísque a rodo, já estava meio esperto eles te ajudam, se você começa a dar uma bobeada, pensar 96 97 CADERNOS EAV ERNESTO NETO

em outras coisas, eles te puxam. Quando descola corpo e mente, dá TuboGota com um nó na ponta, o abriram o e colocaram em volta problema, pelo menos comigo, já aconteceu várias vezes. Aqueles da gente como se fosse uma camisinha e nos enrolaram de modo deuses gregos são mais humanos... Teve esse ritual e o acaso é que saímos abraçados os dois. Era como se estivesse rolando o ato escultor. A nave tinha o desenho, digamos, de um balão com as sexual. Saímos da nave em direção a uma área onde estavam no pontas sextavadas, um eixo vertical, mas comprido, onde a base era chão: três tubos de alumínio, três ânforas de barro com arroz e a entrada principal, a outra ponta o altar, acima do centro um eixo um balde de poliestireno, o TecidoEscuturaPele foi desenrolado horizontal, com uma entrada em cada ponta. Antes de chegar ao de nossos corpos e aberto, o conteúdo das ânforas foi transferido SalAltar, no sentido do eixo principal, fiz duas colunas largas para para as três MeiasPatas da Pele em torno de nós e a levantaram com levantar o chão e criar corredores. São coisas muito importantes os TuboEstacas de alumínio, enquanto simultaneamente botavam quando você pensa num espaço vazio. Faltava um lugar para as isopor no negativo da gota, o interior dessa, de onde estávamos famílias, não queríamos que as famílias ficassem dentro da nave, saindo por baixo, como se fosse o gozo. Eu fiquei para equilibrar ali seríamos só nós e os padrinhos fazendo o ritual. Surgiu a ideia a obra (Depois das núpcias38) enquanto Lili foi para a Escultura- mágica: as famílias podiam entrar por debaixo da peça e ficar dentro Colchão Corpos, corpos, corpos...39, de onde escolhia os sacos ovas das colunas uma para cada, assim estavam dentro da cena, mas, de arroz, (esculturas Peso de arroz), coordenava o movimento dos topologicamente, fora da nave. Mais um acaso, quando a corrente EspermatoPadrinhAmigos que faziam uma corrente, levando-os, de amigos chegou com a Lili e seu pai, ela se abriu, eles seguiram de mão em mão, até mim com as gotas de “ArrozSêmen”, com as em direção às entradas laterais, o Cristian me entregou a Lili e quais fazia uma colônia fechando o círculo em direção a Lili, eles foi, por debaixo da nave, para sua CélulaColunaFamiliar, eu e Lili saíam da mão dela, e chegavam na minha, até que na última, cheguei atravessamos o corredor em direção ao centro de acontecimentos. ao lado dela, peguei-a, fomos em direção à saída, jogamos para o Os padrinhos formaram um círculo à nossa volta, nos abraçaram alto os últimos SacoCélulaGotaArrozSêmem e saímos correndo, e todos juntos e abriram o círculo novamente, um deles escreveu berrando. Isso tudo foi filmado, fotografado e, quatro dias depois, um poema, outro leu. O Manuel veio com a bandeja e o tecido, o a exposição abriu para o público com o filme daperformance pro- desenrolaram , era um triângulo com MeiasPatas nas pontas e um jetado na parede. 98 99 CADERNOS EAV ERNESTO NETO

Anthropodino40 foi o último trabalho que fiz, foi muito difícil, pre- Notas cisou de muita concentração, mas fiquei muito contente. Algumas 1. BRANCUSI, Constantin. O beijo, 1ª versão, 1907. Escultura em pedra. 28 cm. peças são interativas, onde tudo é conectado sem parafuso, prego, Museu de Arte, Craiova. sem nada, tudo isso veio daquele banquinho que mostrei, do desen- 2. Exposição coletiva que reuniu trabalhos de 123 artistas, realizada na Escola de Artes Visuais do Parque Lage - EAV/Parque Lage, Rio de Janeiro, volvimento que dei na escultura de sachê, do papel pluma. Esses aberta em 14 de julho de 1984. buraquinhos existem porque tem o tecido de dentro e o de fora e, 3. NETO, Ernesto. Léviathan Thot, 2006. Instalação. Place du Panthéon – Paris. por fora, é do mesmo tecido da escultura do teto, que é mais clássica 4. CLARK, Lygia. Descoberta da linha orgânica, 1954. “O que eu quis fazer com essa experiência foi negar a relação do quadro dentro da moldura, do meu trabalho. E por dentro é rosa, amarelo e verde. No outro, integrando-o dentro da moldura através da cor”. tem uma mescla das cores. Os buraquinhos são meias que conectam 5. BRANCUSI, Constantin. Portal do beijo, Mesa do silêncio, Coluna sem fim. Conjunto escultórico, 1937-1938. Parque Targu-jiu, Romênia. a parte de dentro com a de fora, porque ela está sendo esticada, é 6. BRANCUSI, Constantin. Mesa do silêncio, 1938. Pedra calcária. 2.15 x 2 m. uma simbiose. Esse tecido fica equilibrado em pé, mas o que mais 7. WERTHEIM, Margaret. Uma história do espaço: de Dante à Internet. Rio de Janeiro: dá rigidez é a tensão do tecido. Tem um risco envolvido, também, a Jorge Zahar Ed., 2001. 8. BRANCUSI, Constantin. Portal do beijo, 1938. Pedra. 5.27 x 6.58 x 1.84 m. conexão do teto com o chão, por ser um lugar muito grande, pensei 9. BRANCUSI, Constantin. Coluna sem fim, 1938. 17 módulos de ferro fundido. 29,33 m. numa escala que desse conta. O teto é o mesmo sistema do trabalho 10. LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. da Bienal de Veneza, É o bicho (tem esse nome porque pensava, Rio de Janeiro: Ed. 34, 1994. 11. Kazimir Malevich, Quadrado branco sobre fundo branco, 1918. Óleo sobre tela. “essa escultura vai ser demais, vai ser o bicho!” Tem uma coisa 78,7 x 78,7 cm. MoMA, Nova York. animal também, mas É o bicho era mais estranho). 12. MANZONI, Piero. Base do mundo, 1961. Ferro e bronze, 82 x 100 x 100 cm. Museu de Herning, Dinamarca. 13. MANZONI, Piero. Merda d’artista, 1961. Latas etiquetadas com conteúdo não identificado. 48 x 65 x 65 mm, 0.1 kg. 14. NETO, Ernesto. A-B-A (chapa-corda-chapa), 1987. Ferro e nylon. Coleção particular. 15. NETO, Ernesto. BarraBola, 1988. Barra de ferro, bola de borracha e ar. 6 peças 175 x 5 x 5 cm cada, 1 peça 140 x 5 x 5 cm. 16. NETO, Ernesto. Peso, 1988. Meia de poliamida e esferas de chumbo. 25 x 25 x 4 cm. 100 101 CADERNOS EAV ERNESTO NETO

17. NETO, Ernesto. Colônia, 1989. Esferas de chumbo e meias de poliamida. 34. NETO, Ernesto. Papai e mamãe. Imbuia e pau-marfim, 2005. Macho: 26 x 21 x 1,3 cm Dimensões variáveis. Fêmea: 24 x 18 x 1,3 cm. 18. NETO, Ernesto. M.E.D.I.T., 1993. Série de fotografias p&b. 7 peças de 65 x 55 cm cada. 35. NETO, Ernesto. O casamento – Lili, Neto e os loucos, 2000. Exposição individual. 19. NETO, Ernesto. Labioides, 1996. Tecido de poliamida e gesso. Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. 20. NETO, Ernesto. Piff, Paff, Puff…Puff, Poff Puff, Piff…Piff, Paff, 1997. Tule de poliamida, 36. NETO, Ernesto. Descaminhos de Lili, 2000. Tule de poliamida e areia. urucum, cúrcuma, cravo e farinha. Dimensões variáveis. Dimensões variáveis. 21. NETO, Ernesto. Nave casa, 1998/99. Tule de poliamida, esferas de poliestireno e areia. 37. NETO, Ernesto. Útero capela, 2000. Alumínio, esferas de poliestireno, 300 x 884 x 488 cm. areia e tule de poliamida. 2.000 x 1.400 x 1.600 cm. 22. NETO, Ernesto. Nave Nude Plasmic, 1999. Tule de poliamida, especiarias, areia e 38. NETO, Ernesto. Depois das núpcias, 2000. Tule de poliamida e tubos de alumínio. poliestireno. Dimensões variáveis. Dimensões variáveis. 23. NETO, Ernesto. Walking in Venus Blue Cave, 2001. Meia de poliamida, esferas de 39. NETO, Ernesto. Corpos, corpos, corpos, 2000. Tule de poliamida e esferas poliestireno, botões e luzes incandescentes. 396 x 777 x 833 cm. de poliestireno. 800 x 1.000 x 60 cm. 24. NETO, Ernesto. Celula Nave (It Happens in the body of time, where truth dances), 2004. 40. NETO, Ernesto. Anthropodino. Instalação interativa realizada no Park Avenue Tule de poliamida, meias de poliamida, tubos de alumínio, areia, bolinhas de isopor e Armory, Nova York, 2009. bolas de borracha. 2000 x 400 x 475 cm. 25. NETO, Ernesto. Greta gruta, 2002. Blocos de espuma branca. 238 x 590 x 940 m. 26. NETO, Ernesto. The Garden, 2003. Espuma de poliuretano branca. 2.77 x 7.14 x 9.9 m. 27. NETO, Ernesto. The House, 2003. Espuma de poliuretano branca. 276.9 x 353 x 553.4 cm. 28. NETO, Ernesto. We fishing the time, densidade e buracos de minhoca, 1999. Tule de poliamida, meia de poliamida, cúrcuma, pimenta-do-reino, cravo em pó e curry. 450 x 2000 x 1000. 29. NETO, Ernesto. É o bicho!, 2001. Tubos de poliamida, açafrão, cúrcuma, cravo e pimenta. 500 x 1.200 x 1.200 cm. 30. NETO, Ernesto. O céu é a anatomia do meu corpo, 1998. Tule de poliamida, tubo de poliamida e cravo em pó. 300 x 650 x 500 cm. Saiba mais 31. NETO, Ernesto. Arco ventre, 1999. Fotografia em cor (díptico). 99,5 x 99,5 cm cada. 32. NETO, Ernesto. Humanoides. Tubo de poliamida, meia de poliamida, NETO, Ernesto. Ernesto Neto: o corpo, nu tempo. Santiago de Compostela: Centro Galego veludo, especiaria e esferas de poliestireno. Dimensões variáveis. de Arte Contemporánea, 2002. 350 p. 33. NETO, Ernesto. É a vida, o espaço interior, 2007. Exposição individual. NETO, Ernesto. Ernesto Neto: Leviatan Thot. Paris: Regard, 2006. 103 p. Galeria Artur Fidalgo, Rio de Janeiro. NETO, Ernesto. Naves, céus, sonhos. São Paulo: Galeria Camargo Vilaça, 1999. 60 p. 102 IVENS MACHADO

Texto gentilmente cedido pela historiadora e crítica de arte Marisa Flórido. Publicado ori- ginalmente no catálogo da Exposição “Ivens Machado”, realizada de 11 de dezembro de 2011 a 25 de fevereiro de 2012, na Casa França-Brasil, Rio de Janeiro.

Gêneses. Destroços encenam corpos rudes, agrupando eventos. Persigo estas composições, espantalhos tranquilizadores, mundos que não sabem o silêncio. Gritam.

Seres ásperos tramam e transmutam-se, pedindo abrigo. Representam gestos insensatos.

Guardiães. Imagens protetoras e protegidas, filhos impossíveis.

Fragmentos. Habitam e nascem em mim. Alegres. Sem título, 2011 Terra, toras de eucalipto e aeromodelo Vista da Instalação: Casa França-Brasil, Ivens Machado – Rio de Janeiro, outubro de 2001. Rio de Janeiro, 2011

Foto: Pat Kilgore 104 105 CADERNOS EAV IVENS MACHADO

Entre gêneses e dissoluções a gênese de mundos e de “seres ásperos” à espera da palavra que os nomeie. E se uma dessemelhança inquietante insiste em nos assaltar é porque estamos defronte de um espelho baço, por dema- siado impreciso, com toda a ambivalência sufocante do arcaico: O DESCONCERTO como a physis (termo que um dia pertenceu ao vocabulário dos Certo estranhamento nos assombra quando adentramos o salão da mistérios) antes do logos, a matéria antes da forma, o tempo antes Casa França-Brasil e nos deparamos com a obra de Ivens Machado. de seu escoar, o deus antes do nome, o homem antes da face. Certa inumanidade exala dos montes de terra ou das toras de madeira superpostas. De um lado, paisagens devastadas, ermas. Ao longo de sua produção, Ivens Machado vem utilizando mate- De outro, eucaliptos, desses usuais na construção civil, que, empi- riais diversos, inclusive da construção civil, como cimento, pedra, lhados, abrem ocos no corpo engenhosamente tramado. Releitura azulejo, vergalhões e madeira. Constrói esculturas incomuns, de de uma obra do artista apresentada na Bienal de São Paulo de 2004, contornos ásperos e superfícies irregulares, erigidas por uma tensão esses troncos empilhados nos surpreendem com o contraste poético desarmônica, mas surpreendentemente atraentes e gráceis. Objetos entre a precariedade e crueza do material e a engenharia finamente excêntricos que por vezes aludem a formas da natureza, a partes do elaborada. Por vezes, eles desenham uma onda no ar como se seu corpo humano ou sugerem símbolos de culturas primitivas. Muitos movimento, abruptamente suspenso, nos salvasse (ao menos por já disseram que suas peças se assemelham a menires, dólmenes, agora) da precipitação e do desastre. totens.... Como monumentos consagrados a deuses improváveis, terríveis e ctônicos. Esses trabalhos, do modo como estão ali reunidos, situam-se entre escultura, paisagem e arquitetura, como se estivessem no limiar dos Ao longo da história da arte ocidental, artistas seriam atraídos gêneros artísticos. Inclassificáveis, portanto. Entretanto, estamos por outras formas de se relacionar com o cosmo sem a mediação indiscutivelmente diante de uma presença, ainda que pressenti- de sistemas ou de um arcabouço conceitual rígido, em busca de damente embrionária — como se fosse o primeiro signo sensível, modelos teóricos, perceptivos e especulativos que descerrassem 106 107 CADERNOS EAV IVENS MACHADO

“Ivens Machado é o mundos recalcados ou ignorados. Sobre formas e símbolos arcaicos, estruturas de pensamento e modos de vida tribais, se debruçariam engenheiro das impurezas, inúmeros artistas: Gauguin e as tribos polinésias, Picasso e as más- caras africanas, os surrealistas e a prática da bricolagem, Pollock e a o poeta dos restos, o artista ritualidade dos navajos, os artistas da Land Art e os sinais de demar- cação de territórios, das linhas nazcas aos símbolos paleolíticos. dos despojos. Aquele que Mas, em Ivens Machado, é a incomparável potência simbólica descobre suavidade na do que parece – e apenas “parece” — arcaico (pois esse “parecer” guarda um infinito de incertezas e invocações) que é revista pelo truculência do mundo sem artista como um catalisador de forças esparsas e vitais, brutas e secas. Daí a gravidade de uma matéria espessa, a tensão entre os precisar negá-la ou sublimá- materiais, entre a estrutura que os amarra e a ameaça do desmo- ronamento. Como se fosse necessário dissolver qualquer tipo de la. Delicadezas (in)contidas conforto que domesticasse a ferocidade da existência. na esterilidade.” Pois se trata disso: de expor a brutalidade e a delicadeza que deter- minam os acontecimentos, as coisas, os seres. As forças e poderes em conflito que geram e destroem, que protegem e ameaçam, como “espantalhos tranquilizadores”. A mesma energia que gera destrói. E vice-versa. Suas peças estão entre a reiterada gênese e a iminente dissolução, entre a palavra por nomear e o grito inarticulado, entre a violência e a sedução (da arte). 108 109 CADERNOS EAV IVENS MACHADO

Tensões que encontramos também em seus vídeos dos anos 1970, O TEMPO, A DISTÂNCIA, O SORRISO naqueles de 2008 (exibidos no Oi Futuro) e neste inédito realizado Eventualmente experimentamos, diante das obras de Ivens, a para esta mostra. Em comum entre sua produção em vídeo e a escul- sensação de que o tempo foi suspenso na evocação de certa tórica é essa contundência que desconcerta. Em alguns de seus vídeos, ancestralidade. Nesta exposição, todavia, o estupor de uma homens e mulheres— como matéria inerte — se submetem passivos a atemporalidade ancestral, de um deserto não localizável, é logo uma violência sugerida, mas conduzida ao limite da realização. Como desmentido por um elemento irônico e inédito em seus trabalhos: se tal choque entre opostos não apenas recusasse qualquer fusão ou um pequeno avião, um aeromodelo que, em movimentos circulares, unidade como afirmasse a existência como uma insuficiência que voa sobre as “montanhas” de terra. busca o outro não para completar-se em substância, mas para ser composto e metamorfoseado, violenta e silenciosamente. Se o movimento vem perturbar a prometida suspensão do tempo, o jogo de escalas e distâncias com nosso corpo finito vem nos pro- Dissolução, vídeo de 1974, nos oferece uma bela metáfora desse des- vocar certa desorientação existencial, logo interrompida quando concerto e insuficiência, entre gênese e desastre. O artista assina seu avistamos o pequeno avião. Um inevitável sorriso é suscitado por nome à exaustão, à rarefação da tinta e à caligrafia ilegível. É preciso aquela engenhoca. Afinal é umaLand Art de gabinete, jocosa com o apagamento de seu próprio, se submeter à violenta dissolução para as concepções de paisagem e com os desbravamentos épicos da acolher o outro em si. Existir não é mais que isso. arte e da cultura; desconfiada tanto do pathos sublime experimen- tado diante dos espetáculos da natureza (a experiência de uma Do mesmo modo, as obras nesta mostra não possuem título: “criar desagregação perante o contraste entre a imaginação limitada e um título seria uma nova obra, portanto minhas obras são assim, um espetáculo que a ultrapassa) como daquele provocado pelas sem título”. E como não concordar que as palavras fundam mundos, novas tecnologias. seres e obras? E que, sem sua proteção reveladora, em que natureza e natureza humana sairiam de sua cripta, o silêncio do visível, seu Afinal, como a natureza, a tecnologia também seria considerada fonte hermetismo e potência, irrompe em possibilidades e fissuras? de potências incontroláveis, capaz de convulsionar a face do mundo, 110 111 CADERNOS EAV IVENS MACHADO

tanto salvá-lo quanto destruí-lo. A tecnologia não transtornaria as noções usuais de dimensão e distância, lugar e tempo? Dos aviões e satélites à televisão e às redes eletrônicas: o ambiente da existência é sacudido pela errância imagética, por um tempo eternamente atual, pela “atopia” e ubiquidade virtual. As fronteiras físicas se diluem: o que até então era superfície da matéria, os limites de um material, se transformará na interface da tela, acesso a um topos incorpóreo, em que o tato e o contato cedem lugar ao impacto televisual, em que as antigas distâncias geométricas do espaço se convertem no infinito das imagens que nos chegam pelas janelas eletrônicas.

Como um deus que faz troça de seus inventos, Ivens cria mundos, altera as escalas de suas montanhas e lança um avião para contem- plá-los. É como se avistássemos uma terra incógnita, anterior ao homem, mas mediada por suas tecnologias, seus pequenos brin- quedos: da janela de um avião à tela da tevê, das imagens captadas pelas câmeras de segurança ao Google Earth. Entre o arcaico e os delírios da ciência, entre o não cultivado e a barbárie da civilização, entre auroras e apocalipses.

ASSEPSIA NAUSEANTE Sem título, 2011 Terra, toras de eucalipto e aeromodelo Ivens Machado é o engenheiro das impurezas, o poeta dos restos, o Vista da Instalação: Casa França-Brasil, artista dos despojos. Aquele que descobre suavidade na truculência Rio de Janeiro, 2011 Foto: Pat Kilgore 112 113 CADERNOS EAV IVENS MACHADO

do mundo sem precisar negá-la ou sublimá-la. Delicadezas (in)- tempo e espaço, e a assepsia da arte autorreferente que reivindicava contidas na esterilidade. o afastamento do mundo. A grelha que sustentava a perspectiva tri- dimensional seria trazida à radicalidade do plano, posta na vertical É isso que ele faz em uma das salas laterais, ocupada por painéis para estabelecer com ele sua máxima cumplicidade. de azulejos em cuja superfície interfere. Uma instalação que é também uma releitura de um trabalho apresentado, em 1973, no A concepção messiânica da arte de Mondrian, por exemplo, com- Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. preendia um caminho de purificação em busca de um equilíbrio universal que, uma vez realizado, exigiria o suicídio do quadro e As superfícies quadriculadas e brancas, banhadas por uma luz fria da escultura na redenção da vida. A “opressão individual da forma que cega e lava o ambiente como um frigorífico, provocam ator- singular” seria substituída “pela expressão universal do ritmo”. doamento e mal-estar. A função do azulejo é a assepsia protetora A arte, ao harmonizar e eliminar os conflitos da vida, seria enfim e asseada que impede a passagem da umidade, a contaminação nela dissolvida. Para Mondrian, a vida era demasiado trágica, era de organismos, a sujeira da vida exposta. Mas ali produz o efeito preciso esvaziá-la do lirismo expresso no natural e que alimentava oposto: a assepsia não nos concede sensação de proteção, mas de tal tragédia. Para Ivens, trata-se, ao contrário, de devolver o lirismo nauseante mal-estar, de exposição incômoda, de asfixia branca. trágico da vida à arte. A pureza é assassina e perigosa, nos salva então a contaminação indesejada, o reverso das coisas: Ivens corta alguns azulejos e os O LIRISMO TRÁGICO DA VIDA cola expondo o avesso cinza. Cintilações espraiadas naqueles planos Uma videoinstalação em uma das salas laterais encerra a exposi- brancos e abstratos, desenhos salpicados nos devolvendo aragens ção. Como um neófito em um ritual de iniciação, atravessamos um e exibindo a vitalidade dos destroços. ambiente opressivo construído com caixas de papelão de vários tamanhos e formatos. Ao final do percurso, um vídeo projetado É inevitável a associação do quadriculado das paredes azulejadas produzido para esta exposição estende a sensação de claustrofobia com a grelha ortogonal da pintura, a estrutura das coordenadas de experimentada na passagem pelo túnel de caixas. Como em um 114 115 CADERNOS EAV IVENS MACHADO

filme hitchcockiano, vemos o artista protagonizar a fuga por um labirinto de corredores e escadas. Ele é perseguido por uma som- bra, uma figura tão dúbia e imprecisa como suas peças escultóricas ou o Minotauro do Labirinto de Dédalo: é um travesti, esse habi- tante das fronteiras dos gêneros, à margem dos comportamentos socialmente aceitos.

Um labirinto é uma prova de iniciação que guarda uma revelação. Um cruzamento de caminhos que anuncia e protege a existência de algo sagrado ou valioso: um centro, um lugar, uma presença cujo acesso só é concedido aos iniciados. Aquele que penetrou o labirinto, sem conhecer a priori as coordenadas de sua estrutura espacial, experimentará a errância. Vertigem e alteridade, impre- visibilidade e desvario o aguardam em suas inúmeras interseções. A reconciliação prometida entre a existência e seu significado —da vida e da morte — é um horizonte sempre fugaz, talvez irremedia- velmente perdido. (O labirinto cretense não protegia um centro, mas aprisionava uma excentricidade: o Minotauro rompeu a ordem natural do universo. Condenado a vagar nos caminhos do labirinto sem conhecer a sua lógica, prisioneiro de sua alteridade, o Mino- tauro é a irracionalidade que irrompe no mundo e o retira de seus eixos. Uma irracionalidade a ser reprimida, deslocada do mundo Sem título, 2011 para que este preserve seu fundamento e integridade.) Azulejos e lâmpadas HQI 400w Foto: Pat Kilgore 116 117 CADERNOS EAV IVENS MACHADO

No decorrer do vídeo, vão se desenhando geometrias e linhas de fuga: Saiba mais o giro circular da tesoura (relógio marcando o destino); a perseguição MACHADO, Ivens. Acumulações. São Paulo: Galeria Virgilio, 2006. que realiza movimentos em profundidade ou em diagonais e ver- MACHADO, Ivens. O engenheiro de fábulas. Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 2001. 198 p. ticais; as linhas traçadas pelos cabos do elevador; a grelha formada SARAIVA, Alberto; ABUJAMRA, Amir. Encontro/Desencontro. Rio de Janeiro: Oi Futuro – Contracapa Livraria, 2008. 112 p. por sua porta pantográfica. Um réquiem compõe a trilha daquele encalço. O protagonista, ao fim do filme, vê-se acuado no elevador. Basta um toque do espectro que o acossa para sugerir sua morte.

Mas o que a princípio nos sugere uma desintegração evocadora da morte, nada além de uma pulsão trágica e destrutiva, talvez seja a grande revelação redentora: a fatalidade é a única certeza da existência, seu inescrutável desígnio; a consciência de sua presença negativa, que só pode ser pensada como o indefinível absoluto, é a grande distinção do humano, ínfimo humano...

O reverso do espelho: a Morte é a Gênese às avessas, e o homem errante e agonizante percorre a misteriosa senda que o conduz ao seu nascimento, ao processo embrionário e prodigioso em que algo se engendra e começa a existir. 118 NELSON FELIX

Este texto, gentilmente cedido, resultou do encontro entre a historiadora e crítica de arte Marisa Flórido, o curador Alberto Saraiva e o artista Nelson Felix, na ocasião do lançamento do livro Concerto para encanto e anel. Espaço Oi Futuro - Flamengo, no Rio de Janeiro, durante exposição homônima de 17 de maio a 3 de julho de 2011.

Alberto Saraiva: Durante três anos negociamos com Nelson Felix a realização desta exposição1: uma escultura sonoro-visual, um trabalho de imersão. Falamos de conceitos de escultura que lidam com elementos muito transparentes, muito sensíveis, mas, ao mesmo tempo, fortes e intensos como o som e a imagem. Embora só mais recentemente Nelson tenha começado a trabalhar com vídeo e fotografia, que são veículos da luz, podemos considerar que esse elemento já estava presente em sua escultura, dada a capacidade que suas peças têm de criar espaços destinados Cavalariças, 2009-2010 para a luz. Concerto para encanto e anel é uma obra que Vista da Exposição: Cavalariças da absorve tudo o que está no ambiente. Ela tem passagens, Escola de Artes Visuais do Parque Lage, Rio de Janeiro - 27 de novembro de 2009 vãos, estágios luminosos em ângulos diversos, ou melhor, no a 21 de março de 2010 Foto: Vicente de Mello 120 121 CADERNOS EAV NELSON FELIX

seu processo de ser. E Nelson decidiu que o Oi Futuro era o Fiz o livro com um amigo artista, mais jovem, Wanderlei Lopes. lugar ideal para realizar o projeto. Ficamos felizes, porque ele Trabalhamos no livro alguns anos, numa boa sintonia, lhe agradeço é um dos nossos artistas prediletos e um dos mais importantes também por esta luxuosa parceria. Sua disponibilidade foi funda- do cenário atual. mental e por isso o livro consegue tatear o pensamento poético que direciona o trabalho. Esta foi uma questão que sempre orientou o Estamos aqui hoje para o lançamento do livro2 com Nelson livro e o estruturou com desenhos e não com discurso. Desenhos Felix e Marisa Flórido, uma das críticas com texto na que desenvolvi quando construía o trabalho. publicação, que tem acompanhado a obra do artista, e que vai poder nos falar um pouco desse trabalho. O livro é Acho que o meu trabalho é construído por camadas de pensa- um livro de desenhos, um livro de projeto. A ideia de projeto, mentos, significados que se agregam a outros e mais outros, ora de desenho como projeto, é antiga e permanente, mas o livro poéticos, ora teóricos. Esta soma de significados se anula, não pela também fala de aspectos muito sensíveis como a linha e o negação, mas sim pelo excesso. E a perda do significado gera um pensamento reflexivo. Eu tenho dito que o desenho é quase oco, até esperado, que faz a obra renascer ao olhar, que a reestru- uma elevação, e se existe algo na arte que se equivale tura. Sua visualidade então é calcada nestes pensamentos ligados à filosofia, para mim é o desenho, algo que ultrapassa os abstratamente, que muitas vezes não se encadeiam para se evi- limites do material. denciar. É uma linguagem de cunho poético, solta, e ao mesmo tempo totalmente construída. Por isso, não queria que o livro Agradeço a todos pela presença, a Marisa especialmente e ao fosse especificamente demonstrativo das ações do trabalho, como Alberto pelo convite. Quando convidei Ronaldo Brito para par- me propuseram. ticipar desta conversa, havia a possibilidade de ele viajar nesta data, o que acabou ocorrendo de modo meio relâmpago. Agra- Para não amarrar esta exigência poética, senti a necessidade de deço a ele, também, pelo prazer de trabalharmos nestes cinco outra poesia. Quando penso, penso desenhando na mente — a ou seis anos juntos. poesia desse processo prima por estar fluida, gráfica. E, como toda 122 123 CADERNOS EAV NELSON FELIX

poesia, pode se transformar a qualquer identificação ou definição, local onde fui não se chega no inverno, e o inverno lá dura vários na maioria das vezes é o que se tateia. meses. Tinha todo um processo, independente do processo poético, a ser resolvido, questão a questão... aduana, peso, etc. Vi que se eu Há uma diferença entre fazer um livro definindo e o fazer abrindo começasse a amarrar muito as datas e diversas outras exigências, o trabalho. Uma linguagem discursiva, muitas vezes, explora ponto eu colocaria uma camisa de força e não iria realizar nada poetica- por ponto, pausadamente, mas não tem a possibilidade de abrir um mente, principalmente com a concentração necessária. Precisava só viés e todos ao mesmo tempo. Essa convivência de um ou dois, de liberdade naquele momento e foi o que fiz, conversei com o ou todos, unidos e únicos, é de outro princípio de inteligência. Para Alberto e suspendemos o convite. Tempos depois, com o trabalho desenhar, é necessário definir o outro pelo mesmo, com o princípio realizado e com esta visão, de fazer um trabalho sobre o trabalho, que está aqui e lá. Bem, o livro é todo o processo da colocação do nos encontramos novamente. Anel ao contrário. O vídeo é exatamente o contrário do livro, é um só momento do O livro e o vídeo3 me permitem anular o tempo. Como essa obra foi trabalho. Há dois pontos centrais no Concerto: a ideia de desloca- feita em vários anos e em vários locais, semelhante a uma ópera mento, no meu percurso e da escultura, e a escultura se realizando e seus atos, ou a um concerto e seus movimentos. Foi possível, no nos dois espaços arquitetônicos. Vejo que, nesse trabalho — desde livro, ter quatro ou cinco anos ligados e não romper a sensação cro- que ele começa no Museu da Vale4, aliás antes, desde o ponto de nológica desse tempo, pois se tem uma fração de segundo na mente Camiri (como centro da Cruz na América) até a Cavalariças5 — tudo para percorrer esses quatro anos — uma ou duas viradas de página. culmina na ação da entrada desse anel. Posso estar até sendo um pouco pragmático, mas essa ação, tanto ela em si, como teorica- Para o vídeo, Alberto Saraiva tinha me feito um convite, há uns mente, constituiu uma performance e todo o resto é sobra. Sobras anos atrás, mas teria que viajar provavelmente com um videomaker. que formam a obra, mas sobras. O vídeo é isto: o momento dessa Além disso, tinha questões como, em alguns lugares, só conseguiria performance, sem as sobras. Tem sua própria natureza, que é dife- ir em uma determinada época do ano. Na Islândia, por exemplo: no rente daquela do livro. 124 125 CADERNOS EAV NELSON FELIX

O trabalho com o vídeo tende a ser documental, é próprio da lin- musicais. Para os pitagóricos, os tons emitidos pelos planetas guagem dessa mídia. Sempre gostei muito dessas coisas diretas dependiam das proporções aritméticas de suas órbitas ao das linguagens, mas ser documental, nesse momento, como uma redor da Terra, do mesmo modo que o comprimento das obra contínua, seria ruim. cordas de uma lira determina seus tons. Se as esferas próximas produzem tons graves, os agudos vão aparecendo na medida Percebi no som, ali, na entrada do Anel nas vigas, a contração de em que a distância aumenta. Assim, a combinação entre os todo o processo. Era música, e música criada pelo peso: uma questão sons de cada esfera, em seu perpétuo girar em torno da Terra, primeira da escultura. O que fiz foi criar ritmo. O vídeo tem quatro produziriam uma música suave, a “música das altas esferas”, projeções em quatro paredes, num espaço cúbico fechado e todo harmonia cósmica apenas audível em condições muito especiais. coberto de espuma, teto, chão e parede. A espuma é um material relacionado ao som, mas aqui a transformo em espaço, em escultura. Há algum tempo, os cientistas da NASA descobriram que E no chão, inclusive, interage, desequilibra. Uma destas projeções os astros, de fato, cantam. Um satélite gravou tal “canto”. é a original, das outras retirei cinco, sete e onze frames, respecti- A atmosfera do sol emite ondas sonoras trezentas vezes mais vamente. Isso faz com que o som de uma projeção seja levemente graves do que o ouvido humano pode captar. Há uma “música diferente do tempo das outras, e, com o andamento do trabalho, das altas esferas”, sim, mas o som que se ouve é muito mais essa diferença cria uma música ritmada que nunca será a mesma próximo de um rangido, de um atrito metálico, do que da doce nestes 45 dias de exposição. melodia das liras gregas. E se classificássemos a música das altas esferas, seria, quando muito, uma espécie de heavy metal. Marisa Flórido: Gostaria de agradecer a Nelson e a Alberto pelo convite e começar contando a sensação que experimentei ao Foi da música gutural das altas esferas que me lembrei entrar na sala de exposição de Concerto para encanto e anel. Não quando entrei na sala expositiva e ouvi Concerto para encanto sei se vocês sabem que os antigos gregos acreditavam que as e anel: era um rugido. O rugido das nove toneladas do imenso distâncias entre os astros obedeciam às proporções de intervalos anel de mármore se encaixando nas vigas de ferro que se 126 127 CADERNOS EAV NELSON FELIX

deformavam em sua passagem. Pois essa videoinstalação foi artista coloca um trabalho no mundo, imediatamente tem alguém concebida a partir do vídeo da montagem da exposição de querendo fazer relações ou estabelecer algum laço deste trabalho Nelson no Parque Lage em 2009. com algo histórico, ou mesmo com outro atual. Estar ciente que constantemente vamos lidar com essa presença “histórica”, com Era o rugido do atrito da matéria circulando à nossa volta. essa total possibilidade de imediata inserção num processo de E tudo circula ali (ainda mais caminhando sobre aquele chão linguagem, é no mínimo necessário. instável): o som circula, as imagens circulam, Nelson circulou pelo mundo... Como a Terra, que gira ao redor do Sol. Mas, Durante o século XX, nos libertamos de determinadas situações ocorre que ela não faz um círculo perfeito, mas uma elipse: 23 na construção da obra, de certo academicismo rompido com a graus de desvio da órbita em relação ao eixo do Sol. visão moderna, e mais ainda, com a contemporânea. No cubismo abrimos a forma, no fauvismo, a cor, no tachismo, no concretismo, Do mesmo modo, longe da harmonia da lira, da harmonia na performance, etc. Fomos abrindo o leque na arte povera, nos universal dos gregos, o som que se ouve ali tem também a sua materiais, ou mesmo com Beuys, etc. Expandimos o horizonte, “marca de imperfeição”, como define Nelson esses 23 graus. mas ao mesmo tempo incorporamos fortemente outras questões, Uma marca ou um desvio que, em seu processo artístico, mais mentais, como o pensar na formulação da obra. Vejo no pro- torna-se fundamental. Eu gostaria que você falasse sobre isso, cesso uma potência – existe um refinamento de linguagem muito Nelson, sobre essa marca, sobre essa imperfeição e desvio. sofisticado nos dias de hoje. E sobre Cruz na América. Agora voltando à sua pergunta. No meu caso, utilizo determinadas Ok, mas, para chegar aí, necessito chamar a atenção para um ponto técnicas, que me são próprias. Meu pensar é abstrato. Não é só a central do nosso tempo: o homem atual lida constantemente com forma que é abstrata, como os cubos, a cruz, o círculo; é o pensar muita informação, e no artista contemporâneo esta informação é que é abstrato, sem palavras, num encadeamento de ideias que des- saturada de história da arte, inclusive a recente. Hoje, quando o denha o discurso. Isso me libera momentaneamente da história, do 128 129 CADERNOS EAV NELSON FELIX

“Percebi no som, ali, na estar no mundo de respostas. Eu me considero um artista abstrato. Mesmo quando parto para o mundo, parto para o mundo com coor- entrada do Anel nas vigas, denadas. Para situações onde a forma é impregnada de situações externas a ela, ou prestes a se modificar, ou mesmo abandonadas, a contração de todo o o que não deixa de ser uma abstração também. processo. Era música, e Muitas vezes, trabalho com formas que já existem: cruz, círculos, etc. Sempre que possível, evito me propor a criar formas. No fundo, música criada pelo peso: acredito que tudo é a mesma coisa, tanto faz trabalhar com a forma de um cubo, de um anel ou de um calcanhar — elas já existem. Na uma questão primeira da realidade, é a busca da poesia que agrega significados, que são embe- bidos e abstraídos ou absorvidos nestas formas, que me satisfaz. escultura. O que fiz foi Já as coordenadas, vejo o mesmo princípio destas formas, elas já existem. Assim como todo cubo é igual, todo lugar é igual para as criar ritmo.” coordenadas. Isso me permite, no instante mesmo de estruturar o trabalho, me libertar da composição. Não escolho onde colocá-lo e muito menos tenho que dialogar, naquele momento, com a paisagem.

Existem, no processo de trabalho, várias questões, questões que se sucedem, se unificam e conservam sua identidade, amalgamam-se. A tal ponto que me é difícil falar de uma coisa sem mencionar outra. Já conversei muito com Marisa sobre isto, uma vez ela cunhou os significados. 130 131 CADERNOS EAV NELSON FELIX

Quanto aos cubos, vou traçar aqui o que me lembro da construção composição. Excluir na raiz este “gosto/não gosto”, e coisas desta mental do Vazio sexo6, que é um cubo dentro de um cubo, e assim ordem, era fundamental. Me pareceu bom ser uma forma dada, já chegar à utilização dessa forma e, por reflexo, às outras, como a cruz existente, que, apesar do “fazer”, carregasse nela o “não fazer”, por e a torção. Observava os diversos buracos que existem no corpo isso a forma tão marcadamente minimalista. Descobri a raiz desta humano, e me concentrei no cérebro, no sexo e no coração. Existe, forma cúbica em Leonardo da Vinci, mas presente hoje em Sol nesses três locais, grande intensidade de energia e, principalmente, LeWitt, aliás é por ele que ela nos chega atualmente, mas Leonardo poesia. São espaços mais centrados nos seus vazios que nos cheios conviveu com ela, resumindo, uma forma sem dono. e são sintéticos, como uma abreviação de todo nosso organismo. No sexo, por exemplo, que gera o orgasmo, percebo — aliás, não Essa relação próxima com o minimalismo me interessou. Este só no orgasmo, mas também no êxtase e na morte — uma extrema “não fazer” minimalista, que vinha imbuído nela, era primordial. organização. Perfeita, plena, e dentro de uma estrutura plausível A realização dessa forma seria muito complexa, pois acrescentei de se desorganizar, à presença de tudo o que não seja seu ou da mais um cubo ao seu interior: são dois cubos inteiros, sem emen- sua natureza. Mas no sexo o “fazer”, o contato, é fundamental e das, esculpidos de um único bloco – um feito dentro do outro. aí está sua potência. Resumindo, a princípio, o sexo se faz. Estes Assim, o fazer é que se tornou minimalista, pois todo dia repetia pensamentos meio poéticos vão se tornando matéria, à medida os mesmos gestos, dentro do mesmo procedimento, num longo e que você vai incorporando-os, na forma, no material, no ritmo, repetido processo serial, que só se alterava quando virava a face etc., e depois, quando já na escultura em si, são permeados pela do cubo. Uma inversão com a forma preestabelecida, existente. história ou pelo espaço. O ato de fazer a peça é que torna o seu centro, e chega à razão, ao pensamento da peça. O pensamento sobre o “fazer” foi adquirindo uma posição central na obra e torceu o eixo para um diálogo com questões centrais da O olhar é mental, acredito que há olhares diferentes, mais e menos estrutura da arte contemporânea, mais do que com o sexo, mas está poéticos, sua sensibilidade de percepção depende muito do grau de tudo ligado. Começou na forma, não queria que ela me trouxesse “conhecimento” que você tem sobre o que observa. Logo, quando 132 133 CADERNOS EAV NELSON FELIX

se sabe que não existe cola naquele objeto, você tem um outro olhar Marisa Flórido: Nelson, seria bom falar como se inicia Cruz sobre ele, mas a escultura não teve nada agregado a ela. Nada lhe na América. foi somado, ou retirado, mas a vemos diferente. Existe um salto no devir poético, e isso me interessava, há algo aí não só do fazer, mas Cruz na América se realiza por quatro trabalhos feitos na América. também da natureza do orgasmo, da poesia e do sagrado. As primeiras ideias começaram em 84, 85 e por acaso deu em quatro paisagens diferentes. São trabalhos com uma relação com o tempo Sempre que quero, faço o trabalho. Vejo nisso um ganho que surge e escala composta por uma forma. O espaço desses trabalhos tem da relação com o material. Sem sombra de dúvidas, a interação não uma escala meio gráfica, Glória Ferreira escreveu sobre ele. Cada é de ordem discursiva. O fazer estimula uma percepção não verbal, um deles responde por si, começam e acabam neles mesmos, mas mas também posso mandar fazer. Não tenho e não sei por que criar ao mesmo tempo os quatro são um. O Grande Budha7 foi o primeiro problema com isso. A questão contemporânea, para mim, não é se que idealizei, mas só fui instalá-lo depois do segundo trabalho, a você faz ou não faz o seu trabalho, mas sim a densidade de pensa- Mesa8. Isto porque o compraram e teve uma distorção na proposta, mento que você coloca no circuito com o trabalho. Fazer ou não depois outros problemas, e aí eu o recomprei para colocá-lo no Acre. fazer diretamente o trabalho depende do processo de cada um e, às vezes, de cada trabalho específico. Penso, até, que se você sempre No Grande Budha me utilizo de uma árvore e latão, mas princi- menciona que nunca faz, ou mesmo, que sempre faz o trabalho, cria palmente da ideia da floresta, de trabalhar com árvore, porque me uma importância, um ponto relevante onde não é preciso. Gosto de possibilitava não só usar o tempo, mas principalmente o espaço da desprezar teoricamente esta questão, faço quando for necessário. floresta, que é onde eu centrava meu interesse. A árvore na floresta cria um espaço de um igual entre vários iguais. Uma imensidão Terminando, na peça torço os cubos com um molde em prata de cheia, feita de iguais. Onde tudo é o mesmo, se tem uma unidade, uma vagina, nada feito, moldado direto, uma dupla homenagem a onde não existe referência e se perde a escala. Esta perda me trazia Duchamp. Esse trabalho contém varias citações, dedicatórias, que um espaço poético, onde poderia trabalhar pontualmente, mas com se agregam ao significado. a sensação desta enorme dimensão colada, cria um espaço de ordem 134 135 CADERNOS EAV NELSON FELIX

desnorteada. Enfim, tinha uma poesia espacial e plástica, que me foto para cada direção dos outros trabalhos da cruz que vinha cons- interessava. Então, a obra é uma árvore em que eu boto umas garras truindo. Mas um segundo e pouco na máquina em pleno deserto e essa árvore cresce e essas garras vão se perder, como qualquer – e eu ainda cheguei ao local por volta do meio dia – estouram as transformação que existe nas nossas realizações. Mas o que mais fotos. Quando notei isto, a quase falta de imagem nas fotos, a prin- me atraía é que o centro do pensamento estava na sensação de que cípio percebi que todo o pensamento, que havia convivido anos e esta árvore já estava perdida nesse lugar, mesmo antes das garras, que alinhava o trabalho aos outros, estava perdido. mesmo antes de eu defini-la pela coordenada como obra. É uma escala mais mental. Duas poéticas direcionavam: a impossibilidade Este processo ganhou uma dimensão maior para mim, que não é de se conviver com o trabalho, na dimensão de tempo, mil, mil e da arte em si, não se encontra no objeto gerado, na sua forma, por duzentos anos de formação, e as transgressões e transformações exemplo. Não o qualifica como melhor nem pior. Vem de outra que geram as atividades estéticas e sagradas. natureza, do conviver, do sentir, do fazer que antecede a própria percepção do que se faz. Eu trazia conceitualmente todo o tra- A Mesa no pampa, no paralelo 30º, é o contrário, o trabalho era plano. balho de casa; me locomover por dias, avião, carro, coordenadas, Chapa de ferro e árvores. São acasos, acasos predeterminados. Uma lugar exato, tempo do coração, direções das fotos, tudo estabele- chapa de ferro horizontal no pampa é um plano no plano. A Mesa, cido a priori, e de repente escorre. Mas ali observei que existia no como ponto oposto, na cruz com Grande Budha, destoa dele e cria momento uma outra potência poética, que mesmo com todo o pen- com o tempo um local no todo, uma referência no plano. samento anterior, eu ainda não a tinha comungado. Vi uma beleza nesta impossibilidade da imagem, que me deslocou a linearidade O terceiro trabalho9, no deserto de Atacama, novamente traz o da construção de uma poesia à outra. Existe um acaso nos tempos tempo. Um tempo mínimo, não mais o longo, de séculos. Aqui o mínimos, onde as coisas podem mudar de rumo, se deslocam por instante, e para isto me utilizo do processo fotográfico. Coloco a si e é só, tudo passa a ser outro... Este trabalho no deserto é um velocidade do ritmo do meu coração na velocidade da máquina pensamento sobre o coração, onde utilizei a fotografia. Não me fotográfica, vou ao ponto de coordenada preestabelecida, e tiro uma considero fotógrafo, a usei como pensamento. 136 137 CADERNOS EAV NELSON FELIX

No quarto10, estico uma linha de um ponto do deserto ao meio em vários locais do mundo definidos por cruzamentos da distância entre os dois trabalhos anteriores, Grande Budha e abstratos no mapa entre essas exposições. Mesa, e a prolongo até o litoral. Coloco uma esfera de mármore com vários pinos de ferro e a deixo lá, na maré. Com o tempo, o Acontecimentos que nos recusam o contato direto, que se ferro irá se expandir, pela sua oxidação, e abrir o mármore, como tramam em um arco de invisibilidade entre os dois momentos as fotos estouradas. Neste eixo os dois trabalhos se complementam. expositivos, os dois instantes de uma doação aos olhos, quando a obra/ópera efetua o movimento de seu aparecer. Floresta, pampa, deserto e litoral, como um só trabalho. Com o rebatimento da coordenada de Camiri no Marisa Flórido: Cruz na América é um imenso xis no Hemisfério Norte, Nelson encontrou Anguilla e a República mapa. No centro dessa cruz está Camiri, na Bolívia. Apenas Dominicana, no Caribe; sua projeção para o outro lado do complementando Nelson: na mesma latitude do Camiri mundo, a ilha de Dong-sha, no mar da China, e Karratha na Bolívia, o centro da Cruz na América, estava Vila Velha, na costa australiana; a inversão das coordenadas de Camiri, no Espírito Santo, onde o artista expôs em 2006 no Museu o vulcão Hekla na Islândia. Em cada um desses lugares, Vale. Se 23 graus separavam os dois locais, a coincidência de ele depositou uma escultura que esteve exposta no Museu latitude e graus os entrelaçava. (Por isso as peças escultóricas, Vale – devolveu-a ao mundo, portanto – realizou uma ação, em algumas de suas exposições seriam dispostas em 23 graus: ou extraiu de horas de viagem uma única fotografia, um como no Parque Lage em 200111 ou no Museu Vale. ) instante conciso e circunspecto.

É a partir desse centro, Camiri, que se inicia o Concerto ou Cruzes, cubos, alianças, são figuras geométricas que Nelson a “ópera” organizado, como diz o artista, em três atos: duas utiliza nos seus trabalhos, são também signos de orientação e exposições (Camiri em 2006, no Museu Vale, e Cavalariças pacto convocados em meio a incessantes deslocamentos que em 2009, no Parque Lage) e uma série de inserções artísticas ele empreende. 138 139 CADERNOS EAV NELSON FELIX

Sobre esses três signos, poderíamos dizer: a cruz supõe um Camiri (o centro da Cruz) que se estende pelo mundo: uma tríplice acordo, do homem com sua existência corpórea e distensão infinita. Sem divisões, o círculo é signo de perfeição finita, com os espaços e as distâncias do mundo, com os e homogeneidade. Uma totalidade indivisível, portanto. Por tempos cósmicos e o ordinário das horas. Entre céu e terra, seu movimento contínuo, como uma sucessão de instantes imanência e transcendência, a cruz é signo de reconciliação e idênticos, foi o desenho do tempo para os antigos: o círculo é ao mesmo tempo de medida. perfeito, imutável, sem começo e fim.

O cubo está muito próximo dos escultores: é o monólito Mas Nelson toma desses signos não a potência de orientação escultórico e a base. Como monólito — a pedra bruta que ou de fundação de um lugar, de um sítio, de um site: ele será esculpida — é uma potencialidade, um “ainda não”. toma desses signos a potência do entrelaçamento, aquilo Como pedestal, é o elo de passagem entre arte e mundo, que chamou de “aliança”. Mas alianças que não reconciliam, uma ancoragem ao solo. O cubo é também a estrutura de apenas tramam relações e, ao mesmo tempo, provocam representação euclidiana, as coordenadas do espaço-tempo, desvios e deslocamentos – não por acaso ele usa os 23º, a a naturalização do mundo, a perspectiva como forma natural marca de imperfeição a que me referi anteriormente. Nelson, de nele se inserir e perceber. O cubo é o a priori da percepção fale mais sobre esse ângulo. – não é à toa que os minimalistas citados há pouco por Nelson vão se utilizar do cubo (para confrontar os a priori da 23 graus é o ângulo que faz o eixo de rotação do Sol com o eixo de percepção com a contingência da experiência). rotação da Terra. Na realidade 23 graus e alguns minutos. Todos os planetas rodam meio tortos em torno do Sol. Se existe alguma E finalmente o anel e o círculo, de onde vem o corpo do coisa em posição perfeita no nosso sistema solar, é o eixo do sol, Concerto. O anel, por um lado, supõe uma aliança, uma re- todo o resto está fora de eixo. A Terra roda numa imperfeição de ligação, por outro, um isolamento e uma solidão. O círculo, 23 graus e pouco e é por esta imperfeição da rotação que temos por sua vez, é um ponto estendido. É um ponto, como as estações do ano, a nossa flora, fauna, nós mesmos, etc. Logo, 140 141 CADERNOS EAV NELSON FELIX

a beleza veio do torto, esta beleza instintiva, que nos é próxima, em longitudes, em globos, em elipses, para contê-lo, para a natural. desenhá-lo. Vivemos, sim, em meio ao infinito das relações, dos cruzamentos de convenções e simbologias, de naturezas Sempre que tive que escolher como posicionar as peças no espaço, e artifícios que não se reconciliam. Por isso, quando ele coloca as coloquei em paralelo ao eixo do Sol. No início, com um astrô- suas peças a 23º alinhando-as à órbita da Terra, elas entram em nomo, calculava a sua posição para o momento exato em que imediata estranheza com o local em que estão. E, no entanto, abriria o evento. Depois, simplifiquei, e colocava a 23º com as pare- estão perfeitamente alinhadas com o cosmo, melhor, com o des ou com o norte, como escreveu o Ronaldo Brito: “um partido movimento do cosmo. Pois o que é específico não é o lugar, aleatório radical”. O certo para mim é que, usando o ângulo, evitava o site, mas essa trama de relações que define por um irrisório “arrumar” as peças no espaço expositivo. momento nossa posição no mundo. Tão interdependentes das vizinhanças, do que ocorre em nossa imediata proximidade, Marisa Flórido: Como falava, esses signos, símbolos, são sólidos quanto dos acontecimentos mais distantes; tão sujeitas aos perfeitos: a esfera, o círculo, o cubo. Nelson toma desses signos desenhos e símbolos arbitrários com os quais convencionamos sua potência de entrelaçamento, mas deslocando-os. Nesse os espaços e os tempos (como latitudes e longitudes, como movimento, a imperfeição não apenas é inserida no processo, o tempo em linha reta da História e o tempo circular dos mas, de fato, o determina. Isso não supõe apenas colocar Antigos), como os acidentes e as errâncias que nos extraviam as peças em 23º, significa que todo o processo é gerado ao e deslocam. O que existe é esta frágil e contingente posição se derivar um trabalho de outro e o desviar, a um só tempo em um universo descentrado, oscilando entre as medidas e o trazendo esses signos e distorcendo sua pretensa perfeição. incomensurável, entre a existência como um lapso (como uma Explico melhor: não habitamos um vazio onde se situam coisas distração do tempo) e as horas dilatadas dos astros. E Nelson e seres a partir de um centro que seria a origem e o destino vai operar justamente com esses espaços e tempos cósmicos, das cogitações do pensamento e dos apaziguamentos do mesmo cosmogônicos, como um (re)desenho do mundo. Mas espírito. Nossa vã tentativa de colocar o mundo em latitudes, um desenho que se sabe impossível: entre os desígnios e os 142 143 CADERNOS EAV NELSON FELIX

Camiri, 2006-2007 Vista da Exposição: Museu Vale, Espírito Santo - 26 de outubro de 2006 a 11 de fevereiro de 2007

Foto: Sérgio Araújo 144 145 CADERNOS EAV NELSON FELIX

acasos, entre o cálculo e o imprevisível, tramam-se os tempos o tempo dos trezentos, quinhentos anos de uma árvore e as geografias íntimas e cósmicas, a rotação dos astros e a engolindo as garras de bronze na Amazônia ou das árvores pulsação do corpo. Como, por exemplo, no Atacama. Gostaria deformando uma mesa nos Pampas. Esses tempos, espaços e de te ouvir um pouco sobre isto. suas simbologias se entretecem com extrema complexidade. Nelson nos coloca diante de algo que nos ultrapassa, que nos Quando fui fazer o trabalho no Atacama, de que a Marisa nos falou excede. Mas como não fazer da arte apenas uma passagem agora, estava voltado para os vazios, especificamente o do coração, a uma transcendência? Passagem, aqui, não é o acesso a um e sobre um tempo mínimo e simbólico. Até então, a poesia que suprassensível, a algum significado transcendente, mas é a existia no tempo, para mim, era sempre distendida, a que pela longa própria arte como passagem: um abismo ontológico que, a duração torce a nossa noção do tempo. Temos noção entre dez e todo o momento, se abre. cinquenta anos, mas a perdemos entre quatrocentos e setecentos anos, não temos muita consciência da diferença destes trezentos Nelson dispõe dos signos, das convenções, das órbitas e dos anos que existem aí, por exemplo, não há muita percepção real. vacilantes passos humanos para articular com tal complexidade O coração me fez pensar, no momento, no tempo do pulsar, e por os sentidos que inviabilize qualquer retorno à ligação simbólica que não ver o tempo como um todo, o grande e o pequeno, como ou a um significado fixo. É uma espécie de violência da um objeto, ou mesmo uma entidade, e usar o mínimo, o instante, indeterminação sobre o determinado (como os cálculos precisos como usava o extenso. Vi uma poesia também neste infinito ao na cartografia do mundo e o encontro casual com o que ali revés. E que “caberia” em mim, no meu ritmo. Fiz dois trabalhos está), a abertura de um abismo ontológico nos desejos da forma. com este tempo, o do coração no deserto e um outro com plantas sensitivas, dormideiras, intitulado Mesas12. Daí, desconfio que esse périplo, essa circunvolução do artista pelo mundo, para e pela qual ele vai depositando suas Marisa Flórido: Várias temporalidades se cruzam: o tempo esculturas, é uma dádiva, um dom. Como um excesso de da pulsação do corpo e o tempo da máquina fotográfica, energia que precisa retornar ao mundo. Ao fazê-lo, Nelson se 146 147 CADERNOS EAV NELSON FELIX

refere ao processo da tradição escultórica, em que se retira o lugar indestinado”, que suspende “a narração e o próprio excesso, se desbasta o mármore do bloco de pedra e joga-se mostrar”. São como “pequenos toques ou vislumbres que fora essa sobra. cegam e anestesiam”. E observa: a paisagem é “uma queixa da matéria acerca dos limites dentro dos quais é aprisionada pelo Ele faz a obra, desfazendo-a, eis a questão. Não creio que seja espírito”. Ou seja, invertem-se os lamentos e as preces usuais da ordem de uma construção formal apenas, reproduzindo atribuídas ao espírito: não é ele, o espírito, que se debate no essa ação clássica da escultura. O que termina então por se interior da matéria (e como “espírito” devemos entender: confundir, o que se turva e embaralha, no final das contas, é o sentido, forma, pensamento, etc.) É a matéria que deseja que é o excesso e o que é síntese, o que é sobra e o que é a obra. libertar-se das amarras do espírito (e como “matéria” devemos entender o inesperado, o irrepresentável, o impensado...) Há Por isso o que ouvimos nesse Concerto é o canto ruidoso da sempre uma demasia na paisagem. matéria. Esse é o encanto e a perdição da arte: orquestrar, desenhar, reinventar mundos, mesmo sabendo que eles não É esse lamento, esse canto da matéria “queixando-se” de suas cabem em obras. amarras, que fecha o Concerto. Um canto ruidoso. Mas, de modo distinto de Lyotard — que crê que para ser passível em Certa vez escrevi um texto para Nelson em que eu citava relação à paisagem era preciso ser impassível em relação a Jean-François Lyotard. Lyotard diz que a paisagem é um lugar —, Nelson multiplica as encruzilhadas, multiplica as indiferente ao lugar; que, para ser passível à paisagem, relações que fazemos para delimitar ou formar um lugar, para é preciso ser impassível em relação ao lugar. O lugar é definir ou sintetizar uma forma. Se o lugar é a encruzilhada a “encruzilhada dos reinos e do Homo sapiens. Minerais, dos reinos e dos homens, Nelson Felix opera uma hipérbole vegetais, animais ordenam-se ao saber e este último dá-se a desses entrelaçamentos, multiplica ao infinito as encruzilhadas ele de forma espontânea”. A paisagem é apenas partida, sem – ou seja, multiplica os significados, as simbologias, as destino (desorientadora, portanto). “A paisagem enquanto coordenadas, com os quais convencionamos os espaços 148 149 CADERNOS EAV NELSON FELIX

e os tempos e nossa orientação no mundo. Esses vão se Interessante também é o fato de que cada uma de suas ações sobrepondo e se relacionando com tal complexidade que em é em geral uma repetição, é uma ação circular, mas não como dado momento aquela hipérbole não suporta o seu próprio sucessão contínua e invariável de instantes idênticos que se peso e rui. Sobredeterminação significa também sua anulação. repetem, mas como algo que se repete se diferenciando. Os momentos de aparecer da obra não são uma condensação Algo talvez próximo ao “eterno retorno” de Nietzsche: se ou uma síntese do pensamento extremo em uma forma. É o não há origem, se a realidade não possui fundamento ou momento em que o pensamento dubiamente se exacerba e finalidade, a combinação de forças em conflito, que compõe explora seus limites, exibe sua complexidade e sua falha. cada um dos instantes, em algum momento se repetirá. Por isso, vemos os eventos, os pequenos detalhes, os mínimos Nelson, gostaria que você contasse como montou o livro atos retornarem infinitamente. Por isso cada gesto deve ser e o vídeo, porque tem a mesma extração da matéria, o realizado de tal modo que se deseje seu eterno retorno, que se mesmo processo. deseje que ele aconteça outra vez. Um mundo de forças em incessante movimento, sem repouso ou equilíbrio. Concerto Como disse, o trabalho se ergue em torno dessa invisibilidade, é também uma reflexão sobre a noção de acontecimento, de sua ida pelo mundo, doando essas esculturas. Há apenas ao mesmo tempo singular e repetido, que não se fecha em alguns momentos precisos de uma doação ao visível: as relações de causalidade-finalidade. A um só tempo uma exposições nas Cavalariças e no Museu Vale. Mas Concerto e subtração e um excesso. o livro são também modos de fazê-lo aparecer. Ou junto e não linear. A repetição, que você observa, acho que vem Às vezes você tira uma única fotografia de alguma dessas desta constante tentativa de fazer as coisas conversarem, elas não viagens, extrai apenas um momento. Poderia converter tais são iguais, elas se repetem. No fundo, em Concerto repito não o imagens em simples documentação, em mero relato. Mas igual, mas o circular e a repetição no círculo geram um ritmo, e este transforma-os numa obra, em desenho e som. é mais próximo ao tempo. É sensível para mim que quando estou 150 151 CADERNOS EAV NELSON FELIX

“Sempre que possível, concentrado, o espaço não me é extremamente necessário, quando ele está perfeito, até some, o abstraio, uso coordenadas. Mas, no tra- evito me propor a criar balho terminado, a compreensão do espaço gerado e o movimento feito nele adquirem na obra um sentido ímpar e sua observação é formas. No fundo, acredito necessária. A questão do espaço na arte, do nosso último século, é um processo de construção. E não dá para conversar sobre isto que tudo é a mesma coisa, sem puxar a história de como vejo esta construção do espaço na arte neste nosso último século. Vou tentar resumir o que eu sinto. tanto faz trabalhar com a O espaço era o quadro, a escultura, por exemplo, Matisse pinta um forma de um cubo, de um quadro de um metro e meio por um metro e meio. Toda a sensação dele, toda a atenção dele se dá nesse quadro, tudo ali. Você pega o anel ou de um calcanhar quadro, tira de uma parede e leva para outra, de um museu para outro, e tudo continua ali. Grosso modo e sintetizando: é centrado, — elas já existem.” não conversa muito com o entorno. Vamos escolher os ícones, Brancusi – a terceira dimensão tem uma potência – ele constrói formas poderosas, como “buracos negros”, existe nelas uma força que quando as observamos, realmente, adquirem uma intensidade, de repente, se perde a noção do espaço e ficamos, por alguns segun- dos, inteiramente “dentro” do objeto. Matisse tem isto também, mas senti pela primeira vez esta observação em Madalena13 de Donatello, e logo depois, em Brancusi. Depois creio, os surrea- listas e dadaístas colocaram mais uma estaca, trabalharam com 152 153 CADERNOS EAV NELSON FELIX

carvão, fios, plantas, etc., no espaço de exposição, mas tudo era para a construção do mercado de arte e não para uma aventura meio onírico. Teve um artista, que para mim é crucial, um russo- que deslocava o eixo do espaço expositivo rumo a uma exteriori- -americano, Rothko, um pintor, que entrou pelo espaço e afinou o zação do objeto de arte. Bem, esse diálogo com o espaço externo pensamento sobre o espaço externo à obra. Ele definia a sequência delineou para o artista contemporâneo questões fundamentais dos trabalhos, a luz necessária. Rothko foi convidado pra fazer um de pensamento e, principalmente, o gosto de pensar sobre isto e trabalho para um restaurante, de repente acho que gostou do tra- sobre o próprio trabalho, que trazemos até hoje. balho e resolveu doar para a Tate de Londres, porque ele admirava Turner. Resumindo, entregou o trabalho com a condição de que Mas já vivemos outro momento. O espaço externo atual é “menor”, sempre fosse mostrado na sequência que ele tinha projetado, na mais dinâmico e com uma nova questão: muito informado. Esta mesma luz, na mesma dimensão espacial de sala, etc. O que é isso? informação chega a ser quase que matéria. É notório que qualquer Uma ambientação espacial do trabalho, aqui o espaço é também objeto que colocamos no mundo hoje sofre imediatamente uma a pintura. Depois, uns dois anos antes de morrer, fez uma capela relação. em Houston, com pinturas praticamente monocromáticas, de uma austeridade, e com o espaço todo planejado com elas, algo anterior Para pensar, ou melhor, para perceber o que fazia, comecei a abs- e meio minimalista. trair este espaço, primeiro usando as coordenadas. Com elas senti que não necessito conviver com ele direto. Crio um estado de certa Percebe o salto? O espaço não é tão necessário – o espaço some – e concentração, onde não é só o espaço que se dilui, é a sensação do logo a presença espacial é fundamental e estrutura a obra. pensar sobre o trabalho que volta a ser centrada só nela.

Nos anos 60, realmente começamos a lidar com o espaço externo Coordenadas não existem, não tem o objeto coordenada aqui, por novamente, depois dos antigos. Nesse momento, existia uma audá- exemplo, mas existe este acordo, esta medição, como nas horas. Sei cia nos artistas. A grande maioria dos museus, principalmente na que existe uma linguagem, poética talvez, que é anterior mesmo a América, assim como toda a situação da época, estava estruturada uma necessidade do diálogo. O pensar se constrói como um desenho, 154 155 CADERNOS EAV NELSON FELIX

não tem imagem no fundo e não preciso descer até as palavras para pelo mundo. Os deslocamentos e o movimento da natureza do entender. Essas questões me nortearam em determinados trabalhos, espaço – da arquitetura ao exterior e daí novamente para a arqui- principalmente quando envolvem deslocamentos. tetura – são um veio forte na construção do trabalho.

Às vezes, uso espaços que são mais mentais que físicos. Quando se A primeira exposição no Museu da Vale e a segunda nas Cava- trabalha com o tempo, oitocentos, novecentos anos, por exemplo. lariças do Parque Lage trazem uma questão com o local, que se Como na esfera do Vazio, no litoral, que se “abrirá” com a oxidação, utiliza da referência de um trabalho anterior, o centro da Cruz na ritmada pelos diversos “aparecer e sumir” na areia. Você faz esse América, Camiri. trabalho na mente o tempo inteiro, mesmo indo ao local com a esfera descoberta, se observa somente um momento do trabalho. Em Camiri, nunca quis fazer nada ali. Era direto demais e fecha- O espaço é mental, construído na cabeça. Poderia colocá-la numa ria a obra num bloco. Deixar o centro da cruz aberto me parecia caixa d’água com sal, ao invés da praia no Nordeste, também o melhor. Comecei a pensar em rebater este ponto pelo globo, para o faríamos na cabeça, com menor poesia, é lógico, mas também o Hemisfério Norte, depois a sua oposição no mundo e esta oposição faríamos. É um jeito de lidar com o espaço, de não nos determos para o Hemisfério Sul novamente. Estava sobre estes rebatimen- com ele, mas não o excluímos. Se constrói o trabalho no pensamento tos quando surgiu o convite do Museu Vale. Algum tempo depois, e esse pensamento termina o trabalho na mente. reparei que o museu estava na mesma latitude que Camiri e a 23º de longitude de distância. Não me era novo o trabalho, me deslo- Marisa Flórido: E as relações entre as exposições de Camiri car no globo e usar o angulo de 23º, e percebi que já o tinha feito. e Cavalariças com os 4 Cantos14 no mundo, a construção do Sintetizando o processo, segui o que estava me sendo dado. Fui a Concerto para encanto e anel? Camiri, olhei para o museu, fui ao museu e olhei para a direção de Camiri. No museu coloco as vigas e as peças de mármore ora Concerto para encanto e anel tem uma dimensão mais estruturada, em acordo com a arquitetura do museu, ora inclinadas no mesmo uma coisa só e sequencial. São duas exposições e uma série de ações ângulo do deslocamento na longitude. 156 157 CADERNOS EAV NELSON FELIX

Camiri, no Museu Vale, foi isto, vigas de ferro horizontais e inclina- um bloco único e escavadas – dava para fazer ao contrário, aliás, das a 23º com a arquitetura do museu e cinco peças de mármore. As dava tudo, dava pra ligar para o marmorista e pedir para ele colar vigas na horizontal em quase todo o museu fizeram com que, apesar quatro placas. Mas no detalhe da construção deste pensamento da presença da escultura, o visitante não percorresse a exposição, “circular” eu não responderia a mim esta falta de exigência formal. sua relação de contemplação era igual à da pintura, olhava-se de Esta camada de pensamento me é necessária. Por exemplo, uso o três lugares distintos, e o trabalho se referia constantemente a um mármore de Carrara, ou o grego, não por um meio em si, mas por deslocamento no globo, Ronaldo observou isto. uma questão conceitual. Eu não o acho mais bonito, para ser sin- cero eu nem escolho o bloco. O uso porque nele existe a presença de Concerto para encanto e anel tem na construção da sua poética uma uma tradição da nossa história escultórica; somos greco-romanos, sequência de relações com os limites dos trabalhos. Algumas coor- ocidentais, e, para comungar com essa tradição, uso este mármore. denadas ou locais irrigaram conceitualmente o espaço expositivo e definiram posições ou elementos próprios da escultura, como Estas coisas geram uma força, como estacas no pensamento, que forma, material, proporção ou o ritmo. me ajudam a responder a um sentimento poético, e assim construo uma linguagem para mim mesmo, sem razão nenhuma. O que faz o A coordenada rebatida de Camiri define os locais de trabalho. Não artista é gerar potência, porque no fundo, na arte, se faz o que sem- faço um trabalho para um local escolhido a priori, o trabalho foi pre foi feito. O que nos resta, hoje, é a relação com o pensamento resolvido anteriormente, eu só o coloco no lugar. Reposiciono, estrutural da obra; a forma, a cor, o material, tudo de um certo modo como num desenho no globo, as peças da primeira exposição e já foi aberto, expandido, por diversas conquistas. Às vezes me sinto deixo uma única peça, um grande cilindro de mármore. Com ela construindo idiomas para falar com os mesmos sentimentos. retorno a expor, como um terceiro movimento de uma só obra. Voltando à Cavalariças, as vigas sofrem uma rotação no espaço e Todas as peças de mármore, também trazem uma ideia de circu- ficam na posição vertical; as três posições que definem uma linha laridade, ora na forma, ora na sua inteireza. São esculturas em no espaço tradicional euclidiano – horizontal, inclinado e vertical. 158 159 CADERNOS EAV NELSON FELIX

Com o Anel, fixo o espaço de exposição. Como se todo espaço fosse de tinta, você já não percebe essas camadas, mas se não as tivesse, agora uma única escultura. Sobre isso Ronaldo escreveu: “é uma acredito que o trabalho não sairia. São questões próprias da natu- escultura que se desloca”, construída retirando partes, como qual- reza de quem faz, isso acontece com a arte. Tem situações, no meio quer outra, “mas o processo de retirar nesta construção não se do processo, que você sabe que não vão gerar uma obra que possa subtrai, se soma”. A exposição nas Cavalariças do Parque Lage ser vista, mas geram a própria obra. Não é uma ação feita para tinha uma sensação de inacabada, tosca, e foi uma única ação, só. mercado, é feita pra você responder ao pensamento. Esta resposta Longa ou curta, depende de como a olhamos. adquire presença, se posso falar assim. Sem ela, determinados trabalhos não existem. O Concerto aparece e some, como Marisa escreveu: “entre as duas exposições – dois momentos de uma doação aos olhos, dois instan- tes em que a obra efetua o movimento de seu aparecer”.

Marisa Flórido: E a Islândia15, em que ano foi?

Foi em 2009, maio de 2009. Queria que o Concerto carregasse nos seus “movimentos” a presença do verso, do canto, que começa e acaba igual. Então, refaço a mesma ação de me deslocar e olhar para onde expor. Inverti as coordenadas, o Norte com o Sul: essa aleatoriedade deu na Islândia.

Na realidade, o trabalho não foi só esse, construí uma cruz por lá, teve outras questões no deslocamento. Mas é algo que se incorpora, como Rothko, de novo, sua pintura tinha trinta, quarenta camadas 160 161 CADERNOS EAV NELSON FELIX

Notas

1. FELIX, Nelson. Concerto para encanto e anel. Exposição individual realizada no 14. FELIX, Nelson. 4 Cantos, 2004-2008. Quatro trabalhos de intervenção realizados na Espaço Oi Futuro – Flamengo, Rio de Janeiro, 17 de maio a 3 de julho de 2011. República Dominicana e Anguilla, Caribe; Dong Sha, Taiwan, Mar da China; Karratha, 2. FELIX, Nelson Tavares. Concerto para encanto e anel / Nelson Tavares Felix, Marisa Austrália. Flórido Cesar, Ronaldo Brito. Rio de Janeiro: Suzy Muniz Produções, 2011. 303 p., il. 15. “Desde o início, a extravazar os pontos geográficos rebatidos, a escultura intui Edição bilíngue português-inglês. um quinto ponto aleatório, errante, uma fuga para o alto, quase em suspenso, 3. Concerto. Concebido por Nelson Felix. Criação e edição de imagens por Begué, Nelson que a complementa: o vulcão Hekla, na Islândia. Diante dele, aí sim, calma e Felix e Luís Felipe Sá. Produzido por Suzy Muniz Produções. Brasil: 2011. 12min 19s. pensativamente, Nelson Felix olha para o ponto futuro, em direção ao Parque Lage, o DVD, son., color. ponto de partida.” (BRITO, Ronaldo. Percurso da escultura. In FELIX, Nelson Tavares. Concerto para encanto e anel. Rio de Janeiro: Suzy Muniz Produções, 2011. p. 86). 4. FELIX, Nelson. Camiri. Exposição individual realizada no Museu Vale, Espírito Santo, 26 de outubro de 2006 a 11 de fevereiro de 2007. 5. FELIX, Nelson. Cavalariças. Exposição individual realizada nas Cavalariças da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, Rio de Janeiro, 27 de novembro de 2009 a 21 de março de 2010. 6. FELIX, Nelson. Vazio sexo, 2004. Mármore de carrara e prata. 90 x 90 x 90 cm. 7. FELIX, Nelson. Grande Budha, 1985/2000. Mogno e garras de latão. 0,70 x 0,70 x 0,15 m (cada garra). Estado do Acre, Seringal Nova Olinda. 8. FELIX, Nelson. Mesa, 1997/1999. 22 figueiras-da-índia e chapa de aço. 0,80 x 2,45 x 51,00 m. Estado do Rio Grande do Sul, Uruguaiana. 9. FELIX, Nelson. Vazio coração / Deserto (1999-2003). Seis fotografias , com tempo de exposição definido pelos batimentos cardíacos do artista. Deserto do Atacama, Chile. Saiba mais 10. FELIX, Nelson. Vazio coração / Litoral (1999-2004). Esfera de mármore de carrara e 22 pinos de ferro, 60 cm ø, deixada na Praia Redonda com Ponta Grossa, Ceará. FELIX, Nelson. Camiri. Texto crítico, Ronaldo Brito; diálogos Nuno Faria. Espírito Santo: 11. FELIX, Nelson. Série árabe. Instalação realizada nas Cavalariças da Escola de Artes Museu Vale do Rio Doce, 2007. 136 p. Visuais do Parque Lage, Rio de Janeiro. Inaugurada em 11 de abril de 2001. FELIX, Nelson. Concerto para encanto e anel. Textos de Nelson Tavares Felix, Marisa 12. FÉLIX, Nelson. Mesas, 1995. Seis mesas de granito com 70 x 70 x 70 cm, sobre elas são Flórido Cesar, Ronaldo Brito. Rio de Janeiro: Suzy Muniz Produções, 2011. 303 p. colocadas peças em ferro com molde do corpo do artista e de glândulas endócrinas, Edição bilíngue português-inglês. azeite e mimosas pudicas (plantas sensitivas – dormideiras). Uma das mesas pendula FELIX, Nelson. Nelson Felix. Textos de Glória Ferreira, Nelson Brissac e Sonia Salzstein. sobre um tapete dessas plantas e provoca reação nos vegetais com seu movimento. Rio de janeiro: Editora Casa da Palavra, 2001. 176 p. 13. DONATELLO. Madalena, 1453-55. Escultura em madeira. 188 cm de altura. NAVES, Rodrigo. Nelson Felix. São Paulo: Cosac & Naify, 1998. 208 p. 162 TUNGA

Sobre o que vamos falar? Poderíamos falar sobre qualquer coisa, mas falar sobre qualquer coisa seria um pouco mais que isso. Falar e estar disposto a responder sobre qualquer coisa. Responder sobre qualquer coisa é certa prepotência, porque pareceria dizer que posso responder sobre qualquer coisa, mas quero ser mais pre- ciso. Posso estar aqui para responder sobre toda e qualquer coisa, não porque eu saiba a resposta, mas porque posso incluir toda e qualquer coisa dentro do meu discurso. Qual é a única disciplina no mundo que lhe permite incluir toda e qualquer coisa no seu discurso? Que eu saiba é a arte, porque ela vai procurar dentro do discurso outras ligações, outros sentidos, outras possibilidades de conectar, criar novos sentidos e compreender aquilo que anda por Xifópagas capilares Objeto, performance e filme realizados aí. Portanto, estou aqui para responder sobre toda e qualquer coisa. primeiramente nos anos 80 Foto: Wilton Montenegro 164 165 CADERNOS EAV TUNGA

Mas, antes disso, hoje acordei e me lembrei que tinha tido um coisa que está num sentido e outra num outro, ao se juntarem, sonho, logo hoje. Era um sonho muito peculiar porque me lem- produzem um terceiro sentido. E é a partir desse terceiro sentido brei que tinha sonhado com a verdade, só que quando acordei, me que devemos começar a pensar. Vamos passar um filme. esqueci. Acho que isso é uma boa pergunta para começar: que his- tória é essa de um sonho em que você sonha com a verdade, acorda, [ Exibição dos vídeos Inside up outside down (Kassel-1997) 1 sabe que sonhou com alguma coisa, e essa coisa é a verdade, e logo e Resgate (CCBB-2001)2 ] esqueceu a verdade? Será verdade que você sonhou? Esse tipo de paradoxo, que o sonho volta e meia nos oferece, de algum modo nos O primeiro filme que assistimos foi de umaperformance e instalação aproxima um pouco do modo de trabalhar em arte. O bom de traba- em Kassel, e o segundo foi o trabalho apresentado na inauguração lhar em arte é que vamos procurando uma outra lógica, outro tipo do CCBB de São Paulo. de associação, e que tem que ter algumas regras, só que essas regras ninguém nos dá, o que temos são os exemplos de outras pessoas Em Resgate, a circunstância era a seguinte: o departamento de que seguiram essas regras. Resolvi que havia uma coisa comum em marketing do Banco do Brasil indicou que haveria um artista para todas essas atitudes, que era o fato de juntar coisas: a narrativa de a inauguração do novo espaço, que é uma coisa meio paradoxal, é um sonho, a narrativa de um fato ou a construção de uma obra de evidente que não fiquei muito contente com esseapproach estru- arte, de uma música, de uma poesia, tudo e qualquer coisa que a tural, disse que participaria, mas que seria contra essa instituição, gente se lembre ou tenha esquecido é fatalmente a ação de juntar aceitaram. Fizeram uma reforma no prédio onde pretendiam abrir coisas. Juntar coisas é, basicamente, a atividade que fazemos, e isso o Centro Cultural Banco do Brasil em São Paulo, o prédio é numa tem algumas regras e é a partir delas que nos perguntamos o que área de extrema vitalidade, de uma economia marginal e lateral, estamos fazendo. Acho que o discurso que interessa é o discurso e eles pretendiam alojar lá esse centro cultural de arte contem- da conjunção: arte seria então essa capacidade de criar ligações porânea, revitalizando toda aquela área. Achei uma contradição, entre coisas, conjunções essas que nos dão sentido. Quando você porque esta noção de vida deles é inteiramente diferente da minha, liga uma coisa com outra, acontece um fenômeno de radiação, uma para mim, aquela é uma zona extremamente vital da cidade, há 166 167 CADERNOS EAV TUNGA

milhares de camelôs, um comércio intenso, só que não era o perfil Quando disse que estava aqui disposto a responder perguntas sobre de arte, de cultura que propriamente o Banco do Brasil aprecia tudo, era para falar dessa atitude, que é um pouco a atitude que ou que um departamento de marketing pretende que seja a nossa quem está começando a fazer arte deve ter: se inquietar por tudo, cultura. Fiz uma instalação gigantesca ocupando o prédio todo, tentar entender de tudo. Não entender na pretensão de dominar, com a participação de duzentos personagens. de ser capaz de deter opinião sobre tudo, mas saber que, para fazer arte, você estará lidando com uma disciplina na qual todos os sen- Talvez uma coisa característica dessa peça no CCBB e da outra em tidos podem se agregar e se incorporar a alguma coisa que você diz. Kassel que possa introduzir a nossa conversa foi um pouco o que disse da ideia de que arte, seja ela qual for, é sempre uma conjun- Ao enunciar a palavra vermelho ou mostrar uma tela vermelha, ção, colocar duas coisas juntas e criar um terceiro sentido que não perceber que por trás desse gesto existe uma complexidade de estaria na primeira nem na segunda, o surgimento entre duas coisas evocações que aquele fenômeno vermelho aporta. Quanto mais heterogêneas, que não necessariamente tenham a ver uma com a o artista sabe o que pode vir junto com aquele vermelho, mais outra, concebendo um sentido quase como uma mágica, um sentido ele terá essa capacidade, essa habilidade, esse domínio de criar que, de repente, surge. Explorar esses sentidos, conectá-los, produz um discurso e surpreender mais ainda. Surpreender é ir além do uma forma de conhecimento, uma forma de saber um pouco bizarra, senso comum, produzir uma experiência única, radical, diferente. não obedecendo necessariamente às regras da razão, às regras da É disso que trata a arte. compreensão geral, mas obedecendo a uma regra, uma espécie de certeza que se cria quando você está frente a uma obra de arte e Aluno: Chamaram a minha atenção os símbolos sabe que tem alguma coisa certa ali mas não sabe direito o que é. que você usou nos vídeos e também na trilha sonora para a edição desses trabalhos. É esse estado que me interessa na arte. Para produzir esse estado, para que se provoque um estado como esse, será necessário, tam- Nos dois casos, a trilha sonora do vídeo era baseada efetivamente bém, uma série de outras coisas, saber muita coisa e saber de tudo. no que acontecia durante a instalação, durante a performance. 168 169 CADERNOS EAV TUNGA

O primeiro vídeo foi realizado na X Documenta de Kassel, esta cada um faz parte da instalação também, porque de algum modo cidade remota e longínqua na Alemanha, à qual fui levado para está ali dentro. Rememorar isso, chegar em casa e sonhar com isso escolher um lugar para fazer essa performance, essa instalação. Fazia é realmente efetivar a realidade daquilo que apresentei. muito frio ali, era inverno. Cheguei à estação de trem morrendo de frio, disseram que ali ia ter uma mostra no segundo andar. Olhei A arte posta desse modo, portanto, está disposta a falar não com o em volta, vi uma parte com menos movimento e perguntei se não espectador à frente daquilo que ele já sabe ser uma obra de arte ou podia fazer o meu trabalho ali. Disseram que podiam investigar e mesmo quando em um local destinado para obras de arte. Numa resolvi que seria naquele lugar. situação dessas, você é invadido pela arte. Uma cena cotidiana, com um leve desvio, uma leve alteração, pode marcar você e fazê-lo O lugar possuía vantagens para apresentar essa peça: primeiro, um refletir, a ponto de poder sonhar com ela e narrá-la depois já com público garantido, uma estação de trem ativa, vinte mil pessoas por outro aspecto. A arte hoje nos permite essa atitude, ou seja, olhar dia passariam por ali, passariam num contexto do meu interesse, para tudo e ver arte. que era o contexto de testemunhar um fato. Mas não é tão simples assim, não é só chamar de arte aquilo que Acho que numa performance ou numa instalação – prefiro chamar você quer, é preciso que aquilo esteja incorporado a um projeto, a de instauração – produzimos algo efetivo, instaura-se algo, há uma uma intenção construída por você. É preciso entrar no sonho visual, espécie de fenômeno. Costumo pensar e ver essas interferências falar com os processos primários, que são aqueles processos nos como uma espécie de filme sem câmera nem película. Um filme em quais os sonhos são elaborados, onde o self, o sujeito, é realmente que você se sentisse dentro dele, a rigor esse filme tem uma câmera mais denso e mais livre. e uma película, só que essa câmera é o nosso aparato ótico, nosso corpo é o nosso aparato sensorial e o filme disso é uma conjunção As músicas em Kassel estão sendo tocadas diretamente no equi- neural, a capacidade de reter uma coisa que testemunhamos e pamento de som da estação, aquela primeira música é do Jorge depois refazer, recriar essa coisa. Então, numa situação dessas, Ben, ele canta “O que está no alto é como o que está embaixo” – uma 170 171 CADERNOS EAV TUNGA

referência a um texto alquímico – a rigor, na música, ele lê o texto. algum modo aludida nessa música (Com’è triste Venezia), a Bienal Editei esta gravação dele, cortando a frase e deixando só esses dois de Veneza tem um quê de excesso de plasticidade contraposta a elementos. É evidente que isso se refere ao que vemos: o que vemos essa mostra alemã, pretensamente mais mental, mais florentina, é o que está embaixo e o que está no alto, o meio divisor que é a seria o termo. escultura, aquele chapéu bizarro, chapéu comunitário. Essa música já seria uma indicação, além de ser um hit bizarro, entrar numa Para esclarecer um pouco: artistas florentinos são aqueles similares estação de trem alemã e ouvir o cantando desse jeito. a Leonardo da Vinci, para quem pensar e fazer são uma coisa só. Artistas venezianos, como Ticiano, por exemplo, são os grandes A outra música, também presente nesse áudio da performance em artistas da plasticidade, do olhar, da expressão. São duas vias que Kassel, destaca um trecho do Charles Aznavour, um cantor francês, se encontram o tempo inteiro e continuam presentes na arte até um hit clássico: “Com’è triste Venezia (Como é triste Veneza)”, igual- hoje, indicando dois caminhos. Os dois são válidos, acredito em mente editada, para deixar só este trecho que alternava com o do exercitar os dois, viver nessa polaridade. Jorge Ben, isto é: O que está no alto, o que está embaixo ao mesmo tempo Como é triste Veneza / Como é triste Veneza. A primeira performance já havia sido apresentada, a parte do chapéu de palha, na Bienal de Veneza anterior, foi uma peça que migrou Essa exposição, a Documenta de Kassel, é bastante importante no de Veneza a Kassel para se incorporar a uma complexidade maior. circuito ocidental, pretendendo ser internacional, e acontecia ao mesmo tempo da Bienal de Veneza, então era também oportuno Já na segunda performance, apresentada no Banco do Brasil, falar de Veneza e de Kassel e manter essa polaridade, de algum algumas das obras ali tinham sido apresentadas em outras cir- modo, a polaridade que funda a arte a partir do Renascimento. cunstâncias. A primeira delas era Teresa, mesmo nome da música; e Teresa era uma obra muito antiga, dos anos 70, que tive a opor- É possível pensar a arte através de duas escolas básicas: a escola tunidade de realizar pela primeira vez numa conjuntura bastante veneziana e a escola florentina. Essa escola veneziana estaria de favorável. Criamos muitas obras e pensamos que nunca iremos 172 173 CADERNOS EAV TUNGA

“Qual é a única disciplina no realizá-las, lógico que vamos, colocamos num caderninho e dei- xamos ali de lado, num pedaço da cabeça, esfriando. mundo que lhe permite incluir Lá pelos anos 90 alguém me comunicou que eu seria o vencedor do toda e qualquer coisa no seu Prêmio Johnnie Walker, fiquei muito satisfeito, mas esse prêmio consistia na aquisição de uma pequena obra e numa exposição discurso? Que eu saiba é a num museu. Naquele momento não queria nem vender obra nem fazer exposição num museu. A rigor, esse prêmio era quase um arte, porque ela vai procurar castigo, porque me obrigava a vender uma obra por um preço x, além de fazer uma exposição no Museu de Belas Artes que, para mim, dentro do discurso outras não seria o perfil ideal para situar a arte contemporânea, sobre- tudo na época. Me ocorreu resgatar esse antigo trabalho, ligado às ligações, outros sentidos, tranças, e que é a versão do uso mais popular das tranças, talvez não a mais popular, mas a mais saborosa que é a teresa. Teresa é a outras possibilidades de trança armada pelos presidiários, e isso é universal, para escapar. Você precisa de muito pouca coisa, um lençol, um cobertor, rasga, conectar, criar novos sentidos enrola, trança e escapa. e compreender aquilo que Encontramos várias ideias embutidas, envolvidas, nessa ideia de fazer trança. A primeira delas, particularmente me seduziu e me anda por aí.” levou a fazer tranças. É a ideia da geometria, dessa construção tão arcaica, talvez tenha sido a primeira escultura a ser feita pelos humanos, ao mesmo tempo em que os homens faziam tacapes para 174 175 CADERNOS EAV TUNGA

ir à caça, as mulheres trançavam, seja cabelo, palha, outras fibras uma música. Conversamos sobre a música, escrevi aquelas palavras para fazer cobertas, utensílios dos mais genéricos. O mistério das de modo que podiam se recombinar infinitamente, criando sentidos tranças reside num substrato muito arcaico da mente humana, ao cada vez mais múltiplos. O Arnaldo compôs um rock meio mantra mesmo tempo, parte da geometria até hoje pensada na teoria dos que se repete infinitamente, gravamos isso e a primeira versão foi nós. A trança está para o quadrado, na teoria euclidiana, como a usada no Museu de Belas Artes, quando os premiados receberiam teoria dos nós para a trança, os nós seriam o primeiro, ao que todos o cheque do Johnnie Walker, cheque este recebido pelos fugitivos eles se reduzem. Na trança, curiosamente, você separa três coisas que tinham acabado de fazer uma trança. Apagaram as luzes, eles independentes, uma coisa não tem nada a ver com outra, apenas pegaram o cheque e foram embora, isso foi incorporado. Esta per- a matéria, que se transforma num objeto só. formance foi reapresentada no Centro Cultural Banco do Brasil. Existia essa música, mas no vídeo ela é usada de outro modo. Voltando àquela operação, onde a arte é qualquer coisa junto, na trança temos, primeiro o gesto de fazer de três coisas separadas, Aluno: E a escolha das formas dos vasos? independentes, uma coisa única. Várias coisas me levaram a fazer trança, essa versão são as tranças de escape. Colocar essa atividade No Banco do Brasil havia um conjunto de obras heterogêneas. no interior do museu, caracterizar isso sendo feito por personagens Assim como juntar duas coisas me interessa, acho que construí- que evocam uma situação que existe efetivamente na sociedade, mos uma obra juntando momentos diversos de outras obras que esta tensão social nas prisões, a vontade de evasão, transferir isso fizemos. É um segundo momento, digamos, sinfônico. tudo para um espaço cultural, já tem uma carga semântica imensa. Essas pequenas transferências e essa apresentação de coisas jun- Costumo lembrar às pessoas sobre o trabalho do compositor, tas começa a borbulhar sentidos, e é dentro deles que devemos quando escreve uma sinfonia. Primeiro escreve um quarteto, um procurar as razões e os porquês dessas coisas. solo, uma linha melódica e depois vai juntando até criar uma sin- fonia. Em arte é possível ter o mesmo pensamento, percebendo, Nessa elaboração da trança, chamei o para fazer compreendendo o seu trabalho como uma obra. Momentos os mais 176 177 CADERNOS EAV TUNGA

diversos podem se encontrar, produzir chispas diferentes, leituras compreender o sentido de cada palavra isolada; e trabalhar na de uns sobre os outros. Partindo dessa ideia, de que uma trança é a tensão, no sentido de cada uma dessas palavras no sentido dessa transformação de três elementos discretos, isolados, numa unidade frase, é uma das operações aludidas nessas peças. só, tentei aventurar isso num outro campo. Imaginei três, quatro formas que pudessem ser geradas a partir da mesma linha. Dese- Me ocorreu primeiro fazê-las em ferro, em metal, porque estaria nhei uma linha sinuosa e percebi ser esta linha o perfil de um sino, mais próximo do sino, um objeto que seria dominante, prepon- e parte desse perfil eu poderia continuar e transformar num perfil derante e nos chamaria de volta ao ruído do sino. Fundi-las, de uma copa, de um cálice, e neste mesmo perfil poderia continuar também, porque me interessava esse resfriamento oferecido e transformar no perfil de uma garrafa, e esse mesmo no perfil de pela fundição, como se uma ideia que tivesse sido pensada a um funil, e, assim, fui agregando algumas formas, a partir de uma 1.200 graus, cinco minutos depois a 1.100 graus, tudo aquilo já linha comum, e dei volume a elas, as fiz rodarem sobre um eixo. está congelado, já é um corpo só, ou seja, na fundição você pega pedaços de ferro, junta, aquece tudo e eleva a uma temperatura De um fragmento nasce um sino, de outro fragmento nasce um muito alta. Depois, verte aquilo sobre um modelo, uma forma, e vaso, de outro uma copa e, curiosamente, essa linha geratriz, imediatamente faz aquelas coisas separadas serem convertidas tal qual essa linha da trança, agrega um objeto só, e jamais será em uma coisa só, coesa. Essa operação é também metáfora para um objeto só na medida em que você reconhece o sino, o cálice, mim, esse isolamento que seria um sino, um cálice, todos eles a garrafa, mas há essa vontade de estarem juntos, originária da fundidos na mesma temperatura, mas em momentos diversos. concepção dessas formas todas; mesmo tendo objetos separados, A rigor, já estamos acumulando uma série de operações com você termina em algum lugar sabendo que eles estão juntos, eles sentido extenso. fazem parte de uma totalidade. Depois me ocorreu o seguinte: como incorporar isso? Lembrei Essa tensão entre escrever uma frase, compreender o sentido de da grande sensibilidade das mulheres em se maquiar e da ideia uma frase, e depois pegar cada palavra que compõe essa frase e da maquiagem como uma espécie de reencarnação. Pedi aos 178 179 CADERNOS EAV TUNGA

dançarinos3 para maquiarem essas peças, mas, dado o tamanho Esta ação da performance durava doze horas seguidas, começou descomunal delas, a quantidade de maquiagem teria que ser imensa. de manhã e prosseguiu pelo dia inteiro. Um processo meio ine- Além disso, os dançarinos teriam que se maquiar também, termi- briante, as pessoas iam ficando possuídas pelo ritmo da música, nando por maquiar o próprio corpo. pela intensidade das sopas, pela luz. E, num dado momento, aquelas bailarinas, cuja função era maquiar sistematicamente as peças, Era um modo de falar da hipótese de um terceiro gesto, pictórico me viram parado e começaram a me maquiar, timidamente pelo e também cotidiano, que todos nós conhecemos: se transformar sapato, e eu disse que podiam continuar. num all over, numa superfície muito maior, e incorporar, fazer a mesma pele sobre o seu corpo e sobre a escultura, uma espé- O que estava acontecendo ali: eu estava me incorporando àquela cie de criação de continuidade; como dizer que a escultura, em obra, por dentro e por fora, como a maioria das pessoas, porque sua totalidade, não apenas no seu olhar, mas o seu corpo inteiro é eram oferecidas, no próprio coquetel, não caipirinhas ou vinho parte daquilo, pode dialogar com a peça, é como mais um desses branco, mas sopas, que estavam fervendo, eram todas com base elementos desenhados. O outro elemento, que faltava ali, seria o vermelha, beterraba. Evidentemente, com bebidas vermelhas, luz corpo com essa maquiagem. Evidente, numa situação com uma vermelha, maquiagem vermelha, havendo forte presença dessa exposição dessa ordem, dada a quantidade de maquiagem, dada a intenção de transformar tudo aquilo numa totalidade, todo e qual- intensidade do som, dada a existência de um grande contingente quer personagem ali fazia parte daquela obra. de atores e personagens, o público que entrava ali terminava por esbarrar naquelas formas maquiadas e se maquiar também. Foram Falo sobre fazer parte, efetivamente. Se entro num museu, olho muitas as reclamações de visitantes que entraram elegantemente para a tela, vou para casa e me lembro dela, e alguém atravessou vestidos e saíram manchados, eu inclusive. na frente, pode ser que me lembre do contraste de cor com a roupa dessa pessoa na frente da tela. Mas numa situação dessas, a presença Aluno: Você também fez parte da performance, daquela pessoa, fatalmente, vai fazer parte da picture, da imagem em alguns momentos eles maquiavam você? que tenho da obra de arte. 180 181 CADERNOS EAV TUNGA

Hoje em dia é possível pensar o público como sendo parte da obra. Esse é um dos pressupostos dessa atitude, não acho que seja dogmático, nem necessário, ser assim com toda obra, mas é uma possibilidade de que hoje em dia dispomos, e é uma possibilidade rica, na medida em que você agencia mais coisas.

O confinamento das artes face à industria cultural tem a ver, exa- tamente, com aquilo adquirido pelo espetáculo no último século. Você vai a um espetáculo, por mais banal que seja, é luz, é energia, milhares de coisas o envolvem, capturam, e a presença da arte é muito discreta. Mas nada nos diz que a intensidade gerada, abar- cando todos os sentidos, não possa ser agenciada nesse campo de reflexão da arte, algo um pouco mais denso, e acho que me propus a isso, nessa ideia.

Aluno: A partir do momento em que você se deixa maquiar, você tira a sua autoridade do corpo da obra, é como se você permitisse que a obra crescesse, fosse transpassada, correto?

É correto pensar assim. Estamos tocando numa questão muito fina, o que faz a arte sobreviver? Por que ela sobrevive? Que mistério é Inside Out, Upside Down, 1997 Vista da performance: X Documenta esse aonde fazemos toneladas de excremento para três poemas, de Kassel, Alemanha, 1997 Foto: Lucia Helena Zaremba 182 183 CADERNOS EAV TUNGA

como dizia o Artaud, toneladas de acidentes, de guerras, de sangue, e Tem que se aprender a fazer arte, aprender a fazer coisas, é a quantos poemas? Meia dúzia? Que mistério é esse no qual tão poucas curiosidade sobre todas as coisas, de que falava no começo desta obras de arte, quase nada frente à produção industrial, se mante- palestra, se interessar sobre tudo; e depois você pensa saber o nham, e continuem tendo o valor que elas têm, não só o financeiro, que está fazendo, seu trabalho, uma obra, um poema, uma pin- mas o valor de serem preservadas, de serem cultivadas, cultuadas? tura, e então percebe, depois que coloca aquilo no mundo, que o trabalho começa a te ensinar, descobre coisas que não tinha Existe ali uma descoberta, uma hierarquia, um poder que esses pensado sobre aquilo. No entanto, foi você quem o fez, você acha objetos possuem, desses poemas feitos, se impondo, invadindo o que sabe tudo, mas não sabe, e acho que a arte começa a existir a outro. Estou descrevendo, desse modo, esse poder sutil, mas por partir desse momento. É esse momento que perseguimos, esse que não falar claramente dele e se deixar invadir por esse poder? É saber que nos interessa, evidentemente, é um saber subversivo, nessa situação que o personagem ali está atuando, sendo invadido de outra ordem, contra o saber institucional, porque obedece a pela arte e perdendo a hierarquia. Nos surpreendemos, descobri- regras, as mais estranhas, similares às dos sonhos, à formação mos um artista, um poeta, um poema e ficamos perplexos. Isso dos processos primários do pensamento. Como esse sonho que acontece com todos vocês, é a razão que os traz aqui, um dia terem relatei aqui, sonhei com a verdade e me esqueci quando acordei. estado perplexos frente a uma evidência estética, que é o que nos Essa situação é paradoxal, é dessa ordem e dessa natureza o interessa, e é maior que nós, porque ela nos invade. Mesmo o autor nosso interesse. se surpreende com a sua obra. Aluno: Cada elemento dessa obra tem um significado, A rigor, fazemos arte para saber, saber aquilo da gente que não tanto individualmente como em conjunto, você vai sabemos, e que através da arte podemos vir a saber. Esse fazer, elaborando os três elementos, mas é preciso racionalizar não representa o gesto de uma inocência, de se deixar ir, ou ter o máximo possível e saber o que significa cada elemento uma inspiração reveladora de alguma coisa. Não, é um trabalho para saber o ponto. E você perde o feeling, o “se deixar árduo, se dirige ao limite do seu saber, da sua vontade de conhecer. levar” sem chegar a pensar sobre o fato... 184 185 CADERNOS EAV TUNGA

Você está colocando: em que momento você opera racionalmente você acerta um gesto no desenho e depois fica perplexo e pensa: sobre seu trabalho e em que momento você opera sensualmente “beleza, como ficou legal, acertei, acho que posso fazer isso sem- sobre seu trabalho, qual é o momento da inspiração, vulgarmente pre!”. Eu acho que é uma sereia que chama e te leva a dizer “não falando, da intensidade, do feeling, e em que momento você está quero nem pensar sobre isso, quero ir fazendo”, e essa coisa brota pensando: isso é isso e isso é aquilo. É mais ou menos isso? e sai, e é uma sereia, também, levando você para o departamento de filosofia: começa a especulação sobre o trabalho, e você termina Aluno: Costumam chamar de “gastar a onda”. esquecendo a existência de um fato estético e que a razão de fazer poesia é trabalhar com uma coisa estética. Quando digo estética não Investir na onda! Onda, não se gasta, se investe. (Risos) Essa, é uma é no sentido acadêmico da palavra, mas aquilo que nos faz sentir. questão que acho que vai sempre me perseguir, e a todo mundo, e a conclusão, por minha experiência, é que se trata de uma tensão Aluno: Tenho a impressão que, de algum modo, contínua, se trata de nos mantermos num fio entre a compreensão quando começamos a racionalizar demais, acabamos e a incompreensão. Descrever isso seria uma grande obra de arte e perdendo a questão da “transcendência”. É bacana pairar pretendo fazer isso. A atitude normal é você saber e não saber, sei sobre o trabalho, não perder o controle, mas... que a chuva me molha, mas quando me refresca, não é a mesma chuva que me molha, é um outro prazer, outra sensualidade... Esquecer dele e aprender com ele, digamos. Se alguém conseguir enunciar direito isso que você está me dizendo, me conte, vou Aluno: “Só sei que não entendo” – Guimarães Rosa. ficar feliz da vida. É isso mesmo, penso, o trabalho é de associação. Procuramos estudar arte, olhar obras de arte do passado remoto, Só sei que não entendo! Essa pergunta, penso, pertence a quem da gênese da arte, porque é um tipo de saber que se dá um pouco está interessado em fazer arte e tentar descobrir a sua disciplina através desse sentido também. Você se coloca à disposição do em relação a isso, até onde se pode ser curioso e até onde pode se espetáculo que a coisa oferece e intriga, deixando-se levar pela deixar ir. Existe o canto da sereia desejando nos seduzir, quando coisa e só depois refletindo. Quando se reflete, percebe-se que deve 186 187 CADERNOS EAV TUNGA

se deixar levar mais ainda, e assim continuamente. É isso mesmo. coisas assolando o seu sentido, sua mente, e você tenta organizá-las da maneira mais estrita, para conseguir dar conta delas. À medida Aluno: Me parece que no seu trabalho tem uma questão que você aumenta essa possibilidade de ser pragmático, você está alinhada com a sua presença, um caráter biográfico e ao mais próximo ao real, mas é bem mais difícil andar, porque são mais mesmo tempo ficcional. Vi um vídeo seu, há muito tempo, impregnações, é muito mais prazeroso, intenso, rico. Narrativas começava: “meu nome é Tunga”, mas não era você. são possíveis.

É uma anedota curiosa. Numa dessas conversas, aqui no Parque Quando comecei a trabalhar, observei certa vocação reflexiva, que Lage, me chamaram para fazer um workshop. Eu estava com muita meu trabalho estava impregnado dessa vocação que é, geralmente, preguiça, estava com o Paulo César Pereio e disse a ele para ir lá e encaminhada para o campo teórico, ligado à filosofia, à estética, fingir que era eu. Ele deu a aula fingindo ser o Tunga, num certo e, obviamente, termina por se afastar do fenômeno, por tratar momento eu disse: “Esse cara não é o Tunga, o Tunga sou eu”. É o fenômeno como objeto de estudo. Nunca quis me afastar do uma performance, mas tudo é performance. fenômeno da poesia, do fenômeno estético. Como poderia exercer essa vocação reflexiva sem me isolar do meu objeto, fazendo com Vamos esquecer a palavra performance. Tudo é passível de ser que essa reflexão fosse parte do objeto, se agregasse ao objeto impregnado por sentidos outros, que não aquele nominal da lin- como sentido? guagem, estou aqui falando e usando este gesto que não faz parte do sentido, este gesto já é uma performance. Posso criar um gesto É possível criar uma teoria, um conjunto de reflexões do objeto que contraditório ao que estou falando e o sentido desse gesto passa a seja uma ficção. A rigor, a teoria também é uma ficção, mas você ser tão importante ou mais do que estou falando, amplia o sentido pode usar essa ficção e incorporar outros objetos mais “divertidos”. do discurso. Abandonamos a linguagem, como ela é concebida Nessa medida, você faz uma paródia da crítica de arte, também. pelo senso comum, e começamos a utilizá-la de modo muito mais Assim, a crítica é uma construção que pode pertencer à obra, próximo a como se pensa, como se lida com o real. Um turbilhão de como a percepção de uma obra pertence à obra, assim como estar 188 189 CADERNOS EAV TUNGA

presente frente a uma obra de arte é se colocar no interior dessa estético, e, eventualmente, não gostamos de algumas companhias. obra e incorporar a ela um sentido novo. Mas é preciso, antes, tomá-los, não como algo individual, autoral, mas pensar isso num conjunto maior, isso enriquece. Essa atitude é apenas uma formalização de uma coisa que está pre- sente, latente, é uma prática comum, mas jamais é anunciada com Recentemente, tive uma experiência e pude colocar à prova essa essa graça, pois pretende um ar de seriedade por ter sido investida questão. Uma inquietação que paira sobre o meu trabalho, sobre de um poder cultural. Poder cultural este que termina eliminando uma questão muito atual: a questão do poder de certas culturas ou destruindo modos de pensar. Gostaria que essa prática, da teo- hegemônicas do Ocidente que enunciam a arte como uma coisa ria, fosse sempre uma prática enriquecedora, o pressuposto desse feita em uma sociedade avançada, num contexto cultural, etc. Ao exercício será sempre enriquecedor em relação à obra de arte. mesmo tempo, arte contemporânea, com-tem-po-râ-ne-a: tem Esse modo de ver e usar isso dentro do meu trabalho é, a rigor, um cara no Tibet fazendo uma mandala, na África, fazendo um também o meu modo de ver o trabalho dos outros. Olho o traba- ícone, uma fogueira, etc., isso parece não entrar no discurso da arte lho dos outros como sendo meu trabalho e, quando estou vendo contemporânea, porque ela só lida com valores da alta sociedade, a obra dos outros, é também um pouco do meu trabalho, porque desenvolvida no Ocidente, pela alta racionalidade, ou seja, eixo Nova possuo uma visão única daquilo. Todo mundo tem uma visão que, York-Londres-Paris-Milão, etc. Uma das minhas inquietações é em algum momento, é única de uma obra de arte do outro. Já falei que o trabalho seja passível de compreensão por pessoas dos mais aqui da “quantidade de merda pra pouco poema”, citando o Antonin diversos meios culturais. O fato de você usar elementos precisos e Artaud, que, num certo momento, processou outro escritor que claros, oriundos de um contexto cultural preciso, isola o seu trabalho. teria publicado um romance plagiando ele. O Artaud abriu um pro- Por exemplo, quando olho o cachorro-quente do Lichtenstein ou cesso na Justiça, mas parece que este romance já tinha sido escrito. uma lata de Campbell soup do Andy Warhol, sou capaz de apreciar Esse exemplo traduz um pouco essa verdade, de que existe certa isso, mas tenho um certo desgosto de ser obrigado a saber o que é temporalidade, certa incorporação do trabalho dos outros. A rigor, sopa Campbell, isso realmente não contribui para a minha cultura, todos nós fazemos parte de um barco, mobiliado de poesia, saber é apenas afirmação da hegemonia de produtos culturais locais, num 190 191 CADERNOS EAV TUNGA

determinado contexto. Há uma inquietação no meu trabalho ao falar uma parte do público passa a ter, “isso é uma porcaria, isso é bom”, de coisas passíveis de serem compreendidas por contextos bem mais faz parte desse jogo. Mas há museus como o Louvre ou a National amplos. Se vocês olharem bem, dentro do repertório, uma trança, Gallery de Londres, há similares a eles em Pequim e vários cantos um sino, um pente, cabelo, maquiagem, estou falando de coisas que do mundo, para não falar só nesses campos hegemônicos, há visitas gente de qualquer lugar do mundo, em qualquer época, é capaz de a esses lugares similares a um museu de antropologia, você vai lá, entender. As primeiras sociedades, ainda paleolíticas, produziram sabe que vai ver arte e aquilo é arte porque parece que Deus disse sino, produziram tacape, trança, maquiagem, se pintavam. Você que é arte. Aquilo é tão sério, tão conotado de sentido e passou por cria um vocabulário acessível, é uma boa tarefa para nós, situados tantas peneiras na história, que te oferece quase certeza de que neste hemisfério, nesta posição, pensar desse modo. vai ver arte. Um lugar onde você vai botar uma obra de caráter um pouco estranho e sabe que o público vai chegar lá e já considerar Recentemente recebi um convite do Museu do Louvre para fazer aquilo como arte, chegar acriticamente, é uma equação curiosa uma exposição, instalar uma peça embaixo da pirâmide. A pirâ- da arte contemporânea. mide do Louvre é um lugar bizarro, um lugar de visitação maciça, quatro milhões de pessoas assistiriam a isso. Público hoje em dia [ Exibição do vídeo sobre a obra exposta no Louvre4 ] é muito fluente, expor no Museu do Futebol, Museu de não-sei-o- -quê, como fiz em Kassel, 120 mil pessoas vão ver o trabalho... Vão Aluno: Reparei que você usa alguns símbolos que remetem ver coisa nenhuma! Vão passar por ele, ver é outra coisa. Pessoas à morte: a caveira, a morte do sapo... O trabalho do início que vão ao museu vão ver arte, normalmente, vão ao museu nesse é melancólico, dramático, teatral. A escolha de usar esses ritual de arte contemporânea, vão ver e, em geral, criticamente. símbolos tem a ver com a sua vida, com algo que você queira Você vai ao MoMA de Nova York, mas se dá ao luxo de dizer gosto mostrar, ou com a contemporaneidade de uma maneira geral? disso ou não gostei disso, isso não entendi. Essa é uma atitude que dá certo conforto ao público, poder estranhar, e é até um pouco Não. É curioso você dizer isso sobre a morte, porque para mim não a graça dos museus de arte contemporânea, essa indignação que é uma coisa presente como símbolo. Um dos significados da caveira 192 193 CADERNOS EAV TUNGA

“Nos surpreendemos, é a morte quando você a reconhece dessa forma, mas nós portamos em vida uma caveira, todos nós. Talvez a intensidade dessa ideia descobrimos um artista, um de morte seja para reafirmar a continuidade, a transformação. Um dos temas, que é contínuo e se ligaria àquela ideia de conjunção, de poeta, um poema e ficamos colocar duas coisas e surgir uma terceira, são as sucessivas trans- formações. É pensar dinamicamente, os sentidos se formam e são perplexos. Isso acontece incapazes de ser estáticos, estão sempre evocando outros sentidos. E, possivelmente, se colocar duas coisas juntas elas vão ter uma com todos vocês, é a razão atração e haverá um sentido comum nessas mesmas duas coisas, sendo capaz de se ligarem, para gerar outras. que os traz aqui, um dia Alunos: A sua intenção é deixar os trabalhos abertos para terem estado perplexos nossa interpretação, totalmente abertos, ou você acha que tem alguma coisa que fecha esses sentidos? frente a uma evidência Nem um nem outro. Acho que sim, totalmente aberto, o mundo estética, que é o que nos está aberto a interpretações e os produtos que se fazem a partir do mundo, as transformações também são abertas a interpretações. interessa, e é maior que nós, Coisas não abertas a interpretações são sinais de trânsito: em ver- melho você para, porque te coloca em risco. porque ela nos invade.” A arte é um território onde você pode produzir, cutucar o imaginá- rio alheio, e esse imaginário pode ser surpreendente. Restringir o 194 195 CADERNOS EAV TUNGA

sentido a uma possibilidade, a um conjunto de sentidos precisos, daquela tribo inteira. Isso não aparece no filme, aparece aquele seria restringir esse poder da linguagem da arte. conjunto de caveiras que, embora não possamos analisar morfolo- gicamente, intuímos que sejam todos parentes ou relacionados, e Por outro lado, existem interpretações que estão implícitas, você nos dá uma ideia de multiplicidade da morte. O fato de achar uma constrói coisas, um objeto poético é uma construção que tem as prótese dentária reabre o sentido para reintroduzir a narrativa suas normas, suas razões internas, suas coesões e indicações de que já estava ali antes. Transformo essa narrativa em algo mais como funcionam. Dificilmente vai se contrariar aquilo, é preciso dramático: ao invés de achar aquela obturação numa boca viva, compreender isso, os esquemas formais que viabilizam aquilo achar na boca de uma caveira. como linguagem, isso é rígido. Esses esquemas formais, se existem, estão ali exatamente para abrir o território dos sentidos e não Esse modo de construir, de contar uma história e de impregnar de para restringi-los a um só. Sobre a recorrência de signos de morte, uma história o conteúdo da obra, é um modo de enriquecer e abrir eventualmente ou evidentemente, ali existem construções em que mais portas; quanto mais portas abertas, mais se pode criar uma a morte reincide sempre, mas nunca como finitude e sempre como fluência, uma evasão de sentidos para adensar a obra. abertura para alguma coisa. Por que adensar a obra? Porque a característica maior da linguagem O conjunto de caveiras observadas naquele plano, que estão no e aquilo que mais nos seduz na linguagem humana é exatamente chão, aconteceu por acaso. Estávamos filmando5 no Museu Histó- a abertura de sentidos, é a possibilidade de surpreender com um rico Nacional e eu estava procurando outra sala, de repente, abri sentido novo. As linguagens construídas lidam com um território a porta e vi essas caveiras no chão. Perguntei de que se tratava e hoje em dia muito desenvolvido por causa da informática, você me informaram que uma das doutoras que estava trabalhando ali constrói sistemas de linguagem fechados. A linguagem natural, fazia um estudo e aquilo era uma tribo inteira de índios dizimada que é a linguagem falada, já está demonstrada pelo Kurt Goebel6, por um vírus de gripe, possivelmente levado pelos brancos, e ela um matemático lógico, isto é, toda linguagem em que a ideia de estava fazendo um estudo para tentar identificar a causa mortis contínuo esteja embutida fatalmente será autocontraditória em 196 197 CADERNOS EAV TUNGA

algum momento. A linguagem humana é incompleta, não haverá contínua. Esse toro seria o modelo ou a referência para como as jamais um discurso completo. O discurso pode abrir mais senti- histórias vão acontecer, como os sentidos vão se formar, sentidos dos, não criando uma coerência total, porque sempre haverá uma que eu agencio, eu capto, edito, lanço, eles funcionam como se incoerência em algum momento. Procuramos essa incoerência, é existissem dentro de um toro. paradoxal essa situação do limite da linguagem, onde ela explode para um sentido que não carrega mais. Tudo isso nos interessa, A pintura, por exemplo, considera sua existência a partir de um porque nos faz relacionar uns com os outros não a partir dos plano, fala-se da materialidade da pintura, materialidade? códigos sociais dados, senão estaríamos nos relacionando só a partir daquilo que cada um é segundo as normas – “sou aquele Plano não existe, é uma suposição teórica, um lugar geométrico da cara que faz isso, etc.”. A arte faz surpreender, desperta o sen- continuidade, da equidistância. O toro é outro lugar geométrico, tido de surpresa que a linguagem, característica do humano, nos mas fala de um espaço geométrico, um espaço em que as coisas imprime, nos oferece. terminam por se reencontrar, toda paralela pode se encontrar, não há o estatuto da paralela sobre o modelo do toro. Aluno: Essa construção que você fez dos recortes das imagens não foi aleatória, você criou um efeito Como construção do filme, está não só na narrativa, como no de circularidade, não é? modo de organizar diversos trabalhos. Quando fiz esse filme, antes tinha feito a história das siamesas capilares, que apresentei A ideia de circularidade aí é mais a recorrência de ciclo, retransfor- num congresso de psicanálise, e era o primeiro modo de conectar mação. O objeto modelo onde as coisas acontecem está explicitado uma série de obras que havia realizado no curso de sete ou oito na narrativa do começo ao fim deste filmeÃO 7, em vários momen- anos. As obras eram a trança, o tacape de ímã, aquela cabeleira tos, pela presença do toro, daquele anel circular. Toro, para quem com pente, etc., aparentemente, trabalhos muito díspares e eu não sabe, em topologia, que é um modo diferente de pensar a geo- tinha um projeto de que todos esses elementos deveriam estar metria, é um lugar geométrico com um buraco só e uma superfície juntos. A história é bastante longa, mas vou tentar encurtar por 198 199 CADERNOS EAV TUNGA

um dos caminhos dela. Uma forma de colocá-los reunidos foi é uma coisa problemática, isso não é ruim, porque todos nós somos naquela pintura sobre seda, em que coloco os objetos um ao lado cheios de problemas; somos problemáticos porque somos finitos do outro, criando um objeto total composto por essas partes, tal e construídos de uma incompletude. Temos sempre uma vontade qual mencionei o sino, cálice, etc. Outro era a narrativa contando de completar, de organizar essa finitude, mas sabemos: vai acabar a história das gêmeas capilares, que dava conta da totalidade e não vamos dar conta dessa complexidade. desses objetos, dessas esculturas todas que eu havia produzido. A segunda versão foi o filme, a terceira já foi a escultura, e assim É um modo de cada um lidar com sua incompletude. sucessivamente, mas o que está por trás, o que rege tudo, é essa presença do toro, é um modo de pensar no espaço não euclidiano, A sua problemática é que imprime à linguagem uma visão pessoal, é não newtoniano, é um modo de pensar no espaço topológico; a isso que se chama de artista. Todos nós sonhamos e cada sonho, de rigor, a construção funciona nos lugares geométricos da cons- cada artista, das pessoas mais bizarras e estranhas, vai ser diverso trução, são conexões improváveis. de outro, único e particular, intransferível. Na medida em que con- segue transferir esse sonho, ele vai começar a ser artista. O modo Aluno: Essa relação seria a fagulha do significado de você ditar essa sua complexidade inicial em linguagem faz de inicial do seu trabalho? você um artista; somos todos artistas e precisamos encontrar esse modo de expressar. O significado inicial é uma questão: existirá um significado inicial? A questão é interessante na medida em que volta a recolocar a posição Aluno: Você fala muito da questão do sonho. do artista, sua presença, o que é um artista. Qual a diferença de um Tem algum motivo? artista para um não artista? Acho que nenhuma. É apenas a atenção que aquele sujeito dá aos seus problemas, à sua problemática, ou seja, Falo muito do sonho porque passamos metade da vida dormindo e ao seu conjunto de significados iniciais. Vamos falar não só de um mal nos damos conta disso. E depois porque, embora a psicanálise significado inicial, mas de uma situação problemática. O ser humano seja extremamente vulgarizada no Ocidente, a relação que se tem 200 201 CADERNOS EAV TUNGA

com o sonho continua sendo arcaica e o sonho continua a ser um conseguir formulá-los através de uma linguagem, qualquer lingua- lugar depositário do saber sobre nós mesmos arcaico. Não damos gem, pode ser cozinhar sopa, como no caso da exposição. Cozinhar muita bola para um sonho nosso, ou fazemos interpretações ora sopa vermelha, oferecendo aquela situação, não é só o sabor da de um jeito ora de outro. Mas no sonho você agencia metade da beterraba, não é só o sabor do morango, das frutas vermelhas. É sua vida, está próximo aos processos primários de elaboração da lembrar que aquelas pessoas que tomaram a sopa de beterraba, linguagem. Acho didático falar do sonho, é mais por isso. quando fizeram xixi foi avermelhado. O vermelho estava incorpo- rado em seus corpos, a consciência desse vermelho interno sai sob A rigor, poderia fala do esquecimento, dos momentos de devaneio, forma de xixi no dia seguinte. Entre a maquiagem e o xixi vermelho, talvez sejam tão ou mais intensos que os sonhos e estamos na vigília, você está ocupando bastante território do seu respeitável público, acordados, no dia a dia. A atenção nesse momento é também um ou seja, você autoriza as pessoas a se sentirem parte daquela obra. paradoxo, mais ou menos como o primeiro paradoxo de acordar, São esses dispositivos que vamos criando para cercar um traba- sonhar com a verdade e me esquecer quando acordei. lho, para cercar a vontade de criar um significado, de apresentar uma problemática e apresentar esse sujeito problemático na sua Prestei atenção quando estava distraído, essa atenção a essa dis- integridade, para que ele seja ressonhado por outro e talvez nos tração, ou esse conhecimento do universo dos sonhos, dentro dos entenda. Fornecemos elementos para tentar nos fazer reconhecer sonhos, talvez seja a resposta à questão que você me colocou. Pensar pelo outro como humanos, e ele tente sonhar o mesmo sonho. Ofe- na razão, pensar em reconstruir o sonho ou se deixar levar por ele. recer sonhos para serem remontados, ou sonhos remontados sem Ou pensar em como construir um poema, como construir uma obra você estar dormindo, e sim consciente; logo não são sonhos, mas de arte, ou se deixar levar pelo fazer daquela obra. são da mesma natureza que os sonhos. Na vigília, você é capaz de viver uma intimidade com seu self com uma agilidade capaz de lidar Quando prestamos atenção no devaneio, a distração já não está com o cotidiano, e isso é uma situação interessante para o mundo. mais, sabemos como é e procuramos essa situação. Criar, fazer arte é criar condições para ficar nesses estados intermediários e Aluno: O seu processo criativo vem em forma de sonho? 202 203 CADERNOS EAV TUNGA

Você não inventa na sua imaginação? Como se dá seu somos obrigados a recalcar, acalmar, esconder para lidar uns com processo de criação? os outros e formar uma sociedade.

A minha produção não vem dos sonhos e nem sequer dá atenção Aluno: Queria que você falasse um pouco da sua aos sonhos. Estou usando e abusando dos sonhos porque não formação profissional. Você fez arquitetura, mas estou sonhando. Vem de saber que existem processos – e a prova chegou a exercer a profissão? disso são os sonhos – de compreensão, de apreensão, nos dei- xando frente ao mundo real e não são só aquilo que aprendemos Muitos seguiam para a arquitetura como uma espécie de compro- no convívio social, nas instituições que nos oferecem educação misso, para ter uma posição liberal na sociedade, lidar com arte e ao para se conviver e viver. Tem o lado do ser humano deseducado, mesmo tempo lidar com a técnica, era talvez como a informática é ineducável ou irredutível aos padrões de educação, são eles viven- hoje. Muita gente na minha geração estudou arquitetura. A arquite- ciados aqui e continuam emergindo. Eles afloram sob a forma tura me deu – não a Escola de Arquitetura, que levei muito pouco dela de violência e são quase indomáveis. Aspectos que a arte resgata – a atenção e a prática do exercício, as convenções para construir e a e traz a um bom caminho, bom na medida em que existir um necessidade de perceber, de se fazer consciente das dimensões com caminho humano. as quais a arquitetura equaciona, extremamente enriquecedoras para alguém que lida com escultura. A escultura tradicionalmente é alguma Seria preciso nos alongarmos muito nessa reflexão para tentar coisa vista de fora e, recentemente, no século passado, começou-se saber o que é o humano. Sei que humano não é só aquilo que todos a falar do que hoje chamamos de instalação. A única diferença da os dias nos dizem que é, estou convencido de que as normas sociais instalação, iniciada com Kurt Schwitters em 1912, para a escultura não me fazem humano, me deixam apenas ser humano. Gostaria de é que na instalação você está dentro e na escultura você está fora. encontrar uma sociedade em que emergissem mais dessas catego- rias, em que as relações humanas se intensificassem, o amor fosse Quando se trata de arquitetura você está dentro e fora, essa tensão e de outra forma e exatamente pudesse lidar com esse humano que experiência da arquitetura talvez me tenham dado muito subsídio e 204 205 CADERNOS EAV TUNGA

muitas facilidades para compreender e lidar com essa linguagem de estar dentro e fora. Coloco a questão radical da continuidade entre exterioridade e interioridade uma vez que arquitetura é abrigo e monumento, sendo abrigo um lugar onde se acolhe e monumento um lugar onde você honra alguma coisa.

Aluno: Você fala de outras culturas, das mandalas, do ícone chinês. Não é um pouco eurocêntrico considerar essas manifestações arte? Não seria o contrário? Elas não são feitas com esse objetivo, são rituais...

Você tem toda razão, são rituais em que a arte não é sequer um esta- tuto. Seria você compreender a existência de uma fusão inexorável que está acontecendo no mundo, onde certas estruturas ocidentais terminam se impondo e se generalizando, resgatar um território mantido misteriosamente, como é o da poesia e da arte – da arte falamos depois, porque estamos vivendo à beira de um abismo em relação à arte. Mas manter esse território, onde o espírito vai se manifestar de outro modo e não dentro da ordem da razão, como se espera, é saudável.

Trazer esses objetos, que são manifestações de outras culturas, Vanguarda Viperina, 1986 para um modo de pensar artístico no Ocidente é apenas identificar Três serpentes, éter Foto: Lucia Helena Zaremba 206 207 CADERNOS EAV TUNGA

aquilo de positivo no Ocidente na relação com a poesia, com aquilo São operações distintas, de ordem diversa, e você encontra uma que há de positivo no processo de elaboração de linguagem nessas intimidade muito grande em manifestações de culturas, as mais outras culturas. Isso não é uma coisa nova e é bastante discutí- diversas. O lugar da poesia no Ocidente, onde você ainda conse- vel. Coloquei essa questão no trabalho apresentado no Louvre. gue estabelecer esse diálogo, é esse lugar. Quando vou em direção O nascimento dos museus está estritamente ligado à dominação a outra cultura, olhar outro tipo de manifestação, vou com meu de um povo sobre outro; o museu, a rigor, não deixa de ser o lugar espírito aberto de poeta, não de artista, de profissional. Por acaso, de pilhagem, daquilo que você toma do inimigo quando invade a você vai encontrar muito dessas coisas em museu de antropologia, casa dele. Os museus são uma espécie de resgate desse saque de etnologia, arte, mas o que vou procurar não é arte, basicamente, dominações, de guardar o lado precioso. é outro modo de pensar o mundo, muito mais persistente que os últimos trezentos anos de razão. O que existia nessa peça do Louvre era quase que um texto sobre isso. Tinha uma balança, onde de um lado havia caveira e de outro Quando você vai ao Oriente é muito surpreendente, em certas havia réplicas de cabeças que estavam no Louvre, da cultura grega, regiões, o fato dos caras pensarem, o modo que isso repercute na de culturas diversas. Havia uma alusão a isso, a quanto de domínio representação daquilo que é vida, é extraordinário. Você compreende foi exercido para guardar esse tesouro precioso, um bem comum do essa linguagem lidando com signos, símbolos, mas com um discurso humano. Quanto o homem destruiu, a partir de seu antagonismo armado, e você é capaz de conversar sobre isso com essa linguagem, com outra tribo, para no fim reconhecer o tesouro dessa tribo? pelo fato de estar habituado com esculturas e coisas dessa ordem. Que estranho movimento é esse, para assimilar o que há de bom no outro é preciso destruí-lo? Acho que o museu é uma síntese O que se deve proteger não é o meio de arte, não são os museus, sou perversa disso, ele guarda a memória do saque. contra isso tudo, mas outro dispositivo mental, outro modo de pen- sar capaz de dialogar com seres humanos que produzem coisas, as Não parto do princípio da arte, inclusive tenho usado sistema- mais diversas, mas que você pode interpretá-las. Por exemplo, você ticamente a palavra cozinha aqui até para evitar essa confusão. entra de manhã no banheiro, lava a mão com sabonete, vai embora e 208 209 CADERNOS EAV TUNGA

deixa aquele sabonete ali, no dia seguinte você faz a mesma coisa e uma grande exposição na França chamada Magiciens de la terre, o sabonete está ali. Um dia você se dá conta do sabonete como uma organizada por Jean-Hubert Martin, o curador, e foi a primeira escultura. A rigor, essa operação que você está fazendo, homeopa- vez que ele trouxe para o museu uma diversidade cultural. Ele foi ticamente, é exatamente uma operação de fazer uma escultura, muito acusado de acrítico ou de ser eurocentrista ao contrário. Eu pegar uma quantidade de matéria, colocar ali e retirar até fazer estava expondo e meu vizinho era um monge tibetano desenhando uma escultura. Não é dizer que você está trazendo o sabonete para mandalas de areia. o campo da arte; não, estou transformando a minha vida em algo mais positivo, é saber que lavar as mãos não é só para limpar as mãos, Há uma anedota bem curiosa: o cara chegou na hora do almoço olhar não é só para não cair no buraco, mas para desfrutar de outras com seu séquito e perguntaram se ele queria comer, e o pessoal coisas, para compreender o mundo de outro modo. dele disse que sim, até que tanto insistiram e ele disse que não comia. Ele estava ali como artista, mas é evidente que ele não era Hoje em dia arte virou profissão, quando comecei era “vagabundo”, artista nesse sentido ocidental, o preço que há de se pagar para ter hoje temos a impressão de que o meio de arte é uma coisa pode- essa audiência, essa proximidade, talvez seja o preço dessa crítica. rosa, museus, galerias. Isso é uma balela do começo do milênio, É uma questão política ver se vale a pena ou não lidar com isso. do século, daqui a dez anos se esquece e fica na moda um outro Em relação ao modo de ver, ao modo de perceber, acho que é bom negócio. Arte é aquela tarefa solitária de procurar alguma coisa estarmos atentos e conscientes. Como no começo da conversa, em que você quer ver de outro jeito, não porque você faz daquilo uma que falei da instalação para a inauguração do Banco do Brasil de profissão e seu meio de vida. São Paulo, o vetor era revitalizar uma área urbana de São Paulo e por isso queriam um centro cultural naquela área. Uma área vital, Acho que é importante ser crítico em relação à ideia de arte do Oci- cheia de vida, cultura popular emergente! dente. É onde a gente lida, joga, e onde a gente transita, mas acho importante manter essa distância crítica, essa vigilância crítica Aluno: O seu trabalho me parece ligado em relação ao que dizem ser arte ou não. Na década de 80 houve a uma coisa espiritual. 210 211 CADERNOS EAV TUNGA

Talvez seja um anacronismo, mas acredito ser uma coisa pendular Aluno: Mas aí você cai no agnosticismo. na cultura do Ocidente recente, um tempo muito rápido, muito acelerado, há uma desmaterialização do conteúdo espiritual na Caímos muito longe. Uma espécie de humanismo universalista, história da arte e uma volta. Quando se tende a um esvaziamento ou para-humanismo, porque para falarmos com árvore não custa! total de conteúdo, se tende a uma volta. (Risos)

Aluno: Espiritual é uma palavra difícil, me lembra Rothko ou Malevich, mas hoje em dia falar nisso é complicado.

É uma palavra complicada. Estava falando nas fronteiras da lingua- gem, as bordas da linguagem, as bordas da percepção, talvez seja o fato de trabalhar com limites tão tênues, tão sutis, me obrigando a usar o vocabulário dessa maneira. Durante muitos anos fiquei extremamente triste ao usar esse vocabulário, e até usava a palavra “emergir” fora do contexto, mas hoje em dia é mais negócio você correr risco e tentar fazer presente e evocar coisas mais sutis com que a vida lida, a linguagem lida, do que passar por um nacionalista estreito e deixar passar essas coisas como sendo banais. A vida, penso, está mais apoiada nessas pequenas coisas, nessas sutilezas, do que nas grandes razões. Costumo dizer que somos monoteístas, politeístas, ou falsos ateístas, mas tenho encontrado bastante difi- culdade em ser convencido por um ponto de vista ateísta. 212 213 CADERNOS EAV TUNGA

Notas Saiba mais

1. Inside up outside down – performance apresentada na X Documenta de Kassel, TUNGA. Assalto. Brasília: CCBB-Brasília, 2001. 146 p. Alemanha. A peça principal desta performance era um enorme chapéu de palha TUNGA. Barroco de lírios. São Paulo: Cosac & Naify, 1997. 308 p. (no estilo veneziano), abaixo do qual e sustentando este chapéu, várias jovens caminhavam pela estação de trem. Acima do chapéu, várias caveiras acomodadas TUNGA. Caixa de livros Tunga. (Olho por olho, Encarnações miméticas, Se essa rua fosse como parte dele. minha, Lúcido Nigredo, Prole do bebê, Trou rouge e Cartaz Louvre). São Paulo: Cosac & Naify, 2007. 2. Resgate – performance apresentada no Centro Cultural Banco do Brasil, São Paulo. Nota: Os trabalhos podem receber mais de uma realização, por isso é comum encontrarmos nomes distintos para diferentes versões destes trabalhos, na verdade, desdobramentos de ideias. No caso, por exemplo, de Resgate, outras versões foram realizadas com os títulos de Assalto e Teresa. 3. Bailarinos da Companhia Lia Rodrigues de Dança. 4. À La Lumière des Deux Mondes – escultura montada no Museu do Louvre, Paris, 2005. 5. Filme O nervo de prata, de Tunga e Arthur Omar, 1987. Xifópagas capilares – dupla de gêmeas unidas por uma única cabeleira, objeto, performance e filme realizados primeiramente nos anos 80. 6. Kurt Goedel – (1906-1978) – matemático austríaco cujo trabalho mais famoso foi o teorema da incompletude. Nos anos 40 imigrou para os Estados Unidos para trabalhar na Universidade de Princeton. 7. ÃO – instalação de som com filme 16 mm, montada em 1981 na Galeria Cândido Mendes, Rio de Janeiro. 8. Kurt Schwitters – (1887-1948) – pintor alemão que trabalhou com diversos tipos de mídias, utilizando poesia, som, pintura, colagens, escultura, desenhos gráficos, tipografia e aquilo que viria a ser conhecido como instalação. Figura atuante no dadaísmo, construtivismo e futurismo. 214 215 CADERNOS EAV apoiadores

APOIADORES CADERNOs EAV

Adriana Carrasco Cata Schedel Franz Manata Livia Flores Marilú Santos Silvia Neves Alice Strauch Cathrine Clarke Frederico Bonfatti Loise Rodrigues Marina de Andrade Simone Michelin Aline Carreiro Clarissa Baumann Gabriela Caspary Lucas Milanez Leuzinger Marisa Bessa Simone Rodrigues Ana Costa Clarisse Rivera George Kornis Luciana Algarte Marisa Braga Suzana Queiroga Ana Cunha Claudia Hirszman Gilberto Malva Filho Luciana Paiva Martha Hirsch Gusmão Suzy Fecher Ana Franco Claudia Moog Giodana Holanda Luciano Diniz Martha Niklaus Tadeo Saldanha Ana Hortides Claudia Saldanha Gisele Leme Lucimara Letelier Matheus Pizão Tamiris Thomazini Ana Lucia Leal Claudia Tebyriçá Gloria Ferreira Luiz Vergara Maysa Britto Tania Queiroz Ana Luiza Moraes Claudio Diegues Gloria Marcia Percinoto Luiza Aché Mila Bianco Tatiana Moura Ana Santeiro Claudio Gabriel Gloria Seddon Lyana Peck Monique Lima Tatiana Podlubny Analu Cunha Cláudio Luiz Garcia Gustavo Peres Lydia Carmo Monocromo Teresa Salgado André Dametto Cristiane Friggo e Barros Gustavo Torres Malu Fatorelli Nelson Felix Tina Velho Andrea Matriciano Cristiane Geraldelli Herbert Hasselmann Manny Bernabé Norma Spagnuolo Tom Ferr Anna Helena Cazzani Cristina Amiran Illiada Carvalho Manoela Cardoso Olga Alencar Vanessa Gerbelli Antonio Caetano S. Neto Cristina Cantergiani Isabella Fernandes Marcel Alcantara Ovideo de Abreu Vanessa Rocha Antonio F. de Queiroz Junior Cristina de Pádula Jacqueline Medeiros Marcelo Cattan Pauan Soares Vera Cordeiro Augusto Lima Cristina Pimental Jacqueline Paschoal Marcelo Diego Paula Santa Rosa Victor Mattos Barbara Emanuel Cristina Salgado Jayme Fuks Marcelo Rocha Pedro Struchiner Vitor Zenezi Barbara Targino Cristine Flores Jj Junior Marcia Britto Priscila Guedes Viviane Matesco Benjamin Rothstein Daniel Penteado João Modé Marcia Limoeiro Raquel Holsbach Viviane Teixeira Bet Katona Daniel Yuhasz Jonas Aragutti Marcia Regina Fregolon Regina Amorim Mendes Waleska Praxedes Beth Young Débora Guimarães Jose Antonio Ferreira Marcio Zardo Regina de Alencar Rosa Wan Olissant Bia Amaral Diana Josefina Rosa José Eduardo Nogueira Diniz Marcos Bonisson Regina de Paula Zalinda Cartaxo Brigitte Bruns Guenzburger Jozane Braz Resende Maria Ângela P. Caetano Regina Werneck __ Bruna Fazolo Dulce Lessi Julia Rebuzzi Maria Clara Barbosa Renan Pinto AMEAV Bruno Belo Eduarda de Aquino Karla Barros Maria Clara Dias Ricardo Becker A Gentil Carioca Cadu Edval Ponciano Carvalho Katia Borneo Maria Cristina R. Amendoeira Ricardo Senra Monocromo Carli Portella Elisa Brasil Khalil Charif Maria Cristina Sacramento Rick Yates Prêmio PIPA Carlos Alberto Mattos Elizabeth Jobim Laura Barreto Maria Direnna Roberto Tavares Carlos Zilio Ernesto Neto Leila Ripoli Maria Florentina Camerini Rodrigo Bocater Carmen Ferreira Evangelina Seiler Leo Ayres Maria Mendes Rogério Emerson Carmen Silvia Nora Dias Evany Cardoso Leonita Colussi Maria Mercedes Lachmann Roselene Sergio Carole Chueke Fátima Pereira Lia do Rio Maria Rocha Sandra Felzen Carolina Cattan Fernanda Pequeno Lidice Matos Maria Romani Sergio Albuquerque Brandão Carolina Cortes Fernando Abrao Lila Montezuma Maria Tornaghi Sergio Martins Carolina Kaastrup Flavio Colker Lilian Zaremba Marilia Xavier Sergio Ribeiro

REALIZAÇÃO PATROCÍNIO