UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Departamento de Cinema, Rádio e Televisão, ECA

Relatório Científico referente à pesquisa:

Narrativas de dissolução. Problemas contemporâneos para o conceito de cinematografia nacional

NÍVEL: PÓS-DOUTORADO BOLSISTA: Lúcia Ramos Monteiro SUPERVISOR: Prof. Dr. Eduardo Victorio Morettin FOMENTO: FAPESP 01/01/2016 a 31/12/2017 Processo nº 2015/21531-0

1 SUMÁRIO I. Resumos I.A) Resumo do plano inicial I.B) Resumo do trabalho realizado II. Descrição das atividades acadêmicas desenvolvidas II.A) Trabalhos publicados desde o início da bolsa de pós-doutoramento 1. Organização de livros 2. Capítulos de livro 3. Artigos em periódicos científicos 4. Entrevistas 5. Organização de dossiês em periódicos científicos 6. Trabalhos completos em anais de congressos científicos 7. Resenha 8. Traduções 9. Artigos de divulgação II.B) Organização de eventos (colóquios e mostras) II. C) Participação em congressos e simpósios II.D) Participação em grupos de pesquisa II. E) Participação em aulas e cursos II.F) Participação em bancas II. G) Participação em debates e mesas redondas II.H) Pareceres III. Apresentação de resultados Introdução Cap. I - Cinema geológico, primeiros estratos: filmar à beira do abismo. Cap. II - Longa duração e visibilidade do ínfimo Cap. III - Da margem ao centro: longa duração e experiência espectatorial Cap. IV - De como cindir o tempo. Análise e duração Cap. V - Das narrativas de fundação às narrativas de dissolução. Identidades nacionais no contemporâneo Cap. VI - X-Wood contra os cinemas nacionais Considerações finais IV. Referências consultadas V. Anexos

2 I. Resumos

I.A) Resumo do plano inicial

Este projeto propõe pensar a questão do “nacional” dentro do cinema contemporâneo. Em um momento de crise nos conceitos de “nação” e “nacionalismo”, essas noções continuam sendo usadas no cinema, tanto pela historiografia e pelos estudos cinematográficos quanto por festivais e retrospectivas. Em contraponto às chamadas “narrativas fundacionais” (SOMMER, 2004), que entrelaçavam felicidade doméstica e ideal nacional, nos filmes a serem estudados as esferas “individual” e “nacional” continuam ligadas, mas em chave negativa. Por essa razão, propomos o conceito de “narrativas de dissolução nacional”, cuja validade deve ser comprovada (ou recusada) com base nas análises fílmicas, no exame aprofundado da bibliografia e na reflexão teórica. O corpus preliminar é formado por produções oriundas de países “não-centrais” no cânone cinematográfico – Brasil, , Equador, Filipinas, Taiwan –, cuja visibilidade se situa sobretudo no âmbito de festivais internacionais e da crítica especializada. Os filmes escolhidos interrogam questões nacionais com base em códigos estabelecidos pelas “narrativas fundacionais”, subvertendo-os. Entre as hipóteses preliminares, está a relação entre esse interesse pela crise da ideia de nação, crise de identidade nacional, e uma suposta crise do cinema, numa época em que os suportes digitais de gravação e exibição se tornam predominantes e em que o cinema enquanto instituição e lugar físico deixa de ter prevalência nas formas de fruição da imagem em movimento (GAUDREAULT e MARION, 2013).

3 I.B) Resumo do trabalho realizado

Questões ligadas a identidade nacional, nacionalismo e cinematografias nacionais foram trabalhadas em análises dos filmes do corpus1 alimentadas por discussões teóricas e históricas desses termos, e precisaram ser revistas à luz de novos acontecimentos políticos e cinematográficos. A duração de boa parte das obras estudadas, acima das convenções2, revelou-se uma interessante e frutífera categoria analítica, merecedora de investimento inclusive pela necessidade de uma maior atenção por parte dos estudos cinematográficos para com a temporalidade dos objetos (MROZ, 2012). Se a análise de filmes longos ou extremamente longos retardou, por um lado, o andamento do presente trabalho, como exposto no relatório de renovação, por outro lado, observamos que a duração estendida e o ritmo ralentado dos filmes do corpus favorecem uma postura espectatorial diferente, com uma atenção mais difusa, consciente do que se passa na periferia do quadro, no fundo da imagem e mesmo fora dos limites da tela. Além de ter exigido uma revisão metodológica, substituindo o close-reading pelo trabalho com “blocos incertos de memória”, reeditando de maneira transformada a “inencontrabilidade” do texto fílmico percebida por Raymond Bellour nos anos 1970 (1979; 2011), conforme já exposto no relatório intermediário, a conclusão do trabalho sinaliza para uma nova hipótese: a expansão da atenção, de forma a dar conta dos tempos longos e de fenômenos (quase) imperceptíveis, estaria entre as bases daquele que propomos chamar de cinema geológico3. Dedicado a pensar o cinema contemporâneo, este trabalho precisou lidar com o impacto que eventos políticos e cinematográficos, mais ou menos imprevisíveis, ocorridos no intervalo da pesquisa (de 2015 a 2019) tiveram em nossas argumentações. É preciso acrescentar nuances à premissa inicial, de crise nos

1 Canção para um triste mistério (Hele sa hiwagang hapis, , Filipinas, 2016), As mil e uma noites (Miguel Gomes, Portugal, 2015), As montanhas se separam (Shan he gu ren, Jia Zhang-ke, 2 A noção de “duração convencional” é sabidamente problemática, tendo sofrido variações ao longo da história do cinema, como demonstra, por exemplo, De Luca (2017). 3 Aproprio-me, aqui, da tensão existente entre o tempo histórico, marcado por acontecimentos que levam em conta a escala da vida humana e da humanidade, e o tempo geológico, contado de acordo com eras geológicas, longas demais para poderem ser percebidas pela espécie humana. Essa tensão, presente no pensamento de Fernand Braudel, que defendia uma história atenta à longa duração, está no centro dos questionamentos trazidos à tona por teóricos do Antropoceno. O cinema geológico, desse modo, seria caracterizado pela presença de tempos longos e pelo favorecimento da atenção a fenômenos a priori imperceptíveis, como os efeitos da ação humana no planeta, entre outros elementos, como será exposto neste relatório.

4 conceitos de "nação" e "nacionalismo", e as colocações sobre o enfraquecimento do "nacional" enquanto categoria produtiva para pensar o cinema no século XXI, tendo em vista que a história não prossegue de maneira linear, e levando em conta o jogo de forças ainda em vigor no estágio avançado do capitalismo internacional e a situação específica de cinematografias nacionais. No caso específico do cinema brasileiro, o desmonte em curso das instâncias federais de fomento, se enfraquece a produção, confere uma nova coesão a um conjunto que tendia a diluir-se. Na nova geopolítica do cinema, a ressurgência dos fascismos no mundo e suas consequências especificamente no âmbito do cinema brasileiro constituem elementos novos, de modo que posições defendidas em artigos realizados e no relatório de renovação precisaram ser revistas, não com vistas a um descarte em bloco, mas pela necessidade de formulações menos taxativas. Se o critério da "coerência entre um grande número de filmes" (Rosen, 2006, p. 18, nossa tradução), chave para as "cinematografias nacionais", pareciam pouco operatórios até pouco tempo, o embate, especificamente no caso brasileiro, entre o governo do país e o cinema nacional como um todo, parecem conferir uma nova atualidade e necessidade à categoria nacional, como a garantir a coerência e a coesão que faltavam. A metodologia empregada baseou-se em uma abordagem tripla: a um primeiro nível, voltado para o estudo de fenômenos culturais e históricos, somou-se um segundo, focado nas análises estéticas. Do entrecruzamento entre os dois primeiros níveis, emerge, num terceiro, a necessidade de questionar a forma de estruturação dos cânones historiográficos do cinema e, num movimento alternativo a tais cânones, o estabelecimento de uma constelação de obras que não somente escapam a centralidades pré-estabelecidas, mas que colocam em xeque a própria maneira como os cânones vêm sendo constituídos.

5 II. Descrição das atividades acadêmicas desenvolvidas no período

II.A) Trabalhos publicados desde o início da bolsa de pós-doutoramento

1. Organização de livros

• ADAMATTI, Margarida; AGUIAR, Carolina Amaral; CARVALHO, Danielle Crepaldi; MONTEIRO, Lúcia Ramos; VILLAÇA, Mariana (orgs.). Cinema, estética, política e dimensões da memória. Porto Alegre: Sulina, 2019 (215 p.).

• MONTEIRO, Lúcia Ramos (org.). África(s). Cinema e memória em construção. São Paulo: Buena Onda, 2018 (188 p.).

• ADAMATTI, Margarida; AGUIAR, Carolina Amaral; CARVALHO, Danielle Crepaldi; MONTEIRO, Lúcia Ramos; MORETTIN, Eduardo (orgs.). Cinema e história. Circularidades, arquivos e experiência estética. Porto Alegre: Sulina, 2017 (440 p.).

• MONTEIRO, Lúcia Ramos; SCHULMANN, Clara; GIANNOURI, Evgenia; CASTRO Teresa (orgs.). Palmanova. Paris: Éditions Formes, 2016 (146 p.).

• AGUILERA, Yanet; BARRENHA, Natália Christofoletti; MONTEIRO, Lúcia Ramos (orgs.), Imagens de um continente. São Paulo: Fundação Memorial da América Latina, 2016 (ebook).

• MONTEIRO, Lúcia Ramos. A Caliwood de Luis Ospina. Cinema colombiano de vanguarda (catálogo de retrospectiva). Rio de Janeiro: Buena Onda/Caixa Cultural, 2017 (128 p.).

• MONTEIRO, Lúcia Ramos. África(s). Cinema e revolução (catálogo de mostra de filmes). São Paulo: Buena Onda/Caixa Cultural, 2016 (196 p.).

6 Observações: No período final da bolsa de pós-doutoramento, posteriormente ao relatório de renovação, participei da organização de duas coletâneas de textos. Organizado por cinco pesquisadoras ligadas ao grupo CNPq “História e Audiovisual: circularidades e formas de comunicação”, o livro Cinema, estética, política e dimensões da memória reúne dez textos, escritos por autores de quatro países além do Brasil (Argentina, Equador, Estados Unidos, França). Nele, são estudadas as relações entre cinema e história a partir da articulação entre a análise estética do audiovisual e a perspectiva crítico-documental dos filmes, como uma maneira de fazer convergir a especificidade do cinema e os regimes de representação da história. Catálogo da mostra homônima realizada na Caixa Cultural do Rio de Janeiro em novembro/dezembro de 2018, África(s). Cinema e memória em construção, por sua vez, reúne dezesseis ensaios a respeito dos cinemas ligados às independências das antigas colônias portuguesas na África e dos cinemas afro-diaspóricos, tendo como foco de análise tanto filmes históricos quanto filmes contemporâneos. Ambas as publicações podem ser encaradas como exemplos de constelações sem centro, tratando de obras fílmicas de diferentes latitudes que têm em comum o não-pertencimento aos cânones mais estabelecidos da historiografia do cinema, o que estava entre os objetivos primordiais desta pesquisa.

2. Capítulos de livro

• MONTEIRO, Lúcia Ramos. "A estética da longa duração: um cinema que reflete sobre si e sobre a história". In: ADAMATTI, M.; AGUIAR, C.; CARVALHO, D.; MONTEIRO, L.; VILLAÇA, M. (orgs.). Cinema, estética, política e dimensões da memória. Porto Alegre: Sulina, 2019, p. 201-215.

• MONTEIRO, Lúcia Ramos. "Stasis e movimento, luz e sombra, modernidade e pós-modernidade". In: Beatriz Furtado; Philippe Dubois (orgs.). Pós- fotografia, pós-cinema. Novas configurações das imagens. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2019, p. 82-97.

• MONTEIRO, Lúcia Ramos. "Deciframento alegórico e (auto)análise: a obra de Ismail Xavier e sua recepção francesa". In: Fatimarlei Lunardelli;

7 Humberto Pereira da Silva; Ivonete Pinto. (orgs.). Ismail Xavier. Um pensador do cinema brasileiro. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2019, p. 74-88.

• MONTEIRO, Lúcia Ramos. "A arte, a sociedade e o homem, por meio do cinema. Homenagem a Ismail Xavier". In: Raquel Hallak d'Angelo; Fernanda Hallak d'Angelo (orgs.). Mostra Tiradentes / SP 2018. Belo Horizonte: Universo Produção, 2018, p. 28-34.

• MONTEIRO, Lúcia Ramos. "A mise-en-scène do confronto e as armadilhas do cinema etnográfico na América Latina" / " La mise en scène de la confrontation et les pièges du cineema ethnographique en Amérique latine". Suspended Spaces. A partilha dos esquecimentos/Le partage des oublis. Lisboa: Sistema Solar, 2018, p. 291-303 (em português) e p. 476-484 (em francês).

• MONTEIRO, Lúcia Ramos. "La mirada del verdugo: Apuntes sobre 48 de Susana de Sousa Dias y Retratos de identificación de Anita Leandro". In: Christian Leon M; María Fernanda Troya (orgs.). La mirada insistente: Repensando el archivo, la etnografía y la participación. Quito: Universidad Andina Simón Bolívar / Abya-Yala, 2018.

• MONTEIRO, Lúcia Ramos. "O nascimento do cinema moçambicano: debate". In: MONTEIRO, Lúcia Ramos (org.). África(s). Cinema e memória em construção. São Paulo: Buena Onda, 2018, p. 153-171.

• MONTEIRO, Lúcia Ramos. “Nacionalismo e internacionalismo en las cinematografías africanas. Marcos fundacionales y circulaciones, de los 1960s a nuestros días”. Muestra Afro. Catálogos Razonados de la Cinemateca de Bogotá, Bogotá, 2018.

• MONTEIRO, Lúcia Ramos. “O movimento das ruínas”. In: Lúcia Ramos Monteiro, Clara Schulmann, Evgenia Giannouri e Teresa Castro (orgs.), Palmanova, Victor Burgin, Paris, Éditions Formes, 2016, p. 67-84.

8

• MONTEIRO, Lúcia Ramos. “O cinema perturbador de Robert Morin, ou como filmar o desconforto”. In : Maria Leite Chiaretti (org.). Robert Morin. Reinventando o Quebec. São Paulo, CCBB, 2016, p. 33-38.

• MONTEIRO, Lúcia Ramos. “Un tigre de papel (2007), de Luis Ospina, e os documentários ‘de busca’ no cinema da América Latina”. In: Yanet Aguilera e Marina da Costa Campos (orgs.), Imagem, memória e resistência, São Paulo, Discurso Editorial, 2016, p. 540-551.

• MONTEIRO, Lúcia Ramos, e CÉSAR JR., Sérgio. “Para não dizer que não falei do fim da democracia. Sobre Os Anos JK (Silvio Tendler, Brasil, 1980)”. In: Yanet Aguilera, Natália Christofoletti Barrenha e Lúcia Ramos Monteiro (orgs.), Imagens de um continente. São Paulo, Fundação Memorial da América Latina, 2016 (ebook), p. 63-73.

• MONTEIRO, Lúcia Ramos, e BESKOW, Cristina Alvares. “A representação da tortura e a política da memória justa. Sobre Corte Seco (Renato Tapajós, Brasil, 2014). In: Yanet Aguilera, Natália Christofoletti Barrenha e Lúcia Ramos Monteiro (orgs.), Imagens de um continente. São Paulo, Fundação Memorial da América Latina, 2016 (ebook), p. 174-182.

• MONTEIRO, Lúcia Ramos. “Figurações, história e análise fílmica” (apresentação da primeira parte de livro organizado). In: ADAMATTI, Margarida; AGUIAR, Carolina Amaral; CARVALHO, Danielle Crepaldi; MONTEIRO, Lúcia Ramos; MORETTIN, Eduardo (orgs.). Cinema e história. Circularidades, arquivos e experiência estética. Porto Alegre, Sulina, 2017, p. 17-22.

Observações: No período final do pós-doutorado, publiquei oito capítulos de livros. "A estética da longa duração: um cinema que reflete sobre si e sobre a história", integrante da coletânea Cinema, estética, política e dimensões da memória, aborda

9 a obra do cineasta filipino Lav Diaz e analisa especificamente o filme Canção para um triste mistério (2016), sob a perspectiva de sua recusa, tanto no âmbito narrativo quanto no visual, da história eventual, numa postura que se aproximaria à do historiador Fernand Braudel, à tradição da École des Annales e às proposições do crítico e teórico do cinema André Bazin. No decurso da pesquisa, os desdobramentos dos estudos que culminaram nesse capítulo levaram às formulações iniciais do cinema geológico, como será visto adiante. Desdobramento de um trabalho apresentado no colóquio Pós-cinema, pós- fotografia, realizado em Fortaleza em 2014, o capítulo "Stasis e movimento, luz e sombra, modernidade e pós-modernidade", publicado no volume Pós-fotografia, pós-cinema. Novas configurações das imagens, oferece uma mirada sobre os "diaporamas" realizados pelos artistas Tamar Guimarães e Kasper Ankhøj. As obras estudadas valem-se de um dispositivo "obsoleto" (a projeção mecânica de fotografias em 35mm, ou projeção de slides) para colocar fotografias fixas em movimento, apontando para questões trazidas pela imagem em movimento na contemporaneidade e para o problema estético da "dissolução" – da imagem no espaço, dos dispositivos clássicos do cinema e da fotografia, etc. Publicado no Equador, o capítulo "La mirada del verdugo: Apuntes sobre 48 de Susana de Sousa Dias y Retratos de identificación de Anita Leandro" também se dedica a pensar a relação entre cinema e fotografia a partir de dois filmes baseados inteiramente ou majoritariamente em imagens fixas, num gesto que dissolve as fronteiras entre as duas linguagens. Dois capítulos debruçam-se sobre a obra de Ismail Xavier, em especial com relação ao método de análise fílmica por ele praticado: "Deciframento alegórico e (auto)análise: a obra de Ismail Xavier e sua recepção francesa", publicado no livro Ismail Xavier. Um pensador do cinema brasileiro, e "A arte, a sociedade e o homem, por meio do cinema. Homenagem a Ismail Xavier", no catálogo da Mostra Tiradentes de Cinema de 2018, em que o teórico foi homenageado. Embora não estejam diretamente ligados ao cerne da presente pesquisa, os dois textos propiciaram espaço para uma reflexão sobre as metodologias de análise que se revelou fundamental para minha própria prática. Publicado em francês e português, o capítulo "A mise-en-scène do confronto e as armadilhas do cinema etnográfico na América Latina" / " La mise en scène de la confrontation et les pièges du cineema ethnographique en Amérique latine" é

10 um marco de minha colaboração com o coletivo francês Suspended Spaces, dedicado a pensar as contradições do projeto moderno em diferentes latitudes. O texto analisa sequências de "face-a-face" entre personagem indígena e câmera de cineasta branco presentes em filmes de diversos realizadores (o ítalo-brasileiro Andrea Tonacci, o boliviano Jorge Sanjinés e o chileno Juan Downey), numa nova configuração de minha proposta de analisar em conjunto filmes "periféricos" de distintas geografias. Finalmente, publiquei dois capítulos sobre a tensão entre nacionalismo e internacionalismo no momento da "fundação" do cinema moçambicano. O capítulo "O nascimento do cinema moçambicano: debate", publicado no catálogo África(s). Cinema e memória em construção, constitui-se do registro de um debate realizado durante a mostra África(s). Cinema e revolução (2016), que discutiu o nascimento do cinema moçambicano. “Nacionalismo e internacionalismo en las cinematografías africanas. Marcos fundacionales y circulaciones, de los 1960s a nuestros días” traz uma discussão teórica sobre a questão. A fundação do cinema moçambicano e a discussão sobre como se forjou o sentimento nacional naquele contexto propõem um diálogo inesperado com as chamadas "Ficções fundacionais", tal como teorizadas por Doris Sommer.

3. Artigos em periódicos científicos

• MONTEIRO, Lúcia Ramos. Le cinéma à ses limites. Longue durée et spectatorialité impure. Écrans, n. 11, 2020 (no prelo).

• MONTEIRO, Lúcia Ramos. Um cineasta nunca acaba. Luis Ospina, um breve obituário. Revista Imagofagia, v. 20, p. 10-14, 2019.

• MONTEIRO, Lúcia Ramos. Durée étendue et visibilité de l'infime. À propos de films et de personnages de Lav Diaz. Recherches et Travaux, v. 93, p. 1- 10, 2018.

• MONTEIRO, Lúcia Ramos. X-Wood contra los cines nacionales. Fotograma. Revista Iberoamericana de Cine, v. 7, p. 50, 2018.

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• MONTEIRO, Lúcia Ramos. Diante da catástrofe. Imagem em movimento, imagem apagamento e cemitério marinho. Ars (São Paulo), v. 16, n. 33, p. 197-217, 27 ago. 2018.

• MONTEIRO, Lúcia Ramos. "Das narrativas de fundação às narrativas de dissolução. A questão da identidade nacional no cinema contemporâneo". Galáxia, n. 38, pp. 154-166, 2018.

• MONTEIRO, Lúcia Ramos. Passagem de imagens, imagens da passagem: a circulação de filmes ligados ao processo de independência moçambicano. Rebeca, v. 6, p. 1-16, 2018.

• MONTEIRO, Lúcia Ramos. O cinema existe e resiste. Longa duração, análise fílmica e espectatorialidade nos filmes de Lav Diaz. In: Aniki. Revista Portuguesa da Imagem em Movimento, v. 4, n. 2, 2017, p. 434-455.

• MONTEIRO, Lúcia Ramos, e CESAR, Amaranta. As africanidades e suas asperezas. Rebeca, v. 9, n. 10, 2017.

• MONTEIRO, Lúcia Ramos. A estética da fotografia animada na criação contemporânea: desarquivamento, colocação em movimento, montagem, escuta e projeção de imagens de arquivo. Significação, v. 44, n. 47, 2017, p. 239-257.

• MONTEIRO, Lúcia Ramos. La mémoire du mal et l’inconscient colonial, La Furia Umana, n. 30, Dossier Ruy Guerra, 2016.

• MONTEIRO, Lúcia Ramos. Filmo, luego existo. Cinematografías en circulación paralela en Ecuador. Fuera de Campo, v. 1, n.1, 2016, p. 39-49.

• MONTEIRO, Lúcia Ramos. A terceira margem do cinema. Filmes

12 equatorianos em circulação paralela. Aniki. Portuguese Journal of the Moving Image, v. 3, n. 2, 2016, p. 246-265.

Observações: O conjunto de publicações, em revistas brasileiras e estrangeiras de prestígio, atende ao item 5 do projeto original, “Disseminação e Avaliação”. Os artigos, redigidos em português, espanhol e francês, foram publicados em revistas que integram o sistema de avaliação Qualis da Capes e têm penetração internacional. Nos artigos, incluídos nos anexos a este relatório, além de analisar algumas obras do corpus, especialmente no cinema contemporâneo filipino, em que a figura de Lav Diaz exerce destaque, e no cinema equatoriano "de guerrilha", procurei pensar alguns dos temas transversais fundamentais à pesquisa. Em primeiro lugar, abordei as implicações da longa duração na postura espectatorial e na gestão da atenção, seja articulando-a à ideia de marginalidade estética e cultural (tema de "Le cinéma à ses limites. Longue durée et spectatorialité impure"), seja pensando na questão da visibilidade do "fundo cinematográfico" (objeto de estudo de "Durée étendue et visibilité de l'infime. À propos de films et de personnages de Lav Diaz"). Procurei também pensar nas identidades em conflito no interior de uma cinematografia nacional específica (a equatoriana), num desdobramento de um dos capítulos presentes no relatório de renovação ("Das narrativas de fundação às narrativas de dissolução. A questão da identidade nacional no cinema contemporâneo").

4. Entrevistas

• MONTEIRO, Lúcia Ramos; DUMAS, Clément. "A inteligência de uma atriz- máquina. Entrevista com Hazel Orencio, estrela e braço direito do realizador filipino Lav Diaz". Aniki: revista portuguesa da imagem em movimento, v. 6, pp. 181-190, 2019.

• MONTEIRO, Lúcia Ramos. DIDI-HUBERMAN, Georges. "Aparências ou aparições: o filósofo Georges Didi-Huberman comenta a exposição Levantes, em cartaz em São Paulo". Revista ZUM, 28 de novembro de 2017.

13 • MONTEIRO, Lúcia Ramos; DUBOIS, Philippe. "Philippe Dubois e a elasticidade temporal das imagens contemporâneas". Revista Zum On-Line, 7 de fevereiro de 2018.

• MONTEIRO, Lúcia. "Aparências ou aparições. O filósofo Georges Didi- Huberman comenta a exposição Levantes, em cartaz em São Paulo" (Entrevista). Revista Zum On-Line, 28 de novembro de 2017, https://revistazum.com.br/entrevistas/entrevista-didi-huberman/, acesso 2 de dezembro de 2017.

Observações: Publiquei duas entrevistas no período final da bolsa de pós-doutorado. Em parceria com o pesquisador francês Clément Dumas, entrevistei a atriz Hazel Orencio ("A inteligência de uma atriz-máquina. Entrevista com Hazel Orencio, estrela e braço direito do realizador filipino Lav Diaz"), numa série de encontros que se revelaram fundamentais para compreender o método de trabalho de Diaz e conhecer um pouco da cena cultural do arquipélago. Minha entrevista com o teórico belga Philippe Dubois foi importante para pensar num dos aspectos da acepção estética do conceito de "dissolução" nos regimes de imagem contemporênos: a dissolução, no âmbito das imagens digitais, das fronteiras entre filme e fotografia, e isso tanto nos dispositivos de monstração quanto nos dispositivos de criação das imagens. Para Dubois, "cinema" e "fotografia" fazem hoje menos sentido enquanto categorias estanques, devendo ser pensadas sobretudo enquanto imagens contemporâneas temporalmente "elásticas".

5. Organização de dossiês em periódicos científicos

• CESAR, Amaranta; MONTEIRO, Lúcia Ramos (orgs.). Africanidades. Rebeca. Revista Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual, v. 5, n. 2, 2016.

• MELEIRO, Alessandra; MONTEIRO, Lúcia Ramos (orgs.). Homenagem a Mohamed Bamba. África(s). Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudos Africanos, Povos Indígenas e Culturas Negras, 2017.

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6. Trabalhos completos em anais de congressos científicos

• MONTEIRO, Lúcia Ramos. “Longa duração, análise (pós-)fílmica e o texto ainda inencontrável: um estudo de As mil e uma noites (2015) e Canção para um triste mistério (2016). Anais do XXVI Encontro da Compós, São Paulo- SP, 2017, ISSN: 2236-4285, https://goo.gl/qUbUjp, acesso em 8 de novembro de 2017.

• MONTEIRO, Lúcia Ramos. “Das ficções de fundação às narrativas de dissolução: a identidade nacional em filmes contemporâneos ‘periféricos’”. Anais do XXV Encontro da Compós, Goiânia-GO, 2016, ISSN: 2236-4285, https://goo.gl/CcH5A8, acesso em 8 de novembro de 2017.

6. Resenha

MONTEIRO, Lúcia Ramos. O passado e seu ponto de partida. Resenha de A luta armada no cinema: ficção, documentário, memória, de Fernando Seliprandy. Significação, v. 43, n. 45 (2016).

7. Traduções

• ROLLET, Sylvie. "De gestos em olhares, ou a história 'a contrapelo' em dois filmes de Sergei Loznitsa". Trad. Lúcia Ramos Monteiro. In: ADAMATTI, M.; AGUIAR, C.; CARVALHO, D.; MONTEIRO, L.; VILLAÇA, M. (orgs.). Cinema, estética, política e dimensões da memória. Porto Alegre: Sulina, 2019, pp. 137-154.

• LEÓN, Christian. "Usos criativos do arquivo e políticas da memória no documentário equatoriano (2000-2013)". In: ADAMATTI, M.; AGUIAR, C.; CARVALHO, D.; MONTEIRO, L.; VILLAÇA, M. (orgs.). Cinema, estética, política e dimensões da memória. Porto Alegre: Sulina, 2019, pp. 155-173.

15 • BOULOUCH, Nathalie. "O que resta do diaporama?". In: Beatriz Furtado; Philippe Dubois (orgs.). Pós-fotografia, pós-cinema. Novas configurações das imagens. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2019, pp. 70-80.

• FÉRAL, Josette. "Um teatro 'sob influência': o exemplo de Katie Mitchell". In: Beatriz Furtado; Philippe Dubois (orgs.). Pós-fotografia, pós-cinema. Novas configurações das imagens. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2019, pp. 162-170.

• HARROW, Kenneth, Cinema africano: perturbando a ordem (cinemática mundial). [Trad. Lúcia Ramos Monteiro]. Rebeca, v. 9, n. 10, 2017.

• MORA FORERO, Cira Inés, “Narrando um fracasso: revisão crítica da historiografia do cinema colombiano”. Trad. Lúcia Ramos Monteiro. In: MORETTIN, Eduardo, et. al., Cinema e história: circularidades, arquivos e experiência estética. Porto Alegre: Sulina, 2017, p. 215-232.

Observações: As quatro traduções realizadas no período final da bolsa de pós-doutorado permitiram-me uma aproximação dos métodos de trabalho de autores que considero trabalhar em zonas fronteiriças com minha própria abordagem. Nathalie Boulouch é uma referência para meus estudos dos diaporamas contemporâneos; Christian León é talvez o estudioso do cinema equatoriano de maior relevância.

8. Artigos de divulgação

• MONTEIRO, Lúcia. Movimento amplia de forma inédita o espaço do cinema negro no Brasil. Folha de S. Paulo. Ilustríssima. 13 mai. 2018.

• MONTEIRO, Lúcia. Peças muito longas geram tédio, mas criam vínculos inusitados com a platéia. Folha de S. Paulo. Ilustríssima, 18 mar. 2018.

• MONTEIRO, Lúcia. De barragens e miragens. Barragens fascinam cineastas

16 com mistura de progresso e destruição. Folha de S. Paulo. Ilustríssima, 25 fev. 2018, p. 2.

• MONTEIRO, Lúcia, e FELDMAN, Ilana. Erguer os braços, tomar posição. Ilustríssima, Folha de S. Paulo, 12 nov. 2017.

• MONTEIRO, Lúcia. Avalanche de minutos. Ilustríssima. Folha de S. Paulo, 1 out. 2017.

• MONTEIRO, Lúcia. Alguns filmes pedem a sala de cinema. Ilustríssima. Folha de S. Paulo, 23 jun. 2017.

• ARAÚJO, Mateus; MONTEIRO, Lúcia; MOURÃO, Patrícia. Perdidos e achados de Andrea Tonacci. Ilustríssima. Folha de S. Paulo, 1 jan. 2017.

• MONTEIRO, Lúcia. “A meditação subversiva de Lav Diaz”, Ilustríssima. Folha de S. Paulo, 16 out. 2016.

Observações: Ainda que no espaço restrito de um suplemento de jornal, os ensaios que publiquei no caderno Ilustríssima do jornal Folha de S. Paulo permitiram-me testar hipóteses, refinar intuições de pesquisas e expor de maneira suscinta alguns resultados da presente pesquisa.

II.B) Organização de eventos (colóquios, encontro e mostras)

Encontro • Masterclasse de direction d'acteur / Hazel Orencio. École Normale Supérieure de Lyon, 7 e 8 de outubro de 2019.

17 Organização de colóquios • I e II Colóquio Cinema e História, Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo (ECA-USP), 2016-2017.

Curadoria de mostras de cinema • De Áfricas e diásporas. Cinema de memória, cinema de luta. Nos últimos anos, as salas têm visto não só mais filmes africanos circulando mas também uma produção crescente de realizadoras negras. Este ciclo de filmes, apresentado no Sesc Belenzinho, em São Paulo, entre junho e outubro de 2019, propõe passarelas estéticas e políticas entre esses dois universos. Inspirada na cineasta francesa de origem guadalupense Sarah Maldoror, pioneira no cinema engajado junto a movimentos de independência africanos, a programação joga luz sobre lutas históricas e atuais, através de obras que investem na documentação, investigação e transmissão da memória.

• África(s). Cinema e memória em construção. Caixa Cultural Rio de Janeiro, novembro/dezembro de 2017. Mostra com 42 filmes, entre títulos históricos, realizados em momentos próximos às independências das antigas colônias portuguesas na África, e mais recentes, dedicados a pensar a memória desse processo e as heranças afro-diaspóricas.

• África(s). Cinema e Revolução. Caixa Belas Artes, São Paulo, novembro de 2016. Mostra com 39 filmes, realizados em meio aos movimentos independentistas de antigas colônias portuguesas na África ou dedicados a pensar a memória desse processo.

• A Caliwood de Luis Ospina. Cinema colombiano de vanguarda. Caixa Cultural, Rio de Janeiro, julho-agosto de 2017. Com um total de 34 filmes, trata-se da maior retrospectiva já realizada da obra do cineasta colombiano Luis Ospina.

18 Observações: No último ano da bolsa, co-organizei, com Elise Domenach e Clément Dumas, a masterclasse sobre direção de ator com a atriz e assistente de direção Hazel Orencio, na presença do cineasta Lav Diaz. Foi uma articulação entre instituições (École Normale Supérieure-Lyon, Universidade de Grenoble) e que, além de proporcionar um maior conhecimento do cinema de Lav Diaz e de sua parceria com Hazel Orencio, aprofundou meus laços com Elise Domenach e Clément Dumas, dois pesquisadores franceses dedicados a pensar os cinemas asiáticos. As mostras dedicadas aos cinemas africanos e afro-diaspóricos, realizadas em três edições desde o início da bolsa, desenvolveram-se de modo a incluir mais filmes contemporâneos e a incrementar o diálogo com produções brasileiras, feitas por cineastas negras, e a enfrentar de maneira mais direta temáticas como o racismo e a branquitude.

II. C) Participação em congressos e simpósios

• MONTEIRO, Lúcia Ramos. "Filming Near the Abyss: Geological Cinema and the Politics of Long Duration". Symposium Screening Disappearance, Warwick (Reino Unido), University of Warwick, 30 de maio de 2019.

• MONTEIRO, Lúcia Ramos. "Vivre le temps de la fin. Le calme de trois familles nucléaires devant l'imminence de la catastrophe". Jornada de estudos "Le nucléaire en mots et en images". Paris, Maison de la Recherche/Université Sorbonne Nouvelle Paris 3, 28 de maio de 2019.

• MONTEIRO, Lúcia Ramos. "Le cinéma marginal et ses 'à-côtés'. Iconographie de la marge et tensions centre-périphérie". Jornada de estudos "Cinéma Marginal brésilien. Histoire et héritages". Estrasburgo, Université de Strasbourg, 10 de maio de 2019.

• MONTEIRO, Lúcia Ramos. "Durée étendue et visibilité de l'infime". Jornada de estudos "Le cinéma de Lav Diaz". Lyon, École Normale Supérieure, 18 de dezembro de 2018.

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• MONTEIRO, Lúcia Ramos. "Dissolution narratives: film and nation in 's Mountains May Depart". I Conferência Brasileira sobre "Cinemas Chineses", realizada no Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, 14 de dezembro de 2017.

• MONTEIRO, Lúcia Ramos. "Ismail Xavier, analista". Colóquio em homenagem a Ismail Xavier, Escola de Comunicações e Artes, 17 de novembro de 2017.

• MONTEIRO, Lúcia Ramos. “A longa duração em Lav Diaz: obstáculo ou deleite para a crítica?”. XXI Encontro Socine, Universidade Federal da Paraíba (UFPB), João Pessoa, de 17 a 20 de outubro de 2017.

• MONTEIRO, Lúcia Ramos. “Larga duración, espectatorialidad y análisis fílmico. El cine de Lav Diaz y la site-specificity”. VII Coloquio Universitario de Análisis Cinematográfico (CUAC) – El cine en el campo expandido. Museo Universitario de Arte Contemporáneo/ Universidad Autónoma de México, Cidade do México, de 10 a 12 de outubro de 2017.

• MONTEIRO, Lúcia Ramos. “A longa duração. Bazin, Braudel e Lav Diaz”. Seminário Temático Estudos de Cinema e Televisão do XXIX Simpósio Nacional de História, Anpuh (Associação Nacional de História), UNB, Brasília, de 24 a 28 de julho de 2017.

• MONTEIRO, Lúcia Ramos. “Longa duração, análise (pós-)fílmica e o texto ainda inencontrável: um estudo de As mil e uma noites (2015) e Canção para um triste mistério (2016)”. Grupo de Trabalho Estudos de Cinema, Fotografia e Audiovisual do XXVI Encontro Anual da Compós, Faculdades Cásper Líbero, São Paulo, de 6 a 9 de junho de 2017.

• MONTEIRO, Lúcia Ramos. “Récits de dissolution: problèmes contemporains

20 pour le concept de cinématographie nationale”. Colóquio Puissances esthétiques des lisières culturelles, Université Lyon II, Lyon, França, de 3 a 5 de novembro de 2016.

• MONTEIRO, Lúcia Ramos. “Notes sur 24 City”. Colóquio Agir dans la ville, Université de Mons/Université de Liège, Mons, Bélgica, de 21 a 23 de setembro de 2016.

• MONTEIRO, Lúcia Ramos. “Das ficções de fundação às narrativas de dissolução: a identidade nacional em filmes contemporâneos ‘periféricos’”. Grupo de Trabalho Estudos de Cinema, Fotografia e Audiovisual do XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás (UFG), Goiânia, de 7 a 10 de junho de 2016.

• MONTEIRO, Lúcia Ramos. “(Im)possibilités de voir et de représenter l'événement catastrophique”. Jornada de estudos Au plus près, Université Jean Monnet, Saint-Étienne, França, 2 de junho de 2016.

Observações: No período final do pós-doutorado, apresentei trabalhos em quatro encontros, realizados na França e no Reino Unido, durante o estágio de pesquisa que realizei junto à Université Grenoble Alpes com bolsa BEPE/FAPESP. Apresentada na primeira Jornada de estudos na França dedicada a pensar a obra de Lav Diaz, a comunicação "Durée étendue et visibilité de l'infime" permitiu- me testar a hipótese da associação entre filmes de longa duração e uma visibilidade maior para o "fundo cinematográfico", ou seja, a de que a relativa "inação" dos planos longos de Diaz favorece um olhar mais periférico, atentos a micro-fenômenos que se passam nos limites da imagem. Na comunicação "Filming Near the Abyss: Geological Cinema and the Politics of Long Duration", pude expor pela primeira vez as bases do que proponho chamar de "cinema geológico", no contexto de um simpósio dedicado a pensar o desaparecimento – da Terra, da humanidade, do cinema –, em estreito diálogo com as teorias do Antropoceno. Na Jornada de estudos dedicada a pensar "O nuclear em palavras e em imagens", apresentei um estudo sobre três filmes

21 apocalípticos, em que a espera do fim do mundo (ou a iminência da catástrofe) é vivida de maneira relativamente calma. Juntos, esses três trabalhos apontam para relações profundas entre meu trabalho desenvolvido no doutorado, dedicado a pensar "a iminência da catástrofe no cinema", e a pesquisa de pós-doutorado que ora se conclui. Apresentei, ainda, um trabalho baseado na constatação da infinitude (ou imprecisão) do conceito de marginalidade, propondo pensar "as margens" do cinema marginal brasileiro, explorando a iconografia da margem e as tensões entre centro e periferia na obra de Ozualdo Candeias e Luna Alkalay. Foi importante debruçar-me sobre esse assunto nesse momento final da pesquisa, posto que uma das propostas da pesquisa era investigar cinematografias "marginais" ou "periféricas" – e, conforme a pesquisa avança, fica evidente a característica forçosamente relativa dos movimentos e estéticas marginais.

II.D) Participação em grupos de pesquisa

• Pesquisadora do grupo de Pesquisa CNPq: “História e Audiovisual: circularidades e formas de comunicação”: Coordenadores: Prof. Dr. Eduardo Victorio Morettin (ECA/USP) e Prof. Dr. Marcos Francisco Napolitano de Eugênio (FFLCH/USP).

• Participação nas reuniões de orientandos do Prof. Dr. Eduardo Victorio Morettin.

• Participação nos Seminários de leitura sobre Cinema e História. Coordenação: Prof. Dr. Eduardo Victorio Morettin.

• Participação no grupo CREAVIS (Centre de Recherche en Esthétique de l’Audiovisuel), ligado à Universidade Sorbonne Nouvelle Paris 3.

II.E) Participação em aulas e curso

22 • Realização de cinco aulas na disciplina História do Audiovisual 1, ministrada para alunos de graduação na ECA-USP, em colaboração com o Prof. Dr. Eduardo V. Morettin.

• “Cinema, catástrofe e as narrativas de dissolução”. Curso na pós-graduação ministrado em parceria com o Prof. Dr. Eduardo V. Morettin. Conforme estava previsto no item 5 do projeto original (“Disseminação e Avaliação”), ministrei, em parceria com o Prof. Dr. Eduardo V. Morettin, o curso “Cinema, catástrofe e as narrativas de dissolução”, baseado na articulação entre pesquisas realizadas no doutorado e no pós-doutorado. O curso revelou-se um espaço privilegiado para testar hipóteses e compartilhar a pesquisa em andamento.

• Realização de aula sobre neorrealismo italiano na disciplina “História do Audiovisual I”, ministrada pelos professores Eduardo V. Morettin e Reinaldo Cardenuto no curso de Audiovisual (graduação) da Escola de Comunicações e Artes (ECA-USP).

• Realização de aula sobre Alemanha, Ano Zero (1947) de Roberto Rossellini na disciplina “História do Audiovisual II”, ministrada pelo professor Cristian Borges no curso de Audiovisual (graduação) da Escola de Comunicações e Artes (ECA-USP).

• Realização de aula “Das ficções de fundação às narrativas de dissolução”, para os alunos da disciplina “Filmes históricos e narrativas fundacionais” ministrada pelo professor Ignacio Del Valle Dávila no programa de pós- graduação em Multimeios da Unicamp.

Comentário: As aulas foram fundamentais para observar a necessidade de expansão dos cânones da história do cinema mundial, abrangendo diversas "margens" em geral excluídas: os filmes de mulheres, de cineastas negras e negros, realizados em países fora do eixo Europa-Estados Unidos, etc.

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II.F) Participação em bancas

• CALHADO, Cynthia. "Intensidades da imagem: experiência estética no cinema – análises críticas a partir de Walter Salles". Tese de doutorado. Orientadora: Christine Mello. Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica, PUC-SP, 17 de dezembro de 2018.

• SUGUIYAMA, Natália Keiko de Carvalho. "O testemunho no cinema documental: procedimentos criativos no campo da experiência traumática com ênfase em Shoah de Claude Lanzmann e Histoire(s) du cinéma de Godard. Dissertação de mestrado. Orientadora: Leda Tenório da Motta. Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica, PUC-SP, 24 de agosto de 2018.

• SUGUIYAMA, Natália Keiko de Carvalho. "O testemunho no cinema documental: agenciamentos estéticos no campo da experiência traumática com ênfase em Shoah de Claude Lanzmann". Exame de qualificação de mestrado. Orientadora: Leda Tenório da Motta. Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica, PUC-SP, 4 de maio de 2018.

• GÊA, Pablo. "O vento nas árvores: Longa duração contemporânea e sua condição de visionamento". Dissertação de mestrado. Orientador: Pedro Guimarães. Programa de Pós-Graduação em Multimeios. Instituto de Artes, Unicamp, 14 de agosto de 2018.

• QUEIROZ DOS SANTOS, Daniele. “Entre montagens e constelações. Um estudo sobre a mobilidade das imagens”. Dissertação de mestrado. Orientador: Prof. Dr. Artur Simões Rozestraten. Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo, FAU-USP. 2017.

• GÊA, Pablo. “Slow Cinema: Em defesa do tempo e duração na experiência espectatorial”. Exame de qualificação de mestrado. Orientador: Prof. Dr.

24 Pedro Maciel Guimarães. Programa de Pós-Graduação em Multimeios, Instituto de Artes, Unicamp. 2017.

• SALEM, Felipe. “O idiota, o idiota e os idiotas”. Exame de qualificação de mestrado. Orientadora: Prof. Dra. Dora Longo Bahia. Programa de Pós- Graduação em Artes Visuais. 2017.

• TURRI, João Pedro. “Espelho ofuscante: Xapiri e a etnografia digital”. Trabalho de Conclusão de Curso (TCC). Orientador: Prof. Dr. Eduardo Victorio Morettin. Graduação em Audiovisual, Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo. 2017.

• RODRIGUES, Vanessa Panerari. “Reducionismo e empoderamento: um ensaio sobre o papel da mulher no cinema brasileiro contemporâneo”. Trabalho de Conclusão de Curso (TCC). Orientador: Prof. Dr. Sílvio Mieli. Graduação em Comunicação Social/Jornalismo, PUC-SP. 2016.

Comentário: Os convites para participações em bancas em defesas de pesquisadores de programas diferentes daquele à que estou vinculada (Meios e Processos Audiovisuais - ECA/USP) e com os quais jamais tive relação formal, é um sinal do reconhecimento de meu trabalho de pesquisa atualmente em curso.

II. G) Participação em debates e mesas redondas

• No contexto do Ciclo de Cinema e Psicanálise promovido pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e pelo jornal Folha de S. Paulo, participei de debate sobre o filme O Insulto (Ziad Doueiri, 2017), realizado na Cinemateca Brasileira, no dia 1º de agosto de 2018.

• Dentro da programação do Festival de Cinema Judaico de São Paulo, participei de debate sobre o filme Em trânsito (Transit, Christian Petzold,

25 2018), realizado no Instituto Moreira Salles - São Paulo, no dia 7 de agosto de 2019.

• Participei, como moderadora, de uma das mesas redondas da Jornada "Agora", organizada por Raquel Schefer e realizada na Fondation Gulbenkian, em Paris, no dia 5 de junho de 2019, junto ao artista Wagner Morales e à curadora Natasa Petresin-Bachelez.

• No âmbito da 12a Mostra de Cinema Árabe realizada no CineSesc, em São Paulo, participação no debate sobre o filme Yamo (Rami Nihawi, 2011), ao lado do realizador e do curador da mostra, Geraldo Campos (agosto de 2017).

• No âmbito da Mostra Robert Morin: Reinventando o Quebec, realizada no Centro Cultural Banco do Brasil, em São Paulo, participação, ao lado da pesquisadora Ilana Feldman e da curadora Maria L. Chiaretti, de mesa redonda sobre o cineasta quebequense Robert Morin, em sua presença (setembro de 2016).

• Por ocasião do lançamento do livro Imagens de um Continente (Aguilera, Y.; Barrenha, N. C.; Monteiro, L. R. [orgs.]. São Paulo, Fundação Memorial da América Latina, 2016, ebook), participação em mesa redonda ao lado de Yanet Aguilera, Natália Christofoletti Barrenha e Marília Franco, no Memorial da América Latina, em São Paulo (dezembro de 2016).

• Em meio às atividades da segunda edição do Festival Ciné-Palestine, na região de Paris, participação em debate com o diretor de som do filme Recollection (Kamal Aljafari, 2015). Universidade Paris 8 – Saint-Denis (maio de 2016).

• Participação, como provocadora, na mesa redonda “Roteiro e gênero: a criação de personagens femininos e a autoria feminina”, em meio ao ciclo de debates Quem tem medo das mulheres no audiovisual?, realizado pelo Coletivo Vermelha no Museu da Imagem e do Som, em São Paulo (março de 2016).

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II.H) Pareceres

• No período da bolsa, foram emitidos pela pesquisadora pareceres de diversos de artigos para revistas científicas, entre elas: Significação: revista de cultura audiovisual (11 pareceres, sendo 6 no período final da bolsa de pós- doutorado), Fuera de Campo (2 pareceres), Devires (1 parecer), Third Text (1 parecer), International Journal of Media and Cultural Politics (1 parecer) e Cadernos de História da Ciência, do Instituto Butantã (1 parecer).

• Ainda durante o período da bolsa, atuei como avaliadora de trabalhos de iniciação científica desenvolvidos na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), apresentados na 25a edição do Simpósio Internacional de Iniciação Científica e Tecnológica da USP (SIICUSP).

• Finalmente, elaborei elaborei 24 pareceres de avaliação para a seleção de participantes junto às edições X, XI e XII das Jornadas Cinema em Português (http://www.cinemaportugues.ubi.pt/), organizadas pelos pesquisadores Paulo Cunha, Manuela Penafria e Frederico Lopes, e também participei do comitê de seleção da primeira, segunda, terceira e quarta edições do Colóquio de Cinema e História.

27 III. Apresentação de resultados

Os resultados deste relatório estão organizados em uma introdução, uma conclusão e seis capítulos que deverão constar de um livro com publicação próxima. Em 2017, foi apresentado um relatório parcial, com vistas ao prolongamento do pós-doutorado. Depois de passarem por uma revisão criteriosa, com alguns acréscimos e ajustes, os três capítulos que integravam o relatório parcial foram reproduzidos abaixo, ao lado dos capítulos novos. O material foi organizado da maneira considerada mais lógica para a leitura, de modo que a ordem não reproduz a cronologia da pesquisa. Antes de expor, a seguir, o sumário dos capítulos, os capítulos e, nos anexos, os artigos publicados na última fase da bolsa, é preciso informar, nesta apresentação, que eventos imprevistos impossibilitaram a conclusão de todos os objetivos do trabalho. Houve, em primeiro lugar, a redução no tempo da bolsa em função de a bolsista ter sido chamada a assumir um posto de professora efetiva no Departamento de Cinema e Vídeo da Universidade Federal Fluminense (desde julho/2019). Além disso, o incessante florescimento do cinema de Lav Diaz, com novos filmes sendo lançados4, tornou necessário o acompanhamento dessa produção, incluindo a realização de entrevistas com integrantes de sua equipe; foi preciso, ainda, pensar em modelos capazes de dar conta dessa exuberância, em que cada filme interfere nas modalidades de percepção da obra anterior. A monumentalidade do cinema de Lav Diaz está refletida na estrutura deste relatório, em que seus filmes são analisados em três capítulos (II, III e IV)5. Finalmente, optei por descartar a análise iniciada de Good Bye Dragon Inn (2003), de Tsai Ming-liang, e isso por dois motivos principais: se por um

4 Além do já mencionado Canção para um triste mistério, A mulher que se foi (Ang babaeng humayo, 2016), de 226 minutos, premiado com o Leão de Ouro no Festival de Veneza, de que ainda não disponho de cópia, mas que pude ver em inabitual sessão no CineSesc, em São Paulo. Ang Hupa. 5 Não foi possível finalizar a comparação, prevista no projeto original, entre Independencia, de Raya Martin (2009), e Canção para um triste mistério. Quando Lav Diaz lançou Canção para um triste mistério, pareceu-me evidente que a comparação deveria levar este filme mais recente de Diaz em conta. Independencia narra a ocupação estadunidense do arquipélago, no início do século XX e oferece, para além da reconstituição dos fatos que se sucedem à independência da coroa espanhola, em 1898, uma reflexão sobre a própria natureza do cinema. Raya Martin chama atenção para o filme em suas texturas, com a troca de rolos acompanhando a troca de ocupantes no território filipino. Por sua vez, o novo título de Diaz reconstitui uma luta pela independência filipina anterior, com relação aos espanhois, no final do século XIX. Sabe-se que as independências nacionais constituem um motivo central nas literaturas e nos cinemas “de fundação nacional” (SOMMER, 2004), e que o estudo da independência filipina foi fundamental para que o historiador Benedict Anderson (2008) desenvolvesse seu pensamento sobre nações e nacionalismos, e propusesse a ideia de “comunidades imaginadas”, extremamente influente para o pensamento da questão do nacional na América Latina.

28 lado deparei-me com um texto importante a respeito do filme, e indo na mesma direção do que previa minha proposta: "Slow Time, Visible Cinema: Duration, Experience and Spectatorship", de Tiago de Luca (2016). Por outro lado, com o desenvolvimento da hipótese do cinema geológico, conforme será exposto a seguir, esse filme nos pareceu menos produtivo que os demais. Neste relatório, os resultados da pesquisa estão organizados em seis capítulos, sendo três novos (I, II e IV) e três já constantes no relatório de renovação (III, V e VI), com poucas modificações6. O capítulo I dedica-se a expor o conceito de "Cinema geológico", que articula as principais questões mobilizadas por esta pesquisa: os filmes de longa duração, o desejo de filmar a Terra (mais do que um país), a visibilidade aumentada do fundo cinematográfico, em competição com a intriga e o drama do primeiro plano. Se relações entre cinema e geologia vêm sendo estabelecidas por pesquisadores do campo do cinema e dos estudos de mídia interessados nas teorias do Antropoceno, o conceito de cinema geológico aqui proposto nasce de um recuo no tempo para, a partir das proposições de André Bazin e Fernand Braudel, ver os filmes de longa duração não apenas como opções estéticas de resistência à "Grande aceleração" rumo ao precipício mas também como favorecedores do desenvolvimento de uma nova modalidade do olhar, menos centrado na figura humana e mais atento a fenômenos e forças "inumanas". Presente no corpus do projeto original, Viajo porque preciso, volto porque te amo (2009), de Karim Aïnouz e Marcelo Gomes, é o filme central nesse primeiro capítulo. O capítulo II aprofunda-se na relação entre longa duração e visibilidade do fundo cinematográfico (BONAMY, 2013), apresentando uma análise de Florentina Hubaldo, CTE (2012), de Lav Diaz. O decentramento do olhar a que o filme convida seus espectadores é visto, nesse estudo, como um gesto primordial do cinema geológico, num arranjo incomum entre atenção e distração.

6 Havia, no relatório intermediário, a previsão de realizar dois novos capítulos até o final da vigência da bolsa. Optei por escrever três capítulos novos em função das descobertas no decurso da pesquisa, descobertas estas que não estavam previstas completamente no projeto original. No sumário apresentado no relatório de 2017 havia a previsão de escrever um capítulo 4 com o título "Adeus ao cinema. O registro de uma modalidade espectatorial em transformação", a partir de Good Bye Dragon Inn e das cenas de filme dentro do filme nos demais títulos do corpus, e um capítulo V intitulado "Elogio a ineficiência narrativa. Números musicais como retardadores da ação". Esses capítulos foram descartados. Com relação ao primeiro caso, considerei que minhas observações não iam muito além do que já havia sido proposto por Tiago de Luca em seu artigo "Slow Time, Visible Cinema" (2016). Com relação ao segundo caso, o capítulo foi abandonado por uma questão de tempo: precisei assumir um posto de professora na Universidade Federal Fluminense e julguei mais importante investir o escasso tempo que me restava na redação do capítulo 1, contendo formulações a respeito do "Cinema geológico", conceito que me parece dar conta de todo o escopo da pesquisa.

29 Já constante do relatório anterior, o capítulo III aprofunda a questão da longa duração tendo como foco o entrecruzamento entre marginalidade estética e marginalidade cultural, com base na análise do filme Canção para um triste mistério (2012), de Lav Diaz. O capítulo IV se dedica a discussões de cunho metodológico, investigando a atualidade das práticas de análise fílmica em tempos de acesso digital aos filmes, com base em uma análise de As mil e uma noites (2015), de Miguel Gomes, filme que estava previsto no corpus do projeto original. Já presente em uma versão preliminar no relatório anterior, o capítulo V propõe um contraponto entre "ficções de fundação nacional" e "narrativas de dissolução", a partir de uma análise do filme As montanhas se separam (2015), de Jia Zhang-ke. Finalmente, o capítulo VI se debruça sobre as tensões presentes no contexto equatoriano, entre o cinema do "centro" – a capital, Quito, sediando a Cinemateca Nacional e reunindo os cineastas de maior reconhecimento – e os cinemas das margens, de regiões como Guayaquil e sua periferia, o Chone, a Costa, a Selva.

Sumário

Introdução

Capítulo I - Cinema geológico, primeiros estratos: filmar à beira do abismo. 1. A via da Terra (A conquista do Polo) 2. O cinema geológico e as teorias do Antropoceno 3. Dinâmicas da litosfera, ou o sertão que vira mar (Viajo porque preciso, volto porque te amo)

Capítulo II - Longa duração e visibilidade do ínfimo (Florentina Hubaldo, CTE) 1. Decentramento do olhar 2. Atenção e distração

Capítulo III - Da margem ao centro: longa duração e experiência espectatorial (Canção para um triste mistério)

30 1. Os limiares no centro 2. Seja marginal, seja herói 3. O lugar do espectador está vazio

Capítulo IV - De como cindir o tempo. Análise e duração 1. Como e por quê: questões de método 2. Narrativas em abismo. (As mil e uma noites) 3. História, memória e esquecimento. (Ainda Canção para um triste mistério) 4. Antes do fim

Capítulo V - Das narrativas de fundação às narrativas de dissolução. A questão da identidade nacional em filmes contemporâneos (As montanhas se separam) 1. Anedota sobre identidade nacional no cinema contemporâneo 2. Dissolução, diluição 3. Estruturas em corrosão 4. Cinemas nacionais, cinemas em chinês

Capítulo VI - X-Wood contra os cinemas nacionais (Mas allá del mall) 1. Equadores, cinema e nação 2. De lá para cá 3. De Caliwood a Chonewood

31 III.A) Introdução Nesta introdução, serão apontados sucintamente os resultados centrais da pesquisa, sempre indicando os resultados obtidos em sua fase final, que não somente realizou o enfrentamento com filmes do corpus que ainda não haviam sido estudados, mas aportou nuances e precisões a todo o conjunto do estudo (sobretudo com relação à relação entre cinema e nação) e propôs o conceito de cinema geológico como categoria que mobiliza os temas transversais à pesquisa, englobando e afinando o conceito de narrativas de dissolução, tal como ele vinha sendo desenvolvido ao longo da etapa inicial do pós-doutorado. Nas origens deste trabalho, e mesmo em alguns dos artigos, pode ser notado, de maneira mais ou menos sutil, uma dicotomia na relação entre cinema e nação, pressupondo uma escolha. Deve-se ou não adotar o critério do "nacional" enquanto categoria de análise, programação e produção no cinema? Por um lado, com base em leituras indicando a crise nos nacionalismos, o critério da nacionalidade no cinema era visto como algo enclausurante e limitador. Por outro lado, as análises indicavam conflitos internos aos cinemas nacionais, vistos como territórios em conflito. Além de propor nuances para a maneira como a relação entre "cinema" e "nação" vinha sendo trabalhada na pesquisa, destaco, dentre os frutos previstos e concluídos desta última fase da pesquisa, a análise levada a cabo de Viajo porque preciso, volto porque te amo (Karim Aïnouz e Marcelo Gomes, 2009), que aponta para o primeiro estrato daquele que venho chamando de cinema geológico. Trata-se de um dos mais importantes resultados da pesquisa e ao mesmo tempo de uma nova hipótese: o cinema geológico, relacionado à longa duração e à crise dos cinemas nacionais, seria capaz de dizer um estado atual do cinema contemporâneo, uma nova forma de espectatorialidade e de compreensão do lugar do cinema e do homem no planeta7. Esta introdução retoma, de início, algumas conclusões sobre a relação entre "cinema" e "nação" ao longo da história e no momento presente, para então aportar nuances a afirmações já feitas. Em seguida, serão apresentados os principais conceitos estudados, como "cinema geológico", "narrativas de dissolução" e "longa duração". Ao final desta introdução, será exposta a linha metotodológica adotada.

7 Conforme será desenvolvido no capítulo I.

32 1. O ontem, o hoje e a palestinização do mundo: novos arranjos entre cinema e nação

Presente na mostra competitiva da última edição do Festival de Cannes, O paraíso é aqui (It Must Be Heaven, 2019), de Elia Suleiman, talvez seja o filme recente que traduza com maior agudeza as incoerências e contradições do "nacional" e da "nação" enquanto categorias operatórias para pensar o cinema contemporâneo, afirmando, ao mesmo tempo, a absoluta necessidade da existência de cinematografias nacionais. Com poucas falas, roteiro fragmentário, longos planos observacionais e enquadramentos precisos, o quarto longa-metragem do cineasta palestino nem de longe se assemelha da estrutura clássica das ficções fundacionais. Como em seus filmes anteriores, o corpo do realizador está presente na imagem. Em sequências que combinam o cotidiano mais banal a um futurismo absurdo, carregado do característico "humor triste" do cineasta (PRYSTHON & PEDROSO, 2013), Suleiman, como protagonista da narrativa, interpreta o papel de um diretor de cinema. Ao longo do filme, ele traça um percurso geográfico que parte da casa da família (o personagem, assim como o realizador, é natural de Nazaré8), passa por Paris, chega a Nova York e regressa à casa de origem. Destaco, aqui, três dos raros momentos de "diálogo" com o personagem do diretor – como em seus outros longas, ele mantém-se calado na quase totalidade do filme, expressando-se por expressões faciais e corporais, numa performance que críticos assemelham a Buster Keaton. As falas contidas nesse momento parecem sintetizar as interrogações a respeito da relação entre "cinema" e "nação" no cinema contemporâneo de modo geral, a partir da singularíssima perspectiva palestina. Na capital francesa, o diretor interpretado por Suleiman se encontra com um produtor, e este lhe diz algo como: Nós apoiamos o cinema palestino não porque dê dinheiro, não dá, mas por ideologia. No entanto não podemos financiar seu filme. Ele não é suficientemente palestino, e algumas passagens poderiam ser filmadas em qualquer lugar, até mesmo aqui!

Trata-se de evidente mise-en-abyme, repetida mais tarde, quando o projeto do cineasta não consegue despertar a atenção de produtores estadunidenses, malgrado a

8 Cidade palestina atualmente parte do Estado de Israel.

33 intermediação do mexicano Gael García Bernal (interpretando seu próprio papel): o filme em discussão é o longa que vemos na tela. Na sequência em que os dois Suleiman e García Bernal dividem o mesmo banco numa produtora de Nova York, o mexicano, numa conversa ao telefone, explica ter recebido um convite para um filme sobre a "Conquista do México" em que os espanhóis falarão em inglês – e "os indígenas falarão uma língua qualquer, eles não se importam com isso". Ele tenta explicar à produtora que Suleiman faz filmes sobre o conflito israelo-palestino de um jeito divertido, mas ela não se interessa. Mais tarde, a bordo de um táxi, ainda em Nova York, o motorista pergunta ao personagem de Suleiman de onde ele é. Em resposta, ele pronuncia suas duas únicas falas no filme: diz "Nazaré" e "Palestina". Com personagens que interpelam diretamente o silencioso personagem interpretado por Suleiman, esses três momentos saltam aos olhos (e aos ouvidos) entre os 97 minutos de O paraíso é aqui e, se decido restituí-los nesta introdução, não é com a intenção de efetuar um estudo aprofundado ou mesmo uma análise dessas sequências. Meu objetivo, ao descrever tais sequências e transcrever seus diálogos, é chamar atenção para a maneira, absolutamente contemporânea, de relacionar "cinema" e "nação". A questões presentes no projeto de pesquisa original, desenvolvidas no âmbito teórico nas páginas que se seguem, os diálogos reproduzidos acima funcionam como respostas aparentemente contraditórias. Essas contradições são no entanto capazes de dar conta da complexidade da realidade de um filme que tem, como países produtores, França, Quatar, Alemanha, Canadá, Turquia e Palestina, e, como idiomas falados, inglês, francês, árabe, espanhol e hebraico 9 – sendo emblemático do internacionalismo que caracteriza boa parte do cinema de autor contemporâneo. A aliança entre pertencimento à nação e internacionalismo é de fato um dado central à obra dos cineastas estudados nesta pesquisa – e ela ganha um destacado grau de explicitude no cinema de Suleiman. Com efeito, em uma entrevista de 2002, o realizador palestino havia mencionado que ao aproximar-se do cinema de grandes

9 Conforme a ficha técnica disponível na plataforma IMDB. Disponível em: https://www.imdb.com/title/tt8359842/?ref_=nm_ov_bio_lk2, último acesso 30 de novembro de 2019. A recorrência de variações linguísticas no interior de cada filme do corpus (As montanhas se separam tem diálogos em mandarim, cantonês e inglês; Canção para um triste mistério traz sequências em tagalog, espanhol, inglês e latim; As mil e uma noites, por sua vez, transita entre português de Portugal, português brasileiro, francês e inglês) pode ser encarada como um argumento em favor da tese de Dudley Andrew (2010), para quem o cinema viveria atualmente sua “etapa global”, se concordarmos que a expansão cinema falado foi fundamental para a “fase nacional”, em que o intercâmbio de atores de diferentes nacionalidades foi, em um primeiro momento, refreado.

34 realizadores, como Ozu, Hou Hsiao-hsien ou ainda Antonioni e Godard, impressionou-lhe não o exotismo e a diferença com relação ao que conhecia, mas a proximidade: "Quando descobri Poeira no vento [Liàn liàn fengchén, 1986], de Hou Hsiao-hsien, foi um choque. Disse a mim mesmo: 'Meu Deus, ele é como Ozu, ou como todos esses caras [Antonioni, Bresson, etc.], parece que são todos de Nazaré!" (Suleiman & Kaganski, 2002, s/p., minha tradução). Os argumentos convocados na recusa do produtor francês são emblemáticos do enclausuramento que a categoria "cinematografia nacional" pode provocar, sendo necessário, para conformar-se ao critério de nacionalidade, trazer à tona elementos folclóricos, tradicionais, linguísticos e políticos, muitas vezes desconectados de uma contemporaneidade marcarda por fluxos de informação, produtos e comportamentos que independem de fronteiras geográficas. Seria ingênuo, porém, acreditar na "baixa palestinidade" de O paraíso é aqui. Em lugar disso, o cineasta escolheu a liberdade de observar a presença de (absurdos) elementos palestinos fora do território palestino. "A Palestina não é mais um microcosmo do mundo, é o mundo que tornou-se um microcosmo da Palestina" (apud Franck-Dumas, 2019). Se tomo o filme de Suleiman como emblema de uma maneira atual e exemplar de conjugar a associação entre "cinema" e "nação", maneira esta que pode ser extrapolada para filmografias produzidas em outras latitudes, a nacionalidade do realizador e do filme não é sem importância. No caso palestino, a "ausência de referente territorial" (FOUREST, 2013, § 7) interpela de modo singular a relação entre o cinema (e as artes) e sentimento nacional, o que leva Laure Fourest a propor que a Palestina seja tomada como uma tela, uma forma de mediação: "A Palestina parece hoje ter-se tornado intangível, e a multitude de imagens que deveriam circunscrevê-la certamente traduzem o fracasso da representação justa" (FOUREST, 2013, § 7)10. A mise-en-scène desse fracasso está no cerne de O paraíso é aqui, a um só tempo projeto impossível e filme na tela. As contradições da identidade palestina – territoriais, religiosas, linguísticas – estão encarnadas na figura de Suleiman. Se o diretor do filme não consegue financiamento, é justamente por não ser

10 A representação visual da Palestina é também discutida por Godoy de Campos (2019), que traz a questão de "como se constrói a imagem de um corpo desmembrado" (p. 23) e, baseando-se em Edward Saïd, fala num cinema da "despossessão" (e não num cinema diaspórico, menos pertinente no caso palestino).

35 suficientemente representativo ou interessado nos aspectos mais tradicionais da palestinidade. Desde uma perspectiva contemporânea, as cinematografias nacionais constituem-se, como veremos, como conjuntos impossíveis, denotando antes de mais nada os pontos de vista que as formularam, pontos de vista que sempre excluem parcelas importantes da população. O discurso unificador veiculado por algumas das mais emblemáticas ficções de fundação cinematográficas, como O Nascimento de uma nação (Birth of a Nation, D. W. Griffith, 1915) e No tempo das diligências (Stagecoach, John Ford, 1939), excluem de maneira explícita camadas inteiras da população – os negros no primeiro caso, os apaches no segundo. Mas, ainda que os "cinemas de fundação nacional" pareçam hoje impossíveis na chave propositiva, os "cinemas nacionais" permanecem necessários e fundamentais, entre outras coisas para a constatação de incoerências, tensões e disputas. * Por que, então, pensamos em conjuntos de filmes como cinema nacional? Por que esse relacionamento entre nação e cinema se tornou tão amplamente e acriticamente aceito? Quais são os efeitos de tal catergorização? Colocadas por Vitali e Willemen (2013, p. 1), tais questões estão diretamente relacionadas ao cerne desta pesquisa. Em conformidade com o previsto no projeto original, foi realizado, ao longo dos últimos anos, um estudo da categoria do “nacional”, em que se questionou sua operatividade no trabalho com o cinema contemporâneo. Na primeira fase da pesquisa, foram identificados e estudados temas ligados a identidade nacional, nacionalismo e cinematografias nacionais, em paralelo à prática de análises de filmes do corpus considerados exemplares para expor o conceito de "narrativas de dissolução". Era então necessário abordar maneira como "cinema" e "nação" se articulam historicamente, visando não somente à conceituação das expressões “cinema nacional” e “cinematografia nacional”11, mas também a situar o momento presente. Os estudos realizados evidenciaram não apenas o aspecto "anti-naturalista"

11 Ainda que por vezes apareçam como sinônimos, os termos “cinema nacional” e “cinematografia nacional” têm uso diferenciado. O último aparece sobretudo no contexto francófono (cf. por exemplo DUMONT e TORTAJADA, 2007), em que há elementos comuns com a distinção entre história e historiografia. “Cinema nacional” dá mais ênfase à produção fílmica de um determinado país, enquanto “cinematografia nacional” estaria mais ligado às maneiras de atribuir coerência e sentido ao conjunto dessa produção.

36 de tal categorização, mas também a inconstância de seu vigor ao longo da história do cinema12. O projeto original supunha que os problemas que o cinema contemporâneo apresenta ao conceito de "cinema nacional" colocassem em xeque a validade e a pertinência da organização de filmes em mostras, estudos e campos disciplinares segundo critérios de nacionalidade. O relatório parcial, baseando-se nos estudos de Gellner (1993), Hobsbawn (1990), Bhabha (1998), Sommer (2004) e Anderson (2008), indicava uma atuação histórica do cinema na criação e na difusão de mitos estimuladores do sentimento nacional13: o cinema devia portanto ser compreendido como uma ferramenta que constrói sujeitos nacionais, e não apenas o inverso. Conforme sugeriam trabalhos da década de 2000, como os de Andrew (2010), Lipovetsky & Serroy (2009), entre outros, a virada para o século XXI teria enfraquecido a vocação do meio cinematográfico para a formação de comunidades políticas imaginárias. Observavam-se, no relatório parcial, indícios de um momento presente marcado por disputas. A etapa final da pesquisa, sensível a fenômenos recentes no cenário geopolítico nacional e internacional, evidenciou a necessidade de aportar nuances para o diagnóstico das atuais possibilidades de associação e dissociação dos dois termos, sem que sejam invalidadas as premissas ou conclusões preliminares deste estudo. O projeto original e o relatório parcial tinham em seu núcleo a comparação entre "narrativas de fundação", estudadas primeiramente no âmbito da literatura e depois no do cinema (SOMMER, 2004; DEL VALLE DÁVILA, 2013), com sua

12 Na primeira década do cinema, por exemplo, exibidores projetavam filmes como objetos novidadescos, pouco importando sua origem. O critério de nacionalidade de proveniência somente se torna algo importante quando, primeiramente no contexto estadunidense, empresas começaram a organizar-se para monopolizar o mercado, na tentativa, por exemplo, de combater a força de Méliès, Gaumont e Pathé. "A xenofobia foi mobilizada contra certos competidores para expulsá-los de um mercado geopoliticamente delimitado" (VITALI & WILLEMEN, 2013, p. 1, minha tradução). Vitali e Willemen observam, nas primeiras obras de historiografia do cinema, a defesa do caráter "universalista" da "linguagem cinematográfica" e, especificamente quando abordam a obra de Paul Rotha, mencionam seu esforço em fazer a história de um cinema mundial. Até a Segunda Guerra Mundial, o caráter industrial do cinema parecia prevalecer sobre seu aspecto cultural. Nas décadas de 1970 e 1980, publicações passam a forjar uma nova visão da história do cinema, seja vendo-o como prática cultural nacional (ROSEN, 1984; HIGSON, 1993), seja identificando, a posteriori, formações sociais e culturais específicas (SORLIN, 1980; FERRO, 1984; BURCH, 1979; APRÀ & PISTAGNESI, 1979; BITOMSKY, 1972). 13 Já em 1882, no contexto da corrida imperialista, o historiador francês Ernest Renan, em “O que é uma nação?”, havia observado o princípio não naturalista da nação moderna, representado na vontade de ser uma nação. Além de unificar a memória histórica, a vontade identificada por Renan também se baseia no gesto de esquecimento do passado da nação, da violência que presidiu o estabelecimento do mandato da nação (BHABHA, 1998).

37 contribuição para o fortalecimento do sentimento nacional, e "narrativas de dissolução" 14 , que indicavam tensões e incoerências do nacional dentro de determinados territórios. Tal estrutura pressupunha uma dicotomia, como se, no limite, fosse possível adotar ou refutar a categoria "cinematografia nacional" de maneira definitiva. Permito-me reproduzir aqui um trecho do projeto de pesquisa:

É notável, nos corpus tradicionalmente estudados dentro da perspectiva das cinematografias nacionais, a afirmação de um poder do cinema tanto para refletir questões de identidade nacional como para interferir na formação dessa identidade (como atestam os filmes de Griffith e as leituras que deles costumam-se fazer). O corpus da presente pesquisa contém filmes que se colocam propositalmente na contramão: eles traduzem o esfacelamento de seus estados-nação tal como eram conhecidos e a impotência de o cinema forjar uma identidade nacional coerente, afirmativa. (RAMOS MONTEIRO, 2015, p. 13).

Os autores das principais obras estudadas ao longo da pesquisa, como o chinês Jia Zhang-ke, o filipino Lav Diaz, os brasileiros Karim Aïnouz e Marcelo Gomes, o equatoriano Miguel Alvear e o português Miguel Gomes (além daqueles que se situam no horizonte da presente pesquisa, como o argelino Tariq Teguia, a brasileira Ana Vaz e o palestino Elia Suleiman), demonstram uma ligação profunda com a história, a cultura e a política de seus países de origem, sem que, para isso, precisem negar influências externas, exercitando diferentes modos de conexão para além das fronteiras nacionais. Afirmar, em bloco, que os filmes por eles realizados "traduzem o esfacelamento de seus estados-nação tal como eram conhecidos" soa, hoje, como um exagero perigoso, e talvez mais preciso seria afirmar a absoluta sintonia de cada um deles com as transformações culturais, sociais, políticas e ambientais em curso em cada um de seus contextos de origem. Com relação à "impotência de o cinema forjar uma identidade nacional coerente, afirmativa", conforme já colocado no relatório parcial, é preciso esclarecer que não se trata de um fenômeno atual, nem exatamente de uma incapacidade do cinema, mas da inexistência de identidades nacionais coerentes e unas. Nos filmes do corpus estudados, o enlace entre as esferas “doméstica” e “nacional” articula-se efetivamente em chave pessimista e, por tal razão, o conceito de “narrativas de dissolução nacional” pareceu um conceito adequado e produtivo em sua polissemia

14 Tal comparação é desenvolvida no capítulo V deste relatório.

38 intrínseca. À dissolução de casais, núcleos familiares ou felicidade individual, presente no primeiro plano da diegese dos filmes em estudo, correspondem, em primeiro lugar, fenômenos de dissolução dos pilares da coesão nacional (língua, crença nos mitos unificadores e até fronteiras geográficas), sugeridos como pano de fundo das narrativas. Nesse contexto, o western ainda é um modelo incontornável. Mas, se filmes de John Ford de fato entrelaçam destino da nação e destino individual numa chave afirmativa, sinalizando para um futuro de prosperidade, as bases do sentimento nacional colocadas não incluem toda a população, e o tempo presente exige a consideração de aspectos culturais de tais produções, tardiamente levadas em conta pelos estudos cinematográficos. Em No tempo das diligências (Stagecoach, 1939), um casal se forma ao fim do filme e há nascimento(s), dois movimentos característicos das ficções de fundação. No entanto, na diligência que é o microcosmo da nação em desenvolvimento, os Apache nunca estiveram incluídos. Na comparação, hoje, entre "narrativas de fundação" e "narrativas de dissolução", é preciso lembrar que os filmes do segundo bloco demonstram maior consciência da heterogeneidade constitutiva das nações e da impossibilidade de existência de identidades nacionais fixas, coerentes e homogêneas. Desse modo, "narrativas de fundação" e "narrativas de dissolução" não são mais vistas, hoje, como polos opostos que se excluem mutuamente. As duas categorias constituem, antes, maneiras de olhar para os filmes, dominâncias. Já havia forças de dissolução em No tempo das diligências – e nosso tempo consegue ver hoje com mais clareza dinâmicas de extermínio e apagamento de populações apaches do território estadunidense. Por outro lado, a maneira como Viajo porque preciso, volto porque te amo ressignifica o mito milenarista do sertão que vira mar – reativando passagens marcantes da história do cinema brasileiro, conforme será visto no capítulo I – permite encarar o filme também como narrativa de fundação, ainda que forças de dissolução sejam centrais no filme, inclusive na própria perspectiva de diluição daquela geografia sob as águas do São Francisco a ser desviado de sua rota natural. O relatório parcial já havia observado a dificuldade de identificar movimentos totalizantes no que diz respeito ao vigor dos "cinemas nacionais": além da já mencionada inconstância, a literatura de referência dá prova de diagnósticos contraditórios no que diz respeito a quando e como os "cinemas nacionais" vigoram. Interessa menos verificar a validade da afirmação (de fato essencialista) de Frodon

39 (1998), para quem o cinema teria uma relação com o sentimento nacional mais intensa do que as outras artes pela aptidão em registrar a imagem em movimento do real, do que atestar que “cinema” e “nação” são de fato duas formas ligadas aos desenvolvimentos da era industrial que florescem pelo mundo a partir do século XIX e ao longo do século seguinte (FRODON, 1998). Se o cinema não nasce nacional (VITALI & WILLEMEN, 2013), o sonoro (e os filmes falados em idiomas distintos) de fato fortalece a relação entre cinema e nação. Andrew (2010), relembra as consequências devastadoras dos nacionalismos para ver no pós-Segunda Guerra Mundial o fim da etapa "nacional" do cinema. Mas é justo na segunda metade do século XX que despontam iniciativas de valorização de cinematografias nacionais na América Latina, na Ásia e em países árabes, como formas de resistência diante do cinema de Hollywood (HENNEBELLE, 1978). Difícil, portanto, estabelecer parâmetros fixos e válidos para o mundo todo de quando surgiriam ou perderiam validade o conceito de cinemas nacionais. Mais frutuoso revelou-se ser o deslocamento do debate para interrogar da existência de determinadas “cinematografias nacionais” enquanto conjuntos historicamente organizados. Conforme proposto por Rosen, as cinematografias nacionais dependem da presença de “princípios de coerência entre um grande número de filmes”, ligados à produção e/ou à recepção desses filmes “dentro das fronteiras legais de determinado estado-nação” (ROSEN, 2006, p. 18, minha tradução). A nacionalidade passa a ser vista, nessas análises de grupos de filmes, como “um sintoma intertextual”, num movimento influenciado pelas teorias psicanalíticas: “A coerência intertextual é conectada com uma coerência sócio-política e/ou sócio- cultural, implicitamente ou explicitamente atribuídas à nação” (ROSEN, 2006, p. 18, minha tradução) 15 . Partindo daí, tornou-se possível pensar nos limites das cinematografias nacionais, evidenciando tensões internas a determinadas cinematografias nacionais, apagamentos e exclusões de filmes, cineastas, populações e regiões de certas histórias do cinema16. Havia, no projeto original e no relatório parcial, o diagnóstico de fortalecimento de cinemas regionais e transnacionais a escancarar limites e contradições das narrativas historiográficas sobre "cinemas

15 A proposição de Rosen, em um texto publicado originalmente na década de 1980, é corroborada, por um lado, pelos trabalhos de Kracauer (1988), publicado originalmente em 1947, e Burch (1979), pioneiros na atribuição de coerência a um extenso conjunto de filmes produzidos em determinado país (a Alemanha no primeiro caso, o Japão no segundo) e período. 16 Tais observações já constavam do relatório parcial, de 2017, nas primeiras versões dos capítulos V e VI examinam casos práticos em que isso ocorre.

40 nacionais" e "cinematografias nacionais". Com base em estudos pós-coloniais e decoloniais, parecia que no século XXI os princípios de coerência de que fala Rosen se inviabilizariam. Como não poderia deixar de ser, em se tratando de cinema contemporâneo, eventos ocorridos no intervalo de tempo desta pesquisa (2015-2019) modificaram certas premissas e trouxeram à tona a necessidade de nuances sobre as conclusões preliminares. Se o relatório parcial indicava que o conjunto das produções audiovisuais realizadas e/ou distribuídas dentro das fronteiras dos Estados-Nação tornou-se um território de disputa entre classes, raças, gêneros e regiões, na direção do fenômeno sugerido por Homi K. Bhabha, o atual embate entre o governo federal brasileiro e as instâncias de fomento ao cinema nacional evidencia essa disputa. De fato, como dizia Bhabha, minorias excluídas dos discursos nacionalistas não se reconhecem nas produções simbólicas nacionais, conquistam acesso aos meios de produção audiovisual e produzem narrativas próprias, não-totalizantes. Seja no âmbito de um filme em particular, seja no confronto produzido entre determinado título e o conjunto da produção audiovisual nacional, ganham visibilidade, ainda que tardiamente, violências que presidiram a fundação da nação e que, de acordo com Renan (1992), precisaram ser “esquecidas” ou “escondidas” para que se forjasse o sentimento nacional. Em termos concretos, pensava-se por exemplo em como os equipamentos digitais favoreceram a produção de filmes em zonas consideradas periféricas culturalmente, em países variados, como na China, no Equador e no Brasil 17 . A preponderância de filmes do eixo Rio-São Paulo nas narrativas historiográficas e na quantidade de filmes produzidos parecia estar sendo relativizada nas últimas décadas, tanto por trabalhos acadêmicos quanto em função de políticas de fomento descentralizantes. Se tal diagnóstico não perdeu sua validade, as afirmações hoje de enfraquecimento das categorias "cinema nacional" e "cinematografia nacional" ecoam políticas estatais de desmonte e controle da produção cinematográfica brasileira e de desvalorização do cinema nacional, sobretudo no caso brasileiro. Por outro lado, a

17 Completada apenas agora, no capítulo I deste relatório, a análise do longa Viajo porque preciso, volto porque te amo aborda, entre outras coisas, a história dos entrelaçamentos entre o cinema brasileiro e o Sertão. Já presentes no relatório anterior, o capítulo V observa as tensões presentes quando se aborda os cinemas chineses – que precisam ser referidos no plural, tendo em vista a multiplicidade de realidades e narrativas que encerram, e o capítulo VI menciona a emergência dos filmes da Costa e do Chone, distantes da capital, Quito, tradicionalmente centro da cultura cinematográfica nacional.

41 própria força dos ataques ao cinema nacional perpetuados por instâncias governamentais hoje em dia dá prova da potência da disputa e dos incômodos gerados pela descentralização da produção. Tal perspectiva não poderia ter sido forjada antes. Como, então, responder às questões que iniciam esta introdução? Pode o cinema do século XXI ser pensado a partir de categorias nacionais? Qual a operatividade hoje da categoria "nacional" nos estudos cinematográficos e nas mostras de cinema? Para Vitali & Willemen, o cinema ainda pode sim ser pensado numa relação de pertencimento a configurações nacionais: "os filmes (...) são grupos de formas culturais específicas historicamente, e suas modulações semânticas são orquestradas e disputadas pelas forças em jogo em territórios geográficos determinados" (2013, p. 7, minha tradução). Os autores situam, assim, no interior das cinematografias nacionais a negociação permanente entre instâncias estatais e forças econômicas, entre posições ideológicas e sociais dominantes e grupos minoritários. Mas, se já esteve entre os objetivos desta pesquisa responder "sim" ou "não" à questão da pertinência do critério do "nacional" para os estudos do cinema contemporâneo, o presente relatório opta por outro caminho. Cada capítulo traz, a seu modo, situações de conflito no âmbito de determinados cinemas nacionais, análises de filmes que escapam dos limites internos a certas cinematografias ou ainda comparações entre filmes realizados contextos culturais (e nacionais) distintos. Essa escolha não deve ser interpretada, porém, como um descarte massivo dos critérios de "nação" e "nacionalismo". Trata-se, aqui, de aportar nuances para um problema complexo e que, dependendo do modo de abordagem, pode levar a conclusões equivocadas. Revelou-se impossível a distribuição da questão em duas colunas, como se de um lado pudéssemos colocar a crença na operacionalidade do nacional como categoria para pensar o cinema, a validade das narrativas de fundação e o cinema do século XX, de outro, a refutação das categorias "cinema nacional" e "cinematografia nacional", junto com a emergência das narrativas de dissolução e o século XXI. Os trânsitos entre as duas colunas são incessantes, e os termos não cessam de interpenetrar-se. Ao mesmo tempo em que se furta à escolha entre cinema nacional e cinema não-nacional, este relatório propõe uma categoria que poderia ser assimilada à dos cinemas pós-nacionais: a do cinema geológico. O interesse dessa nova categoria desloca-se, assim, da relação entre "cinema" e "nação", recaindo sobre a evolução do planeta e as possibilidades do cinema em dar a sentir aspectos radicais da geologia

42 terrestre, a começar pela extremada temporalidade geológica. Vejamos, na seção seguinte desta introdução, como isso se apresenta.

2. Longa duração e cinema geológico

Observada, no projeto original, como característica de alguns dos objetos do corpus, a longa duração de planos e de filmes revelou-se, já no relatório parcial, uma das questões centrais à pesquisa, apresentando desdobramentos metodológicos e conceituais importantes. Por um lado, como já sinalizado no relatório anterior, os filmes de longa duração questionam, por si só, a ideia costumeira que se tem da expressão "cinema nacional" ou "cinematografia nacional". De fato, quando trabalhamos com filmes longos ou extremadamente longos, vemos dissolverem-se os limites da duração da sessão convencional consagrada pelo cinema clássico, no auge dos cinemas nacionais e das narrativas de fundação, entre os anos 1930 à segunda metade do século XX. A longa duração pode ser entendida de diferentes maneiras. Há, por um lado, a duração concreta de planos e de filmes, que ultrapassam parâmetros costumeiros ou convencionados, tendo uma série de implicações. Uma delas é aproximar a sensibilidade espectatorial do que seria um "tempo geológico", de difícil apreensão por sua escala incompatível com a vida humana e mesmo com as narrativas historiográficas (CHAKRABARTY, 2018)18. Além disso, a longa duração apresenta desafios metodológicos consequentes para a prática da análise de filmes, como será visto no capítulo IV, e contribui para uma perturbação na relação costumeira entre figura e fundo, favorecendo a visibilidade do segundo termo, habitualmente negligenciado pelos estudos cinematográficos (BONAMY, 2013), tema que será trabalhado no capítulo II, em relação com o cinema geológico, em que fenômenos meteorológicos ganham maior visibilidade imagética (Figs. 1, 2 e 3)19.

18 Este ponto é desenvolvido no capítulo I deste relatório, que apresenta as bases teórico-conceituais do cinema geológico. 19 Da chuva que inunda o quadro no curta O dia antes do fim (Ang araw bago ang wakas, 2016), de Lav Diaz (em especial no minuto 11) e em Florentina Hubaldo, CTE (em especial na terceira parte, entre os minutos 46 e 52), à umidade que ganha visibilidade no cinema de Jia Zhang-ke, seja na atmosfera (Still Life, 2006), seja nas paredes (Amor até as cinzas/Jiang hu er nü, 2018), etc.

43

(Figs. 1, 2 e 3) A visibilidade dos fenômenos meteorológicos no cinema de Jia Zhang-ke: acima, a umidade em Still Life (2006); abaixo, a neve de As montanhas se separam

Na última parte de O paraíso é aqui, já de volta à casa original, vê-se um carro que percorre, ao longe, uma estrada sinuosa que corta a colina. Impossível não pensar, num recuo no tempo, em configurações próximas presentes no cinema de Abbas Kiarostami com sua adoração por carros em movimento, filmados de dentro e de fora, desde E a vida continua (Zendegi va digar hich, 1992), e pelas marcas, na paisagem, das intervenções humanas na forma de caminhos ou estradas20 (Fig. 4). Ou então no topógrafo de Inland (Gabbla, 2008), de Tariq Teguia (Fig. 5), ou no homem que atravessa o canal em Florentina Hubaldo, CTE (2012), de Lav Diaz. No filme de Suleiman, vemos o carro deslocar-se pela estrada no horizonte, sem termos certeza de que o automóvel é conduzido pelo protagonista nem sabermos os pontos de origem e destino de seu trajeto. Sem função na fragmentária narrativa de O paraíso é aqui, não oferecendo explicações nem agindo na esgarçada rede de causalidades da trama, a imagem do carro que avança lentamente pela estrada exerce, como outros planos do filme, oportunidade para que o espectador faça o exercício da duração. Diversas perguntas podem vir à mente: O que há do outro lado da colina? Estamos em território

20 De que o zigue-zague na montanha de Onde fica a casa de meu amigo? (Khane-ye doust kodjast?, 1987), reproduzido nos dois títulos subsequentes da trilogia do terremoto, é o marco fundador, conforme observo em minha tese de doutorado (RAMOS MONTEIRO, 2014).

44 israelense? Onde fica a fronteira? Qual é o trajeto do condutor? Elas jamais serão respondidas no filme, embora a montagem permita supor que ele sai de sua casa e vai até um bar em Jerusalém onde, na cena seguinte, é visto ao lado de um amigo que lhe fala, em hebraico, algo como "vocês palestinos são estranhos: os povos do mundo todo bebem para esquecer, e vocês bebem para lembrar".

(Figs. 4 e 5) Imagens de Inland (Gabbla, 2008), de Teguia, e Onde fica a casa de meu amigo? (Khane- ye doust kodjast?), de Kiarostami: olhar descentrado e intervenção humana na paisagem.

Aqui, o plano da estrada em O paraíso é aqui é evocado por funcionar, na duração, como convite ao exercício de descentramento do olhar, algo que o cineasta coloca em prática de filme a filme, com seus enquadramentos precisos, o uso recorrente do plano fixo, a duração expandida dos planos e a estrutura narrativa. O próprio Suleiman já afirmou, numa entrevista de 2002, à época do lançamento de Intervenção divina (Yadon ilaheyya), o desejo de estimular o olhar centrífugo do espectador, algo que pode ser compreendido tanto no sentido literal-visual quanto num sentido mais alegórico e político:

O que acontece quando se constróem imagens que criticam as representações lineares ou acadêmicas? Cria-se então imagens que são acumulações de coisas, que não têm centro, que estão abertas democraticamente para o espectador. Este último pode lê-las horizontalmente, verticalmente, concentrar-se sobre a porção direita ou esquerda do quadro, etc. Esse tipo de imagem quebra as representações habituais e dominantes (Suleiman & Kaganski, 2002, s./p., minha tradução).

Neste relatório, as implicações da longa duração são abordadas mais centralmente nos capítulos II, III e IV, que se desbruçam respectivamente sobre a visibilidade do fundo em decorrência da duração expandida e sua relação com o cinema geológico; sobre a relação entre marginalidade estética e marginalidade cultural; e sobre a análise de filmes de longa duração, propondo uma reflexão metodológica.

45 O capítulo II, intitulado "Longa duração e visibilidade do ínfimo", explora o exercício de decentramento do olhar proporcionado pela rara temporalidade de Florentina Hubaldo, CTE (2012), de Lav Diaz, e em especial de três planos de configuração similar. No quadro, a paisagem é cindida por uma estrada, um canal e uma rua, por onde se movem diferentes personagens da trama. A duração faz com que o olhar do espectador seja desviado do centro para as margens, do primeiro plano para o fundo cinematográfico (BONAMY, 2013) e sua atenção deixa de concentrar-se sobre o drama ou a intriga para distrair-se com a composição e os micro-fenômenos que povoam o quadro. Sob o título "Ainda a longa duração: desejo de margem", o capítulo III investiga a articulação entre marginalidade estética e marginalidade cultural envolvidas nos filmes de longa duração de Lav Diaz, interrogando em especial Canção para um triste mistério (2016), um filme que problematiza a separação entre cinema independente e cinema comercial nas Filipinas, com sua duração expandida e a presença de grandes estrelas do cinema nacional no elenco, e questiona o lugar do espectador. O capítulo IV, "Longa duração e análise fílmica. De como cindir o tempo", propõe uma revisão das práticas de análise de filmes num cenário atual marcado pela disponibilidade (quase) excessiva das imagens, em tudo diferente das condições em que os primeiros "analistas de filmes" formularam os métodos da "disciplina". A discussão se centra sobre o filme As mil e uma noites (2015), de Miguel Gomes, composto de três partes, num total de quase seis horas. Como, na análise, reproduzir a sensação que a longa duração provoca no espectador? Como citar, num texto ou numa aula, trechos de um filme cujo cerne repousa na duração inabitual? Antes de concluir esta seção, permito abrir um parêntese para abordar uma outra acepção da longa duração, presente no cinema do realizador chinês Jia Zhang- ke. Jia se vale de planos longos dando visibilidade ao fundo cinematográfico e a fenômenos meteorológicos, que filma em continuidade e explora a sensação do tempo lento a escoar-se, de modo que seus filmes traduzem muitas das questões abordadas nos capítulos III, IV e V. No entanto, em sua filmografia, a longa duração tem ainda um outro significado: ela designa a maneira como seus filmes se ligam uns aos outros, perfazendo uma narrativa imensa e interminável e desenhando um percurso através das décadas e das regiões da China. Reconstituir essa grande narrativa das transformações da China, da passagem para o pós-maoísmo aos dias atuais era de fato

46 uma das pretensões não concluídas desta pesquisa. Optou-se por estudar um de seus filmes mais recentes, As montanhas se separam (Shan he gu ren 2015), cerne do capítulo V, evidentemente relacionando-o à filmografia anterior do cineasta. Em 2018, o lançamento de Amor até as cinzas (Jiang hu er nü), que retoma parte dos filmes anteriores de Jia Zhang-ke, em especial Still Life, realizado doze anos antes, veio tornar a questão ainda mais rica e complexa, conforme expomos aqui de maneira sintética. Em trabalhos anteriores, observei a visibilidade da atmosfera úmida da região das Três Gargantas em Still Life (2006), de Jia Zhang-ke, e notei, na estranha desconexão entre figura e fundo presente no filme, uma forma visual da catástrofe iminente. A paisagem de Fengjie, prestes a ser inundada em função da construção da barragem e da usina hidrelétrica das Três Gargantas, aparece na tela já escondida por uma espessa neblina, de modo a criar uma maneira complexa de mostrar e esconder a geografia de um lugar que está preparando seu próprio desapareciemento sob a água. É como se um véu opaco se impusesse entre as margens do Yangtzé e os personagens, entre figura e fundo. Ver uma paisagem em vias de desaparecimento soa como um paradoxo. Na realidade, influências da pintura imperial chinesa e da poesia tradicional podem explicar essa dialética peculiar, caracterizada pela pequenês da figura humana em contraste com a imensidão da natureza, e pela visibilidade aguda das nuvens, um tema explorado em profundidade por Hubert Damisch (1972). A presença das nuvens na poesia e na pintura chinesas relacionadas à região das Três Gargantas (por exemplo nos versos de Li Bai, Du Fu e Wang Wei) ajuda a explicar o meio nebuloso que separa e une, no filme, figuras humanas e paisagem. Uma estranha desconexão é produzida visualmente, destacando a massa de ar que separa a paisagem das figuras humanas que a contemplam de tempos em tempos e consequentemente reforçando a vulnerabilidade dos locais em que são vistos os personagens. Em praticamente todos os filmes de Jia Zhang-ke, a difícil relação entre homem e mundo é marcada pela imagem de diversos tipos de tecidos que separam os personagens dos espaços por onde transitam. Isso se dá, também, em seu filme mais recente, Amor até as cinzas. Nele, Jia retorna às Três Gargantas oferecendo um novo passado e um novo futuro para a história de uma das protagonistas, Tao. Sobre esse retorno ao lugar, o cineasta afirma:

47 "Quando por acaso cheguei na região, na época em que a havia o grande canteiro de obras da barragem, que influenciou a vida de milhões de pessoas, rapidamente uma ferida se abriu em mim e ela nunca cicatrizará por completo. Mesmo com esse novo filme essa ferida continua doendo. É como se esse lugar simbolizasse a maneira como as coisas ocorrem na China, qual uma maquete, representando a interação entre os aspectos econômicos, políticos, e a vida dos indivíduos (...). Quando voltei às Três Gargantas depois de doze anos, fiquei frente ao vestígio do que simbolizava a modernidade. Mas um vestígio dissimulado, apagado, esquecido, no sentido de que todos os conflitos – as pessoas destruídas, deslocadas – tudo havia escorrido com as águas. Não há mais vestígio, são vestígios invisíveis. Isso despertou em mim o desejo de relatar essas transformações de uma outra maneira." (Jia Zhan-ke/Elisabeth Franck- Dumas, 2019).

A atriz envelheceu, mas o filme instaura um raccord perfeito entre 2006 e 2018 (quem precisa de cirurgia plástica quando existem efeitos especiais?). A temporalidade vertiginosa do filme se situaria num futuro do pretérito impossível, em que as marcas nas rochas indicam sempre uma inundação no porvir. O momento em que Tao e Bin se reencontram em Amor até as cinzas constitui um reencontro em tudo distinto do de Still Life. Eles vão para um quarto de hotel onde, num plano de 10 minutos, sem cortes, conversam sobre o tempo que passaram separados. A câmera acompanha os deslocamentos dos personagens pelo huis-clos. Vemos e ouvimos a chuva incessante do lado de fora. Nas paredes, observamos imagens das Três Gargantas em distintos momentos – sempre antes da inundação (Figs. 6, 9 e 10). Na parede, marcas de mofo (Figs. 7-8) funcionam como lembranças da umidade que invadia o quadro quando a inundação ainda estava no horizonte. As manchas esverdeadas no fundo fazem figura, fazendo referência a um só tempo à força da natureza e à força de uma modernidade que tenta domesticá-la.

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(Figs. 6-10) Imagens do plano sequência de 10 minutos de Amor até as cinzas: Tao e Bin, sentados um de frente para o outro, tendo na parede de fundo uma imagem das Três Gargantas antes da inundação; Bin de costas, frente à janela, e, na parede, marcas de mofo (detalhe da ampliação ao lado); quando Tao se levanta, nova vista sobre imagem das Três Gargantas na parede do quarto; nova imagem das Três Gargantas, agora em um sintomático calendário.

A política da longa duração posta em prática por Jia Zhang-ke não reside apenas na escolha de filmar esse reencontro – que reafirma a separação – em um plano sequência de 10 minutos, o mais longo do filme. Mais importante é a insistência

49 com que o cineasta filma uma mesma região através das décadas, acompanhando o envelhecimento dos atores, o desgaste da natureza, a transformação das condições de vida. Mais significativo, ainda, é a ficção que transborda de um filme a outro, como as águas de uma represa cheia demais. Através da maneira como a umidade invade a tela em Still Life e Amor até as cinzas, somos incitados a vislumbrar uma "inversão irônica e mortífera, sempre contraditória" muito própria a nossa época: o que nos cerca ganha centralidade e os humanos, tornam-se acessórios. Como colocam Danowski e Viveiros de Castro, pensando a transformação dos humanos em força geológica, paga com a intrusão de Gaia no mundo humano, na crise do meio ambiente característica do Antropoceno, o ser humano, habitualmente "cercado" pela natureza, passa a olhar para a paisagem de fora para dentro e aquilo que nos cerca torna-se objeto de nosso olhar: "l'environné devient environnant et réciproquement: crise, en effet, de l'environnement" (Danowski & Viveiros de Castro, 2014, p. 228-229)21. A visibilidade acrescida que o fundo cinematográfico adquire com a duração expandida nos conduz de volta aos primórdios do cinema. É célebre a anedota sobre a relação dos primeiros espectadores dos irmãos Lumière, mais espantados com o movimento das folhas no fundo do que com a performance do bebê no primeiro plano, em Le déjeuner de bébé (1895). Para além desse encantamento inicial, no entanto, o "arrière-plan" foi frequentemente negligenciado por espectadores e estudiosos do cinema. No pós-guerra, os textos de Bazin marcam um momento em que os olhares se voltam ao fundo da imagem cinematográfica – que, para ele, é profondeur de champ. Para o teórico francês, a riqueza do cinema estava na relação entre o primeiro plano e o pano de fundo e o verdadeiro fond cinématographique de que nos fala Bonamy é real, filmado ao mesmo tempo que a performance dos atores. Em função da continuidade, elemento central dos planos sequência, os filmes do neorrealismo reverenciados por Bazin e comentado por Deleuze, marcam um momento de virada nas relações entre figura e fundo – em que o fundo deixa de ser o lugar da transformação para tornar-se um lugar em transformação.

21 Em francês, o termo para meio ambiente, environnement, significa literalmente aquilo que nos cerca e tem o mesmo radical de environner, rodear, cercar.

50 3. Da perspectiva teórico-metodológica múltipla

O relatório parcial expunha a perspectiva teórica múltipla, característica da metodologia de trabalho desenvolvida por esta pesquisa, pressupondo o domínio de campos teóricos distintos. O estudo das teorias do Antropoceno, na confluência entre Geologia, História, Biologia e Antropologia, e dos autores que relacionam Antropoceno e Estudo das Mídias e do cinema, veio somar-se à tripla problemática então evocada – um primeiro nível, voltado para o estudo de um fenômeno histórico e cultural; um segundo, focado em uma abordagem estética e no pensamento do estágio atual do cinema contemporâneo; e, do entrecruzamento entre os dois primeiros níveis, necessidade de questionar cânones historiográficos do cinema e estabelecer uma constelação de obras periféricas22. Com efeito, o entrecruzamento entre uma perspectiva histórico-cultural e uma perspectiva estética-intermidiática posto em prática na presente pesquisa é constitutivo de algumas publicações que pensam o cinema e as artes no mundo contemporâneo. Parece-me fundamental ressaltar aqui a interrogação sobre os “limiares” estéticos e culturais, eixo central do colóquio “Puissances esthétiques des lisières culturelles”, organizado por Dario Marchiori e Nedjma Nassaoui, da Universidade Lyon II, em uma tentativa de aproximar os estudos estéticos dos estudos culturais para entender a trajetória de obras e realizadores marginais e/ou marginalizados, e o organizado por Dario Marchiori, com publicação prevista para o primeiro semestre de 2020. Outro exemplo inspirador é o volume organizado por Lucia Nagib e Anne Jerslev: Impure cinema. Intermedial and Intercultural Approaches to Film. Como o título da coletânea publicada em 2013 revela, tratava-se conjugar a perspectiva

22 Ao mencionar a condição “periférica” das cinematografias que interessam a esta pesquisa, o projeto original apresentava uma ressalva sobre os problemas envolvidos na expressão “periférica”, que denota uma visão eurocêntrica do cinema, lembrando que nosso recorte seguiria o caminho aberto por Shohat e Stam (2006), que discutem a questão, propondo um estudo em bloco de filmografias “não- canônicas”, interessados nomeadamente no cinema latino-americano, do Oriente Médio e da África. Ao longo da pesquisa, a reflexão sobre as noções de “margem” e “marginalidade” revelaram-se particularmente frutíferas, notadamente a partir das proposições de Derrida sobre as margens da filosofia (1972), em um capítulo em que as margens das páginas são ocupadas com um texto escrito por Michel Leiris sob a forma de ornamento. O exercício do olhar a que o filósofo nos convida em tal capítulo acabou por influenciar nossa análise da filmografia de Lav Diaz, não apenas porque o cinema filipino pode ser considerado “marginal” em relação às centralidades do cinema mundial e o cinema de Diaz, marginal em relação ao cinema filipino, mas sobretudo porque, em seus filmes, as margens da imagem ganham surpreendente visibilidade, convidando o espectador a estender o olhar para fora dos limites da tela. Cf., a esse respeito, o capítulo 1 deste relatório.

51 intermidiática à intercultural, ou seja, de combinar os aportes das teorias que pensam o cinema contemporâneo em sua relação com outras artes e linguagens midiáticas, às contribuições dos estudos culturais. Tal conjugação, como apontam as editoras em sua introdução, já estaria sugerida no artigo do crítico francês André Bazin que serve de inspiração a todo o volume: “Pour un cinéma impure. Défense de l’adaptation”. Se o objetivo de Bazin era pensar a adaptação cinematográfica de obras literárias, sua argumentação, em defesa da legitimidade de produções mais sintonizadas ao gosto popular, dá ensejo a uma perspectiva culturalista subliminar. A partir da leitura desse texto de Bazin e dos comentários contidos na coletânea organizada por Nagib e Jerslev, pude entender melhor como se articulam, na presente pesquisa, duas forças complementares, algo que já estava indicado no título do projeto: “Narrativas de dissolução. Problemas contemporâneos para o conceito de cinematografia nacional”. Esta pesquisa dedica-se, de uma parte, a entender um fenômeno histórico- cultural, o sentimento de desagregação nacional de várias origens encontra no cinema forma de expressão; de oura parte, interessa-se por um fenômeno estético, presente na fatura de obras fílmicas contemporâneas e notável a partir do modo de espectatorialidade que eles engajam. Cada uma dessas visadas pode ser desdobrada. De um lado, para entender os “problemas contemporâneos para o conceito de cinematografia nacional” é preciso entender a evolução do pensamento sobre cinemas e cinematografias nacionais ao longo do tempo, partindo de experiências pioneiras, como as de Kracauer (1988) e Burch (1979), estudadas por Rosen (2006), e indo até propostas mais recentes, como as de Lopes (2010), por uma visada atual mais "cosmopolita" do cinema, e Andrew (2010), que vê limites temporais para a ideia de "cinema nacional", para ele uma fase relativamente curta da arte cinematográfica, que nasce internacional e vive atualmente uma etapa globalizada. Perspectivas mais recentes questionam a organização dos estudos cinematográficos. No limite, interrogam-se as possibilidades de um discurso nacional unificador no campo do cinema hoje, em que sobressaem movimentos e grupos de produção regionais ou transnacionais, e em que a própria noção de nação e nacionalismo encontra-se sob questionamento. De outro lado, a expressão “narrativas de dissolução”, forjada como contraponto à expressão “ficções de fundação”, indica a necessidade de um estudo voltado à fatura de alguns filmes contemporâneos pontuais, em que diferentes tipos de

52 dissolução se apresentam: a dissolução de uma identidade cultural nacional, em primeiro lugar; a dissolução de uma forma cinematográfica estabilizada, em segundo; e finalmente a dissolução da imagem referencial de matriz fotográfica em meio às tecnologias digitais de gravação e exibição. Embora esta pesquisa não seja a única a fazer tal tipo de entrecruzamento, trata-se de uma abordagem rara, já que em geral os pesquisadores se situam ou em um campo, ou noutro. Tal singularidade implica evidentemente em um esforço teórico amplificado, como fica claro nas páginas que se seguem.

53 III.B) Capítulo I Cinema geológico, primeiros estratos: filmar à beira do abismo.

Rapidamente difundido a partir das proposições do cientista químico Paul J. Crutzen, o termo "Antropoceno" foi cunhado para designar a época geológica atual, na qual a ação humana desempenha papel central – e destruidor – no meio ambiente do planeta. De acordo com uma das hipóteses mais aceitas, nossa era atual, iniciada já na passagem do século XVIII para o XIX, após um breve Holoceno, se destacaria por aumento exponencial da população humana, exploração excessiva dos recursos naturais, alta concentração de gases de efeito estufa, aquecimento global. Não há, hoje, como pensar em narrativas de dissolução e cinema contemporâneo sem um questionamento sobre a dissolução do próprio planeta que leve em conta tais pesquisas. Degelo, inundação, erosão, corrosão são alguns dos fenômenos que marcam a era antropocênica – e as imagens do cinema das últimas décadas. Em diálogo com as literaturas ligadas ao Antropoceno e com estéticas que vêm se impondo sob os qualificativos de inumanas, anti-antropocênicas ou anti- antropocêntricas, este capítulo interroga uma hipotética passagem do cinema antropocêntrico ao cinema anti-antropocêntrico (ou pós-antropocênico), habitando um problemático lugar intermediário entre o planeta e o olhar humano, submisso a toda sorte de tensões. Nessa turbulenta faixa de transição, destacam-se linhas de força em tensão, como relações conflituosas entre figura e fundo; vertigens provocada por temporalidades pouco habituais ou incompatíveis; experiências sensórias incitadas por fenômenos meteorológicos impressos na matéria fílmica; choque de escala entre a medida humana e as dimensões da natureza. Antes de iniciar a análise de como esses contrastes se apresentam em cada obra, é preciso entender o contexto epistemológico em que esses problemas – e essas formas audiovisuais – surgem. Num momento em que evidências científicas indicam a certeza de um futuro catastrófico para a humanidade, duas questões precisam ser pensadas de pronto. Como a arte – e em particular o cinema – reage à perspectiva da finitude total? E de que maneira a consciência do porvir catastrófico transforma o olhar do espectador de obras audiovisuais? A certeza sobre o fim do mundo é provavelmente maior hoje do que jamais foi – e a responsabilidade humana nele nunca esteve tão evidente quanto agora. Terrivelmente desesperadoras e vagas (aprende-se na escola ou com bons

54 editores a fragilidade de locuções como "antes do que nunca", "cada vez mais"), as afirmações acima não traduzem o desejo que preside a escrita destas páginas. Desprovidas de qualquer intenção de engrossar o coro do discurso apocalíptico, este trabalho oferece à leitura análises detidas de parte da produção simbólica que acompanha as reviravoltas epistemológicas trazidas à tona no ensejo das discussões sobre o Antropoceno. Com relação à primeira pergunta acima, que fique claro: não há aqui resposta definitiva ou global. E, por "reações" à perspectiva da finitude, entendam-se tanto as repercussões catastrofistas apresentadas em obras mais ou menos recentes quanto as proposições que buscam alternativas ao fim e, numa postura de engajamento, procuram conscientizar a população sobre comportamentos auto-predatórios que podem ser evitados. No que toca à segunda interrogação, a hipótese de a conscientização da agência (agency) humana no processo de destruição do planeta transformar a maneira de ver filmes e outros objetos audiovisuais funciona, aqui, como incitação para o gesto especulativo próprio à porção interpretativa dos estudos cinematográficos. Sem pretender forjar uma resposta categórica para algo ainda absolutamente móvel, este capítulo tem como cerne a proposta do conceito de cinema geológico. Mais do que designar um conjunto de filmes ou um parti-pris estético, a expressão cinema geológico é entendida antes de mais nada como uma maneira de relacionar cinema e planeta. Trata-se, no fundo, de uma modalidade do olhar. Como o cinema vê o mundo que o cerca? Como se dá, nos filmes, a inscrição da figura humana no quadro? Como imagens audiovisuais associam personagens e paisagens, figura e fundo? O cinema é capaz de dar a ver exemplos da ação humana sobre o planeta? Ele pode contribuir para o exercício da sensibilidade para fenômenos geológicos, a priori incompatíveis com a capacidade perceptiva humana? O capítulo se inicia com um breve percurso pelas teorias do Antropoceno, passando por autores que se dedicam em conjugar Antropoceno e Imagem, para então propor as bases epistêmicas do cinema geológico. Há, em seguida, duas seções analíticas: uma dedicada ao filme de Georges Méliès, A Conquista do polo (1911) e outra a Viajo porque preciso, volto porque te amo (2009), de Karim Aïnouz e Marcelo Gomes. Estruturar o capítulo com base nesses dois filmes não significa afirmar uma evolução. A pretensão tampouco é de criar uma comparação em bloco, como se só houvesse uma maneira de conjugar o cinema geológico nas primeiras décadas do

55 século XX – e outra nas primeiras décadas do século XXI23. De um filme a outro, porém, vemos uma mudança nas possibilidades de olhar. Se ambos têm o deslocamento como motivo estruturante e a exploração da natureza como ação que organiza a narrativa, A Conquista do polo inscreve o homem como figura central à imagem e à diegese, em contraste com o protagonista sem corpo do longa brasileiro, definido por sua voz e pela maneira como se relaciona com o ambiente ao redor. A narrativa de Méliès dá pistas sobre as possibilidades do cinema geológico no início do século 20. Seria um erro opor, naquele contexto, interesse geológico e protagonismo humano. Diferente da crítica à ação devastadora do homem sobre a natureza, pilar da literatura do Antropoceno, não há, no filme, qualquer desconfiança com relação ao progresso técnico e científico. Se tem relação com os indomáveis fenômenos meteorológicos em curso, a figura ameaçadora do Gigante das Neves criada pelo Mago do Cinema alia traços humanos e engenhoso funcionamento mecânico. Contrapõe-se, no agenciamento visual do filme, ao diminuto globo terrestre, imóvel e discreto, sobre o qual nenhuma menção é feita no roteiro. A desproporção entre Homem e planeta constitutiva de A Conquista do polo inverte-se no cinema geológico do sécuo XXI, que questiona a agência humana sobre o planeta e tenta observar o comportamento das forças da natureza na ausência do homem (inclusive para imaginar a Terra pós-humana). Hoje, alguns dos mais inventivos títulos do cinema de autor problematizam narrativamente e visualmente a relação do homem com o ambiente, apresentando figuras humanas diminutas (ou mesmo ausentes), imersas em paisagens misteriosas, indóceis, opacas24. É o caso de filmes do chinês Jia Zhang-ke, como Still Life (San xia hao ren, 2006), As montanhas se separam (Shan he gu ren, 2015) e Amor até as cinzas (Jiang hu er nü, 2018)25, do trabalho do argelino Tariq Teguia, realizador de Inland (Gabbla, 2008), e de praticamente todo o cinema de Lav Diaz, a exemplo de

23 Autora fundamental para os estudos do cinema no tempo do Antropoceno, Jennifer Fay dedica um capítulo importante de seu Inhospitable World (2018) a Buster Keaton, observando, em Marinheiro por encomenda (Steamboat Bill, Jr., 1928), a fabricação, controlada, de uma meteorologia devastadora, com efeitos destruidores inclusive para os cenários do filme. 24 Há evidentemente exemplos dessa inversão anteriores, e a problemática relação do homem com seu entorno está entre os pilares dos mais importantes filmes do Neorrealismo Italiano. Desde a década de 1980, o cinema de Abbas Kiarostami já vinha problematizando, tanto na diegese quanto visualmente, a relação entre personagens e paisagens, a partir do lapidar Onde fica a casa do meu amigo? (Khane-ye doust kodjast?, 1987). 25 O cinema de Jia Zhang-ke é abordado no capítulo V deste relatório, em que esses filmes são analisados mais de perto, sobretudo As montanhas se separam.

56 Florentina Hubaldo, CTE (2012)26. Nesta seção, o foco recai sobre o longa brasileiro Viajo porque preciso, volto porque te amo (2009), de Karim Aïnouz e Marcelo Gomes. Os filmes citados mobilizam, de distintos modos, questões que são recorrentes nas discussões sobre o Antropoceno, que poderíamos aqui resumir nesses seis itens: * o diagnóstico de uma extinção extremamente rápida e a consequente sensação de aceleração vertiginosa do tempo, característica do estado avançado do capitalismo (MCNEILL, 2014; FAY, 2018); * a dificuldade epistemológica em fazer coincidir duas escalas temporais a priori incompatíveis: a histórica e a geológica (CHAKRABARTY, 2018); * como consequência do efeito estufa e da exploração excessiva dos recursos naturais do planeta, o aquecimento global sugere uma meteorologia que se torna gradativamente mais hostil à vida; * a inversão da configuração habitual entre homem e ambiente, figura e fundo, em que pese a observação de Debora Danowski e Eduardo Viveiros de Castro: o ambiente, algo que normalmente nos rodeia ("l'environnant"), torna-se "environné" (passa a figurar no centro de nosso olhar e de nossas preocupações) (DANOWSKI & VIVEIROS DE CASTRO, 2014, p. 228-229).

O cinema geológico seria assim aquele capaz, em primeiro lugar, de oferecer um exercício de olhar que se desdobra em durações longas ou extremamente longas, incitando o espectador a uma nova calibragem de sua atenção habitual para um estado diferente do frenesi contemporâneo e da disponibilidade permanente, descritos por Jonathan Crary (2014) e Chakrabarty (2018), entre outros autores, e desenvolvidos no capítulo II. É na experiência da duração longa e extremamente longa que surgem as possibilidades fundamentais do cinema geológico. Seguindo a defesa encampada por Fernand Braudel (1992) de uma história atenta aos fenômenos de longa duração, ele mesmo interessado em disciplinas como a geologia e a geografia, o cinema geológico indicaria um desejo de sintonizar a temporalidade das montanhas, dos cursos d'água, das movimentações tectônicas, dos processos erosivos. Cada um a seu modo, os filmes em estudo dão ênfase a aspectos visuais, sensoriais e científicos da atmosfera,

26 Dois capítulos deste relatório se debruçam sobre a obra do realizador filipino, dedicados ao estudo especialmente de Florentina Hubaldo, CTE (capítulo II) e Canção para um triste mistério (Hele sa hiwagang hapis, 2012) (capítulo III).

57 da litosfera e da hidrosfera terrestres, seja através de estratégias estéticas de tornar visíveis elementos em geral imperceptíveis ao olho humano (da transparência do ar e de fenômenos a ele ligados, como o vento, à lentidão de processos erosivos), seja através do investimento na sensorialidade táctil de fenômenos meteorológicos que podem ser tidos como obstáculos à imagem cinematográfica (nevascas, chuva, seca). Desse modo, colocam preocupações meteorológicas no centro das preocupações narrativas e/ou visuais. As análises reunidas sob a efigie do cinema geológico se concentram portanto sobre relações problemáticas entre homem e ambiente. O estranhamento provocado por agenciamentos pouco usuais entre figura e fundo – ou entre personagem e paisagem – serve de fio condutor tanto para a pesquisa teórica quanto para o gesto analítico empreendido. Impossível não relacionar essa estranheza com o questionamento, no seio das discussões sobre o Antropoceno, da diferenciação, fundadora da modernidade, entre natureza e cultura, objeto de estudo para Descola e Latour, entre outros. A intersecção aqui proposta entre a literatura do Antropoceno e os estudos cinematográficos não é inédita, e insere-se numa rede que vem sendo tramada de maneira frenética nos últimos anos, sobretudo no mundo anglófono, envolvendo os campos da comunicação, da estética, da teoria do cinema e da filosofia. Jennifer Fay (2018) propõe a existência de uma relação muito genuína entre cinema e Antropoceno. Ao associar o "Umheimlich" freudiano à percepção, própria à atual era geológica, de a Terra continuar a mesma embora agora desprovida de seu aspecto familiar e hospitaleiro, Fay recorda a rejeição de Gorky aos filmes-Lumière exibidos em 1896 ("não é a vida, mas a sombra da vida; não é o movimento, mas a sombra não sonora do movimento") para, numa provocadora tautologia, afirmar que:

"O Antropoceno é para a ciência natural o que o cinema, especialmente o primeiro cinema, tem sido para a natureza humana. Ele torna o mundo familiar estranho para nós ao transcrever as dimensionalidades da experiência para o celuloide, transformando e transportando temporalmente os humanos e o mundo natural para uma imagem não- hospitaleira"27 (FAY, 2018, p. 3, minha tradução).

27 No original: "The Anthropocene is to natural science what cinema, especially early cinema, has been to human culture. It makes the familiar world strange to us by transcribing the dimensionalities of experience into celluloid, transforming and temporally transporting humans and the natural world into an unhomely image".

58 Em seu livro, a autora se interessa pelos mundos artificiais que vêm sendo criados pelos filmes, dentro e fora dos estúdios, fabricando de maneira artificiosa fenômenos meteorológicos inclementes e ambientes letais, seja para o deleite dos espectadores, seja para propósitos militares ou científicos, chegando a afirmar que, para além do "estranho familiar" de matriz freudiana que o cinema cria, haveria nele algo de mais francamente "antropogênico":

"O cinema não se parece com o Antropoceno somente no aspecto estranho- familiar de seus efeitos estéticos, mas também, na medida em que o cinema tem encorajado a produção de mundos artificiais e simulado climas inteiramente antropogênicos, ele é a prática estética do Antropoceno. Ou, de maneira mais enfática, o cinema nos ajuda a ver e a fazer a experiência do Antropoceno enquanto prática estética" 28 (Fay, 2018, p. 4, minha tradução).

Desde outras perspectivas, Jussi Parika e Nadia Bozak também sublinham as conexões entre cinema e Antropoceno. A primeira lembra a materialidade mineral dos suportes audiovisuais, tanto em película quanto em formatos digitais, para por em destaque a contribuição da sétima arte na criação de resíduos tóxicos, lixo eletrônico e desgaste dos recursos naturais. Na mesma direção, Bozak vê a imagem fotográfica, tanto fixa quanto em movimento, como um agente de modulação da paisagem, e isso seja em termos simbólicos – a paisagem como categoria estética –, seja enquanto realidade física, porque produz interferências no meio ambiente que representa. Refutar tais afirmações não é nem possível nem desejável. A abordagem aqui proposta, no entanto, adota um outro eixo. Os filmes estudados não foram escolhidos por um suposto alinhamento com uma hipotética "estética do Antropoceno", nem, na direção oposta, por configurarem exemplos do que seria a anti-estética do Antropoceno, ou de a estética anti-antropocênica. Falar de cinema geológico significa colocar em destaque tanto elementos visualmente e materialmente presentes em um conjunto de filmes quanto uma maneira de olhar para tais elementos. A que se refere, exatamente, a expressão "cinema geológico"? Um filme pode ser geológico de muitas modalidades. O interesse pela geologia terrestre e por fenômenos geológicos está presente em uma vasta coleção de filmes, desde o cinema dos primeiros tempos. Podemos pensar, por exemplo, em Méliès e em sua técnica de

28 No original: "Thus, not only is cinema like the Anthropocene in its uncanny aesthetic effects, but also, insofar as cinema has encouraged the production of artificial worlds and simulated, wholly anthropogenic weather, it is the aesthetic practice of the Anthropocene. Or, to put it more forcefully, cinema helps us to see and experience the Anthropocene as an aesthetic practice".

59 animação dos fundos, simulando erupções vulcânicos, explorando a calota polar ou o fundo do mar. Jean Epstein, que descreve a vertigem de adentrar a cratera de um vulcão e, através das potencialidades do olho-máquina, consegue forjar a visibilidade de uma inversão na linha do tempo através da imagem de ondas que se quebram contra os rochedos29.

(Figs. 11-13) No alto, à esquerda, imagem de Le tempestaire (Jean Epstein, 1947), em que a ação das ondas sobre as falésias é vista no sentido normal e no sentido invertido; em seguida, dois momentos de As montanhas se separam (Jia Zhang-ke, 2015): a visão do conjunto australiano dos Doze Apóstolos no ipad de Dollar e o sobrevoo do relevo, já com algumas falésias desaparecidas, após um processo erosivo.

Aqui, sem perder de vista a perspectiva histórica, interessa sobretudo a maneira como o cinema contemporâneo vem problematizando a inserção da figura humana na paisagem, numa negação do paradigma instaurado por narrativas fundacionais, sendo os westerns sua encarnação mais modelar. Em filmes de Jia Zhang-ke, Tariq Teguia ou Lav Diaz, bem como em Viajo porque preciso, volto porque te amo, dinâmicas envolvendo a geosfera, a litosfera e a atmosfera, situadas no fundo da imagem, disputam a atenção do espectador com tramas narrativas

29 Fiz, em minha tese de doutorado, um levantamento não exaustivo desses encontros entre cinema e terremoto e entre cinema e erupção vulcânica. No vasto repertório de tentativas mais ou menos bem sucedidas de registrar a imagem em movimento de terremotos, com estratégias documentais e ficcionais, talvez o encontro mais marcante entre cinema e esse fenômeno sísmico resida na obra de Abbas Kiarostami.

60 protagonizadas por personagens, inscritos enquanto figuras no primeiro plano. Em que medida, então, faz sentido falar de uma "estética do Antropoceno"? Quais seriam suas características? Tais questões têm mobilizado persquisadores desde uma considerável variedade de abordagens (MIRZOEFF, 2014; HIRD, 2017; ZYLINSKA, 2014; etc.). Se algo há em comum entre publicações tão variadas, é talvez o interesse compartilhado por narrativas apocalípticas mais ou menos ficcionais. As duas últimas décadas testemunharam o crescimento do repertório de imagens e imaginações catastróficas que se somaram a uma tradição tão antiga quanto a própria humanidade (o discurso científico que especula sobre a finitude não está completamente dissociado das mais antigas mitologias escatológicas). Em um gesto teórico que associa conquista do planeta, autoridade colonial, extração ilimitada de recursos naturais e produção de detritos, Hird (2017) descreve a estética do Antropoceno como emanação da empresa capitalista, partícipe das tentativas de submissão da natureza ao capital30. A estética do Antropoceno teria assim uma retórica própria, que o autor chama de "retórica do declínio", praticada em narrativas apocalípticas, também cinematográficas – de 2012 (Roland Emmerich, 2009) a Melancholia (Lars von Trier, 2011), de 4.44 Last Day on Earth (Abel Ferrara, 2011) ao Cavalo de Turim (A turinói ló, Béla Tarr, 2011)31, percebidos como um tipo de face oculta das narrativas que certas culturas forjam sobre sua própria modernização (HEISE, 2010, p. 52; ZYLINKSA, 2014, p. 105-106). Desde uma perspectiva herdeira da visada de Flusser (2000), Zylinska (2014) propõe a ideia de poéticas alternativas e Hird (2017) a de anti-estéticas do Antropoceno. Trata-se de gestos que fazem parte de um esforço comum para desmontar as armadilhas tecnológicas previstas pelo capitalismo. A questão que se coloca, no fundo, é a seguinte: como fazer arte e produzir arquivos do presente para o futuro sem gerar detritos ou produzir objetos para consumo imediato? Nesse sentido, sobretudo no contexto anglófono, autores têm falado em uma realização fílmica geológica, ou "geological filmmaking". O trabalho de Litvintseva (2018), tributário do estudo de Ellsworth & Kruse (2013), situa-se na ponta desse movimento. A autora se

30 Aux yeux de Hird, même certaines initiatives écologiques doivent être envisagées comme faisant partie d'un "impérialisme vert" (Hird, 2017, p. 255-256). A autora coloca que "o Antropoceno, enquanto período biológico e geológico, requer a tarefa impossível de visualizar a própria globalidade (da geosfera à estratosfera)" e "uma estética do Antropoceno" só poderia completar-se por meio de uma visualização seletiva, o que o Iluminismo fornece" (2017, p. 256). 31 J'ai pu présenter une étude à propos des "familles nucléaires" au centre de certains de ces "récits apocalyptiques" lors de la Journée d'études Le nucléaire en mots et en images (Paris, 2019).

61 interessa por obras que, para além de uma concepção temática do geológico, "ativam formatos, métodos, modelos, ideias e uma experiência estética que buscam reequilibrar a relação entre 'o humano' e 'o geológico'" (ELLSWORTH & KRUSE, 2013, p. 9). Em sua prática artística, Sasha Litvintseva dialoga com esse pensamento, investindo na materialidade do amianto e no fenômeno da aparição de "sinkholes", ambos potentes em salientar a multiplicidade da vocação da disciplina geológica, interessada tanto por matérias quanto por processos (sedimentação, erosão, etc.), o que faz dela um instrumento particularmente potente na tentativa de apreensão do tempo. Litvintseva coloca assim em evidência a materialidade geológica própria ao cinema; a composição físico-química comum às camadas terrestres e aos filmes, seja em suporte fílmico ou digital. Toda imagem seria, portanto, geológica. Como, seguindo seu pensamento, negar que toda atividade cinematográfica contribui para o desgaste do planeta? A imagem audiovisual, em primeiro lugar por sua materialidade, não pode ser dissociada do sistema industrial capitalista que arruína o planeta (BOZAK, 2012; PARIKKA, 2015). Se, de um ponto de vista mais metafórico, pode ser considerada geológica a qualidade da imagem fotográfica (seja ela estática ou em movimento) que remodela a paisagem enquanto categoria estética, Nadia Bozak (2012, p. 13) enfatiza a produção imagética em seu impacto sobre a "realidade física", já que contribui "para o declínio do meio ambiente", dependente que é de recursos naturais. Na mesma direção, Jussi Parikka (2015) propõe uma geologia da mídia, por sua materialidade mineral ou metálica, por sua produção de resíduos tóxicos e lixo eletrônico. Minha proposta inscreve-se no prolongamento do que coloca Litvintseva, sobre as elevadas possibilidades que as imagens em movimento oferecem no que diz respeito à lida com "os aspectos imperceptíveis embora altamente materiais do Antropoceno" (2018, p. 109). Escolhi, porém, recuar na historiografia e nas teorias do cinema para estabelecer as bases conceituais do cinema geológico. Por um lado, temos André Bazin, que por sua formação32 sempre se mostrou especialmente senível aos tempos geológicos e às durações longas. Por outro lado, no campo da história, Fernand Braudel, também influenciado pela disciplina geologia, tornou-se célebre por sua

32 Sur cet aspect, voir les travaux de Ludovic Cortade (2017).

62 defea da abertura da historiografia às temporalidades distendidas, escapando à história eventual. A perspectiva aqui adotada é também herdeira da história das formas fílmicas. Assim, a constatação da recorrência de fenômenos geológicos entre os temas centrais do cinema contemporâneo33 não faz com que este estudo se restrinja ao nível temático. Observa-se, aqui, a maneira como certo cinema contemporâneo favorece uma percepção geológica – principalmente a duração dos fenômenos geológicos, a priori imperceptíveis porque incompatíveis com os parâmetros da história e da vida humana. A longa duração de planos e de filmes propicia, como veremos nos capítulos a seguir, uma atenção especial para o fundo da imagem; configurações pouco usuais do binômio fundo/figura ocasionam, por sua vez, uma retomada de interesse pelo fundo, geralmente reduzido, na tradição dos estudos cinematográficos, a pano de fundo para a ação, o drama, os personagens34. São diferentes convites para uma percepção geológica, atenta ao conflito entre escalas temporais e espaciais a priori incompatíveis35; à visibilidade aumentada de fenômenos meteorológicos tidos como invisíveis ou pouco visíveis; à opacidade de fundos normalmente pensados como transparentes36. Se uma estética antropocênica sugere a centralidade do homem, sua recusa não é sem relação com a retomada de interesse por formas não humanas de olhar (como as câmeras postas em prática pelo Harvard's Sensory Ethnography Lab em filmes como Leviathan ou People's Park)37 e obras protagonizadas por formas de vida não-humanas, em sintonia com o movimento de "descolonização da natureza" de que

33 Na última edição do Festival de Cannes, a geologia ofereceu a premissa para dois títulos apocalípticos importantes. Não somente The Halt (Ang Hupa, 2019), de Lav Diaz, em que uma erupção vulcânica condena à noite eterna as Filipinas, mas também The Dead Don't Die (2019), de Jim Jarmusch, em que a extração de petróleo nos polos desestabiliza o eixo da Terra, de modo a alterar a passagem do tempo na cidade hipotética de Centerville, espécie de microcosmo dos Estados Unidos sob Trump, em que os dias são terrivelmente longos e proliferam populações de zumbis. Bacurau (2019), de Kleber Mendonça e Juliano Dornelles, em que a cidade título desaparece misteriosamente da cartografia planetária, também pode ser visto nesse conjunto. 34 Os estudos do fundo cinematográfico são raros, e o de Robert Bonamy constitui uma referência incontornável, ao lado de trabalhos oriundos do campo da pintura (Arheim, Nancy). A questão, ao final, é a seguinte: sob quais condições pode o fundo vir à superfície? Tal agenciamento, ao conferir visibilidade acrescida ao fundo, indicaria, como um sintoma, o estágio atual da relação entre ser humano e planeta? Evito a propósito a expressão "inscrição do homem na paisagem", que implicaria em problematizar o conceito de paisagem enquanto algo construído pelo homem e a seu serviço. 35 Tal conflito de escalas está na base do pensamento do Antropoceno, de acordo com Chakrabarty (2018). 36 Em minha tese de doutorado, dedicada em parte a Still Life de Jia Zhang-ke, interroguei a qualidade opaca do céu e das atmosferas filmadas pelo cineasta chinês, baseando-me nas teorias da arte e nas obras filosóficas sobre a atmosfera e as nuvens (Aristote, Goethe, Damisch, etc.). 37 Ver Balsom, 2017.

63 fala Demos (2016)38. Philippe Descola (2018) enfatiza a distinção entre antropisação, efeito da ação do homem nos ecossistemas, e Antropoceno, "efeito sistêmico mais global, para que as alterações de ecossistemas locais contribuem sem dúvida em alguma medida, mas cujos resultados gerais são uma transformação cumulativa e em vias de aceleração para o funcionamento climático da Terra". Descola inclui-se, assim, entre os que problematizam a nomenclatura da nova era geológica proposta por Crutzen: ao enfatizar, pelo radical anthropo, a centralidade da ação humana nos processos devastadores, cria-se a ilusão de que toda a humanidade é igualmente responsável pela destruição. A nomenclatura favoreceria, assim, o apagamento da injusta desproporção entre os principais causadores de fenômenos como aquecimento global, erosão da biodiversidade, acidificação dos oceanos e poluição (os mais ricos, os grandes capitalistas) e as populações mais vulneráveis a eles (que estão em países mais pobres e em zonas menos industrializadas). Menos hipócrita, sem dúvida, é a escolha do termo "Capitaloceno" (BEAU & LARRÈRE, 2018), ou de outras variáveis39. Este estudo do cinema geológico tem como foco situações de calibragem de atenção do espectador que oferecem oportunidades privilegiadas para a visibilidade de fenômenos temporais, atmosféricos, geográficos e meteorológicos normalmente invisíveis (ou quase). As obras analisadas sob a chave do cinema geológico não chegam a integrar-se inteiramente na estética do antropoceno – nem exibem, em seu conteúdo programático, uma plataforma ativista que sugira sua negação. Tampouco se trata de filmes emancipados por completo de personagens humanos ou de olhares humanos (eles existem evidentemente e são estudados por uma série de autores). Nos filmes contemporâneos estudados nas páginas que se seguem, neste e nos próximos capítulos, não somente transformações geológicas ganham visibilidade, mas sobretudo o espectador é convidado a calibrar sua atenção na direção da percepção de

38 Parece-me pertinente retomar aqui algumas ressalvas com relação à parcialidade da humanidade que lideraria o movimento conduzindo ao Antropoceno: toda a humanidade não colabora igualmente para o processo, e existe uma distribuição injusta entre os que causam os danos e os que sofrem as consequências mais imediatas. Vozes cada vez mais numerosas criticam o aspecto aparentemente apolítico dos fenômenos em curso (aquecimento global, acidificação dos oceanos, redução da biodiversidade, poluição das águas, do ar e do solo) e atentam para a necessidade de uma recusa mais frontal do consumo exacerbado que está nos fundamentos do capitalismo, sobretudo em seu estágio avançado. Essa recusa passa pela problematização do que seria uma estética do Antropoceno – e pela proposição de alternativas a ela. 39 Zylinska (2014) fala de "fim dos homens" (end of men), observando a centralidade do homem nas ações devastadoras que caracterizam o Antropoceno.

64 fenômenos considerados invisíveis – porque lentos ou transparentes demais, ou, dito de outra forma, situados em uma escala temporal e espacial incompatível com a percepção humana ordinária. A dificuldade em imaginar a catástrofe seria agravada por essa incompatibilidade de escalas e pelo caráter "hiperobjetivo" das mudanças climáticas e dos materiais radioativos. Para Danowski e Viveiros de Castro, os "hiper-objetos" de que fala Morton "desafiariam nossa percepção do tempo e do espaço porque, entre outras características, persistem ou produzem efeitos cuja duração excede as escalas da vida humana – individual, coletiva e, possivelmente, da espécie Homo sapiens" (DANOWSKI & VIVEIROS DE CASTRO, 2014, p. 231; MORTON, 2010; 2013). Sem pretenderem forjar qualquer tipo de visualidade objetiva para tais fenômenos, alguns filmes, ao colocarem em prática diferentes estéticas e políticas sustentadas pela longa duração, convidam o espectador a exercitar um olhar e uma forma de atenção diferentes do habitual. Desse modo, oferecem um acréscimo de visibilidade para fenômenos que ocorrem não no primeiro plano, mas no fundo das imagens, o fundo cinematográfico. Nas análises que se seguem, demonstrarei como o tensionamento da relação costumeira entre fundo e figura incita a vislumbrar uma "inversão irônica e mortífera, sempre contraditória", e que é muito própria a esta nossa época: o que nos cerca ganha centralidade e os humanos, qualidade acessória. Como colocam Danowski e Viveiros de Castro, pensando a transformação dos humanos em força geológica, paga com a intrusão de Gaia no mundo humano, "l'environné devient environnant et réciproquement: crise, en effet, de l'environnement" (2014, p. 228-229).

2. A VIA DA TERRA?

"VIVA A VIA DE TERRA". A frase serve de título ao cartaz que duas mulheres trazem à cena, estampada acima do desenho em que se veem um carro, um trem e um trenó. Com seus rostos encobertos pelo painel, elas entram no espaço pelo fundo do quadro, onde desaparecerão em poucos segundos, posicionando-o, enquanto isso, de frente para a câmera, em um dos limites do salão ladeado por aberturas em arco. O foco da cena recai sobre "sábios" de distintas partes do mundo que apresentarão ali suas estratégias para a "conquista" do Polo Norte. Eles se revezam

65 numa tribuna elevada que ocupa a porção direita da imagem. À esquerda, num discreto primeiro plano, vemos, ao rês do chão, um pequeno e imóvel globo terrestre.

(Fig. 14) Primeiro "tableau" de A Conquista do Polo (1911), de Georges Méliès.

Esse é o arranjo visual do tableau inicial de A Conquista do Polo, de 1911 (Fig. 14), mais longo filme de Georges Méliès, com 650 metros (ou cerca de 30 minutos). Dez anos depois de Viagem à Lua (Le voyage dans la Lune, 1902), a nova incursão do Mago do Cinema na literatura de Júlio Verne lembra, no tom fantástico, expedições anteriores do cineasta. Diferencia-se, contudo, num ponto importante, que Jacques Malthête resume do seguinte modo: "pela primeira vez, ele [Méliès] não se antecipa ao acontecimento" (Malthête, 1996). De fato, em seu lançamento, os polos norte e sul já haviam sido atingidos (respectivamente, em 1909, pelo norte-americano Robert E. Peary 40 , e em 1911, pelo norueguês Roald Amundsen, ambos em expedições com trenós puxados por cães).

40 O pioneirismo de Peary foi logo contestado. Teria sido ele, seu assistente, Mattheu Henson, ou ainda Frederick Cook, no ano anterior, o primeiro homem a pisar no Polo Norte? As expedições iniciais ao Polo Norte, em trenós puxados por cachorros, foram alvo de controvérsia e hoje afirma-se que o primeiro acesso efetivo ao local tenha sido dado por balão dirigível, em 1926.

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(Fig. 15) Material divulgado pela Pathécolor em 1912 (acervo da BNF, Paris; fotografia de autoria da pesquisadora).

De acordo com a publicidade da Pathécolor, divulgada em 1912 (Fig. 15), "essa viagem extraordinária supera nos imprevistos, no fantástico e no maravilhoso as mais engenhosas imaginações do precursor Júlio Verne". O material promocional informa, em tom cômico, quais são os "sábios do mundo inteiro" presentes no congresso: Run Over, da Inglaterra, Bluff Allo Bill, dos Estados Unidos, Cerveza, da Espanha, Tchin-Tchin, da China, Macaroni, da Itália, e Maboul, da França. Mais interessante, aqui, do que apontar a parcialidade da estereotipada seleção que representa o "mundo inteiro", é entender, no filme e fora dele, as implicações da afirmação que surge em seguida no prospecto: por "seu contingente de ideias geniais", o time será capaz de apresentar "aparelhos de engrenagens delicadas e complicadas", fornecendo assim "maravilhosas concepções do cérebro humano". Trata-se de uma afirmação inesperada, que confunde o leitor com relação ao que serviria de "norte" à expedição. Qual fronteira do conhecimento se busca ultrapassar? O que, de fato, se pretende? Descobrir a constituição física do planeta ou da anatomia humana? O título do filme, a inspiração no romance de Verne e a comprovada aptidão de Méliès em recriar, em estúdio, os mais potentes fenômenos naturais sugerem que o

67 repertório de maravilhas a se descortinarem na tela terá como centro aspectos físicos da Terra. Em seus filmes anteriores, como Viagem à Lua (1902) e As Vinte Mil Léguas Submarinas (1907), Méliès já havia fascinado os espectadores com as paisagens fantásticas que confeccionava, numa mistura singular de habilidade e imaginação diante de territórios desconhecidos. Em Erupção vulcânica na Martinica (1902) e As quatrocentas faces do diabo (1906), sua técnica de animação de fundos buscara reconstituir a combinação entre fascínio e medo provocada por aquelas misteriosas forças da natureza. Condizente com essa trajetória, o novo filme investiria na reprodução em estúdio da exótica natureza do extremo austral do planeta. O material publicado pela distribuidora, assim como a disposição dos elementos no quadro inaugural, indicam, por sua vez, que tanto ou mais do que a Terra em sua geografia e geologia fascinantes, interessam ao filme as capacidades do cérebro humano – ou, na verdade, os poderes do homem, já que a narrativa não compreende ações femininas. Na sequência inaugural, os corpos que seguram o cartaz só são reconhecidos como de mulheres ao darem as costas para o espectador, deslocando-se rumo ao fora de campo (o derrière curvilíneo deixa pouco espaço a dúvidas). Mais tarde, como veremos, aquelas que tentam participar da expedição serão barradas. Contraponto absoluto ao frenesi das figuras masculinas que gesticulam amplamente sobre a tribuna, a Terra desempenha papel coadjuvante, já indicado pela presença sutil e incômoda do imóvel globo terrestre nesse primeiro tableau. O filme de Méliès irá narrar a aventura capitaneada pelo francês Maboul, autor do aeroplano que aterrissará no extremo austral. No segundo dos 34 tableaux que o compõem, uma delegação de sufragistas entra no congresso, e seu lema também está transcrito no cartaz que carregam: "As mulheres no Pólo". Horrorizados, os sábios as expulsam. Méliès não escondia sua má vontade diante da luta pelo voto feminino, defendido na França desde 1876, data de fundação da sociedade Le droit des femmes, e só obtido em 1944. A expedição, no filme, é formada exclusivamente por homens brancos. Voltando ao cartaz exibido no tableau inicial (Fig. 14), seu título, grafado em caixa alta, suscita certa ambiguidade, sobretudo se levarmos em conta que o filme está apenas começando. Poderia ser uma chamada propícia para espectadores prestes a assistir à viagem de exploradores genuinamente interessados em conhecer os limites da enigmática esfera? Ou o que está implicado no cartaz é a defesa de máquinas que

68 poderão levar ao polo por via terrestre (e não por mar ou pelo ar)? Nesse caso, por que não se optou por escrever "via terrestre" (em francês, voie terrestre) no lugar de "via da terra" (voie de terre)? Por outro lado, se o interesse é mesmo pelo planeta, como explicar estranha a disposição do globo-terrestre, a um só tempo escondido e exibido num primeiro plano surpreendentemente discreto? Um espírito absolutamente moderno embala o contexto da realização do filme, o que favorece a primeira hipótese, mais sintonizada com o interesse pelo gênio humano na aventura. Aos olhos de um anacrônico espectador do século 21, porém, é difícil não ver na imagem a celebração da "via da Terra", forçosamente com conotações pós-antropocênicas – ou mesmo pós-humanas. Como não pensar em uma defesa do planeta liberado do protagonismo do homem, nas antípodas do antropocentrismo característico do início de século 20? Por hora, felizmente, não é preciso escolher dentre as diversas possibilidades interpretativas. Muito pelo contrário: a ideia, neste início de viagem, é fazer durar a ambiguidade do cartaz inaugural. Ele nos reconvoca a pensar sobre as teorias do Antropoceno. Como se sabe, nos últimos anos, o debate em torno da proposta apresentada pelo químico Paul Crutzen e pelo biólogo Eugene F. Stoermer, a saber, de chamar de "Antropoceno" o período geológico pós-Holoceno que teria sido iniciado com a Revolução Industrial41, tem sido acompanhado da proliferação de discussões, discursos e narrativas em torno da finitude da espécie humana e da Terra. Do campo original da geologia e das ciências naturais, a discussão sobre este pós-Holoceno, caracterizado pela maneira como a ação humana vem transformando o planeta, expandiu-se para os mais variados domínios: filosofia, antropologia, estética, estudos culturais, estudos ambientais, estudos feministas... As páginas a seguir dedicam-se a pensar as possibilidades de um cinema geológico, a partir do prisma das repercussões da discussão sobre o Antropoceno em uma gama de estudos que entrelaçam filosofia, estética, cinema e feminismo. Não é surpreendente a concepção antropocêntrica e masculina do planeta que A Conquista do Polo demonstra (ZYLINSKA, 2014). Nele, mesmo as forças naturais têm fisionomia humana – e, com o perdão da insistência, masculina. O centro da tela estará quase sempre ocupado por homens e máquinas por eles inventadas; à natureza,

41 Em discussões posteriores, uma série de outros marcos para o início do Antropoceno foram propostos, como os primeiros testes nucleares, em 1945, o surgimento da agricultura, etc. Ainda não há consenso com relação a esse marco temporal.

69 ou cabem papeis assessórios (ela é coadjuvante ou cenário) ou a função de força antagonista a ser combatida e vencida. Fenômenos "naturais", de ordem astrológica e meteorológica, constituem antes de mais nada riscos à expedição de Maboul. Assim, no 21º tableau, quando ele passa pelas constelações e visita os signos do zodíaco, a tela se divide entre o primeiro plano, em que os sábios examinam ao telescópio um cometa, e o pano de fundo, em que ocorre uma explosão estrelar, fazendo com que, no quadro seguinte, o espaço da aeronave seja visto sob agitação. Logo depois, numa sequência de rara beleza, uma terrível tempestade começa e raios cortam o céu, numa proeza de animação dos fundos. O aparelho de Maboul não chega a ser ameaçado de fato, e continua firme até aterrissar em terras árticas, no quadro de número 25. É então que surge perigo maior: o Gigante das Neves. A narrativa das peripécias enfrentadas por Méliès para construí- lo ecoa o percurso do próprio Maboul no filme42. Na descrição contida no roteiro, o Gigante das Neves seria um "velho gigantesco, com longas mãos descarnadas, de barba branca e cachimbo na boca". O monstro foi produzido na propriedade que o cineasta mantinha em Montreuil, na Grande Paris. No jardim, uma estrutura ligada a um pórtico e duas pontes seria usada para manobrar o colossal boneco. De acordo com o projeto original, ele deveria comportar um busto articulado de 5,2 metros, disposto sobre um pedestal de 2 metros. Situados na primeira ponte do pórtico, quatro maquinistas deveriam movimentar os braços do gigante por meios de cabos de aço. Mas, de acordo com Malthête, a realidade do boneco foi outra. Ele calcula, com base nas medidas do próprio Méliès, que atua no filme, 2,5 metros para o busto, e observa que mesmo o plano de filmagem exterior foi deixado de lado. Preferiu-se o estúdio A, facilitando o desaparecimento do gigante em sua fossa. "Provavelmente limitado em suas ambições pela medíocre quantia de dinheiro fornecida pela Pathé para a realização do filme, Méliès precisou reduzir a grandiosidade do projeto", diz ele. É provável que essa adaptação tenha contribuído para a tímida acolhida recebida pelo filme, integrante da porção menos exitosa de sua carreira.

42 Malthête Jacques. Quand Georges Méliès bravait le Géant des neiges. In: 1895, revue d'histoire du cinéma, numéro horssérie, 1996. Exotica. L'attraction des lointains. pp. 66-77; M. Noverre (le Nouvel Art cinématographique, Brest, 2e série, n° 3, juillet 1929,.

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(Fig. 16) O Gigante das Neves, visto em A Conquista do Polo (1911), de Georges Méliès.

Na diegese, os integrantes da expedição de Maboul notam uma fumaça, visível no fundo do quadro, e caminham em sua direção. Algo que se parecia com blocos de gelo se afasta, dando a ver o chapéu do monstro. Suas mãos surgem das profundezas e seu corpo se ergue, revelando olhos que piscam e uma boca sorridente a segurar o cachimbo, fonte da fumaça. Um dos homens de Maboul atira no gigante, mas só conseguem atingir seu cachimbo, que cai. Lançam então bolas de neve, sem efeito. Os braços do boneco seguram os exploradores e um deles é engolido pelo gigante. A salvação vem com tiros de canhão: logo todos se soltam de suas garras, e mesmo aquele que fora engolido reaparece na boca do monstro, que retorna às profundezas de onde havia surgido. Um novo cartaz introduz então a presença de um problema mais complicado: a agulha magnética que marca o eixo do polo. Assim que ficam as bandeiras nacionais ao lado da estrutura giratória em forma de flecha, são dragados pela "obscura força da natureza" que leva a todos para o fundo de um lago gelado. A perda é apenas momentânea, pois surge no horizonte um dirigível, que fará o resgate. Depois de um corte, vemos, pela primeira vez, a tela inteiramente ocupada fauna do círculo austral. Não há nenhum humano à vista, e focas e pinguins em abundante número movimentam-se, felizes.

71 3. Dinâmicas da litosfera e o sertão que vira mar. Nesta seção, proponho uma análise de Viajo porque preciso, volto porque te amo com o objetivo de investir na experiência da vertigem que o filme propõe, sobretudo através do choque entre as escalas temporais nele mobilizadas, mas também pelo exercício de percepção de certo dinamismo da geologia, potencializada pela duração relativamente estendida de seus planos e pela sensação difusa de lentidão que envolve o filme em sua integralidade. A "via da Terra" passa a significar, aqui, a escolha de um olhar que se desloca da figura humana que se agita freneticamente no primeiro plano para a presença do planeta que se faz menos sutil, ainda que na periferia do quadro. Pensar o Antropoceno significa enfrentar uma vertigem epistemológica. Os períodos geológicos se contam em dezenas de milhares de anos e portanto, por definição, a percepção de uma mudança de era geológica escaparia à percepção dos humanos – no caso, agentes e vítimas da mudança. As tentativas de encontrar um marco de início para o Antropoceno – do início da agricultura, há cerca de 8 mil anos, aos últimos cinquenta anos de consumo excessivo, passando pelo surgimento do capitalismo ou pela Revolução Industrial – lidam, por sua vez, com temporalidades históricas. Observando que a fronteira estratigráfica separando o Antropoceno da era que o precede, o Holoceno, tem sido relacionada a eventos da história dos humanos, Zalasiewicz (2017) aponta para o contraste entre essas duas escalas temporais, a dos períodos geológicos e a da história do mundo (apud CHAKRABARTY, 2018, p. 6). Trata-se, na verdade, de um contraste entre duas modalidades de pensamento: a centrada no planeta e a centrada no homem. Conforme coloca Chakrabarty:

"O Anthropoceno exige que nós pensemos em duas escalas de tempo absolutamente distintas envolvidas na história da Terra e a história do mundo respectivamente: as dezenas de milhões de anos usualmente compreendidas em uma era geológica (o Holoceno parece ter sido uma época particularmente curta se a tese do Antropoceno estiver correta) versus os cinco séculos se tanto que podemos considerar como a história do capitalismo. Apesar disso, na maioria das discussões sobre o Antropoceno, questões do tempo geológico costumam sair do campo de visão e o tempo da história mundial humana parece vem predominar (CHAKRABARY, 2018, p. 6)." 43

43 No original: "The Anthropocene requires us to think on the two vastly different scales of time that Earth history and world history respectively involve: the tens of millions of years that a geological epoch usually encompasses (the Holocene seems to have been a particularly short epoch if the Anthropocene thesis is right) versus the five hundred years at most that can be said to constitute the history of capitalism. Yet in most discussions of the Anthropocene, questions of geological time fall out of view and the time of human world history comes to predominate".

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A exemplo da vertigem provocada por esse conflito entre o tempo da geologia terrestre e as temporalidades em jogo na história humana, o cinema geológico se caracteriza, em primeiro lugar, por embaralhar escalas temporais que até então pareciam incompossíveis. Isso se dá de forma particularmente frontal – e incômoda – em Viajo porque preciso, volto porque te amo, longa-metragem que desenha um percurso pelo sertão nordestino, narrado em primeira pessoa por um geólogo perturbado por uma ruptura amorosa no passado que antecede imediatamente sua partida e pela perspectiva, num indeterminado futuro próximo, da inundação da árida zona por onde ele passa. O corpo desse protagonista nunca será visto na tela. Dele, temos apenas a voz44. A radicalidade da câmera subjetiva não está na gênese de Viajo porque preciso, volto porque te amo, sendo na realidade fruto do desejo de Marcelo Gomes e Karim Aïnouz de filmarem juntos no sertão nordestino, onde ambos têm raízes45. Esse desejo foi gestado ao longo da segunda metade da década de 1990, transformado em projeto(s) em 1997 e, conforme os financiamentos foram sendo obtidos, as filmagens distribuíram-se por duas etapas, em 1999 e 2009 – algo que não podia ser previsto de saída (BERNARDET, 2010, s/p). O processo de escrita intercalou períodos de trabalho densos com temporadas de hibernação. A primeira versão vem a público em 2004, na forma do curta documental Sertão de acrílico azul piscina46, e uma segunda, em 2009, como longa de ficção, através da composição de uma nova banda sonora que re-significa as imagens documentais. No que diz respeito às interrogações sobre o cinema geológico, é inegável que a ausência total do corpo do personagem principal em Viajo porque preciso, volto porque te amo amplia as possibilidades de atenção do espectador para as paisagens por ele atravessadas, dando ensejo a curiosos agenciamentos entre figura e fundo, de modo a evacuar a cena de qualquer figura humana em reiteradas tomadas. Há uma inversão total do arranjo de A Conquista do Polo. Enquanto em Méliès os vivas à "via

44 O arranjo visual guarda certa semelhança com o de A Dama do Lago (Lady in the Lake, Robert Montgomery, 1947). O emblemático título do cinema noir é estrelado pelo próprio Montgomery, mas seu rosto permanece invisível durante a quase totalidade do filme. É como se a câmera se fixasse diretamente sobre o pescoço do astro, e a radicalidade da câmera subjetiva, comprometendo a identificação espectatorial, estaria entre as principais explicações para o fracasso do filme. 45 Os dois cineastas nordestinos são nascidos, respectivamente, em Recife (1963) e Fortaleza (1966). 46 O primeiro título era Carranca de acrílico azul piscina, ou simplesmente Carranca, uma referência ao veículo alugado pela produção para a primeira viagem, de quarenta dias pelo sertão.

73 da Terra" (ou de terra) eram acompanhados de um pequeno globo terrestre e da superpopulação do quadro por figuras humanas agitadas e superpoderosas, na ficção proposta por Aïnouz e Gomes, apesar do título conjugado em primeira pessoa e da câmera subjetiva, a tela fica, em reiteradas ocasiões, totalmente ocupada pela terra árida – e, é verdade, pela Terra prestes a ser remodelada pela agência humana. A década passada entre a pré-história e a história da realização de Viajo porque preciso, volto porque te amo inclui, o que não é anódino, uma mudança de milênio. Se o filme oferece matéria abundante para pensar visibilidades e invisibilidades da história e da geologia é também porque, qual camadas sedimentares, as diferentes texturas da matéria fílmica e dos referentes pró-fílmicos remetem a registros das heterogeneidades espaciotemporais atravessadas. Além de proporem a coabitação de imagens Super 8, High 8, DV e fotografias47, e de se valerem de maneira recorrente da superposição como figura de montagem, as duas versões fazem durar o escrutínio da paisagem (a um só tempo natural e humana), como se fosse possível revelar-lhe assim antecedentes e porvires. Assim, vemos por exemplo, distribuídos em linhas horizontais no quadro, telhados e construções de diferentes idades, sobrepujados por uma estreita faixa do relevo inabitado (Fig. 17). E, depois de observarmos os coloridos colchões que servem de fundo para a primeira aparição da personagem Pati, descobrimos de que é feito o recheio dos tais colchões (Fig. 18), conhecemos inclusive os homens que manuseiam montes e montes de palha para confeccioná-los e somos convidados a imaginar explicações que justifiquem a presença do tal colchão sobre o chão batido, ladeado por cabras e pastores.

47 Na viagem de 1999, os realizadores estavam munidos de slides, uma câmera Super-8, duas câmeras 16mm, uma Bolex e uma câmera tcheca Minockner”, além de uma mini-DV Sony VX1000. A montagem final inclui também fotografias realizadas por Aïnouz durante a filmagem de O Céu de Suely (2006) e imagens filmadas em 2009 (BERNARDET, 2010). Em seu artigo sobre o filme, Tiago de Luca afirma que sua "estrutura múlti-camadas conceitualiza as zonas fluidas e intersticiais entre as memórias pessoais e culturais, como se o próprio cinema estivesse na encruzilhada entre as velhas e as novas mídias" (DE LUCA, 2014).

74 (Figs. 17-18) Duas imagens de Viajo porque preciso, volto porque te amo (2009), de Karim Aïnouz e Marcelo Gomes: telhados e construções de diferentes idades, com a montanha ao fundo, sugerindo a visibilidade de camadas geológicas sedimentares; e os colchões artesanais sendo "recheados".

Dentre as abundantes metáforas que o filme, generoso, oferece ao espectador, essa sequência dos colchões talvez esteja entre as mais explícitas da riqueza de temporalidades escondidas sob as imagens e sons do sertão. Quando descrevem o que os levou a fazer essa viagem juntos, e de onde vem a vontade de filmar ali, Marcelo Gomes e Karim Aïnouz costumam mencionar a vontade de trazer uma visão menos chapada da região e, embora se interessem por tradições, insistem no aspecto pop e ultracontemporâneo. Como diz Aïnouz,

(...): “Sempre me incomodei muito, minha vida inteira, com essa imagem do sertão como espaço mítico. (...) Com Marcelo Gomes, a gente foi atrás de um sertão pop, porque achava que havia um apelo pop ali, das cores, por exemplo. (...) [N]aquela cena da feira de Caruaru (...) realmente havia temporalidades muito diferentes, mas que estavam aglutinadas ali num só tempo, que era o tempo do agora.” (AÏNOUZ, FELDMAN & EDUARDO, 2007, s/p).

No plano da diegese por assim dizer estruturante, a montagem original (inicialmente intitulada Carranca de acrílico azul piscina e depois Sertão de acrílico azul piscina), uma espécie de travelogue, organiza-se segundo o percurso de quarenta dias da dupla, respeitando menos a intenção original, a de documentar feiras livres, do que os afetos que encontros inesperados foram mobilizando. Com a nova montagem nasce a ficção: um geólogo, José Renato (interpretado por Irandhir Santos), viaja de carro para fazer o levantamento da região a ser inundada com as obras ligadas à transposição do Rio São Francisco. Desse protagonista, temos acesso somente à voz e ao olhar. Ainda que completamente ausente do quadro, seu corpo serve de ancoragem para imagens subjetivas, boa parte delas filmadas a partir do interior de um veículo em movimento.

75 À exceção dos encontros com Pati, uma prostituta que sonha ter uma "vida- lazer", e com um sapateiro que canta Noel Rosa, a montagem preserva a independência entre banda sonora e banda de imagens, dado fundamental na história da realização. Ainda assim, há cruzamentos e distanciamentos, com comentários, rimas, contrastes e nuances entre o que uma e outra propõem. A análise que se segue concentra-se em dois momentos, significativos para a concepção de cinema geológico aqui proposta. O primeiro deles está próximo do início, e o outro localiza-se quase no final do filme. Ambas as situações articulam com precisão e emoção ímpares duração estendida e geologia dinâmica, duas noções caras ao pensamento do Antropoceno. A maior parte dos planos que compõem a sequência inicial de Viajo porque preciso... tem duração próxima de 1 minuto, muito acima da duração média dos planos nos filmes comerciais, mas abaixo das experiências mais radicais de duração estendida48. A sensação de lentidão é particularmente pronunciada em alguns desses planos inaugurais, sejam aqueles rodados à noite, com grande parcela da imagem sob a obscuridade, sejam os que resultam de uma câmera trepidante, ou ainda aqueles que permanecem em quadro fixo sem que nada em seu interior se movimente. Ainda nessa sequência primeira, alguns fatores intensificam a sensação de espera, como a presença no céu de nuvens escuras, promessa de uma chuva que nunca chegará, a raridade dos veículos que transitam pela estrada e algumas frases do protagonista acentuando sua impaciência e a monotonia do lugar. Pouco antes de o filme completar cinco minutos, José Renato explica sua missão, que, diz ele, deverá ser cumprida em trinta dias. Cabe a ele um levantamento geológico antecede a inundação do terreno para a criação de um canal. Ainda que as obras para a transposição do Rio São Francisco não sejam nominalmente mencionadas, a abertura de um canal na região seria condizente com o projeto. Impossível esquecer, ainda, da profecia milenarista com que se conclui Deus e o diabo na terra do sol (Glauber Rocha, 1964): o sertão vai virar mar, o mar vai virar sertão. E, se a transposição do Rio São Francisco seria uma maneira de concretizá-la, a memória do sertão em preto e branco do Cinema Novo acompanha a visão deste novo sertão, de cores gritantes. José Renato vai entrelaçando informações objetivas sobre a geografia – terreno terciário, argilas de calcário compostas por arenitos, idade pré-cambriana, etc. – com percepções ligadas a seu próprio estado de alma, espremido

48 Os capítulos II, III e IV deste relatório abordam a questão da longa duração de maneira mais frontal e questionam as convenções de duração, tanto dos planos, quanto dos filmes.

76 entre a obrigação de seguir em frente e o desejo de retomar uma história de amor interrompida pouco antes de pegar a estrada – "Parada para mijar. Eita vontade de voltar!". A relação de ambivalência entre a necessidade de avançar e o desejo de retroceder se desdobra na tensão entre o estado atual da paisagem, desértica, tediosa, e a promessa de sua transformação radical num futuro indeterminado. O projeto de construção do canal que inundará parte da zona geram certa ansiedade no personagem e no espectador, constituindo-se como uma mudança no porvir que contrasta com a imobilidade da paisagem que estampa a tela. A relação entre a banda de imagens e a banda sonora sublinha esse jogo de forças opostas, entre a obrigação de prosseguir e a nostalgia pelo que fica para trás, entre a perspectiva de mudança e o presente de imobilidade. O contraste entre essas forças opostas está no cerne de uma das batalhas em jogo no Antropoceno – em suas estéticas e anti-estéticas. Estudiosos do Antropoceno notam, a partir de meados do século XX, um incremento constante nas atividades humanas no planeta ocasionando modificações no sistema terrestre. Ainda que se saiba que o homem sempre alterou seu meio- ambiente, a expansão das atividades sócio-econômicas e dos danos causados em ritmo crescente vem sendo chamada de "Grande aceleração" (ou "Great Acceleration") (MCNEILL, 2014). A sensação de aceleração rumo ao precipício é notável, levando às últimas consequências a "ruptura" na linha do tempo observada por Hannah Arendt na Shoah. De fato, não é apenas em termos históricos que "nossa era não é precedida de nenhum testamento": "Nosso passado geológico não oferece precedentes através dos quais possamos prever nosso futuro ecológico, e diversos modelos de mudança climática parecem francamente apocalípticos" (FAY, 2018, p. 11, minha tradução). Como estratégia de resistência, nas esferas real e simbólica, alguns autores se posicionam em defesa de uma política de lentidão, desaceleração, longa duração, inclusive no trabalho científico49. De fato, as políticas da lentidão e da longa duração vêm sendo praticadas no cinema do século XXI, e, no âmbito do cinema geológico, é por meio do exercício de temporalidades distendidas que surgem as possibilidades de um olhar mais sintonizado com a escala da movimentação de vales e montanhas. A ideia de geologia dinâmica encontra, em determinado momento, ancoragem num fenômeno produzido pela interação entre câmera, homem e paisagem. Passados

49 Ver, a esse respeito, a defesa que Isabelle Stengers faz da "ciência lenta"ou "slow science" (STENGERS, 2013; 2015). Cf. também Danowski e Viveiros de Castro (2014).

77 pouco mais de sete minutos de filme, no plano que se segue à sequência de fotografias da textura das rochas e dos instrumentos de trabalho do geólogo, vemos, do interior do carro em movimento, a estrada e a paisagem que ela atravessa, com uma pequena elevação do lado esquerdo (Fig. 19). Com o avanço do veículo, o morro aumenta em tamanho, mas não muito. Após cerca de 50 segundos, talvez para compensar essa frustração, traduzida por José Renato, que diz: "a paisagem não muda, é sempre a mesma coisa. Parece que não sai do lugar!", a câmera efetua um instável zoom de aproximação sobre o morro, fazendo-o não só crescer, mas movimentar-se lateralmente, como se pudesse ganhar vida e dançar na tela.

(Fig. 19) Imagem de Viajo porque preciso, volto porque te amo: o morro, no fundo, parece mover-se.

A instabilidade que o plano adquire em seu final sugere que ele tenha sido filmado e montado até seu limite, num gesto próximo daquele que Chris Marker exibe em um dos planos de seu Sans Soleil (1983), este também um filme geológico50. A duração que se estende "até o limite do zoom e do braço", como diz Marker, insinua a temporalidade da iminência51. Para Ismail Xavier, em Viajo porque preciso, volto porque te amo, "o tempo dilatado adensa a relação com os campos em que o olhar se fixa, nem sempre com centro estável, pois não está ancorado num corpo, mas numa máquina". É inegável, de todo modo, o papel que exerce a longa duração para a

50 Montado duas vezes, o plano em questão é a imagem da felicidade, a um só tempo lembrança de uma ação passada – a voz over de Florence Delay nos informa da data e do lugar da filmagem: 1965, Islândia – e antecipação do fim do filme em seu início. Tido como “imagem da felicidade” pelo misterioso “ele”, autor das cartas lidas pela narração feminina, o plano contém em si mesmo seu futuro. As três crianças loiras que caminham de mãos dadas por uma estrada, sob a luz lateral do pôr do sol, perfazem a primeira imagem do filme, num plano de cerca de 10 segundos. Cerca de 80 minutos mais tarde no filme, e 13 minutos antes de ele terminar, a imagem das três crianças retorna, agora associada a um evento: a erupção do vulcão islandês Hekla, em maio de 1970, que recobriu de cinzas a estrada à margem da qual as crianças passeavam. Os inserts negros usados no início não estão mais ali. O plano das três crianças é montado em uma continuidade que provavelmente restitui a filmagem: elas são vistas em um quadro ainda menos estável, “tremulante”, para retomar o termo empregado pela narração, e com menos nitidez. O plano, diz a voz feminina, foi pego agora “em sua integralidade”, com tudo o que havia sido cortado anteriormente para “parecer limpo”. 51 A temporalidade da iminência estava no cerne de minha pesquisa de doutorado (2014).

78 calibragem da atenção do espectador, que passa a observar uma vasta gama de detalhes imperceptíveis a um ritmo mais acelerado. No que diz respeito ao filme de Aïnouz e Gomes, é importante notar que na passagem da forma original, de documentário, para suas versões subsequentes, como instalação e longa-metragem de ficção, a sensação de duração não se perdeu. Mesmo a construção do arco dramático e do personagem José Renato, que poderia favorecer uma visão da paisagem como fundo ou cenário, manteve preservada a temporalidade dos fenômenos de imagem e de paisagem – a luz excessiva que super-expõe a película em dado momento, como se fosse possível esturricar ainda mais os galhos de uma árvore sem folhas; a explosão lilás ao final de um rolo; ou um plano inexplicavelmente longo, hipnótico pela vibração dos grãos da película, que culmina com a imagem de um porco que atravessa a pista calmamente... Esses fenômenos de imagem cercam a visão da montanha que se coloca em movimento acima descrita. Sugiro, aqui, que esse fugaz momento de "animismo geológico" nos sirva de filtro para mirarmos as imagens que perfazem a sequência final de Azul acrílico – reproduzidas na penúltima sequência de Viajo. A câmera subjetiva já não filma de dentro de um carro, mas a bordo de uma embarcação que navega sobre o São Francisco e aporta na cidade de Piranhas, no Alagoas. A visão dessa massa de água a invadir a tela e das banhistas na praia causam grande emoção, e o contraste com a aridez predominante até então já bastaria para justificá-la. Filmada de maneira trêmula, a subida da escadaria do mirante é vista em seguida, e o vaivém da câmera sobre os degraus sublinha essa emoção, intensificada pela banda sonora. Na versão documental, ouvimos profecias distribuídas ano a ano, da década de 1980 em diante: "Em 98, o rio corre para trás. Estamos no fim do mundo, todos fiquem à espera. De 98 em diante, surgirá a besta-fera. Vamos rogar a Deus-Pai, que desta vez o mundo vai, pois já está chegando a era".

Na versão ficcional, temos os dados de largura e profundidade do rio, acompanhados da informação de que o canal terá início ali, "isso se o rio não secar até lá". Vemos o casario secular da cidade alagoana e ficamos sabendo que 70% de seus habitantes já foram embora. Em breve, Piranhas será coberta pelas águas do canal. Como diz Ismail Xavier, Na vontade e na dificuldade de esquecer, Renato precisa transpor um limiar que a duração da viagem parece sempre jogar para frente, mantendo a dualidade de ir e vir, a incerteza de quem quer se reinventar.

79 Ao mesmo tempo, o ofício de geólogo o envolve em outra transposição, o projeto de canalização de rio que alude à atual conjuntura político-social, compondo um nexo inesperado entre o seu movimento e a grande geografia que o cerca (apud BUTCHER, 2010).

Enquanto vemos a subida da escadaria do mirante, José Renato filosofa sobre como um pé na bunda nos faz rever todas nossas certezas. "Paralisia múltipla. Por isso fiz essa viagem, para me mover... ". Ele então silencia, e, durante o passeio da câmera pelos contornos do obelisco ali cravados, podemos ler: "Homenagem do povo do século XIX ao povo do século XX". Neste filme em que o primeiro plano, normalmente ocupado pela figura humana, permanece por boa parte do tempo livre, o olhar ansioso para a paisagem sugere que é dela que pode vir o evento surpreendente, numa inversão entre as categorias de fundo e figura que ecoa a descrição dada por Danowski e Viveiros de Castro para o Antropoceno. Surgida com o nome de Tapera no século XVII, tendo ganho o estatuto de vila em 1887, Piranhas foi palco de lances importantes na história do cangaço – foi dali que saíram as autoridades que prenderam Lampião na emboscada da Gruta do Angico, e foi ali também que sua cabeça foi exposta à população. Se o século 19 legou ao seguinte um peculiar monumento à lembrança, o século 20 deixa ao 21 a promessa de esquecimento. Na geologia imaginativa de Viajo porque preciso, volto porque te amo, talvez fruto de novos fenômenos sísmicos como os que produziram terremotos ali há 580 milhões de anos, é então que o sertão se encontra com as falésias da Acapulco, para exibir-nos o espetáculo dos clavadistas, em mergulhos vertiginosos. Viajo porque preciso, volto porque te amo, é de fato um filme de múltiplas camadas: sobrepõem-se as texturas da imagem, entre a película de diferentes bitolas e o digital de diversas gerações, como as camadas do casario histórico de Piranhas e o relevo em transformação. Através do filme, experimentamos a vertigem do tempo exposto, e é essa vertigem, junto ao olhar fatigado do desviante geólogo em seu trajeto jamais concluído, que nos possibilita perceber, num vislumbre, as potências do cinema geológico.

80 III.C)

Capítulo II Longa duração e visibilidade do ínfimo

Em que momentos, na história do cinema, a atenção do espectador (e do analista) não se detém no que ocorre no primeiro plano, no centro da imagem, e passa a interrogar fenômenos e movimentos situados nas margens do quadro e no fundo da imagem? De que maneira isso ocorre no cinema contemporâneo? Este capítulo interroga o descentramento do olhar enquanto exercício associado à longa duração (de planos e de filmes). Como veremos adiante, o olhar que foge do centro de convergência da tela e passeia pelo quadro, de maneira centrífuga e livre dos ditames do drama e da ação, testemunha de uma sensibilidade ampliada e, por isso, é aqui associada ao cinema geológico. Nas páginas a seguir, a visão baziniana da continuidade se encontrará com a proposta de Braudel, por uma história feita de ciclos longos, para observar como o cinema de duração estendida amplia a sensibilidade espectatorial para com o fundo cinematográfico (BONAMY, 2013) em seus aspectos mais ínfimos. Micro- fenômenos, seres marginalizados52 e ações imperceptíveis ganham, na longa duração, visibilidade acrescida, instaurando um novo regime de atenção no público. Tais afirmações fundam-se na análise do filme Florentina Hubaldo, CTE (2012), emblemático do uso que Lav Diaz faz da duração estendida, tanto de planos quanto do próprio filme, com seis horas no total. Escolhas de estilo, como a composição de determinados quadros, o esvaziamento do centro da tela de qualquer ação ou intriga e

52 Em artigo publicado na revista Recherches et Travaux (RAMOS MONTEIRO, 2018), aprofundei- me na análise de "personagens marginais" que povoam o cinema de Lav Diaz, de Batang West Side (2001), dedicado à enquete conduzida por um inspetor filipino estabelecido nos Estados Unidos sobre as mortes misteriosas de jovens compatriotas exilados, a (2016), sobre uma mulher que sai da prisão depois de ali ter passado trinta anos, injustamente encarcerada. O realizador filipino renova constantemente seu interesse por "vidas singulares tornadas poemas" (FOUCAULT, 2003), existências situadas entre a anedota verídica e a lenda, e que se chocam com o poder. Em suas dores singulares, tais personagens, assim como os infames repertoriados por Foucault, parecem destinados ao esquecimento, a menos que um cineasta decida conferir-lhes uma forma fílmica que consiga combinar, ela também, realidade e ficção.

81 1. Bazin e Braudel (Florentina Hubaldo, CTE) O historiador Fernand Braudel (1902-1985) e o crítico e teórico de cinema André Bazin (1918-1958) são aqui convocados enquanto defensores da longa duração como elemento essencial ao entendimento dos processos históricos (Braudel) e a um só tempo como princípio de montagem cinematográfica e maneira de enxergar a história do cinema (Bazin). Sem estabelecerem diálogo direto nem referirem-se um ao outro, os textos de Braudel e Bazin aqui examinados em conjunto revelam, por um lado, matrizes comuns e, por outro, compreensões distintas das implicações da longa duração. Ambos parecem estar sintonizados com os avanços da nova história e com a atenção que a longa duração recebe no âmbito da disciplina historiográfica no período entre-guerras por parte de Marc Bloch e Lucien Febvre, referências fundamentais para Braudel, e de Henri Focillon, autor de La Vie des Formes, importante para Bazin. Nota-se, na escrita de ambos, a presença da dialética bergsoniana entre instante e duração, o fascínio pelo tempo geológico e a defesa da necessidade de se examinar o tempo presente como parte de um processo amplo, que não deve restringir-se à temporalidade dos acontecimentos mais recentes. Bazin e Braudel escreviam pouco tempo depois do final da Segunda Guerra Mundial, período marcado pela ruptura que a catástrofe havia imposto à história da humanidade, clarão opaco que parecia capaz de obliterar a visão do que existia antes – daí a originalidade e a coragem da postura de ambos. Em seu trabalho sobre as origens do pensamento baziniano, Ludovic Cortade (2017) restitui sua proximidade com a École des Annales e investiga seu interesse pela “temporalidade longa”, retomando a relação de Marc Bloch e Lucien Febvre com disciplinas como geografia e geologia. Cortade se esforça, na realidade, para estabelecer a natureza da influência da historiografia francesa sobre o pensamento baziniano, mas não chega a tecer relações sobre suas proposições mais cinematográficas. Na mesma década de 1950 em que Braudel defendia que a historiografia levasse em conta o tempo longo, o crítico de cinema André Bazin propunha sua visão do cinema calcada na observação da duração longa e/ou ininterrupta. Por um lado, o pensamento baziniano a respeito da duração está expressa nos textos a respeito das virtudes do plano sequência, das ações reproduzidas em continuidade, sem cortes. O autor francês é conhecido pelo elogio à realidade e à verdade do plano sequência – e pelas críticas ao corte e à montagem por aquilo que esses “artifícios” escondem. Por

82 outro lado, ele preza pela observação da história longa do cinema, atento ao fato de que se tratava de uma arte ainda jovem. A defesa do plano longo e da continuidade aparece, por exemplo, nos textos sobre o cinema neorrealista e mais diretamente em “Montagem proibida”. Publicado originalmente nos Cahiers du cinéma entre 1953 e 1957, o texto comenta o filme Balão vermelho (1956), de Albert Lamorisse, em que um balão segue um garoto. Sem recusar os efeitos especiais e a trucagem presentes no filme de Lamorisse, Bazin valoriza a realidade da filmagem em sua autenticidade:

É preciso que o imaginário tenha na tela a densidade espacial do real. A montagem só pode ser utilizada em seus limites precisos, sob a pena de atentar contra a própria ontologia da fábula cinematográfica. Por exemplo, o realizador não pode escamotear pelo campo/contra campo a dificuldade de dar a ver aspectos simultâneos de uma ação (BAZIN, 2002, p. 56, nossa tradução).

Para além dessa acepção da longa duração como valor intrínseco de construção do plano, que recusa o corte e a montagem em nome da preservação da realidade da filmagem, visível na profundidade de campo, e do convívio que se dá, nela, entre os atores e o cenário, nota-se em Bazin, o gesto do historiador atento à história das formas, história que se desenvolve na longa duração. Tom Conley vai discorrer sobre esse movimento, atento à concepção baziniana de “evento” e “evolução”. Sua fina análise da escrita de Bazin, publicada no livro Opening Bazin (2011), observa, entre outras coisas, as metáforas biológicas e geológicas convocadas por Bazin com o objetivo não só de colocar em perspectiva a temporalidade do filme, mas de situar a breve história do cinema dentro de um caminho evolutivo mais amplo, e que não segue sempre a mesma direção. No texto em que compara teatro e cinema, Bazin cria uma subdivisão, “Um pouco de história”, expressão emprestada dos guias turísticos publicados pela Michelin, e ali observa a lentidão e a imutabilidade de alguns processos, sobretudo no que se refere ao teatro antes do surgimento do cinema, afirmando “o caráter [ao mesmo tempo] progressivo e regressivo da evolução do cinema, evolução frequentemente fortuita” (CONLEY, 2011, p. 33). Décimo-segundo longa-metragem realizado por Lav Diaz, Florentina Hubaldo, CTE perfaz o retrato de uma mulher constantemente submetida às violências de seu pai. Ele humilha a filha, a agride, a prostitui. Ajudada pelo avô, ela consegue escapar, foge, corre, sonha, e é incessantemente recapturada e reconduzida

83 para sua rotina de sofrimentos. Por seis horas, assistimos à triste dinâmica dessa vida e testemunhamos os esforços de Florentina para se lembrar de sua história, sendo a cada vez confrontada a falhas na memória e a rememorações involuntárias. Interpretada por Hazel Orencio53, atriz central na filmografia de Diaz, o personagem- título tenta diversas vezes contar sua história, mas perde o fio da meada, esquece, mistura tudo. "Estou com dor de cabeça. Não consigo lembrar de tudo. Há muita coisa que já esqueci", diz. Trata-se de um personagem fictício, construído a partir de uma série de elementos reais. No início do filme, um homem oferece ao pai de Florentina 3000 pesos por suas duas cabras, e 500 pesos por sua filha. Em entrevistas, Diaz afirma ter ouvido de um amigo uma história parecida – empobrecidos, certos agricultores viam-se obrigados a vender suas filhas para comprar comida54. Os problemas de memória que acometem Florentina (assim como os abusos sexuais a que é submetida) fazem eco à história nacional filipina55. No nível diegético, a doença neuro-degenerativa conhecida sob a sigla "CTE" de que a personagem sofre deve-se aos ataques de seu pai; no nível alegórico, a experiência da colonização espanhola seguida da ocupação estadunidense e da ditadura de Marcos engendram igualmente as condições para se falar em memória pós-traumática. Se por um lado esse entrelaçamento entre destino individual e história nacional pode inscrever o filme na tradição das "narrativas de fundação", por outro lado as escolhas formais singulares operadas por Lav Diaz conferem a essa categoria um novo sentido, transformando-a. A esperança de uma redenção futura, que marca as ficções fundacionais tradicionais, encontra-se evacuada, substituída pelo surgimento de fantasmas, pela ameaça de uma reprodução perpétua de um passado de sofrimento. A vida ínfima dessa mulher prisioneira de sua memória e de seus esquecimentos funciona como alegoria do destino nacional filipino. É, nas palavras de Nadin Mai, "uma metáfora do trauma coletivo e do sofrimento nacional filipino, após séculos de colonialismo seguidos de décadas de ditadura sob o presidente Ferdinand Marcos, que submeteu o país à Lei Marcial em setembro de 1972"56. Florentina

53 A história dessa frutuosa parceria foi narrada pela atriz em entrevista publicada na revista Aniki (Monteiro & Dumas, 2019). 54 Cf. Nadin Mai, op. cit., p. 234. 55 A dialética entre memória e esquecimento constitui uma verdadeira obsessão para Diaz, de Batang West Side (2001), em que o protagonista (um jovem filipino que vive com a família em Nova Jersey) recebe do avô livros e lições de história, a The Halt (2019), em que uma terapeuta auxilia uma cliente a lembrar-se de certas passagens de sua vida, passando por Canção para um triste mistério, que coloca em evidência um momento sombrio da história da independência do país. 56 Cf. Nadin Mai, op. cit., p. 235.

84 Hubaldo, CTE dobra-se de uma narrativa paralela, que envolve Manoling (Noel Domingo) e Juan (Willy Fernandez), dois jovens que vão visitar Hector (Joel Ferer), irmão de Manoling, em busca de um tesouro que o avô lhes teria deixado. Essas duas histórias, no fundo, estão ligadas, e se passam em tempos distintos: depois da morte de Florentina, Hector tenta encontrar Loleng (Kristine Kintana), filha de Florentina que tem uma deficiência ocasionada pelos maus-tratos sofridos pela mãe durante a gravidez. A estrutura em espiral 57 de Florentina Hubaldo estimula e socilicita a memória do espectador, que se vê lançado em um exercício próximo ao da protagonista. Dessa maneira, se este capítulo interroga o lugar dedicado ao espectador, é com o objetivo de jogar luz sobre esse jogo de espelhos delicadamente construído entre três níveis de memória (a memória do personagem/a memória nacional/a memória do espectador) que não cessam de alimentar-se mutualmente. Compreender a gestão do fino equilíbrio instaurado entre atenção, distração, memória e esquecimento, é deixar-se levar por um ritmo cinematográfico raro, mais próximo da história dos tempos longos do que da história eventual, para retomar uma comparação trabalhada pelo historiador Fernand Braudel, que nos serve de guia.

Pessoalmente, no decorrer de um cativeiro bastante moroso, lutei muito para escapar à crônica desses anos difíceis (1940-1945). Recusar os eventos e o tempo dos eventos era colocar-se à margem, ao abrigo, para olhá-los um pouco de longe, melhor julgá-los e não crer muito (BRAUDEL, 1992, p. 71).

A primeira das duas frases acima se refere diretamente ao contexto em que Braudel trabalhava. O texto que sistematiza suas ideias sobre a longa duração é de 1958, mas elas já estavam presentes no estudo sobre o Mediterrâneo à época de Filipe II, concluído em 1946 e publicado em 1949. Como se sabe, Braudel propunha três temporalidades: em primeiro lugar, “uma história quase imóvel, a do homem em suas relações com o meio que o cerca, uma história [...] feita de ciclos incessantemente recomeçados”; em segundo, uma história social, organizada a partir da pergunta seguinte: “Como é que essas ondas do fundo levantam o conjunto da vida mediterrânea?”; a história tradicional, a que poderíamos chamar de ocorrencial ou

57 Pour Nadin Mai, Florentina se situe dans un « récit cyclique, conséquence de l’événement traumatique, qui l’enferme dans son passé et dans une lutte pour se rappeler même du nom de sa mère » (The aesthetics of absence and duration in the post-trauma cinema of Lav Diaz, thèse de doctorat, Université de Stirling, 2015, p. 231).

85 eventual (événementielle), a partir de François Simiand e Paul Lacombe, viria no terceiro nível (Braudel, 1992, p. 13-14). No seio de sua “dialética da duração”, opondo “o instante e o tempo lento a escoar-se” (BRAUDEL , 1992, p. 43), a segunda frase do trecho destacado acima expressa a recusa da temporalidade dos eventos, e faz eco a outras formulaçes presentes no próprio texto de 1958. Evento, para Braudel, é explosão luminosa, fogo de artifício, clarão; ele reluz e ofusca a vista do historiador, de modo que “a obscuridade permanece vitoriosa” (Braudel, 1992, p. 23). Já em 1958, no texto sobre a longa duração, Fernand Braudel parte da observação das temporalidades cíclicas por parte da nova história econômica e social, no caminho inverso da história atenta aos tempos breves, ao indivíduo, ao evento. “Das experiências e tentativas recentes da história, depreende-se [...] uma noção cada vez mais precisa da multiplicidade do tempo e do valor excepcional do tempo longo” (Braudel, 1992, p. 44). Interessado, como se sabe, em forjar um método universalizante, válido não somente para a história, mas para todas as ciências sociais, Braudel propunha que a história ganhasse fôlego maior e examinasse fenômenos de longa ou extremamente longa duração e fugisse à temporalidade do cronista, do jornalista, concentrada nos eventos da atualidade: “O evento é explosivo, ‘novidade sonante’, como se dizia no século XVI. Com sua fumaça excessiva, enche a consciência dos contempor.neos, mas não dura, vê-se apenas sua chama” (Braudel, 1992, p. 45)13. Em oposição portanto à história eventual, Braudel defendia uma atenção às estruturas, o que pode se ligar a seu interesse inicial pela geografia e pela geologia, algo que o aproxima de Bazin.

2. Descentramento do olhar

Florentina Hubaldo, CTE se inicia com a imagem de uma estrada deserta, cercada pela abundante vegetação da floresta que ela atravessa, sob um céu nublado (Fig. 20). Durante os primeiros segundos, nada acontece no centro do quadro, escuro e vazio. Nosso olhar dirige-se então às laterais, onde as folhagens se movem, e para o alto, onde as nuvens se deslocam e a luz se transforma. É apenas depois de um minuto de plano fixo sem ação que percebemos que algo no fundo avança em nossa direção. No decurso desse longo plano fixo, identificaremos um senhor de camisa xadrez, uma mulher jovem de cabelos longos e duas cabras amarradas a uma corda (Fig. 21). Eles

86 não falam, tampouco sabemos para onde vão ou de onde vêm. Esse plano inaugural, de 5 minutos de duração, limita-se a mostrá-los, entrando no quadro pelo fundo da imagem para dele sair pelo canto inferior esquerdo.

(Figs. 20-21) Imagens do primeiro plano de Florentina Hubaldo, CTE, o "plano da estrada", com 5 minutos de duração: as folhagens que se movem e a revelação dos personagens.

No conjunto do filme, com seis horas de duração total, esses 5 primeiros minutos, aqui chamado de "plano da estrada", servem menos a oferecer os elementos narrativos e dramáticos introdutórios do que para instaurar um regime de atenção pouco comum hoje, e que será dominante no decorrer do filme (e, aliás, em boa parte da filmografia de seu realizador, o filipino Lav Diaz). Trata-se de um momento de "calibragem" da atenção. Acostumado à velocidade crescente da montagem atual58, cada vez mais ritmada pela palavra, quase onipresente, o espectador deve gerenciar sua própria impaciência frente a um filme que tarda a explicitar sua estrutura narrativa e que propõe o exercício de um olhar centrífugo, que problematiza as convenções de centralidade e de perspectiva. De saída, somos incitados a observar não o que ocorre no ponto de convergência dos quatro triângulos desenhados pelo encontro entre estrada, floresta e céu – situado ligeiramente abaixo e à esquerda do centro geométrico do quadro –, mas nas margens da imagem (Figs 20-21). O olhar para eventos produzidos nas bordas da imagem não é algo novo na história do cinema. Inúmeros comentadores dos filmes dos Lumière observaram o fremir das folhagens que serviam de cenário para O almoço de bebê (1895), cuja "mise-en-scène (...) é capaz de decentralizar a atenção

58 Pesquisas sobre a duração média dos planos, ou "average short lenght" (ASL), e sobre a quantidade média de planos por filme indicam uma aceleração da montagem na produção contemporânea, com, em certos casos, uma duração média inferior a 4 segundos por plano. Em Florentina Hubaldo, CTE, a duração média é de mais de 2 minutos, chegando a 3 minutos em outros filmes de Diaz. Cf. MAI, 2015, p. 40-41.

87 portada à anedota em benefício da dinâmica interna ao plano" (BONAMY, 2013, p. 20, minha tradução). Independentemente da inscrição dos personagens, ou da ação que desenvolvem, os fundos cinematográficos de Diaz são animados por movimentos que lhes são próprios, movimentos visíveis e audíveis: os fundos agem e se fazem notar, como se fosse preciso demarcar sua antiguidade em relação a qualquer intriga. Além disso, o cinema de Diaz estabelece relações entre ações de ritmos distintos. Destacam- se, por exemplo, a tensão entre, de um lado, a agitação constante das folhas, nuvens e gotas d'água e, de outro, a lentidão da marcha dos personagens. No entanto, o decentramento do olhar deve-se sobretudo à longa duração do plano, acompanhada de uma mise-en-scène que, desde o início, esvazia sistematicamente o espaço conhecido como "primeiro plano", centro habitual da imagem cinematográfica, para povoá-lo apenas em um segundo momento, quando nosso olhar já estiver habituado a um passeio centrífugo, raridade na experiência do espectador de cinema. As linhas de força estabelecidas na abertura de Florentina Hubaldo, CTE nos convidam assim a franquear os limites da imagem, prolongando o olhar até aquilo que se situa fora da tela – um fora de quadro que é também fora do filme. Que fique claro: essa configuração não é um fenômeno exclusivo de Florentina Hubaldo, CTE, nem mesmo do cinema de Lav Diaz. Tiago de Luca o situa no contexto de um "slow cinema" especialmente propício ao visionamento em sala para que o "contrato espectatorial se cumpra inteiramente" (DE LUCA, 2016, p. 23). Em sua análise, De Luca observa as modalidades espectatoriais mobilizadas por esse estilo cinematográfico fundado na imobilidade, no silêncio e na duração, um estilo que seria inadequado para as pequenas telas domésticas e para o espectador distraído de nossos dias – inclusive aquele que se torna mais presente nas galerias de arte. A partir de uma análise de Goodbye, Dragon Inn (Tsai Ming-liang, 2003), Fantasma (Lisandro Alonso, 2006) e Shirin (Abbas Kiarostami, 2008), o autor argumenta que, "por meio de uma modalidade de enunciação contemplativa, o slow cinema provoca uma maior consciência das condições de visionamento" (De Luca, 2016, p. 23-25). Suas afirmações poderiam sem dificuldade incluir o cinema de Lav Diaz em geral e de Florentina Hubaldo, CTE em particular – ainda que, no caso do realizador filipino, o visionamento doméstico sirva a acalmar a ansiedade do pesquisador frente a um filme

88 que não cessa de esvair-se-lhe59. É possível estabelecer relações entre o cinema de Lav Diaz e o cinema "duracional" proposto por Michael Walsh (2016), na esteira das experiências de Andy Warhol (Empire, 1964) e Michael Snow (Wavelenght, 1967), que subtraíam o interesse do drama e do incidente, colocando o tempo como elemento formal central. Com efeito, esse cinema dá a ver de maneira especialmente intensa a passagem do tempo. No caso específico do corpus do século XXI analisadas por Walsh – nele incluída a filmografia de Diaz –, trata-se de uma produção realizada e difundida digitalmente, muito embora, em seus primórdios, o suporte digital tenha sido considerado o menos apto a transmitir o sentimento de duração60. Dado recorrente dos filmes de Lav Diaz, que ultrapassam frequentemente as duas horas aconselhadas por Hitchcock porque compatíveis com a fisiologia humana, a longa duração não apenas nos permite ver a passagem do tempo, em especial em ações lentas oferecidas ao olhar em sua temporalidade real, mas também favorece um tipo de empatia com os longos e dolorosos processos históricos das Filipinas. Aqui, o esforço visa à compreensão de seu impacto na experiência espectatorial, e em especial no que diz respeito à visibilidade do ínfimo. A duração estendida dos filmes de Diaz fornece ao espectador condição privilegiada para a observação de micro-eventos de imagem – como o fremir das folhagens –, algo absolutamente coerente com as narrativas escolhidas por Lav Diaz, dedicadas a personagens à margem das histórias oficiais. Com poucas diferenças, a composição do plano de abertura, descrita acima, é repetida depois de uma hora de filme (Fig. 22). A estrada do início é substituída por um curso d'água, e a duração do plano dobra: dez minutos. Por comodidade de escrita, esse plano será chamado, aqui, de "plano do canal". Como no início, a imagem pode ser dividida em quatro: à esquerda e à direita, movem-se galhos; no alto, um céu carregado de nuvens; abaixo, água. A floresta foi substituída por uma plantação, certamente de arroz. A linha do horizonte está agora visível, um pouco inclinada, como se o operador de câmera (o próprio Lav Diaz) tivesse regulado mal seu tripé. Uma chuva fina perturba a placidez do canal. Como no início, vemos algo que avança

59 As dificuldades da longa duração no cinema para o analista e o pesquisador são abordadas de maneira mais frontal no capítulo IV deste relatório. A esse respeito, ver também meu artigo (2017) e as observações finais de Raymond Bellour (2009) sobre as instalações de longa duração. 60 Vão nessa direção as observações de Babette Mangolte (2002) e D. N. Rodowick 2007. Jihoon Kim (2018) também debruça-se sobre o tema.

89 em direção à câmera. Como no início, ao som difuso do vento, adiciona-se o canto longínquo de um galo. Pouco a pouco identificamos um homem, que leva um boné na cabeça. Impossível dizer de saída se ele se situa à direita ou à esquerda do canal. Talvez – e é o caso –, ele caminhe com os pés dentro d'água. Ele tem algo em sua mão direita. Um bastão? Uma faca? É um novo início, marco da introdução de um novo personagem na trama: Hector, que será visto a cavar buracos no solo à procura de um misterioso tesouro, e que aparece mais de uma vez com os pés na água. Ele se aproxima da câmera (Fig. 23), corta um galho do arbusto que orna toda a porção esquerda do quadro e senta-se à margem. Com a cabeça inclinada para frente, ele tem o olhar voltado para a água. Em off, ouvimos: "Por que há dor? Por que há sofrimento?".

(Figs. 22-23) O "plano do canal", de Florentina Hubaldo, CTE: 10 minutos de duração e lembrança do "plano da estrada".

A estranha temporalidade do filme produz no espectador 61 uma reação surpreendente: o plano de 10 minutos não é percebido como duas vezes mais longo do que o de 5 minutos. É possível que a impaciência do público não seja acentuada, e mesmo que ela diminua. Se o exercício não é exatamente confortável, sobretudo no início, com o risco de provocar tédio ou precipitar o sono, aqueles que aceitam as regras desse contrato pouco habitual se acostumam pouco a pouco. Quando o plano do canal começa, depois de uma hora de filme, o espectador já está sensibilizado pelo ritmo peculiar do filme, e já desenvolveu suas próprias estratégias de olhar. A duração desse segundo plano, como o primeiro "vazio" de ação, revela-se especialmente propícia a um ato de memória, e o primeiro plano retorna em minha lembrança. Entre memória e esquecimento, distração e atração, o espectador dos films- fleuve de Lav Diaz naviga em um equilíbrio instável, no seio do qual a banda sonora

61 Ou pelo menos nesta espectadora que vos escreve.

90 desempenha um papel fundamental. Por volta da metade do filme, transcorridos 160 minutos, um plano silencioso de 8 minutos repete uma terceira vez a configuração do "plano da estrada" e do "plano do canal". O "plano da rua" começa completamente fora de foco, à noite, debaixo de chuva (Fig. 24). A rua é filmada de frente, deixando ver, à esquerda, casas, um caminhão estacionado com o pisca-alerta ligado e postes de iluminação cuja luz se reflete no asfalto úmido. A porção direita do quadro é mais escura, e é dali, no fundo, que surgirá Florentina, caminhando com um passo decidido em direção à câmera. Ela para quando seu corpo está próximo o suficiente para ser visto em plano americano e quando se torna nítido. Ela enfrenta a objetiva, droit dans les yeux.

(Figs. 24-25) O "plano da rua" de Florentina Hubaldo, CTE: enfrentamento da objetiva.

Impossível supor o lugar de um personagem onde a câmera está situada: é em nossa direção que o personagem olha, é para nós que ela estende o braço, mantendo a posição apesar da chuva, que se intensifica (Fig. 25)62. Como os outros dois que o antecederam, o "plano da rua" também estimula olhar centrífugo, favorecido pelas vibrações luminosas, pela chuva que cai e pela passagem de alguns veículos. Ele se presta, igualmente, à rememoração dos planos de configurações próximas vistos anteriormente no filme. Além disso, ele interpela o espectador pela performance de Hazel Orencio, que sustenta esse pouco cômodo olhar para a câmera por longos minutos, apear das perturbações causadas pela chuva e pela passagem de automóveis. Somos também interpelados pelo silêncio da banda sonora nesse momento – trata-se de uma verdadeira ausência de som, sem qualquer registro de ambiência, nenhuma voz, nenhum barulho –, e pela maneira como os gestos do personagem se dirigem a nós. Tentaria ela escapar do espaço fílmico? Ou então se esforça por nos fazer sair de

62 Sobre o olhar para a câmera, cf. o texto emblemático de Marc Vernet, "Le regard à la caméra" (1983).

91 nossa posição de espectador63? Posicionar-se frente à câmera, olhar para ela, estender o braço em sua direção. Não apenas as regras da "sutura"64 se encontram quebradas, mas qualquer possibilidade de passividade ou letargia veem-se comprometidas.

3. Atenção, distração e o abraço no inumano

A gestão da atenção na contemporaneidade vem sendo objeto de estudo desde perspectivas distintas. De Jonathan Crary (2014), que examina a hiperdisponibilidade dos tempos atuais, marcados pela doença do déficit de atenção, a Yves Citton, que, raciocina em termos de uma "economia de atenção" que repousa em nossa capacidade de recepção dos bens culturais (2014, p. 16), diversos autores vêm manifestando sua preocupação para com a incapacidade de concentração e as armas de distração massiva oferecidas pela internet e pelas plataformas digitais.

"Nossas ferramentas de análise e conceitualização econômicas clássicas, embora ajudem a explicar os limites da (re)produção de nossos bens materiais, não se adaptam à situação de superabundância que caracteriza atualmente a circulação de bens culturais" (CITTON, 2014, p. 19).

De modo geral, essa "oferta pletórica" de informação vem sendo lamentada, por ocasionar olhares desatentos, esquecimento imediato, fadiga, superficialização, emburrecimento... E vem sendo, também, objeto de disputa, sabendo-se que hoje em dia segundos de atenção são precificados. Como os filmes longos e muito longos realizados por Lav Diaz inserem-se nesse contexto? Na contramão dos anúncios pop-up que saltam aos olhos do navegador e dos cliffhangers colocados nos roteiros de seriados para que o espectador sempre queira continuar assistindo, os filmes do cineasta filipino incitam um olhar flâneur, um estado de meditação subversiva entre o sono e a vigília, proporcionando

63 Para Nadin Mai, a mise en scène de Florentina Hubaldo evoca a experiência concentracionária (2015). 64 Faço referência ao texto de Jean-Pierre Oudart (1969), publicado originalmente nos Cahiers du Cinéma, que transpõe para o cinema o conceito lacaniano de separação entre sujeito e discurso. A "sutura" cinematográfica faz eco à ideia de "quarta parede", formulada originalmente por Denis Diderot para designar a parede invisível que garante a separação entre a cena teatral e os espectadores. Para Oudart, graças às regras da "sutura", que determinam, entre outras coisas, o jogo entre campo e contracampo, os cortes da montagem cinematográfica não são percebidos pelo espectador, que consegue recompor mentalmente um espaço fílmico unificado, mantendo-se conectado ao discurso fílmico. Não retomo as numerosas críticas feitas a essa proposta, por autores como David Bordwell (1985), para quem Oudart negligenciou a diversidade de estilos cinematográficos.

92 uma forma rara de convívio com as imagens. Em tempos de Antropoceno, de "Grande aceleração" rumo ao abismo, assistir, uma após a outra, às marchas alongadas de Florentina Hubaldo, oferece ao espectador a possibilidade de gerenciar a seu próprio sabor o equilíbrio entre atenção e distração. Ainda que não faça um cinema contemplativo e que seus filmes não sejam pós- dramáticos (que o provem as lágrimas de Florentina Hubaldo, personagem melodramática por excelência), Lav Diaz distribui de maneira generosa os elementos de seu filme, ocupando a duração do filme e o interior dos planos com ações distendidas e microeventos, oferecendo matéria rica para ser vista ou ignorada, conforme o espectador decidir. Jacques Aumont estabelece três categorias para marcar a distinção entre plano longo e plano sequência. Ele identifica inicialmente o "plano estático", "organizado em profundidade, em que diversas ações se desenvolvem ao mesmo tempo". Vem em seguida um tipo de plano "muito movimentado, em que se deseja antes de mais nada explorar um espaço", no seio do qual "o espectador não é especialmente 'livre'", mas "é conduzido pela mão, e levado a ver, um após o outro, os elementos da ação". Em terceiro lugar, Aumont coloca o "plano longo, simplesmente mantido por muito tempo, em que a passagem do tempo se torna o fator mais importante". Ainda que os três planos estudados ao longo deste capítulos sejam "estáticos" e "organizados em profundidade", essa terceira categoria é a que se aproxima mais do cinema de Lav Diaz65. A montagem em espiral que por assim dizer organiza Florentina Hubaldo reconcilia dois aspectos vistos por Aumont como contraditórios. O fato de levar "ao limite certa lógica do plano" para enfatizar seu "valor de unidade autônoma" tem por consequência a diminuição de "sua função de elemento em um conjunto". É verdade que, para Diaz, os planos são unidades plenas de sentido, explorados em seus limites, como atesta o plano final, de mais de 20 minutos, durante os quais Florentina se confia à câmera até desmaiar, o esgotamento da personagem sugerindo a fadiga também da atriz. No entanto, é a acumulação de planos que educa o olhar do espectador – e a experiência de visionar planos separados, mesmo os mais longos, está longe de reproduzir a radicalidade da sessão integral. A insistência com que as configurações se repetem, sempre com modificações, age sobre a memória do espectador. Os planos do início retornam como elementos de um conjunto mais amplo

65 Jacques Aumont, Montage « la seule invention du cinéma », Paris, Vrin, 2015, pp. 59-61.

93 que adquire, na duração, novas camadas de sentido. Em Lav Diaz, trata-se de um recurso necessário para que o espectador possa compreender, de maneira paradoxal, a amplitude das vidas ínfimas, que não são entrevistas como no lampejo benjaminiano, mas se mostram na duração de seu sofrimento, na persistência de seu enfrentamento das autoridades, na luta entre memória e esquecimento. Chakrabarty recorre à distinção, proposta pelo geólogo Jan Zalasiewicz, entre as maneiras de pensar "centradas no homem", próprias à história, e àquelas "centradas no planeta", sobre as quais se apóia a geologia. De fato, se tomamos por parâmetro o ciclo do carbono, que leva um milhão de anos, qual seria a relevância de considerações políticas sobre mudanças climáticas dentro das escalas temporais humanas? O fenômeno do aquecimento global, por sua vez, pode durar muito além da extinção do homo sapiens... A essas constatações vem somar-se a formulação de Nigel Clark, que incita seus leitores a "abraçarem o inumano" (CLARK, 2014, p. 27- 28). É talvez isso que façam os filmes de Lav Diaz: abracem o inumano, e nos ajudem a percebê-lo, para além de toda intriga e de todo drama. Trata-se, afinal, de um cinema em que as possibilidades de lembrar e esquecer são igualmente importantes, em como o são o ver e o não ver. A longa duração no cinema geológico, ao nos permitir ver o ínfimo do fundo cinematográfico, talvez nos dê a oportunidade de perceber que ínfimo é o lugar do homem no tempo e no espaço do planeta. Os eventos são apenas parte de um conjunto sempre maior, como ensinou Braudel; a verdade reside na profundidade de campo e não no primeiro plano, como dizia Bazin, e a natureza filmada por Diaz revela-se autônoma, animada, inesgotável.

94 III.D) Capítulo III Ainda a longa duração: desejo de margem66

"A shuffling and grating of imagined communities is taking place. And this is connected, as I say, with the arrival of a new technics of representation." (CLARK, 2006)

"Au-delà du texte philosophique, il n’y a pas une marge blanche, vierge, vide, mais un autre texte, un tissu de différences de forces sans aucun centre de référence présente." (DERRIDA, 1972, p. XIX)

1. Os limiares no centro

Durante 25 dias, em junho de 2017, o cinema do Museum of Modern Art de Nova York (MoMA) acolheu o ciclo A New Golden Age: Contemporary Philippine Cinema. A seleção proposta por La Frances Hui, curadora associada ao departamento de cinema do MoMA, compreendia dezoito filmes de treze realizadores filipinos67 pertencentes à terceira "era de ouro" do cinema filipino68 que "expandem, desde os anos 2000, as fronteiras cinemáticas"69. O que tudo isso quer dizer? O campo lexical de "fronteiras" convida a uma compreensão geográfica do fenômeno, enquanto "cinemáticas" atrai a expressão para uma conotação formal. Trata-se de uma referência às experimentações estéticas colocadas em obra pelos filmes do ciclo e a seus "distintos partidos cinemáticos"? Ou então é a própria exibição de filmes filipinos em Nova York que é vista como inflexão nas fronteiras cinemáticas geográficas? No fundo, as dúvidas convergem para a questão seguinte:

66 Este capítulo retoma e aprofunda o texto apresentado no colóquio "Puissances esthétiques des lisières culturelles", realizado pela Universidade Lumière Lyon II em novembro de 2016. Agradeço a Jessie Martin e a Dario Marchiori pelas observações feitas após minha comunicação, naquela ocasião, norteadora de algumas das mudanças operadas. 67 No programa, filmes de Adolfo Alix, Jr., Ato Bautista, Lav Diaz, Ramona S. Diaz, Pepe Diokno, Hannah Espia, Raya Martin, Erik Matti, Brillante Mendoza, Marlon Rivera, Isabel Sandoval, Kidlat Tahimik. 68 A primeira teria ocorrido nos anos 1950 e a segunda, nos anos 1970. 69 A expressão original é « push cinematic boundaries ». https://www.moma.org/calendar/film/3843, acesso em 8 de novembro de 2017.

95 como dizer a "marginalidade" de uma obra fílmica sem se interrogar sobre o teor desse substantivo polissêmico? Marginalidade é condição cultural ou consequência de uma opção formal? Tais imbricações encontram especial ressonância no cinema do realizador filipino Lav Diaz (Mindanao, 1958), associado a uma marginalidade que é ao mesmo tempo cultural, estética e econômica. Para além de sua nacionalidade "periférica" na geopolítica do cinema70, o cineasta era percebido, até recentemente, como marginal também no interior do cinema filipino. No que diz respeito à fatura de seus filmes, a opção pelo preto e branco e pela montagem que privilegia planos longos e extremamente longos poderia ser entendida como reivindicação de um lugar de marginalidade. De fato, como atribuir a filmes com mais de 300 minutos algo que não seja um lugar marginal na grade de programação das raras salas que chegam a exibi-los? Com base em uma análise de uma das últimas realizações de Diaz, Canção para um triste mistério (Hele sa hiwagang hapis, 2016)71, desde a perspectiva das modalidades espectatoriais que o filme supõe (HANSEN, 1991) e apoiada na defesa baziniana da impureza cinematográfica (BAZIN, 2010 [1951]), este capítulo tratará de nuançar cada uma das afirmações acima. No lugar do círculo tautológico de uma marginalidade sofrida, consequência da geografia ou da radicalidade formal, erguer- se-á uma visão da filmografia de Lav Diaz enquanto encarnação de uma marginalidade própria a um estado contemporâneo do cinema. Canção... complexifica a oposição entre cinema comercial e cinema independente72. Décimo-primeiro longa-metragem de Diaz, Canção... é seu primeiro filme a conhecer uma distribuição comercial nos multiplexes e cinematecas de seu país, e isso apesar de sua duração estendida (485 minutos). Mais do que reivindicação de um lugar a priori marginal, a longa duração será encarada aqui como afirmação da variedade de experiências possíveis na relação do cinema contemporâneo ao tempo, em que as sessões de duas horas constituiriam uma modalidade entre outras, não fazendo justiça à diversidade da relação da humanidade com o passar do tempo.

70 "País situado na periferia do sistema capitalista mundial" (ANDERSON, 2009), as Filipinas produzem um cinema a priori forçosamente marginal. Shohat e Stam (1994) sublinham porém importantes surtos de produção que o país conheceu, com mais de cinquenta filmes por ano, às vezes mais que 100 por ano, dado que não é totalmente ignorado pela historiografia tradicional – Sadoul (1983), por exemplo, o menciona. 71 Em inglês, o título é Lullaby to the Sorrowful Mystery. 72 Reforço aqui os limites da categoria cinema nacional enquanto "outro" do cinema hollywoodiano (HENNEBELLE, 2004; SHOHAT & STAM, 1994), questão mencionada anteriormente, na introdução deste relatório.

96 De acordo com a hipótese aqui defendida, o tempo dilatado favorece uma espectatorialidade predisposta à postura analítica e consciente das condições de visionamento, algo que, em Canção..., é favorecido pela imagem de espectadores em posição de visionamento. De fato, o filme reconstitui a chegada histórica do cinematógrafo dos Lumière às Filipinas, no fim do século XIX, em um contexto em que as imagens em movimento eram projetadas em meio a programas de variedades. Joga-se, assim, luz sobre a impureza constitutiva da arte cinematográfica, presente desde seu surgimento, num gesto que se distancia de uma visão essencialista da "sétima arte", na linhagem do manifesto de Canutto. Como outros cineastas contemporâneos adeptos do plano longo e admiradores confessos de Bazin, Lav Diaz é por vezes associado a uma estética realista ancorada na utilização do plano longo e na recusa da montagem em campo-contracampo. Para o estudo de Canção..., "Por um cinema impuro. Defesa da adapção" constitui uma leitura mais pertinente, primeiro porque o filme se baseia em uma obra literária (os livros do nacionalista filipino José Rizal). Em seguida, e sobretudo, porque esse filme propõe uma visão do cinema como arte dos limiares, em contato com outras artes desde o momento de seu surgimento – e seu espectador, conforme veremos, não é somente espectador de cinema. Um entrelaçamento entre impureza "cultural" e "artística" caracteriza as diferentes acepções de "marginalidade" em operação no cinema de Lav Diaz. Em sua filmografia, nacionalismo e internacionalismo, marginalidade e centralidade, visibilidade e invisibilidade não são somente antônimos. Ao invés de negarem-se mutuamente, esses elementos revelam-se inseparáveis, constitutivos de singularidades que incluem seus próprios limites. Canção... coloca em evidência os paradoxos do nacionalismo filipino, forjado em aliança com o anarquismo internacionalista (ANDERSON, 2006; CLARK, 2006). O realizador deixa ouvir, pela diversidade linguística do filme, os diferentes componentes culturais de uma nação-arquipélago ao mesmo tempo em que, pelo uso do preto e branco, esconde a distinção visual entre as etnias baseada na cor da pele. A mise-en-scène reitera as regras de perspectiva do Renascimento ao mesmo tempo em que convida o espectador a conduzir seu olhar para as margens da imagem – e as magens da nação. Em sua retomada de "Por um cinema impuro", Jerslev e Nagib (2013) atualizam a impureza baziniana, característica de um cinema permeável à influência de outras artes, desdobrando-a em uma ideia de impureza própria às obras

97 "interculturais" e "transnacionais". O ensaio de Bazin tinha como objetivo a defesa da adaptação de obras teatrais ou literárias, gênero cinematográfico então desprezado por ser demasiado popular e pouco inventivo. Bazin não concordava com a visão de que basear um filme em um livro ou uma peça teatral significava colocar o "savoir-faire" cinematográfico, então em pleno desenvolvimento, "ao serviço de obras estrangeiras a seu gênio" (BAZIN, 2010, p. 84-85). O adjetivo "impuro" do título havia sido escolhido em oposição ao "cinema puro" de Chomette, Clair e Dulac, e exprimia seu desacordo com a ideia de autossuficiência do cinema, compartilhada por Arnheim, Balázs e Epstein (ROSEN, 2013, p. 13). As implicações de sua escolha vocabular talvez não lhe tenham passado desapercebidas. Hugh Gray, tradutor estadunidense de Bazin, evita a expressão "impur cinema" por suas prováveis conotações racistas, simplificando o título para "In Defense of Mixed Cinema". A ampliação da visada baziniana proposta pelo volume Impure Cinema apoia-se, de uma parte, sobre a estranheza desse adjetivo (NAGIB, 2013, p. 22), levando em conta, por outro lado, a evidente tomada de posição política de Bazin contra o elitismo dos defensores da pureza cinematográfica contra um cinema dito "de massas". A posição do autor de O que é o cinema se revela assim "visionária", não somente em razão do desenvolvimento posterior dos estudos da "intermidialidade"73, mas também porque haveria nela elementos permitindo um acordo subsequente com a defesa pós-estruturalista da hibridação e com o aporte dos estudos culturais em sua compreensão da alteridade e das minorias. Interessado no lugar das culturas intersticiais e das minorias de classe, gênero e raça no crepúsculo do século XX, Homi K. Bhabha (1998) afirma que a "psicose do fervor patriótico" de que dão prova o nacionalismo extremado de certos movimentos políticos indicaria não uma recrudescência das identidades nacionais, mas "um sentimento mais transnacional e translacional de hibridação das comunidades imaginadas". De acordo com o autor,

73 Lav Diaz "bebe na fonte" das artes que "margeiam" o cinema de diferentes maneiras, o que por um lado se evidencia no fato de que seus filmes começam a ser vistos em espaços dedicados à arte contemporânea (como a retrospectiva organizada por May Adadol Ingawanij, Michael Mazière, George Clark e Julian Ross, que ocupou a London Gallery West). Por outro lado, seus filmes se abrem plenamente à literatura (além de Canção, baseado na literatura de Rizal, The Woman Who Left inspira- se em Tolstói), à música (em que o lugar da canção do gênero "kundiman" em Canção... constitui um exemplo notável), ao teatro e às artes visuais (diversas sequências de Florentina Hubaldo, CTE e The Woman Who Left dão prova de uma lógica própria à performance).

98 Os próprios conceitos de culturas nacionais homogêneas, de transmissão consensual ou contígua de tradições históricas, ou de comunidades étnicas 'orgâncias'– enquanto base do comparativismo cultural –, estão em profundo processo de redefinição. (BHABHA, 1998, p. 24, grifos do autor)

É a visão andersoniana dos imaginários nacionais que está em jogo: Bhabha incita a uma abertura para a "metaforicidade dos povos das comunidades imaginadas", para chegar à constatação da não-horizontalidade do espaço do povo- nação moderno (BHABHA, 1998, p. 201). De fato, Anderson funda seu pensamento sobre imaginários nacionais no estudo da articulação as elites criollas que defendiam a independência filipina. Se as nações e os nacionalismos são antes de mais nada invenção (ANDERSON, 1996; GELLNER, 1993; HOBSBAWN, 1992), Anderson não proclama "o fim da era do nacionalismo". A condição nacional (nation-ness) lhe parecia, no momento de sua escrita, o mais importante valor de legitimidade universal na vida política. O internacionalismo é fundamental na história do nacionalismo filipino: é do exterior e por meio da correspondência com revolucionários cubanos e anarquistas espanhóis que os independentistas filipinos se organizam, escrevem, publicam, em uma espécie de mundialização avant la lettre – o que não é muito distante da circulação de ideias e livros contrabandeados junto com os viajantes, fenômeno presente, por exemplo, nos movimentos independentistas da América Latina e, no caso brasileiro, a influência das ideias liberais na Inconfidência Mineira. A narrativa de sua articulação, por meio do telégrafo, do jornal e do correio, desestabiliza o clichê de uma nacionalidade filipina isolada do resto do mundo. Anderson sublinha a intensidade e a versatilidade da escritura dos independentistas filipinos, entre os quais destaca-se o médico, jornalista, escritor e líder político José Rizal (1891-1896). A escolha dos romances de Rizal como base para Canção... é significativa. A promoção do filme tentou tirar partido da temática federadora, associando as sessões de oito horas a um "desafio patriótico", o hele chalenge (INGAWANIJ, 2017, p. 427; SALLAN, 2017). Encontra-se, aí, problematizada a divisão esquemática do cinema filipino contemporâneo entre "produção comercial e popular" de um lado, e "cinema independente voltado à experimentação formal" de outro. Diaz recusa essa separação binária entre cinema de autor e cinema "de massas" que o coloca junto aos cineastas independentes, estrangeiros às lógicas comerciais, e se afirma desejoso de atingir o

99 público mais amplo possível. Para tanto, convoca um casting de estrelas da TV e do cinema local74. Esses dois fatores, junto com o reconhecimento internacional do filme, contribuem para uma distribuição comercial até então desconhecida em sua trajetória: depois de ter sido premiado em Berlim, Canção... foi exibido comercialmente em todo o país. À primeira vista, o filme poderia ser classificado como "drama histórico". Tal uma floresta de caminhos que se bifurcam, ele se desenvolve em uma narrativa dupla, talvez tripla. Há, em primeiro lugar, a narrativa histórica, baseada em eventos effetivamente ocorridos durante a Revolução Filipina (1896-1898). Em seguida, há a adaptação da obra ficcional de Rizal. Mas as coisas são mais complicadas: o autor dos romances Noli me tangere (1886) e El Filibusterismo (1891) aparece no filme primeiro enquanto personagem da história nacional conhecida. Já no início nós assistimos a sua execução. São ouvidos na sequência versos do poema Mi ultimo adiós (1896), e o estilo da escrita de Rizal ressoa em certos diálogos. Mais surpreendente: Canção coloca em cena a história de diversos personagens da pluma de Rizal, como Isagani, Basilio, Simoun, Paulita. A essa dupla narrativa, histórica e ficcional, acresce-se uma terceira camada, "sobrenatural", com aparições entre o fantasmagórico e o surrealista, entre o culto religioso, o mito e o sonho. Já em seus filmes precedentes, literatura, teatro e música eram manifestos. A literatura em particular oferece a Diaz não somente objetos de adaptação, mas um método: ele afirma pensar na escrita de um romance quando cria a estrutura de seus filmes, e na poesia como instrumento para neles introduzir sua visão de mundo75. Filmar os romances de Rizal equivaleria a por em cena um emblema da "literatura de fundação nacional" (SOMMER, 2004). O filme, no entanto, presta-se pouco ao papel de objeto de culto patriótico. Sua narrativa da independência coloca à sombra momentos heroicos, enquanto capítulos obscuros adquirem existência e visibilidade raras. Rizal, mártir e herói, não tem rosto no filme. Ocupa um terço do filme uma passagem sombria da história nacional: a traição que conduz à morte de Andrés

74 Dentre as estrelas de maior renome nas produções audiovisuais filipinas estão Piolo Pascual, que interpreta de Simoun; John Lloyd Cruz, no papel Isagani ; Alessandra de Rossi, como Cesaria Belarmino. Hazel Orenzio, colaboradora frequente de Diaz, vive Gregoria de Jesus. 75 The Day Before the End, curta-metragem de 2016 premiado no Festival d’Oberhausen, é uma adaptação livre de A Tempestade de Shakespeare (1610-1611). Evolution of a Filipino Family (1993- 2005) deve sua estrutura aos romances-rio (ou "romans-fleuve") e às sagas familiares, ou seja, narrativas que se desdobram em diversos volumes, acompanhando a trajetória dos mesmos (e frequentemente numerosos) personagens através do tempo. Em busca do tempo perdido (1908-1922), de Marcel Proust, é um dos exemplos mais emblemáticos de "roman-fleuve".

100 Bonifacio, um dos pilares do "Katipunan", nome dado à sociedade revolucionária filipina fundada em Manila em 1892 com o objetivo de libertar o arquipélago do jugo espanhol. O assassino de Bonifacio teria sido Emilio Aguinaldo, membro da mesma organização. O entrelaçamento entre público e privado, entre história nacional e história individual, produz não uma "ficção de fundação" no sentido que Doris Sommer dá à expressão: não há teleologia conduzindo a destinos de esperança e redenção (JAMESON, 1986; SOMMER, 2004), mas um filme-lamento pelo destino de um povo que não cessa de dissolver-se. Na obra de Diaz, a dissolução cultural se exprime também por meio do estiramento do tempo e da contaminação da imagem cinematográfica por outras práticas artísticas e de espetáculo, perfazendo uma experiência de cinema impura e coletiva. A diegese de Canção... se passa entre 1896, ano da morte de Rizal, e 1898, quando a independência das Filipinas é declarada. É durante esse período que a primeira projeção do cinematógrafo dos Lumière tem lugar no arquipélago. A demonstração de uma sessão cinematográfica em Manila em 1897 contribui para afirmar a conexão do arquipélago filipino com a modernidade internacional.

2. Seja marginal, seja herói

Como Diaz estimula uma postura espectatorial analítica e consciente de seu entorno? Em seus filmes precedentes, o cineasta já convidava o espectador a desenvolver um olhar centrífugo, atento aos eventos e micro-eventos situados na periferia do quadro e nas zonas de sombra – um bom exemplo é a sequência inicial de Florentina Hubaldo CTE (2012), tema do capítulo anterior, em que folhas agitadas pelo vento às margens da imagem chamam nossa atenção, em concorrência com a estrada que figura no centro, de modo a retirar o fundo cinematográfico de sua insignificância habitual (BONAMY, 2013). Além de reconduzir tal tipo de agenciamento estranho entre figura e fundo, Canção... põe em cena situações de espetáculo que rompem com as convenções de frontalidade e marginalidade. Pontos cegos adquirem visibilidade, convidando-nos a refletir sobre a experiência espectatorial contemporânea. Quando sobrevém a sequência de apresentação do cinematógrafo Lumière ao público filipino, depois de passados cerca de 140 minutos de filme, o espectador do

101 filme já havia sido interpelado por outros momentos de espetáculo e pela imagem de espectadores no filme76. A cada vez, o papel dos espectadores na ação e sua posição no quadro aparecem de maneira estranha, problematizando o que, na visão clássica do dispositivo cinematográfico, caracteriza a oposição entre espectador e espetáculo77. Nos momentos de espetáculo de Canção, os olhares divergem. Os espectadores estão apenas ocasionalmente sentados, e no espetáculo da cinematografia, a obscuridade também está presente na tela. A primeira das situações de espetáculo se dá no momento da execução de Rizal, ocorrida no fora de campo (fig. 26). Ocupam a tela corpos de homens e mulheres que, em pé, com expressões de tristeza e terror, assistem à cena. São filmados frontalmente em um plano fixo que reproduz o ponto de vista dos fuzis que ameaçam os espectadores – compreende-se que são admiradores de Rizal, enquanto seus detratores se situam alhures, estando, para nós, invisíveis. Do instante da morte, temos acesso somente ao som. Alguém ordena "Preparar! Atacar! Fogo!" e logo sobrevêm os barulhos de tiros, aplausos e gritos de "Viva a Espanha". Na audiência, o corpo de Isagani se destaca. Introduzido nos planos precedentes do filme, esse personagem, um dos protagonistas da ficção de Rizal, vive ali um estranho face a face entre criador e criatura.

(Fig. 26) Canção para um triste mistério (Lav Diaz, 2016): a execução de José Rizal, no quinto plano do filme, ocorre no fora de campo, nos é transmitida pelo olhar daqueles que assistem a ela.

76 Miriam Hansen utiliza essas duas expressões (em inglês: spectator-in-the-film / spectator-of-the-film) para referir-se à imagem do espectador em filmes do cinema dos primeiros tempos, entre os quais Uncle Josh at the Moving Picture Show (Edison, 1902) (HANSEN, 1991, p. 28). 77 Nos termos empregados por Mary Ann Doane, "a penumbra da sala e o consequente isolamento do espectador individual; o posicionamento do projetor, fonte da imagem, atrás da cabeça do espectador; e o efeito de real produzido pelo filme de ficção clássico" (DOANE, 1987, p. 34). Cf. também Baudry (1975).

102 Outro exemplo de performance espetacular tem lugar pouco depois. Filmada diagonalmente no pátio lateral de uma igreja, uma garota cega recita, em um espanhol marcado pelo sotaque tagalog, os setenta versos de Mi último adiós, poema escrito por Rizal na véspera de sua morte (fig. 27). O público a envolve, presente atrás, ao lado e na frente da menina, distribuindo-se pelos limites laterais do quadro. Aqui também a ação nos é fornecida em um plano único que dá a medida do desafio da jovem atriz.

(Fig. 27) Canção para um triste mistério (Lav Diaz, 2016): uma garota cega declama um poema de Rizal para a plateia que a envolve, disposta pelos limites do quadro.

Canção... contém igualmente momentos de espetáculo musical. Ouvida diversas vezes no filme, a canção a que o título faz referência se chama Jocelynang Baliwag. Faz parte de um gênero tradicional, o kundiman. Ouvido sobretudo à noite, em serenatas, e cantado em tagalog, o kundiman tem em geral acompanhamento de um violão ou violino, e seus compassos lembram a valsa. As letras, ora românticas, ora patrióticas, indicam tanto a função de ninar quanto à de fazer o luto. Rizal compôs algumas. Popular no fim do século XIX, Jocelynang Baliwag, conhecida como "kundiman da Revolução", reveste-se de forte amor à pátria. No filme, Isagani é o primeiro que ouvimos tocando a música, em um plano fixo de pouco mais de 6 minutos. Sua amada Paulita está a seu lado, e só ocasionalmente volta seu olhar a ele. Em seguida, em outro plano fixo de 6 minutos, Isagani toca em uma clareira da floresta, cercado de homens em sentinela que olham para todas as direções; ele está no centro, mas a imobilidade do quadro e as linhas de força estabelecidas pelo olhar dos combatentes convidam o espectador a desenvolver um olhar "passeador".

103

Na apresentação do cinematógrafo, a tela ocupa o centro do quadro enquanto a audiência se dispõe de maneira relativamente periférica. A sequência começa com uma introdução explicativa, feita pelo capitán general, que convida seu interlocutor a acompanhá-lo nessa demonstração de cinematografía: "É uma nova invenção, recém- chegada da França", diz ele, em um espanhol de sotaque inglês. "Quando me submeti a ela pela primeira vez, vi um mundo outro. Um mundo diferente". Esse capitán entra na sala em companhia de um padre e, juntando-se ao público já presente, assiste, em pé, a um número de magia (Fig. 28). Debrucemo-nos por alguns instantes sobre a estranha composição. O capitão e o pároco entram no quadro pela direita e a câmera, que os filma ligeiramente em plongée, faz um sutil movimento panorâmico em direção à esquerda, seguindo o movimento dos dois, e logo se estabiliza.

(Figs. 28 e 29) Canção para um triste mistério (Lav Diaz, 2016): o banco vazio no centro do quadro, no número de magia, e a sessão de demonstração do cinematógrafo Lumière.

Vazio, um banco de três lugares está disposto de viés no centro da imagem, dividindo-a diagonalmente em dois. O banco está voltado para a direita do quadro, dando as costas ao mágico, situado à esquerda. Os espectadores envolvem o mágico, seguindo os limites laterais, inferior e superior do quadro, mas nós os vemos apenas parcialmente – daqueles que estão na parte inferior do quadro, vemos as costas; dos demais, fragmentos do rosto ou as mãos que se agitam para aplaudir ou pegar uma pomba tirada da cartola. O plano seguinte é ambientado em uma varanda. No centro do quadro e das atenções está um jovem de língua espanhola que explica, qual um "bonimenteur" afeito a digressões, o que ocorrerá na tela dentro do filme e na tela do filme. À dezena de pessoas distribuídas a seu redor, nos limites laterais e inferior do quadro, estando praticamente fora de campo, ele faz um longo monólogo, que me permito aqui

104 reproduzir:

Esta noite, visualizaremos um espetáculo de cinematografía vindo diretamente de Paris. Obra-prima dos irmãos Lumière78 (....), visionários da fotografia em Paris. Eu estava na estreia, no dia 25 de dezembro de 189579. Sou, portanto, o primeiro nas Filipinas a ter visto este filme. No Grand Café de Paris, eu era um convidado especial, sabe, padre. Esta noite, quero que vocês aproveitem essa grande experiência. Devo admitir que fiquei um pouco nervoso. Muita gente saiu correndo (...). Agora que vocês sabem que se trata de uma simples ilusão, não tenham medo, aproveitem. Agora que Rizal está morto, celebremos!" Todos levantam os braços e brindam. "Agora que o Filibusterismo caiu, não temos mais nada a temer. Nada e ninguém. A Espanha permanecerá nas ilhas filipinas. Sim, sim. E Bonifácio, Andresito Bonifacio, seguirá os passos de seu amigo e companheiro José Rizal. Morerrá nas mãos de Aguinaldo. É uma novidade. Agora, eles se matam entre si. (...)

O espetáculo de cinematografia aparece no terceiro plano dessa sequência (fig. 29). A tela luminosa ocupa o centro do quadro, o resto do espaço estando imerso na obscuridade, inclusive os corpos dos espectadores, visíveis somente quando uma silhueta ou uma cabeça faz obstáculo à luz. No interior da imagem projetada, a composição apresenta configuração similar, com zonas de sombra ocupando as laterais. Com textura lisa própria ao digital, os filmes projetados recolocam em cena o medo legendário dos primeiros espectadores do cinematógrafo, que teriam fugido de seus assentos frente à visão de trens ou ondas que se aproximavam (HANSEN, 1991, p. 26). Enquanto nas cenas de espetáculo precedentes os espectadores eram vistos frontalmente e nos limites do quadro, iluminados e em movimento, durante a projeção do cinematógrafo eles estão escondidos sob a penumbra, visíveis somente pelo contorno de suas cabeças frente à tela. Uma vez mais, há nessa cena uma tensão entre o que está no centro da imagem e a massa negra que envelopa o restante do quadro, de modo a desorganizar nosso olhar. No quadrado luminoso do centro, vemos um chafariz, e um homem que caminha em direção à câmera para saltar, sugerindo sua saída do espaço fílmico e sua invasão no espaço do público, o que provoca frisson nos espectadores-dentro-do- filme. A estrutura do filme que ocupa a tela é em seguida a mesma: um homem sem camisa portando uma pá está em frente a um lago; de repente, ele se volta para a câmera e salta – a audiência grita. Outro tipo de projeção se inicia: em frente à tela

78 Nesse momento como em outras situações do filme, as legendas divergem ligeiramente da banda sonora, precisando "Auguste e Louis Lumière" no lugar de "irmãos Lumière". 79 Neste caso, as legendas corrigem a data, substituindo o dia de Natal por 28 de dezembro de 1895.

105 branca desfila a silhueta de um monstro. O público fica histérico. O plano seguinte, já no exterior da sala, mostra espectadores em fuga. Miriam Hansen observa que os espaços que abrigavam o cinema dos primeiros tempos serviam originalmente a espetáculos de vaudeville. As convenções da espectatorialidade cinematográfica começam a se estabelecer somente nos anos 1900. De fato, ao longo da primeira década do século XX, diversos filmes colocam em cena a incompreensão do espectador de cinema frente ao que ele vê – e a tentativa de franquear a separação entre o espaço fílmico e o espaço do público é um exemplo recorrente. Antes que o cinema encontre lugar próprio – com o nickelodeon – os filmes eram vistos, como a sessão de demonstração do cinematógrafo realizada por Diaz sugere, entre outras formas de espetáculo, em programas baseado sobretudo na variedade e na "sucessão rápida de filmes e performances", o que encorajava "um modo de recepção incompatível com o reivindicado pela artes tradicionais" (HANSEN, 1991, p. 29). Essa lógica garantia um aporte de "distração" e "diversão", algo que, na visão de Kracauer (1987) e Benjamin (2013), favorecia a crítica da cultura burguesa (HANSEN, 1991). Na sequência de demonstração do cinematógrafo, Diaz recoloca em jogo a polaridade entre atenção e distração, trazendo o espetáculo cinematográfico em meio outras manifestações artísticas.

3. O lugar do espectador está vazio

O desenvolvimento do filme é pontuado pela combinação entre narratividade e lógica de atrações, de maneira comparável à do cinema dos primeiros tempos. Refiro- me às proposições bem conhecidas de Tom Gunning e André Gaudreault, para quem, no primeiro cinema, a narração oferecia sobretudo um quadro para que os espectadores contemplassem o espetáculo do cinema, as maravilhas de que a nova invenção era capaz. Gunning nuançou a oposição entre a obra dos irmãos Lumière e a de Méliès, afirmando a existência de uma concepção comum de cinema, "menos como maneira de contar histórias do que como modo de apresentar uma série de vistas a um público" (GUNNING, 1986, p. 57). Charles Musser (2006, p. 395) acrescentaria em seguida algumas precisões a tal ideia, defendendo que, no primeiro cinema, narração e atração encontram-se imbricados, integrados, notadamente nos Lumière e

106 em Méliès. Do que se pode ver dos filmes projetados na sessão de demonstração do cinematógrafo em Canção..., a atração do próprio cinematógrafo seria preponderante sobre as possibilidades narrativas. De modo global, porém, o filme conjuga esses dois polos o tempo todo: a narratividade desse drama histórico é evidentemente muito forte, mas o avanço da narrativa é o tempo todo interrompido por momentos de espetáculo e momentos de espera, em que uma postura espectatorial contemplativa, meditativa e analítica se coloca em operação. A sequência do cinematógrafo reproduz a alternância entre atrações fílmicas e não-fílmicas constitutiva do contexto de exibição do cinema dos primeiros tempos, o que favorecia formas coletivas de recepção, por exemplo em razão da natureza interativa e social das atrações não-fílmicas. A sequência analisada sugere um ligeiro deslocamento do público de um número a outro, o que talvez possa explicar diegeticamente o banco vazio disposto no centro do quadro no plano do mágico (Fig. 28) – ele seria ocupado na atração seguinte. A imagem desse banco vazio é perturbadora. Haveria interpretações (ou sobreinterpretações) capazes de preencher a ausência que ele figura? Trata-se de um manifesto contra a passividade da audiência? De um auto-humor com referência ao público pouco afluente dos filmes de Diaz? Uma piada a respeito do cinema que perde espectadores em comparação com outras opções de visionamento? Uma possibilidade seria vê-la como convite para que o espectador adote uma postura analítica e consciente das condições de visionamento. Em um artigo recente sobre um conjunto de filmes agrupados sob a categoria de "slow cinema", Tiago de Luca afirma que o modo "contemplativo" de certos filmes provocaria no espectador uma consciência aumentada da situação de visonamento (2016, p. 25). Baseando-se na análise de três filmes que compartilham o desejo de refletir sobre a espectatorialidade cinematográfica – Good Bye, Dragon Inn (2003) de Tsai Ming-liang, Fantasma (2006) de Lisandro Alonso et Shirin (2008) de Abbas Kiarostami –, o autor vê nesse cinema lento "uma modalidade enunciativa que necessita da sala de cinema para que o contrato espectatorial seja inteiramente cumprido (DE LUCA, 2016, p. 23). A duração de seus filmes e seus planos, frequentemente fixos, fazem com que Lav Diaz seja visto como representante do slow cinema, classificação problemática ao menos para este caso específico, a qual o cineasta e alguns de seus melhores

107 comentadores não aderem80. Povoadas por um grande número de personagens e compreendendo diversos eventos, as narrativas de Diaz podem dificilmente ser vistas como características de um cinema puramente contemplativo. Tais ressalvas feitas, devo dizer que, se não adoto o "slow cinema" como categoria analítica, minhas análises da obra de Diaz esposam os propósitos de De Luca em diversos aspectos. No polo oposto do cinema imersivo proposto por Jonas Mekas, Peter Kubelka, Michael Snow e Hollis Frampton, a experiência cinematográfica rara que Diaz oferece a seus espectadores favorece uma postura espectatorial analítica, fazendo surgir um novo "espectador pensativo" (BELLOUR, 1984). Se, em "Le texte introuvable", Bellour (1979) tenta compreender o congelamento da imagem enquanto gesto primordial da análise fílmica, aqui ela surge no fluxo. Durante os longos momentos em que quase nada ocorre na tela, somos convidados a observar a textura da imagem, a iluminação, a composição do quadro, etc. A longa duração contribui para uma dispersão da atenção dirigida à tela, agora dirigida também ao que ocorre no espaço em que ela se situa. Contribui, também, para o exercício de um olhar centrífugo. Se Diaz não se vê especialmente ligado à sala escura, aceitando exibir seus filmes nos mais variados espaços, Canção... tampouco é indiferente às condições de visionamento. A sessão coletiva, em sala, impõe seu ritmo ao espectador, criando, no caso de Diaz, momentos de pausa coletiva (AUMONT, 2012). A experiência da duração que o cineasta propõe se enfraquece em um visionamento doméstico, em que é difícil manter a mesma atenção81. As sessões coletivas de Diaz reiteram a sensação de um aqui e agora compartilhado, de eventos vividos coletivamente, como, aliás, é o caso das páginas de Rizal que o historiador Anderson analisa: "a ficção se infiltra silenciosamente na realidade e cria essa admirável confiança da comunidade no anonimato que constitui a marca das nações modernas" (ANDERSON, 2009, p. 69)82.

80 Cf. Ingawanij (2017, p. 412-413), além de declarações do próprio Diaz, como as proferidas durante o Festival de Berlim: "it’s not slow cinema, it’s just cinema" (S.A., 2016). 81 Diaz desenvolve uma maneira particular de mobilizar seu espectador, entre atenção e distração, em um estado meditativo. Não posso me estender sobre a questão aqui – tive a oportunidade de abordá-la alhures (MONTEIRO, 2017a). 82 Há muita potencialidade a ser explorada nesse diálogo entrelaçado entre a escrita literária de Rizal, a teoria histórica de Anderson e a escrita cinematográfica de Lav Diaz, o que pretendo fazer no aprofundamento desse trabalho, ao longo do próximo ano de bolsa.

108 Derrida, para quem trabalhar o conceito de limite equivale a trabalhar no limite do conceito, defende a impossibilidade de pensar nas margens sem repensar naquilo que elas cercam. Ele abre seu livro Margens da filosofia com um ensaio sobre o tímpano, fronteira oblíqua entre o interior e o exterior do corpo. O filósofo povoa as margens de sua página de texto com uma descrição de ornamentos das margens escrita por Michel Leiris, o que lhes confere uma visibilidade nova e reduz a centralidade da página (Fig. 30). Pouco interessado no número de ingressos vendidos por seus filmes, Diaz encontra uma maneira surpreendente de dar visibilidade às margens – culturais, artísticas, naturais. Pelo agenciamento rizômico de seus personagens, pela composição de seus planos e pela maneira como seus filmes se inserem em um hábito e uma cultura cinefílica, ele parece afirmar que as potências dos limiares – do cinema, do cinema filipino – se situariam justamente em sua impureza, sua porosidade, seu dinamismo próprio aos interstícios. Na dissolução dos mitos nacionais e das fronteiras entre as experiências artísticas.

(Fig. 30) Páginas do capítulo dedicado ao tímpano no livro Marges de la philosophie [Margens da filosofia], do filósofo francês Jacques Derrida. Dando visibilidade às margens da página, descrições de ornamentos da lavra de Michel Leiris.

109

Se há margens do cinema, ainda há um cinema, o cinema? Trata-se, aqui, de interrogar, parafraseando Derrida, a própria existência do cinema em uma época em que os formatos de filmagem e projeção se veem transformados radicalmente, e em que a experiência espectatorial parece ter encontrado uma condição próxima daquela do cinema dos primeiros tempos, antes que as convenções tenham sido estabelecidas. Cada filme e cada situação de visionamento inventam um novo espectador, e a experiência da sala se torna, pouco a pouco, marginal, ela também. De novo uma arte entre outras, visto por espectadores sentados, deitados ou em movimento, o cinema contemporâneo volta a ser marginal, raridade sem aura. Neste ponto, a proposição baziniana de impureza se revela efetivamente visionária:

Como esses rios que têm seu leito definitivo e perderam a força de levar suas águas ao mar sem arrancar um grão de areia a suas margens, o cinema se aproxima de seu perfil de equilíbrio. (...) Esperando que a cor ou o relevo devolvam provisoriamente a primazia à forma e criem um novo ciclo de erosão estética, o cinema não pode conquistar mais nada na superfície. Resta-lhe irrigar suas margens, insinuar-se entre as artes que ele tão rapidamente erodiu, cavando grutas, investir-lhes insidiosamente, infiltrar-se no subsolo para forjar galerias invisíveis. Virá talvez um tempo de ressurgências, ou seja, de um cinema novamente independente do romance e do teatro (...). Esperando que a dialética da história da arte restitua-lhe essa desejável e hipotética autonomia, o cinema assimila o formidável capital de temas elaborados e acumulados pelas artes ribeirinhas ao longo de séculos. Ele se apropria disso porque necessita, e porque nós desejamos encontrá-las através dele (BAZIN, 2010, p. 105- 106).

110 III.E) Capítulo IV Longa duração e análise fílmica. De como cindir o tempo

1. Questões de método: fragmentação e continuidade Reflexão metodológica sobre como trabalhar, desde uma perspectiva da análise de filmes, com o cinema de longa duração, este capítulo reproduz, em sua estrutura, elementos caros à dialética entre instante e duração que marca o debate entre as concepções de Bergson e Bachelard, entre duração e instante, depois retomadas por Deleuze. A questão paradoxal que a pesquisa não se furtou a enfrentar resume na seguinte formulação: se a análise fílmica pressupõe, como a própria expressão já indica, a segmentação do filme em partes, seria possível analisar a duração enquanto negação da fragmentação e defesa da continuidade? Ao observar, em Bergson e em Renais, a coexistência entre presente e passado, entre continuum e fragmentação, Deleuze (1985, p. 151 e seguintes) nos dá pistas de como trabalhar analiticamente a duração, numa posição de conciliação entre plano longo e montagem, entre instante e duração. Característica premente de alguns expoentes do cinema contemporâneo independente, a longa duração tem sido encarada como sinônimo de resistência em uma época marcada pela aceleração do ritmo de edição no cinema mais comercial (BALSOM, 2007) e por exigências de eficiência e disponibilidade 24 horas por dia, sete dias por semana (CRARY, 2014). O projeto original mencionava, nas observações sobre o Corpus Preliminar (item 1, “Enunciado do problema”) a “duração longa” de parte dos filmes listados, associando tal característica ao uso do suporte digital e às teorias recentes sobre o pós-cinema ou o cinema pós-fílmico (STEWART, 2007; RODOWICK, 2007; GAUDREAULT e MARION, 2013; DE ROSA & HEDIGER, 2016; DUBOIS, 2019, entre outros). Apenas o processo de análise seria no entanto capaz de revelar em sua inteireza os desafios metodológicos e epistêmicos que filmes de duração longa ou extremamente longa representam para o pesquisador83: eles requerem mais tempo para visionamento e análise, além de

83 A esse respeito, propus (MONTEIRO, 2017a), como será desenvolvido adiante, a ideia de que os filmes extremamente longos reeditam e atualizam o “paradoxo da análise fílmica” identificado por Raymond Bellour (1979), num momento diferente daquele em que o teórico francês escrevia, marcado pelo visionamento sobretudo em sala, e por anotações feitas sob a penumbra. Se Bellour (1979) já

111 exigirem a definição de estratégias adequadas de exposição, seja em colóquios, conferências ou aulas. A lida com filmes de longa duração dá ensejo aos seguintes questionamentos: como exibir, em comunicações de 30 minutos, planos como os de Lav Diaz, que frequentemente ultrapassam os 20 minutos? Como, no contexto de uma aula de três ou quatro horas, transmitir a sensação meditativa e a dialética entre lembrança e esquecimento proporcionada pelo visionamento de um filme de oito ou onze horas, como os do diretor filipino Lav Diaz? A longa duração exige uma revisão das metodologias: o close-reading84 é dificultado, obrigando o analista a trabalhar, ao menos no primeiro momento, com “blocos incertos de memória”, numa reedição da “inencontrabilidade” do texto cinematográfico característico de um tempo em que os estudiosos do cinema dedicavam-se a obras que não possuíam, tendo que lidar com seu aspecto fugidio exacerbado pela fruição em sala e pela tomada de notas em meio à penumbra85 (BELLOUR, 1979; 2011). Num segundo momento, porém, é necessário acrescentar precisão às análises, e o trabalho de verificação de hipóteses e lembranças revela-se muito mais lento do que com filmes mais curtos. A tensão dialética entre lembrança e esquecimento, entre experiência espectatorial e prática analítica, entre sensação

falava da dificuldade de citar e reproduzir a experiência do tempo proporcionada pelo cinema, o filme longo intensifica tal característica. 84 A intenção inicial era efetuar o close-reading dos filmes com base na tradição de análise fílmica que surge com base literária (BELLOUR, 1979) e floresce incorporando uma multiplicidade de modelos (AUMONT e MARIE, 2008), tendo uma perspectiva comparatista em diálogo com a história da arte (WARBURG, 2015), atentando para a importância da visualidade e da banda sonora para além da chave estritamente narrativa (VANCHERI, 2007), e inspirando-se no modelo alegórico proposto por Xavier (1999; 2012), em diálogo com Jameson (1981; 1992) e Auerbach (2001). 85 Embora o primeiro visionamento dos filmes estudados tenha ocorrido, de modo geral, em sala, a redação dos artigos analíticos foi, na maioria dos casos, realizada em um segundo momento, depois de a autora ter obtido cópias possibilitando o visionamento repetido. As exceções foram dois artigos para jornal (MONTEIRO, 2016b; MONTEIRO, 2017c). Sobre Canção para um triste mistério, esse artigo inicial foi escrito depois de um visionamento em “cabine” oferecida pela Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: ao longo de uma semana, eu podia consultar o filme, no escritório da mostra, por quanto tempo quisesse. Sobre The Clock (Christian Marclay, 2010), vídeo-instalação de 24 horas exibida no Instituto Moreira Salles em São Paulo, escrevi depois de um visionamento parcial, de 13 horas, o que apresenta inúmeras limitações – como interrogar ausências de um filme que não tivemos a oportunidade de ver em sua integridade? The Clock não consta do corpus principal desta pesquisa, mas julgo pertinente mencioná-la aqui pelas questões metodológicas surgidas no enfrentamento com tal obra, incômoda ao analista – e aliás incômoda, também, às instituições culturais que a exibem, tendo que alterar seu horário de funcionamento para apresentá-la na íntegra e de modo contínuo, exigência do autor. Nos dois casos, tomei, sob a penumbra da sala, notas abundantes e com indicações de minutagem tão precisas quanto possível, sendo essa a matéria-prima a que retornava para escrever, enquanto era impossível retornar às obras em si. A escrita de artigos de maior fôlego sobre Canção para um triste mistério foi viabilizada depois de Lav Diaz e sua equipe me disponibilizarem um link de visionamento; no caso da obra de Marclay, há o desejo de voltar à obra em um texto de maior densidade, mas para isso é preciso encontrar uma estratégia para viabilizar seu visionamento integral.

112 subjetiva e exatidão, acompanha o exercício da escrita, na leitura dos artigos, na exposição dos trabalhos. Em termos práticos, ficou patente que a quantidade de horas da obra fílmica influencia diretamente no tempo necessário para a análise. Tornam-se mais laboriosas tarefas em princípio simples, como identificar os principais blocos de que a narrativa é composta; fazer a contagem de planos de determinada sequência; apontar referências a outras obras (fílmicas, literárias, teatrais); investigar os impactos de tais citações na recepção da obra em questão. Tais gestos são acompanhados, evidentemente, de uma reflexão a respeito de sua pertinência tendo em vista não só a longa duração dos filmes, mas o estágio atual da arte cinematográfica. Ainda faz sentido contar planos, identificar sequência, descrever os principais blocos narrativos? Tais práticas, basais para o trabalho de análise quando nem o analista nem o seu leitor possuíam acesso corriqueiro aos filmes, podem parecer obsoletas hoje em dia, quando potencialmente qualquer pessoa pode possuir os objetos a que o pesquisador se dedica. No entanto, a decupagem analítica parece ser especialmente necessária quando se trabalha com filmes de longa duração: ela fornece uma espécie de "mapa" do caminho analítico percorrido e facilita o retorno futuro à obra, em visionamentos parciais. Outro ponto que mereceu atenção foram as situações de exposição do trabalho, sob a forma de artigos, comunicações ou aulas: revelou-se necessária a elaboração de estratégias específicas, posto que a longa duração exerce um impacto direto na maneira de exibir trechos dos filmes ou imagens fixas. Um dos desafios encontrados pode ser sintetizado nas tentativas de análise do plano da execução de José Rizal, no início de Canção para um triste mistério: trata-se de um plano interessante para investimento analítico, posto que o fuzilamento do escritor permanece no fora de campo e o enquadramento mantém-se fixo sobre os corpos da plateia de apoiadores do escritor independentista filipino, cujos rostos ostentam expressões de lamento. O impacto de tal plano é ainda mais intenso tendo em vista sua duração, de 12’20’’. É impossível, evidentemente, exibir tal plano em uma comunicação de 20 ou 30 minutos, e mostrar apenas os instantes em que se ouvem os tiros trairia a força da obra. De modo análogo, na publicação de um artigo, a reprodução de alguns fotogramas restitui apenas parcialmente a situação posta em jogo pelo cineasta.

113 Fato é que a longa duração dos filmes de Lav Diaz86 e Miguel Gomes87 e, de maneira diversa, a da obra de Jia Zhang-ke em sua hipótese de conjunto perfazendo uma história única, impactou o andamento da pesquisa, tanto em termos práticos, requerendo mais tempo de análise do que se previa, tanto em termos epistêmicos, obrigando-nos a enfrentar historicamente, teoricamente e metodologicamente a questão da temporalidade no cinema. Por outro lado, a longa duração se revelou uma interessante e frutífera categoria analítica, um campo de estudos original, prolífico e em expansão (em decorrência de minha pesquisa surgiram interessantes oportunidades de participar de banca 88 , escrever artigos 89 , integrar dossiês de pesquisa90 e compor mesa91). Merece portanto dedicação, inclusive pela falta de atenção dos estudos cinematográficos para com a temporalidade dos objetos (MROZ, 2012). A instigante questão da longa duração ainda carece de trabalhos aprofundados, no âmbito da dificuldade, diagnosticada por Mroz (2012), de os estudos cinematográficos lidarem de fato com problemas ligados à duração e à temporalidade, privilegiando aspectos de mise-en-scène, plasticidade, narratividade. Se filmes de duração acima do convencional92 pontuam grosso modo toda a história do cinema, sua forma contemporânea, ligada às possibilidades do digital

86 Já escrevi sobre Canção para um triste mistério (Hele sa hiwagang hapis, Lav Diaz, 2016, 8 horas) e Florentina Hubaldo, CTE (Lav Diaz, 2012, 6h): além do texto "A meditação subversiva de Lav Diaz", publicado no suplemento Ilustríssima do jornal A Folha de S. Paulo em 2016 e dos artigos "O cinema existe e resiste. Longa duração, análise fílmica e espectatorialidade nos filmes de Lav Diaz" (Aniki, v. 4, n. 2, 2017, p. 434-455) e "Longa duração, análise pós-fílmica e o texto ainda inencontrável" (XXVI Encontro Anual da Compós, São Paulo, 2017), estão no prelo os artigos "Actes de regard, actes de mémoire. Ou: Que fait-on pendant le visionnage d'un film de Lav Diaz?" (Madeleine, Paris, 2018) e "Le cinéma à ses limites. Longue durée et spectatorialité impure" (in Marchiori & Nedjma, Puissances esthétiques des lisières culturelles, Paris, Mimésis, 2018). O estudo iniciado sobre Evolução de uma família filipina (Ebolusyon ng Isang Pamilyang Pilipino, 2004, 11h), previsto no projeto original, revelou-se mais trabalhoso, ainda não foi concluído. As onze horas do filme, e a amplitude dos processos históricos que ele abarca, retardaram a tarefa. 87 Refiro-me aos três episódios que compõem As mil e uma noites (Miguel Gomes, 2015, 6h20). 88 Banca de qualificação de mestrado de Pablo Gea, na Unicamp, que intitula-se “Slow cinema. Em defesa do tempo e duração na experiência espectatorial”, sob a supervisão do Prof. Dr. Pedro Maciel Guimarães. 89 Faço referência a três artigos que publiquei no suplemento Ilustríssima do jornal A Folha de S. Paulo: “A meditação subversiva de Lav Diaz” (16 de outubro de 2016), “Alguns filmes pedem a sala de cinema” (23 de junho de 2017) e “Avalanche de minutos” (1º de outubro de 2017) 90 Dossiê “A longa duração”, organizado por Tiago De Luca, publicado na revista on-line Aniki (v. 4, nº 2, 2017). 91 Mesa “A longa duração”, apresentada no XXI Encontro da Socine, em João Pessoa, outubro de 2017. 92 A discussão sobre a duração convencional de um filme é complexa. De Luca (2017) demonstra que os critérios para que um filme seja considerado “longo” ou “demasiadamente longo” variaram ao longo da história do cinema. Em seu livro sobre Griffith, Ismail Xavier nos diz que o diretor foi demitido da Biograph por insistir na exibição de Judith de Bethulia (1913), considerado à época longo demais (tinha uma hora de duração). A pergunta dos produtores era : quem aguentaria ficar sentado em uma cadeira por tanto tempo diante de um filme ? (XAVIER, 1984). Mesmo o célebre postulado

114 (menor custo de rodagem, menor limitação na duração dos planos, relativa facilidade de transporte e exibição, etc.), encontra paralelo no contexto das artes visuais, em que filmes e vídeos de longa duração93 vêm desafiando as lógicas expositivas. Filmes longos e vídeo-instalações de longa duração apontariam para uma convergência94 das práticas espectatoriais, que em uma zona de fronteiras pouco definidas entre o espaço expositivo e o espaço do cinema, caminhariam para situações menos controladas pelo ambiente da sala escura e sua lógica? Tal hipótese, trabalhada por alguns autores em trabalhos recentes (DE LUCA, 2016; INGAWANIJ, 2017; MONTEIRO, 2017a) é cara à formulação do conceito de “narrativas de dissolução”, como ficará claro a seguir. Que atualidade pode ainda haver hoje no trabalho de análise fílmica? Em tempos de digitalização generalizada e acesso cada vez mais imediato e diversificado às imagens do cinema, qual seria a necessidade de recolocar em prática um método estabelecido na tentativa de capturar o “texto” cinematográfico em princípio analógico e por definição fugidio, inencontrável? (BELLOUR, 1979). Das anotações de críticos imersos na penumbra da sala de cinema, um olho na tela e outro no papel, aos universitários na moviola, acrescendo precisão à mistura de lembrança e esquecimento característica da experiência espectatorial, a análise fílmica se institucionalizou como um dos pilares dos chamados “estudos cinematográficos”, tendo como adeptos pesquisadores e pedagogos interessados em seus aspectos estéticos, históricos e sociológicos (AUMONT e MARIE, 2008). O momento atual oferece ao analista de cinema um rol de facilidades que o afasta das condições enfrentadas pela geração responsável pela entrada do cinema nas hitchcockiano, segundo o qual a duração no cinema deve respeitar a capacidade da bexiga humana, carece de objetividade. Gance, Rivette, Lanzmann, Wiseman, Sokúrov e Tarr são apenas alguns dos cineastas notórios por terem realizado longas-metragens com (muito) mais que duas horas. 93 Dentre os exemplos mais emblemáticos de obras de longa duração produzidas no contexto das artes visuais estão os filmes Sleep (1963), de 5h21, e Empire (1964), de 8h05, ambos de Andy Warhol, e, mais recentemente, as vídeo-instalações que duram um dia todo 24-Hour Psycho (1993), de Douglas Gordon, e The Clock [2011], de Christian Marclay, sobre a qual tive a oportunidade de escrever (MONTEIRO, 2017b). Todas essas obras apresentam uma dificuldade para as instituições que as abrigam e para os espectadores: sua integridade sempre escapa, é difícil vê-las integralmente, seja por limitações relativas ao próprio horário de funcionamento dos museus, seja por condições físicas dos espectadores e do espaço (carência de bancos confortáveis, necessidades biológicas, etc.). 94 Referência nos estudos de convergência midiática, Jenkins (2008) a vê como primordial na fase atual das mídias, enfatizando a necessidade de publicitários, produtores e artistas pensarem em termos de convergência para "sobreviver" num cenário sob radicais transformações. O autor se refere à convergência que certas obras exploram, ao prever sua visualização em distintas plataformas (cinema, televisão, tablet, celular, computador). Aqui, refiro-me a convergência menos como estratégia de marketing, e mais como dado de práticas espectatoriais tornadas difusas, menos centralizadas e uniformes.

115 universidades, passível de ser situada entre os anos 1960 e 1980, embora haja muitas singularidades nessa história. O trabalho minucioso que Raymond Bellour dedicou a uma sequência de Os pássaros (1962), de Alfred Hitchcock, publicado originalmente na revista Cahiers du cinéma (1969) e considerado por Aumont e Marie “a primeira análise ‘estrutural’ de um filme” (2008, p. 14), pressupunha um leitor desprovido de acesso corriqueiro ao filme. Mais do que isso: a decupagem dos 81 planos da sequência trabalhada, acompanhada da reprodução de fotogramas correspondentes, era fundamental para ancorar a reflexão do analista, que não podia visioná-la e re- visioná-la sempre que sentisse necessidade. O mesmo poderia ser dito das análises dos filmes de Glauber Rocha por Ismail Xavier, publicadas originalmente em 1983, no livro Sertão mar (XAVIER, 2007). Se são analisados hoje em dia filmes disponíveis tanto para estudiosos quanto para seus leitores, passíveis de visionamento parcial e integral por intermédio de DVDs, serviços de streaming e arquivos descarregáveis localizados em redes de compartilhamento, ainda faz sentido a realização da decupagem detalhada e sua reprodução no corpo do texto analítico? Qual impacto sobre a prática da análise fílmica pode (ou deve) exercer o acesso generalizado à imagem em movimento nesta era a que pesquisadores chamam de pós-fílmica (DUBOIS e FURTADO, 2017; STEWART, 2007)? Teóricos do cinema (AUMONT, 2012; CASETTI, 2015; BELLOUR, 2011, 2009; BURGIN, 2011; MULVEY, 2007; STEWART, 2007) vêm elencando transformações nos modos de espectatorialidade, em meio à substituição paulatina das filmagens e projeções em película por suportes digitais. Nesse contexto, é necessário questionar as estratégias e práticas empregadas em nosso próprio trabalho de análise fílmica, aprofundando o caminho aberto por Bellour em um texto que insinua a obsolescência da análise fílmica (200995. O autor retorna a “O texto inencontrável”, artigo em que descrevia a paradoxal atividade do estudioso de cinema – quando se interrompe o fluxo do filme para isolar alguns fotogramas e assim poder vê-los “em detalhe”, elimina-se o movimento das imagens em favor de um “arrêt sur image”, e o

95 Bellour usa de certo deboche para tratar dos “analistas das imagens” dos tempos da semiologia e do estruturalismo, mas tal deboche parece-nos um recurso retórico e auto-reflexivo. “O velho tempo da semiologia do cinema e da análise fílmica” (2009, p. 19) é antes de mais nada o tempo inaugural dos trabalhos do próprio autor, do qual ele não chega a se distanciar de todo. A palavra “texto”, que ele emprega inicialmente entre aspas, referindo-se a Barthes e afirmando que está “definitivamente fora de moda”, para em seguida retomá-la ao longo de seu próprio artigo (2009, p. 19).

116 objeto desaparece96 –, para apresentar uma hipótese curiosa. Seria no enfrentamento com obras audiovisuais existentes exclusivamente sob a forma de instalações em espaços expositivos que o analista encontraria hoje atualidade para sua prática. A dificuldade de reproduzir no ambiente doméstico a experiência do visitante de uma instalação multimídia reedita a dificuldade de acesso ao filme enfrentada pelo analista de cinema dos anos 1970, re-instaurando uma forma de espectatorialidade inseparável do dispositivo arquitetonicamente pensado para tal. Bellour não se refere indistintamente a qualquer instalação multimídia, moldando seu pensamento a partir de instalações baseadas em projeções luminosas. Um de seus exemplos é 24 Hour Psycho (1993), em que Douglas Gordon impõe ao filme de Hitchcock (Psicose, 1960) uma desaceleração extrema, transformando os 109 minutos originais em 1440 minutos, ultrapassando os horários de atividade dos museus e galerias. A obra, diz Bellour, “torna por excelência encontrável o texto do filme de Hitchcock ao fazer-se ela própria inencontrável, já que ninguém em princípio pode pretender tê-la visto em sua duração integral” (2009, p. 35). O duplo movimento, a um só tempo em direção à “encontrabilidade” extrema e à “inencontrabilidade” radical, reproduz, assim, os ingredientes do paradoxo visto pelo autor na própria atividade de análise fílmica. “Historicamente, é no momento em que o filme se torna um texto cada vez menos inencontrável, sob o risco do que se perde em comparação com a sessão de cinema, que instalações formadas por projeções parecem vir ocupar esse lugar” (2009, p. 34). O presente trabalho pretende prolongar a reflexão apenas iniciada por Bellour a respeito da obsolescência e da atualidade da análise fílmica – seu texto não aprofunda o estudo da obra de Douglas Gordon e tampouco investe grande atenção em sua duração extremada, contentando-se em reproduzir a frase de efeito de seu amigo Bert Rebhandl, crítico de cinema austríaco que o acompanhava na observação da instalação de Gordon em Berlim: “Vamos atravessar 24 horas de filme em dois segundos” (2009, p. 35). Nossa hipótese é de que haveria uma “inencontrabilidade” inerente não apenas ao audiovisual instalado, mas também a obras audiovisuais de

96 A obra cinematográfica “é propriamente incitável, pois o texto escrito não é capaz de restituir o que apenas o aparelho de projeção pode trazer: um movimento, cuja ilusão garante a realidade. É por isso que as reproduções, mesmo de fotogramas, apenas manifestam um tipo de impotência radical em assumir a textualidade do filme. (...) O congelamento da imagem, e o fotograma que ele reproduz, são simulacros; eles não cessam de fazer com que o filme escape, mas permitem paradoxalmente que fuja enquanto texto” (BELLOUR, 1979, p. 40).

117 duração extremada: como dificilmente pode ser visto e revisto com comodidade97, o filme longo reavivaria no analista de hoje o desejo ou a necessidade de restituir o “texto fílmico”, de ter sob os olhos sua partitura. Este artigo concentra-se em dois filmes recentes caracterizados pela longa duração, tendência ou contra-tendência apontada sobretudo no mundo anglófono (BALSOM, 2007; FLANAGAN, 2008; DE LUCA e BARRADAS JORGE, 2016) interessados na obra de cineastas célebres por planos longos e/ou longos filmes.98 O fenômeno, que traz novamente à tona inquietações caras ao cinema dos anos 1960/197099, é visto como uma reação à aceleração progressiva da montagem no cinema mainstream (FLANAGAN, 2008) e, ao mesmo tempo, como algo possibilitado pela tecnologia digital, que amplia os limites físicos para a duração dos planos (DE LUCA e BARRADAS JORGE, 2016, pp. 10-11). Aqui, proponho pensar os filmes de duração extremada na origem de dois movimentos contraditórios: por um lado, a experiência espectatorial que eles propiciam pode ser aproximada à do visitante-flâneur de exposições de arte, que vê obras audiovisuais instaladas em espaços museais e por elas passa, sem se deter; por outro, eles parecem dizer a necessidade e a atualidade do visionamento em sala, em sessão coletiva, em comunidade100. Seria possível ver nos filmes de longa duração manifestos que contestam a obsolescência da sala de cinema e da própria análise fílmica? Seriam eles capazes de conferir novo sentido à atividade do analista, como veremos adiante, como numa reação de deter algo que tende a dissolver-se?

97 Tal afirmação é especialmente verdadeira no caso de Lav Diaz, em que à dificuldade da longa duração sobrepõem-se obstáculos relativos ao acesso ao filme, como veremos adiante. 98 Os trabalhos referenciados propõem-se a pensar tanto a “longa duração” quanto o “cinema lento” ou “slow cinema”. Subsiste a dificuldade de definir longa duração sem evocar a sensação de lentidão – grande parte dos textos sobre o slow cinema de fato incluem a duração longa dos planos entre os pilares desse movimento, também de difícil delimitação. Para De Luca e Barradas Jorge, slow cinema é um “movimento cinematográfico desestruturado, feito de filmes e práticas disparates conceituadas enquanto grupo por seu estilo comparável” (2016, p. 4). Flanagan (2008) havia identificado características comuns a diversos cineastas – planos longos, estrutura narrativa discreta e a “ênfase na quietude do cotidiano”. Balsom (2007) associa a lentidão e a duração à monumentalidade da escala, vendo em tais características uma “contestação do ritmo frenético de edição presente na mídia contemporânea”, desafiando a concepção que vê no cinema “um território do choque e da distração”. 99 A dilatação dos planos e do tempo cinemático nos anos 1960/1970 está associada, por um lado, às experimentações de Warhol, Snow e Frampton, e, por outro, à estética neorrealista e suas reverberações na Europa do pós-guerra – De Luca e Barradas Jorge citam cineastas como Antonioni, Tarkovsky, Straub-Huillet (2016, pp. 8-9). 100 Jacques Rivette decidiu fazer no Havre, e não em Paris, a sessão de estreia de Out 1. Noli me tangere (1971), de 12h40, para que os convidados se liberassem de seus compromissos parisienses”; nos festivais em que os filmes de Diaz são exibidos, não é incomum encontrar o cineasta ao final, para conferir quem são os espectadores e com eles conversar.

118 As indagações acima servirão de guia a nosso estudo de As mil e uma noites (2015), do português Miguel Gomes, e Canção para um triste mistério (2016), do filipino Lav Diaz. São filmes distantes em muitos critérios – geográfico, estilístico, econômico, etc.101 –, e próximos em outros – foram exibidos com menos de um ano de intervalo em festivais de cinema europeus, têm em comum o lugar privilegiado conferido à música-tema102 e a ancoragem em obras literárias 103, que além de servirem de inspiração para o enredo, emprestam uma sonoridade literário aos diálogos e narrações, estabelecendo relações que ultrapassam os limites da chamada adaptação. Ainda que cada um instaure relações singulares com o tempo e a temporalidade cinematográfica, ambos compartilham a duração inabitual – o filme de Gomes perfaz 421 minutos, o de Diaz, 485 minutos. Nossa análise concentra-se em momentos de mise en abyme do dispositivo cinematográfico presentes em As mil e uma noites e em Canção para um triste mistério. No primeiro caso, temos a presença do cineasta no quadro e, dirigindo-se à câmera para explicar a proposta do filme, nascido sob o signo do fracasso, e a narradora, Sherazade, que se deprime com as histórias de Portugal em tempos de austeridade, foge do palácio e perde a vontade de contar. No segundo, além das menções à paciência e à espera que interpelam os espectadores de Diaz, temos duas situações principais: a reconstituição da primeira exibição do cinematógrafo Lumière nas Filipinas e um diálogo que questiona a função da arte. Nesses momentos, o cinema é visto sob o prisma de sua falibilidade, sem que isso sirva de pretexto para o abandono da forma narrativa. Por esse motivo, consideramos os dois filmes como narrativas de dissolução. Embora se dediquem a criar a imagem fílmica de nações específicas em tempos históricos precisos – o Portugal do plano de austeridade, em 2013/2014, retratado pelo filme de Gomes em uma narrativa contaminada por um oriente imemorial; as Filipinas em 1897/1898, durante a Revolução Filipina –,

101 Diferenças importantes separam As mil e uma noites de Canção..., tanto no que diz respeito às escolhas estéticas e à fatura quanto com relação às modalidades de distribuição – o primeiro é gravado em cores e o segundo, em preto e branco; a exibição do filme de Gomes se deu de maneira seriada, em três episódios com estreias comerciais em datas distintas, e um DVD logo foi lançado, enquanto o de Diaz foi exibido integralmente no mesmo dia e não teve distribuição comercial fora do circuito de festivais. 102 Respectivamente, o bolero Perfidia, de Alberto Dominguez (1939) e a “kundiman” Jocelynang Baliwag (1898), atribuída a Bonifacio Abdon e Patricio Mariano. 103 O Livro das Mil e uma Noites, coletânea de contos populares reunidos em livro provavelmente na Bagdá do século IX (JAROUCHE, 2004), e o romance de Noli me tángere (1886), do escritor filipino José Rizal.

119 abandonam os mitos característicos das “ficções fundacionais” (SOMMER, 2004) para concentrar-se no agonizar da nação e da própria forma fílmica. Filmes de longa duração podem deixar o analista que se propõe a estudá-los em uma posição incômoda, frente a uma série de problemas. Como encontrar tempo para ver, rever, localizar fotogramas, citar, comparar um filme com os anteriores? Como traduzir, pela descrição textual acompanhada da reprodução de alguns fotogramas, a experiência da duração? Mesmo quando é possível exibir um trecho em um colóquio ou incluí-lo no texto, os efeitos de repetição e acumulação que as imagens adquirem ao longo do visionamento completo esvaem-se, se não de todo, ao menos parcialmente. Tais dificuldades, inerentes à atividade de análise fílmica, sobretudo antes da popularização do vídeo e dos DVDs (BELLOUR, 1979; BELLOUR, 2009), ganham contornos específicos no confronto com filmes de duração extremada. Exuberantes, As mil e uma noites, de Miguel Gomes, e Canção para um triste mistério, de Lav Diaz, apresentam ainda a dificuldade de oferecerem numerosas (excessivas?) pistas para o analista, que precisa tomar decisões antes de persegui-las – ou não. Enquanto o filme longo é uma exceção na trajetória de Miguel Gomes – autor de três outros longas-metragens104, Lav Diaz vem realizando filmes de duração extremada há praticamente vinte anos – considerado um ponto de virada em sua trajetória, foi Batang West Side (2001), com seus 315 minutos, que o tornou célebre internacionalmente. No que se tange especificamente o trabalho de análise, é preciso levar em conta que um e outro filmes oferecem ao analista condições de trabalho diferentes ao analista. Enquanto o filme português estreou comercialmente em diversos países, inclusive no Brasil, e ganhou rapidamente uma edição em DVD, o filipino só foi visto no âmbito de festivais e arquivos digitais não têm circulado. A questão da posse105 do filme é portanto distinta num e noutro casos, o que implica em estratégias de análise diversas. Mais: se no caso de As mil e uma noites o rápido lançamento dos DVDs, o libreto que os acompanha e o menu/sumário detalhado efetuado pela distribuidora indicam um esforço da parte da produção de compensar a “inencontrabilidade” própria ao filme longo, Canção para um triste mistério mantém-

104 Tabu (2012), com 118 minutos, Aquele querido mês de agosto (2008), 147 minutos, e A Cara que mereces (2004), com 108 minutos, além de oito curtas-metragens. 105 Em estreito diálogo com o “espectador pensativo” descrito por Bellour (1997), Laura Mulvey (2007) aprofunda sua análise sobre a posse do filme e o fetichismo característico do espectador contemporâneo.

120 se obscuro também em sua realidade pós-sala. Como acessá-lo? Como vê-lo e revê- lo? Tal distinção se reflete, aqui, no tratamento conferido a cada filme. Começaremos por As mil e uma noites, trabalhado numa análise detalhada de sua sequência de abertura, para em seguida fazer uma análise de Canção para um triste mistério que é obrigada a trabalhar, em alguma medida, sobre aquilo que Bellour chama de “blocos de memória incertos” (2011, p. 40).

2. Narrativas em abismo: As mil e uma noites O libreto que acompanha a edição em DVD francesa de As mil e uma noites informa que, ao lado de Mariana Ricardo e Telmo Churro, co-roteiristas do filme, Miguel Gomes transformou uma sala de um centro comercial desativado de Lisboa em “laboratório de histórias”. Entre outubro e dezembro de 2012, recolheram notícias e faits-divers publicados na imprensa, e a eles mesclaram textos e personagens ficcionais, numa combinação destinada a conformar um roteiro de longa-metragem. Era o embrião do método106 posto em prática a partir do outono seguinte: a trinca formada por Gomes, Ricardo e Churro, a que os próprios se referem como “comitê central”, comandou uma equipe de jornalistas dedicada a recortar do noticiário português episódios que condensassem a tragédia e o surrealismo do plano de austeridade orçamentária implementado em Portugal a partir de 2011, cedendo às pressões da União Europeia, do Banco Central Europeu e do Fundo Monetário Internacional, a “Troika”. Fruto de doze meses de filmagem, viabilizados pela associação de produtoras de Portugal, da Alemanha e da França, além do apoio de programas europeus, franceses e suíços, garantindo um orçamento de 3,2 milhões de euros e doze meses de filmagem, As mil e uma noites é oficialmente uma trilogia, e cada episódio tem título, enredo e duração própria – O inquieto, O desolado e O encantado. Em entrevista o cineasta ao mesmo tempo reconhece a possibilidade que cada volume seja visto separadamente e defende a unidade da obra107.

106 Em 2012, Gomes, Churro e Ricardo estiveram em Curitiba para ministrar uma oficina de roteiro realizada pelo programa Ficção Viva. Os participantes puderam experimentar-se na escrita de um roteiro de cinema com base em notícias de jornal entremeadas à leitura de um romance clássico, feita a seis mãos pelo trio e compartilhada ao vivo com os alunos. Cf. GOMES, CHURRO e RICARDO, 2014. 107 “Tentamos fazer com que cada volume tivesse a sua própria lógica, oferecesse uma experiência diferente. Mas existe um jogo de espelhos que faz com que o verdadeiro filme surja da visão dos três” (NEVES, 2015); “Fui contratado para fazer um filme e terminei fazendo três, mas creio que eles, no fundo, são um só. Minha expectativa é que o público viaje nos três filmes como se fosse um” (MERTEN, 2015).

121 No início do primeiro episódio, passam-se 25 minutos antes que surjam os créditos de abertura informando que o filme “não é uma adaptação do Livro As mil e uma noites, ainda que se inspire de sua estrutura”. É só depois disso que surge na tela a figura de Sherazade, interpretada pela atriz Crista Alfaiate, o que finalmente nos remete ao universo do Livro das Mil e uma Noites. Até então, havíamos tomado conhecimento de dramas ocorridos concomitantemente na cidade de Viana do Castelo, no norte de Portugal. É possível que o espectador de cinema tenha ficado confuso com planos longos e a montagem disjuntiva desses minutos iniciais. Isso, se ocorre, é em menor medida para aquele que descobre o filme numa visionagem em DVD. À página 53 do libreto encontra-se uma “table des matières”, mais próxima do índice detalhado de um livro do que do menu de um DVD: os títulos dos três volumes são listados e, dentro deles, há subtítulos, títulos dos capítulos de cada disco, com a correspondente minutagem. Tal estrutura é reproduzida no menu dos três DVDs, uma organização que ajuda o espectador a localizar-se dentro da inencontrabilidade relativa de todo filme – a imagem que acompanha o menu é a de Sherazade-Alfaiate, vista de perfil, sorrindo, entregue ao balanço das ondas sobre as quais sua embarcação desliza. Esse primeiro “capítulo” do filme, indicado no menu do DVD como “Os trabalhos do realizador, dos construtores navais e do exterminador de vespas”, é o equivalente fílmico do chamado “prólogo-moldura” ou “récit-cadre” do Livro das Mil e uma noites (JAROUCHE, 2004). O cineasta dá voz e corpo ao narrador desse prólogo, que englobará as narrativas que surgirão na sequência, inclusive a da própria Sherazade, que será, ela, narradora de outras histórias, numa estrutura de “récits emboîtés” ou “narrativas embutidas”108. Nessa parte inicial da narrativa que embutirá todas as demais, o espectador é apresentado tanto ao contexto quanto à proposta do filme, através de três grandes níveis narrativos que surgem entrelaçados. O plano inicial mostra a zona portuária de Viana do Castelo, em um travelling lateral de horizonte instável filmado com uma câmera embarcada (1’28’’ de duração) que passa pelos corpos de trabalhadores a distância, vistos de corpo inteiro e a olharem para a câmera, como espectadores de um hipotético filme dentro do filme, ou como atores que posam conscientemente para a câmera (Fig. 31).

108 Tal nomenclatura é trabalhada por Gérard Genette, fundador dos estudos de narratologia. Os trabalhos de Genette vêm sendo transpostos para o cinema com variados graus de sistematicidade (GENETTE, 1972; CHION, 1982; METZ, 1991; LIMOGES, 2013).

122

(Fig. 31) Imagem do plano inicial de As Mil e uma noites: corpos filmados olham para a câmera, qual espectadores de um filme hipotético e impossível.

Seguem-se dois planos fixos do portão do estaleiro em dia chuvoso (respectivamente, 27’’ e 1’46’’ de duração), enquanto se ouvem, em off, testemunhos de seus trabalhadores, narrando suas experiências no fabrico dos navios (Figs. 32 e 33). Um deles compara a quantidade de gente que havia ali a um formigueiro, imagem mental que contrasta com as silhuetas imóveis a observar-nos vistas no travelling inicial, e ao pouco movimento visto nos planos fixos, que têm em primeiro plano uma câmera de televisão e um repórter a dar notícia da greve.

(Figs. 32-33) Planos da sequência de abertura de As Mil e uma noites

Um flash branco ocupa então a tela e vemos uma imagem desfocada que, quando encontra nitidez, revela o corpo de Miguel Gomes, em plano americano, sentado, cabeça coberta pelo capuz do casaco, cotovelo apoiado na mesa e o braço a

123 sustentar o peso da cabeça, numa configuração que evoca a iconografia da melancolia109. Mariana Ricardo entra no quadro pela esquerda e senta-se à direita do realizador, permanecendo de cabeça baixa, mãos no celular, rosto escondido pelo capuz do casaco parecido com o do realizador (Figs. 34-35). Atrás deles há um vidro no qual vemos refletidos Telmo Churro, a tomar notas ao lado de um tripé, e outras pessoas, provavelmente integrantes da equipe, a transitar por uma zona ao ar livre em que se identificam uma piscina e um jardim. É a voz do cineasta que ouvimos em off, num monólogo que tomo a liberdade de reproduzir, apesar de sua extensão110:

Meu trabalho é realizar filmes. Sei que sou um privilegiado por poder realizar algo que durante a maior parte do tempo me deixa feliz. Gosto muito deste trabalho. Contudo, há momentos de angústia. Em Portugal todos seguem o processo de encerramento dos estaleiros navais de Viana do Castelo, pela televisão e pelos jornais. Mais de seiscentos trabalhadores ficarão no desemprego. Estou em Viana porque me parece impossível fazer um filme hoje, em Portugal, e deixá-los de fora. Também estou em Viana porque o senhor Vitor combate uma praga de vespas asiáticas que ameaça dizimar as abelhas e destruir a produção de mel na região. O exterminador de vespas inventou uma arma para queimar ninhos e todos os dias, com a ajuda dos bombeiros, impede o avanço da praga. Para além dessas duas coisas ocorrerem simultaneamente no mesmo local, não vejo mais nenhuma ligação entre esses acontecimentos. Creio que talvez exista uma possível relação do gênero metafórico entre o encerramento dos estaleiros e a disseminação da praga de vespas, mas não consigo dizer qual é, porque sou burro, e a abstração dá-me vertigens.

(Figs. 34-35) O monólogo do realizador é ouvido, em off, enquanto se veem imagens dele e da equipe, num registro que lembra a iconografia da melancolia

109 O personagem melancólico tem dificuldade em sustentar o peso da própria cabeça, que por isso aparece apoiada na mão, com o cotovelo pousado sobre a mesa, num desenho que forma um triângulo, como na gravura Melancolia I (1514), de Albrecht Dürer (GUARRIGUE, 2004; PRIGENT, 2005). 110 O comentário em off de Miguel Gomes tem 1’42’’ de duração; o plano se conclui dez segundos depois.

124 Ao final do monólogo do realizador, a câmera mantém-se fixa e não há corte. No primeiro plano, vamos o cineasta levantar-se da mesa e sair do quadro pela direita (Fig. 35); o reflexo no vidro revela um pano de fundo em que o cineasta foge da equipe de filmagem, e sua silhueta, de costas, atravessa diagonalmente o jardim refletido, numa tentativa de desaparecimento no “fundo cinematográfico”. Um ruído na banda sonora indica a tentativa do engenheiro de som de continuar a captar o som dos passos do realizador. Enuncia-se, nesse plano de quase 2 minutos, um duplo fracasso, algo que será desenvolvido ao longo de todo esse primeiro “capítulo” do filme, que alterna cenas do movimento grevista no estaleiro, cenas de combate às vespas e imagens da equipe de filmagem, mais ou menos explicitamente encenadas. O primeiro fracasso é o do projeto do filme, fracasso na realidade retórico, como atestam a fuga do realizador – não me parece judicioso ver nela um registro documental, aparentando-se a um making-of simulado, fruto de mise-en-scène precisa – e a própria existência do filme, que ademais revela-se exuberante. O segundo fracasso é o da tentativa de aliança entre distintas instâncias narrativas ancoradas em Viana do Castelo: o fim do estaleiro naval, a ameaça das vespas às abelhas e a tentativa de iniciar-se um filme. Aí também pode-se ver um fracasso falso ou pelo menos restrito ao campo da retórica, posto que a montagem, ao menos no campo visual, efetiva tal aliança, combinando planos de luminosidade parecida ou complementar e produzindo rimas visuais – a mais notória é a evocação, pelos corpos humanos vestidos de cores escuras filmados de longe em dias cinzentos, de populações de insetos rarefazendo-se. Ao mesmo tempo realizada e fracassada, efetiva e encenada, a tentativa de aliança enunciada por Miguel Gomes no monólogo inicial reproduz em sua estrutura uma artimanha usada no prólogo-moldura do Livro das Mil e uma Noites. No prólogo- moldura do livro, conforme tradução de Mustafá Mamede Jarouche, o narrador principal é por vezes substituído por narradores pertencentes às próprias histórias narradas. O pai de Sherazade é um dos personagens que em determinado momento transforma-se em narrador. As histórias por ele convocadas não exibem ligação direta com a narrativa principal mas, além de entreterem o leitor, contribuem para sua argumentação, como numa fábula. No monólogo presente na primeira parte do filme de Gomes, há uma tentativa digamos “natimorta” de relacionar histórias a priori disparates. O realizador produz essa aliança ao mesmo tempo em que diz não conseguir enxergar sua natureza,

125 possivelmente “do gênero metafórico”. Trata-se de uma alegoria negativa, uma alegoria que se recusa enquanto tal. Há de fato um espelhamento entre as esferas pública e privada comparável àquele criado pelas ficções fundacionais (SOMMER, 2004), em que a narrativa de trajetórias individuais de sucesso espelham o destino de redenção nacional, numa configuração recorrente nas literaturas de ex-colônias que contribui para forjar o sentimento nacional, a criar comunidades imaginárias (HOBSBAWN, 1990; ANDERSON, 2008). A praga das vespas poderia funcionar como alegoria do plano de austeridade implementado pela troika, metonimicamente representado por uma de suas consequências, o fechamento do estaleiro. A essas duas “tragédias” corresponderia o fracasso do filme em germe e do próprio cineasta que, num gesto que, conforme a tipologia de Genette (1972), invade a narrativa como em uma metalepse para dela fugir, fazendo uma imagem que logo se esvai. O prólogo do filme dá margem mesmo para muita abstração, e não é difícil entender as vertigens no cineasta. Instável, o plano que se segue, câmera na mão, faz o trajeto do pátio onde estava o realizador até a rua, atravessando a recepção do hotel que abrigava a equipe de filmagem; na banda sonora, ouvimos algumas interferências, os passos apressados do cineasta e a voz do engenheiro de som, dizendo: “som só. O realizador fugiu e eu também vou atrás por causa do som da corrida”. Ao fundo, ouve-se uma voz feminina: “Espere aí que eu também vou”. E o engenheiro de som explica: “Também vem a co-roteirista”. Usado sobre o plano que acompanha o caminho da equipe do pátio do hotel à rua, o registro sonoro não se assume plenamente como “som só”, e a explicação do engenheiro de som afasta qualquer necessidade de abstração por parte do espectador, conduzido pela mão numa narrativa que, apesar do fracasso enunciado, é bem construída e flui com facilidade e humor. Dali em diante, veremos a van que conduz a equipe em primeiro plano e a zona portuária de Viana do Castelo ao fundo, ouviremos testemunhos sobre o conflito entre abelhas, vespas e homens, acompanhando tentativas de extermínio, assistiremos a manifestações dos trabalhadores contrários ao fechamento do estaleiro e ao almoço da equipe. A montagem procede de modo a trazer o som dos testemunhos dos exterminadores de vespas sobre imagens de navios zarpando e, sem que haja cortes na banda imagética, passamos a ouvir o relato da emoção de um trabalhador ao ver pela primeira vez o batismo de um navio.

126 Ao encenar e enunciar essa contradição – uma narrativa que avança ao mesmo tempo que se diz bloqueada, um longa-metragem que nasce como impossibilidade e no entanto existe, e ainda por cima é longo –, o filme de Miguel Gomes ecoa as forças contraditórias encarnadas por Sherazade, a narradora do Livro das Mil e uma noites que nunca sabe até quando conseguirá manter-se viva e portanto até onde a narrativa conduzirá. Ela, como Miguel Gomes no filme, dirige a narrativa às cegas. No filme, passados pouco mais de 23 minutos, o registro visual muda. Vemos uma praia, uma construção fortificada ao fundo, passarinhos que levantam voo. “Sois maus! Sois feras! Sois ruins! Sois abjetos!”, ouve-se, em off, num coro de vozes femininas sobre um fundo musical de guitarra lusitana. Um corte e vemos, ainda na praia, as cabeças do engenheiro de som, de Miguel Gomes e de Mariana Ricardo. Seus corpos estão enterrados sob a areia; atrás deles, o mar. Compreendemos que estão sendo punidos pelos integrantes da equipe de filmagem, temerosos frente ao risco que o projeto delirante do filme representaria à reputação de cada um – “os escassos recursos do cinema português não são compatíveis com vossos devaneios”, diz alguém, no fora- de-campo. No centro da trinca de corpos enterrados, Miguel Gomes menciona a Lei de Cinema111 e, numa posição conciliadora, admite certa irresponsabilidade e vem com a proposta sherazadiana: “se por acaso vos contasse uma história que causasse espanto, poderiam vir a revogar vossa sentença?”. É só então que vemos pela primeira vez Crista Alfaiate, atriz que interpreta Sherazade, filmada no balanço de uma embarcação, rosto iluminado pelo sol abundante, num plano caloroso e sensual. A configuração nos remete ao balanço do plano inaugural, com a diferença de que os trabalhadores do estaleiro são vistos em conjunto e de frente, enquanto o corpo de Sherazade aparece só e de perfil; eles, num dia frio e cinzento; ela, num dia luminoso e quente. Miguel Gomes, em off, continua a comandar a narração, descrevendo a filha do Grão Vizir que vive em Bagdá “nos tempos da Antiguidade”, e dando ensejo, finalmente, aos créditos de abertura. No terceiro episódio, O encantado, a crise da faculdade de narrar será enfim protagonizada por Sherazade. Deprimida com a acumulação de tristes histórias da crise portuguesa, ela foge. Se até então todas as imagens pareciam haver sido rodadas em Portugal, nesse ponto podem ser identificadas locações próximas a Marselha, no

111 55/2012, de 6 de setembro, disponível em http://www.gmcs.pt/pt/lei-n-552012-de-6-de-setembro-lei- do-cinema-e-das-atividades-cinematograficas-e-audiovisuais, último acesso 10 de fevereiro de 2017.

127 sul da França, com suas falésias calcárias muito brancas, as calanques. Dentro da diegese, segundo nos informa a narração em off capitaneada pela voz de Miguel Gomes, Sherazade vive na Bagdá da Antiguidade, referência ao tempo e ao lugar em que teria sido escrito o Livro das Mil e uma noites112, e as histórias que ela conta ambientam-se em distintos pontos de um Portugal em crise, entre 2013 e 2014. Nesse improvável tempo, em que “Bagdá era banhada pelo oceano”, Sherazade foge do palácio, mergulha, paquera, diverte-se. A crise da narradora emudecida é vista nua sob as águas transparentes do Mediterrâneo, numa sequência de planos cômicos de tão paradisíacos, enquanto se ouve, na voz de Ney Matogrosso, Fala (1973), composição de João Ricardo e Luli. Se o eu-lírico de Perfidia já punha em xeque o ato de enunciação, afirmando cantar por não poder soluçar, os versos de Fala trazem um cantor emudecido – “Eu não sei dizer / nada por dizer / então eu escuto”, em reiterações do bloqueio de Sherazade e de Miguel Gomes. Como numa tentativa de ganhar forças para, ao cair da noite, conseguirem prosseguir, narradora e narrativa adotam nesse terceiro volume uma rota desviante, permitem-se ver o mundo ao avesso, num encadeamento de sequências musicais menos pautado pela causalidade narrativa do que seduzido pelos prazeres da luz dourada, da exuberância da paisagem e de piadas fáceis e nem sempre politicamente corretas. Na única inserção de imagens de arquivo do filme, um clipe em preto e branco dos Novos Baianos numa performance de Samba da minha terra, de Dorival Caymmi, é exibido integralmente, com as imagens às vezes sobrepostas ao rosto de Sherazade e à paisagem mediterrânea em que jovens de dreadlocks cedem à preguiça. Numa roda-gigante, ela encontra-se com seu pai, com quem se aconselha. “De onde nascem as histórias?”, pergunta o Grão Vizir à filha. “Dos desejos e medos dos homens”, responde-lhe ela. “E para que existem?”, continua o pai. “Para nos ajudarem a sobreviver. Para ligarem o tempo dos mortos ao tempo dos que hão de vir”. O giro da roda-gigante está prestes a parar. Um plano sequência passa por Miguel Gomes, de turbante, no solo, a fumar, e, em contra-plongée, revela a estrutura metálica do brinquedo contra o sol. Assistimos a uma contagem regressiva de cinco segundos e, em seguida, lemos: “Sherazade se lembrava da primeira vez que seu pai a tinha levado à roda-gigante. Sempre que ela tinha vertigem, acalmava-se pensando naquele

112 Para Muhsin Mahdi, autor da edição crítica do Livro das Mil e uma Noites publicada em 1984, em muitos aspectos definitiva, a primeira elaboração da obra teria se dado na Bagdá governada pela dinastia abássida, por volta do século IX D.C. (Mahdi, 1984, apud JAROUCHE, 2004, p. 72).

128 momento”. Uma resposta para os efeitos da abstração sobre o cineasta, conforme exposto no prólogo?

3. História, memória e esquecimento. (Ainda Canção para um triste mistério) Nos filmes de Lav Diaz, o problema do acesso se coloca de saída: não há edições em DVD, pouca coisa se encontra disponível por sistemas de video on demand e as estreias comerciais são raras. Resta a seus apreciadores e estudiosos vê- los em festivais ou através da pirataria – é provável que a situação se modifique depois do reconhecimento obtido em festivais recentes (Berlim, Veneza). No âmbito dos festivais, é preciso disponibilizar praticamente o dia todo, já que os mais longos são em geral exibidos de maneira contínua, com intervalos relativamente curtos a cada duas ou três horas. Prova do obstáculo que a longa duração representa para um close-reading dos filmes de Diaz está nos textos críticos a seu respeito, que não raro não vão muito além da constatação de que ele faz filmes longos113. Mesmo quando é possível ao analista “possuí-los”, de quanto tempo seria preciso dispor para conseguir “conhecer seus filmes tão bem quanto o próprio cineasta”, homenagem “natural” para alguém que escreve sobre um realizador que admira, como colocava Truffaut (1954)? Aqui, procurarei relacionar as dificuldades do analista e do espectador dos filmes de Diaz com as contradições entre lembrança e esquecimento que envolvem a própria escrita historiográfica (RICOEUR, 2007) e, em seu seio, a atenção às temporalidades longas (BRAUDEL, 1958), para em seguida analisar mais de perto os momentos de metalinguagem presentes em Canção para um triste mistério. Lav Diaz sempre encontra uma maneira de fazer com que a história das Filipinas esteja presente em seus filmes. Em Batang West Side (2001), filmado em Nova York e Nova Jersey em meio à comunidade da diáspora filipina nos Estados Unidos, o avô do protagonista presenteia-lhe um livro de história e conta ao neto suas lembranças dos tempos de guerra. Evolução de uma família filipina (1993-2004), acompanhamos os Gallardo, clã de agricultores pobres, de 1971 a 1987, da ditadura de Marcos às turbulências da Revolução do Poder Popular – rodado em preto e branco ao longo de dez anos, o

113 Um exemplo é o título “Diretor defends eight-hour movie that features hour-long lunch break” (The Guardian, 19 de fevereiro de 2016, art. cit.); outro está na seguinte passagem: “At least “Lullaby’s” verbiage occasionally, if inadvertently, proves self-chastising: In a film short on laughs, chuckles rippled through the Berlin audience 20 minutes from the close, following one character’s solemn promise of relief: “In a little while, the pain shall end” (LODGE, 2016).

129 filme mostra a ação corrosiva do tempo sobre o rosto dos atores. Amnésica e vítima de uma série de abusos e violências, a personagem-título de Florentina Hubaldo (2012), interpretada por Hazel Orencio, seria ela própria uma alegoria da história das Filipinas, país reiteradas vezes invadido, dominado, saqueado. Com Canção para um triste mistério, Diaz reconstitui a independência nacional tendo como base dois romances a escrita de José Rizal. Sua encenação da independência filipina se aproxima menos de um partido histórico interessado nos “eventos” do que nas temporalidades longas, objeto de discussão de Fernand Braudel (1958) que leva a uma virada na disciplina histórica, que passa a olhar também para processos de longo fôlego. No filme, a independência não aparece como um acontecimento pontual, mas como um processo distendido, em que narrativas diversas e inconclusas se sobrepõem. Qual uma floresta de caminhos que se bifurcam, o filme se organiza em uma narrativa dupla, talvez tripla. Há, em primeiro lugar, um filme histórico, pontuado acontecimentos reais ocorridos durante a Revolução Filipina (1896-1898). Em segundo lugar, está a adaptação da obra literária de Rizal, dos romances Noli me tángere (1886) e El Filibusterismo (1891) e do poema Mi ultimo adiós (1896). A essa dupla narrativa, entre o histórico e o ficcional, acresce-se uma terceira camada, que poderíamos considerar “sobrenatural”: a narrativa abarca aparições fantasmagóricas, entre o culto religioso, o mito e o sonho, deixando o espectador por vezes confuso. O filme que resulta da somatória desses três níveis é povoado por uma dezena de protagonistas e centenas de figurantes. Ações se desenvolvem em paralelo e, vencida a dificuldade inicial, o espectador se contenta com o ritmo, nem frenético, nem monótono (RAMOS MONTEIRO, 2016). O espectador deve lidar com a tensão entre memória e do esquecimento114, e é disso que se trata. Boa parte da narrativa de Canção... dedica-se à procura pelo corpo desaparecido de Bonifacio. A morte do líder do movimento independentista e primeiro presidente da República Tagalog, em 1897, é até hoje objeto de controvérsia histórica, e seu corpo jamais foi encontrado. A hipótese mais provável é a traição por Emilio Aguinaldo, ainda tido como herói, apenas uma das obscuridades da história filipina a que se tenta dar visibilidade.

114 Se tive a oportunidade de descobrir outros filmes de Diaz em sessões coletivas, precisei assistir a Canção... em visionamento individual, através de um link disponibilizado para a imprensa. Tratava-se de uma situação híbrida: diferentemente dos analistas da era pré-DVD, eu podia pausar o fluxo do filme, mas me foi vetada sua posse. Ainda nos minutos iniciais do filme, vi-me copiando diálogos, anotando a minutagem, contando a duração dos planos, algo que raramente pratico numa primeira visionagem.

130 Em Canção..., ouvem-se diálogos em espanhol, tagalog, inglês, mandarim e latim. Benedict Anderson (2005) sublinha a intensidade e a versatilidade linguística dos independentistas, que mantinham correspondência com anarquistas em Cuba, na Espanha, na Áustria, no Japão. Rizal escrevia em espanhol, a língua do conquistador, tomando o cuidado de pervertê-la com expressões em tagalog. Canção... restitui tal atmosfera. O título do filme evoca uma canção de ninar que também é um lamento, contribuição importante para a modalidade de atenção que Diaz instaura em seu público, quase meditativa. Jocelynang Baliwag pertence a um gênero tradicional filipino, o “kundiman”, e costumava ser executada sobretudo à noite, cantada em tagalog com acompanhamento de violão ou violino. Com letras que podem tanto ser românticas quanto patrióticas, funcionando para ninar e para fazer o luto, o kundiman é em si um gênero impuro. Popular ao final do século XIX, Jocelynang Baliwag é repleta de sentimentos revolucionários patrióticos e, por isso, ficou conhecida como “a Kundiman da Revolução”. A melancólica melodia é também de pesar, impregnada por um sentimento patriótico demasiadas vezes frustrado. Tema primordial das ficções fundacionais, as narrativas de independência da literatura e do cinema entrelaçam trajetórias individuais e destino coletivo, em geral apontando para um futuro de redenção. O espelhamento entre as esferas privada e pública também ocorre no filme de Diaz, em que predomina, no entanto, a desesperança. Tal aliança transparece no diálogo que Isagani e Basílio travam na floresta. Originalmente personagens de El Filibusterismo, eles convivem, em Canção para um triste mistério, com personagens reais. Médico, Basílio tenta ajudar os feridos na luta contra as autoridades espanholas. Isagani deve levar-lhe remédios.

Que tipo de herói sou eu, Basílio? Um nobre herói que se sacrifica por uma mulher que escolhe outro homem? Um herói corajoso a poupar homens arrogantes que oprimem sua própria raça? É porque eu estava perdidamente apaixonado por Paulita que a Espanha continua a mandar nesse país. Pense nisso, meu amigo. Sou herói para uma mulher, e ela me deu as costas. Para meu país, sou um traidor. (...) O império espanhol segue ditando regras na Ásia por causa de mim.

Iniciado aos 50 minutos de filme, o diálogo é mostrado em um único plano fixo, de quase 9 minutos de duração. É noite. Basílio chega primeiro à clareira na floresta, Isagani aparece depois, entrando pela direita do quadro, munido de uma sacola. A iluminação coloca em evidência uma névoa, que ameaça encobrir os dois personagens, já quase no final do plano. Basílio sai de campo pela esquerda, e Isagani

131 chora. No quadro fixo, os dois personagens aparecem a maior parte do tempo de perfil, numa configuração que lembra soluções teatrais para entradas e saídas de cena, num tempo em que o cinema ainda não existia. Decorridas seis horas de filme, em outro diálogo organizado frontalmente, Isagani encontra-se com Simoun, protagonista de El Filibusterismo, agonizando. No romance, Simoun é um joalheiro influente entre os espanhóis que se articula em favor do movimento independentista. Isagani questiona a função da arte naquele contexto, uma fala que poderia voltar-se para uma interrogação a respeito das possibilidades do filme e do cinema em geral: “Como a arte pode ajudar um índio que está morrendo de fome? O que a arte pode fazer para um país como as Filipinas? A arte apenas expressa uma coisa: liberdade. (...) Para mim, a arte está morta”. Isagani enfrenta uma longa travessia da floresta para, carregando Simoun nas costas, levá-lo à cabana onde vive o Padre Florentino. Dali em diante, reflexões sobre o que pode o cinema do século 21 ou a arte diante das necessidades do povo filipino nos acompanharão até o fim. Simoun sugerirá que a liberdade filipina obtida com a independência espanhola “é apenas um começo”, num comentário que interpela a realidade atual. Mas a arte resiste, e os momentos finais da vida do joalheiro têm configuração próxima ao sublime: a janela ao lado de seu leito revela, no mesmo plano, um penhasco e o mar. Seu último desejo é, do alto, olhar o reflexo do brilho da lua sobre o mar. Padre Florentino e Isagani o transportam até lá, mas o contracampo de sua visão nos é negado.

4. Antes do fim Quando interrompe o fluxo do filme para anotar/citar um trecho, o analista elimina o movimento das imagens e seu objeto desaparece. Se o filme de Gomes oferece, apesar da longa duração, ferramentas para fazer a análise em comodidade, com Diaz devemos recorrer à memória para fazer relações, entender o que vimos, imaginar o que não vimos. Memória do livro, memória da história e também a memória do próprio filme, que se acumulam e competem mutuamente. As sessões longas acabam por constituir-se como lugar privilegiado para a construção de uma comunidade de memória, numa atualização do conceito andersoniano de “comunidade imaginária” (ANDERSON, 2008). Estaria a proposta de Diaz mais em sintonia com o dispositivo cinematográfico tradicional enquanto a de Gomes, mais próxima do pós-

132 fílmico? Talvez. Ambos aproximam-se de um modo de espectatorialidade das imagens em movimento instaurado por sua forma instalatória, pautada pela possibilidade de entrar em sair em momentos mais ou menos aleatórios. Frente a eles, também se dissolve a própria ideia de sessão a que nos habituamos, com cerca de duas horas de duração, começo, meio e fim bem delimitados. Dissolvem-se ainda os limites do que é a arte cinematográfica – cabem nela momentos narrativos e momentos contemplativos, cenas teatrais, cenas musicais e de dança, poemas declamados e escritura na tela, etc. Notável em Mil e uma noites e em Canção para um triste mistério, a “contaminação” do cinema por outras formas artísticas pode ser encarada sob o prisma da defesa baziniana da impureza do cinema (BAZIN, 1999). A geografia globalizada do filme de Gomes, em que se pode transitar de Viana do Castelo a Marselha, da periferia de Lisboa a Bagdá, assim como o multilinguismo do filme de Lav Diaz talvez possam nos ajudar, futuramente, a entender o discurso que as duas obras estão produzindo a respeito da própria ideia de nação: há um desejo de inscrever a paisagem nacional e a sonoridade da língua pátria na tela, mas ele se demarca de qualquer ambição de pureza ou de elegia às cores nacionais. Enquanto o capitalismo avança pelas horas de sono, tornadas horas de trabalho, condenando-nos a um estado de atenção permanente (CRARY, 2014), é subversiva a proposta de Gomes e de Diaz, autores de filmes de seis ou oito horas que embalam seu espectador ao som de bolero ou canção de ninar, contribuindo para uma atenção que permite distrair-se do enredo e deixar-se embalar. A oposição entre um cinema da atenção e um cinema da distração115 é insuficiente para entender as dinâmicas envolvidas na experiência de um filme como As mil e uma noites ou Canção para um triste mistério: mais do que conduzir didaticamente a atenção de seus espectadores, Gomes e Diaz acreditam em sua capacidade de modular atenção e distração. Para o analista, é preciso adotar estratégias distintas de obra a obra, deixando-se ele também embalar pelo que cada um lhe dita.

115 Para Bellour, há hoje de um lado “o cinema comercial global, dominante e dominado por todos seus produtos derivados”, “fundado sobre uma estética degradada do choque estereotipado e uma violência indeterminada das imagens”; de outro, “um cinema cada vez mais local, diversificado, tornado mais internacional, que continua a buscar a atenção dos espectadores” (BELLOUR, 2011, p. 34).

133 III.F) Capítulo V

Das narrativas de fundação às narrativas de dissolução. A questão da identidade nacional em filmes contemporâneos116

1. Anedota sobre identidade nacional no cinema contemporâneo117

Em meados de 2015, admiradores do cinema de Jia Zhang-ke foram convidados, por e-mails e postagens em redes sociais, a entrarem no site do IMDB e darem nota máxima na avaliação de seu último longa-metragem, As montanhas se separam (Shan he gu ren, 2015). Não era um apelo comum, não se tratava apenas de defender o filme do realizador chinês, nem de buscar o reconhecimento internacional. Havia uma estratégia, antes de mais nada política, de furar o bloqueio que as obras do cineasta vinham enfrentando havia quase vinte anos em seu país de maneira explícita ou tácita, ora como resultado da censura oficial, ora em função do controle estatal do mercado exibidor. Mountains May Depart conseguira um feito raro: permanecer uma semana em cartaz em cinemas da China, em setembro. Isso permitia que o filme competisse na cerimônia do Oscar, na categoria de “Melhor Filme Estrangeiro” (LEE, 2015). Dez anos antes, com Still Life – Em busca da vida (Sanxia haoren, 2006), o cineasta conquistara o Leão de Ouro do Festival de Veneza; em 2013, no Festival de Cannes, Um toque de pecado (Tian zhu ding, 2013) havia levado o prêmio de melhor roteiro. Mountains May Depart fora premiado com o Cavalo de Ouro do Festival de Taipei. O filme tinha também disputado a Palma de Ouro em Cannes em 2015 – e

116 Este capítulo retoma e desenvolve algumas das interrogações contidas no texto "Das narrativas de fundação às narrativas de dissolução: a questão da identidade nacional em filmes contemporâneos periféricos", apresentado no XXV Encontro da Compós, em Goiânia, em junho de 2016. 117 Qualquer semelhança entre o contexto chinês evocado no início deste capítulo e as tensões entre o cineasta Kléber Mendonça e o governo federal brasileiro não é mera coincidência. Com efeito, desde a apresentação do filme Aquarius (2016) no Festival de Cannes, ocasião em que a equipe do filme pronunciou-se contra a destituição da presidenta Dilma Rousseff, as represálias sofridas pelo cineasta pernambucano e pessoas a ele ligadas não cessaram, envolvendo o comando da Fundação Joaquim Nabuco, o patrocínio à mostra recifense Janela de Cinema e o retardamento na aprovação da prestação de contas de seu filme Bacurau (2019) que, embora premiado no Festival de Cannes, não foi selecionado para representar o país no Oscar.

134 perdido para Dheepan, de Jacques Audiard. Parte de um lobby organizado pela produção do filme e que contava com o engajamento espontâneo dos admiradores do realizador, em incontáveis postagens no Facebook, Twitter e Weirbo, além da participação do próprio Jia, a campanha em favor da indicação de Mountains May Depart ao Oscar visava o mercado chinês (BRZESKI, 2015). Acreditava-se que se o filme estivesse no topo, o governo chinês se veria no dever de indicá-lo como representante do país na premiação, apesar das difíceis relações do realizador com as autoridades chinesas para o cinema. Os capítulos seguintes não são segredo: o indicado pela China foi Espírito de Lobo (2015), filme rodado no Canadá, realizado pelo francês Jean-Jacques Annaud com base no livro do chinês Lu Jiamin, e na sequência desclassificado por contar poucos chineses na equipe criativa (AMY, 2015). Até 1º de outubro, quando seriam anunciados oficialmente os representantes de cada país indicados ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, um caloroso debate nas redes sociais, em jornais e em revistas de cinema opunha Jia a Annaud. O cerne da querela dizia respeito a questões de nacionalismo e nacionalidade. Qual dos dois filmes era o mais “chinês”? Ainda que se reconhecessem as qualidades estéticas de ambos, contra Jia pesava o fato de que, embora nascido no país, seus filmes são difíceis e desconhecidos do grande público. Annaud era criticado por ser francês e por sua visão idílica da Revolução Cultural, considerada distante da realidade. Este artigo não pretende tomar partido do debate e menos ainda aferir quão “chineses” ou “representativos” do cinema chinês seriam Mountains May Depart e Espírito de Lobo. Se reconstituo a anedota aqui, é porque ela ilustra de maneira exemplar alguns aspectos do peso determinante que critérios de nacionalidade – identidade, representatividade, legitimidade – exercem na trajetória dos filmes ainda hoje, em que o peso dos conceitos de nação e nacionalismo não cessa de ser posto em xeque, inclusive no âmbito dos estudos cinematográficos, como vimos. Além disso, o caso é particularmente interessante pelo fato de As montanhas se separam ter, em sua fatura, uma aguda discussão sobre identidade nacional, propondo uma visão de uma identidade chinesa em dissolução.

135 Com efeito, a partir dos anos 1970 e 1980, a historiografia reviu os conceitos de “nação” e “nacionalismo”, agora entendidos como “invenção” entabulada por necessidade dos Estados118. A exemplo de outros títulos de Jia e de um conjunto de produções contemporâneas de cineastas diversos, examinados neste relatório, As montanhas se separam entrelaça destino individual e história nacional, reavivando o debate em torno da questão do “nacional” em múltiplos níveis. Trata-se, em primeiro lugar, de um dado fundamental de sua fatura, tanto do ponto de vista narrativo quanto do da visualidade. Em segundo lugar, a discussão sobre o “ser chinês” atravessa o filme em sua sonoridade, por meio das línguas faladas e ouvidas na banda sonora. É, além disso, determinante de sua circulação: os filmes, não muito diferentemente das pessoas, possuem nacionalidades de origem e dependem de "vistos" ou "passaportes" para cruzar fronteiras – o caso de As montanhas se separam, impedido por seu país de origem de competir por uma indicação na competição de melhor filme estrangeiro no Oscar, é emblemático. Se a questão nacional ocupa de fato posição central, isso não implica na reafirmação de uma identidade nacional mítica ao modo das narrativas fundacionais descritas por Doris Sommer (2004), ou no reforço do auto-exotismo essencialista característico de produções a que Elsaesser se refere em sua discussão sobre cinema europeu “pós-nacional” (ELSAESSER, 2013, parágrafo 14)119. De maneira comparável a Plataforma (Zhantai, 2000) e O mundo (Shijie, 2004), além dos já citados Still Life e Um toque de passado, As montanhas se separam envolve personagens em deslocamento, passagem do tempo e os efeitos das mudanças econômicas e políticas brutais da China a partir da morte de Mao Tsé- Tung, em 1976, sobre o modo de vida de uma família ou de um grupo social. O filme trata da vida de Tao (Zhao Tao) e de seus amigos de infância Liangzi (Liang Jing Dong) e Zhang (Zhang Yi), ambos apaixonados por ela. A diegese se divide em três períodos: 1999, 2014 e 2025 – já numa fase de imaginação futurista algo distópica, com elementos de ficção científica. A travessia de um espaço hostil, a disputa pelo amor de uma mulher, um casamento, um nascimento... Tais ingredientes da sinopse poderiam apontar para um parentesco com as “ficções de fundação nacional” (SOMMER, 2004), gênero literário que floresce no século XIX, ganha força com o cinema desde o período silencioso e encontra nos westerns e melodramas

118 Essa questão foi discutida na introdução a este relatório. 119 As produções a que Elsaesser se refere são búlgaras, húngaras, romenas, bascas ou irlandesas.

136 estadunidenses talvez sua mais bem-sucedida encarnação, em um momento de estabilização de seu dispositivo clássico de exibição e de afirmação de sua vertente clássica, narrativa. O espelhamento entre história nacional e destino privado foi forjado, na chave positiva, por uma série de escritores e realizadores, sobretudo oriundos de “jovens nações”, que, na afirmação de sua identidade nacional, contaram com a contribuição de autores engajados na afirmação de um projeto nacional idealizado. O uso de destinos individuais como estratégia de afirmação de mitos nacionais fica evidente, por exemplo, em Young Mr. Lincoln (1939), de John Ford, filme admirado por Eisenstein e amplamente discutido pela revista Cahiers du Cinéma. Em um artigo a seu respeito, Morettin (2011a) repertoria o uso da figura de Lincoln em produções cinematográficas e teatrais norte-americanas para analisar como se dá, no filme de Ford, a utilização de sua figura para afirmar a relação entre a identidade dos Estados Unidos e a democracia.

(...) a tarefa a que se propõe Young Mr. Lincoln não é propriamente a de desmistificar o personagem principal. Pelo contrário, todo o esforço é no sentido de transformá-lo em monumento. (...) Alegoricamente, o filme de John Ford reforça a ideia de democracia a partir da figura de um líder que atu[a] como mediador entre as diferentes forças sociais (MORETTIN, 2011a: 20-21).

No cinema das Américas e de países de passado colonial, as narrativas fundacionais estão presentes em um vasto conjunto de filmes120 em que, de modo geral, mesclam-se a história de um herói que tenta encontrar sua heroína, tendo que vencer uma série de contratempos, e a travessia de parte do território nacional, reedição inesgotável da trajetória de Ulisses. Nos westerns, a travessia em geral masculina e solitária de territórios “virgens” – entre aspas, pois evidentemente não se tratava de desertos populacionais absolutos, apenas de territórios não povoados pela população branca – é fundadora do ideário dos Estados Unidos enquanto “terra de oportunidades” e, ao mesmo tempo, perfaz o caminho de peripécias enfrentado pelo herói antes de encontrar a felicidade, o amor e uma terra fértil onde poderá fundar sua família, germe da nação em

120 É impossível limitar a um período histórico determinado a presença das narrativas cinematográficas fundacionais. Essa produção surge em paralelo com determinados momentos nacionais – enquanto em países da América Latina as narrativas fundacionais cinematográficas aparecem desde a primeira metade do século XX, em países africanos cujas independências se deram tardiamente, há um boom de narrativas cinematográficas fundacionais – evidentemente reconfiguradas – a partir dos anos 1970.

137 construção. Nas obras fílmicas contemporâneas que apresentam o que chamamos de “narrativas de dissolução” – que outros autores podem associar à discussão sobre cinema pós-nacional, pós-narrativo e pós-fílmico –, elementos característicos da literatura fundacional fazem-se presentes de maneira distorcida. Existe um entrelaçamento comum entre destino individual e destino coletivo, mas é na chave da desesperança e da dissolução que eles se articulam. O cinema neorrealista, cujo papel de inaugurador de um certo modernismo cinematográfico foi amplamente discutido, marcadamente a partir de Deleuze (1983, 1985), é fundamental ao enlaçar os destinos dos personagens aos da nação na chave da crise, o que evidentemente se relaciona ao peso da Segunda Guerra Mundial no contexto europeu e, em particular, italiano. Ismail Xavier (2012) já havia notado, no Cinema Novo, a retomada de motivos caros às narrativas fundacionais associada à ideia de desesperança e subdesenvolvimento, em meio ao desencanto pós-fracasso de projetos coletivos utópicos121. Há algo de semelhante na descrença no futuro posta em cena pela produção fílmica mais recente, sem que, no entanto, exista um objetivo alegórico de chamar atenção para uma condição subdesenvolvida. Trata-se agora de apontar para os limites do nacional e do cinema enquanto entidades monolíticas, propositivas e de especial poder federador.

2. Dissolução, diluição

Nos filmes de Jia Zhang-ke o destino individual de um personagem vincula-se à história nacional, mas com foco não na fundação, mas na dissolução geográfica, geológica, cultural, social – e mesmo da imagem fílmica122. Assim, em Still Life, duas histórias de amor, migração e separação ambientam-se na cidade de Fengjie, que prepara seu próprio desaparecimento em decorrência da inundação provocada pela construção da Barragem das Três Gargantas. Jia revisita a paisagem do Sichuan sete anos mais tarde em Um toque de pecado: Sanming, ator que em Still Life tinha papel protagônico, como um trabalhador das minas do Shanxi que chega a Fengjie em busca da filha e da ex-mulher, desembarca no mesmo porto; a diferença, agora, é o

121 A presença da consciência da crise nas alegorias nacionais forjadas por cineastas do Cinema Novo brasileiro tem sido amplamente discutida, a partir de Alegorias do subdesenvolvimento (XAVIER, 2012), em diálogo com a questão da alegoria nacional no cinema norte-americano e europeu, a partir de Griffith, estudada em outros trabalhos do autor (1984, 1999). 122 Abordei esse aspecto em minha tese de doutorado (MONTEIRO, 2014).

138 horizonte pontuado por arranha-céus ultramodernos, e a absoluta ausência das construções tradicionais cujos derradeiros momentos havíamos testemunhado no filme de 2006. Em As montanhas se separam, Sanming é visto de relance, ainda trabalhando em uma mina de carvão. Junto com Zhao Tao, Sanming é presença constante na produção de Jia, desenhando um percurso histórico e geográfico que transborda as fronteiras entre os filmes, construindo uma enorme e interminável narrativa. Em As montanhas se separam, do ponto de vista narrativo, temos dois homens que disputam o amor de uma mulher; ela se casa com um deles e tem um filho. No campo da visualidade, veem-se paisagens chinesas emblemáticas, como o Rio Amarelo e as muralhas de ; veem-se, ainda, festejos tradicionais de Ano Novo, celebrações de casamento. Tais elementos são frequentes nas ficções de fundação: a formação de uma nova família, o festejo de um novo ciclo que se inicia e cerimônias nacionais típicas simbolizam a esperança no futuro e a crença na propagação do conjunto de valores e ideais que caracterizam a nação em desenvolvimento. Com o passar do tempo, no entanto, a história de As montanhas se separam se revela o avesso disso tudo. Sobrevêm separações, morte, imigração, incomunicabilidade. Se na narrativa fundacional a travessia territorial aponta para o futuro de oportunidades que os terrenos despovoados do oeste norte-americano representam, a China de As montanhas se separam não oferece futuro para os protagonistas – e parte deles emigra. O termo “narrativas de dissolução” vale-se da polissemia do segundo termo – em seu sentido físico-químico, diluição de um soluto em um solvente. Pesquisas anteriores haviam observado, em Still Life, a dissolução da arquitetura de Fengjie e do relevo das Três Gargantas em decorrência da construção da barragem, processo que também envolve o apagamento de todo um modo de vida, de uma memória coletiva (lembremos do sítio arqueológico da cidade, que abrigava um cemitério milenar) e da própria imagem cinematográfica. Depois de algumas experiências em 35mm e em VHS, a adoção da filmagem digital por Jia Zhang-ke, associada a um registro realista baseado em planos sequência, e pontuada por efeitos especiais, apontaria para uma dissolução que envolveria o próprio cinema em sua ontologia de matriz baziniana. De fato, a produção de Jia reflete uma transformação do cinema enquanto arte e instituição, num momento de transição do cinema em película para o digital. Seus filmes chegam ao público por circuitos alternativos – mercado pirata, internet e

139 festivais –, sendo raramente exibidos em sala no país. Trata-se, ainda que por motivos distintos, de uma situação muito próxima da enfrentada pelos filmes de Lav Diaz, também raramente exibidos em sala em seu país, e muito mais conhecidos por caminhos alternativos, viabilizados pelas tecnologias do cinema digital. Haveria uma correspondência entre a inversão operada por essas “narrativas de dissolução” em relação às narrativas fundacionais do cinema clássico, e o momento de crise vivido pelo próprio cinema, que se vê desprovido de componentes que até pouco tempo serviam para defini-lo? Se o cinema clássico encontrou na película de 35mm e na projeção em sala escura os pilares de sua definição, e nas ficções fundacionais uma forma de consagração, o cinema contemporâneo estaria enfrentando seu próprio esfacelamento na oscilação entre a textura da película e a do vídeo, e em narrativas que afirmam o desmonte de uma ideia de nação tal como era conhecida.

3. Estruturas em corrosão

As montanhas se separam desenha um percurso temporal, geográfico e cinematográfico preciso. Como já foi dito, o filme compreende três tempos: 1999, 2014, 2025. Na narrativa, Tao e Jinsheng (Yi Zhang) casam-se em Fenyang na primeira parte do filme e, em 2014, encontram-se separados, ela permanecendo em sua cidade, ele vivendo com o filho e uma nova mulher em Shanghai. Em 2025, Dollar, o filho do casal, mora com o pai na Austrália – o nome do garoto, indicativo da admiração dos pais pela moeda estadunidense, provoca risos entre seus colegas australianos, evidentemente. O filme começa e termina ao som de Go West, hit da disco music criado pelo Village People nos anos 1970. Na sequência inicial, o trio de protagonistas (Tao, Jisheng e Langzi) dança junto a outros personagens a versão criada pelo grupo britânico Pet Shop Boys em 1993. A música pop pontua a filmografia de Jia Zhang-ke (MELLO, 2015), de modo geral transmitindo um individualismo reprimido durante o período em que os valores coletivos predominavam, e que encontram vias de expressão, entre outras coisas, nos ritmos importados chegados ao país em meio à abertura política iniciada nos anos 1970. Aqui, destaca-se a letra da canção em inglês, numa apologia do deslocamento em direção ao Ocidente. Na sequência final, já em

140 2025, veremos Tao dançar sozinha a mesma melodia, mas desprovida de letra, sob uma neve criada artificialmente em pós produção. De uma ponta a outra, envelhece a personagem, envelhece o cinema, se entristece a China. Na primeira parte, a imagem, em formato 4:3, tem textura característica da imagem em vídeo daquele momento – Jia valeu-se, na montagem, de materiais que ele de fato havia gravado na década de 1990, rodando cenas novas de maneira a encadeá-las na narrativa (figs. 36-37). Na segunda, já em formato 16:9, a textura já é da imagem digital contemporânea, com menos “sujeira” (fig. 38). Finalmente, as imagens de 2025 alongam-se horizontalmente e são ainda mais lisas e artificiais, numa caracterização do futuro da imagem cinematográfica quase caricatural (fig. 39). A essa dissolução da imagem realista em uma nitidez exacerbada e finalmente falsa, somam-se dissoluções de outras ordens.

(Figs. 36-39) Fotogramas extraídos de As montanhas se separam (Jia Zhang-ke, 2015): acima, à esq. material documental gravado por Jia na década de 1990 e, à dir., filmagens já dos anos 2010 que reproduzem o formato 3:4 da imagem. Em seguida, cena que se refere a 2014, em 16:9. A última imagem, mais lisa e alongada, já bastante trabalhada em pós-produção, corresponde a 2025.

A escolha musical para a abertura do filme indicaria um movimento de ocidentalização também caricatural. Jia sempre combinou em seus filmes referências às artes tradicionais chinesas, à cultura pop local e a elementos oriundos de um repertório – sobretudo cinéfilo – internacional. A opção pelo hit dos Pet Shop Boys poderia, nesse contexto, ser entendida como apenas a intensificação desse processo.

141 Mas não se trata apenas disso: a música que embala o início e a conclusão do filme é um indicativo, bastante literal, da tensão linguística desenvolvida ao longo do filme. Ainda na primeira parte, Tao, Jinsheng e Langzi estão na loja de eletrodomésticos do pai dela e um casal chega para comprar um aparelho de som. Eles colocam um CD e a melodia romântica de Sally Yeh123 invade o espaço. “Que bonito”, diz Tao. “Eu gostaria de entender cantonês”. Essa incompreensão inicial se intensifica gradativamente. Em 2014, Dollar chega a Fenyang para o funeral do avô e chama a mãe de “Mummy” – em Shanghai, ele é educado em uma escola britânica. Em 2025, já vivendo na Austrália, ele só fala inglês, e sequer consegue comunicar-se com o pai. Mortes, enterros, separações e a ruptura na transmissão da herança cultural familiar são motivos frequentes na obra de Jia, encontrados por exemplo em The World e Still Life. Num contraponto aos casamentos e nascimentos frequentes nas ficções fundacionais, esses motivos perfariam um vocabulário próprio das narrativas de dissolução. Em As montanhas se separam, a tensão entre essas categorias se faz visível em diversos momentos. Um exemplo: estamos já em 2025, na Austrália, onde Jinsheng vive com o filho, Dollar, como dito acima. Ele é um jovem na casa dos 20 anos e trabalha em um restaurante chinês típico, de decoração pouco autêntica. Logo entra sua professora de chinês, acompanhada de seu ex-marido canadense. Eles estão ali para acertar detalhes do divórcio. Mais tarde, a professora se tornará intérprete nas tentativas de conversa entre Dollar e seu pai. Depois, será sua namorada. Num passeio romântico de helicóptero, Dollar e a professora sobrevoam falésias emblemáticas da costa australiana, conhecidas como “Doze Apóstolos” – que na parte anterior, em 2014, o pequeno Dollar havia mostrado imagens daquele relevo a sua mãe (Figs. 40 e 41). Ela comenta: “quando cheguei aqui, eram oito. Agora só restam três”. Referência a um processo erosivo efetivamente enfrentado pelas falésias australianas, o diálogo ecoa o desaparecimento do relevo das Três Gargantas e, num nível metafórico, a diluição da cultura, dos costumes e das artes tradicionais num ambiente pós-moderno de neutralidade, evolução acompanhada pela própria polidez da imagem digital.

123 Nascida em Taipei (Taiwan) em 1961, Sally Yeh tem nacionalidade canadense – ela emigrou com a família para o Canadá aos 4 anos de idade – e é uma cantora e atriz que se expressa em cantonês, mandarim e inglês. Suas músicas estão na trilha sonora de dezenas de filmes, como os do diretor Tsui Hark, rodados em Hong Kong.

142

(Figs. 40 e 41) Fotogramas de As montanhas se separam (Jia Zhang-ke, 2015) que mostram a dissolução da paisagem: imagem dos "doze apóstolos" do relevo australiano vista no tablet de Dollar em 2014 e, em 2025, as falésias que sobreviveram à erosão, observadas em sobrevoo de helicóptero (para chegar a tal imagem, o filme produz um apagamento digital de algumas das falésias).

4. Cinemas nacionais, cinemas em chinês

É difícil falar em “cinema chinês” sem problematizar a questão do “cinema nacional” ou da “cinematografia nacional”124. Berry e Pang (2008) discutem o problema, propondo o uso do “s” na expressão “cinemas chineses” (“Chinese cinemas”) e evidenciando sua qualidade eminentemente transnacional. Para além das distintas geografias recobertas pelos cinemas chineses (alguns autores preferem “cinemas em chinês”, embora tampouco haja homogeneidade linguística), ressaltam- se as diferenças entre o cinema que se faz na China continental, em Taiwan, Hong Kong e na diáspora. Mais importante: entendem que não há ideia comum de cinema e nação nem mesmo no interior dos territórios. Alguns autores optam por estudar os cinemas chineses dentro de uma perspectiva transnacional – o transnacional seria uma característica do cinema produzido na China contemporânea, conforme propõe Sheldon Hsiao-Peng Lu já em 1997, discussão prolongada por Berry e Pang (2008), Higbee e Lim (2010), entre outros. Monvoisin (2013), que discute a questão do “s” em seu trabalho sobre os cinemas asiáticos, mantém o nacional como categoria nos estudos que propõe do cinema japonês, chinês e taiwanês (no singular), curiosamente excluindo do que considera “cinema chinês” a filmografia de Jia Zhang-ke, por não ser “representativo” o suficiente. Ainda no que se refere a Jia, Mello (2014a, 2014b), sem negar sua dimensão transnacional, identifica elementos da cultura e das artes tradicionais chinesas na filmografia do autor.

124 Ver discussão a esse respeito na introdução a este relatório.

143 Como vimos, o “nacional” é uma categoria da historiografia clássica, seja por fornecer uma estrutura para as histórias gerais, seja para descrever cinematografias específicas (TORTAJADA, 2008, p. 9). Se o conceito de “cinema nacional” vem sendo questionado, nomeadamente pela “nova história”, que traz reflexões metodológicas sobre as histórias nacionais do cinema125, influenciadas por trabalhos sobre o conceito de “nacionalidade”, “nacionalismo” e “nação”126, o “nacional” enquanto categoria cinematográfica está longe de tornar-se obsoleto. Sua importância é atestada em festivais de cinema internacionais, em que os filmes representam seus países, assim como em retrospectivas e premiações. O critério nacional continua sendo usado pela historiografia127 e mais amplamente pelos estudos de cinema, do Atlas du cinéma de Labarrère (2002) à coleção dirigida por Hayward (1993) para a Routledge128. Em um esforço de sistematizar a reflexão sobre o cinema nacional, Rosen afirma:

Discutir um cinema nacional pressupõe não somente que exista um princípio ou princípios de coerência entre um grande número de filmes, mas também implica o pressuposto de que esses princípios têm algo a ver com a produção e/ou a recepção desses filmes dentro das fronteiras legais de um dado estado-nação (ou que eles se beneficiem de capital controlado dentro dele). Ou seja, a coerência intertextual está conectada a uma coerência sócio-política e/ou sociocultural, implicitamente ou explicitamente assignada à nação. (ROSEN, 2006: 18, nossa tradução)

Se encontrar essa coerência no seio do que seria cinema chinês já é algo difícil, As montanhas se separam apontam para a própria impossibilidade do cinema nacional enquanto categoria, numa contemporaneidade marcada por trânsitos internacionais e por mudanças institucionais no cinema, de modo que a aliança entre “cinema” e “nação”, fortalecida ao longo do século XX (FRODON, 1998), se torna, hoje, algo que beira o anacronismo.

125 A literatura a esse respeito é abundante, sobretudo no mundo anglófono (cf. ROSEN, 2006 [1984]; HJORT & MACKENZIE, 2000; VITALI & WILLEMEN, 2006), mas também presente no universo francófono (FRODON, 1998; SORLIN, 1996a). O tema é central nos estudos do cinema asiático, sobretudo na China. 126 A esse respeito, nos referimos aos trabalhos de Anderson (2005; 2008), Gellner (1993) e Hobsbawn (1990). 127 São interessantes os estudos sobre cinema silencioso que levam em conta a questão do “nacional”, já que, nas primeiras décadas do cinema, por não haver diálogos falados, os filmes circulavam mais facilmente entre os países. Por outro lado, é no cinema silencioso que se situariam as bases da relação entre cinema e sentimento nacional (MORETTIN, 2011a e 2011b). 128 Cf. também SORLIN, 1996b; GITTINGS, 2002; TRIANA-TORIBIO, 2003.

144 Capítulo VI X-Wood contra os cinemas nacionais

1. Equadores, cinema e nação

Um cineasta em crise vocacional entra em uma boate e pergunta a um homem e uma mulher que dançam, fantasiados, se o cinema equatoriano existe. A cena, encenada com uma boa dose de absurdo, é protagonizada por Andrés Crespo que, no documentário Más allá del mall (2010), de Miguel Alvear, faz o papel do próprio Miguel Alvear. Depois de haver realizado o longa-metragem Blak Mama (2008), Alvear pergunta-se por que, apesar do orçamento alto para os padrões locais (cerca de US$ 250 mil) e do reconhecimento obtido (a fita ganhou o prêmio Augusto San Miguel), tão pouca gente viu o filme (cerca de 3 mil pessoas). Tal indagação é o fio- condutor do novo documentário, que acaba percorrendo lugares caros à produção audiovisual equatoriana para entender as contradições que envolvem o público espectador, o mercado exibidor e a classe artística. As dificuldades encontradas por Alvear/Crespo são, de certo modo, a exacerbação do diagnóstico fornecido por Arthur Autran (2009) para o caso brasileiro: não havia, naquele momento, canais que garantissem a chegada às telas e ao público das produções locais, sufocadas pela predominância de filmes estadunidenses, distribuídos por redes de multiplex elas também estrangeiras. Os dois interlocutores que o personagem do realizador encontra na boate são duas figuras conhecidas do cinema equatoriano: Ana Rodríguez, curadora e teórica, e Christian León, destacado estudioso e crítico do cinema local. A cena foi roteirizada e dirigida por Alvear com base em uma entrevista com os dois personagens. Trata-se, como resume Christian León, de "uma crítica irônica e mordaz aos intelectuais, que vivemos teorizando enquanto o cinema vai por outro lado"129. Em paralelo à realização de Más allá del mall, León estava envolvido, ao lado de Alvear, em uma pesquisa sobre um outro cinema equatoriano, que crescia e ganhava visibilidade num espectro que ambos decidiram chamar de bajo tierra. Tratava-se de uma produção audiovisual feita por cineastas autodidatas e autofinanciados que circulava nas redes informais dos mercados piratas de DVDs cujo

129 Em troca de emails pessoal (novembro 2017).

145 epicentro era a chamada “Baía de Guayaquil”, zona comercial da importante cidade portuária equatoriana. Más allá del mall encena a descoberta desse mundo “subterrâneo” por Miguel Alvear. Distante dos registros dos documentários mais convencionais, o filme comporta sequências co-realizadas com três desses cineastas autodidatas: Nelson Palacios, Nixon Chalacama e Fernando Cedeño. Nelas, eles explicam sua trajetória na vida e comentam passagens marcantes de seus maiores sucessos. Ainda que marcado pelo humor e por uma montagem ágil de extrema eficiência, Más allá del mall dá pistas de um conflito subjacente, como já indicava, no início, a discussão, na boate, sobre o que seria o cinema equatoriano. Tal questionamento é prolongado, ainda na primeira parte do filme, numa sequência em que Alvear/Crespo visita a Cinemateca Nacional do Equador e discute com sua então diretora, Wilma Granda. “O cinema equatoriano existe?”, pergunta-lhe ele. “Sim, claro”, ela responde. “Mas onde?”, prossegue o cineasta. “Nas câmaras climatizadas”, diz Granda, numa cena que provoca risos nas mais diversas plateias130 (Fig. 42). A violência subjacente ao questionamento que o filme propõe de maneira mais ampla está contida na seleção de pessoas convocadas para responder a essa questão. Dito de outro modo: há uma fratura entre o que a crítica e as instituições equatorianas consideravam ser “o cinema equatoriano” e a realidade de uma experiência cada vez mais decentralizada de produção e de visionamento. Na publicação coordenada por Alvear e León, a produção autodidata não é chamada de “cinema”, mas de “videografías en circulación paralela”. Não cabe, neste início de capítulo, propor uma discussão essencialista ou ontológica sobre “o que é o cinema”. Apenas sinalizar quem é convocado a responder a essa questão no filme. O filme se constrói a partir de uma investigação movida por Alvear/Crespo, que viaja de ônibus de Quito a Guayaquil, hospeda-se em um pequeno hotel e, ali, examina os inúmeros DVDs encontrados no mercado pirata (Fig. 43). Assiste então a eles, toma notas, pensa, tenta estabelecer nexos e classificações para encaixar aquele material que acaba de conhecer, e que balança os alicerces conhecidos por ele e por sua classe artística do que seria o cinema equatoriano.

130 Tive a oportunidade de apresentar esse filme a alunos de primeiro ano de cinema na Universidad de las Artes, em Guayaquil, e também em palestras e aulas livres.

146

(Figs. 42 e 43) Dois momentos de Más allá del mall (Miguel Alvear, 2009): à esquerda, o personagem do realizador, interpretado por Andrés Crespo, chega à Cinemateca Nacional do Equador e interroga sua diretora, Wilma Granda sobre a existência do cinema equatoriano. O cartaz, ao fundo, comenta ironicamente o diálogo entre os dois. À direita, os DVDs encontrados por Alvear/Crespo na Baía de Guayaquil, epicentro da pirataria nacional, e examinados por ele em um quarto de hotel. O contraste entre o personagem do realizador e as figuras que protagonizam o cinema "bajo tierra" (estampadas nas capas dos DVDs e depois vistas por ele no televisor) que ele encontra é visível na aparência física, no vestuário, no sotaque...

Nas páginas que se seguem, proponho uma discussão sobre o estado atual da articulação entre “cinema” e “nação” com base no exemplo equatoriano e em outros casos de cinema espontâneo e autodidata, de produções que, bebendo na fonte do home-video e do comprometimento amador, vêm conquistando públicos cada vez mais amplo, na Nigéria, em Guiné-Bissau, no Brasil, no próprio Equador e em uma série de outros países. Há evidentemente notáveis semelhanças entre o fenômeno do cinema que aqui chamamos "X-Wood" e uma das categorias (a "c") do "cinema periférico de bordas" oferecida por Bernadette Lyra, pensando sobretudo no contexto brasileiro:

Filmes produzidos por sujeitos autodidatas e moradores de cidades pequenas ou de arredores das grandes capitais, lugares por onde as obras circulam com sucesso de público, verificando-se, a par disso, uma estrutura cinematográfica que foge aos padrões costumeiros de produção e de exibição, articulada sobre modos artesanais e independentes de realização, observando-se não apenas os parcos investimentos econômicos e esforços pessoais dos realizadores, mas também recursos técnicos precários, como a utilização de câmeras baratas, atores não profissionais, cenários toscos ou naturais, além de circulação caseira ou em salas quase sempre improvisadas. (LYRA, 2009, p. 35)

Lyra põe ênfase na "estética de subculturas" ou de culturas "não autorizadas" como base comum para esse "cinema periférico de bordas", que se aproxima do que seria o "paracinema" ou "outro cinema", em paralelo àquele valorizado

147 institucionalmente (LYRA, 2009, p. 35). Se esses termos são problematizados por Lyra, resta-nos a tarefa de evidenciar como essas próprias nomenclaturas e sua assimilação à ideia de "lixo cultural" reiteram centralidades, posições de poder e uma institucionalidade que, justamente, vem sendo abalada por essas produções. Por essa razão o caso equatoriano é tão elucidativo: o sucesso de público das produções autodidatas de Nelson Palacios – que batiam a casa do 1 milhão de espectadores quando circulavam apenas no suporte DVD, e que continuam a superar essa marca nas plataformas de visionamento on-line – é superior ao do cinema legitimado pelas instituições culturais. O termo "bajo tierra" ou "underground" usado para defini-lo parece impróprio, já que a circulação da produção audiovisual institucionalizada acaba por revelar-se, na prática, mais subterrânea (MONTEIRO, 2016). Conforme já apontamos, algumas produções audiovisuais contemporâneas, valendo-se de novas tecnologias de registro e difusão da imagem em movimento, desarticulam a associação costumeira entre cinema e nação. Produzem, assim, filmografias peculiares, que poderíamos chamar de “x-wood”: são a um só tempo híbridas, ancoradas nas culturas populares locais e instauradoras de asperezas para o pensamento das cinematografias nacionais na contemporaneidade. Ainda no século XIX, num cenário marcado pela corrida imperialista, o historiador francês Ernest Renan havia observado o princípio não naturalista da nação moderna, representado na vontade de ser uma nação. A vontade identificada por Renan é fundamental para o processo de unificação da memória histórica, baseado no gesto de esquecimento do passado da nação, ou seja, do apagamento da violência que presidiu o estabelecimento do mandato da nação (Bhabha, 1998, p. 252). Homi K. Bhabha (1998), em sua tentativa de dar lugar à escrita da diferença, observando a tomada de palavra por parte de minorias tradicionalmente excluídas do discurso nacional, abre caminho para que possamos identificar, aqui, a diferença entre os cinemas nacionais e algumas filmografias independentes que fazem balançar o próprio conceito de "cinematografia nacional". Diante da inegável aliança entre colonialismo e modernidade, o “giro decolonial” promove abertura, liberdade de pensamento para formas de vida alternativas, desprendendo-se “da retórica da modernidade” e de seu “imaginário imperial” (Mignolo, 2007, p. 29). A esse respeito, Christian León acrescenta:

148 Há a necessidade de nos desprendermos das teorias da arte e do cinema construídas sob os parâmetros da razão eurocêntrica com a finalidade de permitir a abertura de uma 'estética-outra', de 'culturas visuais-outras', de 'tecnologias da imagem-outras'. (LEÓN, 2013, p. 3).

Talvez, e essa é uma das hipóteses deste capítulo, a violência na origem do sentimento nacional, voluntariamente esquecida por aqueles que construíram a nação, sobretudo nos países submetidos à colonização, encontre lugar de expressão nessas produções autodidatas, populares e/ou desconectadas dos sistemas oficiais de financiamento e distribuição que, à exemplo do "cine bajo tierra" equatoriano, vêm ganhando visibilidade junto ao público e, assim, dando iluminando aspectos por vezes esquecidos sob o termo de "cultura nacional" – as culturas equatorianas, no caso específico de que trata este capítulo, assumem-se como forçosamente múltiplas. Conforme já foi apontado neste relatório, notadamente em sua introdução, há coincidências e simultaneidades entre os conceitos de “cinema” e “nação”. Permito- me, aqui, retomar a reflexão de Frodon (1998) a esse respeito, que considero importante para embasar a análise da situação presente do "cinema nacional" equatoriano, e dos conflitos e disputas que a expressão encerra. Para Frodon, "cinema" e "nação" são “fenômenos de mesma natureza”, duas formas ligadas aos desenvolvimentos da era industrial a partir do século XIX, que florescem pelo mundo ao longo do século XX, passando por importantes transformações na virada para o século XXI. Nação e sentimento nacional não necessariamente precedem a existência de um território ou um Estado, sendo muitas vezes estimulados por este, tarefa para a qual a arte e a literatura colaboram – basta lembrar, seguindo os passos da estudiosa norte-americana Doris Sommer (2004), da literatura fundacional, que ganha força ao longo do século XIX em toda a América Latina, contribuindo para a construção de mitos identitários nos países do continente que haviam conquistado suas independências. Outra invenção do século XIX, o cinema se soma à literatura e às artes visuais como veículo divulgador desse sentimento nacional. Para Frodon, o cinema tem uma relação com o sentimento nacional mais intensa do que as outras artes, e não só pela coincidência temporal da emergência dos dois fenômenos, mas por suas características ontológicas, por sua aptidão em registrar a imagem em movimento do real. Não é preciso concordar com todas as proposições do autor francês para perceber

149 que festivais e premiações, estudos fílmicos e historiografias, distribuidores e críticos valem-se do critério nacional como forma primordial de organização da produção fílmica mundial. Para Dudley Andrew (2010), o cinema teria, em sua história, apenas uma breve fase "nacional", entre o advento do sonoro, na passagem da década de 1920 para a década de 1930, e o final da Segunda Guerra Mundial – antes, em sua primeira etapa, a arte cinematográfica se caracterizava por seu internacionalismo; depois, a ressaca dos fascismos vê nos "nacionalismos" um problema, e o sentimento nacional associado às cinematografias é sufocado. Para Andrew, a etapa "mundial" ou "global" que vive o cinema hoje se iniciaria já no pós-1968, concepção que falha por não levar em conta as cinematografias nacionais que, sobretudo a partir da América Latina, levantam-se num antagonismo voluntário a Hollywood a partir da década de 1950. De fato, conforme apontado em linhas gerais na introdução, nos anos 1960 e 1970, em meio à emergência dos novos cinemas latino-americanos e na esteira do famoso manifesto dos argentinos Fernando Solanas e Octavio Getino, Hacia un tercer cine, falar em “cinemas nacionais” significava, no mais das vezes, enfrentar a hegemonia da produção hollywoodiana. O título do livro de Guy Hennebelle, publicado na França em 1975, ia nessa direção: Cinémas nationaux contre Hollywood. Aqui, retomo a referência à obra por considerá-la pertinente à análise do momento contemporâneo do cinema e, em especial, entender as cinematografias a que chamo de "x-wood". Hennebelle visava, por um lado, de atacar o “império cinematográfico norte- americano” em suas dimensões política, econômica e estética, como promotor de uma ideologia capitalista e de dominação – o autor afirma que objetivo do livro é tentar convencer os “cinéfilos tradicionais” de que os Estados Unidos não fazem “the best cinema in the world” e que Hollywood não é “um santuário cultural autônomo, uma ilha artística que resiste vitoriosamente, salvo infelizes exceções, às chuvas e trovoadas do green power, do poder do dólar” (HENNEBELLE, 1978, p. 29). Para o autor, “o desenvolvimento do cinema americano é a história de uma longa série de guerras econômicas, tanto no plano interno quanto no externo”: guerra das patentes, na qual Edison desqualifica os Lumière; a prática do brain drain, ou seja, a contratação de grandes talentos europeus por Hollywood; a inundação dos mercados externos; o protecionismo; a criação de poderosos conglomerados, etc. (1978, p. 30- 36).

150 Por outro lado, Hennebelle pretendia valorizar escolas cinematográficas nacionais, como o neorrealismo italiano, a nouvelle vague francesa, o free cinema inglês, o jovem cinema alemão, o jovem cinema suíço e o cinema do Quebec. É nesse contexto que seu livro se detém sobre movimentos latino-americanos, concentrando- se sobretudo nos casos de Cuba (em que há destaque, no capítulo escrito por Ignácio Ramonet, para a produção do documentarista Santiago Álvarez) e do Brasil (o foco, aqui, é em Glauber Rocha e no Cinema Novo), e, em menor medida, na Argentina, Bolívia, Colômbia, Peru, Uruguai, México e Chile. Cinemas árabes, africanos, asiáticos e da Europa do leste também são mencionados na obra. Em um contexto de Guerra Fria e de oposição acirrada entre cinema militante e cinema burguês, Hennebelle posicionava contrariamente à cinefilia desencarnada e à perspectiva da arte pela arte. Propunha que enxergássemos as origens do Terceiro Cinema já na filmografia de Dziga Vertov e Joris Ivens e, inspirado pelo manifesto de Solanas e Gettino, acreditava que “o Terceiro Cinema deve servir para atiçar o fogo da revolução (HENNEBELLE, 1978, p. 246).

2. De lá para cá

Mais de quatro décadas depois da publicação de Hennebelle, ainda é possível ver a divisão do mundo cinematográfico nos mesmos termos? Em alguns aspectos o cenário continua parecido: não apenas subsiste a hegemonia estadunidense na produção e distribuição internacional, mas a aliança entre cinema e nação persiste na lógica que preside a organização de festivais e premiações, a distribuição dos estudos cinematográficos e da historiografia. Por outro lado, muita coisa mudou. Sistemas transnacionais de co-produção e realização se intensificaram e, se sempre houve migração e trânsito internacional de cineastas (de Max Linder a Fritz Lang, de Bergman a Glauber Rocha, de Joris Ivens a Santiago Alvarez), hoje esse movimento é mais generalizado. Lipovetsky e Serroy (2009) enfatizam, no âmbito daquilo que eles nomeiam como "tela global", um fenômeno que atinge todos os elementos do cinema, da produção à exibição, do financiamento à divulgação. Apesar de reconhecerem mudanças radicais anteriores na própria definição de o que é o cinema – a passagem do silencioso ao falado, a chegada dos aparelhos de TV e videocassete, etc. –, a amplitude dos processos em curso

151 atualmente os leva a afirmar uma transformação sem precedentes no cinema vivida a partir do final do século XX. No que diz respeito à exibição, é inegável que a atual economia do cinema não depende mais exclusivamente das salas. Surgiram formas alternativas de acesso à produção fílmica, baseadas na internet e em mercados informais de DVDs e pen- drives, e qualquer pessoa é, hoje, potencialmente, um cineasta (LIPOVETSKY & SERROY, 2009). Nesse contexto, o título deste artigo faz referência a um fenômeno que cresce nas últimas décadas e que, de maneira provavelmente imprevisível para Hennebelle, ao mesmo tempo prolonga e contradiz suas intuições dos anos 1970, que não supunham a emergência de um terceiro elemento na oposição entre cinema burguês e cinema engajado. Kenneth Harrow aponta a lentidão – talvez o termo mais apropriado seja a cegueira – dos departamentos de estudos fílmicos e das publicações interessadas no “world cinema” com relação às produções populares que emergem em distintas partes do mundo (2016). Se ocorre de atenção ser dada a tal filmografia, isso ocorre sobretudo pelo prisma da antropologia, da sociologia ou da economia – e muito mais raramente do da estética ou da história, como se tais objetos não fossem legítimos para serem encarados pela análise fílmica. Se o foco de Harrow são os cinemas africanos, sua proposição nos convida a pensar toda a geopolítica dos estudos cinematográficos, a questionar as próprias definições de “cinema mundial” e de “cinema africano”. Harrow chama atenção para as cinematografias africanas feitas em Nollywood131 como ponto cego dos estudos fílmicos. Aqui, valho-me de suas considerações para pensar uma ampla produção popular, feita não apenas em países africanos, mas também na América Latina e na Ásia, completamente alheia a sistemas de financiamento e distribuição controlados pelo Estado, e que conquistam visibilidade a partir de modelos de circulação alternativa. Junto-me à Harrow para afirmar que essa filmografia que merece ser estudada em uma abordagem estética, e não apenas como fenômeno cultural. Quais são as influências estilísticas? Como funciona a distribuição dos papeis entre os atores? Aqui, eu gostaria de propor, a partir de alguns exemplos que não chegarei a analisar em profundidade, a ideia de que filmografias que escapam à centralidade das

131 A esse respeito, cf. Harrow (2013), Krings & Okome (2013) e Haynes (2000).

152 capitais, ancorando-se em regiões específicas, questionam o próprio conceito de identidade nacional e de cinematografia nacional. Ao privilegiarem a ambientação, o financiamento e a realização como um todo em localidades precisas, distantes dos centros de poder e de cultura reconhecidos, e mirarem um público que é antes de tudo regional, ao circularem alheios às estatísticas e controles oficiais, mas conquistando um público amplo e passando, ao menos num primeiro momento, desapercebidos da crítica centralizada em alguns polos nacionais, filmes como os feitos por cineastas autodidatas na zona costeira do Equador ou no interior da Guiné Bissau acabam pondo em cheque a validade de uma perspectiva nacional. Ainda na década de 1970, período em que a afirmação dos cinemas nacionais na América Latina podia ser efetuada de maneira muito mais frontal do que hoje, um pequeno grupo de cineastas principiantes, e com pouca formação, questionam, não a partir da capital, Bogotá, mas de Cali, uma cidade secundária do interior, os partidos estéticos e políticos adotados pelo "cinema nacional" colombiano à época. Surgia, ali, "Caliwood", nome dado inicialmente como uma brincadeira, mas que indica as ambições do movimento cinematográfico que se gestava então. Por essa razão, iniciamos com o exemplo calenho nosso exame das produções que valem-se do sufixo "wood", com franca inspiração nos estúdios estadunidenses, seja como modelo ou anti-modelo.

3. De Caliwood a Chonewood

Uma coincidência de eventos faz com que 1971 em Cali seja lembrado hoje como uma espécie de Maio de 1968. Um deles é a realização dos Jogos Panamericanos na cidade, mote do primeiro documentário que Luis Ospina e Carlos Mayolo realizam juntos, Oiga vea, lançado no ano seguinte. Ao privilegiar o ponto de vista dos excluídos dos jogos, aqueles que não podem entrar nos estádios, o filme adota voluntariamente uma postura periférica que ecoa uma marginalidade que se desdobra em muitos níveis: o estatuto de artistas na sociedade local, a posição de Cali na geografia cultural colombiana, a condição da Colômbia na geopolítica do cinema, etc. Naquele momento, a cena cultural caleña era movimentada por uma série de iniciativas, como a Ciudad Solar, também fundada naquele início de década de 1970 – misto de moradia coletiva e espaço cultural por onde transitavam escritores, artistas

153 plásticos, cineastas, críticos, curadores –, em torno da qual orbitava o cineclube de Cali, a revista Ojo al cine. O chamado Grupo de Cali, que acompanhava, sobretudo via Cahiers du cinéma e festivais, o que se fazia no mundo, não se alinhava completamente ao ideário dos novos cinemas latino-americanos. Em Agarrando pueblo (1978), lançado por Ospina e Mayolo junto com o Manifesto da Pornomiséria, os dois cineastas distanciavam-se das políticas estatais de incentivo à produção local que acabavam favorecendo um olhar miserabilista. No percurso arbitrário e incompleto que este capítulo propõe, Caliwood surge como um caso precoce de afirmação de uma produção local que se distancia tanto dos cânones do cinema mundial quanto das lógicas de centralidade nacional e dos movimentos estéticos de prestígio no continente. Assim, e apesar das inúmeras diferenças que separam a produção caleña que desponta na década 1970 das demais cinematografias que serão citadas aqui, ouso estabelecer uma genealogia entre elas. É verdade que, diferentemente dos cineastas autodidatas que serão mencionados a seguir, Ospina chega a Cali para filmar Oiga vea vindo da Califórnia, onde estudava cinema na UCLA. É importante frisar, no entanto, que ele é o único do grupo a haver estudado cinema – os demais não têm qualquer formação na área, e é o próprio Ospina que lhes ensina o que sabe. Para colocar em funcionamento seu cineclube, os integrantes do Grupo de Cali traduzem livremente encartes encontrados em publicações francófonas e anglófonas que instruíam o público a manusear projetores de 16mm, de maneira próxima aos autodidatas de hoje, guiados por tutoriais divulgados na internet. Não me detenho aqui nos casos mais conhecidos, como Bollywood, na Índia, e Nollywood, na Nigéria, para passar rapidamente por dois filmes recentes produzidos em outras localidades: A Lei da Tabanca (2015), realizado pelo fotógrafo amador Bigna Tona Ndiba e filmado na zona do Biombo, na Guiné-Bissau; e Muleque té doido (2014), de Erlanes Duarte, rodado no Maranhão, no norte do Brasil. O primeiro, bastante popular na Guiné-Bissau, embora realizado sem orçamento e sem apoios de caráter institucional, é comercializado nas ruas de Bissau ou no mercado de Bandim, onde DVDs e pen-drives são vendidos informalmente. O filme faz “uma crítica à forma como a autoridade policial atua nas tabancas e revela o quão distante o Estado central está do cotidiano da maioria da população” (CUNHA & LARANJEIRO, 2016). O segundo, comédia popular enraizada em elementos do folclore tradicional maranhense e da cultura urbana atual da região, e ao mesmo tempo marcada pela

154 influência do cinema hollywoodiano, desbancou blockbusters nos cinemas de São Luís, em 2014, abrindo caminho para sua sequela, Muleque té doido 2. A lenda de Dom Sebastião (2016), do mesmo realizador. Para Silva (2017), o sucesso dos filmes de Erlanes Duarte, produzidos pela Raça Ruim Filmes, se deve à combinação entre elementos da cultura local, que garantem o reconhecimento por parte do público, e uma linguagem cinematográfica “universal”, “acessível”, amparada no modelo norte- americana. Nas últimas décadas, o fortalecimento da cinematografia equatoriana “bajo tierra” e especificamente aquela localizada na costa, tendo como polos a região de Guayaquil e o Manabi, obriga a um questionamento sobre a relação entre cinema nacional e público, na linha do que faz Miguel Alvear em Más allá del mall (2010)132. Partindo da interrogação “o que ocorre quando as tecnologias audiovisuais (...) chegam às mãos de aqueles que foram historicamente sujeitos/objetos de representação e estudo disciplinar?”, Pinto Vaca (2015, p. 8) aborda as audiovisualidades populares produzidas desde 1994 no Chone, cantão da província de Manabi, com foco na prática de assassinato por encomenda, um tema recorrente nas narrativas audiovisuais “choneras”. Proponho a hipótese de que a representação da nação talvez ainda seja um tema expressivo entre o cinema equatoriano relativamente mais institucionalizado (alguns exemplos, além das realizações de Camilo Luzuriaga e Sebastián Cordero: Qué tan lejos [2006], de Tania Hermida; Prometeo deportado [2010], de Fernando Mieles; Sin otoño, sin primavera [2012], de Ivan Mora Manzano133), enquanto que para cineastas como Nelson Palacios, Nixon Chalacama, e Fernando Cedeño, sobretudo em um primeiro momento, os filmes giram em torno de temáticas mais restritas ao contexto familiar e a especificidades locais/regionais. Como se sabe, muita coisa mudou nessa produção desde o filme de Alvear, as edições do Festival Cine Bajo Tierra e as políticas públicas entabuladas pelo CNCine. Um filme importante em ser observado nesse contexto é Em busca del tesoro de Ataualpa, que Cedeño prepara. Talvez seja um ponto de inflexão nessa trajetória, ao investir um capítulo fundamental

132 Pude escrever anteriormente sobre a questão, com foco nas tensões de classe explicitadas na maneira como o fenômeno é nomeado (MONTEIRO, 2016). Ao final de 2019, a formatura da primeira turma de estudantes de cinema da Universidade das Artes, em Guayaquil, envolvendo a conclusão de uma série de importantes filmes de fim de curso, selecionados para festivais dentro e fora do Equador, alteraria esse cenário. 133 Seria necessário aprofundar o estudo da questão da identidade cultural e da representatividade nacional nesse conjunto de filmes, o que pretendo fazer no terceiro ano da bolsa.

155 da história e da mitologia nacional em filmagens que envolvem diferentes regiões – além da capital, o Oriente e a Costa. * Os filmes e filmografias mencionados acima, junto com muitos outros casos, têm contribuído para reconfigurar as definições do que seriam hoje cinemas nacionais, e, no limite, para interrogar a pertinência e a atualidade de tal categoria. Antes de concluir este texto, é preciso tecer algumas considerações sobre o sufixo “wood”, emprestado à geografia californiana, adotado por boa parte dessa filmografia que poucos se sentem confortáveis em nomear – popular? Autodidata? Selvagem? De guerrilha. Se a Bollywood indiana é a primeira indústria cinematográfica fora dos Estados Unidos a adotá-la, fica evidente que a referência, seja para os cineastas colombianos, manabitas ou maranhenses, seja para os nigerianos, guiné-bissauenses ou outros. Em Lugares da cultura, Homi K. Bhabha propõe uma escrita da nação ocidental como uma maneira obscura e dotada de ubiquidade de viver a localidade da cultura; nação como forma de filiação social e textual (p. 224). As produções cinematográficas realizadas por grupos minoritários, que pouco a pouco ganham visibilidade, seriam uma maneira de reivindicar tal localidade. Do clima de terror vampiresco e sangrento da Caliwood de Ospina e Mayolo aos tiros e lutas de Cedeño e Chalacama, passando por cenas de embates domésticos em Nelson Palacios e brigas de gangues em Erlanes Duarte, a constância da violência na temática dos filmes talvez seja um indicativo de que o esquecimento, base do sentimento nacional segundo Renan (1992), está dando lugar a uma memória belicosa. O contraste que se dá na montagem de Más allá del mall, quando por exemplo Alvear/Crespo assiste aos filmes de Nelson Palacios em seu quarto de hotel, evidencia uma distância entre a produção audiovisual mais reconhecida e a produção autodidata que é antes de mais nada uma distância de classe. O quarto de hotel de Alvear/Crespo é excessivamente decorado (Fig. 44), com papeis de parede, banheira de hidromassagem, iluminação abundante, cama king-size; de lá, ele assiste a uma cena de Buscando a mamá (Nelson Palacios, 2007) em que o protagonista, interpretado pelo próprio Palacios, joga sua mulher sobre uma cama estreita, encostada a uma parede sem pintura ou revestimento, com tijolos à mostra (Fig. 45).

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(Figs. 44-45) Más allá del mall (Miguel Alvear, 2009): Contraste entre os interiores do hotel em que Crespo/Alvear se hospeda e da casa de Nelson Palacios, conforme aparece em Buscando a mamá (2007).

Se de fato as histórias protagonizadas por Palacios, Cedeño e Chalacama são histórias de violência, a violência desse contraste, exacerbado pela montagem de Alvear, revela-se basilar para a sociedade equatoriana, o que explicita um conflito talvez menos visível nas produções mais reconhecidas.

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VII. Anexos

169 Ordem dos anexos:

A) Capítulos de livro e livros organizados: • MONTEIRO, Lúcia Ramos. "Le mouvement des ruines". In: Victor Burgin, Teresa Castro, Evgenia Giannouri, Lúcia Ramos Monteiro e Clara Schulmann. Palmanova. Paris: Form[e]s, 2016, p. 67-84.

• MONTEIRO, Lúcia Ramos. "Figurações, história e análise fílmica. Apresentação". In: Eduardo Morettin et al. Cinema e história. Circularidades, arquivos e experiência estética. Porto Alegre: Sulina, 2017, p. 17-22.

• MONTEIRO, Lúcia Ramos. "Apresentação". In: Lúcia Ramos Monteiro (org.). África(s). Cinema e revolução (catálogo de mostra de cinema). São Paulo: Caixa Cultural, 2016, p. 8-15.

• MONTEIRO, Lúcia Ramos. "Os voos do morcego-montador". In: Lúcia Ramos Monteiro (org.). A Caliwood de Luis Ospina. Cinema colombiano de vanguarda. São Paulo: Buena Onda, 2017, p. 8-15.

• MONTEIRO, Lúcia Ramos. "O cinema perturbador de Robert Morin, ou como filmar o desconforto". In: Maria Chiaretti. Robert Morin, Reinventando o Quebec. São Paulo, CCBB, 2016, p. 33-38.

B) Artigos e resenha completos publicados em revistas acadêmicas entre janeiro de 2016 e novembro de 2017. • MONTEIRO, Lúcia Ramos. "'Filmo, luego existo'. Filmografías en circulación paralela en Ecuador." Fuera de Campo, vol. 1, n. 1, 2016, p. 41-51.

• MONTEIRO, Lúcia Ramos. "A terceira margem do cinema. Filmes equatorianos em circulação paralela". Aniki, vol. 3, n. 2, 2016, p. 266-279.

170 • MONTEIRO, Lúcia Ramos. "A estética da 'fotografia animada' na criação contemporânea: desarquivamento, colocação em movimento, escrutínio analítico, montagem, escuta e projeção de imagens de arquivo". Significação, vol. 44, n. 47, 2017, p. 239-257.

• CESAR, Amaranta, e MONTEIRO, Lúcia Ramos. "As africanidades e suas asperezas". Rebeca, vol. 5, n. 2, 2016, p. 1-15.

• MONTEIRO, Lúcia Ramos. "O cinema existe e resiste. Longa duração, análise fílmica e espectatorialidade nos filmes de Lav Diaz". Aniki, vol. 4, n. 2, 2017, p. 434-455.

• MONTEIRO, Lúcia Ramos. "La mémoire du mal et l'inconscient colonial". La Furia umana, n. 30, 2017.

• MONTEIRO, Lúcia Ramos. "O passado e seu ponto de partida. Resenha de A luta armada no cinema: ficção, documentário, memória, de Fernando Seliprandy". Significação, vol. 43, n. 45, 2016, p. 340-349.

C) Artigos aceitos para publicações. • MONTEIRO, Lúcia Ramos. "La puissance des diaporamas contemporains". In: Beatriz Furtado e Philippe Dubois, Post-cinéma, post- photographie. Paris: Mimesis, 2018.

• MONTEIRO, Lúcia Ramos. "Actes de regard, actes de mémoire. Ou que fait-on pendant le visionnage d'un film de Lav Diaz?". Madeleine, vol. 1, n. 1, 2018.

• MONTEIRO, Lúcia Ramos. "Le cinéma à ses limites. Longue durée et spectatorialité impure". In: Dario Marchiori e Nedjma Massaoui, Puissances esthétiques des lisières culturelles. Paris, Mimésis, 2018.

171 • MONTEIRO, Lúcia Ramos. "Tout ce qui est solide se dissout dans l'air". L’effacement d’une ville-usine dans le cinéma de Jia Zhang-ke. In: Damien Darcis, Jeremy Hamers e Marjorie Ranieri (orgs.), Agir dans la ville, Liège/Mons, 2018.

D) Artigos de divulgação, publicados em periódicos nacionais • MONTEIRO, Lúcia. "A meditação subversiva de Lav Diaz". Folha de S. Paulo, Ilustríssima, 16 de outubro de 2016.

• MONTEIRO, Lúcia. "Alguns filmes pedem a sala de cinema". Folha de S. Paulo, Ilustríssima, 23 de junho de 2017.

• MONTEIRO, Lúcia. "Uma avalanche de minutos". Folha de S. Paulo, Ilustríssima, 29 de setembro de 2017.

• MONTEIRO, Lúcia. "Aparências ou aparições. O filósofo Georges Didi- Huberman comenta a exposição Levantes, em cartaz em São Paulo" (Entrevista). Revista Zum On-Line, 28 de novembro de 2017, https://revistazum.com.br/entrevistas/entrevista-didi-huberman/, acesso 2 de dezembro de 2017.

• MONTEIRO, Lúcia, e FELDMAN, Ilana. "Erguer os braços, tomar posição", Ilustríssima, Folha de S. Paulo, 12 de novembro de 2017.

E) Programa do curso de pós-graduação ministrado na ECA-USP (“Cinema, catástrofe e as narrativas de dissolução”). F) Certificados dos colóquios frequentados

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