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Santuza Cambraia Naves CESAP/Universidade Cândido Mendes e Departamento de Sociologia e Política/PUC-RJ.

“E Onde Queres Romântico, Burguês”

urante o espetáculo / menos a partir de meados da déca- Disco, que da de 1990, tornou-se comum Dapresentou no Canecão no tematizar a ‘caretice’ incorporada à dia 16 de maio de 1998, um dos espec- imagem de Caetano, o que teria a ver tadores lhe dirigiu o seguinte apelo: não só com o novo estilo de vida assu- “Tira a gravata, Caetano!” O músico re- mido em família a partir do seu se- agiu indignado, proferindo um palavrão gundo casamento, em que ele, por entre rimas e declarando-se ‘rebelde’. O exemplo, posa ao lado da mulher episódio deu o que falar, tendo sido bas- Paula Lavigne para a emergente revis- tante divulgado pela imprensa — prin- ta Caras, como também com o visual cipalmente nas colunas humorísticas clean que passou a adotar. Afinal, ar- —, e reacendeu questões, se não anti- gumenta-se, em vez da identidade gas, pelo menos recorrentes na trajetó- construída com fragmentos da ria recente do compositor. A gravata, as- contracultura e com a sensibilidade sim, adquiriu uma grande for- tropicalista — Europa, ça simbólica, chegando a França e Bahia —, que tan- agravar um tipo de apreciação negativa to abalou o país nas décadas de 1960 e da nova persona que o compositor tem 1970, Caetano cada vez mais incorpora o apresentado ao público. De fato, mais ou caballero de fina estampa.

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Assisti a esse mesmo show no dia 30 de título alude a Para todos, canção recente maio. Assim que Caetano entrou no pal- de que também presta tri- co, percebi que a roupa que usava era buto a outros músicos populares), cujos uma homenagem explícita a João Gilber- últimos versos são: to. Buscando incorporar ali o espírito da Melhor do que isso só mesmo o silên- bossa nova, Caetano exibia uma cio/E melhor do que o silêncio só João. performance típica de João Gilberto — do Essas considerações iniciais sobre a terno escuro à cena do banquinho e vio- performance de Caetano já sinalizam uma lão. Assim, no início do espetáculo, can- discordância, de minha parte, com rela- tou Saudosismo, uma das canções-mani- ção às interpretações correntes que apon- festo da tropicália, lançada por ele em tam para uma suposta descontinuidade 1969. Contendo uma citação de Chega de recente na trajetória do compositor. De saudade, composição de Tom Jobim e acordo com esta linha de argumentação, Vinícius de Morais, que se tornou famosa Caetano tenderia, cada vez mais, a subs- com a interpretação de João Gilberto, tituir a atitude iconoclasta que exibia nas Saudosismo tematiza, entre outras coisas, décadas de 1960 e 1970 por uma linha a retomada da linha ‘dissonante’ inaugu- de ação mais conformista ou conserva- rada por João Gilberto: dora. Desafinando o coro dos desconten- ... chega de saudade a realidade é que tes com a suposta guinada de Caetano aprendemos com João prá sempre a ser rumo à caretice, afirmo que o procedi- desafinados. mento adotado pelo compositor no show Livro/Disco mostra, ao contrário, uma Nessa música, Caetano manifesta nostal- continuidade com o tipo de trabalho que gia pelos tempos heróicos da bossa nova, ele desenvolve ao longo de sua trajetó- apresentada como antecessora da ria. Assim, em vez de estimular uma tropicália, um outro movimento reificação da gravata como símbolo da contestador, que ‘desafina’ das práticas caretice, o espetáculo Livro/Disco pode- dominantes, porém ao mesmo tempo res- ria sugerir um tipo de reflexão mais an- salta que o que os dois tempos da MPB corada na perspectiva histórica. têm em comum é precisamente uma pos- tura de desprendimento em relação ao No meu entender, Caetano não está se passado. Assim, ao terminar a canção com acomodando a uma atitude conformista o estribilho “chega de saudade”, Caetano de copiar modelos supostamente conser- simultaneamente saúda a canção-mani- vadores, burgueses ou pequeno-burgue- festo da bossa nova e afirma o repúdio ses. Esta linha de argumentação, bastan- ao saudosismo. Ao final do show, ele mais te rígida, aborda desde o início uma aná- uma vez homenageia João Gilberto com lise mais flexível, a meu ver, tão necessá- uma composição nova, Prá ninguém (o ria para se pensar temas culturais. Ado-

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to, portanto, uma perspectiva diferente, definitivamente com uma certa tradição observando que há, no Brasil, uma de- de ruptura instaurada no país nas déca- terminada tradição que se configurou na das de 1940 e 1950. A concepção musi- música popular que, ao desenvolver um cal da bossa nova, ao introduzir amplas certo tipo de refinamento, principalmen- inovações formais — desde o estilo de te através de um diálogo constante com composição à interpretação, arranjo, algumas áreas ‘eruditas’, demanda inter- harmonização e ritmo —, inaugurou, no pretação. campo da música popular, uma atitude É importante observar, quanto a essa excludente a respeito de grande parte do questão, que a estética de Caetano refe- repertório anterior. O recurso à re-se bastante a textos preexistentes, o ‘linearidade’, pela bossa nova, fugindo do que tem a ver não só com o procedimen- histrionismo contido no repertório popu- to metalingüístico que ele adota, tão caro lar e enveredando por uma linha mais à poética moderna, como também com a contida e ao mesmo tempo mais funcio- atitude incorporativa que ele assume em nal, encontra analogia com outras mani- relação a diferentes tradições. Poderia festações artísticas dos anos de 1950, argumentar, para ilustrar este último pon- como a arquitetura de , to, que o movimento tropicalista rompeu consagrada com a construção de Brasília,

Caetano Veloso canta Alegria, alegria, no III Festival da Música Popular realizado em , em 21 de outubro de 1967, pela TV Record. Arquivo Nacional.

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e mesmo com a experiência da poesia sica popular, com o seu sentimentalismo concreta. piegas; de igual modo, não mais se con- cebe a criação de arranjos musicais com Subjaz a todos esses projetos estéticos violinos plangentes ao fundo. um compromisso com a ‘objetividade’ for- mal, construída a partir de uma recusa Retomando o tema tropicalista, embora radical dos procedimentos excessivos que os músicos baianos incorporem a bossa marcaram manifestações artísticas ante- nova — e mesmo a poesia concreta — ao riores. No caso da poesia concreta, pro- seu projeto estético, uma atitude diferente move-se um corte com uma certa tradi- é avocada a respeito da tradição. A cons- ção de prolixidade que marcou vários ciência tropicalista, voltada para a momentos da poesia brasileira, como a interação do passado com o presente, geração de 1945. A coletânea Balanço da opõe-se à tradição bossanovista, e mes- bossa, organizada em 1968 por Augusto mo concretista, de negar grande parte do de Campos, um dos ideólogos da poesia passado para atualizar o seu projeto es- concreta, mostra a afinidade desses poe- tético. Fredric Jameson desenvolve uma tas com a bossa nova. Nos artigos desta discussão esclarecedora sobre esse as- coletânea — vários de autoria de Augusto sunto, ao contrapor a paródia — que es- de Campos —, atribuiu-se um procedi- tabelece uma relação negativa com o tex- mento moderno à bossa nova, pelo rom- to que lhe serve de fonte — ao pastiche pimento com as formas tradicionais, — que opera, segundo ele, “uma retoma- como o ‘exibicionismo operístico’, valori- da lúdica do texto do passado”.2 Embora zando-se, portanto, o ‘intimismo’ que ca- os tropicalistas incorram em ambas as racteriza as interpretações de João Gil- atitudes, fazendo uso da paródia e do berto e Nara Leão.1 pastiche, eles inauguram um tipo de prá- tica que recorre mais ao pastiche, pela percebe, portanto, forma como incorpora ritmos e temas da convergências entre a poesia concreta e cultura brasileira, ao invés de negá-los. a bossa nova, principalmente pelo fato de Os tropicalistas adotam o ecletismo, con- ambas as estéticas operarem com a ‘con- figurado, no caso, pela mistura de ele- cisão’, a ‘objetividade’ e a ‘racionalidade’. mentos expressivos e pelo abandono dos Tanto uma como a outra rompem com as padrões convencionais de bom gosto — tradições anteriores associadas ao exces- inclusive aqueles que marcaram o so. No caso da poesia concreta, como se intimismo bossanovista. observa, repudia-se tanto o excesso ro- mântico quanto o que se manifesta em Caetano radicaliza — e atualiza — este qualquer forma verbalizada. Em se tratan- procedimento incorporativo com relação do da bossa nova, o que é rejeitado tem à tradição no CD Fina estampa, lançado a ver com a diluição do operismo na mú- em 1994. Trata-se, no caso, de uma tra-

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dição há muito reverenciada pelo compo- mente as idéias de revolução, solidarie- sitor, desde a fase da tropicália: a latino- dade terceiro-mundista e afirmação ibé- americanista. Em 1968, Caetano anunci- rica diante do poder norte-americano, ava, entremeando português e espanhol: todo um complexo de idéias que se resu- “Soy loco por ti America, soy loco por ti me na figura emblemática de Che de amores”, e gravava, numa versão que Guevara. Quando, 26 anos depois, Cae- reunia a letra original em espanhol e uma tano focaliza a música hispano-america- tradução-adaptação para o português, a na nos dois álbuns Fina estampa, o que canção cubana Três caravelas. No contex- está em questão é coisa muito diferente: to do álbum Caetano Veloso, primeiro dis- é a programação do rádio dos anos de co solo do artista, e do álbum-manifesto 1950, que divulgava um repertório de Tropicália ou panis et circencis, ambos boleros, tangos, rumbas e guarânias. As- de 1968, as referências ao mundo sim, Caetano percorre em seus discos hispano-americano evocam inevitavel- uma ampla gama da música popular

Caetano Veloso exilado em Londres em 1972. Arquivo Nacional.

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hispano-americana — da simplicidade da negras quanto das fontes da música pop canção paraguaia Recuerdos de Ypacarai, internacional, partindo para um desenvol- de Zulema de Mirkin e Demetrio Ortiz, à vimento mais linear de composição, vol- sofisticação da argentina Vuelvo al Sur, tado para o funk. Caetano, pelo contrá- de Astor Piazzola e Fernando Solanas. Re- rio, não envereda por um caminho espe- correndo ao arranjo sofisticado de cífico. Esse leque variado de influências Jacques Morelenbaum, Caetano recria em sua obra já corresponde à postura muitas daquelas músicas que ouvia ao pé cada vez mais ambígua que desenvolve a do rádio, junto com a mãe, em Santo partir de 1972, juntamente com a incor- Amaro da Purificação. Ao interpretar as poração, também cada vez maior, do ele- canções bregas desta tradição ibero-ame- mento lúdico. Ao discurso vanguardista ricana, Caetano homenageia, ao mesmo da época da tropicália, o compositor tempo, d. Canô. Não se trata, portanto, contrapõe, assim que retorna, um discur- de parodiar, ou de assumir qualquer tipo so totalmente destituído de teor de atitude irreverente com relação a esse programático, adotando um tom blasé e repertório constituído de canções líricas, descomprometido com relação aos acon- dramáticas e mesmo plangentes, mas de tecimentos de que participou anterior- consagrá-las como parte do nosso pas- mente. sado e do nosso diversificado leque cul- Também a ‘atitude’ do compositor revela tural. um descompromisso com relação a pro- Os componentes críticos e sarcásticos da jetos de teor mais coletivo. Embora hou- paródia não teriam muito a ver, na verda- vesse um componente anárquico no pro- de, com o dengo baiano cada vez mais jeto dos baianos desde a fase da incorporado à imagem de Caetano a par- tropicália, causou impacto a maneira ba- tir de 1972 — ano que marca a sua volta sicamente jocosa como Caetano represen- do exílio em Londres.3 Com o regresso tou a sua volta. Para uma platéia que ao Brasil, os baianos vinculados ao pro- aguardava com avidez a versão pós-exí- jeto tropicalista redefinem as suas posi- lio do mito, Caetano apareceu em vários ções no meio artístico e separam as suas shows pelo Brasil imitando os trejeitos de trajetórias em projetos distintos. Embora Carmem Miranda. A transfiguração em Caetano Veloso e dêem con- Carmem Miranda reverte também as ex- tinuidade a sua prática devorativa, absor- pectativas por um outro lado. Se na dé- vendo as novas tendências do rock das cada de 1960 a face hippie predominava, décadas de 1970 e 1980, e as novas li- no início da década de 1970 instaura-se nhas derivadas do reggae, concorda-se, de vez a ambigüidade. Carmem Miranda, hoje, quanto às diferenças entre um e no caso, sugere a transcendência dos pa- outro na forma de realizar a antropofa- péis masculino/feminino, não a sua inver- gia. Gil sai à procura tanto de suas raízes são. Esse aspecto ‘indiferenciado’ quanto

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à identidade sexual vai se fazer notar, a cilmente identificáveis no meio artístico partir daí, tanto na postura quanto na e na Zona Sul do Rio de Janeiro, um sur- obra. Meses depois, por exemplo, no LP fista ipanemense recebe uma sensual ho- Araçá azul (1973), Caetano cantou o menagem do compositor em Menino do bolero Tu me acostumbraste (F. Rio, canção do LP Cinema transcendental Dominguez) em falsete, parodiando a (1979), grande sucesso do verão de 1980. maneira feminina de interpretar. Júlia, No mesmo disco, com Beleza pura, Cae- Moreno, do mesmo LP, retoma a estrutu- tano dirige-se tanto à “moça preta do ra de Batmacumba, recorrendo ao pro- Curuzu” como ao “moço lindo do Badauê”. cedimento de subtrair e acrescentar síla- O vampiro, de , incorpora- bas na construção do texto. Tematizando do a Cinema transcendental, é também o nome da futura filha — ou filho —, re- bastante ambíguo neste sentido: mete à questão da ‘indefinição’ sexual: Por isso é que eu sou um vampiro

Uma talvez júlia E com meu cavalo negro eu apronto

... um quiçá moreno. E vou sugando o sangue dos meninos E das meninas que eu encontro ... Entre as várias figuras inspiradoras de Caetano, delineadas através de tipos so- Esse aspecto andrógino/sensual aparece, ciais em voga, ou mesmo de pessoas fa- às vezes, na obra de Caetano, com um

Gilberto Gil e Os Mutantes cantam Domingo no parque no III Festival da Música Popular realizado em São Paulo, em 21 de outubro de 1967, pela TV Record. Arquivo Nacional.

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tom de manifesto, como no LP Velô, su- no formal (música). A citação de Roberto gerindo identidade com as chamadas mi- Carlos pode ser vista, por um outro ân- norias. Na composição Língua, introduz gulo, como um procedimento em que a palavra frátria, indicando o sentido de Caetano se identifica com as canções da ‘similaridade’ ou de ‘fraternidade’: música popular, como se a despeito de uma maior sofisticação, o compositor dis- A língua é minha pátria sesse ser no fundo “muito romântico”. E eu não tenho pátria: tenho mátria

Eu quero frátria. Caso semelhante se dá em Sampa, do Em Podres poderes, a identidade se esta- mesmo LP, em que no próprio título, como belece com os “índios e padres e bichas, observa Romildo Sant’Anna, vê-se uma negros, mulheres e adolescentes” que “fa- “redução etimológica do vocábulo São 4 zem o carnaval” e “velam pela alegria do Paulo, por composição afetiva” e a cida- mundo”. de recebe um tratamento sentimental. Caetano apropria-se de Ronda, canção do etomando a questão da compositor paulista Paulo Vanzolini, e metalinguagem, a citação é, toma-a como base, trabalhando-a a par- portanto, um procedimento re- R tir da estrutura musical. Sampa traduz- corrente na estética de Caetano. Muito ro- se numa sucessão de citações e alusões mântico (LP Muito, 1978) é um exemplo à cidade de São Paulo, a Vanzolini, aos de puro pastiche, ao mesmo tempo que irmãos Campos — “da dura poesia con- mostra um humor especial, ao fazer uma creta de tuas esquinas” ou “eu vejo sur- imitação carinhosa do estilo de Roberto gir teus poetas de campos e espaços”—, Carlos. Os recursos ingênuos e melódi- ao Grupo Oficina — “tuas oficinas e flo- cos das canções de Roberto Carlos são restas” —, ao Teatro de Arena — “novo inseridos na letra e no arranjo, conviven- quilombo de zumbi” —, e a , en- do com o estilo mais cerebral de Caeta- tre outros. Sampa é também puro no. O vocabulário preciosista do primei- pastiche pela incorporação lúdica da com- ro, com construções como “nenhuma for- posição de Paulo Vanzolini e pela manei- ça virá me fazer calar” ou “com todo mun- ra como joga com os seus componentes do podendo brilhar no cântico”, mistura- líricos e jocosos, não permitindo, ao lon- se, no texto, com expressões coloquiais go do texto, que um se sobreponha ao de Caetano, como “eu não douro pílula”. outro. A letra comenta também a música. Um momento de suspensão harmônica, por Um bom exemplo de pastiche, represen- exemplo, coincide com a frase “tudo o que tado num conjunto de criações e atitudes, eu quero é um acorde perfeito maior”, in- pode ser visto no show de Caetano dicando um equilíbrio que se expressa intitulado Totalmente demais, realizado tanto no plano lingüístico (letra) quanto no Teatro João Caetano, em 1986. O es-

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petáculo — como o disco do mesmo nome música popular. Dito de outro modo, a — é entremeado de homenagens e cita- despeito da sofisticação de sua linguagem ções. O elogio rasgado a João Gilberto musical, Caetano promove uma comuni- consta da primeira parte do programa. O cação imediata com o público, não exi- repertório é bastante variado, mostrando, gindo um exercício de exegese para ou- entre outras coisas, rock brasileiro, mú- vir suas composições. Perde-se muito, sicas regionais, antigos, bossa sem dúvida, sem tal exegese, mas não se nova, fados e boleros tradicionais. A uma perde o prazer de ouvir suas composi- certa altura do show, Caetano entra em ções. Uma única exceção foi, talvez, a cena dando saltos que são a marca regis- aventura altamente experimental vivida trada do roqueiro Chuck Berry, no clássi- pelo compositor em 1973, quando lançou co estilo duck walk. Faz também um pot- o LP Araçá azul e enveredou pelo domí- pourri com as canções Billie Jean, de nio mais fechado das experiências Michael Jackson, e Nega maluca, compo- vanguardistas. Afastando-se dos padrões sição de Evaldo Rui e Fernando Lobo, de habituais de consumo, o disco foi rejeita- 1950, ressaltando a coincidência dos te- do pelo público, e até devolvido às lojas. mas, ou seja, a situação de um rapaz que Mas Araçá azul, apesar de constituir, por nega ser o pai de uma criança. Após can- sua ousadia, um caso à parte na obra de tar Prá que mentir, de e Vadico, Caetano, evoca outro procedimento recor- Caetano entra direto numa nova canção rente do compositor: o embaralhamento sua, Dom de iludir, que retoma expres- dos registros erudito e popular. Ao pro- sões contidas na letra de Prá que mentir, duzir esse disco, Caetano dialogou inten- como se prolongando o colóquio irônico samente com tradições experimentalistas, e amoroso da canção clássica, atualizan- como a poesia concreta, a música de Ro- do a linguagem com expressões contem- gério Duprat e mesmo o ready-made co- porâneas e apresentando o outro lado da mum às artes plásticas.5 argumentação — presumivelmente, o Mas, além dessa realização radicalmente ponto de vista da mulher, com a propos- vanguardista, Caetano tende a promover ta de que, num mundo dominado pela vi- uma descontinuidade conceitual entre um são masculina, a mulher é obrigada a re- disco e outro, o que o faz confundir os correr à mentira: domínios do popular e do erudito. Esse procedimento lhe permite desenvolver Você diz a verdade e a verdade é seu uma grande flexibilidade, distinguindo-o dom de iludir. de perfis de artistas que aqui se configu- Como pode querer que a mulher vá raram. O músico erudito, por exemplo, viver sem mentir. mesmo que assuma uma atitude experi- O recurso à citação não prejudica, no en- mental e dialogue com várias tradições, tanto, a fruição da obra de Caetano como interage com uma platéia restrita. E no

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caso do músico popular extremamente repertório também diverso, o rock pro- apegado a determinadas raízes culturais, move, ao mesmo tempo, um trabalho como o sambista ortodoxo, embora con- jornalístico com o ‘aqui e agora’. Caeta- siga comunicar-se com um público mais no problematiza essa questão porque vai amplo, desenvolve uma recepção fecha- além, estendendo infinitamente o tipo de da, recorrendo a um repertório limitado. recepção que o rock realiza. Apesar do seu trabalho não ter uma penetração tão Não é então por acaso que o rock, nessa intensa quanto a do rock mais comercial, linha de raciocínio, apresenta-se como a a sua maneira de captar realidades é música popular por excelência, realizan- muito mais eclética, incluindo ritmos, do a função moderna da arte nos níveis temáticas e atitudes diversos. da recepção e da comunicação direta, in- tensa e imediata. Na medida em que Procedimento semelhante Mikhail Bakhtin interage com um público diversificado e observou no campo literário através dos que recorre, no processo criativo, a um gêneros polifônico e carnavalesco, intrín-

João Gilberto em 1971. Arquivo Nacional.

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secos à linguagem inaugurada pelo ro- riza entre os músicos brasileiros. Sua mance de Dostoiévski. Ambos os gêneros postura sincrética, na medida em que não se contrapõem, segundo ele, a uma vi- se limita ao repertório, permite que ele são monológica do mundo. Bakhtin afir- tensione os campos fechados do erudito ma que a visão de Dostoiévski de sua épo- e do popular, pontificando muitas vezes ca corresponde às transformações ope- fora da área originalmente delimitada. radas na vida social com o advento do ca- Neste sentido, pode-se dizer que tal como pitalismo. Sua leitura da realidade, ade- o rock, em seu contexto específico, Cae- quando-se a uma complexificação do so- tano realiza uma publicística com a reali- cial, coloca os diferentes planos em “co- dade que capta à sua volta. existência” e “interação”, lançando os ele- Quanto a esse ponto, observa-se que o mentos básicos do procedimento compositor não se limita a atualizar te- polifônico. Bakhtin aproxima este proce- mas, convertendo para uma linguagem dimento das sátiras menipéias, remanes- nova a própria maneira de discutir assun- centes das tradições mais antigas da lite- tos emergentes do debate cultural e polí- ratura ocidental e do folclore carnavales- tico. Em Podres poderes (composição de co. Dentre as particularidades fundamen- 1984, do LP Velô) essa atitude é clara, tra- tais desse gênero, alinhavadas pelo au- zendo à tona a questão do oprimido com tor, vale destacar a presença do elemen- a roupagem do momento, ou seja, da to cômico, a “excepcional liberdade de maneira como os movimentos políticos invenção temática e filosófica”, a mais ‘avançados’ tratam o problema. Os pluralidade de contrastes, a incorporação marginalizados pelo poder, no caso, ao de utopias, o emprego indiscriminado de invés de serem classificados gêneros intercalados que reforçam, por indiferenciadamente por meio da catego- sua vez, a “multiplicidade de estilos e a ria ‘povo’, são diversamente identificados pluritonalidade”, e a publicística atualiza- como ‘índios’, ‘bichas’, ‘negros’, ‘adoles- da — uma forma de literatura que centes’ etc. tematiza questões da atualidade e que constitui um “gênero ‘jornalístico’ da An- O valor que Caetano atribui à capacidade tigüidade”.6 de experimentar aparece com muita for- Todos esses elementos do romance de ça em Velô, um disco em que homena- Dostoiévski encontram-se na ‘estética de geia os modernismos. O poeta Augusto fragmentos’ da tropicália e mantêm-se no de Campos, legítimo representante de trabalho que Caetano desenvolve poste- uma poética ‘de invenção’, portanto mo- riormente. A multiplicidade de estilos in- dernista, atua no disco em parceria com corporada por Dostoiévski a sua obra li- Caetano por meio do poema Pulsar. A terária corresponde, na estética de Cae- composição Língua converte-se, em de- tano, a um tipo de atitude que o singula- terminado momento, num tipo de mani-

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festo que vai recolhendo e homenagean- car um ‘estranhamento’ no familiar. As do trajetórias ‘modernas’: duas atitudes, assim, “se pressupõem mutuamente; ambas são elementos de um Gosto do Pessoa na pessoa/ processo complexo que gera significados Da rosa no Rosa... culturais, definições do eu e do outro.” Poesia concreta e prosa caótica... Clifford afirma que esse processo — “um Caetano cita o “vídeo clip futurista” em permanente jogo irônico de semelhança Graffiti, e em O homem velho, dedicado e diferença, do familiar e do estranho, do ao pai, a Mick Jagger e a Chico Buarque, aqui e do em toda a parte” — é caracte- tematiza a trajetória das vanguardas. A rístico da modernidade global.7 tematização da modernidade em Velô in- clui a capa e o encarte do disco, em que Analisando à parte o caso da etnografia tanto as palavras quanto as ilustrações da década de 1920, desenvolvida pelos são colocadas em formas geométricas. Na franceses — notadamente Paul Rivet, disposição gráfica de Pulsar, por exem- Lucien Lévi-Bruhl e Marcel Mauss —, plo, os desenhos de formas que sugerem Clifford sugere que os procedimentos estrelas e luas completam as palavras, surrealistas estão sempre presentes nos substituindo as vogais. trabalhos etnográficos, tomando o meca- nismo da ‘colagem’ como um “paradigma Se a leitura caetânica da realidade brasi- útil”. Isto se verifica na maioria das leira harmoniza-se com as concepções etnografias, em que diferentes realidades políticas e estéticas mais ‘progressistas’, culturais são deslocadas de seus contex- também não é menos verdade que se ali- tos originais e justapostas a fim de pro- nha com as questões antropológicas atu- vocar uma estranheza no plano da repre- ais referentes ao conceito de ‘cultura’. O sentação. O recorte dos elementos — um tratamento dispensado à ‘diferença’, pelo recorte de jornal ou uma pena de ave — menos, é convergente nas duas interpre- e a maneira de montá-los constituem por tações. É bastante sugestiva, a propósi- si mesmos a própria mensagem to, a relação que James Clifford estabe- semiótica. E mais relevante ainda, para o lece entre o humanismo antropológico e tema que desenvolvo, é a observação de o que ele denomina de “surrealismo Clifford de que: etnográfico” — antinomias inseridas, se- gundo ele, no “dilema histórico e cultural Os cortes e as suturas do processo de transitório” da Paris da década de 1920. pesquisa são deixados visíveis; não há O humanismo antropológico toma a ‘di- um alisamento ou uma combinação dos ferença’ como ponto de partida, tentan- dados crus da obra, de modo a formar do torná-la ‘compreensível’ — ele busca uma representação homogênea. Escre- ‘familiarizar’. A prática etnográfica ver etnografias sobre o modelo da surrealista, em contraste, procura provo- colagem seria evitar a representação de

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culturas como todos orgânicos ou uni- singularidades culturais. ficados, mundos realísticos submetidos Em entrevista que me foi concedida em a um discurso explanatório contínuo. 1986, Caetano observa que este tipo de (…) A etnografia como colagem deixa- prática tem a ver com a sensibilidade ‘pós- ria manifestos os procedimentos utópica’ que marcou um certo segmento construtivistas do conhecimento de artistas na década de 1960: etnográfico; seria uma montagem que O que eu posso dizer é que esses pro- contivesse vozes que não as do cedimentos, do modo como foram fei- etnógrafo, como também exemplos de tos, quando se realizaram, o contexto dados ‘encontrados’, informações não temporal e cultural em que eles apare- plenamente integradas à interpretação ceram, eles são mais pós-utópicos do dominante da obra. Finalmente, ela não que utópicos. Eles não são nem tentaria minimizar aqueles elementos normativos, nem moralizantes, nem da cultura estrangeira que fazem com fundantes. Eles são instigantes... Pro- que a cultura do investigador torne-se curam mexer com essa questão de eru- ela própria incompreensível.8 dito, popular, comercial, resguardado

etc. aetano, ao lidar com categorias tradicionalmente vistas como Teve uma relação amorosa com a pro- Cantagônicas, cria constante- dução artística ingênua e violenta da in- mente a sensação de estranheza descrita dústria: latas de Campbell’s, garrafas de por Clifford com relação aos “etnógrafos Coca-cola, fotografias de Marilyn surrealistas”. Retomando o tema da gra- Monroe, e o cinema e coisas assim mais vata para ilustrar esse procedimento, não vulgares, como o posto da Esso. Primei- se pode dizer que ela apareça no espetá- ro como matéria de assunto dos qua- culo Livro/Disco como mero acessório do dros, depois como coisa em si que ti- figurino de Caetano. Mais do que isso, ela rada do contexto venha a significar ou- se converte numa peça, entre outras, que tra coisa. (...) E, de todo modo, naque- o compositor/intérprete recolhe para le período, como a questão era sobre- montar sua colagem de linguagens. Nes- tudo comentar o repertório existente, se processo, assim como o violoncelo eu realmente me senti muito bem ar- ‘erudito’ de Jacques Morelenbaum dialo- mado para fazê-lo, porque eu tinha ta- ga com os instrumentos ‘populares’ da lento para dar uma sacada e, deslocan- percussão baiana, a gravata de Caetano do objetos do lugar, botando em deter- convive com os bonés e tênis de seus minado disco uma canção, em determi- músicos. Cria-se, assim, não uma síntese nada canção um tipo de frase, em de- homogeneizante, mas um mosaico de terminado tipo de poesia uma fragmentos que têm preservadas as suas orquestração, uma instrumentação, eu

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fazia com que estas coisas aparecessem ção’, incorporando de tudo — ‘fácil’ e ‘di- imediatamente comentadas e com um fícil’, ‘bom’ e‘ruim’, ‘legítimo’ e ‘não legí- comentário mais ou menos provocativo, timo’ — trabalhando, dentro do espírito e não normativo ou moralizante. do rock, com o imediato. Neste sentido,

Na medida em que incorpora a técnica e pode-se dizer que Caetano é o ‘músico ingressa sem reservas no universo da ‘in- popular’ por excelência, realizando, tam- dústria cultural’, Caetano mostra-se pró- bém à maneira do rock, a assimilação do ximo do modernismo antropofágico. Esse ‘aqui e agora’ e optando pelo ofício de vul- procedimento o afasta, por outro lado, de garizar, decodificar e sincretizar lingua- um certo tipo de pudor vanguardístico. Há gens diversas. Parafraseando Bakhtin em 9 uma certa tradição moderna, por exem- sua alusão a Dostoiévski, creio que pos- plo, tanto literária — como a poesia deri- so afirmar que Caetano é, por excelên- vada de Ezra Pound — quanto musical — cia, o bardo das transformações realiza- como a música dodecafônica —, que apre- das na sociedade brasileira e nas concep- senta uma estética de negação do fácil, ções sobre a sua natureza. Mas trata-se do prazer imediato. Dentro dessa concep- de um bardo atualizado, que não se ção, o prazer estético só pode ser contenta em recolher e comen- atingido após um demorado pro- tar repertórios diversos; Cae- cesso de análise e decodificação — tano atua como ‘significante’ é preciso identificar uma série de desta pluralidade cultural, citações para compreender o poe- expressando e dramatizan- ma; é preciso reeducar o ouvido para do, em sua figura pública, as fruir a música. Essa visão estética contradições inerentes ao seu nega os valores fáceis e meio. imediatamente fruíveis — Como persona e como a sintaxe e os recursos criador, Caetano esta- tradicionais de belece uma aproxima- versificação; a tonali- ção entre polaridades dade e a melodia — cujo efeito é equipará- em função de uma las e questionar a pró- fruição postergada de pria distinção res- elementos previamente ponsável por sua codificados. existência. Assim, Enveredando pelo domí- como artista cria- nio da comunicação de dor, Caetano reúne a massa, Caetano opta por condição ‘elevada’ de mú- uma estética de ‘afirma- sico de vanguarda e po-

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eta erudito com a ‘baixa’ de compositor e ‘espelho’ do que acontece ao redor. Cap- cantor popular; como figura pública, ta diferentes tipos de sensibilidades ao questiona as polaridades ‘engajado/ longo de sua trajetória, recriando-as, desbundado’, ‘autêntico/enlatado’, ‘ho- decodificando-as e atualizando-as. Atra- mem/mulher’, 'popular/erudito’, e assim vés desse procedimento básico, os diver- por diante. Ao mesmo tempo, a aliança sos Caetanos traduzem diversas imagens. de contrários encontra-se no interior de suas obras, no contraste entre diferentes Agradeço a Paulo Henriques Brito e a Ma- faixas de um álbum. Por meio de uma tra- ria Isabel Mendes de Almeida a leitura cui- jetória descontínua, Caetano estabelece dadosa e as sugestões. continuidades em campos culturais ori- Comunicação apresentada no seminário ginalmente estanques. Invertendo um Fronteiras e interseções: disciplinaridade pouco a interação das vanguardas com o e interdisciplinaridade nas ciências huma- mundo, para o qual as primeiras emitem nas, promovido pelo CPDA/UFRJ e CIEC/ ‘sinais’, Caetano mais parece atuar como ECO/UFRJ, em 11 de agosto de 1998.

NOTAS

1. Augusto de Campos, Balanço da bossa, São Paulo, Perspectiva, 1968. 2. Fredric Jameson, “Pós-modernidade e sociedade de consumo”, Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, no 12, junho de 1985, pp.16-26. 3. Santuza Cambraia Naves, Objeto não-identificado: a trajetória de Caetano Veloso, dissertação de mestrado, Rio de Janeiro, Museu Nacional/UFRJ, 1988. 4. Romildo Sant'anna, "Caetano: viagens e trilhos urbanos", em Carlos Daghlian (org.), Poesia e música, São Paulo, Perspectiva, 1985. 5. Gilberto Vasconcelos, Música popular: de olho na fresta, Rio de Janeiro, Graal, 1977. 6. Mikhail Bakhtin, Problemas da poética de Dostoiévski, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1981, pp. 98-102. 7. James Clifford, The predicament of culture: twentieth-century ethnography, literature and art, Cambridge (Massachusetts)/Londres, Stanford University Press, 1988. 8. Idem, ibidem. Tradução da autora. 9. Mikhail Bakhtin, op. cit., p. 14.

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ABSTRACT

Caetano Veloso is the paradigmatic representative of a tradition in Brazilian popular music: songwriters who, because they rely on metalinguistic procedures, blur the boundary between high art and pop art, and thus require interpretation. With Gilberto Gil and other artists in the tropicália movement, in the late sixties, Veloso created an esthetics of fragmentation, resorting both to the sophisticated and cool repertoire of bossa nova and to the popular music based on excess and sentimentality.

RÉSUMÉ

Caetano Veloso est le paradigme représentatif d'une tradition dans la musique populaire brésilienne: compositeurs qui, à cause de leur conviction dans les procédés metalinguistiques, ont depassé les limites entre l'art érudite et l'art populaire. Avec Gilberto Gil et les autres artistes dans le mouvement tropicália, pendant la décade de 1960, Veloso a créé une esthétique de la fragmentation, en recourant à un répertoire sophistiqué et cool de la bossa nova et de la musique populaire, assises dans l'excès et dans la sentimentalité.

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