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MISES: Revista Interdisciplinar de Filosofia, Direito e Economia ISSN 2318-0811 Volume III, Número 2 (Edição 6) Julho-Dezembro 2015: 345-352

Cercado de Terras: Uma Crítica a Kevin Carson sobre os Direitos de Propriedade*

Roderick T. Long**

Resumo: Long analisa a natureza os direitos de propriedades sob a ótica das exigências impostas pelos direitos residuais da comunidade humana em ge- ral; para os georgianos, a comunidade exerce propriamente um papel ativo, como, por exemplo, no famoso “Imposto Único” sobre o valor da terra, de , enquanto mutualistas, na tradição de , tendem a ver a terra livre como somente aquelas terras comunais, sem dono, sobre as quais os direitos últimos de propriedade da humanidade são latentes. Long critica a visão de Kevin Carson – sobre as vantagens pragmáticas do mutualismo sobre os rivais georgianos e lockeanos – como filósofo, restringindo a atenção a um problema filosófico relativo aos direitos de propriedade que ele identifica naquele autor. O ponto central da argumentação de Long é que a abordagem lockeana é a única defensável, sob o ponto de vista libertário. Palavras-chave: Direitos de Propriedade, Lockeanos, Mutualistas, Georgianos.

Land-Locked: A Critique of Kevin Carson on Property Rights

Abstract: Long examines the nature of property rights from the perspective of the re- quirements imposed by the residual rights of the community at large; for Georgians, the community itself plays an active role, for example, the famous Henry George’s “” on land values, while mutualism, in the tradition of Benjamin Tucker, tend to view the free land as only those communal land without owner, over which the latter property rights of mankind are dormant. Long criticizes the view of Kevin Carson – on the pragmatic benefits of mutualism on the Georgians and Lockean rivals – as a philosopher, restricting his attention to a philosophical problem concerning property rights he identifies in that author. The central point of contention is that, in the view of Long, the Lockean approach is the only defensible under the libertarian point of view. Keywords: Property Rights, Lockeans, Mutualism, Georgians.

Classificação JEL: P14.

* Artigo publicado originalmente em inglês como: LONG, Roderick T. Land-Locked: A Critique of Carson on Property Rights. Journal of Libertarian Studies, Vol. 20, No 1 (Winter 2006): 87-95. O presente ensaio se beneficiou com os comentários de Robert P. Murphy e de George Reisman, aos quais o autor expressa seu agradecimento. Traduzido do inglês para o português por Davi J. Dias. ** Roderick T. Long nasceu em 4 de fevereiro de 1964, em Los Angeles na California, nos EUA. É professor associado de Filosofia na Auburn University, presidente do Molinari Institute e editor do Journal of Libertarian Studies. Cursou o bacharelado em Filosofia na Harvard University e o PhD em Filosofia na Cornell University. Publicou inúmeros artigos acadêmicos em diferentes periódicos e é autor dos seguintes livros: Reason and Value: Aristotle versus Rand (Objectivist Center, 2000) e Wittgenstein, Austrian Economics, and the Logic of Action: Praxeological Investigations (Routledge, 2008). E-mail: [email protected] 346 Cercado de Terras: Uma Crítica a Kevin Carson sobre os Direitos de Propriedade

Em 1888, o jornal libertário mais importan- restringirei minha atenção a um problema fi- te da França, o Journal des Économistes –baluarte losófico relativo aos direitos de propriedade. da economia protoaustríaca e da teoria locke- Carson distingue “três teorias rivais principais ana da propriedade –, de acerca da justiça da apropriação de terras, entre os (1819-1912)1, publicou uma crítica – em grande libertários de mercado livre: a lockeana, a georgiana parte favorável e elogiosa, se bem que algo con- e a mutualista”. Estas três teorias “concordam em descendente – ao jornal libertário mais notável que a única maneira legítima de possuir uma terra dos Estados Unidos, o , de Benjamin Tu- sem dono é por meio da apropriação original e da al- cker (1854-1939) – baluarte da teoria mutualista teração direta, pessoal”, mas “diferem substancial- da propriedade e da economia proudhoniana2. mente em suas regras de transferência e abandono” O jornal de Tucker retribuiu o favor, em 1904, da terra. Essa diferença provém do fato de que, publicando uma crítica – em grande parte favo- ao contrário dos lockeanos, para quem “a mis- rável e elogiosa, se bem que algo condescenden- tura do trabalho retira permanentemente a terra” te – a um livro de Molinari3. Desde então, o di- das mãos dos comuns, georgianos e mutualis- álogo entre os chamados ramos “capitalista” e tas “concordam em ver a terra” [...] “como um pa- “socialista” do libertarianismo de mercado livre trimônio comum que não pode ser permanentemen- entrou em declínio4. A publicação de Studies in te alienado dos comuns, no sistema de propriedade Mutualist Political Economy [Estudos em Econo- livre”, e, portanto, consideram “o direito posses- mia Política Mutualista]5 de Kevin Carson, pro- sório ou de usufruto do indivíduo” um “adminis- porciona ocasião bem-vinda para reavivar essa trador a serviço da comunidade humana em geral”7. conversação. Onde georgianos e mutualistas se di- Deixei os aspectos econômicos e histó- videm é em relação à natureza e ao rigor das ricos da argumentação de Kevin Carson para exigências impostas pelos direitos residuais serem tratados por colaboradores mais com- da comunidade humana em geral; para os ge- petentes nas áreas em questão6; como filósofo, orgianos, a comunidade exerce propriamente um “papel ativo no exercício de seus direitos de pro- 1 Gustav Molinari editou o Journal des Économistes de priedade últimos sobre os comuns” – como mani- 1881 a 1909. festo, p. ex., no famoso “Imposto Único” sobre 2 RAFFALOVICH, Sophie. Les Anarchistes de Boston. o valor da terra, de Henry George (1839-1897) Journal des Économistes, Vol. 41, 4ème collection (15 –, ao passo que os mutualistas, na tradição de Mars, 1888): 375-388. Ver também: TUCKER, Benjamin Benjamin Tucker, R. A French View of Boston Anarchists. Liberty, Vol. tendem a ver a terra livre como somente VI, No. 4 (whole No. 134) (September 29, 1888): 4. aquelas terras comunais, sem dono, sobre as 3 RANDALL, S. H. An Economist on the Future quais os direitos últimos de propriedade da Society. In: Liberty, Vol. 14, No. 23 (whole No. 385) humanidade são latentes, e que o indivíduo (September 1904): 2. Disponível em: . ções físicas, sem necessidade de procuração, 4 Muito embora Murray N. Rothbard (1926-1995) na sua própria elaboração do ramo “capitalista” das ideias anarquistas tenha explicitamente absorvido ideia de traduções dos seguintes artigos criticando os erros autores do ramo “socialista”, como, por exemplo, o já econômicos e históricos dos argumentos de Kevin citado, Benjamin Tucker e, também, Carson: MURPHY, Robert P. The Labor Theory of (1808-1887), (1812-1886) e Value: A Critique of Carson’s Studies in Mutualist Clara Dixon Davidson (1874-1962). Political Economy. Journal of Libertarian Studies, Vol. 20, No. 1 (Winter 2006): 35-46; BLOCK, Walter. 5 CARSON, Kevin A. Studies in Mutualist Political Kevin Carson as Dr. Jekyll and Mr. Hyde. Journal of Economy. Fayetteville: Ark, 2004. Disponível em: Libertarian Studies, Vol. 20, No. 1 (Winter 2006): 87- . 95. (N. do E.). 6 Nas próximas edições de MISES: Revista Interdisciplinar 7 CARSON. Studies in Mutualist Political Economy. de Filosofia, Direito e Economia serão publicados as p. 198-99. MISES: Revista Interdisciplinar de Filosofia, Direito e Economia Roderick T. Long 347

relativamente aos direitos coletivos; mas o de argumentos econômicos e históricos cuja direito comum latente do restante da huma- análise, conforme já mencionado, deixei para nidade proíbe ao indivíduo reivindicar mais outros colaboradores deste volume. Para os terras do que ele pode usar pessoalmente, presentes propósitos, desejaria contestar a em detrimento do interesse comum, e exige afirmação do autor de que os princípios li- que o título de propriedade individual seja bertários da autopropriedade e da apropria- revertido para os comuns, quando o indiví- duo deixar de ocupar e utilizar a terra8. ção originais, em si mesmos, e independen- temente de considerações consequencialistas, Daí o sistema de “landlordism” absen- não nos dão razão para preferir uma teoria da tista9, por exemplo, ser proibido pela teoria propriedade da terra em detrimento das ou- mutualista. tras. Antes, argumentarei que a abordagem Quais destas três abordagens à proprie- lockeana é a única defensável, do ponto de dade da terra os libertários deveriam prefe- vista libertário. rir, e por que motivos? Segundo Carson, não Conforme Carson observa acertadamen- obstante a “teoria da propriedade-trabalho” (não te, tanto georgianos quanto mutualistas con- confundir com a teoria do valor-trabalho), co- cordam em considerar a apropriação original mum às três teorias, seja “plausivelmente dedu- limitada pelo status da terra como patrimô- tível da autopropriedade”, o fato é que, ali onde nio comum da humanidade. Na realidade, essa as teorias divergem, nenhum dos seus “con- afirmação se aplicaria igualmente a qualquer juntos alternativos de regras para a alocação de lockeano tradicional o bastante para aceitar propriedade” pode ser deduzido logicamente alguma versão da “cláusula de Locke”, se- do “princípio de autopropriedade apenas”10, e, em gundo a qual, da apropriação original, o que particular, “nenhum sistema de regras de trans- resta deve ser “suficiente aos outros, em quan- 13 ferência ou abandono da terra pode ser deduzido tidade e em qualidade” – mas não se aplicaria logicamente de um padrão de trabalho de apropria- àqueles lockeanos radicais que não aceitam a 14 ção consensual”11. Daí que só se possa escolher “cláusula de Locke” . Logo, é esta noção de entre as três teorias, segundo Carson, basean- do-se exclusivamente na “prudência ou em 13 LOCKE, John. Second Treatise of Government. In: razões consequencialistas”12; e aqui, diz ele, o Two Treatises of Government. Ed., Intr. and notes by mutualismo leva vantagem. Peter Laslett. Cambridge: Cambridge University Press, A defesa de Carson das vantagens prag- 1988. Livro V. [Em língua portuguesa, dentre outras, consultar a seguinte edição brasileira: LOCKE, John. máticas do mutualismo sobre os rivais geor- Segundo Tratado sobre o Governo Civil. In: Dois gianos e lockeanos depende, em grande parte, Tratados sobre o Governo. Ed., introd. e notas de Peter Laslett; Trad. Julio Fischer. São Paulo: Martins Fontes, 1998. (N. do T.)]. Ver, também: NOZICK, Robert. 8 Idem. Ibidem, p. 199. , State, and Utopia. New York: Basic Books,

9 1974 [A obra está disponível em língua portuguesa na “Landlordism” é o sistema de latifúndios pelo qual a seguinte edição brasileira: NOZICK, Robert. Anarquia, terra é propriedade dos grandes senhores, a quem os Estado e Utopia. Trad. Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: rendeiros pagam rendas fixas. “Absentista” refere-se Jorge Zahar Editor, 1991. (N. do T.)]; SCHMIDTZ, ao fato de os senhores estarem, ou costumarem estar, David. The Limits of Government: An Essay on the ausentes da terra (N. do T.). Public Goods Argument. Boulder: Westview Press, 10 CARSON. Studies in Mutualist Political Economy. 1991. p. 200-01. 14 Ver, por exemplo: ROTHBARD, Murray N. The 11 Idem. Ibidem., p. 214. Ethics of Liberty. New York: New York University Press, 1998 [A edição brasileira da obra é a seguinte: 12 O consequencialismo é a teoria moral segundo ROTHBARD, Murray N. A Ética da Liberdade. Intr. a qual uma ação é moralmente correta quando as Hans-Hermann Hoppe; Trad. Fernando Fiori Chiocca. suas consequências são mais favoráveis do que São Paulo, Instituto Brasil, 2a desfavoráveis (N. do T.). ed., 2010. (N. do T.)]; HOPPE, Hans-Hermann. The 348 Cercado de Terras: Uma Crítica a Kevin Carson sobre os Direitos de Propriedade

um patrimônio comum que distingue mutu- patrimônio comum da humanidade e, assim, alistas, georgianos e lockeanos que subscre- descarta o mutualismo, o georgismo e o lo- vem a “cláusula de Locke”, por um lado, de ckeanismo favorável à “cláusula de Locke”, lockeanos que a rejeitam, por outro lado. deixando espaço apenas para o lockeanismo Mas será que as teorias que endossam contrário a ela. a tese de um “patrimônio comum” o fazem Se isto demonstra, ou não, que um “sis- coerentemente? Não vejo como isso poderia tema de regras de transferência e abandono da ter- ser. De acordo com aquilo que Carson chama ra pode ser deduzido logicamente [...] de um pa- de a “teoria da propriedade-trabalho”, e que, drão de trabalho de apropriação consensual”, pelo segundo ele, é aceito, de uma forma ou de ou- menos mina a suposição de Carson de que o tra, por todas as teorias concorrentes que esta- princípio da apropriação da terra não oferece mos a discutir, ninguém pode ser o primeiro maior respaldo às regras lockeanas de trans- proprietário de um bem senão ao apropriar-se ferência e abandono do que às regras mutua- dele por meio do trabalho pessoal. Ora, como listas. Se, como afirma o autor, o desacordo do a humanidade toda não se apropriou coleti- mutualismo em relação ao lockeanismo tem a vamente de toda a terra no mundo, ela não ver com o fato de se considerar a terra um pa- pode ser a primeira proprietária dessa terra; trimônio comum, então o princípio da apro- donde a impossibilidade de os direitos de priação original é desfavorável, sobretudo, ao propriedade residuais da humanidade sobre mutualismo, e favorável ao lockeanismo, par- o solo, se é que há algum, serem originais; se ticularmente àquele que rejeita a “cláusula”. existem tais direitos, eles devem provir de um E, se é mediante a apropriação original da ter- proprietário primitivo – como, aliás, sugere o ra que os direitos de propriedade surgem, a termo “patrimônio”. terra de que ainda não se apropriou ipso facto Ocorre que John Locke (1632-1704) resol- não pode vir com as amarras da propriedade veu este problema com bastante habilidade, já atadas. ao fazer da Terra um dom comum, concedido Aqui, Carson poderia responder dizen- à humanidade por Deus, criador e primeiro do que, para ele, o princípio da apropriação proprietário do solo; mas muitos libertários, original da terra apresenta apenas uma origem hoje, relutam em fundar suas teorias de di- dos direitos de propriedade, e não a única ori- reito em uma teologia controversa, e Kevin gem. Segundo tal interpretação, é mediante a Carson decerto não demonstra nenhuma apropriação original da terra que esta passa tendência nesse sentido. Na ausência de um do seu estado original (um estado de pro- apelo teológico, porém, é difícil ver de quem a priedade comum, de acordo com georgianos, humanidade poderia ter recebido esse “patri- mutualistas e lockeanos “pró-cláusula”; um mônio”; e tampouco a humanidade pode ser estado de não propriedade, de acordo com o proprietário original do solo, uma vez que, lockeanos não adeptos da “cláusula”) para segundo a teoria da propriedade-trabalho, a a propriedade privada (propriedade priva- propriedade original implica na apropriação da integral, do ponto de vista dos lockeanos; original da terra e, portanto, a teoria do traba- propriedade privada limitada, ou “adminis- lho não deixa espaço para a propriedade ori- tração”, do ponto de vista dos outros grupos), ginal de terra que ainda não foi apropriada. mas a condição original da terra como patri- Segue-se disso que, uma vez mais recusando mônio comum da humanidade (conforme o o auxílio da teologia, a teoria da propriedade- afirmam, explícita ou implicitamente, todos -trabalho exclui a possibilidade da terra como esses grupos, exceto os lockeanos contrários à “cláusula”) baseia-se em outro fundamento, quiçá consequencialista. Economics and Ethics of Private Property: Studies Embora esta seja uma posição legítima, in Political Economy and Philosophy. Dordrecht: Kluwer, 1993. tentarei demonstrar que é incompatível com a MISES: Revista Interdisciplinar de Filosofia, Direito e Economia Roderick T. Long 349 autopropriedade. Portanto, discordo de Car- ser aplicações específicas do próprio direito de son quando ele diz que o “princípio da au- autopropriedade. Ora, o princípio de apro- topropriedade, em si”, não basta para fazer priação original de terra, como Carson parece decidir entre as teorias concorrentes acerca da inclinado a admitir, pode se justificar como propriedade de terra. uma aplicação da autopropriedade. A essên- É fácil pensar no direito de autoproprie- cia da personalidade humana não é a massa dade como se ele fosse, ao menos potencial- material que compõe os nossos corpos – um mente, apenas mais um direito entre outros, monte de substância que, aliás, muda ao lon- isto é, como se tivéssemos os direitos de au- go do tempo, como o rio de Heráclito (535-475 topropriedade e mais alguns outros direitos. a.C.)15, mediante adição de novas partículas e Mas fazê-lo seria um erro. O direito de auto- liberação de partículas velhas –, e sim as nos- propriedade, como eu o entendo, é o direito de sas atividades e projetos; com efeito, o corpo usar e dispor de si mesmo segundo a própria de um indivíduo é, em si, apenas um dos pro- vontade, sem interferências coercivas, desde jetos de seu dono em andamento. Ao trans- que o indivíduo se abstenha de interferir co- formar objetos externos para incorporá-los ercivamente na autopropriedade de outros aos meus projetos em curso, faço deles uma indivíduos. Segue-se que o uso da força não extensão de mim mesmo, de modo análogo à se justifica jamais, exceto em resposta à inva- maneira pela qual a comida se transforma em são da autopropriedade de alguém. Mas, uma parte do meu corpo, na digestão. Aquilo que vez que os direitos são, por definição, reivin- transformamos desta maneira se nos torna dicações legitimamente executórias, conclui- tão relacionado que ninguém poderá sujeitá- -se que não pode haver nenhum direito além -lo aos seus propósitos, sem com isso nos su- do direito de autopropriedade. Pois, se esses jeitar aos seus propósitos – violando, assim, direitos extras existissem, haveria outras rei- nosso direito de autopropriedade. Conver- vindicações, além da autopropriedade, que temos algo em propriedade pessoal ao fazer poderiam ser legitimamente impostas, o que com que tenha a mesma relação conosco que significaria que abster-se de invadir a auto- a matéria de que são compostos nossos cor- propriedade alheia não bastaria para isentar pos16 Ou, como os economistas oitocentistas alguém de responsabilidade por interferência Louis Wolowski (1810-1876) e Pierre Émile coerciva. No entanto, a autopropriedade, con- Levasseur (1828-1911) escreveram de maneira forme a definição acima, isenta o indivíduo eloquente: de responsabilidade por interferência coerci- Esta propriedade é legítima; ela constitui va desde que ele respeite a autopropriedade um direito sagrado do homem, tanto quan- alheia; donde o direito de autopropriedade to o livre exercício de suas faculdades. Ela ser incompatível com o reconhecimento de é sua porque veio inteiramente dele, e não quaisquer direitos adicionais. (Para dizê-lo é nada mais do que uma emanação de seu próprio ser. Antes dele, não havia pratica- de outro modo: se é proibido iniciar o uso da mente nada além da matéria; depois dele, e força, então qualquer uso legítimo da força poderá ser uma resposta a ela; mas a impo- sição de um direito constitui, por definição, 15 Referência ao fragmento 91, da edição, do filósofo um uso legítimo da força; portanto, não pode pré-socrático Heráclito de Éfeso, de acordo com o qual: haver direitos além do direito de o indivíduo “Não se pode percorrer duas vezes o mesmo rio e não se pode estar livre do emprego da força por parte de tocar duas vezes uma substância mortal no mesmo estado; por causa da impetuosidade e da velocidade da mutação, esta outros). se dispersa e se recolhe, vem e vai” (N. do E.). Segue-se que os direitos de propriedade 16 existentes, independentemente de quais se- Não é que passamos a possuir nossos projetos, o jam, não podem ser direitos adicionais ao di- que quer que isso signifique, mas, antes, significa que passamos a possuir coisas físicas, ao incorporá-las a reito de autopropriedade, mas, antes, devem nossos projetos. 350 Cercado de Terras: Uma Crítica a Kevin Carson sobre os Direitos de Propriedade

por seu intermédio, há agora uma riqueza pode reivindicar, plausivelmente, como parte intercambiável, isto é, artigos que passaram de si, ou como extensão de si, aquela terra ainda a adquirir um valor através da indústria, não transformada por mãos humanas? De que da manufatura, do manuseio, da extração, modo esta terra torna-se parte do “patrimônio ou simplesmente através do transporte. Da comum” da humanidade? pintura feita por um grande mestre [...] até se pergunta a si mesmo, com razão: o balde de água que o carregador leva do É difícil perceber por que um bebê paquista- rio ao consumidor, a riqueza, qualquer que nês recém-nascido deveria ter uma reivindi- seja, adquire seu valor apenas por meio des- cação moral por uma parcela fracionária de sas qualidades transferidas, as quais fazem direito sobre uma terra no Iowa que alguém parte da atividade, da inteligência e da força transformou num trigal — e vice-versa, evi- humana. O produtor deixou um fragmento dentemente, no caso de um bebê do Iowa e de sua própria pessoa na coisa que, assim, uma fazenda no Paquistão. A terra, em seu tornou-se valiosa, podendo ser vista, por- estado original, não tem uso nem proprie- tanto, como uma extensão das faculdades tário. Os georgianos e outros comunalistas do homem a agir sobre a natureza externa. da terra podem alegar que, na verdade, toda Enquanto ser livre, ele pertence a si mesmo; a população mundial a “possui”, mas, se a causa, a força produtiva, por assim dizer, ninguém ainda a usou, ninguém a possui e é ele próprio; o efeito, isto é, a riqueza pro- controla de fato. O pioneiro, o apropriador duzida, é ainda ele mesmo. Quem ousaria original da terra, aquele que primeiro a usou contestar seu direito de propriedade, mar- e transformou, é quem primeiro deu àque- cado de maneira tão clara com o selo de sua la coisa simples e sem valor um uso social e personalidade?17 produtivo. É difícil ver como moral o ato de privá-lo da propriedade em nome de pesso- Trata-se de deduzir, da autopropriedade, as que nunca chegaram a mil e quinhentos o princípio da apropriação original de terra. quilômetros de distância dessa terra, e que Contudo, não existe a possibilidade podem nem mesmo saber da existência da duma derivação análoga do “patrimônio co- propriedade sobre a qual elas supostamente mum” da humanidade, sendo este ainda não têm direito19. apropriado18. De que maneira a humanidade à questão da terra. Todavia, como argumentei em outro 17 WOLOWSKI, Louis-François-Michel-Raymond & texto: LEVASSEUR, Pierre Émile. Property. In: LALOR, Mesmo quando o indivíduo A tem direito a reaver John J. (Ed.). Cyclopædia of Political Science, Political alguma propriedade na posse de B, há limites para o Economy, and of the Political History of the United dano que A pode infligir a B no exercício desse direito. States; By the Best American and European Writers. Se você engole meu anel de diamante, não tenho o New York: Charles E. Merrill, 1888. Vol. 3, p. 391-95. direito de cortá-lo para tirar o objeto, possivelmente Disponível em: . Acesso em 8 de junho de 2005. você invade minha propriedade, não tenho o direito de enxotá-lo do gramado na frente de casa para a 18 Com efeito, (1820-1903) tentou fazer rua, no momento preciso em que passa um caminhão esta derivação, sustentando que, se não houvesse tal que vai esmagá-lo (LONG, Roderick T. Beyond patrimônio comum, toda a superfície da Terra poderia, the Boss: Protection from Business in a Free Nation. em princípio, passar para a propriedade privada Formulations, Vol. 4, No. 1 (Autumn 1996). Disponível absoluta, e, neste caso, aqueles que não possuíssem em: ). nenhuma terra não teriam direito de existir em Logo, Spencer está errado ao pensar que, sob o regime parte alguma e, portanto, nenhum direito a existir, de propriedade privada, os seus hipotéticos “senhores absolutamente (SPENCER, Herbert. Social Statics: da terra” poderiam legitimamente negar o direito Or, The Conditions Essential to Human Happiness de existência aos que não são proprietários; e, com o Specified, and the First of Them Developed. London: desaparecimento do problema, desaparece também a John Chapman, 1851. Cap. 9. Disponível em: ) – o que pareceria incompatível com a autopropriedade; daí Spencer ter 19 ROTHBARD, Murray N. : The abraçado uma posição quase georgiana, relativamente Libertaran Manifesto. San Francisco: Fox and Wilkes, MISES: Revista Interdisciplinar de Filosofia, Direito e Economia Roderick T. Long 351

Levando adiante a objeção de Rothbard, balho – não do trabalho de um indivíduo podemos nos perguntar: até onde se esten- qualquer, mas do de todos eles juntos. Se de este suposto patrimônio comum? Até ao um morador da aldeia decidisse tirar van- centro da Terra? À parte de trás da Lua? Às tagem do novo caminho criando um portão estrelas longínquas? Se existirem extraterres- e cobrando pedágios, violaria o direito de propriedade coletiva que os moradores da tres inteligentes, será que toda a massa física aldeia adquiriram juntos20. do universo se torna patrimônio comum de todas as formas de vida inteligente, de modo Uma vez que o povo adquira desta ma- que uma civilização alienígena na galáxia de neira direito a alguma parcela de terra, esta Andrômeda pode reclamar para si, pelo sim- passa a ser seu patrimônio comum, e aquelas ples fato de existir, uma fração residual da preferências do povo tornam-se decisivas, tan- propriedade dos milharais de Iowa, e nós, to em relação às condições sob as quais a terra analogamente, pelo simples fato de existir- pode passar às mãos de particulares21, quanto mos, podemos reivindicar uma fração resi- em relação às limitações residuais que terão dual da propriedade das minas de vapor da validade, se é que alguma o terá (sob a forma estrela Antares (ou de qualquer outro lugar)? de cláusulas restritivas). Um povo como este Se temos direito apenas àquilo que podemos, poderia optar, de maneira perfeitamente legí- com razão, reivindicar como extensão de nós tima, por regras de transferência mutualistas, mesmos, então fica demonstrado que todos georgianas ou lockeanas. os apelos a um “patrimônio comum” são in- Segundo observa Carson, é importante fundados. Isto invalida o argumento em favor que diferentes regimes de direito de proprie- do mutualismo, do georgismo e do lockeanis- dade possam coexistir pacificamente, numa mo “pró-cláusula”, uma vez mais deixando sociedade libertária. Escreve ele: de pé, apenas, o lockeanismo desfavorável à “cláusula”. Mas deixem-me encerrar com uma su- 20 LONG, Roderick T. In Defense of Public Space. gestão pacífica. Ao contrário do que diz Car- Formulations, Vol. 4, No. 3 (Spring 1996). Disponível son, embora o povo não possa adquirir di- em: . Acesso em 8 de junho de 2005. Ver, também: LONG, Roderick reitos de propriedade pelo simples fato de T. A Plea for Public Property. Formulations, Vol. 5, existir, ele pode – como eu e outros sugerimos No. 3 (Spring 1998). Disponível em: . Acesso em 8 de junho diante a apropriação original da terra: de 2005; SCHMIDTZ, David. The Institution of Pense numa aldeia próxima a um lago. É Property. Social Philosophy and Policy, Vol. 11 (1994): comum os moradores da aldeia irem até 42-62; HOBBS, Carlton. Common Property in : A Missing Link (2003). Disponível ao lago para pescar. Nos primórdios da em: ; HOLCOMBE, Randall G. Common Property causa do matagal e dos galhos caídos no in Anarcho-Capitalism. Journal of Libertarian Studies, trajeto. Com o tempo, porém, o trajeto é Vol. 19, No. 2 (2005): 3-29. Em minha opinião, importa desobstruído e um caminho se forma – não que o uso dos moradores da aldeia de fato modifique a como fruto de esforços coordenados cen- terra. Se eles apenas usassem regularmente a terra, sem tralmente, mas como resultado de todos os alterá-la, isto lhes conferiria um direito de uso (já que a indivíduos passarem por ali, dia após dia. interferência pelo uso continuado pode ser considerada O caminho desobstruído é produto do tra- agressão, mesmo que o uso não seja literalmente contínuo), mas não um direito de propriedade. 1994. p. 35. [Substituímos a citação em inglês pela 21 Para uma discussão dos mecanismos por meio passagem equivalente da seguinte edição brasileira: dos quais a terra comum pode se tornar privada, ROTHBARD, Murray N. Por Uma Nova Liberdade: ver os já citados artigos: LONG. A Plea for Public O Manifesto Libertário. Intr. Llewellyn H. Rockwell, Property; HOBBS. Common Property in Free Market Jr.; Trad. Rafael de Sales Azevedo. São Paulo: Instituto Anarchism; HOLCOMBE. Common Property in Ludwig von Mises Brasil, 2010. p. 50. (N. do T.)]. Anarcho-Capitalism. 352 Cercado de Terras: Uma Crítica a Kevin Carson sobre os Direitos de Propriedade

Qualquer sociedade descentralizada, pós- adepto da “cláusula”; entretanto, uma versão -estado, que venha a existir após o colapso de um lockeanismo, não adepto da “cláusu- do poder central, tenderá a ser uma “pana- la”, que deixe aberta a possibilidade de a co- narquia”, caracterizada por uma grande va- munidade adquirir o direito à terra, não pelo riedade de sistemas de propriedade locais. simples fato de existir, mas mediante a apro- Para que estes coexistam pacificamente, priação original, coletiva, da terra (ou, o que todos os três sistemas de propriedade deve- rão espelhar o entendimento alcançado pe- dá na mesma, por recebê-la como presente de los seus proponentes mais esclarecidos. Os algum filantropo), proporciona, aos lockea- adeptos de um ou outro sistema de proprie- nos não favoráveis à “cláusula”, fundamento dade devem estar dispostos a admitir que para reconhecer como legítimos os arranjos não se trata de uma verdade autoevidente, de propriedade de comunidades mutualistas, ou devem, ao menos, estar prontos para georgianas e lockeanas “pró-cláusula” e, por- aceitar o sistema preferido pelo consenso da tanto, para “aceitar o sistema preferido pelo maior parte do povo, em cada área particu- consenso da maior parte do povo, em cada 22 lar . área particular” – desde que isso signifique o consenso da maior parte dos proprietários23 –, Como vimos, por razões libertárias so- sem comprometer seus princípios lockeanos mente se pode defender o lockeanismo não contrários à “cláusula” ou abalar a confiança nestes.

23 Meu argumento é que, se uma determinada porção de terra é possuída comunalmente pelo grupo X, o processo pelo qual esta parcela de terra pode vir a ser privatizada dependerá do consenso da maioria, no grupo X. O consenso da comunidade em geral será 22 CARSON. Studies in Mutualist Political Economy. irrelevante (a não ser que os proprietários o julguem p. 216. importante).