entrevista Maria Immacolata Vassallo de Lopes , a narrativa brasileira

Mariluce Moura

emorou até que a telenovela nos dias que correm, porque a tevê é hoje na sombra, enquanto a grande narrativa fosse reconhecida como objeto um universo muito mais complexo e diver- ficcional brasileira contemporânea ganhava legítimo e fascinante de estudos sificado, ao qual se soma a poderosa face a cena, nessa conversa, da qual publicamos acadêmicos no Brasil. De forma audiovisual da mídia digital, com a inter- os principais trechos a seguir: mais consistente, foi só na década net. Dentro desse panorama, uma novela de 1990 que na Escola de Comu- com o desempenho de é, sim, n Você é uma pioneira nos estudos acadêmicos nicações e Artes da Universidade um tremendo sucesso. da telenovela aqui no Brasil. Eu queria ouvi- Dde São Paulo (ECA-USP) formou-se um Vendo televisão de dentro da casa de la, primeiro, sobre o começo: como a telenovela grupo de pesquisa disposto a estudar pro- algumas famílias, na segunda metade dos se tornou seu objeto central de pesquisa? fundamente esse gênero melodramático, anos 1990, Immacolata compreendeu um ­— No começo dos anos 1990 José Marques agora tão brasileiro, sob múltiplos aspectos pouco mais por que tamanho sucesso. E isso de Melo, então diretor da ECA, organizou e pontos de visão. foi relatado em Vivendo com a telenovela: um programa de estudos de ponta, cobrindo Dessa turma fazia parte Maria Imma- mediações, recepção, teleficcionalidade, um vários temas pouco usuais como objeto de colata Vassallo de Lopes, hoje professora ti- livro de 2002 (Summus Editorial), em que pesquisa. Um deles era a telenovela, outro tular da ECA e coordenadora do Programa ela é autora juntamente com as pesquisado- eram os quadrinhos etc. E aí se formou um de Pós-graduação em Ciências da Comu- ras Silvia Helena Simões Borelli, da PUC- grupo, um núcleo inicialmente liderado pela nicação (PPGCOM). Immacolata resolveu SP, e Vera da Rocha Resende, da UNESP. Ana Maria Fadul. A questão passava a ser encarar a sério a questão da recepção, tão Quando o livro saiu, Immacolata, depois organizar essa equipe, porque estávamos polêmica dentro das teorias da comuni- de uma viagem para estudos da ficção tele- com um produto importantíssimo para o cação, acreditando que a partir do olhar visiva à Itália, já estava às voltas com o pro- país, em termos culturais e em termos de de quem assiste tevê poderia desvendar jeto do Observatório Ibero-Americano da comunicação, mas a legitimação e o reco- algumas das razões que transformaram a Ficção Televisiva, o Obitel, que finalmente nhecimento de um novo objeto de estudo telenovela brasileira num fulgurante fenô- foi criado em 2005 com a participação de na academia são sempre difíceis. Aos poucos, meno da comunicação de massa, além de nove países, envolvendo não só instituições foram se gestando os projetos de pesquisa produto de exportação. acadêmicas como braços ligados ao mundo dos professores e dos estudantes, nossos Um produto, observe-se, que teve várias da pesquisa de robustas empresas de comu- orientandos de mestrado e doutorado. Já vezes sua morte anunciada desde os anos nicação, a exemplo da Globo e da mexica- hoje temos certamente um número fantás- 1980 e que, neste começo de 2009, continua na Televisa. Em cada país uma instituição tico de trabalhos de conclusão de curso na emitindo sinais inequívocos de vigor – a acadêmica é responsável pelo Obitel – no graduação sobre a ficção na televisão, o que novela A favorita, da Rede Globo, depois de Brasil não poderia deixar de ser o Centro inclui , minisséries, séries etc. uma virada fantástica e audaciosa na tra- de Estudos de Telenovela da ECA-USP, co- jetória da aparente mocinha da trama, dá ordenado por Immacolata. n Isso começou por qual departamento da sinais claros de vitalidade, batendo na casa Essa entrevista visava em grande par- ECA? dos 50 pontos do Ibope, depois de uma fase te o Obitel, que, além de desenvolver um — Pelo CCA, o Departamento de Comu- em que mal passava dos 35. É claro que isso banco de dados quantitativos sobre a ficção nicações e Artes, ligado à teoria da comu- nem de longe se compara a performances televisiva de todos os países que partici- nicação. Havia uma intenção de interdis- lendárias como a de Roque Santeiro, que, pam da iniciativa, faz e publica uma aná- ciplinaridade na abordagem da telenovela. diz-se, no último capítulo deu 100 pontos lise anual da produção, da audiência e da Importava a questão mesmo da telenovela de share, ou seja, todo mundo que estava repercussão sociocultural de toda a ficção no Brasil, quer dizer, esse produto que vem com a televisão ligada no país naquele televisiva produzida na América Latina da televisão e o que é a televisão dentro da momento estava na Globo para ver como e na península Ibérica. No entanto, ante sociedade brasileira. Quando a coordena- terminava o brilhante folhetim eletrônico a vertiginosa paixão de Immacolata pela ção do núcleo já estava com Maria Apare- de Dias Gomes e . Se é ver- telenovela, um tema realmente absorven- cida Baccega, entramos em 1995 com um dade mesmo, ninguém sabe. A comparação te para qualquer brasileiro interessado na projeto temático na FAPESP, que resultou

direta, entretanto, não faz muito sentido comunicação de massa, o Obitel ficou meio em nove subprojetos. Coube a mim, dentro boyayan miguel fotos

10 n janeiro DE 2009 n PESQUISA FAPESP 155 disso, fazer um estudo de recepção da telenovela [“Recepção da telenovela brasileira: uma explora- ção metodológica”]. Mas havia uma colega, Solange Couceiro, que estudava a questão das relações ra- ciais na telenovela, outra, a questão do consumo, a Renata Pallottini, a questão da escrita, a Lurdinha, Maria de Lourdes Motter – infelizmente falecida precocemente –, estudava a relação entre realida- de e ficção etc. Tudo isso gerou livros e todo um processo muito interessante para a vitalidade desse núcleo. Havia um outro aspecto de nosso trabalho que era a interface com os produtores e com o mer- cado, e a maioria das teses e dissertações, nesse caso, incidia sobre produtos da Globo. Natural, porque foi ela que tornou a telenovela um produto profis- sionalmente rentável, com qualidade estética, qua- lidade técnica. Mas o fato é que o grupo precisava fazer gestões de relações com o mercado, porque, se a telenovela provocava desconfiança na academia, nossos estudos provocavam uma desconfiança dos produtores, que imaginavam que íamos começar a falar de uma forma frankfurtiana em alienação, algo na base do “é manipulação o que vocês fazem”, essas coisas. Mas as coisas começaram a andar des- se outro lado graças aos seminários para os quais convidávamos os produtores, principalmente os autores de telenovela, entre eles Lauro César Muniz, Silvio de Abreu, Maria Adelaide Amaral e Glória Perez. Eles se misturavam aos acadêmicos e disso resultavam trabalhos muito interessantes. n Especificamente em seu estudo de recepção da te- lenovela, quais foram os achados principais? — Bem, havia um desafio teórico-metodológico, mas fundamentalmente metodológico no estudo, ligado à questão da teoria das mediações. Esse é um tema de larga influência na área de comunicação através de Jesús Martín-Barbero. Tínhamos então que fazer a pesquisa tomando como marco teórico a questão das mediações e definir como trabalhar essa teoria em termos metodológicos. Não era sim- ples e por isso eu insistia tanto junto à FAPESP que o projeto era realmente uma experiência metodo- lógica numa pesquisa empírica. n Em termos mais práticos, quem você entrevistou? Como definiu sua amostra? — Nas Humanas é frequente o estudo de caso, e a ideia era essa, pesquisar a recepção da telenovela no âmbito de um estudo de caso. Mas chegamos a um universo, nem tão pequeno assim, de quatro famílias de condições sociais diferentes, desde uma que vivia numa favela até uma de classe média alta de um condomínio do Morumbi. As outras duas eram uma família de periferia e uma de classe média. Íamos acompanhá-las assistindo a uma mesma novela... n Qual novela? — , que estava no ar naquele momen- to. A estratégia envolvia estar oito meses na casa das famílias, fazendo observação etnográfica e, ao mesmo tempo, estudando o acompanhamento da novela, ou seja, a recepção do produto. E is-

PESQUISA FAPESP 155 n janeiro DE 2009 n 11 so envolveu um protocolo metodológico na prática que a telenovela é mesmo uma em que grupo se reconhece, com que perso- ambicioso, porque o trabalho tinha que ser narrativa popular, com as marcas de reco- nagens tem mais empatia etc. feito por uma equipe multidisciplinar, com nhecimento, mais do que de identificação, — Sim, os produtores têm “n” maneiras de pessoal sênior de psicologia, de antropolo- como dizem Jesús Martín-Barbero e outros. medir, de captar isso, desde sua própria sen- gia, de comunicação, de sociologia, e mais Em outros termos, as pessoas se reconhe- sibilidade até as enquetes. E o interessante um grupo de orientandos e até estudan- cem naquela narrativa popular. Tem que é que o público termina se alfabetizando tes na iniciação científica – 14 pessoas no ser um melodrama para ser recebida como nisso que chamamos a gramática dessa momento de mais intensidade do trabalho. telenovela, mas, de fato, ela passou a falar narrativa. Já não vemos só o making-of dos Foram três anos de pesquisa, um ano só também sobre a realidade brasileira. filmes de Hollywood, mas de toda a produ- para afinar a equipe, coisa essencial porque ção da televisão brasileira. Os bastidores íamos entrar na casa das pessoas, em média, n Esse reconhecimento é algo visível ou men- não só são escancarados pela mídia, mas duas vezes por semana. Ficamos oito meses surável? os próprios autores revelam a sua maneira com essas famílias, do começo ao final da — É observável e, na medida em que a te- de trabalhar. Então, o Manoel Carlos conta: Sequência de cenas de A indomada: acompanhamento científico por oito meses novela. Nosso compromisso explícito era lenovela é uma narrativa da família, e não “Vou ao jornaleiro, vou à pizzaria e vou no sair a qualquer momento, se estivéssemos dos indivíduos, é mais consequente fazer meu bar e começo a ouvir etc...”. E aí as atrapalhando a vida da família. E nenhuma da família a unidade da investigação. A te- pessoas já sabem: “Lá vem o Manoel Car- das quatro propôs isso. lenovela busca sempre os temas privados, los, olha, seu Manoel, ontem à noite, aquela as paixões, o ódio, a origem das pessoas, cena foi fantástica etc.”. Essa interação já se n Em termos práticos, como vocês faziam? sempre ambientados nas famílias. Esse é o estabeleceu. O último que inovou nisso foi o — Chegava uma dupla principalmente no cenário, o paradigma. E quem assiste em Aguinaldo Silva, ao criar um blog enquanto horário da novela, mas não só. Porque, como casa é uma família real que se reconhece estava escrevendo [Rede Globo, dentro da pesquisa era importante observar em parte nas famílias da ficção. 01/10/2007 a 31/05/2008]. Tiago Santiago o que chamamos de cultura da família, pre- também resolveu fazer isso em relação à cisávamos ver como as coisas funcionavam n A família como ambiente é a manutenção novela da Record, Os mutantes: caminhos na parte da manhã, à tarde, como a televisão do padrão tradicionalíssimo do folhetim. Por do coração. era ligada, quando, o que faziam, enfim, toda que na ficção televisiva se mantém esse mes- essa questão do cenário porque a televisão mo padrão de séculos? n Aliás, só para pegar algo bem atual da é um aparelho familiar e tudo isso faz par- — Porque é a matriz do melodrama, a mes- dramaturgia televisiva, como você avalia te daquilo que chamamos de observação ma que o folhetim pegou. O que é essa ma- na novela A favorita a grande virada que etnográfica. Interessava essas pessoas, suas triz? Trata-se da centralidade da pessoa na transformou a personagem de Patrícia Pilar histórias de vida, como começou o interesse família, esse espaço privado onde as coisas numa vilã monstruosa? por telenovela etc. E tudo isso permitiu ver mais inacreditáveis que se possa imaginar — Em meu entendimento, A favorita com- têm chance de acontecer. A telenovela vai binou traços do dramalhão clássico – vin- para a política, para outras instâncias da gança, ciúme, segredo – com inovações, por realidade, mas é o comportamento, são as exemplo, revelar no segundo ou terceiro questões morais que, mesmo aí, mais cha- mês da história quem era a malvada e quem mam a atenção, e tudo isso está investido era a boazinha, invertendo completamente dessa matriz. E o reconhecimento acontece o que o público tinha sido levado a pen- A telenovela porque todo mundo se vê numa família. sar até então. Roteiro ousado esse do João Até que os estruturalistas mostraram isso Emanuel Carneiro. Funcionou às mil mara- não é só vista, muito bem, quer dizer, como é que essas vilhas, tornando o tipo meigo e confiável de famílias vão entrar em conflito ou em as- Patrícia Pilar em mais que uma vilã tradi- é falada. sociação e todas as tramas daí decorrentes, cional, em uma verdadeira serial killer, che- com suas muitas interações. gando ao paroxismo do ódio à própria filha Está no jornal, etc. Aliás, se você reparar bem, essa novela n Há autores melhores e piores nesse cru- é uma grande história sobre “as aparências nas conversas, zamento das tramas. Para você, quem é o enganam”: ninguém, ou quase ninguém, é mestre? o que parece. O público respondeu bem e nos blogs, — Acho Manoel Carlos fabuloso nesse a novela está numa audiência ascendente, sentido. Sabe por quê? Pela quantidade de quase 50 pontos. nos sites, e seus de tramas com que ele é capaz de lidar si- multaneamente, e várias assumindo tal im- n Durante a pesquisa tornava-se mais per- capítulos são portância, como em ceptível que o sentimento de reconhecer-se, [Rede Globo, 17/02 a 10/10/2003], que se por parte do receptor da novela, tem o poder antecipados torna difícil definir quem é o protagonista. de influenciar de alguma forma o desdobra- Às vezes, uma trama inicialmente pensada mento da história. nos jornais do como secundária assoma à posição princi- — Não era isso o mais importante a ob- pal, e vice-versa. servar ali. Sem dúvida alguma o público fim de semana receptor influencia, e isso aparece nas mais n Mas isso decorre da interação com o públi- variadas ordens, desde a mídia falando da co, não? Já que se trata de uma narrativa na telenovela, fala a que os produtores estão qual nos reconhecemos, o público vai mos- muito atentos, aos grupos qualitativos que trando, no movimento mesmo da recepção, a própria emissora organiza, enfim, existe

12 n janeiro DE 2009 n PESQUISA FAPESP 155 Sequência de cenas de A indomada: acompanhamento científico por oito meses

toda uma sistemática, toda uma metodo- popular, no sentido de que não é hermética, a televisão), esse reconhecimento realmente v ela logia para captar os humores do público não é a de um romance –, torna-se clara a se corporificava, se realizava muito mais, na em relação à telenovela. Mas a coisa mais literacidade da novela. Quer dizer, a gramá- segunda família, a da periferia. importante para nossos estudos, creio, é a tica passa a ser aprendida, inclusive vem a espontaneidade que se verifica, é alguém no crítica, “essa cena está malfeita”, “a maneira n Ou seja, essa família era a que tinha a re- Congresso Nacional, por exemplo, ao falar de falar de fulano está errada” etc. lação mais direta, mais afetiva – no sentido endo com a teleno a com Vi v endo de algo significativo, se referir de repente amplo de afetivo – e mais interativa com o a uma novela, aí se percebe sua dimensão n Uma crítica referida à estética. que se passava lá na tela. A ponto de “falar” o livro livro d o cultural, vê-se o lugar que ocupa. E agora, — Estética, técnica... às vezes críticas real- para as personagens o que deviam fazer. com a internet, com os blogs, com os grupos mente surpreendentes, em especial quan- — É isso mesmo. E veja, nós pensamos para matar uma personagem e enaltecer do se vai descendo na escala social. Uma nessas famílias sem muitas restrições pré- uções d uções repro outra, “odeio o autor xis” ou “adoro o autor curiosidade: das quatro famílias com que vias. Queríamos apenas que se assistisse xis”, parece que se reocupa de uma outra trabalhamos, aquela que mais se aproxi- telenovela naquela família e que houvesse forma os velhos clubes de fãs ou fã-clubes. mava de um tipo ideal de família não era a disponibilidade de nos receber. Ah, outra E isso nos permite dizer que, em termos da favela, nem a que classificamos na classe coisa: que não tivesse criança pequena. Não sociais, continuamos com uma relação ex- média tradicional, nem a da classe média tínhamos condições de incluir essa catego- tremamente vital com a telenovela. Queria alta, mas a da periferia. Poderíamos dizer ria. Adolescente, sim, a partir do momento justamente falar um pouco sobre como hoje que era uma família de classe média baixa. em que pudesse falar se sabendo adolescen- nós estamos focalizando o receptor, a recep- Tinha determinados equipamentos dentro te ou jovem. E foi essa a única pré-condição ção nos estudos de comunicação. de casa, os filhos estudavam, diferentemen- em termos da composição familiar. Se a te do que acontecia com a primeira família, família tivesse à frente uma mulher viúva, n E como é isso? cujas filhas adolescentes vendiam produtos estava bem. E encontramos uma assim. No — Já não o vemos como um ponto final nos semáforos... o pai nessa família da peri- diagrama do arranjo familiar, na da favela, num processo de comunicação que come- feria tinha sido vendedor de peixe na feira o marido não estava, tinha abandonado a ça com a emissão. E de tal modo isso se e no momento era vendedor ambulante de casa. E a mulher tinha, enfim, sua própria transformou que há quem diga que é com guloseimas. A mulher fazia um trabalho so- novela, que era a vida dela. Nesses termos, a a recepção que o processo começa, porque cial na igreja, e também por isso era muito família da periferia era a mais do tipo ideal, lá vão se criar novos sentidos. Ou, como crítica do que via na telenovela. sabe, pai, mãe, filho. dizemos, há uma ressignificação. Todos não assistem da mesma maneira, recortam-se n O que é esse tipo ideal? n Estavam todos os elementos da composição conteúdos. Você pode ver uma família na — Falo do ideal do Weber. Quando se tem da família nuclear. favela assistindo o mesmo produto da classe tipos ideais, já não se está na ordem da rea­ — Sim, tudo bem composto. E tinha o lado média alta, mas a primeira coisa é que não é lidade. Quando Weber fala, por exemplo, do da mulher, era bem interessante lidar com a mesma recepção. A beleza da coisa é que capitalismo, está pensando principalmente ela ao assistir a telenovela, porque ali tinha possamos dizer: “Está dando audiência, sim, no tipo ideal da racionalidade capitalista. Vê- uma personagem feminina forte. mas os significados, os motivos são os mais se claramente que o corpo do capitalismo é variados”. E quase todos os motivos estão o da administração, é o da empresa. Nele, n Que idade tinham os chefes das famílias implicados na experiência das pessoas, na portanto, tudo está controlado em termos escolhidas? vida, no cotidiano, na cultura das pessoas. de meios e fins. Mas indo às famílias, nas — Quase 50. Na família de classe média, am- Que são diferenciadas numa sociedade tão quatro com que trabalhamos, que, é claro, bos estavam no segundo casamento. Não desigual como a brasileira. não têm nenhuma representação estatística, havia filhos em casa, porque os filhos dele víamos em todas elementos que são propria- do primeiro casamento estavam com a mãe, n Então, longe de ser simples, este é um produto mente de um modo de vida de classe média. e o casal ainda não tivera filhos. No casal da sujeito a muitas leituras e ressignificações. No entanto, em relação a esse reconhecer-se classe média alta, a mulher era até bastante — Pronto, é isso. Muitas leituras, infinitas na narrativa e em termos da ressignificação, noveleira, mas o marido, um empresário, leituras. Portanto, quando se cruza esse ca- categorias que tomamos nos estudos de re- entrava, dizia “boa noite” e ia embora as- ráter com a questão das marcas do reconhe- cepção (que hoje alguns chamam de ativa, sistir o vídeo dele em outro lugar. Nunca cimento – porque se trata de uma narrativa para afastar a ideia de passividade total ante quis sentar. Ela assistia sozinha. Dos filhos, o

PESQUISA FAPESP 155 n janeiro DE 2009 n 13 rapaz fazia pós-graduação e as filhas faziam uma coisa de cognição que passa claramente sobre isso vamos necessariamente ao rádio cursinho. Em termos de estudos de recepção, por um sentido emocional. Então, emoção na forma como foi utilizado por Getúlio era muito instigante tentar ver como a tele- e razão... A telenovela faz esse duplo movi- Vargas nos anos 1940 e depois entrando novela entrava naquela casa. As duas filhas, mento para as coisas chegarem às pessoas: o pelos 50. Vamos aos meios de comunica- porque faziam cursinho à noite, assistiam só privado se torna público e o público se torna ção na sociedade brasileira, perguntar pe- nos fins de semana e a mãe contava para elas privado. E tem que haver isso. Tomemos a los seus efeitos, pela sua importância, pela o que acontecera nos demais dias. Também violência, por exemplo. Tem que acontecer manipulação ou pelo uso de tudo isso. A era muito interessante o desafio de estabele- dentro de uma família e daí, numa novela televisão, que herdou muita gente do rá- cermos eticamente até onde podíamos ir, até de Manoel Carlos, que provocou até aquela dio, era muito cara no começo, inclusive onde podíamos atender às demandas para onda de reação da violência no Rio, havia os aparelhos, então havia a experiência do comentar certas coisas, como, por exemplo, uma moça que estava observando algo e é “televizinho”, ou seja, ela se punha dentro a questão da sexualidade dentro da novela, morta por uma bala perdida. No Leblon. da rede da comunidade mais próxima. E a o que fazia alguma delas começar a falar de Era uma personagem importante, e aí era telenovela surge primeiro pela Tupi, sem suas próprias experiências. Quero dizer que, a inserção de todo aquele drama das balas dúvida alguma, passa pela Record, pela se pensarmos nas pesquisas antropológicas, perdidas na ficção. breve experiência da Excelsior. Já é longa quando você fica na tribo tem que se tor- essa história que chega aos bons autores nar um nativo, obter a confiança de todos. n O que está no mundo de fora e não me que eram dramaturgos, Dias Gomes, Jor- Mas estávamos lá para falar de telenovela. mobilizava de repente passa a ter significado ge de Andrade... E os anos 1970 trazem as E em relação à questão do reconhecimen- pela via do afeto. Relaciono-me com a vio- novelas fantásticas que ficaram na cabeça to, da ressignificação e das diversas leituras, lência objetiva pela via do afeto, facilitada de todo mundo. E nessa longa vivência a me chamou muito a atenção que a novela por esses trabalhos midiáticos. recepção vai se tornando ativa e crítica, criasse, para além de todas as diferenças en- — Exatamente. E você pode dizer até por com as pessoas chamando a atenção para tre os receptores, coisas em comum, que é dispositivos da narrativa. E aí passamos a determinadas características e dispositivos, aquilo que comecei a chamar de repertório falar da narrativa televisiva que foi se abra- adiante podendo explicar “olha, aquele epi- compartilhado. sileirando, da telenovela, que se torna, para sódio estava malfeito porque a produção mim, um gênero típico, um gênero, portan- teve que correr, fulano não conseguiu fazer n Ou seja, na sociedade brasileira você tem, to, da televisão, nacional. E cheguei a essa o capítulo de ontem” etc. de fato, algum repertório compartilhado de conclusão através de meus envolvimentos alto a baixo dos estratos sociais. teóricos, metodológicos, até epistemológi- n E a novela passa a ser o tempo todo um — Isso mesmo. Por exemplo, como a família cos, e via recepção. work in progress... enfrenta a questão da virgindade e sexuali- — É, exatamente. Aliás, o meu projeto atual dade das suas filhas. Que era tratada numa n A partir de quando ela se torna um produto de pesquisa chama-se “a telenovela como cena de A indomada como uma relação tipo cultural genuinamente brasileiro? narrativa da nação”. Mas acho que é im- Romeu e Julieta. Essa novela do Aguinaldo — O marco para todos os estudiosos da portante notar que a profissionalização da Silva teve de tudo, do grande drama até a história da telenovela é , da Globo, toda sua capacidade de produção, comédia mais escrachada. E quando eu di- TV Tupi, escrita por Bráulio Pedroso e leva- se realizou em cima desse gênero. É ela o go desse repertório comum, lembro uma da ao ar em 1968. Mas temos um processo marco, claro que isso depois se torna muito cena em que a personagem da Luíza Tomé, de abrasileiramento, de naturalização até complexo. a mulher do prefeito, representado por Paulo do próprio ator, do modo de interpretar e Betti, fala com a filha a respeito do primeiro da história. Quer dizer, ela se torna cada vez n Mas a teleficção, e a telenovela em parti- ato sexual que ela vai ter. É fantástico. mais realista. E não porque o autor perde cular, é o coração da máquina toda, em sua de vista que está fazendo uma telenovela, avaliação. n Você viu, na recepção nas diferentes famí- portanto gênero meio dramático, aquela — Sem dúvida. lias, uma disposição favorável a essa forma? coisa toda, mas por exigência do público. — Sim, favorável. Não só a esta forma, mas Dou um exemplo: num núcleo que se pas- n Nos anos 1980, numa entrevista que fiz à ideia de que a telenovela devia abordar sa numa redação de jornal, os jornalistas com Manoel Carlos para a revista Senhor, esse tipo de coisa, porque é algo que todo começam a dizer “mas aquilo ali de forma ele prognosticou o fim das longas telenove- mundo passa, porque sempre tem essa coi- nenhuma acontece, é um equívoco”. las que seriam substituídas pelas minisséries. sa dentro da família. A personagem estava Entretanto, mais de 20 anos se passaram e também falando do cuidado, de se ter sexo n Como também reclamam médicos, nutri- a despeito das sentenças de morte seguimos também com um envolvimento amoroso. cionistas e todas as categorias profissionais. vendo novela das sete, novela das nove, novela Dizia: “Você sabe o que vocês estão fazen- — É uma coisa incrível essa capacidade de na Record etc. do? Vocês estão preparados?”. Aí ela fala de mobilização da telenovela e o enraizamento — Pois é, o horário de telenovela a rigor co- hormônios, nada de uma coisa do arco-da- que foi acontecendo. A isso exatamente me meça na Globo antes das seis, começa com velha, não, um texto muito contemporâneo. refiro quando falo de abrasileiramento do Malhação e vai, com algumas interrupções Outro repertório compartilhado era tratar gênero. A questão é de que ele foi se apro- para jornal e outros programas, até as 11 da questão da política. De novo, recorrendo a priando para se constituir assim. A cultura horas da noite ou mais. Uma das primeiras Martín-Barbero: uma pessoa do povo nunca brasileira absorvera fotonovela, radiono- coisas que o Obitel está fazendo é estudar a vai entender o que é a guerra – a guerra é vela, a maneira de o cinema tratar o país, grade da ficção que é própria, que tem a ver um lugar onde um tio morreu. A cidade é então, a telenovela não se realizou nesse com capacidade produtiva da televisão de um lugar onde a prima se deu bem. Assim, sentido de uma forma isolada, fez uma re- cada país. Nessa grade aqui no Brasil cabem as categorias mentais mais complicadas che- apropriação do que já vinha acontecendo telenovela, série, minissérie e até microssérie, gam às pessoas via afeto. Quer dizer, há aí há décadas na cultura. Quando pensamos que é a série de três ou quatro capítulos que

14 n janeiro DE 2009 n PESQUISA FAPESP 155 no exterior ninguém conhece. O que se vê da comunidade hispânica. Quase todos os é que da matriz inicial da telenovela foram países têm o gênero de ficção na televisão. nascendo variadas experiências de ficção Quer dizer, todo mundo gosta de se ver nas televisiva entre nós, em que convivem to- No Obitel, histórias, nas narrativas, naquilo que fala de das. Creio que Manoel Carlos assim como nós. Só que essa narrativa é também uma Lauro César falavam tanto no fim da novela, o fundamental indústria cultural movida a capital, movida ou pelo menos de se afastarem da função a mercado e, portanto, alguns dominam de escrever novela, porque o trabalho era era construir isto, vide o cinema norte-americano. Nós, muito desgastante. Ainda é, mas um pou- aqui no Brasil, na Globo, mesmo em outras co menos porque os autores começaram a um sistema de redes, das cinco e meia da tarde até as dez contar com colaboradores, o que não havia horas da noite, ou seja, no horário nobre, a nos anos 1980. Glória Perez e monitoramento produção que vemos é nacional. Isso signi- começaram como colaboradores de Janete fica mercado de trabalho para atores, para Clair. E isso é muito importante, a produção de telenovela produtores, autores etc. Isso não é pouco e, semanal de uma novela corresponde a fazer se entendermos mais o que se passa, pode dois filmes e meio por semana! E o trabalho para que aumentar extraordinariamente. Estamos do autor é muito grande inclusive porque há longe da era do “enlatado”. O prime time, o dispositivos de naturalização inteiramente pudéssemos horário nobre está ocupado por histórias dados pelo texto. É como na cena da mãe que falam de nós. falando para a filha sobre sexualidade a que ir além dos me referi: o texto é o mecanismo de naturali- n E aí quais foram as suas percepções? zação. Uma câmera só acompanha os atores, estudos de caso — Eu decidi que tinha que precisávamos em plano fixo, transcorre uma conversa que definir como nós faríamos um observató- dura o tempo que duraria no plano real. E, rio de ficção, qual seria a logística, depois, olha, há o tempo do telespectador do outro qual metodologia para fazer isso. Um ob- lado, e as barrigas, as redundâncias têm que servatório tem que monitorar a produção, a ocorrer porque se assiste televisão, não só audiência etc. com dados. Os dados seriam telenovela, com passarinho cantando, ca- solicitados ao Ibope, mas nós próprios, den- chorro latindo, a filha chamando... Cadê a do 100% de share. Há, sim, o aumento da tro do Núcleo de Telenovela na ECA, tería- atenção que se dispensa a um filme no escuro oferta, o aumento de canais, a diversificação, mos que gerar outros. O fundamental era do cinema? E então também esta relação, a isso sem falar da internet. E hoje as pessoas construir um sistema de monitoramento recepção de maneira fragmentada, tem que deixam de assistir na televisão o que até para poder realmente falar do que acontece ser pensada na telenovela. E até a possibili- gostariam porque são puxadas pela inter- e do que não acontece. Eu percebia com dade de se ficar dez dias sem assistir e depois net para trabalhar. O trabalho deixou de relação à telenovela que estávamos indo ter capacidade de acompanhar a narrativa. existir num só lugar, ele está também na muito para os estudos de caso. Precisamos É claro que tudo isso foi entrando na feição casa normalmente à noite. Isso antes não fazer macroanálises da ficção televisiva. E própria da telenovela. Com o tempo, foi se existia. Portanto, temos que compreender até coisas inéditas em termos de olhar a manejando essa arte, essa técnica, que con- também essa mudança no cotidiano. Mas, telenovela: olhar a produção, os dispositi- tinuamos a acompanhar. olhando em perspectiva, se o Ibope da tele- vos, a oferta, a coprodução, os formatos, a novela que já foi quase 60 baixou para 50, migração dos formatos... n Mas é possível se ter informação sobre os para 40, tiver que ir para 30, ela continua desdobramentos da novela até no jornal, nos hegemônica, em termos de programa assis- n E o observatório já está funcionando aqui cadernos de tevê etc. tido. Porque a hegemonia se dá, sim, pela no Brasil? — Pronto, aí está o ponto onde eu queria audiência, sem dúvida, mas também por — Sim, desde que voltei da Itália, ainda em chegar: todos falam da telenovela. Ela não impor um padrão. 2001, ainda que o Obitel, com esse nome, é só vista, é falada. E esse conjunto que eu tenha sido formalizado em 2005. Eu já ti- chamo de semiose social é o que faz ela ser o n Nós não podemos terminar essa entrevista nha o suporte institucional e daí o desafio que é. A telenovela está no jornal, nas conver- sem falar do Obitel. Como ele começou? era, com uma equipe, ambientar, colocar sas, nos blogs, nos sites, seus capítulos estão — Quando terminei o estudo da recepção, o observatório no Núcleo de Pesquisa de antecipados nos jornais do fim de semana. pedi uma bolsa à FAPESP para um pós- Telenovela. Depois que passou a se chamar -doc na Itália, onde há um observatório da Obitel, fizemos o convênio com o Ibope, n Entretanto, você não tem mais a telenovela Fiction, como eles dizem, coordenado por fomos aprendendo a fazer. Vimos que era dominando inteiramente a cena geral da tele- Milly Buonanno. Era uma coisa proposta já possível já propor esse projeto para colegas visão brasileira. Existe a oferta de programas dentro do marco do audiovisual europeu, da área de comunicação de outros países muito diferentes nos canais da TV paga. Isso o Observatório Eurofiction. Fui lá fazer ver que vinham nessa trajetória. A idéia do não diminui muito o alcance desse produto isso em 2001. Queria analisar a telenovela Obitel é trabalhar com pesquisa de pro- tão abrasileirado? brasileira no cenário internacional. Não dução e circulação entre nós de telenovela, — A audiência vem diminuindo em termos podemos nos fechar, temos que lidar com minissérie, série etc. Em síntese, das ficções relativos faz tempo. A audiência usual da te- outras nações para entender nosso nacio- televisivas. Mas não quero que o Obitel Bra- lenovela nos anos 1970 – não estou falando nal. E, claro, sabemos que existe a marca sil se resuma à equipe da ECA. Já consegui de share – era de mais de 60 pontos, quase 70 da telenovela latino-americana, principal- reunir 38 pesquisadores brasileiros de tele- pontos do Ibope. E há o que se diz de Roque mente mexicana, da Televisa. E sabemos novela e quero que todos estejam no Obitel Santeiro, cujo último capítulo teria alcança- como ela entra nos Estados Unidos através desenvolvendo projetos. n

PESQUISA FAPESP 155 n janeiro DE 2009 n 15