Ce Qu'il Y a De Plus Profond Dans L'homme, C'est La Peau∗ (L'idée Fixe
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Ce qu’il y a de plus profond dans l’homme, c’est la peau∗ (L’idée fixe, Paul Valery) ∗ O que há de mais profundo no homem é a pele. 4 Tirando a pele dos body mods: por dentro da movimentação, a movimentação por dentro Neste capítulo é traçado um quadro geral por meio do qual se delineia o panorama underground da subcultura da BM, no âmbito das novas dimensões e potencialidades que o corpo pode alcançar no universo contemporâneo da cultura corporal. A abordagem gira em torno da incorporação dos valores individualistas, “cujo vetor impulsiona a busca pelo singular enquanto uma exigência imperativa manifesta em um discurso de valorização da autonomia dos sujeitos” (COUTINHO, 2004:15). As linhas que contornam o quadro aqui apresentado são traçadas a partir dos dados coletados através de um trabalho etnográfico realizado na cidade de São Paulo com os integrantes da BM, durante aproximadamente três anos. O eixo converge sobre as práticas e discursos promovidos pelos body mods paulistas que adotam uma postura política de vanguarda em relação a BM, conforme já explicado anteriormente. Fundamentam-se, assim, no princípio filosófico da autonomia dos corpos segundo uma perspectiva sócio-antropológica desnaturalizante do corpo. Impulsionados pelas práticas oferecidas pela BM, os body mods paulistas atuam como bricoleurs. Apropriando-se dos materiais que estão ao alcance, reinventam aparência física, a partir de projetos autorais. Nesse sentido, a posse do saber biomédico e das biotecnologias médicas é feita com o objetivo explícito de questionar social e politicamente os processos de normatização do corpo. Logo, as tecnologias fomentam no sujeito, segundo Pitts 129 (2003:13), o sentimento de poder de ação simbólica sobre o próprio corpo e sua origem, à medida que promove a sua customização radical. O que inclui aí, por extensão, a maneira como acaba por impactar/ balançar as consagradas relações de poder que se exercem, no domínio da estética, saúde e sexualidade. Em tal conjuntura, as conquistas da biomedicina e da biotecnologia adquirem um papel preponderante na medida que incitam a imaginação dos sujeitos, fazendo coro a ideia de que o corpo é algo perfeitamente moldável de acordo com gostos, interesses e preferencias de cada um. Logo, a propagação das técnicas, tecnologias e instrumental cirúrgico 1 fora do eixo médico credenciado, institucionalizado e normatizado, bem como a apropriação do saber médico se tornam fundamentais. Em última instancia, são vistas como ferramentas que estão à disposição dos sujeitos para que possam customizar seus corpos, no melhor do estilo do “faça você mesmo” – clássica prerrogativa que guia o movimento punk e muitas outras subcultura. Tais práticas de customização dos corpos permitem aos sujeitos, por sua vez, a transfiguração política de sua corporalidade ‘original’ de modo a aproximá-los daquilo que idealizaram. Isso 1 A compra de peças e ferramentas por piercers de grande capacitação profissional, estas costumam ser adquiridas através do site Steve Haworth Modified LLC, por exemplo. O preço das ferramentas cirúrgicas variam de U$ 20, 00 a U$ 140,00 enquanto os implante de silicone oscilam entre U$ 12,00 e U$ 330,00 aproximadamente. Além de outras opções mais comerciais encontradas, por exemplo, nas galerias Ouro Fino e do Rock, em São Paulo, onde a aplicação de um piercing simples custa entre R$ 20,00 e R$ 80,00. Já piercers profissionalmente qualificados como André Fernandes e Leandro Albuquerque , por exemplo, cobram pela aplicação de um piercing simples entre R$ 80,00 e R$ 200,00. 130 porque a relação do sujeito com seu corpo ocorre sob égide do domínio de si (LE BRETON, 2015:30). Com relação às práticas que alteram, dividem, amputam membros e partes do corpo ao mesmo tempo em que criam relevos e protuberâncias que visam a afrouxar, derrubar/arruinar as fronteiras ontológicas que delimitam aquilo que os body mods paulistas definem e classificam como o corpo burguês. Esse que nada mais é que a positivação da aparência física “forte, vigorosa, saudável, viva e bela”, tal qual sugere Foucault (2004). Neste processo em que a tecnologia aplicada ao corpo aparece aliada ao imaginário de que tudo é possível, o movimento do body mods paulistas em direção às modificações corporais aparece como dual. Num primeiro momento, o corpo é percebido como um rascunho que precisa ser corrigido, conforme dito na parte introdutória deste trabalho (LE BRETON, 2004:16). Já no segundo, o corpo reconstruído pela BM é atravessado pela ideia de “destruição” tanto em seu sentido simbólico quanto concreto. Isso porque o termo origem “designa algo que emerge do vir-a-ser e da extinção” (BENJAMIN, 1984: 67). O que pode ser traduzido como uma prótese de um eu eternamente em busca de uma encarnação provisória para garantir um vestígio significativo de si (LE BRETON, 2004:28). Mais ainda, um sonho de inventar a peculiaridade pessoal, tornando-se um acessório a ser trabalhado na condição de emblema do self pois: Ao mudar seu corpo o indivíduo deseja mudar sua existência, isto é, remodelar um sentimento de identidade que se tornou obsoleto. A flexibilidade se estende como um fundo da contemporaneidade, o que é dizer sobre o trabalho ou o sentimento de si. O corpo não é mais a encarnação irredutível de alguém, sim uma construção pessoal, um objeto transitório, suscetível às muitas metamorfoses de acordo com as experiências do indivíduo. A aparência alimenta 131 uma indústria ilimitada, sem fim, impulsionada pelo marketing e as ofertas do mercado ou pela criatividade do sujeito (LE BRETON, 2011: 182-183). Como se estivessem num ateliê de corte e costura, os sujeitos, por meio de projetos autorais, transformam a anatomia de seus corpos adicionando texturas, alterando a cor da pele e fazendo uso de práticas, como: tatuagens que simulam pele de animais, bifurcação da língua, aplicação de cornos na testa, ear pointing simulando a orelha dos elfos, coloração da esclera2 etc. A este respeito, Le Breton (2011) fala que o individualismo democrático empurra ao topo a vontade da auto-filiação e de auto- pertencimento. Contudo, afirma o autor, o fato de se pensar como mestre do próprio corpo colide com a irredutibilidade do corpo como a herança de uma história comprometida com outros, a começar com os pais. Figura 11: Ear pointing realizada por Leandro de Oliveira, arquivo pessoal cedido 2 Conhecida como a parte branca do olho. 132 A fala de Le Breton (2004) está em consonância com o que Bourdieu (1992) descreve como internalização de valores adquiridos, que se dá principalmente por meio de educação familiar e escolar, em função do capital econômico e simbólico que o sujeito detém, a partir da sua inserção em uma determinado estrato econômico, social e cultural. Tais valores, por sua vez, pode sem interpretados como a tradução de habilidades laborativas, competências e percepções que sujeitos adquirem com o tempo em suas vivências sociais através do que autor define como habitus. Logo, “desde que tenham um mínimo de continuidade temporal, esses sujeitos tendem a articular suas experiências em torno de suas tradições e valores” (VELHO, 2013:98, grifo das autoras). Por outro lado, “o contato com outros e círculos pode afetar vigorosamente a sua visão de mundo e estilo de vida. No meu processo de modificação, tem uma influência religiosa. Partindo da ideia de ter "seguido" dentro de uma temática de "anjo", que faz parte da simbologia Cristã. Além disso, venho de uma família de protestantes, frequentei a igreja até os 13 anos e deixei de frequentar por não concordar com o que era imposto pela doutrina da igreja. Sou partidário da ideia de Marx, de que a religião é o ópio da sociedade. Sou um anjo caído, sabe como é, né? (risos) (entrevista concedida por T. Angel, em 30 mai. 2015) Reconhece-se que, até mesmo no nosso tipo de configuração social no qual os valores individualistas reinam de forma soberana, tal qual atestou Dumont (2000), ainda se encontram “instancias desinvidualizadoras, que aparecem sob a forma de carreira, da participação em certas instituições e da própria conformação familiar” (VELHO, 2013:98). Nesse sentido, as únicas possibilidades de afirmação da sua condição de sujeito singular e autônomo se dá ou por uma ruptura radical com o grupo – cortando todos os elos – 133 ou por um mergulho de cabeça nesse mundo, cujos estereótipos podem ser, como sugere Velho (2013:98), o “maluco-beleza”, a “carola”, o “esquisitão” etc. Nesse caso, o deslocamento do sujeito se dá por meio da adoção de um comportamento desviante passível de estigmatizaçõoes e preconceitos. O que está em xeque é que, tanto nas sociedades ocidentais quanto nas tribais ou tradicionais, o sujeito na condição de “agente empírico é basicamente valorizado enquanto parte de um todo – linhagem, família etc.”(VELHO, 20013:98). A reação dos meus pais foi de tristeza em geral. Pai separado, sumiu por um mês e meio, mãe jogou pra fora de casa mas voltei no dia seguinte!. (entrevista concedida por Piercer Leonardo, em 15 out. 2015). Embora, tal como sugere Mauss (2003) essa singularidade a qual nos referimos nada mais é que uma especificidade do imaginário ocidental, na atual configuração social e cultural, trata-se de uma prerrogativa excessivamente valorizada. Contudo, não significa, porém, que esse processo de busca e afirmação da própria singularidade se dê “fora de normas e padrões” (VELHO, 2013:98), por mais que a liberdade individual esteja/seja continuamente convocada. Eu acredito que são padrões diferente de beleza . Cada um tem sua realização pessoal. Como tem mulheres que gostam de ter os peitos grandes tem pessoas que curtem não ter um dedo . Cada um tem a sua viagem. Mas eu acho que quando a modificação traz problemas físicos já não é tão legal . Algumas pessoas só pensam em ser o mais extremo e não na estética e com o conforto ai já está passando o limite de liberdade com algum problema psicológico (Entrevista concedida por André Fernandes, em 19 mai.