acerca das cenas de estupro que foram exibidas em Os Dias Eram Assim. Como MEMÓRIAS mecanismo de coleta, utilizou-se a busca avançada do Twitter, que permite a fil- tragem de conteúdo a partir de palavras- -chave. Para nortear o trabalho, a palavra- DE VIOLÊNCIA -chave buscada foi estupro e a hashtag da supersérie #OsDiasEramAssim. A análise está voltada para os tweets4 selecionados pela aba Em Destaque, ou seja, aqueles NO TWITTER: que tiveram maior engajamento na rede social digital Twitter. As narrativas são autoexames. Ao fa- lar, escrever, assistir e opinar se projetam SENSIBILIDADES diversos segmentos de memória e iden- tidade. Portanto, a partir da articulação entre ‘estupro’ e ‘Os Dias Eram Assim’ (narrativa) se propôs um diálogo entre DO ESTUPRO narrativa audiovisual, produção de sen- tido e convergência. Diante da excitação coletiva causada pela violência (estupro), buscou-se estudar o reflexo disso nas inte- rações entre a audiência nas redes sociais A PARTIR DE digitais, com foco no Twitter. As narra- tivas seriadas ficcionais têm assumido o papel de arte ‘engajada’, assim como as redes sociais digitais têm sido um campo #OSDIASERAMASSIM emergente de experiências estéticas e dis- cussão de temas polêmicos (tabus) da so- ciedade. Dessa forma, buscou-se entender o caráter social que cada tweet carrega Juara Castro da Conceição1 e quais os desdobramentos narrativos da Rosana Maria Ribeiro Borges2 série na internet a partir da sua veicula- ção na televisão.

Sistematizações do estupro RESUMO O estupro pode ser estudado a partir ao se refletir acerca do Twitter se tende a destacar as questões de efemeridade, sobretudo no de diversas áreas do conhecimento, como que diz respeito ao seu fluxo de comunicação. Neste trabalho o que se buscou foi traçar uma rela- as humanidades, a Biologia e a Psicaná- ção de perenidade entre memória, narrativas seriadas ficcionais e o Twitter. O corpus de análise lise, dentre outras. Como se buscou uma foram as postagens filtradas do Twitter a partir da hashtag #OsDiasEramAssim e também da reflexão do tema a partir da Comunicação, palavra-chave “estupro”, pois o que se está buscando é compreender quais as memórias e signi- optou-se por fazer uma breve discussão do ficações dessa violência a partir da série Os dias eram assim, da Rede Globo e sua reverberação tema a partir de órgãos como o Instituto de sentido no Twitter. A análise parte do entendimento de que as redes são estruturas sociais de caráter coletivo, o que vai ao encontro dos aspectos de memória que apontam para uma relação de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), entre a coletividade e uma natureza grupal e viva. Para tal, compreendeu-se a hashtag como ex- que faz uma leitura baseada nas Ciências tensão lúdica e memorial da narrativa, o que permite refletir acerca da memória e de sua relação Sociais Aplicadas e busca entender as fa- com as redes informacionais e as narrativas de ficção. Entendendo que as narrativas ficcionais ses do estupro a partir de dados numéri- balizam o imaginário social e a cultura da sociedade, traçando ao longo da história, aspectos de cos agregados às reflexões de pesquisa- identidade e identificação. dores e pesquisadoras que pensam esta violência dentro da própria instituição. PALAVRAS-CHAVE: Estupro. Memória. Narrativa. Televisão. Twitter. “A violência de gênero é um reflexo di- reto da ideologia patriarcal, que demarca explicitamente os papéis e as relações de MEMORIES OF VIOLENCE ON TWITTER: SENSIBILITIES poder entre homens e mulheres” (CER- QUEIRA; COELHO, 2014, p. 2). Quando se OF THE STUPID FROM #OSDIASERAMASSIM fala em estupro se está tratando direta- mente de relações de poder. Aqui, debru- Abstract when reflecting on Twitter, tends to emphasize issues of ephemerality, especially with regard to ça-se a análise sobre a violência sofrida its flow of communication. In this work, what was sought was to draw a relationship of peren- por mulheres, ressaltando que o estupro niality between memory, serial fictional narratives and Twitter. The analysis corpus were filtered não é uma “exclusividade” do gênero fe- Twitter posts from #OsDiasEramAssim hashtag and also the keyword “rape” because what is minino. Sabe-se que crianças, de ambos being sought is to understand what the memories and meanings of this violence from the series os sexos, homens, idosos e qualquer ou- The days were so, of Rede Globo and its reverberation of meaning on Twitter. The analysis starts tro ser humano está sujeito a este tipo from the understanding that networks are social structures of collective character, which is in ke- de agressão física e psicológica. Porém, eping with the aspects of memory that point to a relationship between the collective and a group o estupro narrado na série em questão é and living nature. For this, the hashtag was understood as a playful and memorial extension of the narrative, which allows to reflect on the memory and its relation with the informational ne- sofrido por uma mulher, o que exige o afu- tworks and the narratives of fiction. Understanding that fictional narratives mark the social imagi- nilamento da temática com o recorte no nary and the culture of society, tracing throughout history, aspects of identity and identification. gênero feminino. A violência contra a mulher é histórica, Keywords: Rape. Memory. Narrative. TV. Twitter. o próprio Código Civil (1916) colocava o homem como provedor da família e a mu- lher como um mero adorno familiar, con- Cena de tentativa de estupro marca forma que seu acontecimento é colocado siderando que o gênero (feminino) supos- “estreia de ‘Os dias eram assim’: ‘Não é como uma “marca” do primeiro capítulo. tamente determinava a sua incapacidade. não!’”. Esta é a manchete do site Extra3 De modo que, tal “cena” não está presente Até os anos de 1970 um homem poderia ao anunciar o começo da supersérie Os na maioria das narrativas ficcionais clássi- alegar judicialmente que estava salvando dias Eram Assim, da Rede Globo (2017). cas e também modernas. É a partir desse sua ‘honra’ assassinando ou cometendo Pode-se observar como o estupro é coloca- cenário que se propôs analisar as signifi- qualquer outro tipo de violência/crime do como um tema central da narrativa, de cações de sentido encontradas no Twitter contra uma mulher que supostamente es-

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Autor Correspondente 1: [email protected] Autor Correspondente 2: [email protected] Recebido: 04.05.2018.PANORAMA Aceito: 22.06.2018.Goiânia, Publicado: v. 30/06/2018 8, n. 1, p. 42-46, jan/jun. 2018 . ISSN 2237-1087 Este artigo está licenciado com uma Licença Creative Commons. Atribuição Sem Derivações 4.0 CC BY-NC-ND. taria traindo-o. Esses amparamentos, pre- velas, onde a experiência física se torna e a orientação de Newton. Resu- vistos em lei, foram a base das primeiras parte essencial do processo. Entretanto, mindo, há uma natureza humana lutas feministas no fim dos anos de 1970 existe um deslocamento do conceito do tão regularmente organizada, tão (1979), que culminaram em mudanças sig- que é físico, já que essa comunicação é perfeitamente invariante e tão ma- nificativas, pelo menos em termos éticos mediada. Considerando o campo das Ciên- ravilhosamente simples como o uni- e legislativos. cias Exatas, o conceito de ‘físico’’ abarca verso de Newton. Algumas de suas a dinâmica entre matéria e energia como leis talvez sejam diferentes, mas Conforme documentado na literatu- variáveis que produzem interação. É neste existem leis; parte da sua imutabi- ra, existem graves consequências produto, a interação, que se ancora este lidade talvez seja obscurecida pelas do estupro, de curto e longo prazo, estudo, que busca as sensibilidades de armadilhas da moda local, mas ela é que se estendem no campo físico, uma violência a partir do consumo em se- imutável (GEERTZ, 1973, p. 46). psicológico e econômico. Além de gunda tela (da articulação entre televisão lesões que a vítima pode sofrer e internet). Interação é sentido e é a partir Ao entender Geertz (1973) quando o nos órgãos genitais (principalmen- disso que se compreende as narrativas do mesmo diz que a cultura é pública porque te nos casos envolvendo crianças), audiovisual como palco de sensibilidades. o significado também é, coloca-se em de- quando há o emprego de violência Segundo Pallotini (2012), as ficções te- bate a problematização do real. Quando física, muitas vezes ocorrem tam- levisivas latino-americanas possuem um se fala em visualidades (narrativas audio- bém contusões e fraturas que, no realismo absurdo. Essa peculiaridade apro- visuais) se deve considerar a existência limite, podem levar ao óbito da xima sensivelmente o público da narrativa de uma antropologia visual. Portanto, ‘ver’ vítima. O estupro pode gerar gra- da , fazendo com que ele se sin- não se resume apenas ao sentido da vi- videz indesejada e levar a vítima ta parte da mesma. Dessa forma, tem-se, são, mas trata-se também de questões de a contrair doenças sexualmente em uma característica histórico-social, um aprendizagem e exercício. Assistir à uma transmissíveis (DST) (CERQUEIRA; trunfo das narrativas seriadas ficcionais telenovela é uma negociação constante, COELHO, 2014. p. 3). brasileiras, que é o de cada vez mais se onde se está o tempo todo colocando em aproximar do ‘real’, pautando questões disputa os sentidos documentais e ficcio- Ao falar de relações de gênero é impor- sociais e morais da sociedade brasileira. nais. A ficção não é sinônimo de mentira, tante ressaltar que a categoria ‘mulheres’ A mistura entre magia, realismo, tempera- muito pelo contrário, ela é capaz de acio- traz, em si, problemáticas particulares e mentos e paixões encontrada nas tramas nar reflexões morais e de comportamento, bem diferentes dos demais sujeitos. Qual- e subtramas da ficção são estendidas para fazendo com que a linguagem alcance as quer abordagem teórica e interpretativa outros meios, como, por exemplo, a Inter- mais profundas camadas de sensibilida- de temáticas femininas e feministas traz net. Trazendo conteúdos reformatados, de e entendimento do real. Dessa forma, uma ótica histórico-discursiva do que é ser informativos e de opinião para as redes quando se analisa a produção de sentido mulher, sobretudo na sociedade brasileira. sociais digitais concomitantemente à exi- do estupro articulado à sua dramatização Pacheco (2013) indica que o conceito de bição da narrativa na televisão. em Os dias eram assim se está falando de gênero se dá nas relações sociais, sobre- As narrativas audiovisuais contempo- cultura, memória e coletividade, pois as tudo nas diferenças. Ainda que se busque râneas estão cada vez mais imersivas. A facetas dessa violência só se tornarão no- um cenário de igualdade, é necessário en- busca é por uma comunicação que seja vas narrativas (postagens no Twitter) pela tender os contextos de identidades que assimilada como natural e que não apre- existência de uma negociação de signifi- são pré-fixadas pelas relações de poder. sente uma marcação ritualística de consu- cações e significados. mo tão forte, como era no passado. Sentar, Daí porque gênero não é sinônimo contemplar e assistir passivamente não Articulando televisão, internet e de “mulheres”. Nem o relacional que são mais os principais objetivos tanto dos memória uma perspectiva de gênero pede se produtores de conteúdo quanto dos espec- Sobretudo na América Latina, a mestiça- resolveria apenas no simples acrés- tadores. A dinâmica cultural na contempo- gem é um fator crucial para o entendimento cimo, homens e mulheres. Mesmo raneidade é a do movimento, que faz as da comunicação em um cenário de globali- porque, a perspectiva relacional é narrativas ficcionais irem além do entrete- zação de convergência. Barbero (2009) aten- intrínseca ao conceito de gênero nimento. A telenovela busca entreter, não ta para o fato de que os meios estão sendo e não está na dependência de re- só no sentido de diversão, mas também reinventados, vide as perceptíveis mudan- cortes empíricos. Quero dizer que, como entretenimento que fomenta memó- ças estruturais da televisão com o advento mesmo recortando-se empiricamen- ria e identidade. da internet. Para o autor há uma intensa te apenas mulheres (ou homens, ou As narrativas seriadas ficcionais são interação e contaminação entre os meios mídia, ou qualquer outro recorte) a textos repletos de intenções, onde enun- que desestabilizam seus próprios discursos interpretação poderá fazer-se sob ciação, enunciado e conteúdo aliam-se e criam o que ele tem nomeado de ‘as for- a perspectiva de gênero (KOFES, às categorias estéticas, comunicando e mas mestiças da comunicação’. 1993, p. 6). silenciando a serviço de estratégias de Enquanto campo, a telenovela foi rein- consumo, de audiência e até mesmo de fa- terpretada por Barbero (2015), tendo-se em Diante disso, compreende-se a razão de cetas históricas. Quando uma telenovela5 vista que ele é um dos pioneiros no enten- alguns dados divulgados pelo IPEA esta- aborda algo tão intrínseco e crucial para dimento de que o receptor não é passivo rem relacionados às práticas masculinas o entendimento das relações sociais como diante de uma narrativa. É preciso atribuir de vida, que acabam por refletir os núme- o estupro o que se está publicizando de valor à figura do sujeito para entender e ros da violência sexual contra mulheres. O fato é um aspecto cultural e violento da fazer uma ciência verdadeiramente comu- uso abusivo de álcool, os postos de traba- estrutura social. Dessa forma, compreen- nicacional. De maneira curta e popular, lho, as circunstâncias de abordagem e até de-se como o conceito de cultura tem um Barbero (2015) inova em sua reflexão ao mesmo os dias da semana são algumas impacto praticamente totalizante ao se apontar que o sujeito da comunicação não das variáveis apontadas na Nota Técnica refletir sobre o que seria o ‘homem’. Na é o meio, mas sim a relação. – Estupro no Brasil: uma radiografia se- interpretação das culturas proposta por A telenovela publiciza a característi- gundo os dados da Saúde (2014). Dessa Geertz (1973) é possível entender como o ca mutável do homem, que advém de sua forma, entende-se porque Pacheco (2013) protagonismo dos estudos antropológicos natureza cultural. No entanto, apesar das e Kofes (1993) colocam gênero e mulher e culturais é uma importante demarcação diversas rupturas, tem-se uma constante como categorias relacionais e não exclu- na história da ciência, visto que: hibridização entre passado e inovação nas dentes. A materialidade sexual se dá nas narrativas ficcionais seriadas. Todo ‘muro’ relações, ou de fato seriam apenas marcas A ascensão de uma concepção cien- derrubado deixa suas marcas de sentido e de nosso imaginário. Daí a complexidade tífica da cultura significava, ou pelo território, assim também é a narrativa da em entender o estupro como cultura e menos estava ligada à derrubada da telenovela, que evolui, é atualizada, mas suas interseccionalidades com outros mar- visão da natureza humana dominan- mantém com vigor as matrizes culturais cadores sociais, como as narrativas ficcio- te no iluminismo [...]. A perspectiva nas quais se ancora – o melodrama e o nais, por exemplo. iluminista do homem era, natural- folhetim (PALLOTINI, 2012). mente, a de que ele constituía uma Os avanços nas não estão Narrativas e suas sensibilidades só peça com a natureza e partilhava necessariamente em suas temáticas, mas A narrativa da televisão é cada vez da uniformidade geral de composi- sim na linguagem desenvolvida por elas. mais sensível, observa-se um resgate do ção que a ciência natural havia des- Esta linguagem não é necessariamente caráter teatral nos roteiros das teleno- coberto sob o incitamento de Bacon verbal, mas integra também os recursos

043 PANORAMA Goiânia, v. 8, n. 1, p. 42-46, jan/jun. 2018 . ISSN 2237-1087 utilizados para contar determinada histó- da cultura participativa. Formando, em torno da história, uma comunidade de interesse ria e ainda seus usos e articulações. As e memória. Neste sentido, atrelando essa análise à palavra estupro, está-se diante de interações cognitivas fazem parte da evo- uma comunidade que produziu sentidos diversos acerca dessa violência, articulando lução antropológica. De fato, nem todo ser cultura, identidade, memória e narrativa. humano é um consumidor de telenovela, A materialização da memória (NORA, 1993) está em rede e suas significações cultu- porém o modo de pensar melodramáti- rais vivem uma espécie de jogo de ressignificação constante. O indivíduo está em rede co, popularizado por essas narrativas, é em uma dialética entre o individual e o coletivo. Habita-se a sociedade da linguagem, vigente em praticamente todo o mundo que é, em sua totalidade, cultural. Assim, a cultura é a maior via de interatividade, pois ocidental, o que interfere diretamente nas é a partir dela que os conteúdos simbólicos se tornam significações e práticas sociocul- relações sociais desses espaços. turais. Os veículos de comunicação, as redes sociais digitais e as narrativas ficcionais Dessa forma, quando se fala em redes, são lugares de escoamento e de agrupamento de memórias. A comunicação envolve trata-se das relações entre indivíduos. produção, transmissão e recepção, sendo que entender seus desdobramentos de forma Para Castells (1999) as redes são formas a isolar uma dessas fases é comprometer sua perspectiva de significação social. de engenharia social e já existiam antes mesmo da rede mundial de computado- O universo ficcional de Os Dias Eram Assim res (a internet). Sobretudo as reflexões Os dias eram assim é uma série de televisão brasileira, produzida e veiculada pela da modernidade, como aponta Maffesoli Rede Globo, que foi exibida na faixa das 23 horas, entre os dias 17 de abril e 18 de (2001), buscam um caráter individualista setembro de 2017, totalizando 88 capítulos. A série foi escrita por Ângela Chaves e das redes. Porém, até mesmo o isolamen- Alessandra Poggi e tinha como enredo principal o amor impossível de Alice e Renato, to na contemporaneidade tem um caráter que foi cerceado pela ditadura militar no Brasil (1970). A produção marcou a estreia das coletivo, visto que valores, interesses, afi- duas autoras como titulares no desenvolvimento de uma trama global. O elenco prin- nidades e projeções individuais estão sem- cipal era composto por Sophie Charlotte (Alice Sampaio), Renato Góes (Renato Reis), pre articulados às características grupais. Daniel de Oliveira (Vitor Dumonte), Maria Casadevall (Rimena), Gabriel Leone (Gustavo Assim, tanto as redes quanto a memória Reis), Marco Ricca (Olavo Amaral), (Cora) e Cássia Kis Magro (Vera Reis) estão em constante evolução e aperfeiço- (REDE GLOBO, 2017). amento. Como propõe Nora (1993), a me- A trama tem início em 21 de junho de 1970, data da final da Copa do Mundo, da mória é carregada pela coletividade e pela qual o Brasil sai vitorioso, em meio às comemorações e o contraste político e social pre- vivência dos grupos. De modo que, enten- ocupante, promovido pela ditadura militar. Alice e Renato se conhecem, iniciando uma de-se, nesta reflexão, a telenovela (Os dias história de amor que irá perdurar por quase 20 anos, passando por diversos eventos his- eram assim) e o Twitter (a partir das hash- tóricos até as Diretas Já. A autora Alessandra Poggi, em entrevista ao Jornal O Globo, tags e palavras-chave) como lugares de afirmou que a inspiração foi Romeu e Julieta, dando assim, indícios de uma narrativa memória dos sentidos do estupro em um intertextualmente histórica e clássica. Os dias eram assim apresenta vários elementos recorte da vivência humana. É possível, da memória social brasileira, aliando questões históricas à uma narrativa ficcional que portanto, compreender tanto as narrativas busca fortemente a verossimilhança. Dessa forma, entende-se que as temáticas políticas ficcionais como as redes sociais digitais e culturais da série, inclusive o estupro, fazem parte um trabalho de pesquisa e roteiro, expoentes arquivistas de uma época forte- que buscou trazer à tona as nuances da violência e das relações familiares no período mente marcada pela memória. da ditadura militar. De maneira também crítica, pois se está diante dos ‘dias que eram assim’ e que, em certa medida, infelizmente, continuam iguais atualmente em termos Nenhuma época foi tão voluntaria- de violação aos direitos humanos, sobretudo das mulheres. mente produtora de arquivos como a nossa, não somente pelo volume #OsDiasEramAssim e o estupro no Twitter que a sociedade moderna esponta- Neste tópico estão sistematizados os dados a partir da filtragem de conteúdo reali- neamente produz, não somente pe- zada para a pesquisa. Em seguida, diante da bibliografia apresentada, discorre-se sobre los meios técnicos de reprodução e as possíveis produções de sentido presentes em cada tweet. A aba Em Destaque apre- de conservação de que se dispõe, sentou um total de 46 postagens filtradas a partir da busca combinada entre estupro e mas pela superstição e pelo respei- #OsDiasEramAssim, como se pode visualizar nas FIGURAS 1, 2 e 3. to ao vestígio. À medida em que desaparece a memória tradicional, nós nos sentimos obrigados a acu- Figura 1 – Montagem 1 das postagens filtradas a partir da busca combinada mular religiosamente vestígios, tes- temunhos, documentos, imagens, discursivos, sinais visíveis do que foi, como se esse dossiê cada vez mais prolífero devesse se tornar pro- va em não se sabe que tribunal da história (NORA, 1993, p. 15).

Trazendo a memória para uma discus- são que integra cibercultura e narrativas seriadas ficcionais, analisou-se as hashtags para além de um mecanismo de busca do Twitter. Fechine et al. (2011) categoriza o uso das hashtags como uma extensão lúdi- ca da narrativa ficcional. Esses conteúdos se encontram dentro das estratégias de expansão, que são aquelas que alargam o entendimento do espectador diante do uni- verso ficcional. Portanto, analisar a hashtag #OsDiasEramAssim já se configura como um recorte histórico dessa narrativa em um cenário convergente, digital e memorial. Os conteúdos de extensão lúdica vi- sam manter um vínculo identitário entre a narrativa e seus espectadores. No caso do uso da hashtag se está diante de uma extensão vivencial que, em sua maioria, avalia o conhecimento do público perante Fonte: Adaptado de: . Acesso em: 30 de junho, 2017.

044 PANORAMA Goiânia, v. 8, n. 1, p. 42-46, jan/jun. 2018 . ISSN 2237-1087 Figura 2 - Montagem 2 das postagens filtradas a partir da busca combinada como ‘ainda bem’ estão presentes nos tweets, o que mostra engajamento e, sobretudo, afeti- vidade e comoção diante da pauta levantada. Ainda discorrendo sobre a audiência femini- na, observa-se que também é cobrado enga- jamento da narrativa/emissora: espectadoras reclamam uma ‘problematização’ da temática do estupro para que isso não passe apenas como uma temática/acabamento do roteiro. Diante disso, vê-se como o espectador está cada vez mais ciente do compromisso educa- cional, histórico e memorial das narrativas. Em suma, nota-se que as postagens filtradas versam sobre memórias, sobretudo coletivas do estupro, e suas problematizações culturais.

Considerações finais As lembranças de cada um interagem com a sociedade. A mídia participa do processo de rememoração e localização das lembranças no tempo, visto que fatos elevados ao papel de acontecimentos integram a linha do tem- po das pessoas como notícias. Analisando o cenário da convergência midiática se pode entender como uma narrativa seriada ficcional reorganiza a temporalidade da cultura. Dessa forma, é possível ver como um fato/violência social – o estupro, pode ser identificado com a reincidente ‘nostalgia’ que de alguma forma faz parte das significações sociais, sendo como Fonte: Adaptado de: . Acesso em: 30 de junho, 2017. apenas como uma temática histórica. Na atu- alidade as narrativas estão em uma constante dinâmica estética e de distribuição, onde se Figura 3 - Montagem 3 das postagens filtradas a partir da busca combinada está constantemente relatando memórias de curto e/ou longo prazo que são resultados das vivências cotidianas e subjetivas. O telespectador é, antes de tudo, um ser social. Ao assistir a telenovela ele dá sentido e refaz significados a partir daquela narrativa. A vivência sociocultural deste ator social (es- pectador) será decisiva para a propagação do conteúdo. Assim, pode-se entender a memória a partir da sua ótica histórica e de sua relação com a mídia. O processo é de constante nego- ciação entre a memória coletiva e as memórias individuais que de fato serão base para o des- dobramento narrativo de uma telenovela. Dessa forma, no caso ora estudado, ob- servou-se como o estupro pode ir além das significações que tecnicamente poderiam ser findadas na tela. O espectador passa a ser um ator social que protagoniza uma mudança comportamental e histórica. A co- municação não é uma etapa, mas sim um processo vital. Trata-se de uma realidade histórica e cultural onde é possível educar, apesar da existência de sistemas sociais com anomalias. Não é possível ‘desligar a cabe- ça’ para assistir televisão, assim como não é possível se desprender da própria ‘mitologia Fonte: Adaptado de: . Acesso em: 30 de junho, 2017. 1. Juara Castro da Conceição Observou-se, nas postagens, uma interação predominantemente feminina, o que pode ser Mestra em Comunicação pela Universidade entendido a partir da audiência majoritária das telenovelas, mas também pode ser compreendido Federal de Goiás, UFG, Brasil. como um recorte de quais são as pessoas que se interessam e problematizam questões sociais ligadas diretamente às relações de gênero como o estupro. Outra marca discursiva das posta- Graduação em Relações Públicas pela Uni- gens é a discussão de culpabilização ou não da vítima. Cotidianamente sempre se busca algum versidade Federal do Maranhão – UFMA vestígio na atitude da vítima que acaba por validar esse tipo de violência. Apesar da audiência (2014). levantar essas questões, acaba por finalizar seu pensamento colocando o estupro como culpa do agressor em sua totalidade. 2. Rosana Maria Ribeiro Borges Outra pauta importante levantada, tanto na telenovela Os dias eram assim quanto nas posta- Doutora em Geografia pela Universidade Fe- gens dos espectadores, foi a ocorrência do estupro dentro do casamento. Tal prática, apesar de deral de Goiás (2013). figurar como um tabu, merece ser discutida amplamente. Pois, historicamente, tenta-se colocar o Mestrado em Educação pela Universidade estupro como uma violência que dificilmente ocorre dentro da família, mesmo com as pesquisas Federal de Goiás (2000). que indagam tal tema apontando para sua recorrência em âmbitos familiares e supostamente Professora da Faculdade de Informação e Co- afetivos. Outra questão curiosa é a banalização do estupro como apenas uma ‘pauta quente’ da municação e do Programa de Pós-Graduação narrativa. Isso demonstra como a ficcionalização e certo afastamento da ‘realidade’ podem ser em Comunicação da Universidade Federal perigosos para a abordagem de algumas pautas sociais retratadas em narrativas ficcionais. de Goiás, UFG.. Ainda focando no engajamento feminino, vê-se como as mulheres comemoram quando al- guma personagem acaba se salvando de um estupro. Onomatopeias como ‘ufa’ e expressões

045 PANORAMA Goiânia, v. 8, n. 1, p. 42-46, jan/jun. 2018 . ISSN 2237-1087 NOTAS

3. Disponível em: https://extra.globo.com/ tv-e-lazer/telinha/cena-de-tentativa-de-estu- pro-marca-estreia-de-os-dias-eram-assim-nao- -nao-21207533.html Acesso em: 30 de junho, 2017. .

4. Postagens do Twitter.

5. Aqui, por termos estruturais, considera-se Os dias eram assim como uma telenovela, mesmo a Rede Globo colocando-a como uma supersérie.

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