mauricio pereira

Complicações da música simples

MAURICIO PEREIRA é cantor, compositor, saxofonista, produtor musical e jornalista. Tem sete discos gravados (dois com a banda Os Mulheres Negras).

RESUMO

O texto convida o leitor a analisar as formas mais populares de música comercial presentes nos meios de comunicação de massa em sua estrutura musical e coerência estética interna, analisá-las como obras de arte, e não apenas como consequência da abordagem massificadora e padronizadora da indústria fonográfica.

Palavras-chave: música comercial, comunicação de massa, estética musical, pagode.

ABSTRACT

This text invites the reader to analyze the simplest forms of commercial music reproduced in mass communication media as regards their musical structure and internal aesthetical coherence; and to analyze them as art works, not just as an outcome of record industry’s standardizing and mass-oriented approach.

Keywords: commercial music, mass communication, musical aesthetics, pa- gode. em amigos, já vou de cara parafraseando o comuni- cador Galvão Bueno, para que não reste dúvida de que vamos fazer uma viagem pela arte que viaja pelos meios de comunicação de massa: esta- mos aqui para falar das com- plicações da música simples.

“Nos meus retiros espirituais, descubro certas coisas tão banais como ter proble- mas ser o mesmo que não. Resolver tê-los é ter, resolver ignorá-los é ter. Você há de achar gozado ter que resolver de ambos os lados de minha equação, que gente maluca tem que resolver” (, “Retiros Espirituais”).

“O poeta sempre é malandro” (Luiz Melo- dia, “Amor”).

Enfim, quero falar sobre a ideia de que – John Cage ou Katinguelê, não importa – os criadores estamos todos no mesmo barco.

UM POUCO DE CONTEXTO SOBRE A FORMAÇÃO DE UM OUVINTE

Nasci em 59, fui criado num bairro pau- listano que se formava no início dos anos 60, onde jovens paulistanos iam morar e começar a vida (meu pai, publicitário; minha mãe, funcionária pública), a Vila Olímpia, ruas de terra, sem iluminação pública, sem rede de esgoto, a maioria das casas sem te- lefone, apenas uma linha de ônibus ligando o bairro ao Centro. A música chega à minha orelha – de pop italiano era muito forte na época. E, no acordo com a minha memória – lá pelos 4 fim da década, os festivais. Foram vários, e ou 5 anos. Primeiro o rádio, depois a TV. a gente torcia. Eu gostava de “Disparada” Um toca-discos em casa, só lá perto dos anos e “Alegria, Alegria”. Sempre prestando 70. Gravador cassete também. Os pais iam muita atenção nos Mutantes, que tocavam trabalhar, a molecada ficava no bairro, e a com Gilberto Gil. música durante os dias de semana era, além No começo dos 70, ganhei um radinho, das cantigas de dormir ou brincar, a música dormia com ele debaixo do travesseiro. que vinha do rádio das empregadas que Ligado. Tanto eu quanto o radinho. Comia cuidavam da molecada: Lindomar Castilho, muita pilha. Na hora de dormir, o programa Aguinaldo Timóteo, Evaldo Braga, boleros. do Moraes Sarmento, velha guarda. Foi onde Mas o rádio era um pouco mais democrático ouvi, meio espantado, Noel Rosa, Mário Reis que hoje, e acabava vindo também algum (que me chamava muito a atenção), Carmen , Gonzagão, Elvis, Ray Charles, Miranda. De manhã acordava muito cedo muito pop italiano, jovem guarda. De noite, para ir à escola, e pegava o resto do programa com os pais, alguma música vinha da TV: a do Tonico e Tinoco na rádio Bandeirantes. Record era o canal 7, e um dos programas Certamente foi aí que eu aprendi a cantar era “O Fino da Bossa”, Elis Regina e Jair em terças: acho que enquanto eu dormia os Rodrigues comandavam, e tinha Caçulinha, intervalos iam entrando na minha cabeça. Zimbo Trio, Simonal, Elizeth Cardoso, Mais anos 70: as duas rádios de pop de São Ataulfo Alves. Ciro Monteiro e sua caixinha Paulo, Difusora e Excelsior, traziam o pop de fósforos. Noutro programa da Record, internacional: Creedence, Procol Harum, “Esta Noite Se Improvisa”, o apresentador Billy Paul, sei lá mais o quê. Nessa mesma dizia uma palavra e os convidados tinham época, pairava no ar muito samba, sambão. que cantar uma música com ela, era uma O primeiro sucesso do Martinho da Vila, espécie de gincana. E os melhores nisso “Pequeno Burguês”, Benito di Paula, Antônio eram , Carlos Imperial, Chico Carlos e Jocafi, Originais do Samba, e até Buarque, Caetano Veloso, dos que eu me mesmo Paulinho da Viola. Todos tocavam lembro. Eu torcia para Erasmo e para Caeta- normalmente no rádio e nas trilhas de novela, no. No fim de semana, a TV era da nona. E uma nova maneira de formar repertório na ela assistia a “Astros do Disco”, na Record, cabeça dos brasileiros que ia se firmando e ao Chacrinha, acho que na Globo. E dá- naquela época. lhe Demônios da Garoa, Isaurinha Garcia, Em casa, nos 60, tinha uma vitrolinha. Nelson Gonçalves, Carlos José, às vezes Ali eu ouvia, principalmente, os discos Waldick Soriano, Agnaldo Rayol, Joelma, de historinha da gravadora Disquinho, além de um tropicalista ou outro perdido no produzidos pelo Braguinha, gravados com programa do Velho Guerreiro. No domingo, orquestra, muitas vezes com arranjos de a TV era dos moleques. Então, de tarde, logo Radamés Gnatali e Guerra Peixe. “Gato de depois do “Circo do Arrelia” tinha o “Jovem Botas”, “Festa no Céu”, “Macaco Simão”, Guarda”, que era a raiz de tudo: Roberto, coisa e tal. E alguns compactos (que, para Erasmo, Wanderléa, Os Incríveis, Jerry quem não conhece, eram vinis pequenos, Adriani, Wanderlei Cardoso, Waldirene, com uma ou duas músicas de cada lado, George Fridman, Leno e Lilian, Os Vips, geralmente as mais fortes – comercial- Deny e Dino, Jet Blacks (e o meu primeiro mente? – do LP a que correspondia aquele guitar hero, o Gato) e até o (eu compacto) também: um disco da Claudete amava “Bicho do Mato”), que fazia um tipo Soares com o Dick Farney, Beatles cantando de música que lhe permitia estar tanto no “O “Yellow Submarine” dum lado e “Eleanor Fino da Bossa” quanto no “Jovem Guarda” Rigby” do outro, The Platters cantando (deve ter sido nosso primeiro crossover…). “Only You”. O único LP em casa era o De vez em quando a gente via, na TV Ex- Sargent Peppers, que a gente ouviu de celsior, o programa do Gianni Morandi: o todo jeito que dava, inclusive acelerando a

148 REVISTA USP, São Paulo, n.87, p. 144-155, setembro/novembro 2010 rotação da vitrola. Depois de algum tempo E logo depois apareceu um toca-discos, ele era uma coleção de riscos. um BSR inglês, empurrado por um ampli- Aí meu pai comprou um gravador cassete. ficador Gradiente. E com ele chegaram os Na loja de discos, o vendedor – e o vendedor LPs e a alta-fidelidade, o que mudou a vida de discos sempre é um cara importante para de todo mundo. Vieram os discos do Milton formar nosso ouvido, nosso gosto, bem como Nascimento, Caetano, Gil, Gal, , acontece naquele livro do Nick Hornby que Elis Regina, Astor Piazzola, Dave Brubeck, virou filme, Alta Fidelidade – nos indicou alguma coisa de samba, também veio o Ab- três fitas para estrear o aparelhinho: Led bey Road. A maioria desses artistas tocava Zeppelin III (bela dica, pura música clássi- no rádio, mas com os LPs a gente passava ca…), o Jardim Elétrico dos Mutantes (que a conhecer as músicas que não tocavam no eu e meus irmãos conhecíamos dos festivais, rádio: uma ou outra faixa mais experimental, e achávamos malucões, top top e coisa e canções típicas de lado B, e músicas que, tal…) e mais uma banda americana meio junto com os grandes sucessos, iam ajudar a psicodélica chamada Sugar Loaf (acho que criar o espírito do LP, iam ajudar a entender tocava na Excelsior), que eu gostei muito aquela safra daquele artista. mas depois nunca mais ouvi falar. Preciso E aí a gente “vai crescendo, vai cres- procurar na Internet (aliás, hoje, grande cendo e o tempo passa…”, como cantava formadora de ouvintes, pelo que reparo na Ronnie Von em “A Praça”, do Carlos Im- molecada…). perial. E vai ganhando o mundo, ouvindo

The Beatles, Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band, EMI, 1967

REVISTA USP, São Paulo, n.87, p. 144-155, setembro/novembro 2010 149 de tudo um pouco. Mas acredito piamente eu sempre me perguntava por que é que que o importante mesmo é o que a gente tinha gente que não considerava como obras ouve quando criança pequena. É aí que se de arte dignas de estudo essas canções que faz o inconsciente musical da gente. Freud vendem 3 milhões de cópias e tocam milhões explica, Jung explica. Aquela coisa que vai de vezes por dia no rádio, mesmo quando fazer a gente dizer “rosebud…” na hora da impulsionadas pelo jabá (jabá é um tipo de morte, aquelas canções que independem de suborno que gravadoras pagam às rádios toda a bagagem intelectual e racional que a para elas tocarem – muito – determinadas gente possa vir a ter depois, bagagem essa canções, para elas estourarem comercial- que a gente fabrica com a razão e a emoção, mente; é, digamos assim, eufemisticamente, com conceitos e preconceitos, e que é um um modelo de negócio… Um modelo de outro capítulo do universo musical que tem negócio que ajudou a destruir a coisa mais dentro das pessoas, sejam elas músicos bonita que o rádio proporcionava: um leque profissionais ou não (cá entre nós, eu dou amplo de repertório, de gêneros, de artistas, rigorosamente o mesmo valor para um bom enfim, o rádio plural era uma bela maneira músico e um bom ouvinte, e acho que o de se formar um ouvinte). Mas, enfim, o Brasil é um país tão rico musicalmente, entre que eu sempre me perguntava é se real- outras tantas coisas, porque tem fartura de mente poderia existir uma canção – como bons músicos e de bons ouvintes. Ressalto acreditavam firmemente tantos colegas lá na que, no meu modo de entender, um bom faculdade – com zero espírito, zero arte, zero ouvinte é um cara que ouve música com estética, zero estrutura formal, zero impulso gosto, entrega, curiosidade, independente sexual, zero inconsciente coletivo. do gênero, do intérprete, do background Não é dizer que a música mais popula- sociocultural do gênero e do intérprete). resca e comercial seja melhor ou pior que Pensando nisso tudo, sobre aquelas alguma coisa, e nem querer bancar o bacana canções que permanecem na gente à revelia ou o populista vendo algo de pitoresco do nosso gosto e das nossas convicções nesse tipo de música (da qual, por sinal, estéticas – se é que realmente eu pensei em eu não sou um ouvinte típico). Apenas é alguma coisa naquele momento –, gravei tentar enxergar a densidade estética que em 2003 um disco chamado Canções Que existe dentro dela, sua estrutura, ver como Um Dia Você Já Assobiou – Vol. 1, em que ela reflete a sociedade onde foi feita, e eu fui resgatar as canções da minha infân- conhecer seu universo de valores – éticos, cia, as canções que nos vêm no chuveiro, estéticos, musicais, psicoacústicos. Enfim, das lembranças do que ouvimos no rádio, tomar contato com a expressão que existe na novela, na padaria, na rodoviária. Tipo dentro dela e – não é para isso que existe aquele Antônio Marcos que você conhece música? – fruí-la, que nem se faz com uma em detalhes sem se dar conta, mesmo depois sinfonia de Beethoven. de ter passado uns quinze anos ouvindo exclusivamente sua coleção completa de discos . Né? Jung puro… Fato é que eu sempre me perguntava, ALGUMAS CONSIDERAÇÕES ainda mais quando eu fui para a faculdade (Jornalismo na ECA-USP, de 77 a 80), ou PARA OUVIR MÚSICA conforme fui virando um músico com algum estudo, eu sempre me perguntava como po- COMERCIAL deria ser possível que algum gênero musical não tivesse sua estrutura, sua hierarquia Algo que me parece importante consi- estética, sua evolução estilística, por mais derar quando a gente pensa a música co- simples que fosse, por mais comercial que mercial é o conceito de diluição. É preciso fosse, por mais diluído que fosse em relação pensar nele como um alquimista, sem a a alguma raiz ou matriz cultural. Em suma, conotação pejorativa que a palavra tem no

150 REVISTA USP, São Paulo, n.87, p. 144-155, setembro/novembro 2010 senso comum. Ele passa então a ter outro Ou não? sentido, mais técnico, digamos assim. Na Então eu vou tentar encarar os diferentes homeopatia, por exemplo, o arsênico, que gêneros com a mesma curiosidade, inde- é um veneno poderoso, passa a ser um re- pendente do que eu ouço quando não estou médio, dependendo de sua diluição e da sua pensando no assunto “Música”, quando sou dose. Às vezes, diluir é poder gerar, a partir apenas ouvinte (esse pouco tempo, espaço e de uma essência, uma quantidade maior de espontaneidade que me restaram para ficar alguma coisa, dum jeito mais barato. Com diante de uma música como um leigo, sujeito perfume é assim, não? Tem a essência e tem ao seu encantamento, me permitindo ser a água de colônia, que é uma diluição dela. levado por ela, ser enganado por ela…). Parece muito com música pop… Que eu vejo muitas vezes como uma diluição (ou misturação), no sentido alquímico/químico de sabores/formas/influências essenciais. O PAGODE, POR EXEMPLO Uma maneira de conseguir servir a todo mundo. Uma maneira de democratizar o Vamos falar de pagode? Considerar so- acesso a uma essência. Em suma, propiciar bre o pagode paulistano, esse tipo de música filosofia barata, no melhor sentido da pala- romântica, que nasceu na periferia de São vra filosofia, no melhor sentido da palavra Paulo nos anos 90, do qual tanta gente boa barata. “Luxo para todos”, como canta tem uma ojeriza danada? Pode ser um bom Caetano Veloso em “Muito”. tema para exercitar ideias. Outra coisa importante é tomar um certo Voltemos no tempo, para refrescar a cuidado com os conceitos de bom e ruim, memória. Para os anos 80, quando era bem certo ou errado, bom gosto e mau gosto. difícil ouvir samba nas rádios paulistanas. Sempre acaba tendo algum viés socio- Muito mesmo, qualquer tipo de samba. cultural, geográfico, temporal ou pessoal Acho que a única trincheira do samba nessa nos nossos juízos de valor. Já tomei muito época era justamente um programa na hora couro defendendo a ideia de que um gênero do almoço na rádio USP, “O Samba Pede musical mais popularesco tem toda uma Passagem”, apresentado pelo radialista hierarquia de valores estéticos, uma densi- Moisés da Rocha. Eu ouvia de vez em dade, emocional e cultural, psicoacústica, quando, zapeando, ou na rebarba de outro coerência formal, história, evolução, isto é, programa qualquer que estivesse ouvindo, não vem do nada, não é exclusivamente fruto eu que não sou ouvinte habitual de samba. do poder econômico impondo formatos nos Lembro de uma vez ou outra ouvir Branca di meios de comunicação de massa. Neve, algum sambista velho carioca, outro Mais uma coisa, principalmente para paulista. Mesmo distraidamente, dava para quem tem mais acesso à parte mais acadê- notar como, de algum modo, o programa mica, mais formal da cultura, para quem é dava vazão para coisas que iam acontecendo mais “estudado”: é que é bom desmistificar (aos poucos?) nas casas de samba da zona um pouquinho a arte. Pensemos: essencial- norte paulistana, no universo das escolas mente, os assuntos da arte, seus motes, seus de samba fora da época do carnaval, nos temas, seus motores, não passam de uma bailes black da periferia paulistana. Num meia dúzia de fatos corriqueiros da vida. O determinado momento, o centro da cidade amor, a morte, o desejo, a história, os medos, começou a ouvir falar de gente como Eliana o sagrado ou sua ausência, adorações ou re- de Lima, Raça Negra, Negritude Junior, pulsas, denúncias ou entregas, obediências Katinguelê, Sensação, artistas que estavam ou desobediências, a arte vive disso. Vale vendendo muito disco, disco independente, para Michelangelo ou para Victor e Leo. na periferia de São Paulo. Não deixa de Basicamente são pessoas interpretando a ser uma história de resistência à grande realidade pelo filtro de suas sensibilidades, indústria do disco, não é interessante? de suas formações culturais, sociais. Muita gente pensa em pagode como uma

REVISTA USP, São Paulo, n.87, p. 144-155, setembro/novembro 2010 151 Raça Negra, Samba Jovem Guarda, Universal Music, 2002

música que a indústria fonográfica bombou Não por acaso explodiu na cidade de para as grandes rádios. Mas é um formato São Paulo. São Paulo é o lugar do dinhei- que ganha corpo de um modo marginal à ro rápido e farto, hoje, dentro do Brasil, indústria fonográfica, marginal também à e por aí as coisas podem se amplificar “música de bom gosto” (bem entre aspas, nacionalmente. É também um lugar que por favor…) do centro da cidade. cresceu muito depressa, no século XX, O fato é que aquele som me intrigava. com fábricas, cinema, rádio, imigração, Já existia o samba-rock (Jorge Ben, Bebeto, produção em série, sociedade de consumo, Branca di Neve, Trio Mocotó, Luiz Wagner e cultura de massa, pós-revolução indus- outros), que vinha de antes e tinha sua força trial, misturando culturas aleatoriamente, nos bailes aqui de São Paulo, e apareceu velozmente, sem muito tempo – apenas o pagode, que, musicalmente falando, me um século e olhe lá – de sedimentar algum parecia ser mais um samba pop. Pop no tipo de raiz cultural local, e muitas vezes sentido de diluir (e repito aqui que, para atropelando essas raízes, quando as havia. mim, o termo diluição não é pejorativo), de Bem diferente de Pernambuco, Bahia, Rio, simplificar elementos do samba. Um samba Maranhão, Minas. Nem barroco não teve que qualquer um pudesse dançar. Um samba em São Paulo… Mesmo o português nunca com assuntos menos étnicos (vamos dizer foi exatamente o idioma favorito por aqui: assim), assuntos mais próximos do cotidiano num primeiro momento da história brasileira da cidade, para brancos, pretos, classe média falávamos o idioma geral, parente do tupi- ou rica, capital ou interior, ouvirem. guarani; depois, partimos para esse “broken

152 REVISTA USP, São Paulo, n.87, p. 144-155, setembro/novembro 2010 portuguese” que falamos até hoje, parente Várias bandas de jovens músicos, com as do italiano, das imigrações todas, o plural quais eu ensaiaria algumas vezes durante sem “s”, com hábitos mais próximos da rua a semana, trocando considerações sobre do que da academia. Não acho que seja por música, execução musical, postura de acaso que um artista de trabalho refinado palco, conceituação do trabalho, enfim, como o Luis Tatit, com uma história inte- coisas técnicas e filosóficas que passam pela ressante dentro da universidade, tenha ido cabeça de todo mundo que sobe num palco beber no ritmo da fala cotidiana para criar para fazer um show. Depois desses ensaios/ sua música. Quando ele é artista, ele é da conversas montaríamos um show com todas rua, ele precisa da rua. E o que acontece na as bandas. Todas de rock, menos uma, que rua é forte aqui em São Paulo, não é uma era de pagode. É essa banda que me interessa cidade de salões. O ambiente cultural daqui nesse momento. Pois, no ensaio dos meninos me convida a ir descobrir qual é a excelência pagodeiros, virados para mim, eu descor- dentro da fuleiragem, como ela funciona, tinava a banda de frente, e parecia até uma qual sua coerência interna: nossa grossura coisa didática, esquemática: de um lado os é uma característica, um sotaque, um plus, brancos tocando instrumentos de harmonia um fato consumado. Resta respeitá-la e (guitarra, teclado), mais um branco tocando analisá-la sem preconceito, analisá-la como bateria (antes que os racistas reclamem, fato de linguagem, sem tanto preconceito. aqui, quando falo em brancos e pretos, estou Eu os convido a eleger o pastel de feira e a apenas – e principalmente – fazendo refe- pizza de padaria como nossos estandartes, e rência ao tipo de bagagem cultural – neste transpor isso para a cultura (se é que escolhas caso, musical – que eles trouxeram para culinárias já não são cultura…). esse evento, certo?). Eles me contaram que Enfim, é nesse ambiente cultural veloz, tinham tocado muito rock, agora estavam com brasileiros de todos os tipos, que surge tocando samba com os amigos sambistas. esse samba pop, esse samba com um mínimo Do outro lado, instrumentos de percussão, de samba dentro dele, e com um máximo o cantor na frente, os pretos. No centro, de universalidade, com uma racionalidade junto do baterista branco, o baixista preto. de produto, produto para vender muito, Uma cozinha decididamente multicultural, feito em série, ou seja, produto homogêneo. influências diferentes. Só isso já me disse Democrático. muito do que deveria ser o pagode. Samba É dentro desse produto feito para ser com elementos do pop, do rock, a bateria vendido aos milhares que eu quero inves- reta, o suingue na percussão, harmonização tigar a sacada, a invenção, o pulo do gato. de música pop. Num determinado momento, Porque, obviamente, não foi só a pressão das intrigado com algum procedimento da seção grandes gravadoras que fez o pagode ganhar rítmica que me soava esquisito, fui falar o rádio e as vendas. Acredito que não tem com o baixista; perguntei para ele por que música que se sustente sem invenção e sem ele dava tanta nota, por que ele não tocava espírito, por mais comercial que seja. Não junto com o bumbo da bateria ou o surdo, adianta nem botar jabá em algo que não tem como eu, homem branco (e ex-mulher a faísca criativa. E essa é uma contradição negra), tinha aprendido quando estudei da indústria: ela tenta ao máximo manter levadas de samba nas aulas de contrabaixo. as coisas como estão, mas ela só sobrevive Ele, bem mais novo que eu, respondeu: se houver invenção. “Ô tio, ‘cê não sabe o que é fraseado?”. Uma pequena história de choque cultural Fiquei encafifado (para não dizer gelado…). me abriu a cabeça, especificamente no caso Nunca tinha ouvido falar dessa história de do pagode. Vou relatar para vocês, e vamos fraseado, à qual ele se referiu como se fosse confabulando sobre estrutura formal de uma a coisa mais óbvia do mundo. Disfarcei, obra de arte. pigarreei, o ensaio acabando, fui embora Belo dia, fui dar uma oficina para as e rapidinho procurei meu amigo Reinaldo bandas no Sesc Ipiranga, em São Paulo. Chulapa, baixista da banda Turbilhão de

REVISTA USP, São Paulo, n.87, p. 144-155, setembro/novembro 2010 153 (teclados e guitarra, por exemplo), tem uma abordagem fonográfica de música pop (reverbs, compressores, timbragem), tem seu próprio imaginário poético, sua própria maneira de ser cantado. E como toda música pop, tem uma certa pasteurização, uma certa padronização (e, em princípio, também não encaro esses dois conceitos como coisas negativas, apenas Negritude como processos que atuam, em maior ou Junior, menor grau, no caminho de uma canção Gente da Gente, até o mercado que a vai consumir), que leva esse tipo de música a qualquer canto, EMI-Odeon, a qualquer cultura, a qualquer classe social. 1995 Padrões de música pop, coisas que têm a ver com psicoacústica (timbragem, uso Ritmos, com a qual eu gravei o tal disco da redundância, referências culturais, uso junguiano, o Canções… Chulapa tinha da imagem). Nada muito diferente do que tocado com a Eliana de Lima no começo Bjork ou Madonna, em suma. dos anos 90, quando o pagode estourou Nos anos 90 fui crooner do programa em São Paulo. Perguntei para ele sobre o “Fanzine”, apresentado pelo escritor Mar- tal fraseado, o que era, de onde vinha. Ele celo Rubens Paiva, na TV Cultura de São me contou sobre essa maneira de segurar Paulo. Era um programa de debates que a o ritmo e a harmonia fazendo frases, uma cada dia abordava um determinado tema abordagem do instrumento que tinha um e levava convidados para falar sobre esse pé no jazz, e que de algum modo remetia tema. A banda Fanzine, fixa do programa, para o jeito de tocar do baixista americano tocava canções relacionadas ao assunto dos Jaco Pastorius. Comecei aí a destrinchar um debates de cada dia. Lá, durante dois anos, pouco da estrutura desse pagode comercial: diariamente e ao vivo, cantei todo tipo de tinha um fraseado do jazz contraponteando canção brasileira que se possa imaginar (e a melodia da canção. Logo me veio à mente bota imaginação aí, foram mais de seiscentas a tradição do violão de sete cordas no choro canções…). Um dia, no começo dos anos e no samba, um instrumento que também 90, o assunto foi justamente o pagode, que segura ritmo e harmonia contracantando a explodia naquele momento. Os convidados melodia principal. da noite eram o Maestro Jobam, produtor Mas não é só isso. Num certo sentido, o musical de várias gravações do gênero e o pagode “moderniza” a linguagem do samba grupo Negritude Junior. Num determinado (botei bem entre aspas para ninguém me momento, o maestro pediu para a banda perturbar…). Por modernizar eu quero dizer decupar um arranjo para os espectadores. que torna mais urbano, incorpora elementos O que me chamou mais a atenção, dessa de linguagem (e produção musical, ou seja, vez, foi o fato de o baterista e o baixista sonoridade) que vêm do pop, do jazz, do mostrarem a semelhança entre a abordagem funk, da MPB, de vários estilos musicais. deles e a dos grooves de baixo e bateria de Torna o samba mais familiar ao ouvido do bandas como Earth, Wind and Fire e Chic, consumidor médio de música comercial, enquanto o resto da banda “tocava samba”. nem sempre habituado à sonoridade do Pop paulistano em sua maneira clássica de samba de raiz. Música urbana, para uma funcionar: tudo ao mesmo tempo agora, população cada vez mais urbana. Pensando sem muita preocupação com passado ou sem preconceito, não é nem pior nem melhor geografia. É superparecido com o mercado do que outros estilos de samba, é apenas imobiliário daqui na sua maneira de criar/ diferente. Incorpora novos instrumentos destruir a cidade…

154 REVISTA USP, São Paulo, n.87, p. 144-155, setembro/novembro 2010 De todo modo, nessa época passei a res centrais, como Pinheiros, ou periféricos, enxergar melhor a coerência da linguagem como São Mateus, misturando influências desse gênero, seu repertório de frases, e estilos, usando a tecnologia digital e a abordagens, uma hierarquia estética. E Internet para a produção e a divulgação do me ficou a sensação de ser uma música de seu trabalho, e também para ir pesquisar e resistência: um som da periferia, uma ex- ouvir os velhos mestres do gênero. pressão de uma maneira de pensar e sentir, Mas aqui já começa uma outra his- de uma escala de valores, uma cultura, uma tória… economia, um jeito de acessar e produzir Enfim, eu os convido mais uma vez a informação numa cidade como São Paulo, considerar relevante a música pop mais onde a maioria dos emissores de cultura comercial e ir buscar o que a fabricou (e formal (emissoras de rádio e TV, jornais, “fabricar” é uma expressão perfeita para ela, editoras, livrarias, teatros, cinemas, etc.) não?), quais seus componentes, qual seu pro- estava concentrada geograficamente num cesso histórico, seu ambiente, sua ética, sua pequeno trecho da cidade (especialmente estética. Eu os convido a analisar estrutural- o Centro e a Zona Oeste), notadamente mente a música mais simples com as mesmas nos anos 90, pré-Internet, pré-estouro da ferramentas e o mesmo respeito usados para cultura da periferia como há hoje, com o analisar a música popular brasileira “mais rap, os saraus, as rodas de samba. culta”. Analisar poeticamente, formalmente. E de quebra, acho que a gente tem que E não considerar esse tipo de música como agradecer ao pagode paulistano por ter um simples caso de dominação de uma fatia despertado numa população urbana mais da população pelas imposições da indústria jovem o interesse pelo samba, fato que na cultural. Isso me parece superficial demais, minha opinião está claramente relacionado parece papo de senhor de engenho… Ou ao renascimento do samba de raiz e do choro se penetra nos valores de uma cultura com nesta primeira década do século. Existe em alguma reverência e curiosidade, por mais São Paulo hoje um verdadeiro boom de estranha que ela seja à nossa ética, ou, cá samba e choro, tocado por gente jovem, entre nós, estaremos indo para o saque, para músicos, cantores, compositores, em luga- a destruição, para a dominação.

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