Ce qu’il y a de plus profond dans l’homme, c’est la peau∗

(L’idée fixe, Paul Valery)

∗ O que há de mais profundo no homem é a pele.

4 Tirando a pele dos body mods: por dentro da movimentação, a movimentação por dentro

Neste capítulo é traçado um quadro geral por meio do qual se delineia o panorama underground da subcultura da BM, no âmbito das novas dimensões e potencialidades que o corpo pode alcançar no universo contemporâneo da cultura corporal. A abordagem gira em torno da incorporação dos valores individualistas, “cujo vetor impulsiona a busca pelo singular enquanto uma exigência imperativa manifesta em um discurso de valorização da autonomia dos sujeitos” (COUTINHO, 2004:15). As linhas que contornam o quadro aqui apresentado são traçadas a partir dos dados coletados através de um trabalho etnográfico realizado na cidade de São Paulo com os integrantes da BM, durante aproximadamente três anos. O eixo converge sobre as práticas e discursos promovidos pelos body mods paulistas que adotam uma postura política de vanguarda em relação a BM, conforme já explicado anteriormente. Fundamentam-se, assim, no princípio filosófico da autonomia dos corpos segundo uma perspectiva sócio-antropológica desnaturalizante do corpo. Impulsionados pelas práticas oferecidas pela BM, os body mods paulistas atuam como bricoleurs. Apropriando-se dos materiais que estão ao alcance, reinventam aparência física, a partir de projetos autorais. Nesse sentido, a posse do saber biomédico e das biotecnologias médicas é feita com o objetivo explícito de questionar social e politicamente os processos de normatização do corpo. Logo, as tecnologias fomentam no sujeito, segundo Pitts 129

(2003:13), o sentimento de poder de ação simbólica sobre o próprio corpo e sua origem, à medida que promove a sua customização radical. O que inclui aí, por extensão, a maneira como acaba por impactar/ balançar as consagradas relações de poder que se exercem, no domínio da estética, saúde e sexualidade. Em tal conjuntura, as conquistas da biomedicina e da biotecnologia adquirem um papel preponderante na medida que incitam a imaginação dos sujeitos, fazendo coro a ideia de que o corpo é algo perfeitamente moldável de acordo com gostos, interesses e preferencias de cada um. Logo, a propagação das técnicas, tecnologias e instrumental cirúrgico 1 fora do eixo médico credenciado, institucionalizado e normatizado, bem como a apropriação do saber médico se tornam fundamentais. Em última instancia, são vistas como ferramentas que estão à disposição dos sujeitos para que possam customizar seus corpos, no melhor do estilo do “faça você mesmo” – clássica prerrogativa que guia o movimento punk e muitas outras subcultura. Tais práticas de customização dos corpos permitem aos sujeitos, por sua vez, a transfiguração política de sua corporalidade ‘original’ de modo a aproximá-los daquilo que idealizaram. Isso

1 A compra de peças e ferramentas por piercers de grande capacitação profissional, estas costumam ser adquiridas através do site Steve Haworth Modified LLC, por exemplo. O preço das ferramentas cirúrgicas variam de U$ 20, 00 a U$ 140,00 enquanto os implante de silicone oscilam entre U$ 12,00 e U$ 330,00 aproximadamente. Além de outras opções mais comerciais encontradas, por exemplo, nas galerias Ouro Fino e do Rock, em São Paulo, onde a aplicação de um piercing simples custa entre R$ 20,00 e R$ 80,00. Já piercers profissionalmente qualificados como André Fernandes e Leandro Albuquerque , por exemplo, cobram pela aplicação de um piercing simples entre R$ 80,00 e R$ 200,00.

130 porque a relação do sujeito com seu corpo ocorre sob égide do domínio de si (LE BRETON, 2015:30). Com relação às práticas que alteram, dividem, amputam membros e partes do corpo ao mesmo tempo em que criam relevos e protuberâncias que visam a afrouxar, derrubar/arruinar as fronteiras ontológicas que delimitam aquilo que os body mods paulistas definem e classificam como o corpo burguês. Esse que nada mais é que a positivação da aparência física “forte, vigorosa, saudável, viva e bela”, tal qual sugere Foucault (2004). Neste processo em que a tecnologia aplicada ao corpo aparece aliada ao imaginário de que tudo é possível, o movimento do body mods paulistas em direção às modificações corporais aparece como dual. Num primeiro momento, o corpo é percebido como um rascunho que precisa ser corrigido, conforme dito na parte introdutória deste trabalho (LE BRETON, 2004:16). Já no segundo, o corpo reconstruído pela BM é atravessado pela ideia de “destruição” tanto em seu sentido simbólico quanto concreto. Isso porque o termo origem “designa algo que emerge do vir-a-ser e da extinção” (BENJAMIN, 1984: 67). O que pode ser traduzido como uma prótese de um eu eternamente em busca de uma encarnação provisória para garantir um vestígio significativo de si (LE BRETON, 2004:28). Mais ainda, um sonho de inventar a peculiaridade pessoal, tornando-se um acessório a ser trabalhado na condição de emblema do self pois:

Ao mudar seu corpo o indivíduo deseja mudar sua existência, isto é, remodelar um sentimento de identidade que se tornou obsoleto. A flexibilidade se estende como um fundo da contemporaneidade, o que é dizer sobre o trabalho ou o sentimento de si. O corpo não é mais a encarnação irredutível de alguém, sim uma construção pessoal, um objeto transitório, suscetível às muitas metamorfoses de acordo com as experiências do indivíduo. A aparência alimenta 131

uma indústria ilimitada, sem fim, impulsionada pelo marketing e as ofertas do mercado ou pela criatividade do sujeito (LE BRETON, 2011: 182-183).

Como se estivessem num ateliê de corte e costura, os sujeitos, por meio de projetos autorais, transformam a anatomia de seus corpos adicionando texturas, alterando a cor da pele e fazendo uso de práticas, como: tatuagens que simulam pele de animais, bifurcação da língua, aplicação de cornos na testa, ear pointing simulando a orelha dos elfos, coloração da esclera2 etc. A este respeito, Le Breton (2011) fala que o individualismo democrático empurra ao topo a vontade da auto-filiação e de auto- pertencimento. Contudo, afirma o autor, o fato de se pensar como mestre do próprio corpo colide com a irredutibilidade do corpo como a herança de uma história comprometida com outros, a começar com os pais.

Figura 11: Ear pointing realizada por Leandro de Oliveira, arquivo pessoal cedido

2 Conhecida como a parte branca do olho. 132

A fala de Le Breton (2004) está em consonância com o que Bourdieu (1992) descreve como internalização de valores adquiridos, que se dá principalmente por meio de educação familiar e escolar, em função do capital econômico e simbólico que o sujeito detém, a partir da sua inserção em uma determinado estrato econômico, social e cultural. Tais valores, por sua vez, pode sem interpretados como a tradução de habilidades laborativas, competências e percepções que sujeitos adquirem com o tempo em suas vivências sociais através do que autor define como habitus. Logo, “desde que tenham um mínimo de continuidade temporal, esses sujeitos tendem a articular suas experiências em torno de suas tradições e valores” (VELHO, 2013:98, grifo das autoras). Por outro lado, “o contato com outros e círculos pode afetar vigorosamente a sua visão de mundo e estilo de vida.

No meu processo de modificação, tem uma influência religiosa. Partindo da ideia de ter "seguido" dentro de uma temática de "anjo", que faz parte da simbologia Cristã. Além disso, venho de uma família de protestantes, frequentei a igreja até os 13 anos e deixei de frequentar por não concordar com o que era imposto pela doutrina da igreja. Sou partidário da ideia de Marx, de que a religião é o ópio da sociedade. Sou um anjo caído, sabe como é, né? (risos) (entrevista concedida por T. Angel, em 30 mai. 2015)

Reconhece-se que, até mesmo no nosso tipo de configuração social no qual os valores individualistas reinam de forma soberana, tal qual atestou Dumont (2000), ainda se encontram “instancias desinvidualizadoras, que aparecem sob a forma de carreira, da participação em certas instituições e da própria conformação familiar” (VELHO, 2013:98). Nesse sentido, as únicas possibilidades de afirmação da sua condição de sujeito singular e autônomo se dá ou por uma ruptura radical com o grupo – cortando todos os elos – 133 ou por um mergulho de cabeça nesse mundo, cujos estereótipos podem ser, como sugere Velho (2013:98), o “maluco-beleza”, a “carola”, o “esquisitão” etc. Nesse caso, o deslocamento do sujeito se dá por meio da adoção de um comportamento desviante passível de estigmatizaçõoes e preconceitos. O que está em xeque é que, tanto nas sociedades ocidentais quanto nas tribais ou tradicionais, o sujeito na condição de “agente empírico é basicamente valorizado enquanto parte de um todo – linhagem, família etc.”(VELHO, 20013:98).

A reação dos meus pais foi de tristeza em geral. Pai separado, sumiu por um mês e meio, mãe jogou pra fora de casa mas voltei no dia seguinte!. (entrevista concedida por Piercer Leonardo, em 15 out. 2015).

Embora, tal como sugere Mauss (2003) essa singularidade a qual nos referimos nada mais é que uma especificidade do imaginário ocidental, na atual configuração social e cultural, trata-se de uma prerrogativa excessivamente valorizada. Contudo, não significa, porém, que esse processo de busca e afirmação da própria singularidade se dê “fora de normas e padrões” (VELHO, 2013:98), por mais que a liberdade individual esteja/seja continuamente convocada.

Eu acredito que são padrões diferente de beleza . Cada um tem sua realização pessoal. Como tem mulheres que gostam de ter os peitos grandes tem pessoas que curtem não ter um dedo . Cada um tem a sua viagem. Mas eu acho que quando a modificação traz problemas físicos já não é tão legal . Algumas pessoas só pensam em ser o mais extremo e não na estética e com o conforto ai já está passando o limite de liberdade com algum problema psicológico (Entrevista concedida por André Fernandes, em 19 mai. 2015).

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Isso quer dizer que “os projetos de vida dos sujeitos em nossa sociedade são elaborados e construídos em função de experiências socioculturais, de um código, de vivencias e de interações interpretadas” resultantes das normas e convenções sociais historicamente mutáveis. (VELHO, 2013:100).

Tenho 24 anos. Sou costureiro. Comecei minhas transformações aos nove anos, quando tingi meu cabelo pela primeira vez. Passei um vermelho intenso, minha mãe quis me matar! Minha primeira perfuração foi aos 12 anos, perfurei o septo, não gosto nem de me lembrar da dor. Hoje possuo: dilatações, implantes subcutâneos, pigmentação do globo ocular, além, claro, de tingir os cabelos com certa frequência, pintar as unhas e raspar as sobrancelhas. (..). As minha modificações não tem um "cronograma" ou um projeto, vou deixando acontecer. Com elas, eu dou não uma cutucada, mas um murro mesmo nos padrões pré-estabelecidos. Tenho consciência disso e me sinto extremamente feliz por isso, embora seja algo fiz de forma subconsciente, entende? Nada foi predeterminado antes. Apenas estou deixando acontecer (Entrevista com Guilherme Troiano, em 19 de outubro de 2015).

Nesse sentido, os projetos de representação do próprio corpo realizados pelos sujeitos, embora sejam feitos de maneira individual, autônoma, são bricolagens retiradas, no ar do tempo, do saber vulgarizado das mídias, da casualidade de leituras e de encontros pessoais (Le Breton, 2012:21).

Sempre fui apaixonada por tattoo e piercing. Minha primeira tattoov foi aos 10 anos, faltando 1 mês prós 11 anos. Meu primeiro piercing fim aos 12. Desde então, nunca parei. Sempre me perfurei e aos amigos. Mas nunca profissionalmente. Até os 26 nunca tinha pensado nisso como profição. quando estava no último ano faculdade, ainda me sentia perdida profissionalmente. E adivinha, mãe deu a idéia, pois as vezes eu atrasava trabalhos d faculdade d tanto q ficava vendo tattoo e piercing no computador... Olha minha maior influência é. O Steve haworth.... Sampa.....André Meyer.... 135

andre fernandes3 (Entrevista concedida por Cristiane Buciano em 17 de maio de 2015).

Não se trata, por conseguinte, de um fenômeno de motivação pura e exclusivamente pessoal. É, conforme assinala Velho (2013:101), delineado e desenvolvido dentro de um leque de possibilidades – socioeconômicas – além de limitado histórica e culturalmente, tanto em termos da própria noção de sujeito autônomo, independente, dono si e de seu corpo, quanto em relação às suas questões, prioridades, preferências e, obviamente, aos paradigmas culturais existentes.

As pessoas na Europa e Estados Unidos são mais consciente do que querem e não fazem por moda e lá o preconceito é muito menor que aqui . No Brasil tudo moda e tudo passa rápido. Não acredito que aqui alguém va chegar ao nível destas pessoas como o dennis o lizard então acho que nem pensão nisso. Outra coisa é o problema de profissionais pouco qualificado (...).. Tem uma crianças fazendo eyeball é isso não é bom . Antes de fazer uma mod vc precisa analizar bem seu cliente se ele realmente está preparado para fazer cabe ao modificador avaliar isso pra evitar problemas futuros não só pra ele mas para todos nós envolvidos com bodymod (Entrevista concedida por André Fernandes, em 19 mai. 2015)3. .

Outro aspecto acerca do projeto que deve ser levado em consideração, e para o qual Velho (2013:101) chama atenção, é o poder de ser comunicado enquanto condição própria de sua existência. “Em alguma media, tem de ‘fazer sentido’, num processo de interação com os outros contemporâneos, mesmo que seja rejeitado” (Velho, 2013:101).

3 Foram mantidos os erros ortográficos e digitação, a fim de não fazer qualquer intervenção no discurso da entrevistada. 136

Tenho 24 anos. Sou piercer a 5 anos e meio. Qdo comecei eu ja tinha colocado alguns piercings e feito algumas tatuagen e como ja disse sempre adimirei a arte corporal no modo geral. Mas nunca gostei de desenhar e tals. Mas na escola quando alguem queria colocar um brinco la tava eu com um gelo ou uma borracha pra colocar o brincio. Mas ai quando fui tendo contato com proficinal me apaixonei mais ainda pela art. Sendo assim esperei terminar a escola e procurei uma emp´resa responsavel com proficionais de tradição e com eles aprendi desde riscos de contaminação, trasmição cruzada, assepsia. Só depois enfim aprendi a aplicar um piercing. Fiz meus primeiros piercing em voluntarios que estavao ciente de que estava aprendendo. Claro nao cobrei por eles fazer parte de um processo de aprendizagen. Meus primeiros piercings fiz acompanhado com meus professores. E apos terminar o curso fiz um cursinho de primeiro socorros com um enfermeiro padrão onde ele me ensinou os socorros pra cada tipo de situação que eu possa vir a encontrar no meu dia dia (Entrevista concedida por Herbert Piercer, em 23 mai. 2015).

Enquanto conjunto de ideias, condutas e práticas, “o mundo dos projetos se caracteriza por ser essencialmente dinâmico, fragmentado e cheio de pausas e recuos, na medida em que os (sujeitos) têm uma biografia. Isto é, vivem em determinado tempo e numa dada sociedade” (VELHO, 2013:101). Nesse sentido, estão suscetíveis à ação de seus pares e às mudanças sócio-históricas. Portanto, a natureza e o grau de abertura ou fechamento das redes sociais – tribos urbanas – em que os sujeitos circula, de acordo com Velho (2013:102) são elementos fundamentais na dinâmica dos projetos. “Existem sentimentos e emoções valorizados e tolerados ou condenados dentro de um grupo” (VELHO, 2013:102), de modo que a probabilidade de sua viabilização pode ser maior ou menor: “tudo vai de acordo com a ideia – por parte de quem adota ou rejeita – do que seja decoroso, moral, religioso, digno, elegante, artístico e funcional” (FREYRE, 1987:24).

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Olha, eu já sofri preconceito dentro da "comunidade da modificação". Lamento muito por isso. Na verdade eu ainda não consigo entender o porque de ainda haver preconceito dentro dessa cena, fico perplexo com alguns comentários que já ouvi ou li. Infelizmente ainda acontece. Mas apenas ouço ou leio e me mantendo o mais neutro possível. Cada um sabe de si!. Existe uma coisa absurda dentro da modificações que se chama "Ego inflado" lamentável ver isso acontecer com pessoas que se dizem ser "transgressoras". Todos temos nossos preconceitos, isso é natural, mas existe uma grande diferença entre preconceito e falta de respeito! Isso é inadmissível, um absurdo na minha opinião, lamentável isso acontecer, seja modificado ou não. Não precisa gostar, basta respeitar (Entrevista com Guilherme Troiano, em 19 de outubro de 2015).

Ainda há de se considerar que, quando bem sucedidos, os projetos evocam um sentido de auto-realização. Durante o processo de busca em direção às conquistas dos objetivos traçados, os obstáculos enfrentados tendem a ser bastante valorizados, de modo que se discriminam os fatos/agentes que foram mais relevantes, importantes e significativos. “As emoções do sujeito estão ligadas – são matéria-prima, e de certa forma, constituem o seu projeto.

Não sei se são realmente as mais extrema, mas até agora as que mais exigiram de mim, foram os transdermais da cabeça (Entrevista concedida por T. Angel, em 20 jul. 2013).

Por fim, o projeto exige dentro dessa perspectiva que evoca a racionalidade do sujeito – histórico e culturalmente situada – “algum tipo de cálculo, de planejamento de risco e perdas quer em termos estritamente individuais, quer em termos grupais” (Velho, 2013:101-102).

Concordo o corpo é seu a decisão e sua. Mas pensa comigo. Conheço uma garota que fez e eyebaal aos 16 anos. Se por um 138

acaso ela ficar cega como estipulão os médicos, aos 26 ela ficara cega (teoricamente) e ae vlw a pena? o corpo é seu mas a responsabilidade fica onde? vale mesmo o risco pra ser diferente, pra nao ter limites? Eu mesmo morro de vontade de fazer. Maaas a duvida me faz temer e me faz pensar em fazer só depois de comprovado que nao causa cegueira (Entrevista concedida por Herbert Piercer, em 23 mai. 2015).

Tendo em vista o caráter deliberadamente extremo dessas práticas dos body mods paulistas, noções como razão, prudência e coerência precisam ser relativizadas. Isso porque abrem espaço para pensar no aspecto paradoxal daquilo que nos constitui como sujeitos. “Na construção da identidade e a elaboração dos projetos individuais são feitos em um contexto em que diferentes ‘mundos’ ou esferas da vida social se interpenetram, se misturam e muitas vezes entram em conflito.” (VELHO, 2013: 107). Por outro lado, deixam escancarado que “nossos corpos são sempre alheios, sempre demasiados, sempre insuficientes, enquanto algo que não pode não ser curável, um problema a ser lamentado ou sanado, pois é a própria marca constitutiva da nossa corporalidade” (Portinari, 2002, p. 141).

4.1 Afinal, em que consiste a movimentação da body modification?

A expressão body modification é comumente utilizada nas mídias tradicionais, digitais e redes sociais para designar modificações corporais extremas, de caráter perene ou transitório, realizadas pelos sujeitos de forma deliberada. O que inclui a adoção de práticas que colorem, queimam, alteram, dividem, amputam membros e partes do corpo, além de outras tantas que criam 139 buracos, relevos e protuberâncias através perfurações, implantes de próteses e aplicação de peças em si próprios ou em studios ou através de tatuagens ou clínicas de piercings.

Figura 12: Tatuador e body mod André Cruz, arquivo pessoal cedido

Figura 13: Thiago Soares, acervo pessoal cedido 140

Figura 14: Eyeball tattoing de Alexandre Anami

No Brasil, o fenômeno se caracteriza como uma movimentação urbana heterogênea e deveras complexa. A BM se caracteriza como um caleidoscópio aglutinador de práticas diversas que “pegam emprestado” de culturas indígenas brasileiras, de movimentos como o body art, das subculturas queer, cyberpunks4 e, de forma mais indireta, aquilo que ficou conhecido como primitivos modernos. Como o peso dos primitivos modernos é muito significativo, inegavelmente acaba influenciando os body mods paulistas, de alguma maneira:

Embora o seja um conceito muito forte, como quase um inconsciente coletivo, pouca gente realmente está ligado com essa

4 O que se está denominando aqui, de forma genérica, como cyberpunks, para Duarte (2015), refere-se a diferentes subculturas, nas quais seus integrantes se definem como body hackers, self-made cyborgs ou grinders, apesar de a autora não ter identificado distinções nem disputas entre estas correntes. Seus membros apropriam-se igualmente de tecnologias do domínio médico para desenvolver, seguindo também a prerrogativa punk faça você mesmo, práticas, chamadas por Duarte de experimentações, que visam aprimorar a performance do corpo, visto como obsoleto. Sua obsolescência é percebida como contingente à própria condição corpórea e, no caso especifico, nascer humano, é uma "mera fatalidade". Nesse sentido, explica a autora, há um imaginário simbiótico do homem-máquina através do enaltecimento da robótica, biônica e biotecnologia que são utilizadas para compensar esta falha humana, incrementando o corpo com funções adicionais, bem ao estilo de “tudo é possível” e do “por que não tentar?”. Trata-se, em ultima instancia, de uma crença fundamentada, ainda de acordo com Duarte, pela ideologia neoliberal de progresso científico absoluto, em que as habilidades e capacidades do individuo são excessivamente estimadas, conforme traduz , por exemplo, o mote “você quer, você pode”. 141

coisa mais tribal e/ou espiritual (entrevista concedida por Thiago Soares, em 20 de Janeiro de 2014).

Os primitivos modernos é um movimento controverso, que ao longo de quase duas décadas continua dominando o discurso erudito e popular em torno das modificações corporais extremas, conforme sugere Lodder (2011). Frequentemente, associa-se a sua difusão, em larga escala, à publicação da obra RE/Search #12: Modern Primitives (VALE; JUNO: 1989) que dá uma projeção de dimensão global ao que seria “um conjunto de práticas de modificação corporal de um determinado grupo, localizado na cidade de San Francisco” (LODDER, 2011:99). Analisando as práticas de tatuagem, piercing e escarificação, a referida obra traz uma coletânea de entrevistas e ensaios fotográficos com as grandes entusiastas das práticas de modificações corporais, como Fakir Musafar, Jim Ward, Don Ed Hard, dentre tantos outros. A grande popularidade alcançada está diretamente atrelada ao fato de ter exposto, para o grande público, várias imagens de transformações corporais: piercing genital, bifurcação do pênis, escarificação, branding e diversas formas de suspensão corporal5. Christian Klesse define os primitivos modernos como um movimento originário de uma subcultura, cujo cenário se conforma a partir do entrecruzamento da tatuagem, do piercing e de práticas sadomasoquistas. Este movimento, explica ele, “se originou na década de 1970 na Califórnia, EUA, crescendo em número e importância nas décadas seguintes”, passando desde então a reunir

5 É o ato de suspender o corpo humano através de ganchos de açougue que são atravessados na pele.

142 uma grande diversidade de comunidades, crenças e interesses também no que concerne ao desejo e à orientação sexual (KLASSE, 2000:15 -17). Já na visão de Virginia Eubanks, se trata de uma subcultura cujos integrantes são definidos, até certo ponto, de forma vaga e solta. Isto é, são sujeitos que participam de rituais contemporâneos que incluem perfuração em grande extensão do corpo, constrição, escarificação, tatuagens “tribais”, branding, stretching, cupping, e cuja motivação para sua realização varia muito de sujeito para sujeito. Contudo, para a autora, “um impulso comum é uma fascinação com as práticas ritualísticas dos povos não ocidentais, respaldada em uma ideologia e filosofia bastante ingênua”. Julga também que tais sujeitos mostram um profundo desconhecimento do contexto e da história que envolvem as modificações corporais nas culturas tradicionais, sendo muitas vezes desrespeitosos (EUBANKS, 1996: 76). De forma semelhante, Daniel Rosenblatt considera igualmente a body modification um termo abstrato que tenta cobrir as práticas e opiniões de pessoas que se dedicam à decoração ou modificação do corpo e de rituais de suspensão. Muitas destas pessoas, afirma o autor, estão envolvidas em, uma ou mais, "comunidades alternativas" que florescem em San Francisco (como gay, lésbica, punk, S/M, ou New Age), embora alguns cheguem a negar qualquer associação com uma coletividade maior. Afirmam, ao invés disso, que fazem uso destas práticas como uma expressão da sua individualidade (ROSENBLATT, 1997:287). No seu ponto de vista, as praticas de tatuagem, escarificação e perfuração estão interligadas à medida que agem sobre o corpo, e por extensão, sobre o mundo como um ato social e político. A 143 partir daí, procura descrever o contexto histórico-cultural no qual as modificações corporais produzidas pelos primitivos modernos foram capazes de se tornar o foco de um movimento crítico acerca das questões do ocidente moderno que giram torno do eu, do corpo e da sexualidade. De acordo com Rosenblatt (1997:300-301), a valorização da tatuagem, por exemplo, ocorre nos EUA partir dos anos de 1960 com a mudança não só do perfil dos sujeitos que passam a se tatuar, mas também em relação aos próprios desenhos e projetos. Este deslocamento, continua ele, segue o rastro do movimento hippie e da crescente valorização do estilo "tribal" da Polinésia, Micronésia, Melanésia e Bornéu. Atrelado à difusão do gosto pelas tattoos, o interesse pelo piercing, cutting e branding e outras técnicas possíveis de escarificação têm suas raízes nas comunidades S/M e punk, que se conformam nos anos de 1970, afirma o autor. Neste contexto, os primitivos modernos marcam, ainda de acordo com Rosenblatt (1997), seus corpos de modo a reclamar para si uma espécie de refúgio contra condicionamento da sociedade ocidental moderna. Nesta perspectiva, a imagem idealizada das sociedades tradicionais contrasta com os aspectos considerados negativos da cultura ocidental (ROSENBLATT, 1997: 295). A infinita complexidade e diversidade das sociedades tradicionais são transformadas em ficção idealizadas, a partir daquilo que concebem como primeiras sociedades, argumenta David Le Breton. Vistas como mais autênticas e próximas da natureza, estas passam a ser reverenciadas como modelo que se opõe a uma insuportável modernidade (LE BRETON, 2004:231), muito embora os primitivos 144 modernos não tenham qualquer tipo relação com as comunidades tradicionais. Considerados, então, como parte daquilo que “julgam/ atribuem ser um revival de práticas das sociedades tradicionais ” ou não-ocidentais, os primitivos modernos promovem as modificações em seus corpos por razões estéticas e sexuais, de acordo com o piecer e editor da revista PFIQ Jim Ward, que é um militante gay.

Afirma que as perfurações nas áreas do corpo publicamente expostas são de cunho estritamente estético. Já os piercings aplicados nos mamilos e genitais geralmente são feitos para intensificar a sensibilidade nas zonas erógenas e pela experiência de ser perfurado. Da mesma forma, as experiência com cutting, escarificação e branding se referem ao ato de ser cortado/queimado e à cicatriz resultante desses processos (JIM WARD, VALE; JUNO, 1989: 161) Criador da rede de loja americana Guantlet6, que veio a se tornar o local mais conhecido e apropriado para perfuração do corpo, Jim Ward foi também o proprietário da revista Piercings Fans International Quarterly ou PFIQ 7 , publicada de 1977 a 1988. Tornou-se um empresário bastante conhecido neste setor, ajudando a sedimentar a indústria do piercing nos EUA.

6 Na loja, eram criadas e vendidas as joias usadas nas perfurações. Originalmente sua clientela era constituída por membros da comunidade gay S & M, do Sul da Califórnia e do grupo de gays masculinos, de Los Angeles, conhecido T & P (Tattoo & Piercing). Rapidamente sua base de clientes cresceu para além de suas raízes originais e, em 1978, foi aberta a primeira loja comercial, em Santa Monica Blvd, Califórnia, atraindo clientes fora da subcultura tradicional dos piercings. Tempos depois, foram criadas filiais em Los Angeles, San Francisco, Seattle e Nova York, vindo influenciar a abertura de concorrentes pelo pais afora. Em meados de 1990, Jim Ward decidiu vender sua participação majoritária na empresa, e sem a sua orientação, a empresa foi a falência pouco tempo depois. 7 Produzida e impressa pela Gauntlet, a revista teve ao todo 50 edições, sendo que a primeira continha apenas 16 páginas e todas elas em preto e branco. A inclusão de fotos coloridas somente ocorreu em 1982, com a edição de no 15. 145

De maneira semelhante, Fakir Musafar,8 o body performer mais proeminente e que se autoproclama pai do movimento, afirma que primitivos modernos descreve “pessoas não tribais” que respondem a impulsos primitivos fazendo “alguma coisa” em seus corpos (FAKIR MUSAFAR, VALE; JUNO, 1989:13)9. O princípio filosófico que os rege, segundo o body performer, se refere ao desenvolvimento de pesquisas que visam promover transformações corporais, a partir de experiências que exploram os limites do corpo em termos físicos e sexuais, tendo em vista uma perspectiva a qual julga ser de cunho espiritual. Os primitivos modernos procuram, desse modo, adotar práticas de modificação corporal a partir daquilo que acreditam ser os ritos de comunhão das sociedades tradicionais que chamam de primitivas, visando obter “cada vez mais experiência espontâneas de prazer de forma intuitiva e perspicaz”10 (FAKIR MUSAFAR, VALE; JUNO, 1989:13). Embora, como bem pontua Torgovnick (1995)11, estejam claramente fora do contexto religioso das sociedades

8 Fakir Musafar iniciou sua carreira profissional na Guantlet, depois passou a ter um papel importe na PFIQ Magazine, até sua saída em 1992. Atualmente, é diretor e professor da escola Fakir & Branding Intensive – até onde se sabe, única instituição, licenciada pelo estado da Califórnia para ministrar cursos de transformações corporais. 9 Modern primitive is a term I thought I had coined in 1967 when I met Bud “Viking” Navarro and Zapata in LA. We used the term to describe a non-tribal person who responds a primal urges, and does something with the body. There is an increasing trend among certain young people now to get pierced and tattooed. Some do it as a “real” response to primal urges and some do it for kicks. They aren’t serious and don’t know what they’re doing. 10 Get more and more spontaneous the experience of pleasure with insight. 11 Para Torgovnick (1995), as transgressões dos primitivos modernos tem conotações moralistas e são discutidas sob a perspectiva da pós-modernidade. Já Eubanks (1996) vê a ideologia e filosofia dos primitivos modernos como algo ingênuo, além de mostrar, segundo a autora, um profundo desrespeito ao contexto e à história que envolvem as modificações corporais nas culturas tradicionais. 146 tradicionais, sendo apenas mais uma singularidade produzida no entorno das políticas identitárias moderna. Para instituir o que atribui ser a “união do corpo ao espírito nos termos daquilo que considera como um desejo universal profundamente enraizado que transcende o tempo e fronteiras culturais” (BODY PLAY, 1:3), Fakir Musafar emprega a expressão body play – que também se refere à revista, de mesmo nome, criada por ele12. Sob o mote “pessoas extraordinárias fazendo coisas incomuns com seus corpos”, a expressão body play cobre uma ampla gama de práticas de modificar ou trabalhar o corpo, que se resumem em sete categorias:

1) Body play por contorção: modifica a forma e o crescimento dos ossos através de ginástica, yoga, alargadores, sapato alto, amarrações dos pés etc.;

2) Body play por constrição: comprime o corpo de modo a produzir uma nova forma por meio de bondage, cintos apertados, espartilhos, roupas extremamente apertadas e borracha;

3) Body play por privação: restrição de movimentos ou de satisfação de algumas das necessidades básicas através de jejum, privação do sono, fadiga, da limitação do movimento,

12 Publicada de 1992 a 1997, a revista se propôs a oferecer uma vasta cobertura de técnicas de modificações corporais, que não eram tratadas pela PFIQ, nem por outras publicações do mesmo estilo. Suas edições abordavam assuntos como branding, corsetry ou tightlacing (técnica de afinar a cintura por meio do uso de espartilho), bondage, contorcionismo, suspensão tribalismo e muitos outros. Apesar de ter sido criticamente bem recebida, teve dificuldade em construir uma base de assinantes, que nunca ultrapassou a marca dos 500. Combinado a isso os problemas de distribuição, a revista teve sua última impressão em 1999, logo apos do numero 19. Desde então, Fakir Musafar vem publicando novos artigos na edição virtual de sua revista, cujo endereço eletrônico http://www.bodyplay.com/bodyplay/ também disponibiliza para venda ($20 para EUA/Canadá e $25 para outros países) alguns números restantes das edições impressas.

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supressão dos sentido por meio de confinamento em caixas, gaiolas, capacetes, sacos etc.;

4) Body play por impedimento: impossibilita os movimentos através da utilização de adereços de ferro, como braceletes ou algemas de ferro, coleiras, invólucros, correntes etc.;

5) Body play com fogo: imprime queimaduras sobre a pele através de bronzeamento, eletricidade, banhos a vapor, ferrão;

6) Body play por penetração: submissão do corpo a “flagelos” através de perfurações, furos, espetos, tatuagem, cama de pregos, cama de espadas, agentes químicos etc.;

7) Body play por suspensão: o ato de se pendurar/ amarar em uma cruz, suspender o corpo pelos pulsos, coxas, cintura, tornozelos por cordas ou inserindo os ganchos de carne utilizados por açougueiros.

Para Matt Lodder, o que Fakir Musafar define por body play nada mais é que a reunião, em um bloco confuso, de uma enorme variedade de práticas corporais não-ocidentais de períodos e localização geográfica distintos: piercings dos Massais, as posições extáticas de yogues indianos, as tatuagens Maori, os implantes penianos da gangue japonesa Yakuza, os anéis de cobre para alongamento do pescoço das mulheres Padaung da Tailândia, as suspensões corporais de tribos indígenas norte-americanas etc. São, ainda segundo o autor, balizadas por uma concepção ingênua, mal definida e até mesmo potencialmente ofensiva sobre a espiritualidade. Tendo isso em mente, Lodder (2011) argumenta que o movimento “primitivos modernos”, como definido por Fakir Musafar, nunca existiu (e nunca poderiam ter existido) nos termos que ele sugere nem antes nem depois da publicação RE/Search #12: Modern Primitives (VALE; JUNO:1989). Dentro deste contexto, aponta para dois erros distintos que saturam as 148 discussões sobre primitivos modernos: o primeiro nasce de uma leitura superficial do livro como um todo. Isto é, diz respeito à utilização das ideias de Fakir Musafar como sendo um compêndio de um movimento maior que reflete a forma como os sujeitos se relacionam com seus corpos tendo em vista as práticas de modificação as quais se submetem. A este respeito, afirma que Fakir Musafar, só pode falar por si e não pode, por conseguinte, ser utilizado como um representante ideológico de outra coisa que não seja suas próprias ideias e as de seu círculo social imediato. O segundo erro, em alguns casos, está entrelaçado às suposições implícitas que decorrem da leitura anterior: a de que toda e qualquer modificação corporal deve ser associada ao “movimento dos primitivos modernos”. Nesse contexto, descreve como falácia as leituras que apontam para a ideia difundida por Christian Klesse de que, apesar do discurso avesso aos valores da sociedade de consumo da cultura ocidental, tatuadores e body piercers profissionais abriram empresas de pequeno porte em todas as grandes cidades. A este respeito afirma: a partir deste simples erro categórico, Kleese formula uma teoria equivocada sobre os profissionais envolvidos na cena das modificações corporais, em função de uma leitura apressada sobre o discurso dos chamados primitivos modernos. Atribuiu, a um vasto número de sujeitos, uma identidade, uma política e até mesmo uma visão de mundo em que, provavelmente, muitos deles não se identificam ou se vêm retratados nelas. Para tais criticas, analisa detalhadamente as vinte quatro entrevistas que aparecem na obra RE/Search #12: Modern Primitives (VALE; JUNO:1989), ancorando-se, sobretudo no discurso do tatuador Don Ed Hardy. Este não somente diz que não 149 se enquadra dentro do que estaria se chamando de primitivos modernos, como tem uma visão bastante crítica sobre o movimento e a sua repercussão. O que leva Matt Lodder a afirmar que no mesmo período de tempo e lugar em que Fakir Musafar estava desenvolvendo suas noções sobre o primitivismo moderno, um outro grupo, exemplificado na figura de Don Ed Hardy, apresentava uma concepção bastante diferente acerca das modificações corporais:

É intrigante ver esta retórica do primitivismo sendo usada pelas pessoas como essencialmente uma espécie de novo kitsch. Não são desenhos muito originais, mas eles se fixam nessa coisa que embute um significativo qualquer para eles, como uma viagem ou um rito de passagem e todas essas coisas. É incrível o que está acontecendo... Eu fico tão cansado de ouvir todas essas “baboseiras”. E é claro que eu sei que também comecei com este tipo coisa. Na primeira fase Tattoo, era apenas uma forma de conscientizar as pessoas, mas é tão engraçado agora (Entrevista Don Ed Hardy interviewed in DeMello 2000: 182)13.

O body mod e performer paulista Thiago Soares não chega a exprimir uma forte oposição aos princípios e filosofias difundidos por

Fakir Musafar sobre a alcunha do primitivismo moderno. Reconhece a importância do body performer para a propagação das práticas de modificações corporais mundo afora. Contudo, não se vê dentro deste movimento por ser uma linha que não reflete suas vivencias e crenças pessoais. Busca uma possibilidade de exploração corporal e pessoal

13 É intrigante ver esta retórica do primitivismo sendo usada pelas pessoas como essencialmente uma espécie de novo kitsch. Não são desenhos muito originais, mas eles se fixam nessa coisa que embute um significativo qualquer para eles, como uma viagem ou um rito de passagem e todas essas coisas. É incrível o que está acontecendo... Eu fico tão cansado de ouvir todas essas “baboseiras”. E é claro que eu sei que também comecei com este tipo coisa. Na primeira fase Tattoo, era apenas uma forma de conscientizar as pessoas, mas é tão engraçado agora.

150 que desestabilize os processos de normatização da aparência física em termos estéticos e sexuais, no ensejo de afirmação da beleza freak:

Tenho uma certa dificuldade com a fixidez ou definição das coisas. No entanto, reconheço que em alguns momentos são importantes. Sinto que o meu gênero se aproxima do queer, uma vez que eu não me sinta homem e nem queira ser mulher. Para mim o binarismo de gênero não serve. Junto com isso tenho em mim um pouco de cyberpunk com um profundo interesse no body hacktivism e self- made cyborgs. Reconheço a importância do primitivo moderno, mas não é a linha que mais me interessa (Entrevista concedida por Thiago Soares em 18 de janeiro de 2015).

O que equivale dizer que os body mods paulistas mixam e justapõem, num verdadeiro amálgama, práticas tribais, high-tech e de artes performativas para criar um estilo híbrido, explorando e derrubando as fronteiras que limitam o corpo positivado, que muita vezes aparece retratado como corpo burguês. Avessos a definições e possíveis enquadramentos, realizam uma sucessão de combinações aparentemente sem fim, visando à conquista de formas, por vezes, somente imaginadas na ficção científica e nas revistas em quadrinhos.

Trata-se, assim, de um fenômeno inicialmente restrito à cidade de São Paulo, que tem como marco os anos de 1990. Nessa ótica, as marcas corporais como estéticas marginais de dissidência se entrecruzam e dialogam, sobretudo, com a versão nacional do movimento punk e a cultura clubber, cujos integrantes eram os maiores entusiastas da BM, além do Mundo Mix – também conhecido como MMM – que impulsionou a sua popularização14:

Alguns movimentos realmente a influenciaram, o movimento punk com seus furos em locais inusitados, na época dos anos 80, alfinetes na boca... na orelha...nos anos 90 os clubbers adoravam a BM, os piercings flúor combinavam com as roupas e as pistas de dança da época... No Mercado Mundo Mix, o piercing realmente

14 Thiago Soares (2015) também cita a influência de góticos e skinheads. 151

cresceu e caiu na mídia...dai todos já queriam. Atualmente, tudo está mais permitivo... a BM está desde a patricinha até o rocker...rs. (Entrevista concedida por Zuba, em 21 de setembro de 2015).

4.2 Os punks paulistas

Indumentária, perfurações pelo corpo, artes visuais, cinema, literatura, dança e música com letras ácidas e de poucos acordes caracterizam o que se convencionou chamar de punk rock: uma manifestação sociocultural dos anos de 1970 na qual a música ocupa um espaço privilegiado (CAIAFA, 1989: 9-10). Invade o cenário musical brasileiro, no fluxo da grande repercussão do movimento londrino em que o então casal Malcolm McLaren – produtor de bandas como Sex Pistols – e a estilista Vivianne Westwood, que junto com o marido foram proprietários da loja Sex, localizada na rua King’s Road, é frequentemente lembrado como os grandes personagens do movimento. Na versão paulista, o punk rock é abraçado por jovens em situação vulnerável, como estudantes, jovens que ocupam postos de trabalho mal-remunerados ou que estão desempregados. Habitam os bairros das zonas periféricas da cidade de São Paulo onde a violência e a vigilância das autoridades se fazem presente. A agressividade é, ao mesmo tempo válvula de escape e evasão para criação artística:

No espetadiço dos pinos e dos cabelos, a estética punk é dura e agressiva. Porém sóbria e sucinta. Não é difícil de observar que o visual punk tem a elegância da justa medida. Nada sobra, pois o que se salienta do corpo se projeta como arma – o cabelo moicano, os pregos e pinos – como a lâmina que solta do canivete. [...] A 152

corrente na cintura ou no pescoço anuncia uma iminência de ataque, ela deve estar a postos, assim como se está prestes a usá- la. O alfinete na bochecha é real. Alguns punks tem dois furos que deixam passar o alfinete (CAIAFA, 1989:13).

No ano de 1978, surgem as bandas paulistas Restos de nada e AI-5, numa menção clara ao Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968, que entrou em vigor durante o governo do então presidente Artur da Costa e Silva. Já em 1982, Antônio Bivar e Callegari organizam o festival O começo do fim do mundo, no SESC Pompéia, São Paulo. Inocentes, Cólera e Ratos de Porão são as bandas de grande destaque. Adotando a postura “faça você mesmo”, o evento impulsionou a produção independente de material gráfico, shows, festivais e até mesmo a gravação de músicas.

4.3 A cena clubber

Para a jornalista Erika Palomino15, o conceito clubber surgiu com a explosão da house music no mundo, cujo berço é a Grã- Bretanha de meados dos anos de 1980. Em São Paulo, o cenário se forma entre 1989 e 1991 com os jovens da classe média alta paulista frequentando a casa noturna Nation, que funcionava nos fundos de uma Galeria, localizada na Rua Augusta, nos Jardins. Com o seu fechamento, uma antiga oficina mecânica na Rua Fortunato, Santa Cecília, dá origem a Sra Krawitz. A partir desse momento, esta elite paulista entra em contato com novos estilos eletrônicos que vinham se fortalecendo no mundo. Acompanhado a isso, as

15 Jornalista e produtora de moda que assinava a coluna Noite Ilustrada, na Folha de São Paulo. 153 tatuagens e os piercings se tornam obrigatórios. O corpo – máxima dos 90 – ajuda a contar quem você é. O ápice da body art como forma de expressão (PALOMINO, 1999:230). Em 9 de julho de 1994, o estilo Techno ganha força, servindo para dar feições e identidade musical à década de 1990 através do Hell’s club16 idealizado pelo DJ e promoter Pil Marque (PALOMINO, 1999:72). Dentro de um porão situado na esquina da Rua Augusta com a Estados Unidos, no bairro dos Jardins, a pista de dança do Hell’s club tinha como como um de seus DJs residentes Maurício Fernando Bischain – mais conhecido como Mau Mau – que havia recém chegado de sua primeira viagem à Londres. Funcionando sob o conceito after-hours 17 na extinta casa noturna Columbia com festas que começavam por volta das 5 horas da manhã e se arrastavam até o meio-dia, o Hell’s club lançou mão de algumas práticas alternativas, como a difusão de perfurações corporais:

Eu fazia muito piercing em casa noturna Hell`s Club no Columbia. Lembro que eu ficava tipo num palquinho fazendo piercing... o Mau Mau, Renato Lopes tocavam e eu fazia piercing na galera. Também fazia no Paparazzi da Consolação rs (Entrevista concedida por Zuba em 21 de outubro de 2014).

Com o fim do Hell’s Club em 1998 em função de sua popularização, ficam como registros a marca de roupa na Galeria Ouro Fino e as tatuagens com a logomarca das festas em vários frequentadores.

16 A listagem de casas noturnas é bastante ampla, foram destacadas apenas as mais significativas para ajudar a dar forma ao cenário da BM. 17 Esta ideia de se fazer festas depois horário oficial das night clubs começou em Londres dos anos de 1960. 154

Outro ponto importante que ajudou a montar a maratona clubber da capital paulista foi o inferninho underground A Lôca, criado em 1995 por meio de uma iniciativa do promoter Nenê Krawitz com os de DJs Zozó, Ednei, Renato Lopes e Mau Mau. A Lôca, de acordo com Soares (2014: 70), foi palco para a exploração de muitos experimentos corporais. Ao som predominante do house, ora intercalado com outros estilos, um número expressivos de seus habitués era adeptos da BM. Não raro, a pista era tomada por gente que, apresentando uma vasta área do corpo cobertas por extensas tatuagens e portando grandes alargadores, se jogavam nas clássicas festas como Tapa na Pantera,

Loucuras e Grind18. Com a chegada do Techno ao grande circuito da mídia, a partir de 1997 o estilo alcança outras regiões para além do universo dos segmentos médios altos paulistano. Tal impulso, de acordo com Palomino (1999:127), se dá com as figuras do ex-cartunista Xerxes de Oliveira, que se torna DJ e produtor brasileiro de drum & bass19 e do produtor Ramilson Maia com o projeto Corrupy: um trabalho de breakbeat com elementos do axé, forró, samba e capoeira. Logo, o espaço onde funcionou a extinta Nation se torna palco para a realização de várias festas de House e Techno dedicadas ao novo público. Nesse momento, o referido estilo musical chega às regiões periféricas de São Paulo, conforme explicita o texto da jornalista Claudia Crechi:

18 Grind, que também dá nome ao zine do clube, traz um grande números de imagens a este respeito, o acervo consultado por Soares (2014). 19 Um estilo de música eletrônica que se originou também conhecido como jungle. Surgiu na metade dos anos 90 na Inglaterra e se caracteriza baterias sampleadas em alta velocidade (entre 160 a 180 batidas por minuto). 155

De dia, um comportado office-boy. Todas as manhãs, o jovem Alexandre de 15 anos deixa o bairro da Pedreira, onde mora, para o trabalho. Nas tardes de sexta-feira e sábado, gasta horas se produzindo. Só no rosto são 4 brincos para colocar... De noite, um clubber modernoso (Revista Venice, 20 de julho de 2004).

Junto com ele, “nasce uma nova terminologia para se referir ao sujeito de baixa renda, que mora na periferia, frequenta clubs, consome música eletrônica e é adepto das modificações corporais: o “cybermano”. Frequentemente usada em tom depreciativo, o termo é uma “analogia direta do rap oriundo das favelas e o cyber uma alusão à musica eletrônica” (Soares, 2014:77):

Você via [...] os manos da periferia que sabiam do Hell’s e era um mito para eles. [...] O problema é que eles tem outra mentalidade. Uma maneira diferente da nossa de ver a diversão. Parece que para eles o que importa é quem tem mais piercing, diz o top club Marcelo Otaviano, da nata da nação (PALOMINO,1999:98).

Para Soares (2014:78), nas abordagens sobre a cultura clubber e com seu micro universo da BM, os textos jornalísticos dos cadernos de cultura e comportamento dos grandes jornais e revistas, dos anos de 1990, são termômetros deflagradores do preconceito socioeconômico existente no Brasil.

Muito longe do eixo Nova York-Londres, Alexandre mora com a família em uma casa em Pedreira, bairro periférico de São Paulo, não fala inglês, não costuma ler as The Face da vida, não frequenta raves em Goa e mal sabe se Ibiza fica na Espanha, nos Estados Unidos ou em Marte. Gasta quase todo seu salário em roupas e noitadas não só como diversão, mas também como a única forma viável de se manter antenado com o que acontece no chamado “mundinho moderno (Revista Venice, 20 de julho de 2004).

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Nesse caso, a legitimidade do movimento, então ameaçada pela figura dos “cybemanos”, estaria centrada no universo de empresários bem sucedidos ou ligado ao mercado financeiro, DJs famosos, modelos etc. Os textos dão a impressão que Ibiza, Londres e Nova York ficam logo ali na esquina e desconsideram o fato, como aponta Soares (2014), que estes mesmos jovens economicamente privilegiados também trabalham duro e gastam somas consideráveis de seu orçamento em suas noitadas.

4.4 Mercado Mundo Mix

Surgido em 1994, o Mercado Mundo Mix, mais conhecido como MMM, vem chancelar a inserção do underground no mainstream. Segundo a body piercer Zuba, o processo popularizou de vez práticas da BM como piercings, alargadores e as tatuagens que cobriam regiões inteiras do corpo.

Em 1994, qdo eu entrei para o Mercado Mundo Mix, comecei a fazer piercing até em globais, artistas, e pelo evento tb ter sido de grande importância pra moda, a mídia surgiu super interessada na BM...eu acho importante a visibilidade para sair do underground, mesmo para orientar as pessoas a respeito do cuidado que tem que se ter em procurar um bom profissional, mas na época, vários tatuadores não gostaram disso, até ficaram contra mim, por ter exposto demais algo que era do underground (Entrevista concedida por Zuba em 21 de outubro de 2014)

O Mundo Mix era, de acordo com Palomino (1999:242-243), uma marca de camisetas vendidas numa lojinha dentro do Festival Mix Brasil, que fora idealizado para promover o então incipiente mercado de consumo gay através de cinema, vídeo, roupas, 157 acessórios etc. primeira edição foi realizada numa pequena garagem, no bairro de Pinheiro. Foram 11 expositores e 500 visitantes. Em 1995, o evento atingiu um espaço de 6 mil metros quadrados e um público de 30 mil pessoas. Havia brechós, movelarias, lojas de CDs, tênis, estúdios de tattoos, clínicas de piercings com Zuba e André Meyer, cabelereiros, bares etc. Em julho desse mesmo ano, o mercado chegou ao Rio e em outubro a Belo Horizonte. Começa assim, a correr pelo Brasil, um formato diferente de feira de moda, com diferentes modelos de comportamento, que vão ser decisivos na influência da nova cara da juventude brasileira dos anos de 1990. Segundo Erika Palomino, a impressão ao se chegar no mercado era mágica, pois a sensação era de sair da realidade e de adentrar num novo universo cheio de novidades, frescor e juventude. “No MMM só chamava atenção quem era “normal”, ou melhor, quem estava isento de tatuagens, piercings no rosto, cabelos coloridos e outros acessórios mais excêntricos como alargadores (PALOMINO, 1999:243). Esta primeira fase informal, vulgarmente chamada de Shopping Hype, parece ter se extinguido rapidamente, sugere a jornalista. O público inicial, segundo Palomino (1999), sumiu. Com o passar do tempo, o underground foi se tornando “lugar comum” diz a autora.

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Figura15: Flyer MERCADO MUNDO MIX. 1995

4.5 A BM paulista nos seus primórdios

Ao lado do Techno, a história da BM paulista vai sendo construída tímida e paulatinamente. Em 1990, São Paulo sedia pela primeira vez o evento Internacional de tatuagem chamado Brazilian Tattoo Convention idealizado pelo tatuador italiano Marco Leoni, que depois se mudou para a Itália. 159

Tal momento está atrelado ao que os integrantes da BM paulista costumam definir como primeira fase. Os body piercers André Mayer e Cláudia Zuba20 são apontados como os precursores da prática no Brasil que, nesse início, reúne jovens oriundos de camadas médias altas da cidade de São Paulo. Frequentadores de uma suposta noite “underground” no estilo sociedade secreta – espaços improvisados localizados em endereços nobres que oferece música “fora” do grande circuito comercial, podendo na melhor das hipóteses ser tratada como um underground de boutique pela diversidade de opções sexuais – que geralmente tinham morado em cidades como Londres, Amsterdam e NYC, por exemplo. Já em relação àquilo que se pode conceber como um segundo momento da BM, novos nomes começam a surgir, entre eles Felipe Espindola, na cidade de Campinas e o paulistano André Fernandes na década de 2000. Acreditando ser, no Brasil, o pioneiro em aplicações de joias no corpo, André Meyer frequentemente afirma ser o primeiro profissional da América do Sul a viver exclusivamente de perfurações. Body performer, designer de joias e, hoje, instrutor de Yoga, declara ter desenvolvido seu interesse pelas práticas de manipulação aos 13 anos de idade, quando se apaixonou pelos adornos indígenas em uma viagem de férias com sua família ao Amazonas, no ano de 1982.

20 DJ há mais de 30 anos, Cláudia Zuba também é técnica em vigilância da saúde. Hoje, atende em sua casa as pessoas que a procuram para aplicação de piercings por ser considerada uma das mais sérias e experientes profissionais da BM paulista.

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Pelo contato que tive com índios no Amazonas na minha adolescência, mas o que realmente me chamou a atenção foram alguns livros e revistas relacionados à Tattoo. Além disso, o contato estreito com meu amigo Marco Leoni e a Convenção de Tattoo no Projeto SP, em 1990. Depois, o destino me levou à Londres em 92, onde tive contato direto com a body art nas ruas londrinas e na convenção de Dunstable na Inglaterra (Entrevista concedida por André Mayer para o frrrkguys.com.br, em 03 de outubro de 2008).

Figura 16: O pioneiro da perfuração, André Meyer 161

Reconhece como exercendo uma grande influencia no seu trabalho, artistas e performers como Doug Malloy21, Fakir Musafar, Jim Ward/ Gauntlet Body manipulation, Allen Falkner 22 , Grant Dempsey23, Keith Alexander24 e Jesse Jarrell25. Viaja para Londres, em 1992, com o objetivo de aprender as técnicas de perfuração com Grant Dempsey. Quando retorna para o país, começa a trabalhar exclusivamente como body piercer. Em

1994, funda a loja Body Piercing Clinic, localizada na Galeria Ouro Fino, São Paulo. Três anos depois, viaja a Nova York para aprender as técnicas de branding com Keith Alexander. Em 1998, filia-se a APP – Association of Professional Piercers, em Las Vegas. No ano seguinte, vai ao Texas conhecer as técnicas de suspensão corporal

21 Richard Simonton (1915-1979), mais conhecido pelo pseudônimo Doug Malloy, foi um empresário e produtor do show business, em Hollywood. Notório pelo seu envolvimento nas ações para preservação do Steamboat Delta Queen e na fundação do American Society, Doug Malloy também atuou como body piercer, no final dos anos 1970. Comumente credita-se a ele um papel fundamental para o desenvolvimento e popularidade da prática. 22 Um dos primeiros “aprendizes” do Fakir Musafar, Allen Falkner é um body piercer profissional dedicado a performances artísticas. É fundador do TSD, um grupo de suspensão corporal comumente retratado nos meios de comunicação de massa como sendo o primeiro grupo formal exclusivamente dedicado a esta prática. 23 Um dos pioneiros da indústria do piercing, Grant Dempsey é proprietário do studio de perfurações corporais chamado Cold Steel, que se encontra localizado no bairro de Camden Town, em Londres, Inglaterra. Gozando de grande respeito dentro da indústria de piercing, Grant Dempsey embora seja considerado old school está antenado com a novas tecnologias e regras de higiene. A qualificação profissional de seus aprendizes solidificou a sua reputação no meio. 24 Foi um body piercer que desenvolvia trabalhos de escarificação. Começou sua carreira profissional no Gauntlet NYC, onde obteve o seu certificado como piercer. Em 1996, abriu Modern American Body Arts em 1996. Faleceu em decorrência de um acidente de ciclismo de estrada em 11 de julho, 2005. 25Jesse Jarrell é um designer de joias e próteses que inicialmente trabalhava com com osso e chifres. Em 1998 ele se associou com Steve Haworth para criar a Fractal Creations, a primeira empresa a explorar titânio fundido para a produção de joias para o corpo. Logo depois, ele começou a projetar e produzir implantes personalizados para SteveHawort. Co-fundada com Steve Haworth, Kaos Softwearé é hoje a sua mais recente empresa implantes para corpo. 162 através de TSD (Traumatic Stress Discipline) 26 . Paralelamente, passa a promover os chamados freak shows, no Brasil, Europa e

Estados Unidos. Na sua clínica, André Meyer forma vários profissionais, dentre eles o body piercer e performer Luciano Iritsu. No ano de 2011, depois de 18 anos de atividades como body piercer, anuncia a venda da Body Piercing Clinic para se tornar instrutor de Yoga em tempo integral. Assim como André Meyer, após uma temporada de sete meses trabalhando em Londres como ajudante de um studio de piercing e tatuagem durante 1989/1990, Zuba fez alguns cursos para aprender as técnicas de perfuração corporal como o pocketing, surface piercing além do branding e das escarificações. Ao retornar para o Brasil, começa a fazer piercing em amigos e clientes indicados pelo círculo pessoal. Com a intensa procura, abre seu primeiro studio, no bairro de Pinheiros, em 1992. No ano de 1994, passa a ter um stand no Mercado Mundo Mix dedicado exclusivamente à venda de piercings e à realização de perfurações. Após 17 anos, fecha o studio para montá-lo em sua própria casa com uma estrutura menor, onde atende até hoje.

26 Trata-se de uma forma de expansão corporal por trauma. Numa tradução livre para o português, seria prática por estresse traumático. 163

Figura 17. A pioneira da perfuração, Zuba.

Nesta mesma época, dois lugares se tornam grande referência no cenário das modificações corporais: as galerias Ouro Fino e do Rock. Construída nos anos de 1970, a Galeria Ouro Fino se encontra localizada entre a Alameda Lorena e a Oscar Freire, no Jardins. Nos anos de 1990, passou a concentrar estúdios de tatuagens e clínicas de body piercing além de lojas voltadas para a estética clubber como as especializadas em vendas de perucas coloridas e cílios postiços importados de Nova York e duas das lojas mais conhecidas de disco de São Paulo: a Rhythm Records e a Techno Records frequentada por DJs do universo clubber. Já a galeria do Rock, foi fundada em 1963 na Rua 24 de Maio na altura do Largo do Paissandu. Com cerca de 400 lojas aproximadamente, há espaços voltados para skatistas, hip hop, acessórios e roupas alternativas, salões de beleza, além de tinta spray para pichações. No final dos anos de 1990 e inicio 2000, se tornou ponto de encontro dos adeptos das modificações corporais. Praticamente em todos os andares existem estúdios de tatuagens e clínicas de 164 piercing oferecendo uma grande gama de joias desde os mais comerciais até o grandes alargadores. Circulando pela galeria não raro, a recepcionista vem até o cliente e pergunta se teria interesse em aplicar o piercing, cujo valor varia entre R$ 25,00 e R$85,00.

4.6 A nova cara da BM paulista

No final dos anos de 1990 e início do ano 2000, o cenário da BM se transforma por completo com a introdução das práticas consideradas mais extremas através das tatuagens cobrindo de 70% a 90% do corpo ou realizadas em áreas “tabu” como genitália, mãos, rosto e pescoço) da difusão das novas técnicas de escarificação tais quais já mencionadas. Apesar de muitas delas já integrarem o repertório “tradicional da BM, as vezes com outros nomes, é nesse período que se faz e se fala publicamente que fez, diz Thiago Soares. Felipe Espindola, que tem como grande influência as culturas indígenas do Brasil, é o primeiro expoente desta nova fase da BM paulista. Em 1995, viaja à Amsterdã onde compra as primeiras joias para começar a perfurar no estilo “faça você mesmo”:

Em Amsterdã, fui tatuado pelo lendário Hanky Panky, criador do Museu da Tattoo, quando o museu ainda era dentro da loja que funcionava no Red Light District. Lá, conheci o branding e a escarificação não tribais, mas de studio de BM. Trouxe de lá muita informação impressa e algum material, e assim ao voltar em 1996 iniciei profissionalmente na área (Entrevista concedida por Filipe Espíndola em 13 de dezembro de 2015).

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Figura 18: Elton Panamby, Filipe Espindola e Barriga Knup na Casa 24

Após um ano residindo em Amsterdã, Filipe Espíndola retorna ao Brasil e começa a perfurar profissionalmente como parceiro do tatuador Luiz Marchioni, o Trash. No ano de 1998, começa a realizar um trabalho de suspensão corporal performática com os body performers Schinke e Lagartixa, acreditando ser o primeiro a desenvolver o estilo no Brasil. Em 1999, abre o Studio Nômade, especializado em perfurações corporais. Em 2011, fecha o studio em Campinas e se muda para o Rio de Janeiro, onde abre a Casa 24 junto com sua companheira Sara, também conhecida como Elton Panamby Djon, e o body piercer Barriga Knup. Especializado em todo o tipo de perfuração genital, aprendeu o básico com o carioca Marcelo Rodrigues, na 1ª convenção de tatuagem na Fundição Progresso, RJ. Aperfeiçoou a prática utilizando Schinke como voluntário, durante 6 anos. Paralelamente, 166 desenvolveu extenso trabalho junto à Secretaria de Saúde e ao COAS, Centro de referência e testagem de HIV/DST:

Em função do meu trabalho junto à Secretaria de Saúde e ao COAS, Centro de referência e testagem de HIV/DST, sempre atendi pessoas de todos os gêneros e opções sexuais, tendo trabalhado muito com as travesti, transgêneras e transexuais (Entrevista concedida por Filipe Espíndola, em 13 de dezembro de 2015).

O segundo nome quando se pensa em modificações corporais extremas no Brasil, é André Fernandes. Aprendeu as técnicas de perfuração em Londres como aprendiz dos body piercers Carlos, do Chile, e Alejandro, Espanha. Ao retornar ao Brasil, começa a aplicar piercing em casa, depois foi para a Tattoo You, onde trabalha até hoje, após uma breve interrupção:

Em 97, eu fiz minha primeira viagem e Londres e lá conheci o Ca Figura 16: Elton Panamby, Filipe Espindola e Barriga na Casa 24rlos (chileno) Alejandro (espanhol) ambos piercers e fui trabalhar com eles como panfleteiro. Depois de um mês, eu me tornei assistente deles. Limpava joia, pinças, montava bancada estas coisas, mas não perfurava. Um dia eles me convidaram para ser aprendiz. Voltei ao Brasil e comecei fazendo em casa, depois consegui trabalho na Tattoo You onde trabalhei por 11 anos. Lá, tive a oportunidade de conhecer Javier Mandaina que me ensinou várias coisas também. Em 2002, resolvi me aventurar pela Europa e obter mais conhecimento, trabalhei na Espanha, França e Inglaterra. Foi quando conheci Lukas Zpira, que foi minha maior influência, trabalhei com ele na França e depois aqui no Brasil (Entrevista concedida por André Fernandes em 18 de maio de 2015).

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Figura 19: André Fernandes em agosto de 2015

Os anos de trabalho com grandes body modifiers da América do Sul como os argentinos Javier Mandaina 27 e Rata 28 e do venezuelano Emílio Gonzalez 29 , além da atuação com os mais importantes modificadores europeus a exemplo de Lukas Zpira30, Allen Falkner31, Samppa32, Roland Visvajara33 dentre muitos outros,

27 Um body piercer e modifier argentino que atuou no studio Tattoo You, Vila Madalena, São Paulo. 28 Body piercer e modifier, começou a perfurar em 1996. Abriu seu próprio studio, Rata Body Art Studio, em 2004, na cidade de Buenos Aires, Argentina. É associado a APP (Association of Professional Piercers). 29 O piercer e artista modificação corporal, é proprietário studio Tattoo Mithos em Caracas, Venezuela, além de ser convidado a realizar procedimentos ao redor do mundo. Ele é especialista em procedimentos cirúrgicos, como ear pointing, bifurcação da língua, implantes e remoção de mamilo e nariz. Frequentemente é apontado como um dos artistas mais radicais que trabalham atualmente no mundo. 30 Segundo Duarte (2015), é o body modifier idealizador do Body Hacktivism. Criado em 2000, a proposta envolve reunir pessoas inspiradas na tecnociência, na cultura mangá e na ficção-científica, trabalhando conceitual e empiricamente sobre o tema do corpo modificado 31 É uma das grandes forças por trás do TSD, o primeiro grupo de suspensão, além de ser body piercer treinado por Fakir Musafar. 168 renderam-lhe um vasto conhecimento. Desse acúmulo de experiências, trouxe para o país várias práticas, como ear pointing, os implantes transdermais e os tridimensionais:

Comecei a fazer mods e sempre tive algo comigo que só faria procedimentos que eu pudesse reverter, por isso nunca fiz amputação. Fiz scar, implantes, transdermais, tongue split, lobe remove, big labret, ear pointing (Entrevista concedida por André Fernandes em 18 de maio de 2015).

Referência para muitos profissionais da body modification até hoje, conforme explicita Soares (2015:25), André Fernandes busca solidificar a cultura da BM. Junto com Thiago Soares vêm realizando atividades com vistas à capacitação dos profissionais brasileiros através da promoção de seminário e workshops com os body modifiers de grande relevância no cenário internacional, como Lukas Zpira, Emilio Gonzales, Matias Rata Tafel, Samppa, Allen Falkner e Steve Haworth:

Na vdd quem começou fui eu, já fazia piercing a um tempo e descobri o trabalho do lukas zpira e entrei em contato com ele e trouxe ele para o Brasil. Ele realizou alguns trabalhos e fez um workshop para profissionais. Depois, trouxe Emilio Gonzales, Matias Rata tafel, Samppa, Allen Falkner e, por último, o cara que inventou toda body mod Steve Haworth. Com a tentativa de qualificar os profissionais aqui do Brasil, mas para variar aqui eles estão mais preocupados com o ego do que com o aprendizado. Os mais "conhecidos" não foram nem pra conhecer eles. Aqui, a maioria dos profissionais que temos são formados pelo YouTube. Assistem meia dúzia de vídeos e já fazem mods, tem pessoas que nem piercing sabem fazer e já fazem modificação. Eu sou da velha escola prefiro ir até um profissional que admiro e trabalhar ao seu lado e aprender

32 Samppa Von Cyborg é um artista finlandês e proprietário do Mad Max Tattoo e Piercing em Tampere. Ele é especializado em piercings, escarificações, implantes, bifurcação da língua e modificações com intervenção cirúrgicas. Foi o primeiro artista a fazer modificação com implantes magnéticos. Samppa projeta e faz suas próprias joias. 100 Um body piercer e modifier alemão que atua em Nürnberg. 169

o procedimento do que assistir vídeos . E por isso que temos está péssima qualidade de trabalho do Brasil. Não estou exagerando, mas a grande maioria não sabe nem o que está falando. Mas Pq viu um vídeo (Entrevista concedida por André Fernandes em 18 de maio de 2015).

4.7 A BM paulista no domínio da body art

Esta nova fase da BM se dá no domínio de uma retomada da body art como um ato deliberado de rejeição ao tradicional objeto de arte, enquanto artigo de luxo único, permanente e portátil (STANGOS, 1991:183). Ou seja, se dá no ensejo da eleição do corpo do artista como suporte e meio de expressão, que invariavelmente adquire a feição de um ritual ou apresentação pública nos moldes dos happenings34 e da performance, enquanto um prolongamento da arte conceitual35 (CHILVERS, 1999:66). Ligada ao princípio da participação do espectador, os happenings implicam a saída do artista dos limites das galerias e museu para ruas, praças e espaços públicos. Não raro adquire um tom político-social com vistas a chocar a moral e os valores estabelecidos (CHILVERS, 1996:245) Já por arte conceitual, entende-se como um termo relativo a várias formas de arte nas quais a ideia da obra é considerada mais importante que o produto acabado e, por vezes, nem chega a ser realizado. Essa concepção remete basicamente às ideias do artista Marcel Duchamp (CHILVERS, 1996; STANGOS, 1991).

34 De acordo com Chilvers (1996), o termo foi cunhado por Allan Kaprow em 1959 e tem sido usado para designar uma multiplicidade de fenômenos artísticos. 35 Cabe ressaltar que, de acordo com CHILVERS (1996) e STANGOS (1991), existem leituras nas quais a body art é entendida como uma crítica à impessoalidade da arte conceitual. 170

Dentro deste contexto, a body art é concebida como um vale tudo de ideias ou de informação junto com um certo número de tendências afins rotuladas de formas variadas como arte corporal, arte performática e arte narrativa, cuja origem remete aos meados dos anos de 1960” (STANGOS, 1991:183). Invariavelmente, adota práticas de modificação extremas com o objetivo de suscitar um questionamento acerca da normatividade corporal em termos estéticos, biomédicos ou sexuais, como sugerem, por exemplo a performance intitulada Reencarnação da Santa Orlan, por meio da qual a artista transmitia um conjunto de nove cirurgias plásticas, via satélite, para diversos lugares, entre eles as principais galerias de arte da Europa36. Logo, a relação com a experimentação corporal, oscila de acordo com os sentidos que estão sendo atribuídos à prática escolhida:

É, antes de mais nada, uma crítica pelo corpo às condições de existência. Oscila de acordo com os artistas e as performances entre a radicalidade do ataque direto `a carne por um exercício de “crueldade” sobre si, ou a conduta simbólica, de uma vontade de perturbar o auditório, de romper a segurança do espetáculo. As performances questionam com força a identidade sexual, os limites corporais, a resistência física, as relações homem-mulher, o pudor, a dor, a morte, a relação com os objetos etc. [...] A intenção deixa de ser afirmação do belo para ser provocação da carne, o virar do avesso o corpo, a imposição do nojo (LE BRETON, 2004:44-45)

No Brasil, o fenômeno da body art ligado à BM corresponde inicialmente às manifestações da artista plástica paulistana Priscilla Davanzo, que no final dos anos de 1990 e inicio de 2000 ganha

36 Nela, a artista mostrava o processo por meio do qual seu rosto era transformado paulatinamente, ora recebendo chifres não muito protuberantes, ora ganhando implantes no queixo, nas bochechas e ao redor dos olhos. Foi transmitida um conjunto de nove cirurgias plásticas, via satélite, para diversos lugares, entre eles as principais galerias de arte da Europa

171 grande visibilidade nacional ao tatuar sistematicamente sua pele com as manchas das vacas holandesas. Com o desenvolvimento de um projeto intitulado “As Vacas Comem Duas Vezes a Mesma Comida”, buscava contestar a ideia da condição humana. Por intermédio do body piercer André Meyer imprimiu também marcas elípticas feitas em branding simbolizando cicatrizes deixadas por remotas asas de anjos, que lhe teriam sido arrancadas. Já realizou performances em que costurava ornamentos tanto no seu corpo quanto nos dos voluntários, os quais receberam também escarificações com bisturis para que pudessem deixar, em folhas de papel, impressões com sangue. Outros três grandes performers atualmente são o bailarino e estilista Guilherme Troiano, Sara cujo nome artístico é Elton Panamby Djon e Filipe Spindola. Embora os trabalhos sejam distintos, têm como elo comum a tentativa de desconstruir a identidade de gênero, o binarismo sexual assumindo outros papeis, conforme fala, por exemplo, Filipe Spindola:

Não sou Cross Dresser, quando me monto não busco parecer mulher, mas sim crio um outro gênero, degenerado, para borrar a fronteira entre masculino e feminino, para deixar aflorar minha feminilidade, reprimida no dia a dia pela heteronormatividade. Também pra questionar o que é ser masculino, pra 'queimar o filme do ser masculino', saca? acho homem uó, limitado, seguro demais, protegido atrás de uma máscara muito padrão, chato mesmo, então acho libertador me parecer minimamente com uma mulher, ou com uma travesti, uma transgênera (Entrevista concedida por Felipe Espíndola em 13 de novembro de 2015). 1 72

Figura 20: Filipe Espindola, acervo pessoal cedido

A crítica ao binarismo sexual através da proposta de criação de um gênero degenerado feita por Filipe Espindola vai em direção ao que Butler (1989) aponta sobre o processo de diferenciação sexual. Para a filósofa, não se resume ao aspecto material-físico. Trata-se de um conceito marcado pela construção de práticas discursivas. Desse modo, ao propor um gênero borrado no qual o masculino transita pela feminilidade, Filipe se recusa a assumir uma “identidade” inserida na matriz heterossexual. Logo, este seu objetivo de aflorar sua feminilidade reprimida no dia a dia pela heteronormatividade acaba por causar fissuras, mesmo que 173 momentâneas, ao modelo naturalizado de sexo que oferece apenas duas possibilidades de existência

4.8 A BM retratada nos veículos de comunicação

Embora desde o final dos anos de 1990 e início dos anos 2000, a prática da BM venha sendo popularizada dia após dia, não raro as abordagens referentes às modificações ainda causam incômodo, de modo que o discurso patologizante predomina nos veículos de comunicação, por exemplo:

Os oito ganchos são ligados a um mecanismo de cordas e roldanas que lembra um varal de apartamento, mas o que será erguido por eles é um corpo humano. A cena acontece numa casa noturna de São Paulo. Ao som de música Techno, as pontas afiadas de um gancho são introduzidas sob a pele da moça, como se faz a uma peça de carne num açougue, com cuidado apenas para não atingir os músculos. Então, com uma tração lenta e constante, as cordas são puxadas até que o corpo fique totalmente suspenso no ar. Parece uma cena de tortura, mas a pessoa que se submete a esse estranho ritual é voluntária - e diz que gosta, gosta muito. Ela faz parte de uma tribo de jovens que, diferentemente da grande maioria das pessoas, busca a dor física em lugar de fugir dela. [...] Cynthia, além de pendurar-se pelos ganchos, faz cortes na pele para deixar cicatrizes quando está triste. Tem cerca de 70. Não são cortes profundos, como os dos suicidas que abrem os pulsos, mas marcas semelhantes às que os índios amazônicos utilizam para indicar o status na aldeia (O barato da dor por João Luis Vicente, Revista Época de 17 de março de 2003).

Outra faceta desta mesma moeda aparece na matéria premiada escrita pelo jornalista Renan Antunes de Oliveira sobre a 174 morte do Felipe Klein37, retratada sob o tom da espetacularização: filho do ministro dos Transportes do governo Fernando Henrique Cardoso entre 1995 e 1996 e secretário estadual da Agricultura do governo Germano Rigotto, Odacir Klein. Referência modificação corporal brasileira, Felipe portava em seu corpo, dentre na cena da outras práticas consideradas extremas, tatuagens no pescoço, escarificação, implantes sub e transdermais, argolas nos genitais, língua bifurcada e remoção de mamilos:

A tragédia de Felipe Klein. Ele tinha tudo para ser feliz. Juventude, saúde, talento, dinheiro, o amor de belas garotas. Mas Felipe construiu para si um mundo dark e animal. Tatuou demônios no peito - e foi vencido por eles. Na noite do sábado 17 de abril, um corpo de aparência incomum foi levado pela polícia ao necrotério da Avenida Ipiranga. Tinha duas protuberâncias esquisitas na testa. O médico-legista abriu o couro cabeludo, abaixou a pele até o nariz e se deparou com algo muito raro: dois chifres implantados na carne, feitos de teflon. Cada um era quase do tamanho de uma barra de chocolate Prestígio. O cadáver estava todinho tatuado. Trazia argolas de metal nos genitais, mamilos, lábios, nariz e nas orelhas – e estas tinham orifícios da largura de um dedo (Jornal Já, 20 de dezembro de 2004)

A matéria publicada no Jornal Já gerou enorme controvérsias e irritação dentro da comunidade da BM como um todo, deixando os amigos de Felipe Klein indignados:

... O que fazemos com o nosso corpo, ou as roupas que usamos, não muda nosso caráter. Sim, talvez tenhamos nos interessado por isso pelo fato de odiarmos a humanidade e odiarmos a maneira como os humanos tratam uns aos outros e aos animais. Mas nem todos que se vestem assim ou se modificam são deprimidos, pelo contrário.

37 Soares (2015:85) afirma que Felipe favorece para que a prática da BM “reapareça” na classe média nacional, despertando o interesse para a auto denominada body modification community. Ainda de acordo com Soares (2015), fez diversas manipulações no corpo num período que pouco se conhecia das técnicas no Brasil. Sua morte prematura aos 20 anos de idade, gerou um profundo pesar e comoção generalizada de toda a comunidade, no Brasil e no exterior. 175

Assim como uns gostam de luzes californianas e marca de bikini, outros gostam de andar de preto e ter a língua cortada, por que isso não pode ser considerado normal? Para mim, é completamente anormal a maneira como as pessoas que se dizem normais julgam as outras. [..] Ele era o único que cuidava do pai quando este bebia. O seu irmão matou um cara e vocês ainda dizem que o Felipe era louco? Sinceramente, tá faltando é bom senso. Num país em que predomina a diversidade, o mínimo que vocês deveriam fazer era respeitar os gostos e a aparência de alguém. O que fazemos com os nossos corpos e vida, não e da conta de ninguém, e simplesmente não é extremo, uma vez que esta sendo feito nos nossos corpos e não nos dos outros. E como disse o Freakboy, como o cara ganha um premio se nem sabe o que está falando? Como as pessoas ainda são tão preconceituosas a esse ponto? Por que não simplesmente respeitam a diversidade e aceitam que somos todos diferentes? Se cada um de nós fosse discriminar pessoas diferentes, esse mundo seria muito, mas muito pior do que já é. É por isso que ele preferia os animais e só se interessava por algumas pessoas. Esse mundo é sujo, falso e mesquinho. As pessoas só querem passar as outras pra trás. Ridículo. Humanos estúpidos (Depoimento de Maddie como uma réplica ao jornal Já, s.d.) .

Em depoimento para esta pesquisa, Thiago Soares julga ser inacreditável que um texto tão pouco criterioso tenha sido premiado. No seu ponto de vista, o jornalista Renan Antunes de Oliveira apenas reforça todo o tipo de estereótipo sobre o Felipe, fazendo não só sensacionalismo com a morte do body mod mas tratando a sua memória com pouco respeito, sem ter um entendimento mínimo acerca da BM.

176

Figura 21: Felipe kleim

177

4.9 As linhas de fuga da BM contra as formas de poder

No entorno das questões que assolam a BM, o então Deputado Campos Machado – PTB/SP consegue aprovação de seu Projeto de lei nº 44/97 que proíbe a realização de tatuagens e aplicação de piercing em menores de 18 anos. Logo, através da Lei nº 9.828, de 06 de novembro de 199738 de São Paulo, o presidente da Assembleia Legislativa se pronuncia:

Faço saber que a Assembleia Legislativa decreta e eu promulgo, nos termos do artigo 28, § 4º, da Constituição do Estado, a seguinte lei:

Artigo 1º- Os estabelecimentos comerciais, profissionais liberais, ou qualquer pessoa que aplique tatuagens permanentes em outrem, ou a colocação de adornos, tais como brincos, argolas, alfinetes, que perfurem a pele ou membro do corpo humano, ainda que a título não oneroso, ficam proibidos de realizarem tal procedimento em menores de idade, assim considerados nos termos da legislação em vigor.

Parágrafo único - Excetua-se do disposto neste artigo a colocação de brincos nos lóbulos das orelhas.

Artigo 2º - Caberá à Secretaria da Saúde a fiscalização e o estabelecimento dos meios necessários para a aplicação da presente lei.

Artigo 3º - O não -cumprimento da exigência desta lei implicará no fechamento definitivo do estabelecimento, quando for o caso, e na responsabilidade dos agentes quanto à infringência dos artigos 5º, 17 e 18 da Lei Federal nº 8.069 (1), de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente).

Artigo 4º - O Poder Executivo regulamentará esta lei no prazo de 90 (noventa) dias da data de sua publicação.

Artigo 5º - As despesas resultantes desta lei correrão à conta de dotações próprias do orçamento -programa do Estado, suplementadas se necessário.

Artigo 6º - Esta lei entrará em vigor na data de sua publicação

Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, aos 6 de novembro de 1997 Paulo Kobayashi – Presidente

38 Segundo Soares (2015) um dos principais opositores a esta lei, foi o então foi o então deputado estadual do PSDB Alberto “Turco Loco”. Além de discursar contra a lei, dizia que “o colégio que não deixa um aluno entrar com brinco não pode ensinar nada para ninguém, é um mau exemplo. 178

Para Thiago Soares, o preconceito foi institucionalizado pela lei idealizada por Campos Machado através de um discurso totalitário e conservador:

Vi que era preciso fazer algo para preservar o futuro de nossos jovens. [...] O Estado tem de tutelar a sociedade. [...] Alguns pais são irresponsáveis, não enxergam que a tatuagem, por ser definitiva, pode atrapalhar a pessoa no mercado de trabalho. Eu mesmo tenho preconceito. Uma moça com dois brincos no nariz me causa repulsa (Campos Machado, É proibido permitir , Veja: 19 de novembro de 1997 )

Ainda segundo Soares (2014), a postura arrogante e discriminatória do então deputado, tendeu apenas a aumentar a prática do faça você mesmo entre a comunidade body mod, além de ter favorecido a abertura de um mercado clandestino, aumentando seriamente o risco de infecto-contaminação em menores de idade.

Andar pelas ruas do centro de São Paulo na década de 90 era ver com os próprios olhos a comprovação do que dissemos acima Inúmeros tatuadores espalhados por calçadas a espera do próximo cliente (SOARES, 2014: 72-73).

Apesar deste quadro conturbado, há uma penetração da BM no cenário cultural. Em 1998, por exemplo, o Museu da Imagem e do Som abriga uma mostra de vídeos sobre modificações corporais extremas, como “Ink, Needles and Pleasure” de Edu Mendes, O mistério do tattoo afrodisíaco e do piercing obsceno”, que é um vídeo com uma sucessão de pessoas colocando piercings em várias partes do corpo no Studio Zuba, e Um caso de body art”, um 179 documentário sobre o trabalho do Santiago Nazarian, que se realizava cortes no corpo para extrair reações das pessoas na rua. Além da exposição fotográfica Elos e Perfurações – Body Piercing no Brasil (SOARES, 2015:74).

4.10 A BM sob os aspecto do biopoder

Em meados da década de 1990, os estúdios de tatuagem e piercing passam por uma ampla reforma, assumindo uma estética de clínica médica através de um investimento no que se pode chamar aqui de biossegurança. Começam, assim, a contar com “toda a parafernália moderna, como instrumental, materiais descartáveis, catálogos etc. que tentam imprimir uma nova imagem de profissionalismo, de qualidade artística e de procedimentos higiênicos em relação à prática, embora sem fácil aceitação social em função do estigma que o trabalho carregava” (PÉREZ, 2006:181). A este processo corresponde, de acordo com Andrea Lissett Perez, um visual no qual a brancura do piso e das paredes, a austeridade dos objetos e a presença de móveis clínicos ganham destaque. Frequentemente, há também uma sala ou espaço de esterilização equipados com os devidos instrumentos e não raro o tatuador/body piercer fantasia-se de médico, com máscaras jalecos, luvas e touca cirúrgicas. Diante desse novo posicionamento os studios de piercings e tatuagens se tornam alvos em potenciais do projeto de lei do Ato 180

Médico39, que tenta subordinar todos os outros profissionais da saúde aos médico. Isso porque, para os efeitos desta lei, são os caracterizados procedimentos invasivos:

I. invasão da epiderme e derme com o uso de produtos químicos ou abrasivos

II. invasão da pele atingindo o tecido subcutâneo para injeção, sucção, punção, insuflação, drenagem, instilação ou enxertia, com ou sem o uso de agentes químicos ou físicos;”

Tal resolução levou body piercers se reunirem com o Conselho Federal de Medicina. Foi feita , então, apresentação para o Ministério da Saúde, ANVISA e o Conselho Federal Biomedicina sobre a atuação body piercers e tatuadores explicando que, com a lei tal prevista, médicos teriam que aprender a técnica de tatuagem e perfuração. A partir daí, foi adicionada um cláusula ao projeto sobre a regulamentação da atividade de dermopigmentação artística (tatuagem) e perfuração corporal (piercing), assim como das condições de funcionamento dos estúdios para o exercício da profissão excluídos desse projeto. Este incidente levou a um nova reformulação dos studios, muitos retomaram a estética “underground” de boutique, mantendo os procedimentos de segurança. O discurso agora é, que embora as tatuagens e piercings sejam negócios rentáveis, é preciso manter a aura de marginal, não esquecendo seu passado como subcultura, conforme explica André Fernandes ao relatar suas

39 Implantes, tongue splitting microdermais/transdemais são consideradas exercício ilegal da medicina segundo relatos de vários médicos 181 experiências recentes em dois grandes eventos internacionais a APP 2015 E LBP México 201540.

4.11 A BM paulista nas malhas da rede

O atual contexto das práticas extremas da BM paulistas emerge no entorno da visibilidade mundialmente alcançada pelo website BMEzine.com, ou BME como também é conhecido:

Somos uma subcultura incomum e uma comunidade construída por e para pessoas modificadas. Nós somos os historiadores, os profissionais e ao mesmo tempo os apreciadores das modificações corporais. Nós somos os meios colaborativos voltados para a compreensão da liberdade individual de pensamento, de expressão e de estética. Servirmos a vocês e nós mesmos como uma comunidade enquanto fonte de inspiração e de entretenimento.41.

Fundado em 1994 no Canadá por Shannon Larrat como um site de interesse pessoal de conteúdo totalmente aberto, o BME passa ser amplamente acessado por entusiastas das modificações corporais e pesquisadores. A partir daí, não só começa a reunir praticantes de todas as partes do mundo, como abrigar um vasto material dedicado às modificações corporais através de relatos, vídeos, fotos. Com isso, torna-se uma das mais conceituadas comunidades virtuais de propagação e difusão da body modification. O site, que de conteúdo aberto passou a exigir uma associação dos usuários, inicialmente era formado pelas seções

40 Asociación Latinoamericana de Body Piercing 41 We are an uncommon subculture and community built by and for modified people. We are the historians, practitioners and appreciators of body modification. We are the collaborative and comprehensive resource for the freedom of individuality in thought, expression and aesthetic. We serve you and ourselves as a source of inspiration, entertainment and community. 182

BME.com 42 , Piercing, Tattoos, Scarification, Culture, Ritual, Extreme/Hard, 411, Ask, I am, Wiki, Join BME! Dentre elas, as mais populares, encontram-se I am43 em que os sujeitos descreviam detalhadamente as modificações realizadas: as motivações, os instrumentos, os cuidados, os perigos, a cicatrização etc. e Wiki que é uma vasta enciclopédia sobre as modificações. No Brasil, o BME é inicialmente acessado por jovens que, majoritariamente, tinham habilidades refinadas com o idioma inglês e espanhol, já que muitos residiram em países da Europa e nos EUA ou estudaram em colégios bilíngues (SOARES, 2015:83). Com a grande difusão do acesso à Internet no Brasil – cujo processo corresponde ao período de maior e crescimento do website, que passou a contar um gigantesco banco de imagens sobre práticas e procedimentos de modificações corporais realizadas mundo afora – um número significativo de usuários brasileiros, de países da América Latina e de muitas outras partes mundo “começaram a dispensar a leitura textual. Desse modo, passaram a ‘ler’ as informações através das imagens que ali estavam expostas, enquanto um efeito de mimetismo, segundo Shannon” (SOARES, 2015:83).

42 Este processo corresponde à perda de Shannon Larrat do controle do website em função de um processo judicial envolvendo seu divórcio. Vários membros vão deletar seus perfis no IAM como forma de protesto. Atualmente, o site é administrado por sua esposa. 43 O contato inicial desta pesquisa com a BM se deu em 2002. Na seção I am foram encontrados vários depoimentos sobre amputação, sendo um deles com Four Finger Joe, que não só ensinava como remover o dedo da mão esquerda e as motivações que o levaram a realização de tal procedimento, como se dispôs a responder ao e-mail enviado, esclarecendo todas as dúvidas. A pesquisa inicial gerou um pequeno artigo intitulado A arte de inventar e reinventar simbolicamente o corpo como forma de produção de novas identidades em que se fazia um paralelo com as modificações corporais no Brasil, que fora apresentado no I Simpósio InterSubjEtic, Rio de Janeiro, 2013.identidades 183

Outro site extremamente importante para a comunidade da BM nacional é o Piel Magazine Virtual. Embora seja semelhante ao BMEzine em termos de formato e conteúdo, apresenta uma linguagem e uma estética mais próxima do universo dos sul- americanos e tem maior penetração na América Latina, segundo Thiago Soares. O site tem sua origem a partir da migração da revista Piel

Magazine44, criada em 2000, para a plataforma virtual. Tendo como produtora a então body performer argentina La Negra – que mantinha estreita relação com a comunidade paulista, cobrindo eventos como o Expo Tattoo Metalhead ou participando ativamente da Virada Cultural de São Paulo, edição de 2010 – a revista explorava todas as práticas da modificação corporal. Depois de 10 anos de atividade, o site sai do em definitivo no dia 11 de Novembro de 2011. Em meio a esta atmosfera borbulhante e efervescente das modificações corporais no Brasil, Filipe Júlio lança, em 2002, o site o Neoarte.net 45 . Dedicado exclusivamente às modificações corporais, frequentemente é apontado como um dos mais importantes do Brasil. “Com mais de um milhão de visitas, trazia uma galeria de fotos de procedimentos, vídeos e textos de experiências corporais feitos no ou pelo próprio Filipe ou em seu círculo próximo de amigos”(SOARES, 2015:85).

44 A dição de dezembro de 2004 trouxe em sua capa Felipe Klein, além de um ensaio fotográfico nas páginas da revista e um encarte especial em sua homenagem. 45 Fotógrafo profissional voltado para o mercado de arte, Filipe - que passa a assinar com o sobrenome Berndt – transforma, em 2005, o site em um cartão visita virtual, de forma que todo o material referente a BM foi suprimido.

184

Em 2006, Thiago Soares lança FRRRKguys.com explorando novos espaços e ao mesmo tempo oferecendo uma visão crítica e aguçada sobre o cenário das modificações corporais, a partir de uma proposta de relativização do belo:

“O Frrrk Guys é um projeto que tem como base explorar o universo masculino, fugindo dos padrões estéticos pré-estabelecidos e impostos pela sociedade contemporânea, mostrando que sensualidade não está apenas em músculos e que o “belo” é bem relativo (Entrevista concedida por Thiago Soares, em 20 de janeiro de 2015).

Paralelamente, abriu o grupo Reflexões das modificações corporais sediado no Facebook para o livre debate sobre problemas que rondam o universo das modificações corporais, como denuncias de práticas mal feitas, abusos sexuais por parte de tatuadores, inclusive os preconceitos que rondam o universo das modificações.

Figura 22. – Hash Tag 10 anos de Frrrkguys

Com esta breve construção da história da BM paulista, é possível entender a postura de sujeitos que se apropriam do freak como empoderamento. Uma postura contra a normatividade da aparência física visando à ampliação da vida corpórea a partir do ideário de que o homem é absolutamente livre para escolher a cor, a forma e o sexo do seu corpo. É percebido, assim, como uma obra de arte aberta que vai sendo paulatinamente construída em função dos 185 avanços da biomedicina, tendo sempre em vista o imaginário social de que tudo é possível, a partir do gosto pessoal de cada um.