ESCOLA DA MAGISTRATURA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

ADPF N. 54 E O ABORTO NOS CASOS DE MICROCEFALIA

Amanda Ferraz Queiroz

Rio de Janeiro 2017 AMANDA FERRAZ QUEIROZ

ADPF N. 54 E O ABORTO NOS CASOS DE MICROCEFALIA

Artigo apresentado como exigência de conclusão de Curso de Pós-Graduação Lato Sensu da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. Professores Orientadores: Mônica C. F. Areal Néli L. C. Fetzner Nelson C. Tavares Junior

Rio de Janeiro 2017 2

ADPF N. 54 E O ABORTO NOS CASOS DE MICROCEFALIA

Amanda Ferraz Queiroz

Graduada pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Advogada.

Resumo – O tema do presente artigo mostra-se de fundamental importância no âmbito social, político e jurídico. No âmbito social porque há grande uma discussão sobre a possibilidade de aplicação do raciocínio jurídico utilizado na ADPF n. 54 nos casos de microcefalia. No âmbito político porque compete ao Poder Executivo criar políticas públicas de prevenção e combate à microcefalia, bem como cabe ao Poder Legislativo, se assim entender, a criação de mais uma hipótese legal de aborto. Por fim, trata-se de uma discussão de importância jurídica, na medida em que compete ao Supremo Tribunal Federal, órgão de hierarquia máxima do Poder Judiciário, se manifestar sobre a legitimidade da realização do aborto de feto com microcefalia. Decidir sobre a permissão da interrupção da gravidez nessa hipótese traz à discussão a proteção do direito fundamental à vida do feto, da dignidade da mulher gestante e das pessoas com deficiência. Entende-se que permitir o aborto de um feto com microcefalia seria um retrocesso aos direitos garantidos pela Constituição da República Federativa do Brasil, como também uma forma de eugenia, revelando uma tentativa de eliminação de pessoas portadoras de deficiência.

Palavras-chave – Direito Constitucional. Devido Penal. Aborto. Feto com microcefalia. Dignidade da mulher. Direito à vida. ADPF n. 54.

Sumário – Introdução. 1. Do feto com microcefalia e o seu direito à vida x dignidade da mulher gestante. 2. Análise sobre a possibilidade da aplicação da decisão do STF na ADPF n. 54 nos casos de microcefalia a partir dos fundamentos dos votos proferidos. 3. Argumentos contra e a favor do aborto no caso de diagnóstico de microcefalia e a necessária proteção do feto portador da deficiência. Conclusão. Referências.

INTRODUÇÃO

A presente pesquisa tem por objetivo discutir a possibilidade de aplicação do entendimento do Supremo Tribunal Federal na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 54 nos casos de microcefalia. Procura-se demonstrar que ter um filho com microcefalia pode trazer transtornos psicológicos na mãe, mas é necessário analisar se tal deficiência legitima o aborto, retirando o direito à vida do feto. O Brasil tem vivenciado um grande aumento de casos de bebês com microcefalia, causada pelo vírus zika, uso de drogas durante a gravidez, toxoplasmose, rubéola e citomegalovírus. A microcefalia é uma condição neurológica que faz com que o cérebro do bebê seja menor do que a média, podendo trazer surdez, déficit intelectual, surdez e até a 3

morte em alguns casos. Diante disso, muitas mulheres, não aceitando o fato de o filho nascer com esses sintomas, querem praticar o aborto. O tema em debate é de grande importância no âmbito jurídico e social, porque o nosso ordenamento jurídico criminaliza o aborto, excetuando a possibilidade de interrupção da gravidez em apenas dois casos específicos no artigo 128 do Código Penal: quando há risco de vida para a mãe e no caso de estupro. Em 2012, o STF, ao julgar a ADPF n. 54, se posicionou no sentido de que a interrupção da gravidez de feto anencefálico não é aborto e pode ser realizada, posto que fora do útero não há possibilidade de o feto permanecer com vida. Dessa forma, pode ser realizada a interrupção da gravidez caso o feto tenha anencefalia, ou seja, além das duas hipóteses permitidas em lei, o STF criou uma terceira hipótese. Daí surge o questionamento se a decisão do STF na ADPF n. 54 autorizando o aborto de feto anencefálico poderia ser aplicada nos casos de feto com microcefalia. Com o crescimento dos casos de microcefalia no Brasil, é importante um posicionamento da corte suprema sobre a possibilidade ou não da realização do aborto nesse caso, pois alguns grupos estão argumentando que seria uma hipótese legal. Já há uma grande discussão entre os juristas, professores e médicos sobre esse assunto e para que esse ambiente de insegurança social e jurídica não se prolongue há a necessidade de um pronunciamento do Supremo Tribunal Federal. Enquanto não há, a presente pesquisa busca discutir um pouco esse tema para que haja uma melhor compreensão. Inicia-se o primeiro capítulo do trabalho discutindo se o feto com microcefalia tem possibilidade de vida após o parto, se seria mais importante o seu direito a vida ou a dignidade e o direito de se autodeterminar da mulher gestante. Segue-se apresentando, no segundo capítulo, os votos dos ministros do STF quando da decisão da ADPF n. 54 e se os argumentos utilizados são cabíveis diante das peculiaridades dos casos de microcefalia com o objetivo de aferir se a interrupção da gravidez nessa hipótese pode ser aceita com base nessa decisão. O terceiro capítulo destina-se a examinar a opinião de diversos atores sociais sobre a permissividade do aborto no caso de constatação da microcefalia, bem como se a morte de fetos com tal anomalia seria uma forma de eugenia e uma porta de entrada para que sejam realizados abortos de fetos que apresentem deficiências de semelhante gravidade. Assim, a efetivação de políticas públicas de prevenção da doença seria muito mais benéfica do que a realização do aborto desses fetos deficientes. A pesquisa que se pretende realizar seguirá a metodologia de natureza qualitativa, 4

explicativa, quantitativa e parcialmente exploratória, na medida em que o presente artigo apresentará como fontes principais de pesquisa decisões do Supremo Tribunal Federal, artigos publicados na internet e legislação.

1. DO FETO COM MICROCEFALIA E O SEU DIREITO À VIDA X DIGNIDADE DA MULHER GESTANTE

O aumento alarmante dos casos de bebês com microcefalia no Brasil, principalmente no estado de Pernambuco, levou o Ministério da Saúde a decretar estado de emergência de saúde no início do mês de novembro de 20151. O crescimento de casos de microcefalia reacendeu no Brasil e em vários países do mundo a discussão acerca da possibilidade do aborto caso seja constato na gravidez que o feto possui essa doença. Microcefalia é uma doença que se caracteriza por um crânio menor que o normal para a idade da criança, normalmente sendo diagnosticada quando uma criança com um ano e três meses de idade possui a cabeça do tamanho menor que 42 centímetros2. Essa anomalia pode estar associada ao uso de álcool e drogas durante a gestação ou infecção adquirida pela gestante, especialmente nos três primeiros meses da gravidez, como toxoplasmose, rubéola e citomegalovírus. Outro possível causador da anomalia são síndromes genéticas como a Síndrome de Down. Em relação ao vírus zika, ainda não está claro que ele possa ser um causador da doença. De acordo com a Secretaria de Vigilância em Saúde da Secretaria Estadual de Saúde de Pernambuco3, parte das mães que tiveram seus bebês com a doença apresentaram erupções na pele durante a gestação, que é um dos sintomas do zika vírus. No entanto, de acordo com o órgão, não há evidências suficientes para associar o vírus com a microcefalia. As crianças com microcefalia podem apresentar consequências como atraso mental, paralisia, epilepsia, convulsões, déficit intelectual, autismo, rigidez dos músculos, alterações físicas como dificuldade para andar e problemas de fala. No entanto, essas consequências da

1 FORMENTI, Lígia. Surto de microcefalia em bebês faz país decretar emergência sanitária nacional. Disponível em: . Acesso em: 20 out.2016. 2 BELTRAME, Beatriz. Entenda o que é Microcefalia e quais são as consequências para o bebê. Disponível em: < https://www.tuasaude.com/microcefalia/>. Acesso em: 20 out. 2016. 3 O GLOBO. Microcefalia: saiba o que é, o que causa e como identificar. Disponível em: . Acesso em: 20 out. 2016. 5

doença não aparecem em todas as crianças com a doença, pois isso depende do grau gravidade da microcefalia4. Nesse sentido, as crianças que possuem a doença de forma mais branda possuem capacidade cognitiva sem grandes alterações, aprendendo a falar, andar, ler e escrever, por exemplo. Por outro lado, as crianças que possuem um grau maior da microcefalia dependem completamente de outras pessoas para sobreviver, precisando de maiores cuidados e da ajuda da família para realizar as tarefas do dia-a-dia. Um bebê que nasce com microcefalia tem expectativa de vida semelhante à de outros bebês que não possuem a doença, mas isso vai depender e variar de acordo com a gravidade da doença, se há síndromes relacionadas e se ao longo da infância terá adequado acompanhamento e tratamento de profissionais que a auxiliem a ter uma melhor qualidade de vida. De acordo com o Instituto Nacional de Distúrbios Neurológicos e AVC dos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos (Ninds-NH)5, algumas crianças que possuem a microcefalia podem apresentar certo nível de incapacidade, seja física ou intelectual. Outras podem apresentar capacidade cognitiva normal e ter um desenvolvimento semelhante ao de outras crianças. Diante das peculiaridades da microcefalia acima explanadas, deve-se colocar em análise o respeito ao direito à vida do feto que é diagnosticado com essa doença, posto que, embora possa apresentar complicações na sua saúde, nasce com vida e pode viver em sociedade com o adequado acompanhamento de sua família e profissionais habilitados. É importante que a questão seja fundamentada à luz da Constituição da República Federativa do Brasil que garante a todos em seu art. 5º, caput, o direito à vida. Os direitos elencados neste artigo trata-se de um rol exemplificativo, posto que os direitos e as garantias fundamentais colocados de forma expressa na Constituição não excluem outros que estão alinhados com os valores e princípios por ela adotados, ou em tratados internacionais em que o Brasil seja signatário, na forma do § 2º, do art. 5º, CRFB/886.

4 BELTRAME, Beatriz. Entenda o que é Microcefalia e quais são as consequências para o bebê. Disponível em: < https://www.tuasaude.com/microcefalia/>. Acesso em: 20 out. 2016. 5 O GLOBO. Governo declara emergência em saúde por casos de microcefalia. Disponível em: . Acesso em: 20 out. 2016. 6 Art. 5º, § 2º, CRFB: Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. 6

Sobre os tratados internacionais, a Constituição se preocupou em disciplinar seu status constitucional e dispôs no paragrafo terceiro do artigo 5º, acrescentado pela Emenda Constitucional n. 45/2004, que “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos pelos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”.7 Nesse diapasão, cumpre salientar que o Brasil tornou-se signatário do Pacto Jan José da Costa Rica que versa sobre direitos humanos em 1992. Este tratado celebra o direito à vida em seu artigo 4º e estabelece no item 1 que “Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente”.8 O direito à vida é um direito fundamental de todo ser humano e abarca tanto o direito de continuar vivo, de não ser privado de sua vida, como também o direito de ter uma vida digna, devendo ser asseguradas as necessidades básicas de sobrevivência do ser humano e proibido qualquer tratamento indigno, como trabalhos forçados e cruéis. No que tange ao conceito de vida, este começou a ser abordado pelo STF no julgamento da ADI 3.510 em 2008, ocasião em que teve que definir quando começaria a vida para declarar a constitucionalidade da Lei de Biossegurança e por votação bastante apertada, 6 X 5, entendeu que as pesquisas com célula-tronco embrionária não violam o direito à vida.9 Segundo o Ministro Relator, , a vida humana iniciaria com o surgimento do cérebro que, por sua vez, só começaria a aparecer após a introdução do embrião no útero da mulher. Portanto, o conceito de vida estaria ligado à existência do cérebro. Para o STF10, a constatação de que a vida começa com o surgimento do cérebro também estaria regulamentada no art. 3º da Lei de Transplantes, segundo o qual há a possibilidade de transplante depois da morte, desde que constatada a morte encefálica. Pelo que, para a lei, o fim da vida estaria ligado com a morte cerebral.

7BRASIL. Constituição Federal. Disponível em: . Acesso em: 23 out. 2016. 8Convenção Americana de Direitos Humanos. C. A. Disponível em: . Acesso em: 23 out. 2016. 9 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI n. 3.510. Relator: Ministro Carlos Ayres Britto. Disponível em: . Acesso em: 24 out.2016. 10 Ibid. 7

Seguindo a mesma linha de pensamento quanto ao conceito de vida, em 2012, o STF julgou a ADPF n. 54 e se posicionou quanto à possibilidade da interrupção da gravidez de feto com anencefalia, desde que se comprove por laudos médicos que o feto não tem cérebro e não tem chance de vida extrauterina.11 Relacionando o feto com microcefalia ao conceito de vida adotado pela lei e pelo Supremo Tribunal Federal, constata-se que o feto com essa anomalia possui vida e tem possibilidade de vida extrauterina, posto que não há ausência de cérebro em seu corpo, mas sim um perímetro menor do que o normal. Não cabe, portanto, a equiparação da microcefalia à anencefalia. Se, por um lado, o direito à vida do feto com microcefalia deve ser garantido, por outro lado, a mulher gestante goza de proteção constitucional da sua dignidade. O princípio da dignidade da pessoa humana caracteriza-se como fundamento da República Federativa do Brasil e como princípio-matriz do qual decorrem todos os direitos fundamentais, na forma do artigo 1º, III, da CRFB/88: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...) III - a dignidade da pessoa humana [...]”.12 Não obstante a dignidade da pessoa humana ser fundamento do Estado Democrático Brasileiro, diante da sua colisão com o direito à vida do feto deverá ser utilizada a ponderação de interesses, à luz da razoabilidade e da harmonização. Não se pode permitir que seja violado de forma arbitrária o direito fundamental de um feto que foi diagnosticado com uma deficiência, havendo claramente vida e possibilidade de vida após o parto. Entende-se que não seria razoável a autorização da violação da vida de um feto só porque vai nascer deficiente para que se evite o sofrimento da mãe. Se assim fosse, haveria retrocesso nos direitos fundamentais conquistados, mormente o direito fundamental à vida.

2. ANÁLISE SOBRE A POSSIBILIDADE DA APLICAÇÃO DA DECISÃO DO STF NA ADPF 54 NOS CASOS DE MICROCEFALIA A PARTIR DOS FUNDAMENTOS DOS VOTOS PROFERIDOS

Em 2004, foi proposta a ADPF n. 54 pela Confederação Nacional dos Trabalhadores

11 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF n. 54. Relator: Ministro Marco Aurélio. Disponível em: . Acesso em: 24 out.2016. 12BRASIL. Constituição Federal. Disponível em: . Acesso em: 23 out. 2016. 8

na Saúde, tendo como relator o Ministro Marco Aurélio Mello. Foi julgada oito anos após o ajuizamento, nos dias 11 e 12 de abril de 2012, numa votação em que estavam presentes 11 ministros do Supremo Tribunal Federal, com placar de 8 votos a favor da descriminalização do aborto de feto anencéfelo e 2 votos contra. 13 A Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde postulou na inicial a declaração de inconstitucionalidade da interpretação dos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Pena que criminaliza a antecipação terapêutica em caso de constatação de gravidez de feto anencéfalo por um profissional habilitado. Requereu-se que fosse dado a mulher gestante do direito de realizar o procedimento, dispensando-se autorização judicial ou qualquer outra modalidade de permissão do Estado. 14 O ministro Marco Aurélio Mello15 iniciou seu voto salientando o confronto de interesses nesse caso, pois de um lado há a necessidade de ser respeitada a dignidade da mulher e, de outro, o desejo da sociedade de proteger seus integrantes, sejam aqueles que já nasceram, sejam aqueles que ainda vão nascer. O julgamento da ADPF perpassa pela discussão da liberdade, do direito à vida e à saúde, da autodeterminação e dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Na fundamentação do seu voto, o ministro relator começou a discorrer sobre o Estado laico. Destacou que laicidade não se confunde com laicismo, posto que laicidade significa uma postura neutra do Estado, já laicismo revela uma atitude agressiva do Estado contra a religião. Dessa forma, a Constituição consagrou no artigo 5º, inciso VI16 a liberdade religiosa e estabeleceu a laicidade do Estado no artigo 19, inciso I17. No que tange à laicidade estatal, o ministro fez uma importante observação, no sentido de que tal princípio tem duas funções. A primeira é proteger as religiões de atitudes abusivas e repressivas do Estado. A segunda, por sua vez, é não permitir que o Estado sofra influências religiosas indevidas, de modo a rechaçar a imposição de concepções morais religiosas nas

13MIGALHAS. Marco Aurélio: Decisão histórica do STF permite aborto de feto anencéfalo. Disponível em: . Acesso em: 15 abr. 2017. 14 Ibid. 15 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF n. 54. Relator: Ministro Marco Aurélio Mello. Disponível em: . Acesso em: 15 abr. 2017. 16 Art. 5º. (...) VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e suas liturgias; [...] 17 Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvenciona-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles os seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público; [...] 9

decisões estatais. Nesse diapasão, as religiões não podem guiar as decisões do Estado quanto à realização e proteção de outros direitos fundamentais como o direito à saúde física e mental, o direito à liberdade de expressão, o direito à autodeterminação e o direito à liberdade no âmbito da reprodução. A ADPF em julgamento não poderia ser debatida e examinada sob concepções morais religiosas. Após a discussão sobre o Estado laico, o ministro Marco Aurélio18 expôs as características da anencefalia, no sentido de que a anomalia caracteriza-se pela ausência parcial do encéfalo e do crânio, de modo que o anencéfalo não possui atividade cortical, equiparando-se ao morto cerebral. Destaca que uma pessoa com essa anomalia não possui fenômenos da vida psíquica, como mobilidade, afetividade, cognição, comunicação, sensibilidade e consciência, sendo um morto cerebral com funções cardíacas e respiratórias. Para corroborar tais características, o ministro Marco Aurélio fez menção, ainda, da explanação dos especialistas em audiência pública, confirmando o fato de que o feto com anencefalia possui uma doença congênita letal, que não terá o desenvolvimento da massa encefálica em nenhum momento da sua vida após o nascimento. Houve uma longa exposição das especificidades da anomalia para se chegar à conclusão de que ela não tem cura e leva a uma ausência de potencialidade de vida, posto que, havendo um diagnóstico de anencefalia, não há possibilidade de vida extrauterina.19 Importante salientar que o ministro relator fez questão de ressaltar que a arguição de preceito fundamental em julgamento não se tratava de feto com deficiências como ausência de membros, Síndrome de Down, extrofia de bexiga, dentre outras doenças graves que permitam a vida extrauterina, mas sim de fetos que não teriam possibilidade de viver após o parto. 20 Nesse ponto do julgamento, faz-se necessária a alusão às características da microcefalia para que analise se o resultado do julgamento da ADPF 54 pode ser usado como paradigma para que haja a permissão do aborto de fetos diagnosticados com tal doença. A microcefalia não é uma doença que impossibilita a sobrevida extrauterina, trata-se exatamente de feto com deficiência, como bem ressaltado pelo ministro relator. A criança, apesar de apresentar problemas como déficit intelectual, alterações físicas, dificuldade de falar e andar, ela consegue viver em sociedade e ter uma melhor qualidade de vida se receber os cuidados da família e se for acompanhada por profissionais capacitados. Cuida-se, portanto,

18 Ibid. 19 Ibid. 20 Ibid. 10

de uma deficiência e não de um diagnóstico letal como ocorre na anencefalia, havendo total ausência de semelhança entre os diagnósticos.21 No que tange a anencefalia, o ministro relator prosseguiu seu voto afirmando que a anencefalia não se trata deficiência, mas sim de total falta de expectativa de vida após o nascimento, não havendo que se falar em violação do direito à vida ou discriminação de crianças deficientes. Dessa forma, afastou a aplicação da Convenção sobre os Direitos da Criança das Nações Unidas no que se refere ao direito à vida, bem como afirmou ser inaplicável o artigo 227 Constituição Federal no que dispõe sobre a proteção integral da criança e do adolescente, a defesa do direito à vida, à saúde e à dignidade, na medida em que como não há expectativa de vida após o parto, não se cogita a existência de uma criança, tampouco de um adolescente. O ministro trouxe outro argumento no sentido de que a mulher não poderia ser tratada como um objeto de reprodução, sendo obrigada a manter uma gravidez tão comente para viabilizar a doação de órgãos do seu filho que não terá vida após o parto, havendo flagrante violação de sua dignidade. Da mesma forma, inviável seria cabe invocar o direto à vida, já que o anencéfalo não tem viabilidade de vida. 22 Sustentou, ainda, o caráter não absoluto do direito à vida, já que a Constituição Federal permite a pena de morte nos casos de guerra declarada no artigo 5º, inciso XLVII. No âmbito infraconstitucional, também há previsão de relativização do direito à vida no artigo 128, incisos I e II, do Código Penal, não se punindo o aborto realizado com o intuito de salvar a vida da gestante e o aborto humanitário, quando a gravidez resulta de estupro. Em seu último argumento de defesa pela possibilidade de interrupção da gravidez nos casos de anencefalia, o ministro trouxe à discussão o direito à saúde, à dignidade, à liberdade, à autonomia e à privacidade da mulher. Realçou que, nesses casos, há um risco maior à saúde da gestante do que na gestação normal, podendo conduzir à hipertensão, partos prematuros, diabetes e hemorragia após o parto. Ademais, a manutenção da gravidez de um feto anencéfalo pode ocasionar grave lesão ao aspecto psíquico da mulher, pois, havendo a certeza do óbito, a mãe vai conduzir a gravidez com sentimento de dor, de desespero, de angústia e de luto, diferentemente da gestação normal em que a mulher, juntamente com sua família, vai acompanhando o desenvolvimento do feto com alegria, na expectativa do nascimento de uma criança saudável.

21BELTRAME, Beatriz. Como é a vida da criança que nasce com microcefalia. Disponível em:< https://www.tuasaude.com/tratamento-para-microcefalia/>. Acesso em: 15 abr. 2017. 22 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF n. 54. Relator: Ministro Marco Aurélio Mello. Disponível em: . Acesso em: 15 abr. 2017. 11

O ministro Marco Aurélio julgou procedente o pedido do autor, para fosse declarada a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é delito tipificado nos artigos 124, 126, 128, incisos I e II, do Código Penal. Também votaram pela procedência da ADPF nos ministros , Luís Roberto Barroso, Celso de Mello, Joaquim Barboza, Luiz Fux, Ayres Brito e as ministras Rosa Weber e Carmen Lúcia Antunes. Restaram vencidos os ministros e .23 O ministro Ricardo Lewandowski, ao votar pela improcedência da ação, relatou o risco da usurpação de poderes atribuídos aos integrantes do Congresso Nacional, pois cabe a ele alterar a legislação para incluir a anencefalia nas hipóteses em que o aborto não é criminalizado. A segunda fundamentação apresentada foi no sentido de que se houvesse permissão do aborto de fetos anencéfalos haveria a ampliação para a descriminalização do aborto de fetos com diversas outras patologias. O ministro Cezar Peluso24, por sua vez, alertou pela diferença entre o caso de uso de células tronco embrionárias em pesquisas permitido por meio da ADI n. 3.510 e o caso de feto com anencefalia, não havendo possibilidade de se aplicar o mesmo fundamento para a procedência da ação. O segundo argumento do ministro foi no sentido de que não cabe ao STF atuar como legislador positivo, sendo competência do Legislativo a inclusão do caso dos anencéfalos nas hipóteses autorizadoras do aborto. Diante dos argumentos expostos pelo ministro relator Marco Aurélio, no julgamento da ADPF n. 54, conclui-se que não é possível se equiparar a microcefalia à anencefalia para justificar o aborto, posto que não se trata de patologias semelhantes. Enquanto que na anencefalia há um feto com a certeza do óbito, na microcefalia tem-se um feto com uma grave deficiência, mas com possibilidade de vida e bom desenvolvimento, caso receba o devido acompanhamento médico e familiar. Nos casos de anencefalia, de fato, não há direito à vida a ser protegido, porém tal raciocínio não se coaduna com as características da microcefalia, já que se trata de um feto deficiente que merece proteção. A vida do feto com microcefalia está protegida internacionalmente por meio de tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que devem ser observados pelo

23MENEZES, Evandro Pinto de; CRUZ, Patrícia de Moraes. Aborto e anencefalia no Supremo Tribunal Federal. Disponível em: . Acesso em: 16 abr. 2017. 24 Ibid. 12

Brasil, na forma do artigo 5º, § 3º da CF/8825, e pelo próprio texto constitucional que é permeado de princípios e normas que protegem o direito à vida e à saúde, como bem preleciona o artigo 5º, caput26, garantindo a todos os brasileiros e aos estrangeiros residentes no País o direito à vida. Importante mencionar o artigo 227 da Constituição Federal que, com o intuito de proteger a criança de qualquer tratamento discriminatório, cruel ou violento, dispõe ser dever da família, da sociedade e do Estado assegurar o direito à vida e a proteção integral da criança, considerada sujeito de direito em desenvolvimento. O presente trabalho filia-se ao entendimento do ministro Lewandowski que, apesar de estar se referindo ao aborto de fetos com anencefalia, registrou que não pode haver ampliação da descriminalização do aborto para todo e qualquer caso de deficiência e patologia que surgir. Não se pode, ao arrepio da legislação vigente, permitir a interrupção da gestação em casos de malformações congênitas e anomalias, como no caso da microcefalia.

3. ARGUMENTOS CONTRA E A FAVOR DO ABORTO NO CASO DE DIAGNÓSTICO DE MICROCEFALIA E A NECESSÁRIA PROTEÇÃO DO FETO PORTADOR DA DEFICIÊNCIA

Diante da grande quantidade de bebês que nasceram com microcefalia no país entre os anos de 2015 e 2016 e com a repercussão dada ao julgamento pelo Supremo Tribunal Federal da ADPF 54 autorizando a interrupção da gravidez nos casos de anencefalia, importantes atores sociais começaram a discutir sobre a possibilidade de realização do aborto quando um feto for diagnosticado com microcefalia. A Organização das Nações Unidas27 já se manifestou no sentido de se permitir a realização do aborto nos casos de microcefalia. Nesse sentido, no dia 05 de fevereiro de 2016 o Alto Comissário para os Direitos Humanos da ONU Reid Ra’ad Hussein defendeu que o Estado devera garantir os direitos humanos da mulher, oferecendo uma resposta eficaz diante

25 Art. 5º, § 3º, CRFB: Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. 26 Art. 5º, CRFB: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] 27 INESC. Defender direitos das mulheres é essencial para a resposta do Zika, diz ONU. Disponível em: . Aceso em: 20 abr. 2017.

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do aumento de fetos diagnosticados com microcefalia, caracterizando-se uma grave situação de emergência:

Garantir os direitos humanos é essencial para uma resposta de saúde pública e eficaz, e isso requer que os governos assegurem a mulher, homens e adolescentes o acesso a informações e serviços de saúde sexual e reprodutiva de qualidade, integrais e acessíveis, sem discriminação. Os serviços de saúde devem ser prestados de forma que garanta o consentimento plenamente informado de uma mulher, respeite sua dignidade, assegure sua privacidade, e seja sensível a suas necessidades e perspectivas. As leis e políticas que restringem seu acesso a esses serviços devem ser revisada com urgência, conforme as obrigações de direitos humanos, visando a garantir na prática o direito a saúde para todas e todos.28

Daniel Sena29, em seu artigo “Sobre a constitucionalidade do aborto do feto com microcefalia” apresenta alguns argumentos para defender o aborto nesses casos. Dentre tais argumentos está a falta de estrutura da saúde publica tanto na prevenção da doença quanto no cuidado que devera ser oferecido a pessoa que nasce com microcefalia, pois ela necessitara de tratamento médico durante toda a sua vida. Segundo ele, defender a impossibilidade do aborto nesses casos seria tapar o sol com a peneira, pois haverá graves consequências do nascimento do bebê para a família e para a sociedade. Portanto, deveria ser respeitado o direito da autonomia de vontade da mulher, bem como a sua dignidade, pois só ela sabe se é capaz de criar um filho com esse tipo de doença. Pela defesa da vida do feto com microcefalia, o secretario de saúde do Rio Grande do Sul, Joao Gabbardo dos Reis30, se manifestou a favor dos casos permissivos do aborto previstos na legislação vigente, que admite o aborto nos casos de risco de vida gestante e nos casos de estupro, bem como aceita o aborto permitido pelo STF na ADPF n. 54 de feto com anencefalia. No entanto, afirma categoricamente que não se pode comprar uma criança com microcefalia a uma criança anencéfala. Contra o aborto de feto com microcefalia se manifestou Jeffrey Chiquini31 em seu artigo “Abortamento de feto com microcefalia”. Ele afirma que permitir o aborto nesses casos seria uma forma de aplaudir a prestação deficiente do Estado no que tange a proteção à vida que é o bem jurídico mais importante do ser humano, bem como revelaria uma espécie de

28 Ibid. 29 SENA, Daniel. Sobre a constitucionalidade do aborto do feto com microcefalia. Disponível em: . Acesso em: 20 abr. 2017. 30 LABOISSIÈRE, Paula. ONU defende o direito ao aborto em países atingidos pelo Zika. Disponível em: < http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2016-02/paises-com-surto-de-zika-devem-autorizar-aborto-defende- onu >. Acesso em: 20 abr. 2017. 31CHIQUINI, Jeffrey. Abortamento de feto com microcefalia. Disponível em: . Acesso em: 30 abr. 2017. 14

aborto eugênico, posto que haveria uma seleção da espécie humana, eliminando os deficientes, ao invés de protegê-los de forma completa e eficaz. A revista Consultor Jurídico32 ouviu a opinião de alguns juristas quanto ao aborto de fetos com microcefalia e a opinião majoritária foi no sentido de que a decisão do STF na ADPF 54 sobre a permissão do aborto de feto anencéfalo não se aplica ao caso microcefalia, pois nem sempre essa doença condena o feto à morte. O ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal Carlos Velloso33 afirmou que a anencefalia apresenta efeitos diferentes da microcefalia, sendo injustificado tratamento semelhante aos dois casos. Segundo ele, eliminar uma criança que vai nascer com uma anomalia cerebral seria uma brutalidade e uma forma de eugenia, o que se assemelharia a ideia de um mundo sem deficientes de Adolf Hitler. Seguindo a mesma linha de entendimento, o professor de Direito Constitucional da Universidade de São Paulo Jose Levi Mello do Amaral Junior34 defende que o feto atingido pela microcefalia não está impossibilitado de ter uma vida extrauterina, podendo superar suas limitações com o devido acompanhamento de especialistas da saúde e até mesmo colar grau em curso superior. Assim, permitir o aborto nesse caso seria uma forma de vulgarizar o que o ordenamento jurídico brasileiro trata como excepcional, seria uma manobra jurídica. Em sentido contrário, o ministro Marco Aurélio35 defendeu a possibilidade da mulher grávida de feto com microcefalia realizar a interrupção da gestação. No entanto, ele não fundamenta sua opinião com base na chance de vida que possui o feto com microcefalia, mas com base no respeito à dignidade da mulher gestante. Afirmou que o conhecimento das limitações que seu filho apresentara traz um sofrimento que pode prejudicar a saúde física e mental da mulher, revelando prejuízos materiais e morais, aptos a permitir a interrupção da gravidez. Na busca pela permissividade da interrupção da gravidez de feto com microcefalia, é importante salientar que no dia 24/08/2016 a ANADEP (Associação Nacional dos Defensores Públicos), com apoio da ANIS (Instituto de Bioética) propôs a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 5581) cumulada de pedidos de Ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental perante o Supremo Tribunal Federal.

32 RODAS, Sérgio. Decisão do STF sobre aborto de anencéfalo não se aplica a feto com microcefalia. Disponível em: . Acesso em: 30 abr. 2017. 33 Ibid. 34 Ibid. 35 Ibid. 15

Ambos os institutos pleitearam pela garantia de direitos que estão sendo violados com o surto de infecções pelo zika vírus, pela efetivação de políticas públicas que venham dar apoio às mulheres e crianças afetadas pela epidemia e pela possibilidade de realização do aborto, de forma excepcional, quando detectado o sofrimento psíquico da gestante. Da mesma forma que o Ministro Marco Aurélio36, em opinião declarada na revista Consultor Jurídico, se manifestou pela possibilidade do aborto com o objetivo de proteger a mulher gestante, a petição inicial da ADI n. 5581 calca sua fundamentação não na ausência de expectativa de vida fora do útero para o bebê portador da microcefalia, mas sim na proteção da saúde psicológica da mulher e da sua liberdade de escolha de criar ou não uma criança portadora dessa doença. No mérito da ADI n. 5581, o Procurador Geral da República37 apresentou parecer favorável ao aborto nos casos de contaminação pelo zika vírus. A Advocacia Geral da União e o Senado Federal38, de modo diverso, se manifestaram pela impossibilidade do aborto nesses casos, posto que é necessária a proteção do direito à vida desde a concepção, não havendo elementos suficientes que demonstrem que a saúde psicológica da mãe estará melhor pela autorização da interrupção da gravidez do que pela manutenção dela. Diante dos argumentos acima expostos, o presente trabalho opina pela impossibilidade da interrupção da gravidez de feto com microcefalia, posto que impedir o nascimento de criança deficiente seria uma forma de eugenia e é dever do Estado, da sociedade e da família assegurar à criança o direito à vida. Não se pode aceitar que haja eliminação de fetos com deficiência com o intuito de proteger a mãe de um sofrimento futuro, pois aceitar a interrupção da gravidez nessa hipótese possibilitaria que mulheres grávidas de fetos com outros tipos de anomalias também pleiteassem o direito a realização do aborto. Assim, criar-se-ia uma sociedade livre de deficientes físicos, evitando-se sofrimento da gestante à custa da vida de uma criança com capacidade nascer e apresentar um bom desenvolvimento em sua vida em sociedade. Insta salientar que a Constituição Federal estabeleceu os direitos e garantias individuais como cláusula pétrea no artigo 60, § 4º, inciso IV: “Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir direitos e garantias individuais”. Nesse diapasão, não poderá o Poder Judiciário permitir a violação do direito fundamental à vida de uma pessoa

36 Ibid. 37 AZEVEDO, Ana Lúcia; BERGAMASCHI, Lara. STF vai decidir sobre direito de aborto em caso de infecção por zika. Disponível em: . Acesso em: 30 abr. 2017. 38 Ibid. 16

com deficiência se a própria Constituição não permite que emenda constitucional seja aprovada com esse propósito. É imperiosa a criação e efetivação de políticas públicas destinadas à prevenção da contaminação pelo zika vírus, por meio de campanhas de vacinação e de eliminação do mosquito transmissor numa ação conjunta do Estado com a sociedade. Trata-se de medida efetivadora do direito social à saúde consubstanciado no artigo 6º da Constituição Federal: “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”.39 Dessa forma, faz-se necessário atacar a causa da doença ao invés de afastar a consequência com a realização do aborto do feto doente, evitando-se que um ser inocente pague pela omissão no Estado no combate de epidemias públicas. O feto com deficiência carece de proteção, não podendo ser eliminado, tampouco discriminado por ser diagnosticado com a microcefalia.

CONCLUSÃO

A discussão sobre a possibilidade de autorização do aborto nos casos de microcefalia, utilizando-se o julgamento permissivo da interrupção da gravidez de feto anencéfalo na ADPF n. 54 pelo Supremo Tribunal Federal, traz consigo a necessidade de uma análise pormenorizada de diversos direitos já consolidados no ordenamento jurídico brasileiro. No âmbito dessa discussão, há uma contraposição do direito à vida do feto e da dignidade da mulher gestante. Tendo em vista que o Brasil garante a todos, indistintamente, o direito à vida no artigo 5º, caput, da Constituição Federal, bem como se tornou signatário do Pacto San José da Costa Rica que versa sobre direitos humanos e trata o direito à vida como um direito fundamental, não se pode permitir que seja eliminada a vida de um feto pelo fato de ele apresentar uma deficiência como a microcefalia. No que tange aos votos condutores da discussão na ADPF n. 54, os ministros que votaram pela possibilidade do aborto nos casos de anencefalia trouxerem como fundamentação de seus votos a ausência de vida do feto com anencefalia, o caráter não absoluto do direito à vida e a impossibilidade de tratamento da mulher como um objeto de reprodução, fazendo-se necessária a proteção da mulher gestante.

39BRASIL. Constituição Federal. Disponível em: . Acesso em: 30 abr. 2017. 17

Os fundamentos utilizados pelos ministros que votaram a favor da interrupção da gravidez de feto anencéfalo não podem ser utilizados para que também seja permitido o aborto de feto com microcefalia, pois enquanto que na anencefalia o feto não tem possibilidade de vida extrauterina, não havendo vida a se proteger, na microcefalia o feto, embora deficiente, pode se desenvolver e ter qualidade de vida, se receber o devido acompanhamento da família e de profissionais capacitados. Além disso, permitir o aborto do feto com microcefalia com base na proteção da dignidade da mulher gestante é permitir que se pratique uma forma de eugenia no Brasil, de modo a eliminar os fetos que possuem deficiência. Se assim for, outras formas de deficiências graves podem ser motivo para a realização do aborto com o objetivo de proteger o estado psíquico da mãe. As pessoas com deficiência são consideradas pessoas vulneráveis na sociedade, carentes de proteção e inclusão. Nesse sentido, as referidas normas garantem o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais da pessoa deficiente em igualdade de condições com as demais pessoas, sendo protegidas de qualquer forma de discriminação, exploração, violência ou crueldade. Dessa forma, a autorização do aborto de fetos com microcefalia calcada na proteção da mulher gestante e consequente eliminação de uma criança deficiente seria uma atitude contraditória do Estado e um retrocesso aos direitos conquistados pelas pessoas com deficiência. Portanto, conclui-se que não é possível a aplicação do julgamento da ADPF n. 54 para que seja permitida a realização da interrupção da gravidez nos casos de feto diagnosticado com microcefalia, devendo o Estado e os setores da sociedade criar políticas públicas e projetos sociais de eliminação da causa da doença, bem como de assistência e apoio às famílias que possuem um filho com microcefalia.

REFERÊNCIAS

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18

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