UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ INSTITUTO DE CULTURA E ARTE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO COMUNICAÇÃO

SIMONE MARY ALEXANDRE GADELHA

O PERFUME AZUL, ARTÍFICE DA RUPTURA: TRANSGRESSÃO NA CENA ROCK DE NOS ANOS 70

FORTALEZA 2018

SIMONE MARY ALEXANDRE GADELHA

O PERFUME AZUL, ARTÍFICE DA RUPTURA: TRANSGRESSÃO NA CENA ROCK DE FORTALEZA NOS ANOS 70

Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Comunicação. Área de concentração: Fotografia e Audiovisual.

Orientador: Prof. Dr. Wellington de Oliveira Júnior

FORTALEZA 2018

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Universidade Federal do Ceará Biblioteca Universitária ______

G12p Gadelha, Simone Mary Alexandre.

O perfume azul, artífice da ruptura: transgressão na cena rock de Fortaleza nos anos 70 / Simone Mary Alexandre Gadelha. – 2018. 103 f.: il. color. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Ceará, Instituto de cultura e Arte, Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Fortaleza, 2018. Orientação: Prof. Dr. Prof. Dr. Wellington de Oliveira Júnior.

1.Transgressão. 2. Contracultura. 3. Indústria Cultural. 4. Anos 70. 5. Rock. I. Título.

CDD 302.23 ______

SIMONE MARY ALEXANDRE GADELHA

O PERFUME AZUL, ARTÍFICE DA RUPTURA: TRANSGRESSÃO NA CENA ROCK DE FORTALEZA NOS ANOS 70

Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Comunicação. Área de concentração: Fotografia e Audiovisual.

Aprovada em: ___/___/______.

BANCA EXAMINADORA

______Prof. Dr. Antônio Wellington de Oliveira Junior – (Orientador) Universidade Federal do Ceará (UFC) ______Prof. Dr. Francisco Gilmar Cavalcante de Carvalho Universidade Federal do Ceará (UFC) ______Profa. Dra. Elba Braga Ramalho Universidade Estadual do Ceará (UECE)

______Prof. Dr. Carlos Gonçalves Machado Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)

Para minha mãe, Rita.

AGRADECIMENTOS

Ao meu querido orientador Wellington Oliveira Jr., por ampliar minha lente e estender sua bússola, abrindo um mar de conhecimento em fluxo continuum. A Gilmar de Carvalho e Valdo Siqueira, incentivadores e encorajadores do projeto. Gilmar, pelo apoio irrestrito e abraço afetuoso à turma do rock nos anos 1970, pelo norte e presença inspiradora em nossas vidas. Aos professores e colegas do PPGCOM, especialmente Gabriela Reinaldo e Henrique Codato, pela partilha generosa nas aulas do mestrado. Aos integrantes da banca da defesa, cuja presença agradeço a honra, os professores Gilmar de Carvalho; Elba Braga Ramalho, e Cacá Machado, presenças iluminadoras e autores fundamentais da história da música brasileira. À minha família. À Bete Jaguaribe e aos colegas do Porto Iracema das Artes, onde ancorei meu barco no Laboratório de Música, durante o processo da pesquisa, experiência que me inspirou mais reflexões sobre o papel desempenhado pela minha geração na música cearense, a cena da cidade e a oportunidade de acompanhar novos processos criativos. A todos que me concederam valiosas entrevistas: Obrigada por dividir eternas e ternas lembranças comigo. Ao Ricardo Augusto, também pelo livro do Muggiati, aos 14 anos. Aos Amigos e amigas que estiveram perto, pelo afeto e apoio. E finalmente, muito afetuosamente, a Lúcio Ricardo e Siegbert Franklin (in memoriam), pelo sonho que se realizou no próprio percurso, na cidade blues que o destino tramou para nos descobrirmos jovens nas ruas do Centro. Pela coragem e resistência. Pelas horas de diversão. E sobretudo, pela música. Escrita ao som de Patti Smith, Marc Bolan, Joni Mitchell, Jards Macalé, Rodger & Teti, Gal Costa e todo aquele blues.

“Nenhum artista é independente de predecessores e modelos.” Julio Plaza

RESUMO

O trabalho propõe a abordagem da transgressão e ruptura demarcadas na cena musical cearense, notadamente com a turma do rock, evidenciada com o surgimento da performance do grupo Perfume Azul, liderado pelo cantor e compositor Lúcio Ricardo e pelo músico, compositor e artista visual Siegbert Franklin, com a participação da autora do projeto, Mona Gadelha, cantora e compositora, formando uma tríade que atuou na segunda metade da década de 70 em Fortaleza. Para analisar esse recorte, os conceitos de indústria cultural, performance e contracultura tomam como base obras de Theodor Adorno, Walter Benjamin, Howard Becker, Marvin Carlson, Simon Reynolds, assim como leituras de Roberto Muggiati, Sheyla Diniz e Gilmar de Carvalho.

Palavras-chaves: Transgressão; Contracultura; Indústria Cultural; Anos 70; Rock.

ABSTRACT

The work proposes the approach of transgression and rupture demarcated in the music scene of Ceará, notably with the rock band, evidenced by the emergence of the performance of the group Perfume Azul, led by the singer and composer Lúcio Ricardo and the musician, composer and visual artist Siegbert Franklin , with the participation of the author of this project, Mona Gadelha, singer and songwriter, forming a triad that played in the second half of the 70's in Fortaleza. The concepts of cultural industry, performance and counterculture are based on works by Theodor Adorno, Walter Benjamin, Howard Becker, Marvin Carlson and Simon Reynolds, as well as readings by Roberto Muggiati, Sheyla Diniz and Gilmar de Carvalho.

Keywords: Transgression; Counterculture; Cultural Industry; The 70’s; Rock.

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 _ O Perfume Azul, da esquerda para a direita: Ronald Carvalho, Milton Siqueira Rodrigues Júnior (Mocó), Lúcio Ricardo, Siegbert Franklin e Samuel Nélio. Foto de Silas de Paula [ca.1979] ...... 22

Figura 2 _ Programa do show Do Outro Lado da Cidade, de Mona Gadelha com participação dos músicos do Perfume Azul, Siegbert Franklin e Ronald Carvalho realizado no Teatro da EMCETUR, de 28 a 29 de setembro de 1979. Arte de Marta Lopes...... 28

Figura 3 – Reprodução de página do Tablóide TC, da Tribuna do Ceará - Coluna Curtição do Guto (1975)...... 45

Figura 4 – O grupo Perfume Azul: da esquerda para direita: Milton Siqueira Rodrigues Júnior (Mocó), Ronald Carvalho, Lúcio Ricardo, Siegbert Franklin e Samuel Nélio. Foto de Silas de Paula, estúdio da agência Scala Publicidade [ca.1979]...... 50

Figura 5 – Recorte do jornal Tribuna do Ceará, 10/02/1980...... 55

Figura 6 – Banda Chá de Flor: Heriberto Porto, Ronald Carvalho, “Cigano “, Batista Sena, Marco Aurélio, João do Crato e “Chupeta”. Foto de autor desconhecido. Arquivo de Ronald Carvalho...... 61

Figura 7 – Cartaz exposição de Luiz Hermano, América Latina Lata de Sardinha, realizada no Náutico Atlético Cearense em 1977...... 66 Figura 8 – Apresentação do Perfume Azul: Lúcio Ricardo, Fernando Marques (piano, participação especial), Siegbert Franklin e Ronald Carvalho. Foto de autor desconhecido. Arquivo de Samuel Nélio...... 68

Figura 9 – Cartaz do show Cidade Blues Rock Fatal ...... 79

Figura 10 – Lúcio Ricardo cantando no II Festival da Costa do Sol, Praia da Tabuba, 1977. Foto de Ricardo Augusto...... 82 Figura 11 – Cartaz do show Emoções Perigosas. Da esquerda para a direita: Luizinho Duarte, Ricardo Bacelar, Mona Gadelha, Ronald Carvalho e Marco Aurélio (substituído no show por Edmundo Vitoriano). Arte de Apolinário Libório Policarpo Bento, o Boy, da Scala Publicidade. Foto de Gentil Barreira (1984)...... 83

Figura 12 – Desenho de Siegbert Franklin: retrato de Lúcio Ricardo. (1981) ...... 92

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO...... 14 1.1 Um Itinerário da Inquietação……………………………………………………...... 14

2 APRENDIZES DA TRANSGRESSÃO...... 23 2.1 Mamãe, quero ser hippie...... 26 2.2 Música para a juventude no escuro do tempo...... 32 2.3 With a little help from my friends………………………………………………….. 42 2.4 Aos 14, com a cara e a coragem...... 50 3 A PONTE ENTRE OS MENINOS SUI GENERIS DA BARÃO E O MISSISSIPI...... 56 4 DESBUNDE NA BARRA CEARENSE...... 62 4.1 Já é outra viagem...... 68 4.2 Tênis Bamba e Cogumelo Atômico à curva do novo tempo...... 71 5 O LOOP DO PASSADO SEMPRE PRESENTE...... 74 5.1 Do rádio à contracultura...... 76 6 CONCLUSÃO - RESISTÊNCIA...... 81 6.1 O legado de Siegbert...... 87 REFERÊNCIAS...... 93 ANEXO 1 - LETRAS DE MÚSICA...... 98

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1 INTRODUÇÃO 1.1 Um itinerário da inquietação

They always say time changes things, but you actually have to change them yourself.1 (Andy Warhol)

Esta é uma jornada a um tempo que eu própria vivenciei, ao lado dos artistas Lúcio Ricardo Moura Andrade (1956) e Francisco Siegbert Franklin de Oliveira (1957-2011), músicos e compositores, cuja obra inspirou e ilumina essa pesquisa. O período reporta-se a quatro décadas antes de 2017, um recorte que proponho compreender na abordagem crítica, com base nos estudos de performance, transgressão e ruptura, conceitos intercambiáveis e que se complementam na investigação, conduzida também por leituras da contracultura e da indústria cultural, especialmente no campo da música e suas transformações a partir dos anos 60. Mas me permito lançar mão também de uma visão poética e emotiva dos acontecimentos, pelo fato de eu mesma ter participado destes, e haver desenvolvido uma longa relação de amizade com os artistas, dividindo com eles sonhos, trajetórias, lutas, projetos, crises, desencanto, criações e produções musicais. Por ter vivenciado também esse momento de despertar da juventude e, com meus dois amigos, alimentar o desejo de desbravar as fronteiras da arte em Fortaleza, ao caminhar sem lenço e sem documento pelas ruas da cidade – como no verso da canção Alegria, Alegria2, lançada por em 1967 –, e encarar portas fechadas à novas propostas de expressão que assimilassem sem receio e amarras as influências estrangeiras e os preconceitos em relação a tudo que pudesse subverter as convenções vigentes. Discorro sobre a relação dos artistas com a cidade num ambiente adverso, tanto do ponto de vista político, os anos 70 de um país sob ditadura militar, quanto no âmbito sociocultural, numa época de descobertas, quando as novidades chegavam pelas ondas do rádio e da televisão, e a vida seguia seu curso numa sociedade conservadora e convencional. Almejo compreender o ato de esforço para se fazer existir e ser notado, de performar-se na rua e nos raros palcos possíveis como forma de resistência e deixar uma marca de ruptura. Na consolidação dessa proposta, as leituras foram direcionadas aos textos de Walter Benjamin,

1 Tradução do inglês: Eles sempre dizem que o tempo muda as coisas. Mas você tem que mudá-las você mesmo. 2 Caetano Veloso apresentou Alegria, Alegria no 3º Festival de Música Popular Brasileira da TV Record, em 1967. A música foi incluída no álbum Caetano Veloso, da Gravadora Philips, de 1968. A canção alcançou popularidade, ao ponto de alguns de seus versos, como o citado no texto, serem apropriados como jargão na fala cotidiana do país.

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Marvin Carlson, Paul Zumthor e John Langshaw Austin. Considero importante relatar o desenvolvimento desses estudos ao longo de dois anos de pesquisa e quais caminhos levaram à abordagem de outros conceitos – a indústria cultural nas obras clássicas de Theodor Adorno e Max Horkheimer e a contracultura sob as reflexões de Roberto Muggiati, Ken Goffman, Theodore Roszak, Howard Becker, Sheyla Diniz e Symon Reynolds. Também recorri às análises da música brasileira desse período alinhadas por autores como Ana Maria Bahiana, Elba Braga Ramalho, Gilmar de Carvalho, Mary Pimentel, Wagner Castro, Pedro Rogério, José Miguel Wisnik, André Barcinski, Marcos Napolitano e José Roberto Zan. O projeto inicial tinha o seguinte título: A performance como meio de transgressão na Fortaleza dos anos 70. Esta primeira abordagem me conduziu aos estudos de Richard Schechner, Renato Cohen, além de Carlson, citado anteriormente, levando-me a refletir o quanto a arte da performance trafega por linhas sinuosas, escorregadias e abrangentes, um “fenômeno complexo, conflituoso e mutável.” (CARLSON, 2010 p.211). As investigações de Zumthor – arauto da perenidade da voz – me concederam esclarecimentos, como no enunciado: “A performance é ato de presença no mundo.” (ZUMTHOR, 2007, p.67). E por tratar-se de fenômeno heterogêneo, torna-se impossível dar-lhe uma definição (ZUMTHOR, 2007, p.34), corroborando o sentido de amplitude dessa linguagem, além de expressão artística. Tal como a música e suas reviravoltas nos anos 60, as quais me reportarei nesse trabalho, a performance em sua expressão moderna transforma-se e ressurge no final desta mesma década (CARLSON, 2010, p. 19). Depois dos happenings, iniciados por Allan Kaprow (1927-2006) nos anos 50, nos Estados Unidos, transgressores em sua essência, ampliou-se a rede de conexões. São as relações expandidas com outras linguagens e sua potência transformadora, segundo o pensamento de Carlson:

A arte performática, um campo complexo e em constante mudança, torna-se ainda mais relevante quando se leva em conta, como em qualquer consideração ponderada, a densa rede de interconexões que existe entre ela e as ideias de performance desenvolvidas em outros campos, entre ela e as muitas preocupações intelectuais, culturais e sociais colocadas por quase todos os projetos de performance contemporâneos. Dentre eles estão o que significa ser pós-moderno, a procura de uma subjetividade e de uma identidade contemporânea, a relação da arte com as estruturas de poder, os vários desafios de gênero, raça e etnia, apenas para citar algumas questões mais visíveis. (CARLSON, 2010, p.19)

Entre as relações as quais Carlson se refere, a música-performance na primeira metade da década de 1970 anuncia, de fato, a busca desta identidade contemporânea, ao valorizar a

16 indumentária, com figurinos realçados em tecidos brilhosos, excesso de cores e introduz a androginia. Essa nova escola do rock é chamada de glam na Inglaterra e foi adotada nos Estados Unidos como glitter. Absorvido pelos tentáculos da indústria cultural, que já se arraigara na música, o glam rock torna-se um fenômeno que iria se propagar entre jovens do mundo, com a presença na linha de frente dos músicos e compositores ingleses Marc Bolan (1947-1977) e David Bowie (1947-2016), que afora os figurinos de exaltação ao glamour em tecidos sintéticos, escreviam canções em que questionam o próprio mercado musical e suas relações de poder3. Essa influência do glam também é inserida no cenário que emoldurou o início dos anos 70 no Brasil. A ascensão do grupo Secos & Molhados, formado pelo cantor e performer Ney Pereira de Souza, nome artístico de Ney Matogrosso, com os compositores e músicos João Ricardo e Gerson Conrad, tomando de assalto e perplexidade a televisão, e servindo o prato até então indigesto da androginia na sala de jantar nos lares brasileiros em 1973, já foi avalizada nos estudos consistentes de José Roberto Zan e Sheyla Diniz. O impacto inicial foi convertido em empatia, conquistada pelo carisma, talento e originalidade do grupo, que alcançou o topo do mainstream. Sucesso arrebatador no período em que se consolidava o consumo cultural de música no país, a faixa que abre o primeiro disco, O Vira, de João Ricardo e Luhli, nome artístico de Heloisa Orosco Borges da Fonseca (1945-2018), de 1973, foi executada em larga escala nas rádios, conquistando adultos e crianças com seu refrão vira homem/vira, vira lobisomem. Zan modula os antecedentes da aparição dos Secos & Molhados:

De certo modo, o happening tropicalista preparou a recepção do Secos & Molhados, embora não seja correto pressupor uma linha de continuidade entre essas duas experiências. Sob o clima político pesado que reinou no país no contexto pós AI-5, surgiram novos movimentos artísticos performáticos que exploravam a corporeidade e abordavam questões relativas à sexualidade, sintonizados, via de regra, com tendências internacionais e a cultura underground. O grupo de teatro e dança Dzi Croquetes, foi um desses casos. Tendo à frente o dançarino e cantor norte-americano Lennie Dale, se notabilizou por atuações arrojadas e obteve grande adesão de público especialmente em salas do e de São Paulo. (ZAN, 2013, p. 25)

É nesse horizonte que situo a vindoura performance do Perfume Azul na segunda metade da década. A ambiguidade sexual também seria assimilada pelo grupo na sua proposta transgressora na Fortaleza desse período, uma atitude artística significativamente ousada para

3 A música Fame, de 1975, é um exemplo de reflexão e autocrítica de Bowie: “Fame, it's not your brain, it's just the flame/That burns your change to keep you insane (fame)...[..] Fame, what's your name? / Fame” (em tradução livre: “Fama, não é a sua cabeça/ é apenas uma chama/ que queima sua mudança/ para mantê-lo insano”).

17 os padrões da época. A música do Perfume Azul, de Lúcio Ricardo e Siegbert Franklin, com minha participação nos shows, e nossa adesão ao rock, moldando a performance como ato de resistência e, portanto, ato político, encontra respaldo no pensamento de Zumthor: “A voz na sua qualidade de emanação do corpo é um motor essencial de energia coletiva.” (2007, p.67). “No canto do rock testemunhamos uma irresistível ‘corporização’ do prazer poético, exigindo depois de séculos de escrita o uso de um meio menos duro, mais manifestamente biológico” (ZUMTHOR, 2007, p.70). Ao mesmo tempo, a incorporação do movimento de corpo do Perfume Azul nos palcos cearenses, exprimindo liberdade e ambiguidade, até então inédita na cidade, também refletiu influências do ambiente de consolidação da indústria cultural no Brasil via mercado fonográfico, período correspondente à adolescência dos artistas, cujos meios de acesso à música transitavam do rádio à televisão. “Enquanto na época do rádio os artistas valorizavam principalmente o desempenho vocal, com a TV tornava-se necessária a preocupação com a performance gestual ou cênico-expressivo” (ZAN, 2001, p.18). O gesto, que pensado por Zumthor, assim como a voz, projeta o corpo no espaço da performance, “visando a conquistá- lo, a saturá-lo com seu movimento” (ZUMTHOR, 2005, p.147). O Perfume Azul inseriu em Fortaleza, portanto, a performance cênica que lhe serviu de suporte para manifestar uma forma de resistência e sobrevivência do ponto de vista psicossocial, na condição de artistas, jovens, gays (os criadores do grupo), oriundos da classe artística e trabalhadora, em um contexto conservador e autoritário, absorvendo as referências que estavam ao seu alcance e que lhe aguçavam a necessidade da experimentação, alinhando- se com elementos da estética tropicalista e do glam/glitter rock. “Todo mundo, em algum momento, sabe que está fazendo um papel” (CARLSON, 2010, pág.15). A performance tornou-se emblemática no mundo contemporâneo, “um mundo profundamente autoconsciente, reflexivo, obcecado por simulações e teatralizações em todos os âmbitos do conhecimento social” (CARLSON, 2010, p.15). Uma cronologia da performance concebida nos estudos de RoseLee Goldberg também foi material de estudo relevante no percurso deste trabalho. A linguagem remonta historicamente das vanguardas do início do século XX, até ser finalmente aceita como expressão na década de 1970, como pontua Goldberg: "Os manifestos da performance, desde os futuristas até nossos dias, têm sido a expressão de dissidentes que tentaram encontrar outros meios de avaliar a experiência artística no cotidiano.” (2006, pag.6). Os dissidentes são os artífices da ruptura, e são os performadores. Estão entre aqueles que se armam com a coragem necessária para abrir fronteiras, forjar outras vias. A arte não pode prescindir desses

18 transgressores. São eles que irão traçar as linhas evolutivas e construirão as pontes entre épocas e gerações. Mesmo que não sejam eles os vencedores, os que detêm o poder de narrar a história, como assinala Benjamin em suas teses (1996, p.225), uma das leituras a qual também recorri neste trabalho. Ao investigar o recorte de transgressão e ruptura, a pesquisa se detém ao momento em que surge em Fortaleza o grupo Perfume Azul4, liderado pelos músicos e compositores cearenses Lúcio Ricardo e Siegbert Franklin, assim como minha inserção entre eles, e na cena do rock que se delineava na cidade. O trabalho almeja não ficar estanque, mas constituir-se também numa forma de contribuir para que a criação artística desse período obtenha maior relevância na memória cultural cearense e, num plano mais amplo, provocar desdobramentos, como possíveis gravações, compilações e releituras de obras e publicações, assim como outras manifestações que contemplem a prolixa trajetória de Siegbert como artista visual, criador de desenhos, pinturas, gravuras e vídeos. Nos capítulos seguintes passo a abordar a trajetória flamejante e fugaz do grupo Perfume Azul e seus criadores, Lúcio Ricardo e Siegbert Franklin, incluindo-me como membro de uma tríade, ao compartilhar apresentações e parcerias musicais. A atitude transgressora, ao introduzir novos elementos ao repertório de informações musicais da cena de Fortaleza, como a absorção e adaptação do blues; assim como na adesão às tendências anticonvencionais do glam rock, estilos sobre os quais vou me deter, por terem nos influenciado diretamente como fonte e referências; a relação com a indústria cultural, na maioria das vezes rugosa e desconfortável depois da primeira incursão a estúdios de gravação no Rio, em 1979, em uma grande gravadora, a CBS/Sony, reação pertinente à dificuldade de se adequar às leis do mercado do sucesso. Porém também me detenho na vivência amistosa com parte da indústria cultural cearense, que abraçou as ideias da turma do rock. Concentrando-me no período de 1974 a 1980, percorro a cronologia do trabalho, que sofre transformações a partir da participação no espetáculo coletivo e disco duplo Massafeira Livre, realizado em 1979, para o qual o grupo Perfume Azul gravou duas músicas – Em cada tela uma história e Aviso aos Navegantes, escritas por Lúcio Ricardo e Siegbert Franklin; e eu gravei uma composição minha, um blues intitulado Cor de Sonho. Das sessões no estúdio da CBS, no Rio, além de Lúcio, Siegbert e Ronald Carvalho Correia Lima, compositor e baixista do grupo, participaram os músicos Wilson “Will” Carrilho (guitarra), Robertinho do Recife

4 Durante a pesquisa, encontrei um outro grupo musical de nome similar, Perfume Azul do Sol, formado por Ana Maria Guedes (voz, piano e composições), Anderson Benvindo Pereira (voz, violão e composições), Pedro Baldanza (baixo), Jean (guitarra) e Gil (bateria). A banda lançou um único disco, Nascimento, São Paulo, 1974.

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(guitarra) e Tutty Moreno (bateria). O Perfume Azul teve formações variadas, mudando de guitarrista algumas vezes, e convidando outros músicos para participações, como o pianista Fernando Marques. A função de guitarrista no grupo foi assumida alternadamente por Siegbert Franklin, Samuel Nélio, Will Carrilho e Ronald Carvalho. O primeiro contato com as possibilidades de uma pesquisa acadêmica se deu na Escola Fundação de Sociologia de São Paulo, quando fiz a especialização Globalização e Cultura, em 2004. Mas foi graças à volta à Fortaleza, em 2014, e o retorno à Comunicação, no PPGCOM, que vislumbrei e tornei realidade um estudo que pudesse incitar o pensamento quanto à relevância da criação artística de um grupo de músicos cearenses nos anos 70, entre os quais me incluo, que mesmo sem o outrora desejado padrão de sucesso no eixo Rio-São Paulo – hoje um conceito embebido em nostalgia –, acumulou admiradores, protagonizou o recorte transgressivo da cena artística da cidade, e se consolidou na sua memória afetiva e histórica. Enfrentou-se, com atitude anticonvencional, a caretice de então. Considerei importante conhecer o ponto de vista de alguns dos artistas contemporâneos dos aguerridos anos 70. Portanto, a leitura de relatos, entrevistas, biografias, audições da discografia e arquivos digitais contribuíram para tentar compreendê-los. Os arquivos próprios de recortes dos jornais de Fortaleza – O Povo, Tribuna do Ceará e Diário do Nordeste – também foram consultados com essa finalidade. Assim como os estudos mais específicos da música cearense, que abordam a poética, história e as revoadas de partida para o sudeste, sul maravilha, em contribuições valiosas e precursoras de Gilmar de Carvalho, Mary Pimentel, Pedro Rogério e Wagner Castro. Avançando numa investigação mais provocadora, o trabalho tenta percorrer os pressupostos da indústria cultural que estabeleciam um certo ambiente de seleção natural, altamente competitivo, que inúmeras vezes bloquearam como uma barreira instransponível, a ascensão de artistas da música de notável talento – Lúcio Ricardo é um exemplo –, os quais tinham dificuldade para lidar com um cenário em que cada vez mais prevaleciam as regras do mercado em prejuízo do valor estético. A grandeza do canto de Lúcio é ressaltada por seus pares e admiradores, que acompanham sua carreira, e alguns me concederam depoimentos. A motivação para esse trabalho veio também da observação de que há uma lacuna nos estudos e bibliografia da cena artística-musical de meados dos anos 1970 em Fortaleza, a despeito de ser um período de manifestações de transgressão, efervescência criativa e do surgimento de uma geração pós-Pessoal do Ceará, a turma do rock, que não tendo atingido os padrões de mainstream, imprimiu sua voz e história na cidade, transpôs limites, derrubou fronteiras, alinhando-se com o movimento de profundas transformações socioculturais e

20 políticas no mundo. A pequena produção bibliográfica e um certo complexo provinciano – valorização de tudo que vem de fora e a convenção de que o santo da casa não obra milagres – mostram que a arte emergente nesta época esconde-se submersa numa memória frágil, omitida muito provavelmente porque não recebeu todos os refletores e investimentos de uma indústria cultural seletiva, alicerçada pelos meios de comunicação de maior audiência – rádio e televisão – pautados pelo modelo editorial dos veículos do sudeste, subservientes à fórmulas do sucesso, liberando-se do comprometimento de difundir a criação artística do seu próprio local de atuação. Tais fórmulas estão associadas ao poder econômico de grandes corporações internacionais que dominaram o mercado fonográfico no país desde o seu nascedouro, as chamadas multinacionais da música – Phonogram/PolyGram, CBS, Odeon, RCA Victor – e transformaram as paradas de sucesso em acordos comerciais, ou seja, a divulgação de músicas de artistas mediante pagamento ostensivo às emissoras, até institucionalizar-se como prática conhecida como jabá – pagar para tocar. A geração que surgiu pós-Pessoal do Ceará, na segunda metade da década de 70, para a qual um dos ápices de visibilidade foi sua participação no evento e disco Massafeira Livre, teria que lidar com um cenário intrincado, multifacetado:

A música popular brasileira abrangia, nos anos 70, três grandes “circuitos” que se delinearam no interior do campo musical: o que ainda mantinha linhas de continuidade do nacional popular, politicamente engajado e mantendo afinidades com o ideário de esquerda; o alternativo, herdeiro das incursões vanguardistas e associado a subculturas juvenis que emergiram especialmente no contexto pós AI5; e, por fim, o “massificado”, representado por produções fortemente orientadas pela lógica da indústria cultural. (NAPOLITANO apud ZAN, 2013, p.19)

Na medida em que a inquietação à procura de um método adequado para a problemática diluía-se nas orientações e entrevistas; nas descobertas do dia a dia e aulas no mestrado, sempre ricas em discussões; nos encontros e aprofundamento em novas e velhas leituras, ainda havia algo que eu precisava demonstrar a mim mesma e ao público que não teve acesso à história e ao processo transgressor e de ruptura na música cearense na década de 1970. Encontrei a resposta nos olhos de um dos artistas pesquisados. Uma epifania que remete à obra Sidarta, de Herman Hesse (1877-1962), autor alemão redescoberto nos anos 1960, quando seus livros foram disseminados entre jovens leitores, e propagados por escritores da influente Beat Generation, os precursores da contracultura nos Estados Unidos na década de 50. A repercussão de sua obra também alcançou o Brasil, na Fortaleza dos anos 70. Hesse, nas palavras de Sidarta, discorre sobre a busca:

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Quando alguém procura muito - explicou Sidarta - pode facilmente acontecer que seus olhos se concentrem exclusivamente no objeto procurado e que ele fique incapaz de achar o que quer que seja, tornando-se inacessível a tudo e a qualquer coisa porque sempre só pensa naquele objeto, e porque tem uma meta, que o obceca inteiramente. Procurar significa: ter uma meta. Mas achar significa: estar livre, abrir- se a tudo, não ter meta alguma. Pode que tu, ó venerável, sejas realmente um buscador, já que no afã de te aproximares da tua meta, não enxergas certas coisas que se encontram bem perto dos teus olhos. (HESSE, 2012, p.107)

A epifania a qual me reporto também a associo à ideia de Walter Benjamin, quando nos ensina que articular o passado é “apoderar-se de uma recordação tal como essa relampeja num instante de perigo” (BENJAMIN apud PLAZA, 2003, p.17). O contato direto com Lúcio Ricardo, que em 2018 continuou cantando para qualquer dimensão de plateia disposta a ouvi- lo em bares e teatros, e a pesquisa das obras musicais de Siegbert Franklin, produziram o efeito de um lampejo: Numa noite de dezembro de 2016, num bar da cidade de Fortaleza, o artista sentado à minha frente, Lúcio Ricardo, conta sua história. Fala da família que trabalhava em emissoras de rádio – a mãe, Jane Moura, cantora; o padrasto, Gilberto Silva, cantor nos programas de auditório da Ceará Rádio Clube, na década de 1960. Aos 62 anos, Lúcio fuma, bebe e vive dos shows, participações em discos, festivais de música, obtendo prêmios como intérprete – mais esporádicos do que gostaria – e de vendas de produtos feitos por ele, camisetas pintadas com seus desenhos. Leitor recente de Adorno, ele acabara de descobrir que o teórico da Escola de Frankfurt tinha razão no seu conceito da indústria cultural dominadora, um desafio para um artista como ele, que dificilmente consegue sobreviver de música, apesar do seu talento nato, do reconhecimento unânime dos colegas. Em 2009 ele teve uma barraca de venda de bijuterias na Praça do Carmo, no Centro. Ao falar da sua trajetória, de quando descobriu a música ainda criança, e dividia sonhos e ideias com Siegbert, o vizinho mais novo do que ele três anos, seus olhos brilham, ainda com a fagulha do sonho. Eu costumava vê-los passar quase diariamente do portão de minha casa na Rua Senador Pompeu, número 2561, no ano de 1976. Lúcio, de longos cabelos, calças apertadas e colete. Vi lágrima disfarçada num riso doce e sábio. Então aquele senhor de quem eu acabava de comprar uma camiseta, pega o microfone do bar e ao emitir sua voz a atmosfera é tomada por uma sofisticação musical que poderia ser ouvida em qualquer palco ou bar de jazz do mundo.

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Figura 1 – O grupo Perfume Azul: Milton Siqueira Rodrigues Júnior (Mocó), Ronald Carvalho, Lúcio Ricardo, Siegbert Franklin e Samuel Nélio.

Fonte: Arquivo pessoal de Ronald Carvalho. Foto de Silas de Paula [ca.1979].

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2 APRENDIZES DA TRANSGRESSÃO

Olhando para trás Agora vejo que paraísos artificiais A nada nos levou A não ser ao caos Que agora aí está Sexo, drogas, rock and roll Ídolos com pés de barro Todos no chão E agora, em quem vais te espelhar? Siegbert Franklin

Meu recorte é um tempo cartografado em duas longas vias paralelas do bairro do Centro, a Rua Barão do Rio Branco e a Rua Senador Pompeu, onde morávamos – Lúcio Ricardo e Siegbert Franklin naquela primeira, e eu residente nesta segunda. Casas circundadas por muros baixos, com seus modestos jardins, ou algumas de portas para a rua, rente ao movimento dos automóveis no asfalto – os corcéis, opalas, fuscas; portões trancados com a fragilidade de ferrolhos semiabertos, muito distante dos equipamentos de segurança com interfones e câmeras nas portarias dos edifícios, dos muros altos da vida vigiada do século XXI. A vizinhança moldava-se numa vida comunitária ativa de rodas de conversas na calçada e casais que namoravam nas salas de estar da casa dos pais – este um padrão de conduta em oposição ao modelo de quem preferia ganhar as ruas like a rolling stone5, uma atitude anticonvencional e outsider, que reafirma este conceito em Howard Becker: “alguém de quem não se espera viver de acordo com as regras estipuladas pelo grupo.” (BECKER, 2009, p.15). Nosso comportamento se assemelhava a dos desviantes, segundo a proposição de Becker: “Embora suas atividades estejam formalmente dentro da lei, sua cultura e o modo de vida são suficientemente extravagantes e não-convencionais para que eles sejam rotulados de outsiders pelos membros mais convencionais da comunidade”. (2009, p.89). Diferentes e desviantes desde a maneira de se vestir pouco usual, adeptos da moda unissex, de gênero indefinido; ao desejo de expressar uma arte guiada pela inquietude, não modelar, iconoclasta; e juntar-se em grupo para fortalecer ideias e projetos. Almejava-se criar uma música menos influenciada por referências de raízes da terra, e mais de acordo com os contornos estéticos adotados em território estrangeiro – a sonoridade oriunda dos Estados Unidos e Europa em sua apropriação e adaptação da matriz africana do blues e a adoção da performance do glam

5 Título de música emblemática de Bob Dylan, lançada em 1965, no disco Highway 61 Revisited. Sony/ATV Music Publishing.

24 rock. Tais modelos nos colocavam em constante zona de tensão com os grupos ditos engajados, que não raras vezes nos consideravam alienados, americanizados, uma leitura local para os artistas denominados de desbundados. Abordarei este tema, o desbunde, um dos mais controvertidos no entorno da década de 70, em capítulo posterior. Éramos Outsiders na sexualidade ambígua, descoberta e revelada com menos sentimento de medo do que atitude ousada para a época, sob grande influência do glam rock de Marc Bolan (1947-1977) e David Bowie (1947-2016). Essa referência, espelhada também numa certa feminilidade do figurino de Robert Plant, vocalista e compositor do Led Zeppelin, e na coreografia de Mick Jagger, era demonstrada em performances musicais nos palcos, clubes, teatros e festivais6, cuja participação era obtida por meio de contatos pessoais com os organizadores, num sistema de trabalho ainda precário quanto à infraestrutura, à produção dos shows e às condições técnicas, quando a cena do rock esboçava seus primeiros passos em Fortaleza. Nós, os aprendizes da transgressão, transitávamos a pé, sem pensar em dirigir automóvel, um bem que a indústria cultural associou à ideia de liberdade, ascensão social e poder de compra nos anúncios e comerciais de publicidade. O carro era um mote da pop music que aportava no Brasil, reproduzida no rádio e na televisão. Podemos citar O Calhambeque (Road Hog, de John D. Loudermilk, na versão de Erasmo Carlos, gravada por Roberto Carlos em 1964); O Bom (de Carlos Imperial, gravada por Eduardo Araújo,1967); Volks Volksvagen Blue (Gilberto Gil,1969) e Ouro de Tolo (Raul Seixas, 1973), algumas das canções na longa lista em que o carro extrapola a função de um meio de transporte e se insere no dia a dia das cidades, tornando-se símbolo de posição social, como na afirmação de Lefebvre (1991, p.112): "Nele tudo é sonho e simbolismo: de conforto, de poder, de prestígio, de velocidade". Antes, em 1965, os Beatles também já haviam lançado a canção Drive my Car, do álbum Rubber Soul, em que a letra ironiza o automóvel como representação de status7. “Ao uso prático se sobrepõe o consumo dos signos. O objeto se torna mágico, entra no sonho. O discurso a seu respeito se alimenta de retórica e envolve o imaginário”. LEFEBVRE

6 Nesta década começavam a se proliferar os festivais de rock no Brasil, seguindo o modelo de grandes eventos da década de 60: Festival de Woodstock (1969) e Festival de Monterrey (1967), após o predomínio dos festivais de MPB transmitidos pela televisão. Em Fortaleza, na Praia da Tabuba, foram realizadas duas edições do Festival da Costa do Sol (1976 e 1977). O Festival de Saquarema de 1976 ficou na história como antológico por contar com a participação de Raul Seixas, Rita Lee e Angela Ro Ro, entre outros artistas da ala transgressora da música brasileira. Cf. Documentário Som, Sol & Surf – Saquarema, de Hélio Pitanga, produtora Bossapro 2018. A indústria cultural se apropriaria desse tipo de manifestação, criando os chamados megaeventos, como Hollywood Rock, no Rio, em 1975. 7 Baby, you can drive my car/Yes, I’m gonna be a star (Baby, você pode dirigir meu carro/Sim, eu vou ser uma estrela) dizia o refrão de Drive my Car, de Paul McCartney e .

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(1991, p.112). Para nós, recém-saídos da adolescência em Fortaleza, dirigir um carro era um desejo tão remoto quanto ter nossas criações musicais prensadas em long play de vinil, capa colorida exposta na vitrine das lojas de discos do da cidade, sempre ostentando um aviso na contracapa: Disco é cultura.8 Os setores das indústrias cultural e a automobilística seguiram a mesma estrada na condução do imaginário brasileiro ao desejo de poder do consumo, com o sonho de liberdade e velocidade cantado em versos. Marcos Napolitano comenta a limitação do acesso ao automóvel: “O capitalismo brasileiro, cujo polo mais dinâmico se realizou historicamente num mercado relativamente restrito, com produtos de alta capitalização e valor agregado (como, por exemplo, a indústria automobilística).” (NAPOLITANO, 2002, p.4). Nenhum de nós, uma tríade de amigos a se movimentar pela cidade, explorando espaços – ateliês de artistas, museus, galerias, clubes, praças – aprendeu a dirigir. Passamos ao largo da aspiração de ter um Corcel 73, evocada na canção Ouro de Tolo (Raul Seixas, 1973); ou de um Mustang Cor de Sangue (Marcos Valle e Paulo Sergio Valle,1969), título da música gravada por Wilson Simonal (1938-2000), que seguindo o recurso de ironia, aborda os valores da classe média durante a vigência do chamado “Milagre Brasileiro”, período de crescimento da economia do país compreendido entre 1969 e 1973, durante a ditadura militar (1964-1985): A questão social industrial Não permite e não quer Que eu ande a pé Na vitrine um Mustang Cor de sangue Tenho um novo ideal sexual Abandono a mulher Virgem no altar Amo em ferro e sangue Um Mustang cor de sangue No farol vejo o seu olhar Minha mão toca a direção No painel eu vejo O seu amor E o meu corpo Invade o interior A questão social industrial Não permite que eu Seja fiel Na vitrine um Corcel Cor de mel Meu Corcel! No farol vejo o seu olhar Minha mão toca a direção No painel eu vejo O seu amor

8 Disco é Cultura. Essa frase impressa na capa dos LPs refere-se a um programa de incentivo fiscal de 1967, que possibilitava às gravadoras destinar o ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) pago sobre as vendas de seu catálogo internacional para investir em produtos nacionais.

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E o meu corpo Invade o interior... A questão social industrial Não permite que eu Seja fiel Na vitrine um Corcel Cor de mel Meu Corcel! (VALLE; VALLE, 1969)

Incorporamos o ato de andar pelas ruas como uma atitude natural de filhos de trabalhadores, habituados ao transporte coletivo, e beneficiados também pela localização das residências no bairro do Centro, próximas de teatros (Teatro Universitário, Teatro do IBEU, Teatro da EMCETUR, nomeado Teatro Carlos Câmara) e dos cinemas (Cine Art, Cine Diogo, Cine São Luiz, Jangada e Fortaleza). Morar na região foi um modo econômico que minha mãe, Rita Alexandre dos Santos (1929), funcionária pública no IPEC – Instituto de Previdência do Estado do Ceará, situado na mesma rua de nossa residência, a rua Senador Pompeu, encontrou para que pudéssemos – eu e meu irmão mais novo, Paulo Roberto (1963) – caminhar diariamente para nossas escolas, o Colégio João Pontes, na Rua Jaime Benévolo, número 212; e o Colégio Cearense, na avenida Duque de Caxias, número 101. Do mesmo modo, Lúcio Ricardo e Siegbert faziam seus percursos diários, circulando a poucas quadras do Cine Art. As sessões do cinema situado na Rua Barão do Rio Branco, na esquina com a Rua Antonio Pompeu, frequentadas por Lúcio, contribuíram decisivamente para sua vinculação com um mundo em mutação: "O cinema foi uma grande referência para mim, especialmente naquele momento em que tomávamos contato com novas ideias, novas visões de mundo”. (Entrevista com Lúcio Ricardo em 05/01/2017).

2.1Mamãe, quero ser hippie.

Lúcio Ricardo e Siegbert Franklin eram vizinhos, moravam em casas localizadas uma defronte à outra, na Rua Barão do Rio Branco, onde iniciaram uma convivência muito próxima desde a infância, como recorda Lúcio: “A gente ficava na janela, conversando. Siegbert com 9 anos, eu aos 12 anos. Trocávamos revistas em quadrinhos, falávamos de música. Éramos muito ligados no psicodelismo, pirados no psicodelismo.” (Entrevista com Lúcio Ricardo em 05/01/2017). Siegbert morava com pais adotivos. Ele tinha seis irmãs e um irmão, falecido em acidente de carro – informações relatadas por Lúcio Ricardo. Anos antes

27 de sua morte, em 2011, ele havia reencontrado sua mãe9. Raras vezes entrei em sua casa, mas ele frequentava bastante a minha residência, na Rua Senador Pompeu, onde passei a morar a partir de 1970, aos 10 anos. Nesse endereço, no número 2561, escrevemos juntos algumas canções em 1977 – duas delas gravadas e lançadas em meus álbuns Cidade Blues Rock nas Ruas, de 2012, ( o baioque10 Parabélum, composta em homenagem ao livro de Gilmar de Carvalho, de mesmo nome, lançado em 1977) e Cenas & Dramas, de 1999 (Bem-me-quer – Onde você anda?). Cf. Anexo 1 - Letras de Música. Nosso espaço era distante dos casarões do bairro da Aldeota, o lugar onde a classe média na Fortaleza dos anos 1970 almejava morar. A Aldeota, atravessada pela Avenida Santos Dumont, era a linha divisória a ser ultrapassada. Lá se instalou o primeiro shopping center da cidade, o Center Um, cuja inauguração em 1974, precedeu a uma massiva campanha publicitária criada por uma agência de comunicação chamada Época. O novo lugar atraía com sua loja de discos e um cinema, geralmente lotado nas sessões de sextas-feiras à noite e sábados nas matinês, com a exibição de filmes de arte. A Aldeia Aldeota, citada na canção de Ednardo, Terral11, de 1973, (Aldeia, Aldeota/ Estou batendo na porta/Pra lhe aperrear/Eu sou a nata do lixo/Eu sou o luxo da aldeia/Eu sou do Ceará), era desbravada desde o Centro em longas caminhadas. Fortaleza se reconfigurava no tempo emoldurado pelos anos 1970. Essas transformações também permeiam este trabalho, nas relações ambíguas com a cidade abordadas em nossas letras – de amor e mágoa; de permanência e vontade de partir. Em 1979, ao montar o show solo Do Outro Lado da Cidade, acompanhada pela guitarra de Siegbert Franklin e os músicos Ricardo Veloso (piano), Ronald Carvalho (contrabaixo) e Eugênio Stone (bateria) no Teatro da EMCETUR, a delimitação socioeconômica e cultural foi abordada com ironia, também recorrente em nossas letras, no rock que deu título ao show:

Tem um lado da cidade Que ninguém frequenta Pra não ver o que tem a mais A luz é fraca e o sol é mais quente E todo mundo assiste A novela das oito Tem um lado da cidade Que ninguém frequenta Pra não se achar gordo demais

9 Com a série Retratos de Família, em que utiliza fotos de seus parentes em colagens, Siegbert ganhou o Prêmio Porto Seguro 2008 na categoria Pesquisa Contemporânea Aquisição. 10 Junção das palavras baião e rock (adaptado em português para roque) e título de música de de Holanda, de 1972. 11 Terral foi gravada no disco Pessoal do Ceará – Meu corpo, minha embalagem, todo gasto na viagem, com Ednardo, Rodger e Teti. Gravadora Continental, 1973.

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Nesse lado da cidade Eu não quero morar Quem engole as palavras Pode se engasgar (GADELHA, 1979)

Figura 2 – Programa do show Do Outro Lado da Cidade

Fonte: Arquivo pessoal de Mona Gadelha. Arte de Marta Lopes (1979)

Ao trafegar num ambiente sociocultural conservador, abriam-se trilhas de riscos e perigo para quem exibia um comportamento anticonvencional. Este um mote usual nos versos

29 de canções: Eu corro perigo estando longe de você, em Angela B12, de Lúcio Ricardo, rock constantemente tocado pelo Perfume Azul no circuito de shows dos artistas da cidade e que não poderia faltar no seu roteiro; E o cara da TV quer que eu viva emoções perigosas, em Emoções Perigosas, de Ricardo Augusto Rocha Pinto, compositor contemporâneo e amigo da turma do rock, autor de músicas interpretadas por Lúcio Ricardo em suas performances, como Ventania (parceria com o poeta Nirton Venâncio) e Canção Popular (parceria com Luís Tiribás). O perigo rondava a liberdade sexual e o uso de drogas, o baseado, motivo de várias prisões de Lúcio. Com frequência, ele era levado à polícia e liberado em seguida, ao ponto de manter uma certa relação cortês com um delegado, que nessas ocasiões o aconselhava a “comportar-se” e adequar-se ao modo mais convencional, não usar drogas, tomar juízo, como Lúcio relembra: “A gente vivia sendo preso, era uma rotina. O delegado até já me conhecia e me dava conselhos.” (Entrevista em 05/01/2017). O cantor e gestor João Ulisses Filho, nome artístico João do Crato, que integrava a banda Chá de Flor, contemporânea do Perfume Azul, também reafirma a atmosfera desse período:

E quem não foi preso naquela época? Quem não levou porrada da polícia? A gente não podia nem se juntar. Se se juntasse, eles chegavam, mandavam se separar, davam uma geral e levavam presos sem motivo nenhum. Só porque estava num canto suspeito você era levado para a cadeia, passava por uma triagem, para saber o que estava fazendo em tal lugar. Era uma repressão terrível, mas a gente se virava, estava sempre junto e fazendo a festa. (Entrevista com João do Crato em 06/03/2018).

No episódio de uma destas prisões, Lúcio compôs o citado rock Angela B, evocando a publicitária Maria Angela da Silveira Borges (1947-2004), Angela Borges, a Birringa, amiga e incentivadora da turma do rock. Nascida em Mossoró, RN, ela foi produtora de shows na década de 70 e teve extensa atuação em meios de comunicação e agências de Fortaleza – TV Cidade e Rede Manchete; Scala Publicidade e criou sua própria empresa, Press. Angela Borges era entusiasta do grupo, que conquistava a admiração crescente de intelectuais cearenses na época, como o escritor Gilmar de Carvalho, o sociólogo Ismael Pordeus Jr. e o dramaturgo e antropólogo Geraldo Markan (1929-2001), entre outros. Ela ajudou Lúcio Ricardo a se livrar de mais uma noite na prisão e o rock escrito para ela foi o hit underground do Perfume Azul, entoado em shows, clubes e festivais:

Eu vi o tempo passar depressa Mas não conseguia parar de pensar

12 Inédita em gravações até 2012, quando foi incluída em meu disco independente Cidade Blues Rock nas Ruas, selo Brazilbizz, disponível nas plataformas de distribuição de música digital, como iTunes, Deezer e Spotify.

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Outra vez, por telefone Vieram me comunicar Eu corro perigo estando longe de você Altas madrugadas, vejo o dia amanhecer Angela B, telefone Se quiser peça bis Oh, não! (ANDRADE, 1979)

Da fase hippie, Lúcio relembra o momento em que foi arrebatado pelo desejo que o impulsionou a sair de casa e ganhar o mundo. “Quando vi Sonia Braga no musical Hair, encenado no Theatro José de Alencar, com todas aquelas pessoas lindas dançando e cantando, eu decidi que seria hippie, para desgosto de minha mãe”. (Entrevista com Lúcio Ricardo, em 05/01/2017). A sedução de Hair o fez pegar a mochila e percorrer cidades. Fugiu de casa algumas vezes, abandonou a escola. Em uma destas situações, foi encontrado três dias depois em Mossoró, no Rio Grande do Norte. Sempre fascinado pela condição hippie, Lúcio acompanhava o modo de vida e o movimento no reduto em que eles vendiam suas mercadorias em Fortaleza, a Praia de Iracema. Lúcio morou no Rio em 1974 por sete meses, voltou pra Fortaleza, trabalhou com a venda de artesanato como uma atividade paralela à música. Mais tarde, nos anos 80 teve uma empresa de confecção em Belo Horizonte, que sucumbiu com o Plano Collor, em 1990. Dotado de grande capacidade de adaptar-se, refere-se com humor à época da barraca de bijuterias na Praça do Carmo em Fortaleza: “Foi uma fase difícil, mas eu segurei bem essa onda...Tenho um olhar muito investigador das coisas. Acabei ficando até popular na Praça do Carmo. Olha que coisa engraçada!”. (Entrevista de Lúcio Ricardo à Dalwton Moura, no Diário do Nordeste, em 02/02/2009). A condição socioeconômica e cultural e a relação com a cidade são vetores de influência relevante na proposta de criação artística de nosso grupo – uma ruptura que almejava se instalar e tornar-se visível em Fortaleza. Para Benjamin, “to write his own biography is to write the city”13, (BENJAMIN apud STALLYBRASS; WHITE, 1986, p.150). De fato, o lugar em que vivemos a juventude ficou impregnado em nós. Mesmo quando fomos embora anos depois, partindo na década de 80, – Lúcio Ricardo para o Rio de Janeiro e Belo Horizonte; Siegbert Franklin e eu, para São Paulo, em novembro de 1985 –, nossas canções continuaram a nos remeter à cidade14. Nossa juventude se iniciava depois do momento da grande transformação

13 Tradução da autora: Escrever sua biografia é escrever a cidade. 14 Entre algumas canções, cito: Cidade Blues, do meu disco Cidade Blues Rock nas Ruas, 2012; Nossas Almas, de Siegbert Franklin e Churchil Street, 1994. Ver Anexo 1 – Letras de Músicas.

31 sociocultural que emergia no mundo. Uma onda crescente anunciada pelos acontecimentos dos anos 1960 nos campos das artes e da política. As mudanças ancoravam-se nas manifestações estudantis contra o autoritarismo dos regimes, como Maio de 68 na França: "O canto, o riso, os abraços, os beijos, bater palmas, olhar-se – essa empatia recíproca se funde em uma energia libidinal de novo tipo...princípio de vida, Eros, felicidade sensual e instintiva: 68 foi uma luta para a vida.” (MATOS, 1989, pág.15). Houve uma avalanche de protestos nas universidades americanas contra a guerra do Vietnã, que se estendeu de 1955 a 1975, ecoando até onde as publicações e notícias pudessem alcançar. Sob o efeito do ideário de liberdade, fortaleceram-se as causas feminista e antirracista. No Brasil, a Passeata dos 100 Mil caminha para a história como um dos símbolos de resistência ao regime militar. Organizada pelo movimento estudantil, com notável participação de artistas, mobilizou um mar de gente para protestar contra os atos arbitrários da ditadura em 26 de junho de 1968, na região da Cinelândia, no Rio de Janeiro – os compositores Chico Buarque de Holanda, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Edu Lobo, as atrizes Leila Diniz (1945-1972) e Odete Lara (1929-2015) foram alguns dos muitos participantes. A década inscreve-se na história do século XX como a era da apologia ao comportamento sexual libertário; do surgimento da música psicodélica com suas multicamadas e efeitos sonoros; da evocação dos estados lisérgicos pela experiência com drogas como LSD, ácido de propriedades alucinógenas; do rompimento de padrões convencionais nos modos de se vestir, com a adoção da minissaia da estilista inglesa Mary Quant (1934) a partir da Swinging London, denominação que identifica o tempo da agitação cultural da juventude inglesa no circuito das ruas Carnaby Street e King's Road, em Londres; do nascimento do Flower Power, movimento sociocultural em São Francisco, na Califórnia, EUA, com proposta antibelicista e pregação do modo de vida errante da filosofia hippie, uma alternativa à sociedade do consumo. O Brasil vivia a ascensão e queda do presidente João Goulart (1918-1976), que governou o país de 1961 até 1964, quando se instalou o ciclo de regime militar a partir de 31 de março com o general cearense Humberto de Alencar Castelo Branco (1900-1967). A bossa nova, nascida na segunda metade dos anos 1950, como ruptura que inaugura um outro modo de cantar, substituindo a canção dramática pela síncope e dissonâncias de influência jazzística, dividiria em seguida, os holofotes com a jovem guarda e o tropicalismo, ambos cultivadores de afinidades com influência estrangeira. Simultaneamente à produção da canção engajada, a chamada “música de protesto”, em tom de manifesto de resistência, enfrentava o ambiente repressor instaurado pela ditadura – os versos da canção Opinião, do compositor Zé Kéti (José

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Flores de Jesus, 1921-1999) na voz de Nara Leão (1942-1989), musa da bossa nova, e depois dissidente deste movimento, incursionando no samba-denúncia, eram entoados em pleno ano inaugural do regime, em 1964: “Pode me prender/podem me bater/ Podem até deixar-me sem comer/ que eu não mudo de opinião” 15. Urdida no folk americano de Woody Guthrie (1912-1967), nos Estados Unidos surgia a canção de protesto de Bob Dylan e Joan Baez, no mesmo ambiente em que a guerra do Vietnã motivou manifestações dos universitários. Os hippies propunham uma vida anti-establisment, desdobramento da contracultura impulsionada pelos escritores da beat generation, a desafiar os padrões comportamentais do capitalismo, ocupando universidades americanas com poesia e discursos pacifistas. As barricadas de Paris em 1968 confrontaram o governo de Charles De Gaulle e eclodiram a insatisfação com o estado das coisas de um mundo velho que precisava transmutar-se. A novidade vinha nos acordes do rock dos Beatles e Rolling Stones; do canto renovador do blues de Janis Joplin (1943-1970) e na guitarra incendiária de Jimi Hendrix (1942-1970). Foi um tempo de experimentações artísticas e sensoriais, que estenderam a ponte ocidente-oriente para a descoberta da meditação praticada na Índia. Período de enfrentamento do movimento negro americano à segregação racial; a revolução sexual libertária e o ativismo feminista, a revolta a partir do Bar Stonewall da comunidade homossexual contra a violenta invasão da polícia de Nova York em 28 de junho de 1969 – tudo isso coube na década de 1960. Impregnados pelas novidades e notícias que chegavam via satélite, fomos capazes de alimentar a nossa imaginação e traduzir ao nosso modo o espírito de resistência e contestação juvenil desse tempo.

2.2 Música para a juventude no escuro do tempo

Na década de 60 inicia-se a configuração da aldeia global, definida por Marshall MacLuhan (1969), com a expansão do alcance dos meios de comunicação, que culminaria na transmissão via satélite da nave Apolo 11 desembarcando pela primeira vez na lua, em 1969, assistida em preto e branco pelos olhos curiosos de uma menina do bairro da Aerolândia, em Fortaleza. Eu era essa garota que já prestava atenção nas músicas dos Beatles, mesmo sem compreender as letras, mas que conseguia cantá-las decorando o som das palavras. Músicas como Oh, Darling, Your Mother Should Known e She Loves You, assinadas por Lennon- McCartney, ou nas versões de artistas como Marcio Greyk (1947) e Renato e seus Blue Caps,

15 Em 1964 Nara Leão também estreou o show Opinião, ao lado de João do Vale (1936-1996) e Zé Keti, sob direção de Augusto Boal (1931-2009).

33 grupo carioca que se iniciou com Renato Barros, Paulo Cesar Barros e Ed Wilson, passou por várias formações, incluindo a participação do cantor e compositor Erasmo Carlos, em 1963. As mudanças aportaram em Fortaleza sob o impacto das informações difundidas pelos meios impressos nos primórdios da televisão e na primazia do rádio, adotado como objeto de estimação dos lares nos anos 60. O rádio, um artefato com design montado em madeira com alto-falante, funcionando à válvula e com um grande botão, o dial, para alternar as estações, possibilitava a conexão com as notícias do mundo, e o contato com a música transmitida em programas de auditório ao vivo ou tocada em discos de cera de 78 rpm (rotações por minuto). A passagem dos anos 60 para a década de 70 realinhou as mudanças do legado revolucionário daquele período no Brasil, com a ressignificação da contracultura à moda brasileira – o desbunde, um movimento reativo à claustrofobia do ambiente político da ditadura militar. No contexto da MPB, sigla consolidada a partir dos festivais dos anos 60, artistas como Chico Buarque e Caetano Veloso tornaram-se ídolos. E outras novas vozes chegavam para disputar uma herança ainda precoce16. Tudo em cores, via satélite, com a televisão ocupando o lugar central das reuniões familiares. Sob o faro da indústria cultural, havia um objetivo comum: o mercado jovem.

Eu não entendia porque a indústria fonográfica brasileira ignorava por completo a juventude como um mercado potencialmente importante. Lá fora já eram evidentes os sinais da importância que os jovens de todas as classes sociais teriam na explosão da indústria fonográfica. Elvis Presley e Bill Halley & His Comets vendiam milhões de discos aos teenagers norte-americanos. Estava convencido de que assistiríamos ao mesmo fenômeno no Brasil, quando nossa juventude descobrisse seus porta- vozes. (MIDANI, 2015, capítulo 14).

A profecia de Midani não tardaria em se concretizar. Naquele momento, “a música brasileira ficava mais jovem e popular” (BARCINSKI, 2014, p.9). Portadora da rebeldia, seria embalada para presente, arriscando perder sua aura, mas de dentro da estrutura do próprio sistema, poderia fazer o exercício da autocrítica, pois como no postulado de Agamben, “o contemporâneo é aquele que percebe o escuro do seu tempo como algo que lhe concerne e não cessa de interpelá-lo”. (AGAMBEN, 2009, p.64). Em 1973, Raul Seixas (1945-1989) cantava em todos os recantos e alto-falantes do país aquilo que seria o Ouro de Tolo:

Eu devia estar contente porque eu tenho um emprego Sou o dito cidadão respeitável e ganho quatro mil cruzeiros por mês

16 Em 1976, Belchior cantava em Apenas um Rapaz Latino-Americano, do disco Alucinação, o verso provocador, referindo-se à canção Divino Maravilhoso, de Gilberto Gil e Caetano Veloso, lançada em 1969 por Gal Costa: “Mas trago de cabeça uma canção do rádio/ em que um antigo compositor baiano me dizia: tudo é divino, tudo é maravilhoso”.

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Eu devia agradecer ao Senhor Por ter tido sucesso na vida como artista Eu devia estar feliz porque consegui comprar um Corcel 73 Eu devia estar alegre e satisfeito por morar em Ipanema Depois de ter passado fome por dois anos Aqui na cidade maravilhosa Eu devia estar sorrindo e orgulhoso por ter finalmente vencido na vida Mas eu acho isso uma grande piada e um tanto quanto perigosa Eu devia estar contente por ter conseguido tudo o que eu quis Mas confesso, abestalhado, que eu estou decepcionado Por que foi tão fácil conseguir e agora eu me pergunto: e daí? Eu tenho uma porção de coisas grandes pra conquistar E eu não posso ficar aí parado... (SEIXAS, 1973) A canção, uma balada catapultada à condição de hino no cenário incerto do país do futuro17, que oscilou da euforia à melancolia em um período menor do que duas décadas – de Juscelino (1902-1976) à Geisel (1907-1996) 18 – discorria com pungente ironia o sentimento brasileiro e a frustração do sonho de felicidade das classe média e trabalhadora. A ruptura advinda do rock and roll trazia em seu ímpeto a ideia de um comportamento transgressor – o desprezo às convenções, atitudes fora dos padrões com ênfase na performance no palco, que passaram a explorar aspectos da sexualidade até então intactos, com a provocação da sensualidade em coreografias e mensagens ambíguas; na adoção de figurinos extravagantes dos shows, em que eram usuais as roupas coloridas e brilhantes, coladas ao corpo; no modo de emissão da voz cantada, demonstrando a verdade da expressão artística numa entoação visceral, mais próxima da música negra americana. Era essa a nossa proposta musical a partir dos encontros no bairro do Centro, formatada sem um manifesto, concebida a partir de nossas leituras, audições de discos e filosofia em comum, afinidade de sonhos e desejo de liberdade. “A juventude não tinha uma música” (entrevista com Lúcio Ricardo em 26/11/ 2017). A fala de Lúcio Ricardo almeja sintetizar a vontade de se expressar na contemporaneidade que anunciava transgressão, psicodelismo, androginia, iconoclastia, desobediência e por fim, o elo final da ruptura. Mas como seria possível e viável ser transgressor e fazer parte da engrenagem da indústria cultural? Esse dilema atravessa toda a história da chamada música jovem, lacrada em grife e rótulo para o mercado, em oposição à atitude de quem adotava o rock e a contracultura como filosofia de vida.

17 Durante o governo militar veiculavam-se alguns slogans de propaganda que tentavam transmitir a imagem de um país em franco desenvolvimento, como “Este é um país que vai pra frente”. “Um País do Futuro” também é título do livro de Stefan Zweig (1881-1942), escritor austríaco que morou no Brasil. 18 Juscelino Kubitschek foi presidente do Brasil de 1956 a 1961 e Ernesto Geisel de 1974 a 1979, o quarto general depois do golpe militar de 1964.

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Tratava-se de uma proposta distante dos primórdios do rock and roll na versão brasileira da cantora paulista Celly Campelo (1942-2003), que popularizou no Brasil a versão de Stupid Cupid19, Estúpido Cupido, lançado no formato 78 rpm em 1959 e num compacto simples de 1960. Os meios de comunicação e os departamentos de marketing, ávidos em criar slogans para aproveitar a maré de sucesso internacional que logo se espalharia pelo país, elegeram Celly a rainha do rock no Brasil, mas ela desistiu da carreira para se casar aos vinte anos. Seu irmão, Tony Campello (1936), músico e produtor, também lançou trabalhos no período, registrando discos 78 rpm entre 1958 e 1963. A música que emergiu nos anos 70 não guardava nenhuma afinidade com canções como Banho de Lua (vertida em português do original italiano Tintarella de Luna, da cantora Mina, e regravada pelo grupo Os Mutantes em 1969, com arranjo de guitarras distorcidas, quase uma paródia); e Lacinhos Cor de Rosa, escrita por Celly – canção parodiada outra vez por Rita Lee, em 1974, ao compor De Pés no Chão20. A sonoridade e a mensagem eram mais próximas dos fundadores do rock and roll, Chuck Berry (1926-2017) e Little Richards, cuja sensualidade e rebeldia afloravam em letras dúbias e performance nos palcos, referências para Lúcio Ricardo e o Perfume Azul. Lúcio chegou a ver Cely Campelo em Fortaleza, em 1961, aos cinco anos de idade. Uma tia o levou para ver a artista desfilar em carro aberto patrocinado pela Coca-Cola na Avenida da Universidade, ao lado da cantora cearense Ayla Maria, chamada na TV local de musa das crianças (Entrevista com Lúcio Ricardo em 5/01/2017). Ayla, conhecida também como voz orgulho do Ceará, tem uma carreira longeva no cenário musical cearense, começando nos primórdios do rádio, com outras colegas, como Keyla Vidigal, Salete Dias e Ivanilde Rodrigues; assim como conseguiu consagrar seu nome na televisão a partir do período inicial deste veículo, conduzindo programas de música e entrevista para a TV Ceará e TV Diário. A indústria musical começa a se expandir nos anos 1960, favorecida também pela disseminação dos instrumentos musicais elétricos. Assistimos o início da explosão de consumo desse novo nicho de mercado no Brasil, a tal música jovem, com a difusão do termo beatlemania como fenômeno de massas, demonstrando a potência popular a que havia chegado a música de Lennon e McCartney, e o desdobramento instantâneo no surgimento dos conjuntos de baile na cidade – grupos como Os Jetsons, Rataplans, Big Brasa, Os Faraós, Os

19 Música de Howard Greenfield e Neil Sedaka, de 1959. Um grande êxito da cantora Connie Francis em 1958. 20 Do LP Atrás do Porto tem uma Cidade, de Rita Lee e banda Tutti Frutti. A letra diz: “Sim, eu sou um deles/E gosto muito de sê-lo/Porque faço coleção/De lacinhos cor-de-rosa/E também de sapatão/Eu nasci descalça/Pra que tanta pergunta?”.

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Canibais, Os Belgas, entre outros, animavam as festas, reproduzindo um movimento que acontecia em todo o país, com a proliferação de grupos – Os Caçulas, Os Brasas, The Dangers, Os Carbonos, The Clevers, e os de carreira longeva, Os Incríveis e os Golden Boys. Os conjuntos incorporaram a sonoridade dos primeiros anos do rock and roll e a influência deste estilo sobre a jovem guarda, que era a base de seu repertório. Eles executavam versões de músicas dos discos da fase inicial dos Beatles escritas por compositores que sofreram esta influência, reproduzindo os hits nas festas frequentadas por adolescentes – muitos bailes de formatura e debutantes. Um dos músicos que participou ativamente desse momento, o jornalista Luiz Antônio Alencar, o “Peninha”, discorre sobre essa cena: “Ao longo dos anos 60 surgiram muitas bandas no estilo do pop rock brasileiro da época aqui em Fortaleza. Praticamente cada bairro tinha um conjunto” (entrevista com Luiz Antonio Alencar em 25/01/2017). Nas canções vertidas para o português prevalecem mais a semelhança fonética das palavras do que a revelação do significado das letras. Um exemplo é a música I Shoud Have Known Better21, lançada pelo grupo carioca Renato e seus Blue Caps, com o título de Menina Linda (Deixa essa boneca/Faça-me o favor/Deixa isso tudo e vem brincar de amor.../Menina Linda, eu te adoro/Menina pura como a flor/Sua boneca vai quebrar/Mas viverá o nosso amor), do disco Viva a Juventude, lançado pela CBS, 1964. De conteúdo que remonta à ingenuidade da época, prestes a se transformar e entrar para a história como a era da revolução sexual e emancipação feminista, os versos em português guardam distância da letra de Lennon e McCartney, na qual um jovem amante suplica a redenção (Eu deveria ter pensado melhor/com uma garota como você...). Em 1967, eu fui a criança que juntou uma quantidade de tampinhas do refrigerante Crush para que minha irmã mais velha, Laiza Helena Alexandre, pudesse trocá-las por ingressos para ir ao show do grupo Brazilian Bitles no Estádio Presidente Vargas, um verdadeiro acontecimento na cidade, especialmente para quem morava no bairro periférico da Aerolândia. As músicas do segundo LP do grupo, intitulado É Onda, lançado pela gravadora Polydor após uma série de compactos simples, singles, com versões de canções dos Beatles e dos Rolling Stones, tocavam constantemente nas emissoras de rádio de Fortaleza. As letras faziam a apologia ao hábito, controvertido e combatido, de manter longos cabelos pelos homens, que eram chamados de rabos de burros, más companhias para moças bem-comportadas. Um dos grandes êxitos do grupo foi a versão para o português da música

21 Do terceiro disco, A Hard Day's Night, lançado em 1964. Gravadora United Artists Records.

37 do artista francês Johhny Hallyday, Cheveux longs et Idées Courtes, traduzida como Cabelos Longos Ideias Curtas. O baterista da banda, Luiz Toth, exibia uma cabeleira até a altura da cintura. Isso constituía um escândalo no ambiente repressor dos anos de chumbo. Minha irmã conta que houve histeria e pânico no final do show, com os rapazes assediando as moças na saída do estádio. Ela só conseguiu sair do local com ajuda de policiais e lembra que muitas mulheres tiveram suas roupas arrancadas. Os músicos dos Brazilian Bitles eram, além de Luiz Toth, o vocalista Eli Barra, Fábio Block (contrabaixo), Vitor Trucco (guitarra e mentor da banda), Jorge Eduardo (guitarra) e Eliseu da Silva (teclados). Eles lançaram três LPs e apresentaram um programa na TV Excelsior do Rio de Janeiro, BBC – Brazilian Bitles Club. Renato Barros, líder do conjunto Renato e seus Blue Caps, com a própria denominação já indicando a referência estrangeira, escreveu algumas destas versões; outras foram elaboradas por compositores com larga atuação e experiência nesse processo de composição, dos quais os mais conhecidos foram Rossini Pinto (1937-1985) e Fred Jorge (1928 -1994)22, presentes diariamente nas listas das paradas de sucesso. O cancioneiro da jovem guarda tornou-se uma influência significativa para Lúcio Ricardo. Na sua maturidade artística, nos anos 2000, ao interpretar letras ingenuamente românticas desse período, emprestando-lhes um acento jazzístico, com mudanças nas divisões de compassos, de ritmo e melodia, ele subverte as canções com a agudeza de um cantor de soul e blues. No repertório que leva aos bares da cidade na segunda década do século XXI é recorrente uma canção da época, Eu não sabia que você existia, música do mesmo Renato Barros, outro êxito popular desse compositor e guitarrista com longevidade artística, atuação desde a origem do rock brasileiro e da jovem guarda. A maioria dos artistas filiados à jovem guarda e relacionados à música popular daquele momento só recebeu atenção da academia a partir da pesquisa de Paulo Cesar Araújo, cuja dissertação defendida em 1999, foi publicada em livro em 2002.23 Um dos motivos desse emudecimento em torno das obras destes autores pode ter origem no preconceito de ordem estética – dada a simplicidade da construção de letras e melodias, rotuladas de cafona, afastando a pesquisa histórica e o interesse intelectual –assim como pelo viés político, que localiza esse momento da música brasileira, como prefere classificar o pesquisador Marcelo Fróes24, em oposição a movimento, enquadrando essa geração de artistas como indiferentes ao estado de exceção porque passava o país. Esse preconceito é analisado – e desmontado – por

22 Fred Jorge escreveu a versão de “Diana”, de Paul Anka, em 1958, um grande sucesso de rádio na voz do cantor Carlos Gonzaga. 23 Eu Não Sou Cachorro, Não – Música Popular Cafona e Ditadura Militar, pela Editora Record. 24 Autor do livro Jovem Guarda em Ritmo de Aventura. São Paulo: Editora 34, 2000.

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Araújo, ao relatar que tais músicos também sofreram, com a censura estabelecida, as dores do exílio e prisões arbitrárias. A jovem guarda também teve seu recorte transgressor, apesar da associação com uma rede de televisão de massa, a TV Record, que exibia um programa apresentado pelos três cantores protagonistas do movimento – Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderléa – e seguir um receituário de slogans criados por departamentos de marketing. Introduziu a guitarra e o rock and roll na música brasileira, e abordou a insatisfação em canções como Quero que vá tudo pro inferno, de Roberto Carlos e Erasmo Carlos, dupla de compositores que se estabeleceria como os maiores vendedores de discos da indústria fonográfica brasileira e continuidade artística. Era um outro modo também de dizer I can't get satisfation, refrão da música Satisfaction, de Keith Richards e Mick Jagger, do grupo inglês Rolling Stones, uma adesão romântica ao discurso inconformista. A dupla Roberto e Erasmo assimilou ainda a influência da soul music americana, graças à informação trazida pelo cantor Tim Maia (1942- 1998), amigo de juventude dos dois, e que voltou ao Brasil depois de uma temporada nos Estados Unidos, onde conviveu com o movimento pela integração racial e a ebulição sociocultural daquele país nos anos 60. Tim Maia foi um tradutor do ritmo e espírito da música negra americana no Brasil. Ele levou ao público de massa o acento pessoal do soul, outra vertente pela qual Lúcio Ricardo sofreria bastante influência. Ao mesmo tempo que inspirou o futuro musical transgressor na infância de Lúcio Ricardo e Siegbert Franklin, e no final dos anos 60 foi avalizada e incorporada pelo tropicalismo disruptor, a jovem guarda, do ponto de vista da indústria cultural e sua voluptuosidade em busca da conquista do público juvenil é assim analisada por José Roberto Zan:

Em meados dos 60, o rock transformou-se no iê-iê-iê da Jovem Guarda. Concebido pela empresa de publicidade Magaldi, Maia & Prosperi, o programa musical Jovem Guarda, que foi ao ar pela primeira vez em setembro de 1965, pela TV-Record, representou o maior empreendimento de marketing, relacionado à música popular, já registrado no Brasil. Animado pelo cantor e compositor Roberto Carlos, acompanhado por seus amigos Erasmo Carlos e Wanderléia, o programa permaneceu em cartaz até 1969. De um modo geral, os músicos ligados a essa tendência eram de origem interiorana e suburbana, e estavam distantes da politização do ambiente universitário. Voltado para um público juvenil, o repertório desse segmento era caracterizado por roques e baladas com letras ingênuas, românticas e, às vezes, com elementos de humor e rebeldia adolescentes. (ZAN, 2001, p.114).

Os epítetos da jovem guarda criados pelo publicitário Carlito Maia (1924-2002) potencializavam qualidades e acentuavam características, colaborando na divulgação do

39 sujeito como produto, e sempre foram usuais na indústria do disco. Roberto Carlos tornou-se o rei; o cantor Ronnie Von, o príncipe. Antes, Elizeth Cardoso, a divina. Em Fortaleza, o jornalista e produtor cultural Claudio Roberto de Abreu Pereira (1945-2010), que organizava caravanas de artistas cearenses em ônibus e trens percorrendo cidades do país e países da América Latina, também gostava de criar apelidos e slogans para os artistas, mas de forma anedótica do que mercadológica. O compositor Ricardo Augusto lembra que ele chamava Lúcio Ricardo de o andrógino da Itaoca, uma brincadeira que revela o quanto a androginia representava transgressão e novidade no ambiente conservador da época. (Entrevista com Ricardo Augusto em 04/06/2017). A alusão à juventude como um segmento da indústria cultural acompanhou o conceito que se consolidaria a partir dos anos 1960, seguindo a trilha cronológica do rock. Muitos grupos americanos dos primórdios carregaram essa marca no próprio nome – os Royal Teens (1958), The Teenagers (1956). No Brasil, também houve Os Adolescentes, de Renato Barros, antes do conjunto Blue Caps. As letras de Chuck Berry frequentemente se referiam à idade e à sexualidade – Sweet Little Sixteen (1958). Embora, como pondera Jon Savage, escritor e jornalista inglês, a adolescência tenha sido um conceito inventado a partir do período pós-segunda guerra (1939-1945), de raízes plantadas desde 1875, é com a ebulição do rock and roll que se alardeia a cultura jovem. No livro A Criação da Juventude, Savage afirma que o conceito de teenager revolucionou o século XX com sua potência de consumo. “Foi em 1944 que os americanos começaram a usar a palavra teenager para descrever a categoria de jovens com idade entre 14 e 18 anos. Desde o início, foi um termo de marketing usado por publicitários e fabricantes que refletia o poder de compra recentemente visível dos adolescentes” (SAVAGE,2007, p.11). O autor também sintetiza o ano de 1966 como o auge do modernismo pop, gerador de um loop, que desaguou na colagem histórica do movimento punk, de 1976. “De repente todas as épocas da cultura pop estavam acessíveis no mesmo plano, disponíveis de uma só vez”. (SAVAGE, 2007, p.12). Ele considera a década de 70 como a mais significativa da música pop. (SAVAGE, 2007). Foi o período em que dois movimentos musicais eclodiram no mundo e deixaram um rastro de influências revisitadas nos dias de hoje – o punk e a disco music, filosofias antagônicas, ambas assimiladas e recicladas pela indústria cultural. Em Fortaleza a era disco, chamada também de discoteca no país, propagou-se no surgimento de casas noturnas até a chegada da nova tendência clubber, e a new wave, desembarcada na cidade somente nos anos

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80, a qual eu iria aderir com o show Emoções Perigosas (1984)25, identificada com a estética de grupos como B-52s, Devo e Talking Heads. Nosso ambiente era o underground, a vanguarda das artes na cidade, o pensamento libertário numa cena em consonância com as referências notoriamente estrangeiras, a atitude assumidamente gay localizada nos espaços socioculturais que surgiam – bar Doces Bárbaros, na Rua Nunes Valente; Le Snack, na avenida Beira-Mar; a boate Navy, na Avenida da Abolição. Nesses locais estava o público que comparecia aos nossos shows. “Eu era querido porque era atrevido”. (Entrevista com Lúcio Ricardo em 05/01/2017). A convivência com os artistas que admiravam o Perfume Azul pela afinidade com a postura subversiva, possibilitava ao grupo conseguir apresentar-se em eventos concorridos, descolados, como no lançamento da revista O Saco26, em 1976, e um show no Hotel Colonial, organizado pelo artista Carlinhos de Moraes (1956-1986), em 1975. Como já mencionado, umas das principais referências da turma do rock era o glam, vertente musical que derrubava as fronteiras de gênero. Siegbert Franklin tornou-se um grande admirador de Marc Bolan e seu grupo, o T.Rex, Tyrannousaurus Rex, desde o momento em que teve acesso aos discos. Bolan, morto aos 29 anos, foi “a faísca que acendeu a explosão do glam rock” (REYNOLDS, 2016). Este artista exerceu forte influência na proposta do Perfume Azul, do figurino ao modo cantar e escrever as letras. O conhecimento da existência de propostas anticonvencionais se constituiu numa inspiração encorajadora. Abria a possibilidade de alçar um voo transgressor, mesmo num ambiente sociocultural claustrofóbico, cujo enfrentamento era explícito nas canções pontuadas por metáforas, como em Imagine Nós 27 (cf. Anexo I – Letras de Música). Nas proximidades de nossas casas, na rua Assunção e Avenida 13 de Maio, moravam outros artistas – os poetas Floriano Martins e Nirton Venâncio, também cineasta, o guitarrista e compositor Carlos Henrique Valente (Caíke) e Fernando “Gordo”, estes últimos criadores da banda de rock progressivo28, Nave. A "casa do gordo" ou o "gordo da 13" eram

25 Show realizado no Teatro da EMCETUR em 27 de dezembro de 1984. 26 Revista editada pelos escritores Manuel Raposo, Carlos Emilio Corrêa Lima, Nilto Maciel e Jackson Sampaio, circulou de abril de 1976 a fevereiro de 1977. 27 Canção escrita por mim, Imagine Nós, em 1979, durante e após as gravações do álbum Massafeira, no Rio de Janeiro. Lançada em meu primeiro disco, gravadora Movieplay, 1996. A letra foi inspirada numa história contada por Siegbert Franklin nessa mesma época. 28 Um dos subgêneros do rock que se estabeleceu a partir da virada dos anos 60 para 70, com influência da chamada música clássica ou erudita. Entre seus expoentes estão os grupos Yes, Gênesis, Pink Floyd e Emerson, Lake & Palmer. No Brasil a cena progressiva revelou grupos como O Terço e Som Nosso de Cada Dia, além da última fase de Os Mutantes. Em Fortaleza, entre os progressivos, além da banda Nave, destacou-se o Íris Sativa e o ainda atuante Trem do Futuro.

41 referências familiares naqueles idos de aprendizado da transgressão e desbunde. Frequentar a residência de Fernando na avenida 13 de Maio transformava-se praticamente num ato subversivo – lá, se experimentavam as novas sonoridades da cena musical, aglutinavam-se jovens instrumentistas, era um espaço para tocar rock. Numa tarde dos anos 1970, Fernando, cabelos desgrenhados, mãos rechonchudas, trajando short, sem camisa, me apresentou ao piano a música João Doidão, de sua autoria em parceria com Caíke. Reproduzo a letra, crítica social, corte seco: João Na madrugada de quinze Saiu de casa com um revólver e uma três meia cinco João Vê se cria juízo Isso não é coisa De nego fazer não João virou manchete de jornal Como ele os outros da página policial João não deu no aro Fez papel de otário Virou noticiário João Doidão (Fernando Valle, “Gordo”, e Caíke Valente)

A casa da 13 de Maio era um dos raros lugares onde uma banda podia ensaiar, na cidade ainda desprovida de estúdios especializados, um descompasso entre a indústria fonográfica que se consolidava e o desejo dos jovens moradores do Centro de se expressar com letras ácidas, ambíguas, sarcásticas e que incluíam também a crítica social. Havia outras residências em que famílias cediam garagens e salas para os ensaios. Na casa do músico Ricardo Veloso, na rua Joaquim Nabuco, número 2455, ensaiamos para meu show solo Do Outro Lado da Cidade, realizado no Teatro da EMCETUR em 28 e 29 de setembro de 1979, no qual fui acompanhada pelo próprio Ricardo Veloso no piano, Siegbert Franklin na guitarra, Ronald Carvalho Correia Lima no baixo e Eugênio Stone na bateria. A transgressão também emergia num certo espírito nonsense, como era característico das canções da Nave, escritas por Fernando “Gordo” e Caíke, numa época em que se aderia ao uso de drogas psicodélicas – dos chás de cogumelos aos ácidos –, que surgiam na cidade, trazidas por um conhecido em algum voo da Varig, Vasp ou Transbrasil, as empresas de aviação que dominavam esse mercado. Frequentemente alguém chegava da Europa ou da América, como se costumava denominar os Estados Unidos, apresentando os últimos lançamentos, como o amigo de Lúcio e Siegbert, Hélio Félix, um personagem oculto nessa história, que andava com uma mala cheia de discos e relatava aos amigos sua vida no centro

42 dos acontecimentos do mundo, os Estados Unidos. “Assim fui apresentado à música de Joni Mitchell” (Entrevista com Lúcio Ricardo em 5/01/2017). Hélio fornecia as informações acerca dos novos discos estrangeiros, long plays que seriam referências importantes na formação artística de Lúcio e Siegbert, e que mais lhes interessava de perto do que a música produzida com base nas raízes do Nordeste. Como personagens que surgem em um período histórico de ebulição e desaparecem sem uma pista ou um fio condutor que o pesquisador possa desbravar para recuperar fatos e esmiuçar detalhes, sabe-se que Hélio Félix foi detentor de uma bolsa de estudos em Ohio, EUA, que representou um elo importante com a música anticonvencional da época – meados dos anos 60 e década de 70. Eles o chamavam de Hélio dos States. A presença de Hélio e sua informação atualizada do que estava acontecendo no exterior, foi fundamental na formação do gosto musical e das pretensões dos criadores do Perfume Azul de imergir na cultura estrangeira, de acordo com a memória de Lúcio:

Hélio era uma figura carismática, muito expansivo, gay, vestido de longas kaftas29 em plena Rua Barão do Rio Banco, quando em Fortaleza ninguém usava esse tipo de roupa. Ele aparecia em nossas casas com malas cheias de long plays de Lou Reed, David Bowie, Marc Bolan e T-rex. O Siegbert ficava totalmente fascinado com esses trabalhos. Ele era uma verdadeira cria do Hélio. Nunca mais o vi. (Entrevista com Lúcio Ricardo, em 05/01/2017).

O portador das novidades musicais, um beatnick que foi ao Festival de Woodstock, também remete a um fato curioso: sua participação em um programa de perguntas e respostas do apresentador Jota Silvestre (1922-2000), O Céu é o Limite, na TV Tupi, respondendo questões sobre o escritor José de Alencar. O programa era popular na década de 1970 e distribuía prêmios para quem acertava as respostas sobre personalidades de diversos campos de atuação – literatura, cinema, história, entre os temas – e prosseguia numa sequência em que se testava a memória dos candidatos. (Entrevista com Lúcio Ricardo, em 05/01/2017).

2.3 With a little help from my friends 30

A inserção do Perfume Azul e de meu trabalho, na condição de mulher compositora, no ambiente cultural da cidade, contou com a colaboração de amigos da área de publicidade.

29 Kafta é o termo utilizado para um tipo de bata, que se tornou-se moda nos anos 1960/1970, de origem indiana e que era usada por hippies, artistas, numa ocidentalização da indumentária, graças às incursões de artistas na cultura oriental. 30 Música de John Lennon e Paul McCartney do disco Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, Parlophone,1967.

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As relações eram fecundas em parcerias para criar e produzir os cartazes de shows, com a impressão também obtida por meio de patrocínio junto às gráficas locais. Este setor da comunicação, parte da máquina propulsora do mercado de bens culturais, mantinha interesse e atenção nas tendências da moda, na música e em novas modalidades do entertaining, durante o período de grande efervescência sonora, a década de 70. Foi o alvorecer do punk; a propulsão da disco music, a discothéque, além de uma alentada geração da MPB pronta para sedimentar a indústria fonográfica em expansão também do ponto de vista estético – e não só de mercado –, oriunda dos disputados festivais de música transmitidos pela televisão nos anos 60, e do tropicalismo de Caetano Veloso e Gilberto Gil, que havia semeado o conceito de linha evolutiva da música brasileira. Nesse mosaico também se incluíam artistas de várias regiões do país, como os cearenses Raimundo Fagner, Ednardo, Belchior, Amelinha, Rodger Rogério e Teti. À adesão da publicidade, somava-se a empatia de personalidades da cidade com a turma do rock, especialmente entre jornalistas, publicitários e agitadores culturais, como Cláudio Pereira, que fazia a crônica da cidade, e nos dava visibilidade em sua coluna no jornal Tribuna do Ceará, noticiando os shows em profusão de notas que escrevia sobre nossa atividade e inventando epítetos – eu fui alcunhada como musa dos roqueiros. Agitador cultural, Cláudio Pereira era um dos protagonistas da cena de onde emergiu o Pessoal do Ceará na virada dos anos 60 para 1970, promovendo shows no Teatro Universitário31, e vindo a tornar-se presidente da Fundação de Cultura, Esporte e Turismo de Fortaleza (FUNCET) em 1987. Assim como ele, também Augusto Cesar Benevides, o Guto Benevides, publicitário e jornalista, articulou patrocinadores para as apresentações, e divulgava nossas movimentações em sua coluna Curtição do Guto, na Tribuna do Ceará, 1975. Em uma dessas publicações, Guto me elegeu “garota cultural”, além de colaborar com a montagem do show Do outro lado da cidade, no Teatro da EMCETUR, em 1979, ao obter o patrocínio de uma marca de roupas, a Jeans Store, cujo slogan era: “Com a juventude em todos os seus momentos”. Éramos o sangue novo no momento em que a indústria cultural consolidava o segmento música jovem no Brasil. Gilmar de Carvalho, também jornalista e publicitário, e para nós, a inspiração do escritor vanguardista do romance Parabélum32, em plena

31 Inspirado no show Opinião, com Nara Leão, João do Vale e Zé Kéti no Rio, Claudio Pereira montou no Teatro Universitário, em Fortaleza, um espetáculo com o grupo Cactus, integrado por Petrúcio Maia, Rodger Rogério, as irmãs Olga e Alba Paiva, Iracema Melo e o violonista Sergio Costa. 32 Parabélum é título de uma canção, um baioque, escrito por Siegbert Franklin e Mona Gadelha em 1977 depois da leitura do romance de Gilmar de Carvalho de mesmo nome. Foi gravada a primeira vez no CD Cidade Blues Rock nas Ruas, Mona Gadelha, selo Brazilbizz,2012.

44 efervescência da cena rock na cidade, dedicou textos como este, nos ensaios do livro Música de Fortaleza:

A menina atrevida começou a dar o ar de sua graça no final dos anos 1970. Fazia rock e tinha atitude. Vinha na contramão da tendência hegemônica do chamado “Pessoal do Ceará”, que não se assumia como grupo e atualizava a tradição dos compositores de modinhas e dos seresteiros. Mona era a ruptura, dividia, muitas vezes, a cena com Lúcio Ricardo, e teve o aval do Augusto Pontes (Fortaleza, 1935/ 2009) e do Ednardo para a participação na “Massafeira”, quando gravou a faixa (“Cor de Sonho”). (CARVALHO, 2016, p.71).

O Perfume Azul foi adotado pelos profissionais mais atentos da indústria cultural nascente na cidade por suscitar o frescor da atualidade e estender a ponte musical com o mundo pós-aldeia global de McLuhan, – “A partir de McLuhan, sabemos que a história das mentalidades e dos modos de pensar (de fato, quase tudo que designa nossa palavra cultura) é determinada pela ação dos meios e modos de comunicação.” (ZUMTHOR, 2007, p.18). O grupo conseguia transitar em agências de propaganda como a Scala Publicidade, de propriedade de Francisco Barroso Damasceno, situada na Avenida da Universidade, número 2346, no chamado Polo Cultural do Benfica, uma das mais inovadoras na abordagem de suas campanhas. Na Scala, Lúcio Ricardo foi convidado a compor jingles para clientes.

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Figura 3 - Reprodução de página do Tablóide TC, da Tribuna do Ceará

Fonte: Arquivo pessoal de Mona Gadelha – Coluna Curtição do Guto (1975)

A Scala se notabilizou por manter em seus quadros alguns dos profissionais cujas trajetórias se evidenciariam na comunicação e nas artes em Fortaleza, como o próprio Gilmar de Carvalho, Ângela Borges (1957-204), Augusto Pontes (1935-2009), Paulo Linhares, Silas de Paula, Fernando Costa, Ricardo Alcântara, Antonio Carlos Farias (Cacá Farias), Claudio Lima, Alceu Medeiros e Dodora Guimarães33, entre outros. Ancorado no barco vanguardista

33 Ângela Borges na publicidade; Augusto Pontes, letrista, foi secretário de cultura do Estado; Paulo Linhares, antropólogo, ex-secretário de cultura do Estado e presidente do Instituto Dragão do Mar (governos Cid Gomes e

46 da agência, o Perfume Azul teve a primeira sessão de fotos produzidas com aparato profissional no estúdio da Scala em trabalho de Silas de Paula, imagens que estão entre os poucos registros da banda. A importância desse espaço criativo para colaborar na viabilização de uma proposta de ruptura foi assimilada por Lúcio Ricardo:

Se não fosse a Scala naquela época, não sei como seria. Nossas fotos foram produzidas no estúdio, com todo o cuidado de uma produção. Éramos convidados para trabalhar compondo jingles, especialmente depois da Massafeira. A Scala foi esse lugar de possibilidade, de sobrevivência, do encontro com pessoas interessantes, com informação. No fundo, nós éramos também muito ingênuos em relação à indústria cultural. (Entrevista em 25/01/2018).

A agência teve como diretor de criação no início dos anos 80 um dos nomes mais importantes da cultura cearense, Augusto Pontes, letrista, parceiro de Ednardo na canção Carneiro34 (Amanhã se der o carneiro/ vou me embora daqui pro Rio de Janeiro), e o que se chamava na época de agitador cultural e guru, com atuação especialmente na música e na comunicação. Foi secretário de cultura do Estado e responsável por inserir, juntamente com o compositor Ednardo, a turma do rock nos shows e disco duplo Massafeira, em 1979. Augusto tinha o gosto por descobrir, agregar as pessoas e abrir portas. Relato minha experiência em 1982, quando ele vislumbrou em mim, uma jovem letrista, que havia ingressado no curso de Comunicação Social da UFC em 1981, uma redatora em potencial, e me convidou para sua equipe, onde eu dividia a sala com os publicitários Fernando Costa e Ricardo Alcântara. No período de trabalho na agência (1982-1984), compus jingles com o cantor e compositor Calé Alencar, além do próprio Lúcio Ricardo, presença constante no casarão onde estava instalada a Scala. Também assinei campanhas publicitárias, como a do Clube de Regatas Barra do Ceará (1982). Gilmar de Carvalho demonstra em sua obra Publicidade em Cordel a abertura da Scala para os compositores da cidade, seguindo um modelo de produção musical: recebiam um briefing, criavam a música, gravavam em fita cassete e o material era enviado para um estúdio especializado no Rio ou em São Paulo finalizar com a qualidade técnica desejada (CARVALHO, 2002, p.55). “A movimentação desses artistas no espaço da agência era instigante para o processo criativo como um todo e um marco deste recurso aos compositores da terra foi o jingle de Ednardo para o Center Um, o primeiro centro comercial lançado em Fortaleza, em 1974”. (CARVALHO, 2002, p.55). Mesmo nos anos 60, revela-se um

Camilo Santana); Fernando Costa, presidente da Verve Propaganda; Ricardo Alcântara, poeta e letrista; Cacá Farias, músico; Claudio Lima, fotógrafo; Alceu Medeiros, ilustrador; Dodora Guimarães, gestora e curadora. 34 Do disco Ednardo, Romance do Pavão Mysteriozo, CBS/SONY, 1973.

47 pioneirismo e senso empresarial alinhado com as novas tendências assimiladas pela publicidade cearense. A agência Publicinorte seguiu o farol que começava a iluminar o que se tornaria um vigoroso mercado jovem:

A ousadia podia ser exemplificada pelo programa TV Juventude, que ia ao ar aos sábados pela TV Ceará, agradando às toneladas à brotolândia, segundo o noticiário da época (Correio do Ceará, 21/3/1966). Em plena Jovem Guarda, a TV Juventude catalisava, em termos locais, a insatisfação e rebeldia que marcaram os anos 60, com apresentadores que variavam de indumentária, grupos de música que se apresentavam em marquises de lojas cujas contas pertenciam à agência, numa brincadeira aparentemente inconsequente, mas que configurava um incipiente merchandising. (CARVALHO, 2002, p.47)35

O Perfume Azul, à medida que conquistava visibilidade, passou a receber convites para apresentações, nas quais a performance cênica e a voz negra de Lúcio Ricardo eram atrações. O grupo teve uma participação ousada no Festival da Costa do Sol36, coordenado pelo jornalista e advogado Sabino Henrique Elpídio de Carvalho, em 1977, ex-presidente da EMCETUR – Empresa Cearense de Turismo, que seguiu a tendência do surgimento de eventos dessa natureza que começavam a acontecer no Brasil. Nessa época, foram realizados o Festival de Saquarema, município do Rio (1976), quase uma década depois dos históricos acontecimentos de Woodstock (1969)37 e Monterrey Pop (1967), inspiradores de uma profusão de festivais que passaram a reunir artistas de rock, mesclando em suas atrações nomes consagrados e bandas em início de carreira, e lançadores das bases dos chamados megaeventos que se disseminaram pelo mundo. Sob os auspícios da indústria cultural, patrocinados por gigantes do mercado de consumo – como marcas de bebida – os grandes festivais transformaram-se em um dos mais lucrativos setores do show business, como o Rock in Rio, realizado a partir de 1985. A participação do Perfume Azul foi assistida pelo compositor e músico Ricardo Augusto Rocha, integrante do grupo de rock rural Santo Graal, formado por instrumentistas cariocas em atividade nos anos 1970, também presente entre as atrações do Festival da Tabuba, como ficou conhecido o evento. A apresentação do Perfume Azul é registrada assim:

No Festival da Costa do Sol, na Praia da Tabuba, realizado em 1977, o ambiente era tenso, porque a gente sentia a presença do estado policial. Eu vi Lúcio Ricardo cantando, vestido de collant e tentava fotografá-lo, mas ao mesmo tempo sentia muito medo da repressão, que era intensa na época. Eu consegui ainda fazer algumas fotos, disfarçando com minha máquina para os policiais não verem. Porque a atitude

35 Em 30 de janeiro de 1969 os Beatles fizeram sua última apresentação pública no telhado da gravadora Apple, em Londres. A cena entrou no documentário Let It Be, de 1972. 36 O II Festival da Costa do Sol teve direção do cantor, músico e compositor Rodger Rogério. 37 Realizado em agosto de 1969 numa fazenda, em Bethel, Nova York, Estados Unidos.

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do Lúcio era muito transgressora e ousada. (Entrevista com Ricardo Augusto em 06/04/2017).

O Perfume Azul chegou a fazer shows inusitados, como uma apresentação para a campanha política do senador eleito pela ARENA - Aliança Renovadora Nacional, José Lins de Albuquerque (1920-2014). O músico e jornalista Luiz Antonio Alencar38, o “Peninha”, repórter do jornal Tribuna do Ceará nos anos 70/80, que em algumas ocasiões também tocou guitarra com o Perfume Azul e começou sua trajetória com o grupo de bailes e TV, Big Brasa, lembra que trabalhou na coordenação da campanha do programa político do candidato, José Lins, em 1978. De verve anarquista, ele conta que resolveu convidar o Perfume Azul para animar os comícios com rock, ainda que isso representasse uma iconoclastia:

Foi divertido ver uma banda muito louca, ao lado de um partido do governo e de ícones da direita como Virgílio Távora, por exemplo, que curtia, aprovou e chegou a dizer que era como eles iriam ganhar a eleição do seu candidato a senador, José Lins. Bem, eu convivia legal com o ambiente conservador da cidade justamente pelo meu jeito entre bagunçado, irreverente, mas diplomata. De modo que meu trânsito era livre e desenvolto. (Entrevista com Luiz Antônio Alencar em 26/01/2017).

A cena rock de Fortaleza contava com certa visibilidade e percepção da imprensa escrita, que refletia as polêmicas acirradas iniciadas nas mesas de bares da Praia de Iracema e da Aldeota e no campus da universidade, em torno da adesão à música estrangeira. Um exemplo é a matéria para divulgar o show Cidade Blue Rock Fatal, que realizei acompanhada de outro projeto musical de Siegbert Franklin, o grupo Boca da Noite, no efervescente Teatro de Arena da Credimus – “Credimus, empresa que inaugurou a prática do patrocínio cultural do Ceará” (CARVALHO, 2002, p.49), cujo título era “O “rock" como forma de vida” (aspas do texto original):

Para muitos, a influência de tendências importadas de outros centros artísticos é considerada numa forma de colonialismo para os matizes regionais e a aculturação de ritmos alienígenas (principalmente evaporados nos Estados Unidos) dilacera a música brasileira. Já um grupo de jovens cearenses "roqueiros" considera a coisa bem diferente. Hoje e amanhã, às 21 horas, no Teatro de Arena da Credimus, a compositora e cantora Mona Gadelha, estarão dando o seu recado musical, calcado num espetáculo diversificado no qual a virulência do baião se entrelaça com acalantos de baladas misturadas com incursões no "rock" e no "blue". (Transcrição de trecho de matéria sem assinatura do Jornal O Povo, fevereiro de 1980. Recorte de arquivo pessoal, sem data).

A androginia se revelava com a adoção de figurinos coloridos, extravagantes, brilhosos, feitos em cetim, em malhas coladas ao corpo, ou em algumas ocasiões, quando

38 Luiz Antonio Alencar também montou nos anos 80 a banda de rock Os Amorocratas.

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Lúcio Ricardo apresentava-se seminu à frente do Perfume Azul, como no citado Festival da Costa do Sol, na Praia da Tabuba, Caucaia, CE, em 1977; ou quando eu usava gravata em show, como no espaço do Centro de Convenções no festival promovido pelo Jornal O Povo, Mulher Maio Mulher, um evento com atrações variadas em torno de atividades com a temática do feminino, que era coordenador pela jornalista Wânia Dummar, em 1980. Para essas produções, havia a possibilidade do apoio de estilistas da cidade, também adeptos das mudanças em tempos sombrios, que par e par com a música transgressora e com os jovens das artes visuais39, lastreavam a cena de Fortaleza. A turma do rock frequentava o ateliê de Cabeto Carvalho, o proeminente estilista desta fase da cena musical, que mais tarde iria ver emergir também o paraense Lino Villaventura. Sob orientação de Cabeto, eu usei ternos masculinos, acessórios em couro e tachas, inspirados na indumentária do movimento punk, que eclodiu no mundo no incandescente ano de 1977. Neste mesmo ano, Siegbert Franklin iniciava uma promissora trajetória de artista visual, ao inaugurar na Galeria Antonio Bandeira, sua primeira mostra individual na cidade, Feira das Ilusões. Ao fixar residência nos anos 80 em São Paulo, Siegbert realizou exposições com trabalhos em videoinstalações, desenho e pintura. Sua obra o situa historicamente como um dos artistas cearenses mais criativos e pioneiro de sua geração.

39 Entre esses artistas, destacavam-se o próprio Siegbert Franklin, Maurício Coutinho, Luiz Hermano, Carlinhos de Morais, Batista Sena, Roberto Galvão, Zé Tarcísio, Eduardo Elói, entre outros.

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Figura 4 – O grupo Perfume Azul: da esquerda para direita: Milton Siqueira Rodrigues Júnior (Mocó), Ronald Carvalho, Lúcio Ricardo, Siegbert Franklin e Samuel Nélio.

Fonte: Foto de Silas de Paula, estúdio da agência Scala Publicidade [ca.1979].

2.4 Aos 14, com a cara e a coragem

Como fonte de grande influência sobre as transformações socioculturais, os meios de comunicação em Fortaleza na década de 1970 requisitaram também atenção. Em 1974, a Rádio Uirapurú transmitia o programa Show do Grilo, com Will Nogueira (Francisco de Assis Nogueira Bastos), em formato dirigido à juventude ávida para ouvir os acordes do novo som, o rock com potência capaz de impactar as bases da genuína música popular brasileira, a MPB com suas inflexões de raízes nordestinas, canção romântica, samba, bossa nova e o recente tropicalismo. Era a primeira vez em Fortaleza que o rádio transmitia músicas do grupo inglês Led Zeppelin e da cantora americana Janis Joplin, além de toda a constelação de superstars que a cultura pop disseminava em alcance planetário. No programa da “emissora do pássaro”, como era conhecida a Rádio Uirapurú, ocorreu a convocação para o I Concerto de Rock de Fortaleza, realizado na quadra da Escola Técnica Federal, na avenida 13 de maio, atual IFCE – Instituto Federal de Educação

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Tecnológica do Estado do Ceará. Como participante dessa manifestação ao lado dos músicos Lizoel Costa (1956-2014), Ricardo Augusto Rocha Pinto, Caio Silvio, Graco Braz, presenciei o surgimento de uma geração que se firmaria entre autores com músicas gravadas e reconhecidos – Caio e Graco assinam provavelmente a canção cearense mais executada em rádio e televisão de um compositor cearense, Noturno, gravada por Raimundo Fagner, tema de abertura da novela Coração Alado, de Janete Clair, dirigida por Roberto Talma e Paulo Ubiratan, em 1980. No Concerto de Rock, eles cantaram Blowing in the Wind, de Bob Dylan, certamente a primeira vez do folk nos palcos de Fortaleza. O cantor gaúcho Rogério Wilker, acompanhado por Lizoel, cantou Angie, dos Rolling Stones. Eu estava com 14 anos de idade e havia me aventurado a participar com duas músicas criadas para o festival, acompanhada pelos músicos Ricardo Augusto e pelo próprio Lizoel, vestindo um macacão risca de giz confeccionado por minha irmã, Ailza Amstutz, e óculos redondos, como John Lennon. A temática das músicas, nessa fase que antecedeu o encontro e as parcerias com o Perfume Azul, era inspirada em minhas leituras de histórias em quadrinhos. Recolhi esse depoimento de Lizoel Costa, falecido em 2014, publicado em rede social, no qual ele comenta o clima de paixão e amadorismo que cercou o evento. Reproduzo da mesma forma de sua escrita:

O I Concerto de Rock a Feira livre do som!!! Putz! foi uma zoeira só!!! Vamos fazer justiça histórica: Além do Will Nogueira, eu, Ricardo Augusto, Gilvan Ribeiro e também o Salim Kassouf participamos da organização do evento. O Will ficou com a parte midiática, pois na época ele tinha um programa na rádio Uirapuru, chamado Show do Grilo (se não me engano) e fez o maior agito no programa quase um mês antes, e o resto da cambada com a organização burocrática, tudo feito na porralouquice e sei que o Gilvan e o Ricardo lembram disso!! O cartaz anunciava "A tropa Maldita" apresenta "I Concerto de Rock do Ceará - A feira livre do som. A gente não acreditava que fosse lotar desse jeito e até a TV Globo na época filmou o evento. Foi uma loucura!! Foi de uma porralouquice total! Acho que os Brothers40 e a banda do Beiró41 e do Lucio eram as únicas ensaiadas. O resto foi na improvisação mesmo! Ainda tinha o fato que os Brothers tinham duas mulheres na banda, o que na época era impensável em se tratando de Fortaleza!! Banda de rock era coisa só de homem. Vocês foram pioneiros, Gilvan Ribeiro! Só agora a gente atina para esse fato! (Comentário postado no Facebook, em 14/02/2012).

O festival acontecia quatro anos após o início da década, quando já se anunciavam alguns desfechos emblemáticos dos anos 60, evidenciados na repressão do regime militar ao tropicalismo, com a prisão e o exílio de Caetano Veloso e Gilberto Gil em Londres (de 1969 a 1971) e o rastro das polêmicas acaloradas e enfrentamentos ideológicos. Na segunda metade

40 Os Brothers era uma banda de rock, uma das primeiras de Fortaleza, formada pelos irmãos Gilvan, Gilmar, Gilmary e Gildene Ribeiro. 41 Beiró, apelido de João Ribeiro, líder da banda Big Brasa.

52 dos anos 70, nossa experiência sociocultural nos levava a simpatizar e aderir ao desbunde, cujas formas de expressão na cidade, me reportarei no próximo capítulo. Antes, descrevo de forma sucinta um quadro do ambiente pós-sessenta. Para o pensamento engajado, de intelectuais a estudantes combativos na primeira década do regime militar, aderir ao rock era alienante, um contraponto à autêntica música brasileira de raiz e às canções de protesto como forma de resistência à ditadura. A canção que apresentasse em seus versos mensagens de cunho mais individualista e descomprometida era considerada por seus críticos mais uma forma de alienação, partidária do imperialismo americano, o grande propagador da cultura pop no mundo. As companhias de disco eram multinacionais com sedes nos Estados Unidos e países da Europa (CBS, Polygram, Warner, EMI). A máquina hollywoodiana também já havia embalado a imagem dos ícones da rebeldia no cinema, como James Dean (1931-1955)42 e Marlon Brando (1924-2004); símbolos de beleza, como Marilyn Monroe, Natalie Wood (1938-1981) e muitas outras atrizes, que passaram a dominar o imaginário coletivo do american dream. Da perspectiva da indústria cultural, o produto americano invadiu o mundo, vendendo sonhos, entretenimento e cheap thrills, as emoções baratas, título do segundo disco de Janis Joplin, lançado em 1968. A música em língua inglesa, impulsionada pelos acordes amplificados da guitarra elétrica, que a partir dos anos 60 ocuparia lugar central nas formações dos grupos de rock, encontrou muita resistência no ambiente cultural, acirrando esquentadas discussões43. O movimento tropicalista confrontou a tradição do violão na música brasileira com a adesão ao uso da guitarra, afinal um instrumento tão fundamental para o rock and roll quanto o violão para a bossa nova, e adotou as referências estrangeiras, retomando também a antropofagia do Manifesto de 1928, assinado por Oswald de Andrade (1890-1954). O tropicalismo havia desconstruído esteticamente a MPB sagrada de autores como Vicente Celestino, Adoniran Barbosa, Silvio Caldas e Orestes Barbosa, ao rearranjar em novos formatos de sonoridades um repertório clássico – Coração Materno, por Caetano Veloso no long play Tropicália,1967; Chão de Estrelas interpretada pelo grupo Os Mutantes (Arnaldo e Sergio Baptista, Rita Lee e Arnolpho Lima, o Liminha, que veio a tornar-se um midas da música pop nos anos 80, à frente da produção musical de artistas bem sucedidos nessa década) vestidos com a indumentária dos heróis dos desenhos em quadrinhos da

42 James Dean protagonista do filme Rebel without a Cause (título no Brasil: Juventude Transviada), dirigido por Nicholas Ray, com Sal Mineo, Natalie Wood e Dennis Hopper e The wild One (título no Brasil: O Selvagem), de László Benedek, com Marlon Brando, Mary Murphy e Lee Marvin. 43 Em 1967 ocorreu uma polêmica passeata contra a guitarra elétrica, em defesa da “invasão estrangeira”, com participação de e Edu Lobo, entre outros artistas.

53 companhia Marvel, o Quarteto Fantástico; Gal Costa na gravação crua – voz e violão – de Trem das Onze 44. Gal Costa foi desafiadora no modo de se vestir, e transgrediu ao adotar um comportamento inversamente convencional recomendado às mulheres – o canto inspirado na entoação de João Gilberto, os cabelos em desalinho, a ambiguidade sexual. Uma nota na revista Contigo de 1973 (ano IX, número 131) relata que a cantora foi vaiada na ocasião de um show em Fortaleza por sua performance cênica – sentar-se de pernas abertas com seu violão. Naquele ano, ela lançava um de seus trabalhos mais emblemáticos, o LP Índia, com a capa emoldurando sua imagem seminua, fotografada por Antonio Guerreiro. "Encarnando uma Janis Joplin tupiniquim, Gal Costa balançava as cadeiras, tocava violão com as pernas abertas e, diante de dezenas de malucos, provava que Ismael Silva era o nosso Robert Johnson. Em meio a tantas movimentações, ao longo de dez anos, ela saiu do completo anonimato para assumir o honroso posto de rainha tropical do desbunde, da alegria e do protesto." (SAMPAIO, 2013, p.171). A faixa título é um arranjo de Rogério Duprat (1932- 2006), conhecido como o “maestro da tropicália”. O início de 1972 ficou conhecido como ‘o verão do ‘desbunde’...[ ] Sonhar com novos rumos fazia parte do pensamento libertário e da estética contracultural da época. (LOGULLO, 2016). Neste ano, Gal Costa lançaria Gal a Todo Vapor, espetáculo que originou o disco, um divisor de águas no alcance do desbunde entre os jovens, como relembra o jornalista Eduardo Logullo ao descrever o público que lotava as sessões: “Pessoas cabeludíssimas, roupas transadíssimas, abraços demoradíssimos, cabeças louquíssimas, sons maneiríssimos, viagens desencucadíssimas (2016)45. O canto e atitude de Gal e a música de Rita Lee, a partir do lançamento de seu primeiro disco com o grupo Tutti Frutti, Fruto Proibido, em 1975 (gravadora Som Livre), também influenciaram nosso modo de compor. Mais a mim, particularmente, pela condição feminina. Rita no patamar de superstar a partir desse disco, era uma demonstração de que o rock no Brasil poderia se consolidar no lugar outorgado pelo mainstream, repercutido na mass media, fato que veio a acontecer na explosão do BRock dos anos 80, com a proliferação de bandas e o alcance de Paralamas do Sucesso, Legião Urbana, Titãs, Metrô, Blitz, Gang 90 & Absurdetes, entre outras. No ambiente dos 70 que respirava a continuidade do regime militar, ainda estávamos longe da sonhada abertura. Supressão do livre pensar, prisões de ativistas, intelectuais,

44 Em Fortaleza, no programa do apresentador Irapuan Lima (1927-2002), exibido pela TV Ceará, em 1975, ao cantar e tocar violão em Trem das Onze, Gal Costa foi confrontada pelo jornalista Temístocles Castro e Silva (1929-2011), que considerou a interpretação como um sacrilégio à obra de Adoniran Barbosa. 45 Texto de apresentação do ano de 1972, assinado pelo jornalista Eduardo Logullo, no site da cantora: www.galcosta.com.br. Acesso em 23/02/2018.

54 artistas, professores, estudantes, exílio e censura aos compositores, autores teatrais, escritores e à imprensa, num fluxo que só iria conter-se em meados dos anos 80, até implantar-se a abertura política, em 1985, com a eleição indireta para a presidência da república, por meio de um colégio eleitoral de parlamentares, do político mineiro Tancredo Neves (1910-1985), que morreu antes de tomar posse, assumindo o vice de sua chapa, José Sarney. Reunidos a partir de 1976, Lúcio Ricardo, Siegbert Franklin com o Perfume Azul, formado pelos músicos Ronald Carvalho, Milton Mocó e Samuel Nélio, e minha participação no que se chamou turma do rock em Fortaleza, nós éramos os jovens que expressavam na música de referências estrangeiras, o caos, o desespero e desencanto do momento brasileiro. Havia urgência no desejo e direito de também se divertir, apesar de termos recebido a convocação precoce de entrada no mundo do mercado profissional da música – o contrato com a CBS para participar e gravar o disco Massafeira, em 1979, no Rio de Janeiro, quando ainda evidenciávamos uma imaturidade juvenil e inexperiência para lidar com os ditames da indústria cultural, reflexão que complemento com o pensamento de Adorno e Horkheimer, na sua Dialética do Esclarecimento: “o indivíduo vê-se completamente anulado em face dos poderes econômicos” (1947, p.3). Sem esses tais poderes econômicos, o disco duplo, com a participação de 40 artistas, uma mostra exuberante da música cearense, distribuída em 4 lados A e B, teve notória dificuldade para chegar aos seus ouvintes potenciais, ao público que se interessaria em conhecer novos intérpretes e autores. Orientados por amigos do setor de rádio e comunicação, e pelos próprios profissionais do departamento de divulgação da CBS, Lúcio Ricardo e eu, chegamos a percorrer emissoras e jornais para dar visibilidade ao álbum. No final colhemos algumas polêmicas, como a matéria publicada no jornal Tribuna do Ceará, cujo título relata nosso descontentamento com o que definíamos como boicote ao disco pelas rádios. Com o tempo, o álbum Massafeira foi redescoberto e revalorizado, relançado em CD com um livro em 2010. A música Cor de Sonho46 chegou a ser executada por algumas emissoras de Fortaleza na época, como a Rádio Dragão do Mar AM. E posteriormente, quando a regravei em meu primeiro disco solo, lançado pela gravadora Movieplay, em 1996.

46 Gravada também pelas cantoras Amanda Acosta, Livia França e Karla Karenina.

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Figura 5 – Recorte do jornal Tribuna do Ceará.

Fonte: Tribuna do Ceará (10/12/1980).

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3 A PONTE ENTRE OS MENINOS SUI GENERIS DA BARÃO E O MISSISSIPI

O que pode um pobre garoto fazer A não ser cantar numa banda de rock? (Mick Jagger e Keith Richardsx)47

Ao adotar a ruptura estética a partir do advento do rock em meados dos anos 1970 em Fortaleza, almejava-se acrescentar a própria marca, ou seja, imprimir nossa narrativa no que já estava estabelecido e posto na cena musical preponderante na cidade, reflexo do país: a expressão música popular brasileira consagrada e institucionalizada na sigla MPB, após os ciclos da bossa nova e do tropicalismo (NAPOLITANO, 2002, p.1); os ritmos nutridos pelas raízes do sertão desde (1912-1989); os versos da canção de protesto, engajada; a jovem guarda; a música do Pessoal do Ceará e as harmonias dos mineiros do Clube da Esquina (Milton Nascimento, Lô Borges, Marcio Borges, Ronaldo Bastos, Beto Guedes, Fernando Brant, Wagner Tiso, Nelson Angelo e Toninho Horta, músicos e compositores). Antes da Barão, tem a origem de Lúcio Ricardo no sertão. Ele nasceu em Juazeiro do Norte, CE, no dia 20 de setembro de 1954, e mudou-se para Fortaleza aos seis anos de idade. Filho de Jane Moura, que muito jovem já seguia a carreira de cantora no elenco da Rádio Araripe do Crato, e de Nilson Andrade, nascido em Jequié, Bahia, mas que enveredou pelo Cariri em busca de trabalho, como Lúcio o descreve: “Meu pai foi um cantor aventureiro” (entrevista com Lúcio Ricardo em 26/11/2017). Artistas do rádio, os dois eram ainda jovens quando iniciaram o romance na Rádio Iracema de Juazeiro, emissora que assim como a Araripe, havia sido inaugurada em 1951. Jane estava com 15 anos de idade, e Nilson, aos 16 anos, quando Lúcio Ricardo nasceu. Ele tem duas irmãs – Diana Helena, a mais nova, e Marta Janete – e um irmão mais novo, Paulo Roberto, que também incursionou pela profissão de cantor, falecido em 2017. Em Fortaleza, Jane Moura casou-se com Gilberto Silva, do elenco de cantores da Ceará Rádio Clube. Lúcio o descreve como um cantor refinado. Era um dos chamados galãs do rádio. A partir da convivência com seu padrasto, ele tomou conhecimento da música de compositores cearenses da época, notadamente Luiz Assunção, frequentador da casa de Dona Lurdinha Silva, mãe de Gilberto. O movimento de músicos que trabalhavam na noite, nos cabarés, e nos estúdios e

47 Street Fighting Man, do LP Beggars Banquet (Banquete dos Mendigos), de 1968. Em 1974 o cantor, compositor e músico Jards Macalé lançou um disco com o título Banquete dos Mendigos, em celebração dos 25 anos da Declaração de Direitos Humanos.

57 auditório da Ceará Rádio Clube, confluía para essa residência, onde se servia o famoso "caldo da Dona Lurdinha". Lúcio Ricardo, o menino, acompanhava esse movimento, uma escola para seu canto que se firmaria na juventude com a informação do rock e do blues. Os músicos e seu modo de vida, invertendo o horário de trabalho convencional do dia para a noite, eram associados apenas à boemia, à aventura. A mãe não queria que o filho fosse cantor. Mas exerceu influência sobre a escolha de Lúcio Ricardo para seguir uma trajetória artística a partir de um cotidiano em que a música era presença predominante, com ensaios constantes de Gilberto e Jane presenciados por ele. Chamava sua atenção o caderninho com letras de canções interpretadas por Elizeth Cardoso (1920-1990) e Anísio Silva (1920-1989), mantido por sua mãe (entrevista com Lúcio Ricardo em 26/11/2017). Lúcio remete seu apego e influência do blues a um sentimento que o domina ao interpretar uma canção. E este é sempre de introspecção, pungente, dilacerado. Uma voz a rejeitar modelos decalcados do blues americano, que ele percebe como originalmente oriundo de “muita dor e sofrimento”, desde o canto dos escravos nas plantações de algodão no Sul dos Estados Unidos à luta pela sobrevivência da classe operária nos anos que se seguem à industrialização. “Quando Billie canta, ela mostra isso”, referindo-se à Billie Holiday (1915- 1959), assim como aquelas que o artista considera suas correspondentes brasileiras, Alaíde Costa (1935) e Elizeth Cardoso, no seu entender, cantoras que foram “marginalizadas” (entrevista em 26/11/2016). Mas o blues de Lúcio Ricardo foi concebido a partir de sua memória da voz de Ray Charles na radiadora de Juazeiro. A turma do rock, como fomos chamados em meados da década de 70 em Fortaleza, muito provavelmente por Augusto Pontes, adotou, com acento e entonação próprios, a música que emergiu do canto dos negros, as work songs, nas plantações de algodão do Sul dos Estados Unidos, na última metade do século XIX – no Mississipi, Alabama, na Geórgia e Lousiana; e de sua mesclagem com as canções do folclore americano de influência europeia, dando origem ao blues. Essa escola representada pelas primeiras adaptações dos músicos W.C. Handy (1873-1958), Robert Johnson (1911-1938), da cantora Ma Rainey (1886-1939), pioneiros do estilo; propagada em longo alcance nas vozes de Bessie Smith (1894-1937), Muddy Waters (1913-1983), B.B. King (1925-2015), Etta James (1938-2012) e de uma fecunda linhagem de artistas negros, permanece disseminando suas construções harmônicas com base em doze compassos, provocando mesmo no século XXI incorporações inusitadas. Foi em Bessie Smith que a cantora e compositora Janis Joplin, nascida em Port Arthur, Texas, se espelhou para adotar em sua música a agudeza de versos tristes e espalhar matrizes do blues no largo universo masculino do rock.

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Na obra Play, disco com dezoito faixas lançado em 1999 por Moby, codinome do músico e compositor americano Richard Melville Hall, as raízes do blues com seus versos em formas repetidas de pergunta e resposta são reconstruídas em arranjos de música eletrônica com utilização de samples48 e programações. Moby utilizou as gravações de pesquisa de campo do musicólogo Alan Lomax (1915-2002), que juntamente com seu pai, o folclorista pioneiro John Lomax (1867-1948), foi responsável pela compilação de milhares de obras preservadas no Arquivo de Música Folclórica Americana para a Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos49. Uma das faixas do disco de Moby, Natural Blues, é praticamente o remix de uma gravação de 1937 da cantora do Alabama, Vera Hall (1902-1964), a canção Trouble so hard. Além de Vera Hall, foram matrizes para as manipulações eletrônicas de Moby o canto gospel de Mary Elizabeth Jones, conhecida como Bessie Jones (1902-1984) e o blues de Roland Hayes (1887-1977), filho de escravos, nascido na Geórgia, conhecido como “Boy Blue”. O disco Play teve o alcance que a indústria cultural denomina fenômeno, quando a massificação atinge um patamar estratosférico de vendas – nesse caso, mais de dez milhões de discos e repercussão sem precedentes no mercado de música eletrônica. O blues é a música que nasce como uma forma de resistência e sobrevivência ao meio opressivo, forjada na dor de uma vida sem perspectivas na condição de escravidão sub- humana, entre maus tratos e assassinatos. Em Strange Fruit, fruto estranho, a voz ungida no blues de Billie Holiday entoa o poema-canção de Abel Meeropol publicado em 1939 para abordar a prática do linchamento de negros nos estados do Sul americano, cujos corpos eram pendurados em árvores. Lançada por Holiday nos clubes de jazz de Nova York, a música perpetrou-se como um clássico, um hino antiescravagista, interpretada por dezenas de artistas e considerada pela revista americana Time (1999) como “a canção do século XX”.

Southern trees bear strange fruit, Blood on the leaves and blood at the root, Black body swinging in the Southern breeze, Strange fruit hanging from the poplar trees (As árvores do Sul produzem um fruto estranho

48 Samples são amostras de trechos de sons diversos ou música bastante utilizados na produção musical eletrônica, gerando os loops, que são repetições, efeito bastante comum nesse tipo de produção musical. Sampler é o reprodutor desses sons em forma de software ou de hardware (equipamento). 49 A família Lomax se notabilizou por sua vocação de pesquisadores da música americana na primeira metade do século XX, com o trabalho pioneiro do patriarca, John Lomax, junto a seus filhos (John Jr, Shirley, Alan e Bess Lomax) e esposas (Bess Brown, primeira, e Ruby Terril, segunda), deixando um legado de mais de 10 mil gravações coletadas em campo (no Sul dos Estados Unidos), disponíveis no centro de pesquisa American Folklife da Biblioteca do Congresso Americano. John e seu filho, Alan, gravaram sessões com os pioneiros do blues e folk Woody Guthrie e Huddie Ledbetter, o Lead Belly (1888-1949).

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Sangue nas folhas e sangue na raiz Corpo negro balançando na brisa sulista Fruto estranho pendurado nos álamos)

A origem do blues e suas derivações ao longo do século XX, da mesma matriz onde foram modelados os estilos do jazz, soul, funk e o rhythm & blues, até chegar ao formato do rock and roll dos músicos negros Chuck Berry e Little Richards, e dos brancos Bill Halley e Elvis Presley, é citada nessa pesquisa com o objetivo de compreender como se estendeu a ponte desde a música concebida no Delta do Mississipi à voz de Lúcio Ricardo, à guitarra de Siegbert Franklin, ao formato de composição por mim adotado. Nós, moradores do bairro do Centro de Fortaleza, estabelecendo grande proximidade e identidade com os pioneiros americanos. Há todo um repertório de blues que juntávamos em nossos cadernos de canções – algumas com as letras no Anexo 1. Em Elevador Blues, de 1977, Siegbert cantava:

Quando você me falou Que não podia mais me amar direito Eu até pensei em saltar do 21º andar E as pessoas lá de fora Todas riam do meu jeito E você não via a maldade em seu olhar Só agora eu sei o quanto é frio estar só Só agora eu sei o quanto está escuro Ao meu redor No poço do meu elevador blues (FRANKLIN, 1977)

O canto de Lúcio sempre foi visceral, flamejante, como se traduzisse uma dor ancestral, a originária do grito negro que resiste aos dissabores da existência, em timbres que remetem aos artistas da linhagem do soul e do blues. Uma canção em sua voz ganha novos contornos, que subvertem as divisões dos compassos para criar outras nuances no modo de interpretação. Se nos anos 70 ele investiu na transgressão do rock com influências do glam e da androginia advindos de Marc Bolan, nos anos 2000 seu canto serviu ao jazz, estilo apreciado por um segmento de público na cidade que prestigia releituras e festivais, assim como às reinterpretações de canções da jovem guarda, canto de sua memória afetiva. As duas primeiras décadas do século XXI viram surgir, portanto, o cantor que deu mais vazão à poética de outros autores, em detrimento de suas criações, num tempo já distante do artista precursor dos anos 70, mas com a mesma energia performática. Diante da voz exuberante de Lúcio Ricardo à frente do Perfume Azul, Siegbert só mostrou a força de seu canto peculiar, visceral ao seu modo, pois impõe verdade e sentimento, em trabalhos posteriores. Simultaneamente às performances do grupo, ele montava outros trabalhos – as bandas Boca da Noite e Kaleidoscópio, esta última um projeto nosso de parceria, que resultou

60 em várias composições assinadas por mim e por ele, com a participação de um músico chamado Luís na bateria, paulistano que se mudara para Fortaleza e com o qual perdemos o contato. Em suas caminhadas pelas ruas do Centro, Siegbert sempre era visto com livros, desenhos e discos. Na fase do Kaleidoscópio, ele me presenteou com a biografia da cantora de blues Ma Rainey, o livro Pop Art, o primeiro disco de Marina Lima, lançado em 1980, os LPs de Joni Mitchell, The Hissing of Summer Lawns, 1975, e o disco da banda escocesa de folk psicodélico Incredible String Band, Liquid Acrobat as Regards the Air, 1971. Deste disco, ele gostava especialmente da música Dear Old Battlefield, chamando minha atenção para os versos: love and friends meet again and again/on the dear battlefield. O tema de encontros e desencontros seria recorrente em nosso trabalho (cf.Anexo I). Com o Kaleidoscópio, nos apresentamos no II Festival da Costa do Sol, em 1977, na praia da Tabuba. O repertório foi criado naquele ano, a partir de um caderno de canções escrito numa tarde em minha casa. Destas músicas, escritas em parceria com Siegbert, algumas permanecem inéditas, como Lucy foi às Compras, Elevador Blues, Mr. Nonsense e Depois do Vinho. Registrei em meu disco Cidade Blues Rock nas Ruas (2012) o baioque Parabélum, inspirada no livro de Gilmar de Carvalho, e Bem-me-quer (onde você anda?) no disco Cenas & Dramas, lançado em 1999. A proposta de ruptura pela perspectiva cearense, experimentando a sonoridade do blues, emergiu moldada na arte e na atitude transgressora da performance do grupo Perfume Azul, que guardava menos afinidade com as sonoridades da tradição de sua terra, como o baião inaugurado por Luiz Gonzaga; os modos do canto do repente e os versos do cordel do sertão; o samba-canção dos compositores Luiz Assunção (1902-1987) e o balanceio de Lauro Maia, e estabelecia mais identificação com o estrangeiro, ao atravessar a ponte que os levaria à assimilação do rock inglês, também moldado no blues, dos Rolling Stones, com sua temática contestadora e raízes negras. Os Stones, junto com os Beatles, The Byrds, The Who, The Kinks e outros grupos surgidos nos anos 1960 protagonizaram a chamada primeira invasão britânica no ambiente musical americano e que, hegemônico, teve largo alcance, influenciando jovens músicos em escala mundial.

Figura 6 – Apresentação do Perfume Azul: Lúcio Ricardo, Fernando Marques (piano,

61 participação especial), Siegbert Franklin e Ronald Carvalho.

Fonte: Arquivo de Samuel Nélio. Foto de autor desconhecido. [ca. 1978]

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4 DESBUNDE NA BARRA CEARENSE

Não converso Massacro meu medo Mascaro minha dor Já sei sofrer Não preciso de gente Que me oriente Jards Macalé/Waly Salomão, Mal Secreto50, 1972

A assimilação do rock na música brasileira era sumariamente determinada também como imersão no barato total51 e alienação na polarizada década de 70. O desbunde made in Ceará agregava artistas da música, notadamente a turma do rock, e das artes visuais, teatro e literatura, que se nutriam das vivências em grupo, relatadas por alguns que participaram dessa cena, como o cantor João do Crato e o artista Luiz Hermano, cujos relatos citarei no texto adiante . “O desbunde estava intimamente relacionado à ação performativa” (OLIVEIRA, 2016, p.5605). O gesto coletivo de reunir-se em rituais de criação, apresentações e encontros, representou, de um jeito brasileiro, a experiência da contracultura em sua proposta de negação do establishment, uma das bases dessa filosofia, propagada no ambiente sociocultural norte- americano nos anos de 1950 pelos postulados da geração beat de Jack Kerouac (1922-1969), e Allen Ginsberg (1926-1997), dois dos nomes mais significativos da literatura beatnick. Como tantos jovens seguidores do rock nessa época, nos alinhávamos com a filosofia da contracultura, desejando também ser beatnick – pelos valores libertários que sopravam naqueles ventos de outros ares, há muitas milhas distante de nós e de nossa realidade. Em sua versão tropical, a contracultura foi expandida até chegar aos corações e mentes dos jovens por meio da coluna Underground, publicada no jornal O Pasquim, de 1969 a 1971, assinada pelo escritor que ficaria conhecido como guru brasileiro da contracultura, Luiz Carlos Maciel (1938-2017). No meio musical, o desbunde acabou resultando num recorte associado a compositores também chamados de malditos. Objeto de estudos e revisões acerca da vertiginosa, tumultuada e fascinante década de 70, com suas contradições e ambiguidades, a radicalização estética e ideológica, que praticamente instituiu o desbunde como o território de quem não estava nem aí para o que se passava na epiderme da luta política, foi atualizada em abordagens que sugerem retirar do lugar de isenção – e maldição – os compositores e cantores que exerceram papel não circunscrito à transgressão e contestação no âmbito poético

50 Música do disco Fa-tal Gal a Todo Vapor, de Gal Costa. Gravadora Philips,1971. 51 Barato – gíria largamente usada nos anos 70, relacionada ao consumo de drogas, ao estado de relaxamento. Também significava reação a algo positivo, como dizer: “É o maior barato!”. Título de uma canção de Gilberto Gil gravada por Gal Costa: Barato Total, disco Cantar, Philips,1974. Também denominava um espaço na Praia de Ipanema, frequentado pelos freakers locais, as Dunas do Barato.

63 e na atitude, mas que também foram intérpretes do estado repressor – um grupo que inclui Jards Macalé, Sergio Sampaio (1947-1994) e Walter Franco, entre outros nomes, como discorre Sheyla Diniz:

A gíria ambivalente, ora acusatória ora afirmativa, relacionada com o aspecto lúdico e a quebra de tabus, rotulou diversos músicos no início dos anos 1970, notadamente os que destoavam da MPB herdeira do nacional-popular. Alguns, como os Novos Baianos, aderiram de modo confesso ao desbunde nessa última acepção. Ao abraçarem o ideário hippie e a experiência comunitária, eles se contrapuseram, à sua maneira, à lógica burguesa da família tradicional, da propriedade privada e da acumulação capitalista. (DINIZ, 2017, p.77).

A produção musical do desbunde compilava hinos, o que seria hoje playlist de acalantos vertidos em busca do entorpecimento, trilha de uma fuga do ambiente opressor com a experiência do sexo, drogas e rock and roll, em contraposição ao pensamento radical, os sujeitos da crítica aos freakers. Músicas como Dê um Rolê, de Moraes Moreira e Galvão, 1971, e Vapor Barato, de Waly Salomão e Jards Macalé, 1971, ambas gravadas por Gal Costa, ela própria erigida a musa; além de outras, como Maluco Beleza, de Raul Seixas, 1972. Em grupo, andando de noite pelas ruas da Aldeota, não raras vezes cantávamos a canção das calças vermelhas e casaco de general, como um verdadeiro bando de desbundados. Sem as Dunas do Barato da Praia de Ipanema do Rio, de onde aquela cena se amplificava para o país, nosso píer eram as avenidas da cidade. Se o desbunde desfrutava de um endereço em Fortaleza, nesse itinerário estava a casa do artista visual Giovani Sampaio, na Barra do Ceará, frequentada por artistas, poetas, músicos e todos que faziam a cena cearense do udigrúdi – underground adaptado, abrasileirado. Além dos membros do Perfume Azul, Siegbert Franklin e Lúcio Ricardo, dividiram noitadas e auroras por lá os artistas Luiz Hermano, Zé Tarcísio e Batista Sena (1952-2014), o poeta e cineasta Nirton Venâncio, João do Crato, o fotógrafo Galba Sandras, Capelo Camanho, entre muitos outros passageiros das viagens lisérgicas de erva e ácido. “Íamos todos para a casa do Giovani e, era ainda mais interessante, porque tínhamos que fazer uma travessia de barco”, como relembra Luiz Hermano o período anterior a sua partida para o eixo Rio-São Paulo, onde se fixaria e empreenderia uma prolixa trajetória nas artes. Nirton Venâncio, admirador quase secreto do nosso trabalho – “Lúcio Ricardo e Mona Gadelha eram mitos para mim, eu tinha uma certa timidez ao tentar me aproximar.” (Entrevista com Nirton Venâncio em 15/06/2018), revela a atmosfera da casa:

Era uma dessas casas compridas...tipo trem... mas não grande, meio rústica e tinha um quintal, onde as pessoas se reuniam para tocar, cantar, conversar, namorar, beber,

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fumar baseado. Deixei de ir mais vezes por causa da travessia. Uma vez tomei um chá de alguma coisa, fiquei daquele jeito, caí num pé de cactos e passei dias com minha irmã tirando espinhos de minhas costas. (Entrevista com Nirton Venâncio, em 15/06/2018).

A casa na Barra do Ceará serviu também de base para a banda Chá de Flor, contemporânea do Perfume Azul, cuja proposta era experimentar a sonoridade psicodélica e o rock progressivo. Surgida no final dos anos 70, originária do Cariri, atuou intensamente em Fortaleza, apesar do seu curto período de existência. Reunia Batista Sena, artista visual e músico; João do Crato, cantor; o guitarrista Ronald Carvalho, do Perfume Azul; Heriberto Porto, flautista; Marco Aurélio Holanda, contrabaixista, e o percussionista Luís Sérgio, o “Cigano”. João do Crato conta que “havia também ‘Chupeta’, capoeirista que fazia participações com pandeiro”, mas de quem ele não recorda o nome verdadeiro. Os fundadores da Chá de Flor, João e Batista Sena, moravam juntos no bairro da Barra do Ceará, onde o grupo experimentava novas canções com nomes psicodélicos, como O Predileto Vestido de Dália para Esperar Polichinelo – essa música foi interpretada por Lúcio Ricardo e a banda Chá de Flor na abertura da exposição de Luiz Hermano, no Náutico Atlético Cearense em 1977, relatada a seguir. A letra, infelizmente não mais lembrada por Lúcio e nem por João, não foi registrada em nenhuma gravação, fato comum naquele tempo de dificuldade para obter equipamentos – e quantos trabalhos interessantes podem ter se perdido nas filigranas do tempo e da memória? Mas o fato é que a proposta da Chá de Flor se antecipava e inseria outras referências, como revela João: “Era um rock progressivo que a gente já fazia, com influência de bandas como Yes, Gênesis, Jethro Tull, a brasileira O Terço, além de uma ligação muito forte com a música do Clube da Esquina e do tropicalismo”. (Entrevista com João do Crato, em 06/03/2018). João do Crato, que vivenciou a cena transgressora, levando ao pé da letra o desbunde da época, também recorda o tempo de vivência com seus contemporâneos:

A casa da Barra do Ceará era do artista plástico Giovani Sampaio. O Batista Sena morava lá também. Eu morei com eles. Era frequentada por toda a vanguarda dessa época. Pintava todo mundo, pessoal do teatro, da dança, os músicos. Os meninos todos. Pintavam Siegbert, Lúcio, Carlinhos de Moraes, Cacilda Vilela, Cabeto, Tica Fernandes. O pessoal que fazia a revolução das artes em Fortaleza. E era uma comunidade de pescadores remanescente de índios Tapebas da beira do Rio Ceará. Tinha que atravessar de barco para o outro lado. A casa era mesmo um laboratório de experimentos, e vinham poetas. As pessoas vinham, se hospedavam, passavam um mês, dois, três meses. Era um local de passagem das pessoas, porque era um lugar

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lindo. Tinha ainda um manguezal intacto. O Rio Ceará lindo. A praia não tinha índices de poluição. Um lugar maravilhoso. Era um paraíso ecológico. (Entrevista em 06/03/2018).

Em 1977 aconteceu a performance que reuniu integrantes das bandas Perfume Azul e Chá de Flor no Náutico Atlético Cearense, clube tradicional da cidade. O dia 29 de abril marcou a abertura da primeira exposição de Luiz Hermano, América Latina Lata de Sardinha, sob curadoria e apresentação de Nilo de Brito Firmeza, o Estrigas (1919-2014), personalidade das mais importantes na história das artes visuais do Ceará. Conheci Estrigas a convite de Siegbert Franklin, que me levou ao seu sítio na região do Mondubim, sudoeste de Fortaleza, nesse mesmo ano de 1977. A partir de então, ele passou a acompanhar os passos da turma do rock, pela qual revelava simpatia. Por transitar com desenvoltura no movimento das artes na cidade, Siegbert frequentemente nos apresentava aos artistas, nos levando aos ateliês, como nas ocasiões em que conheci Roberto Galvão e Mário Barata (1915-1983). Luiz Hermano havia passado uma temporada viajando pela América do Sul e lhe soprou a ideia de chamar Lúcio Ricardo, que lhe era muito próximo, para cantar (entrevista em 29/05/2018). Nesse evento, Ronald Carvalho, integrante da Chá de Flor, foi convidado a também fazer parte do Perfume Azul, permanecendo até o fim das atividades do grupo, no começo dos anos 80, após incursionar pela experiência fonográfica no Rio, nas gravações de duas faixas para o disco Massafeira (1979). Anos depois, Ronald assinaria várias parcerias com Siegbert Franklin, como Pivetes e Sem Destino, registradas na voz de Siegbert em gravações independentes na cidade de São Paulo. O show do Náutico, no vernissage de Hermano e performance do Perfume Azul com Chá de Flor, revela-se emblemático, uma noite em que jovens artistas da cena underground se encontram e moldam novos caminhos. Ronald comenta: “Aceitei de imediato o convite do Lúcio e continuei a tocar com vários músicos da cidade”. (Entrevista em 08/02/2018). Para João do Crato, aquele “foi o primeiro momento de se pensar na Chá de Flor como uma banda de verdade”. (Entrevista em 06/03/2018). Ele recorda:

A gente vivia na ebulição de Fortaleza, na Praça do Ferreira, no Centro. Foi um movimento muito significativo porque a gente, apesar de ter pouco tempo de duração, conseguiu juntar um naipe de músicos muito importantes da cena. A gente vivia numa coisa de movimento cultural pró-rock and roll. Também participamos do lançamento do disco da Massafeira. Mas a gente não foi para as gravações do disco Massafeira. Fazíamos uma música marginal, fora do contexto do Pessoal do Ceará. Era uma música que as pessoas não assimilavam muito bem. O Chá de Flor teve

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essa contribuição muito legal dentro da história do rock cearense nos anos 70. Uma época incrível com Lúcio Ricardo, Mona Gadelha, junto com Walter Leão, Siegbert Franklin...tinha o pessoal da 13 de Maio, o Gordo (Fernando) que já fazia também um rock progressivo, as meninas do grupo Artimanhas52 e você, com seu trabalho maravilhoso já na época. Lembro dos seus shows no Colégio Cearense, com as fãs delirando. (Entrevista em 06/03/2018).

João descreve esse tempo transgressor como uma vida de “fumar maconha e fugir da polícia”. Era uma perseguição constante, com os malucos, os freakers, – assim identificados na terminologia da época, – sendo revistados e levados para a delegacia, fato já mencionado por Lúcio Ricardo.

Figura 7 – Banda Chá de Flor: da esquerda para a direita, Heriberto Porto, Ronald Carvalho, “Cigano”, Batista Sena, Marco Aurélio, João do Crato e “Chupeta”.

Arquivo de Ronald Carvalho. Foto de autor desconhecido [ca.1979].

52 Banda criada pela jornalista Nina Freitas.

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A banda Chá de Flor participou do Festival da Tabuba, inscreveu músicas nos Festivais da Credimus, empresa patrocinadora já citada, e se apresentou também em outro local de referência para nossa atividade musical em Fortaleza, o Teatro São José. No velho São José53, a Chá de Flor montou o show Sonho dos Cupidos. João relata, de forma extensa e detalhista, como se dava a produção nos anos 70, a vivência de um desbunde tipicamente cearense, que não renunciava ao ritual de ver o sol se pôr, revelando também os desdobramentos da cena de rock, que a partir da virada dos anos 70 para 80, iria incorporar as influências do punk:

Não temos gravações da época. Naqueles idos tempos, não se tinha condições técnicas nem financeiras para registro. Estava começando a surgir muito fortemente o movimento do punk rock. E tinha os clubes da periferia de Fortaleza – o Apache, do bairro Jardim Iracema, o Kelps no Antonio Bezerra, um clube no Bairro Olavo Bilac. Toda uma galera que já fazia uma tentativa de fazer esse rock mais punk. Era uma galera de periferia que não tinha visibilidade na cidade. Mas como eu morava na periferia, na Barra do Ceará, que você lembra até daquela história do ensaio, quando vocês foram ensaiar no quintal da casa, perto de uma vacaria. E foi uma loucura, vocês cantando e o pessoal subindo nos muros para ver vocês cantando. Foi muito interessante. Esse movimento das periferias do punk rock foi uma coisa muito legal e paralelo ao movimento do rock que se concentrava mais na Aldeota, mas nas periferias, principalmente no Clube Apache, foi uma revolução. Tinha em Antonio Bezerra também. Clubes suburbanos, periféricos, onde uma galera de faixa etária um pouco mais nova do que a gente, que já tínhamos 20 e poucos anos e eles com 16 anos, veio fazendo um alardeamento do movimento punk por causa dos Sex Pistols, dos Ramones, The Clash. Tudo isso foi muito interessante nos anos 70, que é uma coisa que merece ser citada. Foi instigante para que essa vanguarda e essa revolução que considero que Fortaleza, nessa época, tinha uma identidade bem mais fortalecida porque havia também o desfile dos maracatus na Avenida Duque de Caxias, que era incrível, com os maracatus todos remanescentes de terreiros de umbanda que faziam seus despachos em plena avenida. As festas de Yemanjá na Praia do Futuro. Era desbundante, porque ali, nesse tempo, só havia dunas. Fortaleza se acabava no Mucuripe e depois eram dunas, dunas, dunas. A Praia do Futuro lindamente com dunas fantásticas gigantescas. As dunas da Barra do Ceará. O pôr-do-sol na Barra do Ceará, tão famoso, de cima daquelas dunas. Tudo isso foi muito importante como matéria de inspiração para esses artistas da época, os poetas. Já havia uma boemia incrível que circundava pela Beira-Mar e Praia de Iracema. Tantas pessoas incríveis dessa época. Uma série de coisas interessantes. Foram revolucionários. (Entrevista

53 Reinaugurado em 2018.

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em 04/03/2018).

Figura 8 – Cartaz da exposição de Luiz Hermano no Náutico, em 1977.

Fonte: Arquivo Luiz Hermano (1977)

4.1 Já é outra viagem

Retorno ao texto de Sheyla Diniz, Desbundados & Marginais: MPB e Contracultura

69 nos “Anos de Chumbo”(1969-1974)54, que empreende um esforço com base em estudos de vários autores – Marcos Napolitano, Santuza Cambraia Naves, José Roberto Zan, Celso Favaretto e Frederico Coelho, entre outros – para elucidar o conflito poético-ideológico que suscitou polêmica na imprensa e muitas discussões em espaços públicos:

Artistas de quaisquer “segmentos” – “engajados”, “massificados” e/ou afinados com o que se convencionou a denominar de “desbunde/curtição”, termo de implicações estético-formais, mas, sobretudo, político-ideológicas, e cuja carga semântica negativa perdurou até o final da década – certamente se viram, nalgum momento, impotentes diante da repressão, censura e dos imperativos do mercado. (DINIZ, 2017, p.7)

O tema engajados e alienados era recorrente em discussões insufladas, principalmente nos bares da cidade e no âmbito da universidade, onde muitas vezes, no Centro de Humanidades da UFC, na Faculdade de Comunicação, entre 1981 e 1984, tive que explicar minha afinidade com a música de Bob Dylan (1941) e Janis Joplin, numa quase solitária posição de defesa da música como valor universal e sem fronteiras. Eu havia entrado no curso de Comunicação Social (1981) depois da experiência na Massafeira, e assim como os amigos Lúcio Ricardo, Siegbert Franklin e Ronald Carvalho, iniciava um momento de deslocamento da cena, após o choque inicial de não obter a repercussão que sonhávamos com o disco, produto lançado pela indústria sem o aparato eficaz de campanhas de divulgação. Apesar de ouvir e apreciar a grandeza da obra de Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro nas primeiras horas do rádio da manhã de minha infância, e me encantar com as narrativas de apresentações deles vistas e contadas por minha mãe, Rita Alexandre dos Santos (1929), paraibana de Cajazeiras, que veio jovem para Fortaleza e na cidade se estabeleceu como funcionária pública, os versos em inglês do rock dos anos 1960, traduzidos em revistas especializadas55, com seu apelo de contestação e revisão de valores, geravam maior interesse para mim e para os criadores do Perfume Azul – os jovens do Centro que ouviam os versos secos das narrativas urbanas do cantor e guitarrista nova-iorquino Lou Reed (1942-2013) e Joni Mitchell, compositora canadense. As melodias sofisticadas e incomuns de Mitchell, assim como o modo também peculiar de “contar” histórias em canções, narrativas com personagens, seriam uma referência em ensaios e sessões de composição que eu praticava

54 Tese de doutorado defendida na Universidade de Campinas, SP, orientada por Marcelo Ridenti. 2017. 55 A Revista Rock, A História e a Glória circulou nos anos 70. Editada por críticos que eram referência da especialização em música pop no Brasil, como Ana Maria Bahiana, Tarik de Souza, Okky de Souza e Ezequiel Neves (1935-2010), entre outros, trazia a cada número um dossiê dos nomes sedimentados do rock – Rolling Stones, Beatles e Led Zeppelin e letras traduzidas.

70 com Siegbert em minha casa. A afinidade com a obra da compositora, para Siegbert, extrapolava a música. Ele era grande admirador das capas de long plays assinadas por ela, artista visual como ele. De personalidade inquieta, curiosa, Siegbert já começava a se interessar pelo jazz e sua influência na música pop. Mesmo quando já se prenunciavam os anos 80 e se faziam distantes os acirramentos e polêmicas dos festivais de música popular, com o ápice em 1968 na performance sob vaias da plateia – composta predominantemente por universitários – para a canção É Proibido Proibir, de Caetano Veloso, que ensejou um discurso contundente do compositor, tendo ao fundo distorções de guitarra, em Fortaleza ainda estava em voga o discurso raízes versus imperialismo americano, contribuindo para as zonas de tensão na disputa por um mirrado espaço público de música autoral. Como se estivéssemos vivendo ainda um panorama esboçado por Heloísa Buarque de Hollanda e Marcos Gonçalves (1982, p.18) em seu ensaio sobre aquele período:

Em meados da década, o panorama crítico e criativo da música popular era dominado pela presença de uma forte corrente nacionalista e engajada que, com o declínio da Bossa-Nova e a subida ao poder das forças conservadoras, encontrava um terreno propício para se desenvolver especialmente entre o público estudantil, avesso às formas culturais que pudessem ser relacionadas a uma indesejável “invasão cultural imperialista”. (HOLLANDA, GONÇALVES, 1982)

A “viagem do desbunde e da contracultura” (HOLLANDA, GONÇALVES, 1982, p.23), esse lado do porto no qual preferimos embarcar, gerou, segundo o ensaio citado, “uma espécie de desconfiança mútua” que separava o “engajamento propriamente político/revolucionário e a disposição anárquica e rebelde que iria informar a experiência de toda uma área da juventude brasileira na viagem do desbunde e da contracultura”. Dentre nós três, Lucio Ricardo foi o que mais vivenciou a proposta anti-establishment literalmente, tomando para si a filosofia hippie, como já analisado anteriormente, encantado com uma trupe de andarilhos que aportou em Fortaleza na época. “Eu decidi ser hippie, pegar mochila e sair pelo mundo.” (Entrevista com Lúcio Ricardo em 05/01/2017). Parte de meu argumento a favor da assimilação da sonoridade forjada com bases internacionais clamava pelo estudo de Roberto Muggiati, Rock, O Grito e o Mito56, que li aos 14 anos, em 1974, em que o jornalista esquematiza a linha evolutiva do rock – a partir do grito, numa sequência na qual se alinham o blues, rhythm and blues, rock and roll e rock:

Pois o rock nasceu de um grito, o primeiro grito do escravo negro ao pisar em sua

56 O livro tem o subtítulo A Música Pop como Forma de Comunicação e Contracultura. Petrópolis: Vozes, 1973.

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nova terra, a América. Esses berros de estranha entonação eram atividade expressiva comum entre os nativos da África Ocidental. O primeiro grito negro cortou os céus americanos como uma espécie de sonar, talvez a única maneira de fazer o reconhecimento do ambiente novo e hostil que o cercava. À medida que o escravo afundava na cultura local, o grito – representada, no plano musical, pela tradição europeia – ia se alterando, assumia novas formas. (MUGGIATI, 1973, p.8)

Os trabalhos de artistas como Jards Macalé, Sergio Sampaio (1947-1994) , Ney Matogrosso e Raul Seixas (1945-1989), incluindo o núcleo tropicalista, precursor da celeuma, formado por Caetano Veloso, Gilberto Gil, Torquato Neto (1944-1972), Tomzé e o canto de Gal Costa, além de enfrentarem preconceitos e outros dissabores, como perseguições e boicotes, ultrapassaram as barreiras temporais, e seguem influenciando as sonoridades em fins da segunda década dos anos 2000, já consolidadas pela mídia especializada – dada a sumária necessidade de tentar diferenciar o velho do novo – como “música contemporânea brasileira”. Afora o bastante referenciado eco de um pós-tropicalismo ou neotropicalismo, é notório o uso de temas, harmonias, timbres, arranjos e mesmo performance tipicamente setentistas – abordarei a adesão ao vintage e retrô ao comentar a obra do pesquisador inglês Simon Reynolds.

4.2. Do tênis Bamba e Cogumelo Atômico à curva do novo tempo

Minhas primeiras noções de contracultura obtive no citado livro de Roberto Muggiati, publicado pela Vozes, editora de administração católica, a mesma responsável pela edição no país do estudo pioneiro de Theodore Roszak57, presente que ganhei de Ricardo Augusto Rocha Pinto, líder da banda que me acompanhou no I Concerto de Rock do Ceará, ao lado de Lizoel Costa, a quem já citei no relato deste evento. Músico mato-grossense que viveu em São Paulo, ele foi guitarrista e compositor do grupo de rock satírico Língua de Trapo, um dos expoentes do período do Teatro Lira Paulistana, nos anos 80, no bairro de Pinheiros, onde se proliferou uma safra de artistas alinhados com a chamada vanguarda paulista. Quando morou em Fortaleza, Lizoel era porta-voz das últimas novidades da imprensa alternativa, mais uma forma de resistir ao cerco repressor do regime. A chamada imprensa nanica, com seus jornais mimeografados e enviados pelo correio, circulava como veículos da contracultura – matérias abordando rock, vida hippie, contestação à ditadura militar e críticas ao modelo capitalista sustentado pelas multinacionais. Dos jornais apresentados por Lizoel, que nos anos 90, numa conversa em São Paulo, contou

57 A Contracultura. São Paulo: Vozes,1972.

72 ter chamado sua atenção a minha calça Lee veludo cotelê e tênis Bamba, pouco usual nos pés femininos, eu daria início a uma longa correspondência com o jornal Cogumelo Atômico, publicado em Brusque, Santa Catarina, especialmente com a editora Inês Mafra e a artista visual Márcia Cardeal. Em 1979, ano em que acontece o projeto-evento-movimento Massafeira no Theatro José de Alencar, uma intensa mobilização de artistas jamais vista e repetida na cidade, em quatro dias de shows no palco, mostras e manifestações que ocuparam todas as dependências do teatro, a década se fechava ainda sem os ventos da abertura e a música dependia cada vez mais das engrenagens da indústria cultural. No balanço dos 70, José Miguel Wisnik afirmava em ensaio que: “Continua em vigor na música comercial-popular brasileira a convivência entre dois modos de produção diferentes”. (WISNIK, 1979, p.7). Um modo é o industrial, consolidado vertiginosamente nos anos 70, o mercado fonográfico tal como conhecemos até hoje e que passou por grande transformação com o advento da internet nos anos 90. O outro, Wisnik denomina de artesanal, “que compreende os poetas-músicos criadores de uma obra marcadamente individualizada, onde a subjetividade se expressa lírica, satírica, épica e parodicamente.” (WISNIK,1979, p.7). Chegou-se a acreditar que estávamos, a turma do rock, numa conjuntura favorável, sem a percepção de que também vivíamos sob a engrenagem de um mercado de trabalho difícil de dominar e sujeito às regras de sucesso ilusório e fugidio. Finalmente éramos aceitos como parte da cena musical da cidade, sem limitar-se ao undergound marginalizado, mas agora ao lado da geração Pessoal do Ceará e de artistas por ela influenciados, dos palcos do Theatro José de Alencar para os estúdios da gravadora CBS, no Rio. Em meio a muitas disputas por um lugar ao sol, partimos para a música independente, sem contrato com multinacional, em que podia-se respirar mais liberdade criativa, porém dentro das mesmas leis que regem a indústria – como a necessidade de investimentos em produção e divulgação, entre outras. Pouco antes do rock se transformar na salvação financeira da indústria nos anos 80, com o impulso a bandas de todo o país em maciças aparições nos programas de televisão; quando Rita Lee & o Tutti Frutti já haviam lançado o Fruto Proibido (Gravadora Som Livre), Belchior afirmava para Tarik de Souza apud Ana Maria Bahiana: “A informação rock é um dado natural, como na época o Orlando Silva tinha uma informação fox. Eu não sou do tempo da bossa nova. Sou do tempo do rock”. (Jornal do Brasil,8/8/1976). Esse momento se consolidava na segunda metade da década de 1970, quando a música do Pessoal do Ceará alcançou notoriedade nacional, afirmada no êxito dos discos dos cantores-compositores

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Ednardo, Belchior, Raimundo Fagner, Rodger Rogério e das cantoras Teti e Amelinha58. Também vindo do Ceará, o cantor e compositor Luiz Carlos Porto à frente da banda O Peso, em sua segunda formação, com os músicos Gabriel O’Meara (guitarra), Constant Papineau (piano), Carlos Scart (contrabaixo) e Carlos Graça (bateria) lançava o LP Em Busca do Tempo Perdido (gravadora Polydor,1975). A primeira formação chegou a contar com o guitarrista Julio Serra, bastante citado em matérias sobre os primórdios do rock em Fortaleza, quando proliferavam bandas que executavam músicas dos Beatles. Ele integrou uma dessas bandas, Os Belgas. Tal como Lúcio Ricardo, na sua potência de voz de acento bluesy e vocalista de rock, Porto é mais um artista cuja produção no mercado fonográfico poderia ter se ampliado. O seu primeiro contato com a cena musical carioca havia ocorrido quando ele inscreveu em parceria com o pianista e compositor Antonio Fernando Freire Valle (1952-2003), o “Gordo”, que morava na avenida 13 de maio, e veio a tocar com várias bandas da cidade, a música intitulada O Pente, no VII Festival Internacional da Canção, realizado no Rio de Janeiro. As músicas Cabeça Feita e a balada Não Fique Triste, de sua autoria, no único disco de O Peso, foram repercutidas e tocadas nessa fase do rock brasileiro, pré-ebulição mercadológica do BRock.

58 Ednardo Soares, Antonio Carlos Belchior, Rodger Rogério, Maria Amélia Colares (Amelinha), Elizeth Teti. Essa cena também incluiu Fausto Nilo, Augusto Pontes, Antonio José Soares Brandão, Cirino, Dedé Evangelista, Jorge Mello.

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5 O LOOP DO PASSADO SEMPRE PRESENTE

Não, não corra assim Não, não há motivo algum Não existe nenhum Eldorado no fim.59 Ricardo Augusto Rocha

O efeito transcendente produzido pela linguagem musical é um dos motivos pelos quais ao se ouvir uma canção, disparam-se os sentidos e acionam-se memórias. Neste trabalho, “o passado não é apenas lembrança, mas realidade inscrita no presente” (PLAZA, 2003, p.2). Ao trafegar num espaço ambivalente, não me encontro motivada apenas pelos tons da nostalgia, mas na proximidade maior com o enunciado de Julio Plaza, leitor de Benjamin, em que concebe “a ocupação com o passado” como “também ocupar-se com o presente”. Nesse trabalho, o passado foi retrocedido até quatro décadas antes de 2017, período recente da perspectiva de uma cronologia histórica, porém de razoável distância do ponto de vista de trajetórias e escolas artísticas. Aquilo que é novo torna-se rapidamente tão vulnerável às oscilações de modismos perpetrados e sumariamente desprezados pela indústria cultural, como se fosse um arquivo morto, escondido nas lacunas da relevância de nossa era midiática, afeita ao descarte e ao mesmo tempo alimentada pelo fetiche do retrô, uma apreciação do passado que influencia a contemporaneidade, concentrando-se na música e na moda. Esse fenômeno foi estudado pelo crítico inglês Simon Reynolds em sua obra Retromania, na qual demonstra que a primeira década dos anos 2000 foi dominada pelo prefixo “Re” em produtos culturais na forma de discos, filmes, shows musicais e outros – “Re” de revivals, reedições, remakes, reconstituições, retrospectivas, relançamentos. Ele elabora sua crítica com um enunciado poético: “A maré crescente do passado batendo em nossos tornozelos.” (REYNOLDS, 2011). Essas ideias encontram respaldo no pensamento de Agamben e sua concepção do contemporâneo. Ele se refere ao passado que sombreia a condição contemporânea, aquela que só é alcançada ao manter-se “fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro” (AGAMBEN, 2009, p.62). Se Reynolds aponta a onipresença do revival na indústria cultural, a máquina que sabiamente manipula nossa nostalgia, a filosofia reafirma essa condição contemporânea, como Agamben se refere à moda: Mas a temporalidade da moda tem um outro caráter que a aparenta à contemporaneidade. No gesto mesmo no qual o seu presente divide o tempo segundo um "não mais" e um "ainda não", ela institui com esses "outros tempos" -

59 Verso da canção Eldorado, de Ricardo Augusto e Luis Tiribás, 1977.

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certamente com o passado e, talvez, também com o futuro - uma relação particular. Isto é, ela pode "citar" e, desse modo reatualizar qualquer momento do passado (os anos 20, os anos 70, mas também a moda imperial ou neoclássica). Ou seja, ela pode colocar em relação aquilo que inexoravelmente dividiu, reclamar, re-evocar e revitalizar aquilo que tinha até mesmo declarado morto. (AGAMBEN, 2009, p.68).

Praticantes de uma notória avidez pela velha novidade, a mídia e o mercado musical relevam ao terreno da invisibilidade artistas em plena maturidade artística60. Ao mesmo tempo, os primeiros anos do século XXI assistem o retorno de bens de consumo rotulados como vintage, despertando também – e essencialmente – o interesse de um público mais jovem (dos 16 aos 30 anos), que demonstra nostalgia por um tempo no qual não viveu, e que passa a consumir o antigo toca-discos, a vitrolinha ou sua releitura, que hoje incorpora mais recursos de tecnologia com a retomada da fabricação de long plays, e até da fita cassete, bem como toda uma série de itens populares em décadas anteriores – de tênis Bamba a relógio digital da marca Casio. Essa ressignificação de objetos do passado problematizada por Reynolds também dialoga com o conceito de pós-produção de Bourriaud (2006, p.14), quando este afirma que a arte nos anos 2000, no exercício da era internet, exerce uma função de organização daquilo que já foi criado e produzido. E o seu exemplo na música é o DJ, o disc-jockey, que ao executar sua função manipulando LPs num toca-discos, está acionando a história:

A prática do DJ, a atividade do internauta, a atuação dos artistas da pós-produção supõe uma mesma figura do saber, que se caracteriza pela invenção de itinerários por entre a cultura. Os três são semionautas que produzem, antes de mais nada, percursos originais entre os signos...(...) O DJ aciona a história da música, copiando/colando circuitos sonoros, relacionando produtos gravados. (BOURRIAUD, 2003, p. 14 e 15).

Numa relação dialógica com o recorte do passado delimitado pela década de 1970, minha proposição é tentar recuperar o surgimento e atuação do Perfume Azul e a micro cena do rock nascente na cidade nesse período, com os artistas que transitavam em torno do grupo, incluindo outras linguagens, além da música, como artes visuais, cinema e literatura, em interrelações que deixaram uma marca ousada e pioneira de transgressão em Fortaleza. Sem os riscos inerentes de um mergulho no passado que possa evocar nostalgia, nem arremedo do modismo vintage ou retrô. Importa olhar o escuro, proposto por Agamben. (2009, p.64). Residentes numa cidade algumas vezes adepta de mimetizações de outras metrópoles

60 Cito os exemplos - entre muitos - dos compositores Sylvia Patrícia (BA), Edvaldo Santana (SP), Luiz Gayotto (SC), Fernando Chuí (SP), artistas “revelados” nos anos 90 no contexto de cobertura musical da imprensa no Rio de Janeiro e São Paulo, contemplados pela crítica especializada com matérias jornalísticas, mas sem acesso ao grande público. Faço referência também ao disco do músico e compositor Juliano Holanda, que traz no próprio título uma auto-ironia: A arte de ser invisível, 2013, selo Núcleo Contemporâneo.

76 nos seus aspectos socioculturais, e geralmente omissa e indiferente à valorização da produção de seus artistas, nos encontrávamos muito distante – geograficamente – do olho do furacão dos acontecimentos dos anos 1960, os sixties, como usualmente a mídia americana se refere a essa era e sua efervescência, tempo que viu nascer as composições de John Lennon e Paul McCartney popularizadas pelos Beatles. Na década de 60, Lúcio Ricardo, o mais velho entre nós, era a criança que se encantava com a jovem guarda, cuja lembrança das canções, muitas das quais melodias dos Beatles com letras em português, ele transforma em revival. Em seus shows solo, ele insere músicas de Roberto Carlos e Erasmo Carlos, atualizando e revitalizando o repertório em surpreendentes arranjos que incorporam um canto jazzístico à Ray Charles. Na contemporaneidade, Lúcio volta ao passado, mas num movimento de loop que evoca sua infância, permanecendo a expectativa de vê-lo retomar o repertório oculto, o lado escuro do Perfume Azul.

5.1. Do rádio à contracultura O ambiente familiar exerceu grande influência sobre o canto de Lucio Ricardo. Um lar dividido entre dois cantores – a mãe, Jane Moura, e seu padrasto, Gilberto Silva, ambos com atuação assídua nos programas de auditório do rádio cearense nos anos 1960. Admirador da arte de sua família, que favorecia a aproximação de compositores conhecidos e prestigiados na época, como Luiz Assunção61 (1902 – 1987), no entanto, o artista assumiu uma posição oposta ao canto estabelecido, que era a voz empostada do intérprete romântico, na indumentária masculina habitual do terno e gravata revestindo a imagem de galã e ídolo das fãs que lotavam os auditórios das principais emissoras de rádio – Ceará Rádio Clube e Rádio Iracema, em Fortaleza. Aos dez anos de idade, Lúcio Ricardo foi levado por sua mãe para cantar na Rádio Uirapurú a música Cadeira Vazia, escrita por Lupicínio Rodrigues (1914-1974) e Alcides Gonçalves (1908-1987), lançada em 1950. Uma canção densa, tipicamente chamada dor-de- cotovelo, como as músicas da lavra de Lupicínio, interpretada pelas vozes canônicas de Nelson Gonçalves e Elis Regina. Lúcio recupera essa memória bastante emocionado. Ele lembra da influência de Gilberto Silva, o padrasto que considerava seu pai, que descreve como “um homem lindo de porte elegante, com 1m83 de altura, alto para os padrões de

61 Luiz Assunção nasceu em São Luiz, Maranhão, mas em 1928 mudou-se para Fortaleza, notabilizando-se como músico, pianista com desenvoltura boêmia e compositor de canções que se tornaram clássicos do cancioneiro cearense, como Adeus, Praia de Iracema e Siá Mariquinha.

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Fortaleza e um exímio cantor” (entrevista com Lúcio Ricardo em 26/11/ 2017). Segundo Lúcio Ricardo, seu padrasto foi o primeiro a gravar uma música de Luiz Assunção em disco de acetato, infelizmente inutilizado nos arquivos da Ceará Rádio Clube. Lúcio chegou a fazer o exame de admissão62, mas abandonou a ideia, mudando-se para Cajazeiras, PB, para a casa de um tio radialista, Vilmar Lima, aos 12 anos. Essa fase pré- Perfume Azul viu surgir na cidade do interior o grupo Os Rebeldes, com Lúcio à frente. O repertório eram os compactos lançados pelos cantores e grupos da Jovem Guarda. Ele rememora a transição da música que ouvia na infância para as novas influências da juventude:

Na nossa casa ia muita gente do rádio, por conta do Gilberto. Mamãe cantava na Rádio Iracema. Muitos músicos moravam no Centro, o Evaldo Gouveia, depois o Fausto Nilo. Aquela região do Centro pulsava muito. Passei minha infância andando entre ali e o bairro do Benfica. Então, eu já tinha aquele background da música brasileira, mas a minha geração negou um pouco isso todinha. Negou isso, claro, com toda aquela evolução do rock, a jovem guarda, o tropicalismo, o surgimento de Jimi Hendrix e Janis Joplin. (Lúcio Ricardo, 2009, entrevista ao Diário do Nordeste em 05/02/2009).

Atraído pela contracultura, Lúcio iria absorver a urgência das mudanças delineadas na década de 60. Não seria o cantor de rádio, prestigiado pelas famílias nas plateias dos programas de auditório, mas o hippie de mochila, andarilho, contestador, iconoclasta. E como predestinado, iria seguir a música por profissão, mesmo que sua mãe recomendasse o contrário, expondo as mazelas e dificuldades inerentes ao campo musical no país – como a inconstância de trabalhos, contratos rompidos, manipulações comerciais, ambiente competitivo. Nunca foi fácil ser cantor ou cantora no Brasil, quanto menos um astro de rock and roll, estigmatizado pelos vizinhos por seus trajes pouco convencionais; perseguido pela polícia em sucessivas abordagens em busca de drogas; discriminado pelos engajados, que nutriam certo desprezo pelos adeptos do desbunde e pela adoção da contracultura importada diretamente do modelo americano. Esse era um ambiente que frequentemente tivemos que enfrentar. Sem aceitar esse epíteto de americanizados, nos identificávamos com as ideias contraculturais como sentimentos universais, valores que questionam a sociedade de consumo e seus modelos limitadores. “À medida que um grupo tenta impor suas regras a outros na sociedade, somos apresentados a uma segunda questão: quem, de fato, obriga outros a aceitar suas regras e quais são as causas de seu sucesso? Esta é, claro, uma questão de poder político e econômico” (BECKER, 2009, p.29). Relembro Becker e seu conceito de outsider, um pressuposto da

62 O exame de admissão nas escolas, instituído em 1931 e extinto em 1971.

78 condição contracultural, assim como Goffman e sua visão abrangente, que recorre à filosofia: No nível individual, os contraculturalistas demonstram mutabilidade: um processo fluido, camaleônico de perpétua transformação na identidade pessoal, nos interesses e nos objetivos almejados. Os contraculturalistas realizam apaixonadamente aquilo que Nietzsche chamou de “transposição de valores” – uma filosofia e um estilo de vida que implica uma contínua transformação, com sistemas de valores, percepções e crenças mutáveis, como um objetivo em si. (GOFFMAN, 2007, p.51)

As traduções dos autores da geração beat chegaram tardiamente no Brasil. Editoras como a Brasiliense, de São Paulo, e L&pm, de Porto Alegre, publicaram obras de Jack Kerouac e Allen Ginsberg nos anos 1980. Um livro fundamental para meu entendimento e identificação com a contracultura, Alma Beat, foi organizado pelo poeta e tradutor Claudio Willer, reunindo ensaios do próprio Willer, Antonio Bivar e Eduardo Bueno, lançado em 1984 pela L&pm. Willer também traduziu a obra Howl, Uivo, escrita por Allen Ginsberg e publicado em 1956 nos Estados Unidos, chegando a ser apreendido pela polícia em São Francisco, acusado de obra obscena. A tradução de Willer foi editada também pela L&pm, 1984. A narrativa das letras da turma do rock mantinha constante diálogo com os compositores contemporâneos, como Ricardo Augusto Rocha Pinto, Caíke Valente, Fernando Antonio Valle (o “Gordo”), Luiz Antonio Alencar, Kazane (Vinicius Aurélio Borges Teixeira) e Batista Sena, entre outros; com a literatura de Carlos Emílio Corrêa Lima, Gilmar de Carvalho, Nirton Venâncio; o teatro de Geraldo Markan e Marcelo Costa. Essa convivência estendida após o advento do projeto Massafeira, também se estreitou com autores da mesma geração, como Caio Silvio Braz, Francisco Casaverde, Graco Braz, Calé Alencar, entre outros. colaborações em trabalhos de Chico Pio, Alano de Freitas e Stelio Valle (1950-2008). A cena paralela nos anos 70, equivalente hoje ao que se chama de cena alternativa, aproximou artistas com ideias e referências semelhantes, que ocupavam com assiduidade as programações de teatros em Fortaleza – os que mais recebiam shows de novos nomes eram o Teatro de Arena da Credimus63, no bairro da Aldeota; o Teatro do Ibeu e Teatro da Emcetur, ambos no Centro. Produções de espetáculos montados com esforço financeiro dos próprios artistas, enfrentando dificuldades com a precariedade de equipamentos de som. Para analisar esse ambiente que começava a movimentar-se no contrafluxo do que se esperava fosse

63 O teatro fez parte de um centro cultural onde também havia galeria e cineclube, de propriedade de uma empresa do ramo de finanças, cujo principal produto era a caderneta de poupança Credimus, marca que aparecia como patrocinadora de atividades artísticas. O teatro situava-se na Rua Joaquim Nabuco com Avenida Santos Dumont, onde hoje funciona um supermercado.

79 constituir a nova música cearense, realizei entrevistas com artistas contemporâneos de Lúcio Ricardo e Siegbert Franklin, os quais acompanharam apresentações da trajetória fugaz do Perfume Azul.

Figura 9 – Cartaz do show Cidade Blues Rock Fatal

Fonte: Arquivo pessoal Mona Gadelha. Colagem de Bené Fonteles [ca.1980]

O compositor Ricardo Augusto Rocha Pinto, já citado como participante do I Concerto de Rock, foi um dos artistas mais atuantes na nova cena que se consolidava em Fortaleza, com formação intelectual, domínio da língua inglesa, de origem classe média, residente no bairro da Aldeota, na Avenida Santos Dumont. Escreveu rocks e blues interpretados por Lúcio

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Ricardo64 nos anos 70, e esteve em festivais em que o Perfume Azul se apresentou, como o II Festival da Costa do Sol, onde tocou com seu grupo, o Santo Graal. Ricardo, que seguiu a profissão de médico, montou shows com repertório de suas canções em temporadas no Teatro do Ibeu (Instituto Brasil-Estados Unidos) no centro da cidade e lançou, de forma independente e pioneira em Fortaleza, dois LPs com suas composições – Fotografia (1988) e Vidro e Aço (1991), este com a cantora Aparecida Silvino interpretando suas obras. Em 1977 ele estreou no IBEU o show Eldorado, com Lizoel Costa. “Foi o primeiro show de rock autoral montado em Fortaleza”. (Entrevista com Ricardo Augusto em 06/04/2017). Eu participei cantando uma única canção, Cavaleiro, de Ricardo Augusto e Arnaldo Vidal, acompanhada somente pelo pianista Antonio José Forte. Além de sua condição de artista, Ricardo Augusto foi o jovem observador que acompanhou os primórdios dos momentos transformadores nas décadas de 60 e 70 em Fortaleza e no Rio, cidade que visitava constantemente nos períodos de férias estudantis. Ele relembra a primeira vez em que ouviu uma canção dos Beatles, na Loja Vox, situada na Praça do Ferreira, tradicional casa de discos, local de referência para os apreciadores das novidades em vinil na cidade: “As pessoas se amontoavam ao redor da vitrola para ouvir uma música dos Beatles. Foi impactante. Aquilo era diferente e muito bom” (entrevista em 06/04/2017). O compacto simples trazia as músicas She Loves You e I Wanna Hold you Hand. A primeira com o refrão que também daria outro nome ao novo estilo que aportava no Brasil, o iê iê iê. O surgimento dos Beatles, como já foi mencionado, colaborou na disseminação de resultados triunfantes da indústria cultural, o que se passou a chamar de hits, músicas tocadas repetidas vezes nos meios de comunicação – rádio e TV, até serem incorporadas pelo público ouvinte, habilitando-o a decorar seus versos e repeti-los euforicamente nos shows dos artistas.

64 As gravações não foram lançadas em disco. Constituem acervo do compositor em fita cassete digitalizada: Ventania (parceria com Nirton Venâncio) e Canção Popular (parceria com Luiz Tiribás.)

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6 CONCLUSÃO – RESISTÊNCIA

Ruas da Aldeota Noites quentes sem fim Para onde foram todos? Baby, não se esqueça de mim Mona Gadelha

Analisar a ruptura também perpassa a tentativa de compreender certos mecanismos que afirmam o reconhecimento da criação e produção musical no âmbito da indústria cultural, ao determinar o que é o sucesso e o que pode legitimar a perenidade de trabalhos artísticos, outorgando-lhes a chama luminosa da glória; investigar o que passa ao largo da história dos vencedores (BENJAMIN, 1996, p.225) e o lugar, muitas vezes oculto, dos desbravadores na memória de uma cronologia, ainda que estes tenham desempenhado papel significativo para o desenvolvimento e surgimento de projetos posteriores. A vanguarda de hoje sempre precisará da retaguarda de quem começou o movimento antes e experimentou o escárnio inicial provocado pelo novo, o diferente. Os mecanismos de fabricação do sucesso seguem um fluxo determinado pela indústria do entretenimento, a partir do ato de criação da obra musical, até os caminhos que a levam à apreciação e aceitação do público – um movimento de trabalho que começa num estúdio equipado com recursos técnicos e instrumentos para registros e ensaios; preparação de repertório e arranjos, experimentações, produção e distribuição do produto final, e lançamentos no mercado. O ciclo do processo criativo da música resultará também em apresentações no formato de shows e espetáculos musicais, gravações, edições para licenciar obras em outras linguagens artísticas, peças audiovisuais – vídeos para veiculação em redes sociais e canais da internet. É o que os artistas chamam de batalha – costuma-se usar esse termo de guerra – por um lugar ao sol do palco e da mídia. A cultura do rock trouxe também uma guinada tecnológica para o campo da indústria cultural. Dos sons eletrificados e amplificados de guitarras que alcançaram popularidade nos anos 60, pós-pioneirismo de Chuck Berry e de bluesmen como B.B. King na década de 50; aos sintetizadores, computadores e toda a parafernália de equipamentos advindos dessa evolução, a linguagem da música foi se tornando cada vez mais utilitária e dependente das máquinas. Os primórdios do rock delinearam um esboço do que seria desenvolvido no percurso de transformação até chegar a era do DJ comandando grandes multidões, descrito por Bourriaud (2004) como aquele que reprocessa sons, com impacto revolucionário no mercado

82 de entretenimento. "Qualquer discussão sobre o papel da tecnologia na música popular deve começar com a seguinte premissa: sem a tecnologia eletrônica, a música popular no século XXI é impensável."(THÉBEGE, 2001, pág.3). De fato, a evolução das máquinas – dos sintetizadores dos anos 60 ao uso de software na composição e edição de música eletrônica dos anos 80 – caminha célere protagonizando e reorganizando os modos de criação e produção, corroborando o corolário da pós-produção (BOURRIAD, 2004). O acesso a instrumentos de marcas de qualidade reconhecida no mundo da música – como Fender, Gibson, Roland, entre outras – era um sonho inatingível para a turma do rock em Fortaleza. Havia precariedade nas montagens de sonorização, nos locais para ensaios improvisados nas garagens de amigos – geralmente aquele que dispusesse de uma bateria ou piano. Assim como esbarrava-se na dificuldade para encontrar e adquirir equipamentos para os ensaios e shows, sem uma atividade cultural consolidada que fizesse girar o comércio de instrumentos, com abertura de lojas e estúdios. A informação musical também era rara no quadrilátero do Centro, onde nós morávamos. Apesar dessa condição, foi esse o território das primeiras manifestações transgressoras da música cearense.

Figura 10 – Lúcio Ricardo cantando no II Festival da Costa do Sol, Praia da Tabuba.

Fonte: Foto de Ricardo Augusto (1977).

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Figura 11 – Cartaz do show Emoções Perigosas. Da esquerda para a direita: Luizinho Duarte, Ricardo Bacelar, Mona Gadelha, Ronald Carvalho e Marco Aurélio (substituído no show por Edmundo Vitoriano Junior).

Fonte: Arte de Apolinário Libório, o “Boy” (Scala Publicidade). Foto de Gentil Barreira (1984).

Ser jovem em Fortaleza na década de 70 não era simples e fácil, e muito mais complicado para quem se insurgia contra os valores vigentes, cantando rock and roll e blues, e depois alinhavando tudo com os alfinetes do punk, a onda inglesa que seduzia Siegbert. Lúcio Ricardo se sentia inclusive perseguido e lembra dos momentos de desafio para seguir adiante com sua música deslocada, questionadora dos valores da família brasileira. A barra era pesada:

Minha mãe dizia – meu filho, fazer música é muito bonito, mas é muito difícil. É mesmo. A gente era muito perseguido, chamavam a polícia para paralisar nossos ensaios. Nos chamavam de viados. Havia um repúdio à música que fazíamos. Nossa posição era agressiva em relação à música mais purista. Só fomos convidados para participar da Massafeira, em 1979, graças à visão de Augusto Pontes, que queria incluir todos os artistas, de todas as vertentes musicais. (Entrevista com Lúcio Ricardo em 05/01/2017).

Lúcio Ricardo, Siegbert Franklin e eu conduzimos a transgressão com nossa música,

84 munidos pelo fogo do desejo de não seguir uma linha reta, mas prestando atenção nos desvios, rompendo a fronteira, sobretudo o sonho da mudança, em que almejávamos um mundo mais livre e a possibilidade de experimentar uma criação artística sem limites, em diálogo com outras linguagens. O método que seguimos, guiados pelas antenas do novo tempo, ao assimilar e expandir nas referências de nosso trabalho as influências estrangeiras, estabelecendo uma ruptura que nos foi cara, foi muitas vezes intuitivo, traçado pelo destino que nos aproximou em um mesmo bairro. Fomos transgressores e outsiders. As convergências de informação que resultaram na criação do Perfume Azul seguiram o caminho aberto desta proposta libertária, e a incorporação do rock and roll nas vertentes folk, glam e punk e raízes do blues. E todos os desdobramentos que se seguiram a partir do novo olhar trazido pelo modo de escrever letras de Bob Dylan, Lou Reed e o Velvet Underground, e Patti Smith, a poeta punk, leitora de Rimbaud. Em 1977, o ano em que o punk subvertia as regras de bom comportamento no mundo, Lúcio e Siegbert ironizavam a padronização da sociedade nacional com seu ideal conservador, seguidor das regras do mercado, naquela altura impostas pelo regime militar em seus anos de chumbo e o período do pós-milagre brasileiro, na Família Silva, tantas vezes cantada nos shows performáticos da cena da cidade, mas não registrada em disco. A letra dialoga com Panis et Circense, 1967, de Caetano Veloso e Gilberto Gil; com Hora do Almoço, 1971, de Belchior; e antecipava uma das temáticas dos Titãs nos anos 80, como Família. Os Silva, personagens da letra de Lúcio Ricardo, são a família padrão dos anos 70, formada por imigrantes rumo à cidade, num fluxo do interior para a capital e a possibilidade de usufruir os bens culturais e materiais – como o automóvel – sombreados pela repressão do regime, em que a paixão pelo futebol é o escape. A “tarde sem sal” também remete ao discurso de Ouro de Tolo, citada no antes neste trabalho. Uma letra curta, mas com frases ambíguas que ampliam o alcance de significados, como “as garras afiadas” e o “berro”, a arma, demonstrando um final da narrativa, em que o sonho do da cidade grande é desfeito de forma trágica, com o rumo perdido e a fuga da escola. O refrão que se refere à jovem guarda e ao rock, sutilmente mesclando a ingenuidade e a transgressão na mesma frase, também sugere que apesar da proximidade musical, na simplicidade de construção de harmonias, os estilos guardam sua distância do ponto de vista ideológico.

A família Silva tem lutado pra viver Desde que saiu do interior para vencer Uma partida de futebol Numa tarde sem sal Para uma torcida internacional

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A família Silva Só precisa entender O iê-iê-iê e o rock and roll

A família Silva Tem lutado pra viver Garras afiadas Berro quente pra valer Sem falar dos filhos Que fugiram da escola E outros que perderam-se Correndo atrás da bola A família Silva Só precisa entender O iê-iê-iê e o rock and roll (ANDRADE, 1977)

Do ponto de vista dos meios de comunicação de massa, a turma do rock, da qual eu participei, juntamente com Lúcio Ricardo e Siegbert Franklin, fundadores do grupo Perfume Azul, não está no panteão dos vencedores. Não chegamos a nos tornar astros do hit parade. Não obtivemos grandes somas de dinheiro com direitos autorais de canções e cachês em espetáculos milionários para multidões fiéis. Seguimos cada qual a sua trajetória. O nosso lugar é o da resistência. O Perfume não lançou disco com trabalho autoral, exceto duas músicas incluídas no álbum duplo Massafeira (Sony,1980), dividido entre outras 22 faixas do long play (LP) – O álbum foi relançado em formato de CD duplo (compact disc) em 2010, encartado em um livro comemorativo dos trinta anos do acontecimento, organizado pelo cantor e compositor Ednardo, com ensaios de Gilmar de Carvalho, Rosenberg Cariry, Augusto Pontes, Antonio José Brandão, Fausto Nilo65 e depoimentos de alguns dos participantes do evento ocorrido em 1979 no Theatro José de Alencar. Lúcio Ricardo e Siegbert Franklin lançaram individualmente discos com outras formações – Siegbert como intérprete, guitarrista e compositor em um grupo do interior paulistano, na cidade de Jaboticabal, região metropolitana de Ribeirão Preto, o Cremlin; Lúcio Ricardo, um disco ao vivo, gravado no evento Feira da Música do Ceará, lançado em formato de CD em 2002. O cantor que não se tornou produto na prateleira da indústria cultural no Brasil participou de diversas compilações interpretando obras de outros autores e, ao longo de uma

65 Livro Massafeira 30 Anos - Som, Imagem, Movimento, Gente, organizado por Ednardo. Textos de Mona Gadelha, Calé Alencar, Ruy Vasconcelos, Eleuda de Carvalho, Rodger Rogério, Pedro Rogério, Artur Bruno, Nelson Augusto, Graco Silvio, Michel Platini Fernandes e Vanderly Campos de Oliveira. Depoimentos de Rogério Soares, Régis Soares, Teti, Alano de Freitas, Siegbert Franklin, Lúcio Ricardo, Oswald Barroso, Gentil Barreira e Wagner Castro. Ilustrações de Antonio José Brandão, Fausto Nilo e Ednardo. Fotografia de Gentil Barreira.

86 trajetória musical de mais de quarenta anos completada em 2017, entrecortada por experiências de trabalho em outras áreas, Lúcio Ricardo deixa uma marca indelével na memória de quem assiste suas performances. No X Festival de Jazz & Blues de Guaramiranga, CE, em 2003, montou um show em tributo ao seu ídolo da infância e influenciador de toda a vida – Ray Charles (1930-2004), a voz que ecoava no autofalante da rádio de Juazeiro do Norte cantando I Can’t Stop Loving You66 entre composições de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira. Na fase pós-Perfume Azul também gravou a balada-blues Canção Popular, de Ricardo Augusto e Luiz Tiribás, como convidado especial do LP Fotografia; participou do CD Canções do Eterno Agora, do poeta e letrista Ricardo Alcântara, lançado em 2008 – com uma versão da música Redemption Song – Songs of Freedom, de Bob Marley (1945-1981). No disco Memória das Águas, do poeta Luciano Maia, lançado em 2003, Lúcio gravou Será amor, parceria de Maia com Joaquim Ernesto. Na sua segunda performance, em 2009, no evento dedicado ao estilo do qual foi um dos pioneiros na cidade, o XVI Festival de Jazz & Blues de Guaramiranga, apresentou-se com os músicos Abraham Carlos (guitarra), Marcelo Randemarck (baixo) e Daniel Alencar (bateria). Depois de sua primeira experiência no festival, em 2003, quando cantou o soul americano de Ray Charles, Lúcio fez o caminho de volta, ao privilegiar a autoria dos cancionistas cearenses neste show, com a elaboração de um repertório com base em compositores próximos e suas referências de blues, incluindo sua música em parceria com Siegbert Franklin, Em cada Tela uma História e Cor de Sonho, minha composição incluída no álbum Massafeira (1980). Também acrescentou ao roteiro a composição Gosto mais é do Swing, de Lauro Maia (1913-1950), em homenagem ao autor cearense que ouviu na infância, para consolidar a ponte entre a tradição e a assimilação das influências estrangeiras. “A performance de Lúcio Ricardo foi retumbante, inesquecível” (Entrevista com Rachel Gadelha, mentora e produtora do Festival de Jazz & Blues de Guaramiranga, em 24/01/2017). Trinta anos depois de surpreender a cena musical da cidade com a adesão radical às influências estrangeiras à frente do Perfume Azul, sem acanhamento e sem o discurso da pluralidade da música popular brasileira hoje vigente, Lúcio Ricardo deixou seu nome na história do festival, mostrando o talento de um perfomer à margem do mainstream, sempre cantando para plateias mais reduzidas, segmentadas, ou participando de espetáculos coletivos em grandes palcos, como o show comemorativo de 30 anos do álbum Massafeira no Theatro José de Alencar (2010) e na homenagem ao cantor e compositor Belchior no dia seguinte ao

66 Lançada em 1962 por Ray Charles (1930-2004), tornou-se um standard de jazz e da canção americana, gravada por Frank Sinatra e Elvis Presley.

87 seu falecimento no evento Maloca Dragão, no dia 30 de abril de 2017, em palco montado ao ar livre no Poço da Draga. Lúcio foi convidado a defender, com a versatilidade de sua voz que trafega do samba ao jazz, da bossa nova ao rock, músicas de amigos compositores em festivais competitivos com distribuição de prêmios em dinheiro. Essas participações lhe renderam títulos de melhor intérprete de canção popular nas disputas realizadas em algumas cidades do país – em 2001 no Festival de Camocim com a música Escola de Varais, de Joaquim Ernesto e Paulo de Tarso Pardal; em 2009, ganhou o Festival de Garanhuns, PE, interpretando a mesma obra, que o levaria para mais prêmios em Vitória da Conquista, BA, e a entrar na lista dos dez classificados entre quatro mil inscrições do Festival Nacional da Canção de Boa Esperança, MG, um evento de grande porte, o maior festival popular do Brasil, com mais de quarenta anos de existência; Também em 2011 foi contemplado como melhor intérprete por Aclamação Popular no Caldas Fest do Balneário Termas de Caldas, em Barbalha, CE; Em 2017 no Festival da Meruoca venceu com a música Rua Deserta, de Chico Barreto e Silvio Barreira. A amizade com Joaquim Ernesto, compositor e engenheiro da Petrobrás, teve início quando este mantinha o bar de música ao vivo que se tornou ponto de encontro da boemia da Praia de Iracema, o hoje lendário Cais Bar, aberto em 1985 e encerrado em 2003. Lúcio Ricardo voltava a morar na cidade depois de um tempo vivido em Belo Horizonte, MG, onde se dividiu entre a música nos shows montados em bares e casas noturnas, e o trabalho no comércio de roupas. A chama de efervescência do Cais Bar, revelador de novos talentos da MPB no Ceará e aglutinador de artistas e intelectuais, começaria a se apagar pouco antes da sua volta à Fortaleza, mas ainda a tempo de conviver com músicos e compositores que ali mantinham cadeira cativa. Em 2016 ele cantou doze composições de Joaquim Ernesto e Silvio Barreira no disco Notas da Memória, trabalho independente gravado em Pedra Branca, CE, no estúdio Iracema da Serra, lançado neste mesmo ano, com as obras Tarde Qualquer, O Ser e o Tempo, Veneza, Traço Azul, Partilha, Beberibe, Pensando em Voltar, Flores no Olhar, O Mundo, Verso Escuro, Cidades e Catador de Ondas.

6.1 O legado de Siegbert Depois da separação do grupo, no final da década de 70, os dois fundadores seguiram caminhos distintos no desenvolvimento de seus processos criativos. Siegbert Franklin, pesquisador de linguagens artísticas guiado pela inquietude, foi pioneiro também do que se passou a chamar artista multimídia nos anos 80. Ele deixou Fortaleza no início da década para

88 fixar-se na cidade de São Paulo, com residência na rua Peixoto Gomide, no bairro de Cerqueira César, muito próximo ao Museu de Arte de São Paulo-MASP, um dos centros propulsores da cena cultural da capital paulistana, local onde realizou sua primeira mostra individual, em 1982, a exposição Não Fazemos Heróis Como Antigamente. Siegbert Franklin desenvolveu uma prolixa carreira nas artes plásticas, com exposições coletivas e individuais em cidades do país e na Europa, desde sua estreia na Galeria Antonio Bandeira, Feira das Ilusões, em 1977. Morou em São Paulo durante as décadas de 80 e 90, com produção de desenhos, pinturas, ilustrações, vídeos e instalações. Na galeria do Instituto de Artes da Universidade de Campinas, em 1999, atualizou a exposição Luzes do Equador, com desenhos, pinturas, gravuras e instalações, uma releitura da primeira mostra com esse mesmo título realizada em 1978, na Sala Interarte do Centro Cultural Brasil- Alemanha da UFC, em Fortaleza. Na Galeria Paulo Prado, no bairro dos Jardins, mostrou pinturas em 1987 e em 1990; em 1992 expôs na Galeria Montesanti Roesler; Galeria Nara Roesler (1997). Em Brasília, também apresentou uma série de pinturas na Galeria Oscar Seráfico (1989). Das mostras coletivas, exibiu trabalhos no IV Salão Nacional de Artes Plásticas no Museu de Arte Moderna do Rio (MAM) em 1981; no Panorama 84 e 87 no MAM de São Paulo (1982 e 1987); III e IV Salões de Arte Contemporânea de São Paulo (MAC, 1985 e 1986) e na III Bienal de Santos, SP (1991). Em 2005 voltou a expor no MASP na coletiva Contrastes – obras do acervo. Durante a década de 90 e parte dos anos 2000, Siegbert residiu em Jaboticabal, interior de São Paulo, e foi um interlocutor ativo na vida cultural da cidade. Em 2001 participou da Bienal de Jaboticabal no Museu de Arte e História, e lá também criou mais um grupo musical, o Cremlin, ao lado do compositor e multi-instrumentista Churchill Street (1958-1994). O novo projeto musical de Siegbert reuniu os músicos Churchill Street (teclados, contrabaixo, guitarra, violão e programações eletrônicas) e André Cau (guitarra e violão). Nos shows apresentavam-se também com João Pacheco (guitarra e violão), Gustavo Oscko (teclados), Fábio Tucci (contrabaixo e gaita), Marcos Leone (bateria) e Uberdan Guimarães (percussão). Em 1993, o grupo gravou seu único disco, no estúdio Lobos da Estrada, de Jaboticabal. O trabalho foi lançado em 1994 de forma independente, um CD intitulado Tomcatt, com doze músicas: Nova Era, Mistérios, Albatroz, Velozidade, Jericoh, Amigos do Interior, Manhãs de Domingo, Raios de Sol, todas escritas por Siegbert e Street; e os temas instrumentais Eu e Major no Bosque, A Viagem, Hendrix’s Dreams e Sorte e Pêssegos, assinados somente por Street.

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A partir dos anos 2000, Siegbert iniciou um programa de intercâmbio com a organização artística e cultural de Nuremberg, Alemanha, Ponte-Cultura, e com a galeria Arauco, e passa a fazer constantes viagens para aquele país, junto com outros artistas brasileiros. Inaugurou a exposição ArtWeb2000 na Künsthaus, Prefeitura de Nuremberg; no ano seguinte, a mostra de desenhos e instalação Brinquedos Perigosos na Galeria Basikow, em Berlim. A exposição Cinema Mudo foi exibida na Galeria Arauco, em Nuremberg, em 2005, ano em que apresentou também a instalação Arquitetura do Kaos na Hathaus, nesta cidade. O programa com a Ponte Cultura, articulado pela artista alemã Marianne Stüve, incluía também outras linguagens, como a música – a cantora paulista Susana Sales levou um concerto (2003) cantando obras de Bertold Brecht e Kurt Weil, e eu fiz um show com repertório de meu segundo disco Cenas & Dramas, no espaço Trodëlmarkt, ao ar livre, e num palco montado nas ruínas da igreja de Santa Catarina, em Nuremberg (2002). De volta à Fortaleza a partir da segunda metade dos anos 2000, Siegbert participou, em 2007, da UNIFOR Plástica, onde obteve o Prêmio Menção Honrosa, e em seguida montou a exposição Retratos de Família no Circuito Cultural do Banco do Brasil em parceria com o MAC Dragão do Mar. Com este trabalho, ganhou o Prêmio Porto Seguro de Fotografia 2008 na modalidade Pesquisas Contemporâneas, em São Paulo. Ele deixou uma significativa contribuição para a história das artes visuais do Ceará, com obras em vários museus e galerias – no Museu de Arte Contemporânea do Ceará (MAC); Museu da UFC; Centro Cultural Banco do Nordeste (CCBNB); Galerias Ignez Fiusa e Contemporarte. Assim como em galerias de outras cidades do país – Museu de Arte de São Paulo (MASP); Museu de Arte Moderna (MAM); Instituto de Artes de Campinas; Museu de Arte Moderna da Bahia (MAMB); Museu de Arte Contemporânea de Curitiba (MAC); acervo da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP); Museu do Banespa (Banco do Estado de São Paulo); acervo da Assembleia Legislativa de São Paulo; Museu de Arte de Ribeirão Preto, SP (MARP); Museu do Centro Cultural Brasil-Estados Unidos em Belém do Pará (CCBEU); Galeria Prado, São Paulo, SP. Sua obra foi contemplada em vários salões – VII Salão Nacional do Ceará (1980); I Salão Cidade de Fortaleza, Prêmio Cidade, XXXI Salão de Abril, XXXIV Salão de Artes Plásticas de Pernambuco (1981); XXXII Salão de Abril, XXXIX Salão Paranaense, Prêmio Souza Cruz, IV Mostra do Desenho Brasileiro de Curitiba (1982) e Salão Pirelli, Prêmio Aquisição no MASP (1985). Apesar do anti-perfil de artistas de sucesso do mercado musical, Lúcio e Siegbert alcançam relevância como protagonistas da transgressão na linha evolutiva da música cearense, pós-período Pessoal do Ceará, ao introduzir o rock na cena musical da cidade em

90 meados da década de 1970, assimilando assim as referências estrangeiras, assumindo uma ousada ambiguidade sexual e expressão de sensualidade na performance nos palcos de teatros, festivais e clubes da periferia, em plena vigência da ditadura militar e seus rigorosos órgãos de censura apontando seu alvo para obras e espetáculos artísticos. Portanto, numa cidade vigiada e conservadora. Na fala de artistas contemporâneos do Perfume Azul, em sua curta e fulgurante existência, encontro o testemunho de uma época. Maurício Coutinho, artista plástico, amigo de Siegbert em Fortaleza e no seu período de residência em São Paulo, montou, em 2005, uma instalação com o título do grupo no Centro Cultural do Banco do Nordeste, em que um líquido azul com essências foi adicionado na água da fonte da Praça Murilo Borges, local da antiga sede do espaço cultural, na rua Floriano Peixoto, foi contemporâneo do grupo: Vi o Perfume Azul apresentando seu show na Escola Técnica Federal nos anos 70. Eles não estavam no palco, em cima. Cantavam e tocavam no próprio chão do ginásio da escola. Lúcio usava um collant preto. Eu associei imediatamente a performance e o figurino dele a Ney Matogrosso e os Secos & Molhados.

Luiz Antonio Lima Alencar, jornalista, compositor e músico: Vi shows do Perfume Azul, e sempre gostei muito, tanto que considero a canção Ângela B67, um dos melhores rocks já compostos entre todos os de nível internacional e até fez parte do repertório dos Amorocratas. Eu me dava muito bem com o Lúcio e o Siegbert, os conheci no circuito roqueiro da cidade e cheguei a participar de uma apresentação tocando guitarra ritmo.

A transgressão adotada por uma geração de jovens artistas em Fortaleza se transformou em resistência aos limites estéticos impostos pelo sistema autoritário, em um ambiente conservador, desafiado por uma linguagem libertária, sexualizada, contestadora, com incursão nas artes, música, comunicação, moda e literatura. Distantes do eixo Rio-São Paulo, propagador das novas tendências e para onde afluíam grupos de artistas, os performers cearenses – na música, nas artes –, acabaram por ter sua obra difusa, pouco conhecida pelas gerações seguintes, sem um contorno investigativo, que apresente a transgressão também como epígrafe de um processo criativo, uma força catalisadora de resistência, capaz de se contrapor às dificuldades inerentes de um modelo opressor, processo este resultante de uma “certa omissão”. Ao investigar de que forma o sensível relacionava-se com o “perigo” (esse mote que aparece em várias obras de forma direta e ambígua), como “contaminou” as pessoas, irradiou ideias e propagou comportamentos anticonvencionais, este trabalho também se posiciona

67 Angela B, de Lúcio Ricardo e Siegbert Franklin, foi gravada pela primeira por Mona Gadelha em 2012, no disco Cidade Blues Rock nas Ruas (edição independente).

91 como uma forma de resistência, ao contribuir para mapear a performance musical transgressora em Fortaleza, ponteada por uma voz dotada de “energia poética” (ZUMTHOR, 2007), que precisa ser mais ouvida, que é a voz do performer Lúcio Ricardo; e compreender o experimentalismo e pioneirismo de Siegbert Franklin, artista que aos 18 anos já realizava sua primeira exposição individual numa tradicional da cidade. Ao longo de minha carreira artística, que dividi com o jornalismo, produzi sete discos independentes68, montei muitos shows pelo Brasil. Continuo crítica à indústria cultural e suas imposições fortalecidas pelo poder econômico. Sempre tive a convicção de que essa fase do rock e blues na Fortaleza dos anos 70 foi a base necessária para guiar meu trabalho e me fazer permanecer conectada com o sonho.

68 Em 2000 criei o selo musical independente Brazilbizz, com a produtora cearense Maira Sales, pelo qual lancei meus discos.

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Figura 12 – Desenho de Siegbert Franklin: retrato de Lúcio Ricardo,1981.

Fonte: Reprodução desenho de Siegbert Franklin. Arquivo de Ronald Carvalho (1981)

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ANEXO 1 – LETRAS DE MÚSICA

As letras de música da chamada turma do rock nos anos 70, em Fortaleza, compõem uma narrativa que demonstram o campo de influências transitado pelos artistas, fazendo uso da ironia, crítica social, textos autorreferentes, deboche, ambiguidade, melancolia, niilismo.

Planeta Vulgar (Lúcio Ricardo) Amanhecendo num planeta Tão vulgar Ai, como dói meu coração Fumando aquele cigarro Que você me deu Tento escrever essa canção As ruas sujas Os porcos sob a lama Crianças brincam de voar A sorte está lançada E as cartas sobre a mesa As cartas não mentem jamais Baby, oh, baby, não me pergunte O que eu não sei Se estou sonhando ou agora despertei A chuva que desaba sobre nós, eu sei Também vai molhar os seus pés E os seus anéis

Cine Insane Blues (Lúcio Ricardo) Lili, meu bem Vamos brincar de espelhos Enxugue os olhos vermelhos E não chore mais por mim Lili, meu bem Tudo está tão estranho Já não consigo em meu sonho Ver você perto de mim Você até parece estrela do cinema mudo Com esse olhar estranho E esses gestos tão confusos Me diz o que você andou fazendo por aí

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Enquanto eu me virava nessa vida pra curtir Lili, meu bem Tudo mudou Arranje um bobo que eu não sou

Em cada Tela uma História

(Lúcio Ricardo)

Em New York decadente blue Nas ruas ninguém olha pra você Indiferentes, distraídos numa tela Tela de TV Não vá, meu amigo, Enquanto o guarda sai pra vigiar Os vagabundos já não param de agitar Indiferentes Distraídos numa tela de TV Amando sempre o seu aparelho Colorido ou furta-cor Mammy, mammy Mammy blue Não posso, meu amigo, assegurar

Aviso aos Navegantes (Lúcio Ricardo)

Marinheiros naufragados Altas noites no farol Tatuados de lembranças, canções cheias de Sol Numa ilha solitária, no seu leito assim tão só, Qual sereia imaginária que não lhe deixa dormir? Que não lhe deixa dormir só?

Sendo o cais o seu destino, eterno nunca chega. Dando aviso aos navegantes Que é preciso despertar com o sol.

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Mamãe Carinhosa * (Lúcio Ricardo e Siegbert Franklin)

Se amanhã fizer sol Vou sair de casa Pra me divertir Já cansei de viver só Cantando rock and roll Para me distrair O que eu preciso é de uma Mamãe carinhosa Mãos aveludadas E lábios prontos para beijar Se a noite for de lua Não vou sentir vontade De querer dormir Pela noite, pela rua Procuro uma maneira De me divertir Eu preciso de uma mamãe carinhosa Mãos aveludadas E lábios prontos para beijar

*dedicada pelos autores à Mona Gadelha

Parabélum (Siegbert Franklin - Mona Gadelha)

Dia após dia Eu vou Vou percebendo Que não há mais nenhum jeito De sufocar o que eu sinto E não há mais espaço nem no meu sonho Pra guardar o que eu quero Isso me deixa tristonho Eles me olham De um jeito tão estranho Me desafiam, me consomem E acabam me levando Não me deixam livre das suas horas vagas Noite após noite Eu vou Vou me encontrando Percebendo que ainda estou no caminho escuro

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E não há mais espaço nem no meu sonho Pra guardar o que eu quero Isso me deixa tristonho Eles me olham De um jeito tão estranho Me desafiam, me consomem E acabam me levando Eles me olham de um jeito tão estranho E eu sei que tudo é bem claro Todos eles tem medo Que eu faça uma festa Todos eles tem medo Que eu apronte uma das minhas Com meu parabélum de prata brilhando Na luz do luar Cortando o sertão, verde mata Abrindo caminho pro mar Todos eles têm medo que eu faça uma festa Todos eles tem medo que eu apronte uma das minhas espalhando o caos na cidade Invadindo o reduto do mal Sem medo de ver a verdade Virando atração nacional

Imagine Nós

(Mona Gadelha)

As coisas andam sempre muito difíceis Pra quem canta e pra quem ama E a gente continua atrás daquele passo Que vai nos levar, que vai nos levar Até o fim da linha Mas se quem pulou do edifício, quase voou Imagine nós, Que nascemos com asas "Se quem tem boca vai à Roma, Imagine nós, Que usamos batom" (*)

O mundo continua girando E nada de novo acontece

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Enquanto eu lhe procuro nas avenidas Você deita e adormece Mas se quem ama sabe se virar sozinho Imagine nós, Que quase não nos vemos Se quem espera sempre alcança Imagine nós, Que já estamos correndo

(*) citação de Siegbert Franklin

Bem-me-quer (Onde você anda?) (Siegbert Franklin-Mona Gadelha)

Onde você anda? Meu coração fica louco Se não respira seu olhar Onde você anda? Minha voz se acaba se não fala o seu nome E quanto tempo você vai ficar longe? Os amigos dizem que eu já não sou a mesma Na fotografia beijo seu rosto Do quarto imagino sua voz na sala E toda manhã eu penso que vou te encontrar Na rua, num lugar qualquer Quando volto tudo é tão vazio Só a flor ainda insiste em dizer que você me quer

Cidade Blues (Mona Gadelha) Era tudo um sonho E eu estava ali Feira de Ilusões Meu pote de mel Aquele arco-íris Desapareceu do céu Era tudo jovem Pra se divertir Era tudo Rio Onda pra curtir Ruas da Aldeota Noites quentes sem fim Para onde foram todos?

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Baby, não se esqueça de mim Era tudo riso, pranto Armadilhas no ar Era tudo grana Noites de neon Praia do Futuro Verdes mares em mim A menina canta Um beijo na boca Pode até matar Eu chorava em blue Bandeiras no mar Rock and roll na cidade Caretas, me deixem cantar

Canção Popular (Ricardo Augusto – Luís Tiribás) Se você me ouve cantar Numa estação de rádio do interior Não pense que eu sou algum herói Não sonhe comigo Nem ligue ao que eu digo Sou mais um cantor da canção popular Se você um dia compra Uma revista com meu sorriso impresso Não pense que eu tenho algo a dizer Não sonhe comigo Nem ligue ao que eu digo Não pense que eu vou saber de você.

Herói do Sertão (Lúcio Ricardo) Tudo é alegre e triste Sob esse céu azul As canções que vem do Norte Fazem sucesso no Sul Bye, bye Superman Bye, bye, Buffalo Bill Eu sou herói do sertão E você nunca me viu Depois do planeta Mongo Flash Gordon conquistou Mil corações solitários

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Por todo esse interior Bye, bye Superman Bye, bye, Buffalo Bill Eu sou herói do sertão E você nunca me viu

Cor de Sonho (Mona Gadelha)

Meu amor O que você fala não tem cor de sonho Me deixa confusa E eu sei que é sem querer Mas não se diz nada apenas por dizer

Meu amor Seu sorriso me deixa assustada Tenha cuidado com a minha solidão Posso até te matar com um beijo na boca

Meu amor Não, não pense Que eu sou remédio pra sua dor Que eu também passo noites sem dormir Eu também estou sempre querendo fugir