UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

INFINITIVAMENTE PESSOAL

RAFAEL BARBOSA JULIÃO

2016

1

INFINITIVAMENTE PESSOAL A verdade tropical de

Rafael Barbosa Julião

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do Título de Doutor em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira).

Orientador: Prof. Doutor Eucanaã de N. Ferraz

Rio de Janeiro Fevereiro de 2016

2

Infinitivamente pessoal – a verdade tropical de Caetano Veloso Rafael Barbosa Julião Orientador: Professor Doutor Eucanaã de Nazareno Ferraz

Tese de doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Doutor em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira).

Examinada por:

______Presidente, Professor Doutor Eucanaã de Nazareno Ferraz - UFRJ

______Prof. Doutor Eduardo Jardim de Moraes - PUC-Rio

______Prof. Doutor Frederico Oliveira Coelho – PUC-Rio

______Prof. Doutor Guilherme Teixeira Wisnik - USP

______Prof. Doutor Miguel Jost Ramos – PUC-Rio

______Prof. Doutor Eduardo dos Santos Coelho – UFRJ, Suplente

______Prof. Doutor Leonardo Garcia Santos Gandolfi – UNIFESP, Suplente

Rio de Janeiro Fevereiro de 2016

3

4

RESUMO

JULIÃO, Rafael Barbosa. Infinitivamente pessoal, a verdade tropical de Caetano Veloso. Rio de Janeiro, 2015. Tese (Doutorado em Letras Vernáculas) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.

Observa-se no conjunto das produções de Caetano Veloso (tanto no cancioneiro, quanto nas publicações em prosa) uma peculiar aptidão para fundir questões privadas com discussões públicas. Em Verdade tropical de 1997, obra em que o autor conta a história do tropicalismo a partir de sua perspectiva pessoal, essa combinação resulta em uma forma original de discutir e de interpretar o Brasil e sua cultura. O presente estudo propõe a tese de que a fusão entre o pessoal e o público, projeta-se estruturalmente no caráter híbrido do de Caetano Veloso, em que se equilibram autobiografia, história do tropicalismo (e da canção popular brasileira) e ensaio de nacionalidade.

Palavras-chave: Caetano Veloso; tropicalismo; autobiografia; canção popular; Brasil.

5

ABSTRACT

JULIÃO, Rafael Barbosa. Infinitivamente pessoal, a verdade tropical de Caetano Veloso. Rio de Janeiro, 2015. Tese (Doutorado em Letras Vernáculas) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015

It is observed in the works of Caetano Veloso (both in the songbook , as in his publications in prose) a peculiar ability to merge private matters with public discussions . In Verdade tropical, released in 1997, in which the author tells the story of tropicalism from his personal perspective, this combination results in a unique way to discuss and interpret Brazil and its culture. This study proposes the thesis that the merge between personal and public, is projected structurally in the hybrid character of Caetano Veloso book, in which balances his autobiography, the history of tropicalism (and Brazilian popular song) and an essay about nationality.

Key-words: Caetano Veloso; Tropicalism; autobiography; Brazilian popular music; Brazil.

6

A Eucanaã Ferraz, o amigo.

7

AGRADECIMENTOS

Seria preciso agradecer à canção popular brasileira. E também à memória que preservou a imagem de uma vitrola do tempo de criança, disco e agulha. À minha mãe, que ouvia sempre música em casa, de Gonzaguinha a axé. Ao pai Quirino de uma amiga-irmã, que cantava e explicava os sentidos ocultos das canções que driblavam a censura. À sua mulher Heloísa, que gravou uma primeira fita de e me deu de presente. À minha avó, que contou o segredo de Dalva de Oliveira, e que canta liricamente as dores de Orlando e o desejo de Noel. À minha tia, que me acompanhou em tantos shows bonitos e eventos importantes. Há sempre uma rua do Amparo. Penso que por meio das canções descobri o prazer, a política, o afeto, a juventude, o tempo, a espera, o luto, a lembrança – ter o coração daquilo. Então, sou grato. A todos os cantores e compositores populares que marcaram minha vida. A Cazuza e a Caetano mais do que a todos, narciso ao espelho. Agradeço também a meus amigos tropicalistas, a todos os visitantes ou frequentadores do apartamento godardiano da Arcoverde, da república-solar do Paulinho, do sítio do Davi. Um agradecimento especial ao professor de pop Jesse James. E à ajuda inestimável de Luciana Almeida, Andrea Abreu e Nicholas Andueza nas longas e prazerosas conversas sobre a tese. A Caroline Franco com suas agulhas de acupuntura e sua sabedoria oriental. E a José Carlos, pelas palavras e silêncios. Minha gratidão a Karla Tavares, que me fez convicto de que a liberdade deve ser mesmo o tema fundamental. E a Simone Quirino, a amiga-irmã, influência intelectual e parceira de todos os momentos nessas descobertas sobre o que é a vida e o que é a política. A Bruna Gonçalves, pela companhia nos shows, nas peças, nos filmes e nas preces de Zé Celso. Pelas conversas, pelo carinho e por todo apoio e incentivo deste último ano. Devo agradecer também à Universidade Federal do Rio de Janeiro, e aos muitos mestres e colegas que foram especiais nesse caminho. Agradeço especialmente aos professores Eduardo Jardim, Frederico Coelho, Guilherme Wisnik e Miguel Jost, que tão gentilmente aceitaram o convite para esta banca. Gostaria também de registrar meu agradecimento à professora Fátima Cristina Dias Rocha e a Heloísa Buarque de Hollanda. Agradeço, finalmente, ao professor Eucanaã Ferraz, meu mestre e orientador, personagem fundamental da minha formação intelectual e do desenvolvimento da minha

8

sensibilidade para a poesia e para a cultura popular. Seria preciso também agradecer ao poeta e, sobretudo, ao amigo, a quem dedico essas páginas, que não seriam possíveis se não fosse sua ajuda e sua atenção. Enfim, a todas as pessoas a quem me ligo por meio das canções, meu agradecimento mais sincero.

9

Se o amor escraviza Mas é a única libertação Minha voz é precisa Vida que não é menos minha que da canção [...] Meu amor, acredite Que se pode crescer assim em nós Uma flor sem limite É somente porque eu trago a vida aqui na voz (Caetano Veloso)

São ilhas afortunadas, São terras sem ter lugar Onde o Rei mora nos esperando. Mas, se vamos despertando, Cala a voz, e há só o mar. (Fernando Pessoa)

10

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...... 13

CAPÍTULO I – OBJETO NÃO-IDENTIFICADO

1. A verdade dos trópicos ...... 19 2. A autobiografia dos trópicos ...... 22 3. As características formais ...... 30 4. O contexto do livro ...... 36

CAPÍTULO II – RECÔNCAVO E RECONVEXO

1. A pré-história do tropicalismo ...... 42 2. A risada de Andy Warhol ...... 44 3. Cana doce, Santo Amaro ...... 55 3.1. A imitação da rosa – o caso Clarice Lispector ...... 61 3.2. Luz puríssima – o caso Federico e Giulietta ...... 63 3.3. O bruxo de Juazeiro – o caso João Gilberto ...... 80 4. Erasmo e Raul ...... 107 5. Ray Charles, ...... 111 6. A vanguarda na Bahia ...... 116 7. Arena conta Caetano ou o caso Augusto Boal ...... 122 8. Entreatos ...... 130

CAPÍTULO III – A AVENTURA TROPICALISTA

1. Uma história do tropicalismo ...... 134 1.1. A vaidade tropical ...... 135 1.2. A invenção do tropicalismo ...... 137 1.3. O nome tropicalismo e o caso Hélio Oiticica ...... 146 1.4. O tropicalismo em Verdade tropical ...... 159 1.5. Nota sobre Torquato Neto ...... 171 2. Retrato dos artistas ...... 176 2.1. Carmen Miranda, o mito original...... 179 2.2. O rei Roberto Carlos ...... 186 2.3. Carcará ou o mito de Nara e Bethânia ...... 210 2.4. O arquétipo de gêmeos – o caso Gilberto Gil ...... 220 2.5. Divino maravilhoso – o caso Gal Costa ...... 224 2.6. O país utópico – o caso Jorge Ben ...... 228 2.7. O homem da caravela – o caso Tom Zé ...... 234 2.8. Os anjos do futuro – o caso Mutantes ...... 239 2.9.Os não tropicalistas ...... 242 2.9.1. Paulinho da Viola no solar ...... 247 2.9.2. O que tinha de ser – o caso Elis Regina ...... 251 2.9.3. Roda viva – o mito de Chico e Caetano ...... 254 3. O transe – o caso Glauber Rocha ...... 263 4. O rei da vela – o caso José Celso Martinez Corrêa ...... 277

11

5. Deus está solto – o caso Agostinho da Silva ...... 283 6. O grande pai – o caso Oswald de Andrade ...... 297

CAPÍTULO IV – O ESTRANGEIRO

1. O processo...... 308 2. Os espelhos ...... 312 3. Narciso em serviço...... 318 4. As sirenes ...... 323

CAPÍTULO V – O ERRANTE NAVEGANTE

1. Roteiro de viagem...... 326 2. Aquele abraço ...... 328 3. O exílio londrino ...... 331 4. A luta armada ...... 334 5. A linguagem universal ...... 339 6. Cicero e Mautner ...... 341 7. Duas visitas ao Brasil ...... 348 8. Atrás do trio elétrico ...... 351 9. Araçá é brinquedo ...... 353

CAPÍTULO VI – FORA DE ORDEM

1. Ensaio sobre a brasilidade...... 360 2. A equação de Giannetti ...... 370 3. A aventura do Novo Mundo ...... 373

CONCLUSÃO ...... 377

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...... 384

12

INTRODUÇÃO

A obra de Caetano Veloso evidencia o entrelaçamento de questões estéticas e existenciais ao objetivo constante de pensar o Brasil e sua canção popular. Os desdobramentos desse projeto levam a uma produção de vasta abrangência temática e de experimentações formais variadas, fazendo da cultura brasileira – em contínuo diálogo com as manifestações culturais estrangeiras e com a modernidade – um âmbito privilegiado para observar e pensar o país. Assim, podemos compreender sua produção artística e intelectual a partir de quatro núcleos, que, apesar de pertencerem a gêneros distintos, sugerem, em conjunto, a afirmação desse projeto. Seriam eles: i) as canções populares; ii) as publicações em prosa; iii) o filme O cinema falado (1986), e, por fim, iv) o livro Verdade tropical (1997). O cancioneiro de Caetano Veloso (o primeiro núcleo) pode ser encontrado em sua discografia, que se inaugura com o compacto simples Caetano Velloso (1965) e com o LP Domingo (1967), e estende-se até Abraçaço de 2012, totalizando uma vasta produção, que atravessa seis décadas e abrange mais de 40 álbuns. Cabe acrescentar que, em 2003, a Companhia das Letras publicou Letra só (uma antologia das letras do compositor, selecionadas e organizadas por Eucanaã Ferraz), que vem acompanhada do anexo Sobre as letras, com transcrições de comentários do próprio artista sobre algumas de suas composições. Portanto, esses livros e os encartes dos discos (a maioria deles disponíveis no site do artista1), além dos DVDs e dos vídeos no site Youtube, são a fonte utilizada para ter acesso à sua obra de compositor popular. O segundo núcleo diz respeito a publicações de Caetano Veloso em jornais e revistas (como O archote, Música do Planeta Terra, Jornal do Brasil, Folha de São Paulo, O Globo, O Pasquim e New York Times), mas também em prefácios de livros, releases de discos e textos para encartes de seus próprios álbuns. Esses escritos funcionam como acompanhamento teórico não apenas para sua própria produção musical, mas também para os debates sobre cultura, cinema, canção popular, literatura e teatro e, de modo mais amplo, para sua reflexão sobre o Brasil. Muitos desses textos apresentam qualidades estéticas que permitem sua apreciação formal, e chamam atenção pelo emprego de mecanismos de pensamento muito particulares, que estruturam suas argumentações.

1 www.caetanoveloso.com.br 13

Em 1977, alguns desses textos foram reunidos no livro Alegria, alegria – Uma Caetanave organizada por Waly Salomão. Seguindo gesto semelhante, Eucanaã Ferraz organizou a coletânea O mundo não é chato (2005), reunindo textos entre as décadas de 1960 e 2000. Vale também acrescentar que Caetano Veloso foi colunista do jornal O Globo entre 2010 e 2014, contribuindo semanalmente para o “Segundo Caderno”, com publicações que seguem características formais e temáticas semelhantes às demais, mas que ainda se encontram dispersas, sem terem sido reunidas em livro. Um terceiro núcleo de sua produção é o filme O cinema falado de 1986, que foi a única experiência de Caetano Veloso como diretor de cinema, concretizando um antigo desejo de trabalhar com esta forma de expressão. A película apresenta sua ênfase na palavra falada (mas também na palavra cantada), construindo suas cenas a partir de diálogos teóricos e poéticos, fragmentos de livros e reflexões metalinguísticas. Repetem-se aqui os cruzamentos entre o experimental e o documental, postos a serviço de uma composição polifônica e fragmentária, incidindo sobre os temas recorrentes do restante de sua obra, isto é, a cultura, o cinema, a canção popular, a literatura, as coisas do Brasil. O último núcleo também apresenta uma obra singular: o livro Verdade tropical, publicado em 1997. Anos antes, Caetano havia publicado um artigo sobre Carmen Miranda, encomendado pelo New York Times, no qual falava sobre o misto de orgulho e vergonha que a artista despertava nos brasileiros, e também como o tropicalismo foi responsável por gerar uma nova perspectiva sobre esta personagem. A partir disso, o texto faz considerações gerais sobre o Brasil e sobre a importância da canção popular. Esse artigo foi lido por um editor do jornal, que ajuizou que ali se insinuava um livro e fez o convite a Caetano. Verdade tropical é uma obra de caráter autobiográfico, na qual Caetano Veloso conta, a partir de um ponto de vista pessoal, o percurso da aventura tropicalista, desde seus antecedentes formativos até suas consequência mais imediatas, pontuando os momentos mais importantes do movimento. É também um empreendimento de divulgação internacional da história da canção popular e da cultura brasileira, especialmente durante os anos 1960. Por fim, pode-se encontrar no livro uma reflexão ampla sobre o Brasil, discutindo suas singularidades, suas potencialidades e suas possibilidades. Observa-se, em Verdade tropical, portanto, a combinação entre a extrema pessoalidade e a reflexão sobre a história da canção popular brasileira (vista no âmbito mais amplo da cultura do país), encontrando, a partir desse ponto de observação, uma

14

forma original de discutir e de interpretar o Brasil. Essa fusão entre as esferas privada e pública é, na verdade, uma característica que atravessa a obra de Caetano Veloso como um todo, do cancioneiro ao livro. Nesse sentido, afirma Guilherme Wisnik: Essa é na realidade, uma das qualidades mais poderosas e penetrantes da persona artística de Caetano: combinar de modo produtivo e desconcertante as suas experiências pessoais e reflexões públicas, num fluxo em que ambas as esferas se estimulam e potencializam reciprocamente. Em sua poética, todas as afirmações são inegavelmente pessoais. No entanto, nenhuma delas é privada. (WISNIK, 2005, p. 26)

De outro lado, na introdução de Letra só, Eucanaã Ferraz chama atenção para a aproximação de Caetano Veloso com o registro da fala, com seus aspetos de urgência, fluidez, irregularidade, excesso, efusão, redundância, desvio. A aptidão do artista para a fala pública e a construção de um projeto de cultura e de país marcado pela pessoalidade dessa fala são pontos fundamentais dessa análise: Caetano está sempre se pondo em posição de diálogo, afirmando pontos de vista, respondendo e demandando respostas. Por isso, Eucanaã afirma: Radicalmente singular, esta fala absorve, consigna e desenvolve inúmeros marcos exteriores, efêmeros. E quanto mais se afirma o eu, mais se desenha seu interlocutor e o contexto. Mais o diálogo se erotiza. (FERRAZ apud VELOSO, 2003, p. 13)

As duas citações podem ser aproximadas, na medida em que destacam a força dessa associação, aparentemente contraditória, entre a afirmação do pessoal e do público, do eu e do contexto, na obra de Caetano Veloso. E é interessante notar como essa combinação se realiza na própria estrutura do livro Verdade tropical, no qual a autobiografia funde-se com a história do tropicalismo (e, de modo mais amplo, da cultura brasileira), de modo a revelar, no conjunto, uma espécie de ensaio sobre a brasilidade. Uma expressão utilizada na canção “O quereres” parece oportuna para a representação dessa tese. Podemos encontrá-la no seguinte fragmento: O quereres e o estares sempre a fim Do que em mim é de mim tão desigual Faz-me querer-te bem, querer-te mal Bem a ti, mal ao quereres assim Infinitivamente pessoal E eu querendo querer-te sem ter fim E, querendo-te aprender o total Do querer que há e do que não há em mim (VELOSO, 2003. p. 150)

15

Sabe-se que o infinitivo é uma das três formas nominais do verbo, na qual não se identificam as marcas de tempo, modo, número e pessoa. Contudo, a Gramática Normativa da Língua Portuguesa prevê, especialmente em orações reduzidas, a possibilidade de flexionar essa forma verbal, resgatando apenas a marca número-pessoal. Desse modo, a ideia sugerida pela expressão “infinitivamente pessoal” revela-se ideal para a representação do tema que queremos observar na obra de Caetano Veloso: a inflexão em primeira pessoa da observação de questões públicas relacionadas ao contexto social, político e cultural do Brasil. O caráter híbrido de Verdade tropical (autobiografia, história do tropicalismo e ensaio de nacionalidade) está diretamente relacionado a esse procedimento. O registro “infinitivamente pessoal” da obra faz com que Caetano Veloso torne-se, a um só tempo, narrador e personagem da aventura tropicalista, colocando-se simultaneamente dentro e fora, conjugando a primeira pessoa do singular e a forma infinitiva, o eu e o tropicalismo, o brasileiro e o Brasil. O presente trabalho, portanto, apresenta como objetivo fazer um estudo do livro Verdade tropical a partir da observação desse caráter híbrido. Nesse sentido, é preciso estudar a fusão como um dado estrutural da obra, que se mostra fundamental para o desenvolvimento particular da matéria narrada e das interpretações propostas. Para isso, convém variar os focos, ampliando cada um dos três vetores que compõe essa forma. O livro Verdade tropical é estruturado a partir de uma introdução (“Intro”), quatro partes e uma conclusão (“Vereda”). A narrativa apresenta uma linha principal, orientada pelo vetor cronológico, que justifica a divisão nessas quatro partes: a primeira vai da infância à juventude de Caetano Veloso, especialmente em Santo Amaro e em Salvador (concentrando-se nos anos 1950 e na primeira metade dos 1960); a segunda está relacionada aos momentos mais relevantes da história do tropicalismo musical (entre 1965 e 1968), concentrando-se entre o Rio de Janeiro e São Paulo; a terceira narra o período em que Caetano esteve preso (do final de 1968 ao início de 1969) no Rio de Janeiro; a quarta e última parte aborda o exílio em Londres, entre 1969 e 1971, quando volta ao Brasil, especificamente a Salvador, interrompendo a narrativa no comentário sobre o disco Araçá azul de 1973. A partir disso, propõe-se a divisão deste trabalho em seis capítulos, que não funcionarão de modo estanque, na tentativa de acompanhar a mobilidade e a hibridez do texto em análise. São eles: 1) “Objeto não-identificado”, 2) “Recôncavo e Reconvexo”, 3)

16

“A aventura tropicalista”, 4) “O estrangeiro”, 5) “O errante navegante” e, por fim, 6) “Fora de ordem”. No primeiro capítulo, “Objeto não-identificado”, será observada a singularidade da narrativa de Verdade tropical, a partir de seu caráter híbrido, dando ênfase ao vetor autobiográfico. Essa seção ocupa-se, portanto, em analisar os elementos estruturais e formais, as características estéticas e a forma como se relacionam com o conjunto da obra do artista. Além disso, serão comentados alguns aspectos relevantes do contexto de escrita do livro, nos anos 1990. Os quatro capítulos seguintes acompanham o desenvolvimento das quatro partes de Verdade tropical. Porém, há uma série de temas transversais que perpassam toda a narrativa e que serão abordados na seção em que aparecem de forma mais densa ou estratégica, sem que com isso se perca de vista o desenvolvimento desta ou daquela questão ao longo das outras seções do livro. Assim o segundo capítulo – “Recôncavo e Reconvexo” – concentra-se nos primeiros momentos formativos de Caetano Veloso, relatados principalmente na parte 1 do livro. Nessa esteira, será feita a análise das grandes experiências iniciais de apreciação estética em Santo Amaro, mas também da determinante efervescência cultural vivida por Caetano em Salvador nos anos 1960, que está relacionada ao contato com experiências de vanguarda na Bahia à época. Aqui serão desenvolvidas as discussões sobre a cultura pop, a articulação entre cosmopolitismo e provincianismo e os primeiros contatos com as informações estéticas da modernidade. No terceiro capítulo, “A aventura tropicalista”, a análise concentra-se na parte 2 da obra, na qual se analisam os eventos principais que o autor elegeu para contar o processo de fermentação, eclosão e desenvolvimento do tropicalismo musical. Assim, serão observados os momentos escolhidos e a forma de contá-los, bem como o perfil que o autor traça dos personagens envolvidos e a função que estes exercem na narrativa. Além disso, será proposta uma reflexão sobre a participação de Caetano na produção de uma narrativa vitoriosa sobre o assunto. No quarto capítulo, “O estrangeiro”, a análise se voltará para a parte 3, que diz respeito ao relato da prisão de Caetano Veloso. Aqui serão notadas as estratégias narrativas e argumentativas, bem como a forma segundo a qual o relato pessoal da experiência do cárcere ganha amplo sentido político no conjunto do livro. Além disso, serão observadas

17

algumas questões vinculadas à psicanálise que aparecem no substrato do depoimento de Caetano sobre esse período. No quinto capítulo, “O errante navegante”, será examinada a narrativa do período londrino e do retorno para o Brasil. É importante também evidenciar como aqui se encontra a reflexão sobre as relações entre desbunde no Brasil e a contracultura internacional, bem como sobre a contemporaneidade entre os movimentos libertários no mundo e o acirramento da ditadura civil-militar no país. Essas relações serão feitas à luz do tropicalismo musical e dos deslocamentos do artista entre a Inglaterra e o Brasil (as visitas em 1971 e o retorno definitivo em 1972), possibilitando novos olhares sobre a inserção do país no contexto contracultural e das leituras que se tornam possíveis a partir daí. É, portanto, um capítulo que sinaliza como a parte 4 de Verdade tropical dá matéria para um balanço sobre o Brasil, que será retomada no segmento de conclusão do livro. Por isso, o sexto capítulo, “Fora de ordem”, buscará pensar Verdade tropical a partir de seu componente de ensaio sobre a brasilidade, que o torna uma fonte de acesso importante para a interpretação de Caetano Veloso sobre o país. Aqui será observada sua inserção no conjunto de grandes intérpretes do Brasil e também sua avaliação sobre a aventura do Novo Mundo. Por fim, pretende-se compreender a originalidade de seu pensamento e o lugar inusitado de onde essa leitura é produzida: a canção popular, no coração da cultura de massas.

18

CAPÍTULO I - OBJETO NÃO-IDENTIFICADO

1. A verdade dos trópicos

O presente estudo propõe a tese de que a originalidade de Verdade tropical (1997) está ligada à concretização, no âmbito formal, da notável capacidade de Caetano Veloso de realizar a fusão – e a mútua potencialização – entre questões pessoais e discussões públicas. Assim, a estratégia recorrente de pensar o Brasil a partir de sua experiência individual (e de sua inserção no campo da canção popular brasileira a partir dos anos 1960) projeta-se estruturalmente no caráter híbrido do livro, no qual se equilibram autobiografia, história do tropicalismo e ensaio de nacionalidade. Com efeito, a narrativa mostra-se escorregadia, sob diversos aspectos, revelando tensões entre o autobiográfico e o ensaístico, o realista e o místico, o histórico e o mítico, o moderno e o pós-moderno, a esquerda e a direita, o erudito e popular, o comercial e o experimental. Nesse sentido, a delimitação do gênero a que pertence esse tipo de produção textual (e esse tipo de produtor, entre o intelectual e o cantor de rádio) deve encaminhar o leitor para a busca por um enquadramento específico, mais fluido e atento a cada uma dessas nuances. O título do livro é desconcertante, não só porque se propõe a contar uma “verdade”, mas também porque sugere outras possibilidades semânticas que se abrem para além da evidente relação com o assunto central da obra: o tropicalismo. O termo deriva, originalmente, da instalação Tropicália, do artista plástico Hélio Oiticica, e foi utilizado por Caetano Veloso nos títulos da canção e do álbum coletivo que funcionam como manifestos do movimento.2 Assim, comecemos por pensar que Verdade tropical pode ser visto como o processo narrativo que pretende chegar à revelação de uma verdade sobre o homem tropical, a América do Sul e, especialmente, o Brasil. Note-se que o título é composto de um núcleo substantivo seguido de um determinante de valor restritivo, compondo um sintagma nominal. O sentido geral dessa composição produz seus sentidos não só pelas escolhas lexicais dos termos “verdade” e “tropical”, mas também por escolhas

2 Frequentemente, “tropicália” e “tropicalismo” são utilizados como sinônimos. No entanto, em momento oportuno, discutiremos as possíveis diferenças entre os termos e as implicações que derivam do gesto de igualá-los. Por ora, seguiremos a decisão do próprio Caetano Veloso em Verdade tropical, e utilizaremos a segunda forma, ou ainda, mais enfaticamente, a expressão “tropicalismo musical”, segundo sugestão de Frederico Coelho a ser apresentada no conjunto da discussão. 19

morfossintáticas, como a decisão de não utilizar nenhum outro determinante antes do substantivo, ou de escolher a forma adjetiva simples em detrimento da locução equivalente “dos trópicos”, ou de outras locuções que empregassem preposições mais específicas, atenuando a ambiguidade semântica desse adjunto adnominal. Primeiramente, devemos notar que a escolha lexical de “tropical” (em vez de “brasileira” ou “nacional”) sugere um sentido mais amplo que o meramente geográfico. O termo evoca um conjunto de significados vinculados ao Novo Mundo, com todas as suas implicações de descoberta e exploração; de paraíso terrestre a palco das desigualdades mais gritantes; e, desse modo, projeta o Brasil no conjunto da América Latina. Essa projeção, porém, não o dissolve entre seus vizinhos, mas acaba por destacá-lo como um país onde os estereótipos da “tropicalidade” se desenvolveram de modo ainda mais contundente. Atentos a essa possibilidade de sentido, poderíamos dizer que “verdade tropical” apresenta seu adjetivo imbuído de um valor semântico de assunto, que restringe e especifica o núcleo “verdade”. Desse modo, o sintagma estaria fazendo referência a uma verdade sobre os trópicos. Por outro lado, vale também sinalizar o eco do título Tristes tropiques (1955), obra do antropólogo Claude Lévi-Strauss, que nos conduz também à associação específica com o Brasil. O livro, que é um marco da Antropologia, mistura registros literários e ensaísticos, combinando relatos autobiográficos – sobre as viagens pelo país e o contato com tribos indígenas brasileiras – e a análise intelectual da degradação do Novo Mundo a partir dos processos civilizatórios. É, portanto, uma narrativa de caráter híbrido, assim como Verdade tropical, evidentemente consideradas as várias diferenças. É importante também que se perceba na obra do antropólogo uma proximidade com a literatura de viagens (isto é, com as cartas informativas que estão nas bases da literatura brasileira e do registro histórico do país), assumindo, porém, a perspectiva antropológica. Ainda assim, cabe lembrar que, apesar de mudar o ponto de vista (e mesmo a estrutura de pensamento e a metodologia da abordagem) sobre os povos primitivos dos trópicos, Lévi- Strauss também representa um lugar de fala estrangeiro, oferecendo uma visão que não se produz a partir daqui, mas, novamente, da Europa. Pensando nisso, podemos ver emergir no título de Verdade tropical outro sentido importante: o de construção de uma verdade a partir dos trópicos. Prenunciando nessa composição uma verdade dos trópicos (sintagma agora interpretado como agente dessa verdade, seu produtor, não apenas o assunto), o livro passa a ser uma alternativa visionária

20

de escolher o próprio Brasil como ponto de observação capaz de pensar seu povo, apontar suas peculiaridades e, com isso, abrir um horizonte amplo de possibilidades, tanto para a solução dos problemas internos quanto para sua recolocação no âmbito mundial. É importante sinalizar também que essa perspectiva, sediada em um país do chamado Terceiro Mundo, que tenta desconstruir as visões estimuladas pelas leituras estrangeiras (e, frequentemente, assimiladas pelos próprios países periféricos), pode ser vista, enquanto gesto, no âmbito dos estudos pós-coloniais, que contestam a dominação cultural e os legados do colonialismo e, de modo mais amplo, privilegia as leituras contra- hegemônicas, consoante uma lógica “pós-moderna”. De modo particular, cabe observar que Caetano Veloso não se limita a negar as visões estereotípicas que o olhar estrangeiro lança sobre o Brasil, mas, por vezes, traz à tona o que nelas pode revelar algum elemento da realidade cultural brasileira. Mais que isso, sua obra busca vencer as forças que reprimem e impedem a emergência de características nacionais, coagidas por padrões de bom-gosto internacional ou ainda distorcidas por uma visão não-familiar. O tropicalismo foi fundamental para a desobstrução dessas manifestações, especialmente nas representações sobre o Brasil. Podemos perceber também como a discussão provocada na obra de Caetano Veloso não se restringe à ruptura com os laços de opressão sofridos pelos países periféricos que foram colônias. Numa de suas publicações, Caetano afirma que a “transcendência da particularidade cultural” e a “ambição de tomar nas mãos a história da espécie”3 são características do Ocidente, de modo que o Brasil, sendo parte do Ocidente (aliás, parte “mais ao ocidente do Ocidente”), não deveria se limitar a cumprir o projeto civilizatório ocidental da Europa ou dos EUA, mas deveria superá-los, tomando a dianteira do mundo e ensinando à civilização possibilidades insuspeitadas. E, para pensar as possibilidades de realização desse projeto, Caetano Veloso coloca-se em posição de diálogo com relevantes interpretações do Brasil, feitas a partir de variados pontos de vista e lugares de fala. Assim, o que está no substrato das páginas de Verdade tropical é: o sebastianismo de Fernando Pessoa via Agostinho da Silva e Roberto Pinho; o projeto geracional de múltiplas frentes que une os trabalhos particulares de Hélio Oiticica, Glauber Rocha, José Celso Martinez Corrêa, Rogério Duarte e José Agrippino de Paula; as leituras propostas por Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda; a fissura com as propostas de esquerda afirmadas pelos Centros Populares de Cultura dos anos

3 VELOSO, 2005, p. 64. 21

1960; o contraponto feito pelos poetas concretos a determinado percurso literário canônico; a atualização do projeto antropofágico de Oswald de Andrade, que retorna a discussões da modernidade e das vanguardas, mas se lança para a reflexão sobre a influência e a assimilação da cultura pop internacional e, com isso, enfrenta as polêmicas entre arte e mercado, cultura de massas e indústria cultural. Em franco diálogo com todos esses autores e artistas, ora de modo direto e incisivo, ora na base elíptica de suas considerações sobre a brasilidade, Caetano Veloso acaba por oferecer leituras iluminadoras de todos eles, sem deixar de opor-se, diferenciar-se ou distanciar-se sempre que lhe parece oportuno e pertinente. Guilherme Wisnik afirma que Caetano, com Verdade tropical, integra definitivamente o elenco de grandes pensadores do país, firmando-se como “intérprete do Brasil e divulgador internacional privilegiado da experiência de sua música popular, numa atitude que aponta para a reversão artística dos complexos de subdesenvolvimento herdados da colonização”.4 Por fim, é possível notar que a ausência de determinantes prepostos a “verdade” insinua uma constatação objetiva sobre o Brasil e sobre o homem tropical. Ao restringi-la com esse adjunto adnominal, abrem-se dois sentidos: a verdade produzida sobre os trópicos e a partir dos trópicos. Assim, sugere-se, desde o título, a ambiguidade entre o produtor e o assunto, o lugar de fala e seu objeto, o eu e o Brasil. A “verdade tropical”, portanto, revela-se no âmbito do registro “infinitivamente pessoal” a que se propõe observar este estudo.

2. A autobiografia dos trópicos

Afirmado o caráter híbrido de Verdade tropical, convém proceder agora à análise do vetor autobiográfico da obra e à observação dos elementos formais que dele derivam. Para tanto, é oportuno refletir sobre o texto de apresentação do livro: Verdade Tropical é em parte uma autobiografia: ao mesmo tempo em que descreve sua formação musical e o desenvolvimento de seu trabalho como cantor e compositor, Caetano Veloso narra períodos decisivos de sua vida pessoal - a infância e a adolescência em Santo Amaro, por exemplo, ou o primeiro casamento, a prisão em 68 e o exílio em Londres. Seu tema é também a música popular, sobretudo o tropicalismo, e sua relação com outras manifestações musicais, como a bossa nova, a jovem guarda e os festivais da canção. Num plano mais amplo, Verdade tropical reflete sobre questões que eclodiram nas décadas de 60 e 70, como as drogas, a

4 WISNIK, 2005, p. 12. 22

sexualidade, a ditadura. Em Verdade tropical, Caetano empreende a história afetiva de seu tempo. (apud VELOSO, 2008, contracapa)

Com abordagem semelhante a essa, o editor Leandro Sarmatz afirma que o livro é uma “mistura luxuriante de autobiografia, ensaio de nacionalidade, acerto de contas geracional e confissão pop”.5 O ponto comum entre essas descrições é o reconhecimento do gênero como (“em parte”) uma autobiografia, ao qual se acrescentam outras linhas de força. Em O pacto autobiográfico, Philippe Lejeune tenta delimitar o gênero autobiográfico nos seguintes termos: “narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, quando focaliza sua história individual, em particular a história de sua personalidade”.6 Em seguida, o autor vai observando que cada aspecto dessa definição é capaz de diferenciar a autobiografia de seus gêneros vizinhos, tais como as memórias (que não se concentrariam em uma vida individual, na história de uma personalidade), a biografia (na qual narrador e personagem principal não coincidem), o romance pessoal (onde não há identidade entre o autor e o narrador) e, por fim, o ensaio (que não é eminentemente narrativo nem comumente retrospectivo). Se levarmos em conta a definição de Lejeune, podemos afirmar, com segurança, que Verdade tropical é uma autobiografia. De modo mais específico, aliás, o livro pode ser identificado como uma autobiografia artística (ou intelectual), que se caracteriza pelo fato de que seu recorte busca, prioritariamente, o fio condutor das experiências biográficas e culturais que levaram um pensador ou um artista (seja ele pintor, poeta, romancista, músico etc) a formar sua própria identidade enquanto tal.7 Aliás, duas obras desse gênero apresentaram grande influência sobre Caetano Veloso: Popism de 1980, de Andy Warhol, cujo subtítulo em português “os anos 60 segundo Andy Warhol” explicita a ênfase do relato, e Les mots (As palavras) de 1964, de Jean-Paul Sartre, em que o filósofo francês conta momentos de sua vida que teriam sido fundamentais para sua formação intelectual e sua trajetória de escritor.

5 Disponível em http://www.blogdacompanhia.com.br/tag/caetano-veloso/. Último acesso: 15/03/2015. 6 LEJEUNE, 2008, p. 14. 7 O “romance de formação” aparece também como gênero vizinho, uma vez que se caracteriza por narrar os momentos formativos decisivos para o desenvolvimento de um sujeito (e de suas formas de pensar e agir, a partir de premissas morais, sociais, estéticas e políticas) da juventude à sua fase madura. Porém, nesse modelo, acompanhamos a formação de um personagem ficcional (ainda que não raro seja uma projeção do próprio autor), enquanto na autobiografia artística/ intelectual há a identidade entre autor, narrador e personagem, tal como é definido por Lejeune. 23

Assim, o panorama do universo pop dos anos 1960, que aparece em Popism de Warhol, apresenta seu correlato, com ênfase no caso brasileiro, na narrativa de Caetano Veloso. Do mesmo modo, é possível observar em Verdade tropical uma espécie de caráter “missionário” de seu autor, que afirma ter, desde cedo, “intuições filosóficas” complexas e que reitera em vários episódios um inexorável destino de criador; traços perceptíveis também na autobiografia de Sartre. Outros escritos autobiográficos, embora posteriores, permitem diálogos estreitos com Verdade tropical, como é o caso de Hamlet e o filho do padeiro (2000) de Augusto Boal e Tropicalista lenta luta (2003) de Tom Zé. Essas obras, além de evidenciarem as características inerentes ao mesmo gênero, apresentam interseções temporais significativas com o relato de Caetano Veloso. Além desses, a conjunção de registros autobiográficos com a narrativa da vida cultural do Brasil dos anos 1960 para os 1970 aparece também em outros livros relevantes, como Geração em transe – memórias dos tempos do tropicalismo (1996) de Luiz Carlos Maciel e Tropicaos (2003) de Rogério Duarte. Enquanto autobiografia artística (e também intelectual), Verdade tropical narra os episódios fundamentais da formação de Caetano Veloso como artista/ criador, descartando ou minimizando os eventos que não contribuem para esse propósito. Cabe sublinhar ainda o vetor marcadamente político de sua narrativa, o que também norteia escolhas e ênfases em seu relato. Além disso, percebe-se um frequente deslizamento entre acontecimentos políticos gerais e questões pessoais. O capítulo em que relata o período na prisão, por exemplo, apresenta (e pormenoriza) uma série de impressões e sentimentos de ordem íntima, que, no conjunto do texto, transcendem o evento individual, dando relevo à violência e aos abusos do regime ditatorial no Brasil e, ainda, evidenciam a dimensão política que reside no corpo e no cotidiano. É importante perceber também que este fio condutor, cujo foco é o produtor cultural, é um entre muitos outros possíveis. Os elementos biográficos escolhidos podem ser selecionados a partir do desejo de iluminar (ou encontrar um sentido) para qualquer ponto da biografia do sujeito, resultando em outros eventos narrados e outra forma de encadeamento. De todo modo, sempre uma questão – da ordem do presente – faz com que o autor, de modo teleológico, busque os episódios de sua trajetória que conectam de modo coeso algum ponto eleito do passado até outro ponto determinado, que pode ser ou não o momento da escrita.

24

No caso de Verdade tropical, é preciso observar que, em diversos momentos, o autor afirma estar narrando de memória, muitas vezes sem oferecer os dados específicos que poderiam preencher as lacunas deixadas em seu relato. Desse modo, o memorialista opta por não recorrer a livros, discos, documentos ou amigos que poderiam dar a informação precisa sobre aquilo que está sendo contado. Ao não retornar a essas fontes, reafirma-se o cunho memorialístico da narrativa, apontando o que isso traz de, a um só tempo, limitador e profundo, ao revelar também a perspectiva atual, de onde se mira o passado. Isso tudo se observa no texto através da recorrência de marcadores dubitativos, como o advérbio “talvez”, e expressões como “não estou certo...” e “acho que”, que se repetem ao longo de toda a narrativa. Desse modo, ao expor insistentemente seus mecanismos narrativos, o autor explicita também a autoconsciência que tem sobre a memória e a linguagem, não raro se colocando de modo autoirônico e reflexivo, construindo-se como um narrador frequentemente desconfiado daquilo que conta, e que demanda também a desconfiança de seu leitor.8 Assim, o resgate do tempo pretérito, organizado literariamente, coloca-se em parte no campo da ficção, ao mesmo tempo em que apontam para a realidade do momento da escrita. Com isso, as imprecisões da memória, ainda que possam fazer acumular incertezas sobre o passado, acabam se revelando como a afirmação contundente do próprio presente da enunciação, que reconhece a dubiedade dos mecanismos mnemônicos, bem como da própria linguagem que os organiza. Desse modo, o autor elege como linha condutora de sua narrativa os eventos e personagens que, em seu parecer dos anos 1990, foram considerados relevantes para sua formação como criador e agitador cultural, de modo a deixar de fora outras passagens que poderiam ser mencionadas caso o horizonte fosse outro. O que se quer reafirmar aqui é que o gênero autobiográfico continua reconhecível em sua essência, ainda que o tropicalismo, a canção popular e o Brasil sejam, declaradamente, os elementos principais que o autor pretende contar e interpretar. Retomando a sinopse de Verdade tropical, observamos que os “períodos decisivos de sua vida pessoal” não estão descolados de sua formação artística nem de seu tema principal (“música popular, sobretudo o tropicalismo”) nem do “seu plano mais amplo”,

8 Como veremos em momento oportuno, os comentários sobre a memória e sobre a própria narrativa atravessam todo o livro, em um frequente exercício de reflexão sobre os limites de apreensão do real e sobre sua inevitável ficcionalização (não só por parte da linguagem, mas da própria memória). 25

isto é, as discussões latentes nas décadas de 1960 e 1970. A construção incessante da figura do próprio narrador não é, portanto, parte menos importante que o referente geral da narrativa.

* * *

Philippe Lejeune afirma que as autobiografias se tornam reconhecíveis por uma espécie de pacto autobiográfico, que pode ser estabelecido, já de saída, na capa, na contracapa (poderíamos acrescentar a “orelha”) e em outros elementos pré ou pós textuais que deixem claro que o indivíduo que assina a autoria fará um relato sobre sua própria vida, de modo que a primeira pessoa do discurso é o autor (real), o narrador e também o personagem principal da narrativa, todos reunidos sob o mesmo nome. Assim, “o autor se define como sendo uma pessoa real socialmente responsável e o produtor de um discurso”.9 Essa identidade, em alguns casos, pode ser afirmada desde o título (não é o caso de Verdade tropical) ou pode ser assegurada numa seção inicial, na qual, segundo Lejeune: o narrador assume compromisso junto ao leitor, comportando-se como se fosse o autor, de tal forma que o leitor não tenha nenhuma dúvida quanto ao fato de que o “eu” remete ao nome escrito na capa do livro, embora o nome não seja repetido no texto. (LEJEUNE, 2008, p. 27)

Em Verdade tropical não é diferente: o uso da primeira pessoa, desde o início entendida como referente a Caetano Veloso, rarefaz a presença direta de seu nome ao longo da narrativa. Porém, o entorno de figuras públicas mencionadas no livro (a mãe Dona Canô, a irmã Maria Bethânia, o parceiro Gilberto Gil etc) confirma, frequentemente, que o narrador e o autor apresentam uma identidade entre si. Para completar, vários segmentos metalinguísticos que refletem sobre a estratégia narrativa ou sobre as deficiências da memória lembram o leitor, insistentemente, que aquele narrador é um autor (pois é uma pessoa real) e, sobretudo, que aquele autor é narrador (e, portanto, uma instância discursiva). Porém, a menção de Lejeune a uma parte inicial onde o pacto autobiográfico é estabelecido de modo mais claro pode ser identificada em Verdade tropical em um segmento introdutório (intitulado “Intro”), no qual Caetano assume claramente o compromisso junto ao leitor, tal como propõe o teórico. A seção, além de explicar a origem

9 LEJEUNE, op. cit., p. 23. 26

e a finalidade do livro, sugere o hibridismo estrutural em análise, na medida em que antecipa a relação entre o sujeito (com suas preocupações existenciais e privadas) e as questões vinculadas à canção popular e ao desvendamento do mistério Brasil. Nesse sentido, convém destacar a frase que abre o livro: “No ano 2000 o Brasil comemora, além da passagem do século e do milênio, quinhentos anos do seu descobrimento”.10 Levando-se em conta que o autor escreveu o livro durante a segunda metade dos anos 1990, a iminente chegada do Novo Milênio dá relevo a um ponto central do tropicalismo: pensar as inserções possíveis do Brasil no mundo atual e no futuro. Além disso, a proximidade dos 500 anos de descobrimento foi, sem dúvida, um convite para redescobrir o país, isto é, repensá-lo de outra perspectiva histórica. De todo modo, o que se quer chamar atenção é que a primeira frase da autobiografia de Caetano não apresenta primeira pessoa. Em vez disso, fala diretamente sobre os presságios e expectativas para o Brasil a partir dos anos 2000, como se a comemoração fosse um momento oportuno para procurar, teleologicamente, os eventos que ajudam a compreendê- lo melhor. Nesse sentido, o parágrafo em que Caetano define seu objeto diz o seguinte: O que se pretende contar e interpretar neste livro é a aventura de um impulso criativo surgido no seio da música popular brasileira, na segunda metade dos anos 1960, em que os protagonistas – entre eles o próprio narrador – queriam poder mover-se além da vinculação automática com as esquerdas, dando conta ao mesmo tempo da revolta visceral contra a abissal desigualdade que fende um povo ainda assim reconhecivelmente uno e encantador, e da fatal e alegre participação na realidade cultural urbana e internacional, tudo isso valendo por um desvelamento do mistério da ilha Brasil. (VELOSO, 2008, p. 15)

No fragmento acima, condensam-se vários aspectos que já foram aqui mencionados. Primeiramente, o emprego dos verbos “contar” e “interpretar” explicita a dualidade entre o narrativo e o ensaístico. Além disso, aponta-se o foco temporal como sendo a segunda metade dos anos 1960, o que dá sentido também ao que se narra antes e depois desse período: os anos 1950 (a infância e a juventude de Caetano, e os contextos sócio-culturais no Brasil e no mundo que ajudam a compreender a década seguinte) e os anos 1970 (o retorno ao Brasil após o exílio, e as consequências do tropicalismo e da contracultura).

10 VELOSO, 2008, p. 12. 27

Como esclarece o autor, o objetivo do movimento era encontrar um caminho estético para dar conta da “abissal desigualdade social”, sem, para isso, vincular-se automaticamente às esquerdas tradicionais11, que, segundo sua crítica, frequentemente se afirmavam como soluções prontas e únicas para os problemas sociais. Com isso, vale observar também que, desde sua introdução, Caetano Veloso já evidencia para o caráter explicitamente político de sua narrativa. A combinação, algo contraditória, da referida desigualdade social com afirmação da unidade e do encanto do povo brasileiro relaciona-se diretamente à interpretação do Brasil, que será desenvolvida pelo tropicalismo e narrada por Verdade tropical. Desse modo, o fragmento também explicita o vetor ensaístico da obra e sua reflexão sobre a brasilidade. Voltando ao primeiro parágrafo do livro, vale observar também que Caetano usa, apenas uma vez, a primeira pessoa do plural, inserindo-se discretamente (e com certo distanciamento) entre os que, no Brasil, “estamos muito longe de um realismo sensato”, fato este que o autor enxerga de modo ambíguo, ao empregar ao mesmo tempo os advérbios “feliz(mente)” e “infelizmente”. Sugere-se, nesse sentido, que os maus presságios, embora encontrem respaldo na trajetória até então traçada, podem abrir caminho e dar lugar a outras possibilidades reais, que, porventura, estejam obliteradas por um pessimismo “realista”. No segundo parágrafo, a primeira pessoa do singular, enfim, aparece. Nessa passagem, Caetano relata que, “ainda menino”, na reconhecível Santo Amaro da Purificação12, perguntava-se por que o Brasil fora descoberto separadamente (e depois) do resto da América. Aqui é possível entrever o pacto autobiográfico de que nos fala Lejeune, que aparece de modo ainda mais contundente no fragmento citado anteriormente, que define o objeto do livro e que se autodeclara um dos protagonistas da história narrada, a partir do aposto “entre eles o próprio narrador”. É aqui que o autor/ narrador assume seu compromisso, desdobra-se entre realidade e linguagem, propõe-se a uma tarefa discursiva com referente no mundo real. Na sequência do raciocínio, ainda na introdução, o narrador volta-se para aspectos formais de sua obra, assumindo o seguinte posicionamento:

11 No livro, as esquerdas tradicionais estão ligadas a uma visão nacional-popular, encontrada especialmente nas produções dos anos 1960 dos Centros Populares de Cultura da UNE, que se vinculava ao ideário do Partido Comunista Brasileiro. 12 Caetano e Bethânia referem-se frequentemente, em canções e entrevistas, a Santo Amaro da Purificação. Isso contribuiu intensamente para que a cidade se tornasse conhecida em todo o Brasil, justamente por ser a parte do Recôncavo Baiano que deu origem a essas duas importantes personalidades da cultura nacional. 28

De certa forma é uma retomada da atividade propriamente crítico-teórica que iniciei concomitantemente à composição e à interpretação de canções e que interrompi por causa da intensidade com que a introjetei na música. Não é uma autobiografia (embora eu não me negue a “contar-me” com alguma prodigalidade). É antes um esforço no sentido de entender como passei pela Tropicália, ou como ela passou por mim; por que fomos, eu e ela, temporariamente úteis e talvez necessários um ao outro. (VELOSO, 2008, p. 17)

É preciso atenção para perceber que a negação do gênero autobiográfico aqui é apenas parcial. No tom confessional dos parênteses, Caetano introduz sua concessão: “embora eu não me negue a ‘contar-me’ com alguma prodigalidade”. A forma “contar-me” (tanto pela escolha lexical, como pelas aspas e pelo pronome oblíquo átono) aponta para o fato de que “contar-se” é não apenas narrar a própria história, mas também explicitar quem é esse “eu”, ou melhor, projetar a imagem que se pretende construir através de determinado inventário de episódios e interpretações. Contar-se é, portanto, fabular-se, isto é, imprimir uma autoimagem. E é possível observar esse processo inclusive quando o autor nega que Verdade tropical seja uma autobiografia e insere-o na sequência de sua atividade crítico-teórica. Note-se que aqui Caetano se refere a suas publicações em prosa, que compõe um dos núcleos de sua obra mencionados na introdução deste trabalho. Em dado momento do livro, o narrador conta seu desejo inicial de ser professor (de Inglês ou de Filosofia) ou crítico de cinema (assunto sobre o qual incidem as primeiras publicações), e fala como o caminho aberto pela canção popular acaba por excluir essas atividades (tal como afirma no fragmento). O que se quer dizer é que Caetano, ao afirmar-se mais como um crítico e menos como um autobiógrafo, já está no próprio terreno da autofabulação, que é inerente ao gênero autobiográfico (aqui negado, ao menos em parte). Isso porque o fragmento reforça esses vetores de sua personalidade, aproximando-o de suas aptidões para as carreiras de professor e crítico. Assim, devemos aceitar Verdade tropical como a retomada dessa “atividade propriamente crítico-teórica”, sem excluir, com isso, o fato de que isso se desenvolve ao longo de um texto que é, sem dúvidas, de natureza autobiográfica. A sequência é ainda mais esclarecedora, na medida em que, ao fazer a permutação “como passei pela Tropicália” ou “como ela passou por mim”, deixa-se evidente que o narrador e o assunto narrado (o tropicalismo), em verdade, se atravessam profundamente, isto é, o eu que fala é peça fundamental da “Tropicália” e esta é o ponto crucial da construção dessa personalidade (inclusive a que fala em retrospectiva do alto dos anos

29

1990). E, mais que isso, esse eu que fala a partir de e sobre o Brasil, é quem desenvolve o assunto principal do livro (a canção popular e o próprio país), sem se excluir de ser parte integrante desse objeto. Na sequência do fragmento supracitado, Caetano afirma: Tive também que me permitir transitar do narrativo ao ensaístico, do técnico ao confessional (e me colocar como médium do espírito da música popular brasileira – e do próprio Brasil) para abranger uma área considerável de ideias que o assunto sugere. (VELOSO, 2008, p. 17)

Na própria escolha da palavra “médium”, é possível observar a já referida dualidade entre um registro histórico realista e a presença de vetores místicos. A tensão é estabelecida na medida em que o registro “técnico”, além de se opor ao “confessional”, evoca universo contrário ao da mediunidade; esta pressuporia um intérprete que, de modo intuitivo, fora do controle de sua racionalidade, põe-se a analisar algo que lhe transcende. É também notável na expressão a evocação do imaginário religioso brasileiro, mormente vinculado ao espiritismo e aos cultos afrobrasileiros, além de reportar-se à ideia de “transe”, que atravessa partes fundamentais do livro. Por fim, deve-se destacar também a autofabulação romântica desse narrador, que se crê apto (“escolhido”) para a tarefa de transmitir a mensagem do “espírito da música popular brasileira e do próprio Brasil”. Além disso, a comparação com o médium pode também ser relacionada à tese sobre o registro “infinitivamente pessoal”, uma vez que, por meio dessa “mediunidade”, Caetano Veloso apresenta-se como alguém que fala pela canção popular e pelo Brasil; as três vozes fundindo-se no mesmo relato. Assim, o autor-médium estaria fazendo uma espécie de “autobiografia” cultural do Brasil. Sob essa ótica, não é de se estranhar que o livro, em vez de começar na infância de Caetano ou nos anos 1990 (de onde ele escreve), inicia-se com a referência ao Brasil dos anos 2000 e os 500 anos de seu nascimento.

3. As características formais

Muitos episódios e análises que se encontram em Verdade tropical já haviam sido tratados, frequentemente de modo semelhante, nos diversos artigos que Caetano escreveu para revistas e jornais entre as décadas de 1960 e 1990. Do mesmo modo, aspectos formais de sua escrita também permitem paralelos entre o livro e o conjunto de suas publicações anteriores. Por isso, nossas análises vão se reportar com frequência a esses textos, no intuito de mostrar as semelhanças, bem como de identificar, a partir das datas de

30

publicação, os momentos em que determinada temática começou a ser abordada e o modo com que isso foi feito em cada momento. Assim, a coletânea O mundo não é chato passa a ser uma fonte importante para as discussões aqui pretendidas. Para esta seção do estudo, interessa sinalizar que alguns elementos formais recorrentes nesses textos repetem-se também em Verdade tropical. Assim, é possível observar, no conjunto geral das publicações em prosa de Caetano Veloso (incluindo o objeto central deste trabalho), um registro marcadamente não-jornalístico e não-acadêmico, isto é, caracterizada pela desobediência aos padrões de objetividade, clareza, precisão e linearidade, bem como desobrigada à consulta e à apresentação de fontes. Em lugar disso, nota-se uma escrita barroca, com frases longas e rebuscadas, que procura com frequência encontrar sínteses entre elementos contraditórios. Nesse sentido, na introdução a O mundo não é chato, o organizador Eucanaã Ferraz faz o seguinte comentário: A escrita de Caetano, igualmente, mostra uma dança do intelecto: entre a racionalidade e a intuição, a argumentação lógica e a instabilidade da declaração apaixonada, o rigor da análise e o apreço pela expressividade provocativa da incoerência. Contrariando, no entanto, o que essa sequência pode sugerir, o curso cambiante do pensamento não se limita a oscilar entre os extremos dos pares opositivos e cruza transversalmente as dualidades. (FERRAZ, apud VELOSO, 2005, p. 10)

Nessa análise, é preciso sublinhar o compromisso de Caetano Veloso com a mobilidade (“dança”, “curso cambiante”, “oscilar”), que é responsável por construir, tanto nos textos críticos como nas canções, perspectivas inusitadas para observar as questões políticas, sociais e estéticas, frequentemente partindo da desconstrução de sensos comuns e fomentando o diálogo e a discussão. O fragmento destaca ainda que essa oscilação, entre a racionalidade e a irracionalidade, não se confunde com o esvaziamento do debate tampouco com o simples exercício de inversão dos pontos de vista. A mobilidade é, portanto, um mecanismo de pensamento, não seu ponto de chegada: sua escrita é sempre posicionamento, alcançado a partir de um todo complexo, que atravessa dualidades imóveis e atinge o equilíbrio no instante em que as entrelaça em outro registro. Na continuação de sua análise, Eucanaã Ferraz observa ainda a relação entre a contracultura dos anos 1960, com seu frequente desprezo pela ordem racional estável e institucionalizada, e o vetor irracionalista da escrita de Caetano Veloso. Desse modo, aponta também para um traço geracional, que aproxima o artista de Glauber Rocha, Waly

31

Salomão e Hélio Oiticica, unindo-os pelo fato de apresentarem um projeto de utopia transformadora que tem na palavra um instrumento fundamental. É pertinente acrescentar a esse dado que, em seu próprio processo de autofabulação em Verdade tropical, Caetano Veloso comenta a mútua atração entre ele e os hiper- racionalistas, por um lado, os irracionalistas, por outro, estando sempre oposto ao “caminho médio da razão”.13 Assim, a influência de Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Antonio Cicero (entre os racionalistas) bem como de José Agrippino de Paula, José Celso Martinez Corrêa, (entre os irracionalistas) ajuda a explicar também o desenvolvimento desse mecanismo de pensamento que se equilibra entre a racionalidade e a irracionalidade. O texto de Eucanaã Ferraz evidencia ainda uma série de procedimentos formais que se repetem nos textos de O mundo não é chato, identificando nos artigos dos anos 1970 um trabalho mais intenso de pesquisa formal, que se deixa perceber pelo emprego de uma “linguagem fragmentária, marcada por paranomásias, recortes bruscos, colagens e ritmos sintáticos”14 e, no conjunto geral das publicações, “uma larga utilização de citações, referências colhidas aparentemente ao acaso, reminiscências, achados de hummour, ironia, deboche, rompantes de indignação, doçuras sentimentais, argumentações dilatadas, sínteses, concisão, sequências, cortes”.15 Aliás, esse conjunto de aspectos evidencia a relação estreita entre as publicações em prosa de Caetano Veloso com o trabalho poético na canção popular. Nesse sentido, as paranomásias (às quais poderíamos acrescentar as frequentes aliterações e assonâncias) e os ritmos sintáticos (conseguidos, por exemplo, a partir de paralelismos, anáforas e reiterações) estão vinculados ao parentesco dessa escrita com os exercícios formais oriundos de sua atividade enquanto compositor popular. O traço mais experimental de seus escritos durante os anos 1970 pode ser explicado na medida em que, na segunda metade da década anterior, Caetano já havia elegido a canção popular como a área privilegiada de expressão de seu pensamento e já estava envolvido em uma série de experimentações formais que foram utilizadas em suas composições do tropicalismo, especialmente a partir de 1967. Nos artigos anteriores a isso, ainda dos anos 1960, observamos o trabalho teórico de Caetano Veloso ainda bastante jovem, que projetava para si, como se sabe, um futuro acadêmico de crítico e/ou

13 VELOSO, 2008, p. 240. 14 VELOSO, 2005, p. 10. 15 Ibidem, p. 12. 32

professor16, o que ajuda a explicar um caráter mais objetivo e menos literários nessas produções. Além disso, é importante dizer que o acirramento do regime militar, especialmente vinculado à vigência do Ato Institucional Número 5, entre 1968 e 1978, contribui também para que o trabalho estético de rebuscamento formal (com imagens poéticas mais enigmáticas, recortes mais bruscos e linguagem mais fragmentária) pudesse se oferecer como alternativa para os problemas com a censura. Isso ajudaria a explicar também porque os textos das décadas seguintes (incluindo Verdade tropical) pudessem tornar-se mais claros. Isso, porém, não quer dizer que esses recursos estejam de todo ausentes nos artigos posteriores ou no livro, embora de fato se atenuem contundentemente. Assim, a estética de Verdade tropical encontra-se mais distante das características específicas dos textos dos anos 1970, estando afinada com aquelas atribuídas ao “conjunto geral de suas publicações”. Desses recursos, vale destacar, no livro, as variações de tom (que oscilam entre o irônico, o doce e o indignado, não raro combinando esses registros ou passando repentinamente de um a outro), a alternância entre momentos de profunda concisão e de argumentações longas (por vezes refletidas nas frases extensas rebuscadas, embora fluidas e bem pontuadas) e também imprevisíveis relações entre sequência e corte (não raro suspendendo um assunto que parecia promissor ou ainda se estendendo intensamente sobre um tema aparentemente menos relevante). Na introdução de Verdade tropical, Caetano fala sobre o processo de escrita do livro, comentando suas consequências formais: O tom é francamente autocomplacente (seria de todo modo requerida uma grande dose de complacência para aceitar a empreitada). Prometi a mim mesmo planejar minha vida de modo a poder parar em casa por pelo menos um ano para escrevê-lo. Incapaz de cumprir tal promessa, terminei tendo de usar furtivamente os intervalos de gravações, as folgas dos ensaios e as (poucas) horas vazias das férias de verão em Salvador para fazê-lo. Isso naturalmente superexpôs a dupla e (algo contraditória) tendência para a digressão e para a elipse que confunde meu pensamento, minha conversa e minha escrita. (VELOSO, 2008, p. 17)

16 Em O mundo não é chato, no capítulo “Cinema”, constam os textos “Cinema, ator e diretor” e “Cinema e público – entretenimento e arte” (de 1960), “Os melhores do ano” e “Filme e juventude”, “Cinema e público – imitação da vida (de 1961), “Os grandes momentos”, “Humberto, França e Bahia” e “um filme de montagem” (de 1962), onde se evidencia um jovem Caetano (entre seus 18 e 20 anos) com inclinações à carreira de crítico de cinema. Na área da canção popular, é relevante citar o artigo “Primeira feira de balanço” para a Revista Ângulos, em 1965 (no entorno de seus 23 anos). 33

Em primeiro lugar, é importante evidenciar que a contraditória tendência à digressão e à elipse consta no conjunto das características gerais das publicações em prosa, especialmente na referência de Eucanaã Ferraz a “argumentações dilatadas, sínteses, concisão, sequências, cortes”, que se analisou há pouco. O crítico, ao colocá-las nessa progressão, sublinha a oposição entre a dilatação e a retração (o derramamento e a precisão), mas também entre a sequência e o corte. Assim, a elaboração formal aí descrita consiste na decisão entre esses polos, bem como no próprio procedimento de montagem. Aliás, é notável nessa escolha vocabular (“sequências” e “cortes”) o desejo de apontar a familiaridade com os mecanismos inerentes ao cinema. Com complacência, Caetano Veloso atribui ao contexto de escrita do livro a “superexposição” a essa tendência que, segundo afirma, gera confusão em seu pensamento e em sua expressão. Devemos observar aqui o reconhecimento do próprio autor de que a disposição para a elipse e para a digressão foi acirrada, mas não gerada. Além disso, é curioso observar, nesse fragmento, um componente de autofabulação, na medida em que poderíamos compreender a não-linearidade de sua escrita mais vinculada ao estilo e ao refinamento intelectual, do que propriamente à ideia de confusão. De todo modo, evidencia-se aqui a afirmação oblíqua de uma estratégia narrativa, sobre a qual o autor demonstra plena consciência. Vale também sinalizar que as digressões e as elipses, especificamente em Verdade tropical, também se relacionam a uma peculiaridade: apesar do nexo temporal, os capítulos são organizados por questões-chave, que vão se desenrolando no tempo e abrindo ramificações por outros territórios, o que demanda idas e voltas temporais, mas também a necessidade de retornar para a linha principal, gerando cortes e lacunas. Além disso, é preciso lembrar que o livro tem como objetivo a divulgação internacional do tropicalismo, oferecendo ao público estrangeiro uma visão geral sobre a cultura brasileira do período. Isso contribui, sobretudo, para o procedimento digressivo, empregado, com frequência, no intuito de oferecer informações supostamente desconhecidas para um leitor de outro país. A partir disso, é possível compreender a grande recorrência de apostos explicativos, que se ocupam primordialmente da apresentação de artistas brasileiros, tomados em seus contextos históricos e projetos culturais. Em outros momentos, o narrador sinaliza a repercussão, no Brasil da época, de dados artístico-culturais nacionais ou internacionais. Por fim, o livro procede frequentemente a reflexões sobre a própria língua portuguesa, com suas estruturas linguísticas, construções inusitadas e expressões populares, em um claro

34

gesto de iluminar sua riqueza. Esse uso frequente de apostos contribui para a não- linearidade da escrita e para o alongamento e o rebuscamento das frases, reforçando tendências a certo barroquismo. É também um dado importante geral dos textos em prosa de Caetano Veloso a citação de objetos estéticos de várias procedências, cujas hierarquias de tratamento são relativizadas ora pelas aproximações realizadas por colagem (tal como ocorre nas canções), ora com variações de tom que põe em perspectiva as hierarquias que dividem o que seria “alta cultura” e “baixa cultura”. Essas oscilações são comentadas pelo próprio Caetano sobre sua escrita em Verdade tropical: O tom com que escrevo as palavras deste livro deve revelar ao leitor atento um misto de respeito – quase reverência – e sem cerimônia em face dos assuntos sérios, dos temas nobres e dos estilos superiores. (VELOSO, 2008, p. 216)

A reflexão metalinguística sobre o processo de feitura do livro, que se faz presente em vários momentos da narrativa, aparece aqui para notar a consequência formal da relativização das hierarquias culturais. Assim, poderíamos ver a citação no âmbito de uma “escrita tropicalista”, segundo expressão de Eucanaã Ferraz, utilizada de modo a reforçar a utilização de procedimentos do universo da canção também nos textos em prosa. Assim, evidencia-se no próprio registro oscilante – entre o respeito e o despojamento, a reverência e a informalidade – a correspondente tentativa do movimento musical de pôr em questão valores da cultura. Além disso, a eleição de “assuntos sérios” e “temas nobres”, bem como de “estilos superiores”, está na própria base das discussões estéticas, tanto para afirmação quanto para o questionamento dos modelos estabelecidos. O tropicalismo usa largamente essa variação de tom não só para relativizar as hierarquias entre cultura erudita, cultura pop de massas e cultura popular (no sentido regional e folclórico), mas também para gerar permeabilidade e diálogo entre as esferas. E, na sequência desse gesto, os paradigmas consagrados (tanto no âmbito formal como no temático) podem ser postos em questão, abrindo novas possibilidades de julgamento estético. Por fim, é preciso sublinhar que Eucanaã Ferraz também observa, em O mundo não é chato, que as publicações de Caetano Veloso situam-se “no cruzamento entre o documentário e o lirismo confessional”17 e, em outro registro, que “estão na esfera do

17 FERRAZ apud VELOSO, 2005, p. 15. 35

ensaio tanto quanto no da crônica”18. Mais uma vez, a observação serve como paralelo para a análise de Verdade tropical, como se evidencia no fragmento da introdução do livro, há pouco citado, no qual Caetano afirma que teve que se “permitir transitar do narrativo ao ensaístico, do técnico ao confessional”. As origens do caráter híbrido de Verdade tropical podem ser notadas, portanto, também nas publicações em prosa que o antecederam, nas quais o trânsito constante entre o pessoal e o público garante uma mirada mais ampla e produtiva sobre os assuntos gerais que pretende trabalhar. É importante que se diga também que a relação entre o eu e a matéria narrada (o tropicalismo e o Brasil) é intensificada no livro também em função de seu público estrangeiro, uma vez que Caetano Veloso exerce um movimento dialético entre estar dentro e estar fora daquilo que pretende contar e narrar.

4. O contexto do livro

Verdade tropical também precisa ser analisado a partir do contexto temporal em que se insere, não só no âmbito do panorama nacional e mundial, mas também dentro do conjunto da obra de seu autor. Nesse sentido, seria importante observar que a década de 1990 começa pela derrocada parcial do bloco socialista, relacionada à queda do muro de Berlim (em novembro de 1989) e ao subsequente colapso da União Soviética, entre os anos de 1990 e 1991. Isso marca a passagem de uma antiga configuração global, de ordem bipolar, para aquilo que se convencionou chamar de Nova Ordem Mundial, a um só tempo unipolar (em relação à supremacia militar e política dos EUA) e multipolar (em relação à emergência de outros pólos de poder econômico). Os anos 1990 foram também um período de popularização de tecnologias de comunicação, mormente os computadores e aparelhos celulares, que se tornaram elementos decisivos para o aprofundamento do processo de globalização. É também uma época de discussão sobre as políticas neoliberais, que se expandiram e se fortaleceram especialmente a partir da década anterior, como formas de inserção dos países na economia mundial e na aceleração do crescimento econômico, embora frequentemente criticadas pela falta de avanço na solução de problemas sociais. No Brasil, trata-se de um período de relativo ganho democrático, especialmente após o impeachment do presidente Fernando Collor de Mello em 1992. Depois disso,

18 Ibidem, p. 12. 36

Itamar Franco assumiu interinamente o governo até 1995, e durante sua gestão foi criado o Plano Real, em fevereiro de 1994, na tentativa de conter a hiperinflação e estabilizar a moeda. A reforma econômica e monetária foi conduzida pelo então Ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, eleito presidente em 1995, com seu primeiro mandato até 1998, e reeleito pelo voto popular, governando até 2002. O primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso trouxe, para muitos setores da sociedade, certo otimismo em relação ao futuro do país, não só por ser um intelectual respeitado, vindo da USP, mas também por estar relacionado à estabilização da moeda e ao fortalecimento da democracia. Seu segundo mandato foi mais conturbado, passando por um período de crise econômica e de aumento do desemprego. Nesse momento, cresceram as críticas a seu governo, especialmente entre as esquerdas, que apontavam em FHC a adoção de práticas neoliberais, que teriam tido consequências danosas para a situação social brasileira. No entanto, é preciso enfatizar que Verdade tropical foi escrito entre 1995 e 1997 e, portanto, insere-se no contexto do primeiro mandato de Fernando Henrique. No entanto, em vez de reportar-se a esse cenário (FHC não é sequer citado durante todo o livro), a introdução de Caetano Veloso localiza o contexto de sua escrita a partir da proximidade dos 500 anos do Brasil e da virada do milênio (com toda sua carga de presságios e superstições), propondo a reflexão sobre o país (visto a partir da experiência cultural da música brasileira nos anos 1960) e sobre as expectativas para o Terceiro Milênio. Vale destacar que, na mesma introdução, Caetano fala sobre matéria do jornal Folha de S. Paulo de 1995, que estampava em sua primeira página que, segundo Relatório do Banco Mundial, o Brasil era o país com a maior desigualdade social e de renda do mundo. Segundo o autor, esse era justamente o legado que sua geração, ao chegar à adolescência, desejou reverter. É justamente esta a ponte que leva o texto da iminência dos anos 2000 para a época em que se passou a aventura tropicalista. Nesse sentido, a introdução resgata a virada dos anos 1950 para os 1960, no qual o Brasil vivia um importante momento de polarização política (na esteira do cenário internacional), que daria no golpe civil-militar de direita que submeteu o país a um governo (explícita e ostensivamente) autoritário. Dessa polarização, Caetano recorda-se que, segundo sua visão na época, o vínculo com as esquerdas era imediato, uma vez que a injustiça, a miséria e a violência eram associadas diretamente à ditadura de direita.

37

Na sequência de seu relato, o entusiasmo da poetisa americana Elizabeth Bishop com a virada política em 1964 é o ponto escolhido por Caetano para refletir sobre o maniqueísmo daquela época. A grande adesão às marchas anticomunistas levava a escritora a concluir que eram movimentos espontâneos, de modo que os envolvidos não “podiam todos ser ricos reacionários de direita”. Em tom melancólico, Caetano evidencia a distorção de sua perspectiva na juventude (e também a de Bishop), percebendo que o quadro demandava uma análise mais matizada. Isso, evidentemente, não quer dizer que o autor, distanciado historicamente do evento, passe a enxergar com bons olhos o governo dos militares. Porém, o distanciamento o leva a compreender que, para além da dicotomia direita versus esquerda, inúmeros outros elementos compunham (e compõem) a cena brasileira, criando uma complexidade que não se deixava (deixa) capturar por visões binárias, ainda que se proponham numa dimensão dialética. Essa descoberta, com efeito, não se colocou para Caetano apenas na sua maturidade. Sua atividade como compositor popular (e parte atuante das discussões que tentavam entrelaçar política e cultura em um novo projeto de Brasil) acabou induzindo o artista às relativizações necessárias. E, se não havia dúvida de que o governo civil-militar e a desigualdade social não eram desejáveis, a solução para isso, aos olhos de Caetano, também não se oferecia nos melhores termos dentro dos projetos da esquerda nacional- popular. É justamente essa fissura que deu matéria ao tropicalismo. Por isso, é preciso que se resgate, para além da iminência dos anos 2000 e da permanência da desigualdade social no Brasil, o próprio fato de que a reportagem da Folha de S. Paulo data de 1995, ano imediatamente seguinte à instalação do plano Real e ano da eleição de Fernando Henrique Cardoso, e imediatamente anterior ao início da escrita do livro. Portanto, a promessa de estabilização da moeda e de consolidação da democracia também faz parte do entorno da criação de Verdade tropical e, assim, da reavaliação do passado e das expectativas para o futuro que nele se encontram.

* * *

Cabe agora pontuar em que momento da produção de Caetano Veloso aparece Verdade tropical. No conjunto de suas publicações em prosa dos anos 1990, dois textos merecem citação. O primeiro deles é “Carmen Miranda dada” de 1991, que é justamente o

38

artigo encomendado pelo New York Times que dá origem a Verdade tropical. O escrito discorre sobre a figura mítica de Carmen Miranda a partir do ponto de vista do tropicalismo. Outra publicação importante é o texto “Diferentemente dos americanos do norte”, registro de uma conferência proferida por Caetano Veloso no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em outubro de 1993, portanto, poucos anos antes da escrita de Verdade tropical. Essa comunicação estava inserida no evento Enciclopédia da Virada do Século/ Milênio e, portanto, é notória a associação entre a temática ali proposta e o início do livro de Caetano, que fala exatamente sobre as expectativas para a entrada do Brasil no Novo Milênio. O texto, como sugere o título, faz comparações entre o caso brasileiro e o estadunidense, fala das potencialidades do Brasil e avalia o tropicalismo sob a égide do sebastianismo de Fernando Pessoa via Agostinho da Silva (e Roberto Pinho). Por fim, afirma a necessidade de o Brasil resolver o problema da distribuição de renda, amadurecer a noção de cidadania e elevar seu nível de competência, a fim de poder assumir projetos mais ambiciosos em relação aos rumos do Ocidente. Ambos os textos relacionam-se diretamente com o conteúdo de Verdade tropical. “Carmen Miranda dada” situa o tropicalismo no âmbito da música popular, porém em diálogo geracional com as obras de Hélio Oiticica, Glauber Rocha e José Celso Martinez Corrêa. Além disso, menciona a importância de João Gilberto, cita Oswald de Andrade e fala sobre a influência dos poetas concretos. Assim, o artigo atravessa as linhas de força principais da narrativa sobre o tropicalismo. “Diferentemente dos americanos do norte”, por sua vez, reverbera desde a introdução do livro, conduzida exatamente pelo contexto da virada do século e do milênio. Aliás, a atmosfera mística que cerca o evento contribui para a inclusão do sebastianismo como um vetor importante do tropicalismo. Além disso, a comparação entre o Brasil e os EUA é outro aspecto importante da reflexão sobre o país no livro, aparecendo desde a sua introdução. Desse modo, a reflexão sobre o Brasil e sobre o movimento, a partir da proposta da conferência, é um dado importante para a compreensão de Verdade tropical. De outro lado, na sua produção musical, a década de 1990 é marcada pela parceria com o violoncelista e arranjador Jaques Morelembaum, especialmente nos discos Circuladô (1991), Circuladô ao vivo (1992), Fina estampa (1994), Fina estampa ao vivo (1995), Livro (1997), mas também na trilha sonora do filme Tieta do Agreste de Cacá

39

Diegues (1996) e nos discos posteriores a Verdade tropical – Prenda minha (1998) e Omaggio a Federico e Giulietta (1999). Vale também ressaltar que em 1993, Caetano Veloso e Gilberto Gil lançaram o disco Tropicália 2, em comemoração aos 25 anos do disco manifesto do tropicalismo. Podemos ver essa produção poético-musical também na sequência das lutas pela consolidação da democracia, a partir do fim da ditadura civil-militar no ano de 1985. Os novos tempos no Brasil e no mundo atualizaram e diversificaram as questões que se fizeram presentes na canção popular dos anos 1960 e 1970. Caetano Veloso ocupou-se, nesse sentido, em pensar a colocação do Brasil numa nova ordem mundial, mas também em sinalizar a permanência da miséria e da desigualdade social, as manifestações contundentes da herança escravista, a hipocrisia dos discursos moralistas e opressivos, a falta de cidadania geral, o desrespeito às leis e a violência urbana (que inclui também a violência do estado e a conivência “sorridente” das classes médias e altas). Caetano Veloso trata todos esses problemas como empecilhos que o Brasil deve enfrentar, a partir de soluções próprias, para poder se inserir de outra maneira no cenário mundial. Ainda aqui, as contradições do país, “entre a delícia e a desgraça, entre o monstruoso e o sublime” (conforme diz a letra de “Americanos”), faz com que o artista/ autor mantenha a afirmação do “dever de grandeza” que tem o Brasil e da necessidade de superar esses problemas para que seu destino se cumpra. É nesse contexto dos anos 1990 que devemos compreender canções como “Fora de ordem” e “O cu do mundo” (de Circuladô), a combinação entre “Black or White” de Michael Jackson e o texto “Americanos”, seguidos da regravação de “Um índio” (de Circuladô ao vivo), a contundência de “Haiti” (de Tropicália 2), a canção tema “A luz de Tieta” (da trilha sonora de Tieta do agreste) e, por fim, o caminho ensinado ao mundo em “As passistas” e a musicalização de um segmento de “Navio negreiro” de Castro Alves (em Livro). Nesse conjunto, prenuncia-se também a chegada de Noites do norte logo no começo dos anos 2000. Devemos observar também a pertinência do disco Fina estampa nesse cenário, na medida em que reafirma o diálogo musical com a América Latina. Aqui também se procede ao deslizamento entre o pessoal e o político, já que as canções escolhidas estão relacionadas às recordações da infância e da juventude em Santo Amaro, quando se ouviam com frequência canções latinoamericanas. Porém, abrir esse diálogo é um gesto de dimensão política, evocando os problemas comuns vinculados à herança colonialista, e

40

reverberando no refrão e nas fusões de “Soy loco por ti América”. Trata-se, portanto, de um gesto afetivo e político de “dignificação da postura cultural latino-americana”19. Esses textos fazem parte da interpretação do Brasil que pretendemos analisar ao longo desse estudo, e terão seu momento de serem comentadas com mais minúcia. Por ora, é interessante ressaltar que o disco Livros, de 1997, apresenta em sua canção homônima um comentário que serve para pensar Verdade tropical: os livros como objetos transcendentes, capazes de “lançar mundos no mundo”. De certa forma, é exatamente esse o processo que estamos analisando no presente estudo.

19 VELOSO, 2005, p. 181. 41

CAPÍTULO II – RECÔNCAVO E RECONVEXO

1. A pré-história do tropicalismo

A parte 1 de Verdade tropical ocupa-se da pré-história do tropicalismo, isto é, dos momentos que antecederam a vinda “definitiva” de Caetano Veloso para fazer música no Rio de Janeiro e em São Paulo. Esse percurso é dividido em três capítulos, intitulados, respectivamente, “Elvis e Marylin”, “Bethânia e Ray Charles” e “Intermezzo baiano”. O primeiro deles apresenta a passagem da infância à juventude, em Santo Amaro da Purificação (no Recôncavo da Bahia), e encerra-se na altura de seus 17 anos, quando Caetano foi para Salvador a fim de continuar seus estudos após o ginásio. O intervalo contemplado estende-se, portanto, dos anos 1940 (Caetano nasceu em 1942) até o final dos anos 1950 – mais especificamente até 1959, quando se concluem seus primeiros grandes momentos formativos. A discussão biográfica sobre essa fase desdobra-se a partir da contemporaneidade com a chegada ostensiva dos fenômenos internacionais de massa ao Brasil (no que concerne ao cinema e à canção popular urbana, mas também à moda comportamental) e, no mesmo momento, com o aparecimento da bossa nova de João Gilberto e de seu impacto no âmbito da cultura nacional. Na sequência, o capítulo “Bethânia e Ray Charles” traça um percurso que começa com a ida de Caetano Veloso e Maria Bethânia para Salvador em 1960, ano em que esta completaria 14 anos e aquele, 18. Segundo o relato, a família tinha o hábito de enviar suas filhas mulheres à capital para cursar o ginásio, enquanto os homens o faziam em Santo Amaro, e só depois iam a Salvador para fazer o clássico20. Ambos os irmãos viajaram, portanto, com o objetivo de dar sequência a seus estudos, cada um em seu respectivo segmento. O capítulo concentra-se na influência de Maria Bethânia sobre o irmão. Aqui também é narrado um período de efervescente atividade cultural em Salvador no início dos anos 1960, em virtude do reitor da Universidade Federal da Bahia, Edgar Santos, que viabilizou a presença de artistas de vanguarda, vindos de diferentes países. Assim, o entorno da universidade com suas escolas de música, dança e teatro, o Museu de Arte

20 Segundo a lei orgânica do Ensino Secundário, de 1942, este curso tinha como primeira etapa o curso ginasial (logo após o término do primário) e depois era dividido em dois cursos paralelos: o clássico (mais voltado para as línguas e as áreas humanas) e o científico (mais voltado para as áreas exatas e para as ciências da natureza). O ginásio durava 4 anos (correspondendo ao que hoje é o Ensino Fundamental II), enquanto o clássico e o científico duravam 3 anos (correspondendo ao que hoje é o Ensino Médio). 42

Moderna da Bahia sob a direção de Lina Bo Bardi e o clube de cinema fundado por Walter da Silveira ofereceram preciosos momentos formativos para o artista. Imersos nesse contexto também estavam Alvinho Guimarães e Duda Machado, que acabaram se tornando outras importantes influências para Caetano a partir desse período. Ainda na mesma seção, narra-se o convite feito a Maria Bethânia para substituir Nara Leão no espetáculo Opinião no Rio de Janeiro em 1965, dirigido por Augusto Boal. Nessa sequência, Caetano conta as primeiras atividades profissionais com a canção popular, narrando a viagem com Bethânia para o Rio, as experiências e discussões com Boal (não apenas no Opinião, mas também no Arena canta Bahia) e as primeiras apresentações do grupo baiano no Teatro Vila Velha em Salvador (com os espetáculos Nós, por exemplo e Nova bossa velha, velha bossa nova). Devolvendo à narrativa as referências temporais precisas, poderíamos propor a seguinte organização desse percurso: em 1963, Caetano Veloso participou da montagem de Boca de Ouro sob direção de Alvinho Guimarães (com participação de Maria Bethânia) e conheceu Gal Costa e Gilberto Gil. Em agosto e setembro de 1964, ocorreu o espetáculo Nós, por exemplo e, em novembro do mesmo ano, Nova bossa velha, velha bossa nova, ambos no Teatro Vila Velha. Em fevereiro de 1965, houve a estreia de Maria Bethânia no Opinião no Rio de Janeiro. Em março, estreou o espetáculo Rosa de Ouro, com Paulinho da Viola e Clementina de Jesus, no Teatro Jovem em Botafogo. Em maio, entrou em cartaz Arena conta Zumbi; e, em setembro, Arena canta Bahia. Todos esses eventos aparecem em “Bethânia e Ray Charles”, porém sem todas essas especificações temporais, que permitem olhar com mais clareza os intervalos que separaram um evento de outro. Repare-se que os espetáculos no Teatro Vila Velha ocorreram com poucos meses de distância entre si (agosto, setembro, depois outubro) e também em relação à estreia do Opinião (por volta de quatro meses depois). O intervalo principal das questões que uniram teatro e música popular concentra-se entre setembro de 1964 e setembro de 1965 e são esses os eventos que servem, não só para narrar o início de profissionalização de Caetano Veloso, mas também para ressaltar as divergências com Augusto Boal, que aparece aqui como uma espécie de pré-antagonista do tropicalismo, sem que, com isso, Caetano Veloso deixe de reconhecer a grandeza e a importância desse personagem. O capítulo “Intermezzo baiano” fala do retorno de Caetano Veloso a Salvador no ano de 1965, para morar e para planejar seu futuro profissional. Ainda incerto sobre seu

43

talento como músico, Caetano pensava em outros rumos, como a pintura ou o cinema, e ainda fala sobre a atração que tinha pela ideia de ser professor. Essa seção conta, portanto, os caminhos que o levaram a escolher a música, decidindo-se mudar para o Rio de Janeiro em 1966, acompanhado da então namorada (futura mulher) Dedé.

2. A risada de Andy Warhol

O título do primeiro capítulo da parte 1 de Verdade tropical – “Elvis e Marylin” – evoca dois grandes ícones, que, no contexto do livro, podem ser entendidos como metonímias da cultura pop americana, respectivamente, nos campos da música (Elvis Presley e o rock’n’roll) e do cinema (Marilyn Monroe e Hollywood). Além desses sentidos, o título faz eco também (e principalmente) à incorporação das figuras de Elvis e Marylin pela obra do artista plástico (também americano) Andy Warhol, expoente maior da pop art dos anos 1960.21 Esse tipo de expressão artística foi capaz de atravessar as segmentações culturais (das convencionalmente chamadas “alta” e “baixa” culturas), revelando e consolidando todo um imaginário baseado nos ídolos populares mundiais, especialmente vinculados ao cinema e à música. O desenvolvimento do imaginário pop, em primeiro momento concentrado nessas áreas, acabou se expandindo para todos os campos de consideração pública. Nas palavras de Caetano, no capítulo em foco: Digo que foi a Marilyn de Warhol – e quase poderia dizer também ‘o Elvis de Warhol’ – que se impôs a mim como figura de algum valor estético e interesse cultural porque foi a reconsideração dos ícones de grande consumo popular, a crescente tendência a tomá-los em si como informação nova, como imagens brutas que comentavam o mundo se nós não as comentássemos, o que comecei a intuir – e a captar em conversas frívolas com amigos e em artigos frívolos de jornal da virada da década de 1950 para a de 1960, que coincidiu com minha mudança de Santo Amaro para Salvador. (VELOSO, 2008, p. 30) 22

21 Em sua autobiografia, Andy Warhol localiza ainda no início dos anos 1960 algumas de suas principais obras, entre as quais o Elvis e a Marylin: “Minha primeira exposição em NY – no outono de 1962 – tinha as latas de Sopa Campbell grandes, a pintura de cem garrafas de Coca-Cola, algumas pinturas Faça Você Mesmo de colorir por números, o Elvis Vermelho, as Marilyns isoladas e a Marilyn dourada grande”. (WARHOL, 2013, p. 37) 22 Já na parte 2 de Verdade tropical, Caetano Veloso afirma ter ido a uma exposição de pop art em 1967 na Bienal Internacional de São Paulo, na qual viu obras de Andy Warhol e Edward Hopper, reforçando seu interesse pela cultura pop no ano mesmo da eclosão do tropicalismo. (VELOSO, 2008, p. 268) 44

O título do primeiro capítulo anuncia, portanto, o processo de elucidação, a partir de Andy Warhol, do universo pop como algo de valor intrínseco. Ao afirmar que as “imagens brutas” dos ídolos populares “comentavam o mundo se nós não as comentássemos”, Caetano sugere que Elvis e a Marylin (ou a coca-cola) de Warhol não deviam ser vistas a partir do arcabouço crítico anterior (isto é, do “nosso comentário”); tomadas em si, profundamente vinculadas ao universo que retratam, essas obras apontavam para uma mudança de paradigma dos valores estéticos e culturais. Convém lembrar que o processo de emergência e de consolidação do universo pop foi narrado pelo próprio Andy Warhol na obra Popism – the Warhol sixties (1980), na qual o artista conta, em registro autobiográfico, os eventos que ajudam a compreender sua inserção no desenvolvimento daquilo que seria o “popismo”. Além de informações relevantes sobre a vida e o trabalho do artista (isto é, o relato sobre suas exposições, sobre o cotidiano da Factory, sobre a produção dos filmes e sobre alguns episódios curiosos), o livro oferece interpretações sobre o período, feitas sempre em tom francamente pessoal e despojado. De suas observações, duas servem à nossa exposição: Os anos 1960 foram uma confrontação atrás da outra, até que por fim todos os obstáculos sociais tinham sido confrontados. [...] A ideia de que alguém tinha o direito de estar em qualquer lugar e fazer , não importa quem fosse ou como estivesse vestido, era uma coisa importante nos anos 1960. (WARHOL, 2013, p. 58)

E, em outro momento, Andy Warhol narra sua chegada em uma exposição, onde foi recebido com histeria coletiva, gritos e pedidos de autógrafos. Sobre isso, comenta: Eu me perguntava o que teria feito toda aquela gente gritar. Tinha visto a garotada gritar por Elvis, pelos Beatles, pelos Stones, ídolos do rock e estrelas do cinema –, mas era incrível pensar nisso acontecendo na abertura de uma exposição de artes plásticas. Mesmo de Pop Art. Por outro lado, nós não estávamos na exposição de arte – nós éramos a arte encarnada e os anos 60 realmente foram sobre pessoas, não sobre o que elas faziam: “O cantor, não a canção” etc.23 (Ibidem, p. 163)

23 O relato de Warhol pode ser associado a uma passagem da parte 2 de Verdade tropical, em que Caetano Veloso narra seu casamento com Dedé, que, embora planejado para ser uma cerimônia íntima, acabou tornando-se um evento pop, a contragosto do artista: “Chegamos à igreja com muito atraso e descobrimos que o engarrafamento se devia à multidão de colegiais que, fardadas da escola, matavam aula para me ver casar. [...] Foi dificílimo chegar no interior da igreja. E mesmo depois de entrarmos , as coisas não se tornaram mais fáceis. Hordas de garotas de farda colegial lotavam o templo, distribuídas por todos os assentos, os corredores, os púlpitos, os altares. Parecia um pesadelo. Elas cantavam “Alegria, alegria” e tentavam chegar junto de mim. As que conseguiam, agarravam-se a cachos do meu cabelo e algumas agrediram Dedé. Minha mãe, sempre tão serena, desmaiou. Bethânia levou uma pancada na cabeça. Eu queria ir-me embora. Mas não dava para sair. O padre pediu silêncio e respeito, em vão. Ele próprio quis desistir da cerimônia, mas também não viu como nós poderíamos sair antes que ele pudesse acalmar a garotada. Resolveu realizar o casamento assim mesmo”. (VELOSO, 2008, p. 188-9) 45

Na primeira citação, fica evidente a associação entre a década de 1960 e as sucessivas “confrontações”, que se relacionavam ao enfrentamento de preconceitos e à quebra de barreiras, e que acabaram culminando, de modo mais amplo, nas diversas lutas por direitos civis e liberdades individuais. A emergência dos movimentos negros, feministas, gays, mas também do movimento hippie e de outras práticas culturais que possibilitavam a permeabilidade e a mistura entre os grupos sociais (a Factory de Warhol é emblemática nesse sentido) estão diretamente associados a esse contexto. E, mais do que a possibilidade de os grupos marginalizados (em vários sentidos) poderem ter acesso ao que quisessem, o artista também havia profetizado, em célebre frase, que todos, em algum momento, teriam seus “15 minutos de fama”, ou seja, também seriam capazes de vivenciar a experiência pop. No outro fragmento, a excitação coletiva em sua presença revela outro dado importante da época (ou melhor, da leitura que Warhol fazia dela): a supremacia dos artistas em relação às suas obras. Esse dado, por sua vez, vincula-se ao culto das celebridades, expresso na afirmação (proferida em tom polêmico) de que “os anos 60 realmente foram sobre pessoas, não sobre o que elas faziam”. Descontando a irreverência da observação, devemos reconhecer sua agudeza em sinalizar o processo de transferência de notoriedade do objeto estético para a figura de seu criador ou, posto de outra forma, uma espécie de transfusão da aura perdida da arte para o próprio artista, convertido em mito (pop). Assim, os anos 1960 se tornaram a década de consolidação desse conjunto de valores, que viriam a se desenvolver nas décadas seguintes, mas que também mudaram as formas de se perceber o que viera antes. Além de Elvis e Marylin, outras figuras da política, da ciência, da literatura e até os papas, enfim, todos os personagens notáveis da vida real (e mesmo da ficção) haviam se convertido em ícones do pop. Isso explica a afirmação de Caetano, no mesmo capítulo, de que o século XX inteiro havia se tornado “uma criação de Andy Warhol”.24

24 “... como se pudéssemos dizer, parafraseando Oscar Wilde sobre Balzac, que o século XX, tal como o conhecemos, é uma criação de Andy Warhol”. (VELOSO, 1997, p. 30) 46

2.1. Os olimpianos modernos

O pensador francês Edgar Morin, em sua obra L’espirit du temps (1962), defende que, no século XX, desenvolveu-se um novo horizonte mitológico, no qual as “vedetes da grande imprensa” – mormente os astros do cinema e da música, os campeões do esporte e os artistas célebres – tornaram-se “olimpianos modernos”. Na esteira de pensá-los como novos mitos, a cultura de massas ganhou outro interesse e nova abordagem de pesquisa, diversa da defendida por Theodore Adorno, que enfatizava apenas as potencialidades homogeneizantes, empobrecedoras, regressivas e estritamente alienantes da chamada “indústria cultural”. Para sintetizar as ideias de Morin sobre o “espírito do tempo”, convém mencionar que, no primeiro volume (cujo título é “Neurose”), o autor procura compreender o imaginário da cultura de massas, especialmente a partir da década de 1930, observando como esta se nutre de elementos populares anteriores, desgastando-os em benefício do espetáculo e da universalização. Além disso, demonstra como essa forma cultural trabalha com novos mitos, que fundam uma ética baseada no prazer e na felicidade (ambos, evidentemente, formulados em moldes específicos). O segundo volume (intitulado “Necrose”) dedica-se a descrever a crise desse modelo e suas consequências para a cultura de massas (especialmente na passagem dos anos 1950 para os 1960). Caetano Veloso chega a se referir a Morin como sendo “o primeiro influenciador do tropicalismo”25. Em Verdade tropical, o pensador francês é citado de modo mais desenvolvido no primeiro capítulo da parte 2: Foi Edgar Morin – cujos livros Rogério [Duarte] comentava e às vezes me lia em voz alta – quem tratava as estrelas holliwoodianas e as personagens de revistas em quadrinhos em termos de uma nova mitologia, que abriu o caminho em minha mente para o entendimento que eu futuramente viria a ter da arte pop, para absorção mais intensa do cinema de Godard, para todo um redimensionamento do rock’n’roll e do cinema americano. (VELOSO, 2008, p. 107)

Veja-se que as ideias de Morin permitiram um entendimento mais preciso acerca das relações entre a arte pop, o rock’n’roll e o cinema americano, que haviam sido introduzidas no capítulo “Elvis e Marylin”. A obra do autor francês apresenta, ainda, outros pontos decisivos para o pensamento de Caetano Veloso, especialmente no que concerne à ideia de forças regeneradoras dentro da própria cultura de massas. Assim, a

25 VELOSO, 2005, p. 72. 47

mesma “indústria cultural” que cria mitos de felicidade (intimamente ligados a ilusões que alienam e anestesiam a classe média e esterilizam suas possibilidades de crítica e de transformação social), também seria capaz de produzir os antídotos para suas próprias forças regressivas. Para esse argumento, Morin observa que a corrente principal da cultura de massas favorece estéticas médias (e aqui a palavra ganha conotação de medíocres), porque tenta alcançar o denominador comum entre vários públicos, que vem de um ambiente médio e são formados para reproduzi-lo. Nesse sentido, a leitura adorniana encontra eco nas palavras do autor francês. Todavia, ao observar que a corrente principal não é unívoca, este põe em questão a tese daquele e, ao mesmo tempo, oferece um novo problema: Mas a corrente principal não é a única. Ao mesmo tempo se constitui uma contracorrente na franja da indústria cultural. Ainda que a corrente média tenha êxito em misturar o padrão e o individual, a contracorrente se apresenta como negativo da cultura dominante. (MORIN, 2011, p. 42)

E, pouco depois:

Assim, nós vemos que a contradição fundamental é a seguinte: o sistema tende a secretar continuamente seus próprios antítodos, e tende continuamente a impedi-los de agir; essa contradição se neutraliza na corrente média, que é ao mesmo tempo a corrente principal; ela se afirma na oposição entre a contracorrente negativa e a corrente principal, mas a corrente negativa tende a ser repelida para a periferia. (Idem)

A sequência do argumento de Morin é ainda mais intrigante: o autor lembra que na “alta cultura”, mais especificamente nos salões artísticos e nas academias literárias, também havia uma corrente média, avessa a ideias revolucionárias e inovações formais, o que o leva a concluir que, ao contrário do que possa parecer, “não houve idade de ouro da cultura antes da cultura industrial”26. Segundo esse raciocínio, o autor expõe que a luta contínua entre conformismo e criação acontece tanto na cultura de massas (da chamada “baixa cultura”) como na “alta cultura”. Entretanto, o caráter mais móvel da primeira em relação à segunda, ainda que não anuncie a chegada da “idade de ouro”, ao menos seria capaz de trazer mais chances de migração da corrente periférica para a principal, complicando o mecanismo de reprodução de valores. É nesse sentido que o segundo volume de L’espirit Du temps chama-se “Necrose”, no intuito de sinalizar que, exatamente na passagem dos anos 1950 para os 1960, muitos elementos periféricos se tornaram centrais, especialmente vinculados à rebeldia jovem. A

26 Ibidem, 43. 48

chamada contracultura passa a ser incorporada pela cultura de massas e, com ela, um conjunto de valores passam a ser assimilados pela corrente principal que, embora os atenuasse, acabou também por veiculá-los, interferindo diretamente na lógica da “indústria cultural”. Diz o autor: Então a adolescência e a intelligentsia, estes dois setores-chave da auto- reprodução social, na medida em que estão em crise e em rebelião, tornam-se os dois elos mais fracos da sociedade burguesa moderna: revelam, amplificam, radicalizam esta crise. (MORIN, 1997, p. 155)

Assim, Edgar Morin se consolida como um “influenciador” do tropicalismo, não só por sua observação do espírito do tempo que aponta para a mitologia da cultura de massas (e que se evidencia na obra de Andy Warhol e no universo pop que ele ajudou a consolidar), mas também porque aponta a necrose de muitos valores por ela propagados, especialmente a partir da centralidade do valor ético da juventude que deu tom à contracultura. Em tudo isso reside o argumento das “forças regenerativas” da cultura de massas, que permite relacionar a análise de Morin e a arte de Warhol, no contexto das instabilidades e das novas possibilidades que impulsionaram os anos 1960 no Brasil e em todo o mundo. E que estão evidentemente presentes no tropicalismo e na obra de Caetano de modo mais amplo.

2.2. A aventura pop

No Brasil, o escritor paulista José Agrippino de Paula publicou, em 1967, a obra Panamérica, uma espécie de epopeia moderna, cujos personagens podem ser vistos de acordo com as ideias de Edgar Morin sobre os novos “olimpianos”. Nesse sentido, participam da narrativa desse “épico pop”, ícones como Marlon Brando, Burt Lancaster, Che Guevara, Joe Di Maggio e, com grande destaque, Marylin Monroe. Esta última, portanto, ao aparecer no título do primeiro capítulo de Verdade tropical, revela, simbolicamente, uma interseção entre Warhol, Morin e Agrippino. É preciso sublinhar que a consolidação de uma sensibilidade pop em Caetano Veloso foi diretamente influenciada pelas ideias de José Agrippino de Paula, mas também de Rogério Duarte, conforme o autor conta no primeiro capítulo da parte 2 de Verdade tropical. Em razão da pertinência desses dois personagens em relação ao assunto que estamos desenvolvendo, convém antecipar a observação de alguns pontos a eles relacionados.

49

Vale lembrar, primeiramente, que Rogério Duarte foi o responsável por apresentar Caetano Veloso ao pensamento de Edgar Morin, o que provocou o redimensionamento de sua perspectiva sobre a arte pop, o rock’n’roll, o cinema americano e também os filmes de Godard. Sobre este último, cabe a citação: Godard também era francês (embora um tanto suíço) e, não menos do que Morin, me induziu a atentar para a poesia da cultura de massas americana, para Hollywood, para a publicidade. Seus filmes eram – são ainda hoje – meus preferidos entre toda a produção daquela época. Desde o momento em que Duda me aconselhou A bout de souffle que eu não apenas constatei que tinha encontrado um novo favorito no cinema mas também que todo o cinema tinha que ser visto por causa dele. (VELOSO, 2008, p. 107)

Pouco antes desse fragmento, Caetano observava como tropicalismo se afasta da cultura francesa, com a qual a brasileira tentava insistentemente se alinhar. Segundo argumenta, a ruptura com esse modelo seria fundamental para revelar traços próprios de nossa cultura, mas, principalmente, para que fossem revistos os juízos de valor que partem de um parâmetro europeu. Curiosamente, são dois franceses (Morin e Godard) que chamam a atenção para os elementos da cultura de massas americana, contribuindo para a dupla ruptura empreendida pelo tropicalismo (da França para os EUA, da cultura erudita para a cultura pop), gerando um desalinhamento potencialmente reorganizador. O filme A bout de souffle de 1960 é uma reverência ao gênero policialesco célebre no cinema americano, narrando a fuga do personagem Michel Poiccard (um fora da lei, ladrão e assassino), utilizando recursos formais que reforçam a referência, ao mesmo tempo em que criam um distanciamento irônico do gênero e dos próprios recursos formais adotados. O cinema de Godard não só refaz as contas entre a cultura erudita e os ícones da cultura de massas americana, como mescla homenagem e crítica, adesão e distanciamento, num eterno exercício de reflexão metalinguística, que dá razão à preferência de Caetano e também à sua afirmação sobre a demanda de rever toda a história do cinema em função desse filme.27 E, se as conversas com Rogério foram fundamentais para essas formulações, Zé Agrippino apontava para a mesma direção, embora em outro registro. Caetano afirma que o interesse por Morin, ou mesmo por Godard, não passavam diretamente pelo escritor paulista, o que é interpretado, como se este já estivesse muito à frente nessas discussões.

27 Caetano aponta a importância de alguns artistas que levam a repensar toda a tradição que os precedeu. No livro, Andy Warhol, João Gilberto e Jean-Luc Godard aparecem como exemplos de destaque. Pode-se dizer que há também no tropicalismo musical o evidente desejo de produzir semelhante efeito. 50

Com isso, podemos considerar o livro Panamérica como uma realização paralela, que confirma as ideias de Morin sobre a mitologia da cultura de massas, como fica claro no prefácio à primeira edição do livro:28 José Agrippino nos deu uma epopeia contemporânea do império americano. Como toda epopeia autêntica, Panamérica tem suas raízes numa realidade histórica, vista sob o prisma de uma elaboração mitológica. Uma das fontes essenciais da mitologia contemporânea é, sem dúvida, o cinema. José Agrippino soube utilizar com extraordinária intuição algumas das figuras mitologicamente fundamentais de Hollywood, sobretudo Marylin Monroe – a Afrodite ianque –, Harpo Marx, Burt Lancaster, Marlon Brando e Joe Di Maggio. Em Panamérica surge também a mitologia da revolução anti-imperialista, centralizada na luta guerrilheira de Che Guevara. O próprio narrador da epopeia é igualmente uma personificação mitológica da América Latina, na sua conquista da Afrodite ianque e nas suas lutas contra o gigante mitológico. Di Maggio, símbolo do padroeiro ianque. (SHENBERG apud AGRIPPINO, 2001, p.11)

É preciso observar que o título do livro, que pressupõe a totalização da América, narra a aventura de uma fissura interna. O Império Americano, liderado pelos Estados Unidos, já havia representado uma virada de hegemonia política no cenário mundial (o Novo Mundo afirmando-se diante do Velho Mundo), mas também cultural, especialmente no que concerne ao universo da comunicação de massas. É justamente inserindo-se no conjunto mitológico inaugurado por essa primeira virada, que o herói do livro aparece como representação da América Latina, de onde emerge a mitologia revolucionária relacionada ao ícone Che Guevara, anunciando uma possível segunda virada, em nome de um protagonismo latinoamericano. De modo mais amplo, a própria estruturação da narrativa pode ser lida, sem receio, como o próprio gesto antropofágico de lançar mão dessa mitologia para revelar-lhe outros sentidos e indicar outros caminhos. Além disso, o livro representa um gesto de desalinhamento com a cultura francesa (especialmente a erudita), acenando para uma autonomia e uma centralidade cultural (e, com isso, política) da América em relação à Europa. No referido prefácio de Caetano, a citação a Schenberg é retomada nos seguintes termos: É um caso único na literatura brasileira. Essa epopeia do Império Americano, como Mário Schenberg a chamou, é um livro marcante. O

28 O prefácio original foi escrito em 1967 por Mário Schenberg e citado por Caetano no prefácio à terceira edição em texto de 2001.

51

texto, além de evitar toda nuance psicológica na construção de personagens e aderir às imagens exteriores e aos atos diretos, apresenta uma áspera uniformidade que se torna visível nas páginas, sempre ocupadas por blocos escuros de palavras, sem parágrafos ou travessões que lhes deem espaço para respiração. É um monolito. Um monolito escuro feito de miríades de visões em cores vivazes que se somam, se multiplicam e se anulam. Compõem-se tais visões de ícones da época do Império Americano. (VELOSO apud AGRIPPINO, 2001, p. 5)

Caetano destaca, ao longo do prefácio, a singularidade e a radicalidade da obra, retomando a ideia de Schenberg (com claros vestígios de Morin) e enfatizando as características formais que confirmam seu caráter radical. Na ausência de traços psicologizantes, no gesto da apropriação, no substrato mitológico, na presença da cultura de massas e na forma monolítica e áspera, anunciam-se vários vetores de determinada modernidade, afinada com a nova cultura americana, relacionada (em alguma medida) com o projeto modernista brasileiro de Oswald de Andrade; mas, sobretudo, desalinhada dos paradigmas anteriores consagrados pela literatura europeia. Podemos associar Verdade tropical a Panamérica sob dois aspectos diferentes. Em primeiro lugar, o tropicalismo representou semelhante gesto de adesão à cultura pop e às mitologias da cultura de massas, tendo em vista também reforçar a virada político-cultural empreendida pelos Estados Unidos em direção à América; porém, tentando promover uma guinada seguinte, valorizando a experiência latinoamericana, em especial, a brasileira. Em segundo lugar, podemos ver a narrativa de Caetano como o desejo de revelar a construção de uma mitologia pop dos fenômenos de massa do Brasil, embora em registro completamente diverso, isto é, com interesse eminentemente não ficcional, mas histórico, analítico, crítico. No entanto, a aventura tropicalista de afirmação da cultura brasileira (e da América Latina e da América de modo geral) não deixa de se avizinhar, em alguma medida, ao universo explorado por José Agrippino de Paula.

2.3. O pop na província

É importante considerar que as discussões sobre o pop, em “Elvis e Marylin”, são propostas a partir de Santo Amaro da Purificação e das cenas de infância e juventude de Caetano Veloso, principalmente nos anos 1950. Para um leitor estrangeiro (e mesmo para um brasileiro), ainda mais de outra época, talvez seja difícil imaginar como era a relação de uma cidade provinciana, no interior da Bahia, com as manifestações nascentes da

52

cultura de massas internacional, especialmente dos EUA (mas também da Europa, com ênfase para o cinema). Essas dificuldades estão ligadas, por exemplo, à identificação dos registros de cultura (o que era considerado “alta” ou “baixa” cultura) e também do acesso das classes sociais (o que era restrito às classes altas, o que era de interesse popular). Note-se, nesse sentido, que o distanciamento histórico também põe em perspectiva o valor das obras, de modo que diversos filmes e canções, atualmente considerados “clássicos” e apresentados a uma elite intelectual em espaços restritos (casas de show ou cinemas especializados), podem ter sido consumidos, anos antes, como entretenimento de fácil acesso a pessoas de classe social mais baixa e formação menos escolarizada. Além disso, caberia perguntar quais eram os países de maior influência cultural (isto é, de onde provinham as músicas e os filmes mais conhecidos no Brasil da época) e sobre o próprio alcance das mudanças de comportamento e gosto (em que dimensão as pessoas aderiram ou se opuseram às modas jovens). No primeiro capítulo de Verdade tropical, o narrador evidencia estar atento a essas questões, que são também reflexo do pouco conhecimento que se tem das cidades do interior do país, de seus costumes, suas modas, seus hábitos, enfim, de suas relações com tudo que soa cosmopolita (o que justifica o trocadilho na canção “Reconvexo”29). Assim, todas as linhas de força do capítulo se encontram situadas logo em seu início: Costumo dizer que, se dependesse de mim, Elvis Presley e Marylin Monroe nunca se teriam tornado estrelas. Fui eu, no entanto, o primeiro a mencionar – não sem que isso representasse um certo escândalo – a Coca-Cola numa letra de música no Brasil. Na segunda metade dos anos 1950, em Santo Amaro, eram muito poucos os meninos e meninas que se sentiam fascinados pela vida americana da era do rock’n’roll e tentavam imitar suas aparências. Rapazes de jeans e botas, moças de rabo-de- cavalo e chiclete na boca eram tipos conhecidos nossos. Mas não apenas eles eram minoritários: eles me pareciam um modelo pouco atraente porque embora fossem exóticos eram medíocres. (VELOSO, 2008, p. 20)

O fragmento situa a narrativa no espaço e no tempo (Santo Amaro, segunda metade dos anos 1950, portanto, adolescência de Caetano) e põe em questão exatamente como esse cenário e esses personagens se relacionavam com a cultura de massas internacional. O escândalo de mencionar a coca-cola numa canção é proveniente de um imaginário político-

29 A letra de “Reconvexo” é construída a partir das relações entre a província (o “Recôncavo”, em referência a Santo Amaro) e seu oposto cosmopolita e globalizado (portanto, o “reconvexo”). Para isso, Caetano cita elementos de ambas as ascendências, da “novena de Dona Canô” à “risada de Andy Warhol”. (VELOSO, 2003, p. 102) 53

ideológico, nacionalista e esquerdizante, que recusava as manifestações da cultura de massas dos Estados Unidos na esteira de pensá-las como expressões do imperialismo americano e, além disso, como negação das próprias raízes culturais; enfim, como alienação política. O que se observa no segmento é uma série de fissuras de pensamento, propostas por Caetano, no intuito de demonstrar os afastamentos e as aproximações feitas pelo tropicalismo dentro do universo das manifestações da cultura de massas. Observe-se em primeiro lugar, que os jovens que aderiram à moda rock’n’roll são identificados como minoria e são classificados como “medíocres”. O adjetivo “exóticos” aparece como contraponto, indicando uma característica apresentada como positiva, desde o começo, por este narrador que também se autofabula e que se afirma frequentemente interessado por tudo que lhe parece exótico.30 O fato é que, apesar do exotismo desses jovens, que seria potencialmente atrativo para Caetano, este vê neles um “modelo pouco atraente”. A mediocridade de seus comportamentos não reside, porém, nas razões que pautariam as críticas aos jovens da moda americana da década seguinte. Afirma Caetano: Não era a inautenticidade cultural que criticávamos neles, uma alienação das raízes regionais ou nacionais – não lidávamos com tais noções, embora uma forma branda de nacionalismo não nos fosse totalmente estranha; o que se criticava nesses meninos era a inautenticidade psicológica visível em seus esforços de copiar um estilo que os deslumbrava mas cujo desenvolvimento eles não saberiam como acompanhar. (VELOSO, 2008, p.20)

A primeira fissura se coloca aqui entre a identidade pessoal e a identidade coletiva. Desse modo, uma discussão que se consolidaria como problema nacional, macropolítico e coletivo, encontra aqui o componente individual como eixo principal da crítica. Aliás, a politização da individualidade viria a ser elemento fundamental dos movimentos jovens dos anos 1960, bem como para a forma de expressão estética e política de Caetano Veloso. O fato de, à época, ele e seus pares não “lidarem com tais noções”, pode ser a origem de uma premissa de pensamento diversa, que vai permitir, anos mais tarde, que o artista se contraponha a essa noções a partir de outra concepção do político. A segunda fissura se mostra na citação da coca-cola, a despeito da recusa de Elvis e Marylin e da objeção aos jovens americanizados. O refrigerante, que aparece na canção

30 Não seria impertinente lembrar aqui que as relações entre exotismo e autenticidade também atravessam as questões vinculadas ao Brasil, a sua cultura e às visões estrangeiras sobre o país. Essa preocupação é de grande importância para o tropicalismo, como se verá com mais detalhes ao longo deste estudo. 54

“Alegria, alegria”, em 1967, marco do movimento tropicalista no festival da canção da TV Record, foi incorporado também por Andy Warhol na célebre obra de 1962, com várias garrafas apresentadas em série. A referência aparece, portanto, mediada pelo universo pop revelado pelo artista, e é esse sentido que Caetano pretende veicular ao incorporá-la à sua canção. Desse modo, a coca-cola não funciona aqui como símbolo da “invasão” cultural americana, mas como uma afirmação do pop como modo de assumir uma época e suas mitologias. Nesse mesmo sentido, há outra fissura quando pensamos que a recusa a Elvis e Marylin está posta em paralelo à sua valorização em outro registro, relacionado à concepção pop de Andy Warhol. Essa avaliação, de modo mais amplo, reflete um abrangente interesse pela cultura de massas internacional, especialmente por suas manifestações no cinema e na canção popular. Por isso, Caetano também fará, no mesmo capítulo a narração (acompanhada da análise) do desenvolvimento desses dois campos a partir de sua experiência pessoal em Santo Amaro. Outra fissura, ainda mais importante, aparece quando, no lugar do primeiro rock’n’roll de Elvis ou do cinema americano de Marylin, Caetano elege outros ícones para apresentar o que considera os momentos formativos mais importantes da sua juventude em Santo Amaro, como a bossa nova de João Gilberto e o cinema italiano de Federico Fellini e Giulietta Masina. O projeto de Brasil revelado por Caetano em Verdade tropical parte justamente dessas fissuras nas leituras e preferências dentro do âmbito do olimpo moderno, bem como de sua perspectiva ser escolhida não a partir de um referente externo (EUA ou Europa), mas de ser desenvolvida a partir de Santo Amaro.

3. Cana doce Santo Amaro

Ainda no capítulo “Elvis e Marylin”, pouco depois do já referido comentário sobre os jovens que seguiam a moda americana e sua falta de autenticidade psicológica, Caetano Veloso relata o episódio mais remoto de sua infância (dentre os contados no capítulo), quando tinha entre seis e sete anos de idade, portanto em fins dos anos 1940. A passagem faz referência a um diálogo com uma tia, que desabafa, “entre divertida e irritada”, que gostaria de morar em Paris e se tornar existencialista. Numa reação tipicamente infantil, Caetano pergunta de imediato o que é ser “existencialista”, ao que é respondido: “os

55

existencialistas são filósofos que só fazem o que querem, fazem tudo que têm vontade de fazer” e que queria viver como eles, “longe dessa vida tacanha de Santo Amaro”.31 A tia é referida por Caetano como “Minha Daia”, expressão merecedora do aposto do narrador, que afirma ainda chamá-la assim (no contexto temporal da escrita do livro). É curioso como essa informação sutil parece servir profundamente aos propósitos de descrever a infância e a cidade, uma vez que se reporta ao uso (e à manutenção de um registro carinhoso, regional e personalíssimo, esboçado a partir da combinação entre um pronome possessivo, que reforça o laço afetivo e familiar, e um nome de gosto infantil , que soa como um apelido). Apesar de sua despretensão, a fala tia acaba por atravessar duas questões chave do livro. A primeira refere-se ao antagonismo entre o desejo cosmopolita da personagem (de viver tal como os filósofos existencialistas de uma grande cidade, nesse caso, Paris), e sua reclamação sobre o modo de vida tacanho da província; isto é, aqui se encena a dicotomia entre cosmopolitismo e o provincianismo. A outra questão é ainda mais reveladora, e diz respeito à interpenetração entre a cultura erudita e a cultura popular, que é revelada, pela análise do narrador, na sequência do diálogo: Numa visão retrospectiva, imagino que Minha Daia, em sua definição de existencialismo – que sem dúvida era pop nos anos 40 -, poderia estar apenas repetindo os versos de uma marchinha carnavalesca de grande sucesso, chamada “Chiquita Bacana”, na qual se completa o retrato da personagem com a informação de que ela é “existencialista/ com toda razão/ só faz o que manda/ o seu coração”, mas evidentemente seu conhecimento do assunto ia além dessa informação contida na marchinha, uma vez que ela se referia a filósofos existencialistas (sem imaginar que eu nunca iria esquecer) sobre aqueles que lhe acenavam com uma vida mais livre do que aquela quer lhe era possível levar em Santo Amaro. (VELOSO, 2008, p. 21)

Assim, Caetano articula a afirmação da popularidade do existencialismo nos anos 1940, utilizando a palavra “pop”, fazendo, a partir daí, um primeiro cruzamento entre as esferas culturais. Nessa esteira, o narrador evoca a canção de carnaval “Chiquita bacana”, que incorpora a informação filosófica do existencialismo, que, apesar de ser um assunto denso, complexo e acadêmico, estava em tudo afinado com as aspirações carnavalescas, fazendo com que as barreiras entre os estratos de cultura parecessem permeáveis.

31 VELOSO, 1997, p. 21. 56

Anos mais tarde, Caetano diria na letra de “Língua” que “se você tem uma idéia incrível é melhor fazer uma canção/ está provado que só é possível filosofar em alemão”32. O fragmento irônico joga com a célebre frase de Heidegger, com o intuito de mostrar que o lugar privilegiado da expressão das ideias no Brasil se dá exatamente no seio da canção popular e, portanto, em meio à cultura de massas33. Assim, aquele pequeno episódio de infância bem poderia ser visto como um ponto de partida para esse juízo, que será um dos eixos do pensamento de Caetano Veloso sobre o país. Voltando à marchinha, a personagem Chiquita bacana é proveniente “lá da Martinica”, território francês no Caribe, portanto, na América Latina. Além disso, veste-se com uma casca de “banana nanica”, o que faz lembrar a natureza tropical e também a cantora brasileira que se notabilizou com chapéus frutais e bananas na cabeça. Observa-se, portanto, que o carnaval, a América, o existencialismo, Carmem Miranda, o cruzamento de estratos culturais, enfim, tudo nessa marchinha serve de introdução ao tropicalismo. O diálogo com a tia também abre caminho para a descrição de Santo Amaro, destacando o que ali se mostra relevante para uma visão mais ampla sobre o Brasil. Nesse sentido, o narrador descreve os aspectos positivos da cidade (descrita a partir da ternura, da fé, da festa, da alegria e da sensualidade), mas também seu componente moralista, provinciano (no mau sentido) e “tacanho”34. A introdução do capítulo se resolve, portanto, nesse eixo, mostrando como a liberdade evidenciada pelos existencialistas era desejável no sentido de abandonar os componentes tacanhos do cotidiano da província, porém sem adotar a rebeldia inautêntica dos jovens americanizados. Santo Amaro é definida por Caetano, em Verdade tropical, como “uma cidadezinha bastante homogênea do ponto de vista arquitetônico” e que, mesmo nos anos 1950, não apresentava discrepâncias sociais gritantes (tal como as que são mencionadas na “Intro” do livro), sendo marcada por uma baixa classe média, que habitava sobradões e casinhas coladas umas às outras, em um ambiente muito próximo “da pobreza semi-rural que circundava a sede do município”35 e sem nenhum contato próximo com a riqueza. O pai de Caetano, segundo também conta, era funcionário dos Correios e Telégrafos e pertencia –

32 VELOSO, 2003, p. 291. 33 Vale lembrar aqui que o compositor faria procedimento semelhante ao colar na canção “Alegria, alegria” a passagem “nada no bolso ou nas mãos”, retirada da conclusão do livro Le mots de Jean Paul Sartre, marcando um novo encontro entre o existencialismo e a canção popular, ou, em outro registro, entre a cultura ilustrada e a cultura pop para o consumo das massas. 34 A expressão nos remete aos versos da canção “Tieta”: “Todo dia é o mesmo dia/ A vida é tão tacanha/ Nada novo sob o sol” (VELOSO, 2003, p. 298) 35 VELOSO, 1997, p. 22. 57

ele e sua família – justamente a essa configuração sócio-espacial. Note-se que, aqui, o narrador apresenta, para além de sua cidade, também seu lugar de fala. Caetano Veloso dá a essa descrição social de Santo Amaro a explicação histórico- econômica que aponta o açúcar como fonte de renda principal da região, interferindo na paisagem com seus engenhos, usinas e vastos canaviais, mencionados, aliás, em algumas de suas canções36. Os patrimônios maiores, segundo explica, estavam centrados em outras áreas do país, de modo que a riqueza do açúcar não ficava, de modo geral, em Santo Amaro. Em seguida, Caetano faz a exposição da vida pacífica da cidade e procede a uma exemplificação dos valores “tacanhos” supracitados, especialmente relacionados a raça, gênero, sexualidade e comportamento. A isso, o narrador faz a importante ressalva de que os preconceitos e os juízos “morais subjacentes”, não raro identificados em seu componente de hipocrisia, não estavam restritos, naquela época, às cidades de interior como Santo Amaro, mas que “com as variações de região, classe e cultura”, repetiam-se em toda a parte. É importante também indicar a importância dos espaços internos, primeiro no sobrado dos Correios onde Caetano vivia com sua família (até seus oito anos) e depois na residência da rua do Amparo37. Segundo o narrador, seu pai trabalhava em casa e muitos amigos a frequentavam, o que era mais comum do que ele ir à casa de outros colegas. É curioso também que, além deste, os cenários que predominam neste primeiro capítulo são o cinema e o bar de Bubu (onde Caetano ia ouvir João Gilberto), sendo perceptíveis a quase ausência de espaços como a sala de aula da escola (que aparece, ora na elipse de raras situações que a pressupõe, ora de forma muito lateral, no contato com colegas mais do que com situações de aula). Essa quase ausência da escola é notável em um capítulo que fala de um processo formativo de uma criança-adolescente. Porém, não é de todo inexplicável: os momentos de aprendizagem que Caetano enfatiza não são os da educação formal, mas do desenvolvimento de suas percepções no ambiente familiar da casa (sempre permeadas pelas relações afetivas, mas também pela excentricidade do narrador em relação a valores provincianos da época), mas principalmente (e mais uma vez) para a supremacia do cinema

36 Os versos mais emblemáticos nesse sentido aparecem nas canções “Trilhos urbanos” (“Cana doce, Santo Amaro/ gosto muito raro trago em mim por ti) e “Motriz” (“que doce amargo cada vez que o vento traz/ a nossa voz que chama verde do canavial, canavial”). 37 Além desse, outros dois espaços de residência aparecem com destaque na narrativa: o apartamento 2002 em São Paulo; e o primeiro endereço em Londres, no bairro do Chelsea, no ano seguinte. 58

e da canção popular (e, portanto, da cultura de massas) também na formação de sua sensibilidade e para o amadurecimento de sua inteligência. E o hábito de descrever a partir de antagonismos também se faz presente na descrição do sobrado e da cidade, quando se destaca não só o ambiente terno, festivo e alegre do Recôncavo (representado pela comida, pela doçura no trato, pelas festas e rodas de samba), mas também sinaliza um ambiente um tanto opressivo (resultante da centralidade da casa, mas também dos costumes “sombrios e solenes”, ligados aos lutos, ao tratamento cerimonioso em relação aos pais e aos hábitos religiosos). Aliás, as formas de tratamento e as respostas rituais são aproveitadas por Caetano Veloso para discutir também aspectos da língua portuguesa, que ajudam não só a compor o cenário, mas também a situar um eventual leitor estrangeiro. Nesse sentido, destacam-se os pronomes de tratamento “senhor” e “senhora” ao se dirigir aos pais, e o ritual de pedir a bênção, para ouvir em resposta “Deus lhe abençoe” ou “Deus lhe faça feliz” ou “Deus lhe dê sorte”. O ambiente interno e seus rituais, bem como os anos 1950 e seus padrões morais, ajudam, na narrativa, a construir o personagem excêntrico, que vai se distanciando de alguns desses valores, tal como quando comunica aos familiares que não acredita em Deus ou quando afirma que, ainda bem criança, “tinha intuições filosóficas complicadas”. É também importante notar que, em muitas autobiografias de artistas, ocorre a narração de algum episódio da infância ou da juventude que tenta revelar a aptidão artística que se desenvolveria posteriormente. Esse procedimento também pode ser visto em Verdade tropical, em um fragmento que sublinha, uma vez mais, a excentricidade e a inteligência peculiar de Caetano Veloso: Extrovertido, falava com todo mundo no ginásio, usava com frequência uma meia de cada cor, deixava o cabelo crescer até muito além da tolerância de minha mãe, para depois raspá-lo por inteiro, não me intimidava quando tinha que cantar diante do público no palco do auditório em dias de festa (e eu imitava muito convincentemente o sotaque português e os arabescos vocais das cantoras de fado, habilidade que levava as platéias a esquecerem o quanto a música portuguesa era convencionalmente considerada ridícula e a deixarem-se emocionar por ela, brindando-me com ovações). (VELOSO, 2008, p. 25).

Essa sequência de cenas e imagens é um exemplo marcante de retrato da infância no livro. Aqui, deve-se enfatizar a (tão comum) cena de uma criança brincando de ser artista e recebendo da plateia (colegas e familiares) as ovações. O episódio, além de reforçar a excentricidade (que é mantida como traço característico de Caetano ainda hoje), 59

também faz alusão ao cabelo muito grande ou muito curto (mas nunca do tamanho “normal” ou “adequado”)38. Assim também se apresentam as meias, evidenciando um índice do componente excêntrico também nas vestimentas. Por fim, há o relato da desinibição ao cantar em público. Porém, o objeto do canto estava muito distante do rock’n’roll (que seria mais coerente para um jovem da época de Elvis): Caetano aparece cantando fado, o que não só aponta um elo formativo do Brasil (o resgate de Portugal por sua canção popular)39, como também o procedimento tropicalista de chamar atenção para a força e a beleza de coisas usualmente consideradas antiquadas. Toda a cena configura-se, portanto, como um claro exemplo de registro autobiográfico que organiza situações passadas para dar sentido a situações posteriores. Porém, a informação mais importante sobre a infância-adolescência de Caetano, e que serve de chave para o capítulo, aparece relacionada à casa da rua do Amparo, como já dito, endereço posterior ao sobrado dos Correios. Diz o narrador: Nessa casa da rua do Amparo, onde minha mãe vive até hoje, aconteceram as coisas mais importantes de minha formação. Ali descobri o sexo genital, vi La strada, me apaixonei pela primeira vez (e pela segunda, que foi a mais impressionante), li Clarice Lispector e – o que é mais importante – ouvi João Gilberto. (Idem)

O fragmento identifica os momentos formativos mais decisivos do autor-narrador, tendo em vista iluminar traços de sua personalidade posterior, seja no âmbito privado, seja no que concerne à sua expressão artística, sempre em aliança. O caráter de permanência e gênese é reforçado no fragmento pelo dado de que a mãe, Dona Canô, ainda vivia (à época da escrita do livro, décadas depois) na mesma residência. Também é digna de nota a coincidência do nome lírico da rua, que evoca o amparo íntimo de ordem familiar, afetiva e relacional, mas também o sentido de alicerce para a percepção de mundo que se formaria naquele sujeito. Além dos eventos de ordem mais íntima – o sexo genital e as duas primeiras paixões –, restam três núcleos artísticos, que ajudam a orientar o estudo: Clarice Lispector; Federico Fellini e Giulietta Masina; e, por fim, João Gilberto.

38 O cabelo é um elemento importante no conjunto da narrativa, especialmente associado ao comportamento contracultural. Nesse sentido, é emblemático o uso dos cabelos longos no fim dos anos 1960 e durante todos os anos 1970. 39 Cabe lembrar, aliás, que até hoje em seu canto, por vezes, podemos ver marcas vocais que resgatam essa influência. 60

3.1. A imitação da rosa – o caso Clarice Lispector

De modo geral, alguns elementos da literatura de Clarice Lispector poderiam ser imediatamente relacionados às questões levantadas em “Elvis e Marylin”: a busca de uma vida mais livre, a preocupação com uma existência mais autêntica, a aversão às normas estabelecidas, a possibilidade de ultrapassar identidades sociais limitadoras e, por fim, a excentricidade dos personagens e da própria autora. Aliás, vale observar que essas características também aparecem usualmente associadas ao existencialismo, além de ecoarem, posteriormente, nas buscas da contracultura dos anos 1960. Todavia, em seus relatos sobre a descoberta da obra de Clarice, Caetano dá maior ênfase aos elementos formais, que se apresentam a ele como grande novidade. Além disso, esse registro se oferece como índice de modernidade, conforme afirma em 1995:40 Um conto de William Saroyan lido acidentalmente na infância, Clarice Lispector na revista Senhor, o neo-realismo italiano, mas sobretudo João Gilberto tinham me levado a uma ideia do moderno com a qual eu me comprometi desde cedo. (VELOSO, 2005, p. 272)

Essa publicação é pouco anterior a Verdade tropical, e, à exceção do conto de Saroyan, observam-se justamente os mesmos três eventos estéticos fundadores, referidos no livro: o contato com Clarice Lispector, o neo-realismo italiano (relativo ao filme La strada de Fellini) e a obra de João Gilberto. Desse modo, o elo que une os três personagens chave desse primeiro capítulo é o fato de, em conjunto, traduzirem para o jovem Caetano uma “ideia do moderno”. No capítulo “Elvis e Marylin” são desenvolvidos os eixos temáticos de Fellini e Giulietta (inseridos numa discussão sobre cinema) e João Gilberto (estudado na esteira da canção popular). Clarice Lispector, entretanto, só é comentada com mais vagar na seção “Antropofagia”, na parte seguinte do livro. Isso acontece porque, depois de indicar a importância da autora em seu processo formativo (na primeira parte) Caetano relata como o contato com a obra de Oswald de Andrade causou um distanciamento de Clarice às vésperas do tropicalismo (na segunda). Os encontros e desencontros entre o artista e a escritora são também narrados no texto “Clarice Lispector”, escrito para o catálogo de uma exposição sobre a autora em1992:41

40 Trata-se do texto de apresentação do livro Avant-garde na Bahia, de Antônio Risério. 61

O meu primeiro contato com um texto de Clarice Lispector teve um enorme impacto sobre mim. Era o conto “A imitação da rosa” e eu ainda morava em Santo Amaro. Fiquei com medo. Senti muita alegria por encontrar um estilo novo, moderno – eu estava procurando ou esperando alguma coisa que eu ia chamar de “moderno” –, mas essa alegria estética (eu chegava mesmo a rir) era acompanhada da experiência de crescente intimidade com o mundo sensível que as palavras evocavam, insinuavam, deixavam dar-se. (Ibidem, p. 283)

Em Verdade tropical, na seção “Antropofagia”, Caetano oferece relato equivalente: Quanto à Clarice, eu a idolatrava desde 59 quando, em Santo Amaro, li na revista Senhor o conto “A imitação da rosa”. Nos primeiros anos 60, segui lendo tudo o que ela escreveu e escrevia, meu irmão Rodrigo sempre me comprando seus livros. (VELOSO, 2008, p. 283)

Assim, tanto no texto para a exposição quanto em Verdade tropical (poucos anos depois), Caetano menciona que conheceu a literatura de Clarice por intermédio do irmão Rodrigo Veloso, a partir da assinatura da revista Senhor. É curioso notar também que, das três grandes referências da primeira formação, a única que pertence originalmente à cultura erudita (e não de massas) não foi acessada pela via livresca, mas por meio de uma revista, isto é, de um meio de comunicação culturalmente mais permeável e mais abrangente.42 Nesse sentido, ambos os relatos (no catálogo e no livro) expõem também o fato de que o primeiro contato de Caetano foi com os contos (não com os romances), sendo “A imitação da rosa” o primeiro de todos. Essa peça é emblemática da produção clariceana, contando a história da submissa e rotineira Ana que, seguindo o exemplo da beleza das rosas, acaba se tornando luminosa. Mais do que o percurso do enredo, a própria elaboração formal daria a Caetano uma dimensão do “moderno” (tal como se deu com o neo-realismo italiano ou com a bossa nova). O contato mais profundo com a obra de Oswald de Andrade, porém, pôs em perspectiva o acervo literário a que Caetano tivera acesso anteriormente, afastando-o de Clarice Lispector. A organização desse movimento, da aproximação ao afastamento, é contado de forma semelhante no livro e no texto para o catálogo. Em ambos, a trajetória começa nos contos da revista Senhor e passa pela aproximação pessoal com a escritora, quando a partir de 1966, morando no Rio, Caetano consegue o número de Clarice e

41 A exposição A Paixão segundo Clarice Lispector aconteceu no Centro Cultural do Banco do Brasil no Rio de Janeiro. 42 Vale lembrar que Clarice Lispector não escreveu apenas para revistas especializadas em literatura, mas também para periódicos voltados a um público mais amplo, o que indica a permeabilidade da própria escritora, transitando entre os “estratos” de cultura. 62

começa com ela uma amizade telefônica habitual. No ano seguinte, a mudança para São Paulo coincide com um momento de mútuo desinteresse entre ambos. Esse início de afastamento teve seu ápice em um encontro casual, em uma reunião de artistas e intelectuais no Rio em 1968, em razão do assassinato do estudante Edson Luís. Na narrativa (também comum aos dois textos), Clarice chamou Caetano e se apresentou nessa ocasião. O narrador conta que houve, em verdade, um desencontro, pois o episódio aconteceu justamente no momento em que o desenvolvimento de sua formação intelectual o havia afastado da literatura clariceana, deixando a situação envolta numa atmosfera de constrangimento mútuo e tristeza, especialmente por parte dele. É assim que ele expressa a mudança, no penúltimo parágrafo do capítulo “Antropofagia”: Hoje amo sua literatura como quando eu tinha dezesseis anos, mas no meio da Tropicália, sob o impacto de Oswald, ela me pareceu demasiadamente psicologizante, subjetiva e, num certo mau sentido, feminina. Essa é a primeira vez que digo isso – e talvez só o faça porque não penso ou sinto mais assim (não preciso pensar e sentir assim). (VELOSO, 2008, p. 256)

E, pouco depois, encerrando o capítulo: Muitas vezes penso ainda hoje em como é significativo que o tropicalismo tenha me custado, entre outras coisas, o diálogo com Clarice. (Ibidem, p. 256)

Note-se que “o diálogo com Clarice” é uma referência dúbia à afinidade com a obra da escritora, mas também ao episódio do encontro constrangido entre eles, narrado linhas antes. E, mais uma vez, o movimento narrativo volta-se para sinalizar aproximações e fissuras que ajudam a compreender o tropicalismo. Aqui, poderíamos observar que o primeiro encontro com a obra de Clarice colocara Caetano em contato com uma informação de modernidade, embora o acesso mais aprofundado à produção de Oswald apontou para outro caminho dentro do âmbito do moderno. E, que no momento desse “impacto”, houve a necessidade (era “preciso pensar e sentir assim”) de escolher caminhos para o movimento, o que foi feito em chave oswaldiana. Passada a necessidade de escolha, Caetano pôde reencontrar seu amor e sua admiração pela obra de Clarice.

3.2. Luz puríssima – o caso Federico e Giulietta

Para compreender a importância de Federico Fellini para Caetano Veloso, vale citar seu artigo de 1997 para O Globo, no mesmo ano de publicação de Verdade tropical:

63

Faço música popular e sou apaixonado por cinema. Minha música está cheia de imagens invisíveis que vieram das grandes telas. As imagens escondidas no mais fundo do meu som, as que marcaram mais decisivamente seu sentido, vieram dos filmes de Fellini. (VELOSO, 2005, p. 219)

De fato, Caetano é um dos compositores que mais recorrentemente evidencia, não só no nível do conteúdo, mas também da forma, uma íntima relação com o cinema. Mais que isso, o encontro entre as canções e os filmes aponta para a profunda relação com a cultura de massas: essas duas formas de expressão são, justamente, as que mais dão matéria às serigrafias de Wahrol (e aos olimpianos de Morin), de modo que essa relação deve ser vista também, em quadro mais amplo, como uma aproximação com o universo pop. Nesse sentido, alguns dos mais importantes momentos da trajetória intelectual que Caetano apresenta em Verdade tropical estão relacionados ao cinema. Cabe destacar, nesse sentido, o já referido La strada de Fellini, mas também Terra em transe de Glauber Rocha, que será discutido em momento oportuno. Além disso, de modo geral, todo o livro é atravessado por citações a filmes diversos, a discussões sobre o neo-realismo italiano e a nouvelle vague francesa, mas também sobre o cinema novo e o cinema marginal no Brasil. Alguns filmes de Fellini são mencionados com mais frequência por Caetano ou estão mais diretamente relacionados às discussões presentes em Verdade tropical. A partir desses critérios, valeria destacar: I vitelonni (1953), La strada (1954), Le notti di Cabiria (1957), La dolce vita (1960), Amarcord (1973) e La voce de la luna (1990)43. Esse conjunto permite iluminar a presença do diretor, e também de Giulietta Masina entre os momentos formativos mais importantes de Caetano, citados no capítulo “Elvis e Marylin”. Começando por Amarcord, convém sinalizar que esse título é uma alusão à expressão “io me ricordo” (sugerida por seu equivalente fonético), isto é, “eu me recordo”, que, aliás, conserva na estrutura da palavra a ideia de que re-cord-ar é trazer de volta ao coração. É, portanto, um filme de memórias afetivas, da infância do personagem Tito, que se passa na década de 1930. Há na narrativa, fragmentos reconhecidamente autobiográficos do diretor, o que não o afasta de seu caráter eminentemente ficcional. No filme, é possível observar a vida escolar entre travessuras e autoritarismos, as discussões familiares, a ascensão do fascismo, os hábitos religiosos, os festejos nos espaços públicos, os desejos sexuais da juventude e, em vários momentos, a cultura

43 Os títulos em português desses filmes são, respectivamente, Os boas-vidas; A estrada da vida; Noites de Cabíria; A doce vida, Amarcord e A voz da lua. 64

popular moderna, desde o tocador de acordeão cego até a presença do próprio cinema. Em Amarcord, a narrativa pouco linear constrói-se a partir da justaposição dos episódios da lembrança do protagonista, que vão, a um só tempo, pontuado sua formação como indivíduo e revelando o contexto histórico-cultural daquele povoado e, de modo mais amplo, da Itália à época. Por tudo isso, não seria impertinente fazer aproximações entre o filme e “Elvis e Marylin”, uma vez que, em ambos, as memórias de infância são organizadas de modo a revelar uma formação individual, mas também um contexto histórico local e nacional. De modo mais específico, seria possível identificar traços de uma infância “felliniana” na narrativa de Caetano na descrição lírica de uma meninice na província, na qual ternura, fé, opressão, festa, sensualidade, personagens típicos e a cultura popular (seja ela regional e folclórica, seja ela expressa pela indústria do cinema ou da canção) vão atravessando os episódios familiares e regionais, resgatados pela lembrança e organizados pela linguagem artística. No entanto, o caráter híbrido da narrativa de Caetano também nos exige os devidos distanciamentos. Se em Fellini, a análise dos episódios fica a cargo do espectador, o narrador de Verdade tropical a todo tempo interpreta o que está sendo narrado, com o objetivo muito claro de explicar a emergência do tropicalismo como fenômeno de massa e, para tanto, os momentos decisivos da formação de um de seus protagonistas, no caso o narrador. Tudo isso interfere diretamente não só na seleção do que é contado, mas também na sua forma de organização, para além das óbvias distinções entre objetos estéticos de naturezas tão distintas. De todo modo, a narrativa de “Elvis e Marylin” apresenta contornos fellinianos, não só porque evidencia um lirismo típico do diretor em diversas passagens (os hábitos e as discussões familiares, os personagens e espaços de Santo Amaro, as excentricidades do protagonista etc), mas porque a presença dos filmes do diretor, em especial, I vitelloni, La strada e Le notti di Cabiria, são intrínsecos a sua própria lembrança da cidade. Os filmes La doce vita e La voce de la luna são posteriores a esse contexto, mas serão de apreciação oportuna no âmbito das discussões de Caetano sobre o cinema, a cultura de massas e a modernidade.

65

3.2.1. Cine Santo Amaro

O capítulo “Elvis e Marylin”, em uma de suas partes, dedica-se a esclarecer como eram os hábitos dos jovens de Santo Amaro em relação ao cinema, ainda na tentativa de observar as relações da província nos anos 1950 com a cultura de massas internacional. Essa empresa começa com a afirmação de Caetano de que, mesmo antes de Elvis, os jovens da cidade já acompanhavam a cultura de massas americana, destacando a presença do mito do caubói (inclusive suas apropriações nacionais, como no caso do cantor Bob Nelson) e ainda dos musicais da MGM, estrelados por Gene Kelly e Cyd Charisse. Entretanto, o grande interesse do capítulo é mostrar que o cinema europeu era também conhecido na província, especialmente os filmes franceses e italianos. Nos primeiros, a “exposição da intimidade erótica” era o grande atrativo, segundo o relato, enquanto nos últimos, era a “seriedade” do neo-realismo e de seus desdobramentos que causavam comoção. Mais do que isso, o que Caetano descreve é o reconhecimento de traços do próprio cotidiano “nas imagens gigantescas e brilhantes das salas de projeção”, num movimento de aproximação não apenas entre arte e vida, mas entre a vivência da Itália dos anos 1950 e de uma cidade no interior da Bahia na mesma época. Nesse sentido, cabe analisar duas passagens de Verdade tropical que falam respectivamente dos filmes La strada e I vitelloni, e que aparecem também no já referido artigo de O Globo, também de 1997. As passagens no livro e no jornal variam detalhes, mas mantém a ordem e a essência dos episódios narrados. Comecemos pela citação do primeiro filme em “Elvis e Marylin”: Um dos acontecimentos mais marcantes de toda a minha formação pessoal foi a exibição de La strada de Fellini num domingo de manhã no Cine Subaé (havia sessões matinais aos domingos nesse que era o melhor – único que chegou a ter cinemascope dos três cinemas de Santo Amaro). Chorei o resto do dia e não consegui almoçar – e nós passamos a chamar Minha Daia de Giulietta Masina. (VELOSO, 2008, p. 28)

O fragmento atravessa questões interessantes do cotidiano de Santo Amaro. Observe-se aqui, em primeiro lugar, a presença de apenas três cinemas na cidade (dos quais apenas um tinha a tecnologia mais avançada do cinemascope44. Além disso, vale notar que o cinema aparece como programação matinal de domingo, horário menos comum atualmente. E, mais que isso, cabe sublinhar a identificação carinhosa que Caetano

44 Cinemascope é o nome do recurso tecnológico que permitia filmar e projetar as películas em imagens mais largas do que era comum na época. 66

faz entre a tia e a estrela do cinema italiano, mostrando o caráter afetivo das projeções que são feitas da cultura de massas para a realidade (e, curiosamente, é exatamente a tia que queria ir para Paris deixar a vida tacanha de Santo Amaro, que é identificada com a estrela mundial do cinema). Em La strada, a personagem Gelsomina (Giulieta Masina) é vendida pela mãe para trabalhar com Zampano (Anthony Quinn), que é um homem bruto que ganha a vida apresentando sempre o mesmo número circense pelas cidades da Itália (que consiste em romper com a expansão peitoral, uma corrente previamente amarrada ao redor do tronco). Seu contraponto é um personagem arlequinal que sempre lhe desperta a fúria, fazendo as mais diversas provocações. Em dado momento, em diálogo de grande lirismo com Gelsomina, este personagem (referido como “Louco” na sinopse do filme) explica-lhe que tudo na vida tem um sentido, das estrelas do céu até uma simples pedra (e, assim, conforme conclui, também Gelsomina). Cenas depois, contudo, o Louco acaba morto por Zampano numa briga, o que acarreta o adoecimento da personagem de Giulietta Masina. Na sequência, este a abandona, e só volta a ter notícias dela tempos depois, quando descobre sua morte45. O bronco artista circense termina o filme solitário e aos prantos, caído sobre a areia da praia. No texto publicado em O Globo, Caetano afirma que assistiu a La strada ainda aos 15 anos, isto é, em 1957 (apesar de a obra ser de 1954), e explica que sua grande emoção (e o motivo de seu choro e de ter passado o dia sem comer) deu-se quando constatou que, na cena final, Zampano olhava pela primeira vez para o céu (enquanto cambaleava pela areia, iniciando seu próprio pranto de perda). Na descrição de Caetano: Eu pensava repetidas vezes abismado: é a história de um homem que nunca olhou para o céu e só o faz depois de destroçado. As estrelas do Louco – as estrelas que o Louco reencontrava nas pedras e em Gelsomina – revelavam-se agora aos brutamontes por intermédio da ausência de quem ele não soubera reconhecer como único amor maior de sua vida, como seu destino. (VELOSO, 2005, p. 217)

Gelsomina e Zampano são iluminados, desse modo, pelas palavras do Louco e por sua lição sobre o significado da vida, na medida em que identificou nas estrelas e nas pedras o sentido de todas as coisas. O lirismo da cena (e o embargo que provoca) é que a descoberta desse sentido se dá simultaneamente à perda de todo sentido, numa cena que

45 Ouvindo uma mulher cantarolar a música que Gelsomina gostava de tocar à corneta (e que é o comovente tema de Nino Rota para o filme), Zampano pergunta sobre onde a aprendera e, assim descobre (e também o espectador) que a ex-companheira havia morrido. 67

concentra a morte da figura mais doce e mais lírica (encarnada em Gelsomina), e, ao mesmo tempo, o enternecimento do ser mais bruto e mais insensível (representado por Zampano).46

Cabe agora comentar o outro filme que ganha menção (muito semelhante, aliás) tanto no livro quanto no artigo. A citação de I vitelloni em Verdade Tropical é suficiente para a análise: Seu Agnelo Rato Grosso, um mulato atarracado e ignorante que era açougueiro e tocava trombone na Lira dos Artistas (uma das duas bandas de música da cidade – a outra se chamava Filhos de Apolo), foi surpreendido por mim, Chico Mota e Dasinho, chorando à saída de I vitelloni, também de Fellini, e, um pouco embaraçado, justificou-se limpando o nariz na gola da camisa: “Esse filme é a vida da gente”. (VELOSO, 2008, p. 217)

I vitelloni (1953) conta a história de cinco amigos (Moraldo, Alberto, Fausto, Leopoldo e Ricardo) na cidade de Rimini (terra natal de Fellini). Os personagens são registrados em suas ocupações e, especialmente, em seus ócios; dois deles recebem mais ênfase: Fausto, que é um típico boa-vida que acaba engravidando a namorada e tendo que migrar do universo da vadiagem para o do lar e do trabalho (coisa que faz com muita dificuldade) e Moraldo, que decide mudar de vida e seguir em um trem para Roma (desfecho que pode ser relacionado à própria biografia do diretor). Na comovente cena final, o movimento e o som do trem partindo projeta-se metaforicamente nas imagens dos demais personagens que também seguem seus destinos. O rapazinho que trabalha na estação (e que conversava muito com Moraldo) corre em direção ao trem em movimento para permanecer mais tempo dando adeus. Em seguida, dirige-se ao sentido oposto e começa a caminhar liricamente sobre um dos trilhos, equilibrando-se com os braços abertos, numa quase queda que evoca, a um só tempo, o circo (que está na alma do cinema de Fellini) e a instabilidade dos caminhos da vida, com suas escolhas e seus imprevistos.

46 Um procedimento de choque semelhante (mas no caminho inverso) pode ser visto em Le notti di Cabíria (1957), considerado no mesmo artigo de O Globo como o filme “mais perfeito” já dirigido por Fellini. A protagonista interpretada por Giulietta Masina é uma prostituta que sonha viver um grande amor, mas começa e termina o filme sendo enganada por homens interessados apenas em lhe tomar o dinheiro. Depois de arrasada pelo último golpe, Cabíria volta do meio do bosque (onde quase fora assassinada) à estrada muito entristecida, até que é envolvida por uma banda circense, que lhe arranca gradativamente o sorriso e restaura o sonho no momento mesmo da máxima desilusão. 68

Segundo a narração de Caetano no livro (repetida no artigo de jornal), Seu Agnelo Rato Grosso sai do cinema emocionadíssimo. A referência nominal ao personagem é bastante sugestiva: o uso do nome completo; a forma de tratamento “Seu”, respeitosa, mas sem indicar classe social alta; o primeiro nome incomum “Agnelo”; o sobrenome composto pela combinação entre “rato” e “grosso”, ambos remetendo à dureza, à aspereza, à brusquidão. Caetano ainda o especifica como sendo um “mulato atarracado e ignorante”, que trabalha como açougueiro (posicionando-o socialmente, identificando sua raça e sua escolaridade e, ainda, confirmando sua aspereza no entorno semântico de sua profissão). Em contraponto a essas características, um traço de lirismo e de alegria o complexifica: é tocador de trombone de uma banda da cidade, embora o instrumento por ele escolhido não seja marcado propriamente pela sutileza. No relato de Caetano sobre o episódio, três informações importantes se condensam. Em primeiro lugar, é interessante perceber que esse tipo de personagem tem interesse e possibilidade de acesso ao cinema (e, neste caso específico, ao cinema europeu). Em segundo, o motivo do choro é porque o filme “é a vida da gente”, isto é, observam-se aí semelhanças entre cotidianos aparentemente tão distantes, que sugerem não só aproximações entre Santo Amaro e Rimini, mas também apontam para a força das grandes obras que tocam temas universais. A terceira – e a mais importante – é pensar a possibilidade que o cinema (e, portanto, a cultura de massas) tem de alcançar e emocionar até os mais ignorantes e embrutecidos, e oferecer-lhes conhecimento e emoção. O Zampano das telas é também Seu Agnelo Rato Grosso, que, por sua vez, percebe-se nos “boas-vidas”, no homem que faz suas escolhas no cotidiano das cidades ou que migra para tentar outra vida, mas também no menino que se equilibra no trilho do trem que parte. Essa força da cultura de massas, que consegue atravessar o empecilho da escolaridade (“uma obra-prima ao alcance de muitos”), pode ser observada também na canção, como oportunidade de acesso do amplo público a grandes produções artísticas. Além disso, é interessante perceber como Fellini é um representante da cultura popular (não só porque atua no âmbito moderno do cinema, mas também porque seus filmes incorporam frequentemente o circo e outras formas de entretenimento populares), mas também um artista refinado, que lança mão de discussões densas e de procedimentos estéticos elaborados, embaralhando as distinções estanques entre “alta” e “baixa” culturas.

69

3.2.2. A doce vida

Para pensar os filmes de Fellini, é interessante lembrar que Edgar Morin fala sobre a mitologia da felicidade e da presença recorrente do happy end como parte integrante do universo da cultura de massas. Na primeira parte de seu L’espirit du temps, relacionada à “Neurose”, Morin afirma que “não é senão na periferia artística e crítica da cultura de massa que a mitologia euforizante se encontra convertida” e cita como exemplo Fellini e Antonioni que “colocam no centro de sua visão a zona de sombra: o fracasso e a tragédia”.47 Porém, convém citar o desenvolvimento dessa ideia na segunda parte, “Necrose”: Paralelamente, os filmes de Antonioni e Fellini (La dolce vita, depois A aventura, A noite, O deserto vermelho) popularizam a crise dos ricos privilegiados da sociedade moderna, que levam uma vida livre de dificuldades: a sucessão de festas, de aventuras amorosas, de viagens, aparece não mais como a realização da própria felicidade, não mais como uma vida de grandes festas eufóricas, mas como uma vida de tristes férias, atormentada pela solidão e pela neurose. A crise dos olímpicos desequilibra todo o edifício ideológico da cultura de massas. (MORIN, 1977, p. 110)

No artigo d’O Globo, Caetano afirma ter ido ver La dolce vita (1960) por volta de dez vezes em Salvador. A vida esvaziada das estrelas da cultura de massas bem como a impertinência dos paparazzi (substantivo metonímico derivado exatamente de um personagem do filme, o jornalista Paparazzo) estão representados de modo a refletir sobre a artificialidade da “doce vida” dos artistas, que oferecem suas intimidades, em revista, à curiosidade do público. Os valores estimulados pela nova mitologia – o sucesso, a riqueza, o amor, a sensualidade, enfim, a felicidade – aparecem aqui necrosados, revelados como ficção do real. O fragmento de Morin, há pouco citado, interessa à nossa discussão na medida em que a crise dessa mitologia olímpica veio a se desenvolver justamente na segunda metade do século XX, segundo o entendimento do pensador francês, que observa a ambiguidade das tendências da cultura de massas, especialmente a partir de uma corrente periférica que projeta a decadência da sociedade burguesa e de seus valores, e acaba apresentando como protagonistas, exatamente, os jovens que a põe em xeque. E, se Morin cita Godard, Elvis e Yves Saint-Laurent, poderíamos ampliar a lista para James Dean, Jim Morrison, Janis Joplin, Jimi Hendrix, Mick Jagger. Afirma o autor:

47 MORIN, 2011, p. 23. 70

Este novo tipo de participação, que é uma pretensão a significar a recusa da integração na sociedade de consumo, a marginalidade e a recusa do sistema não são mais vividos como momentos perturbadores e incertos de um caso (crise da adolescência...) que se resolverá, mas tendem cada vez mais a impor-se como uma ética e um modo de vida permanente até ao anseio da intelligentsia. (MORIN, 1977, p. 134)

Essa ética da juventude é fundamental para compreender o desenvolvimento da cultura de massas entre os anos 1950 e 1960 e, especialmente, suas potencialidades de ruptura com o sistema de representação, em vez de sua permanente reprodução. A ética jovem é acompanhada da exaltação da “marginalidade”, que é de grande importância para o tropicalismo. Esse tema segue, como se vê, uma corrente internacional no âmbito da cultura de massas, embora já estivesse posta no próprio fluxo da cultura nacional, especialmente no samba que exalta o malandro, o marginal. A transformação da rebeldia transitória da adolescência numa espécie de ética na qual a juventude torna-se um valor (“um modo de vida permanente”) pode ser associada diretamente a Caetano, não só para o entendimento de sua obra musical e do tropicalismo, mas também para a autofabulação que faz em Verdade tropical, na qual a idealização romântica da juventude reaparece nos anos 1950 para os 1960, no coração da cultura de massas. Vale observar também que Fellini se insere nesse cenário de crise do imaginário que havia sido consolidado pela cultura de massas. Em seu lirismo romântico, encarnado por vezes em Giulietta Masina, há inadaptação e desejo de ruptura. Esses elementos, aliás, são recorrentes também na obra de Clarice Lispector (em outro registro, evidentemente), como se vê, por exemplo, na juventude indomável de Joana de Perto do coração selvagem. É preciso, por fim, estar atento ao fato de que a emergência da trindade amor, beleza, juventude na cultura de massas internacional está completamente afinada com o universo da bossa nova de João Gilberto.

3.2.3. Giulietta Masina

Na sequência das discussões sobre cinema em Verdade tropical, Caetano fala acerca do interesse maior sobre as beldades do cinema italiano e francês em relação às americanas, recorrentemente usando como contraponto a atriz Marylin Monroe, pela qual Caetano apresentava desinteresse até sua ressignificação por Warhol. Como referências de beleza (e mesmo como símbolos de um tempo), estiveram sempre à frente, em sua opinião,

71

Sofia Loren e Gina Lollobrigida, tal como Brigitte Bardot e Claudia Cardinale (estas últimas citadas em “Alegria, alegria”). Giulietta Masina, por outro lado, aparece em papel importante e peculiar no processo formativo da sensibilidade de Caetano. Em artigo para a Folha de São Paulo, em razão da morte da atriz em 1994, diz ele: Suas delicadas caretas, tão gráficas quanto as de Chaplin e tão etéreas quanto as de Harry Langdon; o ritmo do seu corpo pequeno, tão vivo e tão simplificado e convencional quanto o de uma figura de desenho animado, decidiram a grandeza do filme e a ultrapassaram: Gelsomina se tornou, como D. Quixote, como Carlitos, como Hitler, como Mickey Mouse, como o Crucificado, uma imagem concentrada que vem ao mundo nitidamente para dizer o que só ela diz. (VELOSO, 2005, p. 224)

O fragmento acima ecoa o célebre texto de Walter Benjamin sobre “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica” (1935-6), no qual o pensador reconhece as possibilidades revolucionárias do cinema, e encontra em Carlitos e em Mickey Mouse exemplos produtivos, na medida em que seriam personagens do sonho coletivo, tal como poderíamos estender a Quixote ou Cristo. A sequência das citações é proposital: ao quixotesco Carlitos, segue-se a figura de Hitler, cuja imagem ganhou força no século XX ao ser veiculada pelo aparelho de propaganda nazista (por meio da “indústria cultural” criticada por Adorno); por outro lado, Chaplin incorporou Hitler no cinema, valendo-se do aparato técnico dessa mesma “indústria”: no filme The great dictator (1940), o chefe de estado da Alemanha nazista aparece devidamente inferiorizado pelos recursos da comédia, mas notoriamente humanizado por um conjunto gestual que torna sua figura mais ridícula que odiosa. Também é interessante pensar como Chaplin/ Carlitos e Giulietta/ Gelsomina/ Cabíria revelam curiosas aproximações entre artista e personagem. Diz Benjamin que os grandes intérpretes do cinema são aqueles que só representam a si mesmos48. Essa porosidade entre realidade e ficção pode ser vista exatamente como uma expressão profunda do mítico, realizado aqui na cultura de massas. Nos seus andares desengonçados e nas suas célebres expressões faciais, reconhecemos em Chaplin e em Giulietta a possibilidade da afirmação da humanidade diante da câmera: Porque é diante de um aparelho que a esmagadora maioria dos citadinos precisa alienar-se de sua humanidade, nos balcões e nas fábricas, durante

48 O fragmento aparece também no texto sobre a obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica: “(Esse fenômeno está ligado à natureza do cinema, pela qual é menos importante que o intérprete represente um personagem diante do público que ele represente a si mesmo diante do aparelho.) O ator cinematográfico típico só representa a si mesmo”. (BENJAMIN, 2012, p. 195) 72

o dia de trabalho. À noite, as mesmas massas enchem os cinemas para assistirem à vingança que o intérprete executa em nome delas, na medida em que o ator não somente afirma diante do aparelho sua humanidade (ou o que aparece como tal aos olhos dos espectadores), como coloca esse aparelho a serviço do seu próprio triunfo. (BENJAMIN, 2012, p. 194)

No fragmento de Benjamin também fica clara a possibilidade revolucionária do cinema (e dos mecanismos técnicos de reprodução das obras de arte), muito embora o pensador leve em conta o perigo de seu uso pela lógica da dominação. Sob a égide marxista, Benjamin sinaliza que o proletário deveria expropriar o capital cinematográfico, para que possa exercer um triunfo pleno sobre o aparato técnico, desconstruindo as ilusões produzidas pelo interesse dominador da “indústria cultural”. Nesse sentido, é importante sinalizar que as discussões de Morin e Caetano, já depois dos anos 1960, investem nas forças regeneradoras da cultura de massas a partir de outras correntes; no entanto, sem afirmar esse imperativo da desapropriação. Chaplin é, portanto, relevante nessa discussão por vários aspectos, além de que o ator/ diretor considerava Giulietta a atriz que ele mais admirava (segundo Caetano em “A voz da lua”49). A frequente comparação entre os personagens que encarnavam (que poderiam ser metonimizados como Carlitos e Gelsomina) fica também evidente por seu lirismo, por sua inadaptação, por sua graça. Além disso, na esteira dessas aproximações, dá-se ensejo à reflexão de Caetano, no mesmo artigo, sobre o cômico feminino, que, no cinema americano, tão recorrentemente constrói o humor a partir da combinação entre o ridículo e o sexual, tal como no estereótipo da loura-burra. Masina, atravessando os clichês femininos vinculados à sensualidade ou aos estereótipos que conduzem ao ridículo, apresenta-se também como fissura em relação à representação da mulher na corrente principal da cultura de massas. Benjamin não viveu para ver Giulietta Masina ou o neo-realismo italiano. Mas, provavelmente, veria no cinema de Fellini muitas razões para confirmar seu escrito de 1936, no qual o autor já afirmava latentes forças revolucionárias no cinema. E poderia traçar a ponte entre Gelsomina e Carlitos, cada um a seu modo, representando a afirmação da própria humanidade – quixotesca, messiânica, inadaptada, lírica e graciosa – diante da modernidade e do século XX. O fragmento supracitado de Caetano Veloso sobre Giulietta Masina sugere essa intuição.

49 VELOSO, 2005, p. 226. 73

3.2.4. Omaggio a Federico e Giulietta

Uma análise do disco Omaggio a Federico e Giulietta gravado ao vivo na Itália em 1999 pode ser útil no intuito de sedimentar algumas das discussões pretendidas aqui. O álbum é consequência de um convite de Maddalena Fellini, irmã do diretor, para que Caetano fizesse um show em homenagem ao casal de artistas, que foi tão importante para sua formação. O repertório do disco toca nos pontos-chave do presente capítulo, ligando a infância à maturidade, Santo Amaro a Rimini, os anos 1950 e os 1990, a bossa nova e o neo-realismo italiano, a canção popular e o cinema. Para nossa discussão, convém partir da análise de quatro escolhas emblemáticas do repertório, que podem ser reveladoras das demais ou, ao menos, podem possibilitar uma leitura da homenagem que ilumine o capítulo “Elvis e Marylin”. São elas: “Chega de saudade”, “Trilhos urbanos”, “Giulietta Masina” e, para a conclusão, “Que não se vê”. A escolha de “Chega de saudade” para o disco cria uma aproximação entre João Gilberto, Federico Fellini e Giulietta Masina, a partir de uma perspectiva muito pessoal. Nesse sentido, a presença dessa canção remete à juventude em Santo Amaro e à importância desses artistas para a formação da sensibilidade artística de Caetano Veloso. A recomposição mais completa da província aparece, porém, na canção “Trilhos Urbanos”, que, embora originalmente faça parte do álbum (1979), está inteiramente de acordo com a intenção do disco-homenagem a Fellini e Giulietta, produzido vinte anos depois: O melhor o tempo esconde, Longe muito longe Mas bem dentro aqui Quando o bonde dava a volta ali No cais de Araújo Pinho Tamarindeirinho Nunca me esqueci Onde o imperador fez xixi

Cana doce Santo Amaro Gosto muito raro Trago em mim por ti E uma estrela sempre a luzir Bonde da Trilhos Urbanos Vão passando os anos E eu não te perdi Meu trabalho é te traduzir50

50 (VELOSO, 2003, p. 34) 74

As duas estrofes acima abrem a canção. A juventude em Santo Amaro aparece simultaneamente distanciada e aproximada, na medida em que o passado, que o tempo esconde “longe, muito longe”, reflete-se intensamente no sujeito presente (“bem dentro aqui”), pois é a base formativa de sua personalidade e sensibilidade. A cidade, por sua vez, compõe-se de um aspecto rural (a cana, cujo adjetivo doce desdobra-se entre o literal e o afetivo) e de um prenúncio urbano que lhe serve de contraponto (a companhia de bonde Trilhos Urbanos, que utilizava originalmente tração animal, como se vê no encarte do disco Cinema transcendental).51 O cais de Araújo Pinho condensa as imagens do rio Subaé e do mar, da chegada e da partida da cidade. O episódio histórico de Pedro II em visita a Santo Amaro (o imperador teria amarrado seu cavalo num tamandeirinho próximo ao cais e saltado para urinar) dá ao evento um sabor de história local, de ponto turístico inusitado e, por fim, de memória de infância, reforçada pela escolha do termo “xixi”. Além disso, o paralelo entre o movimento do trem e a passagem dos anos (poderíamos lembrar até a cena final de I vitelonni) ajuda a pensar sobre o título do disco, citado na estrofe final da letra: o referido “cinema transcendental” pode ser lido como metáfora para as sequências de imagens, vistas, lembradas ou criadas, que permitem ir além daquilo que se vê ou se explica. Nessa chave, traduzir Santo Amaro significa fixá-la através de imagens poéticas, que buscam revelá-la e, especialmente, não perdê-la. A ideia desse cinema transcendental também se evidencia em “Giulietta Masina”, em duplo sentido: tanto na capacidade de transcendência que os filmes da atriz e do diretor italiano conseguem atingir, como também, especificamente, o significado pessoal desse cinema para Caetano Veloso, como forma de resgatar sua adolescência em Santo Amaro. A letra da canção é breve: Pálpebras de neblina, Pele d'alma Lágrima negra tinta Lua, lua, lua, lua Giuletta Masina

Ah, puta de uma outra esquina Ah, minha vida sozinha Ah, tela de luz puríssima

(Existirmos a que será que se destina)

51 VELOSO, Caetano. Cinema Transcendental. Rio de Janeiro: Philips, 1979. 75

Ah, Giuletta Masina Ah, vídeo de uma outra luz

Pálpebras de neblina, Pele d'alma Giuletta Masina Aquela cara é o coração de Jesus52

Na canção, a atriz é citada em sua relação com o cinema (“tela de luz puríssima” e “vídeo de uma outra luz”), na qual a palavra “luz” se desdobra entre o sentido técnico (que possibilita a exibição dos filmes) e a esfera transcendental que a imagem na tela é capaz de despertar, através de sentimentos, lembranças e sensações. A centralidade do rosto de Giulietta no conjunto imagético da letra (as “pálpebras”, a “lágrima”, a “cara”) remonta a potência de sua expressividade, de sua aproximação com Carlitos, de sua força dramática. O rosto que se metaforiza como o coração de Jesus alude ao imaginário cristão que frequenta os filmes de Fellini e que funciona como elo entre as cidades italianas e Santo Amaro da Purificação, cuja religiosidade é elemento importante da composição desses espaços. Nesse sentido, vale lembrar que a capa de Omaggio a Federico e Giulietta, retirada de um dos fotogramas do filme Cinema falado, mostra Caetano Veloso em frente a uma igreja iluminada de sua cidade natal (esse quadro é originalmente parte de uma cena de diálogo sobre as exibições de Fellini em Santo Amaro). O Cristo aparece na letra, portanto, acumulando vários sentidos sugeridos, uma vez que evoca a transcendência, a luz, a província e a fé.53 Além de tudo isso, a aproximação entre a atriz e o messias reverbera a análise de Caetano no já referido artigo sobre a atriz: Giulietta Masina, tal como o “Crucificado”, é a imagem concentrada que veio ao mundo dizer o que só ela pode. O sintagma proposto no verso “pele d’alma” faz lembrar o próprio ofício de atriz, que utiliza seu corpo (a pele, corpórea, externa) para atingir a representação de estados de alma de suas personagens (sentimentos, sensações, humores, aspectos internos). A lágrima sobre o rosto pintado (a iminência permanente do choro, da comoção, da tristeza, que neblinam as pálpebras) é também índice de sensibilidade e consequência da solidão, da inadaptação.

52 VELOSO, 2003, p. 283. 53 No mesmo álbum, a presença da canção “Ave Maria”, segundo relato de Caetano, ouvida diariamente em Santo Amaro às seis da tarde na voz de Augusto Calheiros, sendo, em suas palavras, “a expressão da tristeza sem nome que avassala as ruas, as praças e os corações das pequenas cidades de países católicos na hora do anjo”. (VELOSO, 2005, p. 169) 76

O verso “Ah, puta de uma outra esquina” é referência direta a Le notti di Cabiria e faz o jogo de aproximação e afastamento em relação à condição da personagem, ao mesmo tempo referindo-se à “puta” mas colocando-a em “uma outra esquina”, isto é, em outro contexto e em outra perspectiva. Desse modo, Giulietta Masina, no espaço representacional do cinema, torna-se Cabíria, cujo lirismo é intensificado justamente pelo fato de que a áspera vida de prostituta é contraposta a seu sonho de realização amorosa, que poderia pôr fim a sua condição solitária. Por fim, importa observar os dois intertextos que aparecem na canção e são referências a outras duas canções de Caetano, também incluídas no repertório do disco. O verso posto em parênteses “existirmos a que será que se destina” abre a canção “Cajuína”: Existirmos a que será que se destina Pois quando tu me deste a rosa pequenina Vi que és um homem lindo e que se acaso a sina Do menino infeliz não se nos ilumina Tampouco turva-se a lágrima nordestina Apenas a matéria vida era tão fina E éramos olharmo-nos intacta retina A cajuína cristalina em Teresina

É possível observar aí, tal como em “Giulietta Masina”, o destaque para o rosto, especialmente os olhos (“a lágrima” e a “intacta retina”). Além disso, “a sina do menino infeliz”, colocada no jogo semântico entre a luminosidade (“... se nos ilumina...”) e a sombra (“tampouco turva-se a lágrima...”) é outro elemento que avizinha as composições. Essa oposição sublinha também a constatação de que “a matéria vida era tão fina”: a polissemia do adjetivo “fina” sugere os sentidos de fragilidade (latência da morte), mas também apuro e elevação. O cristalino da bebida encontra-se com a “luz puríssima” na representação de uma pureza, vinculada à compreensão da vida. O misto de melancolia e delicadeza de “Cajuína” diz muito sobre o universo de Fellini e também sobre a personagem que sonhava escapar de sua sina de amores ilusórios ou ainda sobre aquela que buscava entre pedras e estrelas um sentido para a existência. Antes disso, a referência à “Lua, lua, lua, lua” deve ser notada a partir de seu aspecto metalinguístico, na medida em que a canção fala sobre a expressão artística através do canto: Lua lua lua lua Por um momento meu canto contigo compactua E mesmo o vento canta-se compacto no tempo Estanca

77

Branca branca branca branca A minha, nossa voz atua sendo silêncio Meu canto não tem nada a ver Com a lua

A lua faz parte do imaginário romântico e constitui-se como figura de forte apelo transcendental. É também a forma com que Caetano se refere a Giulietta Masina no já mencionado texto “A voz da lua”. Serve ao nosso argumento a conclusão: A estrutura e a inteireza de E La nave va.... o imenso navio de Amarcord, a valsa de Nino Rota para o palhaço de La dolce vita, essas aparições que inundam a alma chegam mais perto. Ela [Giulietta Masina] é a voz da lua. (VELOSO, 2005, p.224)

Para compreender a citação, convém sinalizar que o título do artigo é uma alusão a La voce de la luna de 1990. O filme de Fellini conta a história do inadaptado personagem Ivo Salvini (Roberto Benigni), que deseja conservar uma forma poética de olhar o mundo, apesar das transformações trazidas pela modernidade. No final, após dialogar diretamente com a lua (sobreposta a uma figura de mulher), conclui olhando para o espectador: “Acho que se você mantiver um pouco... se todos guardássemos um pouco de silêncio, poderíamos compreender qualquer coisa”. La voce de La luna é, portanto, um convite aos espectadores a refletirem sobre o barulhento mundo da mídia, da publicidade, do consumo, e buscarem no silêncio e no lirismo uma compreensão maior sobre a existência. Pode-se dizer que essa busca condensa algo de essencial da produção de Fellini (e também de Giulietta), o que permite a referência de Caetano, ainda que a atriz não faça parte do elenco do filme. No fragmento do artigo citado há pouco, as expressões artísticas arroladas são postas como “aparições”, termo que ostenta sua carga de revelação e transcendência. A imagem lunar recorre também em “Que não se vê”, cuja melodia cita exatamente a valsa de Nino Rota (para um palhaço) e cuja parte em português, criada por Caetano, abre-se assim: Uma intensa luz que não se vê passa pela voz ao se calar É a vez de uma estrela guarda o nome dela nosso coração é o seu lugar

Somos sempre sós e ainda assim

78

ela brilha em nós em ti, em mim nem bruta nem bela o silêncio é tê-la a voz dessa luz, sem fim, sem fim

O título joga paradoxalmente com “uma intensa luz que não se vê” e “que passa pela voz ao se calar”, tal como a voz que “atua sendo silêncio” em “Lua, lua, lua, lua”54. Misturando voz e luz, Caetano aproxima também cinema e canção, e coloca ambos em relação ao lirismo contido, condensado, intensificado pelo paradoxo do visível-invisível, da voz-silêncio. A estrela (termo utilizado frequentemente para referir-se às grandes atrizes do cinema) abre-se em vários sentidos ao referir-se na letra a Giulietta Masina (“nem bruta, nem bela”): a voz da luz, a voz da lua, o fascínio do cinema, o lirismo de Fellini e a própria força da canção. Por fim, vê-se na interseção dessas imagens o poder de iluminação e beleza, de permanência e impacto, dessas formas artísticas que agem sobre os indivíduos que as recebem, pessoalmente, no gesto coletivo de suas propagações. Para concluir a discussão, não seria um excesso afirmar que o signo da lua, tal como posto acima, atravessa todos os momentos formativos mencionados por Caetano Veloso em “Elvis e Marylin”. Para além das duas primeiras paixões e da iniciação sexual genital (que muito combinam com atmosferas lunares), e além da permanência da mãe Dona Canô na casa onde as experiências ocorreram (a lua relacionada ao feminino, à fertilidade, à maternidade, à proteção), os sentidos presentes na imagem “a voz da lua” (como aparecem na canção “Que não se vê”), podem ser observados não apenas no cinema de Federico e Giulietta, mas também na literatura de Clarice Lispector e na música de João Gilberto. Em primeiro lugar, a escritora, que tem um projeto de literatura intimista (o que, em si, já combinaria com a ideia de silêncio), desenvolve uma literatura que põe frequentemente a palavra em crise. Em O drama da linguagem, Benedito Nunes explica o fenômeno nos seguintes termos: Essa ambigüidade de linguagem, que distorce ou neutraliza o desejo de ser que nela se investe, reaparece, com diferenças de detalhes, nas outras personagens, tomadas pela paixão da linguagem. Por um lado, buscando exprimir-se, aderem às palavras de maneira plena; mas por outro, seduzidas pela ideia de plenitude, sentem-se prisioneiras dentro das

54 Observe-se aí que foneticamente, “a voz que atua sendo silêncio” é um verso homófono a “a voz que atua, acendo o silêncio”, como se o cantor fosse capaz de iluminar o silêncio, em mais uma cruzamento sugerido entre voz e luz. 79

palavras que as dominam, que lhes furtam ao ser na forma da expressão consumada. (NUNES, 1995, p. 111)

E, completando a ideia:

A paixão da linguagem terá seu reverso na desconfiança da palavra, e o empenho ao dizer expressivo, que alimenta essa paixão, transformar-se-á numa silenciosa adesão às próprias coisas. (Ibidem, p. 112)

Assim, a “expressão consumada” é percebida como uma instância limitadora, incapaz de atingir a essência das coisas. Como solução para isso, a literatura de Clarice Lispector produz momentos de instabilidade no dizer, permitindo libertar significados e atingir realidades mais profundas, que não se deixariam capturar plenamente pelas palavras. A “silenciosa adesão às próprias coisas” é conseguida justamente pela crise da linguagem: mais uma vez, encena-se aí uma voz que atua sendo silêncio e encontra nesse paradoxo a expressão de sua modernidade. Por fim, João Gilberto, em seu projeto radical de violão e voz, acaba chegando a um equilíbrio entre canto e silêncio, que se poderia traduzir também como “luz puríssima”, como “voz da lua”. Economizando tempos fortes e substituindo notas dominantes, tudo em sua expressão afirma-se, incisivamente, através da leveza. Assim, Clarice Lispector, João Gilberto, Federico Fellini e Giulietta Masina, além de serem momentos de revelação da modernidade para Caetano Veloso, são também realizações artísticas da contradição entre o dizer e o não dizer, da criação de produtos estéticos estáveis e permanentes, conquistados a partir da suprema fluidez da escrita, da voz, do movimento, da interpretação.

3.3. O bruxo de Juazeiro - o caso João Gilberto

Por fim, cabe agora analisar o último e mais importante momento da fase de formação narrada por Caetano Veloso em “Elvis e Marylin”: a audição do disco Chega de saudade de João Gilberto, ainda em Santo Amaro, no ano de 1959. Aqui se delimitam (e se encontram) várias correntes temporais e formativas que amarram o capítulo: na esfera pessoal, encerra-se uma marcação da fase da infância-adolescência (aos 17 anos) e também o primeiro cenário (Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo da Bahia); na história de nossa canção popular, termina a fase pré-bossa nova (com as inerentes discussões sobre o samba e suas estilizações comerciais até a chegada de João Gilberto, eleito marco divisor de águas e, mais que isso, ponto de confluência entre as épocas) e a fase inicial do

80

rock’n’roll internacional (na qual Elvis Presley foi o elemento de ruptura que, ao mesmo tempo, confrontou-se com o passado e abriu caminho para o futuro, isto é, para o neo- rock’n’roll inglês dos anos 1960 dos Beatles e dos Rolling Stones, mas também, nos EUA, o surgimento de Jimmy Hendrix, Janis Joplin, Jim Morrison e Bob Dylan) e, no Brasil, o aparecimento de Erasmo Carlos e Raul Seixas, mais que os irmãos Campello, relacionados à fundação do rock brasileiro. No contexto histórico, de modo amplo, a chegada dos anos 1960 representaria, no nível internacional, a idade do pop – o século inventado por Andy Warhol –, o momento de eclosão de vários movimentos de contracultura no mundo (o movimento hippie, os movimentos negros, os movimentos feministas, o Maio de 1968) e, no Brasil, a inauguração da capital Brasília, representando uma nova fase do desenvolvimento político, urbano, industrial, enfim, uma modernização simultânea ao crescimento do ideário esquerdizante na cultura e, contraditoriamente, deflagradora do golpe militar de 1964 e de seu agravamento em 1968 com o AI-5. Assim, a infância/ juventude de Caetano em Santo Amaro nos anos 1950 é contada a partir do entrelaçamento de momentos embrionários. Empreende-se, desse modo, a partir desse referente espácio-temporal, a organização discursiva de várias questões pessoais, sociais, culturais e políticas, que também se situaram nesses anos e que são contadas a partir de um narrador que contém, sobrepostos em si, o autor após os anos 1990 (com 50 anos, cosmopolita e reconhecido) com o personagem de quatro décadas antes (com menos de vinte anos, ainda sem saber que realizações o aguardariam, sem nunca ter saído do Brasil e absolutamente desconhecido). O narrador, portanto, a partir da perspectiva inicial de contar o desenvolvimento do tropicalismo nos anos 1960 (de sua participação individual e de seu protagonismo no movimento), faz dos anos 1950 uma década de antecedentes, de contextos de formação, mas, ao mesmo tempo, um período oportuno para projeções futuras. E, sem dúvida, o ponto em que se cruzam todos esses caminhos – o histórico e o individual, o internacional e o local, o passado e o futuro, a ruptura e a continuidade, o jazz e o samba, o intimista e o pop, o despolitizado e o ultrapolítico – é João Gilberto. Desse modo, a narrativa do encontro (e do deslumbramento) com a novidade estética da bossa nova leva a uma discussão muito mais ampla sobre a cultura brasileira,

81

que revela “uma trilha clara” para o Brasil55, como se a realização da bossa nova fosse o indício e a prova de que o país poderia ir muito além, especialmente se seguisse o caminho aberto no campo criativo musical. E, além da centralidade de João Gilberto nesse contexto, é também importante ressaltar a importância do compositor, maestro e arranjador Tom Jobim, e ainda de do poeta Vinicius de Moraes, que representa um elo entre a chamada “alta” cultura e as manifestações populares, especialmente em face do reencontro entre a poesia e a música, e de sua aproximação com os temas cotidianos, com a cultura popular do samba e com a cultura de massas do rádio e da televisão. Por fim, é importante também observar como João Gilberto é um personagem estratégico em Verdade tropical, na medida em que a preferência por ele, em detrimento de outros nomes da cultura de massas estrangeira, é apresentada por Caetano Veloso como momento embrionário mais decisivo da gênese do tropicalismo, a partir do qual se possibilita a interpretação sobre o Brasil proposta pelo autor.

3.3.1. O sr. José Ramos Tinhorão

É possível compreender a seleção de informações e as abordagens utilizadas pelo autor acerca da canção popular, ainda no capítulo “Elvis e Marylin”, como reflexo de um debate que se deu logo na sequência do advento da bossa nova, isto é, ainda na primeira metade dos anos 1960, quando o crítico e pesquisador musical José Ramos Tinhorão assumiu certo protagonismo no sentido de discutir o fenômeno da música popular no Brasil (entendida tanto em sua dimensão folclórica como em relação às manifestações de massa da cultura urbana). O crítico atribui à bossa nova e ao tropicalismo um sentido negativo, interpretando-os como uma abertura ao estrangeiro, danosa à cultura “autêntica”, que poderia ser compreendida, à luz de uma concepção marxista, como correspondente a determinada infraestrutura econômica e política: a realidade do Brasil enquanto país pobre, subdesenvolvido e dominado. O primeiro embate direto entre Caetano e Tinhorão data também desse período, quando o primeiro escreveu uma texto para a revista universitária Ângulos, ainda em 1965, em resposta ao que chamou de “artigos histéricos reunidos em livro pelo Sr. José Ramos

55 Na letra da canção “Nu com a minha música”, gravado no disco de 1981, afirma-se: “Vejo uma trilha clara pro meu Brasil, apesar da dor/ Vertigem visionária que não carece de seguidor”. Mais uma vez, Caetano enuncia a possibilidade de um caminho para o Brasil resolver suas questões (mesmo as sociais e as políticas) a partir do exemplo estético da bossa nova. 82

Tinhorão”56. A obra aí referida é Música popular: um tema em debate, que é uma reunião de publicações de sua autoria, escritos para diferentes jornais e revistas entre os anos de 1960 e 1965. Nesses escritos, a bossa nova é analisada como parte de um projeto de subordinação à cultura estrangeira; trata-se, portanto, de uma recusa de natureza política frente a um movimento estético-musical que se apresentava, a seus olhos, como grande desastre para a cultura nacional. Um dos argumentos centrais do crítico, nesse sentido, pode ser encontrado no artigo “Rompimento da tradição, raiz da bossa nova”, no qual defende que “o aparecimento da chamada bossa nova na música urbana do Rio de Janeiro marca o afastamento definitivo do samba de suas origens populares”57, tese que desenvolveria em outro texto da mesma coletânea (“O samba de 1946 – pior produto da boa vizinhança”), na tentativa de mostrar como a autenticidade do samba se perde entre o aboleramento do estilo (que resultaria no samba-canção) e a influência do jazz (que resultaria na bossa nova): Por esses desencontrados caminhos – primeiro jazzificado, depois abolerado – prosseguiria o samba-canção, durante mais de dez anos, até que, a partir de 1957, a denominação bossa nova viria a pôr fim à confusão, através da eliminação dos últimos toques de originalidade do samba tradicional, o que conseguiria através do nivelamento da melodia, da harmonia, do ritmo e do contraponto, numa espécie de pasta musical. (TINHORÃO, 2012, p. 65) Assim, a bossa nova seria, em sua análise, o ápice do afastamento do samba de sua origem e de seu povo, ao ser descaracterizado na tentativa de produção de um equivalente ao jazz americano. Aliás, em outro artigo, o crítico chega a apresentar o bilhete de entrada de um espetáculo brasileiro no Carnegie Hall, entre 1962 e 1963, no qual se lê, abaixo de “Bossa Nova”, o aposto “(New Brazilian Jazz)”58. A imagem é apresentada no desfecho do artigo, sem nenhuma análise posterior, como se a escolha dessa identificação servisse, imediatamente, como prova cabal de que a bossa nova não passa de uma cópia da cultura estrangeira. É evidente que o fato de ser um ingresso de uma apresentação destinada ao público estrangeiro seria suficiente para problematizar o argumento de Tinhorão. O bilhete, demandando a especificação do gênero musical e refletindo o apelo propagandístico da casa de espetáculos, fez a aproximação entre o jazz e a bossa nova sob um ponto de vista

56 VELOSO, 2005, p.143. 57 TINHORÃO, 2012, p. 36. 58 TINHORÃO, 2012, p. 74. 83

estrangeiro, com a clara finalidade de atrair espectadores que não tivessem muitas referências sobre o estilo. Décadas depois (em 1990 em Portugal e em 1998 no Brasil), o crítico apresentou sua História Social da Música Brasileira, trabalho de amplo lastro que contempla desde as manifestações musicais (especialmente de origem folclórica) no Brasil Colônia até a chegada do rock na cultura de massas urbana do país. Na obra, o autor retoma e reafirma sua contestação do gênero bossa nova e do tropicalismo subsequente, mantendo inclusive os argumentos dos artigos anteriores. A citação do fragmento a seguir pode servir como premissa maior do ponto de vista de Tinhorão sobre os casos específicos da bossa nova e do tropicalismo:59 [...] do ponto de vista cultural e ideológico tal realidade de dominação econômica traz para o povo dependente uma consequência cruel: é que, ao envolver a ideia de modernidade e de universalidade (quando se sabe que o que se chama de universal é o regional de alguém imposto para todo o mundo), o som importado leva os consumidores nacionais ao desprezo pela música do seu próprio país, que passa então a ser julgada ultrapassada e pobre, por refletir naturalmente a realidade do seu subdesenvolvimento. (TINHORÃO, 1998, p. 13)

E completa:

Essa espécie de vergonha da própria realidade, desenvolvendo-se principalmente entre as camadas de classe média com caráter de autêntico complexo de subdesenvolvimento, conduz, assim, a uma progressiva perda ou desestruturação da identidade cultural, o que desemboca no ridículo de, ao procurarem tais consumidores colonizados apresentar-se como modernos, só conseguirem aparecer como estrangeiros dentro do seu próprio país. (Idem)

Se observarmos com atenção, é possível compreender a leitura do crítico como desenvolvimento de uma análise unilateral de determinado paradigma de modernidade, relacionado com o processo de globalização (que é vista aqui em chave negativa) e com a indústria cultural (que se torna seu instrumento potente de propagação). Mais uma vez, a realidade de “dominação econômica” explica, sendo infraestrutura, a dominação cultural e a dependência de produtos estrangeiros, inclusive no âmbito da música. Sob esse ponto de vista, os juízos de gosto e valor, também provenientes do estrangeiro, são ensinados e divulgados em vários veículos sociais (que não raro conciliam

59 Apesar da discrepância temporal (o texto é muito posterior ao artigo de Caetano de 1965, e sua publicação no Brasil é posterior até a Verdade Tropical), a manutenção do ponto de vista do crítico garante que essa distância não prejudica a análise do conjunto. 84

a exaltação da arte europeia com o reconhecimento da “qualidade” de tudo que vem dos EUA), levando à conclusão (falseada) da inferioridade de nossa própria cultura. Sendo assim, os paradigmas de moderno e de universal passam a ser analisados pelo crítico no conjunto amplo de um processo de dominação econômica que apresenta consequências no âmbito cultural, que retroalimentam a conservação desse cenário, imensamente desfavorável para os países ditos subdesenvolvidos. A classe média urbana acabaria sendo a faixa na qual esse processo se daria de forma mais contundente: afastada das realidades mais evidentes da pobreza, de uma violência institucionalizada e da miséria; e, ao mesmo tempo, tendo acesso a uma estrutura de educação que replica valores estrangeiros e a um conjunto de veículos de transmissão de uma cultura preponderantemente importada (rádio, disco, TV), é justamente aqui que a crença na modernidade e na universalidade sedimenta de forma mais intensa o material que sustentaria a realidade de dominação. Ainda na visão do crítico, isso tudo seria reforçado por uma indefinição da classe média que a impediria de desenvolver seus próprios padrões. Em outro artigo da coletânea sobre música popular, intitulado “Um equívoco de opinião”, afirma: As camadas médias não conseguirão, jamais, um caráter próprio, porque a sua característica é exatamente a falta de caráter, isto é, a impossibilidade de fixar determinado traço por longo tempo, em consequência da sua extrema mobilidade dentro da faixa situada entre a prestação de trabalho mecânico (salário mínimo) e a detenção dos meios de produção (grande capital financeiro e de indústria). (TINHORÃO, 2012, p. 90)

Mais uma vez buscando as razões infraestruturais para compreender as consequências no âmbito cultural, Tinhorão reforça a tese de que as classes médias são o espaço adequado para a imposição de um paradigma de modernidade que não convém ao Brasil. Por isso mesmo, em sua leitura, é tão fundamental voltar-se para a cultura das camadas mais baixas, pois nela estariam representados valores “permanentes e históricos”; afinal, a manutenção do próprio latifúndio e da propriedade privada (e de suas consequências sociais e econômicas em termos de concentração de riqueza de um lado, pobreza e brutalidade de outro) fazem desse contexto uma realidade inalterada. A cultura de classe média, por sua vez, refletiria valores “transitórios e alienados”60, tornando-se incapaz de perceber que o desenvolvimentismo está subordinado ao capital estrangeiro, que a universalidade é artificial (pois seria “o regional de alguém

60 TINHORÃO, 2012, p. 14. 85

imposto para todo mundo”) e que, por fim e portanto, esse culto da modernidade nada mais seria que um instrumento imperialista. Para compreender a visão do crítico sobre a música brasileira, é preciso que se pese que a bossa nova é, segundo seu juízo, um gênero feito pela classe média e consumido por ela mesma, a partir de um parâmetro de modernidade musical buscado no jazz dos EUA (compreendido como pretensamente universal), o que acarretaria a descaracterização do samba tradicional (que, aos olhos do crítico, é um elo com a cultura popular das classes baixas e, por isso, autêntico e verdadeiro em relação à nossa realidade). Ou seja, dentro das balizas empregadas por Tinhorão para analisar o desenvolvimento da bossa nova, é compreensível que sua oposição ao estilo seja incisiva. Na esteira desse raciocínio, a chegada da Tropicália é vista como um agravamento do quadro, ainda mais quando Caetano Veloso refere-se, em debate registrado pela revista Civilização brasileira em 1966, à necessidade de dar sequência ao que seria uma “linha evolutiva” da música brasileira a partir da lição dada por João Gilberto. Comecemos do fragmento em questão: Só a retomada da linha evolutiva pode nos dar uma organicidade para selecionar e ter um julgamento de criação. Dizer que samba só se faz com frigideira, tamborim e um violão sem sétimas e nonas não resolve o problema. Paulinho da Viola me falou há alguns dias de sua necessidade de incluir contrabaixo e bateria em seus discos. Tenho certeza de que, se puder levar essa necessidade ao fato, ele terá contrabaixo, violino, trompa, sétimas e nonas e tem samba, Aliás, João Gilberto para mim é exatamente o momento em que isto aconteceu: a informação da modernidade musical utilizada na recriação da renovação, no dar-um- passo-à-frente, da música popular brasileira. Creio mesmo que a retomada da tradição da música brasileira deverá ser feita na medida em que João Gilberto fez. Apesar de artistas como Edu Lobo, Chico Buarque, Gilberto Gil, Maria Bethânia, Maria da Graça (que pouca gente conhece) sugerirem esta retomada, em nenhum deles ela chega a ser inteira, integral. (VELOSO apud CAMPOS, 2008, p. 63)

Em sua História Social da Música Popular Brasileira, assim Tinhorão comenta a fala de Caetano: Tal retomada da linha evolutiva aparecia como tentativa de criação, a partir do rock americano e de seu instrumental eletrificado, de um sucedâneo musical brasileiro semelhante ao obtido dez anos antes em relação ao jazz, através da bossa nova. Bem interpretado, o tropicalismo propunha-se a representar, em face da linguagem ‘universal’ do rock, o mesmo que a bossa nova representara em face da linguagem ‘universal’ do jazz. (TINHORÃO, 1998, p. 323)

86

Veja-se que a relação reducionista entre bossa nova e tropicalismo proposta por Tinhorão exclui a própria tradição da canção popular no Brasil, posta em perspectiva por esses dois movimentos. Além disso, o crítico parte da premissa de que ambos desenvolveram seus estilos a partir da informação estrangeira. No entanto, é preciso ponderar que, em vez disso, a incorporação do jazz pela bossa nova e do rock pelo tropicalismo partiram de necessidades intrínsecas à própria canção brasileira, em seu fluxo de experimentações e transformações. Nesse sentido, aquilo que o crítico vê como assimilação ou cópia, pode ser compreendido, de modo mais íntegro, no âmbito da antropofagia cultural. Sob essa ótica, é possível perceber que esses movimentos estão mais relacionados à reversão do complexo de subdesenvolvimento do que à reafirmação do atraso ou da dominação estrangeira. Porém, o que interessa por agora é esclarecer a visão do crítico sobre o tropicalismo e a bossa nova, e sobre a centralidade de Caetano Veloso e João Gilberto nesses processos de incorporação, acontecidos com intervalo de quase dez anos. Durante esse lapso temporal, manteve-se no Brasil um ideal de desenvolvimentismo a partir do estrangeiro (visto com maus olhos por Tinhorão), que conduziu do governo JK diretamente para a implantação da ditadura civil-militar no país. Isso resultará na seguinte conclusão do crítico, ainda na mesma obra: [...] o pensamento expresso por seu líder Caetano Veloso, ‘nego-me a folclorizar meu subdesenvolvimento para compensar as dificuldades técnicas’, os tropicalistas renunciaram a qualquer tomada de posição político-ideológica de resistência e, partindo da realidade da dominação do rock americano (então enriquecido pela contribuição inglesa dos Beatles) e seu moderno instrumental, acabaram chegando à tese que repetia no plano cultural a do governo militar de 1964 no plano político- econômico. Ou seja, a tese da conquista da modernidade pelo simples alinhamento às características do modelo importador de pacotes tecnológicos prontos para serem montados no país. (Ibidem, 325)

O sistema de raciocínio repete-se: sem mediação, o autor liga o plano político- econômico ao que seria seu correspondente cultural. A negação de Caetano Veloso em “folclorizar o subdesenvolvimento para compensar as dificuldades técnicas” é apresentada de modo isolado, para, no conjunto da análise, ganhar sentidos de alienação da realidade nacional, submissão cultural e cumplicidade com a invasão estrangeira; o que consolidaria a posição indesejável do país no cenário internacional (e mesmo em sua situação interna de pobreza, desigualdade e violência).

87

Entretanto, devolvida ao universo de pensamento de Caetano Veloso, sua posição relaciona-se, na verdade, com o desejo de objetar à idealização de um Brasil que só seria capaz de produzir exotismo, espontaneidade e alegria, mas nunca produtos bem acabados. A recusa dessa imagem folclórica é sustentada, na visão de Caetano, exatamente pela existência da bossa nova, que soube conciliar as peculiaridades do Brasil com extrema precisão e apuro técnico. Os tropicalistas sempre quiseram agir à altura desse gesto. No auge de seu argumento, Tinhorão chega a afirmar que, apesar das prisões de Gil e Caetano, o tropicalismo não deixaria de ser o rompimento do desejo de resistência de uma parte “consciente da classe média universitária” a partir da abertura total do mercado brasileiro ao “império do rock”, o que o autor interpreta como o cumprimento, por parte dos tropicalistas, de “seu papel de vanguarda do governo de 1964 na área da música popular”.61 A apresentação dos argumentos de José Ramos Tinhorão sobre a bossa nova e o tropicalismo atravessa pontos fundamentais do debate sobre a canção popular no país e aponta para um cenário de dominação política e econômica que se reflete e se alimenta da força da “indústria cultural” para expandir seus valores (em acordo com o pensamento adorniano), e também para a propensão da classe média a aderir a esses paradigmas, não são pontos inteiramente descartáveis ou facilmente denegados. Todavia, é preciso esclarecer que não é a realidade de pobreza, miséria, violência, dominação, alienação ou inautenticidade que Caetano Veloso nega; o que este faz é defender a ambiguidade da cultura de massas (suas forças regeneradoras) e do processo de imperialismo cultural (que pode ser visto de forma menos unilateral e com mais nuances). Assim, afirma o alcance da canção popular do Brasil e a possibilidade de outra relação com a cultura estrangeira (diferente da entendida por Tinhorão), e, por fim, sublinha a importância da bossa nova e do tropicalismo nesse sentido, revelando outra visão de Brasil e mirando outras possibilidades de lidar com seus problemas internos e externos. Por isso, compreendidos os parâmetros de Tinhorão, já se faz possível analisar com mais argúcia os argumentos de Caetano, que começam no debate da Revista Ângulos em 1965, mas que também aparecem ao longo de sua obra musical e, principalmente, norteiam a seleção, a narração e a análise sobre a bossa nova oferecidas em Verdade tropical, nosso objeto central de estudo.

61 TINHORÃO, 1998, p. 326. 88

3.3.2. O balanço da feira

No capítulo “Transe” de Verdade tropical, Caetano Veloso menciona José Ramos Tinhorão no seguinte contexto: Mas o primeiro artigo longo que escrevi em minha vida – muito mais longo do que qualquer crítica de cinema que eu tenha escrito antes – foi uma catilinária contra o livro de José Ramos Tinhorão sobre música popular. Este era um ensaio de sabor sociológico em que a bossa nova aparecia, por um lado, como submissão cultural ao modelo americano e, por outro, como apropriação indébita da cultura popular pela classe média. Era a defesa articulada do ideário nacional-popular que permeava todos os julgamentos esquerdistas brasileiros. Escrevi o artigo para uma revista universitária porque achava intolerável que aquelas ideias fossem aceitas sem discussão pelos alunos mais inteligentes da universidade. Eu sabia que a bossa nova era outra coisa – e uma coisa preciosa para todos nós – e produzi o texto como uma atitude de luta: eu queria uma intervenção eficaz na formação das mentes das pessoas com quem convivia. (VELOSO, 2008, p. 109).

O artigo de Caetano, de 1965, intitulado “Primeira feira de balanço”, desde o título chama atenção para o debate sobre a inserção da música popular no mercado. A fala começa já em tom áspero, lamentando que José Ramos Tinhorão seja o único a colocar o assunto em discussão (em alusão ao já referido título Música popular: um tema em debate), classificando seus artigos como “histéricos” e afirmando ironicamente que, segundo a ótica do crítico “somente a preservação do analfabetismo asseguraria a possibilidade de fazer música no Brasil”.62 A provocação de Caetano está evidentemente ligada ao entendimento de Tinhorão de que o samba, para ser autêntico, deveria vir das camadas mais baixas da população, que, como já se explicou, teriam acesso a uma realidade mais “verdadeira” do país, enquanto a classe média seria alvo frequente da alienação. Logo de saída, Caetano já indica, ironicamente, a posição de Tinhorão como um “classe-média estudioso”, a quem compete aprender o nome das notas musicais para analisar, de modo infértil, os “sambas autênticos” feitos pelos “pobres autênticos”.63 A introdução do texto termina com a afirmação de que o alcance analítico de Tinhorão se limita ao momento em que este reconhece João Gilberto como um artista “realmente original”, o que se lê no artigo “De como a velha bossa emprestou nome à bossa nova”. No desfecho deste texto, depois de enumerar alguns jovens simpatizantes do

62 VELOSO, 2005, p. 143. 63 Idem. 89

primeiro momento da bossa nova, o autor afirma que “sobre todos estes pairaria a figura do único instrumentista, compositor e cantor realmente original: o baiano João Gilberto do Prado Pereira de Oliveira”64.65 Em seguida, Caetano critica a insistência de Tinhorão em correlacionar, sem mediação, eventos político-econômicos a fatos culturais, estabelecendo uma lógica direta de causalidade, que já havíamos problematizado ao longo da presente exposição. O artigo de 1965 chega a classificar como ridículas as tentativas de ligação imediata entre a construção de Brasília, a indústria automobilística e a bossa nova, estratégia, aliás, não raro utilizada por Tinhorão e por outros que apresentam linha de raciocínio semelhante.66 Importa demonstrar, com isso, que a discordância entre Caetano e Tinhorão se apresenta desde o método: para aquele, a associação entre um dado político-econômico não pode ser feita de forma imediatamente determinista em face dos eventos culturais, havendo a exigência de uma mediação capaz de abrir outras possibilidades de relação, uma vez que, caso contrário, a cultura apareceria somente a partir do prisma da realidade da dominação, da luta de classes, do imperialismo internacional, dos resultados reducionistas que prejudicam a percepção das singularidades do caso brasileiro. Em seguida, ainda no mesmo texto, Caetano deixa claro que concorda que as produções de artistas como Johnny Alf e Dick Farney podem, de fato, ser vistas como tentativas de uma classe média subdesenvolvida de, alienadamente, buscar a semelhança com a cultura do país dominante. Desde os nomes americanizados, para os quais Tinhorão chama atenção (seus nomes de batismo são, respectivamente, João Alfredo e Farnésio Dutra e Silva) até suas realizações, estão mais próximas de buscar o mérito de se parecerem com os americanos do que com o valor estético em si do que produzem67. Aliás,

64 TINHORÃO, 2012, p. 44. 65 É bom que se lembre que, a despeito do comentário elogioso pontual, o crítico reservaria outro espaço simbólico para João Gilberto em sua História Social da Música Brasileira: “O violonista e criador da nova batida – que acabaria configurando o movimento da chamada bossa nova, com o que a camada mais refinada da classe média se desvinculara, finalmente, da música do povo – era um baiano de Juazeiro chamado João Gilberto”. (TINHORÃO. 1998, p. 312) 66 Vale lembrar que na capa da 4ª edição do livro de Tinhorão lê-se exatamente o fragmento “Samba bossa nova nasceu como automóvel: apenas montado no Brasil”. 67 Caetano voltaria a defender a mesma tese no encarte do disco Tropicália 2 de 1993, no qual se lê: - “Roberto Silva é uma sombra da ponte que leva de Orlando Silva e Ciro Monteiro a João Gilberto – uma linha evolutiva não presente na consciência de outros grandes da época, que só viam o lado americano da modernização: os Alfs e Alves e Farneys, os Cariocas.” (VELOSO, 2005, p. 183). Observe-se aí que o cantor e compositor carioca Roberto Silva, apreciado por João Gilberto, é colocado entre Orlando Silva e Ciro Monteiro (que já apresentavam alguma intuição dessa musicalidade brasileira) até João Gilberto (auge de sua concretização), enquanto metonimicamente Jonnhy Alf, Dick Farney, Lucio Alves e os Cariocas representam, não como precursores diretos de João, mas enquanto antecedentes que trouxeram uma informação jazzística, utilizada de forma diferente por ele. 90

se aqui há uma concordância entre Caetano e Tinhorão, aqui mesmo se dá a divergência “é sempre perigoso fugir a uma perspectiva estética”, afirma o primeiro. Isso significa que é a partir de critérios estéticos que se observa o quanto João Gilberto distancia-se destes que seriam antecessores da bossa nova. Diz Caetano: (... em todos que aprenderam tanto com João Gilberto) o jazz não é senão um enriquecimento da sua formação musical, um ensinamento de outras possibilidades sonoras, com as quais se está mais armado para compor, cantar e mesmo interpretar, criticar, redescobrir a tradição legada por Assis Valente, Ary Barroso, Orlando Silva, Vadico, Noel Rosa, Ismael Silva, Ciro Monteiro e o grande Caymmi. (VELOSO, 2008, p. 146)

E, na sequência, diz sobre o disco Chega de saudade:

[...] esse disco superou a alienação que o antecedeu exatamente por não ter fugido ao reconhecimento dos elementos que enriqueceram inutilmente a técnica dos seus antecessores. E nos armou para revê-los: eles tiveram a importância histórica de, seja por que caminhos que tenham sido, nos colocar na possibilidade do domínio de uma técnica musical resultante de um dos mais importantes movimentos surgidos em nosso século, e que se tornou conhecido pelo nome de jazz. (Idem)

Assim, Caetano expõe pela primeira vez o que viria a repetir em diversos momentos, inclusive em Verdade tropical: a bossa nova, cujo advento está centralizado na figura de João Gilberto (mas também de Tom Jobim), é fundamental para a história da canção popular do Brasil não só porque abriu possibilidades futuras de criação, mas porque pôs todo o passado em perspectiva; isto é, partiu da própria tradição da canção popular no Brasil para encontrar novos caminhos a fim de dar sequência a ela; não para negá-la ou esquecê-la, como defende Tinhorão. Outro argumento que Caetano desenvolve no mesmo artigo diz respeito à imobilidade apregoada por Tinhorão para que o samba mantenha sua pretensa originalidade. Observando a distância entre o samba de roda da Bahia e os partidos altos dos morros cariocas, Caetano mostra como é inviável estabelecer um limite no qual a originalidade se perderia. Nesse sentido, é importante considerar que, nos anos 1960, quando essa primeira discussão ocorria entre eles, o samba já estava distanciado das formas iniciais vinculadas ao morro, e mais ainda àquelas restritas principalmente à Bahia. Aliás, aqui Caetano encontra também o argumento de que o advento de novas formas musicais não elimina necessariamente as anteriores, a julgar, por exemplo, pelo samba de roda, que continua existindo.

91

Aliás, vale lembrar que, mais tarde, a letra de “Desde que o samba é samba”, composta por Caetano Veloso (registrada por ele e por Gil no disco Tropicália 2 de 1993 e gravada por João Gilberto como faixa de abertura do LP João – voz e violão em 2000), seria uma provocação exatamente aos defensores do purismo de uma forma já realizada e cristalizada do gênero. Diz o desfecho da canção: O samba ainda vai nascer O samba ainda não chegou O samba não vai morrer Veja o dia ainda não raiou O samba é o pai do prazer O samba é o filho da dor O grande poder transformador68

A letra cria a confluência entre os sentidos ambíguos do nascimento-morte do samba em contexto particular (aludindo ao samba enquanto evento cultural popular e se referindo a seu início e a seu fim em um dia específico) e no contexto amplo da história de sua formação (a origem do gênero e a ameaça de seu apagamento). Veja-se que o verso “veja o dia ainda não raiou” desmente que o samba vai “morrer”, isto é, o samba que avança pela madrugada só termina com a chegada do sol (tal como na canção de Noel Rosa, que pede ao sol que não venha, porque sua chegada leva embora as morenas). Por outro lado, o samba sequer começou: o prazer, a festa e a alegria ainda estariam por vir. No entanto, olhado em registro histórico, a ideia de que “o samba ainda vai nascer” e de que “o samba ainda não chegou” faz perceber que a forma definitiva do gênero – a ser preservada e defendida, na opinião de Tinhorão – ainda não se realizou e, portanto, não corre risco de extinção. De todo modo, o samba exaltado em seu poder transformador (da dor em prazer, tal como o blues dos negros americanos, que transformaram seu lamento em sensualidade e beleza), apresenta-se em segurança, justamente porque seu frequente renascimento em outras formas não apenas contribui para preservar as configurações anteriores, mas também garante sempre novas auroras para o gênero. Voltando ao ensaio, Caetano parte para outro contra-argumento: a bossa nova não é jazz (e não se reduz a uma versão brasileira do estilo), apresentando a versão de João Gilberto de “Rosa Morena” como evidência de que ali está presente uma série de elementos estranhos ao gênero norte-americano: Todo conhecimento técnico, adquirido onde quer que seja, está a serviço da recriação da forma samba, do jogo rico que se faz com seus elementos, os sons distribuem-se ritmicamente para reencontrar o gosto pelo

68 VELOSO, 2003, p. 85. 92

gingado, o domínio do ritmo complexo do samba, para, daí, atingir (como poucas vezes se conseguiu) seus conteúdos: a malícia, certa nostalgia, o dengo. (VELOSO, 2005, p. 149)

Segundo o argumento do texto, é justamente João Gilberto, na sequência de Orlando Silva, aquele que com mais miudeza e profundidade conseguiu compreender o que seria a “musicalidade brasileira”. Aliás, o fragmento supracitado remete inequivocamente ao samba de Dorival Caymmi, desde os requebros da baiana ou da vizinha, ao jeito dengoso da Rosa Morena69 e, por fim, ao próprio imaginário imortalizado em versos como “o samba da minha terra deixa a gente mole/ quando se canta todo mundo bole...”. Tudo isso, aliás, levaria Caetano a outra observação: de como o samba de Caymmi (tão popular e tão baiano que tem sabor de domínio público, de coisa sem autor, existente desde sempre) é constantemente preterido pelo “sambão” do morro, aquele que não raro é apresentado por Tinhorão como vítima da sobreposição da bossa nova, sem que o crítico perceba o relevo que João Gilberto dá a Caymmi (bem como o faz com Geraldo Pereira, Wilson Batista e Ary Barroso, só para falar de casos emblemáticos). No entanto, toda essa análise não culmina, no ensaio de Caetano, na conclusão de que a música brasileira comercial não é vítima da alienação ou que não caminha contra a valorização da tradição brasileira. Ao contrário, o texto analisa, com preocupação, os efeitos do mercado da canção no Brasil, com todos os seus vetores que pressionam o processo de produção e põem em risco o potencial artístico e estético da música popular no país: [...] o samba, passando a ser divulgado pelo rádio e pelo disco (vale dizer – por e para uma classe média), mostra uma linha de evolução clássica (no sentido de coerente com a organicidade evolutiva de uma cultura) bastante tênue e interrompida, perdida no emaranhado flutuante da mediocridade. Ou ainda: os sambas primitivos da Bahia, os partidos-altos e sambas dos morros cariocas etc. são uma cultura, mas o resultado global do que sai em disco e se ouve no rádio não significa absolutamente nada. Mais: é diluída na incultura apátrida que o artista que necessite vai buscar a possível continuidade evolutiva de uma cultura brasileira; e através do mecanismo comercial que exige essa diluição é que ele leva à feira os seus trabalhos. (Ibidem, p. 151)

Assim, Caetano Veloso também observava de modo crítico o efeito da indústria do rádio e do disco, incidindo sobre a classe média, seja ela criadora ou consumidora das

69 Nesse mesmo sentido, é possível citar também a canção “O dengo que a nega tem”, que diz: “é dengo que a nega tem/ tem dengo no remelexo/ tem dengo no falar também”. 93

canções, no sentido de mediocrizar e de descaracterizar a canção popular no Brasil e sua colocação no âmbito da cultura do país. Segundo afirma mais à frente, no mesmo texto, os vetores mercantis vão levar à feira “cool, renascença, poesia brasileira moderna, blue, esquerdismo, bop e até samba”, numa mistura que não chegaria a lugar nenhum em termos de qualidade estética ou de poder expressivo da cultura nacional e de suas implicações nos campos sociais e até políticos e econômicos (invertendo a metodologia adotada por Tinhorão). O confronto central entre o crítico e Caetano expressa-se, portanto, quando o primeiro julga o aparecimento da bossa nova como um problema, enquanto o segundo vê no gênero uma possível solução. Haveria, porém, um empecilho: o estilo acabou tendo seu desenvolvimento arrefecido pelo estreito enquadramento comercial no Brasil, restringindo- se a um público específico de classe média ou tendo que negociar esteticamente com imperativos de mercado. Por isso, Caetano defende ser necessário pensar uma maneira de retomar o gesto da bossa nova no sentido de realizar a revisão da tradição brasileira para, a partir daí, projetar novas saídas para a canção popular no país. Reside aqui o tal encontro com a linha (evolutiva) perdida, que Caetano Veloso, ainda em 1965, pensa ser possível retomar, não a partir da importação de outro gênero estrangeiro (como critica Tinhorão traçando os paralelos bossa nova-jazz e tropicália- rock), mas colocando essa informação técnica externa a serviço de uma nova revisão do acervo do passado, a fim de realizar uma nova projeção de futuro, consoante lição de João Gilberto. Nesse sentido devemos entender a insistência de Caetano em afirmar que a bossa nova é o acontecimento mais importante da cultura nacional, como se pode ver em artigo para O Pasquim de 1969: Será que alguém não compreendeu que a bossa nova foi o acontecimento cultural mais importante do Brasil e o único que pôde ir até o fim? Será que ninguém notou que nunca houve nem há nada à altura dos discos que o Tom orquestrou para o João Gilberto? [...] Sigmund, meu caro, você sabe que o Pasquim é filho de Antônio Carlos Jobim; o Pasquim ou qualquer coisa nova que ainda possa aparecer no Brasil. (Ibidem, p. 327)

Ou em outro artigo, desta vez para A Folha de São Paulo em 1999, em réplica a uma investida de Ariano Suassuna (outro antagonista do projeto tropicalista): O valor do tropicalismo se resume a sua coragem de gritar que não podemos fugir às responsabilidades criadas por João Gilberto e Tom Jobim. Ariano fala com freqüência contra o tropicalismo, mas suas poucas palavras de desprezo pela arte de Jobim foram mais eloquentes. Não apenas eu acho que a refinadíssima sutileza do estilo joaogilbertiano

94

é a expressão de uma intuição profunda sobre a nossa singularidade de brasileiros reais agora vivendo no mundo real de agora, sem perder de vista a realização do quase impossível em nós [...] (Ibidem, p. 37)

Assim, o que se observa é que o “bruxo de Juazeiro”, ao inventar a bossa nova, tocou um aspecto fundamental da brasilidade. O tropicalismo desenvolveu-se na tentativa de retornar a esse caminho e, não por acaso, a audição de Chega de saudade é o acontecimento crucial da formação de Caetano Veloso, contado logo no primeiro capítulo de Verdade Tropical como embrião de um projeto de Brasil a partir da canção popular, mais especificamente, a partir da retomada de João Gilberto.

3.3.3. João, personagem de Caetano

Retomemos agora a narrativa do capítulo “Elvis e Marylin” na qual Caetano Veloso apresenta a audição do disco Chega de saudade como o momento mais importante de sua formação, na fase de sua juventude em Santo Amaro, antes de ir estudar em Salvador ou de ir para o Rio (eventos que marcam o capítulo seguinte): Eu tinha dezessete anos quando ouvi pela primeira vez João Gilberto. Ainda morava em Santo Amaro, e foi um colega do ginásio quem me mostrou a novidade que lhe parecera estranha e que, por isso mesmo, ele julgara que me interessaria. “Caetano, você que gosta de coisas loucas, você precisa ouvir o disco desse sujeito que canta totalmente desafinado, a orquestra vai pra um lado e ele vai pro outro”. (VELOSO, 2008, p. 32)

No fragmento, percebe-se a ênfase no tempo individual (dezessete anos em vez de 1959), apresentado em uma frase direta, na qual o impacto do primeiro contato com João Gilberto se constituiria como momento fundador. A idade também é emblemática, não só marcando as vésperas da maioridade (no sentido que lhe dá os 18 anos como fim de um ciclo da juventude, mas também como o momento imediatamente anterior ao ingresso no ginásio, que não só lhe mudaria o cenário, mas também acrescentaria outros momentos formativos, que incidiriam sobre a base, levando-a a outras implicações e profundidades). É também outro momento de autofabulação do narrador sobre o Caetano adolescente, numa descrição que dá relevo à sua excentricidade a essa época – um jovem que costuma gostar de “coisas loucas” e assim é visto por seus colegas. Aliás, a visão do colega sobre a “loucura” de João Gilberto é pautada em um diagnóstico apressado, já que

95

não há desafinação, a despeito da canção que abre o lado B do disco (e que Caetano oferece como explicação para o equívoco do colega), pois só alguém profundamente afinado poderia jogar com a relação entre canto, melodia e ritmo daquele modo. Em outro momento, o narrador trata do cenário em que se dava o culto a João Gilberto: Em Santo Amaro nós cultuávamos João Gilberto em frente a um boteco modesto que chamávamos “bar de Bubu”, por causa do nome do preto gordo que era seu dono. Ele comprara o primeiro LP de João, Chega de saudade – o disco inaugural do movimento –, e tocava-o repetidas vezes. Primeiro, porque ele próprio gostava, e, depois, porque sabia que nós íamos ali para ouvi-lo. Éramos um grupo pequeno: quatro ou cinco ginasianos sem dinheiro para comprar o LP. (Ibidem, p. 37-8)

É muito importante que se observe como a ambientação em Santo Amaro encontra descrição profícua no fragmento, não só na variante linguística da Bahia, que indica o bar como sendo de (e não do) Bubu, como pelo apelido à moda brasileira que identifica o estabelecimento modesto, como pela própria descrição do homem “preto e gordo” (e da naturalidade com a qual o narrador emprega essas palavras, sem receio de suas acepções potencialmente preconceituosas). Mais que isso, a descrição sublinha o fato de Caetano e seus colegas não terem dinheiro para comprar o disco, o que revela a posição social do personagem à época, mas também reflete, em uma conclusão mais ampla, o fato de que o acesso aos LPs não era tão popularizado quanto viria a ser anos depois. E, pensando que o debate sobre bossa nova se desenvolveria paralelamente à elitização do samba, é preciso perceber a relevância narrativa de mostrar que cinco garotos sem dinheiro mais um dono de “boteco modesto” numa cidade do interior da Bahia compartilhavam um culto a João Gilberto. Do particular para o geral, Caetano apresenta também a evidência de que em qualquer cidade brasileira em que se apresente a canção “Chega de saudade”, um coro de vozes acompanha integralmente sua execução. Para além dos segmentos narrativos, que situam o encontro pessoal de Caetano com a bossa nova, a experiência é apresentada nos seguintes termos: A bossa nova nos arrebatou. O que eu acompanhei como uma sucessão de delícias para a minha inteligência foi o desenvolvimento de um processo radical de mudança de estágio cultural que nos levou a rever nosso gosto, o nosso acervo e – o que é mais importante – as nossas possibilidades. (Ibidem, p. 32)

E, logo em seguida, faz uma longa descrição analítica de João Gilberto, que merece citação:

96

João Gilberto, com sua interpretação muito pessoal e muito penetrante do espírito do samba, a qual se manifestava numa batida de violão mecanicamente simples mas musicalmente difícil por sugerir uma infinidade de maneiras sutis de fazer as frases melódico-poéticas gingarem sobre a harmonia de vozes que caminhavam com fluência e equilíbrio, catalisou os elementos deflagradores de uma revolução que não só tornou possível o pleno desenvolvimento do trabalho de Antonio Carlos Jobim, Carlos Lyra, Newton Mendonça, João Donato, Ronaldo Bôscoli, Sérgio Ricardo – seus companheiros de geração – e abriu caminho para os mais novos que vinham chegando [...], como deu sentido às buscas de músicos talentosos que, desde os anos 1940, vinham tentando uma modernização através da música americana – Dick Farney, Lucio Alves, Jonhy Alf, o conjunto vocal Os cariocas – revalorizando a qualidade de suas pretensões (mas também driblando-os a todos com uma demonstração de domínio dos procedimentos do cool jazz, então ponta de lança da invenção nos EUA, dos quais ele fazia um uso que lhe permitiu melhor religar-se ao que sabia ser grande na tradição brasileira: o canto de Orlando Silva e Ciro Monteiro, a composição de Ary Barroso e Dorival Caymmi, de Wilson Batista e Geraldo Pereira, as iluminações de Assis Valente”... “marcou assim uma posição em face da feitura e da fruição de música popular no Brasil que sugeria programas para o futuro e punha o passado em nova perspectiva. (Ibidem, 32-33)

Mais uma vez, o raciocínio de Caetano Veloso apresenta-se na corda tensa das contradições, com ênfase aqui para a dualidade entre o nacional e o estrangeiro (mostrando que o uso dos procedimentos jazzisticos não deve ser visto como algo que simplesmente se opõe à tradição brasileira, mas, pelo contrário, como recurso que age no sentido de seu resgate e de sua iluminação), bem como une as pontas da dicotomia entre passado e futuro, mostrando como o gesto revolucionário de João Gilberto não só colocava em perspectiva o passado (“o nosso gosto, o nosso acervo”), mas principalmente sugeria um programa de revisão também de “nossas possibilidades”. Mais uma vez, tal como no artigo da “Primeira feira de balanço” ou no texto do encarte de Tropicália 2, as figuras (talentosas) de Dick Farney, Lúcio Alves, Jonnhy Alf (mais Os cariocas) aparecem destacadas, por tentaram uma modernização da música brasileira a partir do jazz, quando o drible que lhes dá João Gilberto (abrindo caminho para os companheiros de sua geração) é lançar mão dos procedimentos do jazz para conduzir ainda mais profundamente à experiência brasileira, não partindo desse estilo nem querendo chegar a ele. Como veremos adiante, Lorenzzo Mami, Zuza Homem de Mello e, ainda mais profundamente, Walter Garcia oferecem argumentos nesse sentido, opondo-se a Tinhorão (e outros pensadores de sua linha) não só em relação à sua análise estética da bossa nova, mas também de sua inserção numa história social de nossa música popular.

97

Nesse sentido, Caetano também usa o primeiro capítulo de Verdade tropical para oferecer uma leitura oposta à de que a bossa nova seja uma forma alienada de imitação do jazz e que seu advento marcaria o afastamento das raízes populares do samba. Ao se propor a essa discussão, o autor retoma o debate dos anos 1960 (continuado por Tinhorão até os anos 1990), mantendo sua afirmação de que a bossa nova é um momento decisivo para a cultura nacional. Ainda em “Elvis e Marylin”, Caetano visita esse debate, ao sublinhar que é comum que artigos estrangeiros sobre a bossa nova apresentem-na como um afastamento do samba de sua qualidade de música de dança, para aproximá-lo do consumo de jovens de classe média, num gesto que nos lembra a defesa de Tinhorão sobre a negação das raízes populares, já discutido aqui. Assim avalia Caetano: O samba já conhecia uma longa história de estilizações sofisticadas que, desde o início do século, o afastaram do batuque dos terreiros da Bahia (onde ele nasceu com esse nome, e onde ainda é cantado, tocado e dançado em sua forma primitiva como parte da cultura viva não apenas da população analfabeta dos bairros pobres ou das áreas rurais atrasadas, mas também das classes médias do recôncavo baiano) e do partido alto das favelas cariocas (cujos blocos carnavalescos foram pouco a pouco se transformando no Folies-Bergère de rua que são as atuais “escolas de samba”, as quais, não obstante, apresentam nos seus conjuntos de percussão – as chamadas “baterias” – a mais impressionante manifestação de originalidade e competência de toda a arte popular brasileira. (Ibidem, p. 34)

No fragmento acima, Caetano Veloso condensa uma série de observações que permitem olhar para a relação entre samba e bossa nova de modo mais complexo. Em primeiro lugar, fica afirmado que as formas estilizadas derivadas do samba não eliminam suas formas primitivas; assim, a despeito da bossa nova, permanecem os batuques de terreiro baianos (que, vale lembrar, não se restringem às classes pobres, atingindo também às classes médias do Recôncavo), mas também os partidos altos dos morros do Rio de Janeiro. Estes, por sua vez, são relacionados aos blocos de carnaval (pensados como um multiartístico espetáculo de rua), e sua posterior evolução até as escolas de samba, com o brilhantismo de suas baterias, apresentadas sob o signo da originalidade e da competência. Vale notar que a combinação dessas duas qualidades aparece também na avaliação de Caetano sobre a bossa nova; desta vez, porém, sendo realizada pelas comunidades do samba e consumida por todas as classes, diferindo-se do outro estilo, no qual uma classe

98

média específica produz canções para um público, frequentemente, do mesmo grupo social. Além disso, a análise de Caetano Veloso sobre “uma longa história de estilizações sofisticadas” deixa entrever que as transformações pelas quais o samba passou, em suas diferentes manifestações, são provenientes de necessidades intrínsecas, não de imposições externas. Assim, sinalizando não ser exterior a motriz das mudanças, torna-se claro que não há sentido em proteger o samba de algo que, em verdade, é inerente ao estilo, ou seja, daquilo que se dá internamente. Com isso, o percurso observado por Tinhorão de forma linear e alarmista (no sentido de temer a extinção do samba original das classes pobres), confronta-se com a trajetória proposta por Caetano, que apresenta o gênero no âmbito de suas várias ramificações. Nessa perspectiva, o autor evidencia um processo não excludente, que mostra como coexistem – mesmo na cultura de massas, que incorporou o carnaval das escolas de samba e os carnavais de rua da Bahia –, não só as formas mais primitivas do samba (embora dentro de um devir de mobilidade, transformação, expansão), mas também as diversas estilizações, que vão do samba canção à bossa nova. Aliás, é justamente a partir do sucesso dos sambas-canção, especialmente na passagem dos anos 1930 para os anos 1940 e 1950, e de sua convivência com os primeiros modernizadores da música brasileira pela via da influência do jazz (os “modernizadores americanizados”), que Caetano Veloso encontra mais argumentos para propor uma nova relação entre bossa nova e samba. Ambas as manifestações demonstram como este gênero, antes daquele, já havia se estilizado, se transformado e chegado ao consumo das classes médias urbanas, firmando-se como gênero pop e sendo veiculado pelo teatro, pelo rádio e pelo disco. Em seu argumento, Caetano mostra como o acabamento técnico da bossa nova e a busca de tornar o samba e suas estilizações um produto acabado, para um amplo mercado, é fundamental para trazer à luz suas várias ramificações, que conseguiram chegar aos estúdios, a outros públicos e a outros níveis de popularização.70

70 José Ramos Tinhorão concorda em parte com essa descrição da fase anterior à da bossa nova, vale citar: “O samba canção florescente nas décadas de 1930 e 1940 abolerou-se [...] a produção dos compositores das camadas mais baixas – considerada “música de morro” – não chegava mais aos discos (exceção feita aos sambas enredo de escolas de samba), e as criações baseadas no aproveitamento de sons rurais diluíram-se de vez nos arranjos de orquestra (caso do baião), encomendados na tentativa de torná-los palatáveis para o gosto da classe média” (TINHORÃO, 1998, p. 309). Tinhorão, porém, verá a bossa nova como continuidade desse processo de descaracterização do samba; Caetano verá no sentido oposto. 99

Na sequência, Caetano propõe a comparação entre duas gravações de “Caminhos cruzados” (composição de Tom Jobim, ainda na fase anterior à bossa nova): uma da cantora Maysa (típica representante do samba canção e das canções de “fossa” que deram o tom aos anos 1940-50) e a de João Gilberto. A comparação se dá nos seguintes termos: A interpretação de João é mais introspectiva que a de Maysa e também violentamente menos dramática; mas, se na gravação dela os elementos essenciais do ritmo original do samba foram lançados ao esquecimento quase total pela concepção do arranjo e, sobretudo, pelas inflexões do fraseado, na dele chega-se a ouvir – com o ouvido interior – o surdão de um bloco de rua batendo com descansada regularidade de ponta a ponta da canção. É uma aula de como o samba pode estar por inteiro mesmo nas suas formas mais aparentemente descaracterizadas; um modo de, radicalizando o refinamento, reencontrar a mão do primeiro preto batendo no couro do primeiro atabaque no nascedouro do samba. (Ibidem, p. 37)

Como veremos adiante, Caetano vai insistir que a estética da bossa nova tem um componente de violência, pois configura uma mudança drástica, que aparece na curiosa formulação “violentamente menos dramática”, fazendo com que reorganizemos nossos parâmetros para compreender a comparação. Enquanto se julga que Maysa é uma cantora dramática, com a violência de seu exagero, que vai da rouquidão da voz à força do temperamento de seu canto, mal se percebe, atualmente, que ainda mais violenta é a supressão quase absoluta da dramaticidade, à qual estavam acostumados os ouvidos que acompanhavam a canção popular na época imediatamente anterior à eclosão da bossa nova. Mais que isso, observa Caetano Veloso que, na versão de Maysa, o samba (que faz parte da legenda “samba-canção”) quase desaparece, do arranjo ao fraseado, enquanto a interpretação de João Gilberto resgata a presença do gênero aparentemente distanciado. A elipse é indicada pelo “ouvido interno” do narrador, que identifica um “surdão de bloco de rua batendo”71. Em mais uma de suas estruturas opositivas, Caetano entrelaça o refinamento, que aponta para o presente, com a tradição da experiência brasileira, que se reporta ao passado. A imagem de sugestão metonímica da “mão do primeiro preto batendo no couro do primeiro atabaque no nascedouro do samba”, além de mimetizar sonoramente o próprio batuque na sequência dos fonemas oclusivos surdos e sonoros (/p/-/b/ e /t/-/d/ e ainda /k/),

71 No disco Noites do norte ao vivo (2002), Caetano Veloso grava “Caminhos cruzados”, começando por uma marcação enfática dos instrumentos de percussão, especialmente o surdo e o tamborim (ambos tocados por instrumentistas negros), que voltam a se manifestar em momentos específicos da canção, tornando evidente a presença dos elementos do samba, que o artista identifica com “o ouvido interno” na gravação de João Gilberto. 100

é uma contemplação poética de uma gênese, de uma potência de ancestralidade, que aparece vibrando em sua latência no espírito atemporal da canção, revelado pelo mestre João Gilberto. Além disso, para completar a análise comparativa (em forma de contra-argumento), Caetano fala sobre a relação entre a versão de João Gilberto de “Caminhos cruzados” e seu componente da dança, pretensamente excluída das estilizações do samba: Quanto a mim, encontro nessa gravação de “Caminhos cruzados” por João um dos melhores exemplos de dança – e isto aqui não é uma opinião excêntrica rebuscada: eu de fato sinto a delícia de sambar e do que é saber que João Gilberto está me mostrando o samba-samba que estava escondido num samba-canção que, se não fosse por ele, ia fingir para todo sempre que era só uma balada. (Ibidem, p. 37)72

Com isso, Caetano põe também em perspectiva que as estilizações do samba feitas para consumo das classes médias urbanas excluem o componente de dança, presente no samba “original”, aqui identificado como “samba-samba”, menos por sua tentativa de se afirmar como primitivo, e mais pela afirmação da essência do gênero que está latente na gravação de João Gilberto. Além disso, dizer que isso não é uma opinião rebuscada ou excêntrica acaba por reforçar, a um só tempo, o traço de excentricidade da inteligência e da personalidade de Caetano (que mais uma vez se autofabula, negando estar fazendo isso), mas também o equívoco das análises que colocam a bossa nova em um lugar de inautenticidade, submissão cultural ou elitismo. Por fim, na sequência desse raciocínio, Caetano conta que um jornalista estrangeiro, cujo entendimento sobre música popular brasileira elogia, chega a comparar a reação à bossa nova no Brasil à reação ao rock nos EUA (evidentemente não querendo entrar no mérito de que um representa sua revolução a partir de um ideal de sofisticação e, o outro, de sua negação), de modo que acaba por caracterizar João Gilberto como o Elvis do Brasil. Aqui ecoa o título do capítulo e uma chave de leitura para a cultura brasileira, a partir da trajetória e da percepção pessoal de Caetano Veloso, a partir dessa troca de paradigmas, isto é, de mais essa fissura.

72 No filme Cinema falado, há uma sequência na qual aparece Edith do Prato e um grupo de pessoas sambando ao som de sambas-de-roda como “Viola, meu bem” e “Beira-mar” e, logo depois, Rodrigo Veloso fazendo os passos do samba com a música “Águas de março” na voz de João Gilberto. Em cena posterior, o irmão de Caetano aparece novamente em foco, dançando do mesmo modo, mas, desta vez, na roda. Isso enfatiza a presença da dança na bossa nova e seu vínculo profundo com o samba baiano. A cena específica pode ser encontrada em: https://www.youtube.com/watch?v=Ulj7DobRefQ. Último acesso em: julho/2015. 101

3.3.4. A contradição sem conflitos

Para iluminar a articulação final que Caetano Veloso estabelece, ainda no capítulo “Elvis e Marylin”, com o projeto de Brasil intuído a partir de João Gilberto, é conveniente aprofundar a interpretação sobre esse artista, a partir de outros estudiosos de sua obra, especialmente do pesquisador Walter Garcia, que teve sua dissertação de mestrado sobre o assunto convertida em livro. Quem assina sua apresentação é justamente Caetano, e é nítida a influência deste sobre as respostas buscadas por aquele. O livro, intitulado Bim bom – a contradição sem conflitos de João Gilberto, oferece uma leitura lúcida e clara sobre as questões que atravessam a bossa nova – sua originalidade, as relações entre o samba e o jazz, a consequente dualidade entre o nacional e o estrangeiro, o debate sobre o afastamento ou a aproximação com as raízes populares do samba, a relação do artista com a tradição da música popular no Brasil e, por fim, a possibilidade de ler a singularidade do país a partir do gesto de ruptura empreendido a partir de Chega de saudade. Segundo a apresentação de Caetano: ... para ouvir João com clareza, e, assim, poder julgar com precisão o legado musical e crítico de João (inclusive na medida em que ele permanece como horizonte da nossa criação em música popular e na medida em que a música popular comercial é um modo de expressão relevante como manifestação da cultura), é absolutamente urgente e imprescindível ler este estudo de Walter Garcia sobre a contradição sem conflitos de João Gilberto. (VELOSO apud GARCIA, 1999, p. 12)

A afirmação reiterada de que os discos de João Gilberto (especialmente os orquestrados por Jobim) continuam sendo o norte da criação de muitos artistas brasileiros de sua geração (e de muitos das gerações seguintes) aparece não só aqui, mas também em outros artigos seus e em Verdade tropical.73 Mais que isso, Caetano aproveita a oportunidade para, mais uma vez, enfatizar que a música popular comercial é uma importante manifestação cultural, a despeito de todos aqueles que a reduzem a mera mercadoria ou incentivo da alienação das massas ou submissão cultural do país a modelos estrangeiros. A urgência e a necessidade de ler o estudo de Garcia residem no esclarecimento das questões-chave que levam Caetano Veloso a identificar João Gilberto como o “x do problema”; não só o de nossa música popular, mas o das possibilidades abertas pela cultura

73 “Tínhamos ainda (temos ainda hoje) como limite e horizonte os discos de João Gilberto arranjados por Jobim.” (VELOSO, 2008, p. 178) 102

de massas e, principalmente, o de pensar uma saída criativa para o Brasil. Por fim, é muito importante perceber a retomada da expressão do título – “a contradição sem conflitos”, que pode ser imediatamente vinculada à própria estrutura de pensamento de Caetano Veloso, à sua produção artística e a seu acompanhamento teórico, enfim, à sua visão sobre a canção popular e sobre o país. O livro de Garcia começa por observar a centralidade do aspecto rítmico na invenção de João Gilberto, que o próprio afirma ter sido inspirada nos “requebros das lavadeiras de Juazeiro”. A escolha de seu repertório – e de seus compositores mais frequentes, como Dorival Caymmi, Ary Barroso e Tom Jobim – parece confirmar essa inspiração: no conjunto das canções, é possível notar como o balanço, o remelexo e o requebro aparecem como elementos fundamentais da letra, da melodia, da batida, do canto e da própria afirmação do samba e de seu componente de brasilidade. O corpo da mulher brasileira, abstraído sob a forma de canção, é, portanto, a própria medula da bossa nova de João Gilberto. Em seguida, explica-se sua importância como marco, a partir de Chega de saudade, da consolidação de uma tradição da música popular no Brasil, sob o argumento de que nessa experiência se funda uma linha de continuidade de escolhas no processo criativo, que gera nosso cancioneiro. Esclarece o autor: ... o valor [de João Gilberto] decorre do fato de ter dado forma a ideias ora praticadas sem continuidade, ora apenas pretendidas, de todo modo experimentadas em algum nível por muitos, e sempre com enorme importância. Em outras palavras, penso que o sentido histórico e cultural de João Gilberto alcança uma medida mais justa se visto sob a perspectiva de uma cristalização das bases da experiência brasileira (e não só, mas fiquemos por aqui), anteriores, contemporâneas e mesmo posteriores à sua criação. Aliás, o próprio Caetano, em duas entrevistas, sendo mais ponderado, avaliou com maior lucidez a questão: em 1967 – ‘ele [João Gilberto] é que foi a síntese de uma necessidade geral – e em 1990 – ‘ele centraliza. Isso não desmerece o valor de outras pessoas. (GARCIA, 1999, p. 95-96)

As manifestações de cultura, que já são dispersas, a serem consumidas por uma classe média de valores também dispersos, em um país cuja formação leva a ainda mais dispersão, acabam tornado a formulação de uma tradição brasileira na cultura popular uma tarefa difícil. Porém, partindo da premissa de que a tradição vincula-se à percepção de permanências que resistem à tendência dispersiva, é possível encontrar na bossa nova, especialmente na figura de João Gilberto, o momento em que essas continuidades firmaram-se como linha que dá sentido ao passado e se projeta para o futuro. Essa

103

“cristalização da experiência brasileira” deu-se exatamente em uma obra, que como veremos, estará baseada na extrema mobilidade entre polos opostos, relacionada à “contradição sem conflitos” de que fala o título. Como já se disse, Caetano Veloso compreende a bossa nova não como algo feito a partir do jazz estrangeiro, mas algo que lançou mão da sofisticação e do aparato jazzístico para empreender uma busca profunda da própria tradição musical da qual se parte. Nas palavras de Garcia: Ao formular seu ritmo na dialética projetada pelo desejo de modernização de músicos e consumidores de classe média, durante os anos 1950, João Gilberto alcança um produto raro na história da canção popular do Brasil, à medida que este representa um equilíbrio não só entre tradição local e o influxo externo como também entre as conquistas de duas músicas de mesma raiz, mas, até então, em estágios artísticos diferentes. Nesse sentido, uma coisa é ver a bossa nova apenas como mais um capítulo da história do jazz. Outra, bem diversa, é analisá-la a partir do caso brasileiro, em que ela realmente se produz e seu valor estético ainda não foi superado. (Ibidem, p. 98)

As diferenças entre o jazz e a bossa nova também ocuparam pesquisadores como Lorenzzo Mami e Zuza Homem de Melo. O primeiro afirma de modo esclarecedor: Sem dúvida, a música norte-americana não conhece nada de parecido. Ali uma voz é tanto mais perfeita quanto mais se aproxima do instrumento, ainda que o intérprete recuse o virtuosismo em favor da pureza melódica: Chet Baker cantor imita o Chet Baker trompetista. Um movimento contrário, segundo o qual o canto se torna tanto mais perfeito quanto mais roça a indefinição da fala, introduziria uma vertigem do infinitesimal que é absolutamente estranha à cultura jazzística. A dissonância no jazz é metáfora, isto é, nota que substitui a nota originária, reforçando de alguma forma seu significado; a dissonância para João Gilberto é litote, negação da negação de uma consonância. A síncope do jazz confirma o tempo forte; a de João Gilberto relativiza-o, cria uma suspensão temporal. O timbre do jazz é luxo (realça a linha melódica), o de João Gilberto é economia (a substitui).74

Aqui, desenham-se algumas diferenças fundamentais entre João Gilberto e o jazz. Em primeiro lugar, destaca-se que o canto jazzístico aproxima-se do instrumento, citando Chet Baker (que é uma referência também para o inventor da bossa nova) como um desses cantores instrumentistas, cujo valor do canto mede-se pela proximidade entre voz e instrumento, em seu caso, o trompete. Oposto a ele, está João Gilberto, que dialoga com o instrumento (o violão) a partir de uma busca da palavra falada, da espontaneidade máxima

74 http://arteeinstitucionalizacao.blogspot.com.br/2011/07/texto-joao-gilberto-e-o-projeto-utopico.html 104

da fala, neste caso, da fala brasileira, que é uma forma indireta e complexa de chegar novamente à música. Explica-se: Dorival Caymmi, que para João Gilberto é “o gênio da raça”, é um dos compositores que mais se aproxima da fala, de uma fala carregada de baianidade/ brasilidade, que acaba se encontrando com a música que dela provém.75 A fala, aliás, apresenta uma “indefinição” (uma mobilidade) muito diferente da pretendida por quem imita um instrumento no canto jazzístico. Além disso, o fragmento apresenta uma reflexão sobre a dissonância, que pode ser iluminada pela explicação de Zuza Homem de Melo de que João Gilberto promove “inversões nos acordes que mudam ou suprimem a nota dominante do acorde” e que “isso gera uma impressão de certa instabilidade, de leveza, como se a base harmônica estivesse pairando no ar e não repousando”.76 Mais uma vez, o compromisso com a mobilidade é a chave de leitura. A dissonância do jazz é metáfora, na explicação de Mammi, porque é comparação – substitui-se uma nota pela outra, pois são comparáveis; em João Gilberto é litote, figura de linguagem que consiste na afirmação pela negação do oposto, isto é, dissonância e consonância entram em um jogo de afirmação e negação, que revela o que não foi dito diretamente. Veja-se que a síncope e o timbre também se apresentam de modo diferente em João Gilberto, relacionados respectivamente às ideias de relativização e suspensão, e economia. Se é certo que a bossa nova é diferente do jazz, é também plausível observar que a bossa nova é diferente do samba. Ao mesmo tempo, seria possível dizer que, de algum modo, a bossa nova também é jazz e também é samba. Nesse sentido caminha a argumentação de Garcia, que esclarece que: ... o resultado seja ‘uma peça de forma redonda e acabada’, como afirmou Caetano, ou, em outras palavras, uma forma estética que suspende, elevando a um novo patamar, a antiga contradição entre o arcaico e o moderno, o local e o exterior, o particular e o universal, este é um daqueles verdadeiros milagres que ocorrem na experiência brasileira apenas algumas poucas vezes. (GARCIA, 1999, p. 114)

E, no mesmo raciocínio:

75 No show Obra em progresso de 2011, Caetano Veloso canta “Você já à Bahia” de Caymmi e, depois de cantar por inteiro a canção pela primeira vez, começa uma fala sobre o compositor: “Que beleza! Um cara desse né, como é que existe? O cara, porque a gente fala, ele, como a gente fala mesmo, a melodia, a frase, a entonação, o lugar onde tem a vírgula; não vírgula que você escreve, mas a vírgula que você fala na intenção de falar, tudo!” (pega o violão e repete o início), “É uma conversa, você pode cantar sem acompanhamento, parece que você tá falando, parece a pessoa fazendo, ainda mais baiano”. Transcrição livre da fala no vídeo disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=fUEsQyO53Zs. 76 MELLO, 2001, p. 24. 105

o caráter da bossa nova se define por conciliar a negação com a afirmação do samba: há negação quando a bossa cria sua própria base, sob influxos jazzistas; e há afirmação quando a bossa se remete ao samba, no curso das variações da mesma base (pelo aparecimento do brasileirinho), ou quando inclui o próprio padrão do samba como modelo secundário a ser também alterado. [...] aproveitando-se a sugestão de Caetano Veloso, pense-se no círculo como uma imagem para o balanço peculiar do violão de JG, construído na extrema mobilidade entre o samba e o não samba. (Ibidem, 115)

Na verdade, aí estão postas as linhas gerais da leitura de Brasil a que pretende chegar Caetano Veloso. A referida “contradição sem conflitos” de João Gilberto é sair do samba para a bossa (aproximando-se do jazz) e voltar da bossa para o samba, num movimento contínuo que equilibra as contradições. As dualidades entre arcaico e o moderno, local e estrangeiro ou particular e universal, definidores do samba e do não samba, sob a ótica de alguns críticos, harmonizam-se de tal forma aqui, que o equilíbrio estético entre ser samba e não ser samba, põe também em equilíbrio as contradições centrais da cultura brasileira, que se realizaria mais intensamente não quando o primeiro polo é atingido (garantindo a autenticidade) nem quando o segundo é alcançado (ao aderir ao modelo estrangeiro). É justamente no milagre de cristalizar a mobilidade que o Brasil estaria revelado. Com isso, Garcia indica o equívoco de Tinhorão: a ausência de caráter do Brasil, que este vê de modo mais intenso nas classes médias urbanas consumidoras da cultura de massas, antes de ser um problema de classe, é uma questão de formação histórica. E aqui se evocam as grandes interpretações do Brasil, em especial Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre (e poderíamos acrescentar a expressão literária de Macunaíma – o herói sem nenhum caráter), que mostram não só como a formação histórica brasileira leva à falta de definição (à pluralidade), mas também como há nisso uma ambiguidade, que comporta possibilidades positivas latentes no Brasil. Se somos isso e aquilo, e esse é nosso problema e nossa vantagem (nosso veneno e nosso remédio), quem nos dá a chave é João Gilberto. Conclui Garcia: É verdade que este caráter não definido está mais bem exposto na classe média que nas camadas mais baixas. [...] o que Tinhorão não pôde ou não conseguiu reconhecer é o valor, notável em todos os sentidos, do equilíbrio alcançado pelo ritmo de João Gilberto enquanto forma artística realizada, justamente, a partir dessa dialética aflitiva da ‘extrema mobilidade’ (GARCIA, 1999, p. 112)

106

4. Erasmo e Raul

Feitas tais reflexões sobre bossa nova, Caetano Veloso, ainda no capítulo “Elvis e Marylin”, parte para algumas observações sobre o início do rock no Brasil. Mais uma vez, o autor recorre a aproximações inusitadas, em um contínuo exercício de observar a permeabilidade de algumas oposições. Após ter citado (e discutido) uma aproximação entre figuras como Elvis Presley e João Gilberto (ambos provocadores de fortes reações nos tempos em que produziram suas rupturas), Caetano aponta também para a proximidade entre o cinema que ajudou a propagar o rock e determinado tipo de produção fílmica nacional: O filme No balanço das horas (Rock around the clock) foi noticiado como tendo provocado, devido ao entusiasmo dos espectadores, depredações em cinemas do Rio de Janeiro e, quando afinal ele foi exibido em Salvador, no Cine Guarany (hoje Cine Glauber Rocha), suei frio com medo de ser possuído por alguma força irracional – como tantas vezes senti no candomblé – até me dar conta, aliviado, de que estava diante de uma chanchada bastante parecida com os únicos filmes brasileiros capazes de atrair filas quilométricas à porta dos cinemas a cada verão: as comédias carnavalescas primárias e eficazes que lançavam, entre piadas, as marchinhas e os sambas ao som dos quais se dançaria no Carnaval seguinte. (VELOSO, 2008, p.39)

É interessante perceber que tanto bossa nova como rock’k’roll são gêneros oriundos da cultura africana; este, do blues; aquele, do samba e do jazz. Nessas origens, o corpo se apresenta como elemento fundamental, respondendo de modo livre e instintivo ao estímulo musical, que se confunde com uma dimensão transcendente. A aproximação entre a força irracional que poderia ser acionada pelo filme (relativo ao rock internacional) e aquela que se faz presente no candomblé (enquanto manifestação afrobrasileira) revela não só a presença do dado irracional e da corporeidade (que dariam, posteriormente, tom à contracultura), mas também suas raízes entre os povos afroamericanos. Desmitificando a novidade, Caetano percebe que aquilo que se anunciava como inovação já apresentava uma série de semelhanças com nossa própria cultura de massas. O comentário sobre as chanchadas (e sobre sua hegemônica popularidade no cinema nacional) chama atenção para aproximações possíveis entre rock e carnaval, que, além de terem suas músicas vinculadas a uma raiz de componente africano (mas também americano), apresentam as temáticas da transgressão dos costumes, da subversão de regras, da “licenciosidade” sexual, da presença ostensiva do corpo e da alteração da consciência.

107

Na sequência, Caetano faz uma reflexão sobre componentes contextuais que dificultavam a emergência de manifestações do rock criadas por artistas brasileiros antes dos anos 1960 e, especialmente, antes do que se chama “neorock’n’roll” inglês (especialmente, Beatles e Rolling Stones). Essa análise começa com a observação de que as primeiras horas do rock no Brasil não evidenciavam o sucesso comercial que teria depois, especialmente porque, ainda segundo seu argumento, os fãs de rock dos anos 1950 deveriam conciliar “um gosto suburbano” (para romper com os padrões artísticos aceitos pela elite) com certo “poder econômico” (para ter acesso à língua inglesa bem como aos discos, filmes e revistas que propagavam o fenômeno). Assim, muitas vezes, os desencontros entre ter acesso e não ter a empatia (em função dos preconceitos elitistas) ou entre ter empatia, mas sem ter acesso, gerava um grupo pequeno para o qual confluíam ambos os requisitos. Em relação a essa confluência, Caetano elege – “pela autenticidade de suas relações com o rock e/ ou pela adequação a ele de seus temperamentos” – dois artistas brasileiros para sinalizar (e refletir sobre) a emergência do rock no Brasil: Erasmo Carlos e Raul Seixas. Sobre o primeiro, Caetano Veloso (seguindo seu raciocínio anterior), começa por localizá-lo sócio-espacialmente como “um típico rapaz de subúrbio carioca”, indicando que nasceu e cresceu na Tijuca e que se reunia com sua turma de fãs de rock (dentre os quais Roberto Carlos e Tim Maia) à porta do cinema Imperator, no Méier77. Atendendo ao requisito do “gosto suburbano”, essa turma também apresentava possibilidades de acesso ao rock’n’roll, resultando na combinação que Caetano indica como necessária. Depois, ao inseri-lo na esteira de nossa canção popular comercial, já no início dos anos 1960, é interessante perceber que Caetano situa Erasmo Carlos como “o segundo homem da Jovem Guarda”, apontando o primeiro como Roberto Carlos, este sim indicado como alguém que (com razões bem diversas da comparação com João Gilberto) poderia ser reconhecido como “o Elvis do Brasil”. Esse reconhecimento, ao contrário do que se poderia pensar, é a própria razão de Caetano evidenciar Erasmo (e não Roberto) como representante mais autêntico do início do fenômeno rock no Brasil. Explica-se: Roberto também começou cantando temas de cultura jovem ao som das baladas rock’n’roll e, logo depois, foi se distanciando do gênero e se consolidando como cantor romântico, tal como aconteceu com Elvis. Já Erasmo

77 O cinema funcionou entre 1954 e 1986. Em seguida, o espaço foi transformado em uma casa de shows, que funcionou entre 1991 e 1996. Por fim, esteve um período fechado e, após nova reformulação, reabriu em 2012, passando a se chamar Centro Cultural João Nogueira. 108

(contraposto a Roberto) deixa claro como é genuína sua “sensibilidade rock’n’roll”. Assim Caetano o descreve em Verdade tropical: Erasmo, não apenas vice-líder da “guarda” de Roberto mas seu parceiro em todas as composições, nunca pareceu atraído sinceramente por nada que não fosse do mundo do rock, e tanto o despojamento do seu canto quanto a energia sexual de sua presença cênica (alto, pesado, firme, com ar anti-intelectual e anti-sentimental de quem vive os temas essenciais da vida com o corpo todo, nessa combinação de homem pós-industrial e pré- histórico para a qual o rock apontou com tanta insistência em toda parte do mundo) fizerem dele para sempre uma figura de tão importante inteireza que nem as oscilações do mercado, nem as eventuais ingratidões de novos roqueiros, nem o desprestígio do rock como acontecimento cultural de interesse podem abalar. (VELOSO, 2008, p. 43)

No fragmento, Caetano põe em perspectiva a posição de “segundo homem” que Erasmo ocupa em relação a Roberto, especialmente indicando sua parceira nas composições, como também as diferenças de interesses que geraram, evidentemente, o distanciamento entre as trajetórias dos artistas78. A descrição aproxima Erasmo de uma espécie de protótipo de cantor de rock, atribuindo-lhe as características icônicas do estilo. Também é interessante perceber que, no fragmento, Erasmo é, ao mesmo tempo, anti- intelectual e anti-sentimental, o que indica, evidentemente, outros registros de inteligência e sensibilidade, diversos dos convencionais. Em seu despojamento, retém-se apenas aquilo que é essencial à vida, e o corpo aparece aqui, novamente, como valor central do imaginário rock’k’roll. Outro ponto estimulante da descrição é a combinação entre o homem pós-industrial e o homem pré-histórico, que concilia os extremos e condensa uma forma de ser presente (tempo com o qual a contracultura tem compromisso) que reúne em si o passado e o futuro. Poderíamos associar também a descrição do roqueiro como uma possível realização do bárbaro tecnizado de Oswald de Andrade, o homem primitivo com aparato técnico ou, mais claramente, o ser livre em seu estado selvagem, apenas com guitarras elétricas nas mãos. Raul Seixas, por sua vez, é descrito em contraponto a Erasmo, especialmente no que concerne a suas ambições estéticas e intelectuais, em sua localização como “menino da burguesia baiana” e em seu interesse pela língua inglesa. E, apesar de sua rejeição irreverente e agressiva pela bossa nova e sua turma , Raul reconhecia a importância do

78 Apesar disso, Roberto Carlos costuma reservar um espaço para pelo menos um número de jovem guarda em seus programas especiais para a TV e, frequentemente, convida Erasmo Carlos para fazer parte. 109

gesto tropicalista de trazer o “rock” para “o rol de coisas respeitáveis” (o que, aliás, segundo a perspectiva de Caetano, foi fundamental para que aquele pudesse pôr em prática suas ideias e colocá-las no mercado de música). Além disso, o autor, no perfil que traça de Raul Seixas, chama atenção para seu hábito de conversar em inglês, mesmo quando era desnecessário e, principalmente, de voltar ao português sempre acentuando de modo intenso o sotaque baiano: Essa combinação nós reconhecíamos em seu trabalho: em seus discos, tudo que não era americano era baiano. E baiano no que a Bahia tem de distintivo, não de integrador, no que a Bahia tem de ameaçador à ideia de um Brasil homogêneo. Assim, tudo que na Bahia é sotaque, tudo o que nela é nordestino, tudo o que faz dela algo restrito a uma turma, é escolhido; enquanto que tudo o que na Bahia é carioca, tudo o que possa se chamar de brasileiro, é rechaçado. Nós não podíamos deixar de reencontrar ai traços de alguns sentimentos que se encontravam na raiz do tropicalismo. (VELOSO, 2008, p. 46)

Mais uma vez, retorna a discussão entre o regional e o estrangeiro ou, em outras palavras, o “recôncavo” e o “reconvexo”. Paralelamente, é preciso observar que o interesse tropicalista, sinalizado também em Raul Seixas, está vinculado com a negação do Brasil metonímico, tanto aquele que generaliza a visão nacional-popular ufanista (no âmbito do imaginário turístico do paraíso exótico), quanto aquele que trabalha com um registro de “povo” sofrido e valente a quem caberia a revolução. De modo diverso, o Brasil passa a ser visto pelo tropicalismo, exatamente, a partir de suas contradições, fissuras, discrepâncias e semelhanças pouco evidentes.79 Por fim, é importante observar que Caetano Veloso, ao mesmo tempo em que evidencia a relevância desses artistas para o rock nacional, registra sua distância em relação a eles na passagem dos anos 1950 para o início dos 1960, posição igual a que guardava diante de Elvis Presley. A aproximação com a bossa nova, e não com esses artistas, representa uma fissura importante para sua formação. Além disso, o modo como eles aparecem ressignificados anos depois (seja pela perspectiva da cultura pop, seja pela emergência do neo-rock’n’roll inglês, seja pela empresa tropicalista no sentido dessas

79 Nesse sentido, é interessante lembrar a letra da canção “Rock’n’Raul”, na qual Caetano homenageia o roqueiro baiano: os versos de introdução (“Quando eu passei por aqui/ a minha luta foi exibir/ uma vontade felá-da-puta/ de ser americano) indicam esse compromisso em ser, ao mesmo tempo, ultra-regional (desde a expressão “fela-da-puta”) e perfeitamente estrangeiro (“americano”). Sobre a escolha de tudo que na Bahia há de desintegrador, é notório o verso “a verdadeira Bahia é o Rio Grande do Sul”, no qual brilham todos os antagonismos (de localização, de clima, de ascendência, de raça, de cultura) e se evidencia que, tal como em Raul, a Bahia (e o Rio Grande do Sul) aparecem em sua equação improvável. A composição de Brasil daí resultante não permite a generalização metonímica, revelando-se justamente a partir das incongruências. (VELOSO, 2003, p, 217). 110

ressignificações), é uma elemento chave para compreender como se desenvolve o pensamento de Caetano Veloso sobre o Brasil.

5. Ray Charles, estrangeiro

Cabe agora passar à análise do capítulo “Bethânia e Ray Charles”, que se concentra na ida de Caetano Veloso e Maria Bethânia para Salvador em 1960, no ano em que ele completaria 18 anos e sua irmã, 14. A artista aparece como personagem principal dessa seção, que está relacionada a um segundo ciclo de momentos formativos, que envolvem as experiências de vanguarda na Bahia à época, mas também a influência de Álvaro Guimarães e Duda Machado e, por fim, a importância de Augusto Boal. A referência ao músico norte-americano Ray Charles justifica-se por razões de ordem estrutural e dialética. A relação entre os dois personagens do título deve ser compreendida a partir do relato de Caetano Veloso de que Maria Bethânia havia participado do culto a João Gilberto (iniciado no bar de Bubu no fim dos anos 1950), mas em registro diferente do restante do grupo. A explicação estaria no fato de que Bethânia “não se submetia às limitações nem se empenhava na disciplina que a adesão a um estilo exigia”80, além do que a artista sentia falta da dramaticidade dos sambas antigos, minimizada pelo advento da bossa nova. Na sequência dessa observação, o narrador-intérprete comenta que, na mesma semana, soube do mútuo desinteresse entre João Gilberto e Ray Charles: este considerava a bossa nova apenas “o ‘velho ritmo latino’ com uma síncopa mais moderna” enquanto aquele considerava o outro um “folclórico”. Depois de encontrar explicações para as avaliações dos dois artistas (ainda que sem concordar com nenhum deles), Caetano afirma que mais difícil era compreender como gostava com tanta profundidade e sinceridade da música de ambos, o que pode ser entendido, no âmbito de seu próprio discurso, a partir do mesmo desejo de modernidade que o levara a suas referências basilares. Um momento interessante nessa sequência diz respeito à citação da canção “Georgia on my mind”, mais especificamente quando conta ter passado uma tarde ouvindo esta gravação repetidas vezes, em Salvador, enquanto chorava de saudades de Santo Amaro. A canção de Hoagy Carmichael e Stuart Gorrell foi grande sucesso no ano de 1960

80 VELOSO, 2008, p. 64. 111

na voz de Ray Charles, na mesma época em que Caetano havia acabado de se mudar para a capital baiana. Vale citar a letra: Georgia, Georgia, The whole day through Just an old sweet song Keeps Georgia on my mind

I said oh Georgia Georgia A song of you Comes as sweet and clear As moonlight through the pines

Other arms reach out to me Other eyes smile tenderly Still in peaceful dreams I see The road leads back to you

I said Georgia, Ooh Georgia, no peace I find Just an old sweet song Keeps Georgia on my mind

A apreciação da letra é valiosa na medida em que o narrador a conecta a uma dimensão transcendental da saudade, ou, em suas palavras, “a experiência da beleza fazendo os conteúdos que tinham se tornado matéria de memória estarem mais presentes do que da primeira vez”81. Essa descrição remete-o ao livro de Michel Proust, o célebre Em busca do tempo perdido, publicado entre 1913 e 1927, em sete volumes. No primeiro (traduzido em português como No caminho de Swamn), o narrador-personagem conta sua infância e adolescência, resgatando o passado através dos sentidos, tal como no famoso episódio das madeleines embebidas no chá. O livro, que foi lido por Caetano anos depois do episódio com “Georgia on my mind”, aparece enriquecido por outra leitura, posterior a ambos, que é a análise de Gilles Deleuze sobre Proust. As questões que se encenam aqui vão da análise estrutural da obra (que aponta para mais um paradigma de modernidade para o interesse de Caetano), à própria observação da temática da memória que vai construindo (e sendo construída) pela narrativa. Nesse sentido, o narrador conclui a rede de referências com sua própria canção “Jenipapo absoluto”, cujo fragmento (citado também ao longo da narrativa de Verdade

81 VELOSO, 2008, p. 64. 112

tropical) é oportuno comentar: “cantar é mais do que lembrar/ é mais do que ter tido aquilo então/ mais do que viver, do que sonhar/ é ter o coração daquilo”.82 Veja-se que a letra de “Jenipapo absoluto” está diretamente ligada tanto a Proust quanto a Ray Charles, na medida em que “Georgia on my mind” fala exatamente da força de uma doce e antiga canção de trazer de volta à memória a pessoa amada, o espaço amado, o tempo amado83. Esse mesmo fenômeno encontra-se no belo fragmento da canção de Caetano, na medida em que o resgate estético do momento pretérito através da canção passa a ser mais do que a lembrança, mais do que o sonho e mais do que a própria vivência, apresentando-se como uma forma potente de chegar ao elemento essencial daquilo que se resgata. Essa digressão é útil para observarmos que Verdade tropical também apresenta um componente intimamente relacionado a esse gesto de resgatar o passado pela memória, aqui acessada tanto pela via do sensível quanto da razão, mas especialmente da dimensão estética. Isso é intensificado pelo fato de que “Georgia on my mind”, “Jenipapo absoluto” e Em busca do tempo perdido aparecem citadas exatamente na primeira parte do livro, na qual, como se sabe, ocorre o resgate da infância e da juventude do narrador. Assim, Ray Charles acaba somando-se à sequência dos momentos formativos de Caetano Veloso, que se ofereceram como manifestação de modernidade estética, tal como Clarice, Fellini, Giulietta e João Gilberto; mas também, assim como eles, é apresentado no livro como forma de recuperação do passado pela memória, não só do momento em Salvador em que se reconstitui o choro e a saudade, mas especialmente de Santo Amaro da Purificação (“do coração daquilo”), na qual se encontra também a essência mais ancestral do sujeito que narra e do próprio assunto narrado. Por fim, acessa-se também a informação sobre o Brasil e sua cultura a partir do contato entre aquilo que é mais interior e o mais exterior – da canção de Ray Charles diretamente para a Santo Amaro mais profunda. Por fim, o músico estadunidense cumpre aqui outro papel estrutural. O nó do capítulo é explicado no seguinte fragmento: Quando chegou a hora do tropicalismo – em que vários estilos extrovertidos foram convocados, e o estilo cool da bossa nova aparecia apenas eventualmente como um elemento a mais nas canções-colagens –, um dos seus primeiros anúncios foi feito por Bethânia (chamando-me a atenção para o que ela considerava a “vitalidade” de Roberto Carlos e seus colegas da Jovem Guarda), e um dos principais elos de ligação entre

82 VELOSO, 2003, p. 36. 83 A interpretação da canção conduz inicialmente à lembrança de uma pessoa, mas depois acaba apropriada como canção emblemática do estado da Geórgia no sudeste dos EUA. 113

o que fazíamos e o que estávamos passando a fazer consistia em meu gosto por Ray Charles. (VELOSO, 2008, p. 66)

E completa: Ninguém encontrará nada que mereça ser considerado sequer um resquício de influência da produção de Ray Charles na produção tropicalista. E Maria Bethânia deve ter parecido representar a princípio uma resistência contra o tropicalismo. Mas não é na área das semelhanças que se devem buscar as razões de esses dois nomes aparecerem juntos aqui neste jeito encontrado por mim para começar a historiar o movimento. (Idem)

De fato, como temos observado, não é na área das semelhanças, mas das fissuras que Caetano Veloso encontra estratégias para narrar seus processos formativos, que levariam, direta ou indiretamente, à eclosão do tropicalismo. Veja-se que aqui se apresentam, em nova composição, as figuras de João Gilberto, Ray Charles, Maria Bethânia e Roberto Carlos. Assim como a bossa nova é, ao mesmo tempo, um elemento “eventual” das canções-colagens tropicalistas, não se pode esquecer que o estilo é a própria abertura de possibilidades estéticas propiciadas pela modernidade musical brasileira e é ela que sugere uma linha evolutiva que se cumpriu, de algum modo, com a chegada do tropicalismo. Do mesmo modo, não encontrar resquícios de Ray Charles na produção tropicalista não exclui o interesse de Caetano por sua modernidade musical, o que se insere no conjunto de reflexões que consolidariam a formação do artista às vésperas do movimento. Além disso, ao tentar explicar a pecha de “folclórico”, atribuída por João Gilberto a Ray Charles, o narrador observa que esse predicativo pode ser relacionado ao modo como o músico norte-americano conciliou o “característico” (entre aspas também na análise de Caetano) com o comercial. E aqui se compreende o que pode ser uma ponte entre Roberto Carlos e as especificidades das formas mais primitivas do fenômeno rock no (do) Brasil. Além disso, a sugestão para ouvir Roberto Carlos parte justamente de Maria Bethânia, apresentada no capítulo como mais uma importante referência para a formação de critérios estéticos de Caetano Veloso. A mesma personagem é também retratada como uma pessoa/ artista cuja liberdade caminha sempre no sentido contrário da disciplina dos movimentos organizados, o que a faz cultuar João Gilberto em outro registro, tentar desvencilhar-se da imagem de cantora nordestina de protesto e também estar fora do disco

114

manifesto do tropicalismo anos depois. E, por fim, “possivelmente”, gostar tanto de Ray Charles quanto Caetano, mas sem a dedicação que este dava às audições do artista. Desse modo, Bethânia é apontada como aparente resistência ao tropicalismo não por divergência de princípios ou diretrizes, mas pelo simples fato de se tratar de um movimento organizado, o que poderia, mais uma vez, atribuir-lhe um rótulo e atrapalhar sua liberdade. Mas é a sugestão de ouvir Roberto Carlos que serve de chave para o capítulo e une todos os laços, como fica evidente em seu desfecho: Embora a essa altura – e justamente por causa dos problemas que tive que enfrentar em São Paulo – já não me parecesse contraditório que eu gostasse de João Gilberto e de Ray Charles com a mesma intensidade e, desejando que meus antigos colegas da música também pudessem saltar de um para o outro de preferência a ficarem presos a um sub-pré-bebop homogeneizado, eu me preparasse para estar à altura de acolher a próxima sugestão de Bethânia no sentido de prestar mais atenção em Roberto Carlos. (VELOSO, 2008, p. 85)

A contradição é esclarecida na medida em que João Gilberto e Ray Charles, embora diferentes entre si, ofereciam-se ambos como informação estética (e moderna) diversa daquela celebrada pelos “colegas da música” que, na experiência em São Paulo, preferiam o “sub-pré-bebop” (referido pejorativamente) à bossa nova de lastro cool, cujo expoente maior é João Gilberto. Essa primeira linguagem comunicava-se mais com a juventude de classe média e, por isso, foi pretendida por Augusto Boal no empenho de veicular sua mensagem político-social, o que evidencia as limitações em termos de forma e de conteúdo que a canção de protesto e o teatro político do Arena e do Opinião apresentavam, segundo o ponto de vista que o tropicalismo viria a sinalizar. É justamente por essa fissura em relação aos colegas músicos (uma abertura que permite “saltar de um a outro”, de João Gilberto a Ray Charles) que Caetano sente-se apto a aceitar a sugestão de Maria Bethânia para ouvir Roberto Carlos. Este artista, naquele momento, era visto frequentemente como cantor comercial alienado, submisso ao imperialismo cultural do rock norte-americano e, portanto, inimigo do projeto estético político posto em questão por Caetano. Desse modo, Ray e Bethânia justificam-se aqui no título, por estarem no caminho de formação que levaria o protagonista a fazer a ponte entre João Gilberto e Roberto Carlos.

115

6. A vanguarda na Bahia

Em 1995, pouco antes da escrita e da publicação de Verdade tropical, Caetano Veloso redigiu a apresentação do livro Avant-garde na Bahia de Antônio Risério. A obra está centrada na figura de Edgar Santos, reitor da Universidade Federal da Bahia entre os anos 1946 e 1962. O segundo ciclo de processos formativos de Caetano (e também de Bethânia) deve ser compreendido a partir desse contexto. Segundo Risério, Edgar Santos acreditava que a cultura seria capaz de repercutir concretamente no conjunto da vida social, gerando sua modificação. Além disso, recusando um nacionalismo estreito, pensava no valor de importar livros e intelectuais e abrir o país para um repertório cultural contemporâneo, o que permitiu a conciliação de experiências de vanguarda com os acervos da cultura popular regional. A vanguarda baiana, pensada a partir do reitor, é apresentada por Risério do seguinte modo: Um reitor um tanto visionário sustentou e apoiou, contra todo o conservadorismo provinciano, um Agostinho da Silva criando o CEAO, um Martim Gonçalves dirigindo a Escola de Teatro, um Koellreutter dirigindo os seminários de música, e uma Yanka Rudska dirigindo a Escola de Dança. Fora do campo estritamente universitário, este foi também o tempo em que a Bahia se deixou marcar pela presença de Lina Bo Bardi dirigindo o Museu de Arte Moderna da Bahia, do fotoetnógrafo Pierre Verger e muitos outros. (RISÉRIO, 1995, nota prévia).

O autor apresenta, portanto, a partir dos projetos do reitor, um conjunto de personagens que marcaram a vida cultural de Salvador no período em questão, sendo importante observar a diversidade das áreas de atuação desses artistas de vanguarda. A pluralidade de expressões artísticas convergia para a observação atenta das possibilidades de conjugação entre a cultura nacional (e regional) e a busca de invenções formais de vanguarda, afinadas com o cenário internacional. Nesse sentido, Risério utiliza a expressão “dialética do cosmopolita e do antropológico”84 para se referir a essa conjunção de informações estético-intelectuais cosmopolitas com a realidade sociocultural da Cidade da Bahia (mas também do Recôncavo), de modo que estamos, novamente, voltando para a gênese do projeto tropicalista (entre o recôncavo e o reconvexo).

84 RISERIO, 1995, p. 54. 116

Essa mesma agitação cultural foi vivida também por Glauber Rocha, de modo que Risério sublinha em seu livro que tanto o cineasta quanto o compositor são herdeiros desse mesmo cenário e de seus personagens. Nas palavras do autor: O que eu desejo enfatizar é que se criou naquele momento baiano, entre o final da década de 1940 e o início da de 1960, antes que a classe dirigente brasileira exercitasse seus músculos no espetáculo grotesco de mais um golpe militar, um “ecossistema” propício ao aparecimento, à formação e ao desenvolvimento de uma personalidade cultural criativa que se encarnou em artistas como Caetano Veloso e Glauber Rocha. (Ibidem, p. 13)

Em função dessa leitura, Caetano faz a seguinte formulação no texto que apresenta o livro Avant-garde na Bahia: Para além do agradecimento pela lisonja de considerar o que tenho feito em música popular como exemplo (ao lado de Glauber!) de bom resultado da empreitada do reitor, preciso dizer-lhe – e a quem nos leia – que nem o modo como alinhavei lembranças nesse prefácio seria possível sem a leitura de seu livro. É como se eu não soubesse bem quem eu era antes de lê-lo. (VELOSO, 2005. p. 274)

A declaração ganha ainda mais importância se lembramos que o texto foi escrito apenas um ano antes do início da escrita de Verdade tropical. Por isso, é possível sugerir que os processos formativos narrados em “Bethânia e Ray Charles” aparecem profundamente influenciados pelo livro de Risério, de modo que a narrativa apresenta-se como um modo de “alinhavar ideias”, para que Caetano possa explicar melhor quem é, e como se desenvolveu seu pensamento e sua produção artística. O contexto da vanguarda em Salvador é apresentado no capítulo em questão do seguinte modo: Salvador vivia um período de intensa atividade cultural, graças à decisão do então reitor da Universidade Federal (pública, há também a universidade Católica, que é privada), dr. Edgar Santos, de somar às atividades acadêmicas das faculdades convencionais, escolas de música, dança, teatro, e de convidar os mais arrojados experimentalistas em todas essas áreas, oferecendo aos jovens da cidade um amplo repertório erudito. (VELOSO, 2008, p. 52)

Segue-se a isso uma apresentação mais minuciosa de espaços, eventos e espetáculos, frequentemente transpassados pelos personagens apontados por Risério no panorama de seu livro. Caetano Veloso relata, por exemplo, que a arquiteta Lina Bo Bardi havia sido convidada para assumir o Museu de Arte Moderna da Bahia, que funcionava na área externa do Teatro Castro Alves, outro cenário de fundamental importância para a

117

história que aqui se conta. Nesse teatro, aliás, encenou-se no ano de 1960 a emblemática Ópera dos três tostões de Bertold Brecht, com direção de Martim Gonçalves e cenografia da própria Lina Bo Bardi85, vista e mencionada por Caetano no capítulo. Nesse sentido, é importante lembrar que o teatro é assunto privilegiado desse capítulo, não só pela posterior narração das experiências com Augusto Boal, mas também pela importância do Teatro Castro Alves na trajetória de Caetano. Isso talvez justifique sua ressalva, na já referida apresentação do livro de Risério, de que “a figura de Eros Martim Gonçalves saiu relativamente injustiçada, ou desproporcionalmente apequenada no painel” de Risério, completando com a afirmação de que “talvez a Escola de Teatro tenha centralizado nossa visão – de Bethânia e minha – do impulso modernizante da época”.86 Outra parceria destacada por Caetano Veloso aconteceu entre Lina Bo Bardi e o crítico Walter da Silveira, para a fundação de um clube de cinema, aproveitando o espaço onde uma rampa ligava o foyer do teatro à sala de espetáculos. Ali se apresentavam filmes mudos, ou filmes antigos que já estavam fora de circuito, ou ainda filmes recentes, mas comentados por Walter da Silveira ou algum convidado (um exemplo marcante dado no livro é o comentário do jovem Glauber Rocha sobre um filme de Victorio de Sicca). A escola de música, por sua vez, além da parceira com os espetáculos teatrais, oferecia também uma rica programação de concertos, atribuída ao maestro Koellreutter (referido por Caetano como “homem brilhante e identificado com as vanguardas” além de ter sido professor de Tom Jobim). Edgar e Koellreutter referiam-se à escola como “Seminários Livres de Música”, o que é muito revelador sobre a concepção de universidade que ali se propunha. O maestro trouxe à cena discussões sobre o projeto estético-musical de Mário de Andrade e Villa Lobos87, sobre o dodecafonismo, sobre a

85 No documentário Lina Bo Bardi¸ de1993, na parte 4, Caetano fala sobre Lina (que gostava de vê-la passar, da importância de sua simples presença física na Bahia) e sobre Edgar Santos (e de Martim Gonçalves e de Koellreautter). No fragmento, Caetano afirma-se novamente (junto com Gil, Glauber e Bethânia) como uma consequência dessa reitoria. Na sequência, diz ainda que foi Lina quem compreendeu mais profundamente o aspecto de criatividade popular da região, não como folclore ou exotismo, mas como força cultural”, de onde conclui, sorrindo, que “Dona Lina é fundadora da civilização baiana...”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Sf0qEmVlZuQ. Último acesso: de junho/ 2015. 86 VELOSO, 2005, p. 274. 87 Como se sabe, o projeto de Mário de Andrade (que se pode encontrar na obra de Villa Lobos) estava interessado em conciliar a música erudita com a o folclore, numa conjunção que excluía de seus interesses tanto a música comercial (“popularesca”), como as experiências vanguardistas, segundo explicação de Risério: “A atuação de Vila no Estado Novo é clara. Como claro é seu fulgor ideologizante. O que conta para ele é a música erudita nacional, encharcada de folclore. Ao lixo com a música popular comercial urbana e a estética europeia de vanguarda” [...] Para José Miguel Wisnik, Mário e Vila anteciparam a atitude policialesca nazi-stalinista diante da produção estética. (RISERIO, 1995, p. 93) 118

influência da música oriental (especialmente vinculada a sua viagem à Índia e ao Japão), sobre o serialismo e o atonalismo. Caetano e Bethânia, segundo o relato do capítulo, passaram a frequentar esse conjunto de peças, concertos, filmes e exposição sempre juntos, bem como as festas populares em devoção a santos (ou orixás). Vale observar como elementos de estratos diferentes de cultura (nacionais ou internacionais, eruditos ou populares) atravessam, mais uma vez, os caminhos formativos do artista e de sua irmã, sendo esta sua interlocutora fundamental nas conversas acerca dessas experiências estético-culturais. Além disso, Bethânia, à época, havia se encantado especialmente com o teatro, o que gerou seu desejo de ser atriz, mais do que especificamente cantora.

6.1. Alvinho e Duda

Outros dois personagens importantes, apresentados na segunda etapa do processo formativo de Caetano Veloso, estão inseridos no contexto de efervescência cultural da cidade de Salvador no início dos anos 1960: Álvaro Guimarães (Alvinho) – diretor de teatro e de cinema –, e Duda Machado – poeta e, atualmente, professor de Teoria Literária. Ambos, tal como Caetano, nasceram na década de 1940, pertencendo, assim, à mesma geração do artista.88 Alvinho Guimarães fez importantes montagens teatrais a partir dos anos 1960, dentre as quais, vale destacar Uma obra de governo de Dias Gomes; Os sete gatinhos e O boca de ouro de Nelson Rodrigues, além de A exceção e a regra de Bertolt Brecht. Foi assistente de direção do filme Barravento (1961) de Glauber Rocha e produziu obras, como o curtametragem Moleques de rua (1962) e, principalmente, Caveira, my friend (1970), filme emblemático do cinema marginal. Duda Machado, por sua vez, começou a publicar sua produção poética em 1977, com o livro Zil; ao que se seguiram as obras Poemas com histórias, bichos & mais companhia de 1997 e Margem de uma onda, do mesmo ano. Compôs algumas letras de música, como “Hotel das estrelas” (parceria com Jards Macalé) e “Meu doce amor” (com Marina Lima), ambas gravadas por Gal Costa nos anos 1970, e ainda, “Doente morena” (com Gilberto Gil), gravada por Elis Regina em 1973. No entanto, como o relato sobre Duda Machado concentra-se no início dos anos 1960, o que aparece no livro é sua

88 Álvaro Guimarães faleceu em 2008. 119

participação no contexto da vida cultural baiana nesse período e a influência que teve sobre o pensamento de Caetano Veloso. O encontro com Alvinho e Duda é contado em “Bethânia e Ray Charles”, com grande destaque, não só porque estão relacionados ao início da profissionalização de Caetano (e de Bethânia) na área da canção popular (dentro do contexto mais amplo do teatro), mas também porque os personagens são referidos como seus mestres:89 Os dois tinham muito mais cultura do que eu e seus diálogos, cheios de responsabilidade intelectual e comprometimento existencial, logo se tornaram verdadeiros ensinamentos para mim. Eu falava com humilde irresponsabilidade. (VELOSO, 2008, p. 59)

Além disso, são relevantes as observações da dupla sobre cinema. Alvinho é quem sugere a Caetano que veja Godard; Duda Machado fazia críticas pertinentes a Walter da Silveira e ensejava discussões sobre o cinema de autor (discussão central para o entendimento do jovem Glauber). Nesse mesmo sentido, Caetano fala sobre a inteligência de Duda Machado, que, segundo ele, parecia ter razão em todas as situações e parecia pensar as coisas em um nível acima do que aquele podia “transitar”. Porém, essa afirmação é também a oportunidade de o narrador apontar a canção popular como assunto possível, sobre o qual ele se sentia mais confortável para falar com eles. Na linha narrativa de Verdade tropical, é assim que Caetano apresenta Alvinho: Foi Álvaro Guimarães, Alvinho, quem nos lançou, a mim e a Maria Bethânia, como profissionais da música. Alvinho me tinha sido apresentado [...] como sendo um talentoso diretor teatral que colaborara com o CPC (Centro Popular de Cultura) da UNE (União Nacional dos Estudantes). Nas nossas primeiras conversas, ele me agradou em cheio ao externar suas críticas ao teatro panfletário do CPC. (Ibidem, p. 56-7)

As estréias de Caetano e Bethânia no teatro, graças a Álvaro Guimarães, são narradas na sequência. Conta-se que, primeiro, Alvinho havia pedido para Caetano fazer a trilha sonora de uma comédia brasileira do século XIX; pouco depois, em 1963, durante a montagem de O Boca de ouro de Nelson Rodrigues, teve a ideia de fazer a abertura com a cena vazia, no escuro, apenas com a voz de Maria Bethânia (sem acompanhamento nem amplificação), cantando “Na cadência do samba” de Ataulfo Alves. Com essa cena, narra- se a estreia profissional de Bethânia, pela via do teatro, na canção popular.

89 “Eu tomava ele [Duda] e Alvinho como mestres.” (VELOSO, 2008, p.60). 120

Alvinho encomendou a Caetano também a trilha sonora do curta Moleques de rua de 1962, sobre meninos pobres de Salvador, no qual também incluiu a voz de Bethânia.90 Na Escola de Teatro, Alvinho marcou o encontro para discutir o curta, e, lá, apresentou-lhe Duda Machado. É interessante, aliás, acrescentar que Caetano foi apresentado a muita gente por Álvaro: Leonel Brizola, Roberto Pinho, Agostinho da Silva são exemplos importantes (diz o narrador: “é notável como Alvinho Guimarães parece ter me apresentado a tudo e todos!”91). Por fim, cabe destacar que a aproximação entre eles está relacionada à crítica ao CPC e seu teatro, que Alvinho, e também Caetano, consideravam “panfletário”. As ressalvas concentram-se no didatismo exagerado, na idealização temerosa da ideia de “povo”, na esquematização empobrecedora do quadro social e na rejeição a experimentações estéticas que pudessem pôr em risco o objetivo comunicativo. Não era incomum, na mesma esteira, a adoção de uma postura contrária às contribuições estrangeiras em nome de uma recusa do imperialismo cultural americano. Como se sabe, todas essas questões estavam no centro das discussões que levaram à eclosão do tropicalismo. O encontro com Álvaro Guimarães ganha, nesse sentido, importância também para o pensamento político de Caetano Veloso. Ao inventariar os assuntos frequentes nas conversas com Alvinho e com Duda (literatura, cinema, música popular, Salvador, vida na província, vida das pessoas conhecidas e, por fim, política), o narrador atribui ao primeiro a decisão de colaborar com a campanha de alfabetização de Paulo Freie, o que gera um parêntese onde afirma que, depois do golpe, havia sido levado a encontros secretos idealizados por Brizola para organizar a resistência. Assim Caetano traça o panorama do período: Embora política não fosse o nosso forte, nessa época – 63 –, com os estudantes (organizados na UNE) apoiando o presidente João Goulart, ou pressionando-o para ir mais para a esquerda; com Miguel Arraes fazendo um governo admirável em Pernambuco em estreita união com as camadas populares; com os CPCs da UNE produzindo peças e canções panfletárias mas muito vitais; éramos levados a falar frequentemente de política: o país parecia à beira de realizar reformas que transformariam sua face profundamente injusta – e de alçar-se acima do imperialismo americano. (VELOSO, 2008, p. 59-60)

90 Vale lembrar que, anos mais tarde, Alvinho usaria a canção “Cinema Olympia” de Caetano na voz de Gal em Caveira, my friend de 1970, fato que não é contado nessa sequência, talvez em função da distância temporal em relação ao momento que se pretendia contar. 91 VELOSO, 2008, p. 89. 121

A conclusão, na sequência imediata, é desconcertante: Vimos depois que não estava sequer aproximando-se disso. E hoje nos dão bons motivos para pensar que talvez nada disso fosse propriamente desejável. Mas a ilusão foi vivida com intensidade – e essa intensidade apressou a reação que resultou no golpe. (Idem)

Logo depois, o narrador muda o assunto para Duda Machado e suas discussões sobre cinema, deixando seco o corte na afirmação (polêmica) de que as mudanças sonhadas talvez não fossem sequer desejáveis. De todo jeito, importa perceber que o narrador diz não ser grande conhecedor de política àquela altura (ao menos no sentido estrito do termo), mostra a pressão dos estudantes para que Goulart fosse mais à esquerda, elogia o governo popular de Arraes e, apesar de fazer a ressalva ao panfletarismo dos CPCs, reconhece sua vitalidade. No entanto, o narrador-comentador, distanciado no tempo, percebe que a injustiça social não estava próxima do fim. E que o projeto anti-imperialista e reformista que ali se oferecia talvez não fosse o ideal, pensamento que desenvolveu ao romper com a concepção popular-nacionalista nos moldes oferecidos pelos CPCs e pelos segmentos de esquerda a estes vinculados. Não é, portanto, colocar fim às injustiças sociais que se mostra duvidosamente desejável, mas o caminho para se chegar a essas transformações. O tropicalismo é produto também dessa fissura.

7. Arena conta Caetano ou o caso Augusto Boal

Especialmente no capítulo “Bethânia e Ray Charles”, a narrativa sobre a vinda de Bethânia para o Rio de Janeiro para participar do show Opinião, gera, em algum registro, a centralidade do teatro na discussão sobre cultura brasileira. Nesse contexto, ganha grande relevância o diretor paulista Augusto Boal, não só por participar de momentos decisivos da profissionalização de Caetano, mas também pelas divergências estéticas (e políticas) que tiveram. O encontro dessas trajetórias se dá quando Caetano Veloso veio acompanhando Maria Bethânia na viagem para o Rio em 1965; ainda no mesmo ano, assistiu ao musical Arena conta Zumbi e participou de Arena canta Bahia, este no Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) e aquele no Teatro Arena (ambos em São Paulo). Augusto Boal é figura central do Teatro Arena em São Paulo, que, fundado em 1953, teve seus momentos mais importantes entre os anos de 1958 e 1968. Segundo o próprio diretor, é possível estabelecer algumas etapas para o Arena, que seriam formuladas

122

nos seguintes termos: uma primeira fase que consistiu na ruptura com o TBC (entre 1953 e 1957), depois uma fase vinculada às questões nacionais a partir de 1958, cujo marco e apogeu foi a peça Eles não usam black tie (de Oduvaldo Viana Filho e Gianfrancesco Guarnieri), seguida pela “nacionalização dos clássicos” entre 1962 e 1964 e, por fim, a fase dos musicais entre 1965 e 1968 (tendo como precedente o espetáculo no Teatro Opinião, no Rio, em 1964). É importante reparar que o período dos musicais coincide exatamente como o início da ditadura civil-militar brasileira. Segundo explicação de Décio de Almeida Prado, essa coincidência poderia ser explicada pelo acirramento gradativo da censura, que tornava a canção uma forma privilegiada de veicular informações que o texto não poderia dizer.92 Caetano Veloso e Augusto Boal encontram-se exatamente nesse contexto de relação estreita entre o teatro e a canção popular no Brasil. Ainda no mesmo capítulo, Caetano Veloso observa que, mesmo antes de 1964, ele e seus colegas baianos (entenda-se Gil, Gal, Bethânia e Tom Zé) já haviam apresentado, no Teatro Vila Velha de Salvador, sua própria versão de espetáculo musical, segundo conta o narrador: Antes de o Opinião ser concebido, nós tínhamos inventado, em Salvador, nossa própria versão de show de música com conceito, ideologia e literatura. Diferentemente do Opinião, nossos espetáculos pretendiam, além de fazer referências a questões políticas e sociais, criar uma perspectiva histórica que nos situasse no desenvolvimento da música popular brasileira. (VELOSO, 2008, p. 73)

No fragmento, Caetano Veloso acaba por reivindicar não só a antecedência em relação ao modelo de musical politizado, mas também pontuar uma diferença fundamental, relacionada à reflexão sobre a própria história da canção, o que envolve uma (auto)análise sobre sua inserção (e de seus colegas) nesse percurso. Evidentemente, aqui se coloca, mais uma vez, a questão da linha evolutiva da música brasileira. E dois espetáculos são enfatizados pelo narrador como exemplares dessa produção baiana no Vila Velha: Nós por exemplo e Nova bossa velha, velha bossa nova. Nós, por exemplo foi uma das peças inaugurais do Teatro Vila Velha ainda no ano de 1964, nos meses de agosto e setembro. Segundo Caetano, o título evidenciava não um exemplo a ser seguido, mas a consciência de que o grupo era um “exemplo”, dentre muitos

92 O depoimento de Décio de Almeida Prado sobre o Teatro Arena encontra-se na primeira parte do programa-documentário “A aventura do teatro paulista”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=srJ-l546U2Q. Último acesso: julho de 2015. 123

outros, de músicos que compunham uma geração, nascida sob o influxo da bossa nova. O título do espetáculo seguinte, em novembro do mesmo ano, é ainda mais contundente nesse sentido (Nova bossa velha, velha bossa nova), jogando com a relação entre passado e presente que se estabelecia a partir daquele movimento. Como se sabe, para Caetano, sem que se despreze qualquer dessas vertentes, tanto a modernização jazzificante de nossa música quanto o uso político propagandístico da canção acabariam esvaziados caso não fossem percebidos na linha evolutiva que liga a invenção de João Gilberto à tradição por este iluminada, e só a partir daí seria possível fazer projeções férteis para o futuro. Além disso, aqui se cria um laço narrativo importante, na medida em que Nara Leão assistiu ao grupo no Teatro Vila Velha em uma viagem à Bahia naquele ano de 1964, o que resultou em algumas sugestões de repertório para o show individual de Bethânia (que se planejava àquela ocasião) e também no próprio convite, pouco tempo depois, para substituí-la no espetáculo Opinião93. Cabe lembrar que, naquela época, Caetano não tinha ainda a intenção de se profissionalizar na música, quando os produtores do espetáculo escolheram que sua canção “É de manha” fosse gravada por Bethânia no lado B do compacto que trazia o sucesso “Carcará”, no ano de 1965. Assim, o caminho de profissionalização de Caetano e Bethânia acaba atravessando a história do teatro brasileiro, primeiro com os shows no Teatro Vila Velha em Salvador e depois no acompanhamento e/ou na participação dos espetáculos produzidos pelo teatro participativo de Boal. Após o comentário acerca do Opinião e de seus antecessores, Nós, por exemplo e Nova bossa velha, velha bossa nova, o narrador-intérprete volta-se para o encantamento que teve com Arena canta Zumbi de 1965, considerado por Fernanda Montenegro o espetáculo mais importante da modernização do teatro brasileiro (esse dado faz parte do relato de Caetano). Porém, ao narrar a concepção de Arena canta Bahia (que contava com Caetano, Bethânia, Gal e Gil, além de Piti), o narrador vai mostrando algumas discrepâncias em sua forma de pensar a cultura brasileira em relação a Boal. Nesse sentido, ressalta que, dentre as canções selecionadas pelo grupo baiano, o diretor teria feito uma nova seleção, após ponderar que havia no acervo “uma atmosfera demasiado lírica”, que não seria condizente com um teatro de luta. Além disso, a objeção de Boal à inclusão de canções de Caymmi, de

93 Vale destacar a presença de “Opinião” de Zé Kéti no repertório de Nova bossa velha, velha bossa nova, em novembro de 1964, pouco antes do convite feito a Bethânia para substituir Nara Leão. 124

um lado, e a ressalva de Caetano em relação aos arranjos jazzísticos à moda do Beco das Garrafas ou de O fino da bossa, de outro, indicavam outros pontos de discórdia entre eles. Sobre os arranjos, Boal teria argumentado que aquela linguagem era compreendida por toda uma juventude urbana que queria atingir. Esse contraponto seria lembrado por Caetano, anos mais tarde, não para aproximá-lo dos projetos da esquerda a que o diretor se vinculava, mas para confirmar decisões dissonantes tomadas em meio à eclosão do tropicalismo. A incorporação da linguagem e da moda rock pelo tropicalismo, apesar de recusada pela esquerda em questão, está perfeitamente afinada com o argumento de Boal, segundo Caetano evidencia em sua análise. Em relação a Caymmi, é interessante notar que a discordância entre Caetano e Boal aparece nos registros autobiográficos de um e de outro, sob égides diversas. No já referido Hamlet e o filho do padeiro, o autor comenta o episódio na seção “Bahia em tempos de guerra” (o título é uma alusão ao espetáculo Tempos de guerra94, cujo primeiro ato era individual de Bethânia e o segundo se configurava como uma tentativa de lançar seus colegas baianos no sul). Nessa sequência, vem o relato sobre Arena canta Bahia: Decidimos fazer um musical contando histórias de nordestinos que vinham para o sul em busca de trabalho, fugindo da fome. As canções de Arena canta Bahia foram escolhidas pelas letras para contar uma história de retirantes. Não era seleção das mais belas músicas baianas: eu queria mostrar famílias que sofriam seca e buscavam miragens de esperanças. [...] Caetano não se conformava: inconcebível espetáculo cujo título continha a palavra mágica, Bahia, Caymmi estando ausente. (BOAL, 2000, p. 233)

E, depois de fazer o aparte de que gosta de Caymmi e que até gosta de “cantarolá-lo no chuveiro” (em chave irônica, entenda-se, no espaço privado, não no teatro combativo), Boal complementa a explicação: Eu explicava a Caetano que, fazendo show carioca contra a ditadura, incluiria todos os acender as velas que encontrasse pelo caminho, todos podem me prender, mas nunca o pato, que vinha cantando quém quém, quando o marreco sorridente pediu para entrar na roda também, muito bom, muito bem. Claro que gosto de João Gilberto, baiano carioca, mas nem patos nem gansos, marrecos e outros galináceos serviriam para combater a ditadura que preparava a noite de chumbo que já temíamos, mas de cuja amplitude sequer suspeitávamos. (Idem)

94 Eu vivo num tempo de guerra refere-se também ao nome de um compacto simples lançado por Bethânia em 1965, que no lado A tinha a canção homônima (referência a Brecht) e no lado B, “Viramundo” de Gilberto Gil. 125

Caetano Veloso, por sua vez, afirma que Augusto Boal havia solicitado “uma seleção de canções já existentes relativas à Bahia” com sugestões de um roteiro, recomendando o uso de uma “ideia folclórica baiana”, com o objetivo de criar uma “peça moderna temperada com crítica social”.95 A partir das duas descrições, já fica claro que Caetano e Boal não estavam pensando na mesma coisa. A ideia do diretor seguia a linha de canção de protesto encontrada em Opinião em temas nordestinos como “Carcará”, “Sina de caboclo” ou “Borandá”96, como se pode ver pela referência, na segunda citação, a canções do espetáculo (“Acender as velas” e “Opinião”).97 O argumento de Boal se expande para a bossa nova de João Gilberto, evidentemente, porque Caetano insistia (insiste) na centralidade desse artista na história da canção brasileira. Em chave irônica, o diretor faz referência à letra de “O pato”98, que apresenta uma aura de solaridade e doçura que seriam incompatíveis com o momento histórico. Vale frisar que Boal mira apenas a letra, desprezando em seu comentário a invenção estética da canção como conjunto complexo (na interação de letra, melodia, batida e canto), que a torna um exemplar emblemático da bossa nova. A citação de “O pato”, nesse sentido, poderia ganhar dimensão política, metonimizando o movimento e sua importância para a cultura brasileira, para o resgate do samba e para outro tipo de relação cultural entre o Brasil e o mundo. Nessa chave, podemos compreender melhor a análise de Caetano, em Verdade tropical, sobre o mesmo episódio: [...] devia haver algo fundamentalmente errado em se montar um musical sobre a Bahia em que não houvesse lugar para nenhuma canção de Caymmi. As canções escolhidas tinham em comum uma caracterização nordestina que as afastava do estilo propriamente baiano – da graça, do gosto, da visão de mundo que vige na região do recôncavo e na cidade de Salvador. Mas o Nordeste de “Carcará” era já marca da persona pública de Bethânia e da música de protesto em geral. Eu, no entanto, sonhava a nossa intervenção na música popular brasileira radicalmente vinculada à postura de João Gilberto para quem Caymmi era o gênio da raça. (VELOSO, 2008, p.83)

95 VELOSO, 2008, p. 80. 96 A letra de “Sina de caboclo” (J.B. de Aquino/ João do Vale) é: “Mas plantar pra dividir/ não faço mais isso, não/ eu sou um pobre caboclo/ ganho a vida na enxada/ o que eu colho é dividido/ com quem não planta nada// se assim continuar/ vou deixar o meu sertão,/ mesmos os olhos cheios d'água/ e com dor no coração./ vou pró Rio carregar massas/ pros pedreiros em construção” e a letra de “Borandá” (Edu Lobo) que diz: “É, borandá/ que a terra já secou, borandá/ é borandá,/ que a chuva não chegou, borandá// quanto mais eu vou pra longe/ mais eu penso sem parar/ que é melhor partir lembrando/ que ver tudo piorar”. 97 Ambas as canções são sambas de Zé Kéti. Em “Acender as velas”, há uma alusão às mortes no morro, inclusive pela dificuldade de chegada do médico (sem telefone para chamar ou sem automóvel para subir), enquanto “Opinião”, canção título do show, afirma: “podem me bater/ podem me prender/ podem até deixar- me sem comer/ que eu não mudo de opinião/ daqui do morro eu não saio não...”. 98 Canção de Jayme Silva e Neuza Teixeira, gravada por João Gilberto, pela primeira vez, em seu segundo disco, O amor, o sorriso e a flor de 1960. 126

Caetano aponta, no fragmento, para um falseamento da realidade baiana/ brasileira, pautado no argumento de que a outra representação não seria interessante aos objetivos da revolução. Tal procedimento já havia sido evidenciado por Caetano, ainda no mesmo capítulo, quando a equipe do show “Opinião” pensava em uma identidade visual para Bethânia, chegando a “um penteado que neutralizava as questões racial, etária e de beleza pessoal e dava um ar de seriedade digna e um tanto dessexualizada”, compondo uma imagem de cantora de protesto, que parecia ser “autêntica”, mas que fora igualmente construída. 99 Esse último episódio, aliás, faz Caetano comentar, ironicamente, que o primeiro contato que teve com as “falsidades do marketing”, ocorreu exatamente com artistas antitropicalistas, representantes de uma esquerda que gostaria de desalienar o povo para que este conseguisse enxergar a realidade mais “autêntica” do país. Assim, retirar de Bethânia e da Bahia peculiaridades reais de suas identidades (ou, ao menos, suas possibilidades de expressão) implica também falseamento, isto é, alienação. Ainda mais quando o acervo amplo de Bethânia permite vislumbrar a riqueza da canção popular brasileira e de sua tradição, e quando a “graça”, o “gosto” e a “visão” de mundo que são encontrados na Bahia podem ser vistos, não como marcas de uma alegria alienada, mas como singularidades de um país, que apresenta suas formas particulares de ler a realidade e de lidar com suas agruras. O objetivo principal aqui não é defender que haja uma imagem “verdadeira” da Bahia ou do Brasil, ou que Caetano chega mais perto desta do que Boal. O fato é que toda representação faz escolhas, interfere em proporções, estabelece relações, enfim, deforma o real. O que está em discussão é que os elementos sublinhados por Caetano e por Boal levam a diferentes perspectivas sobre o país, que partem de diferentes premissas e conduzem a diferentes projetos estéticos e políticos. Além disso, o episódio é utilizado de modo hábil por Caetano, no intuito de evidenciar que o discurso da esquerda contra a alienação era contraditório em relação a essas manipulações conscientes do sistema de representação. Por fim, é preciso sinalizar que não por é acaso que Augusto Boal contra- argumenta, em sua análise, a partir dos nomes de Dorival Caymmi e João Gilberto. A espontaneidade do canto de Caymmi (tão próximo à fala) e de suas canções (que tantas

99 VELOSO, 2008, p. 71. 127

vezes parecem obras anônimas), bem como a intuição profunda das peculiaridades do espírito do samba (marcado pelo dengo, malícia e nostalgia), fazem, como já se disse, João Gilberto ver o compositor baiano como “o gênio da raça”. Essa via de acesso da realidade a partir da canção e da cultura popular ampliam, indubitavelmente, a cisão entre a visão tropicalista e a concepção político-programática do teatro de luta de Boal ou dos projetos dos CPCs. Aliás, em Hamlet e o filho do padeiro, publicado em 2000, o próprio diretor fez uma autocrítica à sua postura naquela época. Vale lembrar que a mudança de perspectiva não gerou uma reavaliação do episódio de Arena canta Bahia (o que marca uma permanência da discrepância com Caetano), mas acaba fazendo coro com seu diagnóstico, ao falar das simplificações propositais dos CPCs e de seus resultados: O teatro tinha que ajudar as transformações. Como? Conscientizando platéias populares! Quem faria a revolução? O povo! Quem o conscientizaria? Nós! Muito simples, meu caro Watson. [...] Não nos conscientizávamos nós mesmos: conscientizávamos os outros. Nos CPCs essa era a palavra-chave [...] A isso chamo Síndrome Che, que tantos de nós, um dia, padecemos. Querer libertar escravos à força: tenho a minha verdade, sei o que é melhor pra eles, então, já, façamos o que quero que façam. [...] As intenções, as melhores. A prática, autoritária: vinha de cima. (BOAL, 2000, p. 176-177)

E, páginas depois, completa:

[...] os CPCs, havia, no seu teatro, autoritarismo na relação entre artistas e platéias: a famosa mensagem vinha acompanhada de grande simplificação da realidade política e social, esquematizada segundo premissas dogmáticas (Ibidem, p. 184)

Caetano Veloso, ainda no capítulo sobre “Bethânia e Ray Charles” comenta o sucesso maior (e mais merecido) de Arena conta Zumbi em relação a Arena canta Bahia, afirmando que o primeiro poderia ser comparado a um espetáculo off-Broadway prestes a se tornar on-Broadway (note-se aqui a provocação na comparação com um modelo estrangeiro de teatro pop), enquanto o segundo não passaria de um “show singelo”, que era inferior em relação aos espetáculos do Vila Velha. Além disso, pontua outra divergência com Boal, acerca do musical Rosa de ouro, ainda em 1965, concebido por Hermínio Bello de Carvalho, com a participação de Aracy Cortes e das revelações Clementina de Jesus (já senhora) e (o jovem) Paulinho da Viola. O que para Caetano pareceu a apresentação de músicos autênticos da grande tradição do

128

samba carioca, a Boal soou demasiado “folclórico”. Essa divergência dá a Caetano o ensejo para um diagnóstico fundamental para esta reflexão: Mas me pareceu que descartar um espetáculo como aquele seria jogar fora uma oportunidade rara de ver exposto o que sugeríamos como beleza possível para nós. E também que o nacionalismo dos intelectuais de esquerda, sendo uma mera reação ao imperialismo norte-americano, pouco ou nada tinha a ver com gostar das coisas do Brasil ou – o que mais me interessava – com propor, a partir do nosso jeito próprio, soluções originais para os problemas do homem e do mundo. (VELOSO, 2008, p. 83)

E, ironicamente, completa: A solução única já era conhecida e chegara aqui pronta: alcançar o socialismo. E para isso todo truque era bom. Qualquer interesse em refinar-se a sensibilidade – fosse no aprofundamento do contato com nossas formas populares tradicionais, fosse na atitude vanguardista experimental – era considerado um desvio perigoso e irresponsável. (Idem)

Assim, Caetano assinala sua ruptura com esse segmento da esquerda brasileira, especialmente vinculado aos CPCs, compondo um conjunto de críticas, que vão desde as simplificações ou falseamentos da realidade social brasileira, até seu teor autoritário, passando pela importação imediata de um modelo político/ econômico/ social já pronto. Para o narrador-intérprete, era fundamental pensar as soluções a partir do Brasil (e “a partir de Santo Amaro”), lançando mão, para isso, tanto de “nossas formas populares tradicionais” como da “atitude da vanguarda experimental”, estando sempre atento para a linha evolutiva da música brasileira. Mais uma vez, evoca-se aqui o tema relacional entre o “recôncavo” e o “reconvexo”, bem como a lição de João Gilberto e da bossa nova. Aliás, as pressões na produção estética em relação àquilo que se considerava “perigoso” e “irresponsável” estarão diretamente vinculadas à eclosão do tropicalismo, que buscou uma nova forma de, valendo-se da moda pop internacional e das vanguardas estrangeiras, bem como de nossa cultura popular-folclórica e da modernização de nossa canção popular do rádio, seguindo a trilha aberta por João Gilberto, propor soluções para o Brasil da desigualdade, da violência e da ditadura, porém, a partir de uma ruptura com este determinado ideário nacionalista de esquerda que aqui se expõe. Ainda assim, Caetano faz questão de pontuar que em momento nenhum perdeu de vista “a grandeza e a importância de Boal e do Arena”. Vale observar que a presença do diretor no livro cruza dois aspectos: em termos narrativos, faz parte da história da profissionalização de Caetano e Bethânia; em termos interpretativos, o autor analisa como

129

o distanciamento em relação a determinadas visões de Boal (especialmente entre os anos de 1964 e 1965), foi importante para o amadurecimento de perspectivas estéticas e políticas que ganharam vazão dois anos depois, com a emergência do tropicalismo. De outro lado, a obra de Augusto Boal também seguiu seus rumos e suas nuances, inclusive com o desenvolvimento do Teatro do Oprimido que, tal como o Arena, é parte fundamental da história do teatro brasileiro, oferecendo sua valiosa contribuição para realidade cultural e social do país. O personagem Boal, porém, deixa o capítulo após o reconhecimento de sua importância, e a curiosa menção de que este pensava em fazer uma montagem de Hamlet com ênfase política, tendo Caetano como protagonista. O grande personagem do teatro ocidental moderno, dividido entre o ser e o não ser, oferecido a um dos protagonistas do tropicalismo é suficientemente sugestivo.

8. Entreatos

O terceiro capítulo da parte 1 de Verdade tropical, chamado “Intermezzo baiano” é uma referência ao interlúdio, ao entreatos das óperas, ligando-se à seção anterior, cuja centralidade do teatro era evidente. O título indica também uma relativa suspensão da ação principal (sua trajetória na canção popular), já que essa parte narra o breve período (menos de um ano) em que Caetano voltou a Salvador (com frequentes visitas a Itapuã) em 1965 para repensar seus planos, nos quais se ofereciam como caminhos possíveis as carreiras de cineasta, músico ou professor (como já havia sido dito) e ainda a de pintor (o que dá ensejo a discussões sobre as artes plásticas, que ganham alguma ênfase nessa seção). A narrativa encerra-se com a decisão de ir para o Rio de Janeiro com Dedé no primeiro semestre de 1966 e, como se sabe, com a adesão à música popular. É importante observar que, além de narrar os caminhos que levaram Caetano à carreira musical (que resultaria no tropicalismo), a exposição dos rumos possíveis (de suas aptidões) e as incertezas sobre o desenvolvimento de sua experiência dentro da canção popular são elementos que contribuem para a autofabulação desse personagem como alguém em que se encontram todos esses vetores. Assim, a profissão de cantor e compositor é escolhida, sem que, com isso, o pintor, o professor e o cineasta/ crítico de cinema deixem de fazer parte das afinidades essenciais desse sujeito e desse criador. As profissões possíveis abrem caminho também para pequenas discussões em torno desses ramos de produção artística. A começar pela pintura, é paradigmática a citação do

130

gosto pelo expressionismo abstrato (“Eu teria sido um defensor apaixonado do expressionismo abstrato”100), a menção a reproduções de Lautrec, Matisse e Picasso, o acesso a Degas e Van Gogh via MAMB, a admiração por Manabu Mabe e Antonio Bandeira, mas também a reflexão sobre Mondrian e sobre a pesquisa de Lygia Clark. Tudo isso deve ser visto na mesma esteira do contato com informações de modernidade (ou melhor, de modernidades) que vem dando o tom aos processos formativos narrados por Caetano. Ao falar em Mondrian, o narrador-intérprete deixa a relação ainda mais clara, na medida em que afirma sobre suas composições geométricas que era possível reconhecê-las “por trás de tudo o que chamávamos moderno”, não só nos prédios, nos móveis e nas roupas, mas também nas notas sem vibrato do cool e da bossa nova. Mais uma vez, João Gilberto é, mais que informação de modernidade, o crivo estético e a perspectiva que conduzem Caetano em seu processo de formação, intimamente ligada a seus sucessivos contatos com as diversas esferas do moderno. Os caminhos do cinema e do magistério são apresentados de modo mais sucinto, sem levar a grandes reflexões sobre a arte cinematográfica, tampouco sobre a educação. A atração pela carreira de professor (de filosofia ou inglês para secundaristas) é justificada pelo desejo de estar entre jovens e explicar coisas: “ter um grupo de pessoas admiradas e gratas pelo meu saber era uma fantasia frequente”.101 Caetano, de fato, acabou ingressando na Faculdade de Filosofia na Universidade Federal da Bahia no ano de 1963 e abandonando o curso no ano seguinte, sem concluí-lo. É interessante pensar que, assim como a escola não havia aparecido de modo contundente em relação aos momentos formativos (no que concerne ao contato com os professores), a faculdade de filosofia também passa quase ao largo das discussões de Verdade tropical. Vale lembrar que UFBA é um cenário frequente e de grande relevância, especialmente dos eventos culturais gerados a partir dela, mas não no que se refere ao espaço da sala de aula. Em artigo para O Globo em março de 2014, Caetano conta: Entrei na Faculdade de Filosofia da Universidade da Bahia em 1963 — e saí em 1964: o golpe chamou para averiguações o único professor que parecia ter alguma energia mental, um lente de história da filosofia, um kantiano, abertamente homofóbico. O principal educador da casa, que lecionava metafísica, era um padre tomista que, dizem, intercedeu em defesa do kantiano quando este foi intimado. O padre virou o chefe da censura em Salvador (quando voltei de Londres, ele quis proibir a

100 VELOSO, 2008, p.86. 101 VELOSO, 2008, p. 88. 131

execução da canção “Nine out of ten”, porque desconhecia o significado da palavra “reggae” e desconfiava de que ela contivesse ameaças subversivas). Esse o ambiente acadêmico em que mal esbocei uma formação filosófica. Mesmo ali, eu era um aluno de nível baixo. Carlos Nelson Coutinho estudou lá, mas, centrando suas forças no autodidatismo, alcançou sólida formação acadêmica. Eu, bem, eu lia Sartre e me encantava com seu brilhantismo — sem que encontrasse meios de pôr o que lia dele em perspectiva com o que se ensinava na faculdade. Em suma: miolo mole102.

É evidente que há muita ironia na conclusão de ser um “miolo mole” e que o fragmento esboça claramente um distanciamento crítico do ambiente universitário, no qual o único professor com alguma “energia mental”, numa cadeira de filosofia, é “abertamente homofóbico” e que o padre tomista, apesar de defender seu colega, é retratado como um censor ignorante. Aqui não só Caetano constrói seu afastamento do título de intelectual (em estrito senso) que tão frequentemente lhe conferem, como reafirma seus espaços formativos para além das salas de aula da escola ou da faculdade, isto é, da educação formal no Brasil. Por outro lado, a “fantasia” de ser professor não deixa de ser um registro de sua simpatia por um ambiente educacional possível, no entanto, preterido pela opção de fazer parte da cultura de massas. No mesmo capítulo em que se aventam essas possibilidades profissionais, há também os argumentos dissuasivos. Para o cinema, há a necessidade de levantar financiamentos e de ser desinibido para falar com pessoas variadas e tensas na iminência de produzir um filme. Para a pintura, a perspectiva de “fazer coisas para burgueses pendurarem nas paredes ou fazer coisas que ninguém pudesse pendurar em lugar nenhum” era desanimadora. Assim se eliminam as duas primeiras, enquanto a carreira de professor é declinada apenas em favor da música. O questionamento da carreira musical se apresenta de maneira interessante como mais uma peça de autofabulação do sujeito. Além das frustrações já referidas em São Paulo no ano de 1965, Caetano apresentava dúvidas sobre seu talento para a música, que são postas no capítulo nos seguintes termos: Depois havia minha (até hoje não negada) autêntica modéstia musical. Não tenho vontade de me desvalorizar (ou de me valorizar através do estratagema de subestimar-me para provocar protestos) nem tenho vergonha de reconhecer explicitamente valor ou grandeza no que eu faça ou mesmo em algumas características pessoais. Mas considero minha acuidade musical mediana. Isso mudou muito com a prática para minha

102 http://www.caetanoveloso.com.br/blog_post.php?post_id=1712. 132

surpresa. Mas não me transformou num Gil, num Edu Lobo, num Milton Nascimento, num Djavan. (VELOSO, 2008, p. 88)

Em seguida, pondera: Reconheço, no entanto, que tenho uma imaginação inquieta e uma capacidade de captar a sintaxe da música pela inteligência que me possibilitam fazer canções relevantes. Sobretudo encontro-me cantando: o prazer e o aprofundamento que do conhecimento que o ato de cantar me proporciona justificam minha adesão à carreira. (Idem)

Note-se, em primeiro lugar, que a afirmação de que não é propriamente modesto (nem essencialmente, nem como subterfúgio para angariar elogios) pretende conferir mais veracidade discursiva à autoanálise sobre sua acuidade musical. A limitação nessa esfera (que ainda existe, segundo avalia, apesar dos avanços), é compensada pela imaginação inquieta e pela inteligência, que permitem a produção de canções relevantes, que, de algum modo, avalizam sua escolha. Porém, o encontro do narrador com o ato de cantar aparece aqui como a mais contundente afirmação da relação profunda entre ele e a canção, que, aliás, será insistentemente afirmada em suas composições musicais.103 A pressão dos amigos e os caminhos do destino são apresentados como os elementos que completam e impulsionam a escolha. Nesse sentido, o narrador cita a visita de Solano Ribeiro a Salvador em busca de canções para um festival que ele iria dirigir na TV Excelsior (note-se nesse momento a proximidade com a eclosão do tropicalismo: os festivais de TV aparecem aqui anunciados). Por fim, importa dizer que os caminhos sugeridos pelo cinema e pelo magistério deixam também aqui suas projeções. Como cineasta, Caetano conseguiu dirigir o filme Cinema falado em 1986, além de incorporar à suas canções elementos que advém de sua proximidade com a sétima arte. Como professor, seu empenho crítico em formular uma teoria sobre a música popular (e a cultura brasileira) foi posta em prática, não dentro do meio acadêmico, mas a partir do rádio, da televisão e da imprensa, que lhe multiplicaram as possibilidades de interlocução. Seus textos críticos e, especialmente, Verdade tropical também devem ser vistos como projeções desse desejo.

103 São exemplos claros as canções “Força estranha”, “Muito romântico”, “Nu com minha música” e “Minha voz, minha vida”. 133

CAPÍTULO III – A AVENTURA TROPICALISTA

1. Uma história do tropicalismo

Convém retornar à tese de que Verdade tropical é uma narrativa híbrida, onde se fundem autobiografia artística, história do tropicalismo e ensaio sobre a brasilidade. Uma vez observados os aspectos formais da obra (com ênfase no vetor autobiográfico) e o relato sobre a pré-história do tropicalismo, cabe agora proceder à análise da narrativa sobre o movimento propriamente dito. Por isso, o presente capítulo concentra-se na parte 2 do livro, que se passa entre o Rio de Janeiro e São Paulo, no intervalo entre 1966 e 1968, contando os momentos decisivos desse processo. No período, são notáveis as mútuas influências entre variadas expressões artísticas, como a literatura, as artes plásticas, o cinema, o teatro e canção popular, bem como a consolidação da televisão como meio de comunicação de massas de maior alcance. Assim, o desenvolvimento da linha evolutiva da música brasileira proposta por Caetano Veloso relaciona-se também, em diferentes registros, às produções de Hélio Oiticica, Glauber Rocha e José Celso Martinez Corrêa, além de estar vinculada a uma série de programas televisivos, que revelaram grandes personagens da canção popular pós bossa nova e que tornaram célebres algumas das figuras fundamentais da cultura de massas do país, como o apresentador Chacrinha. Com isso, a narrativa proposta em Verdade tropical sobre a canção popular brasileira dos anos 1960 (com as linhas que se projetam para antes e para depois desse recorte) pode ser vista também, de modo mais amplo, como uma história da cultura brasileira do período, porém, sob a perspectiva da canção popular e, ainda mais especificamente, de Caetano Veloso. Além disso, como veremos, a consideração do tropicalismo como um movimento neoantropofágico, sugerida pelos poetas concretistas e revelada por O rei da vela do Teatro Oficina, fez com que a discussão sobre a cultura brasileira, naquele momento, encontrasse seu ponto de fuga na figura de Oswald de Andrade. A inclusão do escritor paulista no âmbito das discussões culturais dos anos 1960 gerou uma interessante confluência entre narrativas de origens e naturezas diversas. Isso se deu porque Oswald de Andrade, além de um dos personagens centrais do Modernismo e um pensador da cultura brasileira, é também peça fundamental para as linhas evolutivas

134

propostas no âmbito da literatura. É preciso levar em conta que, também esse movimento, especialmente durante a Semana de Arte Moderna, realizou um amplo diálogo entre as diferentes expressões artísticas, embora a canção popular do rádio e o cinema ainda não tivessem ênfase nesse conjunto. Na medida em que a linha evolutiva da música popular projeta-se na figura de Oswald de Andrade, cria-se um cruzamento entre narrativas, que não só embaraça as delimitações entre “alta” e “baixa” cultura, mas também valoriza a experiência da canção popular em meio aos debates culturais em universo mais amplo. Mais que isso, faz com que esta expressão tome o protagonismo da narrativa sobre cultura brasileira e dispute com outras narrativas canônicas a verdade sobre os movimentos artísticos, especialmente os vinculados à modernidade, que foram desenvolvidos no Brasil ao longo do século XX. Nessa passagem, Caetano Veloso acaba por atravessar também as narrativas principais sobre o Brasil, e aqui se encontra uma das pontes que leva da história da canção/ cultura brasileira para o ensaio sobre a nacionalidade. Por outro lado, a história do tropicalismo é contada em Verdade tropical a partir das experiências pessoais e dos momentos formativos do autor, que se relacionam ao vetor autobiográfico da obra, o que confirma que a interpenetração entre essas três esferas impede sua observação enquanto células estanques.

1.1. A vaidade tropical

O ator e escritor Izaías Almada, no início de seu livro Teatro de Arena – uma estética de resistência (2004), traça um panorama acerca da virada dos anos 1950 para os 1960, considerado este “um período culturalmente rico, em que o Brasil procurava alcançar alguma identidade própria, tentando pensar e escolher o seu destino como nação independente, como povo a organizar seu futuro”.104 Nesse sentido, o autor enumera uma sequência de fenômenos culturais, como a bossa nova; os CPCs; os teatros de Arena, Oficina e Opinião; a canção de protesto; a poesia de Gullar, Vinicius e Cabral; a Revista Civilização Brasileira; alguns semanários como O Pasquim; e, no final dessa longa lista, inclui apenas “alguns aspectos do movimento tropicalista (malgrado Caetano Veloso e sua vaidade tropical)”. O trocadilho é comentado em nota de rodapé:

104 ALMADA, 2004, p. 20. 135

A leitura do livro Verdade tropical, de Caetano Veloso (São Paulo, Companhia das Letras, 1997), deixa nas entrelinhas a vaidade do autor, que praticamente divide a cultura brasileira em antes e depois do tropicalismo e de sua própria importância dentro do movimento. (ALMADA, 2004, p. 19-20)

A ordenação segundo a qual Izaías Almada cita os eventos culturais, mas também a alusão restrita a “alguns aspectos do tropicalismo” evidenciam o desejo de colocar em perspectiva a versão de Caetano Veloso sobre o período. De fato, não raro as categorias de “pré-tropicalismo” e “pós-tropicalismo” aparecem em reflexões sobre a cultura brasileira, sugerindo que a eleição do movimento como divisor de águas é habitual entre estudiosos dos períodos vizinhos aos anos de 1967 e 1968. Objeção semelhante é desenvolvida por Frederico Coelho em Eu, brasileiro, confesso minha culpa meu pecado105, que tem como assunto principal a cultura marginal nos anos 1960 e 1970. Para nossa discussão, interessa sublinhar a distinção proposta pelo autor entre o “tropicalismo musical” e a “tropicália”, atribuindo maior abrangência a esta, tanto no intervalo de tempo (aproximadamente entre 1964 e 1974), quanto na diversidade de manifestações artísticas106; enquanto aquele estaria relacionado estritamente ao movimento no seio da canção popular e teria se concentrado nos anos 1967 e 1968. A partir disso, procede-se à problematização de uma espécie de linha evolutiva que teria levado do tropicalismo musical à geração marginal (“marginália”) e que colocaria, mais uma vez, Caetano Veloso e os tropicalistas da música na condição de marcos divisores da cultura brasileira. Desse modo, Frederico Coelho questiona a lógica de influências presente na literatura canônica sobre o período, especialmente frente à classificação da geração marginal como “pós-tropicalista”, argumentando que o tropicalismo musical não desembocaria necessariamente na marginália, uma vez que suas origens seriam anteriores, isto é, estariam na tropicália. Nesse sentido, conclui que a produção marginal talvez tenha, em determinado período, influenciado mais a produção de Gilberto Gil, Rogério Duprat, Caetano Veloso e Os Mutantes do que a historiografia corrente presume. Assim, como provocação, podemos sugerir que em vez de os marginais serem necessariamente os “pós-tropicalistas”, os tropicalistas passam a ser, em outra perspectiva, os pré-marginais. (COELHO, 2010, p.292)

105 Dissertação de mestrado apresentada em 2002 na UFRJ e publicada em livro em 2010. 106 “O segundo [movimento], cujos participantes eram mais diversificados, indo das artes plásticas, com nomes como Lygia Clark e Hélio Oiticica ao cinema de Julio Bressane, Rogério Sganzerla e (um certo) Glauber, passando pelos escritos de Rogério Duarte e José Agrippino de Paula e a poesia de Waly Salomão, Duda Machado e Torquato Neto – optei por caracterizar como tropicália”. (COELHO, 2010, p. 24) 136

O autor indica, assim, que as narrativas canônicas costumam partir da ideia (segundo ele, equivocada) de que a produção marginal derivou do tropicalismo musical, quando, na verdade, um conjunto de manifestações anteriores evidenciaria um percurso autônomo, que passa pelo tropicalismo musical, especialmente em 1968, e segue seu desenvolvimento até as manifestações ditas marginais na virada para os anos 1970. Portanto, sob seu ponto de vista, em 1968 teria havido um período de confluência, mas não um momento gerador, como frequentemente fica posto. Observa-se, portanto, que a revisão da história e da memória dos movimentos culturais deve ser um exercício contínuo de reavaliações, resgates e redimensionamentos, que permitem sempre acrescentar camadas de complexidade às narrativas dadas. Sob essa égide, Frederico Coelho elege e sublinha aspectos das tensões entre “tropicália”, “tropicalismo musical” e “marginália” que desestabilizam a narrativa canônica, para iluminar a existência de outras linhas possíveis, com outras nuances e outros protagonistas. O autor investe na oposição entre os termos, portanto, com o claro objetivo de proceder a essa revisão crítica, feita a partir dos apontamentos sobre as zonas de exclusão e confluência. O presente estudo estará atento a essa sugestão, que será fundamental para refletir sobre o conjunto de textos que gerou a narrativa “oficial” sobre o tropicalismo, que, com variantes, recorre ao chavão do “espírito de uma época” e dá centralidade ao movimento musical protagonizado por Caetano Veloso e Gilberto Gil. É igualmente necessário refletir sobre a participação de Caetano na construção e na consolidação dessa narrativa e, com ainda mais ênfase, na inserção de Verdade tropical nesse conjunto.

1.2. A invenção do tropicalismo

Os textos fundadores acerca da história do tropicalismo musical começaram a ser publicados antes mesmo da eclosão do movimento. Em especial, convém destacar as afirmativas feitas por Caetano Veloso em “Primeira feira de balanço” (1965) e “Que caminhos seguir na MPB” (1966), e os artigos de Augusto de Campos entre 1966 e 1968, que constam na primeira parte de Balanço da bossa e outras bossas, com destaque para “Boa palavra sobre música popular” (1966).

137

O artigo “Primeira feira de balanço”, comentado no segundo capítulo desta tese, foi escrito ainda em 1965 para a revista Ângulos e tinha como mote o protesto contra os já referidos artigos de José Ramos Tinhorão sobre a bossa nova (publicados em jornais e revistas entre 1961 e 1965).107 Vale lembrar que, em sua argumentação, Caetano Veloso já defendia, àquela época, a importância de seguir a lição de João Gilberto, no sentido de utilizar os elementos modernizantes do jazz de modo a estar “mais armado para compor, cantar, criticar” e, especialmente, “redescobrir a tradição” de nossa própria canção popular. No mesmo texto, Caetano discute os conceitos de “autêntico” e “popular” (que são centrais na argumentação de Tinhorão) e observa que, enquanto se debatia a autenticidade da canção “popular” brasileira, “o povo”, em seu sentido mais amplo, “desmaiava” “aos pés do jovem industrial Roberto Carlos”.108 Assim, os dois personagens principais da reflexão que resultou no tropicalismo já aparecem aqui: o inventor da bossa nova e o rei da jovem guarda. Além disso, vale sublinhar um fragmento embrionário para o movimento e para as narrativas sobre ele: Eu acho que a gente não se deve deixar enganar: estamos ainda na primeira etapa; a inevitável eclosão da bossa nova é, comercialmente, natimorta e, culturalmente, vive safando-se do comércio, tanto quanto precisa dele, o que lhe possibilita apenas andar bem devagar. Estamos tentando achar a linha perdida. (VELOSO, 2005, p.153) A difícil relação entre a bossa nova e o mercado aparece, no fragmento, como uma obstrução para a qual se precisa de uma saída: “achar a linha perdida”. O desenvolvimento dessa tese ocorreu em meio a um debate publicado em maio de 1966 pela Revista Civilização Brasileira sob o título de “Que caminhos seguir na MPB”109. Nesse registro, Caetano Veloso faz a célebre afirmação de que “só a retomada da linha evolutiva pode nos dar uma organicidade para selecionar e ter um julgamento de criação” e que João Gilberto é exatamente o momento em que “a informação da modernidade musical” foi utilizada “na recriação, na renovação, no dar um passo à frente da música brasileira”.110 Nesse mesmo ano, Augusto de Campos escreveu dois artigos importantes: “Da jovem guarda a João Gilberto” e “Boa palavra sobre música popular”. No primeiro, o autor

107 Como já tratamos, duas obras de José Ramos Tinhorão são fundamentais para nossa discussão: Música popular: um tema em debate (1966) e História social da música popular brasileira (1990, em Portugal, e 1998, no Brasil). O primeiro, sendo anterior ao tropicalismo, influenciou diretamente o debate sobre a bossa nova e os novos caminhos para a música popular brasileira, enquanto o segundo propõe uma narrativa sobre a história da música popular, repetindo as críticas ao estilo consagrado por João Gilberto e somando a isso a contestação ao próprio tropicalismo. 108 VELOSO, 2005, p. 148. 109 Participaram do debate, além de Caetano Veloso, os críticos Flávio Macedo Soares e Nelson Lins e Barros, o cineasta Gustava Dahal, a cantora Nara Leão e os poetas Capinan e Ferreira Gullar. 110 In: COELHO, COHN, 2008, p. 21-2. 138

evidencia os embates entre a bossa nova e a jovem guarda a partir dos respectivos programas televisivos, observando as alterações sofridas pela bossa nova em consequência da ampliação de seu público por causa da televisão. Nessa esteira, sinaliza o processo de descaracterização do estilo pela cantora Elis Regina, que procedia a uma exageração de suas interpretações, distanciando-se cada vez mais de João Gilberto e da bossa a que aludia o nome de seu programa. É nesse tipo de distanciamento que podemos ver a emergência da sigla MPB, opondo-se à jovem guarda e designando a canção brasileira pós bossa nova, partindo das conquistas desse movimento, mas já demonstrando seguir para outros caminhos. É também nesse primeiro texto que Augusto de Campos chama atenção para o aparente paradoxo: Roberto Carlos e Erasmo Carlos, representantes do iê-iê-iê (e, assim, adversários da MPB e opostos ao “fino da bossa”), exerciam um canto despojado muito mais próximo de João Gilberto do que as interpretações de Elis Regina. Isso evidentemente é colocado como um complicador da dicotomia, que tem como horizonte recomendar, no mesmo sentido em que Caetano fez, que quaisquer que fossem as novas direções da canção popular do Brasil, a lição de João Gilberto não deveria ser esquecida.111 No outro artigo, “Boa palavra sobre música popular”, Augusto de Campos avalia como infrutífera a guerra contra o iê-iê-iê, trata do êxito da bossa (que passou de influenciada a influenciadora do jazz) e compara, pela primeira vez, o contexto dos anos 1960 com o dos anos 1920, no qual Oswald de Andrade opusera-se ao nacionalismo artificial do verde-amarelismo, classificando-o pejorativamente como “macumba pra turista”. Por fim, o texto louva a chegada de Caetano Veloso no cenário da canção popular, não só pela composição “Boa palavra” (defendida por Maria Odete no Festival de 1966), mas, principalmente, por sua afirmação, publicada no mesmo ano, sobre a necessidade de “retomar a linha evolutiva” a partir de João Gilberto (o trocadilho do título advém do cruzamento desses dois eventos). Em 1967, Augusto de Campos continuou acompanhando a discussão, tendo escrito mais três artigos. Em “Festival de viola e violência”, o assunto é o III Festival da Canção da TV Record e o autor faz considerações sobre experimentação e comercialismo: os altos prêmios dos festivais podendo desmotivar a invenção em favor de uma fórmula “festivalesca”. Além disso, comenta a vitória de Caetano e Gil sobre as vaias, e também o

111 CAMPOS, 2008, p. 57. 139

episódio do violão atirado à plateia por Sérgio Ricardo. Para nossa tese, interessa sua conclusão: Inovação mesmo, e corajosa, no sentido de desprovincianizar a música brasileira, tal como já fizera o grande João Gilberto, é essa que os novos baianos Caetano Veloso e Gilberto Gil apresentaram no Festival, com “Alegria, alegria” e “Domingo no parque”, lutando contra as barreiras e preconceitos do público, do júri, dos companheiros de música popular, e superando-se a si próprios. (CAMPOS, 2008, p. 131)

Em “O passo a frente de Caetano Veloso e Gilberto Gil” (ainda em 1967), Augusto retoma seus artigos de 1966 para reafirmar suas previsões, que teriam sido confirmadas com as apresentações de Caetano e Gil no III Festival da Record: [...] Alegria, alegria e Domingo no parque são, precisamente, a tomada de consciência, sem máscara e sem medo, da realidade da jovem guarda como manifestação de massa no âmbito internacional, ao mesmo tempo que retomam a “linha evolutiva” da música popular brasileira, no sentido da abertura experimental em busca de novos sons e novas letras. (Ibidem, p. 144)

Aqui, o autor aponta o tropicalismo como promotor do encontro definitivo entre João Gilberto e Roberto Carlos, seguindo a lição do primeiro e incorporando o potencial representativo do segundo (especialmente como ícone da cultura de massas do Brasil, que aderiu à moda internacional de uma linguagem que estava se universalizando). Além disso, o emprego da expressão “abertura experimental” completa o conjunto, que configura “o passo a frente” dos compositores baianos. Na sequência, “A explosão de Alegria, alegria” (o último de 1967), Augusto comenta os encontros entre música popular e música erudita, e aproxima a posição de Caetano Veloso e Gilberto Gil das manifestações artísticas de vanguarda, especialmente da poesia concreta e dos músicos eruditos de São Paulo. Nesse sentido, o autor cita fragmentos do manifesto publicado por Décio Pignatari em 1956, que defendia “uma arte geral da linguagem”, “propaganda, imprensa, rádio, televisão, cinema”, “uma arte popular” e, finalmente, “a importância do olho na comunicação mais rápida: desde os anúncios luminosos até as histórias em quadrinhos”.112 A ideia de “arte popular” que aí se sugere não diz respeito mais ao folclore regionalista, mas às mitologias urbanas modernas consolidadas pela cultura de massas. O pop define-se justamente pela rápida comunicação com o público geral, e o mundo moderno é descrito a partir da centralidade da imagem na indústria do entretenimento e da

112 CAMPOS, 2008, p. 156. 140

publicidade. A poesia concreta, o cinema de Godard e o tropicalismo musical cruzam-se nesse universo. Em 1968, mais dois artigos concluem o acompanhamento teórico de Augusto de Campos do surgimento do tropicalismo musical. Em “Viva a Bahia ia-ia”, o crítico afirma que Caetano e Gil, na escala proposta por Erza Pound, estariam enquadrados na categoria de inventores, tal como João Gilberto. É desse artigo também a observação crítica de que Chico Buarque estaria permitindo que sua imagem fosse vinculada por uma crítica retrógada a uma visão saudosista e passadista de nossa música popular. Sendo de 1968, este texto já é posterior ao contato de Caetano Veloso com a obra de Oswald de Andrade, a partir do Teatro Oficina de José Celso Martinez Corrêa. O entusiasmo de Caetano com o espetáculo é utilizado por Augusto de Campos a fim de reafirmar a filiação do tropicalismo ao poeta modernista, reeditando a oposição entre o oswaldiano “nacionalismo crítico e antropofágico” e o “nacionalismo tacanho e autocomplacente” dos verde-amarelos. Além disso, a eleição desse ponto de fuga ajuda a construir a linha que une os poetas concretistas e os tropicalistas nos encontros entre estética e política, que permitem pensar o Brasil e sua inserção na modernidade. O texto faz ainda o comentário sobre o disco tropicalista de Caetano Veloso, gravado em 1967 e lançado em 1968, e procede à análise de algumas canções do álbum, especialmente “Tropicália”, a canção manifesto que, segundo o poeta concreto é “nossa primeira música pau-brasil”, “uma homenagem inconsciente a Oswald de Andrade, de quem Caetano Veloso ainda não tinha conhecimento quando a escreveu”113. Vale lembrar que essa ordenação é confirmada em Verdade tropical. O artigo fala também da incorporação do “cafona” e a releitura do passado em “Onde andarás”, e usa “Soy loco por ti, América” para traduzir o que seria uma doutrina anti-Monroe – “A América para os latino-americanos”. Por fim, em “Informação e redundância na música popular”, também de 1968, o autor discute a oposição entre vanguarda e comercialismo a partir do par redundância- informação, isto é, tomando o primeiro termo como a capacidade que tem um objeto estético de repetir estruturas e fórmulas prévias, enquanto o segundo diria respeito à sua qualidade de invenção, de imprevisibilidade, de novidade. Aqui, novamente, Augusto compara Chico aos tropicalistas, atribuindo a estes grande potência de informação, enquanto associa àquele um teor elevado de redundância. Há também neste artigo a

113 CAMPO, 2008, p. 162-3. 141

menção a Oswald de Andrade, “o grande pai antropofágico” que prometeu que as massas ainda comeriam seu “biscoito fino”, o que, segundo se sugere, teria sido realizado pelo tropicalismo musical. Para completar o panorama, é importante retornar às duas entrevistas publicadas também em Balanço da bossa: uma de Caetano Veloso e a outra de Gilberto Gil, ambas de 1968. Na entrevista de Gil, surgem alguns elementos interessantes, a começar dos marcos formativos do artista: Luiz Gonzaga (influência cheia de consequências para a produção e a particularidade da trajetória de Gil); João Gilberto e Dorival Caymmi (elementos comuns ao universo formativo de Caetano Veloso) e, por fim, os Beatles (informação musical decisiva para as decisões estéticas do tropicalismo). Além disso, na mesma entrevista, Gil contesta que, em 1967, já houvesse um movimento organizado, afirmando crer que aquele (começo de 1968) seria o momento oportuno para o grupo assumir essa responsabilidade, o que é um dado importante para pensar as narrativas sobre o tropicalismo. Em outro momento, numa intervenção de Torquato Neto, o poeta afirma que Maria Bethânia, embora avessa a movimentos organizados, havia sido a primeira a chamar a atenção de Caetano Veloso para a importância do iê-iê-iê de Roberto Carlos. O conselho veio a se transformar em um dos episódios chave de Verdade tropical. Um comentário de Augusto sobre a mistura entre berimbau e guitarra em “Domingo no parque” leva Gil a observar seu “sentido antropofágico”. Assim, àquela altura, fica claro que o artista já estava inserido na discussão teórica sobre a antropofagia. O conhecimento dos tropicalistas sobre Oswald de Andrade, que só se intensificou após o festival, mostra que no primeiro semestre de 1968, os eventos do ano anterior já estavam sendo ressignificados pelos próprios artistas segundo o gesto oswaldiano. A entrevista de Caetano Veloso, por sua vez, começa pela questão de como conciliar comunicação e inovação, ponderando que a própria necessidade de comunicação com as massas poderia gerar inovações musicais. Em outro momento, Caetano diz que nunca se considerou um bom músico, mas que acreditava poder ser um “bom incentivador/ orientador” de seus colegas, exatamente como afirma em Verdade tropical. O entrevistado também comenta o conselho de Bethânia e, por fim, responde à pergunta de Augusto sobre o significado de Oswald de Andrade, relatando que, naquele momento, só conhecia do poeta os textos escolhidos e comentados por Haroldo de Campos e O rei da vela, cuja montagem de José Celso Martinez Corrêa data de setembro de 1967.

142

O que liga os eventos é que a peça de Zé Celso despertou o interesse de Caetano Veloso por Oswald de Andrade. Segundo o relato de Verdade tropical, a partir disso, Augusto deu-lhe de presente a edição organizada por Haroldo (o que aconteceu entre O rei da vela na segunda metade de 1967 e aquela entrevista, da primeira metade de 1968). Assim, a pergunta do entrevistador está diretamente vinculada a seu próprio gesto de aprofundar a presença do poeta modernista no acervo do compositor baiano (e, com isso, dos tropicalistas). A narrativa canônica sobre o tropicalismo, bem como a abrangência do movimento enquanto ampla discussão sobre a cultura brasileira está marcada profundamente por essa intervenção. Isso fica ainda mais evidente no final da entrevista, quando Augusto pergunta a Caetano se o tropicalismo é um movimento musical ou um comportamento vital, ao que este responde: Ambos. E mais ainda: uma moda. Acho bacana isso que a gente está querendo fazer como tropicalismo. Topar esse nome e andar um pouco com ele. Acho bacana. O tropicalismo é um neo-Antropofagismo. (apud CAMPOS, 2008, p. 207)

Assim, Caetano assume definitivamente o movimento, o termo, a questão comportamental, o vínculo com Oswald de Andrade e, de modo sintomático, a conversão em moda. Com isso, inverte-se o sinal negativo subjacente a essa palavra, quando comumente se critica a assimilação de um gosto, estilo ou comportamento que se torna popular sob o incentivo dos veículos de massa. Um movimento que se deseja pop naturalmente não apresenta objeções a esse processo geral, ainda que as atitudes e composições tropicalistas tenham constantemente caminhado no limiar entre a adesão e a crítica. Vale pontuar que a entrevista foi publicada pouco depois da adoção midiática do termo “tropicalismo”, como consequência do artigo “A cruzada tropicalista” de Nelson Motta, em que o vetor da moda aparece de forma destacada. Assim o jornalista resume o fenômeno, ainda em fevereiro de 1968: Os anos 30 revivem em força total. Baseados nesse sucesso e também no atual universo pop, com o psicodelismo morrendo e novas tendências surgindo, um grupo de cineastas, jornalistas, músicos e intelectuais resolveu fundar um movimento brasileiro mas com possibilidades de se transformar em escala mundial: o Tropicalismo. Assumir completamente tudo que a vida dos trópicos pode dar, sem preconceitos de ordem estética, sem cogitar de cafonice ou mal gosto, apenas vivendo a tropicalidade e o novo universo que ela encerra ainda desconhecido. (COELHO, COHN, 2008, p. 50)

143

Com isso, apenas quatro meses depois do festival de outubro de 1967, o termo tropicalismo já começava a ser adotado na mídia. Todavia, o mais importante é evidenciar que, na definição de Nelson Motta, o movimento não estava circunscrito ao âmbito musical, tendo sido “fundado” por “cineastas, jornalistas, músicos e intelectuais”. Esse momento é crucial para que se entendam os questionamentos de Frederico Coelho sobre a mistura de manifestações diversas sob o mesmo rótulo de “tropicalismo”. É preciso sublinhar que o texto de Nelson Motta não é um artigo ou ensaio acadêmico, mas um recorte bem-humorado de modismos derivados das várias manifestações culturais que resolveram assumir a “tropicalidade” e fazer dela uma orientação estética. Por outro lado, sua crônica acabou dando origem a uma série de tentativas de teorizar o movimento e discuti-lo, por vezes, gerando distorções, generalizações e equívocos, que acabaram influenciando as narrativas sobre o assunto. É fundamental identificar, contudo, o acerto descritivo-analítico geral do texto, que capta uma atmosfera criativa geral e algumas de suas tendências comuns. Além disso, o crítico é, sobretudo, um dos grandes responsáveis por uma visão consagradora do movimento. Veja-se, portanto, que as entrevistas de Caetano Veloso e Gilberto Gil, àquela altura, já estavam influenciadas não apenas pela presença mais próxima dos poetas concretistas (que já os conheciam pessoalmente e já tinham participação mais direta nos processos criativos), mas também pela propagação midiática do termo tropicalismo, resumindo-se não apenas a um movimento musical, mas atingindo o status de moda, enquanto tendência de criação, produção e consumo de determinada época. Quando Gil o assume como movimento e Caetano, como moda, realiza-se a operação tênue de afirmação do tropicalismo enquanto a reunião de manifestações culturais (da arte, do cinema, do teatro e até da literatura), a partir da qual se fará grande parte das tentativas de interpretação e de registro do seu desenvolvimento. Vale lembrar que esse momento é fundamental para entendermos a argumentação de Frederico Coelho, que observa como a maior visibilidade da expressão musical em relação às demais, viria a contribuir para a formulação das narrativas que se concentram nos anos de 1967 e 1968, dão protagonismo a Caetano e Gil (sendo pouco generosas com outras figuras fundamentais do cenário criativo da época) e obscurecem a diversidade e a autonomia dessas manifestações culturais e de seus produtores. Cabe registrar, por fim, uma publicação posterior, que também deve ser vista como um dos textos fundadores do tropicalismo. Trata-se de Tropicália: alegoria, alegria,

144

dissertação de mestrado em Filosofia de Celso Favaretto, publicada em livro em 1979 (mais de dez anos depois dos textos inaugurais de Augusto, da crônica de Nelson Motta e das entrevistas com Caetano e Gil). A obra, fortemente influenciada pelos textos precedentes, procura analisar o procedimento alegórico nas composições tropicalistas e seu parentesco com mecanismos oswaldianos, como a justaposição entre o arcaico e o moderno. O trabalho de Celso Favaretto contempla os eventos principais do movimento nos anos de 1967 e 1968, abrangendo os discos e as apresentações mais emblemáticas. Importante também pontuar que o autor considera Araçá azul a síntese dos caminhos abertos pelo tropicalismo, coincidindo com o marco que encerra a narrativa de Verdade tropical. O texto aborda ainda as relações entre tropicalismo e poesia concreta, e enfatiza o caráter neoantropofágico do movimento, além de analisar o emprego do “procedimento cafona”, o uso do kitsch e o processo de carnavalização. Esse conjunto se reporta claramente ao universo dos textos supracitados, com a diferença que tem distanciamento temporal para olhar em perspectiva tudo que aconteceu após as entrevistas do primeiro semestre de 1968. Assim, interessado na análise das composições e dos eventos, Tropicália alegoria, alegria contribuiu para definir as características do tropicalismo e também seu desenvolvimento, pontuando inclusive os momentos de eclosão, consagração e radicalização do movimento. Vale antecipar que Verdade tropical, embora eleja muitos eventos em comum e confirme algumas das características do trabalho de Favaretto, distancia-se deste especialmente em relação ao conceito de alegoria, tanto pela aproximação das imagens tropicalistas com o surrealismo (no lugar do dadá), como pelo seu ponto de partida – a leitura que Roberto Schwarz faz de Oswald de Andrade e do próprio movimento. Por ora, podemos afirmar que os textos de Augusto de Campos em O balanço da bossa, o texto “A cruzada tropicalista” de Nelson Motta e o trabalho Alegoria, alegria de Celso Favaretto formam, junto ao acompanhamento teórico feito pelo próprio Caetano Veloso, ao longo do desenvolvimento do tropicalismo, compõem a base teórica de muitos trabalhos e narrativas posteriores que foram feitas sobre o movimento tropicalista.

145

1.3. O nome tropicalismo e o caso Hélio Oiticica

Caetano Veloso conta que foi Luiz Carlos Barreto que sugeriu o nome de “Tropicália”, à sua canção, depois de ter visto a instalação homônima de Hélio Oiticica na exposição Nova Objetividade Brasileira no MAM-RJ em abril de 1967. Esse trabalho pode ser descrito como a montagem de um ambiente de aspecto labiríntico, composto de penetráveis e de elementos tropicais, como areia, plantas e araras, mas também de poemas- objetos, capas de parangolés e de um aparelho de televisão. A obra se relaciona com uma tentativa de objetivação da realidade brasileira, que Hélio Oiticica explica nos seguintes termos: Por isso creio que a “Tropicália” [...] veio contribuir fortemente para essa objetivação de uma imagem brasileira total, para a derrubada do mito universalista da cultura brasileira, toda calcada na Europa e na América do Norte, num arianismo inadmissível aqui: na verdade quis eu, com a “Tropicália”, criar o mito da miscigenação – somos negros, índios, brancos, tudo ao mesmo tempo – nossa cultura nada tem a ver com a europeia, apesar de estar até hoje a ela submetida: só o negro e o índio não capitularam a ela. Quem não tiver consciência disso que caia fora. Para a criação de uma verdadeira cultura brasileira, característica e forte, expressiva ao menos, essa herança maldita europeia e americana terá de ser absorvida, antropofagicamente, pela negra e índia da nossa terra, que na verdade são as únicas significativas, pois a maioria dos produtos da arte brasileira é híbrida, intelectualizada ao extremo, vazia de um significado próprio. (OITICICA, 2011, p. 109)

O fragmento acima pertence ao texto “Esquema geral da nova objetividade”, e define esta proposta artística como impulso de consolidar uma vanguarda brasileira capaz de se opor ao domínio cultural europeu e norte-americano, utilizando-se, para tanto, do procedimento antropofágico de Oswald de Andrade. No mesmo texto, Hélio Oiticica chama atenção também para o caráter não dogmático da nova objetividade, distanciando-se dos “ismos” da arte moderna, que previam uma unidade de pensamento. Ainda assim, Oiticica observa, naquele momento, uma “vontade construtiva geral”, isto é, um conjunto de esforços criativos individuais que caminhavam no mesmo sentido. Assim, o artista explica a nova objetividade como “uma chegada, constituída de múltiplas tendências, onde a falta de unidade de pensamento é uma característica importante”114, aspecto que afirma ser possível encontrar também no dadá. O vínculo com essa vanguarda seria corroborado ainda pela existência de uma posição cultural atuante,

114 OITICICA, 2011, p. 87. 146

que se coloca visceralmente contra todo tipo de conformismo, seja de ordem cultural, política, ética ou social. Portanto, o “mito da tropicalidade” estaria relacionado, no contexto da nova objetividade, ao não-conformismo ou, nas palavras de Hélio Oiticica, à “consciência de um não condicionamento às estruturas estabelecidas”.115 Com base nisso, seria possível afirmar que o tropicalismo musical apresenta similaridades com esse “estado criador geral”, entendido como tentativa de objetivação da realidade brasileira a partir da antropofagia e da afirmação da formação miscigenada, bem como do inconformismo em relação à dominação cultural e às heranças negativas da história colonial do país. Hélio Oiticica, no entanto, em texto de março de 1968 (um mês depois da adoção do termo por Nelson Motta) reagiu à moda do “tropicalismo”, ressaltando que a obra Tropicália estava relacionada a seu conceito de “nova objetividade”, criado em 1966 e firmado no campo das artes plásticas no catálogo da exposição do MAM-RJ de abril de 1967, antes, portanto, da eclosão do movimento. O autor lembra inclusive que, nesta apresentação, já havia a invocação de Oswald de Andrade e da antropofagia, muito antes da peça de Zé Celso (de setembro do mesmo ano) ou do modismo em torno do termo “tropicalismo” (a partir de fevereiro de 1968). As raízes dessa “nova objetividade”, como acrescenta Oiticica, encontravam-se já em 1964, com o advento dos parangolés, três anos antes da instalação Tropicália. Assim, o autor protesta contra o modismo: E agora o que se vê? Burgueses, subintelectuais, cretinos de toda espécie a pregar tropicalismo, “Tropicália” (virou moda) – enfim, a transformar em consumo algo que não sabem direito o que é. Ao menos uma coisa é certa: os que faziam stars and stripes já estão fazendo suas araras, suas bananeiras etc., ou estão interessados em favela, escolas de samba, marginais anti-heróis (Cara de Cavalo virou moda) etc. Muito bom, mas não se esqueçam de que há elementos aí que não poderão ser consumidos por esta voracidade burguesa: o elemento vivencial direto, que vai além do problema da imagem, pois quem fala em tropicalismo apanha diretamente a imagem para o consumo, ultrassuperficial, mas a vivência existencial escapa, pois não a possuem – sua cultura ainda é universalista, à procura desesperadamente de um folclore, ou a maioria das vezes nem a isso. (OITICICA, 2011, p. 109-110)

Em primeiro lugar, é fundamental perceber que Hélio Oiticica, no fragmento acima, associa a ideia de moda a um significado completamente diverso daquele que é subjacente à afirmação de Caetano Veloso na entrevista a Augusto de Campos. O escopo da afirmativa, porém, parece ser o mesmo que levou a crônica de Nelson Motta, um mês

115 Ibidem, p. 110. 147

antes, a sinalizar, nos vários campos de expressão artística, o surgimento de um fenômeno a que chamou “tropicalismo”. Por isso, é importante observar que, enquanto Caetano vê como vantajosa a disseminação da “moda” tropicalista, Hélio Oiticica faz firme objeção ao processo. A ressalva sobre a “moda” geralmente decorre da ideia de que a interferência de interesses comerciais e ideológicos tende a realizar a apropriação dos fenômenos populares no sentido de descaracterizá-los e distorcê-los. Sob essa égide, assumir qualquer movimento como tal geraria sua simplificação pela tentativa superficial de imitação, pela linguagem da imprensa e pelas demandas do mercado, em um processo que tenderia a enfraquecer ou até anular gestos potencialmente transformadores e vanguardistas. Veja-se que são justamente esses os sentidos latentes na contestação de Hélio Oiticica. No entanto, Caetano Veloso enxerga o processo a partir de prisma completamente diverso, o que ajuda a compreender sua resposta na entrevista. Em primeiro lugar, é preciso observar que moda é um amplo conceito moderno que aponta para a efemeridade e para expressão do presente, para além de participar das revoluções nos costumes e da afirmação das identidades, por vezes representando um espaço de confronto e radicalidade. Depois, é preciso sublinhar que a entrevista com Augusto foi feita nos anos 1960, justamente em uma década em que a moda teve grande destaque no cenário das mudanças comportamentais, vinculadas à exaltação da juventude e também às questões de gênero, raça e sexualidade. Além disso, a moda pode ser vista como um fenômeno de natureza antropofágica, na medida em que devora e deglute os elementos da atualidade, gerando ressignificações, pondo em questão valores estéticos e hierarquias culturais, e ultrapassando limites. Por último, deve-se pesar que o tropicalismo assumiu a cultura pop e, com isso, os meios de comunicação de massas, compreendendo suas ambiguidades (seus interesses mercadológicos e ideológicos, mas também suas forças regenerativas) e procurando se relacionar com elas. Veja-se que a reflexão aqui se distancia da leitura de que a assimilação de algum fenômeno pela indústria do entretenimento enfraquece ou anula gestos vanguardistas ou transformadores; pelo contrário, sob este outro prisma, tornar-se moda e atingir as massas representa justamente a possibilidade de divulgá-los, intensificá-los e expandi-los. E, é claro, por serem vinculados às efemeridades, os modismos demandam sempre sua própria superação, em busca de novas ideias, de outros confrontos e do

148

estabelecimento de novos paradigmas – um comprometimento, portanto, com a mobilidade. Esse conjunto teórico não é estranho a Hélio Oiticica, que, aliás, também vivenciou as consequências, positivas e negativas, da popularização do termo relacionado à sua obra. Seu protesto aqui poderia ser explicado por três aspectos principais. Em primeiro lugar, devemos notar que sua conceituação sobre a nova objetividade enfatiza a chegada de “múltiplas tendências”, a falta de unidade de pensamento e a atitude não conformista. É evidente que o processo de conversão de um fenômeno em moda acaba agindo no sentido da uniformização e da indiferença, e também da transformação de um conjunto de valores em um novo paradigma. A própria inclusão do sufixo “ismo” no termo vincula-se diretamente a esse processo. Ora, tal cenário representa justamente o oposto do que uma tendência vanguardista que se afirma múltipla poderia desejar. O texto de Oiticica age, portanto, no sentido de protestar contra esses efeitos da conversão do movimento em moda. É especialmente importante nesse sentido observar que a negação do termo “tropicalismo”, por sua natureza uniformizadora, é fundamental para que se preservem as premissas básicas de sua proposta. Aliás, Zé Celso116 e Torquato Neto117 também enfatizaram a preferência pelo termo “tropicália”, não para negar a existência do movimento ou sua popularização, mas para impedir que sua condição múltipla fosse prejudicada. Em segundo lugar, o conceito de nova objetividade (e com isso, a Tropicália de Hélio Oiticica) está vinculado a um processo construtivo de rigor conceitual, realizado a partir de um plano e de um projeto definidos, visando a uma ampla discussão sobre os objetivos, os caminhos e os limites das artes plásticas, partindo desse campo de expressão e retornando a ele. Com isso, é natural que o artista proteste contra a diluição de sua concepção em um conjunto amplo de manifestações culturais, sujeitas a uma apreensão

116 Em entrevista para a TV Câmara, Zé Celso afirma que “tudo que é ‘ismo’ definha”, que “o mundo é diferenciado, é múltiplo, é tropicália” e que “a tropicália veio de Oswald de Andrade, veio da antropofagia...”116. Veja-se que a objeção aqui não diz respeito ao protagonismo ou à fidelidade à ideia original de Hélio Oiticica, mas à afirmação da pluralidade, do vanguardismo e da mobilidade das manifestações culturais reunidas sob um amplo escopo de estéticas tropicalistas. Além disso, reafirma-se aqui o caráter antropofágico e a origem oswaldiana dessas manifestações, tal como havia sido proposto pelo próprio Hélio Oiticica. A afirmação encontra-se disponível em https://www.youtube.com/watch?v=16d0f4F_R5g. Último acesso: janeiro/ 2016. 117 “Eu prefiro chamar Tropicália. ‘Ismo’ enquadra o negócio demais, nem corresponde mesmo ao que a gente estava querendo. Nós começamos o movimento na música, que refletiu em todas as manifestações de cultura brasileira.” (NETO apud COELHO, COHN, 2008, p. 254). 149

superficial e generalizante, que é peculiar aos meios de comunicação de massas, aos quais a canção está mais frequentemente exposta que as artes plásticas. O terceiro aspecto diz respeito ao fato de que a conversão do movimento em moda acabou por sublinhar a expressão artística mais popular abrangida pelo rótulo, isto é, a canção popular. O texto de Hélio Oiticica funciona, portanto, também como uma reivindicação da originalidade da ideia (para si e também para seu campo de referência e expressão, isto é, as artes plásticas). Assim, o texto não é um protesto contra o tropicalismo musical, mas contra os perigos que a moda tropicalista representava para sua concepção de nova objetividade em seu próprio campo e para seu protagonismo na discussão. Veja-se, inclusive, que o tropicalismo musical poderia ser visto exatamente, ainda que consideradas as diferenças, como uma das “múltiplas tendências” das ideias defendidas por Hélio Oiticica. Assim, a relação de oposição entre tropicália e tropicalismo musical (útil para estabelecer as diferenças e problematizar a narrativa oficial sobre o movimento), poderia também ser vista como uma relação de continência, isto é, o trabalho criativo de Caetano e Gil entendido como parte de um conjunto maior de acontecimentos artísticos, tal como o próprio Caetano observa em Verdade tropical: Eu tinha escrito “Tropicália” havia pouco tempo quando O rei da vela estreou. Assistir a essa peça representou para mim a revelação de que havia de fato um movimento acontecendo no Brasil. Um movimento que transcendia o âmbito da música popular. (VELOSO, 2008, p. 239)

A “revelação” é reforçada ainda pelo fato de que o texto de apresentação da peça dedicava o espetáculo a Glauber Rocha e enaltecia Chacrinha. Elegendo a composição “Tropicália” como referente, Caetano observa que, embora já tivesse assistido a Terra em Transe, ainda não conhecia a obra de Hélio Oiticica, nem a nova fase do teatro de Zé Celso, nem grande parte da obra de Oswald de Andrade. O que se evidencia com esse panorama é justamente a confluência de propostas estéticas que se avizinhavam em aspectos específicos, dando ao conjunto a aparência de movimento de múltiplas frentes, que transcendia a esfera da música popular. Para pensar as narrativas sobre o tropicalismo, convém voltar à objeção de Hélio e notar que a moda tropicalista aparece descrita a partir de dois universos semânticos: de um lado, as araras e bananeiras que remetem à natureza tropical desde os textos do Quinhentismo; de outro, os ícones relacionados à favela, dos marginais às escolas de samba.

150

Antes de tudo, é preciso sinalizar que, em nenhum dos textos fundadores do tropicalismo musical (os de Augusto, os de Caetano e mesmo a crônica de Nelson Motta), a ênfase recai sobre a incorporação da violência no sentido específico da marginalidade. A grande violência evidenciada por Augusto de Campos é formal e encontra-se, tal como a de João Gilberto, na atitude vanguardista, não na temática. Isso não quer dizer, evidentemente, que não haja imagens de violência nas canções de 1967: há em “Alegria, alegria” guerrilhas, bomba, fome e fuzil; e em “Domingo no parque”, faca e sangue no episódio do assassinato no parque de diversões. Porém, a leitura da violência aqui se relaciona especialmente à presentificação dos temas, com atenção voltada ao cotidiano violento dos jornais. Sob esse prisma, mais uma vez, torna-se possível a aproximação com Oswald de Andrade e sua afirmação de que “nos jornais anda todo o presente”. E, principalmente, é preciso observar que nessas composições não há favelas, marginais ou anti-heróis, tampouco bananeiras ou araras. Assim, os textos de Augusto de Campos sublinham a adesão à linguagem pop internacional, o uso dos veículos de comunicação de massa, a retomada da linha evolutiva a partir de João Gilberto, o confronto com a visão nacional-popular, o fim da dicotomia entre música brasileira e iê-iê-iê (a incorporação de Roberto Carlos), o rompimento de barreiras entre o comercial e o sofisticado (a aceitação do cafona), a inversão do tabuleiro internacional a partir da América Latina (tendo o Brasil à frente) e, por fim, à filiação com Oswald de Andrade. Novamente, o universo identificado no texto de Hélio Oiticica não aparece. Somente no ano seguinte, com o lançamento dos discos tropicalistas de Caetano e Gil (já no início de 1968), o imaginário da tropicalidade começa a se fazer presente, especialmente quando lembramos que, no repertorio do primeiro, consta a música- manifesto “Tropicália” (que começa com a alusão à carta de Caminha e brada o nome de Carmen Miranda) e, no segundo, “Marginália II” (“tropical melancolia/ negra solidão” e “aqui, o Terceiro Mundo/ pede a bênção e vai dormir/ entre cascatas, palmeiras/ araçás e bananeiras/ ao canto da juriti”). Aliás, o aumento gradativo da violência pode ser observado, de modo geral, nas produções e performances tropicalistas ao longo do ano de 1968, o que, vale lembrar, é notado tanto por Celso Favaretto como por Frederico Coelho, em seus respectivos trabalhos. Tal fenômeno, ocorrendo justamente a partir da popularização do movimento, pode ser visto como uma forma de impedir a institucionalização de seu caráter

151

vanguardista, mas também como opção de manter sua mobilidade e sua força de ruptura (o que não desmentiria a adesão à ideia de moda) e, especialmente, de acompanhar o próprio enrijecimento do regime no decorrer daquele ano. Como primeiro exemplo, é possível observar que o disco-manifesto (gravado em maio e lançado em julho), além das rupturas estéticas sinalizadas desde os textos de Augusto de Campos, apresenta também notável violência temática, com a presença insistente de sangue, assassinatos e outras imagens violentas. Os exemplos são conhecidos: “derramemos vinho no linho da mesa/ molhada de vinho e manchada de sangue” (“Miserere nobis”), “rasga-lhe o peito o demônio/ tombando a velhinha aos pés do altar/ tira do peito sagrando da velha mãezinha/ o pobre coração...” (“Coração materno”), “mandei fazer/ de puro aço luminoso um punhal/ para matar o meu amor e matei/ às cinco horas na avenida central” (“Panis et circenses”), “despedaçados, atropelados/ cachorros mortos nas ruas/ policiais vigiando/ o sol batendo nas frutas/ sangrando” (“Lindoneia”), “e tem jornal popular que/ nunca se espreme/ porque pode derramar.// é um banco de sangue encadernado/ já vem pronto e tabelado,/ é somente folhear e usar” (“Parque industrial”), “hospitaleira amizade/ brutalidade jardim” (“Geleia geral”), “(Os clarins da banda militar…)/ debaixo das bombas, das bandeiras” (“Enquanto seu lobo não vem”), fora a violência omitida da colonização festejada na letra de “Três caravelas” ou na presença do herói Batman em “Batmacumba” ou no entorno da guerra latente na intertextualidade com Brecht em “Mamãe coragem” (e mesmo no próprio abandono da figura materna) ou no tom épico da “vitória pelos mares e campos baianos” do “Hino do Senhor do Bonfim”. Tudo isso atravessado pelas recorrentes imagens da conquista do território e da violência urbana. A escalada da violência comportamental, estética e temática segue nas apresentações de “É proibido proibir” (com seus “automóveis em chamas” e suas prateleiras derrubadas, e com a performance geral, que inclui o célebre discurso agressivo de Caetano Veloso contra “a juventude que quer tomar o poder”), o show na boate Sucata e o estandarte de Hélio Oiticica exaltando Cara-de-Cavalo (“Seja marginal, seja herói”), a gravação de “Charles Anjo 45” em homenagem ao “bandido de bom coração”, os programas de televisão (a arma apontada para a plateia ao som de “Boas festas” de Assis Valente ou a destruição da jaula ao som de “Um leão está solto nas ruas”), e o pedido de atenção “para o sangue sobre o chão” na canção defendida por Gal no festival de 1968.

152

Por fim, é interessante notar que a discussão sobre os modismos vinculados ao par tropicalidade/ marginalidade é anterior aos anos 1960 e ao trabalho de Hélio Oiticica. Com o apogeu da Era do Rádio, tanto se nota a incorporação do imaginário tropical (nos sambas de exaltação e no desenvolvimento do carnaval sob a forma de escolas de samba), como também a tematização da malandragem (que não deixa de ser um antecedente do banditismo, ainda que em contexto e em registro bem diversos). Já nessa época, o sucesso de ícones como Carmen Miranda já levantava a questão sobre o quanto a popularização e a exploração comercial desses temas poderia conduzir a uma expressão inautêntica. E aqui voltamos à centralidade da canção popular em meio a essa discussão. De outro lado, um imaginário marginal também estava se desenvolvendo na virada dos anos 1950 para os 1960 na cultura de massas internacional, segundo observação de Edgar Morin já apresentada neste trabalho. A ética jovem que se relaciona com a marginalidade e com a ruptura do sistema seria embrionária da contracultura que se estabeleceu nos anos 1960. Aliás, tanto as lutas armadas das esquerdas revolucionárias da América Latina quanto as afirmações das liberdades individuais (e sexuais) que tiveram marcha no mesmo período vão legar para a década de 1960 uma série ampla de personagens à margem (em sentidos diversificados). O tropicalismo musical esteve atento a esses caminhos, sintetizando-os na experiência da canção popular. Assim, juntando a linha marginal que deriva do samba com aquela que se vincula ao rock (e está ligada à contracultura), o movimento de fato deu um passo expressivo para a consolidação de um imaginário marginal que acabou prevalecendo no contexto brasileiro pós-1968, quando a crítica mais tradicional ao sistema encontrava-se limitada pelo acirramento da ditadura, tornando o próprio comportamento desviante uma forma de protesto por excelência. Esse raciocínio, aliás, faz parte também de um conjunto de narrativas canônicas sobre o período.

1.3.1. A discussão terminológica em Verdade tropical

Cabe agora refletir sobre como Verdade tropical lida com a questão da nomenclatura do tropicalismo. Logo na introdução, Caetano afirma: O movimento que, nos anos 60, virou a tradição da música popular brasileira (e sua mais perfeita tradução - a bossa nova) pelo avesso, ganhou o apelido de “tropicalismo”. O nome (inventado pelo artista plástico Hélio Oiticica e posto como título em uma canção minha pelo homem do Cinema Novo Luís Carlos Barreto) Tropicália, de que o 153

derivaram, me soa não apenas mais bonito: ele é preferível por não se confundir com o “luso-tropicalismo” de Gilberto Freyre (algo muito mais respeitável) ou com o mero estudo de doenças tropicais, além de estar livre desse sufixo ismo, o qual, justamente por ser redutor, facilita a divulgação com status de movimento do ideário e do repertório criados. No entanto, é com esse rabicho que a palavra aparecerá mais frequentemente nas páginas que se seguem, uma vez que tudo isso não passa de um esforço de divulgação internacional do gesto. (VELOSO, 2008, p. 16)

Segundo o fragmento, a objeção ao termo “tropicalismo” é apresentada a partir de três motivos. Em primeiro lugar, Caetano Veloso afirma ser importante diferenciá-lo do termo “luso-tropicalismo”, que designaria algo mais “respeitável”. Não deixa de ser interessante notar que, ainda que o trabalho acadêmico de Gilberto Freyre seja visto como digno de mais respeito do que o movimento musical de massas, a evocação de seu luso- tropicalismo acaba por reforçar a discussão sobre a brasilidade no campo da origem étnica híbrida, oriunda da relação entre os portugueses e os trópicos. Em segundo lugar, a confusão entre o movimento tropicalista e o estudo de doenças tropicais aparece sob um discreto humor, que se vale da confusão inusitada entre os assuntos. Além disso, antecipa-se aqui o momento em que se narra o gracejo feito pelo pai de Gilberto Gil, que teria afirmado: “Tropicalista sou eu!”, “que exerço a profissão de especialista em doenças tropicais há décadas”118. Caetano diz ser este um comentário “definitivo” sobre o rótulo e, em seguida, confirma a sentença através da citação de dois sentidos previstos pelo dicionário Aurélio para o termo, ambos afinados com a definição do dr. José Gil. O terceiro motivo vincula-se à rejeição do sufixo ismo e encontra eco na afirmação de Hélio Oiticica acerca da “nova objetividade brasileira”. A inclinação para as proposições coletivas e para a “chegada de múltiplas tendências”, que também é pertinente ao tropicalismo musical, expõe o caráter redutor da nomenclatura. É importante notar que aí Caetano assume como conveniente para a proposta do livro o uso do sufixo que formaliza a existência de um “ideário” e de um “repertório” que precisam ser divulgados internacionalmente. Embora a narrativa de Verdade tropical enfatize que o movimento estava centrado na canção popular, a adoção do termo aqui acaba contribuindo para que, conforme a crítica de Frederico Coelho, grandes artistas como Hélio Oiticica, Glauber Rocha ou Zé Celso

118 VELOSO, 2008, p. 188. 154

apareçam como apêndices dessa narrativa. Deve-se ressaltar que, por outro lado, sendo a canção popular uma expressão que atinge um público mais amplo, a própria menção a esses artistas acaba sendo um convite a descobrir suas obras e suas trajetórias para além das relações com o movimento musical. Nesse sentido, Caetano toma para si a responsabilidade de definir o tropicalismo como um movimento da canção popular que acaba se reconhecendo dentro de um conjunto mais amplo de manifestações artísticas, com evidentes afinidades. Ainda que o autor procure apresentar os personagens em meio a suas próprias trajetórias (pelo menos segundo um recorte geral), é inevitável que o “ismo” limitador acabe reforçando, no conjunto, a centralidade do movimento musical, gerando a confusão entre a “tropicália” e o “tropicalismo musical”. Vale afirmar que isso, além de uma decisão individual (e da hipotética vaidade que envolve), trata-se também de uma decisão política: é a afirmação de uma representação de Brasil que, segundo Caetano, tem como forma de expressão privilegiada a canção popular. Dito isso, vale fazer uma ponderação sobre uma ambiguidade crucial para entendermos a questão: o hipotético protagonismo de Caetano Veloso (no livro, na canção ou na cultura brasileira) vincula-se, na verdade, à afirmação de outro protagonista: João Gilberto. Como temos destacado, a bossa nova é fundamental para diversos pontos de vista de Caetano. Na medida em que é uma fusão bem sucedida de invenção e competência, o estilo revela a possibilidade de redimensionar a posição do Brasil no cenário internacional, abrindo outras perspectivas para o futuro. Percebe-se, portanto, que a produção de uma narrativa sobre a cultura brasileira centrada na experiência da canção popular torna visível a grande conquista da bossa nova. Em Verdade tropical, Caetano chega a dizer que gostaria de ter escrito um livro sobre João Gilberto, ao que pondera: “que minha música canhestra e errática seja por enquanto o livro que posso escrever sobre ele – é assim que ele a ouve (e que este livro aqui seja uma extensão de seu caráter algo disforme)”.119 Assim, a experiência tropicalista busca eleger João Gilberto como grande protagonista da cultura brasileira. Dar centralidade à canção popular não só o ilumina, como enfatiza que toda uma geração foi fecundada por sua revolução: ele é o verdadeiro divisor de águas na perspectiva de Caetano Veloso. Por outro lado, a ambiguidade desse gesto é que Caetano acaba sendo o grande formalizador e propagador dessa tese,

119 VELOSO, 2008, p. 491. 155

convertida em experiência estética vanguardista. Com isso, o tropicalismo não apenas retoma João Gilberto, mas o atualiza, usando sua lição para inserir o Brasil definitivamente na modernidade estética internacional e, de imediato, no contexto “pós-moderno” relacionado à contracultura, num percurso que é evidenciado pelo livro. Desse modo, colocando João Gilberto como protagonista e a canção popular como âmbito privilegiado para pensar o Brasil, Caetano Veloso acaba dando destaque a si mesmo, tornando-se uma espécie de “redivisor” das águas. Em outro momento do livro, o autor volta a comentar a nomenclatura “tropicalismo”, especialmente a partir do artigo de Nelson Motta: Nelson Motta [...] escreveu um texto em que batizava o movimento com esse nome de “tropicalismo” e, extraindo da própria palavra um repertório de atitudes e um guarda-roupa folclórico [...], inaugurou ingênua e despretensiosamente o que viria a ser uma longa série de interpretações das características do movimento. (VELOSO, 2008, p. 187)

A descrição de Caetano Veloso aponta o caráter despretensioso do texto de Nelson Motta e ainda sublinha seu sentido de adesão (ou, ao menos, de simpatia) em relação à moda que ali se afirmava. As ponderações que aparecem na sequência são importantes: Eu, que me resignara a “Tropicália” por falta de opções que surgissem a tempo – e que julgara que a canção não seria tão afetada pelo título, engolia mal esse xarope tropicalista. As imagens passadistas e folclorizantes me desgostavam [...], mas sobretudo eu achava que, ao contrário de tropicália, uma palavra nova, tropicalismo me soava conhecida e gasta [...], de todo modo algo que parecia excluir alguns dos elementos que mais nos interessavam, sobretudo aqueles internacionalizantes, antinacionalistas, de identificação necessária com toda a cultura urbana do Ocidente. (Idem)

O autor pondera aqui, de modo crítico, uma consequência da apropriação superficial do termo, mais especificamente ao sentido que o tropicalismo musical lhe dava. É importante observar que mais que a redução estereotipante às imagens “passadistas e folclorizantes”, o incômodo maior de Caetano diz respeito à exclusão da discussão sobre a linguagem pop, a cultura urbana, a modernidade e a oposição à visão nacional popular. Com isso, é possível identificar como Nelson Motta acaba observa o fenômeno geral, mas acaba tomando o efeito como característica principal: a aproximação dos elementos que se comunicam com as massas tem como consequência assimilação do kitsch, do cafona, do folclórico, mas não são esses os valores que servem de diretriz para o movimento.

156

É preciso notar também que Caetano não comenta a objeção de Hélio com a ideia original de Tropicália, tampouco explicita a questão da pluralidade de manifestações que se encontra na palavra primitiva. Além disso, reitera que, quando se apropriou do termo, não tinha a dimensão de suas consequências nem a intenção de se filiar profundamente às orientações estéticas do artista, mas simplesmente de avalizar as similaridades observadas por Luiz Carlos Barreto. Deve-se salientar que, apesar de desconhecer o alcance que tomaria a escolha do título da canção, o autor está plenamente consciente da reafirmação da moda tropicalista, pois em maio (três meses depois do artigo de Nelson Motta e dois depois da objeção de Oiticica), insere o termo “Tropicália” na capa do disco manifesto. No final do livro, a questão da nomenclatura retorna de maneira conclusiva: O nome “tropicalismo”, que rejeitei a princípio por considerar restritivo, hoje me parece adequado como nenhum outro. Justamente por eu ter preferido enfatizar em primeiro lugar nossa aceitação do repertório pop internacional – como oposição e choque ao nacionalismo –, o apelido hoje me soa como uma revelação involuntária da essência do movimento. Sua própria construção – por jornalistas ingênuos a partir de uma sugestão de Luiz Carlos Barreto por causa da obra de Oiticica – tem a marca do acaso significativo, do acercamento inconsciente a uma verdade. Uma responsabilidade pelo destino do homem tropical, um dínamo escondido que desencadeasse uma resposta histórica para uma pergunta semelhante à de Nietzsche – eis a motivação íntima do que se chamou tropicalismo na música popular brasileira. (VELOSO, 2008, p. 490)

Esse fragmento vem na sequência da menção ao comentário de Nietzsche contra a visão pejorativa de pensadores “moralistas” europeus sobre o homem tropical. No trecho imediatamente anterior, Caetano cita os questionamentos do filósofo acerca desse tipo de depreciação: “em favor de quê [é feita]?”, “em benefício dos homens temperados? Daquilo que é moral? Do medíocre?”.120 A motivação íntima do movimento tropicalista, portanto, seria assumir-se responsável pelo destino do homem tropical, para encontrar e canalizar a energia potencial presente nos trópicos, que, uma vez liberada, seria capaz de reordenar o equilíbrio de forças e prestígios no cenário mundial. O ismo, enfim aceito pelo autor, pressupõe o reconhecimento desse projeto como proposta bem definida de fissura com a visão nacional-popular, concretizada na opção estética de incorporação do pop, tomado como linguagem universal, necessária à realização do projeto de reposicionar o Brasil no contexto internacional. Mais uma vez, o

120 O questionamento de Nietzsche é tirado do texto “Brasil feito brasa” de Antonio Cicero, que discutiremos no quinto capítulo deste estudo. 157

autor se vale tanto da ideia do “destino” (evidenciando como o termo foi consolidado por seguidos acasos sobre os quais teve pouco controle) como também da perseguição insistente, empreendida pelo tropicalismo, de revelar as verdades do hipotético “inconsciente nacional”. Aliás, a cultura de massas, que divulgou o movimento e o termo, aparece como fonte privilegiada de acesso a essa esfera. Por fim, associando o movimento a uma responsabilidade sobre o homem tropical, Caetano Veloso reafirma sua empresa de falar em nome da música popular brasileira e em nome do Brasil, o que se vincula diretamente a escolha – esta sim intencional – do título Verdade tropical, que, como já discutimos, assume a ambiguidade entre a verdade sobre e a verdade a partir dos trópicos e, com isso, funde sujeito e objeto, tal como propusemos na introdução deste estudo.

1.3.2. Hélio Oiticica, personagem de Caetano

Cabe, por fim, observar a trajetória de Hélio Oiticica enquanto personagem de Verdade tropical. O artista aparece, primeiramente, na explicação sobre o nome do movimento e sobre a instalação Tropicália. Em outro momento, é citado como visitante do apartamento 2002 em São Paulo. A apropriação do estandarte “Seja marginal, seja herói” é contada já no final da parte 2, como gesto de acirramento da adesão ao imaginário da marginalidade no auge do regime militar, ainda que essa peça fosse um dado acessório em um amplo conjunto de elementos que compunham o cenário. É justamente essa obra que leva à suspensão do show e ao fechamento da boate Sucata, sendo também a justificativa formal apresentada para a prisão de Caetano e Gil. De modo geral, Hélio Oiticica aparece pessoalmente em raros momentos do livro, e mesmo a discussão sobre suas conceituações originais que levaram a Tropicália não são objeto de análise mais detida. Isso mostra como sua participação como influenciador na história do tropicalismo musical é secundária, embora a escolha do nome leve à necessária vinculação com essa obra específica. Apesar disso, é importante notar que Hélio está presente em dois momentos chave da narrativa: no batismo da canção-manifesto e na prisão dos artistas, isto é, em um momento seminal e no fechamento de um ciclo. Já na parte 4, Caetano conta que Hélio Oiticica tornou-se também frequentador da casa em Chelsea (o artista plástico estava vivendo em Londres desde 1969). Nesse momento, faz considerações sobre a obra de Hélio e sobre “a tematização de sua mitologia pessoal”,

158

na qual se destacam a escola de samba Estação Primeira da Mangueira, os bandidos das favelas, o rock’n’roll, o sexo e as drogas pesadas. Convém a citação: Hélio tornou-se uma espécie de happening ambulante. Isso era bem o espírito da época: lembremos que o neo-rock’n’roll inglês dos anos 60 e o próprio tropicalismo tinham muito essa ambição, e que a própria política ‘narcisista’ de ideologizar a intimidade e sexualizar os julgamentos dos atos políticos era algo da mesma natureza. (VELOSO, 2008, p. 417)

O fragmento evidencia que o imaginário contracultural estava em tudo afinado “à consciência de um não condicionamento às estruturas estabelecidas”, pregado por Hélio Oiticica em seu “Esquema geral da nova objetividade”. Há aí também a afirmação da vivência como dado fundamental da arte (a palavra atravessa inúmeros de seus textos crítico-teóricos da década de 1960), citada inclusive no texto de objeção à moda tropicalista, no qual afirma que o elemento vivencial direto não poderia ser consumido pela voracidade burguesa. Transformar-se num “happening ambulante”, portanto, não está apenas de acordo com o apogeu da contracultura, mas com o próprio desenrolar das proposições estéticas do artista. Com isso, Hélio atravessa não apenas o princípio e o fim da aventura tropicalista narrada em Verdade tropical, mas também a introdução e a conclusão deste estudo. A fusão entre o pessoal e o político, numa atitude narcisista relacionada à eclosão da contracultura, que é evidenciada no artista plástico, aproxima-o também do próprio autor que faz o comentário. Desse modo, as origens do caráter híbrido de Verdade tropical apresentam parentesco também com as questões, produções e ideias de Hélio Oiticica.

1.4. O tropicalismo em Verdade tropical

A história do tropicalismo contada na parte 2 de Verdade tropical começa com a chegada de Caetano Veloso ao Rio de Janeiro em 1966, seguida pela mudança para São Paulo em 1968, terminando com a prisão do artista nesse mesmo ano. Essa seção compreende 15 capítulos de tamanhos bastante variáveis, cujos títulos sugerem canções, eventos, personagens e discussões teóricas vinculadas ao tropicalismo: “Transe”, “Paisagem útil”, “Domingo”, “Baihunos”, “Alegria, alegria”, “Domingo no parque”, “Tropicália”, “2002”, “A poesia concreta”, “Chico”, “Vanguarda”, “Antropofagia”, “Panis et circensis”, “É proibido proibir” e, por fim, “Divino maravilhoso”.

159

Poderíamos dizer que o capítulo “2002” é uma pista temporal preciosa, na medida em que marca a mudança de Caetano e Dedé para São Paulo em 1968. Desse modo, os sete primeiros capítulos apresentam-se sobre o desenrolar dos eventos passados no Rio de Janeiro entre 1966 e 1967 (mas também das frequentes idas à capital paulista para gravação dos programas televisivos da TV Record), enquanto os oito subsequentes concentram-se no ano seguinte. Mais do que isso, podemos dizer que esse primeiro conjunto procura narrar e descrever o contexto político-cultural no qual se inseria a canção popular antes da eclosão do tropicalismo (enfatizando a hegemonia de uma perspectiva “nacional-popular” de esquerda nas representações de Brasil) e a ruptura que o grupo baiano representou nesse quadro. Enquanto isso, o segundo bloco de capítulos, enriquecido pelas conversas acontecidas e pelos discos ouvidos no apartamento 2002, apresenta boa parte das discussões teóricas que acompanham a narrativa dos eventos do ano de 1968. Seguindo esse raciocínio, torna-se possível observar uma sequência linear de fatos, que ajuda a organizá-los apesar das inúmeras ramificações teóricas e deslocamentos temporais. Além disso, podemos perceber que todo esse intervalo está marcado por uma espécie de “transe” geracional, que revela, nos diversos âmbitos da cultura (mormente a canção popular, o cinema, as artes plásticas, a literatura e o teatro), um desejo de ruptura com determinada forma de pensar o Brasil, abrindo novas possibilidades de representação. Esse transe atravessa toda a parte 2, tornando-se muito evidente no primeiro e no último capítulo dessa seção, o que contribui decisivamente para os elementos místicos e míticos da aventura tropicalista aí narrada. O primeiro capítulo chama-se “Transe” em alusão ao filme Terra em transe de Glauber Rocha, lançado no ano de 1967. A obra é considerada um marco para o desenvolvimento do tropicalismo, na medida em que rompe com a visão nacional-popular hegemônica no âmbito cultural do período, num gesto que Caetano identifica, em retrospecto, como a representação da “morte do populismo”. O filme foi assistido no Rio de Janeiro, o que dá ensejo ao narrador para localizar temporalmente essa seção a partir de 1966 (ano da mudança para a cidade) e explicar que a recepção positiva dessa obra é consequência do convívio com José Agrippino de Paula e Rogério Duarte. Ainda nesse capítulo, Caetano narra a mudança para o “Solar da Fossa”121,

121 O Solar da Fossa era uma antiga casa de fazenda que foi transformada em uma espécie de pensão, que funcionou em Botafogo (onde hoje está o Shopping Rio Sul e o antigo Canecão) entre os anos de 1964 e 160

em 1966, e descreve esse ambiente enquanto cenário importante para a história de nossa canção popular. O capítulo seguinte, “Paisagem útil”, segue a empresa de observar as discussões principais do período, girando em torno do Teatro Jovem122 e do programa O fino da bossa123, ambos inseridos no debate sobre os caminhos da canção popular, a partir de sua modernização pela bossa nova, e pelas demandas de engajamento político frente aos problemas sociais do Brasil, mas também frente à instauração da ditadura civil-militar de 1964. O desejo de engajamento político direto, segundo o relato, era complementado pela frequente recusa à cultura de massas americana no país (vista no bojo do imperialismo cultural) o que resultava na objeção ao rock’n’roll dos EUA, mas também ao neorock’n’roll dos Beatles e dos Rolling Stones e, principalmente, à jovem guarda de Roberto Carlos. Nesse sentido, o capítulo comenta também como o conselho de Maria Bethânia para que Caetano prestasse atenção na vitalidade do programa de RC apontava no sentido contrário às visões de esquerda hegemônicas no cenário cultural do período. Além disso, o narrador apresenta, ainda neste capítulo, como preâmbulo desses embates, o episódio em que mostrou pela primeira vez uma canção tropicalista a alguém de fora do grupo. Isso ocorreu no Solar da Fossa, onde o artista apresentou a Paulinho da Viola a canção “Paisagem útil”, o que justifica o título do capítulo. A reação desapaixonada de Paulinho é vista pelo narrador como prenúncio das resistências que a empresa tropicalista teria que enfrentar para se afirmar no cenário da canção popular brasileira. Antes de passar ao próximo capítulo, vale lembrar que o conselho de Bethânia é mencionado já na parte 1 do livro, mas só aqui é narrado com detalhes, em razão da pertinência à linha cronológica. Na narrativa suspensa, o capítulo “Bethânia e Ray Charles” encerra seu relato sobre 1965 na participação da cantora no musical Tempo de guerra sob direção de Boal, enquanto Caetano voltava para a Bahia para seu “intermezzo baiano”. Depois do sucesso de “Carcará”, Bethânia começou a se apresentar na boate

1971 e onde moraram muitos artistas brasileiros em início de carreira, como, por exemplo, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Paulinho da Viola, Zé Kéti, Torquato Neto e Rogério Duarte. 122 O grupo do Teatro Jovem existiu entre 1960 e 1966, com sede no Mourisco, em Botafogo no Rio de Janeiro, próximo ao Solar da Fossa. O grupo promovia sessões semanais de MPB, que eram frequentadas por Caetano Veloso e que consolidaram ali um espaço de discussões sobre música. Foi também no Teatro Jovem que, em 1965, apresentou-se o musical Rosa de ouro, show escrito por Hermínio Bello de Carvalho, que revelou Paulinho da Viola e Clementina de Jesus. 123 Programa apresentado por Elis Regina e Jair Rodrigues na TV Record entre os anos de 1965 e 1967. 161

Cangaceiro, ainda no início de 1966, o que se conta também no capítulo “Paisagem útil” (o que permite localizar o evento temporalmente apenas por estar na sequência dos acontecimentos passados no Solar da Fossa, para onde Caetano se mudara naquele ano). Os shows na boate Cangaceiro foram registrados em um documentário curtametragem de Júlio Bressane e Eduardo Escorel, chamado Bethânia bem de perto – a propósito de um show (1966). Em dado momento do registro, Bethânia chega a ironizar a popularidade de Roberto Carlos, dizendo que não poderia falar mal dele porque nada conhecia sobre sua obra. Na sequência, afirma que o pouco que ouviu achou pobre musicalmente. Vale lembrar que o programa televisivo da jovem guarda já existia desde 1965 quando essa afirmação foi feita. Assim, a opinião da artista mudou bastante para que, no mesmo ano, sua indiferença em relação a Roberto Carlos se convertesse no elogio de sua vitalidade. Como nem o documentário nem a antiga opinião são comentados em Verdade tropical, o processo de mudança não é registrado e só compreendemos que ocorreu ainda em 1966 pelo conjunto geral dos eventos contados em “Paisagem útil”. Voltando à sequência, o terceiro capítulo (“Domingo”) refere-se ao primeiro disco de Caetano Veloso, em parceria com Gal Costa, lançado em 1967. Nessa seção, o narrador traça o retrato de Gal; comenta o retorno de Gil de uma viagem a Pernambuco, que lhe foi decisiva para a formação de sua sensibilidade estética; fala das primeiras reuniões com artistas para a exposição das ideias tropicalistas; apresenta mais dois personagens do tropicalismo (Torquato Neto e Capinan) e, ainda, narra a participação de Caetano no programa Esta noite se Improvisa na TV Record. Todos esses eventos ajudam a evidenciar a fermentação do tropicalismo às vésperas do Festival da Canção de 1967. No quarto capítulo, “Baihunos”, Caetano afirma o grupo tropicalista principal como Gil, Gal, ele, além de Bethânia (apesar desta não aderir diretamente ao movimento) e enumera outros integrantes da aventura tropicalista, como Tom Zé, Alvinho Guimarães, Duda Machado, Waly Salomão, Roberto Pinho, Rogério Duarte, José Agrippino, Guilherme Araújo, Torquato Neto e Capinan. Mais que isso, o narrador comenta os termos, em geral pejorativos, com os quais parte da mídia se referia ao núcleo principal desse grupo. Uma dessas referências era “baiunos”, que misturava “baianos” e “hunos”, abrindo várias possibilidades de sentido para nossa reflexão. Em primeiro lugar, devemos observar que os baianos haviam invadido o espaço central de difusão cultural do país, concentrado

162

no circuito Rio - São Paulo, e que isso representava uma ruptura com a uniformização desses centros irradiadores. Além disso, a ideia de “bárbaro”, subjacente ao título, evoca (desde o manifesto de Oswald de Andrade) a importância das contribuições culturais ameríndias e afro- americanas no sentido de compor uma modernidade brasileira, forte, singular e vanguardista. Desse modo, invadir esse centro e “vandalizar” suas estruturas faz parte do empreendimento tropicalista, e esclarece o título de “doces bárbaros”124 para seu grupo principal, nitidamente invertendo o sinal (negativo) de “baihunos” e revelando o acerto acidental sobre a intenção e a natureza de seus projetos. O mesmo capítulo comenta com mais vagar a obra Panamérica de José Agrippino de Paula. O encaixe aqui pode ser explicado por dois motivos. O primeiro é a pertinência cronológica ao ano de 1967, no qual o livro é publicado. Além disso, nessa seção narra-se uma entrevista do escritor ao Jornal do Brasil, na qual afirmava não se identificar com Gil, por ter crescido em São Paulo entre “vidro e concreto armado”, recusando a doçura baiana, preferindo iê-iê-iê à MPB e, mesmo no iê-iê-iê sentindo falta de “violência”125. Agrippino, cujo livro também pode ser visto como um gesto de violência em relação ao padrão mais canônico da literatura brasileira até então (seu épico pop de influência beatnik é quase sem par em nossa história literária), toca no nervo do capítulo ao atravessar os significantes do “doce” e do “bárbaro”, e de indicar o gosto pela jovem guarda, cuja incorporação seria um dos grandes gestos de violência do movimento. Na sequência, os capítulos “Alegria, alegria” e “Domingo no parque” (o quinto e sexto dessa parte) apontam para um mesmo evento: o III Festival da TV Record, que aconteceu no segundo semestre de 1967. Como se sabe, os nomes dos capítulos são os respectivos títulos das canções que já apresentavam características tropicalistas e já incorporavam a guitarra elétrica. As músicas foram defendidas por Caetano Veloso e Gilberto Gil, e ficaram entre as finalistas do concurso (aquela em quarto lugar e esta em

124 Bethânia, Caetano, Gal e Gil fizeram uma turnê juntos em 1976, que os reuniu sob o título de “Doces Bárbaros”. No repertório, a letra da canção “Os mais doces bárbaros” ajuda a compreender o sentido que relaciona o grupo à ideia de bárbaro: “Com amor no coração/ preparamos a invasão/ cheios de felicidade/ entramos na cidade amada// [...] alto astral, altas transas, lindas canções/ afoxés, astronaves, aves, cordões/ avançando através dos grossos portões/ nossos planos são muito bons [...]”. Veja-se aí que a invasão não é um gesto de ódio ou de recusa da cidade “amada” (a turnê começa emblematicamente em São Paulo), mas é preparada e planejada para trazer em seu bojo a mistura: o “alto astral” e as “altas transas” (que flertam com o imaginário contracultural), os afoxés e dos cordões de carnaval (em referência à nossa cultura popular), e as aves e as aeronaves (sobrepondo natureza e tecnologia). E tudo isso precisava “avançar através dos grossos portões” da resistência às ideias tropicalistas. 125 VELOSO, 2008, p. 143-4. 163

segundo), dando visibilidade aos artistas e funcionando como o primeiro grande marco do movimento. O capítulo “Alegria, alegria” começa com o lançamento do disco Domingo, cuja gravação já havia sido narrada no capítulo homônimo, o que dá ensejo a comentários sobre o álbum e a capa. Em seguida, descreve-se o contexto dos programas musicais, principalmente os da TV Record. Esta noite se improvisa, por exemplo, apresentado por Blota Jr. a partir de 1967, consistia na disputa entre artistas que mediam seus conhecimentos sobre a música brasileira. Essa atração deu visibilidade a Chico Buarque e Caetano Veloso, que se mostravam grandes concorrentes. O narrador ocupa-se de comentar o Esta noite se improvisa, não só para reforçar a ideia de que havia muitos programas relacionados à música na televisão à época, mas também para contar o início de sua popularização na cultura de massas do Brasil, além de indicar suas idas mais frequentes a São Paulo para gravações. No âmbito geral da narrativa, origina-se nesse episódio o traçado sobre a oposição entre Chico e Caetano, que é uma linha de força importante que atravessa o livro. Com a crise de audiência de O fino da bossa (1965 a 1967) e o aumento da popularidade de Jovem Guarda, a emissora explorou comercialmente o embate, criando a Frente Única da MPB contra o iê-iê-iê, programa que substituiu O fino, distribuindo o comando do novo musical entre quatro artistas que se alternariam semanalmente: a própria Elis Regina, Wilson Simonal, Geraldo Vandré e Gilberto Gil.126 Nesse sentido, o capítulo “Alegria, alegria” mostra o plano de Caetano para transformar o programa de Gil num “escândalo antinacionalista”, assimilando informações da jovem guarda e fazendo um elogio a Roberto Carlos, o que significou mais um passo em direção à eclosão do tropicalismo musical. Por fim, narra-se a “passeata contra as guitarras”, que aconteceu na sequência da oposição entre MPB e jovem guarda, explorada comercialmente pela Record. A marcha ocorreu apenas dois meses antes do III Festival da Canção na emissora127, no qual Caetano

126 O programa não foi bem sucedido, tendo durado apenas quatro meses. 127 A emissora Record apresentou cinco festivais da canção, respectivamente nos anos de 1960, 1966, 1967, 1968 e 1969. A TV Excelsior e a TV Globo também apresentaram esse tipo de programa, a primeira em 1965 e 1966, e a segunda em 1966 (ainda como TV Rio), depois anualmente entre 1967 e 1972. Isso ajuda a perceber como esse tipo de atração era frequente na programação televisiva, tal como sugere Caetano Veloso em sua narrativa; porém, ganham destaque em Verdade tropical, os festivais da Record de 1966, 1967 e 1968, e os festivais da TV Globo de1968 e 1969. Há também a menção mais pontual à participação de Caetano Veloso como compositor, com a música “Boa palavra”, defendida por Maria Odete no II Festival da TV Excelsior em 1966. 164

apresentou “Alegria, alegria”, acompanhado do grupo de rock Beat Boys (formado por argentinos), e Gilberto Gil defendeu “Domingo no parque” com arranjos de Rogério Duprat e acompanhamento dos Mutantes. A seção “Domingo no parque”, depois de traçar um breve panorama sobre a hegemonia da esquerda nos meios artísticos e de afirmar a existência de uma esquerda “festiva” (termo originalmente pejorativo, que também tem seu sinal invertido por Caetano), faz uma pequena apresentação de Gilberto Gil, cujo perfil só é aprofundado capítulos depois, em “Panis et circensis”. Por ora, o que o Caetano faz é comentar brevemente a apresentação de Gil e dos Mutantes no Festival de 1967 e, logo em seguida, falar sobre seu próprio disco gravado ainda no mesmo ano. As análises sobre Caetano Veloso, o primeiro álbum individual e marcadamente tropicalista de Caetano, continuam ao longo de “Tropicália”, em que se comentam amiúde as imagens presentes na composição e como se conectam com o imaginário do tropicalismo (aliás, este termo também é observado nessa seção). Além disso, o casamento com Dedé (com seus contornos de evento pop acidental) e o gosto por Jorge Ben completam as considerações do capítulo. Dedé e Caetano, na sequência do casamento narrado na seção anterior, mudaram-se para São Paulo no ano de 1968, onde montaram um apartamento de decoração “tropicalista”, que era frequentado por Gilberto Gil, Guilherme Araújo, Mutantes, Zé Agrippino e sua mulher Maria Esther, e onde moraram também Waly Salomão e Duda Machado. De outro lado, os poetas concretistas Augusto e Haroldo de Campos, além de Décio Pignatari, passaram, do mesmo modo, a frequentá-lo. O número do apartamento dá título ao capítulo e, como já se disse, muda o tempo da ação e dá um novo cenário à narrativa. Desse modo, aqui se discute também o folclore sobre o ano de 1968 e a participação de Caetano e Gil no espetáculo Momento 1968, que lhes rendeu a primeira turnê internacional e, assim, a primeira ida à Europa (Lisboa, Londres e Paris). Os capítulos “A poesia concreta”, “Chico”, “Vanguarda” e “Antropofagia” (o 9º, o 10º, o 11º e o 12º) aparecem relacionados às discussões que aconteciam dentro desse apartamento, especialmente sob a influência das conversas com esses dois grupos de frequentadores, identificados, em dado momento, respectivamente, como os “irracionalistas” e os “hiper-racionalistas”. Desse modo, as visitas dos concretistas estabelecem o vínculo entre os capítulos “2002” e “A poesia concreta”.

165

Nesta seção, são apresentados os poetas Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignatari, inseridos narrativamente como frequentadores do apartamento. A figura de Augusto de Campos é central para entender essa sequência, uma vez que se concentra exatamente nas questões teóricas que se reportam aos artigos de O balanço da bossa. A partir daí, o autor de Verdade tropical começa a analisar as relações entre o tropicalismo e a poesia concreta. O capítulo “Chico” apresenta o cantor como grande síntese da MPB. Aqui, Caetano discute como o tropicalismo dialoga com o mito de Chico Buarque ao mesmo tempo em que se contrapõe a ele, diferenciando-o de Vandré, apesar de ambos representarem projetos contra os quais o movimento se opôs. Além disso, o narrador evidencia a importância de desmascarar os falseamentos do marketing que incide sobre suas figuras, para que suas obras possam ir mais longe. O que conecta o capítulo na sequência de “A poesia concreta” é que a oposição entre Chico Buarque e Caetano Veloso havia sido evidenciada nos artigos de Augusto de Campos, o que faz com que Caetano queira dedicar um capítulo a aprofundar a análise sobre essa oposição e reiterar a importância histórica do artista. Logo depois, a seção sobre “Vanguarda” mostra-se uma defesa sobre a “lucidez da linguagem” e da força do “antigo que foi novo”, isto é, o elogio das correntes artísticas que se concentraram nas experimentações formais com a própria linguagem e a observação de que todo projeto que foi vanguardista em alguma época guarda a força de seu gesto de ruptura. Essa exaltação das posturas de vanguarda, que está presente na obra e nas discussões teóricas dos concretistas da literatura (e também nos músicos dodecafônicos) justifica a presença do capítulo nessa sequência. Além disso, discutir vanguarda no âmbito da cultura popular também abre o debate sobre a oposição entre experimentação formal e comercialismo, sobre a instituição das vanguardas, sobre o desejo de comunicação em contraponto ao anseio pela invenção. Assim, chega-se ao capítulo “Antropofagia”, que se poderia afirmar como o ponto de fuga do livro: as discussões pretendidas em Verdade tropical encontram na figura de Oswald de Andrade seu elemento centralizador, aquele que une os hiper-racionalistas poetas concretos e os irracionalistas que, em conjunto, fizeram eclodir o tropicalismo musical. Além disso, a ênfase sobre Oswald (em detrimento a Mário) é um dos gestos mais importantes da versão dos poetas concretistas sobre a história da literatura brasileira e que faz com que Modernismo e tropicalismo se encontrem. Como o primeiro contato de Caetano com a obra de Oswald de Andrade se deu com o espetáculo O rei da vela, dirigido

166

por José Celso Martinez Corrêa, o diretor e o Teatro Oficina encontram neste capítulo seu lugar de discussão, resgatados pela dimensão antropofágica de seus gestos. Depois desse conjunto de capítulos, Caetano sente-se apto a analisar o disco manifesto do movimento: Tropicália ou Panis et circensis, gravado em maio de 1968. Assim, no capítulo “Panis et circensis”, narra-se a produção desse álbum coletivo e comentam-se as canções e os participantes do processo. Como preâmbulo, Caetano identifica na produção musical da época o que vinha se mostrando como objeto de interesse do grupo. Segundo o relato, na vitrola do apartamento 2002, Janis Joplin e Jimi Hendrix alternavam-se com Orlando Silva e Carmem Miranda, o que sugere o impulso tropicalista em direção ao sincretismo. “É proibido proibir” dá nome à canção de Caetano inspirada no lema do Maio de 1968 francês, e inscrita no Festival Internacional da Canção, da Rede Globo no mesmo ano. Aqui se narra o happening promovido por Caetano durante a apresentação da música, as vaias furiosas e o discurso inflamado que fez contra a juventude de esquerda em relação a qual o tropicalismo se impunha como fissura. Na sequência desse evento, relatam-se as apresentações do show tropicalista de Caetano na boate Sucata, que intensificaram sua postura contracultural (e tinham no cenário o estandarte de Hélio Oiticica “Seja marginal, seja herói”). O capítulo que encerra a parte 2 chama-se “Divino, maravilhoso”, em alusão à canção defendida por Gal no Festival da Record ainda em 1968, mas também ao título do programa de TV tropicalista, que foi ao ar na TV tupi no mesmo ano. Nessa seção, Caetano volta a 1964 para organizar a história política brasileira a partir da implementação da ditadura (que vinha sendo contada de forma fragmentária), passando por seus momentos icônicos como a passeata dos cem mil e a decretação do AI-5, configurando o acirramento do regime que levaria Caetano, no fim do capítulo (e da parte 2), à prisão. Nessa seção, um episódio é significativo para a ordenação narrativa, como se fosse um dos pontos auge do “transe” estético, político e existencial vivido pelo protagonista. Caetano conta que havia passado a noite acordado conversando com Waly Salmão e Luís Tenório em seu apartamento em São Paulo. Ao amanhecer, uma passeata estudantil contra a ditadura chamou a atenção do grupo, que resolveu descer à rua para acompanhá-la de perto. Porém, a manifestação foi interrompida pela força policial, que a dispersou com violência. Caetano conta que estava vestido com “um casaco militar europeu antigo (um ‘casaco de general’) sobre o torso nu, jeans, sandálias e um colar índio feito de dentes

167

grandes de animais”, com cabelo comprido e emaranhado, e começou a interpelar os passantes sobre a indiferença com a qual observavam a ação militar. Assim o evento é narrado: Homens e mulheres apressados tinham medo dos manifestantes, dos policiais e de mim. Eu estava seguro de que ninguém me tocaria um dedo. Sentia-me possuído por uma ira santa. Na verdade, as pessoas não saberiam como situar essa estranha aparição em meio à instabilidade produzida pelo confronto entre estudantes e militares. Ninguém me enfrentaria absolutamente naquela circunstância: todos me ouviam com o ar assustado de quem está disposto a engolir qualquer desaforo para safar- se. E dasaforo é o que ouviam. Por outro lado, os soldados dificilmente focariam sua atenção em mim: eu andava em sentido contrário aos estudantes fugitivos, na verdade, tangenciando o olho do furacão, e minha aparência não seria computada como sendo a de um dos manifestantes. Eu falava alto e exaltadamente, mas nenhum soldado se aproximaria de mim o suficiente para me ouvir. (VELOSO, 2008, p. 312-313)

O fragmento apresenta-se como um dos auges do capítulo, sendo um elemento interessante não só pelo seu conteúdo, mas pelo seu valor estrutural no conjunto da narrativa, como veremos a seguir. O fato é que a descrição das roupas já prenunciava que o protagonista não pertencia a nenhum dos grupos ali representados: nem os policiais nem os estudantes nem os demais passantes (é interessante notar a combinação esdrúxula e algo contraditória entre um casaco “militar” e o jeans popularizado pela cultura de massas internacional, que junto às sandálias vinculam-se a uma identidade hippie, à qual vem se somar um colar índio, que ressalta um traço de primitivismo no figurino geral). É curioso também perceber como o protagonista caminhava no sentido contrário aos estudantes, o que simbolicamente pode ser visto, no âmbito da narrativa, como a reiteração de sua divergência com as formas tradicionais de manifestação à esquerda. Por isso, acaba não sendo identificado pelos policiais como um opositor. Na sequência do relato, Caetano comenta o episódio à luz da contracultura, afirmando estar consciente de que atuava em um happening, afirma o caráter de narcisismo e de teatralidade das manifestações do Maio de 1968, e conclui ser coerente sua aproximação com aquele ideário, que havia sido expresso desde “É proibido proibir”. A conclusão encaminha o texto para um de seus ápices: Eu era o tropicalista, aquele que está livre de amarras políticas tradicionais e por isso pode reagir contra a opressão e a estreiteza com gestos límpidos e criadores. Narciso? Eu me achava nesse momento necessariamente acima de Chico Buarque ou Edu Lobo, de qualquer um dos meus colegas tidos como grandes e profundos. (Ibidem, p. 313)

168

No fragmento, convém destacar como o narrador se individualiza como um símbolo do tropicalismo (“Eu era o tropicalista”). Além disso, o capítulo encontra sua importância conclusiva para a parte 2, começada no gesto emblemático e libertador de Terra em transe e consubstanciada no alinhamento a outra forma de entendimento do político, concentrada na libertação individual e posta na esteira da contracultura, que teve um de seus momentos mais emblemáticos no ano de 1968. O narcisismo que advém desse ideário dá sentido à pergunta “Narciso?”, cuja resposta afirmativa implícita funciona também como ponderação à conclusão de sua superioridade em relação aos colegas da canção popular. Em seguida, ainda no mesmo capítulo, narra-se a experiência com o auasca, que, além de representar um mergulho no universo da contracultura (pela afirmação das experiências com as drogas e de sua possibilidade abertura da capacidade perceptiva) e do misticismo (uma vez que a bebida está diretamente vinculada a um uso ritualístico, tal como nas cerimônias do Santo Daime), é também uma forma de retornar à ideia de “transe” que abre o capítulo, e que se multiplica aqui no sentido geracional, mítico, criativo e, em certo registro, sebastianista em que se insere a aventura tropicalista. É também uma forma de conectar este capítulo ao próximo (a narrativa da prisão, na parte 3), na medida em que ambos representam experiências extremas de percepção da realidade e de questionamento sobre seus limites. Embora a leitura pessoal de Caetano Veloso em Verdade tropical, não aborde todos os eventos que poderiam ser vistos como relevantes para história do tropicalismo, por outro lado, indica precursores, influências diretas e ordenações importantes. Por meio de sua narrativa, o autor situa Terra em transe como influência direta, afirma que Jorge Ben e Zé Agrippino anteciparam algumas conquistas almejadas pelo tropicalismo, informa que Hélio Oiticica e sua obra sequer eram conhecidos pelo compositor de “Tropicália”, e que a descoberta de Oswald de Andrade a partir de José Celso Martinez Corrêa é posterior à eclosão do movimento e mesmo à canção-manifesto. Também merece nota que a distensão dos assuntos pelos capítulos dificulta a identificação não apenas da sequência exata dos fatos, mas também do intervalo de tempo que os separa. Avaliando em termos estritamente cronológicos, poderíamos dizer que o tropicalismo aconteceu entre outubro de 1967 e dezembro de 1968, isto é, teve pouco mais de um ano de duração. É certo que devemos adicionar a isso a pré-história do movimento – as apresentações no Teatro Vila Velha em 1964 e os espetáculos dirigidos por Augusto

169

Boal em 1965 – mais o processo de fermentação que se deu a partir da vinda de Caetano para o Rio no ano seguinte. Assim, seria possível também redistribuir os eventos em uma linha temporal: entre abril e maio de 1966, Caetano mudou-se para o Solar da Fossa no Rio de Janeiro (após um curto período no apartamento de Alex Chacon) e, em maio, a Revista Civilização Brasileira publicou o texto “Que caminhos seguir na MPB”; em junho, ocorreu o II Festival de Música Popular Brasileira da TV Excelsior (com “Porta estandarte” de Geraldo Vandré em primeiro lugar e “Boa palavra” de Caetano Veloso, na voz de Maria Odete, em quinto); entre setembro e outubro, houve a fase final do II Festival da Canção da TV Record, que premiou “A banda” e “Disparada”, e exibiu na televisão, pela primeira vez, a imagem do compositor Caetano Veloso, que concorreu com “Um dia”, defendida pela mesma intérprete. No ano seguinte, em fevereiro de 1967, Gilberto Gil viajou para Pernambuco; as reuniões para divulgar as novas ideias aconteceram nessa sequência (a partir de maio); em abril, o MAM do Rio de Janeiro apresentou a exposição Nova objetividade brasileira, na qual constava a instalação Tropicália de Hélio Oiticica; em maio, entrou em cartaz o filme Terra em transe de Glauber Rocha; em junho, acabou o programa O fino da bossa e em julho aconteceu a passeata contra as guitarras, na esteira da Frente Única; em julho, houve também o lançamento do disco Domingo de Gal Costa e Caetano Veloso; em agosto, começaram as participações do artista no Esta noite se improvisa; no final de setembro, estreou O rei da vela de Oswald de Andrade, dirigido por José Celso Martinez Corrêa; em outubro, houve a apresentação do III festival da TV Record, contando com “Alegria, alegria” e “Domingo no parque”; no final do ano, foi gravado o disco tropicalista Caetano Veloso, que, porém, só foi lançado no início do ano seguinte (com isso, encerra-se o primeiro ciclo de eventos, entre 1966 e 1967, contados nos sete primeiros capítulos da parte 2). Na sequência, em fevereiro de 1968, Nelson Motta publicou “A cruzada tropicalista”; pouco depois, Caetano e Gil forneceram as entrevistas para Augusto de Campos, que constam em O balanço da bossa; no emblemático maio de 1968, foi lançado o álbum tropicalista de Gilberto Gil e houve a gravação do disco manifesto do movimento, lançado, por sua vez, no mês de julho; em setembro, aconteceu o Festival Internacional da Canção da TV Globo (tendo “Sabiá” de Chico Buarque em primeiro lugar e “Pra não dizer que não falei das flores” de Geraldo Vandré em segundo, além da célebre performance de

170

Caetano Veloso em “É proibido proibir”); em outubro, vieram à cena os shows tropicalistas na boate Sucata e a estreia do programa Divino maravilhoso na TV Tupi; em novembro, Gal Costa defendeu a canção que dá nome ao referido programa, no IV Festival da TV Record, o mesmo em que os Mutantes defenderam “Dois mil e um” de Rita Lee e Tom Zé; em dezembro, Caetano e Gil são presos, encerrando o conjunto de eventos escolhidos para os oito capítulos finais da parte 2.

1.5. Nota sobre Torquato Neto

Vale observar que Caetano Veloso apresenta o grupo tropicalista, em Verdade tropical, a partir do fracasso das reuniões de Gilberto Gil em convencer os outros colegas a aderir à nova perspectiva. Segundo o narrador, o artista queria “engajá-los num movimento que desencadearia as verdadeiras forças revolucionárias da música brasileira”.128 Não deixa de ser curioso que Gil, na entrevista de 1968 a Augusto de Campos tenha afirmado que não havia um movimento organizado antes daquele momento. A sequência da entrevista é elucidativa: GG - O trabalho que fizemos, eu e Caetano, surgiu mais de uma preocupação entusiasmada pela discussão do novo do que propriamente como movimento organizado. Eu acho que só agora em função dos resultados de nossas investidas iniciais, se pode pensar numa programação, numa administração desse material novo que foi lançado no mercado [os discos tropicalistas de Caetano e Gil].

TN – Eu estava sugerindo até, ontem, conversando com Gil, a ideia de um disco manifesto, feito agora pela gente. Porque até aqui toda a nossa relação de trabalho, apesar de estarmos há bastante tempo juntos, nasceu mais de uma relação de amizade. Agora as coisas já estão postas em termos de Grupo Baiano, de movimento...129

GG - ... até agora, a rigor, nem fomos um grupo nem estivemos integrados num movimento organizado. Agora é o momento de assumir essa responsabilidade. (CAMPOS, 2008, p. 193)

A referência de Torquato Neto ao disco-manifesto de 1968 mostra que a entrevista é anterior a maio, embora posterior à repercussão midiática na sequência do texto de

128 VELOSO, 2009, p. 126. 129 Caetano Veloso, embora registre sua incerteza, atribui a si mesmo a ideia do disco-manifesto: “Suponho que fui eu a decidir que devíamos fazer um álbum-manifesto, um disco coletivo que explicitasse o caráter do movimento do nosso trabalho”. (VELOSO, 2008, p. 266).

171

Nelson Motta em fevereiro. Em outro momento da entrevista, Gil relativiza seu papel no processo: [...] Caetano é a peça fundamental nessa discussão toda. É a peça fundamental nessa retomada [da linha evolutiva]. Principalmente porque ele se preocupa muito mais com o aprofundamento dessas discussões que eu, talvez. Essa é uma preocupação que vem no Caetano antes do que em mim. (Ibidem, p. 191)

Em depoimento para sua biógrafa Regina Zappa, já na década de 2010, Gil voltou a afirmar o marco do movimento “institucional” só a partir de 1968 e Caetano Veloso como seu protagonista maior: De intuitivo, passou a ser institucional. Caetano começa a convocar, começa a articular. Aí vem o guerreiro, o líder, o leão, o leonino que ele é. E vamos lá com Tom Zé, Capinan, Rogério Duprat, Rogério Duarte. Convocamos Gal e Nara, e fomos fazer o disco Tropicália. (GIL, ZAPPA, 2013, p. 119).

A narrativa de Caetano sobre as reuniões, de certa forma, valoriza a figura de Gilberto Gil, que toma a frente do “movimento” nesse episódio de 1967. De outro lado, o conjunto do livro registra que o desejo de intervir no curso da canção brasileira já vinha desde 1965 (com as discordâncias em relação a Boal e com o artigo para a revista Ângulos) e vai gradativamente ganhando vulto. Nas falas de Gil, é possível perceber a eleição do primeiro semestre de 1968 para marcar o início de um movimento organizado, cuja concretização parece aqui pontuada pela gravação do disco coletivo. É preciso sublinhar também a importância de Torquato Neto no sentido de ter proposto o álbum manifesto (um passo importante para a institucionalização do movimento organizado), sugestão esta que não é registrada em Verdade tropical. No livro, Torquato aparece como um dos companheiros da empreitada tropicalista, tendo feito parte das reuniões de Gil, passando de inicialmente desconfiado a um defensor ferrenho. Seu retrato é francamente mais favorável que o de Capinan, e envolve também a afirmação da amizade íntima e confessional com Caetano (a relação de amizade prévia ao movimento aparece também na ponderação de Torquato à fala de Gil, há pouco citada). Outra fonte importante para acompanhar o processo de eclosão do tropicalismo é a coluna “Música popular”, que Torquato Neto escreveu entre março e setembro de 1967, publicada primeiramente no Jornal dos Sports, passando depois para O sol (periódico referido em “Alegria, alegria”). Nessas colunas, é possível confirmar a recusa inicial do colunista pelo iê-iê-iê, depois o comentário sobre as reuniões com Gil e, por fim, o tom de adesão aos princípios ali expostos. 172

Como exemplo, cabe citar o artigo “Uma noite edificante” de 26 de abril de 1967, que começa relatando que, na mesma noite em que a “jovem guarda” comemorava o aniversário de seu “rei” (ambas as aspas são de Torquato), outra “multidão” havia ido ao Teatro da Republica assistir à “nova geração do samba” (que contava com Caetano, Gil, Sérgio Ricardo, Sidney Miller e Edu Lobo – os mesmos que aparecem nas reuniões de Gil). Sobre isso, afirma: Quem estava lá viu bem o quanto foram aplaudidos, o quanto esse público ainda prefere ouvir, como tenho dito, o som bonito de nossa música em lugar das guitarras barulhentas da chamada “música jovem”. (NETO, 2004, p. 74-5)

E, no final, conclui: Se o público do Tijuca Tênis não foi ao República, porque preferiu ouvir o iê-iê-iê de Roberto Carlos, os universitários que foram ao Gomes Freire não iriam – estou certo – ouvir seus compositores cantando bobagens [...] em ritmos que essa gente não gosta e não quer ouvir. (Ibidem, 77)130

No mesmo artigo, Torquato afirma haver públicos para o iê-iê-iê e para a música brasileira (que não se misturariam), reclama dos “Indecisos de Souza” (que estariam procurando um gênero híbrido, temendo ser engolidos pela onda publicitária da música jovem), desdenha Jorge Ben e Wilson Simonal, e, por fim, afirma que um artista não deve trair seu público. A divisão entre MPB e iê-iê-iê fica muito clara nessa afirmação de Torquato, na qual ainda se pode ver o desprestígio também do público de Roberto Carlos, em relação aos “universitários” que preferem a “boa” música brasileira131. Em artigo de 20 de maio do mesmo ano, começa a virada: Gilberto Gil chegou de Recife com grandes planos. Pretende apresentar- se em várias outras cidades do país, principalmente do Nordeste onde sua temporada de 20 dias – como já noticiei aqui – obteve enorme sucesso. Gil se reúne este fim de semana com vários compositores e intérpretes para expor seus planos que, segundo ele, somente serão possíveis através de um trabalho de equipe entre o pessoal mais novo de Música Brasileira. Tomara! (Ibidem, p. 107)

130 Em entrevista para Torquato Neto para a mesma coluna, Capinan também mostraria sua oposição ao iê-iê- iê: “Cantar e aceitar o iê-iê-iê pode ser uma tendência explicável mas nunca deixará de ser um comportamento próprio da cultura subdesenvolvida. Nunca deixará de refletir a existência de uma poderosa máquina internacional, que padroniza e empobrece o gosto musical. E nunca deixará de conter a necessidade de uma cultura nacional própria autêntica [...]”. (apud NETO, 2004, p. 38-9) 131 Em outro artigo, de 11 de maio de 1967, Torquato afirma sobre o público da música brasileira: “[...] o público dessa gente é outro e – perdão – muito melhor, muito mais ‘alfabetizado’, interessado em detalhes que passam despercebidos ao pessoal do iê-iê-iê”. (NETO, 2004, p. 97) 173

O comentário é feito justamente em um sábado, antes da reunião daquele final de semana. Na coluna da terça-feira seguinte (23 de maio de 1967), já se percebe a mudança de tom na subparte intitulada “Opinião de Gil”: “É necessária a imediata institucionalização de um novo movimento da música brasileira, a exemplo do que foi feito com a bossa nova”. E não transcrevo mais porque a importantíssima entrevista de Gilberto Gil, na qual ele desenvolve esse tema aí de cima, foi publicada aqui mesmo no JS, há dois dias.(Ibidem, 111)

E, pouco depois: Estou envolvido também nesse movimento e não digo isso para me dar importância, mas porque o fato me coloca mais ou menos por dentro do assunto. [...] Gil fala numa institucionalização: ou seja, a partir de uma identificação de interesses e dúvidas e certezas e problemas, os compositores chegaram ao momento grave da definição. Definidos, passam agora à chamada fase principal, de organização do trabalho em planos de verdadeira luta. E não me venham pensando que se trata de tolices do tipo luta contra o iê-iê-iê. (Ibidem, p. 111)

Assim, Gilberto Gil já falava na institucionalização de um movimento desde 21 de maio de 1967, quando sua afirmação é publicada no Jornal dos Sports. E fica claro que as reuniões serviram ao menos para virar (embora em níveis diferentes) as opiniões de Torquato e Capinan. O direcionamento “a exemplo da bossa nova” também é dado importante, uma vez que Caetano já defendia, àquela época, a necessidade de se achar a linha perdida. Esse conjunto acaba demonstrando o desvio de perspectiva de Gil e Torquato quando, no início de 1968, afirmam que até ali não havia um movimento institucionalizado. Aqui se percebe não só a rápida virada da opinião de Torquato, mas o próprio protagonismo inicial de Gil no sentido de organizar o movimento. Em artigo de agosto, Torquato Neto posiciona-se contra a “tal frente única” (título de seu artigo) e chega a citar a opinião de Gilberto Gil em favor de Roberto Carlos e dos Beatles. No final de setembro, publica as declarações de Caetano e Gil sobre o uso de guitarras elétricas no Festival do mês seguinte, definindo seu apoio às pesquisas formais e à heterogeneidade dos estilos. No artigo “Torquato conta o festival” de 1º de outubro de 1967, relata a apresentação das 12 finalistas do Festival da Record e termina com o seguinte comentário: E está iniciada a guerra. Somente no próximo dia 23 conheceremos os vencedores. Vamos ver um bocado de coisas, inclusive como o público reagirá à canção de Caetano Veloso, que ele defenderá acompanhado de guitarras elétricas. Gilberto Gil também vai usar guitarra. E Geraldo Vandré. Os “Dragões da Independência do Samba” (“Também chamados

174

de “os precursores do passado”) são contra. Mas isso é outra guerra. (Ibidem, p. 183).

Esses artigos esclarecem a virada de posição do colunista e terminam justamente ironizado aqueles que pretendem manter uma postura conservadora em nome da tradição da música popular e da autenticidade do samba nacional. Vale sublinhar também que Geraldo Vandré já aparece aí como antagonista132. Torquato anuncia, assim, a “guerra” do tropicalismo musical, com a qual estaria cada vez mais envolvido nos meses seguintes. Em Verdade tropical, Torquato surge ainda como um dos roteiristas do programa de Gil na Frente Única (em julho de 1967), estando envolvido no plano do “escândalo antinacionalista” com base em Roberto Carlos. Não tendo sido realizado naquele momento, o gesto de ruptura do tropicalismo acabaria se dando apenas no Festival (em outubro), sobre o qual Caetano afirma: “tendo assumido a tarefa que Gil tão claramente delineara, decidi que no festival de 67 nós deflagraríamos a revolução”133. Mais uma vez, a narrativa de Caetano sugere um “nós” engajado em um movimento revolucionário, o que distancia sua versão da de Gil. O Torquato da entrevista com Augusto de Campos em 1968 está mais perto desta versão, enquanto o Torquato colunista de 1967 aproxima-se mais daquela. O livro registra também a participação de Torquato Neto no disco coletivo, para o qual o compositor contribuiu com duas letras: “Mamãe coragem” e “Geleia geral”. Caetano explica que esta última canção é considerada por muitos como a letra manifesto do movimento, mais ainda que a sua “Tropicália”. Na sequência da narrativa, porém, afirma que “Torquato estava se tornando um tropicalista sectário”134, sem explicar as razões das discordâncias e sequer especificar a época a que se refere. De todo modo, fica indicado aqui o distanciamento do compositor da linha principal de ação dos tropicalistas na segunda metade de 1968. Não deixa de ser emblemático pensar que “sectário” apresenta parentesco com a ideia de que Torquato passava cada vez mais à margem do movimento (entenda-se do “tropicalismo musical”). O percurso que evidencia o afastamento do poeta e sua inclinação à marginália, porém, não aparece no livro, exceto quando se comenta brevemente a defesa que o poeta começa a fazer do cinema marginal em detrimento ao cinema novo.

132 Um problema de redação no texto de Torquato gera uma ambiguidade que dá a impressão de que a oração aditiva “E Geraldo Vandré” refere-se à imediatamente anterior (“Gilberto Gil também vai usar guitarra”), quando, evidentemente, seu referente é “como o público reagirá à canção...”): o público e Geraldo Vandré. 133 VELOSO, 2008, p. 160. 134 VELOSO, 2008, p. 216. 175

2. Retrato dos artistas

No artigo “Festival de viola e violência” (1967), ao comentar o III Festival da TV Record, Augusto de Campos faz a seguinte observação: Ampliando a milhões de espectadores essa audiência, a princípio restrita e especializada, e dando à música uma organização empresarial de notável eficiência publicitária, através de uma série variada de programas – O Fino da Bossa, Pra Ver a Banda Passar, Disparada, Ensaio geral, Esta Noite se Improvisa etc, a televisão guindou muitos dos compositores e intérpretes à categoria de “mitos” da arte de consumo, como os astros de cinema e jogadores de futebol. (CAMPOS, 2008, p. 128)

Já comentamos, neste trabalho, a tese de Edgar Morin sobre as novas mitologias do século XX, que fizeram das vedetes da grande imprensa (astros do cinema e da música, campeões do esporte e demais artistas célebres) os “olimpianos modernos”.135 Assim, Augusto de Campos sinaliza o nascimento dos mitos da cultura de massas brasileira, especialmente a partir do desenvolvimento da televisão na segunda metade dos anos 1960 e de seus programas musicais, que podem ser compreendidos na sequência das produções típicas do rádio. É justamente a geração de Caetano e Gil que se encontra no começo desse processo. Verdade tropical, ao contar a trajetória da geração dos anos 1960 da canção popular, também está narrando o processo de conversão de seus personagens em mitos da cultura de massas. Para tanto, o autor procede à observação atenta dos interesses mercadológicos, políticos e individuais que servem de vetores a essas construções. Além disso, evidencia o modo dúbio como o tropicalismo agiu, na medida em que se valeu desse mesmo processo propagandístico (fruto da “organização empresarial de notável eficiência publicitária”) para intervir nas mitificações, ora aderindo a elas, ora desmascarando-as. Em outras palavras, os procedimentos empregados pelos tropicalistas fizeram com que estes pudessem “entrar e sair” de todas as estruturas136. É sob esse prisma que deve ser compreendida a observação de Eucanaã Ferraz sobre o “repúdio” de Caetano Veloso ao mito, que seria “um congelamento ideológico em tudo oposto à mobilidade praticada pelo

135 Cabe notar aqui que L’espirit Du temps teve sua primeira publicação em 1962, cinco anos antes do ensaio de Augusto de Campos. 136 Vale lembrar que, no discurso de Caetano Veloso durante a apresentação de “É proibido proibir”, o artista afirma: “Mas eu e Gil já abrimos o caminho. [...] Nós, eu e ele, tivemos coragem de entrar em todas as estruturas e sair delas”. 176

artista”.137 Vale lembrar que essa mobilidade se afirma não só em suas canções e apresentações, mas também em suas constantes entrevistas e publicações. A dualidade entre a adesão provisória e o desmascaramento também pode ser encontrada em Verdade tropical, onde a narrativa dos bastidores e das intenções dos agentes históricos do tropicalismo (e também daqueles que se opuseram a ele) favorece a reflexão sobre as mitologias criadas em torno dos personagens de nossa cultura de massas. Assim, demonstra-se como a indústria de entretenimento produziu (ou reforçou) antagonismos, distribuiu personagens entre os papéis de heróis e mocinhos138, e ainda, tentou personificar identificações socioespaciais (o sambista do morro, o cantor nordestino etc); mas também como o movimento tropicalista se relacionou com essas representações. Na obra Mitologias, que reúne textos da década de 1950, Roland Barthes afirma que a função do mito seria a de transformar história em natureza, e, desse modo, esvaziar a realidade de seu componente histórico, substituído por um aspecto ilusoriamente natural. Pode-se afirmar que essa lógica, evidentemente, é aplicável à mitificação dos ídolos populares pelos veículos de comunicação de massa. Por isso, é possível observar que Verdade tropical age no sentido de desnaturalizar esses mitos, devolvendo-os ao processo histórico de suas construções e tornando visíveis os vetores que dele participam. Por outro lado, embora o autor tenha contribuído para dar visibilidade a esses esquemas, é preciso atentar para o universo mítico que se revela no mesmo passo em que as desconstruções são feitas. No artigo “Carmen Miranda dada”, Caetano Veloso pondera que o Brasil, diferentemente da Argentina, “não costuma guardar vivas na memória suas figuras de massa”, “sejam líderes políticos ou cantores de música popular”139. A partir disso, é importante observar que Verdade tropical empreende um gesto de preservação da memória das grandes figuras de massa do país, mas também das mitologias que se criaram em torno delas. Por isso, o autor não se furta a investir no traço extraordinário das personalidades envolvidas e da trajetória narrada. Confluem para essa dimensão não só o caráter pop da aventura tropicalista (e de seus célebres personagens), mas também a atmosfera mítico- sebastianista que promete revelar um Brasil que tem “destino de grandeza”. Assim, as mitologias da cultura de massas são, simultaneamente, cultivadas e desconstruídas no livro,

137 FERRAZ apud VELOSO, 2005, p. 16. 138 Um exemplo é o depoimento do diretor da Record, Paulo Mendes de Carvalho, que afirma no documentário Uma noite em 67 que os festivais foram pensados, tais como os espetáculos de luta livre, a partir de categorias narrativas prévias, relacionadas aos papéis de mocinhos e violões. 139 VELOSO, 2008, p. 74. 177

sendo enriquecidas pelos vínculos fundamentais com a realidade histórica e social concreta: de um lado, o processo de construção desses mitos; de outro, a observação de como são capazes de “fecundar” a vida real, apontando possibilidades criativas, soluções, caminhos. É preciso, portanto, observar como as relações entre mito e realidade vão sendo desenvolvidas em Verdade tropical, e ainda quais são os personagens escolhidos e como seus perfis são traçados. Cabe sinalizar também que esses artistas são retratados no início de suas carreiras, de modo que não devemos pensar que a narrativa se ocupa de fornecer uma visão definitiva sobre eles, mas simplesmente refletir sobre a posição que ocupavam em relação ao tropicalismo, exatamente ao longo dos anos 1960, quando passaram de artistas desconhecidos a ídolos (e mitos) da canção popular. Assim, Caetano Veloso procede também à composição do retrato dos artistas quando jovens: os personagens a serem descritos são apresentados diante dos impasses de suas decisões estéticas, das pressões mercadológicas, de suas referências artísticas, de suas participações nos debates políticos e culturais daquele momento.140 Desse modo, os hoje ídolos da canção popular aparecem no início de suas carreiras, tendo conhecido muito cedo o sucesso, a engrenagem da indústria de discos e da televisão, e o próprio processo de mitificação. Os perfis traçados nas páginas de Verdade tropical devem ser analisados sob tal prisma. Dentro desse universo, poderíamos pensar Carmen Miranda como uma espécie de mito original da cultura brasileira (pertencendo a uma geração anterior); Roberto Carlos como o rei mítico do Brasil; o episódio de Maria Bethânia substituindo Nara Leão como evento inaugural de um novo ciclo; os futuros doces bárbaros como protagonistas da aventura (Caetano Veloso, Gilberto Gil e Gal Costa, junto à própria Bethânia, embora esta não tenha aderido diretamente ao movimento); Mutantes e Tom Zé como coadjuvantes; Jorge Ben como referência paralela. Por fim, no papel de não-adeptos (ou de antagonistas), destacam-se Paulinho da Viola, Elis Regina, Geraldo Vandré e Chico Buarque. Outros nomes do olimpo da cultura de massas do Brasil aparecem em relação a estes personagens e são resgatados segundo o gesto tropicalista de iluminar o passado. Assim, Dorival Caymmi, Carmen Miranda e Orlando Silva colocam-se na narrativa como

140 Para ilustrar, vale lembrar que, em 1965, Roberto Carlos completou 24 anos; Caetano Veloso, Gilberto Gil, Nara Leão e Paulinho da Viola, 23; Edu Lobo, 22; Chico Buarque, 21; Gal Costa e Jorge Ben, 20; e Maria Bethânia 19; os mais velhos, Geraldo Vandré, 30 e Tom Zé, 29; os mais novos (que só no ano seguinte começariam suas atividades como Mutantes), Rita Lee e Arnaldo Baptista, 17 e Sérgio Dias, apenas 14. 178

personagens principais do período anterior à bossa nova; João Gilberto, Tom Jobim e Vinicius de Moraes como protagonistas deste movimento. Não se deve esquecer que estes nomes da tradição, bem como os nomes dos demais personagens foram escolhidos e destacados segundo a intenção do autor de contar a história do movimento tropicalista, não da canção popular no Brasil. Por isso, os nomes que, embora fundamentais, não aparecem enfatizados ou sequer citados não foram excluídos no âmbito de uma história da música brasileira, mas de uma narrativa específica sobre o tropicalismo.

2.1. Carmen Miranda, o mito original

Carmen Miranda tem seu perfil traçado em Verdade tropical no capítulo “2002”, quando Caetano Veloso registra que os discos da cantora (assim como os de Orlando Silva) eram frequentemente ouvidos na vitrola do apartamento. O autor comenta ainda que o sucesso em Hollywood havia contribuído para torná-la uma figura algo caricata, que provocava certa vergonha para a geração do artista. Nesse sentido, os tropicalistas perceberam que a simples menção a seu nome poderia funcionar como uma “bomba” no âmbito da música brasileira: [...] o lançar-se tal bomba significava igualmente a decretação da morte dessa vergonha pela aceitação desafiadora tanto da cultura de massas americana (portanto da Hollywood onde Carmen brilhara) quanto da imagem estereotipada de um Brasil sexualmente exposto, hipercolorido e frutal (que era a versão que Carmen Miranda levava ao extremo) – aceitação que se dava por termos descoberto que tanto a mass culture quanto esse estereótipo eram (ou podiam ser) reveladores de verdades mais abrangentes sobre cultura e sobre Brasil do que aquelas a que estávamos até então limitados. (VELOSO, 2008, p. 262)

No primeiro capítulo deste estudo, avaliamos que o tropicalismo não se limitava a negar visões estereotípicas (especialmente as lançadas pelo olhar estrangeiro), mas que buscava trazer à tona o que nelas pudesse ser sugestivo. Com isso, o movimento representou uma oposição às forças que reprimiam a emergência de características nacionais, sejam elas coagidas por padrões de bom-gosto, distorcidas por uma visão não- familiar ou excluídas por serem inconvenientes para determinadas intenções políticas subjacentes às representações artísticas. A “bomba” na citação insere-se no campo semântico da guerra contra a visão nacional-popular, que, segundo o autor, rejeitava a cultura de massas americana e restringia (em função de suas escolhas) a apreensão de aspectos importantes do Brasil e de

179

sua cultura. Carmen Miranda funcionaria, portanto, como um ataque a essa perspectiva, agindo no sentido de desobstruir a manifestação do aspecto “sexualmente exposto, hipercolorido e frutal” que a artista, por meio de Hollywood, consolidou. Com isso, o tropicalismo incorporou Carmen Miranda como fonte importante de discussão sobre o país. É nesse sentido que devemos compreender a citação à artista no verso que encerra a canção “Tropicália”, que, segundo Caetano, é uma justaposição de “ideias e entidades reveladoras da tragicomédia Brasil”141. O autor explica ainda que, no brado “Viva Carmen Miranda da-da-da-da”, a repetição da sílaba final ecoa o nome de Dadá (a companheira do cangaceiro Corisco, aludida em Deus e o diabo na terra do sol) e também a designação da vanguarda europeia do início do século XX. A sobreposição das figuras femininas de Carmen Miranda e Dadá cria um paradoxo entre o Brasil alegre, festivo, colorido do carnaval, e o Brasil miserável, árido e violento do cangaço. Vale observar que o pobre idealizado (“o povo” requerido pela visão nacional- popular) aparece excluído dessa formulação. A relação com a vanguarda dadá explica-se pelo aparente ilogismo do conjunto, e sua força de ruptura enquanto representação cultural. Alguns fragmentos do Manifesto de Tristan Tzara (1918) contribuem para a reflexão: Escrevo este manifesto para mostrar que é possível realizar ações contrárias ao mesmo tempo, em um só fôlego fresco; sou contra a ação; quanto à contínua contradição, quanto à afirmação também, não sou a favor nem contra e não me explico porque detesto o bom senso. [...] Existe uma literatura que não atinge as massas vorazes. Obra de criadores, produto de uma verdadeira necessidade do autor, e para ele. Consciência de um supremo egoísmo, ou a madeira se estiolando. Cada página deve explodir, seja pela seriedade profunda e pesada, o turbilhão, a vertigem, o novo, o eterno, pelo absurdo desconcertante, pelo entusiasmo dos princípios ou pela forma como está impressa. [...] Nós rejeitamos a inclinação chorona em nós. [...] Precisamos de obras fortes, diretas, precisas e para sempre incompreendidas. A lógica é uma complicação. A lógica é sempre falsa. [...] Todo produto da aversão suscetível de se tornar uma negação da família é dadá; protesto com toda a sua força em ação destrutiva: DADÁ; conhecimento de todos os meios rejeitados até agora pelo sexo pudico do compromisso cômodo e da polidez: DADÁ; abolição da lógica, dança dos incapazes de criação: DADÁ; de toda hierarquia e equação social estabelecidas pelos valores por nossos criados: DADÁ; [...]. Liberdade: DADÁ DADÁ DADÁ, alarido de dores crispadas, entrelaçamento dos contrários e de todas as contradições, dos grotescos, das inconseqüências: A VIDA.

141 VELOSO, 2008, p. 179. 180

Assim, a representação de Carmen Miranda (em si mesma, mas também intensificada pela aproximação com a personagem Dadá do cangaço) apresenta-se como “absurdo desconcertante”, como imagem contraditória e grotesca que contesta o bom senso e a lógica. É também a rejeição à inclinação “chorona” (que pode ser associada à visão nacional-popular142); é, portanto, desejo de força, violência, incompreensão. É, por fim, a descoberta dos “meios rejeitados pelo sexo pudico do compromisso cômodo e da polidez”, indicando a ruptura com as proposições da moral burguesa europeia. Além disso, é importante perceber que se o manifesto sinaliza a existência de “uma literatura que não atinge as massas vorazes”, podemos ver Carmen Miranda, de modo muito particular, como uma expressão artística que as atinge, isto é, como uma experiência dadá de massas de alcance internacional. Vale lembrar que a artista apresenta-se também como uma representação do carnaval brasileiro, evento que se vincula diretamente ao “hipercolirido” e ao “sexo exposto”, e que também permite a suspensão provisória da lógica, põe em jogo as hierarquias e afirma a liberdade. Além disso, o autor vê na imagem de Carmen um “aspecto travesti” (figura que também flerta com o universo carnavalesco tanto quanto com o da marginalidade), que reforça os laços de expressão alternativa da sexualidade, de afirmação do contraditório, de negação da moral da família conservadora. Essas observações também se relacionam diretamente ao artigo escrito para o New York Times que deu origem a Verdade tropical. “Carmen Miranda dada” (1991) começa exatamente falando sobre o misto de orgulho e inveja que Carmen Miranda inspirava na geração de Caetano: a vergonha pela estereotipação internacional do Brasil a partir do samba, da festividade e das frutas tropicais que consagraram seu figurino; o orgulho por ser a única artista brasileira reconhecida mundialmente (já tendo sido a mais bem paga de Hollywood) e ser também a expressão da América Latina que conquistou de forma mais contundente os EUA. Caetano relata que, em função dessa ambiguidade, a atitude mais comum de sua geração era evitar falar sobre Carmen Miranda. A evocação da artista pelo tropicalismo como gesto de “violência intelectual” aparece também no artigo: Um movimento cultural que veio a se chamar tropicalismo tomou-a [a Carmen Miranda] como um dos seus principais signos, usando o mal- estar que a menção de seu nome e a evocação de seus gestos podiam

142 É possível estabelecer uma aproximação entre a visão nacional-popular e o “realismo” no âmbito artístico, contra o qual se voltavam, de modo geral, as vanguardas do início do século. 181

suscitar como uma provocação revitalizadora das mentes que tinham de atravessar uma época de embriaguez nas utopias políticas e estéticas, num país que buscava seu lugar na modernização e estava sob uma ditadura militar.[...] A canção manifesto “Tropicália”, homônima da obra de Oiticica, termina com o brado “Carmen Miranda da-da dada. Ela era nossa caricatura e nossa radiografia (VELOSO, 2005, p. 75)

A metáfora da embriaguez vincula-se à falta de clareza, à confusão, à ilusão e, mesmo, ao estado de exaltação e irracionalismo que permeava, segundo o autor, as discussões políticas e estéticas do contexto. A evocação de Carmen Miranda agiria, portanto, como uma forma de combater o entorpecimento, ou seja, funcionaria como um chamado à razão, à reflexão crítica, ao esclarecimento sobre o país. Nesse sentido, a observação da ambiguidade de Carmen Miranda permite a seguinte proposição: sendo “caricatura”, ressalta-se o estereótipo e o ridículo de sua imagem, metonimicamente transportando para o Brasil os sentidos que evoca; por outro lado, sendo “radiografia”, apresenta-se como possibilidade de examinar e revelar aspectos não evidentes do país. A “provocação revitalizadora” consiste na tentativa de refletir sobre essa equação. Outro ponto importante do artigo é a afirmação de que Carmen Miranda está sempre presente em qualquer fato novo que chame atenção do mundo para o Brasil. Essa permanência relaciona-se com o paradigma de cultura tropical que se consolidou internacionalmente, de modo que todas as expressões do Brasil (e, de modo mais amplo, da América Latina) que ganharam visibilidade internacional acabaram (acabam), em alguma medida, remetendo à artista. A menção a Hélio Oiticica permite acrescentar mais uma camada às discussões. É preciso lembrar que a exposição Tropicália insere-se no contexto da nova objetividade, definida pelo artista como a chegada de múltiplas tendências que apresentam como elemento comum o não-conformismo em relação aos paradigmas mentais, estéticos, morais, raciais e culturais consagrados pela Europa (e, posteriormente, pelos Estados Unidos). Desse modo, o “mito da tropicalidade”, que se exemplifica com a instalação, estaria relacionado à ruptura em relação a essas estruturas, abrindo novos caminhos e questionando a própria dominação cultural europeia e estadunidense. Vale lembrar que, na mesma definição, Hélio já procedia à aproximação da “nova objetividade” com o dadá, justamente em relação à falta de unidade de pensamento, para além da postura vanguardista de ruptura e não-conformismo.

182

Com isso, é possível afirmar que Carmen Miranda constitui também um exemplo contundente desse mito da tropicalidade, com as frutas tropicais à cabeça, os balangandãs, a musicalidade, a alegria, o gingado. O eco vanguardista dessa “experiência dadá de massas”, de legibilidade internacional, coloca a figura da artista (no conjunto de manifestações que representa, enquanto imagem, música e dança, mas também de seu componente kitsch) como uma contestação ampla das estruturas estabelecidas pelos modelos dominantes que determinam os padrões estéticos e culturais. Ainda no mesmo artigo, Caetano Veloso analisa com mais detalhe a relação do Brasil com essa vanguarda: Quanto ao Brasil, houve quem dissesse que o surrealismo era o único realismo possível na América Latina pois o cotidiano da miséria é surreal. Nós, os tropicalistas, [...] achávamos que o Dada nos dizia mais respeito que o surrealismo: era o inconsciente não estetizado, era a não-explicação do inexplicável. Era também o contrário de nos prendermos ao absurdo formalizado: era termos optado antes de tudo pela liberdade como tema fundamental. (VELOSO, 2005, p. 80)

Se o dadá é “a não-explicação do inexplicável” e também “o inconsciente não- estetizado”, podemos inferir que o surrealismo seria “a explicação do inexplicável” e, ainda, uma forma de estetização do inconsciente. Assim, se o surrealismo pretendia afirmar a lógica do inconsciente e convertê-la em experiência formal, o dadá apresentava- se como gesto ainda maior de liberdade, recusando-se de modo mais abrangente a qualquer lógica, premissa ou princípio. A “liberdade como tema fundamental” foi justamente o que permitiu romper com as estruturas estabelecidas (não só limitadoras, mas também subordinantes) e afirmar, a partir de um hipotético inconsciente brasileiro, as possibilidades de ruptura, criação, insubordinação. Foi também a proposição de um desrecalque que não necessitava de explicação (nem deveria ser explicado), portador em si mesmo, da revelação de uma realidade. Além disso, essa liberdade refere-se também à opção de não seguir uma representação brasileira pautada apenas na miséria “surreal” (a alusão à vanguarda funciona no fragmento como adjetivo referente ao irracional, ao inacreditável). Aqui ecoa novamente a oposição ao imaginário nacional-popular e sua ênfase na pobreza estetizada, explicada e instrumentalizada para a finalidade revolucionária pelas vias da conscientização e da mobilização. É no cruzamento de todas essas questões que se insere a

183

evocação de Carmen Miranda pelos tropicalistas, revelando em si mesma os aspectos de um Brasil inexplicável pela lógica dominante do mundo ocidental. A relação com o dada é retomada na conclusão do texto, quando se comenta a fotografia em que Carmen Miranda aparece, involuntariamente, com o sexo à mostra143. O autor associa esse fato à carta de Pero Vaz Caminha (citada, aliás, na introdução da canção “Tropicália”), na qual o escrivão relata ao rei que as índias não cobriam “suas vergonhas”. A conclusão de Caetano é surpreendente: Pensei que não deixava de ser significativo que a nossa representante fosse a única do olimpo hollywoodiano a exibir sua vergonha. E que tivesse feito, por descuido, inocentemente. “Vergonha” é uma palavra que atravessa este artigo, desde o primeiro parágrafo. Mas tal visão me causou antes orgulho do que mal estar. Nos braços de César Romero, sorriso hollywoodianamente puro nos lábios, cercada de brilhos cheios de intenção e controle, tudo em torno dela parecia obsceno perto da inocência de seu sexo. A iluminação, o cenário, a pose, a fantasia eram Carmen Miranda. O sexo exposto era Dada. (VELOSO, 2005, p. 81)

Em primeiro lugar, é importante destacar a própria carta de Pero Vaz Caminha (e a literatura quinhentista de modo geral) como fonte importante do “mito da tropicalidade”, que liga Hélio Oiticica ao tropicalismo musical. Além disso, é preciso observar um dado de ambiguidade em seu relato, que, de um lado, apresenta-se como registro etnocêntrico (vendo a exposição das partes “íntimas” como “vergonha” e propondo a “salvação” para aquela gente); mas, de outro, associa-se ao deslumbramento do português com a nudez indígena e com a beleza do Novo Mundo. É interessante perceber também como o sexo à mostra das nativas representava – em si mesmo, isto é, inconscientemente – a negação do conjunto de valores europeus que consubstancia a designação metonímica do corpo como vergonha. Para ajudar na reflexão, vale lembrar que a interpretação do mito da tropicalidade foi enriquecida pela leitura de Sérgio Buarque de Holanda em sua célebre obra de 1959, Visão do paraíso: A ideia de que do outro lado do Mar Oceano se acharia, se não o verdadeiro Paraíso Terreal, sem dúvida uma símile em tudo digno dele, perseguia, com pequenas diferenças, a todos os espíritos. A imagem daquele jardim fixada através dos tempos em formas rígidas, quase invariáveis, compêndio de concepções bíblicas e idealizações pagãs, não se podia separar da suspeita de que essa miragem devesse ganhar corpo

143 A fotografia de Carmen Miranda com César Romero foi tirada durante as filmagens de Springtimes in the rockies, filme estadunidense de 1942. 184

num hemisfério ainda inexplorado, que os descobridores costumavam tingir da cor do sonho. E a suspeita conseguia impor-se até mesmo aos mais discretos e atilados, àqueles cujo espírito se formara no convívio assíduo com os autores da Antiguidade. (HOLANDA, 2010, p. 273) Assim, os motivos edênicos influenciaram diretamente a visão que se tinha sobre a terra recém descoberta, levando a uma equação particular entre o imperativo de catequizar e civilizar os índios, e a admiração com o Novo Mundo – com a pureza, a beleza e o vigor da população nativa, e com a natureza exuberante e diversificada. O mito da tropicalidade está diretamente relacionado, portanto, à possibilidade de construir outra forma de vida e de organização social. As formulações artísticas que retornam a esse imaginário acabam por reeditar o convite à ruptura com antigos paradigmas e à construção de outros caminhos para a civilização ocidental. A análise de Caetano sobre a foto de Carmen Miranda deve ser vista sob essa luz, porém, atualizada para um cenário no qual os Estados Unidos haviam expandido seu modo de vida e de cultura. Veja-se, nesse sentido, que a dimensão simbólica da foto é intensificada na medida em que Carmen Miranda era a única representante do Brasil no olimpo hollywoodiano de então, isto é, no acervo das mitologias produzidas pela cultura de massas internacional (com ênfase aqui na indústria de cinema dos EUA). O “sorriso hollywoodianamente puro” da artista corrobora sua inserção naquele universo, do qual foram destacados os elementos formais que participam da elaboração proposital da ficção cinematográfica. A conclusão mostra como a figura de Carmen Miranda é também uma construção artificiosa (portanto, obscena), desenvolvida nos moldes americanos (inclusive agindo no sentido de sua estereotipação), através dos recursos formais da iluminação, do cenário, da pose e do figurino. Ao afirmar que o sexo exposto era dadá, Caetano Veloso sugere a potência de seu mito enquanto rompimento das estruturas estabelecidas, revelando inocência onde o conjunto de valores instituídos no mundo ocidental enxerga a vergonha, e abrindo caminhos a partir da pureza de sua nudez tropical. Há, por fim, outro aspecto do artigo “Carmen Miranda dada” que vale mencionar e relaciona-se ao momento em que o texto fala sobre como a bossa nova havia enfim representado a exportação de um produto acabado e de boa qualidade para o mundo. Segundo o autor, até mesmo a gravação de João Gilberto e Astrud Gilberto acabam remetendo à sempre presença de Carmen Miranda. Por isso, Caetano fala não só sobre como aquela cantora insinua uma versão cool-jazz desta, mas, de modo inusitado, afirma que a própria garota de Ipanema parece usar frutas na cabeça.

185

Desse modo, Caetano Veloso sobrepõe duas imagens de mulher brasileira, relacionadas à canção popular, que ganharam legibilidade internacional. Isso reforça a ideia de que Carmen Miranda é evocada a cada vez que um artista (ou estilo) brasileiro vem se somar à galeria de ícones nacionais conhecidos fora do Brasil. A artista pode ser vista, portanto, como uma espécie de mito original, ao qual sempre retorna o olhar estrangeiro quando quer resgatar a imagem do país. Ainda no mesmo artigo, Caetano Veloso busca as razões para o reconhecimento internacional de Carmen Miranda, especialmente nos EUA. Para tanto, observa que o Brasil torna-se notável no exterior muito mais pelo que diz respeito à magia, ao mistério e à alegria, do que pela competência (tão valorizada pelos americanos do norte). E é por esse viés que procura explicar o sucesso de Carmen, indicando, para além de sua magia, sua competência, sua vocação para a arte final, para a estilização do gestual e da dança, para o ataque preciso das notas. Além disso, a leitura de Brasil proposta por Caetano no livro encontra no artigo alguns de seus pontos fundamentais. Em primeiro lugar, devemos notar a relação traçada entre o reconhecimento internacional do Brasil e os momentos em que o país foi capaz de combinar a magia (a criatividade, a alegria, o mistério) com a competência. Seria exatamente isso que aconteceu com a bossa nova e, antes, já havia acontecido com Carmen Miranda, o que se apresenta como um caminho possível para o Brasil. Por fim, é preciso lembrar que o artigo “Carmen Miranda da-da”, de 1991, foi o gerador da proposta do editor do New York Times para que Caetano fizesse o livro contando a história do tropicalismo. Nesse sentido, a vereda que leva à Verdade tropical começa também em seu mito. Carmen Miranda está sempre presente.

2.2. O rei Roberto Carlos

O cantor e compositor Roberto Carlos é um personagem fundamental para a compreensão do tropicalismo, aparecendo frequentemente na narrativa de Verdade tropical, em vários de seus episódios decisivos. Em primeiro lugar, trata-se de uma das maiores figuras da cultura de massas do Brasil, especialmente a partir da consolidação da TV como veículo principal de sua propagação. Além disso, seu mito concentra elementos que sugerem uma ponte entre João Gilberto e Elvis Presley, na encruzilhada entre bossa nova e rock’n’roll que marcou a passagem dos anos 1950 para os 1960. Por fim, sua

186

ambiguidade política e sua popularidade podem revelar vínculos profundos com os modos de ser do Brasil. O título de “rei” não é pouco significativo para todas essas dimensões. A trajetória do artista em Verdade tropical começa no perfil traçado em “Elvis e Marylin” e na referência ao conselho de Bethânia em “Bethânia em Ray Charles” (ainda na parte 1), retomado na linha temporal em “Paisagem útil”, já na parte seguinte. Na parte 2, Roberto Carlos aparece como co-autor de “Meu nome é Gal” e tema latente das reuniões de Gil (em “Domingo”); depois na afirmação de sua importância no escândalo antinacionalista planejado para o programa Frente Única da MPB (em “Alegria, alegria”), no comentário sobre o dueto televisivo com Orlando Silva (em “Panis et circensis”) e, ainda, na performance baseada em sua canção “Um leão está solto nas ruas” no programa tropicalista da TV Tupi (em “Divino, maravilhoso”). Na Parte 4, conta-se a visita de Roberto Carlos a Caetano Veloso em Londres (em “London, London”) e, por fim, a inclusão de “Quero que tudo vá pro inferno” no repertório do show de Caetano que marcou seu retorno ao Brasil (em “Ame-o ou deixe-o”). Na maior parte desses episódios, Roberto Carlos aparece não como agente, mas como elemento incorporado às canções e às apresentações tropicalistas, ou ainda, como fonte das discussões que lhe são inerentes. Convém, então, aprofundar a análise de alguns desses eventos e também do perfil traçado por Caetano Veloso, no intuito de compreender o mito Roberto Carlos e o que sua incorporação pelo movimento significa a nível estético e ideológico. Em “Elvis e Marylin”, Roberto Carlos é apresentado como o líder talentoso e carismático do programa Jovem Guarda: [Roberto Carlos] poderia, com boas razões, ser chamado de o Elvis do Brasil: em plena maturidade da bossa nova, tornou-se um fenômeno de vendas cantando o quase rock “Quero que vá tudo pro inferno”, recebeu reprimendas das autoridades eclesiásticas (e então compôs ‘Eu te darei o céu’) e foi chamado de rei, título que ostenta até hoje, sem que ninguém lho negue, quando canta baladas sentimentais para um público de meia idade. (VELOSO, 2008, p 42-3)

A descrição encontra-se perpassada de ambiguidades, construídas sobre as linhas nevrálgicas das discussões do livro. Vale lembrar que o fim dos anos 1950 foi marcado por uma encruzilhada de estilos: a força do rádio com suas canções de fossa ou de carnaval, encontrando-se com o início da bossa nova e, simultaneamente, com a chegada da cultura de massas internacional (através do cinema e do próprio rádio), especialmente a partir da

187

música rock, centrada na figura de Elvis e de todo comportamento jovem que viria nessa sequência. Roberto Carlos parece sinalizar ainda mais profundamente essa zona de transição, na medida em que começou a carreira buscando um espaço na Rádio Nacional (cantando canções românticas), depois se interessou por João Gilberto (cujo canto minimalista deixou marcas fundas em seu próprio canto), em seguida, passou a ser o grande representante das primeiras feições do rock no Brasil, para, por fim, retornar às baladas românticas, que o tornaram tão popular até hoje (este advérbio dêitico continua sendo válido, mesmo vinte anos depois). A expressão “o Elvis do Brasil” marca um opção sintagmática que torna Elvis a metonímia do ídolo da cultura de massas centrada na figura jovem, “rebelde” e popular. Tal escolha sintática ocorre em detrimento a “o Elvis brasileiro”, que conferiria certa aura inautêntica ao artista, ao sugeri-lo como cópia do rei estrangeiro, em vez de apresentá-lo como seu equivalente tropical, tal como fica posto. De fato, as baladas de Roberto Carlos e da jovem guarda aproximam-se das canções de Elvis (e da primeira produção dos Beatles) e do imaginário de seus filmes (e também dos de James Dean), inclusive assimilando o universo mítico de carros, garotas, juventude e “rebeldia sem causa”.144 Aliás, Roberto Carlos também protagonizou filmes, com destaque para Roberto Carlos em ritmo de aventura, gravado em 1967 e marcado por diversas passagens metalinguísticas de finalidade humorística, aportando-se frequentemente ao gênero dos filmes de Elvis Presley e James Dean, e trazendo um herói-cantor que consegue sempre fugir de violões ao som da eufórica “Eu sou terrível”. Depois, participou de Roberto Carlos e o diamante cor-de-rosa de 1970, que o levou a Londres para gravações na ocasião em que visitou Caetano no exílio; e, por fim, Roberto Carlos a 300 quilômetros por hora, seu último filme, lançado em 1971. Tudo isso reforça a correspondência entre o rei estrangeiro e o rei brasileiro, inclusive a transição, ao longo de suas carreiras, do rock’n’roll para as baladas românticas. Voltando ao fragmento, Caetano faz menção a “Quero que tudo vá para o inferno”, de 1965, marco decisivo na carreira de Roberto Carlos. Apesar de precedida por sucessos

144 Esse imaginário rock é reforçado pelo cinema: não só com James Dean se tornando um mito da juventude rebelde (com destaque para filmes como Rebel without a cause, de 1955, e Giant, de 1956 – traduzidos respectivamente por Assim caminha a humanidade e Juventude transviada), mas também com o próprio Elvis, protagonizando aventuras como Jailhouse Rock (1957), King Creole (1958) e Roustabout (1964) – conhecidos no Brasil, respectivamente, como O prisioneiro do rock, Balada sangrenta e Carrossel de emoções. 188

como “Splish, splash” e “Parei na contramão” (de 1963) e, ainda, por “É proibido fumar” e “O calhambeque” (1964), a canção tornou-se um divisor de águas, trazendo muito sucesso e culminando no programa jovem guarda na TV Record no mesmo ano. Vale chamar a atenção para a expressão “quase rock”, criando matizes entre as diferentes formas do gênero, fundamentalmente porque interessa a Caetano Veloso não só perceber uma linha de mudanças das primeiras manifestações do rock internacional, (de rebeldia mais ingênua para o amadurecimento dos movimentos contraculturais), mas também localizar Roberto Carlos na sequência do surgimento (e do desenvolvimento) do rock no Brasil. Por outro lado, ainda no segmento citado, Caetano Veloso afirma que o “rei” também teve influência de João Gilberto. Informa ainda que Roberto Carlos, no início de sua carreira, era também um “seguidor” do artista, tendo inclusive gravado um compacto com pastiches de bossa nova145. Isso seria, para o narrador-intérprete, a principal “condição da abrangência de seu sucesso e do peso de sua presença na cultura histórica brasileira recente”, mas, ao mesmo tempo, a evidência de “o quão afastado de uma genuína sensibilidade rock’n’roll formou-se seu estilo”.146 Dito isso, vale lembrar que Roberto Carlos aparece também como elemento importante da reflexão de Augusto de Campos sobre a canção popular, em um dos textos fundadores da narrativa sobre o tropicalismo. O artigo “Da jovem guarda a João Gilberto” de 1966 discute, como se sabe, como Elis Regina seria determinante, a um só tempo, para a popularização da bossa nova e para sua descaracterização: Enquanto isso [enquanto Elis Regina acentuava os exageros interpretativos], jovem-guardistas como Roberto ou Erasmo Carlos cantam descontraídos, com uma espantosa naturalidade, um à vontade total. Apesar do iê-iê-iê ser música rítmica e animada e ainda que os recursos vocais, principalmente de Erasmo, sejam muito restritos, estão os dois Carlos, como padrão de uso da voz, mais próximos da interpretação de João Gilberto do que Elis e muitos outros cantores de música nacional moderna, por mais que isso possa parecer paradoxal. (CAMPOS, 2008, p. 55)

E completa:

Além dessas características vocais, que parecem estar sintonizadas com o padrão interpretativo da BN e que dão à nossa jovem guarda uma certa nota brasileira, podem ainda os seus cantores incorporarem o ruído e o som desarticulado, propendendo para a anti-música, revolução saudável

145 Referência ao 78 rpm lançado em 1958 com as canções “João e Maria” e “Fora do tom”, ambas composições de Carlos Imperial, sendo a primeira uma parceria com Roberto Carlos. 146 VELOSO, 2008, p. 43. 189

que já tem maiores pontos de contato com o iê-iê-iê internacional (Beatles etc.). (Idem)

Enquanto se discutia a importação do modelo estrangeiro por Roberto e Erasmo como uma oposição à música nacional, Augusto observou que o elemento formal do canto da jovem guarda aproximava-se de João Gilberto e da brasilidade da bossa nova, inserindo os artistas na linha de uma tradição da canção popular do Brasil e encontrando denominadores comuns para a geração que veio sob o influxo desse estilo. A troca de perspectiva faz com que Elis Regina (que, naquele momento, defendia as “tradições” da música nacional) estivesse, em certo aspecto, mais distante desse objetivo que seu antagonista Roberto Carlos. Além disso, o autor aponta também para a possibilidade de os cantores da jovem guarda seguirem o percurso do iê-iê-iê internacional, incorporando elementos estéticos como o “ruído” e “o som desarticulado”. Augusto, em 1966, citando “Beatles etc”, já estava pressentindo a chegada de Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band, que só foi lançado no ano seguinte, trazendo uma série de experimentações formais que distanciaram os Beatles de sua fase inicial e consolidaram o neo rock’n’roll inglês, que gerou o interesse de Caetano. Porém, como se sabe, quem veio a se interessar por tais experimentações não foi a jovem guarda, que continuou inclinada a seguir o caminho do primeiro rock e das baladas românticas, assimilando outras informações (como a do soul), mas sem se aproximar do que Augusto chamou “antimúsica”. Esse passo só seria dado pelos tropicalistas, como notamos tanto nos anos de eclosão e ápice do movimento (1967 e 1968) quanto nos discos que Mutantes, Tom Zé, Gal, Caetano e Gil produziram nos anos imediatamente seguintes (de 1969 e dos anos 1970, especialmente em sua primeira metade), com várias experiências formais relevantes nesse sentido. Por fim, voltando ao perfil de Roberto Carlos apresentado no fragmento, é preciso observar o modo como Caetano, ao citar as canções “Quero que tudo vá pro inferno” e “Eu te darei o céu”, sugere que o precursor da rebeldia jovem vinculada ao rock’n’roll no Brasil também se associa à moral cristã, numa contradição que bem pode ser vista sob a égide dos paradoxos tipicamente brasileiros, neste caso, entre a transgressão e a fé. Como já foi explicado, é o valor mítico do rei da cultura de massas no Brasil que interessa a Caetano e ao movimento, inclusive assimilando as ambiguidades dos aparelhos midiáticos e do próprio artista. Com isso, quer-se dizer que, desde a primeira aparição de

190

Roberto Carlos no livro, já fica claro seu potencial de se oferecer enquanto fonte de discussão do país e de sua cultura de massas, e também de sua peculiaridade, ao cruzar de forma particular as trajetórias do rock internacional e da tradição cultural brasileira. Desse modo, coloca-se em cena um Brasil contraditório e ambíguo como a figura de seu rei. A segunda aparição do artista no livro relaciona-se ao conselho de Maria Bethânia, cuja inserção no conjunto de Verdade tropical merece nota. A seção “Bethânia e Ray Charles” encerra-se exatamente no momento em que Caetano diz se preparar para “estar à altura de acolher” a sugestão de prestar mais atenção em Roberto Carlos. Considerando o capítulo seguinte como um “intermezzo”, é curioso perceber que o fim do “primeiro ato” do livro fica suspenso exatamente em sua menção. Assim, a intervenção tropicalista no contexto da canção popular brasileira que se conta na parte 2 encontra sua origem narrativa nessa sugestão em aberto, o que lhe atribui grande centralidade. No relato das reuniões propostas por Gil, a discussão sobre a incorporação de elementos comerciais apresenta uma nuance interessante: Caetano afirma que seu parceiro falava em Beatles diante da desconfiança e da reprovação dos ouvintes, mas “não ousava” falar em Roberto Carlos147. Essa formulação, de um lado, aproxima o artista do grupo inglês (evidenciando-os como artistas comerciais, vinculados à informação do rock); por outro, mostra como a menção a Roberto Carlos geraria ainda mais resistência, uma vez que, para os colegas engajados o artista era visto, além de pobre musicalmente, como o mais alienado assimilador da moda estrangeira. O episódio reforça a resistência que Caetano buscou narrar nos primeiros capítulos da parte 2 do livro. Roberto Carlos, no centro da discussão sobre a música comercial no Brasil, apesar de não citado nas conversas, esteve presente novamente, ainda que elíptico, em um momento relevante da história do movimento. No capítulo “Alegria, alegria”, Caetano narra o planejamento do programa de Gil na Frente Única da Música Brasileira ou Frente Ampla da MPB contra o iê-iê-iê. A ideia inicial era que Bethânia aparecesse de minissaia, portando uma guitarra elétrica de madeira maciça, para cantar “Querem acabar comigo” de Roberto e Erasmo, cuja letra diz: “mas querem acabar comigo/ nem eu mesmo sei por quê/ enquanto eu tiver você aqui/ ninguém poderá me destruir// querem acabar comigo/ isso eu não vou deixar”148.

147 VELOSO, 2008, p. 128. 148 In: http://www.robertocarlos.com/br/music/roberto-carlos-1966-eu-te-darei-o-c%C3%A9u/querem- acabar-comigo. 191

Caetano Veloso ainda conta ter feito um texto sobre Roberto Carlos para que Bethânia recitasse, tal como a cantora costuma fazer em suas apresentações, entremeadas por falas poéticas. Segundo ele, tratava-se de “uma consideração da força mitológica da figura de Roberto Carlos, de sua significação como vislumbre do inconsciente nacional, de como ele era, comoventemente, ‘a cara do Brasil’ de então”149. Note-se que, assim como fez com Carmen Miranda, Caetano volta a eleger um representante de nossa cultura de massas como uma forma de acessar o “inconsciente nacional”. O vínculo entre texto, canção e performance intensificaria o impacto da apresentação. A letra, ainda mais recontextualizada, sublinhava a afirmação de Roberto Carlos sobre o desejo de acabarem com ele, insinuava uma promessa de resistência e sugeria não haver motivos compreensíveis para a oposição à sua figura. De saia e guitarra, Bethânia estaria consolidando performaticamente não só a devoração do estilo jovem guarda, mas de todo o imaginário pop que o influenciou. O texto, por fim, mostraria como a figura de Roberto Carlos pode ser lida no conjunto das discussões sobre o pop, tal como se desenvolve nos comentários de Andy Warhol e na mitologia moderna proposta por Morin. O papel de destaque de Roberto Carlos na narrativa sobre a aventura tropicalista está diretamente ligado ao protagonismo que esse personagem tem no olimpo pop da cultura de massas do Brasil. O que vai tornar ainda mais interessante o caso é que o referido texto foi visto por Geraldo Vandré, que teria ficado enfurecido, vociferando que aquela cena não poderia acontecer, pois aquele programa deveria ser, em sua opinião, um espaço “em que a música brasileira tinha de se afirmar contra o que Roberto Carlos representava”150. A objeção de Vandré ilustra como os opositores do tropicalismo defendiam uma representação do Brasil que excluísse tudo que a figura do rei da jovem guarda representava a seus olhos: submissão ao imperialismo cultural, alienação política e, por fim, produção musical meramente comercial e de baixa qualidade. Quando Caetano investe o artista de mito representativo do “inconsciente nacional”, de “cara do Brasil”, cria-se o convite para pensar o país a partir de Roberto Carlos e a partir da cultura de massas que o elegeu seu grande ídolo nacional. A objeção furiosa de Vandré impediu que o plano fosse cumprido e, mesmo não o tendo impedido completamente, acabou por moderá-lo. O certo é que o texto que falava

149149 VELOSO, 2008, p. 156-7. 150 VELOSO, 2008, p. 157. 192

sobre a potência mítica de Roberto Carlos acabou não sendo dito (e, embora excluído do programa dos anos 1960, aparece mais do que afirmado em Verdade tropical). A guitarra também foi descartada, ausência importante de se relatar, tendo em vista a importância que sua presença teria na eclosão do tropicalismo no festival de 1967. A minissaia aparece, embora “discreta” (atenuação pontuada entre travessões em tom de ressalva), o que não deixa de ser uma afirmação importante da moda comportamental ditada pela jovem guarda. Roberto Carlos aparece também, virtualmente, ainda no mesmo capítulo, quando Caetano Veloso fala de seu desejo de convidar a banda do artista (o RC7) para acompanhá- lo no Festival de 1967, o que seria uma forma de incorporá-lo à apresentação de “Alegria, alegria”. Como se sabe, Caetano acabou acolhendo a sugestão do produtor Guilherme Araújo em chamar os Beat Boys, a banda argentina que conhecia bem a obra dos Beatles e tinham cabelos à moda, além de usarem guitarras maciças e coloridas. Desse modo, o rei da jovem guarda e a banda inglesa de neorock’n’roll voltam a se encontrar na narrativa sobre os planos tropicalistas. No capítulo “Panis et circensis”, há outra referência importante a Roberto Carlos, quando se fala de Orlando Silva. Apesar de ser Francisco Alves “o rei da Voz”, Caetano aponta em Orlando – “o cantor das multidões” – aquele que seria um ancestral mais provável do rei Roberto Carlos. Além disso, narra o episódio em que, ainda em 1968, Orlando e Roberto dividiram o palco em um especial de TV – a velha e jovem guarda juntas -, formando “uma cena muito emocionante para um tropicalista”151. Mais ainda porque, apesar da superficial contradição entre eles, o ponto de fuga que se desenha no laço que os une é João Gilberto, influenciado pelo primeiro e influenciador do segundo. No relato sobre o programa Divino Maravilhoso, novamente Roberto Carlos é evocado em uma performance. Numa cena em que o palco era cercado de gaiolas (aprisionando Mutantes, Tom Zé, Gal e Jorge Ben), Caetano vinha do fundo, berrando uma canção de sucesso de Roberto Carlos, enquanto quebrava as grades. Trata-se de “Um leão está solto nas ruas” (letra que brinca com o sentido ambíguo do animal devorador, especialmente de “brotos”), cuja estrofe “um leão está solto nas ruas/ já faz um dia que ele fugiu/ a turma está aflita/ pra vê-lo outra vez/ na jaula de onde ele saiu”152 era muito propícia a uma ressignificação simbólica, tornando-se outra vez uma afirmação da

151 VELOSO, 2008, p. 261. 152 http://www.robertocarlos.com/br/music/%C3%A9-proibido-fumar/um-le%C3%A3o-est%C3%A1-solto- nas-ruas 193

necessidade de libertar a música brasileira, especialmente das objeções ao que representava, de modo amplo, Roberto Carlos. Aliás, esse tipo de deslizamento semântico é um procedimento tipicamente tropicalista. “Um leão está solto nas ruas”, que bem poderia ser considerada uma canção “alienada”, aparece, no novo contexto, investida de grande carga política, que se concentra na própria afirmação da liberdade criativa e na potência da canção popular no Brasil. Como veremos a seguir, esse procedimento de mover o sentido de canções de amor para que se transformem em músicas políticas – e, ainda, de revelar a força política que há no próprio sucesso das canções de amor e dos artistas que as tornam populares – repete-se nos episódios em que Roberto Carlos e Caetano Veloso gravam canções um do outro. Já na Parte 3, merece análise o episódio em que, já no exílio londrino, Caetano Veloso recebe a visita de Roberto Carlos e de sua mulher Nice na residência em Chelsea, ainda em 1969. Roberto estava de passagem, gravando cenas de Roberto Carlos e o diamante cor de rosa e ligou para a casa de Caetano para marcar um encontro. Eis o relato: Roberto veio com Nice, sua primeira mulher, e nós sentíamos nele a presença simbólica do Brasil. Como um rei de fato, ele claramente falava e agia em nome do Brasil com mais autoridade (e propriedade) do que os milicos que nos tinham expulsado, do que a embaixada brasileira em Londres (que não tinha contato conosco e, segundo nos contou um amigo que procurou por mim através dela, usava a meu respeito a expressão “persona non grata”), e muito mais do que os intelectuais, artistas e jornalistas de esquerda, que a princípio não nos entenderam e nos queriam agora mitificar: ele era o Brasil profundo. (VELOSO, 2008, p. 415)

Em um livro no qual as leituras sobre o Brasil ocupam espaço privilegiado, não é pouco relevante haver uma afirmação como esta sobre Roberto Carlos: “ele era o Brasil profundo”. No fragmento, o título de rei, que se oferecia de forma metafórica em relação a seu destaque musical (não só pela qualidade de seu canto e de suas composições, mas especialmente pelo lugar que ocupa no imaginário popular e por sua centralidade na cultura de massas no Brasil) parece transitar do mítico ao sensível sob o contexto da visita diplomático-afetiva a Caetano. Entre a subjetividade do verbo “sentir” e a pretensa objetividade do advérbio “claramente”, Roberto Carlos revela-se na cena como um “rei de fato”, que fala e age em nome do Brasil. Ao afirmar isso, Caetano Veloso atribui a Roberto Carlos uma dimensão política, apta a falar e a agir em nome do país; e a autoridade para isso foi construída, previamente, no império da cultura de massas, que investiu seu mito da ideia de rei. Esse deslizamento

194

entre o mítico e o factual confirma a potência da cultura de massas e põe em perspectiva a pecha de alienado que lhe era atribuída pelos opositores do tropicalismo. Além disso, no fragmento, cria-se uma composição discursiva com vários personagens, apresentados em contraposição a Roberto Carlos, de modo a retornar ao antagonismo crucial para o entendimento da história musical proposta em Verdade tropical – o embate entre esse artista e os membros da esquerda à qual se opunha. Ao afirmar que esse grupo não os havia compreendido (em relação a suas propostas estéticas para a canção brasileira) e agora queriam mitificá-los (por terem sido exilados pela ditadura militar), Caetano, a um só tempo, sugere sua fragilidade intelectual e reafirma a fissura em relação a eles. Assim, procede à reafirmação da força mítica de Roberto Carlos, aproveitando ainda o gracejo de ver, na figura do rei, a superioridade natural sobre meros presidentes, embaixadores, cantores e intelectuais. Na sequência do relato sobre a visita, Caetano conta: Conversando sobre a gravação de seu novo disco, Roberto pegou meu violão e cantou – dizendo, sem nenhuma insegurança que iria nos agradar – “As curvas da estrada de Santos”153. Essa canção extraordinária, cantada daquele jeito por Roberto, sozinho ao violão, na situação em que todos nos encontrávamos, foi algo avassalador para mim. Eu chorava tanto e tão sem vergonha que, não tendo um lenço nem disposição de me afastar dali para buscar um, assoei o nariz e enxaguei os olhos na barra do vestido preto de Nice, enquanto Roberto repetia com ternura: “Bobo, bobo”. (Idem)

Roberto Carlos cantava naquele momento em Londres, longe do palco ou da orquestra, em um espaço privado e familiar (não há sequer a alusão direta aos outros presentes, reforçando o intimismo da cena), o canto igualmente intimista, acompanhado apenas pelo violão (que, aliás, pertencia a Caetano). Na imagem proposta, um símbolo do Brasil estava cantando uma música de afirmação da identidade, de caminho percorrido, de passagem do tempo, de solidão, de necessidade de seguir. A canção de amor perdido não deixa de ser uma forma de exílio e, olhando o passado a partir da casa de Chelsea, havia a perspectiva de resgatá-lo, de recuperar o país perdido, que naquele momento lhe visitava,

153 A letra da canção diz: “Se você pretende saber quem eu sou/ Eu posso lhe dizer/ Entre no meu carro e na Estrada de Santos/ E você vai me conhecer// Você vai pensar que eu/ Não gosto nem mesmo de mim/ E que na minha idade/ Só a velocidade anda junto a mim//Só ando sozinho e no meu caminho/O tempo é cada vez menor/ Preciso de ajuda, por favor me acuda/ Eu vivo muito só// Se acaso numa curva/ Eu me lembro do meu mundo/ Eu piso mais fundo, corrijo num segundo/ Não posso parar// Eu prefiro as curvas da Estrada de Santos/ Onde eu tento esquecer/ Um amor que eu tive e vi pelo espelho/ Na distância se perder// Mas se amor que eu perdi/ Eu novamente encontrar, oh/ As curvas se acabam e na Estrada de Santos/ Não vou mais passar”. In: http://www.robertocarlos.com/br/music/roberto-carlos-1969-flores-do-jardim-da-nossa- casa/curvas-da-estrada-de-santos. 195

na figura simbólica de seu rei. O choro emocionado estava relacionado com a dor do exílio, mas também com uma espécie de reconciliação com o país, sentido em sua dimensão mais profunda, através da presença de uma figura de autoridade e na sua forma de expressão mais contundente – a canção popular (e a língua portuguesa). O prosaico gesto de assoar o nariz no vestido de Nice expressa um gesto incontível, acompanhado do comentário singelo e doce de Roberto Carlos, que graciosamente duplica o adjetivo “bobo”, numa cena de amparo e ternura. Ao fazer parte de uma rede complexa de perspectivas, essa visita pessoal ganha no relato (e, acreditamos, na vivência) contornos políticos, existenciais e afetivos de ordem profunda, resultando em uma passagem densa e comovente da narrativa. A última citação a Roberto Carlos em Verdade tropical diz respeito a uma apresentação no Rio de Janeiro em 1972, quando Caetano cantava “Quero que vá tudo pro inferno”, repetindo-o por mais de cinco minutos. No pós-exílio, a retomada desse verso (usado na letra manifesto do movimento), aparece alargada em abrangência: era novamente a necessidade de seguir em frente apesar de tudo que se deve “mandar ao inferno”. E é importante perceber que a entrada e a saída de Roberto Carlos do livro passam pela mesma canção, por sua importância simbólica e por sua possibilidade de ressignificação.

2.2.1. Como dois e dois – As gravações de Roberto e Caetano

Apesar das diversas citações de Caetano Veloso a Roberto Carlos em Verdade tropical, raras foram as composições deste gravadas em disco por aquele. No entanto, duas canções chave do movimento tropicalista fazem alusão a RC e são citadas em episódios importantes do livro. Na seção “Tropicália”, a canção homônima é analisada de modo a esclarecer que seu desfecho põe em cena os embates sobre a música popular no Brasil: “domingo é o fino-da-bossa/ segunda-feira está na fossa/ terça-feira vai à roça/ porém...// o monumento é bem moderno/ não disse nada do modelo do meu terno/ que tudo mais vá pro inferno/ meu bem// viva a banda, da, da/ Carmem Miranda, da, da, da, da”. Assim, Caetano faz alusão ao programa O fino da bossa, à tradição do rádio de sambas-canção (músicas “de fossa”), à canção regionalista (referida na ideia de “roça”), a canção de festival (representada por “A banda”) e a música de carnaval (evocada por Carmen Miranda). O elogio à instituição de uma modernidade musical pós-bossa nova, abrangente a ponto de superar as antigas dicotomias entre MPB e iê-iê-iê ou, ainda, entre

196

música engajada e música comercial, completa-se exatamente com o verso de um dos maiores sucessos da jovem guarda (“Quero que vá tudo pro inferno”). Assim, não só se inclui a figura de Roberto no compósito deste “monumento”, como também se mandam ao inferno as segmentações e exclusões inerentes ao projeto de Brasil antagônico à empresa tropicalista. A outra menção a Roberto Carlos acontece na canção “Baby”, gravada por Gal Costa no álbum-manifesto do movimento (“você precisa tomar um sorvete/ na lanchonete, andar com a gente, me ver de perto/ ouvir aquela canção do Roberto...”). A letra afirma a necessidade de integração à época, observando suas diversas facetas – a “piscina” (o lazer burguês), a “margarina” (o mundo da publicidade), a “Carolina” (Chico Buarque e a canção popular brasileira), a “gasolina” (os carros e, portanto, a paisagem urbana), o sorvete na lanchonete (modo de vida jovem, urbano), as camisas com inscrições em inglês (a presença da cultura norte-americana) e, é claro, Roberto Carlos. A gravação dessa música, como se sabe, resultaria em outro episódio de desaprovação veemente de Vandré, contribuindo para consolidá-lo na narrativa como um dos antagonistas mais simbólicos ao projeto tropicalista. A primeira gravação de Roberto por Caetano só viria em 1987, com a inclusão de “Fera ferida” no álbum Caetano. A canção na voz de Caetano pode receber uma livre interpretação de motivação biográfica, afinal, “acabei com tudo, escapei com vida, tive as roupas e os sonhos rasgados na minha saída”, na voz do artista, dois anos depois do fim do regime militar (e 18 depois de seu exílio), pode francamente ganhar conotações de ordem pessoal e política. A empresa tropicalista e a postura combativa de Caetano, de fato, haviam colocado em risco sua vida e lhe provocado tristezas, desgastes, brigas, a prisão e o exílio. A liberdade, o caso sem solução, o coração que perdoa (mas que “não esquece à toa”), as flores que existiram no caminho, as cicatrizes que falam enquanto as palavras calam (mas a canção não cala), tudo isso, pode ser lido (insiste-se que livremente) como uma avaliação de Caetano do tumultuado processo de sua vida artística, de suas vitórias e de suas decepções na luta por um projeto de Brasil e de cultura brasileira. Por outro lado, o sentido romântico original da canção é realçado no conjunto do disco por ser, na ordem das faixas, a canção subsequente à sensível reflexão sobre “O ciúme” (“o ciúme lançou sua

197

flecha preta/ e se viu ferido justo na garganta...”), que também se vale da conotação sentimental do verbo “ferir”.154 A outra gravação de Roberto por Caetano aparece no álbum Circuladô ao vivo, mas não no disco correspondente de estúdio. Trata-se de “Debaixo dos caracóis dos seus cabelos”, canção feita e gravada por Roberto Carlos (parceria com Erasmo) no álbum de 1971. O título sugere uma música romântica, na qual o eu-lírico se reportaria aos cabelos encaracolados de uma mulher, debaixo dos quais se acomoda, se deleita e se conforta. Além disso, sendo uma canção sobre distância e saudade, o ouvinte desavisado acaba interpretado-a como uma tematização de uma história de amor e reconciliação. É o próprio Caetano que, no referido show, explica à platéia que o dono dos cabelos encaracolados era ele mesmo na época de seu exílio. Diz a letra: Um dia a areia branca Teus pés irão tocar E vai molhar seus cabelos A água azul do mar

Janelas e portas vão se abrir Pra ver você chegar E ao se sentir em casa Sorrindo vai chorar

Debaixo dos caracóis dos seus cabelos Uma história pra contar De um mundo tão distante Debaixo dos caracóis dos seus cabelos Um soluço e a vontade De ficar mais um instante

As luzes e o colorido Que você vê agora Nas ruas por onde anda Na casa onde mora

Você olha tudo e nada Lhe faz ficar contente

154 Vale observar que o disco é do ano seguinte à polêmica sobre o filme de Godard, quando os artistas se desentenderam publicamente acerca da proibição de Je vous salue, Marie, dando novo sentido à gravação, que acaba reafirmando a importância de Roberto Carlos, a despeito de sua posição no episódio. O filme de 1985 consiste basicamente em uma releitura contemporânea da história da concepção de Cristo, na qual Maria é uma estudante que trabalha em um posto de gasolina e José, um taxista, que acusa sua namorada de traição quando a descobre grávida. O filme foi proibido no Brasil em 1986, durante o governo de José Sarney (o primeiro presidente do Brasil após a ditadura), em razão de ser considerado desrespeitoso em relação à religião cristã. Muitos artistas e intelectuais fizeram resistência à decisão, promovendo sessões “clandestinas” para exibi-lo. Roberto Carlos, na contramão disso, enviou um telegrama a Sarney em fevereiro de 1986, cumprimentando-o pela decisão. O fato gerou a reação de Caetano, que em publicação na Folha de S. Paulo, convidou seus colegas de música popular a compensarem “a burrice de Roberto Carlos”. O artigo encontra- se disponível em http://g1.globo.com/blog-do-dodo/platb/tag/biografia/. 198

Você só deseja agora Voltar pra sua gente

Você anda pela tarde E o seu olhar tristonho Deixa sangrar no peito Uma saudade, um sonho

Roberto e Erasmo foram hábeis em empregar na canção uma série de elementos que são caros a Caetano. Se pensarmos em nossa discussão sobre o título de Verdade tropical e a importância das concepções vinculadas aos trópicos, é possível destacar o aspecto paradisíaco (e promissor) do Novo Mundo, devidamente figurado na letra. Os versos introdutórios “um dia a areia branca/ seus pés irão pisar” aparecem imbuídos de tom profético, ao afirmar este “um dia”, indefinido no futuro (reforçado por formas verbais subsequentes referentes ao porvir), quando o paraíso perdido seria resgatado. O toque dos pés sobre a areia abre a imagem do regresso, como se, tal como na época do descobrimento, a chegada fosse pelo Atlântico e o primeiro contato pela praia. E se os pés tocam a areia, a “água azul do mar” envolveria os cabelos, numa cena de reencontro amoroso e corpóreo com a terra, que permite o diálogo também com o refrão de outra canção do artista - “por mais distante, o errante navegante quem jamais te esqueceria”155. O sorriso com choro marca a emoção da chegada na segunda estrofe, acompanhada pela personificação de portas e janelas, signos adequados à imagem de abertura (política e afetiva), mas também de recepção (festiva e comovida). Nas estrofes que se seguem ao refrão, observamos o tempo presente do exílio londrino. É bom que se observe que o espaço imagético que o eu-lírico descreve antes põe em cena o branco da areia (um branco que é cor) e o azul do mar, enquanto as “luzes e o colorido” que aparecem no tempo da enunciação são outros, evocando o célebre cinza habitual da cidade de Londres, em função de seu tempo frequentemente nublado e chuvoso156. Além disso, os versos “você olha tudo/ e nada lhe faz ficar contente” estão em tudo afinados com o relato que Caetano faz em Verdade Tropical, no qual afirma o exílio londrino como “um período de fraqueza total”157, de incapacidade de aproveitar as coisas da cidade. Esse fragmento aparece, curiosamente, na sequência do relato da visita de

155 Referência à canção “Terra”, do álbum Muito - Dentro da estrela azulada de 1978. 156 O próprio Caetano faria referência ao céu cinza no verso “green grass, blue eyes, grey sky” na letra de “London, London”. 157 VELOSO, 2008, p. 416. 199

Roberto Carlos. Caetano dizia-se triste e afirmava ficar a maior parte do tempo na casa, aliás, locação presente na composição em análise (“na casa onde mora”). E poderíamos ainda observar como a referência ao “olhar tristonho” (que “deixa sangrar no peito uma saudade, um sonho”) evidencia alguma semelhança com o refrão de “London, London”, no qual os olhos do eu-lírico vagam procurando discos voadores pelo céu de Londres. O refrão de “Debaixo dos caracóis de seus cabelos”, por sua vez, que parece localizar o sujeito em relação à hipotética mulher dos cabelos encaracolados, esconde a existência de uma única presença na cena: a de Caetano Veloso, com seus cabelos compridos e desgrenhados, afinados com o ideário hippie da contracultura da época (estética, aliás, que goza da simpatia de Roberto, que deixou os seus crescerem e se encaracolarem também, entre o final dos 1960 e durante os anos 1970). Assim, a “história para contar de um mundo tão distante” é uma narrativa de exílio, escondida “debaixo” dos cabelos do artista e “debaixo” da canção de Roberto Carlos. Por fim, o “soluço” – tal como Roberto presenciou quando viu seu colega chorar, “tanto e tão sem vergonha” na casa de Londres, ao ouvir “As curvas da estrada de Santos” – revela o desejo de não ter partido e, agora, o desejo urgente de voltar. O show Circuladô de 1992, no qual Caetano canta e explica a canção, foi realizado mais de vinte anos depois da gravação original do início dos anos 1970. A canção, porém, ganha força política (no conjunto de peças como “Fora da ordem”, “O cu do mundo” e “Um índio”, que também integram o espetáculo e o disco ao vivo) e, ao mesmo tempo, ganha potência afetiva, ao ser revelada no palco, dividida com o público enquanto homenagem recebida de Roberto, uma homenagem cifrada, disfarçada e abafada pela violência do contexto de onde partira, e ventilada pela doçura com a qual chegou àquele momento, depois da profecia realizada. Roberto, por sua vez, gravou três canções de Caetano Veloso: “Como dois e dois”, “Força estranha” e “Muito romântico”. A primeira delas foi escrita especialmente para o intérprete e gravada no álbum de 1971, o mesmo que contém a gravação original de “Debaixo dos caracóis dos seus cabelos”. Segue a letra: Quando você me ouvir cantar Venha, não creia, eu não corro perigo Digo, não digo, não ligo Deixo no ar Eu sigo apenas porque eu gosto de cantar...

Tudo vai mal, tudo Tudo é igual quando eu canto

200

E sou mudo Mas eu não minto, não minto, estou longe e perto Sinto alegrias tristezas e brinco...

Meu amor, tudo em volta está deserto, tudo certo Tudo certo como dois e dois são cinco...

Quando você me ouvir chorar Tente, não cante, não conte comigo Falo, não calo, não falo, deixo sangrar Algumas lágrimas bastam pra consolar

Tudo vai mal Tudo mudou, não me iludo e contudo É a mesma porta sem trinco, o mesmo teto E a mesma lua a furar nosso zinco...

Meu amor, tudo em volta está deserto, tudo certo Tudo certo como dois e dois são cinco...

É muito simbólico que Caetano tenha colocado na voz de Roberto – frequentemente acusado de alienado ou até de simpatizante do regime – uma canção de crítica política, embora velada. Portanto, não é de pouca relevância que Roberto tenha apresentado, no auge da ditadura militar (1971), um disco com duas canções de latência política e, mais ainda, que o laço que as une seja exatamente a figura de Caetano Veloso. A composição abre-se com um verso de cunho metalinguístico, convidando o ouvinte ao interesse e à desconfiança (“venha, não creia, eu não corro perigo”). O “eu” dêitico cria diversas complicações, ainda mais quando se desdobra entre o compositor e o intérprete: Caetano sendo o alvo freqüente da desconfiança (e da reação) do regime, enquanto o Roberto se coloca acima de qualquer suspeita. Incidindo sobre a realidade contextual, é duvidosa a afirmação de que o autor não corre perigo, a não ser que fosse o próprio exílio entendido como um lugar onde ele estava seguro (e de onde manda a mensagem para um lugar onde ele, factualmente, estaria correndo perigo). De todo modo, o enunciador pede que não se creia nele e que, portanto, desconfie- se de sua segurança. Ao multiplicar a voz que canta, a partir de Roberto, multiplica-se também a afirmação sobre o perigo que muitos outros correm no contexto do regime. O jogo do “digo, não digo, não ligo/ deixo no ar” é também o drible à censura, que conta com os recursos da composição poética para dizer sem dizer. O “não ligo”, que poderia valer como “não se importar”, abre também o sentido de não relacionar diretamente, ou seja, não fazer ligações que permitam decifrar a canção como mensagem política – tarefa não dele,

201

mas do ouvinte – leitura esta que se sustenta pela coesão elíptica entre “não ligo” e “deixo no ar”. A constatação reiterada de que “tudo vai mal” também oferece sua duplicidade entre o pessoal e o público, quando pensamos que a afirmação pode referir-se ao contexto político brasileiro (onde se canta a canção via Roberto) ou ao contexto íntimo de compositor no exílio (Londres, onde foi composta a canção). O ato de cantar, visto como simples exercício de gosto ou de prazer na primeira estrofe, parece apontar para a impossibilidade de interferência do canto no contexto a que se refere – “tudo é igual quando eu canto e sou mudo”. Além disso, encontra-se no fragmento um eco do célebre poema de Cecília Meireles, “Motivo”158, no qual se afirma: “Eu canto porque o instante existe/ e a minha vida está completa/ não sou alegre nem sou triste:/ sou poeta” e se encerra com “sei que canto. E a canção é tudo./ Tem sangue eterno a asa ritmada./ E um dia sei que estarei mudo:/ - mais nada”. O poema é também uma reflexão sobre o fazer poético como aquilo que torna completa a vida do poeta e que une a dimensão instantânea e a eterna da poesia. Na antípoda da vida (durante a qual se canta), o poema evidencia a morte e a mudez como única certeza. Na composição de Caetano, a oposição entre canto e mudez é fissurada, na medida em que o exílio e a censura promovem o silêncio apesar do canto (o que traz, nessa esteira, uma dimensão de morte simbólica e parcial). Além disso, a contradição se explica também pela própria permanência do canto, que encontra brechas para se realizar, apesar da mudez imposta. E fica aqui reiterada a importância da canção como afirmação de vida, de expressão e de completude, a despeito do quadro sócio-político em que “tudo vai mal”. Veja-se ainda que a inserção dessa palavra em “a canção é tudo” amplia seu horizonte de sentido quando migra da enunciação da poetisa para a do cantor popular Na mesma estrofe, a reiteração observada em “eu não minto, não minto” aproxima- se estruturalmente da contradição exposta em “digo, não digo”, sem, porém, repetir a formulação antitética. Assim, a quebra do paralelismo entre as estruturas sugere e reforça a sinceridade da canção, que vai encontrando maneiras de dizer aquilo que estava proibido, impedido, limitado. Aliás, é a oposição de ideias que dá o tom à estrofe: o sujeito que está longe (no exílio físico) e perto (na voz do cantor no Brasil) está exposto a sensações

158 O poema é referido também na há pouco citada “O ciúme”, na qual o verso “Que nem alegre, nem triste nem poeta” dialoga claramente com “Motivo” de Cecília Meireles. 202

diversas (“sinto alegrias tristezas”, também fazendo eco a “não sou alegre nem triste”) e “brinca” (também mais um comentário metalinguístico sobre o caráter lúdico da própria canção). O “tudo em volta está deserto” abre-se duplamente no sentido metafórico da dêixis espacial – ou como o deserto da ditadura, do regime áspero e opressor; ou, mais enfaticamente, a sensação de solidão e isolamento no exílio, ainda reforçada pelas diferenças culturais e climáticas (especialmente o frio). Paulo César Araújo, ao analisar a canção, identifica em “tudo certo como dois e dois são cinco” um intertexto com a frase do personagem Winston Smith do romance “antitotalitarista” 1984 de George Orwell, que a “repete a mando dos líderes do país, que o condicionaram a pensar conforme o interesse deles”159. A incongruência na lógica matemática transporta-se para o contexto ufanista na ditadura no Brasil em pleno governo Médici, mostrando como havia um abismo entre o discurso oficial e a realidade da violência do regime. Na mesma análise, o crítico recorta (sem informar a referência) um comentário de Caetano sobre a canção: Fiz esta canção para Roberto Carlos e pensando em Roberto Carlos. Eu queria ouvi-lo dizendo aquelas coisas. Embora com uma letra enigmática, “Como dois e dois” é o Roberto mesmo no momento da ditadura e ele podendo ser uma afirmação do Brasil. Era um modo de ele explicitar o compromisso real dele. E era enigmático porque estava para além dos compromissos que queriam que Pelé e ele assumissem de tomar atitudes de esquerda convencional, o que eu sempre achei uma estupidez. (ARAÚJO, 2006, p. 387)

Evocando as figuras de Pelé e Roberto Carlos – dois ídolos nacionais à época do regime, ambos identificados pelo título de “rei” –, Caetano expõe também a exigência que determinada esquerda convencional fazia em cobrar dos artistas e outras figuras públicas uma postura política em direção e modelo que nem sempre lhes cabia. O emprego da expressão “compromisso real”, nas palavras de Caetano, toca na ambiguidade do adjetivo (o compromisso verdadeiro em relação à posição política e o compromisso de rei, isto é, de referência, de autoridade). E o cantor mais popular do país – o próprio símbolo do Brasil –, naquele momento, desmentia a propaganda do regime: “tudo vai mal” se tornava uma afirmação incontestavelmente sincera, porque estaria sendo dita em nome do Brasil e pelo Brasil – o “Brasil profundo”. A estrofe subsequente ao refrão começa de forma análoga, demandando do ouvinte que, quando ouvisse o sujeito chorar (o que lido em paralelo com o “cantar” da primeira

159 ARAÚJO, 2006, p. 386-7. 203

estrofe, sugere que o próprio canto poderia ser veículo – e estava sendo – de seu lamento), continuasse “tentando” (embora sem “cantar” e sem “contar” com ele). Nessa paranomásia, sugere-se a mudez agora ao ouvinte e, novamente, a impossibilidade de intervenção. Segue-se novo jogo contraditório entre “falo, não calo, não falo, deixo sangrar”, mais uma vez indicando o jogo da censura e os registros enigmáticos do canto metafórico, que fala o que não fala e o que não cala. O jogo das contradições estende-se no momento de reafirmação de que “tudo vai mal”, quando na estrofe seguinte “tudo é igual quando canto e sou mudo” é substituído por “tudo mudou não me iludo e contudo” ao que segue “é a mesma porta sem trinco, o mesmo teto/ e a mesma lua a furar nosso zinco”. O intertexto aí é com uma canção canônica da música popular desde a era do rádio: “Chão de estrelas” de Sílvio Caldas e Orestes Barbosa, que começa dizendo: “minha vida era um palco iluminado/ eu vivia vestido de dourado/ palhaço das perdidas ilusões/ cheio dos guizos falsos da alegria/ andei cantando minha fantasia entre as palmas febris dos corações”. Esta canção apresenta teor metalinguístico, afirmando que a “ventura dessa vida é a cabrocha, o luar e o violão”. Sua letra expressa um lamento de um amor partido, tal como é típico nos sambas-canção, e apresenta uma idealização lírica da favela e dos seus barracões de zinco (“a porta do barraco era sem trinco/ mas a lua furando nosso zinco/ salpicava de estrelas nosso chão”). A estrofe final da canção de Caetano faz alusão exatamente a esses versos (“tudo mudou, não me iludo e contudo/ é a mesma porta sem trinco, o mesmo teto/ e a mesma lua a furar nosso zinco”). Nessa referência, a idealização da favela promovida pela canção popular (especialmente por quem defende o retorno ao samba tradicional e seu uso como afirmação da brasilidade) é posta em perspectiva diante da mudança trazida pelo tempo. A permanência dos chavões desse gênero musical, com suas favelas e seus barracões envoltos em atmosfera lírica podem ser lidos em contraponto com “tudo mudou” e “não me iludo”, o que é sublinhado pela conjunção “contudo”. Assim, “Como dois e dois” reforça sua intenção metalinguística de pôr em questão a força da canção popular no Brasil, seus debates internos e suas motivações. Por fim, é importante sinalizar que o refrão, introduzido pelo vocativo “Meu amor”, permite observar a latência de uma temática de desilusão amorosa na canção, que é evocada em vários de seus fragmentos (a mudança e a ilusão, o canto como lamento, a oposição entre estar “longe e perto”, o uso do termo “sangrar” e a constatação de que “tudo

204

vai mal” e de que “tudo em volta está deserto”). E é fundamental perceber que a interpretação de Roberto Carlos (não só no que diz respeito a seu canto, mas também à sua figura) sublinha o conteúdo romântico, camuflando ainda mais o subjacente valor político da composição. A canção seguinte de Caetano a ser gravada por Roberto foi “Muito romântico”, no álbum Roberto Carlos de 1977 e, logo em seguida, pelo próprio compositor no disco Muito (Dentro da noite azulada) em 1978. Segue a letra: Não tenho nada com isso nem vem falar Eu não consigo entender sua lógica Minha palavra cantada pode espantar E a seus ouvidos parecer exótica

Mas acontece que eu não posso me deixar Levar por um papo que já não deu, não deu Acho que nada restou pra guardar ou lembrar Do muito ou pouco que houve entre você e eu

Nenhuma força virá me fazer calar Faço no tempo soar minha sílaba Canto somente o que pede pra se cantar Sou o que soa eu não douro pílula

Tudo o que eu quero é um acorde perfeito maior Com todo mundo podendo brilhar num cântico Canto somente o que não pode mais se calar Noutras palavras sou muito romântico

Tal como anuncia o título, a canção é composta a partir de um imaginário romântico, no qual se pode identificar a figura do “vate”, isto é, do poeta capaz de enxergar para além da lógica (“eu não consigo entender sua lógica”) e que, movido por um impulso que lhe transcende, espalha seu canto revelador. Desde a primeira estrofe, é possível reconhecer a singularidade dessa voz, que pode “espantar” e parecer “exótica”, reforçando o traço de excentricidade do poeta romântico. Na terceira estrofe, a expressão “eu não douro pílula” nega a tentativa de tornar mais suave ou aceitável aquilo que é difícil ou estranho. Repare-se que o estranhamento é reforçado pelas rimas esdrúxulas, formadas com as proparoxítonas “lógica”, “exótica”, “sílaba”, “pílula”, “cântico” e “romântico”. Aliás, em contraste com as soluções musicais mais corriqueiras que caracterizam a produção de Roberto Carlos, a canção soa na voz dele ainda mais exótica.

205

Além disso, a força imponderável que impele ao canto é reiterada nos versos “nenhuma força virá calar”, “canto somente o que pede pra se cantar” e “canto somente o que não pode mais se calar” (e, na sequência deste último, aparece a equivalência com o ser romântico – “noutras palavras, sou muito romântico”). Todo esse imaginário apresenta substrato efetivamente romântico (em sentido amplo), que pode ser encontrado também na referência à dissolução da relação amorosa, que aparece nos versos “acho que nada restou pra guardar ou lembrar/ do muito ou pouco que houve entre você e eu”. Vale acrescentar que o caráter romântico insinua-se também na presença de uma utopia coletivista. Os versos “tudo que eu quero é um acorde perfeito maior/ com todo mundo podendo brilhar num cântico” revelam o caráter sagrado do canto (expresso como “cântico”, isto é, como hino religioso), que se vincula à possibilidade de todos brilharem160. Paralelo a isso, é interessante observar que o verso que abre a canção apresenta uma referência dêitica a um “isso” que se omite (“não tenho nada com isso nem vem falar/ eu não consigo entender sua lógica”). Mais uma vez, a afirmação do canto aparece contraposta a um indício de censura prévia, pela imposição de outra “lógica” (que acusa de exotismo aquilo que não entende). Nesse sentido, a canção pode expandir-se até para a discussão sobre as pressões estéticas no seio da canção popular, especialmente contra os “alienados” cantores românticos, que não usavam suas canções para a veiculação de ideias estritamente políticas. Assim, Caetano, ao passar a composição para voz de Roberto, ressalta as ambiguidades da canção. O intérprete romântico não só sublinha a possibilidade de leitura do “isso” (ou ainda “o papo que já não deu”) na chave de uma discussão amorosa cujo conflito se instala a partir do poeta ser incompreendido (porque segue outra lógica), mas também pode conter em si o conjunto de valores estético-políticos que pressionavam os cantores românticos, em especial, o próprio Roberto Carlos. No verso “sou aquilo que soa, eu não douro pílula”, a força da aliteração e da assonância, para além do trocadilho com o pleonástico “sou aquilo que sou”, gera uma relação íntima entre ser e som, entre o eu e a canção, entre a identidade íntima e o projeto estético. Portanto, é possível afirmar que “Muito romântico”, além de afirmação de um projeto musical que não se deixa limitar, também nos leva a refletir sobre o caráter

160 Esse verso, aliás, pode evocar um diálogo latente com outra letra de Caetano, “Gente”, na qual se diz que “gente é pra brilhar, não pra morrer de fome”. 206

romântico da fusão entre o autor de Verdade tropical e a canção popular, o que permite a ele, tal como um vate ou um médium, revelar “a verdade”. Por fim, cabe analisar a letra de “Força estranha”, última composição de Caetano a ser gravada por Roberto em 1978, portanto, um ano após “Muito romântico” (e sete depois de “Como dois e dois”). Trata-se também da canção que abria a turnê “Emoções” de 1983 de RC, início de suas grandes temporadas pelo Brasil: Eu vi um menino correndo Eu vi o tempo Brincando ao redor do caminho daquele menino Eu pus os meus pés no riacho E acho que nunca os tirei O sol ainda brilha na estrada e eu nunca passei

Eu vi a mulher preparando outra pessoa O tempo parou pra eu olhar para aquela barriga A vida é amiga da arte É a parte que o sol me ensinou O sol que atravessa essa estrada que nunca passou

Por isso uma força me leva a cantar Por isso essa força estranha Por isso é que eu canto, não posso parar Por isso essa voz tamanha

Eu vi muitos cabelos brancos na fonte do artista O tempo não para e no entanto ele nunca envelhece Aquele que conhece o jogo, do fogo das coisas que são É o sol, é a estrada, é o tempo, é o pé e é o chão

Eu vi muitos homens brigando, ouvi seus gritos Estive no fundo de cada vontade encoberta E a coisa mais certa de todas as coisas Não vale um caminho sob o sol E o sol sobre a estrada, é o sol sobre a estrada, é o sol

Por isso uma força me leva a cantar Por isso essa força estranha Por isso é que eu canto, não posso parar Por isso essa voz tamanha

A composição se organiza de forma anafórica, com um sujeito que observa a ação do tempo incidindo sobre a criança, a mulher e os homens. Na primeira estrofe, apresenta- se a cena de “um menino correndo”, em torno do qual o tempo brinca. O verbo “brincar”, intimamente ligado ao universo da infância, evocado no signo inicial, é transportado para um tempo que é sujeito, e age sobre toda criança, transformando-a. Vale atentar para a sutileza da imagem, que conota como “brincadeira” a ação do tempo, que, na verdade,

207

remete ao processo de envelhecimento e mudança, e que, em última instância, conduz à morte. O riacho é evidente alusão a Heráclito e à sua máxima de que nunca nos banhamos duas vezes no mesmo rio, pois suas águas nunca são as mesmas e nós também estamos em constante transformação. Esse “eu” agora assume, portanto, a ação ininterrupta do tempo sobre si mesmo. Por outro lado, os versos “eu pus os meus pés no riacho/ e acho que nunca os tirei”, além do jogo sonoro do “acho” que é evocado de dentro do “riacho”, apresenta uma afirmação de permanência diante da afirmação filosófica da constante mudança. Tratando-se de uma estrofe voltada para a figura do menino, pode-se ver desde aí um traço romântico de essência infantil que insiste em se afirmar apesar da passagem do tempo. O sol, que antecede ao “eu”, ainda brilha (ilumina, evidencia, mostra, aponta) a “estrada” ainda não percorrida. Aqui se emprega a metáfora recorrente da estrada para simbolizar os caminhos a serem percorridos ao longo da vida, com todos os seus percalços, surpresas, partidas, chegadas, enfim, situações que virão ou que serão deixadas para trás. O sujeito que “ainda não passou” reverbera na afirmação da permanência contida na imagem anterior, aproximando novamente o sujeito lírico do menino que ainda tem o caminho novo diante de si. Na segunda estrofe, o foco muda para uma figura feminina, que mantém estreitos laços com a cena anterior do menino, uma vez que se evoca a imagem da gravidez, na qual também se encontra latente a ideia do passar do tempo. A mulher grávida, aliás, investida estilisticamente da conotação de “preparar outra pessoa”, não só intensifica a beleza “daquela barriga”, mas também reforça o caráter cíclico do tempo e o mistério da criação. Como na estrutura paralela anterior, o tempo aparece novamente, desta vez, parando para que seja possível a contemplação (justamente daquilo que é o tempo passando). O sol que esclarece o caminho é o que ensina também a amizade entre vida e arte, numa relação tênue de substrato outra vez romântico. A ausência do “eu” na frase de desfecho antes do refrão cria um efeito inusitado: agora é a estrada (e não o sujeito) que nunca passou. O sol que ensina sobre a vida e a arte é também aquele que ilumina os caminhos que ainda não passaram, que ainda não são conhecidos, que ainda estão para serem percorridos. Na terceira estrofe (sem contar o refrão), a imagem do tempo migra para os cabelos brancos do artista (visíveis curiosamente na própria capa do disco de Roberto Carlos em 1978, quando os fios sem cor já começavam a se tornar mais aparentes). Mais uma vez, as contradições marcam a composição, quando o tempo personificado expõe à velhice, mas

208

não envelhece; cabe lembrar que a imagem inaugural do tempo na canção é a daquele que brinca como uma criança. O referente “aquele que conhece o jogo do fogo das coisas que são”, posto assim no singular, acaba gerando uma equivalência entre os signos do “sol”, da “estrada”. “do tempo”, do “pé” e do “chão”; todas essas imagens compõem uma única – a da caminhada, na qual o ser se move e se modifica, exposto à ação do tempo. Por fim, se podemos ver entre a primeira estrofe a terceira a oposição do menino com o homem de cabelos brancos, é possível também perceber a oposição entre a segunda e a quarta estrofe, entre a mulher que gesta e os homens que brigam. Esta última suscita a imagem das guerras, dos combates, das violências, das mortes, que atravessam toda a história da humanidade. Além da visão, aqui se emprega o sentido da audição, intensificando o caráter dramático daquele que é capaz de ouvir o grito daqueles que sofrem, o que, mais uma vez, é um traço romântico na letra. Esse mesmo substrato aparece em “estive no fundo de cada vontade encoberta”, que é um dos versos mais belos de Caetano, e confere atemporalidade a esse “eu” que fala e que canta e que, embora individual, é capaz de se tornar uma profusão de quereres encobertos, de desejos de não- dor, de possibilidades de trilhar caminhos de sol, embora incertos, valiosos. E é a presença do sol e da estrada que se liga ao refrão através do elemento coesivo “por isso”, estabelecendo uma relação de causa e consequência entre os caminhos abertos pela ação do tempo e o desejo de cantar. O canto, novamente, aparece como necessidade interior, uma força estranha e incontrolável. Inclusive, é esse o laço que une “Como dois e dois”, “Muito romântico” e “Força estranha” – são canções metalingüísticas que refletem o motivo íntimo de cantar, que atinge dimensões públicas ao pensarem a dimensão humana – do ser que cria sua vida e sua arte diante da ação do tempo. As semelhanças são latentes: “Eu sigo apenas porque gosto de cantar”, “Canto somente o que não pode mais se calar”, “Por isso uma força me leva a cantar”. Todos esses sentidos estão perpassados pela imagem do vate romântico, aquele que canta o que lhe transcende, o que precisa ser dito por quem está vendo além. É possível concluir, assim, que, no conjunto de canções que Caetano Veloso e Roberto Carlos gravaram um do outro há um notável deslizamento de sentidos: mesmo as características políticas das canções de Caetano soam românticas na voz de Roberto, enquanto as canções de amor de Roberto revelam-se políticas na voz de Caetano. É preciso pensar que o autor de Verdade tropical acredita que as grandes potencialidades do Brasil manifestam-se na canção popular. O grande gesto político de Caetano sobre Roberto é

209

colocar na voz do rei da cultura de massas uma série de canções metalinguísticas, que só se apresentam na potência máxima porque estão na voz dele. “Força estranha” é a prova maior disso, um sucesso absoluto que quase todos pensam ser de Roberto e que, em sua voz, representa toda a potência que tem a canção popular no Brasil. Nos dois sentidos, os deslizamentos fazem de RC um comentário sobre os caminhos da canção popular, a força da cultura de massas, uma fonte de acesso ao inconsciente nacional. Por fim, vale comentar que “Força estranha” foi gravada ao vivo por Caetano e Roberto no especial de fim de ano da Globo de 2008. No mesmo ano, houve o último episódio de encontro musical entre os artistas, que se trata da gravação do DVD e do CD Roberto Carlos e Caetano Veloso e a música de Tom Jobim, no qual cantam bossa nova, evidenciando o solo comum de onde partiram. Para além de Tom Jobim, o ponto de fuga que se desenha nesse projeto é João Gilberto. Não se trata de um disco de duetos; em verdade, há uma alternância entre eles passeando pelo repertório do maestro. Em verdade, só cantam juntos a primeira canção (o clássico “Garota de Ipanema”) e as duas últimas: “Tereza da praia” (que convém ao formato de dueto, incluindo o recurso do humor sobre a Tereza, que não pode ser de um nem de outro) e “Chega de saudade”. Com este desfecho, os ícones da jovem guarda e do tropicalismo encontram-se exatamente no início da estrada: a canção que marcou a bossa nova de João Gilberto.

2.3. Carcará ou o mito de Nara e Bethânia

A maior parte dos artistas citados, dentre os que surgiram na canção brasileira na década de 1960, aparece com mais profundidade na parte 2 de Verdade tropical. As exceções mais relevantes são Maria Bethânia e Nara Leão, que têm seus perfis traçados ainda em “Bethânia e Ray Charles”, embora as personagens participem de situações narradas também em partes subsequentes. No início do capítulo, o narrador relata que, antes de completar seus quatro anos de idade (o que torna este o evento mais pretérito do livro), participou da escolha do nome da irmã recém-nascida. Caetano havia sugerido “Maria Bethânia” em razão de uma valsa de Capiba consagrada por Nelson Gonçalves, que ele sabia cantar desde pequeno e que dizia: “Maria Bethânia/ tu és para mim a senhora do engenho”. Como havia outras sugestões e, principalmente, objeções a um nome “tão pesado”, resolveu-se pelo sorteio.

210

Segundo o relato, o pai havia colocado papéis com todos os nomes sugeridos em um pequeno chapéu de explorador que pertencia a Caetano. A cena, íntima e infantil (e, ao mesmo tempo, lúdica e fantástica, contaminada pelo objeto que conecta ao mundo da fantasia e da ficção) resultou no sorteio do papel onde estava escrito “Maria Bethânia”. Com isso, todos teriam se resignado, a começar pelo pai, que confirmou o resultado, naquele instante, incontestável, frente ao olhar atento (e triunfante) do pequeno ganhador. Nessa cena de infância, encontram-se inúmeros sentidos interessantes. Em primeiro lugar, é curioso que a trajetória dos dois irmãos, que se tornaram ídolos de nossa música, tenha começado exatamente com uma canção popular. Mais que isso, a letra fala em “senhora do engenho”, evocando, por força da expressão e do contexto, questões formativas de Santo Amaro (e do Brasil de modo geral). Além disso, o narrador novamente rememora um episódio que ratifica a intimidade especial com a música desde cedo (“todos achavam graça no fato de eu saber cantar canções de gente grande”161), que funciona aqui quase como a prova de uma relação inata com a canção, que aparece também no episódio das apresentações de fado no ginásio e que tem como ponto de fuga a posterior consolidação de sua carreira como cantor. Os contornos algo míticos do episódio são contrabalançados na sequência da narrativa pela suspeita de que algo mais que o acaso havia interferido nesse “destino”: Recentemente ouvi de minhas irmãs mais velhas uma versão que diz que meu pai escrevera Maria Bethânia em todos os papéis. Não é de todo improvável. E, de fato, na expressão resignada de meu pai – ainda hoje o é na lembrança – havia um intrigante toque de humor. Mas, embora me encha de orgulho o pensamento de que meu pai possa ter trapaceado para me agradar, eu sempre preferi crer na autenticidade do sorteio: essa intervenção do acaso parece conferir mais realidade a tudo o que veio a se passar desde então, pois ela faz crescerem ao mesmo tempo as magias (que nos dão a impressão de se excluírem mutuamente) do presságio e da unicidade absolutamente gratuita de cada acontecimento. (VELOSO, 2008, p. 50-1)

O “toque de humor” na expressão do pai, lembrado por Caetano (só depois de estar ciente da outra versão), bem pode ser um falseamento da memória, por sugestão da história alternativa. O episódio torna-se ainda mais intrigante justamente por causa da sobreposição de duas versões verossímeis. Primeiro, porque ficamos (os leitores e também ele) sem saber o que houve de verdade, envolvidos nessa espécie de lenda familiar. Depois, porque o evento serve de pretexto para a reflexão de Caetano sobre a ambiguidade do acaso, que

161 VELOSO, 2008, p. 50. 211

aponta não só para o que seria um presságio162 (mitificando ainda mais a relação entre os irmãos, e entre eles e o destino da canção popular no Brasil), mas também para a ideia de que os fatos são únicos e gratuitos, e que só as narrativas (como esta) podem inseri-los em um todo lógico. O reforço do vínculo profundo entre os irmãos é descrito pouco depois, quando Caetano comenta como a instabilidade emocional de Bethânia (ainda pré-adolescente) alimentava a “mitologia rebelde” do irmão (que já havia sido comentada desde o capítulo anterior). Essa ponte possível permitia também que Caetano se colocasse no papel de explicar Bethânia para seus pais (aqui se construindo não só a complexidade dela, como também a capacidade intelectual dele, apto a compreendê-la e a assumir a tarefa de interpretá-la e torná-la inteligível). Assim, depois de comentar o temperamento Bethânia e a predileção de Dona Canô por ela, diz: Não que ela tivesse desencadeado problemas escondidos e gerado a discórdia entre os membros da família, mas ela como que dramatizava os conteúdos apaixonados e pouco sensatos com os quais não estávamos acostumados a lidar abertamente, tematizando o ciúme, a raiva, a exigência de exclusividade, o capricho. E eu logo me senti o intérprete e o comentador dessas dramatizações. E nos dois sentidos: como exegeta dos seus significados (justificando seus efeitos) e como aprendiz de sua moral (tomando-as por paradigmas de realidades mais gerais). Assim, do mesmo modo que me cabia decifra-lhe as atitudes, cabia a ela ensinar-me o drama do mundo em lições práticas. (Ibidem, p. 51)

Bethânia é retratada em sua força intuitiva, em sua sensibilidade aguçada e, especialmente, em sua capacidade artística de se oferecer como “intérprete” (palavra que sempre preferiu à “cantora”) de um conjunto de emoções que era (é) capaz de dramatizar, isto é, de colocar em cena. Caetano apresenta-se como contraparte intelectual à sensibilidade da irmã, sendo capaz de observá-la, compreendê-la e organizar suas conclusões em forma estruturada e clara, em linguagem possível a ser levada aos familiares. Nesse sentido, suas afinidades com o papel de professor (e de intelectual) reforçam-se aqui, diante um fenômeno de singular complexidade. De outro, era-lhe também o aprendiz, atento ao “drama do mundo”, que se revelava ali pelo poder de expressão que tinha (tem) Maria Bethânia.

162 “Como se sabe escolhi o nome para ela, contra toda a família, e considero isso uma profecia: é mais do que óbvio que ela só se podia chamar assim”. (“O perfil de Bethânia”, texto de 1981). In: VELOSO, 2005, p 308. 212

No final dessa análise, Caetano diz: “... eu comecei a usar seus ensinamentos até mesmo na formação dos meus critérios de julgamento estético”163. Assim, pode-se afirmar que o crivo estético orientado por João Gilberto (pilar principal do gosto e do pensamento de Caetano) seria enriquecido pelos ensinamentos (práticos, sensíveis, intuitivos) de Maria Bethânia, formando um conjunto que estaria suficientemente armado para compreender as informações culturais as quais tiveram acesso no período de Salvador no início dos anos 1960. No capítulo, são contados alguns episódios dos passeios de Caetano e Bethânia, que formavam, nas palavras do narrador, uma “dupla algo insólita”164, revisitando o traço de excentricidade que já havia afirmado para si no capítulo anterior (e que agora estende à irmã). O fragmento a seguir é parte de seu retrato: Bethânia não parecia a adolescente que era: com uma expressão de mulher vivida, uma testa enorme e um nariz muito adunco, metida em vestidos de cetim roxo, ela frequentemente era tomada por mais velha do que eu. Sua beleza exótica era então quase indecifrável. (VELOSO, 2008, p. 62)

Cabe aqui detectar descrição semelhante no texto “O perfil de Bethânia”, publicado mais de dez anos antes, no periódico Careta, em 1981: O perfil de Bethânia é um dos mais belos perfis de mulher que já houve. Sua testa avança numa convexidade incomum e o homem superior logo nota que ali se guarda um cérebro incomum. Sob a testa, cujo arrojo estanca na linha descendente da sobrancelha, que é como que uma versão suave da máscara da tragédia, desenha-se o nariz espantoso: é o nariz da bruxa, o nariz de Cleópatra e, no entanto, é o único nariz assim, os outros são apenas uma referência a ele. (VELOSO, 2005, p. 305)

E pouco depois: Uma esfinge, um pierrô, uma astronave. Apenas o rosto de uma mulher, desta mulher, pequena e franzina, que deixa o espírito sair pela boca e queima a carne com a luz dos olhos. Que nos dá as costas para falar com alguém do outro lado e depois se volta, agora de frente para nós, indecifrável. (Ibidem, 306)

O exotismo de sua beleza e o indecifrável de sua figura são características comuns às duas descrições de Caetano. Nos perfis de Bethânia, os traços interiores de inteligência incomum, sensibilidade artística extrema, atemporalidade e mistério justificam as marcas externas de seu perfil – a testa, o nariz, os olhos, a boca. O autor contribui, assim, para o

163 VELOSO, 2008, p. 52. 164 VELOSO, 2008, p. 61. 213

desenho do mito Maria Bethânia, que ajuda a compreender a formação de sua sensibilidade estética, bem como traça uma linha narrativa que conduz os irmãos para o caminho da canção popular. Outro episódio relevante da história de Bethânia e Caetano é atravessado por elementos místicos, que acabam adquirindo dimensão mítica no conjunto da história do tropicalismo, embora seja frequente a problematização histórica e filosófica. O narrador conta que estava passando as férias do verão de 1964 na fazenda de um amigo, quando se viu “de súbito obcecado pelo pensamento de Maria Bethânia”165 . Caetano decidiu voltar a Salvador, convicto de que a irmã tinha que tê-lo por perto. Na sequência imediata, o pai de seu amigo ficara febril (repentinamente) e decidiu voltar à capital, dando ensejo ao pedido de carona. Esse evento é contado com várias ponderações sobre o absurdo da justificativa, a “evidente” inexistência de premonições e o ridículo que aquela decisão representava. Caetano chega a dizer que se sentia na obrigação de deixar a fazenda contra a própria vontade. No carro, com o pai de seu amigo, decidiu de repente mudar os planos e saltar em Santo Amaro, por onde passava a estrada. Ao chegar, perguntou a irmã Mabel por Bethânia, que não estava. Porém, pouco depois que decidira não pensar mais no assunto, Bethânia chegou a casa. Assim o desfecho da história é contado: [...] pouco antes do almoço – para renovada surpresa de Mabel – Bethânia chegou. Logo perguntei o que havia havido, se ela precisava falar comigo. Ela achou minha pergunta um pouco difícil de entender: afinal, ela decidira vir para Santo Amaro de repente, sem nenhuma razão especial. Durante o almoço, recebemos um telefonema da atriz (da Escola de Teatro) Nilda Spencer que queria transmitir um recado a Bethânia: os produtores do Opinião convidavam-na para ir ao Rio. (VELOSO, 2008, p. 67)

O narrador segue para a explicação do contexto de 1964 e das características do musical Opinião, deixando que a própria coincidência mútua das decisões sirva de comentário sobre a intuição. Ou ainda, que se recupere a avaliação anterior, de que esse tipo de acontecimento faz crescerem, ao mesmo tempo, “as magias do presságio” e “da unicidade absolutamente gratuita de cada acontecimento”. De todo modo, é emblemático perceber que um dos marcos principais da profissionalização dos artistas está relacionado a um episódio de latência mística.

165 VELOSO, 2008, p. 66. 214

O show Opinião reuniu em Copacabana três personagens potencialmente emblemáticos para a figuração do Brasil: “um compositor de morro (Zé Kéti), um compositor rural do nordeste (João do Vale) e uma cantora de bossa nova da Zona Sul carioca (Nara Leão)”166. Além disso, o espetáculo pode ser visto como paradigmático em relação ao cruzamento, nos anos 1960, da bossa nova (isto é, da modernização da música popular brasileira) com o engajamento político (propiciado pelo crescimento do ideário de esquerda nos campos de produção cultural naquele momento). Um vetor importante da música de protesto que se desenvolveu no Brasil apontava para a centralidade do “favelado” e do “nordestino” como representações não apenas dos problemas sociais do país, mas também das características positivas de um povo que, apesar de oprimido e excluído, ainda assim demonstrava força, vitalidade e capacidade criativa. E, enquanto Zé Kéti e João do Vale eram úteis no sentido de fazer esses papéis, Nara Leão evocava o surgimento da bossa nova e o engajamento de uma classe mais alta, porém sensível aos problemas sociais brasileiros. Em sua narrativa, Caetano explicita essas relações e faz longa análise sobre uma das canções mais importantes do espetáculo – “Carcará”, de João do Vale – a partir da observação atenta da letra e da música, bem como das diferentes interpretações oferecidas por Nara e Bethânia. Eis a letra da canção: Carcará Lá no sertão É um bicho que avoa que nem avião É um pássaro malvado Tem o bico volteado que nem gavião

Carcará Quando vê roça queimada Sai voando, cantando, Carcará Vai fazer sua caçada Carcará come inté cobra queimada

Quando chega o tempo da invernada O sertão não tem mais roça queimada Carcará mesmo assim num passa fome Os “burrego” que nasce na baixada

Carcará Pega, mata e come Carcará Num vai morrer de fome

166 VELOSO, 2007, p. 68. 215

Carcará Mais coragem do que home Carcará Pega, mata e come

Carcará é malvado, é valentão É a águia de lá do meu sertão Os burrego novinho num pode andá Ele puxa o umbigo inté matá

Da análise de Caetano, vale destacar a seguinte passagem: A recriação da cena de rapina era magistralmente lograda pela composição, e a altivez do grande pássaro ainda vinha elevada à categoria do mito pela linha “sai voando e cantando carcaráááááá”, quando, na canção, se canta o canto da ave, que lhe dá nome. Mas tudo me punha diante de pistas falsas: em meio a tantas outras canções em que se condenava o latifúndio e a exploração, a ideia da rapina parecia adequar- se à caracterização do explorador; no entanto, louvava-se a saúde da ave rapace e mesmo sugeria-se que do seu ato se extraísse uma lição. (VELOSO, 2008, p. 69)

Em primeiro lugar, importa sinalizar como a canção atingiu sucesso muito maior na voz de Maria Bethânia, ainda que Caetano enalteça a interpretação lírica que lhe dava Nara (especialmente quando subia uma oitava na onomatopéia do canto do pássaro). A substituição, além de ser de uma voz mais aguda para uma mais grave, era também de ordem simbólica: entrava de fato uma nordestina, o que dava outro peso ao que se dizia, ainda mais quando a canção era entremeada por uma fala que informava sobre as elevadas porcentagens de migrantes nordestinos nos anos 1950.167 Cabe também observar que, mais uma vez, Caetano investe a narrativa da história da canção popular de uma atmosfera mítica, sem que, com isso, perca-se o registro histórico e real. Nesse sentido, a trajetória de Bethânia começa associada ao signo do carcará, elevado na análise à condição de mito. A cantora, recorrentemente retratada em sua liberdade inegociável (que recusava o alinhamento a qualquer estilo ou movimento), foi competente em evitar que o sucesso da interpretação a reduzisse a ser apenas uma cantora nordestina de protesto. Ainda assim, o carcará continua, de algum modo, vinculado ao imaginário mítico de Maria Bethânia, mormente à sua gênese como artista. Por outro lado, também é importante sinalizar o aspecto histórico que revela a construção das imagens sobre os artistas da cultura de massas. Caetano fala do trabalho da

167 A cena está disponível no Youtube, retirada de um filme do cinema novo dirigido por Paulo Cesar Saraceni chamado O desafio (1965), no qual parte do show é incorporada pela narrativa. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=NZbxncygOPQ. Último acesso: Julho de 2015. 216

equipe do espetáculo Opinião no sentido de elaborar uma identidade visual – “o cabelo preso atrás num penteado que neutralizava as questões racial, etária e de beleza pessoal, e dava um ar de seriedade digna e um tanto dessexualizada”168. O autor assinala aí como essa imagem, apesar de construída, foi tomada como intrínseca à pessoa de Bethânia, isto é, como natural. Veja-se que a identidade visual anula exatamente as questões que Caetano Veloso insistentemente aponta como negligenciadas pela esquerda cultural da época, que não costumava falar de raça, gênero ou estética. Além disso, nega-se aí qualquer vestígio do Brasil “alegre” e “sexualmente exposto” de Carmen Miranda. Por fim, vale perceber que o que se anulava era a imagem real de uma mulher nordestina em favor de uma representação construída de uma mulher nordestina. E fica aqui também o comentário de que era curioso que “a primeira experiência com as falsidades do marketing” houvesse sido proporcionada “por um grupo de artistas antitropicalistas”, ou seja, que também se valiam dos falseamentos da indústria cultural para atingir seus objetivos. Outro aspecto relevante de sua análise é que Caetano sublinha na canção um simbolismo incongruente com o horizonte político no qual estava inserida. Desse modo, o carcará serviria mais à imagem do dominador (violento e assassino) do que da recorrente idealização do povo no âmbito da visão nacional-popular. Apesar de oprimida pela fome e pela seca, a ave de rapina do sertão demonstra sua vitalidade e seu poder de sobrevivência a partir da violência necessária. Desse modo, as “pistas falsas” mencionadas por Caetano Veloso devem, na verdade, ser vistas como indícios de outra sugestão. A miséria convertida em violência, presente nas figuras marginais, do cangaceiro ao bandido da favela, é reavaliada nas canções tropicalistas; o que o narrador-intérprete evidencia com essa observação é, portanto, como a canção que trouxe Bethânia ao conhecimento do grande público já se mostrava mais afinada com os interesses do tropicalismo que com as representações de “povo” da esquerda tradicional.

Nara Leão, por sua vez, tem sua figura mítica vinculada ao próprio nascimento da bossa nova. Assim Caetano a apresenta em sua narrativa: Nara era uma adorável criatura dessas que só a Zona Sul do Rio de Janeiro pode produzir. Mas era também alguém especial dentro desse mundo. Sentia-se nela o gosto da liberdade que tinha sido conquistada com dificuldade e decisão. Por isso todos os seus gestos pareciam nascer

168 VELOSO, 2008, p. 71. 217

de um realismo sério, mas resultavam delicados e graciosos como os de uma menina tímida e passiva. Não se pode esquecer que ela, a essa altura, devia ter vinte anos. Seu nome estava ligado ao nascimento da bossa nova (dizia-se – e se diz até hoje – que o movimento nasceu em seu apartamento de Copacabana) e, embora a essa altura ela ainda não fosse um sucesso de massas, nós conhecíamos sua lenda. (VELOSO, 2008, p. 72)

Mais uma vez, o retrato é formulado por Caetano no fio das contradições. Os signos da liberdade, da juventude (e mesmo da aparência delicada de uma postura que envolve seriedade e decisão) confirmam seu vínculo com o universo bossa-novista. Nara foi uma figura incansável nos processos de modernização da canção popular: fez parte da bossa nova (relacionando-se com o mito formador do movimento); do show Opinião e do disco do espetáculo, gravado ao vivo (com todas as já referidas relações entre modernidade musical e engajamento político-social); da vitória de a “A banda” no Festival da TV Record em 1966 (e do programa Pra ver a banda passar com Chico Buarque) e, além disso, do disco manifesto da Tropicália em 1968. Nos anos 1970, gravou também um disco só de canções de Roberto Carlos e Erasmo Carlos, chamado E que tudo mais vá pro inferno de 1978. O choque de temperamento entre Bethânia e Nara também é observado por Caetano no mesmo capítulo, numa descrição sensível, que toma aqui forma de reconhecimento e de homenagem: Diante do temperamento de Bethânia, ela [Nara] costumava reagir com um humor que frisava o contraste com seu próprio jeito despojado, mas fazia-o num tom em que se percebia carinho e prova de conhecimento íntimo do estilo pessoal da outra, e no qual o tema da competição era apenas um tempero a mais na composição cômica da caricatura. Ela dizia, por exemplo: “Quando venho te ver, Bethânia, penso logo em velas acesas, rosas vermelhas e tapetes especiais”, e Bethânia ria desse seu retrato de prima-dona, sabendo que a eterna menina em sua frente, para quem tudo era simples e claro, sabia que ela própria era uma gigante da história da nossa música – e que o Brasil sempre saberia disso. (VELOSO, 2008, p. 75)

Nesse comentário encerra-se o percurso de Nara e Bethânia na pré-história do tropicalismo, contada na parte 1. Maria Bethânia reaparece na parte 2, no desenvolvimento narrativo de seu conselho sobre Roberto Carlos. A artista, porém, decidiu não vincular diretamente sua imagem ao movimento tropicalista, segundo explica Caetano, pouco depois de falar sobre as reuniões de Gil:

218

O individualismo feroz de Bethânia e sabíamos que ela seria capaz de entender as mais densas das nossas ideias mas, ainda assim, mostrar-se mais resistente a se deixar comprometer do que nossos colegas compositores, que não tinham entendido nada. O que afinal se passou foi que Bethânia ficou sempre ao par das nossas decisões (e indecisões), deu frequentemente sua aprovação, mas se manteve à parte, defendendo a sangue e fogo sua individualidade. (Ibidem, p. 128)

A decisão de Bethânia aparece de modo pertinente em relação ao conjunto de características a ela atribuídas na parte 1 do livro. Assim como não quis se limitar ao rótulo de cantora nordestina de protesto, a identificação como tropicalista também não lhe era desejável. É curioso pensar que o programa de Gil para o qual se planejou o “escândalo antinacionalista” tinha Maria Bethânia como figura chave: ela que entraria de minissaia e guitarra, e ela que leria o texto sobre a força de Roberto Carlos (para quem ela mesma havia chamado atenção). Se não fosse a intervenção de Vandré, talvez o marco da eclosão do tropicalismo teria acontecido naquele momento, e a narrativa sobre seu caminhar “à parte” seria diferente (ainda que, talvez, ela pudesse desvincular-se do rótulo tal como fez em relação ao Opinião). Assim, a ausência de Bethânia nos festivais de 1967 e de 1968, e do disco manifesto (e, naturalmente, do show na boate Sucata ou do elenco fixo do Divino Maravilhoso) confirmam seu distanciamento da realização prática do movimento, embora fique o registro de seu conhecimento e de sua frequente aprovação. Vale lembrar que a canção “Baby” fora encomendada por ela, que ditou para Caetano uma série de imagens presentes na letra. O plano inicial era que Bethânia a gravasse no disco coletivo, o que optou por não fazer, de modo que a tarefa ficou a cargo de Gal Costa. Nara Leão, por sua vez, estava na companhia de Caetano no Hotel Danúbio, quando assistiram da janela, “assombrados”, à marcha contra a guitarra elétrica. O autor conta que Nara comparou a manifestação a uma passeata do Partido Integralista. Como a cantora não compartilhava das ideias anti-tropicalistas, acabou sendo convidada a participar do álbum manifesto, depois de encomendar a Caetano e Gil uma canção com base no quadro Lindoneia de Rubens Gerchman. Assim, o autor comenta o fato: A inclusão de Nata no disco coletivo me pareceu certa não só porque ela havia feito a ponte entre nós e a pintura de Gerchman, mas também por significar uma espécie de realização do sonho inicial de Gil: Nara representava a bossa nova em sua origem e liderava a virada para a música participante – era, portanto, a música brasileira moderna em pessoa. (VELOSO, 2008, p. 269)

219

Assim, Caetano Veloso confirma a peculiaridade da trajetória de Nara Leão, desde o caminho aberto pela bossa nova até a canção de protesto, percurso em comum com muitos colegas de geração. Era nesse estágio que Gilberto Gil propôs a intervenção na música popular, que acabou gerando a resistência. Desse panorama, é possível observar uma ambiguidade interessante no fragmento citado: Caetano não só investe a figura de Nara como metonímia da música brasileira moderna pelo caminho que traçara até aquele ponto, como parece aprofundar essa representação na medida em que a cantora dá o passo “adiante”, chegando ao tropicalismo. Por fim, a ponte com Rubens Gerchman é sugestiva não só esteticamente (pelo trabalho do artista em direção ao pop e à assimilação de elementos do kitsch), mas pela própria temática do quadro, convertida, na letra de “Lindoneia”, no retrato da solidão anônima e do cotidiano violento das cidades. Assim, Nara Leão acaba registrando a canção em homenagem à personagem linda e feia, entre a preguiça e o progresso, o anonimato e as paradas de sucesso, o bolero e o iê-iê-iê, enfim, uma espécie de musa ficcional do tropicalismo.

2.4. O arquétipo de gêmeos – o caso Gilberto Gil

No capítulo “Baihunos”, após explicitar os vários nomes que se envolveram no tropicalismo musical, Caetano Veloso faz o seguinte comentário sobre o núcleo principal (além dele mesmo, Bethânia, Gal e Gil): Mas a visão que eu tinha da unidade de destino de nós quatro, a certeza de que éramos companheiros num nível de luta que os outros não conheceriam, destacava o quarteto. Talvez fosse apenas a captação da vocação para o estrelato – e quantas vezes, ai de mim, passados muitos anos desses dias heróicos, não pensei que talvez tudo não tivesse passado de uma mera atração para o estrelato mais vazio! – mas o fato é que eu via uma luz intensa sobre nós que não parecia pousar sobre os outros. (VELOSO, p.140)

Sugere-se aí, mais uma vez, uma espécie de predestinação do grupo principal para um trabalho grandioso no seio da canção popular do Brasil; veja-se que a imagem de “uma luz intensa” pousando sobre os artistas poderia levar facilmente a uma leitura mística (e mítica) dessa observação. No entanto, essa possibilidade é posta em questão imediatamente, ainda na mesma sentença, quando a versão alternativa cogita a identificação racional de uma simples vocação e até um anseio vulgar pelo sucesso,

220

desnaturalizando uma possível idealização do grupo e de sua intervenção no cenário da canção popular. De todo modo, dos três outros personagens, Gilberto Gil é aquele que confirma de modo mais contundente uma unidade de destino na aventura narrada, estando presente em quase todos os eventos fundamentais do livro, desde os espetáculos no Teatro Vila Velha e de Arena canta Bahia (na primeira parte), passando pelo período de eclosão e desenvolvimento do tropicalismo (na segunda), até a prisão (na terceira) e o exílio londrino (na quarta). Seu perfil, traçado no capítulo “Panis et circensis”, sugere também a predestinação à parceria: Gil parecia tão feliz de me conhecer como eu a ele. Dir-se-ia que ele também vinha me vendo em algum vídeo transcendental e esperava por esse encontro tanto quanto eu. [...] Algumas vezes, ao longo dos anos, ouvi, comovido, Gil dizer que ao me encontrar se sentiu saindo de uma espécie de solidão. (Ibidem, p. 278-9)

A referência ao “vídeo transcendental” reporta-se à história que precedeu o encontro, quando, entre 1962 e 1963, Caetano via Gil se apresentar em um programa de televisão regional, isto é, em um vídeo literal, concreto. Depois, o percurso é conhecido: a mudança para São Paulo, as primeiras aparições em O fino da bossa, a viagem para Pernambuco e as reuniões que apresentavam novos caminhos para a música popular do Brasil. Além disso, Caetano afirma ser Gil o responsável por seus avanços na música logo que se conheceram, e também aquele que deu o primeiro passo mais efetivo em direção ao tropicalismo. Se Gil insiste sempre em creditar a Caetano a liderança do movimento, o autor de Verdade tropical encontra na representação astrológica uma solução para distribuir as responsabilidades: O mito astrológico diz serem os signos de Câncer e Leão opostos e complementares – um o Sol, o outro, a Lua; um condenado à explicitude, o outro, ao mistério – foi usado com proveito tanto por mim quanto por Gil para explicar nossa união e nossa diferença. Walter Smetak, o músico erudito suíço-baiano inventor de instrumentos, dizia que nós éramos, juntos, a encarnação do arquétipo de gêmeos. (VELOSO, 2008, p. 283)

Como de hábito, imediatamente na sequência, o autor pondera sobre as interpretações e os misticismos, reduzindo-os apenas a maneiras de “enfeitar” o companheirismo entre eles. No entanto, a complementaridade entre Caetano e Gil, e a oposição entre a explicitude de um e o mistério do outro aparecem frequentemente na narrativa, tendo como consequência a valorização de Gilberto Gil. Segundo o relato,

221

Rogério Duarte costumava dizer que Gil era o profeta, enquanto Caetano, apenas o apóstolo (note-se que essa metáfora se reporta a um conjunto simbólico relacionado ao messianismo). Avalizando essa tese, o narrador indica que muitas conquistas que se tornaram visíveis foram primeiro intuídas por aquele, para depois serem traduzidas e divulgadas por este. Note-se também que, de modo semelhante como fez com Bethânia, Caetano desenha-se na contraparte racional de Gil, traduzindo suas expressões sensíveis e intuitivas. Vale lembrar que tanto na entrevista a Augusto de Campos (no fim dos anos 1960) como no depoimento a Regina Zappa (já na década de 2010), Gilberto Gil atribui a Caetano Veloso o lugar de maior destaque para o desenvolvimento do tropicalismo. Aliás, a ponderação de Gil (registrada em sua biografia e já citada neste trabalho) reporta-se exatamente à dicotomia da representação mística dos signos, não só quando afirma que o movimento “de intuitivo passou a ser institucional”, mas especialmente quando diz que o grande responsável por essa transição é Caetano, que teria começado a “convocar”, a “articular” (“Aí vem o guerreiro, o líder, o leão, o leonino que é”).169 No texto “Sem patente” (1992), Caetano já havia utilizado a simbologia astrológica para indicar que “Gil é um grande inventor que não registra patente”, isto é, que não reivindica o reconhecimento individual de suas invenções – “sua imensa vaidade exercida com demasiada modéstia e seu desprezo inocente pela própria grandeza são as duas faces dessa lua meio negra e meio escondida que é a música de sua pessoa”.170 No final dessa publicação, Caetano afirma dever a Gil o desenvolvimento de sua técnica musical, apontando-o como mestre e concluindo que este finge para si mesmo ser seu discípulo.171 Diante disso, podemos propor que a formulação do arquétipo de gêmeos serve para equacionar a questão do protagonismo do movimento, mostrando que o fato de Caetano ter se tornado mais visível não quer dizer que seja ele mais importante que o parceiro. Além disso, a solução contribui para a formulação do retrato de Gil e para a autofabulação de Caetano. Nesse sentido, vale observar também que a oposição e a complementaridade entre eles não se limitam às duas primeiras partes do livro (isto é, ao surgimento no cenário da canção e ao desenvolvimento do tropicalismo), mas também duas partes finais, quando

169 Cf. “Nota sobre Torquato Neto”. 170 VELOSO, 2008, p. 96. 171 “Bem, se eu sou alguma coisa em música devo-o absolutamente a ele. Sei que ele não teria muito do que se orgulhar, se reconhecesse sua condição de mestre. Mas não: finge para si mesmo que é meu discípulo e se orgulha até do que eu não sei fazer.” (Ibidem, p. 98) 222

reagem de modo diverso diante dos castigos da prisão e do exílio. Na parte 3, por exemplo, o narrador faz a seguinte comparação sobre o período em que estiveram presos: Tendo percebido cedo que algo assim poderia acontecer, e em tudo mais adulto que eu, em vez de simplesmente se sentir aniquilado, pôde ao menos tentar transformar a experiência em algo produtivo para sua formação. Na cadeia, ele achou oportunidade para exercitar uma espécie de ascetismo, deixou de comer carne, adivinhou sabedorias orientais que o levaram a estudos posteriores e à alimentação macrobiótica. Esta última, literalmente, mudou sua vida: seu corpo, sua pele, seu temperamento mudaram para melhor e para sempre. Enquanto eu apenas descobria que o sofrimento não serve para absolutamente nada. (Ibidem, p. 404)

Veja-se como, mais uma vez, o narrador se vale do recurso do espelhamento para imprimir uma imagem para si e para o amigo. Assim, Gil é novamente vinculado ao pensamento intuitivo, pioneiro, maduro, sábio; e, ao mesmo tempo, é inserido no universo da contracultura, que lhe permite “adivinhar sabedorias orientais”. Caetano, na chave oposta, reafirma-se em seu dado de juventude, de inconsequência e de imaturidade, que o caracterizariam naquela época, mas que também se relacionam à mitologia jovem de modo mais amplo. Enquanto um se encaminhava para o misticismo e o esoterismo, o outro buscava ainda mais firmemente o ceticismo e a realidade mais concreta. Enquanto para um a tristeza é possibilidade de crescimento individual e progresso, para o temperamento solar do outro só é possível associá-la à inutilidade e à estagnação. Outro aspecto importante a observar no retrato de Gil é a centralidade que tem a questão racial, que, aliás, também é apresentada a partir do procedimento especular que nos serve de chave para o capítulo. Nesse sentido, Caetano define a si e ao outro nos seguintes termos: “Gil é um mulato escuro o suficiente para, mesmo na Bahia, ser chamado de preto. Eu sou um mulato claro o suficiente para, mesmo em São Paulo, ser chamado de branco.”172 Veja-se como Caetano investe no dado de mestiçagem que os aproxima para, a partir dele, estabelecer as diferenças, dando relevo também às diferentes percepções do componente racial entre a Bahia e São Paulo. A trajetória de Gil aparece, portanto, profundamente marcada por essa questão, desde o episódio mais remoto de contato entre eles. Caetano afirma que, quando Gil aparecia na televisão, Dona Canô chamava-o: “venha ver o preto que você gosta”. O narrador sublinha aqui a naturalidade com que a mãe empregava o termo (não raro utilizado no Brasil com sentido pejorativo), como se nele estivesse traduzida a simples

172 VELOSO, 2008, p. 281. 223

expressão de uma negritude que se afirmava por si. A partir disso, Caetano narra um processo de transição de Gil em relação à questão racial que se coloca nos seguintes termos: Gil nunca parecia consciente do fato de que era preto. Isso não o humilhava ou enaltecia: ele simplesmente se portava como um cidadão desembaraçado. Sua desenvoltura natural fazia com que a negritude nele correspondesse ao tom em que minha mãe se referia a ela. No final da década – sobretudo sob o impacto de Jimi Hendrix – Gil vestiu a máscara do negro africano com consciência racial e essa nova persona, em vez de meramente ocultar o homem resolvido além dos conflitos, revelou o conteúdo de mágoa e orgulho havia muito latentes sob o antigo véu. (Ibidem, p. 282)

Veja-se que o assunto aqui sublinha a oposição política que atravessa o livro, na medida em que se dá destaque ao componente racial que, segundo o autor, era negligenciado (ou pouco enfatizado) por grande parte da esquerda nacional-popular. É importante que se perceba que o espaço de elaboração dessa mudança relaciona-se ao impacto de Jimi Hendrix e da cultura pop, dos movimentos de afirmação dos negros nos EUA e, assim, da contracultura internacional. O amadurecimento dessa consciência racial foi fundamental também para que Gil ressignificasse Jorge Ben e, posteriormente, valorizasse a experiência de Bob Marley. Além disso, é na sequência do apogeu contracultural, já no início dos anos 1970, que Gil ajudou a fortalecer o afoxé dos Filhos de Gandhi, o que estimulou o surgimento de outros blocos afro em Salvador, em um momento em que o axé se encaminhava para se tornar um evento popular de massas de amplo alcance. É também a partir desse universo que Caetano descreve a importância de Gilberto Gil no espaço mítico e real da cultura pop brasileira.

2.5. Divino maravilhoso – o caso Gal Costa

Gal Costa também faz parte do grupo inicial que participou dos espetáculos do Teatro Vila Velha em 1964 e do Arena canta Bahia em 1965. No entanto, é na seção “Domingo” que seu perfil é traçado com mais vagar, em função do disco homônimo, lançado por Gal e Caetano em 1967. Na contracapa do disco, este define aquela: Gal participa dessa qualidade misteriosa que habita os grandes cantores de samba: a capacidade de inovar, de violentar o gosto contemporâneo, lançando o samba para o futuro, com a espontaneidade de quem relembra velhas musiquinhas. (VELOSO, 2005, p. 202)

224

Contrariando a vinculação entre o samba e o tradicionalismo, Caetano associa Gal ao mistério do maior entre os grandes cantores, na opinião de ambos – aquele que violentou o gosto contemporâneo e lançou o samba para o futuro: João Gilberto. O disco consiste, aliás, em um retorno contundente ao canto joãogilbertiano frente aos rumos de O fino da bossa, no qual Elis Regina representava o afastamento de seu estilo, conforme já discutimos. Assim, esse trabalho apresenta a mesma premissa que levou ao tropicalismo musical: a necessidade de retomar a linha evolutiva a partir de João Gilberto. Em “Domingo”, Caetano Veloso afirma que estava planejando, em parceria com Rogério Duarte, um repertório para Gal Costa que pudesse superar as oposições entre MPB e jovem guarda, mas também entre música sofisticada moderna e música comercial vulgar. O empresário Guilherme Araújo acreditava ser possível transformá-la em uma nova rainha do iê-iê-iê. Caetano narra, na sequência, as discussões sobre a escolha do nome artístico para a cantora. Guilherme rejeitava tanto o uso de Maria da Graça (seu nome de batismo), como “Gau” (seu apelido mais íntimo). A escolha final é comentada nos seguintes termos: ... esse nome Gal Costa teve sabor de coisa inventada para mim mais do que para qualquer outro. Hoje, que todos a chamam simplesmente de Gal, fico inteiramente em paz com essa história: é seu nome, seu nome verdadeiro, e é um nome baiano, profundamente autêntico e revelador da cultura particular do recôncavo da Bahia e da Cidade de Salvador, além de ser bonito e o modo mais carinhoso de se a chamar. É, como queria Guilherme, internacional e pop, mas é pessoal e regional até a ponta da raiz. É um lance de poesia profunda, feito de acaso e equívocos, que serve como síntese do drama tropicalista. (VELOSO, 2008, p. 124-125)

Como de costume, Caetano exercita, na descrição dos personagens reais do livro (ou dos fatos a eles adjacentes), a observação dos elementos contraditórios, que conferem complexidade às pessoas, à narrativa, à análise cultural e, por fim, ao Brasil que se evoca por trás de todos os paradoxos tropicalistas. Gal é nome artístico, mas também nome real (homófono do apelido Gau, atribuído frequentemente a pessoas de nome Maria da Graça na Bahia), mas um nome que soa internacional (como a cantora francesa Francis Gal, citada como exemplo no próprio texto). Aliás, vale lembrar que o uso do apelido por si só já é revelador de um traço marcante do Brasil, sinalizado por Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda173. Além disso, o nome revela as contradições entre o “reconvexo” e o

173 Segundo Gilberto Freyre, especialmente as amas negras foras responsáveis por “amaciar” a língua brasileira, cujo exemplo mais evidente é a transformação dos nomes próprios em apelidos: “Os nomes próprios foram dos que mais se amaciaram, perdendo a solenidade, dissolvendo-se deliciosamente na boca 225

“recôncavo”, na medida em que sinaliza as dualidades entre o pop e o pessoal, e o internacional e o regional. O batismo artístico de Gal Costa (uma potencial rainha do iê-iê-iê) acabou sendo reforçado por uma parceria de Roberto Carlos e Erasmo Carlos, que enviariam (sem saberem do debate com Guilherme Araújo sobre o nome artístico) a canção “Meu nome é Gal”, para o primeiro disco tropicalista (e o mais experimental da carreira) da cantora (Gal, 1969). A letra fala no desejo do eu-lírico (feminino) de se corresponder com um rapaz “que seja o tal”, e começa a enumerar características que não seriam problema para ela: “não faz mal que ele não seja branco, não tenha cultura”, “e tanto faz que ele tenha defeito ou traga no peito crença ou tradição”. A abordagem de questões relacionadas à raça, cultura (no sentido de “alta cultura” e, portanto, com suas implicações de classe) e religião faz da letra de Roberto e Erasmo um texto afinado com o ideário tropicalista, além do que a repetição de “meu nome é Gal” e, mais especificamente do “Gal”, faz desse monossílabo uma emissão propícia para que a cantora imite o som da guitarra, operação esta que faz com grande competência. Na mesma canção, há uma parte declamatória que diz: Meu nome é Gal, tenho 24 anos Nasci na Barra Avenida, Bahia Todo dia eu sonho alguém pra mim Acredito em Deus, gosto de baile, cinema Admiro Caetano, Gil, Roberto, Erasmo, Macalé, Paulinho da Viola, Lanny, Rogério Sganzerla, Jorge Ben, Rogério Duprat, Waly, Dircinho, Nando, E o pessoal da pesada E se um dia eu tiver alguém com bastante amor pra me dar Não precisa sobrenome Pois é o amor que faz o homem 174

Gal afirma-se, assim, pelo nome, pela idade, pelo lugar de origem, pela fé e, por fim, como diz o ditado, define quem é dizendo com quem anda. O pessoal da “pesada” (expressão que caberia perfeitamente numa canção de jovem guarda) começa por Caetano e Gil (evocando o movimento tropicalista e a formação artística da cantora), logo seguida

dos escravos. As Antônias ficaram Dondons, Toninhas, Totonhas; as Teresas, Tetés; os Manuéis, Nézinhos, Mandus, Manés; os Franciscos, Chico, Chiquinho, Chicó; os Pedros, Pepés; os Albertos, Bebetos, Betinhos. Isto sem falarmos das Iaiás, dos Ioiôs, das Sinhás, das Manus, Calus, Bembens, Dedés, Marocas, Nocas, Nonocas, Gegês”. (FREYRE, 2006, p.414). Sérgio Buarque, por sua vez, observa o prevalecimento do primeiro nome (e ainda dos diminutivos) em relação ao sobrenome, reforçando os traços de cordialidade, intimidade e pessoalidade que marcam as relações no Brasil, segundo sua leitura. 174 http://www.galcosta.com.br/sec_discografia_letra.php?id=384. 226

por Roberto e Erasmo (autores da canção e reafirmação da legitimidade da jovem guarda para a música brasileira) e de outros colegas, compositores, poetas, cineastas e músicos do cenário da época. Assim, essa canção tornou-se emblemática do surgimento e da consolidação de Gal Costa na história da canção brasileira. A artista volta a aparecer em Verdade tropical no capítulo “Panis et circensis”, onde se narra sua participação no disco tropicalista, interpretando “Baby” e “Mamãe coragem”. Esta, uma canção afinada com o imaginário da contracultura que tematiza o filho que sai de casa (mas também uma referência a Brecht); aquela, o primeiro grande sucesso da carreira de Gal e, segundo o autor, uma realização dos sonhos dele, de Rogério Duarte e de Guilherme Araújo para a artista. Outro episódio emblemático de Gal Costa diz respeito ao Festival da TV Record de 1968, no qual defende a canção “Divino Maravilhoso”. Segundo Caetano, a canção “trazia sugestões do clima de rebeldia estudantil contra a ditadura e quase prefigurava, em suas imagens violentas, a luta armada”; por outro lado, a melodia consistia no “pop mais doce e pegadiço”. O choque entre o componente temático e o musical relaciona-se diretamente ao próprio paradoxo do refrão, que afirma que “tudo é perigoso/ tudo é divino maravilhoso”. A letra encaixa-se, portanto, no conjunto das canções tropicalistas que trazem a simultânea adesão e crítica ao tempo presente, valendo-se da comunicação rápida dos elementos pop, num conjunto que permite aproximações estreitas com “Alegria, alegria” e com a avaliação de Augusto de Campos sobre esta. Importante destacar também que a defesa da canção marca uma virada também no estilo de Gal, que naquele momento passava a uma interpretação vibrante que incorporava as informações musicais de Janis Joplin e de James Brown, segundo identifica o autor. Em 1969, os dois discos lançados pela cantora revelam a continuidade dessas experimentações, bem como um repertório que abrange Gil, Caetano, Jorge Ben e Roberto Carlos. Esses trabalhos não são comentados em Verdade tropical, apesar de atravessarem os temas fundamentais do livro e, em especial, de realizarem, de forma ainda mais contundente, os planos iniciais para a cantora, no sentido de superar as divisões entre MPB e iê-iê-iê ou entre música comercial e música sofisticada. Apesar dessa lacuna, em parte influenciada pelo exílio do autor, Caetano Veloso afirma que “Gal tinha ficado no Brasil como uma espécie de representante do grupo baiano tropicalista”, citando, na sequência, o show Fa-tal/ Gal a todo vapor de 1971.

227

Não deixa de ser interessante registrar que esse espetáculo (que resultou no álbum ao vivo) apresenta repertório diversificado que, além de abranger de Ismael Silva e Geraldo Pereira a Roberto Carlos e Caetano Veloso, apresenta ainda a colaboração de Waly Salomão (o diretor do show), Jards Macalé e Luiz Melodia, figuras frequentemente associadas à geração marginal (o que se reforça com a presença da canção de Jorge Ben que homenageia o herói da malandragem, “Charles Anjo 45”). Assim, encerra-se aqui o percurso de Gal Costa no livro, consolidando-se como figura representativa do tropicalismo, não só por sua importância, mas por seu próprio trajeto, da bossa nova à eclosão do tropicalismo, e deste à aproximação com a marginália.

2.6. O país utópico – o caso Jorge Ben

Jorge Ben é uma espécie de precursor, ou ainda, de realizador paralelo de algumas das proposições do tropicalismo. Sua presença em Verdade tropical concentra-se no capítulo “Tropicália”, o sétimo e último do conjunto que narra os eventos passados em 1967. A escolha dessa seção – a mesma em que se explica a letra da canção-manifesto – corrobora a identificação do artista com as ambições estéticas do movimento. Registra-se aí a existência de um disco de grande influência para Caetano e Gil, chamado O bidú - silêncio no Brooklin, lançado naquele mesmo ano. Ben aparece no livro, na sequência, como compositor de “Charles Anjo 45” e como convidado de um dos programas tropicalistas da TV Tupi. O surgimento de Jorge Ben no cenário da canção brasileira vincula-se ao disco Samba esquema novo, de 1963, que apresenta uma variante peculiar de samba, caracterizada pela influência da bossa nova, mas também pela presença de um ritmo mais africanizado; a batida de seu violão evidencia aproximações com o rock e a música negra americana. É desse primeiro trabalho a composição “Mas que nada”, que alcançou sucesso internacional com a gravação de Sérgio Mendes no álbum Herb Alpert presents Sergio Mendes & Brazil 66 (lançado nos EUA em 1966), tornando-a uma das canções brasileiras mais conhecidas no exterior desde aquele momento. Caetano Veloso começa seu relato exatamente pela inserção de Jorge Ben no panorama musical brasileiro a partir de seu surgimento até o ano de 1967, quando as fusões que estava realizando entre samba e rhythm&blues começavam a afastá-lo do ambiente estrito da MPB. Além disso, sua participação no programa Jovem Guarda é apontada como

228

motivo para não ser mais convidado para O fino da bossa175. Esse conjunto de fatores teria contribuído para um período de relativo ostracismo naquele ano. Vale notar como é emblemático em relação ao tropicalismo o fato de que o artista havia cruzado os campos estanques da MPB e da jovem guarda, tendo participado de ambos os programas. Aliás, Caetano Veloso faz menção indireta à canção “A Jovem Samba”, na qual o compositor tentava uma conciliação entre a música jovem e o samba176. Desde o início do relato, portanto, Jorge Ben já se apresenta como atravessador das segmentações da música brasileira, mesmo gesto pretendido pelos tropicalistas. Caetano Veloso, depois de registrar a reverência de Gilberto Gil em relação a Jorge Ben (que envolve também questões de ordem racial), passa então ao comentário sobre o disco O bidú: silêncio no Brooklin, no qual o uso da guitarra elétrica aproximava-o “dos blues e do rock” e, com isso, “revelava melhor a essência do samba tal como ela podia manifestar-se nele”.177 Note-se como essa realização caminha exatamente segundo a proposta da continuidade da linha evolutiva: Ben, influenciado por João Gilberto, lançava mão da informação da música americana moderna para aprofundar a experiência do próprio samba. Em sua análise, Caetano Veloso sublinha que a recusa a Jorge Ben em O fino da bossa e no campo restrito da MPB, àquela altura, aproximava-o ainda mais da jovem guarda (Roberto Carlos era quem lhe dava espaço), o que teria sido benéfico para o processo criativo do disco. O autor, porém, não comenta duas coisas que corroboram seu argumento: o disco era todo acompanhado pelo conjunto de iê-iê-iê The Fevers; além disso, apresenta uma canção em parceria com Erasmo Carlos (“Menina gata augusta”). O bidú: silêncio no Brooklin (1967) é observado em Verdade tropical especialmente a partir da canção “Si manda” (sic), “um híbrido de baião e marcha funk”, sobre a qual Caetano afirma: “Se manda”, com sua agressividade alegre (é uma letra de mandar embora a mulher que “vacilou”, sumariamente e sem culpa) e sua musicalidade deixando à mostra traços crus de samba de morro e blues numa composição de exterioridades nordestinas, era a encarnação dos

175 Há uma gravação de “Mas que nada” por Elis Regina no programa O fino da bossa de novembro de 1965. A informação consta no último volume da trilogia de CDs Elis Regina no Fino da Bossa, lançada em 1994. No Volume 2, há um dueto de Ben e Elis cantando “Chorava todo mundo”, datada do mesmo dia. 176 “eu sou da jovem samba/ a minha linha de bamba/ o meu caso é viver bem/ com todo mundo e com você também/ na paz de deus/ quero trabalhar em paz,/ na paz de deus/ quero amar, amar em paz,/ na paz de deus/ quero sambar, sambar em paz”. 177 VELOSO, 2008, p. 193. 229

nossos sonhos. Parecia-me que minha “Tropicália” era mera teoria em comparação. (VELOSO, 2008, p. 193-4)178

A comparação de Caetano entre “Si manda” e “Tropicália” é formulada de modo a sugerir uma ambiguidade: além de afirmar a superioridade da canção de Ben, o autor acaba sublinhando que, se sua canção era “mera teoria” (isto é, uma espécie de manifesto teórico dos princípios do tropicalismo), aquela canção (e o disco de Ben de modo geral) revelava- se como realização prática de suas ambições no nível formal, o que se vincula diretamente ao uso da informação da música americana para chegar a uma composição sincrética que aprofunda a experiência do samba e, portanto, da música brasileira. Na sequência dessas discussões, Caetano afirma: Mas o que nos atraía [em Jorge Ben] eram menos as misturas estilísticas que ocorriam nele do que a atmosfera de alegria física genuína que sua presença no panorama da música brasileira instaurava. Saúde era a palavra que mais nos vinha aos lábios quando falávamos nele. [...] Saúde era o que exalava da figura, do timbre, das ideias de Jorge Ben. A própria atração pela cena pop norte-americana era já para nós a essa altura um sinal de saúde. (VELOSO, 2008, p. 193)

A afirmação supracitada pressupõe uma ausência de “saúde” no panorama da música brasileira a qual se refere. Nesse sentido, não só a redundância das temáticas da miséria, da migração e da injustiça social que davam tom à canção de protesto dos anos 1960, mas as próprias limitações formais impostas, de um lado, pelas pressões do mercado e, de outro, pelas premissas ideológicas do projeto nacional-popular compunham um quadro pouco “saudável” para a canção brasileira. Note-se também que essa palavra guarda algum parentesco com a expressão “vitalidade”, atribuída por Maria Bethânia a Roberto Carlos, outro artista a lançar mão da música americana, especialmente o rock e seu imaginário mais jovial. Desse modo, a liberdade para incorporar a informação musical estrangeira (sem preocupações ou culpas), além das escolhas temáticas e do tom frequentemente eufórico das composições de Jorge Ben (mesmo as que tratam de separações ou de outros problemas) contribuem para sua “saúde”.179

178 Em texto para O pasquim de novembro de 1969, Caetano afirma: “Estou reouvindo Jorge Ben: se manda, vai-se embora. Eu não quero mais você. Cada vez eu me convenço mais que Jorge Ben é um dos maiores artistas da música brasileira. No LP Bidu, que saiu em 67, você pode ver como ele tem uma das obras mais originais e íntegras de toda a história da música popular.” (VELOSO, 2005, p.320). Em texto de 1981, o autor vai além: “Jorge Ben é o maior de todos nós”. (Ibidem, 303) 179 Caetano já havia usado a expressão em texto para O Pasquim de novembro de 1969, quando comentando a entrevista de Jorge Ben para o periódico, afirma: “Principalmente a entrevista de Jorge Ben é viva demais, bonita demais. Por que só agora um gênio como ele tem espaço para falar de um jeito que deixa ver a grandeza de sua personalidade, a sua saúde toda? O Brasil é muito esquisito.” (VELOSO, 2005, p. 324) 230

Outro disco que interessa à nossa discussão é Jorge Ben (1969), especialmente pela presença de mais duas canções emblemáticas para a discussão sobre o tropicalismo: “País tropical” e “Charles Anjo 45”. Esta última fora gravada por Caetano Veloso pouco antes de sua prisão em 1968, mas, por decisão da gravadora, não foi lançada. Caetano a define como uma saudação romântica a um herói marginal”, “o bandido de coração bom, cuja generosidade é apenas um complemento de sua caracterização como protesto vivo contra as injustiças sociais”180. Vale a pena rememorar a letra: Oba, oba, oba Charles Como é que é my friend Charles Como vão as coisas Charles

Charles Anjo 45 Protetor dos fracos e dos oprimidos Robin Hood dos morros, rei da malandragem Um homem de verdade com muita coragem Só porque um dia Charles marcou bobeira E foi tirar, sem querer, férias forçadas numa colônia penal

Então uns malandros otários Deitaram na sopa E uma tremenda bagunça O nosso morro virou Pois o morro que era um céu Sem o nosso Charles Um inferno virou Mas Deus é justo e verdadeiro Pois antes de acabar as férias O nosso Charles vai voltar Paz, alegria geral Todo o morro vai sambar Antecipando o carnaval Vai ter batucada Uma missa em ação de graças Vai ter feijoada, uísque com cerveja e outras milongas mais Muita queima de fogos E saraivada de balas pro ar Pra quando o nosso Charles voltar E o morro inteiro feliz vai cantar

Oba, oba Charles Como é my friend Charles Como vão as coisas Charles181

Desde a primeira estrofe, o uso das expressões “como é que é?” ou “como vão as coisas?” e ainda o emprego reiterado da interjeição “oba” como saudação relacionam-se ao

180 VELOSO, 2008, p. 408. 181 http://www.galcosta.com.br/sec_discografia_letra.php?id=28. 231

registro informal, absolutamente adequado ao universo temático e socioespacial presente na letra. Além disso, a assimilação de expressões de língua inglesa como “my friend” e mesmo a adoção habitual de nomes próprios estrangeiros (com as mais diversificadas variações de pronúncia e escrita) como “Charles” remetem à influência e à abrangência da cultura de massas internacional (também presente na alusão a Robin Hood), confirmando a pertinência do registro linguístico. O “Charles Anjo 45” combina o nome estrangeiro, abrasileirado na pronúncia, com o epíteto de Anjo 45, apontando, de um lado, para o caráter benéfico e protetor do personagem e, de outro, para o universo da criminalidade revelado pelo uso metonímico de “45” em referência ao calibra da arma. É preciso lembrar que a gravação teria sido feita pouco antes da prisão de Caetano e Gil, portanto, no final de 1968. Esse período coincide exatamente com a aproximação maior do tropicalismo com o imaginário marginal, com o qual a letra dialoga. Desse modo, a canção serve de pretexto ao comentário do autor sobre a ambiguidade do “bandido”, sendo simultaneamente uma figura de ordem e de transgressão. Comparado a Robbin Hood, a contravenção por meio do roubo (dos ricos para os pobres) aparece como gesto heróico de reparo da injustiça social. E aqui vale lembrar que o uso do estandarte “Seja marginal, seja herói” de Hélio Oiticica é aproximadamente do mesmo período que a gravação. Além disso, a escolha da canção e o comentário sobre ela sublinham o afastamento de Caetano Veloso em relação às canções de protesto, cujos personagens seriam afirmados como heróis ou vítimas, faltando-lhes o traço de complexidade que está presente no personagem de Ben. A composição exemplifica também como mesmo a abordagem da favela (com suas dificuldades e sua violência) aparece de forma enérgica e cheia de vitalidade (de “saúde”) em sua crônica. Caetano Veloso conta que a gravadora negou-se ao lançamento de sua versão da canção devido à coincidência entre sua própria prisão e o fato de o personagem ter ido “passar férias numa colônia penal”182, o que poderia soar como uma provocação. Vale a nota de que “Charles Anjo 45” foi pouco depois gravada por Gal Costa no disco Fatal – a todo vapor (1971), no contexto do “pós-tropicalismo”, quando Caetano já estava no exílio londrino. Esse dado ressalta a linha que, passando pelo tropicalismo musical, leva da tropicália à marginalia.

182 A canção foi registrada em uma coletânea de singles de Caetano Veloso, lançada em 2002. 232

Vale ressaltar, por fim, a importância de “País tropical” para nossa discussão, sendo esta uma das canções que mais esbanja “saúde” da música popular brasileira. No final do capítulo “Tropicália”, Caetano reporta-se à definição que dera para Jorge Ben no texto “Diferentemente dos americanos do norte”. O contexto original dessa avaliação associa-se diretamente àquela canção: [...] a alegria pura – beleza pura – de Ben/ Ben Jor é da mesma natureza daquela da bossa nova, apenas aqui num caso individual de expressão extrovertida agressiva. [...]. A canção “País tropical” é mais do que o avesso da canção “Tropicália”: ela é o canto do homem alegre do país que os tropicalistas tinham em mira no seu primeiro movimento de sair do reino das sombras. O artista Jorge Ben é o homem que habita o país utópico trans-histórico que temos o dever de construir e que vive em nós. (VELOSO, 2005, p. 60-1)

Com essa observação, Caetano Veloso indica que o desejo de “saúde” e de vitalidade que se encontra nas buscas e nas simpatias do tropicalismo, de algum modo, também tem sua origem na bossa nova e, portanto, pertence à mesma lógica da necessidade de resgatar sua “linha perdida”. É possível afirmar que, de modo particular, esse estilo é responsável por construir também uma utopia, vinculada ao “Rio de amor que se perdeu” ou ainda à tríade “o amor, o sorriso e flor”183. Assim, Jorge Ben e a bossa nova são expressões de semelhante impulso utópico, expresso, porém, em chaves diversas (uma extrovertida, a outra intimista). Esse fragmento ajuda também a pensar a colocação de Jorge Ben no capítulo “Tropicália”, uma vez que duas de suas músicas podem ser associadas à canção manifesto: “Si manda” é a concretização das ambições tropicalistas nela teorizadas; “País tropical” é seu retrato em negativo. Assim, se “Tropicália” é um convite a descer “ao reino das sombras” onde se encontra o “inconsciente nacional” referido insistentemente por Caetano, é também de lá que se poderia trazer o país utópico e trans-histórico descrito por Jorge Ben. A ligação íntima entre essas duas últimas canções evidencia-se especialmente quando se pensa no “mito da tropicalidade” que as relaciona. “País tropical” é também um inventário de expressões desse imaginário: as belezas naturais do Novo Mundo (“moro

183 As referências aqui são “Carta ao tom” (Toquinho/ Vinicius de Moraes) – “Lembra que tempo feliz ai, que saudade/ Ipanema era só felicidade, era como se o amor doesse em paz// nossa famosa garota nem sabia/ a que ponto a cidade turvaria/ esse rio de amor que se perdeu” – e “Meditação”, cujos versos “quem acreditou/ no amor, no sorriso, na flor/ então sonhou, sonhou/ e perdeu a paz/ o amor, o sorriso e a flor/ se transformam depressa demais/ quem, no coração/ abrigou a tristeza de ver/ tudo isto se perder” guardam claro parentesco com o outro fragmento. Essa canção fornece o titulo do álbum O amor, o sorriso e a flor de 1960 de João Gilberto. 233

num país tropical/ abençoado por Deus/ e bonito por natureza” às quais se acrescentam as grandes expressões da alegria nacional, o futebol e o carnaval, corroborados pela cultura de massas e presentes na estereotipação frequente do país que ajuda a propagar; além da referência à negritude no conjunto desse retrato positivo (“em fevereiro tem carnaval/ tem um fusca e um violão/ sou flamengo e tenho uma nega chamada Tereza”). Assim, sob a luz do “mito de tropicalidade” descrito por Hélio Oiticica, “País tropical” pode ser vista como manifesto contundente do não-condicionamento do Brasil aos paradigmas dos países dominantes. Carmen Miranda (sua alegria, seu carnaval, suas frutas tropicais à cabeça) também está, de algum modo, aqui presente. Segundo se pode inferir dos argumentos de Caetano, seria importante desobstruir o hipotético “inconsciente nacional” – “o país que vive em nós” – justamente para que possamos construí-lo.184

2.7. O homem da caravela ou o caso Tom Zé

Tom Zé aparece na narrativa de Verdade tropical a partir das apresentações no Teatro Vila Velha em 1964 e de Arena canta Bahia, do qual foi um dos integrantes, junto com Caetano, Gal, Gil e Bethânia (mais Piti). Posteriormente, Caetano conta que em uma das idas a São Paulo fez o convite a Tom Zé para acompanhá-lo. Seu perfil é caracterizado na sequência: Quando afinal nos conhecemos, ele me cativou pelo seu ar de sertanejo, por suas observações pseudomal-humoradas, expressas num sotaque rural que mais realçava do que escondia a elegância clássica de seu português culto e correto. Seu físico de duende mameluco, de personagem de lenda cabocla confirmava sua condição de pessoa especial. Tom Zé tem uns olhos muito vivos, como que a provar que uma interessantíssima concentração de energia é a razão de ele ser tão miúdo. (VELOSO, 2008, p. 270)

Caetano Veloso reitera aqui o procedimento de compor perfis a partir de aparentes contradições e do gosto pela excentricidade, não faltando aqui o elemento da miscigenação, que sugere também o componente de brasilidade. Na sequência, a descrição filia Tom Zé ao período de experimentação vanguardista em Salvador, apontando que o artista fez parte dos Seminários Livres de Música, tendo sido aluno de Koellreutter. Nesse

184 A definição proposta por Caetano reverbera na canção “Fora de ordem”, na qual afirma: “Alguma coisa em nossa transa/ É quase luz forte demais/ Parece pôr tudo à prova/ Parece fogo, parece/ Parece paz, parece paz...//Pletora de alegria/ Um show de Jorge Benjor/ Dentro de nós/ É muito, é grande/ É total...”.

234

conjunto, é importante notar que a ligação entre “o rural e o experimental” aproximam o perfil de Tom Zé do ideário tropicalista. Caetano Veloso relata ainda o episódio pitoresco do avião, no qual Tom Zé exigia à aeromoça uma cachaça e, diante da resposta negativa, ordenava que se parasse aquela “caravela” para que descesse. Em outra passagem, Tom Zé teria dito em entrevista que os tropicalistas gostavam de Chico Buarque, afinal, ele era “o avô” deles. O humor excêntrico (por vezes “pseudomal-humorado”) aparece nos dois casos de modo a ratificar o retrato geral. No disco coletivo, Tom Zé participou com sua composição “Parque industrial”, que não é analisada por Caetano no livro; este limita-se a afirmar que “o disco coletivo era o veículo natural para as canções” que aquele “tivesse trazido da Bahia ou viesse a compor em São Paulo”185, indicando a pertinência do trabalho do artista em relação ao ideário tropicalista. Isso poderia ser corroborado com a própria canção escolhida, que apresenta como tema a inserção do país na modernidade, operando, segundo Celso Favaretto, “a carnavalização, o deboche e a ironia dos mitos oficiais”186. Assim, a canção começa pelo “céu de anil”, elemento recorrente da representação da paisagem tropical do Brasil, à qual se soma o dado da festividade. O uso da segunda pessoa do plural reforça o tom de exaltação, cujo escopo transporta-se para o presente ao mencionar, com ironia, a promessa de redenção pelo “avanço industrial”. O distanciamento irônico pode ser percebido não só pela incorporação da linguagem da propaganda (“é somente requentar e usar”, “é somente folhear e usar”) e do conteúdo do jornalismo (a revista moralista baseada em “fofocas” de personalidades e o jornal popular repleto de violência), mas também pelo emprego da expressão em língua inglesa “made in Brazil” (que remonta o paradigma de industrialização dos EUA e o atribui ao Brasil) e, por fim, pela própria entonação cafona e debochada que conduz o canto. Em Verdade tropical, Tom Zé aparece ainda como parte do elenco fixo do programa Divino maravilhoso da TV Tupi; é ele, aliás, que comanda os dois ou três programas posteriores à prisão de Caetano e Gil. Isso é um dado interessante, pois coloca o artista na posição de terceiro homem do tropicalismo, criativo e consciente das diretrizes do movimento.

185 VELOSO, 2008, p. 272. 186 FAVARETTO, 2007, p. 106. 235

Em “Vereda”, Caetano Veloso observa como Tom Zé andava esquecido no Brasil, até que, no final dos anos 1980, escutou o disco Estudando o samba (1976), interessando-se pelo artista e lançando The Best of Tom Zé (1990), provocando interesse internacional por sua obra. O período de ostracismo de Tom Zé não é aprofundado em Verdade tropical, muito embora exista a discussão sobre a exclusão do artista sobre os louros do tropicalismo. Aliás, nem o disco Grande liquidação (1968) nem sua vitória no IV Festival da TV Record com “São São Paulo, meu amor” são mencionados no livro, e, na conclusão, há apenas uma menção geral à sua obra posterior ao período tropicalista (“Eu amava os discos experimentais de Tom Zé ou de Walter Franco”187). No entanto, em artigo para a Folha de S. Paulo em 2010, Caetano Veloso fala sobre um número do show Fina estampa, no qual dançava sentado na cadeira o tango “Mano a mano”. Tom Zé, que havia feito número semelhante anos antes (com outra canção), teria ficado desconfortável diante da cena. Isso é contado por Caetano com o intuito de fazer uma reavaliação do episódio, creditando ao colega a originalidade da ideia e a superioridade daquela versão (o que lhe garante afirmar também a diferença entre as duas situações). A conclusão do parágrafo diz: “Muita dor atravessa esses anos em que fui famoso, e Tom Zé não”.188 Note-se que, ao colocar a dor como o sujeito da ação, Caetano omite se quem a sentiu foi ele, Tom Zé ou ambos. A questão poderia ser desenvolvida a partir de várias hipóteses. Em primeiro lugar, é possível observar que a narrativa acerca do tropicalismo musical começou a ser desenvolvida, como se sabe, a partir dos textos de Augusto de Campos, que se concentraram no período de eclosão do movimento, mormente vinculado ao Festival da Record de 1967. Nesse concurso, Tom Zé chegou a participar como compositor com a canção “A moreninha”189, defendida por Djalma Dias, que não conseguiu ficar entre as primeiras colocadas. Assim, no evento da virada de Gil e Caetano (acompanhada pelos textos de Augusto), o artista ainda não tinha o destaque que teria no ano seguinte. Vale lembrar que a escalada de sua vitória no festival de 1968 aconteceu apenas entre novembro e dezembro, meses depois da gravação do disco coletivo. É preciso lembrar também que Tropicália – ou Panis et circensis foi gravado em maio daquele ano, já depois do início de popularização do termo “tropicalismo” no artigo de Nelson Mota de fevereiro. Assim, Tom Zé, que fez parte da pré-história do movimento em 1964 e 1965, não era uma figura

187 VELOSO, 2008, p. 485. 188 VELOSO, 2005, p. 266. 189 A canção foi gravada por Gilberto Gil, como última faixa de seu disco pré-tropicalista, Louvação de 1967. 236

destacada no momento inicial de sua popularização, entre o segundo semestre de 1967 e os primeiros meses de 1968. Além disso, seria preciso considerar a singularidade da produção de Tom Zé e de seus discos conceituais, que frequentemente apresentam as canções como peças de um conjunto íntegro, exercendo um experimentalismo (em cada uma e no conjunto) que muitas vezes o distanciou (distancia) de ser um grande vendedor de discos, o que se intensifica a partir dos anos 1970, quando começa a referida fase de ostracismo. Mesmo após seu redescobrimento nos anos 1990, o artista continua não sendo uma figura muito conhecida dos grandes públicos tampouco aparece com frequência nos veículos de comunicação de massa mais populares. Assim, apesar de sua presença na pré-história do tropicalismo (1964-1965) e no período de desenvolvimento do movimento, do álbum manifesto ao programa na TV Tupi (1968), sua pouca visibilidade no momento de eclosão e o fato de sua produção ser profundamente particular e pouco comercial podem ter contribuído para que seu nome fosse pouco dimensionado no desenrolar das narrativas sobre o assunto. Em 2003, Tom Zé publica Tropicalista lenta luta, contando sua versão sobre o tropicalismo musical. Dividido em três partes, o livro faz o seguinte percurso: na primeira parte o autor fala no projeto musical (de uma canção colocada no tempo e no espaço presentes, em um novo “acordo tácito” com o ouvinte), além de comentar a estreia no Teatro de Arena em 1965; na segunda parte, fala sobre experimentalismo, faz objeção ao modelo de canção de protesto190, e narra a estreia na televisão em 1961, a passagem pela Universidade da Bahia entre 1962 e 1967 (em chave semelhante à narrativa de Caetano sobre a reitoria de Edgar Santos), o encontro com Gil e Caetano, e, por fim, reflete sobre o nome do livro; na terceira parte, comenta as letras de “Maria bago mole” e de “São São Paulo, meu amor”, mencionando o IV Festival da Record, de 1968 (mas não o icônico de 1967). Parece-nos interessante destacar que Tom Zé define o movimento de forma condizente com Verdade tropical, apesar da diferença de registros. Em Tropicalista lenta luta, o autor afirma que o tropicalismo dos anos 1960 “rolou na lama de águas estagnadas

190 “No que se refere à música de protesto, considero-a uma trava no pensamento. É o método jesuítico, acrescentado do que o prof. Paulo Freire chama de hospedar o opressor. (ZÉ, 2003, p. 48) 237

por uma esquerda reacionária e uma direita atrabiliária, iniciando uma guerra cultural”191. Para nossa discussão, interessa também um fragmento da terceira parte, que diz: [...] a mim, um altíssimo filho foi prometido para a velhice, já que aquele primogênito viveu de 68 a 73, quando o Senhor, não segurando minha mão que levantava a faca do sacrifício, me permitiu matá-lo, a mim mesmo privando de lhe sobreviver, pois com ele me sepultou na divisão do espólio do tropicalismo, na intenção de me desenterrar pelo canto do salmo de um David. Naturalmente falo de David Byrne. (ZÉ, 2003, p. 70)

Empregando a intertextualidade bíblica e jogando com o nome do personagem Davi, Tom Zé aponta de forma metafórica e melancólica sua exclusão do “espólio do tropicalismo”, isto é, a parte que lhe era de direito pela vitória na guerra cultural empreendida pelo movimento. O sucesso que a ele se anunciava no período de 1968 a 1973 – isto é, da vitória do festival até a gravação dos seus discos Grande liquidação (1968), Tom Zé (1970), Se o caso é chorar (1972) e Todos os olhos (1973) – acabou não se confirmando. Desse modo, é a partir da descoberta de David Byrne no final dos anos 1980 (e, portanto, na “velhice” de Tom Zé, já com mais de 50 anos) que o artista volta à luz, bem como sua importância para o movimento, que passa a ser redimensionada. Em entrevista de 2003, Luiz Tatit observa que o projeto de Tom Zé sempre foi essencialmente diferente do tropicalista, embora tenha havido um momento de confluência, conforme explicita: Naquele momento houve uma confluência de fatores, claro; o Tropicalismo e você tinham interesse em música nova, tinham pontos em comum. Mas não tinham os mesmos propósitos, os projetos eram diferentes. Então, não creio que seja interessante esse vínculo tão crucial entre Tom Zé e Tropicalismo. (TATIT apud ZÉ, 2003, p. 246)

Cabe observar que a peculiaridade de Tom Zé poderia fazê-lo parecer o mais radical dos tropicalistas. Por outro lado, a interpretação de Luiz Tatit conduz exatamente à chave contrária: o que o faz parecer o mais tropicalista, é justamente o que faz dele o menos tropicalista, isto é, aquele que tem o projeto mais diferente em relação ao restante dos artistas vinculados ao movimento. No entanto, a narrativa de Tom Zé sobre seu surgimento no âmbito da canção popular registra o vínculo com o tropicalismo, embora o percurso de Tropicalista lenta luta destaque a individualidade de seu projeto e ofereça uma narrativa alternativa. É muito interessante perceber que seu livro, além de enfatizar sua trajetória individual (sem apontar

191 ZÉ, 2003, p. 57. 238

os feitos de Caetano ou Gil, nem mesmo as discussões que levariam à eclosão do tropicalismo, nem sequer o álbum manifesto), apresenta uma preocupação grande em teorizar o movimento como a ruptura (bem sucedida) com determinada estética da canção popular, abrindo caminho para experimentações variadas. É o reconhecimento de sua importância nesse processo é que vinha sendo reclamado pelo artista.

2.8. Os anjos do futuro – o caso Mutantes

A banda Os Mutantes foi formada em São Paulo em 1966, tendo em sua composição original Rita Lee Jones e os irmãos Arnaldo Baptista e Sérgio Dias. O grupo fez parte de alguns dos principais momentos do tropicalismo musical, aparecendo frequentemente em Verdade tropical. Sua presença no livro começa quando Rogério Duprat os apresenta a Gilberto Gil, que decide incluí-los no número de “Domingo no parque”, no Festival da Record de 1967; em seguida, nos arranjos do disco tropicalista de Gil e na faixa “Eles” do disco tropicalista de Caetano. Em 1968, narra-se que passaram a ser frequentadores do apartamento 2002, participaram do álbum manifesto do movimento, da apresentação de “É proibido proibir” no FIC, do show da boate Sucata e, por fim, do programa da TV Tupi. Caetano os descreve assim: [...] os Mutantes, ainda semi-amadores, pareciam não copiadores dos Beatles [...] mas seus pares, criativos na mesma linha. [...] Eles pareciam três anjos. Sabiam tudo sobre o rock renovado pelos ingleses dos anos 1960, tinham a cara da vanguarda pop da década. Diferentemente dos roqueiros dos anos 50, eles eram refinados, tinham um estilo de comportamento cheio de nuances e delicadeza. (VELOSO, 2008, p. 166)

Mais uma vez, o autor procura elementos contraditórios para traçar o perfil de seus personagens: anjos e roqueiros, vanguarda e delicadeza. Na sequência, Caetano também enfatiza o traço de juventude (em 1967, o grupo tinha entre 16 e 18 anos), o que contribuía não apenas para seu suposto aspecto angelical, mas também para o conhecimento das novidades do rock inglês daquela década. Os Beatles, que começaram oficialmente em 1960, lançaram seus primeiros singles de sucesso em 1962 (“Please please me” e “Love me do”), mas sua fase mais experimental teve como marco Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band de 1967, exatamente o ano em que Os Mutantes se encontram com o tropicalismo musical. Assim, o depoimento de Caetano Veloso, além de uma valorização da banda brasileira em relação à britânica,

239

também evidencia a coincidência temporal entre a intensificação das experimentações musicais dos dois grupos a partir daquele momento. Sobre a apresentação de Os Mutantes, acompanhando Gil em “Domingo do parque”, Caetano afirma: Os Mutantes pareciam uma aparição do futuro. A fricção entre o tema afro-baiano e o som deles era instigante – Beatles + berimbau ou Beatles x berimbau –, e a belíssima orquestração de Rogério Duprat dava a tudo aquilo um ar imponente e respeitável que trazia a plateia para anos-luz de distância do momento em que, apenas um dia antes, esboçou vaiar “Alegria, alegria”. (Ibidem, 175)

O acúmulo das descrições citadas anteriormente (jovens, vanguardistas e angelicais) aparece afinada com o emprego do predicativo “aparição do futuro”. O fragmento mostra também o sincretismo entre a música jovem internacional e os ritmos afrobrasileiros (que remetem ao par recôncavo/ reconvexo já discutido neste estudo) e sugere um procedimento antropofágico. Nesse sentido, é interessante notar a proposição de Caetano trocando o “+” por “x”, para sugerir um cruzamento de resultado mais amplo e complexo que a simples adição dos termos. Há também a observação sobre a discrepância entre a plateia (apresentada como potencialmente reativa ao novo) e a experimentação musical que ali se realizava (e aparentava estar muito à frente daquele cenário). Vale registrar também o reconhecimento da importância de Rogério Duprat para avalizar a inovação. A própria expressão “anos-luz” pertence, por fim, ao campo semântico das viagens espaciais da segunda metade dos anos 1960, abrindo campo para um imaginário futurista, que também foi assimilado pelo tropicalismo. Vale lembrar que no ano de 1968, o diretor Stanley Kubrick lançou seu célebre 2001 – A Space Odissey, e Os Mutantes apresentaram no IV Festival de Música Brasileira da TV Record a canção “Dois mil e um”, parceria de Rita Lee e Tom Zé, a qual antes se chamava “Astronauta libertário”. Diz o fragmento final da letra: Amei a velocidade Casei com sete planetas Por filho, cor e espaço Não me tenho nem me faço A rota do ano-luz Calculo dentro do passo Minha dor é cicatriz Minha morte não me quis

Nos braços de dois "mir" anos Eu nasci sem ter idade

240

"Sô" casado "sô sortero" "Sô" baiano e "estrangero" Meu sangue é de gasolina "Corrrendo" não tenho mágoa Meu peito é de “sar" de fruta Fervendo no copo d'água

Astronauta libertado Minha vida me ultrapassa Em qualquer rota que eu faça Dei um grito no escuro Sou parceiro do futuro Na reluzente galáxia

A presença da expressão “ano-luz” (e de todo imaginário que a circunda) na canção pode ter sugestionado o emprego da expressão por Caetano Veloso em sua descrição. Além disso, vale chamar atenção de que a letra funde o campo semântico do espaço sideral e do futuro com a dicção regionalista interiorana e arcaica da linguagem (ao que se soma a fusão paralela, no campo musical, entre as guitarras e os ritmos regionais), ecoando também na descrição de sincretismo acerca de “Domingo no parque”. A canção explora, assim, um dos paradoxos centrais do tropicalismo, verbalizado em “sô baiano e estrangero”, entre o recôncavo e o reconvexo, o regional e o internacional (a estrofe inteira é composta de paradoxos que propõem a indefinição do sujeito e, assim, a velocidade das transformações, a efervescência do ser). Por fim, o desprendimento da rota e a libertação do astronauta aparecem afinados com o imaginário contracultural em voga naquele ano. No disco-manifesto, Os Mutantes participaram das gravações da já citada “Parque industrial”, de “Batmacumba” (letra estruturalmente concretista, que realiza a fusão de Batman – ícone pop internacional dos quadrinhos e do cinema – e macumba – evocando o imaginário cultural e musical afrobrasileiro), do “Hino ao Senhor do Bonfim” (letra de contornos épicos de exaltação do ícone religioso fortemente cultuado na Bahia, investida da mistura entre o caráter sagrado do gênero hino e os arranjos modernos dos tropicalistas) e, por fim, de “Panis et circenses” (referida no título do álbum, com a finalidade de inverter os sinais da expressão “pão e circo”, usualmente empregada com o sentido negativo de designar a prática romana de dar comida e diversão para a população, tendo em vista o controle social). Caetano Veloso pontua o período de confluência entre Os Mutantes e o tropicalismo musical indicando que, em sua volta de Londres, o grupo já havia se modificado: em 1972, Rita Lee havia deixado os Mutantes para se tornar, segundo o autor,

241

“a roqueira-mor do Brasil”192; de outro lado, a banda que conservou o nome se inclinou para o rock progressivo. Com isso, os anjos do futuro encerram sua aparição no recorte proposto por Verdade tropical.

2.9. Os não-tropicalistas

No papel de não tropicalistas, entre não-adeptos e antagonistas, aparecem, em registros diferentes, Edu Lobo, Sidney Miller, Dori Caymmi, Sérgio Ricardo, Francis Hime, Paulinho da Viola, Elis Regina, Geraldo Vandré e Chico Buarque. Sem limitá-los, Caetano Veloso encontra pontos de confluência e falsos antagonismos, redistribuindo proporções e refletindo sobre os processos que os levaram à não-adesão. Além disso, deve- se acrescentar que esses retratos não se pretendem definitivos, sendo relativizados em outros momentos da própria narrativa ou mesmo nas publicações do artista acerca de eventos e produções posteriores ao período recortado. A identificação desses personagens como não-tropicalistas define-se em momentos diferentes, mas todos a partir de 1967: Elis Regina é a opositora de Roberto Carlos na Frente Ampla da MPB contra o iê-iê-iê; Edu Lobo, Sidney Miller, Sérgio Ricardo, Chico Buarque (e “talvez” Francis Hime e Dori Caymmi) aparecem como personagens das reuniões de Gil; Paulinho da Viola é o primeiro artista externo ao movimento a ouvir uma canção tropicalista; Geraldo Vandré é o antagonista mais contundente. É interessante notar também como esses antagonismos vão se construindo (ou se desconstruindo) ao longo da narrativa. Basta pensar que o disco Domingo de Gal e Caetano tem arranjos de Dori Caymmi, que o produziu junto com Francis Hime e Roberto Menescal, e ainda conta com uma composição de Sidney Miller (“Maria Joana”) e uma de Edu Lobo (“Candeias”). Isso ajuda a pensar a existência de um momento anterior à ruptura, no qual esses artistas compartilhavam processos criativos. Além disso, a maioria desses artistas foi convidada a participar do plano de intervenção na história da canção brasileira a partir das reuniões de Gil, ainda que este tenha tido dificuldades e receios para expressar exatamente suas posições. Edu Lobo, por exemplo, é quem recebe Caetano Veloso no dia de sua chegada ao Rio de Janeiro. O carinho, o interesse e a hospitalidade dessa recepção são registrados no

192 VELOSO, 2008, p. 285. 242

livro. Seu talento também é destacado no mesmo momento em que o autor posiciona Edu no cenário da canção brasileira do período: As canções de Edu apresentavam a novidade de trazer de volta uma dimensão épica à música brasileira moderna, o que produzia forte impressão de contraste com o intimismo lírico da bossa nova. Mas, embora representassem também a ressurreição dos sabores regionalistas, essas canções não regrediam tecnicamente a primarismos ou simplismos melódicos folclóricos pré- bossa nova. Ao contrário, Edu já era então o que tem sido até hoje: um sofisticado harmonista, um melodista inventivo e um estilista de forte marca pessoal. (VELOSO, 2008, p. 118)

Assim, para além do reconhecimento do valor de Edu Lobo, Caetano Veloso insere- o no conjunto narrativo como mais um artista da geração pós-bossa nova, que se valeu da modernização da canção popular brasileira para, posteriormente, conciliá-la com as temáticas sociais. Porém, o autor registra um distanciamento particular, quando indica que suas canções resgatavam aspectos regionalistas, o que se associa diretamente à presença da dimensão épica, que acaba por distanciá-las do lirismo da bossa nova. Vale lembrar aqui que a presença de temas nordestinos vincula-se também com a visão nacional-popular, com a busca das raízes nacionais e com a tematização da migração, da seca e da pobreza.193 Além disso, Edu Lobo é o vencedor do I Festival da TV Excelsior em 1965, no qual sua parceria com Vinicius de Moraes, “Arrastão”, ganhou a célebre interpretação de Elis Regina. Por fim, é também de sua autoria a canção “Ponteio”, vitoriosa no III Festival da TV Record de 1967. Esses eventos dão a dimensão do prestígio de Edu Lobo no cenário da canção popular brasileira do período, sublinhando sua importância e sua qualidade, ainda que vinculando o artista a uma trajetória com a qual o tropicalismo viria a romper. Dori Caymmi é outra figura importante do mesmo cenário. Sua canção “Saveiros” em parceria com Nelson Motta foi vencedora do I Festival Internacional da Canção da TV Rio em 1966 na voz de Nana Caymmi. Da mesma dupla é “O cantador”, que rendeu a Elis Regina o prêmio de melhor intérprete do Festival da Record de 1967. Dori, considerado pelo autor de Verdade tropical o melhor violão de bossa nova depois de João Gilberto, foi convidado para acompanhar Caetano Veloso na gravação de “Dora” de Dorival Caymmi, que o artista pretendia incluir em seu disco tropicalista gravado em 1967. Segundo o relato,

193 Nesse sentido, cabe lembrar que Edu Lobo é compositor de canções como “Borandá” (que faz parte do show Opinião) e “Chegança” (parceria com Oduvaldo Vianna Filho, gravada por Nara Leão também em 1964).

243

Dori teria criado uma série de dificuldades, afirmando não se lembrar da harmonia ou de não saber a melhor forma de executar determinadas passagens. Caetano Veloso afirma não saber (até o momento do registro no livro), como interpretar a atitude de Dori, que lhe soava ambígua entre a dificuldade e a ironia, o que lhe dá ensejo para registrar que o artista fazia parte do grupo que considerava a intervenção do tropicalismo como uma traição ao nacionalismo cultural. Assim, uma de suas hipóteses relaciona-se à insegurança de Dori sobre estar tomando parte dessa traição, com o agravante de o gesto envolver ainda uma célebre peça do repertório de seu próprio pai. Porém, de todos esses, o mais franco antagonista do tropicalismo a ser retratado no livro é Geraldo Vandré. O compositor venceu o Festival da TV Excelsior de 1966 com a canção “Porta-estandarte” (parceria com Fernando Lona) e o II Festival da TV Record, no mesmo ano, com “Disparada” (parceria com Theo de Barros, defendida por Jair Rodrigues). Esta última foi vitoriosa em um empate com “A banda” de Chico Buarque, o que a torna importante narrativamente, uma vez que se tornam paradigmas de “canção festivalesca”, antecedendo o Festival da Record de 1967. É também o autor de uma das mais icônicas canções de protesto do Brasil – “Pra não dizer que não falei das flores”, que ficou em segundo lugar no Festival Internacional da Canção da TV Globo de 1968, o mesmo em que Caetano defendeu “É proibido proibir” acompanhado dos Mutantes. Cabe retomar dois episódios em que Vandré se consolida como antagonista maior do tropicalismo. O primeiro deles refere-se à sua participação na passeata contra as guitarras elétricas no contexto da Frente Ampla da MPB contra o iê-iê-iê. Como já se relatou, Vandré ficou furioso ao saber do que estava sendo planejado para o programa de Gil. Caetano relata do seguinte modo: Vandré se enfureceu. Surgiu na porta do quarto de Gil, onde estávamos trabalhando e, quase chorando, com os pelos dos braços arrepiados, gritava que nós não podíamos fazer aquilo, que seria um ato de agressão a tudo que tínhamos de melhor, que minhas observações sobre Roberto Carlos talvez fizessem sentido num ensaio sociológico mas não num programa em que a música brasileira tinha que se afirmar contra o que Roberto Carlos representava. (VELOSO, 2008, p. 157)

Na sequência, Caetano conta as tentativas de argumentação ou contemporização, e conclui: “Ele, à medida que nós nos mostrávamos mais e mais conciliadores, passou do tom revoltado para o tom lamentoso de quem implora. Era pelo bem do Brasil”.194 É interessante observar como as reações de Vandré são, de um lado, marcadas pelo tom

194 Ibidem, 157-8. 244

emocional contundente (choro, gritos, braços arrepiados, alternância entre revoltado e lamentoso), que já havia sido registrado antes, quando em discurso sobre a necessidade de defender as características nacionais, Vandré teria ficado com os olhos cheios d’água, “tomado pela própria eloqüência”195. O discurso indireto livre em “Era pelo bem do Brasil”, ao mesmo tempo em que reforça o traço emocionado da afirmativa, marca um distanciamento irônico em relação à ideia de que “o bem do Brasil” estava ligado às intenções de Vandré, não às dos tropicalistas. Nesse episódio também fica claro o papel de Roberto Carlos como elemento da discórdia, especialmente sobre o que o artista “representava”. Além disso, o reconhecimento daquelas observações como pertinentes para um “ensaio sociológico” indicam que Vandré ponderava que poderiam até ser, em alguma medida, acertadas, mas que não serviam para um projeto “benéfico” de representação de Brasil; em outras palavras, que poderiam ter algum valor teórico, mas que não seriam úteis na prática. E aqui Caetano volta a evidenciar o uso da indústria cultural para produzir um falseamento requerido pela esquerda, tal como no episódio do Opinião em relação à imagem de Bethânia. O outro episódio refere-se à abordagem grosseira de Geraldo Vandré no restaurante em São Paulo onde se comemorava a gravação de “Baby” por Gal Costa. O artista, então, teria pedido a Gal que cantasse a canção para que ouvisse. Segundo o relato, Quando tinha ouvido o suficiente para ter uma ideia do que era, ele a interrompeu bruscamente, batendo na mesa e dizendo: “Isso é uma merda!”. Gal calou-se assustada e eu, indignado, disse a ele que saísse dali. Ele ainda quis argumentar dizendo que nós estávamos traindo a cultura nacional, mas não permiti que ele concluísse o discurso e, gritando, exigi que nos deixasse [...]. Isso inaugurou uma inimizade pessoal que traduzia nossa divergência ideológica – mas não houve nenhuma outra discussão agressiva nem a desavença ganhou publicidade. (VELOSO, 2008, p. 175)

Observa-se no episódio uma repetição do comportamento emocional e dos argumentos de Geraldo Vandré; porém, este evento registra o esgotamento da possibilidade de diálogo, com Caetano assumindo um tom diverso daquele que caracterizou a discussão sobre o programa de Gil. A falta de publicidade sobre a divergência antecipa um componente do capítulo “Chico”, quando o autor afirma que a rivalidade com Chico Buarque era mais artificial que a com Vandré, mas que a mídia havia optado por

195 Ibidem, 154. 245

acompanhar (e ajudar a construir) aquela em vez desta. E nisso, mais uma vez, afirmam-se os falseamentos da grande imprensa sobre as relações entre os personagens da cultura de massas. Na sequência do episódio, Caetano afirma que Geraldo Vandré teria proposto ao empresário Guilherme Araújo que dissuadisse os tropicalistas de disputar com ele aquele espaço de mídia, pois, segundo argumenta, o Brasil precisava daquilo que ele, Vandré, estava fazendo (canções conscientizadoras) e que o mercado não comportava mais de uma grande figura de cada vez. Esse mesmo evento é utilizado para que Caetano visibilize o jogo (e a fusão) de interesses pessoais, políticos e mercadológicos, mas também para que discuta como o tropicalismo representou uma abertura de mercado “pela prática da convivência na diversidade”196, o que, em perspectiva, enfatiza ainda mais os equívocos de Vandré. Vale dizer, por fim, que mesmo o antagonista mais claro do tropicalismo é, em dado momento, posto em perspectiva na narrativa de Verdade tropical, ainda que de uma forma dúbia. Ao falar sobre a Frente Ampla da MPB contra o iê-iê-iê, Caetano acaba por afirmar que dos programas de Elis, Gil, Simonal e Vandré, o deste último acabou sendo seu preferido. O autor destaca, nesse sentido, um número entre Geraldo Vandré e Lennie Dale, que trazia a canção “Cipó de aroeira”197, com uma letra política, e apresentada numa encenação que lhe dava dimensão quase erótica. Além desse, menciona-se também a presença da convidada Clementina de Jesus, que cantou um samba “em estado muito cru” e cuja aparência – “uma figura de máscara africana” – despertou o racismo de muitos dos presentes no teatro, que acabaram por insultá-la, revoltando Caetano e fazendo com que este, não antes de reagir em sua defesa, deixasse o recinto. Narrativamente, a coincidência de ser justamente o programa de Vandré o que mais agradou a Caetano, é obviamente graciosa. Porém, é importante perceber que as coisas que o fixaram em sua memória dizem respeito às questões de sexualidade, raça e cultura, que atravessaram o programa, com graus mais ou menos intencionais por parte de Vandré. Vale lembrar que esses pontos eram, segundo o autor, colocados em segundo plano dentro da representação nacional-popular cultivada por Vandré. Aí reside a dubiedade do elogio, uma vez que serve mais para enfatizar o interesse por essa perspectiva de discussão em

196 VELOSO, 2008, p. 275. 197 A letra começa com os versos “vim de longe, vou mais longe/ quem tem fé vai me esperar/ escrevendo numa conta/ pra junto a gente cobrar/ no dia que já vem vindo/ que esse mundo vai virar” e termina com “é a volta do cipó de aroeira/ no lombo de quem mandou dar”, utilizando, assim, os chavões da canção de protesto, muitos dos quais repetem o modelo de “Disparada”. 246

detrimento das formas de politização que estão evidentes na letra da canção, sobre a qual o narrador não tece quase nenhum comentário.

2.9.1. Paulinho da Viola e a “Paisagem útil”

Paulinho da Viola surgiu no cenário da canção brasileira com o já referido espetáculo Rosa de Ouro de 1965, ao lado de Clementina de Jesus e Aracy Cortes. Sua presença em Verdade tropical começa nesse episódio, que, conforme já observamos, Caetano Veloso usa para discutir questões vinculadas ao teatro naquele ano, especialmente no que concerne às divergências com Augusto Boal. A trajetória de Paulinho da Viola como personagem importante da cultura de massas do Brasil passa ainda pela gravação de “Coração vulgar” e “Jurar com lágrimas” ainda em 1965 (com o conjunto A voz do morro) e pela vitória no V Festival de Música Popular Brasileira da TV Record de 1969, defendendo “Sinal Fechado” de sua autoria. A canção foi gravada como faixa bônus do disco Foi um rio que passou em minha vida de 1970, que consolidou o sucesso do artista com a canção homônima. Esse percurso não aparece em Verdade tropical, por fugir ao objetivo principal do livro, que, por isso, registra apenas o surgimento de Paulinho em Rosa de Ouro. No entanto, um episódio importante de Verdade tropical envolve Paulinho da Viola, vizinho de Caetano Veloso no Solar da Fossa. A seção “Paisagem útil” tem como preâmbulo exatamente o momento em que Caetano mostrou a Paulinho a canção que dá nome ao capítulo, tendo sido este o primeiro artista de fora do grupo a ouvir uma composição “tropicalista”. “Paisagem útil” é, na verdade, uma paródia de “Inútil paisagem”, canção da bossa nova de autoria de Tom Jobim. O narrador não transcreve nenhuma das duas letras, embora cite alguns fragmentos da sua própria composição, com o intuito de ilustrar as imagens poéticas empregadas em sua construção. Para nossa reflexão, vale citá-las, começando pela letra de Tom Jobim: Mas pra quê? Pra que tanto céu? Pra que tanto mar? Pra que? De que serve esta onda que quebra? E o vento da tarde? De que serve a tarde? Inútil paisagem Pode ser que não venhas mais Que não venhas nunca mais

247

De que servem as flores que nascem pelos caminhos? Se meu caminho sozinho é nada

“Inútil paisagem” visita, portanto, o imaginário das belezas naturais frequente nas composições da bossa nova (o céu, o mar, o vento, as flores) e o contrapõe à solidão resultante de um amor ausente, que deixa o cenário sem finalidade, isto é, torna inútil a paisagem. A paródia de Caetano diz o seguinte: Olhos abertos em vento Sobre o espaço do Aterro Sobre o espaço sobre o mar O mar vai longe do Flamengo O céu vai longe e suspenso Em mastros firmes e lentos Frio palmeiral de cimento

O céu vai longe do Outeiro O céu vai longe da Glória O céu vai longe suspenso Em luzes de luas mortas Luzes de uma nova aurora Que mantém a grama nova E o dia sempre nascendo

Quem vai ao cinema Quem vai ao teatro Quem vai ao trabalho Quem vai descansar Quem canta, quem canta Quem pensa na vida Quem olha a avenida Quem espera voltar

Os automóveis parecem voar Os automóveis parecem voar Mas já se acende e flutua No alto do céu uma lua Oval, vermelha e azul No alto do céu do Rio Uma lua oval da Esso Comove e ilumina o beijo Dos pobres tristes felizes Corações amantes do nosso Brasil198

A canção de Caetano mostra uma paisagem útil, não só porque serve de cenário ao beijo dos amantes, mas também porque é composta pelo imperativo pragmático do processo de urbanização que se sobrepõe à natureza. Os “olhos” do primeiro verso

198 VELOSO, 2003, p. 60-1. 248

sugerem imediatamente o forte apelo imagético da letra, ambientada no Aterro do Flamengo, espaço emblemático do crescimento da cidade sobre a paisagem natural anterior. As composições (e as fusões) entre aspectos primitivos e modernos permitem relacioná-la com a tradição modernista brasileira, remetendo ao procedimento recorrente da produção poética oswaldiana. O mar e o céu aparecem afastados, não pela inutilidade de sua beleza frente à solidão, mas justamente pela imposição do aproveitamento útil do espaço da cidade. Os postes de iluminação (veja-se novamente Oswald199) distanciam e suspendem o céu, além de serem metaforizados como “frio palmeiral de cimento”, evocando paradoxalmente o dado natural do Brasil primitivo (a palmeira) e seu correspondente visual moderno (o poste de cimento), procedimento que se repete nos versos que aproximam sua luminosidade artificial das luzes de “luas mortas”, replicando o sentido da palavra em “luzes de uma nova aurora”, indicando o (re)nascimento de mais um período de desenvolvimento da modernidade. A terceira estrofe vale-se de estrutura anafórica para inserir na paisagem as pessoas em trânsitos diversos, citando a oposição entre trabalho e descanso, e compondo um quadro misto de lazer, entretenimento e reflexão, que une semanticamente o “cinema”, o “teatro” e a canção. Os automóveis que parecem voar reforçam a imagem do trânsito e remetem a uma cena futurista (destacando mais uma vez o caráter moderno do retrato poético), além de abrirem o vínculo semântico com o posto de gasolina, de onde surgirá a lua oval da Esso. O símbolo dessa multinacional é sobreposto à imagem da lua, evocada em sua dimensão romântica. A lua, espalhada na luz dos postes e sugerida no formato do logo da Esso, “comove e ilumina” o beijo dos amantes do Brasil. Aqui, a cena amorosa do beijo do casal à lua é atravessada pela nova paisagem de cimento e luz artificial, que encerra o gesto de referência e ruptura com o imaginário romântico da lua e da natureza que enfeitam os gestos apaixonados (ou que se tornam inúteis diante da solidão, como ocorre na canção original). É na paisagem moderna e em seu pragmatismo que Caetano encontra matéria para essa primeira canção tropicalista a ser analisada na narrativa. Em sua análise, o narrador destaca a forma de marcha-rancho e a presença de “uma melodia que mais parecia uma colcha de retalhos da tradição sentimental brasileira”, mais

199 Uma das seções de Pau-Brasil (1925) de Oswald de Andrade chama-se justamente “Postes da Light” e se abre com o poema “Pobre alimária”, que serve de base para que o crítico Roberto Schwartz evidencie na obra do poeta o procedimento de sobreposição entre dados do Brasil arcaico e do Brasil moderno. 249

uma vez evidenciando o procedimento paródico de quem resgata e ressignifica a tradição a partir de procedimentos de colagem, composição e mistura. Em seguida, comenta o caráter documental da letra, afirmando que de fato havia o anúncio luminoso da Esso que surgia ao final da pista, aparecendo entre os altos postes da avenida. Segundo o autor, Paulinho da Viola (“o mais profundo e refinado defensor do samba tradicional carioca”), demonstrou uma reação “desapaixonada” frente à canção. Segundo o relato: Mostrei-lhe “Paisagem inútil logo que a compus e ele, na sua nobreza, viu naquilo algo diferente de tudo, algo de que ele não podia propriamente gostar mas que reconhecia como íntegro em si mesmo, como que pertencente a uma outra dimensão. (VELOSO, 2008, p. 112)

Desse modo, Caetano, que esperava uma reação de entusiasmo ou de revolta em relação à originalidade da composição, narra sua surpresa com a posição fria de Paulinho da Viola. Vale notar como esse episódio retrata este artista em sua inteligência e elegância, sendo capaz de perceber o caráter íntegro de “Paisagem útil”, mas, ao mesmo tempo, não “podendo propriamente gostar” dela. É interessante perceber como essa construção indica a impossibilidade assumida por Paulinho da Viola de gostar de algo tão distante de suas próprias premissas estéticas, embora o “propriamente” aponte para o reconhecimento da peculiaridade daquele objeto. Para compreender o episódio, cabe observar que a politização de Paulinho da Viola vem menos da perspectiva nacional-popular de representação do Brasil, do que da defesa constante (que se dá até hoje) da preservação da memória do samba dos morros, do seu valor estético, de seus grandes personagens, da sua importância como crônica do cotidiano das favelas e dos subúrbios cariocas. Visto em perspectiva, o episódio pareceu a Caetano uma prévia das resistências à estética tropicalista, mas é muito importante pontuar que Paulinho da Viola apresenta uma trajetória particular, que o distancia dos demais colegas de geração. Sua linhagem está imersa no cenário do samba mais profundamente do que no contexto da música popular brasileira pós-bossa nova (e seu projeto de conciliação entre a modernização formal da canção e a abordagem de temáticas sociais), como Edu Lobo, Dori Caymmi ou Geraldo Vandré. Nesse sentido, vale lembrar que Paulinho da Viola não estava presente nas reuniões de Gil ou em O fino da bossa de Elis, e a resistência a Roberto Carlos passa ao largo das opiniões do artista que aparecem comentadas no livro. É em outra chave que o artista

250

aparece nas considerações de Caetano Veloso, aliás, desde o artigo da Revista Ângulos de 1965, quando é evocado como parte do argumento de contestação a José Ramos Tinhorão: Os grandes sambistas tradicionais continuam produzindo, mais que isso, sambistas novos surgem nos morros cariocas a despeito da corrupção das escolas de samba – os “tradicionalistas” argumentariam melhor se se apegassem à demonstração de sambas como “Coração vulgar” ou “Conversa de malandro” de Paulinho da Viola, compositor da Portela, de 23 anos. Se quisermos ser fiéis a Paulinho sem deixar de fazer samba, temos de tomar de João Gilberto a melhor lição – a que nos dá extraordinária intuição seletiva. (VELOSO, 2005, p. 148)

Assim, a defesa do samba proposta por José Ramos Tinhorão é distanciada daquela feita por Paulinho da Viola, o que demonstra que o sambista também procedia a buscas de modernização do samba em seu gesto de resgatar a tradição. No exemplo de Paulinho da Viola, Caetano encontra, mais do que a influência estética de João Gilberto, sua grande lição no sentido de dialogar com o passado. Paulinho da Viola aparece também em “Que caminhos seguir na MPB” de 1966, quando Caetano conta que o artista teria lhe falado sobre sua necessidade de incluir contrabaixo e bateria em seus discos, com o intuito de afirmar que esse gesto não descaracterizaria o samba, tal como as inovações de João Gilberto não significaram sua negação. Aliás, é nessa mesma fala que Caetano conclui sobre a necessidade de retomar a linha evolutiva. Portanto, Paulinho da Viola aparece, novamente, como alguém que resgata a tradição sem, com isso, rejeitar a busca por elementos modernos. O que se quer dizer, afinal, é que a indiferença de Paulinho da Viola no episódio de “Paisagem útil”, embora preceda as recusas de seus colegas de geração em relação ao tropicalismo, coloca-se de modo muito particular e muito diversa de todas as reações posteriores. Sua inclusão nesse conjunto explica-se melhor pelo encadeamento do episódio no fluxo narrativo (à sua vizinhança no Solar da Fossa, o primeiro estranhamento em relação à nova estética) do que a sua vizinhança estética e ideológica com os opositores reais do tropicalismo, de Tinhorão a Vandré.

2.9.2. O que tinha de ser – o caso Elis Regina

Elis Regina aparece em Verdade tropical especialmente como opositora de Roberto Carlos, de modo a figurá-los como as duas grandes figuras comerciais da canção popular

251

que disputavam prestígio em seus respectivos programas televisivos. O retrato de Elis é traçado nos seguintes termos: Comparado ao de Nara, Sylvia Telles, Carlos Lyra e, sobretudo, João Gilberto, o estilo de Elis parecia enfático e extrovertido. Mas, ao contrário do que acontecera com Bethânia, com Elis o drama e os grandes gestos voltavam a MPB via televisão e não via teatro. Ela possuía uma voz limpa e brilhante, e sua segurança em termos musicais impressionava. (VELOSO, 2008, p. 118)

E, pouco depois, comenta sobre o estilo inaugurado com sua interpretação de “Arrastão”: O modo como Elis a apresentou na TV – pontilhada de convenções rítmicas que ela frisava com movimentos de quase-dança excessivamente destros, e a que não faltava um triunfal desdobramento de andamento no final – talhou um estilo tremendamente eficaz de apresentação de música sofisticada que fez dela uma grande estrela de massas com alta respeitabilidade técnica. Sem deixar de entusiasmar-me com seu evidente talento, eu, um joagilbertiano radical, me agastava com a vulgaridade dos efeitos jazzísticos pré-cool e com a expressão corporal treinada pelo dançarino Lenni Dale. (Ibidem, p. 119)

Na descrição, é possível encontrar os ecos do comentário de Augusto de Campo acerca da descaracterização do estilo de João Gilberto pelos excessos dramáticos de Elis Regina. Assim, não obstante o reconhecimento do grande talento da cantora, Caetano pontua seu distanciamento daquele estilo. Essa passagem, aliás, ajuda a compreender como o disco Domingo (1967) já se opunha ao afastamento da lição estética de João Gilberto. No mesmo contexto, Elis Regina aparece como protagonista do episódio da marcha das guitarras (que contou também com Wilson Simonal, Jair Rodrigues, Geraldo Vandré e o próprio Gilberto Gil200), uma vez que liderava o programa oposto. Caetano conta o episódio de modo a enfatizar o elemento comercial da passeata, atendendo a interesses da emissora frente à queda de popularidade de O fino da bossa. O surgimento do mito Elis Regina envolve sua vitória no primeiro festival da canção, na TV Excelsior, com “Arrastão”, e seu sucesso como apresentadora de TV ao lado de Jair Rodrigues. Além disso, a intérprete foi importante para revelar uma série de artistas importantes de sua geração, trabalho que continuou fazendo nas décadas seguintes. Para ilustrar sua centralidade, vale mencionar que o pesquisador Hugo Sukman utiliza seu disco Elis de 1966 na introdução de Histórias paralelas – 50 anos de música brasileira:

200 Gilberto Gil participou da marcha das guitarras, segundo afirma, como forma de reverência a Elis Regina, que foi muito importante em sua trajetória artística. 252

No LP Elis, de 1966, estavam todos, em ordem de entrada e em aparente harmonia estética: Gilberto Gil, com “Roda” e “Lunik 9”; Caetano Veloso com “Samba em paz” e “Boa palavra”; Edu Lobo em parceria com Torquato Neto, em “Pra dizer adeus” e “Veleiro”, e com Gianfrancesco Guarnieri, em “Estatuinha”; Chico Buarque, com “Tem mais samba”; Marcos e Paulo Sérgio Valle, com “Sonho de Maria”; Francis Hime em parceria com Vinicius de Moraes, com “Tereza sabe sambar”; e Milton Nascimento com “Canção do sal”. (SUKMAN, 2011, p. 9)

Depois de pontuar a presença do clássico “Carinhoso” de Pixinguinha completando o repertório do álbum, Sukman afirma que a “decana das nossas canções” estava “como a testemunhar e a festejar a chegada de uma geração nova e brilhante”201. O “decanato” de Elis Regina vincula-se à sua precoce consolidação como a grande cantora popular do Brasil, no amplo alcance da televisão, destacando-se desde 1965, quando ganhou o programa na TV Record. Portanto, sua força como intérprete e o espaço que gozava na mídia confluíram para a valorização de muitos de seus colegas de geração. Por fim, é curioso sublinhar que a canção “Boa palavra”, referida no artigo de Augusto de Campos saudando Caetano Veloso, faz parte também desse disco. A mesma Elis Regina que aparece, assim, como antagonista do projeto tropicalista (especialmente no que diz respeito a Roberto Carlos), é também a reveladora de muitos personagens importantes, que se situam, ainda hoje, sob o rótulo do que atualmente se entende como MPB. Isso inclui não apenas os artistas que se alinhavam ao sentido estrito do termo, mas também os próprios tropicalistas Caetano e Gil, que viriam a ampliá-lo. O autor de Verdade tropical, aliás, registra em sua narrativa como o começo da carreira de Gil deve muito a Elis Regina, seu programa e seus discos. Elis, talvez, seja o caso mais evidente de como o paradigma dos festivais e do Fino da bossa era limitador também para sua própria arte. O recorte a que se propõe o livro não chega a acompanhar importantes exemplos que confirmam essa afirmativa. Vale citar, nesse sentido, que, logo em 1969, Elis gravou “Se você pensa”, de seus antigos rivais Roberto e Erasmo, no disco Elis in London (ainda que com arranjo jazzístico); também receberam sua interpretação outras canções da dupla, como a emblemática “As curvas da estrada de Santos” (Em pleno verão, 1970), “Mundo deserto” (Elis, 1971), “Jesus Cristo” (em especial televisivo de 1972). O disco de 1970 marcou ainda um reencontro com Jorge Ben, com a gravação de “Bicho do mato” e “Até aí morreu neves”. Além disso, no álbum de 1971, consta uma versão de “Golden slumbers” de Lennon e McCartney (também sem

201 SUKMAN, 2011, p. 9. 253

guitarras) e, em 1972, a cantora interpretou “Yesterday”, dos mesmos compositores, para um especial da TV Globo. Apesar de os arranjos confirmarem a manutenção de algumas diretrizes estéticas, é notável a mudança de postura em relação a esses artistas (veja-se que aí estão exatamente Roberto Carlos, os Beatles e Jorge Ben). Caetano Veloso, por sua vez, também continuou sendo interpretado por Elis: “Não tenha medo” (também no disco de 1970), “Cinema Olympia” e “Os argonautas” (Elis, 1972), além da inclusão de “No dia em que eu fui embora” no espetáculo Falso brilhante (1976)202. Por fim, vale destacar a gravação de “Irene” em Elis no Teatro da Praia com Mièle e Bôscoli, na qual Elis, ao introduzir a canção, afirma: “Eu considero Caetano Veloso como um irmão. E tenho por ele uma admiração e um respeito que quase todos vocês têm. De um gênio. A pessoa mais importante de minha geração”.203 De outro lado, Caetano registrou o reconhecimento da grandeza de Elis Regina no texto “O que tinha de ser”, de 1976, sobre o show Falso brilhante, do mesmo ano. O artigo, escrito como se falasse diretamente a Elis, diz: “O show business é um bicho-papão muito bonito e você engole ele: essa é a mensagem que você passa para os seus colegas de profissão.”204. Nessa citação, afirma-se o caráter contraditório do mercado de entretenimento, belo e destruidor, e também a força de Elis Regina como alguém que está inserida nesse meio, assume-o e consegue extrair dele resultados vantajosos (para si e para a cultura brasileira). E, se Verdade tropical relata um distanciamento de afinidades estéticas e de posições no período de eclosão do tropicalismo, o artigo afirma seu grande encontro com Elis: Na hora em que ele [César Camargo Mariano] fica sozinho no piano acústico e você vem e canta pra ele, eu pensei no significado da união e ouvi você cantar tão tão lindo e senti a ausência de Dedé que tinha ficado no Rio e me senti apaixonado por tudo e chorei e fiquei querendo abraçar o meu amigo que estava do meu lado e entendi todo o lance de uma pessoa cantando acima dos limites do cotidiano. Você cantou minha música perto de mim, sem saber. Me encontrei com você completamente e isso me enriqueceu. Foi o que tinha de ser. O compositor não precisa lhe dizer mais nada. (VELOSO, 2005, p. 103)

202 No show Transversal do tempo em 1978, Elis Regina fez uma apresentação irônica de “Gente” de Caetano Veloso, que provocou um grande desconforto entre os artistas. Optamos por enfatizar apenas os episódios relativos ao recorte temporal mais próximo ao de Verdade tropical. 203 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=KJYiP_K3oeA. Último acesso: dezembro/ 2015. 204 Em entrevista ao programa Vox Populi de 1978, volta a reconhecer a importância de Elis Regina na consolidação da televisão, registrando o respeito estético e histórico que tem pela cantora. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=P_eJM8LiqU0. Último acesso: dezembro/ 2015. 254

2.9.3. Roda viva - O mito de Chico e Caetano

A presença de Chico Buarque de Hollanda em Verdade tropical está marcada pela discussão acerca de seu antagonismo em relação ao tropicalismo. O capítulo “Chico” discute especialmente a construção de uma oposição entre os artistas, a partir de observações de Augusto de Campos em seus artigos publicados em O balanço da bossa. O gesto principal de Caetano Veloso busca, por um lado, observar o que há de artificioso nessa construção, sinalizando o papel da mídia nesse processo e sublinhando as aproximações entre eles; por outro, afirma como o tropicalismo de fato teve a intenção de pôr em perspectiva o mito Chico Buarque. Mais uma vez, para compreendermos o diálogo do movimento com esse artista, tal como aconteceu com Roberto Carlos e Carmen Miranda, é preciso entender sua representação no âmbito da cultura de massas do Brasil. Chico Buarque tem seu perfil traçado por Caetano Veloso nos seguintes termos: Muito se falou, a partir deste momento [festival de 1967], numa rivalidade entre mim e Chico Buarque. Ele era a grande unanimidade nacional, o jovem compositor-cantor excelente e sedutor, a estrela máxima desse público estudantil que lotava os auditórios dos festivais. Era também o grande sintetizador das conquistas modernizadoras da bossa nova com anseios de volta ao samba tradicional dos anos 30 e do avanço no sentido da crítica social. [ ... ] Tudo isso compunha uma imagem preciosa que sua beleza física, sua educação naturalmente elegante, seu gênio pessoal só faziam realçar. Ele encarnava o melhor do melhor da história da música brasileira e era assim que todos o viam. (VELOSO, 2008, p. 168-9)

Chico Buarque ganhou destaque no cenário da canção popular brasileira, como se sabe, com a vitória de “A banda” no II Festival da TV Record, de 1966, posteriormente gravada no disco Chico Buarque de Hollanda do mesmo ano (o que tem a famosa capa com duas imagens do compositor, uma sorrindo e uma séria). Esse trabalho é o primeiro de uma sequência de álbuns também intitulados com o nome do artista, numerados como Volume 2 (1967), Volume 3 (1968) e Volume 4 (1969). Esse conjunto é pertinente à descrição de Caetano acerca da busca do samba tradicional, pelo filtro da bossa nova, com anseios de crítica social.205

205 De fato, impressiona a quantidade de grandes clássicos da música brasileira que saíram desses álbuns: “A Rita”, “Pedro, pedreiro” e “Sonho de um carnaval” (1966); “Noite dos mascarados”, “Com açúcar e com afeto” e “Quem te viu e quem te vê”, (1967); “Retrato em branco e preto”, “Carolina” e “Roda viva”, além de “Funeral de um lavrador” sobre o poema de João Cabral de Melo Neto (1968); “Gente humilde”, “Rosa dos ventos” e “Samba e amor” (1969). 255

Vale observar também a importância do artista para os festivais da canção do mesmo período. Depois da vitória de “A banda”, Chico Buarque ficou em terceiro lugar no Festival da Record de 1967 com “Roda viva” (defendida junto com o conjunto MPB-4) e em primeiro pelo júri popular com “Benvinda” no de 1968206; em terceiro com “Carolina” no FIC da TV Globo em 1967, e em primeiro com “Sabiá” (parceira com Tom Jobim, defendida por Cynara e Cybele”) no de 1968. Isso confirma seu papel de “estrela máxima” do público estudantil dos festivais, tal como afirma o fragmento. Assim, Caetano Veloso pontua a presença de Chico Buarque dentro do já referido percurso evolutivo da canção brasileira dos anos 1960, que o coloca na posição de síntese final do processo, que envolve as conquistas da bossa nova, o resgate da tradição e, por fim, a crítica social. O perfil traçado no fragmento, além de valorizar a figura de Chico, prepara para a explicação sobre sua relação com o tropicalismo: ao assimilar a informação da cultura pop internacional dos anos 1960 (a partir da lição de João Gilberto) e propor outro paradigma de contestação social, o movimento tropicalista tirou Chico Buarque da posição de auge da experiência da canção no Brasil da época, reabrindo os caminhos evolutivos e apontando novas direções. De outro lado, a parcela mais conservadora da mídia, interessada em explorar antagonismos (como fez no confronto MPB versus jovem guarda)207, aproveitou para investir Chico Buarque como o grande bastião da tradição musical brasileira, em oposição ao que fazia o tropicalismo, gerando associações do artista ao passadismo e ao conservadorismo. É nessa chave que pode ser lido o comentário bem humorado de Tom Zé sobre Chico ser o avô dos tropicalistas. É nesse cenário que o artista aparece nas reflexões de Augusto de Campos, especialmente nos textos “A explosão de Alegria, alegria”, “Viva a Bahia-ia-ia!” e “Informação e redundância na música popular”. Do segundo, interessa o fragmento: [...] me parece que, em vez de se preocupar tanto com a “roda viva” da engrenagem fabricadora de ídolos televisíveis – tema já cediço e muito explorado –, Chico Buarque deveria atentar mais para certos aspectos negativos da ‘chicolatria’ que o rodeia, em especial a ‘roda morta’ e que o querem colocar como vergalhões do passado. O Chico menos exigente de Carolina está sendo usado, muito mais do que pelos mecanismos de comunicação de massa, por uma crítica superada, presa a uma visão

206 A vencedora segundo o júri especial foi, como se sabe, “São São Paulo, meu amor” de Tom Zé. 207 Há vários episódios de antagonismos na história da canção brasileira, que foram explorados criativa e comercialmente, desde os tempos do rádio: o debate entre Wilson Batista e Noel Rosa, a troca de acusações nas canções em torno da separação entre Dalva de Oliveira e Herivelto Martins, e a famosa rivalidade entre os públicos das cantoras Emilinha Borba e Marlene. 256

tímida e saudosista de nossa cultura musical, e que quer fazer dele o último baluarte contra a evolução da música popular, coisa que ele não merece ser. (CAMPOS, 2008, p. 160)

A citação faz referência ao espetáculo Roda viva de 1968. Augusto de Campos, interessado nos veículos de massa, acha pouco estimulante a crítica à indústria televisiva nos termos em que é feita, reiterando ainda o traço redundante da obra de Chico. As observações expressas no fragmento fazem parte de um processo que o próprio artista observaria em entrevista ao Pasquim de 1970, respondendo a uma pergunta sobre Caetano e Gil: Agora, essa espécie de ruptura, de opção que foi criada no público, não digo que foram eles que criaram, mas toda a divulgação que foi criada em torno do movimento deles. Foi uma coisa que eu enfrentei um pouco antes de ir embora, enfrentei com muita dor. Na época do festival da Record eu tinha uma música chamada Benvinda. Eu vi que estava toda a opinião pública dividida de uma maneira que não era real. Os jornais diziam: amanhã a grande decisão entre a revolução dos Mutantes e o tradicionalismo de Chico Buarque. Nesse festival eles [Caetano e Gil] nem estavam, eram os Mutantes que representavam o movimento tropicalista. Eu nunca quis ser tradicional e nunca pretendi ser, apesar de fazer samba, entende? Criaram uma imagem minha que foi muito ruim pra mim, me chateou pessoalmente. Não sei quem foi que resolveu fazer isso. Não sei de que forma eles contribuíram para isso. A partir daí eu perdi um pouco o contato com eles. Eu só quero dizer que eu não sou responsável sobre tudo isso e eu nunca quis levantar uma bandeira em nome da tradição da música e da integridade da música popular brasileira. Muito pelo contrário208.

O comentário de Chico confirma o alerta que havia feito Augusto de Campos sobre o investimento de parte da mídia em torná-lo símbolo do tradicionalismo/ conservadorismo. De outro lado, é importante perceber que o tropicalismo, com efeito, investiu na rivalidade com o intuito de afirmar seu projeto, o que resultaria, segundo Caetano, em duas consequências benéficas: dar visibilidade aos falseamentos midiáticos e aos mecanismos dessa mesma “roda viva” (embora se valendo dela); e estimular Chico Buarque a mover-se de sua posição confortável que o limitava no mesmo passo que o glorificava. É nessa chave que a oposição entre os artistas é analisada no livro. O percurso do artista em Verdade tropical começa com a vitória de “A banda” (retomada na análise da letra de “Tropicália”, quando a canção é citada enquanto ícone das canções de festival). Depois, narra-se o início da popularização de Caetano e Chico no programa Esta noite se improvisa em 1967, a presença de Chico nas reuniões de Gil,

208 http://www.chicobuarque.com.br/texto/mestre.asp?pg=entrevistas/entre_1970.htm 257

depois o comentário sobre “Roda viva” no Festival de 1967, a peça homônima dirigida por José Celso Martinez Corrêa em 1968 e termina com o show de Chico e Caetano em 1972. A discussão teórica sobre o artista, porém, concentra-se no capítulo “Chico”, o único além de “Bethânia e Ray Charles” que leva o nome de um ícone da música popular brasileira. As trajetórias de Chico e Caetano encontram-se, pela primeira vez, justamente em uma situação que os torna rivais na mídia e amigos nos bastidores. Explica-se: o programa Esta noite se improvisa consistia exatamente numa disputa, na qual era sugerida uma palavra e os convidados buscavam lembrar canções que a contivessem. Os dois artistas eram grandes concorrentes (revelando o vasto conhecimento de ambos sobre a música brasileira), o que fez com que participassem de várias edições, dando-lhes visibilidade na televisão e fazendo-os ir com frequência a São Paulo, gerando uma proximidade maior entre eles. É curioso perceber, portanto, que o surgimento desses dois mitos da cultura de massas brasileira prenuncia a rivalidade (mas também a admiração) de que estamos tratando. Com o programa, Chico e Caetano tornam-se também parceiros de noites de bebedeira em São Paulo (na companhia também de Toquinho), o que dá ensejo para que o autor narre alguns episódios divertidos e descreva-o como um personagem boêmio e dono de um humor sádico. Essa característica ecoa em sua participação nas reuniões de Gil, nas quais, segundo Caetano, “Chico, boêmio e desconfiado de programas, embriagava-se e ironizava o que mal ouvia”.209 Vale observar que Chico, que mais tarde seria visto como conservador por não aderir às ideias tropicalistas, mostra-se aqui mais indiferente que contrário, num gesto que ressalta uma irresponsabilidade diante das questões coletivas que o faz parecer mais jovem (não mais velho) que Caetano e Gil. No capítulo “Alegria, alegria”, a rivalidade entre Chico e Caetano é ilustrada pela oposição entre as canções de festival dos dois artistas. Aqui, reverbera “A explosão de Alegria, alegria” (1967) de Augusto de Campos: [...] pode-se afirmar que Alegria, alegria descreve o caminho inverso de A banda. Das duas marchinhas, esta mergulha no passado na busca evocativa da “pureza” das bandinhas e dos coretos da infância. Alegria, alegria, ao contrário, se encharca de presente, se envolve diretamente no dia-a-dia da comunicação moderna, urbana, do Brasil e do mundo. (CAMPOS, 2008, p. 153) É preciso observar que a comparação entre Chico e Caetano não parte das canções defendidas no mesmo festival de 1967, isto é, não é “Roda viva” que é contraposta a “A

209 VELOSO, 2008, p. 127. 258

banda” de 1966, mas “Alegria, alegria”. Isso acontece porque a primeira canção de Chico foi associada fortemente ao que seria uma fórmula festivalesca, que “paga tributo” à redundância e a estimula210. Para Augusto, a música de Caetano, no sentido oposto, foi um passo à frente no sentido da inovação e da adequação à modernidade.211 A descrição de Caetano Veloso em Verdade tropical, por um lado, está afinada com esses pontos de vista, indicando não só o caráter antiquado e nostálgico de “A banda”, mas também o contraste entre as composições. Nesse momento, o autor endossa a rivalidade construída e afirma seu papel à época: E eu, naturalmente – e ainda mais que chegava para talvez disputar com ele o mesmo lugar no olimpo das estrelas nacionais – tinha que fatalmente fazer – ao menos na imaginação das platéias – o papel de seu antagonista. (VELOSO, 2008, p. 169)

Mesmo adiante, os artistas continuaram a disputar, na imaginação de parte expressiva do público, o lugar de maior compositor da canção popular brasileira. Porém, não deixa de ser curioso observar que no espaço mítico, Chico e Caetano sempre ocuparam lugares diferentes. Assim, em vez de analisar a dualidade como uma luta entre mocinhos ou entre a tradição e a juventude, talvez fosse mais interessante perceber que o primeiro tem seu heroísmo vinculado à crítica social e à contestação direta da ditadura brasileira, além de remeter ao imaginário da malandragem proveniente do samba (a boêmia apontada por Caetano corrobora essa hipótese)212, enquanto o segundo está mais próximo da mitologia jovem da contracultura do final dos anos 1960 e seus movimentos anti- establishment de modo mais amplo (enquanto Roberto Carlos estava mais próximo da rebeldia de Elvis Presley, vale acrescentar). O fragmento sugere que Caetano compreendia a necessidade de se propor um paradigma alternativo de herói da canção brasileira e que, portanto, seria necessário

210 “A Banda de Chico Buarque foi uma ducha de serenidade, um tranquilizante para o equilíbrio nervoso da nossa música. Mas, na sua decisão entre Noel e João Gilberto, Chico pagou tributo à redundância”. (CAMPOS, 2008, p. 188) 211 Se o parâmetro de comparação fosse “Roda-viva”, o resultado da análise seria certamente outro, uma vez que esta canção, embora também tivesse elementos que contribuíam para seu sucesso enquanto “música de festival”, era muito mais complexa formalmente que “A banda”. Por um lado, a análise de Augusto é pertinente, visto que compara duas marchas e, ainda, confronta “Alegria, alegria” com um paradigma de canção “festivalesca”; apesar disso, a ausência do comentário sobre a canção defendida por Chico, no mesmo festival, leva a um evidente desvio de perspectiva. 212 O imaginário da malandragem permeia o universo de Chico Buarque, desde os primeiros sambas, com suas alusões à boemia, ao carnaval, à vadiagem. Algumas de suas célebres letras com eu-lírico feminino retratam (em negativo) a imagem do malandro sedutor e do boêmio inveterado. Isso se apresentou de modo mais contundente, anos mais tarde, com a peça Ópera do malandro de 1978, que revela claramente a qual mitologia o autor se filia. 259

confrontar o modelo existente. Porém, logo depois desse comentário, o autor afirma que “Alegria, alegria” fora decalcada justamente da canção de Chico, como uma espécie de paródia, ou, em suas palavras, de “anti-Banda”. Nesse sentido, argumenta que pretendia fazer uma canção também sedimentada no gosto do público, o que comprova apontando semelhanças estruturais (como a presença dos versos heptassílabos) e temáticas (aproximando o sujeito que “estava à-toa na vida” e o que estava “caminhando contra o vento”). Evidentemente, o desejo de frisar as semelhanças faz com que se minimize o fato de que apenas o metro habitual dos versos iniciais de cada parte de “Alegria, alegria” (ao que também se poderia acrescentar a reiteração de “Eu vou”) são mais reconhecíveis pelo público, enquanto a análise de Augusto de Campos dá ênfase à linguagem fragmentária das enumerações caóticas de substantivos que evocam um conjunto de informações da modernidade submetidas à agilidade do mundo da comunicação de massas. A análise de Caetano, de outro lado, sublinha que a explosão do tropicalismo também se valeu da redundância no processo de composição, que acaba por reafirmar a estrutura do festival, da música comercial e especialmente da televisão, ainda que as fissuras que tenha conseguido permitissem uma adesão mais crítica a todo esse conjunto. No campo das aproximações, Caetano destaca também o culto à palavra cantada, buscando na musicalidade da própria língua falada os elementos estéticos que permitem que palavra e som se potencializem. Essa seria a ponte que liga João Gilberto, Dorival Caymmi, Tom Jobim e Vinicius de Moraes, de um lado, e Erza Pound e os poetas provençais de outro. Essa qualidade criativa, que Caetano admira e cultiva, encontra em Chico Buarque de Hollanda uma de suas maiores expressões no âmbito da canção popular brasileira, conforme faz questão de registrar. No capítulo “Chico”, o autor afirma que concorda com o essencial das oposições apontadas por Augusto de Campos nos artigos de 1967 e 1968, mas que esse fato nunca havia abalado seu “amor especial pelo estilo, pela pessoa ou pela importância histórica de Chico Buarque”213. Assim, procede ao duplo impulso de comentar o que há de autêntico e o que há de artificial na construção dessa rivalidade. De um lado, Caetano oferece dois exemplos de distorção midiática. No primeiro, em entrevista à revista InTerValo, afirmou a importância de expor o caráter de mercadoria do cantor de TV, de modo a libertar os artistas e suas obras das limitações impostas por sua

213 VELOSO, 2008, p. 225. 260

mitificação nos meios de comunicação de massa, dando como exemplo que, para a televisão, ele era apenas um cara de cabelo grande e Chico um rapaz bonito de olhos verdes. A reportagem publicou que Caetano havia dito que Chico não passava de um rapaz bonito de olhos verdes. De modo semelhante, ainda segundo seu relato, no Festival da Record de 1968, Chico estava sendo vaiado e chamado de “superado”, quando Gil, na plateia, teria se levantado e protestado contra os manifestantes. Um jornalista publicou, na chave inversa, que Gil liderava uma vaia contra Chico. Com isso, mais uma vez, Caetano volta a discutir os falseamentos produzidos pela imprensa, na construção dos mitos da cultura de massas. Nesse caso, para além de desmentir a rivalidade entre ele e Chico, o autor busca mostrar como essas distorções impediam que se visse exatamente onde a oposição entre os dois se realizava de fato e quais eram as consequências da tensão que com isso se instaurava. Por isso, na sequência, o autor explica que o tropicalismo de fato buscou colocar em perspectiva a obra de Chico Buarque, uma vez que seu prestígio inquestionável era um empecilho à afirmação do projeto tropicalista. Caetano afirma também que estava convicto de que a vitória do tropicalismo seria benéfica para todos, inclusive para Chico, agindo exatamente no sentido da libertação dos artistas das pressões do mercado, da mitificação midiática e das pressões ideológicas, possibilitando uma abertura de campo. Um exemplo emblemático, nesse sentido, é a gravação “num tom estranhável” de “Carolina”214 de Chico Buarque no disco Caetano Veloso de 1969. Essa composição foi lançada originalmente no FIC da TV Globo de 1967 e, posteriormente, no disco Chico Buarque de Hollanda – volume 3 de 1968. Caetano conta também ter ouvido a canção em programa de calouros mirins em seu período de confinamento em Salvador, após a prisão, ainda em 1969, tornando-a, a seus olhos, “a representante da depressão nacional – e da minha depressão pessoal – pós AI-5”.215 Desse modo, “Carolina” converteu-se em uma espécie de antimusa do tropicalismo. Não bastasse “o tom estranhável”, Caetano gravou a canção em seu primeiro disco após a

214 Carolina, nos seus olhos fundos / Guarda tanta dor, a dor de todo esse mundo// Eu já lhe expliquei, que não vai dar/ Seu pranto não vai nada ajudar/ Eu já convidei para dançar/ É hora, já sei, de aproveitar/ Lá fora, amor, uma rosa nasceu,/ todo mundo sambou, uma estrela caiu/ Eu bem que mostrei sorrindo./ Pela janela, ói que lindo/ Mas Carolina não viu// Carolina, nos seus olhos tristes, guarda tanto amor/ O amor que já não existe// Eu bem que avisei, vai acabar/ De tudo lhe dei para aceitar/ Mil versos cantei pra lhe agradar/ Agora não sei como explicar/ Lá fora, amor, uma rosa morreu, uma festa acabou, nosso barco partiu/ Eu bem que mostrei a ela, o tempo passou na janela/ E só Carolina não viu. 215 A canção foi também gravada no disco As minhas preferidas – na voz de Agnaldo Rayol, coletânea de interpretações deste cantor para doze músicas escolhidas pelo presidente Costa e Silva, o mesmo que viria a decretar o Ato Institucional número 5, ainda naquele ano. (VELOSO, 2005, p. 49). 261

cadeia e o exílio, no qual constam algumas composições que reforçam o registro da depressão nacional e pessoal a partir do fim de 1968. Servem como exemplo as canções “My empty boat” (uma espécie de antecipação da sentença “o sonho acabou”, usando as imagens do barco e do corações vazios e terminando com “yes, my dream is wrong/ from the birth to the death) e uma versão de “Marinheiro só” (cujo caráter dêitico do advérbio em “Eu não sou daqui” dá relevo ao afastamento gerado pelo exílio) e, ainda no mesmo campo semântico do “distante navegante”, “Os argonautas” (“o barco/ não agüenta tanta tormenta/ alegria/ meu coração não contenta/ o dia, o marco, meu coração/ o porto, não// navegar é preciso/ viver não é preciso”). Antes dessa gravação, ainda em 1968, “Carolina” já havia sido mencionada em duas letras tropicalistas. Em “Baby”, a antimusa aparece logo no primeiro verso (“você precisa saber da piscina, da margarina, da Carolina, da gasolina...”) e em “Geleia geral”, na passagem: “e outra moça também, Carolina/ da janela examina a folia/ salve o lindo pendão dos seus olhos/ e a saúde que o olhar irradia”. Nesta última, é sintomático o uso do termo “saúde”, já discutido na seção sobre Jorge Ben. A composição “Carolina” de Chico Buarque constrói uma atmosfera nada “saudável”, com seus olhos fundos e tristes repletos de dor. Ao ser incorporada pela canção de Torquato e Gil, a personagem ganha vida diante da folia. Na mesma entrevista ao Pasquim, mencionada superficialmente no capítulo, Chico responde sobre possíveis intenções irônicas na gravação de Caetano. O conjunto de sua avaliação merece nota: O que eu quero dizer é que eles são os mesmos essencialmente, o Caetano não mudou. Aquele lirismo do “Coração Vagabundo” é o mesmo que tem no “Baby” e “Objeto não identificado”, com a diferença que ele faz a crítica de todo o lirismo do negócio que ele está cantando. Acontece que a coisa pega pelo lirismo e não pela crítica. “Carolina” entra nessa coisa, é uma coisa muito ambígua. A intenção dele pode ser inclusive de crítica, e não a mim, pessoalmente, a todo um espírito, a todo um modo de gostar de música brasileira

“Coração vagabundo” é a faixa que abre o disco Domingo, o que permite identificar que a origem desse lirismo passa também pelo culto a João Gilberto, sendo natural que o compositor o conserve. Caetano Veloso, no entanto, desenvolve em sua gravação de “Carolina” um procedimento fundamental do tropicalismo, que é descrito por Chico com grande precisão: a ambiguidade entre a adesão e a crítica. Veja-se que utilizando elementos de redundância, chavões pop e o próprio lirismo, Caetano convida à aproximação com a

262

tradição da canção brasileira e com os veículos de comunicação de massas; por outro lado, os elementos de inovação, de estranhamento e de violência convidam à revisão crítica dessa mesma cultura de massas, dessa mesma tradição, desse mesmo “modo de gostar de música”, enfim, dos critérios de julgamento estético. O último encontro com Chico Buarque relatado em Verdade tropical diz respeito ao espetáculo de 1972, que resultou na gravação do disco Chico e Caetano – juntos e ao vivo. A ênfase no adjetivo “juntos” chama atenção para o inusitado da parceira, valendo-se outra vez da rivalidade construída com finalidade propagandística. Marca-se aí um final de ciclo e um reencontro entre dois dos mitos maiores da canção popular brasileira. No entanto, a última aparição do artista no livro refere-se à informação de que Chico foi o primeiro nome cogitado para escrever o artigo sobre Carmen Miranda para o New York Times. Mais uma vez, Carmen presente, mais uma vez a oposição entre os artistas, mais uma vez a dualidade entre acaso e destino.

3. O transe – o caso Glauber Rocha

Dos três nomes normalmente vinculados ao “tropicalismo” no amplo âmbito da cultura – Hélio Oiticica, Zé Celso e Glauber Rocha – apenas este último é apresentado como influenciador direto do tropicalismo musical. Por isso mesmo, o primeiro capítulo da parte 2 de Verdade tropical começa pela seção “Transe”, narrando o impacto de Terra em transe sobre Caetano Veloso. Vale reafirmar que o filme, lançado em maio de 1967 é anterior à passeata contra as guitarras, ao Festival de 1967, à estreia de O rei da vela e à gravação dos discos tropicalistas de Caetano e Gil. Por outro lado, a identificação da convivência com José Agrippino de Paula e Rogério Duarte como fator determinante para a recepção positiva do filme, faz com que possamos compreender o capítulo “Transe” também como uma nova fase dos momentos formativos de Caetano Veloso. Deve-se ressaltar que Glauber Rocha era um personagem de Salvador no início dos anos 1960, fazendo parte do mesmo contexto vanguardista que foi experimentado por Caetano na companhia (e sob as influências) de Maria Bethânia, Álvaro Guimarães e Duda Machado.216

216 “Rogério e Zé Agrippino (não menos do que Duda e Alvinho Guimarães já o tinham feito) ampliavam problemas que meu espírito já conhecia em estado embrionário, os quais se tornavam desafios que eu aceitava com voracidade”. (VELOSO, 2008, p. 106)

263

Glauber Rocha aparece na linha narrativa de Verdade tropical especialmente vinculado ao episódio de Terra em transe, mas também em questões fundamentais da obra. Nesse sentido, Caetano o insere nas discussões sobre o cinema nacional, comenta alguns filmes emblemáticos de sua produção, reflete sobre sua posição em relação a Oswald de Andrade e evidencia a relação de sua obra com o sebastianismo. Seria interessante, à guisa de introdução, comentar o desfecho do capítulo “Domingo”, onde Caetano propõe a seguinte equação: Eu podia ser um pouco Glauber, um pouco João Gilberto, com esse novo repertório que lançaríamos no seio da música popular. [...] Hoje considero o ridículo da pretensão de ser “meio Glauber, meio João Gilberto”. Mas o ridículo não está em a pretensão ser demasiado grande – as ideias pretensiosas, mesmo quando ridículas, são motor e sinal de energia criadora. O ridículo está em ser errada a equação. Felizmente não se faria possível ser “um pouco Glauber, um pouco João: isso era apenas um modo tolo de eu me dizer que tinha de me tornar eu mesmo. (VELOSO, 2008, p. 139)

Caetano Veloso sinaliza, assim, que ainda estava prestes a consolidar sua formação enquanto artista. A citação ajuda a colocar João Gilberto e Glauber Rocha em outro patamar no âmbito desse processo formativo, e também a compreender a sequência escolhida para a narrativa de Verdade tropical. Nesse sentido, o inventor da bossa nova aparece, ainda no primeiro capítulo da parte 1, como evento seminal de toda a trajetória de Caetano, sendo referido como grande protagonista do livro (o portador da lição estética que lhe serve de norte); o criador de Terra em transe, por sua vez, é observado no primeiro capítulo da parte 2, sendo referido como deflagrador do tropicalismo e provocador do “transe”. Além disso, o registro da grandeza e da contradição faz também parte da equação: as duas referências são personagens revolucionários da cultura brasileira, embora representem universos opostos – de um lado, a precisão, a concisão, o minimalismo; do outro, o excesso, a verborragia, a irregularidade. No artigo “Discretamente aqui”, Caetano Veloso (1972), depois de afirmar não ser um mito nacional na medida em que Pelé ou Roberto Carlos o são, reforça sua aproximação com Glauber Rocha: O minguado mito Caetano Veloso é bem mais como o mito Glauber Rocha. Mas eu apareço na televisão, um número muito maior de pessoas me conhece de cara e de nome, alguns discos meus fizeram sucesso. [...] Como Glauber, tornei-me uma caricatura de líder intelectual de uma geração. Nada mais. Um ídolo para consumo de intelectuais, jornalistas, universitários em transe. Só que jogando sem grandes grilos nos apavorantes meios de comunicação de massa.

264

Na sua miséria, a intelectualidade brasileira viu em mim um porta- estandarte, um salvador, um bode expiatório. (VELOSO, 2005, p. 116)

O texto é, de modo geral, um balanço feito por Caetano Veloso na volta do exílio londrino, com alguns comentários sobre o tropicalismo e sobre alguns mitos de nossa cultura de massas. Veja-se que há uma gradação proposta no fragmento supracitado: elegendo como parâmetro comparativo Pelé e Roberto Carlos (os dois grandes “reis” populares do Brasil, um vinculado ao futebol, o outro à canção), o autor atribui ao mito que lhe corresponde uma dimensão menor. Caetano enfatiza, assim, que ele e Glauber, embora vindos também da cultura de massas, acabaram se tornando espécies de líderes intelectuais, condição esta da qual o autor declina. Essa formulação, porém, poderia ser explicada pelo fato de que ambos, o compositor tanto quanto o cineasta, empreenderam semelhantes esforços no sentido de produzir acompanhamentos teóricos para suas próprias obras (e também para as áreas de expressão em que se inserem, isto é, a canção popular e o cinema, respectivamente), elevando o nível de discussão sobre a cultura de massas, mas também sobre a busca de expressões artísticas brasileiras modernas, originais e insubmissas aos valores instituídos pelas culturas dominantes, mormente a Europa e os Estados Unidos. Desse modo, acabaram se tornando também figuras importantes no âmbito mais amplo da discussão sobre o Brasil e, por conseguinte, sobre outras formas de resolver os problemas internos do país e de estabelecer diálogos com o cenário internacional. Apesar disso, Caetano rejeita com veemência o título de intelectual, não só para escapar de uma imobilização decorrente de sua mitificação (ainda mais nesses termos), mas também para reafirmar seu lugar de fala, que aponta para sua condição de cantor e compositor popular (notabilizado pela cultura de massas, de modo até mais intenso do que Glauber, visto que a canção é uma expressão de maior visibilidade), o que faz com que devolva, segundo análise de Eucanaã Ferraz, “à intelectualidade brasileira, à Universidade, às instituições, governamentais ou não, ligadas à educação e à arte suas responsabilidades política e histórica”.217

217 (FERRAZ apud VELOSO, 2005. p. 16. 265

3.1. A linha evolutiva do cinema brasileiro

Logo no início de “Transe”, Caetano dedica-se à apresentação de Glauber Rocha e do movimento do cinema novo a partir do panorama traçado pelo cineasta em seu livro Revisão crítica do cinema brasileiro (1963), mas também do emblemático “A estética da fome” (1965). O narrador, novamente imbuído de interesse expositivo (mas não acadêmico), opta por não localizar temporalmente a primeira obra e sequer cita diretamente o outro texto, embora seja possível encontrá-los no substrato de sua descrição. A exposição de Caetano que evidencia esses vínculos pode ser encontrada principalmente na seguinte sequência: O movimento do Cinema Novo, na primeira metade dos anos 1960, opôs- se tanto ao academicismo das produções respeitáveis da Vera Cruz quanto ao primarismo das chanchadas. (VELOSO, 2008, p. 95)

E, pouco depois: Glauber liderou prática e teoricamente o movimento do Cinema Novo. Seu livro Revisão crítica do cinema brasileiro argumenta em favor da criação de um cinema superior nascido da miséria brasileira como o neo- realismo italiano nascera da indigência das cidades italianas no imediato pós-guerra. Ali ele conclamava os jovens intelectuais de esquerda que se sentissem atraídos pelo cinema a inspirarem-se no Nelson Pereira dos Santos de Rio, 40 graus, e naturalmente isso significava desprezar tanto os sensatos que apenas tentavam encenar diante da câmera histórica razoavelmente roteirizados, quanto os malandros que produziam diversão para um público semi-analfabeto. (Ibidem)

No panorama traçado (feito a partir do apresentado por Glauber Rocha), é possível compreender o cinema novo como um gesto de ruptura com duas linhas diversas do incipiente cinema nacional brasileiro: de um lado, as chanchadas, que inauguravam uma tentativa primária de cinema comercial brasileiro a partir dos anos 1930 e que se caracterizavam pelo humor burlesco e pelo caráter popular; e as produções da Companhia Cinematográfica Vera Cruz (entre 1949 e 1954), que buscava elevar a qualidade dos filmes nacionais, distanciando-se temática e formalmente do outro estilo218. A origem da formulação de Caetano, na primeira citação, pode ser encontrada no livro de Glauber, referido na sequência, no qual o diretor propõe uma terceira via para o

218 Alô, alô carnaval de 1936, dirigido por Adhemar Gonzaga e estrelado por Carmen Miranda, e O homem do Sputinik de 1959, dirigido por Carlos Manga e estrelado por Oscarito, são exemplos emblemáticos do primeiro estilo; enquanto O cangaceiro de 1953, dirigido por Lima Barreto é o exemplo paradigmático do segundo. 266

cinema brasileiro, utilizando como tática superar primeiramente a chanchada e, em seguida, combater o “cinema dramático evasivo, comercial e acadêmico.219 Revisão crítica do cinema brasileiro, publicado em 1963 (um ano depois da estreia de Barravento e um ano antes do crucial Deus e diabo na terra do sol), começa com a consideração de Glauber sobre a rarefeita e pouco profunda análise crítica acerca das produções cinematográficas no Brasil, observação que permite o paralelo com o estudo da canção popular nos mesmos anos 1960. Esse cenário permite ressaltar uma aproximação possível entre Caetano e Glauber, na medida em que ambos produziram um acompanhamento crítico-teórico no intuito de aprofundar a discussão sobre a cultura de massas no Brasil. Na verdade, o cerne da argumentação de Glauber no livro é a defesa do “cinema de autor” em contraponto ao “cinema comercial”, afirmando que a arte brasileira precisaria se potencializar “a partir de sua expressão”220. Nesse comentário, já se observa não só a ênfase na necessidade de romper com aquele modelo de indústria cinematográfica (que estava em vias de consolidar-se nas bases de um comercialismo vulgar), mas especialmente levar para o campo estético (mais do que apenas para o temático) a questão da brasilidade no cinema. Com base nisso, Glauber também se empenha em formular o que seria uma linha “evolutiva” dentro do cinema nacional (tal como Caetano fez com a música popular), enfatizando evidentemente o percurso que conduz ao cinema novo. Desse modo, a Revisão crítica do cinema brasileiro procede a uma valorização de Humberto Mauro (em detrimento de Mário Peixoto), ataca Lima Barreto (e, com ele, o projeto da Vera Cruz) e assinala um momento fundamental de nosso cinema na figura de Nelson Pereira dos Santos221. Esse diretor aparece, no fragmento de Caetano Veloso, relacionado ao paradigmático Rio, 40 graus, filme de 1955 que tematiza a realidade brasileira a partir de situações cotidianas da vida de cinco garotos de uma favela do Rio de Janeiro. Caetano destaca também o projeto de fazer um cinema nascido da miséria brasileira, o que lhe sugere a aproximação com o neo-realismo italiano, de fundamental importância para a formação de sua própria sensibilidade. Esse ponto foi defendido por

219 ROCHA, 2003, p. 132. 220 Ibidem, p.125. 221 “Segunda ilha autoral, depois de Humberto Mauro, Nelson Pereira dos Santos é a mais fértil, madura e corajosa mentalidade do cinema brasileiro. Um dos intelectuais mais sérios de sua geração, consciente de seu papel histórico.” (Ibidem, p. 110) 267

Glauber, de modo ainda mais incisivo, anos depois, quando em Gênova, em 1965, o diretor defendeu sua tese acerca de uma “estética da fome”: A fome latina, por isto, não é somente um sintoma alarmante: é o nervo de sua própria sociedade. Aí reside a trágica originalidade do cinema novo diante do cinema mundial: nossa originalidade é nossa fome e nossa maior miséria é que esta fome, sendo sentida, não é compreendida. (ROCHA, 2004, p. 65)

E, pouco depois: Assim somente uma cultura da fome, minando suas próprias estruturas, pode superar-se qualitativamente: e a mais nobre manifestação cultural da fome é a violência. [...] Do cinema novo: uma estética da violência antes de ser primitiva é revolucionária, eis aí o ponto inicial para que o colonizador compreenda a existência do colonizado. (Ibidem, p. 66)

Os fragmentos indicam claramente que Glauber Rocha adota uma perspectiva anticolonial, que transcende a simples tematização da miséria (que poderia ser facilmente consumida pelo público europeu na esteira de um primitivismo nostálgico), e mira a tradução estética dessa fome em expressão de violência, abrindo um campo revolucionário e o original (portanto, “novo”) para nosso cinema. Aqui também vale lembrar a confluência estética na virada dos anos 1960 para os 1970 no sentido de opções estéticas mais violentas, que não pudessem ser apropriadas facilmente pelos interesses comerciais ou ideológicos da indústria do entretenimento. Além disso, atinge-se o objetivo de impor ao colonizador a afirmação da existência da América Latina. A elevação qualitativa da produção artística nacional, mais do que ter que superar a condição de povo colonizado e miserável, deveria, portanto, partir exatamente dessa realidade para atingir seus objetivos. Essa tese é ratificada em outro relevante texto de Glauber, já de 1969, intitulado “O transe na América Latina”. O fragmento a seguir é um comentário do próprio diretor sobre Terra em transe: Porque nosso subdesenvolvimento, além das febres ideológicas, é de civilização, provocado por uma opressão econômica enorme. Então, não podemos ter heróis positivos e definidos, não podemos adotar palavras de beleza, palavras ideais. Temos que afrontar nossa realidade com profunda dor. Não existe nada de positivo na América Latina a não ser a dor, a miséria, isto é, o positivo é justamente o que se considera negativo. Porque é a partir daí que se pode construir uma civilização que tem um caminho enorme a seguir. Esse é minha opinião sobre o filme. (Ibidem, p. 172)

É notório como essas ideias estão afinadas com o tropicalismo musical de 1967-8. No já referido artigo “Diferentemente dos americanos do norte” Caetano afirma que

268

“nunca canções disseram tão mal do Brasil quanto as canções tropicalistas”, exatamente na sequência de observar que o que lhe chamara atenção em Terra em transe foi justamente “a ostentação barroquizante de nossas falências, de nossas torpezas e de nossos ridículos”222. Por outro lado, veja-se que aqui mesmo se reitera a ideia de que o enfrentamento de nossa própria miséria é o que poderia dar matéria para a arte brasileira e abrir caminhos para a construção de uma civilização latino-americana capaz de superar seus problemas estruturais. Ou, nas palavras de Caetano, no mesmo artigo, “é de volta de tais infernos que pretendo trazer visões utópicas”223. Aliás, é possível sinalizar no fragmento o eco de grandes intérpretes do Brasil (como Sérgio Buarque e Gilberto Freyre) na formulação de que “o positivo é justamente o que se considera negativo” e é na chave dessas leituras que podemos perceber a ideia de que as mazelas da formação do país (que resultaram no subdesenvolvimento, na miséria e na violência) seriam também o princípio de sua singularidade, a partir da qual se poderiam encontrar soluções originais e bases para novas formas de organização social. Nessa esteira, para além dos aspectos que trataremos adiante, o filme Deus e o diabo na terra do sol é também um marco para Caetano Veloso, pois evidencia a própria concretização dessa tese, tal como fica claro em trecho crucial do capítulo, no qual o narrador-intérprete, depois de aproximar o filme de Glauber de O evangelho segundo São Matheus (1964) de Pasolini, dialeticamente o afasta da película italiana: Mas Deus e o diabo na terra do sol não se apoiava em algo como a poderosa singeleza dos Evangelhos: ele tinha que dar conta de todo um imaginário e de toda uma problemática particulares do Brasil. Via-se na tela o próprio desejo de os brasileiros fazerem cinema. Não era o Brasil tentando fazer direito (ou provando que podia), mas errando e acertando num nível que propunha, a partir de seu próprio ponto de vista, novos critérios para julgar erros e acertos. (VELOSO, 2008, p. 96)

Assim, marca-se não só o afastamento da proposta da Vera Cruz (na medida em que não se deseja mais fazer um cinema de “nível internacional”), mas de francamente se livrar dos complexos da colonização que fazem com que o atraso do país seja medido por critérios exteriores. É crucial, portanto, perceber que o impacto de Glauber no pensamento de Caetano pode fazer-se perceber na afirmação do “desejo de os brasileiros fazerem cinema”, como se poderia ver nas canções o desejo de os brasileiros produzirem música popular. Aqui se sinaliza a necessidade de dar conta de um imaginário e de uma

222 VELOSO, 2005, p. 52. 223 Ibidem. 269

problemática nacionais, mas especialmente propõe-se a reflexão sobre a produção estética nacional e a revisão dos critérios que reforçam discursivamente o atraso brasileiro. Vale também indicar que Caetano Veloso acompanhava essas discussões desde muito jovem, quando ainda queria ser crítico de cinema, em Salvador, no início dos anos 1960, quando Glauber e Caetano encontravam-se no mesmo contexto de efervescência cultural na capital baiana, frequentando o cineclube de Walter da Silveira. Aliás, Caetano escreveu para o periódico O Archote entre 1960 e 1962, assinando inclusive artigos sobre Humberto Mauro (figura chave para a linha proposta por Glauber no livro de 1963) e sobre Barravento, no qual já se evidenciavam as discussões sobre experimentalismo, mensagem política e comunicabilidade com o público. Em artigo de 1960, Caetano escreveu que “o cinema é a arte de maior importância social e política”, pois “é a que mais penetra no espírito dos povos levando ideias, ensinamentos, mensagens”224. Essa colocação faz muito sentido quando pensamos que foi feita pelo jovem Caetano, imerso no universo de Walter da Silveira e almejando ser crítico de cinema. A adesão à canção popular ajuda a explicar a mudança de sua percepção: embora ainda na cultura de massas, o autor passaria a acreditar que é a música popular que ocupa essa posição225.

3.2. Rogério e Agrippino

Cabe agora compreender em que sentido Caetano aponta o artista plástico baiano Rogério Duarte e o escritor paulista José Agrippino de Paula como figuras importantes de sua formação. Para tanto, o narrador dedica-se à apresentação dos dois personagens, descrevendo suas características mais marcantes e mencionando episódios que ilustram a contribuição que deram para o amadurecimento de suas formas de pensar, especialmente no que concerne à predisposição para receber favoravelmente o filme de Glauber. Caetano conta que conheceu Rogério Duarte no Rio ainda em 1964 e foi ele que lhe apresentou a Zé Agrippino já no ano de 1967, poucos meses antes da estreia do filme de Glauber. Nesse sentido, o seguinte fragmento serve ao nosso argumento: A simples presença de Zé Agrippino representava como que um aprofundamento das ideias mais audaciosas de Rogério. De fato, este me contara que, ao ver Agrippino um dia andando na rua – um total

224 VELOSO, 2005, p. 254. 225 “E a música brasileira é a forma de expressão brasileira por excelência”. (VELOSO, 2008, p. 139) 270

desconhecido –, e sem que lhe dirigisse a palavra, disse de si para si: “Nunca vi um homem tão inteligente em toda a minha vida”. Aproximou- se desse estranho e assim nasceu a amizade entre eles. (VELOSO, 2008, p. 103)

Note-se como o narrador envolve os personagens (suas descrições pessoais e a forma com que se encontram ou que tomam decisões) em uma dimensão extraordinária. A essa altura, Caetano já havia descrito Rogério Duarte como alguém cuja inteligência era não raro mencionada em conversas na Faculdade de Filosofia, especialmente por suas opiniões desconcertantes e pela forma contundente com que eram defendidas. O narrador chega a dizer que se surpreendeu ao conhecê-lo, mesmo já tendo ouvido falar de sua inteligência: Sua voz era mais potente, sua mente mais rápida e suas ideias mais desconcertantes do que teria sido capaz de imaginar. Havia entre ele e seus discursos um comprometimento metafísico que multiplicava seu poder persuasivo dos argumentos. E ele era surpreendentemente gentil e amigável. (Ibidem, p. 101)

É possível observar aí algumas características recorrentes na estrutura do livro, tal como o elogio da excentricidade (isto é, da inteligência “desconcertante”), e a afirmação do caráter transcendente que se evoca a partir da palavra “metafísico”. Mais que isso, o empenho argumentativo e o caráter “gentil e amigável” estão aqui postos para servir de base para o retrato de Agrippino, feito de modo a ressaltar o que os aproximava e, especialmente, o que os opunha: Agrippino não era eloquente como Rogério e jamais explicava ou justificava suas posições: ele impunha sua presença pétrea e deixava suas conclusões caírem como tijolos no meio de uma roda de conversa. (Ibidem, p. 103)

E, pouco depois: Zé Agrippino parecia um homem das cavernas, com sua barba negra e seu jeito pesado. Ele nunca correspondia aos sorrisos convencionais que todos trocam entre si quando se olham calmamente, o que me deixava muitas vezes constrangido. Mas ele não era descortês ou grosseiro e quando um sorriso aflorava em seu rosto não vinha apenas valorizado pela raridade mas sobretudo pela verdade e inevitabilidade. (Ibidem, p. 104)

Para além dos retratos, Caetano destaca especificamente as conversas em que se revela de modo mais claro a influência que os dois personagens tiveram para a recepção de Glauber e para a eclosão do tropicalismo. Isso se dá especialmente a partir de um distanciamento crítico em relação à esquerda que recusava a cultura de massas americana e

271

que defendia uma visão idealizada de povo. Nesse sentido, o autor chama atenção para o conteúdo das conversas nas quais o escritor paulista defendia o rock em detrimento da MPB e afirmava Chacrinha como a personalidade teatral mais importante do Brasil. Vale lembrar que o anárquico apresentador-palhaço, que figura na letra de “Aquele abraço” de Gil, foi também objeto de interesse das pesquisas de Edgar Morin. Essas formulações, evidentemente, distanciavam Rogério e Agrippino dos imaginários da esquerda nacional-popular que via com desconfiança a cultura de massas e o rock internacional. O afastamento desse ideário, que tem como auge a representação da “morte do populismo”, é um passo fundamental para a boa recepção de Glauber e, por conseguinte, para a eclosão do tropicalismo. À guisa de ilustrar as opiniões excêntricas de Rogério Duarte, Caetano apresenta uma situação de grande interesse, não só para a compreensão desse personagem, mas para o entendimento do livro de modo geral. Conta o narrador: Tremi ao ouvi-lo dizer que o prédio da União Nacional dos Estudantes devia mesmo ter sido queimado. O incêndio da UNE, um ato violento de grupos de direita que se seguiu imediatamente ao golpe de abril de 1964, era motivo de revolta para toda a esquerda, para os liberais assustados e para as boas almas em geral. (VELOSO, 2008, p. 102)

Segundo o relato, Rogério sustentava com veemência sua tese, com base no fato de que a intolerância dos membros da UNE contra a complexidade de suas ideias o levava a sentir sua liberdade ameaçada. Caetano, após o choque inicial, confessa sentir-se identificado com o diagnóstico de Rogério, pois havia naquela observação uma similaridade clara com a situação que Caetano passava com seus amigos de esquerda na Universidade da Bahia. Porém, é importante sublinhar que a narrativa sobre a afirmação polêmica de Rogério se completa da seguinte forma: Não tardei a descobrir que Rogério exibiria ainda maior violência contra os reacionários que apoiassem em primeira instância a agressão à UNE. Isso, que para muitos parecia absurda incoerência, era para mim prova de firmeza e rigor: ele detectava embriões de estruturas opressivas no seio mesmo dos grupos que lutavam contra a opressão, mas nem por isso iria confundir-se com os atuais opressores destes. (Idem)

Aqui se insinua, mais do que um retrato de Rogério, a própria defesa do lugar político de Verdade tropical. Assumindo o risco de apontar problemas na esquerda em um país onde o conservadorismo político é tão incisivo, o fragmento também evidencia a necessidade de posicionar-se diante das estruturas opressivas dentro da própria esquerda. O lugar da fissura é delicado e, embora tênue, a linha apresenta-se aqui de modo claro: seria

272

preciso rejeitar violentamente os reacionários e os opressores da direita; porém, sem deixar de marcar um território divergente dentro dessa oposição, especialmente no que concerne a suas manifestações mais autoritárias. Caetano completa o capítulo indicando o interesse que tinha pela esquerda, sobretudo no que se refere à justiça social, mas como se sentia distante da defesa de uma “ditadura do proletariado”, tanto pela rejeição de um governo ditatorial, como também pela descrença na ideia abstrata e idealizada de “proletário” que se defendia. Além disso, o narrador-intérprete avalia como o pensamento de esquerda predominante nos meios culturais concentrava a discussão no paradigma da luta de classes, deixando de discutir questões de “sexo e raça, elegância e gosto, amor ou forma”. Aqui já se prenuncia uma série de futuras cisões que serão abordadas na sequência do livro, passando por seus pontos chave: as questões de raça, gênero e sexualidade (que são fundamentais para as discussões de identidade e de afirmação social que ganharam força a partir da segunda metade do século XX); as questões relacionadas à elegância e ao gosto (que envolvem a possibilidade de transformação que há na intervenção artística sobre o conjunto de representações, hábitos e valores de um tempo) e, por fim, a relação entre amor e forma, que reverbera a oposição complementar entre a expressão emocional e ilimitada, e a elaboração racional, que lhe atribui organicidade e definição. Além disso, a exclusão da palavra “amor” das discussões políticas remete à sua omissão também nos dizeres impressos na bandeira nacional em relação ao lema positivista original226. Por fim, o resgate da discussão sobre a forma aponta para a atitude vanguardista que reside na radicalidade da linguagem. Tudo isso teria levado Caetano a desejar o rompimento com o ideário daquela esquerda. E é no filme Terra em transe que ele, predisposto pelas anteriores conversas com Rogério e Agrippino, encontra a formulação mais contundente dessa ruptura.

3.3. Terra em transe

No já referido texto de 1969, “O transe na América latina”, Glauber Rocha volta a defender que a obra de arte deve ser avaliada dentro de uma perspectiva estética, uma vez que não seria válido combater a alienação sociopolítica no conteúdo, enquanto se repete

226 A omissão da palavra “amor” antes de “ordem e progresso” é notada também no show “O poeta e o esfomeado” de Gil e Mautner (em 1987), em um comentário feito para introduzir a canção “Positivismo” de Noel Rosa. 273

uma forma em si alienada, reproduzindo “preconceitos culturais colonialistas”. Na sequência, o autor apresenta seu filme como precursor do tropicalismo: [o filme] provocou muitas coisas no Brasil: determinou uma influência muito grande no teatro, porque em seguida houve um grupo que montou O rei da vela, peça que me foi dedicada e que tem Oswald de Andrade como autor, busca na obra de um dos autores de 1922 que provocou um grande escândalo em nossos meios teatrais. A partir de Terra em transe, Caetano Veloso iniciou o movimento musical tropicalista. Toda uma nova discussão sobre cultura brasileira, especialmente aquela comprometida, ou melhor, ligada (não me agrada o outro termo, por demagógico) ao sociopolítico foi recolocada. (ROCHA, 2004, p. 171)

Assim, é possível observar Glauber colocando sua própria obra como divisor de águas na cultura brasileira, aceitando o reconhecimento de Caetano e a dedicatória de Zé Celso, bem como afirmando a importância de Oswald de Andrade e sua capacidade de “escândalo”. Caetano Veloso abre a parte 2 de Verdade tropical apontando Terra em transe como “deflagrador” do movimento: Se o tropicalismo se deveu em alguma medida a meus atos e minhas ideias, temos então de considerar como deflagrador do movimento o impacto que teve sobre mim o filme Terra em transe, de Glauber Rocha, em minha temporada carioca de 66-7. (VELOSO, 2008, p. 94)

O emprego da palavra “deflagrador” (no sentido de detonar, disparar, dar início) justifica a posição do capítulo como marco inicial da narrativa sobre o tropicalismo propriamente dito. Veja-se também que a oração condicional que introduz a frase chama atenção para a centralidade de Caetano na narrativa canônica sobre o tropicalismo: não é Gil, nem Gal nem Bethânia (poderíamos estender a lista) que elegeram o filme como marco inicial; trata-se de uma experiência estética pessoal de Caetano Veloso. O filme Terra em transe acompanha a trajetória do jornalista e poeta Paulo Martins (Jardel Filho), revista em seu delírio de morte. O personagem passa da filiação inicial ao conservador e tecnocrata Porfírio Diaz (Paulo Autran) para o apoio à candidatura do populista Felipe Vieira (Jose Lewgoy), na fictícia República de Eldorado. Frente a uma manobra que coloca Porfírio Diaz no poder, Paulo pressiona pela luta armada, mas não consegue o apoio de Vieira. A história culmina na morte do poeta, isolado, com a metralhadora nas mãos. O filme, portanto, serve como alegoria para os personagens e as tensões políticas do Brasil dos anos 1960. O momento “traumático” que teria deflagrado o tropicalismo refere-se especificamente à cena de um comício, no qual a ativista Sara concede a palavra ao operário sindicalizado Jerônimo. Nesse contexto, afirma didaticamente: “O povo é

274

Jerônimo. Fala, Jerônimo”. Após a reiteração do pedido e depois de longo silêncio, Jerônimo responde: “Eu sou um homem pobre, um operário. Sou presidente do meu sindicado. Estou na luta das classes. Acho que está tudo errado e eu não sei mesmo o que fazer. O país está em uma grande crise e o melhor a se fazer é esperar a ordem do presidente”.227 Mal terminada a frase, Paulo Martins tapa-lhe a boca bruscamente e diz: “Estão vendo o que é o povo? Um imbecil, um analfabeto, um despolitizado. Já pensaram Jerônimo no poder?”. Na sequência, outro personagem reivindica a condição de povo, afirmando: “Com a licença dos doutores, seu Jerônimo faz a política da gente, mas seu Jerônimo não é o povo. O povo sou eu, que tenho sete filhos e não tenho onde morar”. Logo após a fala, o personagem sofre uma série de agressões, ao coro de “Extremista!”, conduzindo a seu silenciamento com um cano de revólver (do segurança do candidato) enfiado em sua boca, ao que se sobrepõe o som de tiros. Caetano reproduz essa sequência de memória, utilizando-a para a reflexão central do capítulo. Aqui, o narrador comenta o impacto da cena e a forma com a qual buscava sem sucesso nominá-la. Já distanciado no tempo, afirma que o que vira naquele momento era a representação da “morte do populismo” ou ainda o esgotamento da “crença nas energias libertadoras do povo”. Afirma então: [...] mas era a própria fé nas forças populares – o próprio respeito que os melhores sentiam pelos homens do povo – o que aqui era descartado como arma política ou valor ético em si. Essa hecatombe, eu estava preparado para enfrentá-la. E excitado para examinar-lhe os fenômenos íntimos e antever-lhe as consequências. Nada do que veio a se chamar “tropicalismo” teria tido lugar sem esse momento traumático. (VELOSO, 2008, p. 100)

No contexto do filme, que insiste no bordão “precisamos de um líder!”, tanto os líderes populistas (como Vieira) quanto as representações do povo (como Jerônimo) aparecem problematizadas. Evidentemente, a expressão deve ser entendida aqui dentro do universo proposto por Glauber, no qual a demagogia presente na política nacional é ridicularizada. Além disso, não devemos ler o fragmento acima como uma depreciação do povo brasileiro (nem enquanto conjunto de pessoas, tampouco como representação das classes menos favorecidas), mas como um ataque a uma visão idealizada de “povo” na qual se investia a ideia revolucionária.

227 Fragmento disponível em https://www.youtube.com/watch?v=NzBKeyDnyiY. Último acesso: dezembro de 2015. 275

Em Alegorias do subdesenvolvimento, Ismail Xavier indica o espelhamento entre os personagens Paulo Martins e Porfírio Diaz, explicitando a presença de uma inclinação autoritária e uma admiração tácita entre o poeta guinado à esquerda e o político fascista. Desse modo, o crítico se reporta à observação semelhante à de Rogério Duarte (e, posteriormente, de Caetano Veloso), no sentido de apontar a presença de estruturas autoritárias no seio da esquerda. Além disso, Xavier contextualiza o filme de Glauber em relação ao estranhamento e à agressão, que são assumidos nos anos 1960 “dentro dessa tônica de decepção ante a não correspondência entre o povo real e sua imagem solicitada pela teoria da revolução”.228 A citação não é especificamente relativa ao filme, mas sobre um contexto mais amplo que teria Terra em transe como um marco. Segundo Caetano, o filme funcionou como uma libertação das estruturas esquemáticas da esquerda nacionalista e a abertura de outras perspectivas para análise de Brasil, de mirada mais ampla, abarcando questões de natureza antropológica, mítica, mística e moral. Isso também se confirma na representação de um povo captado em seus paradoxos, que Caetano apresenta entre “desesperantes e sugestivos”, de modo a ressaltar o traço de ambiguidade que atravessa o pensamento do artista. É importante perceber também que o filme poderia ter sido interpretado (como frequentemente aconteceu) como afirmação do esgotamento das possibilidades revolucionárias. Segundo Ismail Xavier, Terra em transe (juntamente com O bandido da luz vermelha) seria o marco da “crise da teleologia da história” no cinema, isto é, a desestabilização da visão evolutiva que crê que determinado encadeamento levaria, inexoravelmente, a determinado fim. O filme de Glauber Rocha, ao representar a frustração dos caminhos do jornalista, aponta para o caráter cíclico dos avanços políticos, que, em vez de chegarem ao ponto desejado, acabam sempre conduzindo a nova etapa de dominação e autoritarismo. E como eram justamente as visões de esquerda que se mostravam encurraladas no filme (entre o próprio autoritarismo, o caráter ilusório da idealização de “povo” e a inviabilidade da luta armada), muitos viram no filme a negação do horizonte de salvação. Caetano, por outro lado, percebe ali a necessidade de pensar caminhos alternativos, justamente a partir da desvinculação com teleologia proposta na perspectiva nacional- popular. O episódio representa, portanto, a percepção de Caetano sobre o esgotamento

228 XAVIER, 2012, p. 44. 276

específico das forças políticas tradicionais, levando-o a pensar a necessidade de liberar novas energias políticas, que pudessem ir além dos antigos esquemas.

4. O rei da vela – o caso José Celso Martinez Corrêa

O rei da vela é uma peça escrita por Oswald de Andrade em 1932, publicada em 1937, mas só encenada pela primeira vez em 1967, pelo Teatro Oficina de José Celso Martinez Corrêa. A edição da Coleção Folha propõe a seguinte sinopse: A peça é um painel alegórico, corrosivo e tragicômico da elite da época [pós-crise de 1929]. Burguesia gananciosa e aristocracia decadente unem- se num ambiente de subdesenvolvimento, dissolução moral, falcatruas, exploração econômica e sexualidade conturbada. [...] Em torno do agiota e fabricante de velas Abelardo I, de seu sucessor Abelardo II e da aristocracia decadente de Heloisa de Lesbos, circula uma miríade de personagens que alegorizam o atraso nacional, o imperialismo norte- americano, a exploração do homem comum, o servilismo intelectual e o declínio da grande família agrária. (apud ANDRADE, 2008, contracapa)

O título é explicado na medida em que as empresas elétricas haviam fechado por causa da crise, e o “providente” Abelardo oferece a solução em forma de velas229. O rei da vela é, assim, aquele que se beneficia com a parte arcaica do Brasil, com a crise econômica, com a falta de luz (no sentido literal, mas também figurado). A crise e o atraso permanentes do país são representados enquanto alimento dessa burguesia, que busca reeditar o mesmo ideário nobre da família, da superioridade e da caridade. A peça joga humoristicamente com a rivalidade entre comunistas e capitalistas, além de fazer várias referências metalinguísticas à própria história do teatro no Brasil, aspectos que justificam sua apropriação por Zé Celso no contexto de 1967. O jogo de interesses é representado no casamento de Heloísa de Lesbos com Abelardo I, que havia lhe prometido uma ilha230. No final, Abelardo I morre, mas sua lógica perdura com

229 “Abelardo I: Com muita honra! O Rei da Vela miserável dos agonizantes. O rei da Vela de sebo. E da vela feudal que nos fez adormecer em crianças pensando nas histórias das negras velhas... Da vela pequeno- burguesa dos oratórios e das escritas em casa... As empresas elétricas fecharam com a crise. Ninguém mais pode pagar o preço da luz. A vela voltou ao mercado pela minha mão previdente. [...] mas a grande vela é a vela da agonia, aquela pequena velinha de sebo que espalhei pelo Brasil inteiro... Num país medieval como o nosso, quem se atreve a passar os umbrais da eternidade sem uma vela na mão? Herdo um tostão de cada morto nacional.” (ANDRADE, 2008, p. 36) 230 Abelardo e Heloísa é uma referência irônica ao casal medieval que viveu um amor impossível, terminando com a castração de Abelardo e a ida de Heloísa para um convento. A promessa a Heloísa remete também o personagem anti-idealista da aventura quixotesca, movido inicialmente pela expectativa de ganhar uma ilha. 277

Abelardo II, dando ideia das continuidades evidentes da passagem do Brasil arcaico e aristocrático ao Brasil moderno e burguês. O espetáculo divide-se em três atos. No primeiro, observam-se as discussões sobre atrasos e juros no escritório de Abelardo I, diante da jaula de endividados e sob o chicote de Abelardo II, evidenciando a falsa generosidade burguesa. O segundo passa-se na paisagem tropical da Guanabara, que serve de cenário aos diálogos entre os familiares de Heloísa (representantes da aristocracia em declínio) e Abelardo (representante da burguesia imoral e submissa ao capital estrangeiro). Em vários momentos, a defesa da família e da religião é apresentada como forma de concentração de renda e alienação. No terceiro ato, volta-se ao escritório e encena-se a morte de Abelardo I, com uma vela na mão; no desfecho, Heloísa acaba se consolando com Abelardo II (ao som da marcha nupcial), insinuando a continuidade do ciclo de interesses. Em Verdade tropical, Caetano Veloso empenha-se em descrever as diferenças estéticas de cada ato, observado o caráter expressionista do primeiro, a estética da chanchada no segundo e, por fim, o tom operístico do terceiro. O caráter híbrido da peça, justapondo estilos diversificados (e até opostos) de concepção teatral, revela sua afinidade com as propostas do tropicalismo musical. Além disso, o autor destaca a importância do cenário de Hélio Eichbauer e cita a apropriação da maquete do segundo ato, utilizada na capa do disco Estrangeiro de 1989, cujo clip da música-título conta com a atuação de Zé Celso. O espetáculo é contado, em Verdade tropical, na seção “Antropofagia”, portanto, depois de narrados os episódios precursores do tropicalismo musical e os eventos principais do ano de 1967 (o Festival da Record, o lançamento de Domingo, a composição de “Tropicália”, a gravação do disco tropicalista de Caetano Veloso) e do início de 1968 (a mudança para São Paulo, o apartamento tropicalista, o álbum manifesto, o contato mais próximo com os poetas concretistas), porém antes da narrativa do processo de radicalização do movimento, cujo relato aparece nas seções posteriores, especialmente “É proibido, proibir” e “Divino maravilhoso”. Como já se observou, o conjunto “A poesia concreta”, “Vanguarda”, “Chico” e “Antropofagia” partem da apresentação do apartamento 2002, no capítulo anterior, como um espaço de encontros e diálogos, que incluem a presença dos poetas concretistas e sua influência a partir daquele momento. Esse intervalo enfatiza também a inclusão de Oswald de Andrade no pano de fundo das discussões acerca do tropicalismo.

278

Além disso, inserindo essa discussão no capítulo “Antropofagia”, Caetano consegue antecipar, ao relato da peça de 1967, a apresentação dos poetas concretistas, na esteira da mudança para São Paulo em 1968. Desse modo, Zé Celso, além de revelador da confluência de manifestações artísticas da época (é a partir da peça que Caetano percebe estar havendo um fenômeno que transcendia a canção popular), passa a funcionar, na narrativa, como porta de entrada para Oswald de Andrade e, com isso, gera-se um ponto de contato entre ele e os poetas concretistas, que já procediam a uma tentativa de resgatar e redimensionar o autor modernista, bem antes da apresentação de O rei da vela. Com isso, Caetano reitera o componente antropofágico do movimento (observado por Augusto desde os textos de O balanço da bossa), dá uma dimensão mais ampla ao conjunto de manifestações artísticas, faz de Oswald de Andrade o ponto de fuga do livro (de onde emerge um dos vetores principais da discussão sobre a brasilidade) e, ainda, mostra como essa combinação de fatores leva a uma organização mais profunda do tropicalismo musical e também à sua radicalização estética. É preciso notar também que, nesse momento, reedita-se no âmbito do teatro a contestação da visão nacional-popular proposta pelos CPCs e, especialmente, pelo Teatro de Arena. Para isso, Caetano relata que, na saída de O rei da vela, encontrou com Augusto Boal, que lhe dissera que Oswald de Andrade estava “morto e enterrado” e que preferia Oduvaldo Vianna Filho ao teatro do autor paulista. De outro lado, comenta a conversa com Zé Celso sobre o mesmo assunto: [Eu] disse-lhe da profunda impressão que me causou o texto escolhido, e ele falou horas sobre Oswald de Andrade, ressaltando o fato de que aquela peça, mais moderna do que tudo o que se escreveu no teatro brasileiro depois dela – com sua visão erotizada da política, sua linguagem não linear, seu enfoque bruto de signos que falam por si na revelação de conteúdos-tabus da realidade brasileira –, parecia ter ficado reprimida pelas forças opressivas da sociedade brasileira – e de sua intelligentsia – à espera de nossa geração”. (VELOSO, 2008, p. 240)

Observe-se que a linguagem política mais estrita, a linearidade, o esquematismo e o didatismo aparecem no negativo das características oswaldianas destacadas na conversa. Além disso, a visão erotizada da política pode ser vista como vínculo com as novas esquerdas, afirmadas no âmbito da contracultura internacional. No livro Do pré- tropicalismo aos sertões: conversas com Zé Celso organizado por Miguel Almeida, o diretor explicita várias vezes a oposição com a visão nacional-popular, especialmente em

279

relação ao Teatro de Arena de Augusto Boal e Oduvaldo Vianna Filho. Alguns fragmentos servem ao nosso argumento: ... o prazer é político; se você conhece o prazer e for interessado no seu prazer, você não se submete, de jeito nenhum; eu acho a questão hedonista muito mais política do que essa coisa rancorosa, cuecona, hipócrita, machista, patriarcal, que subsiste ainda. (ALMEIDA, 2003, p. 112)

O Oduvaldo Viana Filho, o Vianinha, queria aliança com a burguesia, e ser empregado da Globo, já disse pra você: os melhores empregados da Globo eram comunistas, como Dias Gomes etc.; eram os melhores, porque eles acatam a ordem, o processo deles é através da ordem, do progresso, e sem o amor. (Idem)

[...] o Arena cria um estereótipo do ator brasileiro, do ator da novela; a parte pobre da novela representa de acordo com o Arena, e a parte rica de acordo com o TBC: ainda hoje é a idealização do homem brasileiro, ainda é o Teatro do Oprimido, que o pobre é muito bom, é muito ingênuo, é coitado, fala: ‘Você gosta de eu?”, piegas, eu abomino; Sebastião Salgado, essa coisa toda, eu detesto ver o povo como oprimido; o povo é muito forte também, até o criminoso eu admiro mais do que o beato; então essas duas tendências ainda existem, mas está melhor. (Ibidem, p. 120)

O conjunto das três citações permite uma análise do contexto da virada dos anos 1960 para os 1970, e a palavra chave para compreendê-las é a marginalidade. Veja-se que a primeira citação afirma o caráter político do prazer, vinculado à liberdade, à insubmissão, ao questionamento do status quo – dimensões estas não atingidas com o mesmo vigor quando inseridas na discussão política tradicional, classificada por Zé Celso como “rancorosa, cuecona, hipócrita, machista, patriarcal”. Aqui reverbera a crítica de Caetano Veloso aos “colegas de esquerda” que só falavam das questões de classe, mas não discutiam raça, religião ou gênero/ sexualidade (com destaque especial para esta última). Na segunda citação, mostra-se curiosamente como o modelo de crítica social da esquerda representada por Vianna e Dias Gomes pôde ser apropriada com mais facilidade pela indústria de entretenimento e pelo mercado (a rede Globo sendo emblemática nesse sentido). Isso é apresentado por Zé Celso como indício de que esse paradigma de contestação é inócuo em relação a experiências de fato subversivas. Por fim, a terceira citação indica a estagnação das representações das classes sociais, tanto no que se refere aos ricos como aos pobres. Mais uma vez, a imagem de povo construída pelo imaginário da esquerda tradicional é contestada. Nesse sentido, Zé Celso afirma a predileção pelo pobre criminoso em detrimento do pobre ingênuo e vitimizado. Tanto na exaltação do comportamento hedonista quanto na predileção pelo marginal, 280

encontramos a afirmação dos valores contraculturais que deram tom à marginalia da virada para a década de 1970, evidenciando que também o teatro de Zé Celso estava inserido na zona de confluência que levou da tropicália à geração marginal. Nesse sentido, vale lembrar que o teatro de Zé Celso também evidenciou uma intensificação da violência cênica de 1967 para 1968. Nesse sentido, Verdade tropical registra também a peça montada pelo diretor no ano seguinte, Roda-viva, com texto de Chico Buarque. A menção ao espetáculo, porém, não aparece na sequência da parte 2 em que se narram os eventos de 1968, mas na seção seguinte, durante o relato da prisão. Isso se deve ao fato de que o espetáculo é citado em um interrogatório a Caetano na sede da PE da Vila Militar. A peça de Chico conta a história da ascensão de um ídolo da canção popular e a roda viva que se movimenta entre a popularidade, as demandas do mercado e os falseamentos da indústria cultural. Segundo o próprio Zé Celso, é a encenação de um ídolo como Roberto Carlos, depois convertido em herói do protesto como Vandré, terminando como um ídolo hippie, tal como uma paródia de Caetano Veloso.231 O texto, apesar de uma obra de juventude, mostrava a consciência de Chico Buarque sobre a máquina propagandística que criava e recriava mitos para o consumo das massas.232 Isso feito em 1968 é bastante significativo, não só porque é um retrato da incipiente indústria televisiva no Brasil, mas também da recente conversão de artistas daquela geração em ídolos populares, sujeitos às pressões mercadológicas e empresariais. Porém, segundo Caetano, é a direção de José Celso Martinez Corrêa que transforma a peça em um evento de grande impacto, com cenas de caráter ritualístico, tais como a crucificação do ídolo popular, o ritual antropofágico de devoração de seu fígado pelas “macacas de auditório” (o sangue real, por vezes, respingava nas pessoas da plateia) e a profanação de mitos cristãos, como o de Virgem Maria. Segundo Caetano Veloso: Sendo seu primeiro trabalho depois da virada que representou a montagem de O rei da vela de Oswald de Andrade, Roda viva levava às últimas consequências o estilo violento e anárquico inaugurado por Zé Celso. Mais identificado com o artista pop que o texto criticava do que com a crítica que o texto lhe fazia, mas, ao mesmo tempo, levando essa crítica aos seus extremos, ele fazia da peça um ritual pop e uma oportunidade de revelar os conteúdos inconscientes do imaginário brasileiro – e do Zeitgeist. (VELOSO, 2008, p. 377)

231 ALMEIDA, 2003, p. 70. 232 Como veremos a seguir, Augusto de Campos põe em questão a preocupação de Chico com a “roda viva”, afirmando que o artista deveria se preocupar mais com sua estigmatização como defensor do tradicionalismo na canção popular. 281

Assim, na explicação de Caetano Veloso é possível ver, também no âmbito do Teatro Oficina, um acirramento da violência estética. A ambiguidade entre aceitação e crítica do pop é outro traço de aproximação com as atitudes tropicalistas. Além disso, mais uma vez, Caetano reafirma o interesse por obras brasileiras hipoteticamente capazes de revelar “conteúdos inconscientes do imaginário brasileiro” (expressão semelhante à utilizada na análise de Terra em transe ou ainda nas observações sobre Carmen Miranda e Roberto Carlos) e também aptas a exemplificar o “espírito da época”, neste caso, a revolução pop dos anos 1960 e suas tensões. Em julho de 1968, o Comando de Caça aos Comunistas invadiu o teatro e agrediu fisicamente os atores e parte da plateia. O sargento que interrogou Caetano Veloso (na passagem que permite a digressão sobre o espetáculo) pergunta sobre a peça, questionando o desrespeito com a Virgem Maria e afirmando estar entre aqueles que participaram da invasão. O sargento insinuava que as razões para a prisão de Gil e Caetano tinham parentesco com aquelas que levaram ao espancamento dos atores de Roda viva. A reflexão que precede essa constatação diz: Estilizações de imagens reconhecíveis da publicidade ou do cotidiano, da TV ou da religião, se seguiam de cargas de presença física que eram sentidas como ameaça de uma nudez corporal que não quer ser planejadamente erótica nem decorativa, mas real, palpável, simplesmente carnal. Em suma, era tudo com que nosso trabalho, meu e do Gil - dos tropicalistas -, se identificava. (VELOSO, 2008, p. 378)

Os traços comuns entre a estética de Zé Celso e as ambições do tropicalismo musical são apresentados como comprovações do caráter subversivo das manifestações tropicalistas, indo desde a incorporação dos signos popularmente reconhecíveis (vinculados não apenas às mitologias religiosas, mas à própria emergência da mitologia pop de massas e do kitsch), à presença do cotidiano (e com ela os imperativos oswaldianos de valorização do presente e dos jornais) e à exibição ostensiva do corpo (em tudo afinada com a contracultura, mas também com a “tropicalidade”), além da própria violência estética iconoclasta. Esse conjunto configura uma série de diretrizes que seriam intensificadas pelo tropicalismo musical às vésperas da prisão que levara àquele interrogatório.

282

5. Deus está solto – o caso Agostinho da Silva

Em “Diferentemente dos americanos do norte”, Caetano Veloso apresenta Agostinho da Silva nos seguintes termos: [...] o professor Agostinho da Silva, um intelectual português que foi perseguido por Salazar e veio para o Brasil, onde participou da formação da Universidade da Paraíba, da Universidade de Brasília, e que, durante o período dos grandes projetos culturais da universidade da Bahia no fim dos anos 1950, início dos 60, organizou e dirigiu o Centro de Estudos Afro-Orientais em Salvador e disseminou uma forma de sebastianismo erudito de inspiração pessoana que me pareciam atraentes. (VELOSO, 2005, p. 54)

D. Sebastião, que posteriormente recebeu o epíteto de “O Encoberto”, reinou entre 1557 e 1578, quando morreu na derrota portuguesa na Batalha de Alcácer Quibir no Marrocos. Esse evento resultou, pouco depois, no fim da Dinastia de Avis e na perda da autonomia política portuguesa com a União Ibérica em 1580. O desaparecimento do rei deu origem ao mito de seu retorno, que faria Portugal retomar seu destino grandioso e liderar o V Império. O sebastianismo vincula-se a essa forma de messianismo, que perpassa desde então o imaginário luso-português, relacionando-se a obras como as de Luís de Camões, Antônio Vieira e Fernando Pessoa, mas também ao imaginário sobre Antônio Conselheiro (contado por Euclides da Cunha), à obra de Ariano Suassuna, ao cinema de Glauber Rocha, ao tropicalismo musical e, especialmente, às visões de Agostinho da Silva sobre o Brasil e o que seria a missão da comunidade luso-brasileira frente ao mundo. Luís de Camões dedica a D. Sebastião Os lusíadas, publicado em 1572, portanto, seis anos antes do desaparecimento do rei. O épico que conta a história gloriosa da conquista do mar pelo povo português apresenta em seu nono canto o episódio da “Ilha dos Amores”, lugar paradisíaco preparado por Vênus como forma de recompensar os navegantes portugueses pelas dificuldades enfrentadas. O desfecho da seção apresenta tom profético: E ponde na cobiça um freio duro, E na ambição também, que indignamente Tomais mil vezes, e no torpe e escuro Vício da tirania infame e urgente; Porque essas honras vãs, esse ouro puro Verdadeiro valor não dão à gente: Melhor é, merecê-los sem os ter, Que possuí-los sem os merecer.

283

Ou dai na paz as leis iguais, constantes, Que aos grandes não dêem o dos pequenos; Ou vos vesti nas armas rutilantes, Contra a lei dos inimigos Sarracenos: Fareis os Reinos grandes e possantes, E todos tereis mais e nenhum menos; Possuireis riquezas merecidas, Com as honras, que ilustram tanto as vidas.

E fareis claro o Rei, que tanto amais, Agora com os conselhos bem cuidados, Agora com as espadas, que imortais Vos farão, como os vossos já passados; Impossibilidades não façais, Que quem quis sempre pôde; e numerados Sereis entre os Heróis esclarecidos, E nesta Ilha de Vênus recebidos.233

O destino glorioso – e “merecido” – de Portugal une-se aqui à perspectiva de superação da ambição, da cobiça e da tirania, inaugurando um tempo de justiça e riqueza sob o grande e possante reinado português. Embora preceda ao desaparecimento de D. Sebastião, o desfecho da “Ilha dos Amores” é frequentemente aproximado do sebastianismo ou, no caso mais específico de Agostinho da Silva, da ideia de um Império do Espírito Santo. O profeta Daniel, segundo o Antigo Testamento, profetizou (a partir de um sonho de Nabucodonosor II) a existência de quatro impérios que seriam derrubados, ao que se seguira o Quinto Império, que jamais seria destruído e que subsistiria para sempre. O Padre Antônio Vieira, no século XVII, retomou a profecia, na crença de que, após os impérios erguidos por assírios, persas, gregos e romanos, ficaria a cargo dos portugueses construir o império definitivo. Agostinho da Silva aproxima o Quinto Império de Vieira ao Império do Espírito Santo, com base nas ideias propostas por Joaquim de Flora234. Segundo explica o antropólogo Pedro Agostinho, o império de Vieira relacionava-se a “uma hegemonia ideológica e política de Roma e no poder temporal do rei português”, mantendo assim “uma hierarquia etno-sócio-política, religiosamente unificada”; enquanto, para Agostinho,

233 http://oslusiadas.org/ix/ 234 Joaquim de Flora foi um filósofo místico do século XII que propunha, a partir da interpretação das Sagradas Escrituras, a existência de três Idades da História: a Idade do Pai (tempo anterior à revelação de Cristo, marcado pela Lei, pelo poder e pelo temor a Deus), a Idade do Filho (na qual estaríamos, desde a revelação do Novo Testamento) e, por fim, a Idade do Espírito Santo (o tempo do amor universal e da igualdade, onde não haveria mais necessidade de leis ou de instituições disciplinadoras). 284

o império deveria ser “social, política e religiosamente difuso, sem centros de poder político, e, sobretudo, sem centros de poder religioso e ortodoxo”235. Seria, enfim: [...] um Império de fraternidade, de charitas universal, de riqueza igualitariamente distribuída, de liberdade onde não poderia haver presos nem opressores. Nele, o Espírito fluiria livremente sem barreiras étnicas, sociais, econômicas, ideológicas ou políticas hierarquizando os homens entre si e justificando a dominação de uns sobre os outros. (AGOSTINHO apud SILVA, 2009, p. 181)

Outro elo importante do sebastianismo relaciona-se a Fernando Pessoa, que publicou em 1934 a obra Mensagem, que retoma a ideia de um adiado destino glorioso de Portugal a partir de D. Sebastião. Dividido em três partes – “Brasão”, “Mar português” e “O encoberto” – o livro reconta, em chave mitopoética, a história de Portugal, de sua formação como nação (com seus personagens históricos icônicos), a conquista do mar e, em seguida, o posterior período de estagnação: o “nevoeiro” de onde se aguarda que o destino português se cumpra.236 A importância de Fernando Pessoa para Agostinho da Silva não se resume ao sebastianismo de Mensagem. O pensador afirmava que o povo português era plural, e que deveria se afirmar em sua pluralidade; a prova disso poderia ser encontrada no fato de que o poeta mais plural do mundo (a seu ver) pertencia a Portugal. Portanto, além de representar a pluralidade do povo português, Fernando Pessoa é ainda um dos poetas mais importantes da língua portuguesa, ponto fundamental para a afirmação de Agostinho sobre o destino grandioso do país. A partir desse panorama, torna-se possível comentar a visão de Agostinho da Silva acerca da missão da comunidade luso-brasileira no mundo. Segundo o autor, foram os navios portugueses que teriam levado o Império Romano ao mundo, e Portugal, que já havia civilizado Ásia, África e América, precisava, por fim, civilizar a Europa. O ambicioso projeto vincula-se ao plano final de reestruturar o tabuleiro internacional, tendo em vista atingir a referida comunidade mística universal, que seria conduzida por seu país. O antropólogo Pedro Agostinho, nesse sentido, explica que Agostinho da Silva pensava, já nos anos 1960, que a ênfase na divisão do mundo entre os hemisférios do oeste e do leste – o Ocidente e o Oriente –, seria em breve substituída pela ênfase na dicotomia entre norte e sul, especialmente em relação à aproximação dos países setentrionais pelo

235 AGOSTINHO apud SILVA, 2009, p. 181. 236 O último poema de Mensagem, chamado “Nevoeiro”, que termina com os versos: “tudo é incerto e derradeiro/ tudo é disperso, nada é inteiro./ ó Portugal, hoje é nevoeiro// é a Hora”. (PESSOA, 2006, p. 104). 285

fato de serem mais ricos, industrializados, e “num certo sentido”, brancos. Sobre isso, conclui: Nesse momento, a situação giraria noventa graus e a oposição seria entre norte-sul, com os correlativos hemisférios, impondo aos que ficassem abaixo do novo Equador (mais que geográfico, econômico e sócio- político) a necessidade de se juntarem em defesa de si mesmos, e das transformações que Agostinho queria ver operadas no mundo. (Ibidem, p. 184)

É sob esse prisma que devemos compreender o Centro de Estudos Afro-Orientais, fundado por Agostinho da Silva na Universidade Federal da Bahia em 1959, no contexto da reitoria de Edgar Santos. Era de fundamental importância para seu projeto o estreitamento das relações entre a América do Sul, a África e o Oriente, cuja união poderia oferecer a resistência necessária ao projeto civilizatório do norte, especialmente da Europa.237 Além disso, com base no contexto ditatorial vivido em Portugal sob o governo de Salazar entre 1932 e 1968, Agostinho da Silva transfere para o Brasil (para a comunidade luso-brasileira) a missão de guiar a civilização para seu próximo estágio. Sob essa perspectiva, afirma que é da América do Sul que o mundo deve esperar novos horizontes, pois aqui “se olhou sempre com indiferença profunda e de massa tudo quanto se centra na eficiência e não no humano, no aprendido e não no imaginado, no plano e não na improvisação”. A análise reverbera o pensamento de Sérgio Buarque de Holanda, segundo o qual o personalismo, a imaginação e a improvisação associam-se a novas possibilidades. Mais que isso, a aproximação entre Brasil e Portugal serve de argumento à sua tese: [...] o Brasil é Portugal [...]. [...] verifica-se que se dirigiram ao Brasil de preferência os portugueses que continuavam na linha do município, de uma economia não-capitalista e da religião que punha o Espírito Santo como fundamental da Trindade e o punha reinando na perfeita fraternidade do Quinto Império. De modo que, se tivéssemos de determinar em qual dos territórios se conservou melhor a verdadeira linha cultural de Portugal, certamente nossa resposta teria que se inclinar para o Brasil. (Ibidem, 109)

Outro argumento importante utilizado por Agostinho da Silva diz respeito à carência da educação institucional do Brasil, vista, curiosamente, como positiva. No texto “Sobre opressão” (1970), o pensador destaca o papel das Universidades na manutenção do sistema opressivo, tendo em vista, especialmente, o caso de Portugal na época:

237 O CEAO ofereceu, àquela época, um curso de yourubá, não exigindo escolarização comprovada para frequentá-lo, o que abriu as portas da Universidade para grupos historicamente dela excluídos. 286

[...] definindo-se como se deve Universidade como sendo o lugar em que a pesquisa é livre, livre a transmissão do que se descobre e livre a objeção a qualquer espécie de doutrina, não havia em Portugal Universidade alguma: nada se descobria, nada se transmitia, nada se criticava; não se percebe como teria melhorado o Brasil pela importação do nada; ou como, tendo sido o povo que constitui a grande massa que se transportou ao Brasil, lhe daria ali o governo português o que em Portugal não lhe dava. (SILVA, 2009, p. 114)

E conclui: Com uma economia mais humana, sem Universidade e livre de biografias retrógadas, tinha [o Brasil], o que não sucedia com Portugal, todas as bases para um futuro digno da grandeza do povo que a ele fora: resta, ainda hoje, que se lembre, aproveite e construa. (Idem)

Essa argumentação interessa em especial quando lembramos que a visão de Brasil proposta por Caetano Veloso em Verdade tropical pouco se reporta às aulas da escola e mesmo da universidade, pelo menos em sua acepção tradicional; é justamente um período atípico da Universidade Federal da Bahia – a reitoria de Edgar Santos –, que produz tantos aspectos férteis a serem desenvolvidos pela geração baiana dos anos 1960. Assim, a UFBA aparece no livro especialmente no seu entorno de atividades artísticas, experiências de vanguarda e abertura à circularidade cultural. A relação de Agostinho da Silva com as universidades brasileiras é marcada justamente por essa busca de ruptura em relação àquilo que a instituição tradicionalmente representava para o pensador: um espaço excludente e interessado na manutenção do status quo. Em seu “Ensaio para uma Teoria do Brasil” (1966), Agostinho já defendia a liderança do Brasil sobre o futuro humano: O que nos interessa, porém, agora, é realmente o problema do Brasil e da sua capacidade de liderar o futuro humano, quando se desembaraçar de tudo quanto lhe foi inútil na educação europeia e exercer, com o esplendor e a vigorosa força de criação que pode demonstrar as suas capacidades de simpatia humana, de imaginação artística, de sincretismo religioso, de calma aceitação do destino, de inteligência psicológica, de ironia, de apetência de viver, de sentido da contemplação e do tempo. (Ibidem, 79)

Após afirmar novamente a necessidade de afastar-se da educação europeia (que reforçaria os valores com os quais se deveria romper), Agostinho da Silva sublinha, mais uma vez, traços importantes das interpretações canônicas sobre o Brasil. Nesse sentido, notem-se os traços da “simpatia”, da “imaginação”, da “apetência de viver”, mas também o

287

“sincretismo religioso”, condizente com o ecumênico Império do Espírito Santo, vislumbrado pelo pensador. Por fim, vale citar a entrevista exibida no programa televisivo Conversas vadias, na qual Agostinho da Silva afirma:

Havia em Portugal uma coisa extraordinária que era a vontade de construir alguma coisa que fosse um modelo para o mundo futuro. E construíram o Brasil. [O mundo futuro] vai ser um mundo com a população de todos os continentes misturada com a população de todos os continentes. Portugal montou no Brasil o modelo do que vai ser o mundo futuro. É até cômico quando as pessoas dizem que eu sou utópico. Primeiro porque não sabem português; julgam que utópico quer dizer impossível, quando utópico só quer dizer que ainda não há em lugar nenhum. E há em algum lugar. Há no Brasil. 238

A ideia de que o Brasil é o modelo de mundo futuro provocou imediata desconfiança nos entrevistadores. De fato, seria possível objetar sua leitura, considerando-a uma idealização frágil, que não contempla a miséria, a injustiça social e racial, e o próprio processo histórico que as produziu. No entanto, Agostinho da Silva chama atenção para o sentido preciso de sua afirmação: com as sucessivas migrações (conduzidas por motivos vários), o mundo tenderia à convivência entre as pessoas de mais diversas origens, o que se pode evidenciar no caso brasileiro desde sua formação. O que permanece utópico, porém, relaciona-se com a conjugação desse modelo com a superação dos problemas da pobreza, da exclusão e da violência. Isso reverbera, com efeito, a interpretação de que há no país “as bases para um futuro digno de grandeza”, mas que “resta que se lembre, aproveite e construa”.

5.1. O sebastianismo em Verdade tropical

A referência ao sebastianismo de Agostinho da Silva aparece mais diretamente em Verdade tropical a partir de três episódios: a decisão de se transferir para o Rio de Janeiro em 1966, o happening de “É proibido proibir” e, por fim, a visita ao alquimista de Sesimbra em Portugal. Os dois últimos aparecem também referidos no texto “Diferentemente dos americanos do norte”, onde também se associa o tropicalismo ao mito português.

238 Transcrição nossa da afirmação que aparece aos 22’ do episódio 9 de Conversas vadias. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=C85zv6Ocr0Y. Último acesso: janeiro/ 2016. 288

É preciso sinalizar também que, apesar de citar Agostinho da Silva como parte do contexto culturalmente rico da Universidade da Bahia sob reitoria de Edgar Santos, especificamente como criador do CEAO, Caetano Veloso mostra ter tido acesso a seu pensamento mais intensamente através de Roberto Pinho. Assim Caetano apresenta o personagem: [Roberto Pinho] me impressionou desde os primeiros encontros pela certeza com que proferia suas observações a um tempo realistas e proféticas. Ele fora formado pelo professor Agostinho da Silva, o fascinante português fugitivo do salazarismo e que via no Brasil um esforço de superação da fase nórdico-protestante da civilização. Era um paradoxal sebastianismo de esquerda que se nutria de lucidez e franco realismo e não de mistificações. (VELOSO, 2008, p. 89)

Em já referido artigo, Pedro Agostinho defende que Agostinho da Silva, tal como Vieira, acreditava na possibilidade de ver concretizado seu projeto utópico. Nesse sentido, observa que o pensador era frequentemente referido como um “racionalista místico”. O paradoxo entre o racionalismo e o misticismo é uma das linhas de força de Verdade tropical e a primeira referência a Agostinho da Silva já sublinha esse traço ao associar aquela forma de sebastianismo à lucidez e ao realismo, e de atribuir a Roberto Pinho característica paradoxal semelhante, entre realista e profético. É nessa sequência que Caetano se refere ao fato de que Agostinho da Silva “dizia petulantemente que Portugal já civilizou Ásia, África e América, faltava civilizar Europa”, indicando o desejo de ver mudado o paradigma da civilização a partir de Portugal, tendo em vista as glórias portuguesas do passado e uma ambição ainda maior para o futuro. Roberto Pinho aparece de forma decisiva no capítulo “Intermezzo baiano”, quando se relata a solicitação de Solano Ribeiro, então diretor do festival da TV Excelsior, para levar uma canção de Caetano ao concurso. Na sequência, o narrador afirma que muito de sua vinda ao Rio se deveu “à pressão feita por Roberto Pinho”, que o convenceu de que “deveria aceitar a sugestão do destino e ir fazer música no Rio e em São Paulo porque coisas grandes necessariamente adviriam disso”.239 Aliás, é também Roberto Pinho que lhe apresenta Alex Chacon, artista que morava em Copacabana e que lhe oferece moradia no Rio. É interessante pensar que o interlúdio entre a pré-história do tropicalismo e sua efetiva concretização tenha acontecido sob influência de um personagem formado por Agostinho da Silva, que assume o paradoxo entre o realismo e o misticismo, e que prevê o acontecimento de coisas grandes a partir do

239 VELOSO, 2008, p. 90. 289

que seria uma sugestão do destino. Assim, a história do tropicalismo já apresenta como ponto de partida um traço de predestinação, assumido com desconfiança, mas enfatizado pelo conjunto de eventos que, de fato, aconteceram a partir dessa decisão. O sebastianismo volta a ter destaque no livro no episódio do Festival Internacional da Canção da TV Globo, em 1968, quando Caetano Veloso apresentou “É proibido proibir”, em meio a um happening que ainda contava com um excêntrico americano vestido com um poncho hippie e soltando “gritos e grunhidos desarticulados”; John Danduran entrava após a exclamação de Caetano “Deus está solto”, uma inversão da expressão popular “o diabo está solto”. Deve-se acrescentar a isso a declamação de um poema de Mensagem de Fernando Pessoa e o arranjo dos Mutantes. Esse conjunto de referências levou a plateia do TUCA (Teatro da Universidade Católica) às vaias, o que ainda teria outros desdobramentos, como veremos. Por ora, convém analisar com mais calma cada um desses vetores. O capítulo “É proibido proibir” começa exatamente com Guilherme Araújo mostrando a Caetano Veloso as manifestações dos estudantes de Paris no célebre maio de 1968. Os cartazes e pichações apresentavam frases de ordem, relativas a discursos contraculturais e anticapitalistas, com referências à anarquia, ao surrealismo, ao dadá, ao LSD, à imaginação, ao sonho e, fundamentalmente, à liberdade. O movimento pode ser visto sob a égide da contracultura, isto é, do conjunto de manifestações anti-establishment que tiveram seu apogeu nas manifestações de juventude dos anos 1960, com destaque para o movimento hippie nos EUA e o maio de 1968 em Paris. Assim, a rebeldia juvenil instituía uma nova forma de opor-se à cultura oficial (e, assim, à arte acadêmica e à universidade tradicional) e ao sistema ideológico, político e econômico (de modo diverso às esquerdas tradicionais), elegendo a liberdade como tema fundamental e procedendo a uma intensa valorização do tempo presente e da politização do cotidiano e da individualidade. Quanto ao movimento hippie, cabe citar a síntese de Carlos Alberto M. Pereira: Para os hippies, ‘cair fora’ dessa camisa-de-força ocidental significava ganhar um outro lugar, fugindo então simultaneamente ao cerco do espaço físico, institucional e lógico desse mundo ocidental. É por isso que se pode entender melhor os três grandes eixos de movimentação que marcavam a rebelião – da cidade, a retirada para o campo; da família, a retirada para a vida em comunidade; e do racionalismo cientificista para os mistérios e descobertas do misticismo e do psicodelismo. (PEREIRA, 1983, p. 82)

290

No que concerne à presença desses eixos no tropicalismo, podemos identificar a pouca ênfase no primeiro (é justamente a mitologia urbana que o movimento pretende atingir); a pertinência em relação ao segundo (a crítica incisiva ao caráter artificioso dos valores da família tradicional, e mesmo o desejo de sair de casa em busca da liberdade240); e, por fim; o interesse pelo misticismo no terceiro (contudo, por vezes empreendendo a conciliação paradoxal entre o irracionalismo e o racionalismo). Voltando à narrativa, Guilherme Araújo sugeriu a Caetano que fizesse uma canção com o lema “É proibido proibir” e que depois a inscrevesse no festival. A letra propõe “derrubar as prateleiras, as estantes e as estátuas” num gesto de iconoclastia em relação aos valores de cultura, que culmina com o refrão “e eu digo sim/ eu digo não ao não/ eu digo é proibido proibir”, colando a frase emblemática do maio de 1968 e brincando com o paradoxo de conteúdo libertário. O arranjo dos Mutantes e sua própria presença como banda de rock afinada com o imaginário da contracultura internacional, e mais a presença do estrangeiro trajado de hippie, completa a alusão a esse conjunto de valores. De outro lado, a citação de um poema de Mensagem abre outro campo de significações e de questões. Trata-se do texto que abre a primeira seção (“Os símbolos”) da 3ª parte do livro, chamada “O encoberto”, exatamente em referência a D. Sebastião, que dá título ao poema: Esperai! Caí no areal e na hora adversa Que Deus concede aos seus Para o intervalo em que esteja a alma imersa Em sonhos que são Deus.

Que importa o areal e a morte e a desventura Se com Deus me guardei? É O que eu me sonhei que eterno dura É Esse que regressarei.241

A primeira estrofe do poema é alusão direta à morte de D. Sebastião no campo de batalha (“o areal”) em Alcácer Quibir, contada em primeira pessoa. A metáfora que

240 Vale sinalizar que a ironia do tropicalismo volta-se especificamente para os valores artificiais e conservadores que podem se associar à ideia de família; todavia, as obras de Caetano e Gil apresentam uma reverência a figuras familiares (especialmente a mãe e o pai) que não nos permite afirmar a adesão ao imaginário contracultural sem essa ressalva. De todo modo, no álbum-manifesto, esse universo aparece claramente em letras como “Panis et circensis” (com a referência às “pessoas na sala de jantar” “ocupadas em nascer e morrer”) e “Mamãe coragem” (uma narrativa doce e irônica sobre a retirada da família). No disco tropicalista de Caetano, o melhor exemplo é a canção “Eles” (ironizando os valores maniqueístas e as convenções burguesas); e no de Gil, “Ele falava nisso todo dia” (retratando um pai repetitivo e sempre preocupado com a segurança familiar). 241 PESSOA, 2006, p. 51. 291

equipara “sonhos” a “Deus” e põe D. Sebastião imerso nos sonhos (e, portanto, em Deus) prepara para as fusões propostas na estrofe seguinte. O uso das letras maiúsculas nos pronomes dos dois versos finais retoma anaforicamente “Deus”, levando o sonho de D. Sebastião para a esfera transcendental, de onde anuncia o regresso do rei, de seu sonho, e de sua aproximação com a dimensão divina. Vale lembrar que D. Sebastião já havia aparecido em seção anterior do livro de Pessoa, ainda na primeira parte “Os brasões”, no poema “D. Sebastião, rei de Portugal”: Louco, sim, louco, porque quis grandeza Qual a Sorte a não dá. Não coube em mim minha certeza; Por isso onde o areal está Ficou meu ser que houve, não o que há.

Minha loucura, outros que me a tomem Com o que nela ia. Sem a loucura que é o homem Mais que a besta sadia, Cadáver adiado que procria?242

Mais uma vez em primeira pessoa, o poema associa a figura do rei à loucura, explicada por um desejo de grandeza. Interessante observar a passagem de D. Sebastião para o plano mítico, no momento em que no areal ficou o “ser que houve, não o que há”: o rei, morto fisicamente no tempo passado, transporta sua existência para o presente do mito, reavaliando a loucura como elemento que faz o homem ultrapassar sua dimensão simplesmente natural de nascer, reproduzir e morrer. Caetano Veloso aproveita a citação do poema para, digressivamente, explicar D. Sebastião, o Quinto Império, o livro Mensagem, Agostinho da Silva e o Império do Espírito Santo, indicando que muito desse imaginário está por trás de toda a obra de Glauber e, “em que pesem as ironias e desconfianças, de todo o tropicalismo”. Além disso, o autor chama atenção para o fato de estar fundindo um poema do modernismo português (expressão erudita do sebastianismo) com guitarras elétricas e slogans surrealistas vinculados ao maio de 1968, em um procedimento estético vanguardista, derrubando, desde o âmbito formal, as segmentações instituídas pelos valores de cultura (que estão sendo questionados pelos mesmos estudantes franceses evocados na letra), concretizando a palavra de ordem sobre negar-se a qualquer tipo de proibição, limitação, impedimento. E

242 Ibidem, p. 33. 292

mais, isso estava sendo feito em um programa de televisão, no centro da cultura de massas, para um largo público, acionando com isso os debates principais do tropicalismo. A relação entre Fernando Pessoa e a língua portuguesa é outro ponto importante da explanação. Em “Diferentemente dos americanos do norte”, Caetano já ressaltava a importância da “língua em que se escreveu o épico inaugural da dominação europeia sobre o globo, o grande épico da expansão ocidental”243. A referência ao texto de Camões e ao grandioso destino português na conquista do mar é um convite à reflexão sobre o papel marginal que a língua portuguesa ocupa especialmente a partir da segunda metade do século XX. A utopia de fundar na comunidade luso-brasileira as origens de uma nova civilização, portanto, associa-se também a um redimensionamento da língua portuguesa. Nisso reside uma das grandes potencialidades da canção popular do Brasil, que dá visibilidade internacional ao português, o que está subjacente às referências de Caetano na canção “Língua” (retomando o verso de Pessoa “Minha pátria é minha língua” e bradando “Sejamos imperialistas!”). Essa valorização é também ponto fundamental do pensamento de Agostinho da Silva: É esta a real tarefa a que o mundo chama Portugal e o Brasil. Aprender o Português como língua futura, não de passado; não de relatos, mas de projectos; não de saudades, mas de esperanças. É sob este ponto de vista universal que têm de ser apreciados e resolvidos os problemas com que se defrontam os povos de língua portuguesa – e, na sua esfera individual, mais poderosa do que nenhuma, cada um dos homens que a falam, os quais, quase sempre, não a lêem nem a escrevem. (SILVA, 2009, p. 119)

Em Verdade tropical, Caetano afirma ser o livro Mensagem a demonstração do “mais fundo conhecimento do ser da língua portuguesa”, “como se aqueles poemas fossem fundadores da língua ou sua justificativa final”244. A citação é transcrita literalmente do texto “Diferentemente dos americanos do norte”, no qual o autor usa, inclusive, o mesmo poema, para ilustrá-la: Todo começo é involuntário. Deus é o agente. O herói a si assiste, vário E inconsciente.

À espada em tuas mãos achada Teu olhar desce. “Que farei eu com esta espada?” Ergueste-a, e fez-se.245

243 VELOSO, 2005, p. 63. 244 Ibidem, p. 55-6. 245 PESSOA, op. cit., p. 23. 293

O texto não apenas serve de exemplo à força da língua portuguesa expressa nos poemas de Mensagem, mas também retoma a ideia de predestinação a um futuro heróico, que tem Deus por agente. Aí reverbera a exclamação de que “Deus está solto”, também associada diretamente ao conteúdo do poema recitado durante a apresentação de “É proibido proibir”. Além disso, a frase introduz a entrada do esdrúxulo americano, procedendo à sobreposição entre os eventos contraculturais (de Paris e do hippismo) e o sebastianismo de Pessoa. É como se “as pessoas da sala de jantar ocupadas em nascer e morrer” correspondessem “à besta sadia/ cadáver adiado que procria” de Fernando Pessoa; os sonhos plantados no jardim do solar se encontrassem com o sonho de regresso de D. Sebastião; a loucura do desbunde contracultural se juntasse à alta ambição de erguer uma nova civilização. Em ambos os casos, são os rumos do mundo Ocidental que são postos em questão. Há aqui o encontro chave das dimensões realistas, míticas e místicas de Verdade tropical, sempre tensionadas no livro. Em primeiro lugar, devemos lembrar que Caetano Veloso afirma o pensamento de Agostinho da Silva como um sebastianismo nutrido de lucidez e realismo e classifica seu propagador Roberto Pinho no liame entre o realista e o profético. Tanto no livro como em “Diferentemente dos americanos do norte”, Caetano reconhece a influência sebastianista, mas afirma sua não adesão a sua dimensão mística. No registro da conferência, afirma: Mas eu não tinha embarcado na viagem desses sebastianistas, nem como estudioso nem como, digamos assim, militante. Apenas me pareceram interessante que houvesse gente falando no Reino do Espírito Santo e numa futura civilização do Atlântico Sul numa época em que todo mundo falava de mais-valia e nas teses científicas de transformar o mundo através da classe operária. (VELOSO, 2005, p. 55)

Assim, a forma alternativa de pensar as soluções para o Brasil (e para a América Latina) que estavam além das soluções racionalistas propostas pelo marxismo, oferecia-se em si como algo interessante: não só Caetano já havia refutado a idealização de povo e a visão nacional-popular que vinha em seu bojo (o que formaliza especialmente após a hecatombe de Terra em transe), como rejeitava o próprio caráter autoritário daquela esquerda que a propagava, a partir de um conjunto teórico que vinha originalmente da Alemanha, no coração da filosofia europeia, que se espalhou e se impôs ao mundo ocidental.

294

Aliás, cabe aqui o término do relato sobre o episódio do Festival de 1968. Com a desclassificação de Gil do concurso (mas não de “É proibido proibir”), Caetano resolveu retirar sua canção depois de uma apresentação ainda mais violenta. Sob as vaias furiosas da plateia, o artista improvisou um discurso numa fala exaltada, que classifica como “descontroladamente insegura e confiantemente profética”, e que foi proferido exatamente no lugar do poema messiânico de Mensagem.246 Com isso, Caetano Veloso chega ao ponto máximo de sua ruptura com a juventude que o vaiava. Ali se formaliza a contestação do autoritarismo presente na esquerda (apontado por Rogério Duarte, sugerido por Glauber Rocha e afirmado por Zé Celso) e da tentativa de “policiar” a música brasileira, que deu matéria ao tropicalismo. No discurso, há ainda a afirmação do protagonismo de Caetano e Gil, e da liberdade com que, ao mesmo tempo, procedem à adesão e à crítica aos veículos de comunicação de massa e de seus programas televisivos (no caso específico, os festivais). Por fim, defende outra forma de relação entre o estético e o político, mais que afirmada em todo o entorno da apresentação, da contracultura ao sebastianismo. É preciso observar, por fim, que o sebastianismo português, além de vir de um país, naquele momento, periférico da Europa, atravessa o imaginário luso-português também em relação às esferas culturais, pertencendo não só ao campo erudito de Vieira e Pessoa, mas também à tradição do Espírito Santo, de forte expressão popular. Agostinho da Silva representa, portanto, também a ponte entre essas expressões sebastianistas e o desejo racional de viabilizar uma mudança drástica nos rumos da civilização, a partir de Portugal e também do Brasil.

O último episódio de Verdade tropical que se relaciona diretamente a Agostinho da Silva e Roberto Pinho diz respeito à visita ao alquimista de Sisimbra em 1969. Caetano apresentou ao português a letra de “Tropicália”, recebendo em resposta uma interpretação insólita da canção:

246 “Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder? [...] Vocês não estão entendendo nada, nada, nada, absolutamente nada. [...] Vocês estão por fora! Vocês não dão pra entender. Mas que juventude é essa? Que juventude é essa? Vocês jamais conterão ninguém. Vocês são iguais sabem a quem? São iguais sabem a quem? Tem som no microfone? Vocês são iguais sabem a quem? Àqueles que foram na Roda Viva e espancaram os atores! Vocês não diferem em nada deles, vocês não diferem em nada. [...] O problema é o seguinte: estão querendo policiar a música brasileira. [...] Mas eu e Gil já abrimos o caminho. O que é que vocês querem? Eu vim aqui para acabar com isso! [...] Nós, eu e ele, tivemos coragem de entrar em todas as estruturas e sair de todas. E vocês? Se vocês forem... se vocês, em política, forem como são em estética, estamos feitos!” (Transcrição nossa do registro oral do discurso de Caetano no Festival). Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=Od_4eaH3J7A. Último acesso em fevereiro/2013. 295

Tudo na letra era tomado à letra e valorado positivamente. “Eu organizo o movimento”, por exemplo, significava que, não necessariamente eu, mas alguma força que podia dizer “eu” através de mim, organizava um importante movimento; e “inauguro o monumento no planalto central do país” era clara e meramente uma referência a Brasília como realização da profecia de são João Bosco247. (VELOSO, 2008, p. 331)

A descrição, que aparece de modo semelhante em “Diferentemente dos americanos do norte”, serve fundamentalmente para repensar a canção (e o próprio tropicalismo) para além de seu caráter paródico, antiufanista e pessimista, o que ganha no episódio feições de revelação. Sobre isso, Caetano conta que o alquimista sorriu ao ouvir as objeções àquela análise tão positiva, não parecendo imaginar “outra razão possível” para aquela composição que não fosse “a certeza feliz de um destino grandioso para o Brasil”, e concluiu com a insinuação de que as mães pouco sabem sobre seus filhos. Tanto no gracejo do alquimista quanto na análise da letra há um dado importante: a afirmação de que havia naquela composição algo que transcendia seu compositor – “não necessariamente eu, mas alguma força que pudesse dizer ‘eu’ através de mim”. Essa leitura aproxima-se não só do misticismo que cerca a história do tropicalismo, especialmente do “transe”, mas da própria alusão a um método mediúnico, isto é, à existência de uma expressão que se revela por meio de um sujeito sem que este tenha domínio completo sobre ela. Caetano, também nesse episódio, logo coloca a leitura mística em perspectiva, indicando interessar-se, sobretudo, pela revelação de uma latência otimista (e utópica) do movimento em relação ao país. É preciso lembrar, nesse sentido, que o narrador de Verdade tropical, na “Intro”, coloca-se na posição de “médium do espírito da música popular brasileira” e “do próprio Brasil”. O autor do livro, tanto quanto o da canção, apresenta-se, portanto, como um eu por meio do qual se revela uma força transcendente, que havia “organizado o movimento”, tal como acontece quando Caetano se põe a contá-lo e interpretá-lo. Desse modo, o episódio com a canção ilustra também o registro infinitivamente pessoal que estamos observando neste estudo.

247 D. Bosco foi um sacerdote do século XIX que profetizou que, entre os paralelos 15 e 20 do hemisfério sul (exatamente onde fica Brasília) seria encontrada uma terra de inconcebíveis riquezas materiais e espirituais. 296

6. O grande pai – o caso Oswald de Andrade

Na linha cronológica, conforme comentamos, o capítulo “Antropofagia” serve para localizar temporalmente o momento em que Caetano Veloso começou a se interessar pela obra de Oswald de Andrade, a partir da peça O rei da vela, assistida ainda em 1967, depois do Festival da Record e depois da composição de “Tropicália”. Segundo o relato, os concretistas, antes de Zé Celso, já vinham tentando o resgate do poeta modernista, o que exemplifica por meio de uma antologia de Haroldo de Campos, introduzida por seu longo ensaio “Um poeta da radicalidade” e por um texto de Décio Pignatari, chamado “Marco Zero de Andrade”, ambos dos anos 1960. Augusto de Campos, frente ao entusiasmo de Caetano com a peça de Oswald, teria se encarregado, portanto, de lhe dar acesso a esses textos e a estimulá-lo a conhecer a obra literária oswaldiana (poesia, manifestos e prosa de ficção). Os textos de Décio e Haroldo encontram solo comum ao afirmarem a radicalidade da linguagem de Oswald de Andrade: de acordo com o primeiro, “alguns têm a volúpia e a coragem do zero, do de onde se começa”, “são os criadores originais, radicais, de uma linguagem nova, irreversível aos termos de um regime anterior, ininteligível mesmo em meio a uma linguagem pré-existente já estratificada em código” (“Marco zero de Andrade”); no segundo, afirma-se que “a radicalidade da poesia oswaldiana se afere” “no campo específico da linguagem, na medida em que esta poesia afeta, na raiz, aquela consciência prática, real, que é a linguagem.”248 (“Um poeta da radicalidade”). Assim, os poetas concretistas sublinham, antes de qualquer discussão de conteúdo, o caráter formal revolucionário da literatura oswaldiana. Sob a égide de uma visão vanguardista, a atuação na linguagem (no sistema de representação) apresenta consequências contundentes no mundo externo, especialmente na consciência do leitor, de forma mais profunda do que seria capaz de fazer uma produção literária de conteúdo progressista, mas de forma conservadora. Os dois ensaios partem dessa mesma premissa e é a partir dela que propõe suas “linhas evolutivas”: Observe-se, apenas, que a linha que se pode traçar entre Macunaíma e Grande Sertão: Veredas, por exemplo, é uma linha evolutiva que penetra sem maiores tropeços na "literatura", isto é, no sistema estante de incorporação e tradição literárias. Mas a linha que vai da poesia de Oswald de Andrade, de seus manifestos e das Memórias Sentimentais de João Miramar à poesia concreta, é uma linha revolucionária, anti-

248 CAMPOS apud ANDRADE: 1971, p. 10. 297

"literatura". A primeira está do lado da língua; a segunda, da linguagem. (PIGNATARI, 1964, p. 2-3)249

A revolução – e revolução copernicana – foi a ‘poesia pau brasil’, donde saiu toda uma linha substantiva, de poesia contida, reduzida ao essencial do processo de signos, que passa por Drummond na década de 30, enforma a engenharia poética de João Cabral de Melo Neto e se projeta na atual poesia concreta. (CAMPOS apud ANDRADE, 1971, p. 15)

Nas duas citações, é possível observar um traçado alternativo para a história da literatura brasileira, especialmente a partir de uma perspectiva formal, que permite iluminar outras ramificações e, com isso, outras narrativas. Veja-se que Décio Pignatari parte exatamente da dualidade entre Mário de Andrade e Oswald de Andrade, mostrando como o primeiro ancora-se na própria tradição literária na qual pretende intervir (procedimento este que permite prolongar a linha deste até Guimarães Rosa); enquanto o segundo estaria produzindo uma nova forma de linguagem (os poetas concretos estariam filiados a semelhante gesto). Nas acepções que podemos depreender do fragmento, a língua diz respeito estritamente ao conjunto de elementos (sons, símbolos gráficos e gestos) que é compartilhado por um grupo com intenção comunicativa; enquanto a linguagem, de modo mais amplo, diz respeito à capacidade de produção, desenvolvimento e compreensão das mais diversas formas de expressão e representação. Assim, a linha oswaldiana (e, por conseguinte, concretista), estaria atuando nesse amplo conjunto, o que permitiria uma abertura muito mais radical do processo de percepção, mas também de criação de novos elementos comunicativos e simbólicos. Haroldo de Campos, por sua vez, fala sobre uma “revolução copernicana”, que, como se sabe, refere-se à substituição do geocentrismo pelo heliocentrismo; mudando, assim, o eixo central da Terra para o sol, Copérnico foi capaz de expandir a perspectiva acerca do movimento dos astros e da forma segundo a qual se relacionam. Portanto, a metáfora utilizada no ensaio não só se refere à mudança radical do ponto de vista, mas também a uma mudança de referencial acerca da literatura, que amplia o campo e estabelece novas relações entre seus elementos. Ao observar uma “linhagem substantiva” caracterizada pela síntese (“a redução ao essencial dos signos”), Haroldo pode reivindicar para o mesmo conjunto que os concretistas poetas como Carlos Drummond de Andrade e

249 http://seer.fclar.unesp.br/alfa/article/view/3230/2957. 298

João Cabral de Melo Neto, encontrando como origem para todos estes a revolução empreendida por Oswald de Andrade. Ambos os textos discutem, por fim, também as relações do poeta paulista com a pop arte (e desta com as vanguardas europeias), perfazendo um conjunto de elementos que justificam a aproximação posterior entre tropicalistas e concretistas na origem comum oswaldiana. Comparemos os fragmentos: A poesia de Oswald de Andrade é a poesia da posse contra a propriedade. Poesia por contacto direto. [...] Sua poesia é um realismo auto-expressivo. Alguns poemas são simples transcrições de anúncios da época. Destacados do contexto os textos adquirem novo conteúdo: de lugares- comuns se transformam em lugares-incomuns. Exatamente como acontece com a atual pop art norte-americana (também batizada de "neodadaista"...) — o primeiro movimento de vanguarda autêntico dos Estados Unidos para o mundo: também uma rebelião contra a cultura européia. Uma arte antropófaga. (PIGNATARI, 1964, p. 12-13)

Esta relação vanguarda/ ‘Kitsch’ é bastante complexa e não apenas no sentido indicado por Eco, de que a arte de consumo, desfrutando continuamente das descobertas da vanguarda, a obriga a formular sempre novas propostas eversivas, mas ainda naquele de que, a um certo momento do processo (como em Dada, como na atual ‘pop arte’), o circuito se fecha, se torna reversível, a serpente morde a própria cauda, e a vanguarda passa a encontrar pretextos criativos na própria cultura de massa, ou nos detritos e emblemas dessa cultura. A nova arte é uma arte no horizonte do precário, que se despe dos nobres e exclusivos implementos do eterno, para incorporar a categoria do contingente. (CAMPOS apud ANDRADE, 1971, p. 26)

Há de se observar, em primeiro lugar, a profunda familiaridade do tropicalismo com o procedimento descrito por Décio Pignatari: a transformação de lugares-comuns em lugares incomuns, a partir das incorporações e das recontextualizações de elementos cotidianos. Já havíamos discutido que o tropicalismo musical (e também a Tropicália de Hélio Oiticica) encontra algum parentesco com o dadá, especialmente no que concerne à pluralidade de manifestações e à quebra de paradigmas mentais, culturais, raciais, sociais (“a não explicação do inexplicável”, “a não estetização do inconsciente”). Pignatari ajuda a unir as pontas desses elementos, elucidando a relação entre a pop arte americana e o dadá, e ainda, indicando a ruptura que a expressão vanguardista estadunidense representa em relação à cultura europeia. No último laço, o autor indica aí uma atitude antropofágica (a América devorando a Europa), que encontra Oswald de Andrade como ponto de interseção.

299

Haroldo de Campos estabelece a mesma vinculação, mas em outro referencial. Em sua análise estão em jogo as relações entre arte de consumo e arte de vanguarda, indicando uma reversibilidade e uma circularidade (metaforizada na serpente que morde a cauda) entre essas duas esferas que passam a se aproximar e a se retroalimentar uma da outra. Oswald de Andrade, em seus manifestos, já havia percebido as implicações dessa relação e as posicionava no movimento destruição-construção descrito no mesmo ensaio: de demolição (das formas nobres, elitistas, eternas, auratizadas) e construção (a partir de formas contingentes - dos jornais, do cotidiano, dos anúncios, da “contribuição milionária de todos os erros”). O tropicalismo musical atravessa, portanto, os cruzamentos evidenciados pelos textos de Décio Pignatari e Haroldo de Campos. Porém, conforme já indicamos, é Augusto de Campos que fará as aproximações entre os tropicalistas e Oswald de Andrade, antes mesmo que Caetano Veloso tivesse acesso a O rei da vela ou aos ensaios dos poetas concretistas ou à própria obra do modernista paulista. Ou seja, é Augusto que vai prolongar as “linhas evolutivas” que aparecem nesses textos até a produção musical pop de Caetano, Gil e outros tropicalistas. Vale lembrar que, em “Boa palavra sobre a música popular”, Augusto estabelece, pela primeira vez, a comparação do embate entre o cenário da canção popular daquele momento com a oposição entre a perspectiva antropofágica e o verde-amarelismo dos anos 1920. Nesse sentido, o autor diz que os adversários da bossa nova, com o argumento de que esse estilo não era popular, propunham um retorno “ao sambão quadrado e ao hino discursivo folclórico-sinfônico”: Preparava-se o terreno para voltar àquela falsa concepção “verde- amarela” que Oswald de Andrade estigmatizou em literatura como “triste xenofobia que acabou numa macumba para turistas”, àquela ideologia artística que se dispôs a promover e exportar, não produtos acabados, mas matéria prima do primitivismo nacionalista, sob o fundamento derrotista de que “o povo” é incapaz de compreender e aceitar o que não seja quadrado e estereotipado. (CAMPOS, 2008, p. 61).

Assim, ainda em 1966, Augusto de Campos já fazia o gesto de aproximar o tropicalismo musical de uma postura próxima a Oswald de Andrade, não só a partir da ideia “pau-brasil” (e da busca de uma arte de exportação e não de importação), mas também da antropofagia (ao se recusar à xenofobia cultural, incorporando-a segundo necessidades intrínsecas ao desenvolvimento da própria cultura nacional).

300

Já em 1967, o texto “A explosão de Alegria, alegria” voltou ao tema, afirmando que as canções de Caetano e Gil apresentadas no Festival da Record se propuseram, oswaldianamente, a deglutir o que havia de novo nos movimentos de massa e juventude (Beatles e a música jovem brasileira) e incorporar as conquistas da moderna música popular (a bossa nova) ao seu próprio campo de pesquisa.250 Além disso, a análise de “Alegria, alegria”, feita na sequência, sublinha a presença de uma “realidade urbana, múltipla e fragmentária”, captada “através de uma linguagem nova, também fragmentária, onde predominam substantivos estilhaços da “implosão informativa”251. Ora, é notório aí o eco dos textos de Haroldo e Décio, tanto no que se refere a uma “linguagem nova” de linhagem “substantiva”, como também a incorporação da “explosão informativa”, isto é, dos jornais, do cotidiano, da propaganda, do tempo presente. Em “Viva a Bahia” (1968), Augusto faz a já referida identificação da canção “Tropicália” como a primeira música “pau-brasil”, “homenagem inconsciente a Oswald de Andrade”, afirmando que nela há uma “presentificação da realidade brasileira”. Assim define a canção: É um monumento pop (“de papel crepom e prata”) ao pensamento bruto brasileiro. O Pau-Brasil, como o sonhou Oswald: “Bárbaros, crédulos, pitorescos e meigos. Leitores de jornais. Pau-Brasil. A floresta e a escola. O Museu Nacional. A cozinha, o minério e a dança. Vegetação. Pau- Brasil”.

Doces e bárbaros, comprometidos com o presente e com uma mirada ampla sobre o Brasil, os tropicalistas estavam afinados com as premissas do Manifesto Pau-Brasil de 1924 (citado no fragmento) e do Manifesto Antropófago de 1928, sem inicialmente saberem disso. As ideias e sugestões de Augusto de Campos (nos artigos e depois no contato direto) tornam-se fundamentais não só para a inclusão do tropicalismo musical na sequência da linhagem oswaldiana (que passa pela poesia concreta), mas para a própria elaboração e organização de Verdade tropical e para o pensamento que revela sobre o país. Basta, por ora, dizer que é também Augusto que diz, no artigo “Informação e redundância na música popular” (1968) que “Oswald de Andrade, o grande pai ‘antropófagico’, o profeta da nossa poesia de vanguarda, é invocado também pelos jovens compositores [Caetano e Gil]. Essa paternidade é reivindicada por Caetano Veloso justamente no capítulo “Antropofagia”.

250 CAMPOS, 2008, p. 152. 251 Ibidem, p. 153. 301

6.1. Marco zero – a filiação dos opostos

Em “Antropofagia”, Caetano Veloso comenta o livro de Carlos Nelson Coutinho O estruturalismo e a miséria da razão (1972), que propõe que o “irracionalismo” e o “super- racionalismo” eram representativos de uma mesma fase de decadência da burguesia. Aproveitando o esquematismo dos termos, Caetano faz o seguinte enquadramento: De fato, se eu fora rejeitado pelos sociólogos nacionalistas de esquerda e pelos burgueses moralistas de direita (ou seja, pelo caminho mediano da razão), tivera o apoio de – atraíra ou fora atraído por – “irracionalistas” (como Zé Agrippino, Zé Celso, Jorge Mautner) e “super-racionalistas” (como os poetas concretos e os músicos seguidores dos dodecafônicos). E conclui: Uma figura, contudo – eu estava descobrindo em São Paulo entre 67 e 68 –, era visível por trás desses dois grupos que nem sempre se aceitaram mutuamente: Oswald de Andrade. (VELOSO, 2008, p. 240)

Nesse momento fundamental, Caetano Veloso elege como ponta de fuga de Verdade tropical a figura do poeta antropófago. Essa formulação fora antecipada no capítulo “Baihunos”, quando o autor falava sobre os comentários de Rogério Duarte sobre o livro de José Agrippino de Paula252, afirmando que Panamérica não pertencia a nenhuma linhagem da literatura brasileira, à exceção “talvez” dos modernistas Oswald de Andrade e Mário de Andrade, ao que Agrippino teria respondido: “Mário de Andrade, não, esse não tem nada. Oswald de Andrade, sim, é o único que tem alguma coisa”.253 Os outros dois irracionalistas citados também se vinculam ao autor: Zé Celso o havia resgatado em O rei da vela e sempre foi um defensor incansável do legado do autor e da ideia de antropofagia; Jorge Mautner, por sua vez, relacionava a vocação antropofágica do Brasil com sua diversidade cultural e com suaa inclinação amalgámica, isto é, apta a promover fusões culturais (traço este também identificado em Antonio Cicero). Os poetas concretistas, de outro lado, são uma referência evidente quanto à tentativa de resgatar Oswald de Andrade e de torná-lo figura seminal e central do desenvolvimento da literatura brasileira. Aqui, simultaneamente, rejeitam o nacionalismo xenófobo e o conservadorismo em relação ao experimental. Defendem, portanto, uma linhagem vanguardista, de radicalização da linguagem e de temperamento antropofágico.

252 “Eu que, a essa altura, conhecia pouco de Mário e nada de Oswald, não poderia imaginar que este último seria o ponto de união entre todos os tropicalistas e seus mais antagônicos admiradores”. (VELOSO, 2008, p. 150) 253 Ibidem. 302

No mesmo capítulo, Caetano busca atestar a aproximação e distância entre Glauber Rocha e Oswald de Andrade, que, apesar de ter escolhido Villa-Lobos e não Oswald como seu “patrono”, revelava ter pontos de identificação com o poeta modernista. O autor destaca, nesse sentido, a “agressividade antiprovinciana”, o vanguardismo e o experimentalismo, a vocação “dessacralizadora” e “demolidora”. Enfim, mesmo aquele mais distante da filiação direta com Oswald pode ser aproximado do conjunto de valores por este defendidos. Seria necessário, ainda, trazer para a lista Hélio Oiticica, que, no seu texto sobre a nova objetividade brasileira, já propunha que “para a criação de uma verdadeira cultura brasileira, característica e forte, expressiva ao menos, essa herança maldita europeia e americana terá de ser absorvida, antropofagicamente, pela negra e índia da nossa terra”254. Desse modo, o artista encontra, na estratégia de Oswald de Andrade, a solução para relacionar-se com a influência estrangeira de modo insubmisso, incorporando-a através dos interesses intrínsecos do desenvolvimento de uma expressão original e nacional. Feito esse vínculo, Caetano Veloso aproveita a crítica à antropofagia proposta pelo psicanalista italiano Contardo Calligaris para reafirmar a pertinência do conceito enquanto solução para a afirmação da cultura brasileira. A tese geral de Hello Brasil – notas de um psicanalista europeu viajando ao Brasil (1991) parte de seu estranhamento em ouvir recorrentemente no Brasil a frase “Este país não presta”. Tomando-a como um sintoma, o psicanalista procura indicar que a sentença poderia advir da frustração tanto do colonizador (que deixou sua terra natal para exercer a potência do pai sem interdito no Novo Mundo) quanto do colonizado (que esperaria um interdito paterno que o tornasse sujeito, conferindo-lhe uma cidadania, e dando ao país uma identidade)255. Além disso, espanta-se o autor com o fato de o nome do país referir-se a um produto de exploração, esgotado. Assim, Calligaris identifica a ideia de antropofagia cultural como um “sintoma da nossa doença congênita de não filiação, de ausência de um ‘nome de pai’, de falta de um “significante nacional brasileiro”256. E conclui: A desconfiança no significante nacional como referente se repercute, é normal, na desconfiança em qualquer significante que poderia vir a ser

254 OOITICICA, 2011, p. 109. 255 “O colonizador é triste também, pois, de qualquer forma, mesmo que o corpo entre as suas mãos não seja proibido e goze, ele sempre saberá que não é bem este o corpo que ele queria. O corpo que ele queria fazer gozar era o corpo que deixou, o corpo materno interditado [o corpo da mãe pátria]” (CALLIGARIS, 1996, p. 18-19) e “Pois o seu ‘não presta’ [do colono], sanciona o fracasso da umtegração: o país não soube ser pai, o um nacional não conseguiu assujeitar o colono”. (Ibidem, p. 21) 256 VELOSO, 2008, p. 243. 303

paterno: a escolha é menos se filiar do que tentar escolher o próprio coquetel de referências. Mas é interessante que a postura antropofágica possa ser e tenha sido positivamente evocada como uma solução para a identidade brasileira. A solução assim proposta consiste em deslocar a questão mesma de um significante nacional: em suma, disso não precisaríamos, porque o que faz UM entre nós é que somos devoradores de UNS. (CALIGARIS, 1996, p. 34-35)

Caetano Veloso passa a ponderar, então, a leitura equivocada que Contardo Calligaris faz do procedimento antropofágico, indicando a confusão entre “misturadores de informações mal assimiladas” e “o gesto audaz de um grande poeta”. Além disso, Caetano sublinha que a própria antropofagia que Calligaris conheceu triunfante, havia sido rejeitada no Brasil dos anos 1920 aos 1950, ficando “reprimida” todo esse tempo (o termo é evidente provocação ao psicanalista). O autor de Verdade tropical conclui: Oswald de Andrade, sendo um grande escritor construtivista, foi também um profeta da nova esquerda e da arte pop: ele não poderia deixar de interessar aos criadores que eram jovens nos anos 1960. Esse “antropófago indigesto”, que a cultura brasileira rejeitou por décadas, e que criou a utopia de superação do messianismo patriarcal por um matriarcado primal e moderno, tornou-se para nós o grande pai. (VELOSO, 2008, P. 252)

O fragmento evidencia os vínculos com os textos de Haroldo de Campos e Décio Pignatari, além de indicar a filiação dos tropicalistas (e seus adeptos antagônicos) a um mesmo pai: o poeta que, contraditoriamente, projetara sua utopia em um matriarcado. Além disso, Oswald de Andrade deu à sua poesia o nome de “pau-brasil” não para simbolizar o esgotamento dos recursos, mas para servir de símbolo de produto de interesse e exportação - “a formação étnica rica” acompanhando a “riqueza vegetal”, nas palavras do poeta, ou, conforme Antonio Cicero, a diversidade tropical da natureza exuberante refletindo-se na diversidade humana: “bárbaro e nosso”. Sendo a pluralidade a única definição possível, recusa-se a limitação em favor da mobilidade, da transformação, da fusão constante, da devoração, da antropofagia. A definição de Caetano é crucial: Tal como eu a vejo, ela [a visão oswaldiana] é antes uma decisão de rigor do que uma panaceia para resolver o problema da identidade do Brasil. A poesia límpida e cortante de Oswald é, ela mesma, o oposto de um complacente “escolher o próprio coquetel de referências”. A antropofagia vista em seus termos precisos, é um modo de radicalizar a exigência de identidade (e de excelência na fatura), não um drible na questão. E conclui:

304

Nós tínhamos certeza de que João Gilberto (que, ao contrário das “fusões” tipo maionese, para usar a palavra escolhida por Calligaris, criou um estilo novo, definido, fresco, inaugural, por seus próprios méritos) era um exemplo claro de atitude antropofágica. E queríamos agir à altura. (VELOSO, 2008, p. 244)

Lendo na chave diametralmente oposta, Caetano Veloso vê rigor e identidade onde Calligaris lê superficialidade e indefinição. Não se trata, portanto, de definir pela indefinição, mas de ver na capacidade de incorporação e transformação o traço identitário. A prova cabal apresentada por Caetano é a própria bossa nova de João Gilberto, que lançava mão da informação estrangeira do jazz transformando-a em uma coisa outra, “nova”, “fresca”, “inaugural” (isto é, que transcende a imitação ou a assimilação precária) e, sobretudo, “definida”. O milagre de sua arte, conforme já discutimos, é cristalizar a experiência brasileira a partir, justamente, de sua extrema mobilidade. O encontro de Oswald de Andrade com João Gilberto é o ponto síntese de Verdade tropical e de todo o pensamento sobre o Brasil desenvolvido por Caetano Veloso.

6.2. A vereda João Gilberto

João Gilberto atravessa todas as instâncias de Verdade tropical, da introdução à conclusão, do primeiro ao último capítulo, do narrativo ao ensaístico, do racional ao irracional, do mítico ao real. O personagem é também o ponto de cruzamento dos três gêneros que se hibridizam no livro: na autobiografia, aparece como momento formativo mais importante da juventude de Caetano Veloso; no conjunto da narrativa sobre o tropicalismo musical, torna-se a base do projeto de intervenção na história da canção brasileira (“a retomada da linha evolutiva”); no ensaio sobre o Brasil, torna-se o realizador supremo do gesto da antropofagia, garantindo a identidade nacional (a partir de sua vocação para a mobilidade, o sincretismo a mistura), levando o “biscoito fino” às massas, valorizando a língua portuguesa e estabelecendo outra relação do país com o cenário internacional. Por tudo isso, Caetano Veloso afirma em sua conclusão: Fique apenas claro aqui que a vereda que leva à verdade tropical passa por minha audição de João Gilberto como redentor da língua portuguesa, como violador da imobilidade social brasileira – da sua desumana e deselegante estratificação –, como desenhador das formas refinadas e escarnecedor das elitizações tolas que apequenam essas formas. Por meu intermédio, o tropicalismo tomou a realidade da música popular no Brasil

305

pela sua vocação mais ambiciosa materializada no som de João. (VELOSO, 2008, p. 491)

João Gilberto é, portanto, a trilha aberta, o caminho estético possível para que o Brasil descubra e afirme sua identidade. O artista está relacionado também com a revelação da canção popular como uma via privilegiada de acesso à cultura brasileira e fonte de reflexão sobre o país. A partir da bossa nova, cria-se uma intensa circularidade de informações, sendo permanentemente incorporadas, transformadas, recriadas; rompendo estratificações e criando porosidades, aberturas, diálogos. Vale lembrar, nesse sentido, que a bossa nova é prenunciada pelo encontro de Tom Jobim e Vinicius de Moraes na elaboração da peça Orfeu da conceição (encenada em 1956, apenas com atores negros), que consiste em uma incorporação do mito grego transplantado para o universo de uma favela no Rio de Janeiro, estabelecendo pontes de ordem cultural, social, racial, estética e criativa. É também o momento crucial de aproximação de Vinicius de Moraes da canção, atravessando a segmentação entre o poeta erudito e o compositor popular. É justamente da dupla Tom e Vinicius que surge “Chega de saudade”, marco definitivo do surgimento da bossa nova e de todas as porosidades que esse estilo estabelece. Cabe observar que o disco Abraçaço (2012) começa justamente pela canção “A bossa nova é foda”, que afirma que “o bruxo de Juazeiro” transformou o mito das raças tristes em Minotauros, Junior Cigano, José Aldo, Lyoto Machida, Victor Belfort, Anderson Silva”. Isto é, evocando os lutadores de destaque em artes marciais de natureza múltipla (e que assimilam as informações dos grandes gêneros de combate esportivo internacionais a partir de uma tradição de luta desenvolvida no Brasil), Caetano pretende ilustrar não só o sentido de violência representado pelo gesto da bossa nova (uma violência estética, contra o gosto normatizado), mas também o processo de transformação da depreciativa visão mítica das raças tristes em uma representação de força e vitalidade, e que ganhe o devido reconhecimento internacional. Não se pode deixar de observar a ordem da enumeração (começando por uma utilização metonímica do apelido de um lutador que coincide com uma figura mitológica), passeando por nomes que remontam a origens étnicas e linguísticas diversas (e se lembrarmos da aparência física dos atletas, o traço de diversidade se acentua) e terminando com o ídolo maior do esporte, considerado por muitos o maior lutador de MMA da história. E, tudo isso, no coração do espetáculo internacional de massas. Cabe lembrar

306

ainda que muitos comparam a violência dessa categoria aos gladiadores da Roma antiga. Caetano, quase 50 anos depois, volta a trocar o sinal de panis et circenses para revelar a potência saneadora da cultura de massas.

307

CAPÍTULO IV – O ESTRANGEIRO

1. O processo

A parte 3 de Verdade tropical apresenta capítulo único, que se chama “Narciso em férias”. O título, embora seja uma alusão a This side of paradise de F. Scott Fitzgerald257, retoma mais diretamente o happening protagonizado por Caetano Veloso durante a manifestação estudantil em 1968, contado na última seção da parte 2. Vale lembrar que, durante esse relato, o narrador se identifica como “o tropicalista”, afirmando sentir-se acima de seus colegas de geração, por estar “livre de amarras políticas tradicionais”, podendo, por isso, “reagir contra a opressão com gestos límpidos e criadores”; e, na ponderação sobre essa fala, lança a pergunta: “Narciso?”. Mais que uma autorreflexão sobre a vaidade, a questão aponta para o componente narcisista da contracultura, posto em evidência no episódio. O tema central do capítulo é o período em que Caetano Veloso esteve preso, entre 27 de dezembro de 1968 e 19 de fevereiro de 1969, portanto, por quase dois meses. A prisão do artista, prenunciada ainda no fim do capítulo “Divino maravilhoso”, interrompe a sequência de eventos relativos ao desenvolvimento do tropicalismo musical, colocando o autor diante de uma experiência extrema no âmbito pessoal, individual, existencial, mas também político. A narrativa começa no apartamento 2002, no nascer do dia, com a chegada de policiais federais que anunciam a Caetano Veloso que ele seria levado, sob justificativa de que as autoridades militares gostariam de lhe fazer “algumas perguntas”. Gilberto Gil é preso no mesmo dia, de modo que ambos passam a trilhar o mesmo roteiro, sempre levados juntos a cada alteração de cenário, embora sempre separados dentro das unidades em que ficaram. A não-divisão desse segmento em subcapítulos (especificados por títulos) contribui para dar unidade, densidade e extensão à experiência da prisão, de modo a torná-lo o capítulo mais longo e mais tenso do relato. No entanto, a existência de subdivisões internas, discretamente marcadas por espaços entre parágrafos, ajuda a ver a sequência de

257 O primeiro romance do escritor americano F. Scott Fitzgerald This side of paradise (1920) acompanha a trajetória do jovem Amory Blaine, e suas transformações individuais no decorrer de suas experiências formativas, sob o pano de fundo da sociedade americana que atravessou o período da I Guerra Mundial. A obra é dividida em dois volumes intercalados por um interlúdio: o primeiro se chama “The romantic egotist” e o segundo, “The education of personage”. O quarto capítulo do primeiro volume chama-se justamente “Narcissus off Duty”. 308

três unidades prisionais por onde Caetano Veloso passou nesse período. De modo esquemático, temos: 1) a chegada dos agentes federais ao apartamento 2002 e o momento da prisão (não decretada explicitamente) de Caetano e Gil; 2) a passagem pela sede da Polícia Federal no centro do Rio de Janeiro e a solitária na Polícia do Exército na Tijuca; 3) a prisão coletiva no quartel da Polícia do Exército em Deodoro; 4) a transferência para o quartel dos paraquedistas do exército (PQD), na Vila Militar. A cada mudança de cenário (a começar pela saída do apartamento rumo a um destino desconhecido), narra-se a expectativa pelo interrogatório prometido, o que, segundo o narrador, acabou se tornando uma obsessão. Assim, toda vez que algo interrompe o cotidiano da prisão, aventa-se a hipótese de que, enfim, aconteceria o interrogatório. Em alguns momentos, Caetano conta ter sido levado à presença de autoridades militares, que mais desenvolviam uma prática teatralizada de coerção do que propriamente faziam perguntas ou justificavam satisfatoriamente o motivo de ele estar preso. Nesse sentido, poderíamos destacar quatro “interrogatórios” que, postos em progressão, são reveladores de questões importantes do capítulo e do livro. O primeiro deles é, na verdade, um não-interrogatório: refere-se à cena do general (ainda na sede da polícia federal) que, por trás de uma enorme mesa de jacarandá, jantava silencioso diante de Caetano e Gil. Esse é o primeiro exemplo de afirmação de poder com forte caráter teatral, sendo emblemática também do ilogismo daquelas situações, aproximando-as ainda mais de atmosfera semelhante à de um pesadelo.258 O segundo interrogatório, na prisão de Deodoro, foi feito por um sargento “atarracado e corpulento”, cujos modos são comparados com os de um diretor escolar259, reforçando que havia ali outra prática teatralizada, vinculada à afirmação da autoridade. No entanto, é importante mencionar que, dentre suas perguntas, uma se referia ao espetáculo Roda viva, dirigido por Zé Celso. O sargento, além de afirmar (orgulhoso) que estava envolvido no espancamento dos atores da peça, questiona o desrespeito com a figura da Virgem Maria, o que considerava uma afronta, embora ele mesmo não fosse religioso.

258 Cenas depois, o narrador afirma: “[...] tudo instaurava uma atmosfera lúgubre e, pela primeira vez, tive a impressão de estar em um pesadelo. Era terrível que fosse noite”. (VELOSO, 2008, p. 347) 259 Mais do que revelar o caráter algo infantil dessas manifestações de poder, é notória a identificação de estruturas coercivas nos ambientes escolares. Em outro momento do capítulo, o autor chega a aproximar a unidade prisional à aparência do ginásio de sua escola em Santo Amaro: “Era um complexo de edificações modernas de um só andar, cujo prédio principal, onde se encontravam as celas, me lembrava o Ginásio Teodoro Sampaio, onde eu estudara em Santo Amaro. (VELOSO, 2008, p. 365) 309

Essa situação apresenta vários desdobramentos: há aqui a denúncia da participação de oficiais do exército em episódios como o espancamento dos atores; a observação sobre a hipocrisia da moral propagada pelos conservadores (presente das instituições militares aos meios de comunicação de massa); e, o mais importante, a sugestão de uma possível causa para a prisão. A violência cênica de Roda viva (mais do que qualquer conteúdo estritamente político) e suas formas de incorporar elementos do cotidiano e da cultura de massas, mas também as transgressões nas formas de representação e a ameaça do corpo posto em cena, enfim, todo esse conjunto aproximava, como já discutimos, as intenções de Zé Celso e dos tropicalistas. Caetano afirma: Aquele sargento estava me dizendo que nossa prisão se devia às mesmas razões (ou desrazões) que o levaram a espancar o elenco de Roda viva – e que ele queria que eu soubesse disso. Depois eu me orgulharia que o tropicalismo tivesse encontrado essas provas de seu poder subversivo. Afinal, a conversa do sargento revelava que – como eu tantas vezes tinha tentado convencer nossos opositores – nós, os tropicalistas, éramos os mais profundos inimigos do regime. (VELOSO, 2008, p. 378)

O terceiro interrogatório foi conduzido pelo major Hilton, no quartel dos paraquedistas, que, após as mesmas afirmações de poder e ameaças, impunha um questionário interminável sobre as informações detalhadas de seus parentes e de seus vínculos afetivos com eles. Na verdade, esse meticuloso inventário estendeu-se por mais algumas sessões, servindo, no conjunto narrativo, como mais uma evidência do caráter algo teatral da afirmação da autoridade, mas também como mais um exemplo do ilogismo do sistema e, por fim, da tortura psicológica que ali se exercia (Caetano, aliás, chegou a cogitar que os parentes mencionados pudessem ser usados em alguma outra forma de coerção ou chantagem). As “conversas” com o major vinculam-se, enfim, à justificativa formal para a prisão dos artistas: o episódio na boate Sucata, com o uso do estandarte de Hélio Oiticica (“Seja marginal, seja herói”). Segundo o relato, o apresentador Randal Juliano (“um demagogo de estilo fascista que corteja a ditadura agredindo os artistas”), havia criado (talvez a partir da confusão com a palavra “bandeira”) a versão fantasiosa de que no espetáculo se desrespeitava a bandeira e o hino nacional. Novamente, a violência simbólica é associada à prisão, especialmente quando se dirige aos signos sagrados – a Virgem Maria, a bandeira, o hino. O autoritarismo e a defesa da moral (sublinhada em seu traço de hipocrisia) aparecem aqui como elementos que, segundo se sugere, pertencem a uma dimensão mais profunda, uma vez que atravessam

310

categorias políticas e dão sustentação ideológica para o governo repressivo. Desse modo, Zé Celso e os tropicalistas estariam agindo exatamente nesse nível de desconstrução, o que faz com que Caetano afirme a superioridade de suas práticas sobre a de seus colegas da esquerda nacional-popular. Seria possível relativizar esse argumento, sinalizando que muitos desses colegas também foram presos (até por períodos maiores e com torturas físicas intensas, conforme o próprio narrador observa depois); entretanto, a fala do major é, indubitavelmente, uma evidência da grande força subversiva de seus gestos e, poderíamos dizer, além de configurar mais um momento de revelação do hipotético “inconsciente nacional”. Por fim, o último interrogatório, na mesma unidade prisional, foi conduzido por um capitão, que começou perguntando se Caetano estava se sentindo injustiçado, ao que, evidentemente, respondeu que sim. O oficial, que iniciou a sessão com a voz calma e doce, afirmava compreender a injustiça com “ar grave” de “tristeza sincera”, mas, por fim, retornou ao olhar frio habitual (o que reforça o caráter teatral também desse evento) para afirmar que entendia muito bem (dessa vez no sentido literal) o que Caetano e Gil estavam fazendo (citando com ênfase Freud e Marcuse, além de Marx e Lênin, para sustentar sua leitura). Assim é o relato: Referiu-se a algumas declarações minhas à imprensa em que a palavra desestruturar aparecia, e, usando-a como palavra-chave, ele denunciava o insidioso poder subversivo do nosso trabalho. Dizia entender claramente que o que Gil e eu fazíamos era muito mais perigoso do que o que faziam os artistas de protesto explícito e engajamento ostensivo. Em suma, ele demonstrava estar muito mais inteirado que o major Hilton, deixando implícito que sabia serem falsas as histórias da bandeira e do hino e, portanto, irrelevante eu ter provado minha inocência nisso. (VELOSO, 2008, p. 393)

Herbert Marcuse havia publicado Eros e civilização em 1955, no qual se propõe a fazer uma leitura filosófica da obra de Freud (mormente de O mal estar na civilização, de 1930), defendendo a possibilidade de se chegar a uma sociedade menos repressiva, especialmente se descartadas as repressões adicionais (a “mais-repressão”) que o capitalismo teria gerado260. Para tanto, sugere a “grande recusa” dos valores dessa

260 Curiosamente, a figura de Narciso (junto com a de Orfeu) aparece nas considerações de Herbert Marcuse em sua busca por uma sociedade menos repressiva. “A experiência órfica e narcisista do mundo nega aquilo que sustenta o mundo do princípio do desempenho. A oposição entre homem e natureza, sujeito e objeto, é superada. O ser é experimentado como gratificação, o que une o homem e a natureza para que a realização plena do homem seja, ao mesmo tempo, sem violência, a plena realização da natureza”. (MARCUSE, 2010, p.151)

311

sociedade e a afirmação do prazer e das liberdades individuais como instrumento político de desestabilização do sistema. Essas formulações foram associadas posteriormente à juventude contracultural do fim dos anos 1960, ao maio de 1968 de Paris e às novas esquerdas, de modo geral. O capitão demonstrava, assim, ser conhecedor das novas formas de compreensão do político (para além do arcabouço teórico do marxismo-leninismo), nas quais o prazer e a liberdade (e a afirmação da individualidade) passavam a ser vistos como elementos capazes de “desestruturar” o sistema, conforme expressão utilizada pelo oficial. Tanto o tropicalismo musical quanto o teatro de Zé Celso podiam ser aproximados dessa perspectiva. Veja-se que Caetano usa novamente a fala de seu interrogador para reafirmar a superioridade dessas formas de “subversão” em relação às da esquerda tradicional. Assim, conforme a prisão vai ganhando sentido, o caráter político do tropicalismo musical vai sendo confirmado de modo contundente, a partir da fala de seus próprios inimigos. Além disso, o narrador crê que o capitão, que lhe oferece a justificativa mais racional e mais aprofundada teoricamente, é também o que está “mais inteirado” do motivo da prisão que, em verdade, já aparecia nas premissas não refletidas do sargento ignorante. Importa menos saber aqui qual foi a real razão da prisão (se a queixa superficial de Randal Juliano contra as profanações ao hino e à bandeira ou o reconhecimento dos artistas no conjunto teórico das novas práticas políticas da contracultura internacional): o fundamental é perceber como os vários oficiais demonstravam conhecimentos variados sobre o mesmo caso (acirrando o ilogismo daqueles eventos) e que o reconhecimento de Caetano sobre sua “culpa” não só representava uma ameaça ainda maior para sua esperança de liberdade, como também servia de comprovação, em seu discurso, do poder subversivo do movimento que liderou na companhia de Gil.

2. Os espelhos

O conjunto de situações absurdas relatadas em “Narciso em férias” permite sugerir a presença de alguns elementos kafkianos nessa parte da narrativa de Caetano Veloso. Isso pode ser observado desde a cena de abertura, com a interrupção do cotidiano pela manhã, com a presença de agentes anunciando que alguma espécie de “processo” ali começava. O

312

desejo de uma explicação e a decorrente obsessão pelo interrogatório (que representa a possibilidade de sentido e término para aquela situação) atravessa todo o capítulo: Quando pedíamos explicações para esse fato, eles nos disseram que não tínhamos o direito de fazer perguntas. (VELOSO, 2008, p. 344)

Esperamos que aquilo fosse, afinal, ser o interrogatório, embora já tivéssemos começado a perder a cabeça com as esperas inexplicáveis. (Ibidem, p. 348)

Estávamos cansados de tantos incômodos incompreensíveis. (Ibidem, p. 349)

Não pensei que estivesse sendo libertado imediatamente, apenas considerei, com muito otimismo, que afinal eles me conduziriam para o interrogatório... (Ibidem, 363)

A única outra vez que saí da cela antes de deixar para sempre a PE de Vila Militar [...], pensei que finalmente se tratava do interrogatório (Ibidem, 375)

[...] muitos dias se passaram sem que ninguém viesse me falar de interrogatório – muito menos de libertação. (Ibidem, p. 380)

Um dia, confirmando uma premonição minha, o major Hilton mandou me chamar e, ao entrar em sua sala, percebi que se tratava do interrogatório. (Ibidem, p. 388)

Esta última citação corresponde ao momento em que, enfim, apresentou-se uma explicação lógica para a prisão, com fácil comprovação de inocência por parte de Caetano Veloso; por isso, desse ponto em diante, abandona-se a obsessão do interrogatório. Apesar disso, a subsequente conversa com o capitão (que conhecia as ideias de Marcuse) indicava ser falsa a explicação sobre o hino e a bandeira, devolvendo-o à desesperança frente ao regime das arbitrariedades, que iam tornando cada vez mais imprevisível o momento da liberação. É possível propor que o caminho do protagonista de Verdade tropical, diante de um processo arbitrário e ilógico, revela angústia semelhante à do célebre personagem Josef K. (embora este não estivesse preso em uma cadeia como aquele). Nesse sentido, acompanhamos a expectativa de Caetano Veloso de descobrir a razão de sua prisão e entender do que exatamente estava sendo acusado; e, ainda, de tentar compreender qual é a lógica que regia aquele sistema. A narrativa é hábil em promover o adiamento frequente de uma explicação que, oferecendo algum sentido, permitiria resgatar o elo com a realidade anterior à chegada dos agentes federais.

313

Sobre O processo de Kafka, Walter Benjamin afirma que o adiamento é “a esperança dos acusados”, ao que pondera: “se apenas o procedimento judicial não se transformasse gradualmente na própria sentença”261. Essa análise faz referência a uma frase do próprio livro, quando o sacerdote afirma: “A sentença não vem de uma vez, é o processo que se converte aos poucos em veredicto”.262 Em Verdade tropical, o transcorrer da prisão aparece como preâmbulo de uma acusação insistentemente adiada. Por isso, acompanhamos o protagonista no processo de perda gradativa da esperança de que alguma lógica sensata pudesse resgatá-lo. Ainda segundo Benjamin, é talvez “essa desesperança que faz com que os acusados sejam as únicas criaturas kafkianas em que transparece a beleza”263, o que faz referência a outra passagem de O processo, na qual o advogado explica: Os acusados são precisamente mais belos. Não pode ser a culpa que os torna belos – pelo menos é assim que devo falar como advogado –, pois com certeza não são todos culpados; também não pode ser a pena correta que agora os faz belos, pois sem dúvida nem todos são punidos; só pode ser, portanto, o processo instaurado que, de algum modo adere a eles. (KAFKA, 2005, p. 185)

Assim, podemos propor que muito da beleza e do interesse da narrativa de Caetano Veloso em “Narciso em férias” (para além de seu referente real, evidentemente) deve-se a essa espécie de “aderência”, que liga o protagonista ao processo irracional que lhe rouba do cotidiano e o conduz ao limite da angústia existencial. Com efeito, as diferenças são inúmeras e a aproximação limita-se a esse viés, até porque, em dado momento, começamos a tomar conhecimento das explicações possíveis para a punição, benesse que foi negada a Josef K. Vale observar, contudo, que, embora pareça uma sugestão óbvia (ou, talvez, por isso mesmo), O processo não é citado diretamente durante todo o capítulo. No entanto, é possível observar como “Narciso em férias” é perpassado por livros, que ilustram as mútuas interferências entre a ficção e a realidade, sinalizam intertextualidades possíveis e, ainda, apontam para o investimento literário da própria narrativa de Verdade tropical, que se intensifica nessa seção, na qual a temática geral e o registro de impressões íntimas exigem um empenho maior da linguagem. Durante a primeira prisão na Tijuca, especialmente, a interferência de dois livros é digna de nota. Ênio da Silveira, que estava preso na mesma unidade, faz com que cheguem

261 In: “Franz Kafka – a propósito do décimo aniversário de sua morte” (BENJAMIN, 2012, p. 167) 262 KAFKA, 2005, p. 212. 263 BENJAMIN, op. cit., p. 152. 314

a Caetano O estrangeiro (1942) de Albert Camus e O bebê de Rosemery (1967) de Ira Levin. Sobre isso, o narrador afirma: É impossível imaginar um par de livros menos apropriado para distrair um preso incomunicável que esse. O tom frio de O estrangeiro, suas frases curtas e isentas, que reproduzem uma visão a um tempo direta e distanciada, enfim, suas virtudes formais conseguiram extrair um verdadeiro entusiasmo de mim: o chamado prazer estético. (VELOSO, 2008, p. 359)

E logo depois: Eu podia alimentar minhas mais sombrias fantasias supersticiosas ao acompanhar o destino daquele homem dos afetos neutralizados, que mata por nada, lê repetidas vezes o mesmo pedaço de jornal numa cela de prisão, e torna-se estranho à própria morte; podia me assustar com a precisão com que algo de que eu mesmo estava vivendo era descrito ali; podia mesmo ver naquilo a profecia de perpetuação inexorável de minha situação; mas a capacidade de admirar o texto como tal parecia ter força para perdurar em mim ainda que só me restasse um fio de razão. (Idem)

O livro de Albert Camus conta a história do personagem Meursault, que mata um árabe, é preso e vai a julgamento. Em dado momento do processo, a acusação passa a se utilizar do episódio do enterro de sua mãe (evento que abre o livro) para evidenciar seu temperamento frio e indiferente, o que confirmaria a necessidade de sua condenação. Dois fragmentos, já do final da obra ajudam a iluminar a fala de Caetano: Nem sequer tinha a certeza de estar vivo, já que vivia como um morto. Eu, parecia ter as mãos vazias. Mas estava certo de mim mesmo, certo de tudo, mais certo do que ele, certo da minha vida e desta morte que se aproximava. Sim, não sabia mais nada do que isto. Mas ao menos segurava esta verdade, tanto como esta verdade me segurava a mim. Tinha tido razão, tinha ainda razão, teria sempre razão. [...] Do fundo do meu futuro, durante toda esta vida absurda que eu levara, subira até mim através dos anos que ainda não tinham chegado, um sopro obscuro, e esse sopro igualava na sua passagem tudo o que me propunham nos anos, não mais reais, em que eu vivia. (CAMUS, 2000, p. 84-5)

Também eu me sinto pronto a tudo reviver. Como se esta grande cólera me tivesse limpo do mal, esvaziado da esperança, diante desta noite carregada de sinais e de estrelas, eu abria-me pela primeira vez à terna indiferença do mundo.(Ibidem, p. 85)

Caetano, ainda na narrativa sobre a primeira prisão, comenta as mudanças em seu sono (também referidas pelo personagem de O estrangeiro) e descreve o estado de apartamento entre o corpo e o “espírito” que sentia se aprofundando, o que é exemplificado pela dificuldade de chorar e de se masturbar, e mesmo de se comover. Nesse sentido, utiliza os adjetivos “seco”, “frio” e “remoto” para definir sua condição e, curiosamente, a

315

leitura da descrição de estado semelhante no livro de Camus é capaz de romper, em alguma medida, com esse quadro, por meio de um entusiasmo definido como “prazer estético”. Assim, para além do vínculo temático mais imediato, os próprios aspetos formais ganham relevo, retomando uma das linhas de força principais de Verdade tropical, que é a reflexão sobre a dimensão estética. Nesse episódio, podemos observar também o poder das obras literárias, não só de propiciar prazer estético ou de marcar a lembrança de uma época, mas também de servir como estímulos à vida interior e, especialmente, fontes de autorreflexão. É importante notar como justamente em um capítulo em que o narrador afirma a ausência de espelhos (no sentido literal), os livros apareçam exercendo o papel simbólico de promover a identificação do sujeito, vendo neles refletida (ou projetada) sua própria condição. Diferentemente do personagem de O estrangeiro, o protagonista de Verdade tropical não sentia como “terna” a indiferença em relação ao mundo, tampouco estava certo de que manteria sua razão. No entanto, as relações entre a vivência do absurdo e a consciência do existir são elementos presentes em seu relato, especialmente quando, já no final do capítulo, afirma: Houve momentos, no quartel dos paraquedistas, em que, sem ainda a alegria da iminência da libertação e já não mais com o pavor de ver iniciar-se um pesadelo, atingi um ponto zero em que eu, simplesmente era. Esses lapsos de nostalgia daqueles momentos – que não significava um desejo de voltar para eles – surgiam como portas abertas para o sentimento perene dentro de mim da doçura de existir. (VELOSO, 2008, p. 390)

É especialmente importante, no entanto, chamar atenção para o fato de que a identificação de Caetano Veloso com o livro também é relacionada com o acirramento gradual de suas superstições; a condenação de Meursault no final da narrativa é emblemática nesse sentido. A leitura de O bebê de Rosemary reflete-se de modo semelhante, segundo o narrador: O bebê de Rosemary talvez tenha me feito mais mal. Com sua narrativa vivaz e convencional, talvez mais hollywoodiana do que o filme que veio a ser feito depois baseado nele, esse livro instigante resulta, mais do que numa metáfora para a paranoia, num incentivo de seus mecanismos. Nunca mais reli nem um nem outro desde que saí da prisão. Mas sei que O bebê de Rosemary, com seus apartamentos, suas competitividades de carreiras artísticas, seu glamour e suas descrições de adoração do mal em si, me fez mais supersticioso do que eu já era e do que já estava, inclusive influindo retrospectivamente na interpretação que eu dava a O estrangeiro. (Ibidem, p. 360)

316

A obra, lançada em 1967, foi transformada em filme pelo diretor Roman Polanski já no ano seguinte, no conjunto de sua célebre “trilogia do apartamento” – Bebê de Rosemary (1968), Repulsa ao sexo (1965) e O inquilino (1976) –, na qual o terror é instalado a partir do adoecimento psicológico dos personagens, que aderem à paranoia e vão perdendo gradativamente a razão. O livro de Ira Levin começa com a mudança do casal Guy e Rosemary Woodhouse para um novo apartamento em Nova York, o que faz com que entrem em contato com os estranhos vizinhos Roman e Minnie Castvet, que passam a ser ainda mais atenciosos depois da gravidez de Rosemary. Daí em diante, acompanhamos a progressão do estado de paranoia da personagem e o obscurecimento dos limites entre a realidade e a loucura. Mais uma vez, Caetano Veloso observa os elementos estéticos do livro, mas especialmente enfatiza o efeito de alimentar sua condição supersticiosa. Depois disso, já no quartel dos paraquedistas, outros dois livros seriam comentados de modo semelhante: um de poemas de Jorge de Lima (poeta modernista brasileiro, frequentemente vinculado ao misticismo de estrato católico) e Ao Deus desconhecido (1933) do escritor estadunidense John Steinbeck, que, segundo Caetano, havia completado o trabalho de torná-lo ainda mais supersticioso. Assim, os livros teriam estimulado seu misticismo, o que culminou no sistema de sinais que Caetano desenvolveu para interpretar os presságios sobre sua situação. A própria atmosfera de terror psicológico que se instala a partir dos questionamentos sobre a imposição do absurdo, os limites do real, o enfrentamento da paranoia e da loucura, tudo isso contribui para o desenvolvimento de uma narrativa tensa, que recorre frequentemente a elementos do suspense, especialmente a cada mudança que se apresenta: os veículos que conduzem às prisões, as saídas de celas acompanhadas por guardas (as ameaças diante da conversa com Ênio da Silveira e da caminhada até a barbearia), os interrogatórios e mesmo a cena final de quase constatação da loucura (já depois de libertado). Desse modo, as porosidades entre os livros e as vivências e, fundamentalmente, entre a realidade e a ficção narrativa, ganham ênfase nessa parte de Verdade tropical.

317

3. Narciso em serviço

“Narciso em férias”, como já se disse, é também o relato do estranhamento gradual em relação ao sentido da realidade, que se pode observar, especialmente em retrospecto, na seguinte sequência de eventos: a ascensão de Caetano Veloso à condição de mito da canção popular brasileira; o transe geracional começado em 1967; a intervenção na passeata estudantil (“Eu me sentia possuído por uma ira santa”); a experiência com auasca e, por fim, o happening de “É proibido proibir” (envolvido na carga mística da exclamação “Deus está solto” e no discurso exaltado e algo profético contra os estudantes da esquerda tradicional), estes últimos em 1968. Esse conjunto chega a seu auge exatamente com a vivência da prisão no final desse ciclo de acontecimentos. Para nosso argumento, interessa resgatar, do capítulo anterior, o episódio com o auasca, cujo uso está relacionado, no âmbito da contracultura, às experiências com substâncias alucinógenas, que estariam ligadas à contestação da racionalidade ocidental (e do cientificismo) em favor de formas sensoriais de percepção. Caetano Veloso conta também suas experiências anteriores com maconha e lança-perfume, sempre postas em chave negativa, apresentadas sob o horror e o medo de perder o mundo e a si próprio – enfim, o controle lúcido sobre a realidade.264 O autor, então, procede à narração do momento em que tomou auasca, descrevendo o efeito inicial de forma positiva (em sentido muito próximo, aliás, da busca contracultural de alargamento da percepção e da compreensão profunda do mundo e de si mesmo), porém, passando em seguida a um estágio de desespero e medo da loucura: “já não era capaz de voltar a sentir-me íntegro como enquanto via anjos e átomos sem perder o mundo, nem de voltar a integrar-me nesse mundo cuja realidade fora posta em questão”265. Aqui, Caetano pede para ver um espelho, na esperança de reconquistar-se, mas afirma que, apesar de ter conseguido ver o seu rosto, aquela lhe parecera uma imagem indecifrável. Por fim, conta seu processo de retorno ao real, mas também um desvio de percepção (que se mantivera nas semanas seguintes) e a sensação de que algo de essencial havia mudado nele a partir daquele momento.

264 “Eu visitara um inferno onde o absurdo insuportável de uma alma sem corpo – e de uma consciência sem objeto – se me apresentara como uma evidência terrível: odiei para sempre a ideia de que possamos seguir sendo nós mesmos depois da morte”. (VELOSO, 2008, p. 314) 265 Ibidem, p. 320. 318

Dito isso, é possível voltar à parte 3 para destacar alguns aspectos importantes. Em primeiro lugar, cabe sinalizar que o próprio relato do período de prisão começa em um momento de transição entre a vigília e o sono. Isso contribui para intensificar a atmosfera de pesadelo (essa palavra é usada reincidentemente), já prenunciando uma percepção da realidade em deformação. De outro lado, esse início justifica uma série de digressões sobre o sono e, especificamente, sobre a dificuldade de Caetano para dormir, o que mudaria no período de confinamento. Além disso, “Narciso em férias” é o capítulo em que são mais insistentes as lacunas, fabricações e imprecisões da memória e, por isso mesmo, a seção em que se reflete mais detidamente sobre seus mecanismos. Por ora, basta lembrar que o narrador afirma não se lembrar de ter escovado os dentes durante todo o período em que esteve preso (embora certo de que o fez), nem como era exatamente a porta da cela na Tijuca ou como eram os rostos de alguns dos personagens desse período e quais eram os procedimentos habituais e, por fim, as especificações temporais (os intervalos entre os eventos, mas também o número de vezes em que aconteceram). Por outro lado, Caetano conta também como a memória fabricou a sua presença na cena do brinde no réveillon, da qual não participou porque adormeceu. A primeira digressão sobre a memória garante ao narrador observar como, naquele tipo de situação, a própria realidade anterior à prisão é posta em perspectiva: Tenho ouvido de pessoas que foram ou estão presas a observação de que, em algum momento, dentro da cela, duvida-se da vida livre que a memória diz ter existido lá fora. Recentemente li na entrevista de um criminoso brutal a afirmação: “Às vezes acho que nasci aqui, que sempre vivi aqui, que o mundo lá fora, tudo o que eu vivi, só existe na minha cabeça.” Essa leitura me fez estremecer porque eu próprio tinha pensado exatamente a mesma coisa e nos mesmos termos enquanto estava na solitária da rua Barão de Mesquita. O apartamento de São Paulo, meu casamento com Dedé, a Bahia, os estúdios de gravação, os palcos dos auditórios: tudo parecia remoto e desprovido de realidade. (VELOSO, 2008, p. 352)

Vale lembrar que, muito antes disso, quando ainda falava sobre suas recordações de criança em Santo Amaro, na primeira parte do livro, Caetano Veloso menciona suas intuições filosóficas no sentido da impossibilidade de provar a si mesmo a existência do mundo e de seu próprio corpo e que, deste modo, nada existiria a não ser seu pensamento. Desse modo, aquele episódio acaba também reverberando aqui (consideradas as

319

diferenças), de modo que a realidade que o pensamento produz é posta em questão novamente. O fato de a primeira fase de prisão ter sido em uma solitária reforça ainda mais a possibilidade aventada sobre a inexistência de outros lugares e, portanto, de outra vida anterior àquela. O narrador também indica a ausência de espelhos – dois meses sem ver o próprio rosto – como outro fator que contribui para seus questionamentos sobre o real. Aliás, vale observar que o espelho não só retoma o episódio do auasca (sua tentativa de recuperar-se frente ao objeto), como também se relaciona estritamente com o título do capítulo: sem ver a própria imagem e imerso em um estado de apatia, Caetano Veloso conclui que “Narciso estava morto”. O desprendimento da realidade desenvolve-se também em relação ao conjunto de superstições que vão tomando conta do protagonista no decorrer de seus três cárceres, atingindo o auge na última seção, quando relata o sistema de sinais e gestos mágicos que havia desenvolvido para prever sua libertação. De um lado, a adoção desse mecanismo sublinha a irracionalidade do sistema repressivo que ali se exibia (e que, portanto, não tornava viável a formulação de expectativas lógicas, pautadas em qualquer bom senso); de outro, torna visível outro nível de relação entre a realidade e o misticismo, que vem sendo tensionados ao longo de todo o livro. Convém observar também que, em meio ao repertório de sinais, a canção popular novamente ganha um espaço privilegiado. Desde a primeira prisão, a canção “Fracasso” (que um velho comunista pedia para que Caetano cantasse) já aparecia sobrecarregada de maus presságios: a letra chega a ser comentada estrofe a estrofe, sendo sempre interpretada subjetivamente, de modo que seu referente sempre coincidisse com a própria história terrível que ali se passava, e que sua conclusão fosse a inexorabilidade do destino que ali se anunciava. No sistema de sinais, algumas canções, dependendo das circunstâncias em que eram ouvidas, eram investidas de sentidos variados. Ganharam também grande importância em seu esquema a presença das baratas (que eram o pior sinal, mas se fossem mortas por ele, isso se converteria em um avanço) e a masturbação (que àquela altura já era desejável, mas que foi coibida pela crença de que sua realização representaria um atraso em sua libertação). Caetano Veloso chega a afirmar que desenvolveu uma “monstruosa sensibilidade para interpretar os sinais, aliada a uma não menos monstruosa imaginação para criar

320

gestos”266, de tal modo que teria conseguido acertar com precisão a hora e o local em que receberia a notícia da libertação, o que sugere, mais uma vez, certa dúvida sobre os limites do real e o alcance dos fenômenos místicos. Por outro lado, olhando em perspectiva, Caetano diz abominar esses momentos de premonição. A chave da aparente contradição está na seguinte citação: Tornei-me um adivinho consideravelmente impressionante. Anos depois, quando, comentando o caso de Gerald Green Morton, um paranormal que entortava talheres, materializava moedas, fazia comunicações telepáticas e previa acontecimentos, meu psicanalista Rubens Molina me disse que todos lhe pareciam sintomas terríveis – o que será que levava esse rapaz a precisar realizar tais prodígios? –, eu, em vez de enfatizar o aspecto viciado da psicanálise, que quer reduzir tudo ao seu próprio esquema, considerei que Molina tinha ido ao fundo da questão: eu sabia até onde o desespero podia levar. (VELOSO 2008, p. 392)

Apesar da ponderação feita por Caetano sobre a psicanálise, a fala de Rubens Molina reverbera exatamente um texto fundamental da obra de S. Freud – justamente aquele que fala sobre o narcisismo. Em “Introdução ao narcisismo” (1914), explica-se a passagem do autoerotismo (na qual o ser ainda não se identifica como inteiro e apartado do mundo) para o narcisismo primário (no qual o ser se diferencia do mundo e percebe a unidade de seu corpo, concentrando em si mesmo sua libido) e deste para o narcisismo secundário (no qual parte da libido deixa de ter como alvo o próprio sujeito e passa a ser dirigida aos objetos). O narcisismo é, portanto, um processo inerente ao desenvolvimento libidinal, diretamente vinculado ao surgimento de um Eu individual e íntegro – desse modo, embora, na linguagem popular, seja associado ao “defeito” da vaidade, no âmbito da psicanálise apresenta outras dimensões, dentre as quais a formação e a autopreservação do sujeito. Assim, é possível observar que o sistema de sinais de Caetano Veloso, mais do que um sintoma da dissolução e da perda absoluta da razão, pode referir-se justamente ao esforço de manter sua integridade. Criando uma lista de coisas que poderia fazer para interferir em sua libertação (como matar baratas e não ceder ao desejo de se masturbar) e, ainda, tornando-se intérprete das demais, Caetano estava criando também mecanismos para sustentar a crença de que algum controle ele, enquanto sujeito, exercia sobre todos aqueles acontecimentos. A “necessidade” de realizar tais “prodígios” (sugerida por Rubens Molina) está, portanto, diretamente ligada a essa tentativa de autopreservação, executada

266 VELOSO, 2008, p. 381. 321

frente ao desespero de ver-se ameaçado em sua integridade e em sua capacidade de atuação sobre o próprio destino. Mecanismo semelhante é observado por Freud, no mesmo ensaio sobre o narcisismo, quando identifica na vida psíquica das crianças e dos povos primitivos traços que, isoladamente, podem ser atribuídos à megalomania: uma superestimação do poder de seus desejos e atos psíquicos, a “onipotência dos pensamentos”, uma crença na força mágica das palavras, uma técnica de lidar com o mundo externo, a “magia”, que aparece como aplicação coerente dessas grandiosas premissas. Esperamos encontrar uma atitude análoga face ao mundo externo nas crianças de nossa época, cujo desenvolvimento é para nós mais impenetrável. Formamos assim a ideia de um originário investimento libidinal do Eu, de que algo é depois cedido aos objetos, mas que persiste fundamentalmente, relacionando-se aos investimentos de objeto como o corpo de uma ameba aos pseudópodes que dele avançam. (FREUD, 2010, p. 12)

É evidente como a descrição acima exposta, relativa ao narcisismo primário, aproxima-se da narrativa de Caetano Veloso sobre sua hipotética capacidade de ler os sinais e os gestos mágicos, e de poder interferir, a partir deles, no desenrolar dos acontecimentos. Em verdade, vários outros momentos do capítulo estão atravessados por questões da psicanálise, especialmente ao texto de Freud sobre o narcisismo. Nesse sentido, poderíamos interpretar suas reflexões sobre o sono e, especialmente, sua facilidade para dormir no período de confinamento, também sob essa égide: De modo semelhante à doença, o estado do sono também significa uma retração narcísica das posições da libido para a própria pessoa, mais precisamente para o desejo de dormir. O egoísmo dos sonhos se enquadra bem nesse contexto. Em ambos os casos vemos, ainda que seja apenas isso, exemplos de mudanças na distribuição da libido graças à mudança no Eu. (Ibidem, p. 18)

Os mecanismos da memória (as lacunas, os esquecimentos, as fabricações) também podem ser lidos em chave semelhante, segundo reflexão do próprio Caetano: O modo como a memória seleciona é curioso. Claro que não lembramos “tudo”. Mas no caso de um cotidiano tão empobrecido, por que esquecemos tão totalmente mesmo a experiência de algo que, com absoluta certeza se deu? Sem dúvida minha mente criou mecanismos para se defender, e essas amnésias específicas devem ter desempenhado um papel nesse processo. (VELOSO, 2008, p. 368)

De modo nenhum propõe-se aqui uma leitura psicanalítica aprofundada; antes disso, o que se pretende fazer é sinalizar que a ênfase nas questões vinculadas ao sono, à memória e ao sistema de sinais (vistas enquanto mecanismos de autopreservação) estão

322

intimamente vinculada às reflexões propostas por Freud. Na narrativa onde se sugere um Narciso “em férias”, o arcabouço teórico da psicanálise permitiria, portanto, afirmar o justo oposto. Por fim, é também sintomático que o desfecho do capítulo se dê com o retorno de Caetano Veloso à casa de seus familiares, nas quais relata um profundo estranhamento em relação a tudo, um não reconhecimento da casa, das fotografias e, em alguma medida, dos próprios parentes. É justamente a figura paterna (em companhia da figura materna) que, olhando “como se o entendesse” e utilizando uma “voz firme”, conduz à identificação do sujeito, trazendo-o de volta à vida – isto é, reintegrando-o, reidentificando-o. A cena de desfecho produz efeito comovente, e volta a sugerir o atravessamento da psicanálise nas questões abordadas pelo capítulo: Em suma, a liberdade chegara, mas eu já não estava ali: tinha esperado demais. Por um momento tive a certeza de que tudo tinha acabado, que eu não voltaria nunca do inferno onde tinha caído. Foi então que ouvi os passos na escada e vi surgirem, em minha frente, meu pai e minha mãe. Ele me olhou como se entendesse exatamente o que eu estava sentido – como ninguém mais poderia olhar – e me disse, usando um palavrão como nunca o fizera na vista de minha mãe, e numa voz firme que me trouxe de volta à casa, ao amor, aos problemas, à vida: “Não me diga que você deixou esses filhos da puta lhe deixarem nervoso!” (VELOSO, 2008, p. 402)

4. As sirenes

No início da parte 4, Caetano faz a seguinte relativização de seu período de prisão: Quando penso no número de pessoas que morreram em prisões brasileiras a partir de 68 (e que foi pequeno se comparado ao número de vítimas argentinas ou chilenas da década seguinte); quando penso nos que sofreram tortura física, ou nos que foram expulsos do país em 64 e só puderam voltar com a anistia em 79, concluo que minha prisão de dois meses foi um episódio que sequer merecia referência. (VELOSO, 2008, p. 404)

Essa afirmação, feita após o capítulo mais longo e mais penoso do livro, é uma forma de dar proporção à violência concernente ao processo histórico das ditaduras latino- americanas. Assim, a vivência individual, aqui, generaliza-se como história, evidenciando, mais uma vez, as mútuas influências entre o pessoal e o público que atravessam o livro. Em “Narciso em férias”, é possível identificar esse mesmo processo em alguns outros fragmentos, em que a experiência de Caetano na prisão acaba trazendo à luz uma série de elementos de um Brasil que está pouco visível.

323

Em primeiro lugar, o autor observa como o pano de fundo do tropicalismo relaciona-se com a contemporaneidade entre o auge da contracultura no mundo e o acirramento da repressão no Brasil, oferecendo como exemplo a proximidade temporal entre sua experiência com o auasca e sua prisão. Desse modo, o risco da loucura apresentava-se como ponto de confluência entre, de um lado, as experiências com drogas, e, de outro, a violência dos confinamentos em presídios e hospitais psiquiátricos, desde sempre (e ainda hoje) utilizados como forma de exílio, perseguição política e marginalização de grupos sociais. Sobre isso, Caetano Veloso afirma que, depois que ele e Gil deixaram a prisão, tornaram-se frequentes as notícias de “amigos que eram levados de prisões a sanatórios e vive-versa”.267 Sobre a primeira transferência (da Tijuca para Deodoro), Caetano Veloso relata o translado feito em uma viatura com a sirene soando alto, num percurso demorado que o leva à hipótese de ser um mecanismo proposital para colocar medo. O autor observa que, de modo geral, apesar do barulho e das luzes, a história que se esconde dentro desses veículos passa invisível à maioria dos passantes da rua. Além disso, a forma deliberada com que se dava o processo e a mistura de polícias envolvidas lhe intensificava a impressão de que qualquer coisa poderia acontecer com eles (e com tantos outros) sem que ninguém se desse conta: Um aparelho repressor tão confuso, sem mandado de prisão, sem interrogatório e com tantas polícias envolvidas, produzia a sensação de que tínhamos sido atirados num inferno de que os solavancos no escuro e as curvas fechadas ao som do grito dolorido mas impiedoso as sirene eram apenas um indício. Em breve, com efeito, se multiplicariam no Brasil os casos de desaparecidos, e cada vez um número maior de pais de família teriam seus filhos em situação semelhante à nossa. (VELOSO, 2008, p. 364)

Esse episódio generaliza sua experiência pessoal de “desaparecido político”, ainda que tenha tido a vantagem de que Dedé conseguira, apesar das dificuldades, seguir sua pista. Assim, o contexto político da ditadura civil-militar (e de seu acirramento a partir de 1968) vai se desenhando no pano de fundo de seu relato. No entanto, os presídios no Brasil revelaram ao autor algo mais amplo que o recorte desse período. Nesse sentido,

267 O comentário aprece novamente na parte 4 de Verdade tropical nos seguintes termos: “Com efeito, muitos dos meus amigos mais queridos e admirados estavam entrando ou saindo de manicômios e prisões, numa espécie de introjeção da violência sagrada dos que partiram para a luta armada e da violência maldita dos que detinham o terrorismo oficial. Rogério [Duarte] esteve internado um longo tempo e não estou seguro de que não lhe tenham dado eletrochoque”. (VELOSO, 2008, p. 447). Rogério, de fato, é um exemplo emblemático para a observação de Caetano, tendo sido preso em 1968 e internado em 1970. O conjunto desses eventos é contado em seu livro Tropicaos (2003), onde o autor também dá sua versão do tropicalismo. 324

comentando a existência de uma cela com presos “comuns” na unidade de Vila Militar (a segunda pela qual passou), relata: Às vezes eu era acordado no meio da noite por gritos horrendos vindos do corredor. Eram surras intermináveis e, mais de uma vez, ouvi as vozes dos verdugos pedirem com urgência a “padiola”. Essas vozes por vezes pareciam surpresas com os relatos dos maus tratos. Alguns dos meus companheiros de cela insinuavam que tudo aquilo podia ser encenação para nos amedrontar. Mas tal insinuação não era convincente. Outros alimentavam o ódio aos algozes considerando que aquela gente podia ser espancada e mesmo assassinada ali sem que ninguém tomasse conhecimento. (VELOSO, 2008, p. 372) E conclui: De fato, desde essa experiência na PE da Vila Militar, passei a ter uma ideia diferente da sociedade brasileira, a ter uma medida da exclusão dos pobres e dos descendentes de escravos que a mera estatística nunca me daria. (Idem)

Nesse momento, evidencia-se como a discussão sobre a violência do estado e a prática da tortura transcende o contexto histórico da ditadura civil-militar, associando-se também a uma herança escravista que deixou marcas fundas na formação do Brasil268. Passado o regime, o país ainda enfrenta o problema de consolidar a luta pelos direitos humanos contra as diversas violências que se impõe contra a população pobre e negra. A partir de sua experiência pessoal, Caetano Veloso convida a ouvir com mais atenção o som das sirenes, sobre as quais se esconde mais um vetor importante do que se poderia chamar “Brasil profundo”.

268 Esse episódio ajuda a compreender, por exemplo, a referência ao massacre do Carandiru feita em “Haiti”, do disco Tropicália 2, ou, de modo amplo, a realização de uma obra como Noites do norte de 2000. 325

CAPÍTULO V – O ERRANTE NAVEGANTE

1. Roteiro de viagem

A parte 4 de Verdade tropical diz respeito ao exílio londrino de Caetano Veloso e à sua volta ao Brasil, concentrando-se, portanto, no contexto imediatamente posterior ao apogeu do tropicalismo musical. Nesse sentido, observa-se aqui a contraditória contemporaneidade entre o acirramento do regime civil-militar com o AI-5 no país e o desenvolvimento da contracultura (aqui e no exterior), especialmente da onda mística e do desbunde que vieram em seu bojo. Caetano Veloso, que vinha da experiência de quase perda da razão durante o período da prisão (narrado no capítulo imediatamente anterior), ocupa-se também em indicar como estava, em alguma medida, na contramão da atmosfera da virada dos anos 1960 para os 1970. Assim, no apogeu do misticismo, das experiências com drogas e das liberdades sexuais, afirma estar cético e agarrado à racionalidade, define-se como “careta” em relação às drogas, e comenta estar vivendo uma grande fase em seu casamento heterossexual de “tendência monogâmica”. Desse modo, o autor cria mais uma nuance em sua narrativa pessoal sobre o período, mostrando seu relativo distanciamento do contexto que teria ajudado a propiciar, o que reforça os traços de mobilidade e de excentricidade que vêm sendo desenvolvidos em seu processo de autofabulação. Na parte 4, como de hábito, há uma linha cronológica geral, apesar das imprecisões temporais e das idas e voltas geradas pelo procedimento digressivo. Por isso, convém localizar temporalmente alguns de seus eventos principais, a fim de orientar a análise e mesmo o comentário sobre sua estruturação. Desse modo, vale sinalizar que, após a saída da prisão em fevereiro de 1969, houve um período de quatro meses em Salvador, e, em julho do mesmo ano, Caetano e Gil deixaram o país rumo à Europa (com passagens rápidas por Portugal e França, chegando, enfim, à Inglaterra). Já em Londres, os artistas foram primeiro para um hotel em Queen’s Gate; pouco depois, conseguiram um imóvel de três andares (onde passam a morar Caetano, Dedé, Gil, Sandra e Guilherme Araújo), no bairro de Chelsea, um pouco mais afastado do centro. Essa casa é mais um cenário importante do livro, funcionando – de modo semelhante ao apartamento 2002 – como um espaço de encontros e conversas com seus frequentadores habituais ou ocasionais. Assim, além do Haroldo de Campos, que apelidou a casa de

326

“Capela Sixteena”, passaram por lá personagens como Péricles Cavalcanti, Hélio Oiticica, Roberto Carlos, Rogério Sganzerla, Júlio Bressane, Jorge Mautner e Antonio Cicero. Um ano depois (em 1970), Caetano e Gil se mudaram para Notting Hill Gate, bairro residencial de Londres, onde o narrador aponta grande presença de jamaicanos, que “faziam tudo parecer mais alegre”269 (nesse momento, já moravam em casas separadas). Por fim, e com menos detalhe, o narrador pontua seus endereços posteriores em West Kensinton, Hampstead e Golders Green. O retorno para o Brasil aconteceu em janeiro de 1972, quando Caetano foi morar em Salvador, no bairro de Amaralina com Dedé. Em novembro do mesmo ano, nasceu seu filho Moreno Veloso. É importante mencionar também que, em março de 1970, Caetano e Gil fizeram o primeiro show em Londres, no Royal Festival Hall, e, no final de agosto, participaram de improviso do Festival da Ilha de Wight (além deles, estiveram no evento ícones da época, como The Who, The Doors, Janis Joplin e Joan Baez). Além disso, no mesmo ano, Caetano assistiu pela primeira vez a um show dos Rolling Stones, o que ganha bastante destaque em sua narrativa, conforme comentaremos. Em 1971, Caetano vem duas vezes ao Brasil: a primeira em janeiro de 1971, por ocasião da comemoração das bodas de seus pais; a segunda, quando é convidado por João Gilberto a participar de um programa na TV Tupi a seu lado, além de Gal Costa. No segundo semestre do mesmo ano, o artista lançou Caetano Veloso (disco com maioria das canções em inglês, dentre as quais “London, London”). Em 1972, foi lançado o álbum Transa e foi gravado Araçá azul, que chegou a público apenas no começo do ano seguinte. Esse evento encerra a sequência narrativa principal do livro. Podemos dizer com isso que a parte 4 de Verdade Tropical acompanha especialmente os acontecimentos relevantes do intervalo que vai de 1969 até 1973. Para dar conta disso, o autor divide a seção em sete capítulos: o que narra o momento posterior à prisão em Salvador até a decisão do exílio (“Barra 69”); depois a sequência de três capítulos que se concentram especificamente nas experiências londrinas ou em suas consequências teóricas (“London, London”, “Língua” e “Afinidades eletivas”); o que comenta as duas visitas ao Brasil (“Ame-o ou deixe-o”); e, por fim, dois que se passam depois do retorno definitivo (“Back in Bahia” e “Araçá azul”).

269 No bairro de Notting Hill fica a Portobello Road, citada na letra de “Nine of ten”: “I walk down Portobello road to the sound of reggae”. 327

2. Aquele abraço

Depois do fim da prisão, em 19 de fevereiro de 1969, Caetano e Gil viajaram para Salvador, de onde estavam proibidos de sair, tendo que se apresentar diariamente na Polícia Federal na Bahia. Meses depois, o exílio foi apresentado como solução – “o exílio, imposto com a mesma grosseira informalidade da prisão”270 –, o que se deu apenas em 27 de julho do mesmo ano. Antes disso, os artistas conseguiram convencer as autoridades a fazer uma apresentação a fim de levantar dinheiro para a viagem. O show Barra 69, que dá título ao capítulo onde se narra esse conjunto de eventos (o primeiro da parte 4), ocorreu em 20 de julho, no mesmo dia em que o homem pisou a lua pela primeira vez, coincidência para a qual Caetano chama atenção em seu relato. No mesmo capítulo, o narrador pontua muito brevemente os discos feitos por ele e Gil nesse curto período: Gilberto Gil (mais conhecido como “Cérebro eletrônico”, uma de suas canções principais), gravado entre abril e maio, que contém a emblemática “Aquele abraço”; e Caetano Veloso, o álbum de capa branca, que foi gravado em junho de 1969, que traz canções como “Irene” (a única composta na prisão), “Atrás do trio elétrico” (que será retomada na discussão sobre os trios elétricos na Bahia), “Carolina” (a gravação em “tom estranhável” da canção de Chico) e “Não identificado” (também gravada por Gal no mesmo ano)271, além de duas composições em inglês (“The empty boat” e “Lost in the paradise”) e duas canções mais experimentais (“Acrilírico” e “Alfômega”). O show Barra 69, sendo de julho, apresentava em seu repertório algumas canções desses discos: Caetano cantou “Irene”, “Atrás do trio elétrico”, “Objeto não identificado”, além das músicas tropicalistas dos anos anteriores (“Superbacana”, “Baby” e “Tropicália”) e a inédita “Cinema Olympia”; Gil, de modo semelhante, cantou “Cérebro eletrônico”, “Volks-Volkswagen Blue”, “17 léguas e meia”, “Aquele abraço” e “2001”, do álbum novo, mais seus sucessos tropicalistas (“Domingo no parque”, “Ele falava nisso todo dia” e “Frevo rasgado”). Na narrativa, no entanto, a única que aparece com destaque é “Aquele abraço”, que, aliás, é um samba em homenagem a Dorival Caymmi, João Gilberto e Caetano Veloso, como afirma Gil na introdução de sua gravação, reiterando sua linhagem de influências. O próprio compositor explica sobre a canção:

270 VELOSO, 2008, p. 404. 271 A canção faz parte também da trilha sonora do filme Brasil ano 2000 (1968) de Walter Lima Junior. 328

“Aquele abraço, Gil!" - Era assim que os soldados me saudavam no quartel, com a expressão usada no programa do Lilico, humorista em voga na época, que tinha esse bordão. Ele até ficou aborrecido com a música; achou que deveria ter direito à canção. Mas eu aprendi a saudação com os soldados. Eu não tinha televisão na prisão, evidentemente, mas eles assistiam o programa; eu só vim a ver depois, quando saí.272

Assim, “Aquele abraço” relaciona-se diretamente com algumas linhas de força do tropicalismo musical. Em primeiro lugar, é preciso notar a alusão a dois personagens da cultura de massas, especialmente da televisão: Lilico e Chacrinha. O primeiro fazia parte do programa de rádio Balança mas não cai, que migrou para a TV Globo justamente no ano de 1968, tornando popular seu bordão “Alô, Brasil, aquele abraço” e suas variantes, a partir das quais Gil elaborou suas próprias combinações.273 Além disso, na composição de Gil, a saudação “Alô, alô, Realengo”, ao evocar um bairro da zona oeste do Rio de Janeiro, acabava (acaba) remetendo, indiretamente, aos bairros vizinhos de Deodoro e Vila Militar, onde Gil e Caetano estiveram presos. A segunda referência é mais direta: Chacrinha, que imortalizou o bordão “Alô, alô, Terezinha” ou, mais especificamente, o chamado “Terezinhaaa....” ao que o público respondia com “uh, uh” (note-se a recorrência da interjeição “alô”, sublinhando o universo da comunicação). O já referido apresentador, de estilo anárquico e carnavalesco, entre os anos 1950 e 1960, passou pela TV Tupi, depois pela TV Rio e por fim pela TV Globo, com seus programas marcados por atrações da música brasileira, apresentações de calouros (nas quais utilizava a famosa buzina, que os desclassificava), e também as célebres chacretes. Vale lembrar que, segundo relato de Verdade tropical, Rogério Duarte (ainda às vésperas do tropicalismo) identifica Chacrinha como “a personalidade teatral mais importante do país”; Zé Celso, por sua vez, no contexto de O rei da vela, também faz referência ao apresentador, classificando-o como “criativo e inspirador”. Assim Caetano comenta seu programa: Agredindo com humor mas sem humilhar verdadeiramente os calouros pobres e ignorantes que eventualmente ele interrompia com uma buzina semelhante à de Harpo Marx [...], intrometendo-se nos números musicais de estrelas comerciais consagradas, atirando bacalhau na plateia, Chacrinha era um fenômeno de liberdade cênica – e de popularidade. Seu programa tinha enorme audiência e, como se fosse uma experiência dadá de massas, às vezes parecia perigoso de tão absurdo e tão energético. (VELOSO, 2008, p. 161)

272 http://www.gilbertogil.com.br/sec_disco_interno.php?id=4. 273 Vale lembrar que Caetano já havia feito incorporação semelhante com o bordão de Simonal popularizado por Chacrinha – “Alegria, alegria” –, este, porém, mencionado apenas no título, mas não na letra da canção. 329

Assim, a expressão “experiência dadá de massas”, já comentada na referência a Carmen Miranda, é atribuída também a Chacrinha, indicando como o apresentador representava uma quebra de paradigmas (investida na ideia de “absurdo”), além de ser uma fonte de acesso ao hipotético inconsciente nacional (“o inconsciente não estetizado”, “a não explicação do inexplicável”) e, por fim, um ícone pop da cultura de massas do Brasil. Vale também destacar o adjetivo “energético”, não só em seu vínculo com a violência comportamental e a liberdade cênica, mas também com as ideias de “saúde” e “vitalidade”, terminando de compor um conjunto em tudo afinado com os interesses do tropicalismo. Voltando à canção de Gilberto Gil, deve-se observar como a evocação desses ícones da cultura de massas (com seus bordões e mitologias), vem ainda se somar a mais dois elementos do Brasil festivo e alegre, consolidado pela cultura de massas internacional como representativo do país: o futebol (com a saudação à torcida do Flamengo) e o carnaval (com as alusões à escola de samba da Portela e o bloco “Banda de Ipanema”). Essa combinação (bem como seu tom vibrante) reverbera no “País tropical” de Jorge Ben, também de 1969, que anuncia: “em fevereiro tem carnaval/ tem um fusca e um violão/ eu sou flamengo e tenho uma nega chamada Tereza”. No mesmo comentário a “Aquele abraço”, Gil lembra ainda que a canção foi feita pouco depois da saída da prisão, exatamente numa quarta-feira de cinzas do carnaval de 1969: Uma canção de quarta-feira de cinzas - "O reencontrar a cidade do Rio na manhã em que nós saímos da prisão e revimos a avenida Getulio Vargas ainda com a decoração de carnaval foi o pano de fundo da canção. Na minha cabeça, Aquele Abraço se passa numa quarta-feira de cinzas; é quando o 'filme' da música é em mim mentalmente locado.

A quarta-feira de cinzas remete a um momento nostálgico dos momentos de festa e de alegria, carregando em si o tom de despedida, o que combinava perfeitamente com o contexto de exílio no qual se inseria. Apesar disso, o tom vibrante da canção é mais próximo da vivência desse carnaval do que propriamente do lamento por seu fim, como acontece, por exemplo, na “Marcha de quarta-feira de cinzas” de Caros Lyra e Vinicius de Moraes. O reencontro com a cidade do Rio de Janeiro é um ponto importante para avaliação que Caetano faz da canção em Verdade tropical:

330

O brilho e a fluência das frases, a evidência de que se tratava de uma canção popular de sucesso inevitável, o sentimento de amor e perdão impondo-se sobre a mágoa, e sobretudo o dirigir-se diretamente ao Rio de Janeiro [...], tudo isso me abalava fortemente e eu chorava de modo compulsivo. No show, a plateia também foi tomada pela música, como se já a conhecesse de muito tempo. (VELOSO, 2008, p. 160)

E, imediatamente depois: O lugar onde a ironia se punha nessa canção – que parecia ser o um canto de despedida do Brasil (representado pelo Rio, como é tradição) sem sombra de rancor – fazia a gente se sentir à altura das dificuldades que enfrentava. “Aquele abraço” era, nesse sentido, o oposto do meu estado de espírito, e eu entendia comovido, do fundo do poço da depressão, que aquele era o único modo de assumir um tom de “bola pra frente” sem forçar nenhuma barra. Nunca esta canção deixará de ter, para mim, uma importância afetiva semelhante à de “Chega de saudade”, à de La strada, à de Les mots. (VELOSO, 2008, p. 410).

O Rio de Janeiro não só se coloca aqui como dado afetivo em função da prisão na cidade e da visão da avenida Presidente Vargas, mas pela própria importância que tem para a música popular brasileira. A “cidade dos brasileiros” (como a chama João Gilberto) é também parte importante do imaginário internacionalizado por Carmen Miranda (mas também por Walt Disney), especialmente nas referências ao samba dos morros, à malandragem, ao Cassino da Urca e ao bairro de Copacabana. Além disso, trata-se do berço da bossa nova, sendo aludido diretamente em muitas de suas canções fundamentais, como “Corcovado”, “Wave”, “Garota de Ipanema” e, especialmente, o “Samba do avião” de Tom Jobim, uma declaração de amor ao Rio, visto da perspectiva de quem chega ao aeroporto do Galeão. O resultado pop da composição de Gil anunciava que a canção entraria para esse grande acervo popular de representações da cidade. “Aquele abraço”, portanto, fazendo o caminho inverso ao “Samba do avião”, funcionava como o canto de partida, empregando um tom cheio de “saúde”, tal como o tropicalismo musical almejava. Assumindo um estado de depressão muito contrário ao tom vibrante da música, Caetano insere sua comoção no próprio fio dessa contradição, e também no “tom de bola pra frente”. Aliás, a perspectiva positiva da canção também pode ser vista como a afirmação poética da retomada, ainda que limitada, do controle sobre as próprias vidas, anunciada nos versos “meu destino pelo mundo, eu mesmo traço/ a Bahia já me deu régua e compasso/ quem sabe de mim sou eu...”. Por fim, é bela a dimensão que Caetano Veloso dá à canção de Gil, colocando-a ao lado de grandes eventos formativos como “Chega de saudade” de João Gilberto, o filme de

331

Fellini e Giulietta, e também As palavras de Sartre. Isso revela não só o reconhecimento estético da canção, mas, principalmente, a importância afetiva de “Aquele abraço” na trajetória existencial do autor de Verdade tropical.

3. O exílio londrino

“Os anos que vivemos ali foram um sonho obscuro para mim”. É assim que Caetano Veloso abre o capítulo “London, London”, aquele que mais especificamente comenta o exílio londrino. A seção começa pelo mapeamento dos endereços por onde passou em Londres, e depois se ocupa em comentar as visitas de amigos à “Capela Sexteena” (portanto, entre 1969 e 1970), mas também a Copa do Mundo, as notícias da luta armada, o surgimento do cinema marginal (e a polêmica com o Cinema Novo) e, por fim, o convite do produtor Ralph Mace para a gravação dos primeiros discos ingleses de Caetano e Gil. É preciso observar, por ora, como o período (especialmente esse primeiro intervalo) é marcado pelo relato de uma profunda tristeza, que se traduz especialmente no disco Caetano Veloso (1971) e, neste, especialmente na canção “London, London” que serve de título ao capítulo. Assim o autor comenta esse momento: Londres representou para mim um período de fraqueza total. Frequentei umas aulas de inglês para estrangeiros numa daquelas escolas de várias salas com turmas grandes. Mas falava português quase o tempo todo, morando numa casa habitada por brasileiros e frequentemente vistada por brasileiros. Eu me sentia incapaz de aproveitar o que deveria ser visto como oportunidade. (VELOSO, 2008, p. 416)

Na sequência, Caetano exemplifica não ter ido a nenhum concerto de música clássica, peça de teatro ou livraria (e mesmo aos museus, afirma só ter ido na última semana antes do retorno). Pondera, por outro lado, como a forte presença da contracultura conduzia mais aos shows de rock e ao Eletric Cinema274 que aos outros programas culturais. Sobre isso, pergunta-se o que fora feito “do menino que, em Salvador, ia ver tudo que podia no salão nobre da reitoria e na Escola de Teatro?”. Assim, posto de novo diante de uma cidade de grande efervescência cultural – a Londres da virada dos anos 1960 para os 1970 –, Caetano evidencia uma postura completamente diversa, o que enfatiza seu

274 Cinema tradicional do bairro de Notting Hill, localizado exatamente na Portobello Road. 332

desinteresse e seu desânimo, mas também certa obliteração de um traço relevante de sua personalidade. É preciso, no entanto, notar um dado curioso no fragmento: se, por um lado, esse quadro intensifica o retrato da tristeza e da apatia provocadas pela prisão e pelo exílio, por outro, revela-se também a presença mais contundente, naquele momento, da música pop e do cinema no período londrino. Aliás, o autor também dá destaque à televisão (a TV a cores começava a se popularizar), aos documentários da BBC e ao o surgimento do Monty Python. Assim, o desinteresse pelos elementos da dita “alta cultura” aparece paralelo a um maior interesse pelas formas de entretenimento vinculadas à cultura de massas. O fragmento a seguir é, porém, contundente em relação a seu estado geral: Eu simplesmente não tinha forças para esboçar um gesto livre. A campainha que soou antes que eu adormecesse na manhã em que os policiais me levaram me marcou tão fundamente que eu tremia ao som da campainha da casa de Chelsea. [...] Ficava em casa ouvindo Gil tocar, tocando eu mesmo às vezes, vendo televisão, lendo e, sobretudo, conversando com as pessoas que apareciam. Nessas conversas eu me mostrava descuidadamente falante, mas minhas alegrias não duravam até eu pôr a cabeça no travesseiro. Sempre havia do que me envergonhar. E eu não sabia como fazer esforço para progredir. (VELOSO, 2008, p. 416)

Assim, o exílio vem somar-se à prisão em um conjunto de sofrimentos que ganha ênfase na seção “London, London”. O retrato do medo, da dor e da vergonha faz parte de um relato íntimo que, novamente, apresenta latente conteúdo político, ao dar dimensão do que pode significar a condição de um exilado nessas circunstâncias. Além disso, a ponderação sobre outros personagens que passaram tormentos ainda maiores ou mais longos, posta na introdução de “Barra 69” (o primeiro capítulo da parte 4), acaba reverberando também nesse segmento. O quadro de tristeza e apatia só começaria a mudar, segundo o autor, em 1971, segundo seu relato em “Ame-o ou deixe-o”. Nesse sentido, o estimulante trabalho com o disco Transa e a primeira visita ao Brasil naquele ano funcionam como marcos dessa mudança: “passei a amar o verde dos parques, a calma das ruas em forma crescente, das vielas, os musgos e as flores, enfim, a sabedoria de vida que há ali, de forma genuína e intensa”275. A descrição lírica da cidade de Londres começa, especialmente, com a oscilante expectativa de voltar ao Brasil.

275 VELOSO, 2008, p. 449. 333

4. A luta armada

Carlos Marighella foi uma das figuras mais emblemáticas da resistência armada contra a ditadura civil-militar do Brasil. Em fevereiro de 1968, fundou a Ação Libertadora Nacional (ALN) e, em junho de 1969, publicou o célebre Minimanual do guerrilheiro urbano. Em novembro do mesmo ano, acabou sendo morto em uma emboscada conduzida pelo delegado Sérgio Fleury. No mesmo mês, a revista Fatos e Fotos publicou, na capa, uma grande foto de Caetano e Gil, sorridentes, com o Big Ben ao fundo, e a legenda “Caetano e Gil de Londres – Aquele abraço”. Na mesma capa, na parte de cima, lia-se na manchete principal – “Marighela: a morte de um terrorista”, com uma pequena foto em preto e branco que o mostrava morto.276 Essa edição da revista, de grande vendagem na época, contribuiu para construir no Brasil uma imagem aprazível do exílio de Gil e Caetano. Em uma das passagens, a reportagem afirma que os artistas já estavam há três meses em Londres, haviam alugado uma casa de três andares em Chelsea, estavam aprendendo inglês, dormindo cedo e trabalhando muito. Numa das páginas, lê-se a manchete “Para Caetano, Londres é uma boa cidade para clínica de repouso; Salvador, Gal Costa, Pituba e o Varanda são as grandes saudades”. Apesar da ironia amarga de Caetano, a foto dos amigos abraçados (e Gil muito sorridente) relativiza o tom da afirmativa. Em outra página, a manchete é “Gilberto Gil continua metafísico e o que mais o preocupa em Londres é não existir um c cedilha em sua máquina de escrever”. A capa dessa revista é comentada também no capítulo “London, London”, quando Caetano narra que, depois de vê-la, enviou a O Pasquim “um longo e amargurado texto que terminava com a afirmação: “Nós estamos mortos: ele está mais vivo do que nós”277. A referência aqui é à edição de 27 de novembro de 1969 do periódico. O contexto mais amplo da frase é o seguinte: O Rei esteve ontem aqui em casa e eu chorei muito. Se você quiser saber quem eu sou eu posso lhe dizer: entre no meu carro, na estrada de Santos você vai me conhecer. Talvez alguns caras no Brasil tenham querido me aniquilar; talvez tudo tenha acontecido por acaso. Mas eu agora quero dizer ‘aquele abraço’ a quem quer que tenha querido me aniquilar porque o conseguiu. Gilberto Gil e eu enviamos de Londres aquele abraço para esses caras. Não muito merecido porque agora sabemos que não era tão

276 As imagens da revista estão disponíveis em http://produto.mercadolivre.com.br/MLB-727653014-fatos-e- fotos-459-nov69-caetanogilcopacabanamarlene-_JM. Último acesso: janeiro/ 2016. 277 VELOSO, 2008, p. 418. 334

difícil assim nos aniquilar. Mas virão outros. Nós estamos mortos. Ele está mais vivo do que nós.278

A alusão à visita de Roberto Carlos a casa de Chelsea, no final de 1969, deu-se, portanto, na mesma época em que a revista publicou a foto de Marighella morto. Assim, no primeiro ano do exílio (o mesmo da prisão), a sensação de aniquilamento apresenta registro mais contundente. No entanto, o “Ele” implícito que está “mais vivo” que Caetano e Gil representa uma declaração de solidariedade ao guerrilheiro. Por isso, na sequência do relato de Verdade tropical, o autor pondera sobre a luta armada: Sem que eu estivesse certo do que poderia resultar de uma revolução armada, o heroísmo dos guerrilheiros como única resposta radical à perpetuação da ditadura merecia meu respeito assombrado. No fundo, nós sentíamos com eles uma identificação à distância, de caráter romântico, que nunca tínhamos sentido com a esquerda tradicional e o Partido Comunista. Nós os víamos – e um pouco nos sentíamos – à esquerda da esquerda. (VELOSO, 2008, p. 418)

O fragmento reitera a oposição à visão nacional-popular da esquerda tradicional, e sinaliza uma identificação relativamente maior com a luta armada, em especial, em relação ao radicalismo que faz Caetano Veloso associar os tropicalistas a um ponto extremo da esquerda. Apesar disso, é importante observar que o autor relativiza a simpatia pelos guerrilheiros, não só pondo em questão o hipotético resultado de uma revolução de caráter socialista, mas também dimensionando seu entusiasmo por meio de expressões como “respeito assombrado”, “identificação à distância” e “caráter romântico”.279 Vale sublinhar que o tema da luta armada já havia aparecido em dois outros momentos do livro, ambos no capítulo “Divino maravilhoso”: O Partidão era careta. [...] A revolução cubana, que nos aparecia como uma promessa de socialismo mulato nos trópicos, sem as sombras cinzentas da Europa do Leste, não contara em Cuba com o apoio do PC. Acreditávamos [...] que os estudantes franceses, brasileiros e americanos, em sua identificação com Fidel contra o PC – e com Guevara contra Fidel –, curassem as esquerdas da doença senil do comunismo ortodoxo. (Ibidem, p. 310)

278 http://revistaforum.com.br/digital/111/a-transa-entre-nos-e-caetano/ 279 José Celso Martinez Corrêa registra simpatia semelhante, tendo colaborado de forma mais concreta com a luta armada, segundo relata em entrevista a Miguel de Almeida: “... eu tinha apoiado, por exemplo, a Dulce Maia, que fazia assalto a banco com o Volks da produção; era a produtora executiva do Roda viva, e, às vezes, eles guardavam armas aqui no teatro, era toda uma promiscuidade, havia um apoio, eu havia abrigado pessoas em casa...” (apud ALMEIDA, 2012, p. 79) e, depois, “Tudo que era contra a ditadura eu topava, e cheguei a pensar em luta armada, mas eu não tinha coragem, porque gostava muito de viver, eu pensava que seria uma solução, mas achava que não seria capaz de pegar numa arma, de atirar, que não era para mim, defendia, mas eu jamais pegaria numa arma...” (Ibidem, p. 80) 335

E, ainda na mesma seção:

Nossa simpatia íntima e mesmo secreta por Marighella e os incentivadores da luta armada – embora nossa admiração por Guevara tivesse sido sugerida na canção “Soy loco por ti América – não era do conhecimento nem dos radicais nem dos conservadores. (Ibidem, 336)

No primeiro fragmento, quando se refere à possibilidade de um “socialismo mulato dos trópicos”, Caetano Veloso está indicando a hipótese atraente de uma versão latinoamericana do socialismo, uma vez que esta poderia contemplar as questões raciais, culturais e anticoloniais que transcendem a matriz teórica europeia do marxismo-leninismo ou mesmo sua aplicação a partir do paradigma da União Soviética. A não adesão do Partido Comunista à luta cubana soma-se, então, ao conjunto das críticas à esquerda tradicional, apontada em Verdade tropical como ortodoxa, esquemática e “careta”. No contexto do capítulo em que esse juízo é feito, critica-se a posição dessa esquerda frente às mudanças comportamentais dos anos 1960 (especialmente em relação à liberdade sexual e à afirmação racial), mas também no que se refere ao vínculo entre estética e política que leva à rejeição da cultura de massas internacional (de Hollywood ao rock’n’roll) sob o rótulo de imperialismo. Por fim, Caetano também faz objeção à tentativa de impor um modelo pronto e pouco flexível de soluções para os problemas específicos do Brasil (e da América Latina). No segundo fragmento, é possível estabelecer um vínculo entre a simpatia declarada a Marighella (em Verdade tropical dos anos 1990, mas também no artigo para O Pasquim ainda em 1969) e a admiração por Che Guevara (sugerida na canção de Gil, Torquato e Capinan, gravada ainda no primeiro disco tropicalista de Caetano Veloso em 1967, antes, portanto, do acirramento do regime com o AI-5). “Soy loco por ti América”, identificada por Augusto de Campos como a tradução de uma doutrina anti-Monroe (“A América para os latinoamericanos”), faz a seguinte referência: El nombre del hombre muerto Ya no se puede decirlo, quién sabe? Antes que o dia arrebente Antes que o dia arrebente El nombre del hombre muerto Antes que a definitiva noite se espalhe em Latinoamérica El nombre del hombre es pueblo El nombre del hombre es pueblo

Soy loco por ti, América Soy loco por ti de amores

336

Espero a manhã que cante El nombre del hombre muerto Não sejam palavras tristes Soy loco por ti de amores Um poema ainda existe Com palmeiras, com trincheiras, canções de guerra, Quem sabe canções do mar Ai, hasta te comover Ai, hasta te comover280

A morte de Che Guevara, em 9 de outubro de 1967, aconteceu, portanto, no mesmo período em que o tropicalismo musical estava eclodindo. A letra faz referência indireta ao guerrilheiro cubano, de modo que a interdição de seu nome serve como sugestão das limitações à liberdade de expressão e das perseguições às ideias socialistas. A homenagem consolida-se na identificação de seu nome como metonímia do “povo”, apontando Guevara como uma espécie de herói épico, ao mesmo tempo em que se sublinham seus vínculos com o ideário da esquerda. Seu heroísmo relaciona-se, afinal, com a luta para que a “definitiva noite” não se instale na América Latina, isto é, contra a perpetuação da miséria, da violência e da opressão que têm origens coloniais (e que também se vinculam aos governos autoritários de direita, seja o que foi derrubado pela Revolução Cubana, seja o que havia se instalado no Brasil). É preciso chamar atenção também para o imaginário da tropicalidade que é acessado com a imagem das “palmeiras”, que, na canção, mistura-se à das “trincheiras” (inclusive por sugestão sonora), além da oposição entre as “canções de guerra” e as “canções do mar”, que reverbera o par anterior (o “mar”, todavia, abre-se semanticamente entre o simbolismo das belezas naturais dos trópicos e da própria violência da colonização trazida pelas caravelas). Assim, Brasil e Cuba aproximam-se também nesse sentido, o que potencializa ainda mais a pertinência de sua evocação em uma canção tropicalista, presente desde o primeiro disco de Caetano Veloso depois da virada do movimento281. Talvez caiba aqui uma breve digressão, voltando a Marighella. Para o disco Abraçaço (de 2012, portanto bem depois do livro), Caetano Veloso compôs uma canção em homenagem ao guerrilheiro, intitulada “Um comunista”. A letra oferece uma leitura

280 http://www.gilbertogil.com.br/sec_disco_interno.php?id=29. 281 No disco Uns (1983), Caetano volta a se dizer comovido com a Revolução Cubana, faz novas aproximações entre Cuba e Brasil (inclusive mencionando questões raciais e religiosas), e volta brincar com a mistura das línguas: “Mamãe, eu quero ir a Cuba/ Quero ver a vida lá/ la sueño uma perla encendida/ sobre la mar/ mamãe, eu quero amar/ a ilha de Xangô e Yemanjá/ Yorubá igual a Bahia/ desde Célia Cruz/ cuando eu era un niño de Jesus/ e a revolução/ que também tocou meu coração/ Cuba seja aqui/ essa ouvi dos lábios de peti/ desde o cha-cha-cha/ mamãe eu quero ir a Cuba/ e quero voltar”. 337

complexa do personagem, na medida em que as questões do comunismo são atravessadas por componentes raciais, regionais e culturais. Além disso, a fusão de “tédio”, “horror” e “maravilha” cria um matiz muito específico para pontuar o “respeito assombrado” que o autor tinha pela luta armada. A recorrência da identificação do “mulato baiano” retoma o interesse por um “comunismo mulato dos trópicos” e começa a ser construído justamente a partir do dado da miscigenação. Nesse sentido, louva-se também o fato de que “o mulato baiano já não obedecia/ às ordens de interesse vindas de Moscou”, indicando uma autonomia em relação a esse centro, que reverbera na crítica à submissão do Partido Comunista a um esquema prévio que vinha de fora. Na canção, traça-se uma linha narrativa que passa pela inserção de Marighella no contexto mundial das lutas dos comunistas e da Guerra Fria, e, depois, especificamente, por suas prisões, por sua perseguição e, enfim, por seu assassinato em São Paulo. Além disso, a letra faz alusão ao artigo de O Pasquim, enviado por Caetano do exílio. Assim, “Um comunista” retoma a homenagem daquele momento, ainda que sublinhe as desconfianças e os distanciamentos do autor em relação à luta armada. Do mesmo modo, é interessante observar a ressalva às “nações-terror que o comunismo urdia”, referindo-se à violência e ao autoritarismo de experiências socialistas, sem, no entanto, se identificar com a oposição a estas, cuja luta se dava por outros interesses. Vale também notar a anteposição do verso “vida sem utopia não entendo que exista” a “assim fala um comunista”, fazendo com que o sujeito da canção primeiramente se identifique com a frase e, logo em seguida, dela se distancie ao caracterizá-la como um modo de falar de um “comunista”. Além disso, a concessiva “muito embora não creia em violência e guerrilha”, retoma o caráter romântico de sua simpatia pela luta armada. É também intrigante o uso do verbo “guardar” no refrão “os comunistas guardavam sonhos”, na medida em que o verbo adquire o sentido de defender, vigiar, proteger, zelar; por outro lado, o que se defendia eram os “sonhos”, sinalizando também o caráter utópico de sua luta. Por fim, deve-se observar a generalização de Marighella como um comunista (como tantos outros que aderiram à luta romântica em defesa de uma sociedade mais justa). Entre a adesão e a crítica, Caetano vai tecendo e reiterando sua simpatia romântica pelo heroísmo dos guerrilheiros.

338

5. A linguagem universal

O fato de Caetano Veloso ter feito letras em inglês para seu disco de 1971 estabelece o nexo com o capítulo seguinte, “Língua”, no qual o autor reflete sobre a língua inglesa como meio de comunicação internacional, instrumento de dominação, mas também língua da cultura de massas, sendo permanentemente ouvida, embora de forma ininteligível para muitas pessoas (o narrador chega a falar que o inglês lhe parecia “canino”, aproximando sua sonoridade de latidos e grunhidos – isso dito em um livro para o público do New York Times soa como um índice de provocação irônica e de insubordinação). Por fim, Caetano comenta a influência dos Beatles e o impacto de ter visto ao vivo uma apresentação dos Rolling Stones. Pode-se observar no capítulo uma postura que ajuda a compreender questões mais gerais de Verdade tropical. Veja-se que a identificação de uma língua como instrumento imperialista poderia levar à sua imediata recusa, bem como das formas que veicula. No sentido contrário, seria possível lançar mão da própria língua dominadora para oferecer sua crítica. Essa é a tese defendida por Caetano no capítulo: Se o rádio brasileiro tocava mais músicas em inglês do que em português, se os produtos, os anúncios, as casas comerciais usavam o inglês mal aprendido contra a própria opressão que o impunha a nós. Ao mesmo tempo, queria dialogar com o “mundo exterior”. Era [a canção “Lost in the paradise”] um esboço ingênuo de comunicação internacional, um modo de tentar abrir esse universo fechado que é o Brasil. (VELOSO, 2008, p. 425)

É importante perceber, de modo geral, a oposição entre a perspectiva tropicalista e as visões de esquerda que rejeitavam a influência estadunidense (ou inglesa), sob o pretexto de defender a cultura nacional do imperialismo. Assim, o tropicalismo musical quis lançar mão da “linguagem universal” (no que se refere à música pop), mesmo compreendendo perfeitamente que a ideia de “universal” está relacionada a uma forma regional que se tornou dominante e dominadora. A divergência se coloca quando os tropicalistas passam a crer que fazer uso dessa forma pode servir justamente para estabelecer outra relação com o mundo. Desse modo, o movimento ajudou a criar uma porosidade com o cenário internacional que, em última instância, vincula-se à inserção do Brasil na modernidade. É natural que a lógica aplicada para as formas musicais da canção pop (a linguagem internacional) também pudesse atingir a “língua universal”, isto é, o inglês. É assim que

339

Caetano explica o fato de já haver em seu disco de 1969 (gravado antes do exílio) duas canções nesse idioma – “Empty boat” e “Lost in the paradise”. Nessa última, o refrão pede: “don’t help me, my love/ my brother, my girl/ Just tell me your name/ Just let me say who am I”. Assim, utilizando os chavões vocativos da música comercial em inglês (e ainda reverberando “Help!”, dos Beatles), o sujeito da canção (o mesmo que diz “South America is my name”) solicita o diálogo, sem que isso represente um pedido submisso de ajuda. É novamente a voz dos trópicos que quer se afirmar diante do mundo. Aqui também está a ponte para a segunda parte do capítulo, na qual Caetano Veloso reflete sobre como o pop inglês o havia influenciado. Nesse sentido, destaca os Beatles como referência fundamental do pré-tropicalismo, que, como vale lembrar, atravessou junto com o nome de Roberto Carlos as discussões chave que começaram ainda nas reuniões de Gil. No entanto, só a ida a Londres permitiria dimensionar a importância dos Rolling Stones em sua formação (antes, o autor afirma preferir a outra banda inglesa). Depois de enumerar vários shows a que teve acesso no período londrino (incluindo Led Zeppelin, Pink Floyd, John & Yoko, Jimi Hendrix, Bob Dylan e The Who), constata: Mas os shows dos Stones eram o teatro dionisíaco. Eles entravam no palco e logo se estabelecia uma atmosfera que era a mais viva demonstração de entendimento do espírito da época e o mais forte estímulo para ampliar suas conquistas. Mick Jagger parecia uma labareda de significados cambiantes. Ele era uma mulher, um macaco, um bailarino, um atleta, um moleque, um poeta romântico, um tirano, um doce camarada. [...] Levando mais longe do que ninguém a aventura de sugerir parceria com a multidão, de compartilhar com todos as ousadias estéticas e comportamentais, supondo uma geração inteira de criadores, ele lograva ser mais diva do que qualquer Sinatra, qualquer Barbara Streisand. Ele se confundia com as pessoas, com as coisas. (VELOSO, 2008, p. 431)

O teatro dionisíaco (expressão tantas vezes utilizada por Zé Celso) se reporta ao mesmo tempo ao berço da cultura ocidental e à passagem das práticas ritualísticas às encenações teatrais, para além da associação do mito grego com o prazer, os ciclos vitais, a embriaguez, a festividade. Mick Jagger, sendo “uma labareda de significados cambiantes” está em tudo afinado com a mobilidade almejada (e praticada) por Caetano Veloso, além de o artista inglês se configurar como uma encarnação – uma manifestação – do próprio pop, da centralidade das pessoas no conjunto dos anos 1960, no século “inventado” por Andy Warhol. O autor ainda sugere a ambiguidade sexual do artista (quando o coloca como “diva” maior), também relevante para seus próprios interesses artísticos.

340

6. Cicero e Mautner

Tal como Duda Machado e Alvinho Guimarães (na primeira parte), Rogério Duarte e José Agrippino (na segunda), a quarta parte de Verdade tropical apresenta mais dois personagens fundamentais para a formação de Caetano Veloso: Jorge Mautner e Antonio Cicero. Como ambos apareceram durante o exílio londrino (na casa em Chelsea), a influência de suas ideias veio a repercutir não só no que aconteceria dali em diante, mas também na própria maneira de compreender o movimento e suas consequências. Além disso, os personagens também são apresentados na sequência do par irracionalismo/ racionalismo, não sem que Caetano complexifique seus perfis, e até os aproxime. Segundo o narrador, Mautner e Cicero teriam um “papel decisivo” na organização de seu pensamento e também em sua visão política. Na literatura, Jorge Mautner produziu a “Trilogia do Kaos”, composta pelo Deus da chuva e da morte (1962), Kaos (1964) e Narciso em tarde cinza (1966), dos quais Caetano Veloso destaca o primeiro, definido como um “romance caudaloso”. O seguinte fragmento ilustra o tom do livro e justifica seu título: Ela olhou para mim e com aqueles lábios grossos que cheiram a sexo ela disse: — “Você é o deus da chuva e da morte. Só fala nisso. Eu não sou mais tua”. E depois ela afastou-se cada vez mais de mim e sumiu lá no fim da rua. Acho que havia lágrimas nos olhos dela. Depois eu fui para casa e me deitei na cama. Liguei o toca-discos e o Rock existiu. Eu fiquei alguns minutos sem olhar qualquer coisa definida. Depois pouco a pouco comecei a olhar a veneziana do meu quarto e ela é verde e cinzenta. Não estava chovendo mas eu olhava a veneziana e comecei a pensar no que ela me tinha dito: “deus da chuva e da morte”. Era um título dado a mim e eu comecei a separar as letras e a brincar com as palavras. Era bonito e triste brincar com as palavras e dizer: “deus da morte e da chuva” ou “da morte deus da chuva e” e assim por diante. Depois eu percebi tudo. Foi só aí que eu percebi tudo. Foi de repente que eu percebi tudo. A razão da vida está na tragédia e no misticismo sexual! E a tragédia e o misticismo têm a sua base no nada. Tudo isto me cansou. Mas eu adormeci por causa do sono e havia percebido tudo282.

Curiosamente, é munido de um guarda-chuva que Jorge Mautner chega à casa de Chelsea. Assim Caetano o define: Ele misturava a jovem guarda de Roberto Carlos com a guarda vermelha de Mao, descrevia a revolução por que estávamos passando como se fosse um cataclismo universal, voltava a seu velho Marx com Nietzsche, e, depois de passar por um deprimido cenário em que o ressentimento do terceiro mundo e a arrogância do primeiro terminariam por produzir uma opressão maior do que a vivida no segundo, chegava a profecias, mais

282 http://www.pixfolio.com.br/arq/1367466722.pdf. 341

precisas [...], afirmando que as lutas políticas do futuro se definiriam, a partir dos Estados Unidos, como lutas de minorias sexuais inspiradas na ideia de direitos civis. (VELOSO, 2008, p. 434)

O caráter excêntrico de suas afirmações justifica em si a inclinação de Caetano Veloso a se deixar influenciar por suas ideias. É preciso chamar atenção também para o emprego das palavras “profecias”, contribuindo para sua aproximação com o universo da contracultura, que também encontra parentesco no “misticismo sexual” revelado pelo Deus da chuva e da morte. Além disso, a centralidade dos Estados Unidos e das ideias de direitos civis, que tiveram seu ponto alto nos anos 1960, é outro fator de interesse comum. No entanto, é preciso observar especialmente a afirmação de uma nova concepção do político e a dimensão que a questão sexual ocupa sob essa égide. Isso explica, em parte, a grande atenção dedicada por Caetano a essa temática especialmente na parte 4 do livro (e mais especificamente no capítulo “Back in Bahia”). É também notável como essa questão das “minorias sexuais” e outros vetores identitários ocuparia grande espaço nas posteriores discussões da chamada “pós-modernidade”. Outro aspecto importante diz respeito à sua reflexão sobre os perigos do autoritarismo, à direita ou à esquerda, para os quais “a democracia liberal” “aparecia como a manifestação do bom senso. Logo depois de indicar essa inclinação política, Caetano complexifica o perfil de Mautner: A democracia liberal então aparecia como a manifestação do bom senso, a única vacina contra o horror. Mas aí, ele próprio, Mautner, era um exemplo de indivíduo rebelde que, ao invés de adequar-se às convenções e ao mercado, seria sempre seu crítico, apaixonado pelos pensadores e artistas perigosos a cujas ideias não se devia dar demasiado poder formal. (VELOSO, 2008, p. 436)

Na verdade, a relação ambígua com o ideário do liberalismo serve de preâmbulo da própria caracterização política do tropicalismo, como Caetano esclarece pouco depois: Havia muito que oscilávamos, mais ou menos conscientemente, entre nos caracterizar como ultra-esquerda – a verdadeira esquerda, uma esquerda à esquerda da esquerda – ou como defensores da liberdade econômica, da saúde do mercado. No nosso próprio campo, fazíamos as duas coisas: empurrávamos o horizonte do comportamento para cada vez mais longe, experimentando formas e difundindo invenções, ao mesmo tempo que ambicionávamos a elevação do nosso nível de competitividade profissional – e mercadológica – aos padrões dos americanos e dos ingleses. (Ibidem, p. 437)

342

Assim, os tropicalistas são associados, no fragmento, a uma inclinação para a ultraesquerda comportamental e a direita econômica (veja-se que o autor evita o termo) e que a contestação contra os regimes autoritários (à esquerda ou à direita) contribui para a antipatia em relação a governos “grandes” (na esteira do pensamento de Mautner). No texto “Diferentemente dos americanos do norte”, o autor já havia sugerido suas desconfianças em relação às restrições ao liberalismo, mas também ao fato de que a questão comportamental e cultural sempre esteve para ele em primeiro plano: ... mesmo sem estudar a constituição de 88, concluo que há conquistas ali que devem ser defendidas, com unhas e dentes, contra qualquer ameaça – o exemplo indiscutível que me ocorre é a independência dada ao Ministério Público. Mas não me sinto inclinado a participar do horror ao capital estrangeiro ou da defesa das estatais. [...] Desde o tropicalismo – desde antes do tropicalismo – que me interessa saber o que o Brasil diria ao mundo se ele pudesse se fortalecer; o modelo para chegar a esse fortalecimento sendo de importância secundária. (VELOSO, 2008, p.65)

* * *

De outro lado, é especialmente importante destacar a influência do pensamento de Antonio Cicero para as ideias defendidas em Verdade tropical. Para isso, convém observar a centralidade de O mundo desde o fim, de 1995, publicado, portanto, às vésperas da escrita do livro de Caetano Veloso. Em “Afinidades eletivas”, essa obra é apresentada como um excêntrico acontecimento no mundo acadêmico brasileiro: O livro é uma afirmação radical da modernidade nascida com Descartes – contra todas as investidas antiiluministas que inspiraram grande parte do pensamento contemporâneo – e põe o Brasil na responsabilidade extrema de ser, não o grande exotismo ilegível que se opõe à razão europeia, mas o esboço aberto para a transição para (parafraseando Fernando Pessoa sobre Mário de Sá Carneiro) um Ocidente ao ocidente do Ocidente. O que não é, de modo nenhum, a mesma coisa que inibir o Brasil, como querem fazer muitos acadêmicos que se crêem antifolclorizantes, reduzindo-o a um bom comportamento dentro dos parâmetros “ocidentais” cristalizados. Com isso, Cicero destrói a falsa oposição para o Brasil entre bizarria estridente e imitação modesta. (VELOSO, 2008, p. 439)

Nesse contexto, Caetano Veloso aponta a divisão do pensamento acadêmico contemporâneo, principalmente, entre “os comentadores do marxismo frankfurtiano” (e, portanto, na esteira da Dialética do esclarecimento de Adorno e Horkheimer e sua crítica à ratio capitalista) e os comentadores do pós-estruturalismo francês (e sua consequente ligação à “pós-modernidade” nascida da virada linguística do estruturalismo). Desse modo,

343

uma defesa da modernidade (e da razão) a partir de Descartes já seria em si interessante para Caetano, por representar uma via alternativa às orientações intelectuais dominantes. Mais que isso, O mundo desde o fim atravessa várias questões fundamentais de Verdade tropical. Em primeiro lugar, sua reflexão, lúcida e serena, aponta para a busca de uma essência do agora, que seria a fonte de definição do moderno, relacionando-a diretamente ao eu que serve de sujeito ao cogito cartesiano: Sou algo que não pode ser dado sem que seja dado também este instante. Sou condição suficiente para que se dê este instante. [...] Isso quer dizer que a essência do agora sou eu. Se a modernidade é a essência do agora, então não tenho alternativa senão chegar a uma conclusão extremamente insólita. A modernidade sou eu. (CICERO, 1995, p. 20)

... é em relação a objetos ou terceiras pessoas que temos que decidir se existem – se são - ou não. [...] Por outro lado, eu, a primeira pessoa sempre sou. [...] Exatamente por isso, do ponto de vista lógico, embora não gramatical, é a primeira e não a terceira pessoa, a pessoa absoluta, a pessoa impessoal. Quando se retiram todas as pessoas, não fica uma terceira pessoa: fico eu. (Ibidem, p. 32)

Essa citação justifica a ponderação de Caetano Veloso, que mede a ousadia do livro ao pensar que a superação do cogito cartesiano consiste na motivação básica de grande parte das pretensões intelectuais e filosóficas do século XX, ao que exemplifica com a investida de Levi Strauss ao afirmar que “o eu não é simplesmente abjeto – ele também é impossível”. É justamente afirmando o “eu” na chave diametralmente oposta, que Antonio Cicero abre caminho para o desenvolvimento de sua tese. Antes de seguir, vale pontuar como a conjugação “infinitivamente pessoal” de Verdade tropical (cujo tema central é o movimento que inseriu o Brasil na modernidade musical daquele momento), reverbera, em alguma medida, na constatação de que a primeira pessoa é a chave e a fonte do conceito de moderno. No entanto, para desenvolver sua argumentação, Cicero propõe uma radicalização do pensamento cartesiano, no lugar de sua invalidação. Esse processo se dá por meio da ênfase do aspecto negativo, indicando a contingência das positividades e reforçando a centralidade do sujeito que nega (que duvida de si e do mundo que o cerca): Não chegando a conceituar a apócrise, o pensamento cartesiano clássico não pode compreender nem que a busca da certeza absoluta é homóloga à busca da essência do ser. Só a radicalização do pensamento cartesiano alcança essa essência necessária, universal, absoluta e pura que chamamos de negação negante, que constitui o fundamento negativo de todo o conhecimento. (Ibidem, p. 49)

344

A partir do conceito de apócrise283, Antônio Cicero formula uma ideia de moderno que não se confunde com as positividades (contingentes, relativas e questionáveis), mas ao “fundamento negativo do conhecimento”. Desse modo, o autor faz sua crítica do “pós- moderno”, expressão que, nesse conjunto conceitual, perderia completamente seu sentido: se o moderno não se vincula com um repertório de positividades (passíveis de serem superadas), mas com uma essência absoluta do agora (que pode fazer-se presente em qualquer tempo), não há como haver uma fase cronologicamente posterior ao “moderno” – “todo artista criativo sempre foi e é moderno”284. Assim, o autor propõe que se atribua à nossa época o título, não de pós, mas de “supermoderna”, por estarmos exatamente no período das consequências das atitudes vanguardistas (e, destarte, modernas), nas quais se valorizou justamente o aspecto da negatividade como fonte criativa e afirmação do agora. Com isso, conclui em seu texto “O agoral” (incluso em O mundo desde o fim): Negação do centro positivo, ou melhor, centro negativo do mundo, o artista, de fato – e cada ser humano, de direito – é excêntrico em relação a qualquer centro positivo, ou melhor, centro positivo ou convencional. Como poderia resultar do desejo inevitavelmente esteticista de ser contemporâneo o que só surge feito negação, intempestividade, estranheza, extemporaneidade? (Ibidem, p. 175)

Com isso, a atitude vanguardista do tropicalismo mostra estar afinada com a definição de moderno (enquanto atitude) que Cicero lhe dá, fazendo com que o Brasil encontre, enfim, seu lugar na “supermodernidade” (enquanto período), ao mesmo tempo em que abre caminho para sua inserção no cenário “pós-moderno” que descreve Mautner (embora o autor não esteja usando esse termo em sua descrição). Além disso, não seria um excesso apontar na excentricidade de cada ser humano “por direito”, afirmada pelo primeiro, e na luta por direitos civis no paradigma americano, indicada pelo segundo, o ponto de confluência no ideário pop dos anos 1960, que serve de orientação para muitas questões de Verdade tropical. Tempos depois, em “O tropicalismo e a MPB”, publicado em Finalidades sem fim (2005), Antonio Cicero reflete sobre o conceito de “linha evolutiva da canção popular”, mostrando que, em vez de uma evolução técnica, o movimento representava a “elucidação

283 “Chamo de apócrise esse movimento – ou ação de abstração absoluta – pelo qual (1) nego-me e separo- me do que [...] compreende a totalidade do que é suscetível de ser por mim negado de mim, que é tudo o que é contingente, positivo, particular, empírico etc. e (2) ponho-me como essa mesma negação do domínio noemático, isto é, como noesis, enquanto necessário, negativo, universal, puro etc.” (CICERO, 1995, p. 38) 284 Ibidem, p. 174 345

conceitual” de que a música popular brasileira não tem limites estabelecidos, rompendo com os compromissos e os fetichismos sobre formas tradicionais e “autênticas” como o samba. Ora, aqui também o que se sublinha é o caráter moderno do tropicalismo musical, que comprometido com o agora é capaz de abrir o campo de produção da canção popular. Sua conclusão é: ... não era apenas a informação da modernidade musical que ele [o tropicalismo] trazia para a MPB, mas a informação da modernidade simplesmente: a informação da modernidade musical, poética, cinematográfica, arquitetônica, pictórica, plástica, filosófica etc. Nesse contexto, a informação da modernidade deve ser entendida como desfolclorização e desprovincianização da música popular, isto é, como a sua inserção no mundo histórico em que se desdobram as artes universais: nada menos do que a proclamação de sua maioridade. (CICERO, 2005, p. 72)

Assim, a citação esclarece a abrangência do tropicalismo em relação à canção popular e a porosidade que estabeleceu com as outras expressões artísticas a partir de sua essência moderna, que a coloca em um conjunto universal e histórico justamente na medida em que mergulha na pessoalidade e na “agoralidade”. E, na comparação com a “maioridade”, não deixa de haver um eco kantiano da ideia de “emancipação” que se vincula, grosso modo, ao “esclarecimento” e, portanto, ao Iluminismo. Reconhecimento semelhante da importância do tropicalismo já era evidenciada por Cicero desde os anos 1970, o que leva Caetano a afirmar sobre a conclusão de suas conversas: Era importante que tivéssemos destronado o nacionalismo populista; era importante que considerássemos a modernidade como um valor universal e que tomássemos desafiadoramente o seu partido; era importante que algo assim ocorresse na órbita em que nos movíamos, isto é, a música popular e o show business. (VELOSO, 2008, p. 438)

Por fim, um dos textos publicados também em O mundo desde o fim pode ser visto no substrato de algumas passagens de Verdade tropical, a começar da própria apresentação que Caetano faz do livro, citada há pouco. Trata-se de “Brasil feito brasa”, pronunciado em Frankfurt em 1994. O texto começa falando na exuberância da natureza tropical do país ao que se segue a afirmação da extravagância também de sua natureza humana, indicando a diversidade “estonteante” dos brasileiros – “A biodiversidade, se tomada também no sentido antropológico [...] é de fato a característica mais marcante do Brasil”.285 É também desse texto o já referido comentário sobre as reservas de alguns pensadores “moralistas” em relação ao homem tropical e ao escândalo que provoca uma

285 CICERO, 1995, p. 194. 346

natureza humana e não-humana tão “superabundantemente polimórficas”. É nesse ponto que Nietzsche os critica, perguntando-se em favor de que se faz essa contestação; isto é, o filósofo indica que não haveria sentido em pregar como positiva a uniformização física e moral dos povos temperados. Essa citação, como já vimos, é aplicada diretamente à afirmação do termo “tropicalismo” em Verdade tropical como revelador de um movimento cuja motivação íntima era assumir “a responsabilidade pelo destino do homem tropical”, buscando um “dínamo escondido que desencadeasse uma resposta histórica para uma pergunta semelhante à de Nietzsche”. É, portanto, no texto de Antonio Cicero que estão postos os parâmetros dessa conclusão. O autor continua sua argumentação observando como os racismos, os nacionalismos e os fundamentalismos são produtos da tentativa de negar o caráter “acidental, contingente e relativo de fronteiras, horizontes, crenças, religiões, totens, tabus, costumes, tradições, valores, culturas, etnias, nações, mundos etc”, ao que conclui sobre o Brasil: Para ele [o brasileiro], a afirmação da acidentalidade, da contingência e da relatividade das identidades positivas e particulares que entram em sua composição se dá como fundamento essencial, necessário e absoluto de sua nacionalidade. Com isso, a cultura brasileira não pode ser senão uma espécie de metacultura; a raça brasileira, de meta-raça; e a nação brasileira, de meta-nação. Nesse sentido, a originalidade desse país – um pouco feito a singularidade do Ocidente, para Max Weber – não deve ser buscada na particularidade dele mas no seu modo de ser universal. (CICERO, 2005, p. 199)

Cicero, no entanto, pondera como a desigualdade social (também mencionada na “Intro” de Verdade tropical) e as relações de opressão e de exclusão (de raças, religiões, culturas etc) caminham exatamente no sentido contrário da afirmação do potencial do Brasil (de afirmar sua singularidade a partir da diversidade, do sincretismo e da criatividade). Seria necessário, para tanto, que as leis se aplicassem e que o Estado deixasse de atuar segundo o interesse de grupos particulares. As lutas contemporâneas contra as exclusões (não só de ordem econômico-social, mas as discussões sobre raça, religião, cultura, gênero e sexualidade), que, segundo o autor, tendem a se aprofundar (e aqui as lutas identitárias apontadas por Mautner e a afirmação das individualidades sugeridas pelo imaginário pop caminham nesse sentido), o que lhe dá a esperança de que o Brasil poderá um dia se realizar em sua potencialidade.

347

O tropicalismo musical (e a Tropicália de modo geral) apontando para nossa vocação da diversidade, para o sincretismo e para a inclusão de manifestações culturais, observando as questões supracitadas das lutas sociais e, por fim, inserindo o Brasil na modernidade por meio de uma linguagem universal, acaba tocando em questões fundamentais da tese defendida por Cicero. E, mais que isso, seu empenho no período após o auge do movimento no sentido de lutar pelo respeito às leis (inclusive as de trânsito, que são preocupação também de Cicero) e pelos direitos humanos também podem ser vistas por esse prisma. Assim, muito do que se discute em Verdade tropical é um reflexo não apenas de O mundo desde o fim, mas das muitas conversas que se travaram entre Caetano e Cicero a partir do encontro no exílio londrino, ainda nos anos 1970. É aqui também o ponto que aproxima os dois personagens desse capítulo. A tese que fica claramente defendida em O mundo desde o fim (especificamente em “Brasil feito brasa”), segundo Caetano Veloso, situa Antonio Cicero em sua imaginação “não distante do transliberalismo delirante – e com batuque” de Mautner. Assim, a lição política desses autores leva a outra combinação entre as mudanças comportamentais (e, especialmente, a abordagem das questões raciais, culturais, sexuais e religiosas) e os componentes político- econômicos (mas também de justiça social e de respeito às leis) que podem participar da afirmação do Brasil como um Ocidente ao ocidente do Ocidente.

7. Duas visitas ao Brasil

Durante seu período de exílio, Caetano Veloso faz duas visitas ao Brasil, uma em janeiro de 1971 (em razão das bodas de 40 anos de casados de seus pais), e a outra em agosto do mesmo ano, atendendo a um convite de João Gilberto; ambas são narradas no capítulo “Ame-o ou deixe-o”, em referência ao governo de Garrastazu Médici de outubro de 1969 a março de 1974. Assim, sob o pano de fundo do ufanismo do regime ditatorial e do “milagre econômico” (e do tricampeonato da seleção brasileira de 1970), Caetano Veloso conta esses episódios, e também descreve o contexto do “pós-tropicalismo”, usando a já discutida classificação que reforça a centralidade do movimento por ele protagonizado. A primeira visita é bastante conturbada. Caetano conta que logo que saiu do aeroporto no Rio de Janeiro, foi conduzido por policiais à paisana a um longo interrogatório de mais de seis horas, com várias ameaças e com a exigência de que

348

compusesse uma canção de propaganda da Transamazônica, uma das obras faraônicas que o regime utilizava como propaganda (Caetano conseguiu se desobrigar dessa tarefa). A imposição final para sua estadia incluía a aparição em dois programas de televisão, o Som Livre Exportação e o programa do Chacrinha. O autor narra ainda que, na ida para a casa de Bethânia, avistou do carro os integrantes do grupo MPB-4, as primeiras pessoas conhecidas que via desde sua chegada. Caetano explora o valor simbólico de encontrar justamente pessoas da canção popular e, mais especificamente, o grupo que usava como legenda a sigla da música popular brasileira. De outro lado, em Salvador, outra coincidência (porém, desagradável) se colocava: tendo aceito uma carona do noivo de uma das irmãs de Dedé, Caetano acabou entrando em um carro que ostentava um adesivo com o slogan “Ame-o ou deixe-o”286, o que dá margem para um comentário mais amplo sobre a situação dos exilados naquele período. Sobre suas aparições televisivas, Caetano Veloso dá destaque ao programa Som Livre Exportação, no qual apareceu ao lado de Maria Bethânia. Sobre isso, relata: Tinha se passado mais de um ano da minha saída e eu me via frente a frente com o pós-tropicalismo. Os garotos nus da cintura para cima e as garotas de cabelos longos e lisos ovacionaram meu nome. Eles mostraram esperar de mim uma versão mais madura e mais sofisticada daquilo que estavam aprendendo a cultuar: uma fusão do pop inglês com o samba- jazz-carioca. Entrei apenas com meu violão e cantei “Adeus, batucada”, o genial samba de Sinval Silva que fora a mais bela gravação de Carmen Miranda. (VELOSO, 2008, p. 446)

No fragmento, percebe-se primeiramente a adoção do termo “pós-tropicalismo”, indicando que a narrativa de Verdade tropical utiliza o movimento como um divisor dos contextos culturais. Além disso, Caetano Veloso afirma decepcionar esse público ao fugir da expectativa gerada pelas aberturas propiciadas pelo tropicalismo musical. No entanto, cantando uma canção de Carmen Miranda, o artista estava evocando um símbolo fundamental do movimento, além de estar aludindo ao próprio contexto do exílio, ressignificado pela canção “Adeus, batucada”, mas também pelo fato de ser a artista uma espécie de “exilada” da canção popular brasileira, conforme já discutimos.

286 Caetano Veloso fez, posteriormente, uma inversão poética do slogan numa canção gravada no disco Doces bárbaros de 1976, que se chama “O seu amor”, e que comove pela conversão do lema autoritário em uma afirmação dos vínculos entre o amor e a liberdade. Formalmente, isso é viabilizado pela polissemia do verbo “deixar” e pela troca da conjunção alternativa “ou” pela aditiva “e”: O seu amor/ ame-o e deixe-o livre para amar”, “o seu amor/ ame-o e deixe-o ir aonde quiser”, “o seu amor/ ame-o e deixe-o brincar/ ame-o e deixe-o correr/ ame-o e deixe-o cansar/ ame-o e deixe-o dormir em paz” e “o seu amor/ ame-o e deixe-o ser o que ele é”. 349

Entre as visitas, o autor comenta superficialmente o lançamento do disco Caetano Veloso de 1971 e fala no convite feito a Jards Macalé para participar (e para fazer a direção musical) de Transa. O músico não só havia apresentado a canção “Gotham City” (nova incorporação do Batman, depois de “Batmacumba”) no IV FIC da TV Globo de 1969 com performance próxima às investidas tropicalistas dos festivais (recebendo vaias e críticas similares), como também se fez presente no disco Fa-tal – a todo vapor de 1971 (as parcerias com Waly Salmão em “Vapor barato” e “Mal secreto” e com Duda Machado em “Hotel das estrelas”), inserindo-se no contexto das continuidades do movimento. Transa, apesar de ser considerado um dos melhores discos de Caetano Veloso (não raro, apontado como efetivamente seu melhor trabalho), é comentado de forma superficial no livro. O capítulo, mais ocupado em narrar como essas visitas conduziriam ao retorno do exílio, passa direto da criação do disco para o prenúncio do convite de João Gilberto para o especial na Tupi, ao lado de Gal. Segundo o relato, Caetano teria ponderado as dificuldades de sua última visita, poucos meses antes, ao que o inventor da bossa nova teria respondido: “É Deus quem está me pedindo para eu lhe chamar. Ouça bem: você vai sair do avião no Rio, todas as pessoas vão sorrir para você. Você vai ver como o Brasil te ama.”287. A confirmação da “profecia” de João Gilberto (de fato, tudo aconteceu de modo diferente da visita anterior) insere-o narrativamente em outro momento crucial da narrativa, não só porque essa apresentação (e essa proximidade) confirmava e superdimensionava a admiração pelo artista, mas também porque se relaciona a outro momento em que o misticismo e a realidade se tensionavam, frente à dimensão mítica de João Gilberto: Eu olhava para João com assombro multiplicado. Ele sempre fora meu herói brasileiro, meu artista preferido na música popular moderna, mas essa ligação mágica com minha volta ao Brasil dava a ele um caráter quase sobrenatural. [...] Tal como tantos outros músicos, João se refugiava em alguma espécie de misticismo (ioga, não sei), mas a impressão que me ficava era a de que ele sabia tanto quanto eu que o que ele produzia era algo maior do que quaisquer misticismos. De todo modo, eu não podia deixar de atribuir algum valor mágico às suas profecias referentes àquela minha vinda ao Brasil. (VELOSO, 2008, p. 451)

287 VELOSO, 2008, p. 450. 350

8. Atrás do trio elétrico

Assim que chegou ao Rio, em janeiro de 1972, Caetano Veloso apresentou o show de Transa, conforme conta ainda no final de “Ame-o ou deixe-o”. A ida a Salvador para passar o carnaval é o episódio central de “Back in Bahia” (nome da canção sobre o retorno do exílio feita por Gil, lançada no mesmo ano, no disco Expresso 2222). Apesar de haver ainda “Araçá azul”, esse capítulo parece sintetizar algumas questões importantes e abrir uma chave de leitura sobre o Brasil. O capítulo começa pela explicação sobre o surgimento do trio elétrico em Salvador, no final dos anos 1940, inventado por Dodô e Osmar. De outro lado, comenta o arrefecimento das canções de carnaval do Rio de Janeiro e a tentativa de retomar o gênero. Nesse contexto, Caetano aponta o sucesso nacional conseguido por sua canção “Atrás do trio elétrico” no carnaval de 1969, justamente aquele em que o artista se encontrava preso. Além dessa, o autor afirma que “Chuva, suor e cerveja”, gravada em Londres, também tinha conseguido grande êxito288. Dito isso, Caetano narra seu reencontro com o carnaval a partir do aparecimento de um trio elétrico em forma de nave espacial, intitulada “Caetanave”, que começou a tocar “Chuva, suor e cerveja” e, de fato, foi acompanhada por uma grande chuva, segundo narra: A multidão começou a cantar e dançar sob a chuva e eu, chorando e rindo, vi inscrita no flanco anterior do “foguete”, a palavra inventada pelo pessoal do trio cujo caminhão agora passava bem perto de nós, subindo para a rua Chile: CAETANAVE. O gosto tão tropicalista pelos trocadilhos, por causa da poesia concreta (Joyce!) e dos filmes de Godard, retomado assim pela graça ingênua das pessoas da Bahia, me tocou. Além disso, a imagem da espaçonave, que trazia a mitologia das viagens espaciais tão típica daquela época; o renascimento da grande canção de Carnaval se dando por meu intermédio; o milagre da chuva; tudo compunha uma festa completa de recepção para mim por parte do Brasil que me falava direto ao fundo do imaginário. (VELOSO, 2008, p. 457)

Assim, a recepção do Brasil prenunciada pela canção de Roberto e Erasmo (“janelas e portas vão se abrir pra ver você chegar/ e ao se sentir em casa, sorrindo vai chorar”), acabou acontecendo sob a forma de carnaval. No fragmento citado, também é

288 Em 1971, Caetano Veloso gravou um compacto chamado O carnaval de Caetano, que apresentava como primeira faixa justamente a canção “Chuva, suor e cerveja”. Em 1977, Caetano lançou um disco só de canções carnavalescas, chamado , que, além de “Atrás do trio elétrico” e “Chuva, suor e cerveja”, ainda apresentava canções como “Muitos carnavais”, “Um frevo novo” e “A filha da Chiquita bacana”. 351

possível observar os encontros entre o recôncavo e o reconvexo, e entre os diferentes estratos de cultura, de modo a permitir a relação entre a cena e o tropicalismo musical. É preciso pontuar como Caetano Veloso evidencia aqui sua importância também para a trajetória da música carnavalesca, num traçado que se originou nas marchas de carnaval cariocas desde os tempos do rádio (e aqui também se faz latente a lembrança de Carmen Miranda), passando pelo surgimento dos trios elétricos em Salvador, e um seguinte arrefecimento justamente na geração pós bossa nova dos anos 1960, para, enfim, chegar a sua retomada, novamente a partir do artista (segundo seu relato). Caetano já havia comentado, em outro momento, a importância de Gilberto Gil para o ressurgimento dos afoxés na Bahia (que também estavam em fase de declínio), quando, também nos anos 1970, Gil compôs “Filhos de Gandhi” (gravada por Maria Bethânia em 1973 e pelo próprio compositor em 1975). Segundo o autor: Isso estimulou o surgimento de novos afoxés que, por sua vez, já incluindo temas de afirmação racial em caráter político, deram lugar ao nascimento de blocos afro como o Ilê Ayê e o Olodum289, hoje conhecidos nacional e internacionalmente pela vigorosa originalidade de suas baterias. (VELOSO, 2008, p. 283)

Assim, o início dos anos 1970 aparece como o início da revitalização do carnaval de Salvador, com todas as suas implicações culturais, raciais e sociais290. Mais uma vez, Caetano e Gil atravessam um momento crucial da canção brasileira, o que é reivindicado pelo autor de Verdade tropical, especialmente nessa altura do relato. Aliás, na conclusão do livro, Caetano vê também com muito interesse “o estouro comercialesco do pop carnavalesco baiano”, que começa nos anos 1980 e que carrega, desde a designação de “axé music” os indícios de questões tropicalistas, não só entre a cultura afrobrasileira e a cultura pop internacional291 como também entre a música sofisticada e a canção comercial,

289 No disco Cores, nomes (1982), Caetano gravou uma canção que saudava o Ilê Ayê. “Um canto de afoxé para o bloco do Ilê” (parceria com Moreno Veloso) afirma: “Ilê aiê, como você é bonito de se ver/ Ilê aiê, que beleza mais bonita de se ter/ Ilê aiê, sua beleza se transforma em você/ Ilê aiê, que maneira mais feliz de viver”. Em 1999, Caetano faz uma participação no álbum Olodum 20 anos, cantando com o grupo sua “Lua de São Jorge”. No final da canção, afirma: “Olodum 20 anos. Parabéns, Bahia. Parabéns, Brasil. O maior país negro fora do continente africano. Olodum: a maior democracia racial do mundo”. 290 Caetano Veloso comenta o mesmo assunto no texto “Diferentemente dos americanos do norte”, quando afirma: “o fato de uma canção como ‘Filhos de Gandhi”, de Gil, ter desdencadeado, por sua beleza específica, uma avassaladora mudança da postura do negro na Cidade da Bahia, fazendo renascer aquele afoxé quase extinto e multiplicando o surgimento de outros, é, para mim, de grande importância como sugestão de para onde dirigir a ambição”. (VELOSO, 2005, p. 69). 291 É muito emblemático pensar que, nos anos 1990, no auge da axé music, Michael Jackson (uma das grandes encarnações do pop) gravaria um clipe junto com o Olodum – “They don’t care about us”, dando ainda mais visibilidade internacional ao grupo. 352

e, por fim, no próprio gesto de assumir a versão brasileira festiva e alegre pela qual o país é conhecido no mundo. Na sequência do relato, Caetano sobe no trio para agradecer e é surpreendido por uma esperança que havia pousado em seu braço, o que permite o gracejo (dirigido justamente para o místico Roberto Pinho): “Então há esperança”. Em seguida, sob uma camada de humor, conta a cena da passagem da “nave espacial” na frente da casa onde Gil também estava hospedado, surpreendendo o artista: Quando me viu descer do objeto estranho do qual o som trepidante provinha, entendeu antes de tudo que a magia e o ordinário se reafirmavam mutuamente, que o simbólico e o empírico não precisavam ser destinguidos um do outro – que, naquele momento forte, o mito vinha fecundar a realidade. (VELOSO, 2008, p. 458)

O conjunto da cena permite a conclusão de Caetano sobre a existência de forças regeneradoras na cultura brasileira, que sempre fazem com que mantivesse suas apostas no Brasil. Toda essa parte funciona como uma espécie de desfecho otimista para a narrativa sobre o tropicalismo, chegando a uma síntese sobre a dialética entre misticismo e realidade – a magia e o ordinário –, incidindo especialmente sobre o carnaval do Brasil (e sua força de fantasia, de afirmação social, de identidade do país) e sobre o contexto dos sonhos tecnológicos do Terceiro Milênio. Nesse conjunto, reverbera o poema de Fernando Pessoa – “o mito é o nada que é tudo”.

9. Araçá é brinquedo

No final de “Back in Bahia”, o autor relata que Leon Hirszman havia terminado em 1971 de rodar o filme São Bernardo, baseado na obra homônima de Graciliano Ramos. O diretor, então, fez o convite a Caetano Veloso para fazer a trilha sonora, que se tornou um desafio na medida em que o escritor (assim como João Cabral) não gostava de música. O cineasta Nelson Pereira dos Santos já havia equacionado o problema, quando utilizou o som do ranger da roda do carro de boi como trilha de sua adaptação de Vidas secas de 1963. Leon acreditava haver semelhanças entre essa solução e os grunhidos na gravação de Caetano Veloso de “Asa branca”. O diretor pediu, então, que Caetano fizesse improvisações conforme fosse vendo as imagens. Nesse ponto, abre-se o caminho para o capítulo seguinte: Achei o filme de Leon muito bonito – como são todos os filmes que ele fez – e acima de tudo encontrei na colaboração com ele um novo começo

353

para meu próprio trabalho. Não é nada desprezível o fato de, mais uma vez, a indicação de caminhos me ter vindo do cinema – e do Cinema Novo brasileiro, essa experiência tão congenial ao próprio Brasil, por ser sempre uma aventura ao mesmo tempo frustra e grandiosa. (VELOSO, 2008, p. 475)

O episódio revela um interessante ponto de cruzamento. Em primeiro lugar, Caetano observa como a narrativa sobre o tropicalismo musical começa na abertura de caminhos propiciada pelo cinema novo, mais especificamente pelo filme Terra em transe de Glauber Rocha. Desse modo, o autor evidencia o fechamento de um ciclo exatamente numa espécie de reedição do fenômeno no início dos anos 1970, quando é mais uma vez desse movimento que saiu a sugestão para sua experiência na canção popular. Em segundo lugar, o álbum retorna ao tema do exílio (que caracteriza a parte 4), na medida em que seu embrião seria justamente a gravação de “Asa Branca” de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, composta ainda nos anos 1940. Esse grande lamento de um personagem exilado é ressignificada pelo contexto vivido por Caetano Veloso naquele momento, e intensificada pelo fato de estar em um disco de “canções de exílio” do artista, todas de sua autoria e escritas em inglês (exceto um fragmento em “If you hold a stone” e a própria “Asa branca”). A temática atravessa, direta ou indiretamente, todo o álbum: One day I had to leave my country, calm beach and palm tree... That day I couldn't even cry And I forgot that outside there would be other men But today, but today, but today, I don't know why I feel a little more blue than then (“A little more ble”)

I'm wandering round and round, nowhere to go I'm lonely in London, London is lovely so I cross the streets without fear Everybody keeps the way clear I know I know no one here to say hello (“London, London”)

Maria Bethânia, please send me a letter I wish to know things are getting better Better, better, beta, beta, Bethânia (Maria Bethânia)

“Mas eu não sou daqui Marinheiro só Eu não tenho amor Eu sou da Bahia De São Salvador” “Eu não vim aqui Para ser feliz

354

Cadê meu sol dourado E cadê as coisas do meu país” (“If you hold a stone”)

My eyes are blinded by The far off look of new expectations (“Shoot me dead”)

I need my girl In the hot sun of a Christmas Day She seems to love me, bliss In the hot sun of a Christmas Day Machine gun In the hot sun of a Christmas Day They killed someone else In the hot sun of a Christmas Day (“In the hot son of a Christmas Day”)

Ao fim dessa sequência, aparece a gravação de “Asa branca”, sem a melodia vibrante da versão original, com a dicção enfatizando a variante linguística regional, e com os grunhidos referidos por Leon Hirszman. Assim, a situação do migrante nordestino, com suas dimensões de seca, miséria e sofrimento, sublinha a ligação entre a canção de Luiz Gonzaga e o livro de Graciliano Ramos. A sensação de solidão e não-pertencimento que aparece na canção reverbera na situação dos exilados políticos do país no contexto da ditadura civil-militar. Assim, canção, literatura e cinema encontram-se nesse episódio e nessa abertura de caminhos. Esse trajeto já havia aparecido em um texto de Caetano Veloso para o Jornal do Brasil de 1977: O tropicalismo foi um espernear contra um cercado pequeno. A gravação de “Asa branca” foi um primeiro esforço de concentração no sentido de realizar algum som a mais. O Araçá azul – depois da música para o filme São Bernardo, de Leon Hirszman – foi o luxo de entrar no estúdio sem nada e deixar esse desejo fluir para que eu, assim, pudesse testá-lo. O nordestino fanhoso, o negro rouco, o índio, o marciano, o árabe, o indiano, o roqueiro distorcido, os Smeataks, o insólito – tudo isso é minha identificação. A letra para pipoca moderna. O chinês, o japonês, o baiano. Queria fazer um disco de canções doces com suingue e queria trabalhar em casa com sons primitivos. (VELOSO, 2005, p. 192)

O fragmento evidencia a busca do sincretismo, que por sua vez se relaciona ao desejo tropicalista de descobrir o país a partir de sua pluralidade e de sua porosidade em relação ao mundo. Há de se observar também a ênfase em elementos primitivos, que se relacionam à singularidade brasileira, sendo também um mergulho no ultralocal (“O

355

nordestino fanhoso”, “o negro rouco”, “o índio”, “o baiano”, a pipoca moderna dos pífanos de Caruaru) exposto às influências alienígenas estrangeiras (a referência ao marciano, ao experimental de Smeataks, às distorções do rock inglês e estadunidense, ao oriente médio dos árabes, e ao extremo oriente dos indianos, chineses e japoneses). Tudo isso representando uma abertura de campo (estético, mercadológico, sociológico, antropológico), que faz de Araçá azul uma síntese das ambições tropicalistas que temos discutido. O capítulo “Araçá azul” começa, portanto, com a explicação sobre o processo de gravação do disco em método semelhante ao da trilha sonora de São Bernardo. Além disso, Caetano comenta algumas canções e faz a avaliação crítica do disco, comentando a aprovação de Augusto de Campos e de Rogério Duprat (em contraponto com as reservas de José Agrippino). E destaca que esse álbum bateu recorde de devoluções. O fracasso comercial do disco é uma oportunidade para a discussão sobre experimentalismo e mercado, que é uma linha de força relevante do movimento tropicalista e do livro que o relata e interpreta. Caetano Veloso comenta ainda o sucesso que havia atingido, pouco antes, o já referido Chico e Caetano – juntos e ao vivo (gravação de um show em novembro de 1972, lançado como disco em dezembro do mesmo ano), que, além de reunir clássicos dos dois artistas, era motivado pela imaginária rivalidade entre eles. Assim, além de justificar a grande procura por Araçá azul (lançado no começo do ano seguinte), o autor ainda sugere a oposição entre os trabalhos, quase simultâneos: um menos atípico, e o outro, profundamente experimental, mostrando as reações opostas do público. Outro ponto interessante é pensar Araçá azul como um disco antijoaogilbertiano. Caetano, em sua definição de tropicalismo, já havia dito que o movimento havia virado a bossa nova pelo avesso. No entanto, mesmo os aparentes afastamentos em direção à música de vanguarda (e à “antimúsica”) ou em relação ao rock ou nas referências à música comercial pouco sofisticada (e o cafona) seguem todos o mesmo desejo de redescobrir a tradição da música popular brasileira, suas motivações profundas, seus elementos reveladores e, fundamentalmente, a lição de João Gilberto e a trilha aberta pela bossa nova. Assim, Caetano comenta em “Araçá azul”: A máscara antobossanovista que nós os tropicalistas, usamos, incluía uma aproximação com Agrippino, Mautner, o rock e o bolerão, mas, como os concretistas, eu tinha sido – e seria sempre – antes de tudo um amante da arte de João Gilberto e de João Cabral de Melo Neto. (VELOSO, 2008, p. 482).

356

No texto sobre o filme Cinema falado de 1986, Caetano propôs uma comparação que ajuda a iluminar essa discussão: Faço sempre, dentro de mim, um paralelo entre O cinema falado e o disco Araçá azul. De fato, sempre disse que Araçá azul parece a trilha sonora de um filme “de arte” amador. E é notória a minha volta, depois dele, aos discos de canção popular típicos. É bem verdade que todo disco meu, antes e depois de Araçá azul, é sempre um atípico disco de canção popular típico. (VELOSO, 2005 p. 211)

Desenvolvendo o paralelo, Caetano mostra como, apesar de Godard ser um dos grandes influenciadores do tropicalismo, Cinema falado é um filme antigodardiano, especialmente quando aponta que, diferente do estilo do diretor franco-suíço (marcado pelo ritmo ágil e controlado), o trabalho de Caetano apresenta falas e cenas que tem “a aparência de objetos estanques” e seu estilo visual é “irregular e descontrolado”. Assim, o autor conclui que decidiu “fazê-lo de modo tão nitidamente antigodardiano” quanto são antijoaogilbertianas suas gravações de “Asa branca”, “Mora na filosofia” e “Podres poderes”. 292 Assim, é interessante observar como o capítulo que termina o livro conduz exatamente ao fechamento de um ciclo, no qual o mergulho na experiência da bossa nova (e da concisão e da sofisticação de João Gilberto) termina exatamente em sua tradução pelo avesso. É natural que “Asa branca” e o disco Araçá azul, como resultados extremos desse processo, apareçam no encerramento da narrativa de Verdade tropical. Esse mesmo marco é utilizado também por Celso Favaretto e por Carlos Calado como indicativos do final de um ciclo.293 É preciso, no entanto, não aceitar esse marco como o final efetivo da experimentação ou do radicalismo, em favor de um retorno às canções populares típicas. Senão, será difícil explicar como o novo ciclo começa com o lançamento simultâneo, em 1975, de Joia e de seu oposto complementar Qualquer coisa. Por isso, devemos acatar a ponderação de que seus trabalhos são sempre atípicos discos de canção popular típicos. Ou, nas palavras que encerram “Araçá azul”, “a aventura que se iniciou [para mim] com o tropicalismo não acabou nunca” e, por fim, que não lhe causa estranheza ouvir que Araçá azul teria marcado o fim de uma etapa.

292 VELOSO, 2005, p. 208-9. 293 “Araçá azul, LP de Caetano Veloso lançado em 1973, é a síntese de todos os roteiros abertos pelo tropicalismo, que, levados às últimas consequências, esgotam o período de experimentação”. (FAVARETTO, 1995, p. 41). Carlos Calado, por sua vez, apresenta o disco no final do penúltimo capítulo, sendo o último um balanço sobre “a herança tropicalista”. 357

Assim, a escolha da interrupção da narrativa nesse ponto pode ser avaliada sob dois aspectos. Na sequência temporal, de modo mais amplo, o retorno ao Brasil aconteceu em 1972, de onde se começa a narrar o contexto de “desbunde” no país paralelo ao acirramento do regime civil-militar, seguido do início de sua crise, ainda no mandato de Médici em 1973. Como o tropicalismo era um movimento afinado com valores da contracultura internacional, a chegada dessas manifestações no Brasil é colocada na esteira do movimento no conjunto da narrativa (confirmando, aliás, o fato de Verdade tropical contribuir para a narrativa de um “pós-tropicalismo”, que dá centralidade ao movimento musical, tornando-o gerador das mudanças seguintes). De outro lado, na sequência da obra do compositor, Araçá azul marca um dos auges do experimentalismo que também está no âmbito dos interesses e das discussões do movimento. Poderíamos acrescentar ainda mais um dado interessante. Se o ícone de Narciso atravessa pontos fundamentais do livro, é importante que se perceba que a capa do disco Araçá azul apresenta um grande espelho que reflete a imagem de Caetano Veloso de traje de banho, com uma bananeira acima, e os olhos cobertos pelo cabelo.294 A imagem não corresponde à reflexão possível do ângulo em que é posta, causando um estranhamento (reforçado pelo fato de que os olhos estão cobertos diante do espelho). A única parte de Caetano que aparece com ênfase em sua imagem não-especular é justamente seu umbigo. Do lado de dentro do encarte, há cinco fotos suas em torno da foto principal (ocupando duas páginas contíguas), em que aparece com o mesmo traje mínimo, deitado diante do mar, em pose quase vitruviana, com a divisória das páginas passando justamente por seu púbis. Sobre esse conjunto, Guilherme Wisnik afirma: Pode-se dizer que o que há de mais afirmativamente narcisista em Caetano – tematizado muitas vezes de modo explícito, como, por exemplo, nas fotos do disco Araçá azul, em que aparece diante de um espelho, com o umbigo em destaque – não deixa de desdobrar traços dessa afinidade filosófica fundamental. Afinidade que se abre numa pulsão desejante em relação ao mundo, ao êxtase fundamental da vida, procurando sempre que possível criar condições propícias para se poder entrar genuinamente “no swing das coisas” – usando expressão sua da época. (WISNIK, 2005, p. 76)

E conclui:

Portanto, tudo o que há de “infinitivamente pessoal” em Caetano se alimenta da incorporação generosa e criativa do outro, em movimento de mão dupla: do eu para o mundo, fazendo com que o “brilho definido” do

294 A capa do disco é assinada por Luciano Figueiredo e Oscar Ramos. 358

espírito “espalhe benefícios”, e do outra para si, diante da “presença” que “desintegra e atualiza” a sua. (Idem)

Assim, Araçá azul associa-se diretamente à conjugação infinitivamente pessoal que temos discutido, desde o espelho deformado na capa do disco e a centralidade do “umbigo” (da ultraindividualidade) na reflexão sobre o mundo. O tropicalismo musical pode ser visto, portanto, fundamentalmente como um grande jogo de espelhos, nos quais se criam identificações, aproximações, oposições, complementaridades, deslizamentos, deformações, estranhamentos, descobertas. O espelho é o grande brinquedo desse processo.

359

CAPÍTULO VI – FORA DE ORDEM

1. Ensaio sobre a brasilidade

Feita a análise das quatro partes de Verdade tropical, e tendo comentado seus aspectos de autobiografia e de história do tropicalismo musical, resta agora observar o que faz dessa obra também uma espécie de ensaio sobre o Brasil. Na “Intro”, Caetano Veloso já havia assumido a tarefa de contar e interpretar o movimento tropicalista, de modo que isso valeria por um “desvelamento do mistério da ilha Brasil.295 Desse modo, desde sua introdução, o livro revela a intenção de oferecer uma reflexão sobre o país a partir de sua cultura e, mais especificamente, de sua canção popular. O intento de discutir uma proposta de música brasileira diretamente ligada a um projeto de Brasil aparece, na verdade, ao longo de toda a obra de Caetano Veloso (e nisso se incluem os quatro núcleos apresentados no início deste trabalho – as canções, as publicações em prosa, O cinema falado e Verdade tropical). A formulação dessas ideias em um livro de fôlego permite, no entanto, uma mirada mais ampla, possibilitando, inclusive, que o autor apresente e relacione o conjunto de artistas, obras e pensadores fundamentais para o desenvolvimento de sua leitura sobre o país. Aliás, a natureza híbrida de Verdade tropical também contribui para isso, uma vez que o livro, sendo mais que estritamente literário ou informativo, apresenta um caráter ensaístico de grande alcance, movendo-se por sobre a linha narrativa geral. Nesse sentido, Guilherme Wisnik afirma: ... com Verdade tropical (1997) Caetano insere-se na grande tradição dos intérpretes da “formação” brasileira, desdobrando na área da canção popular e do show business aspectos de uma reflexão que dialoga com figuras como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Antonio Candido, e que encontra na abordagem marxista de Roberto Schwarz pontos de tensão e diálogo de férteis consequências, sobretudo pelo modo como se contrapõe. (WISNIK, 2005, p. 121)

Há de se observar que Caetano Veloso chega a esses autores por outros caminhos e, fundamentalmente, que não é, no sentido estrito, um de seus pares: trata-se de um cantor de rádio entre acadêmicos. Mesmo Verdade tropical – sendo marcadamente pessoal e autobiográfico, e tendo seu vetor ensaístico subordinado ao narrativo – não pertence a uma modalidade compatível com as obras que notabilizaram esses grandes pensadores, embora

295 VELOSO, 2008, p. 17. 360

haja evidentes zonas de interseção, para além do objetivo de interpretar o Brasil. Seria possível destacar, especialmente, que todos esses autores discutiram a possibilidade de ver consequências ambíguas da “formação” do Brasil, refletindo sobre a hipótese de que, na contrapartida de uma história colonial de violências de variadas ordens, pode estar também a chave da originalidade do país, e de possibilidades promissoras que com ela se abririam. Em “Diferentemente dos americanos do norte”, Caetano Veloso chega a alertar para o risco que correm os que falam em nome de países perdedores da História “de tomar as mazelas decorrentes do subdesenvolvimento por quase-virtudes idiossincráticas” nacionais.296 Apesar da ressalva, o autor acaba fazendo exatamente o que julgava perigoso, isto é, considerando “vantajosas até mesmo as condições com que a História nos presenteou”. A partir disso, afirma: Só na perspectiva do país artista superior que nós temos o dever de perceber que a História nos sugere que sejamos é que podemos revalorar aspectos do nosso atraso como sinais de que casualmente escapamos de uma escravidão maior no misterioso desvelar do nosso destino. (VELOSO, 2005, p. 60)

Assim como defendem alguns dos grandes intérpretes da brasilidade, é justamente dos aspectos negativos e terríveis da formação do país que advém, contraditoriamente, sua vocação para o sincretismo e para a criatividade, e, portanto, para a riqueza artística. É deste lugar de fala e, especialmente, da possibilidade de seguir um caminho aberto, antes de tudo, pela estética e pela cultura, que Caetano Veloso assume o risco de afirmar para o Brasil um dever de originalidade e grandeza. É importante que se perceba, entretanto, que a construção inicial do tropicalismo não se deu, para Caetano Veloso, por meio de nenhum dos autores citados por Wisnik. Em Verdade tropical, Sérgio Buarque não aparece nenhuma vez; Gilberto Freyre só é mencionado para desmentir a possível confusão entre tropicalismo e luso-tropicalismo; Antonio Candido e Roberto Schwarz aparecem, cada um, apenas duas vezes. Isso não compromete, evidentemente, a pertinência da aproximação, uma vez que Caetano acaba dialogando, implicitamente e em diferentes registros, com esses autores. É preciso pontuar, todavia, que as bases de sua leitura de Brasil (que se revela no livro) estão em outros campos e espaços. Por isso, devemos voltar a propor que o tropicalismo musical se deu a partir de uma perspectiva de afirmação da modernidade brasileira e, ao mesmo tempo, da adesão à

296 VELOSO, 2005, p. 43. 361

linguagem pop internacional, isto é, a inserção definitiva do país no século inventado por Andy Warhol. Além disso, a leitura de Caetano Veloso abrange os debates e questões colocadas por sua geração, tanto no campo da canção popular como por meio das outras expressões artísticas (com destaque para a importância de Hélio Oiticica, Glauber Rocha e Zé Celso). Paralelamente, é fundamental acrescentarmos a mirada sebastianista de inspiração pessoana (aprendida via Roberto Pinho e Agostinho da Silva). Completam a lista: as novas perspectivas políticas trazidas pela contracultura dos anos 1960 (e as questões de identidade que vieram em seu lastro); a vocação amalgâmica defendida por Jorge Mautner, ou, em outro registro, a inclinação para “a fusão e a fecundação recíproca de diferentes culturas” segundo propõe Antonio Cicero; a antropofagia oswaldiana ressaltada pelos poetas concretistas; e, por fim, e mais importante, a trilha aberta pela bossa nova de João Gilberto. É importante que se perceba, de outro lado, que as grandes leituras do Brasil, quando se voltam para o processo da colonização, acabam se referindo a dois pontos fundamentais de nosso estudo: o primeiro diz respeito às relações entre público e privado (e, com isso, a reflexão sobre a família, o patriarcado e o desrespeito às leis); o segundo, a miscigenação, que concentra em si as questões racial, sexual e cultural. Ora, muitas das discussões dos anos 1960, vinculadas ao pop e à contracultura, giram exatamente em torno desses eixos. Além desses, aspectos míticos e religiosos, que fizeram parte da formação do Brasil (como os rituais indígenas, os cultos africanos e o catolicismo dos jesuítas) também aparecem nessas obras, com maior ou menos ênfase. A tendência ao misticismo – que aparece tensionada com o ceticismo em Verdade tropical, e que pode ser associada, a princípio, a uma questão da contracultura internacional – poderia ser pensada também como uma característica nacional, refletida na afirmativa contundente de Gilberto Freyre: “O brasileiro é por excelência o povo da crença no sobrenatural: em tudo o que nos rodeia sentimos o toque de influências estranhas; de vez em quando os jornais revelam casos de aparições, mal-assombrados, encantamentos.”297

297 FREYRE, 2006, p 212. 362

1.1. A verdade nacional

Na célebre definição de Benedict Anderson, uma nação é, na verdade, uma comunidade política imaginada. Essa construção, evidentemente, não é simples, pois se inicia em um contexto histórico específico (o surgimento dos estados modernos europeus), e se desenvolve de modo peculiar em cada lugar e em cada época. Além disso, a criação de um imaginário nacional depende de diversos laços identitários, de cunhos étnicos, religiosos, linguísticos, econômicos e culturais. Por fim, a identidade nacional estabelece- se como fator decisivo nos jogos de poder, ora funcionando como cimento dos laços de dominação, ora como mecanismo fundamental de resistência. Renato Ortiz, na introdução de seu trabalho Cultura brasileira e identidade nacional (2012), também chama atenção para o fato de que toda identidade é uma construção simbólica. Defende, por isso, que a análise desse tema deveria dar-se em outros termos, que não o da busca de uma autenticidade ou de uma “verdade”. As identidades nacionais – e o caso brasileiro não é diferente – são sempre múltiplas e dependem de interesses de grupos sociais específicos em contextos determinados. Nas palavras do autor: ... a procura de uma identidade brasileira ou de uma memória brasileira que seja em sua essência verdadeira é um falso problema. A questão que se coloca não é de se saber se a identidade ou a memória nacional apreendem ou não os verdadeiros valores brasileiros. A pergunta fundamental seria: quem é o artífice desta identidade e desta memória que se querem nacionais? A que grupos sociais eles se vinculam e a que interesses eles servem? (ORTIZ, 2012, p. 139) Tal perspectiva é importante para que se compreendam os processos de formação das identidades nacionais no Brasil em toda a sua complexidade. Veja-se que a obra supracitada não é um trabalho de interpretação do país, mas uma análise das próprias interpretações, isto é, dos contextos em que se inseriram, dos grupos a que atenderam, dos reflexos que tiveram. A palavra “artífice” sugere a pergunta que se impõe no livro de Ortiz: como foram construídas as ficções de Brasil? É importante, contudo, ponderar que toda construção simbólica de um país parte de uma linha de argumentação que se ancora (ou pretende fazê-lo) em dados extraídos da observação da realidade (desde o processo histórico de consolidação nacional até o contexto mais imediato), partindo geralmente de suas origens, cujo marco inicial é também fruto de um processo eletivo e intencional. No caso brasileiro, muitas vezes o empenho dos

363

intérpretes se voltou (se volta) para a análise do período colonial (e dos elos seguintes, que conduziram da Colônia ao Império e deste à República). Além disso, a imagem convencionalmente aceita de um país emerge também dos intelectuais que se propuseram a pensá-lo, bem como dos meios de comunicação de massa (e das ambiguidades que os caracterizam), e também do que seriam os aparelhos ideológicos do estado (para lembrar o célebre estudo de Althusser). Além disso, a população de modo geral (no que se incluem também políticos, comunicadores, professores e intelectuais) acaba por retroalimentar ou contestar cotidianamente a imagem produzida. De outro lado, as diversas expressões artísticas têm fundamental importância, na medida em que podem intervir, sublinhando ou minimizando, reprimindo ou liberando, esta ou aquela manifestação cultural entendida como “nacional”. O que se quer dizer é que Verdade tropical, apesar da provocação do título, insere- se também nesse jogo de intervenções, no intuito de revelar outra “verdade” sobre o Brasil (e, como já dissemos, a partir dele). No entanto, mais do que verificar se a leitura da brasilidade é correta ou não, o fundamental é perceber que, nesse conjunto, alguns elementos foram minimizados, outros omitidos e outros enfatizados; e que alguns fatos históricos e marcos culturais ganharam mais centralidade que outros. Não se trata, portanto, de um empenho em comprovar ou refutar a “verdade” proposta (outras análises poderiam ser igualmente verdadeiras e reveladoras), mas observar como (e onde) essa ficção de Brasil buscou vincular-se com as realidades do país e, principalmente, como foi (e é) capaz de fecundá-las.

1.2. A democracia racial, o homem cordial, o sentido da colonização

A virada do século XIX para o XX foi influenciada por teorias importadas da Europa (mormente o positivismo, o darwinismo social e o evolucionismo), que colocavam a raça e o meio como os vetores principais para a formação dos indivíduos. Nesse contexto, localizam-se Sílvio Romero, Nina Rodrigues e Euclides da Cunha, uma vez que os três escritores, tidos como precursores das ciências sociais no Brasil, fazem clara associação entre as mazelas nacionais, o meio e o processo de mestiçagem. Vale lembrar que, nessa mesma virada de século, discutia-se a necessidade de branqueamento do Brasil, posta em prática com a tentativa de substituir a mão-de-obra do negro pela do imigrante europeu.

364

As discussões sobre a cultura brasileira foram intensificadas e novos caminhos começaram a despontar, especialmente a partir do modernismo dos anos 1920. Mário de Andrade, Oswald de Andrade e, em outro registro, Paulo Prado (entre outros) revisitaram as questões da formação brasileira, da miscigenação, do atraso, da necessidade de inserir- se no mundo moderno e de dialogar com o cenário internacional – de pensar, enfim, as mazelas e as virtudes do Brasil. Foi na década seguinte, entretanto, diante do novo cenário e das novas demandas ideológicas surgidas durante o governo Vargas, que apareceram, no campo das ciências sociais, três obras fundamentais para o pensamento sobre o país: Casa grande e senzala (1933) de Gilberto Freyre, Raízes do Brasil (1936) de Sérgio Buarque de Holanda e Formação do Brasil contemporâneo (1942) de Caio prado Jr. A grande virada na visão sobre mestiçagem teria acontecido a partir da obra de Freyre, segundo explica Renato Ortiz: O mito das três raças torna-se então plausível e pode-se atualizar como ritual. A ideologia da mestiçagem, que estava aprisionada nas ambiguidades das teorias racistas, ao ser reelaborada, pode difundir-se socialmente e se tornar senso comum, ritualmente celebrado nas relações do cotidiano, ou nos grandes eventos como carnaval e futebol. O que era mestiço, torna-se nacional. (ORTIZ, 2012, p. 41)298 Gilberto Freyre traz algumas contribuições fundamentais e alguns mecanismos de raciocínio que se tornariam seminais para pensar o Brasil. Em primeiro lugar, Casa-grande e senzala é decisivo para a virada de sinal do processo de mestiçagem, bem como para o abandono das tradicionais visões deterministas e raciológicas, procedendo, em outro registro, à análise de elementos culturais do português, dos povos indígenas e dos povos africanos; e, em especial, as relações que se estabeleceram entre eles. Além dessa virada, Gilberto Freyre também acabou por consubstanciar a valorização dessas culturas, através do reconhecimento da herança cultural vinculada a negros e índios, determinante para compreender o Brasil e, até, vê-lo com orgulho. Além disso, é importante lembrar que esse mesmo autor afirma que a corrupção moral e o sadismo não podem ser creditados aos negros (ou aos índios), mas ao próprio sistema econômico, que divide a sociedade em senhores e escravos. Mais que isso, em sua reflexão, sublinha-se o caráter luxurioso do próprio português, apontado como o mais

298 Uma referência importante às “raças tristes” aparece em um soneto de Olavo Bilac, em cujos tercetos se lê: “És samba e jongo, xiba e fado, cujos/ Acordes são desejos e orfandades/ De selvagens, cativos e marujos:// E em nostalgias e paixões consistes/ Lasciva dor, beijo de três saudades,/ Flor amorosa de três raças tristes”. A tristeza do brasileiro reverbera também no Retrato do Brasil, de Paulo Prado, no qual a luxúria e a cobiça que marcam a formação do país conduziriam à melancolia de seus habitantes. 365

libidinoso dos elementos formadores do país. Assim, no mesmo ensaio, relativiza-se a vinculação negativa de negros e índios com a promiscuidade, e enumera-se a longa lista de contribuições dessas culturas para a formação do Brasil, inclusive para a língua portuguesa. Para nossa reflexão, vale destacar aqui uma citação crucial de Casa grande e senzala: Na verdade, o equilíbrio continua a ser entre as realidades tradicionais e profundas: sadistas e masoquistas, senhores e escravos, doutores e analfabetos, indivíduos de cultura predominantemente europeia e outros de cultura principalmente africana e ameríndia. E não sem certas vantagens, as de uma dualidade não de todo prejudicial à nossa cultura em formação, enriquecida de um lado pela espontaneidade, pelo frescor da imaginação e emoção do grande número e, de outro lado, pelo contato, através das elites, com a ciência, com a técnica e com o pensamento adiantado da Europa. Talvez em parte alguma se esteja verificando com igual liberdade o encontro, a intercomunicação e até a fusão harmoniosa de tradições diversas, ou antes, antagônicas, de cultura, como no Brasil. (FREYRE, p.115)

Veja-se que o método de analisar o Brasil por meio de suas dualidades encontra aqui um de seus momentos mais emblemáticos e seminais. Outros grandes intérpretes da brasilidade, seja nas artes, na literatura, nas ciências sociais, tomariam como base o mesmo procedimento. Aliás, a contribuição africana e ameríndia por meio da espontaneidade e da imaginação, unida ao contato com o pensamento racional europeu já havia aparecido, poucos anos antes, no “Manifesto antropófago” de Oswald de Andrade. E, sem dúvida, pensar como essa inter-relação cultural se dá é uma das preocupações centrais de muitos estudiosos da brasilidade. Para compreender a colocação de Freyre, convém observar que a formação de uma cultura que provém de povos diversificados pode dar-se de forma pouco porosa (o que pode estar relacionado tanto com a intolerância cultural como, de outro modo, com a convivência respeitosa entre culturas que tendem a reforçar seus traços particulares). O Brasil, segundo Freyre, indicaria inclinação oposta, tendendo às fusões culturais, à mistura, ao sincretismo. Isso, evidentemente, é apresentado pelo autor enquanto vantagem, da qual resulta a grande riqueza cultural do país. Por outro lado, a expressão utilizada por Freyre (e também a conclusão a que se vincula) gerou uma série de críticas e ressalvas à sua obra. Afinal, falar em “fusão harmoniosa” em meio a processos de tamanha violência (como são a colonização e a escravidão) e não dar ênfase ao jogo de dominação que se estabelece mesmo nessas trocas culturais foi frequentemente entendida como uma distorção de leitura com graves

366

consequências, especialmente a do desenvolvimento de um “mito da democracia racial”, expressão que, embora não tenha sido usada pelo autor em sua obra, acabou sendo vinculada diretamente a seu pensamento. Assim, apesar de relatar algumas cenas de caráter violento nas relações entre casa- grande e senzala, o autor teria interferido nas proporções, dando pouca ênfase à barbárie colonial e escravista, e, de outro lado, às lutas de resistência (territorial, política e cultural) de índios e escravos, que lhes renderam tantas punições perversas e mortes lamentáveis. Desse modo, a leitura de Brasil de Freyre, além de temerosamente simpática ao patriarcalismo, teria deformado os processos segundo os quais se deram as “fusões harmoniosas” entre as culturas. Caetano Veloso, no texto “Don’t look Black? O Brasil entre dois mitos: Orfeu e a democracia racial” (2000), comenta nos seguintes termos o livro de Gilberto Freyre: A inversão de sinal no julgamento do mestiço, marcada pela publicação de Casa grande & senzala de Gilberto Freyre, representou a liberação de uma autoimagem racialmente eufórica dos brasileiros, e a expressão “democracia racial” insinuou-se como um rótulo adequado a essa euforia. Ela se tornou também o alvo obsessivo das críticas de cientistas sociais e militantes políticos, de tal forma que quase se pode falar num mito da democracia racial. (VELOSO, 2005, p. 30-1)

Na sequência, Caetano afirma como o livro Orpheus and Power de Michael Hanchard “quase nos convence de que o nosso alegado multirracialismo só serviu para atrasar os negros brasileiros na solução de seus problemas”299. O uso do “quase”, de um lado, sugere o reconhecimento parcial de que a exaltação do processo de miscigenação acaba tornando menos visíveis os impasses raciais, o que dificulta sua superação; por outro lado, o termo aponta também para uma fissura em relação a essa leitura, indicando a necessidade de pensar um caminho alternativo para a reflexão. Pouco antes, o autor havia afirmado: Não obstante, em toda a parte nas Américas a evidência da identidade básica dos seres humanos encontrou meios de se impor, precária mas tenazmente, sobre as teorias racistas que amparavam as práticas brutais. E nenhum de nós tem o direito de jogar fora o acervo conquistado nesse processo. A experiência brasileira deve ser enriquecida pelo mito da “democracia racial”, não desqualificada por ela. (Ibidem, p. 29)

O que se pode entrever nessas posições é que, em vez de negar a particularidade brasileira no sentido da miscigenação e da fusão cultural, a partir das críticas à deformação

299 Ibidem, p. 31. 367

provocada pelo “mito da democracia racial”, a solução poderia estar no caminho oposto. Desse modo, seria preciso, primeiramente, reconhecer a importância da obra de Freyre na sequência histórica da contestação das teorias raciais – e também, na criação de uma “autoimagem racialmente eufórica” para o Brasil. Além disso, e mais importante, seria fundamental que as críticas fossem convertidas no esforço para que a inclinação brasileira, que deu origem ao mito, possa também levar à sua concretização. Mais uma vez, Caetano dá ênfase à possibilidade de o mito fecundar a realidade. Apenas três anos depois de Freyre, foi a vez de Sérgio Buarque de Holanda promover suas reflexões sobre as Raízes do Brasil (1936). Deste rico ensaio, o conceito mais célebre é o de “homem cordial”, segundo o qual o brasileiro seria pouco afeito a tudo que é impessoal e a tudo que exige polidez. O autor preocupa-se, em nota, em esclarecer que isso não tem a ver com a bondade, mas com o predomínio do traço afetivo e emocional na condução de suas relações sociais. O autor crê que a grande contribuição que o Brasil pode dar à civilização é essa cordialidade, que resulta na hospitalidade e na generosidade do brasileiro, e está diretamente vinculada à força (positiva) da individualidade em nossa cultura. A soberania do indivíduo no Brasil seria proveniente da frouxidão das instituições sociais, que, por sua vez, estaria vinculada à importação, desde o início do período colonial, de estruturas estrangeiras. Nas palavras do autor: Trazendo de países distantes nossas formas de convívio, nossas instituições, nossas ideias, e timbrando em manter tudo isso em ambiente muitas vezes desfavorável e hostil, somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra. (HOLANDA,1995, p 31)

A expressão “desterrados em nossa terra” mostra-se ainda mais pertinente quando percebemos que índios, negros e brancos, em registros particulares, acabaram vivenciando aqui a experiência da inadaptação: os índios precisaram se adequar aos aldeamentos, a novas regras de convívio social e de regime de trabalho; os negros, além de deixarem sua terra natal, passaram aqui a dolorosa experiência da escravidão; os europeus, também fora de seu espaço de origem, experimentaram aqui o choque de culturas e a dificuldade de se acostumar às circunstâncias naturais dos trópicos. O povo brasileiro acabava estigmatizado, assim, pelo sentimento típico de quem é estrangeiro. Sérgio Buarque, na verdade, coloca a ênfase da expressão no fato de que as instituições que foram transplantadas para cá acabaram não sendo totalmente reconhecidas (respeitadas), tendo em vista sua flagrante inadaptação à nova dinâmica entre a terra e seus

368

habitantes. O autor afirma, porém, que essa “frouxidão” institucional é a origem do personalismo. Esse gosto pelas soluções individuais estaria conectado tanto à cordialidade (a recusa do impessoal) como ao desenvolvimento da criatividade, que é tão celebrada como peculiar ao brasileiro. Por outro lado, decorreria daí também a invasão constante do público pelo privado, e do Estado pela família (também observada por Freyre). Assim, cindidas essas esferas e, por vezes, colocadas em chaves antagônicas, criou-se como consequência a difícil consolidação da ordem social e, por extensão, da cidadania. O desafio posto fica sendo, novamente, lidar com o paradoxo: tirar proveito do resultado positivo dessas raízes, mas suplantá-las em suas consequências daninhas. Outra análise interessante no mesmo estudo diz respeito à dualidade trabalho/ aventura, segundo a qual o autor percebe que há no Brasil uma “invencível repulsa” “a toda moral fundada no culto ao trabalho”300. A sentença evoca imediatamente Max Weber e seu célebre ensaio sobre a ética protestante e o desenvolvimento do capitalismo; ainda mais se fizermos o contraponto entre a colonização inglesa nos EUA (marcada pela presença do protestantismo) e a colonização ibérica (católica) na América Latina. No caso do Brasil, o espírito do aventureiro, isto é, do que se lança em busca de descobertas, de fazer nome e fortuna em terras estrangeiras (em vez de trabalhar para cultivá-las e habitá- las), seria preponderante em relação ao “espírito trabalhador”. Aliás, convém fazer aqui a ponte para outra importante interpretação do país: a obra Formação do Brasil contemporâneo (1942) de Caio Prado Jr., que tem como ponto de partida a reflexão sobre o sentido da colonização no Brasil que, diferentemente da América do Norte, foi colônia de exploração e não de povoamento. Sua estrutura econômica foi baseada na monocultura, no latifúndio e na escravidão e, a partir desse tripé, muito de sua realidade social pode ser explicada. Ainda segundo o autor, a formação do Brasil sempre teve em vistas o comércio exterior, especificamente o europeu, e toda a estrutura social do país voltou-se desde sempre para atender a esses interesses, que não seriam, em verdade, nossos. Aliás, essa leitura vale também para os demais vizinhos latino-americanos, segundo podemos constatar ao ler o célebre Las venas abiertas de América Latina, do escritor uruguaio Eduardo Galeano.

300 HOLANDA, 1995, p. 38. 369

Em sua dialética, Caio Prado Jr. também não foge à percepção das dualidades que formam o Brasil contemporâneo, compreendendo, ainda que em outro registro, a contradição como consequência do modelo econômico-social. As dicotomias que se apresentam como constantes das interpretações do país mostram-se aqui como permanências dos traços do sistema colonial que se confrontam com o presente da modernização. Aliás, em nota, o autor lembra um episódio revelador sobre a singularidade brasileira: Uma viagem pelo Brasil é muitas vezes, como nesta e tantas outras instâncias, uma incursão pela história de um século e mais para trás. Disse-me certa vez um professor estrangeiro que invejava os historiadores brasileiros que podiam assistir pessoalmente às cenas mais vivas do seu passado. (PRADO JR., 2000, p.5)

Evidentemente, o comentário não é um elogio ao Brasil, mas a constatação do descompasso histórico que se revela no presente. Roberto Schwarz também observará, com atenção, o mesmo fenômeno, imbuindo-lhe do sentido negativo correspondente. Aí reside, aliás, uma de suas premissas básicas da leitura sobre Oswald de Andrade, criticando a exposição eufórica que o poeta modernista faz da contradição brasileira. Com isso, este é mais um ponto nevrálgico que atravessa as discussões de Caetano sobre o Brasil, sua aproximação com a lógica oswaldiana e o antagonismo em relação ao pensamento de Schwarz. Além disso, é muito importante observar que as obras de Sérgio Buarque e Caio Prado Jr. fazem comparações entre o caso brasileiro e o caso estadunidense, pensando a formação dos dois países e as oposições entre eles. Nos anos 1930 e 1940, os EUA já haviam se afirmado como grande potência mundial (especialmente após a Primeira Guerra Mundial dos anos 1910) e começado a consolidar a cultura de massas mais influente do mundo, especialmente a partir de Hollywood. No entanto, as grandes interpretações do Brasil são anteriores à eclosão do pop (especialmente nos anos 1960), o que dá outra luz à experiência americana, que é fundamental para a reflexão de Verdade tropical.

2. A equação de Giannetti

É novamente em “Diferentemente dos americanos do norte” que encontramos a chave para a comparação entre Brasil e EUA estabelecida em Verdade tropical. Logo na introdução, o autor afirma que, diferentemente dos americanos do norte e da maioria dos

370

europeus, o povo brasileiro não se identifica com o Estado, o que atribui ao fato de este ser “impessoal”, “uma inconcebível abstração”, enquanto nós só conceberíamos relações pessoais. Em seguida, afirma que “somos indivíduos, não cidadãos”, em uma formulação semelhante à que aparece na letra de “Haiti”. Por fim, completa dizendo que o mais espantoso é que essa “incapacidade para a cidadania seja guinada à contrapartida de uma bela vocação individualista”.301 O substrato dessas reflexões nos conduz à obra de Sérgio Buarque de Holanda e às relações que o autor tece entre a frouxidão das instituições e o personalismo. O grande desafio permanece sendo equacionar este problema: como manter a alegria, a espontaneidade e a criatividade, mas, ao mesmo tempo, aderir a valores universais que implicam no respeito às leis, às instituições democráticas e aos direitos humanos. Em 1996, pouco antes da publicação de Verdade Tropical, Caetano participou do programa Roda viva da TV Cultura e ali, em dado momento, o economista Eduardo Giannetti propôs uma síntese de sua obra em relação ao Brasil, nos seguintes termos: Eu queria arriscar uma generalização. [...] Eu identifico uma trilha que aparece no seu trabalho. De um lado você defende a conquista de uma ordem civilizada no Brasil. No trânsito, na política, na economia; que nossa convivência pública seja bem ordenada e seja civilizada. [...] De outro lado você também defende nosso coração iorubá, a nossa alegria de viver, a nossa espontaneidade. Essa alegria espontânea que brota do fundo, do fundo da nossa alma brasileira. Eu acho que a grande utopia que você coloca para todos nós é combinar essas duas coisas. [...] Conquistar a civilização mas não perder o que temos de melhor que é essa grande alegria, essa grande espontaneidade, essa alma iorubá, selvagem, índia. [...] Você faz essa fusão na sua arte. Na arte, a equação fecha, na vida real eu não vejo como combinar essas duas coisas.302

Caetano Veloso, então, elogia a formulação da pergunta e, em seguida, afirma que a proposição abrange mesmo a totalidade de seus interesses públicos. Porém, o artista acredita ter uma visão ainda mais ambiciosa, conforme responde na sequência: A minha ambição seria a de tomar posse da civilização. Porque eu acho que há dados universais ligados à convivência social e eu acho que são dados definitivos. E que esses dados devem ser compartilhados por todos os seres humanos, que devem se colocar na posição de poder compartilhá-los. [...] Na verdade a minha ambição seria a de fazer com que uma cultura como a nossa que está sob todos os pontos de vista como que jogada fora da área de dominação das vantagens da civilização moderna (porque está no hemisfério sul, porque é mestiça, porque fala

301 VELOSO, 2005, 42-43. 302 Transcrição nossa do registro oral de fragmentos da entrevista. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=-IHORuI_Uts. Último acesso em abril/2015. 371

português, não apenas uma língua latina do sul da Europa, mas justamente o português que é a mais desprestigiada de todas elas, enfim, um país pobre e, sobretudo, injusto socialmente). Todas essas desvantagens de certa forma deveriam criar em nós uma mera depressão em relação à perspectiva histórica, a prospecções. E, no entanto, a gente tem alguma coisa de alegria, de entendimento da vida, de riqueza no modo de ser, que é perceptível inclusive para estrangeiros que diversas vezes se manifestam a respeito do que eles percebem de interessante, de sugestivo no modo de ser do Brasil e dos brasileiros. Isto que é um dado cultural qualitativo do nosso modo de ser, que é do que você está falando... O que eu desejo não é que isso seja fundido com o que você e todos nós chamamos de civilização. O que eu desejo é que esse modo de ser tome conta, tome em suas mãos os dados abstratos da civilização e faça deles o que não foi feito ainda.

Ao objetar a justaposição entre as características positivas do Brasil e a ordem civilizada e, em seu lugar, propor que esse modo de ser “tome posse” ou “tome conta” da civilização, fica sugerido o procedimento antropofágico oswaldiano: mudar a forma de relação com essa informação universal e indicar como esta mesma civilização poderia se transformar como consequência dessa incorporação. Além disso, é notável perceber aqui o eco do argumento de Antonio Cicero, no já comentado texto “Brasil feito brasa”, e ainda, no último artigo de O mundo desde o fim, que se refere às leis de trânsito (que aparecem em algumas composições de Caetano, que motivaram a formulação de Giannetti). No primeiro deles, Cicero afirma: Isso significa que o Brasil não se realiza – e menos ainda se apresenta como exemplar – senão enquanto radicaliza a afirmação americana da oportunidade universal e da liberdade individual. Nada pode ser mais antitético ao mito propulsor do Brasil do que uma unidade baseada em opressão ou exclusão de raças, castas, culturas, grupos ou indivíduos. Não liberaremos plenamente a diversidade, o sincretismo e a criatividade que nos distinguem senão na medida em que a lei e o Estado deixem de servir a grupos particulares e passem a pertencer a todos, isto é, a ninguém em particular. (CICERO, 1995, p. 200)

Note-se que o ideal liberal de inspiração americana aparece aqui como a base possível para que o Brasil se realize. Posição semelhante é defendida por Jorge Mautner, que vê no liberalismo democrático a única forma de o país fugir de tendências autoritárias (à direita ou à esquerda) e poder cumprir sua inclinação ao amálgama cultural. Antonio Cicero esclarece também que a liberdade individual é, contraditoriamente, garantida pelas leis, conforme demonstra em seu artigo “O trânsito no Brasil”: “é justamente para garantir a cada um e a todos a máxima liberdade de se locomover [...], que, em logradouros

372

públicos, a locomoção de todos é submetida ao mínimo de restrições convencionais”.303 Esse raciocínio é generalizado para as outras formas de lei, sempre tendo em vista que algumas restrições individuais podem permitir justamente uma maior liberdade coletiva. Trata-se, portanto, de uma solução para a equação de Giannetti: a incorporação dos dados abstratos da civilização pelo Brasil poderia, em vez de coibir a alegria que advém da miscigenação brasileira, fazer o justo oposto, isto é, intensificar a afirmação das diversidades, dos sincretismos, das misturas a partir da ampliação das liberdades individuais e das oportunidades universais que o respeito às leis pode garantir. Por isso, não se trata de justapor os dados abstratos da civilização; trata-se de, por meio deles, mergulhar ainda mais profundamente no que seria um hipotético modo de ser brasileiro. É nesse sentido que se podem entender a conclusão de “Diferentemente dos americanos do norte”, que espera do Brasil “experiências mais extremas” que as conquistas americanas, embora afirme que, para poder realizá-las, o país precisaria resolver o problema da distribuição de renda, amadurecer a noção de cidadania e elevar o nível de competência. O conjunto desses elementos, diretamente relacionados às premissas de Antonio Cicero, serve de condição para que o destino do Brasil se cumpra.

3. A aventura do Novo Mundo

A comparação entre Brasil e EUA, que atravessa tanto “Diferentemente dos americanos do Norte” quanto Verdade tropical, convida à reflexão sobre a aventura do Novo Mundo. Os Estados Unidos representam, além da afirmação teórica da “oportunidade universal” e da “liberdade individual” (segundo Cícero), uma mudança drástica no cenário internacional, fazendo migrar a hegemonia política ocidental, do Velho para o Novo Mundo. Quando Caetano Veloso afirma que o século XX (e seu prolongamento) é uma invenção de Andy Warhol, fica implicado que vivemos ainda uma época cujos paradigmas são ditados ou influenciados pelos americanos. A força da cultura de massas dos Estados Unidos e a forma segundo a qual seu cinema e sua canção popular se espalharam pelo mundo, instituindo o inglês como espécie de língua universal (ao menos no Ocidente) dá a dimensão da virada histórica. Além disso, convém lembrar que a Doutrina Monroe – “A América para os americanos” -, antes de ser um pretexto para a dominação dos EUA no continente (e seu uso vinculado à Guerra Fria e

303 CICERO, 1995, p. 205. 373

ao imperialismo), advém originalmente de um discurso ainda do século XIX (de 1823) contra a dominação europeia e a colonização em território americano. É em sentido semelhante que Oswald de Andrade afirma “a idade de ouro anunciada pela América”, em seu manifesto antropófago. Em “Diferentemente dos americanos do norte”, Caetano afirma que, sem se confundir com aqueles que demonstram subserviência aos EUA e ao capital americano, sente uma verdadeira identificação com os americanos que “apostam numa afirmação da América” (os exemplos citados são Gertrude Stein, Walt Whitman, John Cage e os artistas pop dos anos 1960). Com isso, o autor opõe-se ao antiamericanismo que vigorava na esquerda brasileira de sua geração e que é defendido, de modo geral, por aqueles “que misturam a mistificação da Europa com a mistificação do Terceiro Mundo, negando o que há de “perigosamente sugestivo na experiência americana”. Não se trata, portanto, de submeter-se aos EUA e à sua dominação; antes, o que Caetano propõe é que se perceba nessa experiência um caminho possível: Amo os Estados Unidos. Apenas não exijo do Brasil menos do que levar mais longe muito do que se deu ali e, mais importante ainda, mudar de rumo muitas das linhas evolutivas que levaram até espantosas conquistas tecnológicas, estéticas, comportamentais, legais. (VELOSO, 2005, p. 59) E conclui: ... há algo nos Estados Unidos que não encontramos no Japão [por exemplo]: a América, o translado, a terra nova e os grandes espaços; a implantação de uma ideia em terreno tornado virgem pela incapacidade mesma de considerar as culturas indígenas; a imigração variada, europeia e asiática, que trouxe mais nuances e diferentes problemas ao panorama social já na base violentamente problematizado pela vinda forçada dos negros; um ar de liberdade dos movimentos que nenhum lugar de cultura autóctone sedimentada pode de fato conhecer – e isso o Brasil tem em comum com os Estados Unidos e com todos os países americanos. E talvez o caso do Brasil nos induza a esperar dele experiências mais extremas. (Idem)

O jogo de espelhos entre Estados Unidos e Brasil faz com que, de um lado, percebamos os pontos comuns entre os dois cenários e, ao mesmo tempo, fiquem evidentes tanto as conquistas dos americanos (não atingidas pelo Brasil), como também as diferenças entre seus processos históricos, que, aliás, foram tema dos grandes pensadores da brasilidade (Sérgio Buarque, Gilberto Freyre e Caio Prado Jr.). Esse quadro faz com que, contraditoriamente, Caetano espere que o Brasil possa levar ainda mais longe a experiência americana, exatamente a partir das vantagens particulares (decorrentes da formação nacional) – as outras formas de relação entre público e privado, a experiência intensa da

374

miscigenação, a fusão de culturas diversas, a criatividade, a imaginação e a alegria – e as vantagens comuns com os americanos do norte, relativas à experiência geral da aventura do Novo Mundo (a “terra nova”, “os novos espaços”, “o ar de liberdade”). Com isso, é possível compreender com mais clareza a “Intro” de Verdade tropical: O paralelo com os Estados Unidos é inevitável. Se todos os países do mundo têm, hoje, de se medir com a “América”, de se posicionar em face do Império Americano, e se os outros países das Américas o têm que fazer de modo ainda mais direto – cotejando suas respectivas histórias com a do irmão mais forte e afortunado -, o caso do Brasil apresenta a agravante de ser um espelhamento mais evidente e um alheamento mais radical. O Brasil é o outro gigante da América, o outro melting pot de raças e culturas, o outro paraíso prometido a imigrantes europeus e asiáticos. O Outro. O duplo, a sombra, o negativo da grande aventura do novo mundo. (VELOSO, 2008, p. 13)

Para além de ser um livro encomendado por americanos (e destinado, primeiramente a eles), o paralelo inevitável com os EUA se estabelece pelo fato de haver similaridades gerais entre os países da América (especialmente quando confrontados com a Europa) e, sobretudo, pelo que há de “sugestivo” na experiência americana. Por isso, a conclusão de Verdade tropical retorna ao assunto, ao comentar, criticamente, o livro O choque de civilizações de Samuel P. Huntington: Sobretudo não me parece convincente a interpretação dos EUA como guardiães da civilização europeia. Vejo a América como um estágio radicalmente novo da história da cultura ocidental. Traumaticamente “lavada em sangue negro e sangue índio”, toda ela é uma antítese agressiva da Europa. Sob certos aspectos, os EUA o são mais do que o conjunto dos países latinos do Novo Mundo. A violência de sua cultura de massas, a saúde com que, a partir dos anos 20, eles exportaram uma cultura “vira-lata” (Ann Douglas) definem uma realidade que mais aponta para uma superação do estágio Europeu da História do que para uma sua cristalização. (Ibidem, p. 486)

Evidentemente, a superação do estágio europeu em favor de um “estágio radicalmente novo da cultura ocidental”, abre-se como horizonte a possibilidade de que essa nova fase também seja superada, isto é, que possa haver uma fissura na versão americana que leve o Brasil a uma função de maior destaque no cenário internacional. Nisso consiste, por exemplo, a já discutida ambição do pensador Agostinho da Silva. Por isso, Caetano conclui no livro: “eu próprio não vivencio o que me interessa em minha

375

própria criação a partir da perspectiva do ‘século americano’ e sim de uma sua possível superação”304.

304 Ibidem, p. 489. 376

CONCLUSÃO

Cabe retornar, por fim, à imagem que funcionou como mote deste trabalho. A expressão “infinitivamente pessoal” foi empregada, a princípio, para observar como a capacidade de Caetano Veloso de fundir as esferas pública e privada (que atravessa todos os núcleos de sua obra) converteu-se no caráter híbrido de Verdade tropical. A conversão desse elemento externo em aspecto formal, além de ser decisiva para a originalidade dessa obra, atinge dimensões mais amplas do que essa primeira proposição. No desenvolver das ideias aqui apresentadas, foi possível perceber como esse tipo de fusão está intimamente relacionado a um traço geracional, que se pode associar, em um primeiro aspecto, à emergência do pop internacional. O imaginário afirmado por Andy Warhol, com sua centralidade nas pessoas (“mais que nas obras”), já apontava para outras formas de relação entre vida e arte, e de valorização das individualidades, mas, ao mesmo tempo, representava uma virada drástica na organização do globo, valorizando a experiência americana e dando ao século XX uma nova chave de leitura. Não é de se admirar que o livro de Caetano Veloso dê tanto destaque aos personagens (às pessoas) da cultura brasileira e de sua formação (para além das obras que produziram), o que se refletiu nesse estudo em uma série de capítulos que se ocuparam em retratar artistas e observar seus processos criativos e a construção de suas mitologias pessoais. Mais que isso, no grande jogo de espelhos por meio do qual se traçam esses perfis, Caetano Veloso acaba fazendo também seu autorretrato, colocando-se sempre em posição de diálogo e em permanente trânsito, de modo que, a um só tempo, desenha seu mito a partir de sua mobilidade e, assim, contraditoriamente, acaba por desmitificar-se. O século do pop está também diretamente relacionado à emergência da contracultura, especialmente a partir dos anos 1960, trazendo à tona a liberdade como tema fundamental e a afirmação das diversas identidades pessoais que ganham força coletiva. Assim, as causas das ditas minorias (mulheres, negros, gays) configuram uma nova maneira de organização das lutas e dos movimentos sociais. A individualidade torna-se manifestação política e possibilidade de rever todos os paradigmas segundo os quais se organiza a vida coletiva, a civilização ocidental, os valores estabelecidos. O atravessamento de todos esses temas, a partir do ponto de vista pessoal de Caetano Veloso e também do comentário sobre a tematização dessas questões em sua obra musical, faz com que Verdade tropical revele sua força política para além do relato do contexto

377

ditatorial brasileiro. As fusões entre o pessoal e o público também encontram aqui suas fontes. Vale acrescentar que o livro funciona também como exercício de reflexão sobre os limites da realidade e as formas de perceber o real. Para além do misticismo em voga nos anos 1960 e 1970 (e que serve de pano de fundo para algumas dessas questões), o desenrolar dos destinos, encontros, coincidências, experiências extremas, estranhamentos, as aproximações com o irracional, enfim, tudo o que faz a história de um indivíduo (e, poderíamos dizer, a história de uma coletividade) põe em questão a dialética entre o místico e o banal, o físico e o metafísico, o sonho e a concretude, o natural e o sobrenatural. Ainda assim, lembrando o cogito cartesiano retomado por Antônio Cícero, o ser que duvida, que nega, que contesta o mundo, é o único que pode garantir-se como real – essência do agora. A primeira pessoa, do ponto de vista lógico, é a impessoal, segundo argumenta. Portanto, as dualidades presentes na imagem “infinitivamente pessoal” também tocam essa perspectiva. E não poderíamos reduzir as relações entre o público e o privado ao contexto internacional. Como vimos, essa questão é ponto crucial das grandes interpretações sobre a brasilidade, de Gilberto Freyre a Sérgio Buarque de Holanda. A voz que se coloca na posição de “médium” do Brasil, naturalmente, ostenta a capacidade de fundir essas esferas como espelhamento (acidental) de um traço marcante do próprio país. Além disso, Cícero em seu O mundo desde o fim defende uma essência moderna que permite identificar em todos os indivíduos (de todas as épocas) a possibilidade latente de manifestar a criação, a novidade, a “extemporaneidade”. A história do movimento musical que teria trazido, segundo o autor, essa modernidade para a cultura brasileira não poderia deixar de assimilar a dualidade entre o criador e o mundo, o sujeito e a cultura a que pertence. E, chegar assim, à própria imagem do Brasil que defende, que só se realizará em sua vocação para o sincretismo e a diversidade quando forem garantidas as liberdades individuais. É mais uma vez no sujeito que aparece a chave da brasilidade e da universalidade, enlaçados pela valorização do moderno. É daqui que saem os vínculos com os grandes construtores artísticos da modernidade brasileira, de Oswald de Andrade a João Gilberto. O caráter híbrido de Verdade tropical, em alguma medida, funciona como a redução estrutural de todas essas questões que pairam sobre a tensão entre o público e o privado, que, aliás, é uma das grandes questões da contemporaneidade. A expressão

378

“infinitivamente pessoal” é o paradoxo (porém, linguisticamente existente) chave para o entendimento da verdade tropical que Caetano busca alcançar. E adoção de um método “mediúnico” é outra importante chave para sua leitura, indicando justamente a sobreposição do eu, da canção popular e do Brasil. Um segundo ponto a se retomar é a citação de Guilherme Wisnik sobre Caetano Veloso integrar, depois de Verdade tropical, o conjunto dos grandes intérpretes do Brasil, ao que cita Gilberto Freyre, Sérgio Buarque e Antonio Candido, mas também Roberto Schwarz. Conforme argumentamos, este trabalho coaduna com a tese de que Verdade tropical é também um ensaio de grande alcance sobre a brasilidade. No entanto, indicamos como nem seu gênero nem seu autor são, estritamente, pares das obras e dos autores supracitados. É evidente que a possibilidade de figuras entre esses outros nomes, diz respeito também à sua mobilidade, que se aproxima, pontualmente, da figura do intelectual/ professor/ pensador, mas distancia-se imediatamente do acadêmico. É curioso como a própria eleição dos livros e dos artigos citados por Caetano Veloso em Verdade tropical guarda a marca da contingência e, conforme já indicamos, do descompromisso com as exigências de uma reflexão acadêmica profissional. Muitas obras aparecem citadas sem o título ser apresentado. Outras carecem de datas. Em várias ocasiões, a presença de aspas indica a citação de um fragmento, cuja origem ou localização específica ficam perdidos. Muitos deles, menos do que obras fundamentais para a reflexão sobre o Brasil ou sobre o Ocidente, são lançamentos da década de 1990, estando próximos do contexto de escrita do livro. Isso não quer dizer, evidentemente, que as citações sejam impertinentes ou superficiais; apenas que foram incorporadas do tempo imediatamente presente e inseridas em forma de recortes, fragmentos, provocações. Esse procedimento, para além de oswaldiano, lembra, sobretudo, o método de Godard. No entanto, o que é importante chamar atenção é que essa interpretação do Brasil vem em um registro particular e de um lugar inesperado: a cultura popular e, sobretudo, a indústria do entretenimento. O grande formador do pensamento estético de Caetano Veloso ou de sua visão sobre a cultura brasileira é, antes de tudo, um músico, João Gilberto. Caetano, enquanto um “pop star do Terceiro Mundo” representa um lugar de fala: mais do que alguém que fala a partir dos trópicos, fala a partir da cultura popular de massas desses trópicos. Isso interfere diretamente nas escolhas, nas percepções, nos dimensionamentos, enfim, na narrativa sobre o país que ali se produz. Tal gesto não só ilumina o valor que tem

379

a canção popular, como faz com que esse valor ilumine todas as outras dimensões da vida brasileira. O aprofundamento das questões teóricas vinculadas à canção popular vem gerando cada vez mais estudos atentos a essas produções e a esse lugar de fala. Começam, nesse sentido, a se proliferar trabalhos, dissertações e teses voltados exatamente para a análise das canções ou dos compositores populares, ou dos gêneros musicais. Isso leva para a cena acadêmica não só outras perspectivas, mas outros personagens, outros protagonistas, outras vozes. É revelador, nesse sentido, que os trabalhos que começaram mais voltados para os letristas consagrados, que poderiam ter maior aceitação como objeto de pesquisa (Chico, Caetano, Gil etc), já atingem os estilos mais marginalizados, como funk, rap e hip hop, aprofundando as discussões sobre estética, mercado, valor de cultura, protagonismo, além de outras perspectivas acerca da realidade social, racial e cultural do Brasil. É inevitável lembrar aqui como o rádio e a televisão têm papel fundamental na educação das massas no Brasil, dando acesso, direto ou indireto, à poesia, à ficção, à linguagem. O interesse pela literatura no país (inclusive pelas faculdades de Letras) deve muito à força que tem a canção popular brasileira. Não é de se espantar como diversas áreas das ciências humanas e das ciências da linguagem tomam-na como objeto de interesse e pesquisa. Obras como as de Caetano Veloso foram fundamentais para colocar em evidência o valor dessa área de expressão, de sua história, de suas “linhas evolutivas”, de seu caráter revelador. Portanto, é fundamental que tomemos o comentário de Wisnik como um reconhecimento da narrativa de Verdade tropical (e do próprio tropicalismo que a antecedeu) como uma fonte rica de discussão sobre o Brasil, colocando-o entre os grandes pensadores do país. No entanto, não se pode esquecer que justamente o fato de Caetano Veloso ser uma espécie de intruso nesse conjunto é exatamente o que permite a ele a originalidade de sua leitura, e também o valor histórico e cultural que reside no gesto de proceder, nacional e internacionalmente, à valorização da cultura de massas brasileira. O livro Verdade tropical é, nesse sentido, também um grande convite para seus leitores – brasileiros e estrangeiros – a descobrirem as variadas expressões artísticas daquele período. Abrindo um repertório extenso de referências, a narrativa instiga à descoberta do país por meio de seus artistas, e revela uma vasta riqueza cultural, que age diretamente na dinâmica das autoestimas, o que pode gerar férteis consequências em termos de respeitabilidade, dignificação e, sobretudo, ambição.

380

Por fim, cabe agora, retomar a proposição do título do livro de Caetano Veloso. Para tanto, é preciso lembrar tanto a definição de Benedict Andreson (“uma nação é uma comunidade política imaginada”) como a mudança de perspectiva apontada por Renato Ortiz (a verdade de uma identidade nacional é um falso problema). O fato de assumirmos que toda identidade nacional é uma construção (que seleciona, elege, dimensiona, monta e relaciona as partes), podemos nos voltar para a questão principal: quem é o “artífice” dessa identidade e a que interesse serve? Transferindo a pergunta para nosso estudo: que consequências tem a afirmação da “verdade” tropical de Caetano Veloso? Em primeiro lugar, devemos destacar que Caetano (em todo o conjunto da obra de Caetano) aponta para a singularidade do caso brasileiro: o país “fora da ordem mundial” é aquele de onde se poderiam esperar “experiências extremas”, mas, principalmente, é aquele de onde se deveriam criar soluções originais. Essa é a primeira consequência importante dessa narrativa: negar contundentemente que o Brasil se submeta a modelos definidos e a respostas prontas. Sob esse prisma, o autor defende que o país deve ser o sujeito dos caminhos que escolher seguir, e isso é uma premissa básica da narrativa que estudamos. Além disso, o livro, apesar de frequentemente explorar tensões entre o racional e o místico, posiciona-se, como em vários episódios, decidindo-se pela lucidez. O autor chama atenção para a concretude da história narrada, e para avanços e transformações que se realizaram por meio das experiências culturais naquele período, o que conduz a prospecções positivas (embora bem medidas) sobre o que é possível fazer. A partir disso, Caetano, na parte da narrativa em que descreve o contexto de sua volta ao Brasil em 1972 (aproximando-se do término da narrativa geral), faz um balanço ponderado sobre o resultado do processo: [...] como se aí se iniciasse um processo de superação dos fanatismos revolucionários e do luto por suas derrotas, habilitando-nos assim a poder reconhecer suas vitórias parciais. Não tínhamos atingido o socialismo, não tínhamos sequer encontrado uma face humana no socialismo existente; tampouco tínhamos entrado na era de Aquarius ou no Reino do Espírito Santo; não tínhamos superado o ocidente, não tínhamos extirpado o racismo e não tínhamos abolido a hipocrisia sexual. Mas as coisas nunca voltariam a ser como antes. (VELOSO, 2008, p.463)

Descartando as perspectivas salvacionistas ou redentoras de várias ordens, Caetano sublinha o que seriam as mudanças possíveis. É nesse sentido que devemos tomar o pedido de que não tomemos seu livro como uma visão mística da História, mas “como esforço de

381

lucidez diante do que se apresenta como matéria mesma da nossa história sendo vivida”. De outro lado, é interessante perceber que o autor aponta para a importância de refletirmos sobre a dimensão mítica para compreendermos os processos de criação e as possibilidades de intervenção no mundo real, histórico, social. E, assim, o mito pode adquirir sua dimensão mais contundente – no imaginário de Pessoa – “o mito é o nada que é tudo”, a lenda é capaz de fecundar a realidade. Na canção “Livros”, do disco que foi feito simultaneamente a Verdade tropical, Caetano afirma: Mas os livros que em nossa vida entraram São como a radiação de um corpo negro Apontando pra expansão do Universo Porque a frase, o conceito, o enredo, o verso (E, sem dúvida, sobretudo o verso) É o que pode lançar mundos no mundo

O princípio criador a que se relaciona a poesia seria capaz, assim, de atravessar o limite da ficção e modificar a realidade. É nesse sentido que Caetano se recusa a uma perspectiva mística: seu entendimento do potencial criador do mito é lúcido e racional. A construção de uma “verdade” sobre o Brasil no tropicalismo e na própria narrativa sobre o movimento representa, portanto, semelhante desejo de “lançar mundos no mundo”. Evidentemente, o caráter híbrido do livro, o método mediúnico da narrativa e seu tom “infinitivamente pessoal” apresentam-se, em conjunto, apenas como uma das abordagens possíveis para Verdade tropical. A oferta de tamanha variedade de temas e mesmo a possibilidade de aprofundar uma série de questões representou uma dificuldade grande para a estruturação do trabalho, que fica ao menos como contribuição para as reflexões que se seguirem. Depois de decido o recorte, seguiu-se a tentativa de iluminar pelo menos alguns pontos importantes dessa obra específica e da produção de Caetano Veloso de modo geral. Aceitando suas limitações, este estudo tomou, assim, sua forma possível e, como cita o próprio autor no final de seu livro, aqui está.

382

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ADORNO, Theodor W. Indústria cultural e sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2002. ______. Notas de literatura I. São Paulo: Duas cidades; Ed. 34, 2003. ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento – fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. ALMADA, Izaías. Teatro de Arena – uma estética de resistência. São Paulo: Boitempo, 2004. ANDRADE, Oswald. O rei da vela. Rio de Janeiro: MEDIAfashion, 2008. ______. Obras Completas VI – Do Pau-Brasil à Antropofagia e às Utopias. Rio de Janeirro: Civilização Brasileira, 1970. ______. Obras Completas VII – Poesias Reunidas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971. ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. ARAÚJO, Paulo César. Roberto Carlos em detalhes. São Paulo: Editora Planeta, 2006. BARTHES, Roland. Mitologias. São Paulo: Difel, 1980. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura (Obras escolhidas v. 1). São Paulo: Brasiliense, 2012. BOAL, Augusto. Hamlet e o filho do padeiro – memórias imaginadas. Rio de Janeiro: Editora Record, 2000. _____. Teatro do oprimido e outras poéticas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. BOAVENTURA, Maria Eugênia. A vanguarda antropofágica. São Paulo: Ática, 1985 BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. CALADO, Carlos: Tropicália: a história de uma revolução musical. São Paulo: Ed. 34, 1997. CALLIGARIS, Contardo. Notas de um psicanalista europeu viajando ao Brasil. São Paulo: escuta, 1966. CAMUS, Albert. O estrangeiro. Trad. Antônio Quadros. Edição digital, 2000. Disponível em: http://www.imago.fcsh.unl.pt/upload/e_livros/clle000082.pdf. CAMPOS, Augusto de. Balanço da bossa e outras bossas. São Paulo: Perspectiva, 1993. CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira – momentos decisivos, 1750- 1880. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul; São Paulo FAESP, 2009.

383

CASTRO, Ruy. Chega de saudade. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. CHACAL. Uma história à margem. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2010. CICERO, Antonio. Finalidades sem fim. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. _____. O mundo desde o fim. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995. COELHO, Frederico. Eu brasileiro confesso minha culpa meu degredo – cultura marginal no Brasil das décadas de 1960 e 1970. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. COELHO, Frederico & COHN, Sérgio. Coleção encontros – Tropicália. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2008. CORRÊA, José Celso Martinez. Do pré-tropicalismo aos sertões: conversas com Zé Celso; [entrevista com] Miguel de Almeida. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2012. DUARTE, Rogério. Tropicaos. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2003. DUNN, Christopher. Brutalidade jardim: a Tropicália e o surgimento da contracultura brasileira. Trad. Cristina Yamagami. São Paulo: Editora UNESP, 2009. FAVARETTO, Celso. Tropicália: alegoria, alegria. São Paulo: Ateliê, 2000. FERRAZ, Eucanaã (org.). Letra só e Sobre as letras. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. ______(org.). O mundo não é chato. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. A construção do Brasil na literatura de viagem dos séculos XVI, XVII e XVIII: antologia de texto (1591-1808). Rio de Janeiro: José Olímpio; São Paulo: UNESP, 2002. FREUD, Sigmund. Obras completas volume 12 – Introdução ao narcisismo primário, ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-16). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. FREYRE, GILBERTO. Casa-grande & senzala. São Paulo: Global, 2006. GARCIA, Walter. Bim Bom - a contradição sem conflitos de João Gilberto. São Paulo: Paz e Terra, 1999. GASPARI, Elio; HOLLANDA, Heloísa Buarque de. & VENTURA, Zuenir. Cultura em trânsito: da repressão à abertura. Rio de Janeiro: Aeroplano Editora, 2000. GIL, Gilberto & ZAPPA, Regina. Gilberto bem perto. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013. HOBSBAWN, Eric. A era dos extremos – o breve século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

384

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia de Letras, 1995. ______. Visão do paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Impressões de viagem. São Paulo: Brasiliense, 1980. ______. & GONÇALVES, Marcos A. Cultura e participação nos anos 60. São Paulo: Brasiliense, 1987. JAY, Martin. A imaginação dialética: história da escola de Frankfurt e do Instituto de Pesquisas Sociais, 1923-50. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008. KAFKA, Franz. O processo. Trad. Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2005 KRACAUER, Siegfried. O ornamento das massas: ensaios. São Paulo: Cosac Naif, 2009. LABAKI, Aimar. Folha explica José Celso Martinez Correia. São Paulo: Publifolha, 2002. LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico – De Rosseau à Internet. B.H.: Editora UFMG, 2008. LEVIN, Ira. O bebê de Rosemary. São Paulo: Manole, 2014. LUCÁKS, Georg. A teoria do romance: um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da grande épica. São Paulo: Duas cidades; Editora 34, 2009. MACIEL, Luiz Carlos. Geração em Transe: memórias do tempo do tropicalismo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996. MAUTNER, Jorge. Coleção encontros. Org. Sérgio Cohn. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2007. MARCUSE, Herbert. Eros e civilização – Uma interpretação filosófica do pensamentode Freud. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar, 1986. MELLO, Zuza Homem de. A era dos festivais. São Paulo, Editora 34, 2003. ______. Folha explica João Gilberto. São Paulo: Publifolha, 2001. MORIN, Edgar. Cultura de massas no século XX: espírito do tempo 1: neurose. Rio de Janeiro: Forense universitária, 2011. ______. Cultura de massas no século XX: espírito do tempo 2: necrose. Rio de Janeiro: Forense universitária, 1977. NAVES, Santuza Cambraia. Da Bossa Nova à Tropicália. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

385

______.O violão azul – modernismo e música popular. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1998. NETO, Torquato. Torquatália: a obra reunida de Torquato neto/ organização de Paulo Roberto Pires. Rio de Janeiro: Rocco, 2004. OITICICA, Hélio. Museu é mundo. [org.: César Oiticica Filho]. Rio de Janeiro: Azougue editorial, 2011. ORTIZ, Renato. Cultura brasileira & identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 2012. PAULA, José Agrippino de. Panamérica. São Paulo: Editora Papagaio, 2001. PEREIRA, Carlos Alberto M.. O que é Contracultura. São Paulo: Brasiliense, 1983. PESSOA, Fernando. Mensagem. São Paulo: Martin Claret, 2006. PRADO JR., Caio. Formação do Brasil contemporâneo: Colônia. São Paulo: Brasiliense; Publifolha, 2000. PRADO, Paulo. Retrato do Brasil – ensaio sobre a tristeza brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. RISÉRIO, Antonio. Avant-garde na Bahia. São Paulo, Instituto Lina Bo e P. M. Bardi,. 1995. ROCHA, Glauber. Revisão crítica do cinema brasileiro. São Paulo: Cosac Naify, 2003. ______. Revolução do cinema novo. São Paulo: Cosac Naify, 2004. ROSZAK, Theodore. A contracultura. Trad. Donaldson M. Garschagen. Petrópolis: Vozes, 1972. SALOMÃO, Waly. Alegria, alegria: uma caetanave organizada por Waly Salomão. Rio de Janeiro: Pedra Q Ronca, 1977. SILVA, Agostinho da. Comunidade luso-brasileira e outros ensaios. Brasília: Fundação Alexandre Gusmão, 2009. SARTRE. Jean-Paul. As palavras. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor, as batatas. São Paulo: Editora 34, 2000. _____. “Cultura e política, 1964-69”. In: O pai de família e outrosestudos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. _____. Que horas são? : ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. _____. “Verdade tropical: um percurso de nosso tempo”. In: Martinha versus Lucrécia. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. STRAUSS, Claude-Lévi. Tristes trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

386

SUKMAN, Hugo. Histórias paralelas – 50 anos de música brasileira. Rio de Janeiro: casa da palavra, 2011. TATIT, Luiz. O cancionista: composição de canções no Brasil. São Paulo: Edusp, 2002. ______. O século da canção. São Paulo: Ateliê, 2004. TINHORÃO, José Ramos. História social da música brasileira. São Paulo: Editora 34, 1998. _____. Música popular: um tema em debate. São Paulo: Editora 34, 2012.

VELOSO, Caetano. O mundo não é chato. [organização e apresentação Eucanaã Ferraz] – São Paulo, Companhia das Letras, 2005. _____. Letra só: Sobre as letras; organização Eucanaã Ferraz – São Paulo: Companhia das Letras, 2003. _____ . Verdade tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. XAVIER, Ismail. Alegorias do subdesenvolvimento – cinema novo, tropicalismo, cinema marginal. São Paulo: Cosac Naify, 2012. WARHOL, Andy. Popismo – os anos 60 segundo Warhol. Rio de Janeiro: Cobogó, 2013. WISNICK, Guilherme. Folha explica Caetano Veloso. São Paulo: Publifolha, 2005. WISNICK, José Miguel. Sem receita. São Paulo: Publifolha, 2004. ZÉ, Tom. Tropicalista – lenta luta. São Paulo: Publifolha, 2009.

387