TRAÇOS DE UMA “RED” : IMPRESSÕES VISUAIS E MENSAGENS SOCIAIS ATRAVÉS DE CHARGES E ILUSTRAÇÕES DO ARTISTA PALESTINO ABED ABDI (1972-1982).

CAROLINA FERREIRA DE FIGUEIREDO Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) [email protected]

Este estudo tem por objetivo abordar, a partir de um pequeno fragmento, a singular interação entre o universo das imagens e a luta política na Palestina. Esta questão foi suscitada a partir de um primeiro estudo da obra de três artistas, de gerações diferentes, a partir de suas relações com o Al-Nakba, o que tornou possível compreender como a linguagem visual serviu ao processo de expressão do trauma (FIGUEIREDO, 2013, 2014). Visando aprofundar a compreensão das reverberações visuais na experiência política de artistas (e) palestinos, serão exploradas imagens de apelo cotidiano e de grande alcance, em especial charges e ilustrações, produzidas pelo 1 artista palestino Abed Abdi entre os anos de 1972 e 1982. O termo Al-Nakba significa “catástrofe” em árabe, e foi cunhado para designar os eventos de 1948, precisamente a criação do Estado de Israel. Abed Abdi é perpassado pelo Al-Nakba, visto que, com 6 anos, foi obrigado a sair de Haifa, sua cidade natal. Vivendo em um Campo de Refugiados no Líbano durante três anos, Abed e sua família obtiveram a permissão para voltar a Haifa, que tornara-se território israelense, onde o pai permanecera desde 1948. Abed filiou-se ao Partido Comunista ainda muito jovem, fato determinante para sua formação política e artística. Em 1962, tornou-se o primeiro árabe a fazer parte da Israeli Artists Association, o que dois anos depois rendeu-lhe uma bolsa para estudar arte na Europa Oriental patrocinada pelo Partido Comunista de Israel (ANKORI, 2006, p. 19). Abdi morou e estudou arte por oito anos em Dresden, na Alemanha Oriental, e teve como professores , G. Bondzin e G. Kettner1. Sobre suas produções, o artista ressalta a importância da arte com uma práxis.

1 Informações obtidas através do site oficial do artista. Disponível em: . Acesso: nov./2013.

...Quando os canhões trovejaram em Golã [Colinas] e nos bancos do Canal [de Suez], e quando o futuro da região estava em risco, eu relembrei das palavras de Pablo Picasso e no meu trabalho eu disse “não à guerra” de acordo com as minhas crenças artísticas; arte deve ser comprometida e ter um papel.2 Em busca de compreender estes e outros processos de criação do artista, as implicações de suas filiações ideológicas, delimitei a pesquisa para dois tipos de produções do artista: (1) charges publicadas no Jornal Al-Itthad (1972-1981), (2) ilustrações produzidas para a Revista Literária Al-Jadid (1980-1982). O jornal Al-Itthad foi criado em Haifa em 1944, ainda antes da criação do Estado de Israel. Após 1948, o jornal passou a ser o primeiro periódico em língua árabe produzido em Israel, sendo considerado até hoje um dos jornais mais importantes da região. Pertence à Maki, o Partido Comunista de Israel. A revista literária Al-Jadid publicou as crônicas do famoso escritor Salman Natour, que estavam aglutinadas em um livro chamado Wa ma nasina (Nós não esquecemos), sendo relatos de pessoas sobre o Al-Nakba de 1948. No período de 1980-1982, cada história na revista começava com uma ilustração de Abdi. Ainda que com objetivos diferentes, visto que a charge apresenta cunho mais 2 imediatista, enquanto as ilustrações apresentam diferentes formas de conexão com o texto, bem como uma distinta carga dramática, procuro identificar possíveis relações entre tais modos de expressão, partindo das intenções do artista na produção de suas narrativas visuais. Procurarei analisá-las enquanto produções destinadas a diferentes suportes e com finalidades singulares. O universo visual, nesse cenário, mostra-se um canal eficiente e fundamental na construção do problema. Os vínculos singulares estabelecidos entre arte e política na trajetória de Abed Abdi dão mostra dos papéis delegados às imagens, verdadeiros instrumentos de luta, resistência e identificação. É através de narrativas visuais que são compartilhados estímulos sensoriais e sentimentais que funcionam como símbolos culturais no interior de um olhar formado no seio da conflituosa história política da região. Assim, é possível enviesar a análise desses documentos sob duas perspectivas: a

2 Tradução livre do original: “...When the cannons thundered on the Golan [Heights] and the banks of the [Suez] Canal, and when the future of the region was at risk, I recalled the words of Pablo Picasso and in my work I said “no to war” in accordance with my artistic beliefs; art must be committed and play a role”. Disponível em: . Acesso: nov./2013.

primeira se refere aos procedimentos e tecnologias específicas mobilizadas pela linguagem pictórica; a segunda se refere à característica da (re)apresentação dos artistas, isto é, ao “conteúdo” narrativo propriamente dito. Justo nesta articulação encontra-se a perspectiva de análise aqui adotada, buscando relacionar a sensibilidade aos elementos visuais e ao ímpeto de estabelecer relações temporais tão caros ao historiador. As charges produzidas por Abdi estão inseridas dentro do contexto do jornal, portanto, apresentam afinidade com o periódico. Entretanto, é necessário investigar a inserção dessas charges uma vez que este processo pode ter ocorrido de forma não necessariamente pacífica e harmônica. Nesse sentido, uma análise das charges enquanto meras promotoras do sentido ideológico do periódico seria extremamente redutora. Segundo Gombrich, as charges adquirem a característica de “fornecer algum tipo de foco momentâneo” (GOMBRICH, 1999, p. 131), como podemos observar nas Imagens 1, 2 e 3, produzidas por Abed Abdi e fontes de análise para a pesquisa3. A linguagem utilizada, enfatizando um cenário ou um personagem, mostra algum assunto que foi 3 gerado naquele momento, onde as expressões, rápidas e curtas frases em árabe, ambientam (satirizam, criticam, entre outros) o caráter cotidiano dos eventos. Na Imagem 1 o sujeito é caracterizado com um tapa olho, no caso Moshe Dayan, um elemento estereotipado que serve como identificação rápida. Na Imagem 2, é possível perceber elementos ‘típicos’ das nações Egito e Rússia. Com o complemento da frase em árabe com a palavra “forte” (no sentido de cumprimento), se tem uma ideia (percepções ou mesmo aspirações) das relações políticas mantidas na época. A Imagem 3 também mostra uma temática que estava sendo discutida no momento, como a disputa e negociação pelo petróleo.

3 Para a pesquisa, foram selecionadas 25 charges, todas disponíveis no site do artista: .

Charges: Imagem 1 (esquerda acima); Imagem 2 (direita acima); Imagem 3 (abaixo). Produzidas por Abed Abdi para o Jornal Al- Itthad entre os anos de 1972 a 1981. Sem data precisa de cada charge.

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Estes conteúdos das charges reúnem, portanto, elementos capazes de “romper com a internalização dos sentimentos, desejos e pulsões nos indivíduos frente ao controle e à regulação impostos pela sociedade, provocando, então, momentos em que valores e atitudes estariam confrontados” (PETRY, 2008, p. 49). Nesse sentido, apesar do posicionamento claro – pró-palestina e de esquerda – do jornal para qual trabalhava Abdi, suas charges prometem evidenciar significados em certo sentido autônomos,

únicos, evocando outros níveis de sentido no interior da complexa relação instituída nas práticas políticas do povo Palestino depois de 1948, e em especial nas décadas de 1970 e 80, auge da atuação de Abdi. As ilustrações, por outro lado, denotam a construção de narrativas do passado, rememorações do Al-Nakba de 1948, onde os desenhos complementam e surgem como elementos visuais para o que é contado literariamente, como podemos observar nas Imagens 5 e 6, também produzidos por Abed e fontes de pesquisa4. Estas ilustrações dão auxílio à história que segue, começando por elas o retrato do vivido, do contado. É importante notar uma diferença estética percebida em duas edições somente, fator que deve ser analisado e problematizado durante a pesquisa. Outro elemento que é fundamental de ser estudado é a plasticidade da própria escrita árabe, que de diferentes formas complementam o desenho e trazem significação linguística.

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4 Para a pesquisa, foram selecionadas 13 ilustrações; estas se encontram numa página específica dedicada Ilustrações: aoImagem Wa ma 5 nasina(esquerda); (Nós Imagem não esquecemos), 6 (direita). , Abed Abdi para disponibilizada a Revista Literária pela Hagar Al-Ja Artdid , publicadas, Galley (Israel), com a curadoria deres Talpectivamente, Ben Zvi. em 1981 e 1980.

Em se tratando de uma revista literária, também é possível levantar hipóteses acerca de uma produção intelectual desse período na Palestina/Israel, em meio a qual Abdi encontra-se mergulhado. Nesse sentido, “...os conceitos de lugares e redes de sociabilidade, geração e cultura política constituem-se importante grelha de leitura para compreender as formas de organização e ação dos intelectuais” (LUCA, 2006, p. 125). Inclusive, o círculo de consumo da revista é um dado relevante de pesquisa, visto que pode revelar quem eram seus leitores, talvez com perfis diferentes em relação aos que liam os jornais e as charges do Al-Itthad. Aliando propostas estéticas e produções “acadêmicas”, Abdi não dissocia questões sociopolíticas ao ilustrar cenas do Al-Nakba. Visto que esta temática tornou-se recorrente e entranhado à constituição dos palestinos, essa produção realizada durante os anos de 1980 a 1982 ganha um caráter de retomada de discussões ao relembrar o acontecimento após ter passado trinta anos de alterações radicais da/na Palestina. Juntas, as fontes selecionadas para esta pesquisa oferecem importantes 6 contribuições ao estudo das formas de autorrepresentação dos palestinos. A relevância desse problema fundamenta-se na percepção da heterogeneidade das produções visuais palestinas e, especialmente, no singular papel delegado às imagens naquele contexto. Atentar-se-á para as temáticas e técnicas transformadas neste novo contexto e, em especial, a participação das imagens na construção de sentido das experiências políticas na Palestina. As imagens tornaram-se um veículo importante à expressão destes novos elementos de identificação e de denúncia. Em trabalho anterior (FIGUEIREDO, 2013) discuti essa temática amparada no livro de Dina Matar, intitulado “O que significa ser um Palestino” (2011). Para a autora, há uma questão pontual sobre a característica contingencial “de ser”, onde não há uma definição engessada sobre o que é ser palestino. Portanto, “o que significa ser um palestino”, título de seu, “diz respeito a experiências vividas e condições de ser que mudam e deslocam como resultado de circunstâncias e condições em evolução (MATAR, 2011, p. 11). A tentativa de definição identitária envolve uma série de referências culturais – que podem ser palestinas ou não, ou nem sequer estar enraizada a um local especificamente. Neste viés, é enriquecedor perceber a identidade como

heterogênea e, portanto, compreendida melhor em sua pluralidade, identidades ou mesmo identificações. Esta perspectiva dialoga com noções presentes em outros trabalhos, como de Stuart Hall, Da Diáspora (2009) e A Identidade Cultural na Pós-modernidade (2006), bem como o de Homi Bhabha, O local da cultura (1998). A partir de estudos específicos, ambos trabalham com as ideias de diáspora e de movimentação como fatores positivos à construção de identidades. O caráter ‘híbrido’ dessas relações permitem ampliar (não de forma simples ou mesmo não isenta de conflitos) a compreensão de sujeitos em seus contextos. São, entre outros, os processos do “entre- lugar” que Bhabha discorre em seu trabalho, um movimento “em direção a um encontro com o processo ambivalente de cisão e hibridização que marca a identificação com a diferença da cultura” (BHABHA, 1998, p. 308).

Algumas considerações teórico-metodológicas 7 Esta discussão é amparada, em princípio, por dois eixos principais: a dimensão da representação pictórica e a problemática da arte (palestina) em sua relação com a política. Ao trabalhar com imagens, é necessário pensar sobre seu estatuto de criação, especialmente no que diz respeito à representação. Para E.H. Gombrich, em Arte e Ilusão (1986), a arte é propriamente uma produção da mente humana. Assim, ao considerar que nenhum artista é capaz de pintar literalmente o que vê, o teórico problematiza o estatuto da representação e, porquanto, faz uma análise das percepções e convenções geradas pela arte pictórica. Nesse sentido, existem, por detrás dos sentidos narrativos ou naturalistas das imagens, camadas de significação e estratégias mentais que articulam dados sensoriais, emocionais ou culturais derivados da visão, da memória do tato, do movimento e da experiência de forma geral. É por este viés que a análise das charges e das ilustrações de Abed Abdi ganham um novo respaldo, visto que as categorias visuais também são colocadas numa dimensão historicizante. Em outras palavras, estuda-se o uso de signos e símbolos num contexto circunscrito. Inclusive, esta perspectiva complexifica a relação entre produção e recepção já que, assim como Abed imprime intenções pictóricas, o espectador as

recebe em um ritmo visual específico, em que “a sequência da exploração óptica progride de acordo com nossos hábitos gerais de apreensão das coisas e com pistas especiais que o quadro fornece” (BAXANDALL, 2006, p. 35). É importante lembrar que Abed Abdi percebe-se na década de 1970-80 na posição de um árabe que mora no Estado de Israel e mesmo nesse contexto, vislumbra questões do seu tempo presente, através das charges, ao mesmo tempo que recria as histórias do Al-Nakba de 1948. Como Mônica Velloso (1996) identifica uma “cidade paralela” no Rio de Janeiro, é possível deslocar esse termo (com todos os cuidados) para a experiência de Abed. O artista é um árabe morando em Haifa – portanto, é um outsider –, e em suas obras apresenta a Palestina, a ausência da mesma e o cenário político da época – ou seja, apresenta uma “outra forma de participação política e de liderança que destoava dos padrões vigentes” (VELLOSO, 1996, p. 16). Estes padrões se relacionam a uma posição de contestação, imbricando os sentidos de arte e política, como o próprio Abdi indicou, citado anteriormente. 8 A recorrência da temática do Al-Nakba, bem como a visibilização de questões envolvendo Israel e o Mundo Árabe tem relação com a própria constituição histórica visual da região. De um modo geral, as regiões do Oriente Médio passaram por um processo acerca da dicotomia entre arte religiosa e arte secularizada (dita ‘nacional’), envolvendo um processo de modernização nos países durante o século XX (SHABOUT, 2007). É identificado por Nada B. Shabout que os anos 1950 e 60 são momentos de liberação da arte sob a perspectiva orientalista, período também de independências coloniais concomitante à crise de identidade. A Palestina deve ser problematizada individualmente, entre outros motivos, por apresentar diferente periodização. Desde o início do século XX, a Palestina enfrenta a questão da migração, que ficou mais fortemente visível na década de 1930 e que mais tarde culminou na criação do Estado de Israel. Nesse sentido, amparo-me nos estudos de Shabout para problematizar as alterações estéticas ocorridas a partir de 1948. Em outras palavras, a literatura de Shabout auxiliará para pensar nessa ruptura, especialmente no que diz respeito aos processos de alterações das formas de percepção e de identificação dos palestinos sentidas no âmbito da arte.

Shabout (2007) ainda argumenta sobre o papel da arte em países que foram colonizados, e como a arte “...tornou-se uma ferramenta essencial na busca por criação, e manutenção da consciência nacional e identidade” (p. 50)5. Assim, a autora dimensiona a arte árabe como menos próxima da noção da “arte pela arte”, visto que a base política-ideológica estaria na raiz na criação das próprias manifestações artísticas. Esta discussão é relevante pois traz em perspectiva discussões acerca de uma arte subordinada a um Estado, por exemplo, ou como temas políticos podem ‘engessar’ a liberdade de produção dos artistas. É importante, então, discutir a dimensão de “arte pela arte”, visto que não significa alienação, portanto não se opõe à luta. Além disso, a insurgência de temas ditos políticos também ocorre a partir da demanda dos próprios artistas que são fundamentalmente seres humanos atravessados por experiências (traumáticas), como o Al-Nakba para os palestinos. Pintar o Al-Nakba não se apresenta necessariamente como uma amarra ao tema, mas um modo de dar vazão aos sentimentos, de compreensão, para sim (talvez) emergir como um modo de luta, ou 9 mesmo como forma de entendimento da sua própria história. Marcos Napolitano (2011) apresenta algumas questões essenciais para pensar esta arte militante e engajada, relevantes, portanto, para compreender a ação de Abed Abdi enquanto um sujeito que fornece imagens que interferem na criação de uma identidade, tanto no âmbito individual quanto na dimensão pública. Segundo o autor, ...a arte militante parte da política para atuar na tríade “agitação-propaganda- protesto”, dirigida pelo partidos e grupos politicamente organizados, enquanto a arte engajada chega na política a partir de uma atitude “voluntária e refletida” sobre o mundo. Em ambas vertentes, o problema da autonomia da arte (dimensão espiritual) e da linguagem (dimensão formal) está colocado como desafio, não apenas para o artista que produziu a obra, mas também para o crítico e o pesquisador que se debruçam sobre ela (NAPOLITANO, 2011, p. 29). Essas dimensões da arte se complementam e muitas vezes integram as discussões de um artista. Essas duas dimensões de arte também problematizam a definição do intelectual de modo que este opera as dimensões reflexivas e práticas, inserindo-se tanto na questão militante quanto na arte engajada.

5 Tradução livre do original: “…became an essential tool in the search for, creation, and maintenance of national consciousness and identity” (SHABOUT, 2007, p. 50).

É fundamental ressaltar que estes três pilares conceituais são, mais do que blocos estanques, complementares, no sentido que misturam-se ajudando a relativizar sua eficácia isolada. Desta forma, refletir sobre a imagem e suas lógicas internas, por exemplo, funciona, para além da história da arte, como forma de evitar correspondências fáceis do universo da política e das provisões identitárias. Em suma, a teoria visual ajuda a tornar mais maleável o conceito de arte engajada da mesma maneira que a militância visual transcende uma identidade rígida. E por fim, como uma compreensão de identidade mais solúvel liberta as produções visuais de amarras nacionais e de subordinações rasas no âmbito da política-ideológica.

Algumas produções sobre o tema Em se tratando de estudos sobre Oriente Médio, são fundantes (e transformadores) os trabalhos de Edward Said. O livro intitulado Orientalismo (1996) apresenta bases do pensamento Ocidental para com o dito “Oriente”, que inclusive 10 abarca uma região maior que o Oriente Médio propriamente, mas parte dessa ideia generalizada e homogeneizadora de outros grupos e culturas. O estudo deste autor é fundamental para se pensar o “Oriente” como dotado de uma historicidade muito particular, gestada há séculos pelo Ocidente, que enxerga e reconhece a si mesmo a partir da invenção do outro, o “oriental”, isto é, no movimento que o próprio autor cunha de “orientalizando o Oriental” (SAID, 1996, p. 85). Este projeto cultural também pode ser sentido na arte especialmente a partir da consolidação dos colonialismos nos continentes africano e asiático nos séculos XVIII e XIX. Ainda que relevante, este estudo para compreender o Oriente Médio auxiliará a presente pesquisa no sentido de olhar não para um ‘Oriente’, mas uma Palestina, uma Israel e outros países do Oriente Médio com suas próprias fontes, atentando às produções e aos sujeitos que forneçam novos sentidos de compreensão das regiões e de suas singularidades históricas. Outros livros que tratam de temas mais contemporâneos de Said também são fundamentais para se pensar nas relações constituídas entre Israel e Palestina, bem como entender as posições de países externos. Em Cultura e Política (2003), o autor articula discussões contemporâneas sobre realidades em torno do conflito, que partem especialmente a partir dos cinquentas anos do Al-Nakba. Em Reflexões sobre exílio e

outros ensaios (2003), Said trata da questão das identidades e do pertencimento a partir de uma visão como palestino. Sobre a arte contemporânea ‘árabe’, mais desamarradas de estéticas orientalistas, Nada Shabout desenvolve no livro Modern Arab Art (2007) pesquisas acerca da modernização da arte no século XX no que diz respeito à problemática de uma arte islâmica e uma arte secular. A autora também fornece dados acerca do contato com o Ocidente e suas formas de representação e como a arte do Mundo Árabe incorporou alguns elementos. Esta literatura é relevante ao desenvolvimento do projeto, pois Shabout analisa os processos artísticos de diferentes países, como Egito, Iraque e Palestina, tratando de uma visão não externa dessa modernização, mas ao mesmo tempo não isolando os países (e seus artistas) das discussões artísticas mundiais. Outros estudos sobre a arte Palestina também são relevantes, como os de Kamall Boullata e Gannit Ankori, publicados nos respectivos livros: : From 1850 to the Presente (2009) e Palestinian Art (2006). Boullata fornece um extenso 11 estudo sobre as formas de representação presentes na Palestina desde o século XIX, importante para a minha pesquisa, pois o teórico mostra uma heterogeneidade e riqueza de produções que auxiliam a perceber Abed como um sujeito singular e pertencente a uma geração específica da arte palestina. Já os estudos de Ankori concentram-se na arte pós-48 ao introduzir o conceito de “Des-orientalismo” e trabalhar com elementos recorrentes na arte Palestina, como o corpo, o lar e a terra. Ankori discute também o “ser árabe em Israel”, o que complexifica ainda mais os sentidos de identidade e pertencimento de palestinos ao tratar de vozes do “interior” de Israel. A teórica afirma que esses sujeitos são vistos como outsiders tanto por israelenses quanto por árabes, pois, se por um lado possuem passaporte israelense e são considerados “cidadãos”, por outro compõem um grupo étnico minoritário em Israel e comumente são tratados como cidadãos de segunda classe (ANKORI, 2006). A heterogeneidade deste grupo é uma preocupação central apontada por Ankori, Apesar de serem considerados um grupo coerente por aqueles que julgam os ‘outsiders’, os ‘Árabes da linha verde’ [como são conhecidos os árabes que moram em Israel] não abrangem um grupo homogêneo. Eles são moradores de pequenas vilas, moradores de cidades e Beduínos; eles são Cristãos, Muçulmanos, Druzos, ou homens e mulheres seculares; e eles provem de diferentes backgrounds sócio-econômicos e culturais. Alguns se identificam

como palestinos, outros não. Alguns se consideram israelenses, outros não (ANKORI, 2006, p. 177)6. Partindo desta diversidade, os estudos de Ankori são importantes para perceber esses sujeitos que habitam um entre-lugar, condição também vivida por Abed Abdi. Portanto, utilizo esta mesma perspectiva para compreender o indivíduo-artista Abdi, suas identificações e interlocuções entre Palestina e Israel. Sobre a temática de charge e ilustração foram localizados poucos trabalhos, embora os encontrados corroboram de alguma forma a hipótese aqui levantada relativa ao uso comum deste tipo de arte no Oriente Médio e na Palestina mais especificamente. O trabalho de Sandy Sufian, intitulado Anatomy of the 1936-39 Revolt: Images of the Body Political Cartoons of (2008) faz uso da charge de maneira similar ao que pretendo realizar. Sufian analisa as charges feitas por dois artistas de dois jornais: um palestino e um judeu, que embora ideologicamente se digladiem, ambos utilizam as mesmas técnicas para produzir as charges. Naquele momento a região estava sob comando do Mandato Britânico, sendo que “imagens de charges políticas ajudaram 12 a guiar uma mensagem nacionalista para palestinos letrados e iletrados (...) [a] imprensa diária influenciou significativamente com questões consideradas importantes durante a Revolta” (SUFIAN, 2008, p. 26)7. Ainda sobre charge em outros contextos, o trabalho de Mônica Pimenta Velloso no livro Modernismo no Rio de Janeiro (1996) é fundamental, uma vez que a teórica identifica outras facetas do Rio de Janeiro na virada do século XIX e XX a partir de caricaturistas. Velloso problematiza o termo moderno, “buscando seu sentido na dinâmica do cotidiano” (VELLOSO, 1996, p. 34), especialmente para pensar na atuação desses artistas-intelectuais cariocas também marginalizados dos processos de construção de uma nova Rio de Janeiro. Assim, “se debruçaram sobre o submundo, na tentativa de captar nas ruas um ‘padrão de sociabilidade alternativo’ e uma ‘ambiência

6 Tradução livre do original: Although they are regarded as a coherent group by those who deem the ‘outsiders’, the ‘green line Arabs’ do not comprise a homogenous group. They are villagers, city dwellers and Bedouins; they are Christians, Muslims, Druze, or secular men and women; and they come from diverse socio-economic and cultural backgrounds. Some identify as Palestinians, others do not. Some consider themselves Israelis, others do not (ANKORI, 2006, p. 177). 7 Tradução livre do original: “visual images in political cartoons helped drive a nationalist message for both literate and illeterate Palestinians (...) daily press significantly influenced with issues were deemed important during the revolt” (SUFIAN, 2008, p. 26).

organizadora’. É nessa perspectiva que eles se identificam com as camadas populares e com a cidade como parte constitutiva de si mesmos” (VELLOSO, 1996, p. 27). Este trabalho torna-se enriquecedor para a pesquisa no sentido de dialogar com esses outros sujeitos em diferentes espaços, visto que é fundamental pensar em que “lugares sociais” Abed Abdi ocupou em Israel nas décadas de 1970 e 80.

Desafios para a pesquisa Os problemas detectados até o momento são tanto de procedência “prática” quanto teórico-metodológico. Para enriquecer o trabalho, e inclusive para ter algumas respostas aos questionamentos que me proponho a desenvolver, é importante fazer contatos, por exemplo, com a equipe editorial do jornal na Palestina para ter acesso a edições anteriores, ou mesmo para conseguir informações sobre leitores, o jornal, periodização, formas de produção e outros. A familiarização com o periódico certamente enriquecerá a análise da fonte de dados, especialmente no que tange à 13 datação de cada charge e sua respectiva contextualização. O mesmo processo ocorre para a revista literária, pois o contato com membros do corpo editorial, bem como o próprio artista, será fundamental. Outra questão importante a se considerar é a tradução dos textos, visto que traduzir é fazer um exercício de entender a linguagem e os meios de comunicação entre pessoas, considerando o período, as condições de produção e os aspectos culturais. O problema teórico-metodológico está colocado na análise de imagens, visto que ainda não foi decidido o uso de um método ou de uma perspectiva de análise específica. Como a pesquisa está em fase inicial, o foco para o momento são leituras sobre a temática, buscando compreensão maior sobre o campo da visualidade. Há também que se pensar sobre a transposição de “métodos” ou teorias no que diz respeito aos tipos de arte, como no caso, uma arte não-Ocidental. Embora as fronteiras sejam fluídas, como é possível perceber nas produções (tanto em termos estéticos quanto em meios de reprodução) de Abed e em sua interação com artistas fora do circuito “palestino” ou “árabe”, é necessário problematizar e visualizar essas expressões por suas próprias características e preocupações.

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